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O TI COSTA DA LADEIRA E O BURRO

Povo sem memória é povo sem história. Isto é bem verdade e para o confirmar tenho que
dizer que em Janeiro de Cima temos muita história, porque o povo tem boa memória. No
entanto, às vezes faltam os pormenores que escapam a quem não esteve naquelas andanças e
não sabe totalmente por onde passa o fio da meada.

Um dia destes o meu sobrinho e afilhado João me pediu: “Padrinho, por favor ponha por
escrito aquela história do burro do Tio Costa e as reivindicações do mesmo, na altura em que
ele, o burro, esteve doente. ”

Bom para satisfazer a curiosidade do meu afilhado e para conhecimento geral, aqui vai a
história. Mas antes, gostaria de lembrar que numa aldeia como a nossa aparecem muitos
personagens que merecem ser lembrados. Neste caso o mote para a história é o Burro, mas o
grande personagem da história é o TI Costa da Ladeira.

Essa história de o chamarem Ti costa da Ladeira não era muito do agrado dele. Sempre dizia:
eu não sou da Ladeira, a minha mulher é que era. ” E com esta ele virava as costas e lá ia
abalando o burro.

Na verdade, o ti Costa era de Janeiro de Cima e tinha casado na Ladeira com a ti Teresa. Por
isso os filhos se chamarem: Zé Teresa, Tonho Teresa.... A ti Teresa morava na rua da Volta ou
rua da Procissão numa casa baixinha, que necessitava de um baixar um degrau na soleira da
porta para poder entrar na salinha.

A ti Teresa estava sempre na cozinha, que ficava logo no lado esquerdo e assoprava o lume
com uma cana. Era uma pessoa muito boa e acolhedora. Me aqueci muitas vezes no lume dela
já que eu nasci na rua do Meio e os meus pais tinham uma taberna na loja do meu tio Adelino
quase em frente da casa do tio Costa da Ladeira e da Ti Teresa. A casa deles ficava quase em
frente do quelho que ligava a rua da Volta à Rua do Meio.

O ti Costa tinha outro apelido. Também era conhecido por Ti Teimoso e este apelido lhe caia a
matar. Além de trabalhar no campo como todos os da aldeia ele era também sapateiro.
Trabalhou um tempo com o Ti Isidro Sapateiro e também teve uma sapataria lá em casa. Ele
gostava de fazer dedal de cabedal, joelheiras e aventais de cabedal... para o trabalho no
campo.

Mas vamos lá ao burro.

O 25 de Abril de 1974, dia da revolução, apanhou o Ti Costa já meio velhote e mais interessado
na fazenda do que nas botas e cadarços. Era Vê-lo atrás do burro rumo as Silgueras. Era com
cada carrada de estrume. Mas o que todos esperavam era a hora de estacionar em frente à
porta do café para o Ti Manel beber o copito do vinho, à ida e à vida.

Não sei porque cargas d’água meteu-se da cabeça do Ti Teimoso que o burro tinha que saber a
porta do café e conhecer a sede do dono. Todos esperavam o momento. Lá vinha o Ti
Teimoso, burro e carroça à frente e ele logo atrás. Se o burro não parava exatamente na frente
da porta do café, fazia a cavalgadura recuar para o lugar certo e dava umas bordoadas nos
lombos da mesma.

Um dia o Ti Asa Derrubada (ti Jorge), vendo aqueles propósitos gritou: “ó Manel não faz isso
com o animal, homem”. O ti Teimoso olhou para o Asa Derrubada e bramiu: “estás com pena,
estás!!!??? Vem cá pegar umas no lombo, no lugar dele.”
Cada vez que o jegue não parava ou parava no lugar errado o Ti Costa ensinava o animal o
lugar certo. Eu quando sentia ele se aproximar saía de detrás do balcão e ia correndo sentar
numa mesa do café fazendo de conta que estava lendo um livro. O ti Costa da Ladeira entrava
naquele jeito dele, impaciente e irritado, olhava e não via o copito já cheio em cima do balcão.
Era o trato: “logo que a carroça chega, enche o copo”. Aí, impaciente, batia com a vardasca na
mesa onde eu estava e lá vinha o bordão: “mudas-te ou estás com a mosca? ”

Eu ria, apressado e chamando-o de Ti teimoso, ia servir um copo de vinho para o Ti Costa da


Ladeira, que no fundo era muito bom homem e muito religioso. Comigo nunca se zangava. Ele
tinha aquele ar de bravo, mas era uma pessoa simples, boa e tranquila. Tinha seus repentes,
como todo o mundo.

Continuemos a história, porque a cada conto se acrescenta um ponto. Como eu ia dizendo,


estávamos em plena revolução dos cravos e o primeiro 1º de Maio, depois do 25 de Abril,
tinha sido uma grande festa democrática e reivindicativa de todos os direitos negados durante
48 anos de fascismo.

A aldeia, como todo o país, andava numa roda viva. Ninguém sabia nada de partidos, política e
se propagaram por todo o país as famosas sessões de esclarecimento. As velhas da aldeia
foram arregimentadas para o CDS, porque era o partido dos católicos, no dizer da ti Carmen,
minha vizinha, que tinha um pavor do comunismo. Do outro lado estava o pessoal do contra
tudo e contra todos que se diziam comunistas e juravam votar no Cunhal só para meter medo
às velhas beatas. Neste rol estava o Tonho do Lameirão (Cadiça).

