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Revista do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFOP

ISSN: 2526-7892
ARTIGO
DA PALAVRA VIVA À PALAVRA MUDA: UM NOVO REGIME DE
ESCRITA EM JACQUES RANCIÈRE 1
Daniela Cunha Blanco2

Resumo: O intuito desse artigo é pensar um novo regime de escrita em Rancière pautado
no modo com que o autor interpreta Schiller, não a partir da linha argumentativa do texto,
mas, antes, a partir de seu caráter literário e descritivo. Partindo do debate em torno das
relações entre a imagem e a palavra, pretendemos dar a ver como Rancière pensa as
construções e desconstruções de uma série de hierarquias do pensamento estético que dizem
mais respeito a um regime de identificação das artes do que à simples defesa de uma arte em
detrimento de outra. Trata-se de pensar o modo como se relaciona a aisthesis à poiesis, assim
como as ideias de humanidade e de sujeito que essas relações dão a ver. O pensamento do
estatuto do sensível nos regimes de escrita nos auxiliará a pensar como certas operações
textuais – como a descrição – são, ora vistas como subordinadas a um encadeamento causal,
ora vistas em sua autonomia como pensamento. Trata-se de afirmar o surgimento de um
novo regime de escrita que rompe com as hierarquias do princípio mimético e que, ao fazê-
lo, rompe também com as ideias de humanidade e de sujeito que preexistiriam à escrita e à
linguagem.
Palavras-chave: Jacques Rancière, palavra muda, regimes de escrita, descrição, palavra e
imagem
Abstract: The purpose of this article is to think of a new regime of writing in Rancière based
on the way the author interprets Schiller, not from the argumentative line of the text, but
rather from its literary and descriptive character. Starting from the debate about the relations
between image and word, we intend to show how Rancière thinks about the constructions
and deconstructions of a series of hierarchies on the aesthetic thought that concern more
about a regime of identification of the arts rather than the simple defense of one art over
another. It is a question of thinking about the way in which we relate aisthesis to poiesis, as well
as the ideas of humanity and subject that these relationships make visible. Thinking of the
status of the sensible in the writing regimes will help us to think how certain textual
operations - such as description - are sometimes viewed as subordinate to a causal chain,
sometimes seen in their autonomy as thought. This is to affirm the emergence of a new
writing regime that breaks with the hierarchies of the mimetic principle and, in so doing, also
breaks with the ideas of humanity and subject that would pre-exist writing and language.
Keywords: Jacques Rancière, mute speech, regimes of wrinting, description, speech and
image

1From the mute speech to the living speech: a new regime of writing in Jacques Rancière
2Doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Capes. Endereço de
email: danielablanco27@gmail.com
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INTRODUÇÃO
Podemos perceber, em nosso modo de lidar com os textos, uma série de
pressupostos que delimitam e definem o que seria uma escrita filosófica, assim
como aquilo que seria uma escrita literária. Mas, não se trata, como afirma Jacques
Rancière3 – em discordância com uma série de autores da linguística e do dito
estruturalismo –, de uma convenção a partir da qual aceitamos que um texto seja
fictício e que um outro trate das questões da verdade ou da realidade. Não há
nenhuma espécie de decisão ou acordo que possa garantir uma relação estável entre
o enunciador e o leitor, capaz de configurar uma divisão fixa entre realidade e
ficção.4 Para Rancière, nem mesmo essa divisão pode ser considerada como certa a
partir do momento em que se considera que o próprio modo como percebemos e
habitamos o mundo é já configurado por um sensorium comum, por uma partilha do
sensível:

um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível,


da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o
que está em jogo na política como forma de experiência. A
política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o
que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para
dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo.5

Nesse sentido, aquilo que consideramos como a realidade na qual vivemos é nada
mais que uma série de configurações sensíveis, modos de pensamentos e de
percepções que desenham o mundo que vemos e habitamos. Se essa é de fato a
realidade que habitamos, nada nos impede de pensar que ela poderia ser outra ou

3 RANCIÈRE, Jacques. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís


Eleonora Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b.
4 No livro Políticas da escrita, Rancière (Ibid.) refere-se à discussão empreendida por John

