Você está na página 1de 10

Introdução

“A ideia de abstração em Espinosa tem seu lugar de direito na teoria dos modos de percepção
e gêneros de conhecimento.”

Perfeito início e apresentação: direto. Para depois, sugiro considerar se o tema da abstração,
não obstante tenha seu lugar na discussão sobre os gêneros e modos de conhecimento,
também não deve ser tomado em suas conexões com demais temas e partes da filosofia de
Espinosa, como a metafísica, a experiência, o direito, o social, a política e a língua. Parece-me
que o Teixeira e o Guéroult já fizeram algo parecido com o que estou sugerindo, o francês
analisando os modos de conhecimento em seu apêndice que tematiza os Pensamentos
metafísicos, e o brasileiro indicando como a crítica à abstração entra em jogo na ordem e
estrutura das obras, em concreto, BT e Ética. Assim, abstração é o nome para um ato de
percepção e conhecimento, todavia com repercussão para demais temas e assuntos. Esta
consideração mais ampla não seria conveniente no seu atual estudo, por certo.

Um detalhe: acho que a abstração pode ser referenciado com outro termo que não ideia. É
um conceito, ou ainda, uma “noção”. Noção é mais vago, amplo. Conceito é uma afirmação que
reúne outras afirmações e delimita um uso. Ideia pode ser reservado para designar aquilo que
define a essência de algo. Essas considerações não são absolutas. Por certo, para Espinosa
pode-se e mesmo deve-se entender por ideia toda e qualquer modificação da mente, ou ainda,
do pensamento. Ideia é modo do pensamento. Pode ser infinita, finita, imaginativa, racional ou
intelectual. Toda e qualquer palavra é uma ideia, imaginativa. Todavia, a racionalidade organiza
divisões, faz classificações, distinções, estabelece regras e usos, inclusive quanto ao uso das
palavras. Assim, ideia é um termo amplo, que, entretanto, pode ser, a depender de uma
estratégia argumentativa, ser privilegiado para se referir a isto ou aquilo. Ainda em outras
palavras: convém notar que, sob certos aspectos, tais ideias são noções, outras conceitos,
outras imagens, e assim por diante. Daí minha sugestão de, talvez e futuramente, reservar a
palavra “ideia” para ideia do intelecto. Ou então apontar, quando convém, as distinções.

“A teoria dos gêneros de conhecimento do autor seiscentista, embora partilhe características


de outras filosofias nas quais o conhecimento também divide-se em graus”

Aqui é um ponto mais difícil, mas por isso mesmo mais decisivo. Refiro-me à divisão do
conhecimento em graus. A meu ver, isso é um equívoco. Mas é preciso ponderar. O
conhecimento, em Espinosa, divide-se em modos e gêneros, não em graus. Para explicar, é
preciso em primeiro lugar problematizar esta distinção: modo e gênero. Pode ser uma
diferença meramente vocabular, ou conceitual. Penso que pode ser argumentado que é uma
diferença conceitual: ao dizer “modo”, faz-se uma diferença de natureza: o modo imaginativo é
de uma natureza diversa do modo racional. A ordem e a conexão das ideias não é a mesma.
Digo mais: a matéria (o que se conhece), neste caso, não é a mesma. A base textual mais
decisiva para isto que estou indicando está no Tratando da emenda, quando o filósofo fiz que
uma e mesma coisa pode ser conhecido distintamente pelos diversos modos de conhecer. A
mesma coisa pode ser conhecida ora imaginativamente, ora racionalmente, ora
intelectualmente. Mudou a natureza do conhecimento, não a sua matéria. Mas isso não é
tudo. Pois, sim, tem coisas que só podem ser conhecidos pelo intelecto, jamais pela
imaginação e pela razão. Outras, só pela razão e pelo intelecto. Outras ainda, apenas pela
imaginação e pelo intelecto, mas não pela razão... Se fosse uma distinção de grau, uma e
mesma coisa, e todas as coisas, poderiam ser conhecidas por todos os modos de percepção,
em graus diversos. Por fim, pondero que a consideração de graus de conhecimento não é
inviável ou em si equivocada. Acho que a teoria dele comporta a da distinção de graus. Meu
ponto é que a distinção de graus é secundária, tem que ser entendida a partir da distinção
essencial, que é a de modo e gênero.

