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CONCEITO E DEFINIÇÃO DE NÚMERO EM FREGE

Renato E. de Escobar1

Erechim/RS – março/2022

O presente trabalho pretende fazer uma síntese dos parágrafos 18 ao 28, (capítulo II) da
obra “Os Fundamentos da Aritmética” de Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925)
tentando traçar as similaridades ali traçadas, em sua tentativa de conceituar e definir o
“número”. Para esta síntese foi utilizada a edição de Victor Civita de 1974, da coleção
Os Pensadores Vol.36, de 1974. Também como leitura complementar se utilizou o
polígrafo fornecido pelo professor.

Em “Os Fundamentos da Aritmética”, no capítulo II, Frege citas as opiniões de alguns


autores sobre o conceito de número, afirmando que esse conceito passa por uma
distinção quanto aos objetos primitivos da aritmética. Com isso o autor remete o
conceito a uma distinção entre números singulares e ao próprio conceito geral de
número. Nessa digressão Frege objeta que é melhor derivar os números singulares a
partir do um e do aumento em um, ao estilo de Leibniz2, porém, observa que estas
definições permanecem incompletas, pois ainda fica em aberto o conceito de “um” e o
incremento de “um em um”. Assim, seriam necessárias leis gerais para derivar fórmulas
numéricas, o que acarretaria tão-somente em conceitos gerais de número, e não de
definições dos números singulares. (FREGE,1974, p.224)

Frege também cita o conceito segundo Newton3, que coloca o número como uma
proporção abstrata entre cada grandeza e uma outra, de mesma espécie, tomada por
unidade. Nesse sentido, Frege observa que Newton concede ser satisfatório descrever o
número em sentido mais amplo, incluindo-se aí as frações e os números irracionais.
Porém objeta que nessa definição estariam também inclusos os conceitos de grandezas e
proporções entre grandezas, o que restringiria a definição ao conceito de número
cardinal, que pela ótica euclidiana, seria necessário também o conceito de equimúltiplo
para que se possa definir a igualdade de duas proporções entre igualdades. Nesse

1
Acadêmico do Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul – Campus
de Erechim – RS, na disciplina optativa de Filosofia Contemporânea-IV – Filosofia da Matemática,
ministrada pelo Prof. Dr. Bruno Ramos Mendonça.
2
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi um proeminente polímata e filósofo alemão, e figura central
na história da matemática e na história da filosofia. Sua realização mais notável foi conceber as ideias de
cálculo diferencial e integral, independentemente dos desenvolvimentos contemporâneos de Isaac
Newton.
3
Isaac Newton (1643-1727) foi um matemático, físico, astrônomo, teólogo e autor inglês que é
amplamente reconhecido como um dos cientistas mais influentes de todos os tempos e como uma
figura-chave na Revolução Científica.

1
sentido a dúvida entre número geometricamente definido e numero ordinário persistiria,
afastando assim, o conceito da ciência. (FREGE,1974, p.225)

Coloca-se aí a questão de saber se a aritmética enquanto fundamentação de


procedimento científico pode se satisfazer com um conceito geométrico de número, em
se tratando de raízes, números primos, e outros casos semelhantes. O questionamento
fica em aberto quanto à quantidade. Se Newton pretendesse entender por grandeza um
número sendo definido como proporção entre a mesma, não apenas como grandeza
geométrica, mas também conjuntos, então o cálculo com números negativos,
fracionários e irracionais reduzir-se-ia tão somente ao cálculo com números naturais.
Nesse caso, Frege adverte que essa definição seria inútil para os fins propostos, pois
tanto expressões que determinam conjuntos quanto as que representam proporções entre
conjunto e unidade, seriam redundantes, pois uma não informaria mais que a outra no
quesito “quanto”.

Indo adiante, Frege tenta perscrutar a definição de número em Hankel 4, objetando que
este autor é contrário a esta possibilidade, pois este argumenta que esta definição é
impossível uma vez que não se pode definir quantitativamente um conceito pela sua
simplicidade do conceito de posição. Frege objeta que a posição é menos importante
que a quantidade, invocando Leibniz que afirmava que essa definição não tinha
importância por considerar que o conceito de número é claro por si só. Deste modo, se
persiste a tendência a se manter o conceito de número como indefinível, isto se dá mais
ao fracasso das tentativas do que à existência das razões contrárias ao próprio tema.
(FREGE,1974, p.225).

Uma vez que a tentativa de se procurar essa definição em si mesmo parece fadada ao
fracasso, Frege passa a questionar se o número é uma propriedade das coisas exteriores,
tentando indicar a posição de número entre conceitos dados. Se, na linguagem os
números aparecem com frequência na forma adjetiva, não é menos verdade que também
aparecem em construções atributivas, ou seja, os números significam propriedades de
coisas exteriores. Frege cita Cantor5, (filósofo alemão 1849-1918), apontando ser esta a
definição do autor quando o mesmo opina que a matemática é uma ciência empírica,
pois tem seu início através do exame das coisas do mundo exterior, e que o número
apenas surge por abstração dos objetos exteriores. (FREGE,1974, p.225).

