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Resenha 2, Introdução às Leis Fundamentais da Aritmética

João Victor Ferreira de Almeida

O Logicismo de Frege
1. Introdução
O logicismo é uma das três grandes teorias sobre a fundamentação da
matemática, que dominaram a filosofia da matemática no início do século XX
(anteriormente aos teoremas de Godel), ao lado do intuicionismo e do
formalismo. Grosso modo, o logicismo é a teoria que afirma que ao menos uma
parte da matemática pode ser reduzida à lógica. O sentido em que se deve
entender essa redução será precisado abaixo. As duas versões clássicas do
logicismo são as do Russel, largamente desenvolvida no Principia Matematica,
que tinha por finalidade reduzir toda a matemática à lógica, e a versão de Frege
e Dedekind, que tinha por finalidade reduzir somente a aritmética à lógica. A partir
A principal motivação para a Conceitografia (, obra seminal da lógica
matemática, foi exatamente fundamentar a aritmética com o logicismo. Este
projeto teve sequência em seu Fundamentos da Aritmética ( , e nas Leis
Fundamentais da Aritmética, sendo a última, a obra em que o projeto é
desenvolvido detalhadamente.
2. A analiticidade da aritmética contra Kant
Fundamental para o projeto logicista do Frege foi negar que a afirmação
kantiana de que proposições da aritmética são sintéticas, o que exigiria um
recurso à intuição, que transcende a lógica. Nesta seção vou tratar da crítica de
Frege à Kant nos Fundamentos da Aritmética.
A grande pergunta que moveu os esforços de Kant na Crítica da Razão
Pura é “como são possíveis os juízos sintéticos a priori?”, tipo no qual se inclui
os juízos da aritmética. Que os juízos da aritmética sejam a priori parece evidente
(posição contraintuitiva é a sua negação), mas que sejam sintéticos demanda
maiores explicações. Vejamos o que Kant, na Crítica da Razão Pura (1781), tem
a nos dizer:
À primeira vista poder-se-ia, sem dúvida, pensar que a proposição 7+5=12 é uma proposição
simplesmente analítica, resultante em virtude do princípio de contradição, do conceito da soma
de 7 e de 5. Porém, quando se observa de mais de perto, verifica-se que o conceito de soma de
7 e de 5 nada mais contém do que reunião de dois números em um só, pelo que, de modo algum
é pensado qual é esse número único que reúne os dois. O conceito de 12 de modo alguma foi
pensado por ter se concebido essa reunião de 7 e de 5 e, por mais que analise o conceito de tal
soma possível, não encontrarei nele o número 12. Temos que superar esses conceitos
procurando a ajuda da intuição que corresponde a um deles, por exemplo os 5 dedos da mão
(ou como Segner em sua aritmética) 5 pontos, e assim acrescentar uma a uma, ao conceito de
7, as unidades do número 5 dadas na intuição. (citado em Frege, 1884)