A diferença entre modo e gênero: a modalidade não implica fundamentação desde os


primeiros princípios da metafísica. Gênero, sim, pois explica-se então que tal e tal modo de
percepção é gerado (gênese, gênero) a partir de tais e tais distinções mais fundamentais:
substância, atributo, modo, natureza naturante e naturada, causa formal e eficiente, o que é
em si e por si, o que é em outro e por outro, modo infinito imediato, modo infinito mediado,
modo finito. Estas ideia e distinções metafísicas fundamentam o que é a mente e o corpo, e a
união da mente e do corpo, e por conseguinte, a origem e diferença de gênero dos modos de
percepção. Por isso, no Tratado da Emenda ele fala modos de percepção, na Ética, gêneros de
conhecimento.

Enfim, é preciso considerar algo que o Guéroult destaca: apesar das distinções de modos e
gêneros de conhecimento, eles não são excludentes entre si. Isto é, um ato de conhecimento
pode reunir mais de um modo de percepção. Tal ideia pode ser uma ideia com origem no
corpo, logo, imaginativa, mas estar ao mesmo tempo organizada em bases racionais. Por
exemplo, as línguas. As palavras são imagens, mas racionalizadas em um sistema linguístico.
Assim, as línguas são imaginativas e racionais. Não existe língua que não tenha sua origem na
imaginação e também que não esteja ordenada racionalmente. Então aqui temos o tema que
eu chamo de “concurso dos gêneros de conhecimento”, entendendo por concurso o exercício
simultâneo de mais de um modo de percepção.

“Na filosofia de Espinosa, a ideia de abstração opera em dois registros, na imaginação e no


nível da razão. A partir da natureza da imaginação na Ética, tomaremos-na como ponto de
partida conceitual, comparando o lastro do conceito de abstração com a imaginação situada
no contexto da obra espinosana. Assim, também faremos com o segundo gênero de
conhecimento, a razão. De tal maneira que, as imbricações estruturantes dos pares:
imaginação - abstração; razão - abstração, apresentem por fim, uma conclusão cuja coerência
nos permita esboçar a posição espinosana sobre o conceito de abstração e seus usos.”

Perfeita colocação e estratégia, meu caro! Sugiro passar isso para o resumo da dissertação. É
a sua estratégia essencial de argumento: abstração pode ser imaginativa e racional. Analiso o
que é a abstração em cada caso, então mostro a coerência destes dois casos, cobrindo o uso do
conceito de abstração na teoria dos gêneros de conhecimento em Espinosa.

Para futuro, sugiro: que consequências isso tem? Por exemplo, na ciência, ou no direito, ou
na política, ou na teoria dos afetos, ou na língua? Decide uma temática e mostra como o seu
estudo da abstração repercute e explica tal e tal argumento posterior.

“Tradução do termo latino abstractio, originado de abstrahere”.

O recurso etimológico é pertinente. Sugiro, se tu quiseres desenvolver, identificar e analisar a


ocorrência da palavra em alguns autores paradigmáticos da língua latina e da filosofia. Por
exemplo, abstractio é de uso de Descarte, Hobbes, Aquino, Cicero, etc. Não é difícil fazer
levantamentos assim. Por exemplo: https://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?
doc=Perseus:text:1999.04.0059:entry=abstraho

Mais trabalhoso é selecionar fonte relevante de análise, por exemplo, em Descartes, ou em


Hobbes, ou Bacon, analisar e comparar usos diversos e então refluir isso para o uso que faz
Espinosa. É claro que não é o uso vocabular que mais conta, mas como este ou outro termo é
usado argumentativamente. Abstração é essencial em Descartes. Depois será em Kant. Já faz
parte da interpretação de Teixeira mostra que o que se convencionou chamar-se de empirismo
baseia-se em uma abstração. Isso, se fôssemos argumentar contra Locke ou Hume a partir de
Espinosa. Concretamente, é a diferença para com Descartes e Hobbes que parece mais
relevante.

Falo de passagem apenas, por conta de seu recurso à etimologia do termo.

