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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

LUCIANO CARVALHO CARDOSO

O papel da Intuição na fundamentação da aritmética no


pensamento de Frege

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação de Doutorado em
Filosofia da Universidade Federal de
São Paulo, como requisito para
participação do processo seletivo para
concessão de bolsa de estudos Capes
Demanda Social.

LINHA DE PESQUISA:

Metafísica, Ciência e Linguagem

Guarulhos

2015
O papel da Intuição na fundamentação da aritmética no
pensamento de Frege

O posicionamento de Frege a respeito da analiticidade da aritmética é posta no


debate fundacional do projeto logicista em 1884, na redação dos Fundamentos
da Aritmética. Essa obra de Frege apresenta um forte intento de combater as
principais correntes filosóficas vigentes no período. Combate o empirismo e o
método mecanicista e agregacionista. Ataca o psicologismo e o subjetivismo.
Mas, sobretudo, ela estruturalmente se coloca contra a corrente kantiana. Na
verdade, resolver o problema colocado pela necessidade de estabelecer os
fundamentos da aritmética implica em definir uma posição a respeito das
verdades analíticas ou sintéticas a priori encontradas na aritmética. Como
Frege o expressa:

Se de outros pontos de vista e de maneira fundamentada


concluirmos que os princípios da aritmética são
analíticos, isso testemunhará também em favor de sua
demonstrabilidade e da definibilidade do conceito de
número. As razões em favor do caráter a posteriori
destas verdades terão um efeito contrário. (FREGE, G.
Os Fundamentos da Aritmética, pg. 95)

Essa passagem estabelece as condições iniciais de partida do autor na busca


da demonstrabilidade da definição do conceito de número. Tal necessidade de
definibilidade é o motor condicional da investigação. A demonstração, a
exemplo de Euclides, evidencia, para Frege, o arcabouço lógico oculto sob as
tentativas de explicar os números empiricamente ou gramaticalmente. O erro
do empirismo consiste em acreditar que os números se definem por seu caráter
abstrato de representar a agregação mecânica de objetos concretos. Caráter
de abstração, no entanto, que torna indemonstrável o conceito de número,
sempre condicionado às condições concretas e arbitrárias da experiência ou
mesmo das condições psicológicas que influenciariam essa representação. Já
o erro da linguagem seria tomar o número como propriedade dos sujeitos,
representando-os como predicados que atribuem uma quantidade ao sujeito de
um enunciado qualquer. Essa atribuição, todavia, não escapa do contexto da
representação entre linguagem e mundo, e alterna-se entre as condições
psicológicas.

Portanto, atender ao critério de demonstrabilidade do conceito de número


implica na exclusão de quaisquer considerações a posteriori como forma de
conhecimento ou demonstração do conceito de número. A questão
epistemológica envolvida nessa investigação, por si só, justifica a adoção dos
conceitos kantianos de a priori, a posteriori, analítico e sintético, pois elas
adentram a questão do juízo e das condições de aferição de verdade:

As distinções entre a priori e a posteriori, sintético e


analítico, concernem, a meu ver, não ao conteúdo do
juízo, mas à justificação da emissão do juízo. Pois onde
não há esta justificação, desaparece também a
possibilidade daquela divisão. Um erro a priori é neste
caso algo tão absurdo quanto, digamos, um conceito
azul. Se uma proposição é, em meu sentido, chamada
de a posteriori, ou de analítica, estão em julgamento não
as condições psicológicas, fisiológicas e físicas que
tornam possível formar na consciência o conceito do
juízo, nem tampouco a maneira como alguém mais,
talvez erroneamente, chegou a tomá-la por verdadeira,
mas sim aquilo sobre o que se assenta mais
fundamentalmente a justificação de ser ela tomada como
verdadeira. (FREGE, G. FA, pg. 94.

A justificativa dos referidos juízos evidencia o nível de validade destes, na


medida em que sinaliza para o tipo de verdade a ser asserida. Se a justificativa
for enraizada nas leis lógicas gerais e definições, a demonstração seguirá pela
via dos conhecimentos analíticos. Se a demonstração necessitar de
conhecimentos e verdades fora do campo da lógica geral, evidenciará um juízo
sintético. E, por fim, se a justificativa necessitar recorrer a questões de fato,
suas verdades são indemonstráveis, recorrendo a objetos determinados.

A indemonstrabilidade das verdades referentes às questões de fato, casos nos


quais se enquadram o empirismo, o mecanicismo e o psicologismo, estão no
campo a posteriori de juízos. Explicar o conceito de número por essa via torna
impossível a demonstração dos juízos, da justificação dos mesmos e das
supostas verdades da aritmética. Por esse motivo, Frege a recusa,
reconhecendo que, no limite, resultaria em uma questão de relativismo.

Mas por que contradizer Kant, em sua afirmação de que o fundamento da


aritmética, assim como a geometria, seria sintético a priori?

O primeiro apontamento de Frege contra o caráter sintético a priori da


aritmética se dá no § 12 dos Fundamentos, onde ele indaga se deveríamos
optar pelo caráter sintético a priori ou analítico:

Kant decidiu-se em favor da primeira. Neste caso, não há


praticamente outra alternativa senão apelar para uma
intuição pura como fundamento último de conhecimento,
embora aqui seja difícil dizer se ela é espacial ou
temporal, ou de qualquer outra espécie. (FREGE, G. FA,
pg. 103)

O obstáculo imediato que se coloca para Frege encontra-se no fato da


ausência de clareza sobre a que exatamente nos referimos ao utilizarmos a
expressão “intuição” como o recurso sobre o qual podemos fundamentar um
determinado tipo de conhecimento. O sentido do termo ele procura no próprio
Kant, em sua definição extraída da Lógica Transcendental. Pela definição
kantiana1, a intuição seria uma representação singular, que se colocaria em
contraponto ao conceito, uma representação geral ou refletida.