Juízos analíticos são, portanto, aqueles que resultam da aplicação do


princípio de não contradição aos seus conceitos, e nada mais. Outra maneira de
apresentar o mesmo, presente na Crítica da Razão Pura, é que juízos analíticos
são aqueles nos quais o predicado está contido na definição do sujeito, sendo
por isso não ampliativos. “O triângulo da bandeira do estado Minas gerais tem
três lados” é verdadeiro porque pela mera aplicação da não contradição aos
conceitos de “triângulo” e “tem três lados” pode-se asserir que o juízo é
verdadeiro, ou simplesmente porque o predicado “tem três lados” está contido
na definição de triângulo. Muito diferente deste juízo é “o triângulo da bandeira
do estado de Minas Gerais é vermelho”, cujo predicado “é vermelho” jamais
poderia ser deduzido da definição do sujeito, sabemos disso pelos conceitos
somados à intuição empírica de que o triângulo em questão é vermelho.
Portanto, um juízo sintético a posteriori. Mas os juízos da matemática não são,
para Kant, a posteriori. A intuição a que ele recorre é a intuição a priori do tempo,
uma condição necessária à experiência dos estados internos da mente, uma
forma pura de intuição. Este recurso a intuição, e seu caráter não empírico é que
fazem dela a um só tempo sintética e a priori. No exemplo kantiano, 5+7=12, não
poderia ser inferido como um juízo analítico, é necessário recorrer a intuição de
um deles, e acrescentar sucessivamente as unidades de um a outro para
chegarmos ao resultado. É por causa da necessidade da intuição da sucessão
de unidades que Kant à forma pura de intuição do tempo, cuja característica
essencial é precisamente a sucessão.
É contra recurso à intuição que Frege se volta. Frege apresenta dois
argumentos contra a tese kantiana. Em primeiro lugar,
De modo geral, será conveniente não sobrestimar o parentesco com a geometria. Já citei uma
passagem leibniziana a este respeito. Um ponto geométrico considerado em si mesmo não se
pode absolutamente distinguir de qualquer outro; o mesmo vale para retas e planos. Vários
pontos, retas, planos podem distinguir-se apenas quando apreendidos simultaneamente em uma
intuição. Se em geometria leis gerais são obtidas a partir da intuição, isto explica-se pelo fato de
que os pontos, retas e planos intuídos não são propriamente particulares, podendo por isso valer
como representantes de toda sua espécie. Isto não ocorre no caso dos números: cada um tem
sua peculiaridade. Em que medida um número determinado pode representar todos os outros, e
em que momento sua particularidade se faz valer, é algo que não se pode dizer de antemão.
(Frege, 1884)

Assim, a intuição, entendida como “representação singular”, pode


fundamentar leis para a geometria porque há nos objetos da geometria (pontos,
linhas, planos...), quando considerados em si mesmos, rigorosa identidade, o
que não ocorre entre os números. Um ponto, considerado em si mesmo é
indiscernível do outro, mas 7 é certamente muito diferente de 46: um é ímpar, o
outro é par; um é primo, o outro tem divisores inteiros; um é composto apenas
de unidades, o outro de dezenas e unidades, e assim por diante. Por isso é que
não se pode dizer de antemão em que medida um número pode representar
todos os outros.
O segundo argumento de Frege contra Kant é que as verdades da
geometria são contingentes em relação às leis lógicas primitivas, pois, segundo
Frege, é concebível que esse ou aquele axioma da geometria seja o oposto do
que é:
Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre assumir o contrário deste ou
daquele axioma geométrico, sem incorrer em contradições ao serem feitas deduções a partir de
tais assunções contraditórias com a intuição. Esta possibilidade mostra que os axiomas
geométricos são independentes entre si e em relação às leis lógicas primitivas, e, portanto,
sintéticos. Pode-se dizer o mesmo dos princípios da ciência dos números? Não teríamos uma
total confusão caso pretendêssemos rejeitar um deles? Seria então ainda possível o
pensamento? O fundamento da aritmética não é mais profundo que o de todo saber empírico,
mais profundo mesmo que o da geometria? As verdades aritméticas governam o domínio do
enumerável. Este é o mais inclusivo; pois não lhe pertence apenas o efetivamente real, não
apenas o intuível, mas todo o pensável. Não deveriam, portanto, dizer que as leis dos números
mantem com as do pensamento a mais íntima das conexões? (Frege, 1884)