“Destarte, com o fim de abordar a noção de abstração, nos orientamos a partir da contribuição
de Lívio Teixeira2 , quando comenta que para Espinosa “conhecer a realidade é conhecer o
todo” (Teixeira, p. 11, 2001), em função de mostrar que a ideia de abstração configura-se como
“defeito do senso comum e um embaraço ao pensar correto” (ibid.). Porque abstrair é tentar
compreender a parte sem o todo, e, mais precisamente, a operação abstrata por excelência “ é
atribuir realidade ao parcial.” (ibid.).”

Seu uso de Teixeira é essencial, claro. Ele é muito bom. Aqui acho que é necessário ponderar
até onde a análise dele é relevante, e a partir de onde deixa de ser. De fundo, acho que a
Marilena corrige ele e o Guéroult. Outra ponderação é qual é o argumento completo da
interpretação do Teixeira, ou seja, ele destaca este tema por quê, para quê? Em outras
palavras, ele escreveu para quais interlocutores? Qual era a discussão de época? Ele faz muitas
referências às filosofias da primeira metade do 20. Bergson, fenomenologia, existencialismo,
marxismo. Bergson é bem evidente. Penso que tudo isso tem importância, mas não é uma
discussão atual. Então para frente acho que convém considerar se este tema tem muito
alcance em outras discussões.

Sobre a tópica “parte e todo”, vale notar que são conceitos racionais. Definir assim a
abstração marca a posição da perspectiva do segundo gênero de conhecimento. Quero notar
apenas que a razão não conhece a realidade, não é uma percepção do real. Só a imaginação e
o intelecto conhecem coisas reais, o primeiro muito imperfeitamente, o segundo
perfeitamente. A razão é um instrumento, um recurso útil à ordenação do real, sem ser ideia
do real. Assim, atribuir realidade à razão é não apenas abstração, como erro.

“Quando Teixeira comenta a operação abstrativa e afirma que ela consiste em atribuir
realidade aquilo que “não explica por si, nem existe por si” (ibid.), temos em mente, sem
grandes controvérsias, que a abstração consiste neste primeiro momento em atribuir realidade
a qualquer parte da natureza, e, portanto, a parte desarticulada do todo, produz um processo
de abstração. Porém, a questão não demora a brotar, pois, com isto, não estaríamos dizendo
que o estatuto de ente real só poderia ser atribuído à substância em Espinosa? Não estaríamos
afirmando a arapuca hegeliana3 quando afirmamos em consonância com Teixeira, que “o
único erro é a abstração, isto é, o processo da separação que nos leva a considerar como
realidade em si qualquer parte da realidade que só tem realidade no Todo Uno” ? (op. cit. p,
43). Se os modos finitos em Espinosa não têm realidade alguma em si, seriam como fantasmas
errantes no éter eterno da substância, subtraídos do estatuto de ente real, estariam
condenados pela metafísica espinosana a uma sub-existência”

Gabriel, a progressão do seu argumento está muito boa! Definiu o tema, depois especificou a
questão essencial, a seguir acrescentou recurso interpretativo. Agora amplia o escopo. Faz aqui
o que eu sugeri acima: o estudo da abstração repercute em outras questões que não apenas os
do gênero de conhecimento. Disso, você enuncia a questão mais essencial: só a substância é
real, só o conhecimento dela não é, a rigor, abstrato? Perfeitamente: o tema leva à metafísica
de Espinosa. Apenas sugiro que isto seja pontuado no resumo. E que faça uma ponderação
quando afirmou antes que abstração é questão para o tema dos gêneros de conhecimento.
Sim, é isso. Mas é mais, como agora você coloca: é questão para outras temáticas também.
Você não precisa propor desenvolver essas consequências e conexões. Delimita que aqui trata
dos gêneros de conhecimento. Mas na apresentação, ao justificar a importância da questão,
pondera que tem uma dimensão mais ampla.

Agora quanto à matéria de suas considerações neste parágrafo: existe uma abstração que
consiste em atribuir realidade não ao que é parte da realidade, mas ao que sequer é real: aos
entes de razão. Isso exige ponderações, distinções, análises cuidadas. Pois duas afirmações
verdadeiras parecem conflitantes: “todo” é um ente de razão. Então o real é um todo? Um
ente de razão é e não é real – eis a dificuldade. Um ente de razão é um modo do pensamento,
ou ainda, um modo de percepção da mente. Mas não corresponde a nada fora da mente!
Enquanto modo do pensamento, é real, pois o pensamento é real e todos os modos do
pensamento são reais. Mas há modos do pensamento que correspondem a modos da
extensão, e outros que não. Eis a distinção, meu caro. Se real for usado para designar tudo que
pode ser explicado como efeito de atributos reais, um e ente de razão é real. Se real for usado
para designar a ordem completa dos modos de todos os atributos, perfazendo a Natureza, a
qual é a união de natureza naturante e natureza naturada, as causas e os efeitos, então apenas
Deus ou Natureza é Real. Os seres finitos, como ideias e corpos, são reais, mas apenas na
medida que são entendidos como efeitos imanentes da Natureza.