Searle em Expression and meaning, acerca da ficção e da literatura. Para Searle, como afirma
Rancière, não existe nada próprio à ficção e à literatura, nada interno a estas, que possa
justificar um modo próprio de identificá-las. Logo, conclui Searle, se não são
propriedades internas à ficção que nos permitem perceber uma condição específica dos
atos de ficção, haveria propriedades externas que o fariam: a decisão, por parte do leitor,
de considerar que uma obra seja ou não literária. Mas, continua Rancière, em sua
interpretação de Searle, essa decisão não é totalmente aleatória. Ela acontece no interior
de uma convenção social: “o enunciado fictício é recebido exatamente pelo que é – nem
realidade, nem mentira – porque o escritor e o leitor juntos combinam suspender as
regras normais da asserção” (Ibid., p. 40). Para Rancière, a perspectiva apontada por
Searle na interpretação da ficção demonstra um certo medo daquilo que o autor
compreender como uma perturbação literária ou como a democracia literária. Noções que
dariam a ver esse próprio impróprio da literatura capaz de borrar quaisquer bordas ou
linhas que separam os campos de saberes e da escrita. Essa relação estável entre o
enunciador e o leitor é, diz Rancière (Ibid.), ela sim, uma ficção cujo interesse é não
permitir os desvios que o ser literário opera. A ideia da convenção da língua é pensada
também por Ferdinand de Saussure, cujo trabalho influenciou as diversas leituras
posteriores em torno da língua, da ficção e da literatura, demonstrando a radicalidade do
pensamento de Rancière em torno do tema.
5 Id. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo:

Ed. 34, 2009, p. 16-17.

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de outro jeito, que ela já tenha sido configurada de maneira diversa, ainda, que essa
configuração ou partilha do sensível seja sempre diferente e contingencial em cada
espaço-tempo no qual nos inserimos. Realidade e ficção, assim, tornam-se termos
não tão distantes quanto o senso comum gostaria de crê-los. Suas bordas e linhas
são desenhadas e redesenhadas por um encontro, sempre contingencial, entre a
estética e a política – duplo sentido que o termo partilha do sensível expressa no
pensamento de Rancière.

Esse modo particular de entrelaçar estética e política opera uma série de


consequências no pensamento das divisões dos campos de saberes, ou mesmo da
divisão entre a vida cotidiana e as artes ou a filosofia. Quando pensamos, assim,
nesses pressupostos que delimitam as bordas de uma escrita, cercando-a e
apartando-a de um outro modo de escrita, estamos inseridos necessariamente em
um debate que é ao mesmo tempo político e estético. Trata-se de questionar, não
se um determinado texto é ou não político, mas, antes, qual política este opera, qual
modo de pensamento configura sua escrita e nossos modos de percebê-lo e de
perceber o mundo. Para Rancière, é isso que está em jogo nas ferramentas,
operações, e no estilo que configuram um texto: uma configuração estético-política
que desenha o sensorium comum a partir do qual percebemos e pensamos. Escrever,
assim, como argumentamos alhures,6 é escrever cada espaço que ocupamos, é
desenhar as bordas das coisas ao nosso redor, é distribuir os tempos ao longo de
linhas que ora se sucedem, ora se entrecruzam em um emaranhado de presentes,
passados e futuros. Desse modo, as bordas e linhas que separam uma escrita que
identificaríamos como ficção e uma outra que trataria da verdade ou da realidade
tornam-se frágeis, móveis e contingenciais. Linhas que são o tempo todo retraçadas
pela própria escrita que, enquanto escreve, não para de pensar a si própria e de
redesenhar as bordas que definem seu espaço-tempo.

Enquanto a configuração de nossos modos de vida é compreendida sob a ideia de


uma partilha do sensível, a configuração particular de um texto ou escrito pode ser
pensada, assim, sob a ideia de um regime de escrita: o da ficção, tal qual pensada por
Rancière. A ficção, afirma o autor,

não é a invenção de mundos imaginários. Ela é, em primeiro


lugar, uma estrutura de racionalidade: um modo de apresentação
que torna as coisas, as situações ou os acontecimentos
perceptíveis inteligíveis; um modo de ligação que constrói
formas de coexistência, de sucessão e de encadeamento causal
entre os acontecimentos e confere a essas formas as
características do possível, do real ou do necessário.7

6 BLANCO, Daniela Cunha. Rancière, bordas da escrita. 2019. Dissertação (Mestrado


em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2019a.
7 RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo

Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017a, p. 11-12.

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A ficção é, assim, um certo modo de desenhar e escrever uma cena,8 de colocar em


conjunção uma série de elementos de tal modo a fazê-los aparecer sob uma certa
visibilidade e pensabilidade. Fazer ficção é, portanto, determinar não apenas o
modo de visibilidade de algumas coisas, indivíduos e acontecimentos, mas, antes,
definir quais desses elementos são dignos de visibilidade, quais são possíveis, reais ou
necessários.