No outro meio estavam estudantes e jovens espalhando cartazes do MRPP onde pontificava
Arnaldo de Matos e seu famoso bigode. Neste rol estavam estudantes universitários, entre
eles o Arlindo, criadores de Pintos e Galinhas (Manuel Domingues) e alguns estudantes e
seminaristas entre os quais eu.

Vale a pena fazer aqui um parêntesis e lembrar que no café do Ti Acácio, meu Pai, entre as
paisagens pintadas por um famoso pintor aparecido não sei donde, e o famoso corvo que que
ficava numa prateleira comendo a carne e que acudia pelo nome de Vicente, dominava o
ambiente um grande cartaz do Arnaldo de Matos.

O sr. Padre Robalo, entre um copito de aguardente e outro, lá ia dizendo ao meu pai: “ Olhe lá
Acácio, como pode você ter aqui um retrato de um comunista. Mais a mais no café de um pai
que tem um filho candidato ao sacerdócio. ” “Mas Óh senhor padre, esse cartaz foi posto aí
pelo meu Zézito, o que vou fazer?...” O Sr. Padre, desconsolado e resignado, olhava para o
Arnaldo de Matos e lá terminava o cálice de aguardente.

Nesta efervescência revolucionária, um dia o Ti Costa da Ladeira, tirando o estrume do curral


do burro, sem querer, machucou com a forquilha o pé do animal. Este ficou mancando e o Ti
Teimoso arrumou para ele uma caneleira de cabedal e toca a trabalhar, que quem não
trabuca, não manduca. Os rapazes da aldeia vendo aquilo propuseram ao ti teimoso dar umas
férias ao animal. O dono da cavalgadura ficou indignado com tal proposta, já que o burro
estava mancando, mas podia continuar ao serviço, tal como dono, que também estava
machucado numa mão e continuava trabalhando.

Diante daquela teimosia, não fosse ele o Teimoso, um grupo de jovens que tinham o material
com que se pintavam as paredes para reivindicar direitos e fazer propaganda política,
resolveram meter mãos à obra e advogar a nobre causa da animália. Mas como?
Num belo sábado de madrugada, lá vão os malteses para a sua nobre empreitada: escrever as
reivindicações do BURRO DO TI COSTA DA LADEIRA. E gloriosa labuta foi quase até ao
amanhecer.

No outro dia, Domingo do Senhor, com dever de missa e comunhão, a aldeia amanheceu em
reboliço já que o ti Teimoso andava todo irado pela aldeia para pegar os salafrários sem
vergonha que tinham acabado com a pintura da casa da filha, já que jegue e dono agora
moravam na casa do Ti Martins e Ti Mercedes, filha do Ti Manuel Costa da Ladeira. Casa
acabada de pintar.

Com tamanha propaganda toda a aldeia se deslocou para a rua da volta, para ver de perto o
que tanto enfurecera o ti Teimoso. Chegados lá nos deparamos, em letras garrafais com o
seguinte texto:

EU SOU O BURRO DO COSTA:

COMO TODOS SABEM TIVEMOS UMA REVOLUÇÃO E COM ELA VIERAM GARANTIAS
TRABALHISTAS QUE EU TAMBÉM QUERO PARA MIM:

1. RELVA E PALHA DE QUALIDADE E AO SÁBADO E DOMINGO FOLGA, COM RAÇÃO


DUPLA. TAMBÉM EM PORTUGAL AGORA TEMOS A SEMANA INGLESA.
2. MÊS DE FÉRIAS COMO TEM DIREITO QUALQUER TRABALHADOR.
3. EM CASO DE DOENÇA, OU ALEIJO COMO TENHO AGORA, DIREITO A SEGURO,
DESCANSO E COMIDA NO CURRAL, COM ESTRUME MUDADO A CADA SEMANA.
4. ACABARAM AS CACETADAS NO COSTADO. QUANDO QUISER ALGO COMBINE COMIGO
E FALE COM BONS MODOS.
5. PODEMOS PARA NA PORTA DO CAFÉ, MAS LEMBRE-SE QUE EU TAMBÉM VOU COM
SEDE. UM COPITO TAMBÉM PARA MIM.

ASSINA: BURRO DO COSTA

Imagine querido leitor o burburinho que deu esta parede pintada, mas tudo passou, a parede
foi pintada de novo um tempo depois e o burro do Costa foi passar seus últimos tempos no
num campo cheio de relava fresca e mina d’água, já que não tinha mais forças para trabalhar.
O ti Teimoso ficou m tempo doente, de cama, na casa da filha e do Ti Martins, cuidado pela
Isaura, e morreu em paz, pedindo que eu rezasse umas missas por ele quando eu fosse padre.
No céu ele deve estar rindo agora destas besteiras e fazendo umas alpargatas com o tio Isidro,
o tio manuel Marques, o Ti Manel da Adélia e tantos outros sapateiros e dizendo para o tio
Jorge: “ daquela vez não quiseste pegar as cacetadas no lombo que estava dando ao burro.
Ficaste a dever essas. ”

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