O que acontece aqui? A palavra “real” não tem um único uso. Real absoluto, real atributivo,
real modal, realidade infinita, realidade finita, realidade física, realidade ideal. Não é uma
solução banal. Não é que uma palavra pode ser usada em diversas maneiras, simplesmente. É
que os conceitos fundamentais da filosofia de Espinosa estabelecem distinções reais, de razão
e modais.

Outras filosofias perguntam: um ente matemático é ou não real? Espinosa estabelece: É real
enquanto pensamento, não é real enquanto existência fora da mente. Ele usa de um recurso, a
teoria das distinções, que contorna uma falsa oposição, um mau uso do terceiro excluído.

Agora, isso dá o trabalho de ser cuidado com as ponderações. Só a substância é real? Só ela
tem realidade em si e por si? Absolutamente, sim! Então os modos não são reais? Errado, eles
são reais, pois são efeitos reais da substância real. Eles não possuem realidade em si e por si,
pois são modos e não substância. Possuem realidade modal, isto é, realidade explicada como
efeito do que é em si e por si.

O tema da realidade dos entes de razão abre outras vias. Entes de razão são... entes. Logo,
tem realidade. Mas a realidade deles é apenas a realidade de modos do pensamento sem
correlato com modos da extensão.
Repisemos a tríplice distinção. Distinção real, racional e modal. Agora seja a tríplice
distinção metafísica: substância, atributo e modo. A ligação não é mecânica. Por exemplo: Os
atributos são distintos da substância? Sim, racionalmente. Mas entre si, isto é, entre o atributo
pensamento e o atributo extensão, a distinção é real. Entre substância-atributo e modo?
Distinção modal. Mas entre os modos de atributos distintos? Por exemplo, entre uma ideia e
um corpo? São modos de atributos realmente distintos, mas entre si estes modos são distintos
real, racional ou modalmente? Ocorre de haver distinção racional quanto a propriedades de
um mesmo modo. Por exemplo. Círculo. A distinção entre o ponto central e os pontos
extremos do círculo é apenas racional. E quanto a partes de um corpo? Minha mão e seus
dedos são distintos real, racional ou modalmente? Outra consideração, essa mais básica,
porém mais difícil: Modos infinitos e modos finitos. Distintos real, racional ou modalmente? E
com a distinção entre modo infinito imediato, mediato e finito?

A abstração, nisso, como funciona? Uma distinção de razão é uma abstração? A distinção
modal é uma modalidade de abstração?

Qual o critério, se existe, para avaliar se uma abstração é boa ou ruim, proporciona acerto ou
erro?

Sem dúvida, a utilidade. Agora, novo tema: o que é a utilidade em Espinosa. Ele fala de usos
para a vida, uso para maior comodidade, utilidade na ética, o que é útil para a perseveração do
ser, logo, do conatus. O que é útil para um não é útil para outro. Mas há o sumo bem, a virtude,
a felicidade, a liberdade que é o escopo de todo o seu pensamento. Então há uma utilidade
suprema. E tudo o mais, por exemplo todos os usos da razão, inclusive a própria filosofia dele,
é bom ou ruim, certo ou errado, abstrato ou não, a depender da realização do que é o fim
mesmo de toda utilidade: beatitude, felicidade, liberdade.

O ponto é: a abstração é ou não útil, quando o é, a demonstração e realização da liberdade


faz uso da abstração?

Tenho por mim que nem o Teixeira nem o Guéroult responderam a isso.