A partir da ideia de uma escrita que opera uma partilha do sensível, pretendemos
OBJETIVO pensar o modo como Rancière se empenha em retraçar as bordas que separam a
escrita filosófica da escrita literária, retraçando, também, com isso, a configuração
sensível que determina nossos modos de ver e pensar. Trata-se de pensar que o
modo com que essas escritas se separam ou se entrelaçam dá a ver uma outra
divisão: a dos regimes de visibilidade das artes, tais quais sintetizados por Rancière9 em
A partilha do sensível. Se o autor está interessado em pensar o modo com que a arte
é identificada como tal nesses diferentes regimes, nosso intuito aqui será o de
pensar como a escrita e as ideias de humanidade e de subjetividade a ela relacionadas
também são afetadas e reconfiguradas por essas mudanças de regime. Nossa
HIPÓTESE hipótese, assim, é pensar como Rancière entrelaça política, estética e escrita de
modo a configurar o pensamento de regimes de escrita. Caminhando entre uma escrita
filosófica e uma escrita literária, esses regimes de escrita estariam inseridos em uma
partilha do sensível que define o que pode ou não ser considerado como pensamento.
Trata-se de pensar uma escrita da política, ou seja, pensar o modo como o literário,
ou, nas palavras de Rancière, o ser literário,

seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão


aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em sua
função: uma perturbação na língua análoga à perturbação
democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os
põe juntos.10

Nosso intuito é perceber como Rancière procura esse estado ou operação


suspensiva da escrita a partir de um outro modo de olhar para os textos filosóficos
que os aproxima da literatura, ou, antes, que percebe neles a suspensão de um modo

8 Rancière compreende a cena como um modo de se aproximar das coisas, pessoas e


acontecimentos e, a partir de um olhar sem preconceitos, reescrevê-las e reconfigurá-las.
Uma maneira de “colocar em conjunto corpos, gestos, olhares, palavras e significações.
[...] Ela é como a disposição visual de um modo de racionalidade que não deve ser
explicada por uma cena fora do palco” (Id., JDEY, Adney. La méthode de la scène.
Paris: Editions Lignes, 2018, p. 29, tradução nossa). O que significa dizer que a cena não
representa um teoria anterior que a explica e desvenda seus segredos. Antes, é a própria
cena que torna visível a operação de um modo de pensamento. “O interesse da cena é de
mostrar o pensamento trabalhando, os conceitos no processo de se fazerem, por
oposição a toda uma tradição filosófica que diz que se deve antes definir os termos e ver
como eles se combinam e fornecem a racionalidade da coisa” (Ibid, p. 13, tradução
nossa).
9 Id. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo:

Ed. 34, 2009.


10 Id. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora Vilanova,

Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b, p. 31.

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de pensamento que divide os campos de saberes. Rancière está interessado em


perceber o ser literário da escrita a partir da ideia de que “a natureza ‘literária’ de um
texto não é nem ‘constitutiva’ nem ‘condicional’, ela é suspensiva. Está ligada a uma
historicidade que é a das relações da letra e do corpo que lhe falta ou a completa”.11
Essas relações entre o corpo e a letra dão a ver uma configuração política da escrita,
ou uma política da escrita, cuja visibilidade expressa um modo de pensar
relacionado a um regime de escrita. Trata-se, assim, de pensar a partilha do sensível
configurada por um determinado regime de escrita depreendido do pensamento de
Rancière.

DA MÍMESIS AO SENSÍVEL: UMA CENA DA LETRA SEM


CORPO
Rancière,12 no livro Malaise dans l’Estéthique, está interessado em pensar como a
estética teria surgido não como uma teoria da arte, mas, antes, como um regime de
identificação e visibilidade das artes configurado desde o princípio por uma série de
paradoxos. O autor irá buscar esses paradoxos que caracterizam o regime estético
em um dos textos paradigmáticos da estética: A educação estética do homem, publicado
em 1795, por Friedrich Schiller. Ao fim da décima quinta carta do livro, Rancière
afirma que Schiller cria uma cena na qual “alegoriza um estatuto da arte e de sua
política”, 13 nos instalando imaginariamente em face da estátua grega conhecida
como Juno Ludovisi e afirmando-a como uma livre aparência fechada sobre ela
mesma.