A observação de Frege, enunciada a seguir, reflete a necessidade que surge


da definição de representação singular. Essa representação carregaria algo de
arbitrário? O que tornaria essa representação singular? E qual seria a instância
de validação dessa representação para a intuição? Segue-se a observação de
Frege:

Não se faz absolutamente menção à relação com a


sensibilidade, que é contudo introduzida na Estética
Transcendental, e sem a qual a intuição não pode servir
de princípio de conhecimento para os juízos sintéticos a
priori. (FREGE, G. FA, pg. 104)

De fato, de acordo com Kant, apenas a sensibilidade nos fornece intuições,


pois é por meio dela que nos são dados os objetos. Porém, a sensibilidade, no
sentido que Frege atribui a Kant, não pode aplicar-se aos números. Em linhas
gerais, a sensibilidade apreende objetos e gera intuições a partir da
generalização daquilo que há em comum entre eles. Daí poder-se conceber as
leis geométricas por esse caminho da intuição. Segundo Frege, as verdades
geométricas governam o campo do intuível espacialmente. Porém, a
particularidade dos números não pode ser apreendida dessa forma. No limite,
se assim o fosse, o conceito de número seria tão indemonstrável como se
estivéssemos falando de verdades de fato. Por esse motivo, a rejeição da
fundamentação da aritmética nas verdades sintéticas a priori é derivativa de
sua recusa da intuição, o que o leva a expressar: Mas tomada nesse sentido
(isto é, recebendo suas fontes da sensibilidade) a intuição não pode servir de
fundamento para as leis da aritmética (Idem, pg. 104).

É nesse sentido que Frege radica os números em um campo próprio, mais


amplo, o do enumerável, que abrange todo o intuível, mesmo o pensável2.

As verdades aritméticas governam o domínio do


enumerável. Este é o mais inclusivo; pois não lhe
pertence apenas o efetivamente real, não apenas o
intuível, mas todo o pensável. Não deveriam, portanto,
as leis dos números manter com as do pensamento a
mais íntima das conexões? (FREGE, G. Os
Fundamentos da Aritmética, §14, pg. 217).

Essa conexão, ademais, consiste no ponto de permeabilidade entre


matemática e linguagem, entre os números e o pensamento. Essa instância faz
com que os números compartilhem das mesmas leis do pensamento, e essas
1
KANT, I. CRP, A17/B31.

2
Mark Textor (2011) corrobora essa abordagem em Frege, On Sense and Reference, pgs. 17 e 18.
leis, por serem leis lógicas, seriam analíticas.

Considerando que Frege, em todos os trabalhos posteriores aos Fundamentos,


equipara a fundamentação da aritmética à do pensamento, uma vez que
ambos compartilhariam das mesmas leis lógicas, convém determo-nos na
notoriedade que encontramos ao identificarmos uma reconsideração de sua
posição acerca da intuição em seus textos tardios, e indagarmo-nos sobre
quais seriam os contextos que poderiam justificar sua nova posição.

No escrito póstumo denominado “Uma nova tentativa de Fundamentação para


a Aritmética”, de 1924-25, encontramos a seguinte afirmação:
Tive de abandonar a visão de que a aritmética
não precisa apelar para a intuição em suas
provas, entendendo por intuição a fonte
geométrica do conhecimento, isto é, a fonte da
qual brotam os axiomas da geometria. (FREGE. G,
A New Attempt at a Foundation for Arithmetic, pg.
278)

De tudo o que expusemos acima, poderíamos conceber inúmeros


pontos nos quais Frege poderia concordar ou aceder a Kant, como de
fato o constatamos em sua aceitação da definição de Kant sobre os
conceitos de a priori e a posteriori, analítico e sintético. Porém,
dificilmente esperaríamos encontrar uma aproximação justamente no
ponto nevrálgico de sua recusa a Kant, a intuição. E não se trata de
uma interpretação de intuição diversa da intuição kantiana. Pois,
como o próprio autor sugere, essa é a mesma intuição fundadora dos
axiomas geométricos. Entretanto, se o critério de prova adotado por
Frege pressupunha, mesmo exigia, a demonstrabilidade como
evidência de prova do conceito de número, o que significa reconhecer
que deve-se apelar para a intuição em suas provas? Ou significa que
Frege encontrou uma forma de demonstração da intuição, ou ele
passa a descartar a demonstrabilidade na validação da prova do
conceito de número. Em outros termos, podemos dizer que ou Frege
encontrou uma forma de incluir a intuição nas leis lógicas, ou ele
separa a fundamentação da aritmética das leis lógicas do
pensamento.
Referências Bibliográficas

FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética. São Paulo: Ed.: Nova Cultural,


1989.

___________. Posthumous Writings. University of Chicago Press, 1979.

TEXTOR, M. Frege On Sense and Reference. London: Ed.: Routledge, 2006.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Ed: Fundação Calouste


Gulbekian, 5ª Edição, 2001.

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