“Ademais, no que concerne a questão do aparente paradoxo do método - ter em vista as ideias
verdadeiras, porém, ter de começar por elas para então distingui-las das falsas - e sua
resolução, isto é, o estudo dos modos de percepção nos proporciona o conhecimento do
melhor, segundo a finalidade enunciada no TRE - “gozar da natureza superior que é o
conhecimento da união que a alma tem com a natureza inteira””

Você fez a seguir considerações bem no sentido das minhas últimas. Recortei a passagem
acima para pontuar alguma coisa de monta. A finalidade anunciada é o critério de utilidade. O
que não se pode perder pelo caminho: a abstração nunca é útil? Parece-me que a abstração é
inevitável. Por quê? Porque nossa mente é parte. Nós somos parte. Não podemos
compreender a realidade toda e completa. Isso já vale para os atributos divinos: são infinitos, e
só conhecemos dois. Diminuta parte dos atributos divinos... Ademais, não conhecemos toda a
ordem e a conexão dos infinitos modos existentes. Não conhecemos a natureza naturada em
sua concretude. Conhecemos parte. Jamais poderemos entender toda a realidade. Nossa
percepção é parcial. Bem diminuta. O que no Tratado da emenda Espinosa chama de
“debilidade humana”. Débil é o que é fraco. A fraqueza de nossa potência intelectual e
existencial. Porém, somos parte do real, e por isso o que conhecemos e vivemos é real. E ainda:
temos o poder de conhecer intelectualmente a essência do real. Qual a finalidade? Não
conhecer a realidade sem abstração alguma, mas conhecer concretamente algo que é singular
e real: a união de nossa essência-existência com a essência-existência do Real. Este, e não
outra coisa, é a finalidade. Este conhecimento não é abstrato, mas para chegar a ele não
fazemos uso de meios? O método é um meio. Uma ferramenta. Abstrações são meios também.
Então o ponto parece ser: abstrações podem ser úteis ou não. Qual o critério? Se atendem ou
não à utilidade do fim buscado. Um meio é ruim se não é meio para o fim estabelecido. Um
meio é bom se auxilia, isto é, se é realmente meio para este fim.

Se você argumenta que abstração é sempre erro e ruim, sempre inútil e desvio do fim,
precisará argumentar que como seres parciais, finitos, podem entender o infinito em ato em
sua totalidade. E que a união com a Natureza inteira é rejeição e separação da finitude, do
parcial, da modalidade, logo, de nosso ser mesmo, pois somos parte. Então a modalidade, a
natureza naturada, é uma sorte de erro e ilusão. Estabelece-se aqui uma distinção metafísica
entre o real e o irreal, e a natureza naturada é irreal e falsa. Claro que não é esta a proposta de
Espinosa.

Esta minha argumentação anterior tem vários passos. Um deles é a identificação entre
abstração e parte, outro é a identificação entre abstração-parte e erro, logo, irrealidade. Então
pode-se objetar ponto por ponto ou algum ponto específico. Por exemplo, abstração é sempre
erro, mas abstração não é idêntico à parte, logo, a modo. Ou: abstração não é idêntica à parte,
nem ao erro. Abstração é uma modalidade de pensamento que é um erro em certas
circunstâncias, mas não em outras.

Minha maneira de entender de fato é: a abstração é útil em parte dos raciocínios, em


outros é um erro. Por exemplos: na análise matemática, procede-se por abstração quando
dividimos partes do problema, ou com a abstração instituímos um problema específico. A
distância entre o ponto central e a circunferência de um determinado círculo. Abstraímos aqui
a questão da área deste círculo. Ora, uma vez que se conheça a distância entre o centro e a
extremidade do círculo, saberei determinar a área deste círculo. As duas determinações são
propriedades deste círculo: o tamanho do raio e o tamanho da área. Não conheci a essência
deste círculo. É um conhecimento abstrato, se defino abstrato como parte, o conhecimento do
raio e o conhecimento da área deste círculo. Por isso, é um erro, falso e irreal?

Então chegamos a outro ponto de minha argumentação: pode ser que a parcialidade defina
a abstração, mas a abstração não define o erro. A resposta é o ordenamento. Se ordeno
conhecimentos abstratos, se por isso estou falando parciais, de modo a perfazerem um todo, o
qual tem seu fundamento na causa, ou essência, e as propriedades como partes dessa causa
ou essência, então meu conhecimento completo não é abstrato, mas concreto. Se tenho
conhecimentos parciais verdadeiros, mas os ordeno de modo a que uma dessas partes, ou
propriedade, seja considerado princípio de explicação, ou essência, então erro.