Na carta a que se refere Rancière, Schiller14 se empenha por pensar como seria
possível a unidade entre dois impulsos contraditórios um em relação ao outro: o
impulso sensível – que teria como objeto a vida – e o impulso formal – que teria como
objeto a forma. Schiller está interessado no pensamento da possibilidade de um
homem livre e, portanto, de um Estado que permita a liberdade do homem, tendo
em vista a dualidade entre o dever e a inclinação, entre o necessário e o contingencial.
O autor alemão concebe um terceiro impulso – irrealizável –, o impulso lúdico,
compreendido como aquele que seria capaz de reunificar o entendimento especulativo
ao intuitivo. Esse terceiro impulso, expressando uma necessidade da razão
transcendental, configuraria uma comunidade entre os impulsos formal e sensível, pois,
afirma Schiller, “apenas a unidade de realidade e forma, de contingência e
necessidade, de passividade e liberdade, completa o conceito de humanidade”.15

A humanidade pensada por Schiller é aquela que não é coagida pela lei e tampouco
pela necessidade; é aquela das faculdades que estão livres para jogar entre uma coisa
e outra, entre as exigências do impulso formal e as do impulso sensível. Daí surgiria o
sentido do terceiro impulso, o lúdico, compreendido como aquele do livre jogo do

11 Ibid., p. 108.
12 Id. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004.
13 Ibid., p. 41, tradução nossa.
14 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas.

Trad. Roberto Shwarz e Márcio Suzuki. 7. reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2013.
15 Ibid., p. 73-74.

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homem entre a realidade de sua existência física e limitada como matéria sensível e
sua existência como natureza racional, capaz de, como diz Schiller, “levar harmonia
à multiplicidade dos fenômenos e afirmar sua pessoa em detrimento de toda
alternância de estado”.16 Está em questão, portanto, o livre jogo das faculdades
entre a contingência de um corpo sensível afetado pelas coisas do mundo e a
necessidade de se dar uma ordem às sensações. A livre aparência seria a expressão
dessa unidade impossível entre os dois impulsos contraditórios e a partir da qual se
poderia jogar com o terceiro impulso.

Desse modo, Rancière compreende que o fechamento da livre aparência sobre si


mesma não tem nada a ver com aquele defendido por Clement Greenberg em
relação à autonomia material da obra. Greenberg estaria interessado em defender a
ideia de uma arte pura (ou arte pela arte) que se teria colocado em contraposição aos
produtos de uma cultura dita kitsch – resultante dos processos de estetização da vida
a partir da revolução industrial. A vanguarda artística, diz Greenberg, pretendia
“manter o alto nível de sua arte tanto estreitando-a como elevando-a à expressão
de um absoluto em que todas as relatividades e contradições estariam inteiramente
resolvidas ou seriam irrelevantes”.17 Opondo-se aos simulacros das operações
mecânicas de imitação do kitsch, a cultura de vanguarda teria autonomizado a forma
artística ao voltar-se completamente para as questões plásticas de seu medium. Em
resposta ao consumo insensível do kitsch a arte de vanguarda traria o espectador
para o campo da dita cultura superior. Como afirma Rancière, Greenberg teria
estabalecido como pano de fundo comum do pensamento da autonomia da arte a
ideia de que a superfície plana da arte abstrata expressaria a conquista do medium
próprio da arte assim como o rompimento em relação a “submissão a fins externos
e à obrigação mimética”18.

Rancière irá demonstrar como essa ideia do medium (ou meio) pode ser desviada a
partir daquilo que Schiller entendia sob a ideia de aparência livre. Em Schiller, diz o
autor francês, “o medium em jogo não é a matéria sobre a qual o artista trabalha. É
um meio sensível, um sensorium particular, estrangeiro às formas ordinárias da
experiência sensível”.19 Schiller não está interessado em pensar as possibilidades da
criação artística ou as especificidades de uma matéria ou medium como ponto focal
da autonomia da forma artística. O que está em jogo no autor alemão é uma outra
forma de autonomia: a do livre jogo das faculdades, que será reinterpretada por
Rancière como a autonomia da experiência sensível. O medium e a superfície plana
deixam de ser pensados como propriedade de uma ou outra arte e passam a ser
compreendidos como o próprio espaço no qual as diversas artes vem se misturar,
no qual a palavra e a imagem se entrelaçam, no qual, ainda, pode-se ver o

16 Ibid., p. 60.
17 GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. Trad. Otacílio Nunes. São
Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 29.
18 RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2012, p. 116.