Dentro desta ótica, Frege cita Schroeder6, indicando que este autor apresenta
figurativamente as unidades como “uns” extraídos como cópias das realidades efetivas,

4
Hermann Hankel (1839-1873) foi um matemático alemão.
5
Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (São Petersburgo, 3 de março de 1845 – Halle, 6 de janeiro de
1918) foi um matemático alemão nascido no Império Russo.
6
Friedrich Wilhelm Karl Ernst Schröder matemático alemão (1841-1902), importante figura na história
da lógica matemática conhecido por seu monumental trabalho Vorlesungen über die Algebra der Logik,
em 3 volumes, o qual preparou o caminho para o desmembramento da lógica matemática em uma
disciplina separada durante o século XX, pela sistematização de vários raciocínios lógicos formais da
época.

2
como abstração do número. Assim sendo as unidades seriam representadas apenas
mediante sua frequência, tendo todas as demais determinações das coisas, ignoradas.
Dessa forma, para Schroeder a frequência é sinônimo de número, situando-os na mesma
adjetivação e transformando a frequência em propriedade das coisas. (FREGE,1974,
p.226).

Frege não concorda e apresenta alguns argumentos contrários, dentro do empirismo,


citando Baumann7, o qual rejeita a teoria de que os números sejam extraídos das coisas
exteriores. (FREGE,1974, p.226). Baumann nega que as coisas exteriores possam nos
apresentar unidades em sentido rigoroso, pois mesmo que tenhamos a liberdade de
considerar os números como múltiplos, eles não passam de apresentação de
agrupamentos sensíveis delimitados. Dessa maneira a diferença, por exemplo, entre cor
e número consiste em pertencer ou não a uma superfície independentemente de nosso
arbítrio.

Em sua critica a Mill8, Frege alcança uma razão diferente para conceituar o número.
Não mais o classifica com cor e solidez, dando ao conceito uma aplicabilidade muito
maior. Segundo Mill, “o nome de um número designa uma propriedade que pertence ao
agregado de coisas que denominamos pelo nome; e esta propriedade é a maneira
característica pela qual o agregado é composto ou pode ser decomposto em partes”.
(FREGE,1974, p.227). Com isto Frege tenta responder à questão de saber a que
pertence o número enquanto propriedade, mas tece criticas à Mill, no que tange à
“maneira característica” articulado pelo mesmo, pois considera isso um erro, ao apontar
que há muitas maneiras diferentes pelas quais se pode decompor um agregado e não
somente que apenas uma dessas maneiras seja característica.

E na nova razão diferente pela qual tenta alcançar a conceituação de número Frege
chega a Locke9, o qual sustenta que “o numero aplica-se a homens, anjos, ações,
pensamentos, a toda a coisa que existe ou possa ser imaginada”. (FREGE,1974, p.227).
Isto parece conferir ao conceito de número uma aura metafísica, pois avança ao terreno
das coisas incorpóreas, o que também recebe a rejeição de matemáticos eminentes como
Leibiniz. Frege objeta que “seria de fato admirável que uma propriedade abstraída de
coisa exteriores pudesse ser transportada a acontecimentos, representações e conceitos
sem alteração de sentido”. (FREGE,1974, p.227-228)

Frege comenta sobre o absurdo de que algo que por natureza seja sensível possa
aparecer no universo do não-sensível, e objeta que dessa maneira a conceituação teria

7
Julius Baumann (1868-1932)filósofo e matemático alemão.
8
John Stuart Mill (Londres, 20 de maio de 1806 – Avignon, 8 de maio de 1873) foi um filósofo e
economista britânico. É considerado por muitos como o filósofo de língua inglesa mais influente do
século XIX.
9
John Locke (1632-1704)foi um filósofo inglês conhecido como o "pai do liberalismo", sendo
considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato
social. Locke ficou conhecido como o fundador do empirismo, além de defender a liberdade e a
tolerância religiosa.

3
que enveredar por terminologias suprassensíveis, pois as coisas podem ter diferentes
sinais. Como se as quantificações pudessem ser o diferencial entre as coisas físicas e as
coisas numéricas. E Frege questiona isso ao perguntar se a “doisidade” ou a “tresidade”
de algo pudesse ser algo físico.

A seguir, Frege invoca Berkeley10, que diz que o número não é nada fixo e estabelecido
com existente nas próprias coisas. Berkeley aponta que o número “é inteiramente
criação do espírito, ao considerar uma ideia em si mesma, ou uma combinação de
ideias, a que deseja dar um nome e fazer valer assim como uma unidade.”.
(FREGE,1974, p.228)

No sentido dessa linha de pensamento Lipschitz11 argumenta que “quem deseje obter
uma visão de conjunto de certas coisas começará com uma coisa determinada e
acrescentará continuamente uma nova coisa às anteriores”, e isto inaugura o
psicologismo nas tentativas de conceituar o número. (FREGE,1974, p.229).