Isso vale também para o conhecimento da natureza, em especial dos assuntos humanos: a
biologia é abstrata? Sim. A química? Também. A medicina, o direito, a língua? Todos são
abstratos – embora não meramente abstratos. Como ordeno estes conhecimentos parciais?
Qual o princípio de ordenação? O que é efeito e o que é causa aqui? A química é abstrata, mas
é verdadeira. Se a entendo como abstrata, isto é, como parte do conhecimento da natureza,
não erro. Erro se a tomo sem conexão com outros conhecimentos. Aí tenho abstração e erro.
Avanço: Todos os nossos conhecimentos particulares, medicina, língua, física, política, etc,
são conhecimentos parciais. Podem perfazer um todo? Eles podem ser meios para um fim
comum? Como ordeno esses meios para o fim buscado?

Aqui há outra distinção. Saio da abstração ordenando conhecimentos parciais? Compondo


todos em um conhecimento enciclopédico? Chego à essência do círculo após conhecer duas de
suas propriedades, a do conhecimento do raio e a de sua área?

Como a realidade é infinita, a minha ordenação das partes é infinita. Nunca vou completar.

Ou posso partir do conhecimento da causa e, dela, ordenar as partes? No caso do círculo,


posso, pois ele é finito. Bem simples e fácil. Não dá para fazer o mesmo com o infinitamente
infinito.

A imaginação é abstrata, a razão também. E o intelecto? Mas o intelecto humano é finito,


logo parte.

Como o intelecto finito pode ter uma ideia adequada de uma ideia infinita, a de Deus? E
como este mesmo intelecto finito pode, se teve uma ideia adequada de uma ideia infinita, tirar
consequências que ordenam sua ação e sua existência para a união com este ideia? Abstraindo
o que é inútil para este fim?

Voltando a sua citação. O método começa pelo conhecimento de uma ideia verdadeira. Ora,
isto não é uma abstração? Existem infinitas ideias, o todo do pensamento é a infinitude de
ideias. Tenho que me ater a uma? A abstração não opera aqui?

Sigo.

“Todavia, a ideia de um ‘ato de abstração’ dentro de uma filosofia da imanência radical produz
um pólo de negatividade incontornável, porque a maneira pela qual a abstração toma lugar
dentro do sistema determina a cognoscibilidade do que se quer apresentar, ou mesmo, a
própria abstração seria determinada pela natureza do objeto do conhecimento? A boa
narração de um evento, ou os signos a partir dos quais a memória alcança relações com
alguma consistência, ou então, a demonstração que faz ver a produção interna do objeto, seja
quais forem os meios de conhecimento. Espinosa tem de apresentá-los tendo em vista as
relações entre os modos de percepção e dos modos de percepção e a abstração. Por exemplo,
além da abstração como ato de separar e fragmentar os objetos do conhecimento (a abstração
no nível da imaginação), Espinosa precisa mostrar como a posição da sua filosofia não é uma
espécie de dogmatismo que estabelece os princípios do conhecimento arbitrariamente em
função da relação entre a vontade e o intelecto (a abstração no nível da razão).”

A sua pergunta retórica é excelente. Não li o desenvolvimento. Sei que aqui apresenta as
questões. Vou responder de modo a que você compare sua resposta com algumas pontuações
minhas. Faço supondo que possa ser útil para ti, claro.