Claro que os enunciados sobre aritmética, para Frege, tem caráter muito
diferente dos geométricos, e que as perguntas acima são retóricas. Aqui Frege
começa a indicar a indissociabilidade da aritmética em relação à lógica: ao
contrário do que acontece com a geometria, caso tentássemos rejeitar axiomas
da aritmética teríamos contradição e confusão; as leis da aritmética não
pertencem meramente ao que é intuível, mas ao que é pensável. “Não
deveríamos, portanto, dizer que as leis dos números mantem com as dos
pensamentos a mais íntima das conexões?” Fundadas no que é pensável e não
no que é intuível, e necessárias ao invés de contingentes, as leis da aritmética
devem ter com as leis dos pensamentos “a mais íntima das conexões”. Essas
leis do pensamento, claro, não são leis psicológicas, mas leis da preservação da
verdade, leis lógicas. Aqui fica claro que a partir de sua defesa da analiticidade
dos enunciados da aritmética, emerge seu logicismo.
3. O conceito de número nos Fundamentos da Aritmética
Em Fundamentos da Aritmética, Frege vê o conceito de número de seus
contemporâneos como confuso. Ele vê seus colegas presos em definições
psicologistas e empiristas, como abordado na primeira parte. Mas além disso,
lhe incomodava a tese segundo a qual os números eram entendidos como
propriedades de primeira ordem:
Se dou a alguém uma pedra e digo "determine seu peso", dei-lhe assim todo o objeto de uma
investigação. No entanto, se dou-lhe nas mãos um maço de cartas de jogar e digo "determine
seu número", ele não saberá se desejo conhecer o número de cartas, de jogos completos ou,
digamos, de unidades de valor no jogo de skat. Dando-lhe o maço nas mãos, nem por isso dei-
lhe de modo completo, o objeto de sua investigação; devo acrescentar uma palavra: carta, jogo,
unidade de valor. (Frege, 1884)

Ele nos pede para considerar um maço de cartas, e nos pergunta: “qual o número
desse objeto?”. Frege aponta que sem especificar o conceito a que se refere a
numeração, não há como responder precisamente a essa pergunta: a
numeração pode referir-se aos baralhos (2), ao maço (1), às cartas (104), aos
naipes (4)... Vê-se que definição de número do alemão assenta-se em sua
diferença entre conceito e objeto. O objeto, o maço de cartas físico,
conceitualmente indeterminado, é sempre o mesmo, mas esse pode ter
diferentes modos apresentação, que caracterizam os diversos conceitos
possíveis que se aplicam a ele (cartas, átomos, moléculas, naipes e etc). O
número deve ser, assim, uma propriedade de um conceito, como o número de
baralhos sobre a mesa, o número de cartas contidas no maço, o número de
maços sobre a mesa, o número de átomos componentes das cartas que
compõem o baralho, e assim sucessivamente; e não uma propriedade de um
objeto, como uma cor, massa, ou altura.
A definição dos números como propriedades de segunda ordem será
fundamental para seu projeto: se os números são propriedades, podem ser
reduzidos a classes, inicialmente entidades lógicas; se são propriedades de
segunda ordem, não podem ser cognoscível por intuição, e são analíticos.

4. O desenvolvimento do logicismo nas Leis Fundamentais da Aritmética


Em Leis Fundamentais da Aritmética Frege desenvolve muito o sistema
lógica da Conceitografia. Há mudanças notacionais e a apresentação de novos
axiomas.
b) As Leis Fundamentais
Lei número I
Se A, então, se B, então A.
É também o axioma 1 da Conceitografia. É fácil ver que é válido: se a for falso,
como antecedente do condicional é falso, será verdadeiro o condicional; se A for
verdadeiro, o condicional de B em A será verdadeiro, e sendo ele o consequente
de toda a fórmula, ela também será verdadeira.

Lei número II
Se para todo x Px, então Pa.
É simplesmente a lei da instanciação universal.

Lei número III


Se A=B, então para todo x, se Ax, então Bx.
É similar a indiscernibilidade dos idênticos.
Lei número IV
(¬(Δ↔¬Γ))→(Δ↔Γ)
Se não é o caso que delta, sse, não gama, então Gama, sse delta.

Os números naturais são definidos de modo estritamente lógico assim:


0= diferentes de si mesmo
1= número que convém ao conceito de igual a 0
2= número que convém ao conceito de igual a 0 ou 1
3= número que convém ao conceito de 0 ou 1 ou 2

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