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Profético

Nadia Beugré

Peguem nos vossos lenços,


peguem nos vossos lenços!

Em cima, em baixo!
Em cima, em baixo!

Devagarinho, com cuidado,


devagarinho, com cuidado...

Olá, é aqui o salão.


Sim, está aberto!

Não, meu amor, não são 30,


são 200!

Aqui somos imensas trancistas,


as artistas de Abidjan!

Olha, podes falar com elas!

Chamo-me Kevin,
sou a maquilhadora.

Eu sou a Beyoncé,
sou eu que lhe faço as tranças.

Eu não sei fazer tranças,

mas disseram-me que havia


comida de graça!
Esta é a Jhaya.

E eu sou a estilista dela.

Sim, é a Taylor,
a personalidade do TikTok!

E tu sabes quem está cá?


Canel, Fecho de Correr!

Há imensa gente na sala.


Mandem um beijinho a Canel, por favor!

Acho que somos capazes


de fazer melhor!

Queres ir falar com ela.


Cinco minutos, então!

Há muitas pessoas binárias,


não-binárias, trans, travesti,

de género fluido,
que gostavam de falar com Canel.

Primeira pergunta:
quais são os teus planos agora?

Um filme sobre a tua vida!


E como é que começa?

Meu Deus, estou chocada!


E porquê no avião?
O quê? Foste mandada parar
por um inspetor da alfândega

que te confiscou a mala?


Mas porquê?

Não tenho bem a certeza,

mas o inspetor da alfândega


parecia um pouco racista...

Sim, mas era giro!

Canel, o que queres fazer agora?

Há alguém que quer tirar


uma selfie connosco!

Olha, a Virginie depositou


dinheiro na conta.

Tem quantos zeros?


São mais, conta novamente!

São mais, conta novamente!

200 000 000 euros!

A vista daqui é maravilhosa!

Anda, vamos ver se eu estou além.

Não, não estou além.


Vamos até ali!
Ah, estou a ver um rapaz giro acolá.
Vamos!

Não, vamos recuar!

Vamos descer!
Vamos descer!

De onde virá este som alto?

Vejam, é a Miss Músculos!

Ouviram o barulho?

É o vento!

É o som dos ossos!

É a estação das secas!

É o Michel Platini!

Calma, é a moça brasileira!

Loucura! Essa mulher é louca!

Lá vai ela outra vez!

Qual é o teu problema?

Faz-me um broche! Faz lá!

Mariconço!
Olha, é o Sangoku!

Ei, vais chegar tarde


à gala do Met!

Que tipo de cabelo é esse?

E ela fode com


ou sem preservativo?

Queres?

E tu,
tens a certeza que mereces?

E tu, queres Chanel N° 5?

Mereces amor!

Mereces ser feliz!

Mereces mais feminismo


na tua vida!

Mereces hormonas gratuitas!

Mereces um amor transdurável!

Mereces uma presidente travesti...


negra!

Mereces estar cansado, estrangeiro!


Damos-vos as boas-vindas
a “Profético (nós já nascemos)”.

Esta noite, temos connosco


lindas senhoras, divas,

mulheres dinâmicas que


vos vão aquecer!

Sabem, nós temos a nossa


maneira de aplaudir.

Querem ver?

Não vos estamos a ouvir!

Isso mesmo,
até fiquei com pele de galinha!

Agora, vamos dar as boas-vindas


à “daichi”, a diva,

a original, e não a fotocópia!

O vosso aplauso para


Canel, Fecho de Correr!

Podem chamar-me fatra, djantra,


até puta. Não me ralo.

Se quiserem, também me podem


chamar criminosa,

porque passei um ano na prisão...


injustamente.

Imaginem uma pessoa trans


como eu

numa prisão masculina em Abidjan.


Imaginem...

Não interessa,
continuo a ser a “daichi”!

Os homens têm pénis,


as mulheres têm vagina.

Se Deus criou o homem


à sua imagem,

porque é que eu me sinto


uma mulher com pénis?

Se Jesus era hétero,

porque é que andava sempre


com homens?

Dizem que vamos para o inferno,

mas é o quê, o inferno?


Os outros?

É o meu pai…

O meu pai vai para o inferno

por ter rejeitado


os seus próprios filhos...

Eu vou parar ao inferno

por andar de mãos dadas


com um homem na rua.

Se fizer isso,
será masculino o suficiente?

Se usar uma peruca,


é feminino o suficiente?

O que devo eu fazer,


o que devo eu usar,

como é que devo falar,

se quiser andar na rua


sem correr o risco

de me insultarem, ameaçarem-me
ou espancarem-me?

Feio é o quê? Belo é o quê?


Quem decide isso?

Nós? Vocês?
A família, a sociedade?

Sim, nasci rapaz,


sim, uso maquilhagem,

sim, uso peruca.


Sim, sinto-me bonita,
sim, as pessoas detestam isso,

e sim, eu gosto ainda mais...

Não importa se somos pessoas


queer, trans, não-binárias,

assexuadas, de género fluido,


agénero, intersexo...

somos uma comunidade!

E é bom que se habituem.

Porque estamos aqui


e não vamos a lado nenhum.

Nós já nascemos.

Borboleta voa, voa.

Borboleta voa, voa.

Se não voares,
as crianças vão-te apanhar!

Voa, borboleta, voa bem alto.

Voa, borboleta, voa bem alto.

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