O primeiro ponto é a negatividade. O negativo não é nenhum problema maior para Espinosa.
Abstração também não. O negativo e a abstração, logo, a finitude, são necessários e naturais a
nossa existência. As questões mais relevantes, acho eu, são: negatividade e abstração são
secundários ou princípios? Se são secundários, como podem ser bem entendidos em relação
com os princípios? Os princípios são: causa de si, substância, atributo, modo, infinitude,
essência, existência, liberdade e eternidade. A rigor, causa de si é o princípio. Positividade
plena. Os outros termos são todos positivos e determinantes, mas estabelecem distinções. A
distinção estabelece primeiro positividade, depois e por comparação, negatividade em um
sentido qualificado como determinação, jamais negatividade em si. Assim, modo é algo
positivo: modificação de atributo. Sua determinação é a de ser em outro e por outro. Então
não é positividade plena, em si e por si. O ponto é: determinação não é negação em sentido
absoluto. Modo não é o posto de substância. É uma modalidade determinada, um efeito
determinado, distinto de outro efeito determinado. Aqui se estabeleceu a modalização como
diversificação, logo, multiplicidade. Não há negação em absoluto porque a causa de “causa em
si” é causa imanente, não transitiva. Se fosse causa transitiva, o efeito da causa seria algo
completamente outro que a causa, fundando assim uma alteridade completa: o efeito é oposto
à causa. A oposição é o princípio de raciocínio da causalidade transitiva. A diversificação, ou
seja, a modalidade determinada, ou singularidade, é o princípio de raciocínio da causalidade
imanente. Ora, não apenas causa imanente, mas imanente eficiente. A causa produz o efeito
sem separar-se dele e sem fazê-lo oposto a si, isto é, fazendo-o como parte de si. A substância
transmite para todas as suas partes a sua natureza, que é positividade. Assim, a determinação
não estabelece uma negatividade de princípio nem radical nem completa, mas uma
diferenciação singular. A positividade da substância constitui a positividade do modo, inclusive
do modo finito, que é então positivo em sua realidade própria. A negatividade se dá por
comparação: este modo não é este outro modo. Negatividade relativa.

Quero crer, meu caro, que o tema da abstração segue o mesmo modelo da negatividade.
Abstração por princípio ou secundário, abstração completa ou parcial, abstração por
comparação.

Então o polo de negatividade incontornável e o polo de abstração incontornável não são


inconsequências, nem problemas, mas conceitos e procedimentos racionais que auxiliam o
entendimento do real.

“Abstração determinada pela natureza do objeto”. É isso. Mas não só. A abstração é
determinada pela natureza do pensamento e pela natureza do que é conhecido. Natureza do
pensamento: se é finito ou infinito; se é imaginativo, racional ou intelectivo. Natureza do
conhecido: é uma coisa em si e por si, ou em outro e por outro; é infinito absolutamente ou em
seu gênero; é uma substância, um atributo ou um modo; é um modo infinito, imediato ou
mediado, ou é um modo finito; se é um modo finito, é um ente de razão ou um ente existente
na duração; é um ente finito muito simples ou muito complexo?

“A boa narração de um evento, ou os signos...”

Aqui você pondera uma importante distinção: abstração determinada pela natureza da coisa
conhecida e abstração determinada pela deliberação de quem conhece. A primeira é explicada
pela passividade do corpo e da mente, pela qual percebe-se mais os efeitos das afecções no
corpo e menos a natureza do que o afetou. Daí a percepção mutilada. Notavelmente que as
imagens se formam a partir de uma sequência e multiplicidade de causas distintas, que se
conhece parcialmente. A concatenação feita pela memória não opera pela ordem da causa
para os efeitos, e mesmo os efeitos são formados pelas marcas no corpo, não da mesma coisa,
mas com frequência de coisas distintas e diversas que afetam de maneira similar, mas não
idêntica, o corpo. Daí que a concatenação se forma a partir de causas diversas entre si,
ademais sentidas muito imperfeitamente. A bem dizer, não há arbítrio, mas em grande medida
passividade quanto ao que afeta nosso corpo. Passividade e aleatoriedade. Todavia, há uma
medida de reatividade do corpo e da mente. Um princípio de concatenação e formação de
imagens. Isso é diferente, porém, da produção engenhosa por imagens; dito de outra maneira,
da arte. Imagem é a ideia formada pelo corpo e pela mente a partir das afecções corporais. Isso
equivale ao som, à imagem visual, ao tato, ao olfato, ao paladar, às palavras, à memória em sua
função, digamos, fisiológica. Mas as artes imaginativas produzidas a partir desta matéria, não
são apenas imaginação e memória. Como notava antes, a razão e o intelecto atuam em
concurso com a imaginação. Assim, a culinária não é uma arte simplesmente imaginativa, nem
a música, a pintura, a língua, o vestuário, parte da medicina, parte da química, parte da
engenharia, etc, grande quantidade de artes operam com a matéria da imaginação, mas o
fazem com os instrumentos da razão e, mesmo, do intelecto. Talvez devemos dizer, aqui, que a
atividade da imaginação é potencializada pelos recursos da razão e do intelecto, alterando a
proporção entre passividade e atividade da imaginação. Neste sentido, é de se pensar bem se a
abstração não tem função alguma nas artes e mesmo nas ciências.