Frege faz uma crítica velada ao psicologismo em que estas tentativas de conceitos
desembocam ao observar que estas descrições dos processos internos não pode
substituir uma determinação de genuína de conceito. Recorrer ao psicologismo para a
demonstração de uma proposição aritmética não poderá ser fadada ao sucesso, pois isso
não apreende nenhuma propriedade dos números.

Frege faz a distinção entre número e cor, por exemplo, ao entender que o objetivo é
diferente do palpável, como o espaço subjetivo é diferente do espaço real. Nessa
digressão ele cita a linha do Equador como exemplo. O fato de a linha existir
geometricamente para distinguir os dois hemisférios do planeta Terra não implica que
essa linha exista fisicamente, nem que a mesma possa ser observada visualmente.
Apesar de essa linha existir na nossa imaginação do espaço do planeta, ainda assim seria
falso dizer que é imaginado pelo pensamento, pois nasceu de um conceito apreendido
pelo pensamento, através de um conhecimento.

Kant12 diz que o espaço pertence ao fenômeno, isto significa que não é possível
representar o espaço como ele é de fato, uma vez que essa apreensão de espaço só é
passível de descrição pela pessoa que o apreende como fenômeno interno a si, mesmo
que seja existente como externo a si. Porém Kant o coloca como algo objetivo, ou seja,
é possível conceituar o espaço como axioma objetivamente apreendido por outros, pois
isto se torna necessário para que seja possível a orientação no mundo.

10
George Berkeley (1685-1753), nasceu em Dysert, no condado de Kilkenny, Irlanda, em 12 de março de
1685. Aos 15 anos ingressou no Trinity College da Universidade de Dublin, onde após sua formação
permaneceu como professor até 1713. Ordenado ministro anglicano em 1709, foi nomeado bispo da
diocese de Cloyne, Irlanda, em 1734.
11
Rudolf Otto Sigismund Lipschitz (Königsberg, 14 de maio de 1832 — Bonn, 7 de outubro de 1903) foi
um matemático alemão.
12
Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo prussiano. Amplamente considerado como o principal
filósofo da era moderna, Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental, e
a tradição empírica inglesa.

4
Assim, ainda dentro de sua crítica ao psicologismo, Frege opina que da mesma maneira,
deve discordar de Schloemilch13, que diz ser o número uma representação da posição de
um objeto em uma série, pois se o número fosse uma representação, a aritmética seria
psicologia. Frege argumenta que assim como a astronomia não se ocupa com as
representações de planetas, e sim com os próprios planetas, do mesmo modo o objeto da
aritmética são os números e não sua representação. Se fosse dessa maneira as
representações de números poderiam chegar a extravagâncias tais que um “dois”, por
exemplo, não teria limites para ser representado e haveria dessa forma milhões e
milhões de “dois”, assim como infinitas representações de quaisquer outros números
que se possa imaginar. (FREGE,1974, p.231).

Ao final deste capítulo (capítulo II), no parágrafo 28, Frege sugere que não se pode
chegar a uma definição de conceito de “número”, pois o máximo a que se pode chegar
são a determinações linguísticas que expressam o equivalente de número, e assim
mesmo, de maneira indeterminada. Nesta constatação, o autor cita Thomae14, que alude
à representação de número, que diferentes nomes sejam dados a diferentes conjuntos de
dados, sendo que o que interessa é a precisão na determinação dos conjuntos, e não a
adoção de quaisquer nomes. O nome, portanto não é mais que um sinal exterior da
determinação de um número. A questão, portanto passa a ser a espécie dessa
determinação, questão esta que Frege vai se debruçar nos capítulos seguintes.

13
Oscar Xavier Schlömilch (Weimar, 13 de abril de 1823 — Dresden, 7 de fevereiro de 1901) foi um
matemático alemão. Obteve um doutorado na Universidade de Jena em 1842, tornando-se professor da
Universidade Técnica de Dresden em 1849.
14
Carl Johannes Thomae (Laucha an der Unstrut, 11 de dezembro de 1840 — Jena, 1 de abril de 1921)
foi um matemático alemão.

5
REFERÊNCIAS:

FREGE, Friederich. L. G. Os Fundamentos da Aritmética. (Excerto do livro de Frege,


pgs.225 a 249, fornecidos pelo Professor).

FREGE, F. L. G. Os Fundamentos da Aritmética. Da Coleção Os Pensadores Vol.36.


Seleção e tradução de Luiz Henrique dos Santos. Editor Victor Civita. São Paulo. 1974.

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