Quanto à razão, parece que temos que constatar que é sempre ativa, pois é definida por uma
ação da mente. A razão, simplesmente. No entanto, parece ser responsável por excelência pela
operação de abstrair. No plano apenas das ideias, a razão forma conceitos de relações. Mas
uma relação nunca é um ente existente na duração. É um ente de razão, apenas. A razão
relaciona ideias. Que ideias? Se apenas ideias da razão, são ideias sem correlato fora da mente.
Todavia, a razão opera também relações entre ideias imaginativas e talvez também as
intelectuais (!). Fornece regularidade para a grande aleatoriedade das afecções corporais e
mentais, e só então a justaposição imaginativa torna-se concatenação. A narrativa é uma
modalidade de concatenação. A concatenação, portanto a narrativa, é uma ordenação racional
da experiência vivida. É o caso das línguas, da música, do vestuário, da culinária, da
engenharia, da química, da biologia. É o caso das artes e das ciências, todas elas racionalização
da experiência imaginativa da mente. Sem a matéria da imaginação (que por si já não é apenas
passividade, pois para Espinosa não existe passividade completa, tudo que é possui algum grau
– ou medida – de atividade) e as essências do intelecto, a razão produz entes de razão, sempre
relações, medidas, proporções. O produto por excelência da razão são as noções comuns. O
que há de comum no todo e nas partes. Ou seja, relações. A razão não conhece entes reais,
singulares, com existência concreta. Meu ponto aqui é que a razão, estabelecendo relações
entre imagens e ideias, é a responsável pela abstração ativa. Na sua expressão: “Espinosa
precisa mostrar como a posição da sua filosofia não é uma espécie de dogmatismo que
estabelece os princípios do conhecimento arbitrariamente em função da relação entre a
vontade e o intelecto (a abstração no nível da razão)”, esta arbitrariedade em função da relação
entre vontade e o intelecto deve ser aproximada da ação da mente de relacionar (separar,
comparar, reter e dispor em ordem). Há pelo menos dois aspectos ou situações quanto a esta
operação racional. Um é a operação da razão conjuntamente ao desejo. A abstração aqui diz
respeito àquilo a que se esforça o desejo. Por exemplo, a pessoa pensa que terá mais conforto
canalizando a água do rio para sua roça. A operação racional instrumentaliza as percepções da
imaginação, formando um plano de construção de um canal. Aqui a razão abstraiu muitas
percepções, retendo, comparando e dispondo parte delas para atingir o fim do desejo.
Novamente, o critério é a utilidade. Outro aspecto ou situação é a operação da racionalidade
sem matéria da experiência imaginativa, ou com ela, mas sem a determinação de um fim
desejante, uma utilidade fixada, estável. A razão produz relação entre ideias, apenas racionais,
imaginativas ou ambas misturadas, que não seguem uma concatenação determinada pelo
conatus. A razão gera ideias sobre ideias e ideias que se seguem a ideias, sem fim. É o
automatismo da razão. Aqui temos outra modalidade de abstração. Embora ativa e mesmo
com base na experiência, a concatenação está separada de um fim desejante determinado.
Determinado por quê? Por outras ideias, estas devidamente concatenadas com outras ideias e
com o desejo.

Por fim, por que imaginação e razão são ambas, a rigor, abstratas? Por que apenas o
intelecto oferece conhecimento de essências reais (excetuando aqui apenas que um ente de
razão é uma essência real, mas sem correlato fora do pensamento). Conhecimento de
essências reais singulares – a razão, as noções comuns, nunca são conhecimento de entes
singulares). Assim, uma vez conhecidas as ideias verdadeiras de essências reais singulares, a
justaposição imaginativa e a concatenação racional tornam-se “ordem e conexão”. Por quê? As
ideias particulares e os entes particulares são ordenados desde a ideia de sua causa primeira e
a fonte de toda a ordem infinita de conexão entre as causas e os efeitos. Os fins parciais do
conatus encontram o fim supremo, ou a realização perfeita, ou a felicidade completa, ou a
liberdade em ato, que é a união desse com a Natureza inteira. Só aqui não há abstração.

Você também pode gostar