19 Id. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41, tradução nossa.

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surgimento do regime estético. Como afirma Rancière, para contrapor Schiller à


Greenberg,

O adeus dado à lógica representativa não significa a mera


afirmação da materialidade sensível do quadro, recusando toda
subordinação ao discurso. É um novo modo da
correspondência, do ‘como’ que ligava a pintura à poesia, as
figuras plásticas à ordem do discurso. As palavras não mais
prescrevem, como história ou como doutrina, o que devem ser
as imagens. As imagens são feitas para transformar as figuras do
quadro, para construir uma superfície de conversão, essa
superfície das formas-signo que é o verdadeiro meio (medium) da
pintura – um meio (medium) que não se identifica à propriedade
de nenhum suporte, de nenhum material.20

Assim, podemos compreender que, para Rancière, não se trata mais do pensamento
da autonomia de um modo de fazer da arte, mas sim da autonomia da experiência
sensível que esse espaço do sensorium comum cria.

Se fizemos aqui uma breve leitura do pensamento de Schiller – contrapondo-o ao


de Greenberg – na qual apresentamos alguns de seus conceitos, argumentações e
consequências, Rancière21 se volta para um outro aspecto do texto, qual seja, a
descrição feita por Schiller da estátua grega conhecida como Juno Ludovisi – com o
intuito de dar a ver como ela expressa a ideia de humanidade schilleriana, com todas
as contrariedades e implicações que abarca:

Não é graça nem dignidade o que nos sugere a soberba face de


uma Juno Luovisi; nenhum dos dois por ser os dois ao mesmo
tempo. Conquanto a divindade feminina exija nossa adoração, a
mulher divina inflama nosso amor; mas enquanto nos rendemos
à candura celestial, sua autossuficiência celestial nos faz recuar.
Toda a figura repousa e habita em si mesma, criação
inteiramente fechada que não cede nem resiste, como se
estivesse para além do espaço; ali não há força que lute contra
forças, nem ponto fraco em que pudesse irromper a
temporalidade. Irresistivelmente seduzidos por um, mantidos à
distância por outro, encontramo-nos simultaneamente no
estado de repouso e movimento máximos, surgindo aquela
maravilhosa comoção para a qual o entendimento não tem
conceito e a linguagem não tem nome.22

20 Id. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012, p. 98.
21 Id. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004.
22 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas.

Trad. Roberto Shwarz e Márcio Suzuki. 7. reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2013, p.
77.

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A livre aparência da estátua nos coloca em um estado de suspensão. Como afirma


Schiller,23 há um estado intermediário entre matéria e forma, entre passividade e
ação, ao qual a beleza nos transporta. Para Rancière,

O que a ‘livre aparência’ da estátua grega manifesta é a


característica essencial da divindade, sua ‘ociosidade’ ou
‘indiferença’. O próprio da divindade é de não desejar nada, de
estar livre da preocupação de propor fins e de ter que realizá-
los. E a estátua herda sua especificidade artística de sua
participação nessa ociosidade, nessa ausência de vontade. Em
face da deusa ociosa, o espectador é ele mesmo colocado em
um estado que Schiller define como aquele do ‘livre jogo’.24

A estátua, ou, antes, a descrição que Schiller faz dela, aparece para Rancière como
expressão do paradigma estético: o surgimento de um sensorium comum no qual a
arte passa a ser identificada como tal, em sua autonomia, no momento mesmo em
que perde as prerrogativas que a afirmavam como um fazer específico apartado das
coisas comuns da vida. Trata-se de compreender o regime estético como configuração
de nossos modos de perceber e pensar a arte a partir da ruptura entre a poiesis,
compreendida como um modo de fazer, e a aisthesis, pensada como um modo de
visibilidade. Segundo Rancière,25 no regime estético é desfeito o nó que ligava uma
natureza produtora a uma natureza sensível e que, juntos, definiam uma ideia de
natureza humana pautada em uma ordenação do sensível na qual a forma prevalece
sobre a matéria, a razão sobre o sensível, a atividade sobre a passividade. É
exatamente a ruptura dessa ordenação sensível que a descrição da Juno Ludovisi
feita por Schiller dá a ver. Tudo se passa como se, entre o corpo da estátua e a
palavra de Schiller, todo o sensorium comum da arte tivesse se reconfigurado.

PALAVRA E IMAGEM: UMA RELAÇÃO POLÊMICA ENTRE


O NARRATIVO E O PICTURAL
Para Rancière,26 o debate em torno da dupla ut pictura poesis (como a pintura, é a
poesia) / ut poesis pictura (como a poesia, é a pintura) dá a ver essa mesma
reconfiguração do sensível e mudança de regime de visibilidade das artes expressa
na cena da Juno Ludovisi. Apesar do debate girar em torno de uma certa hierarquia
entre as diferentes artes a partir de uma ideia, ora de que a arte da palavra teria uma
maior capacidade expressiva, ora de que as artes ditas visuais é que teriam essa
preponderância, Rancière27 afirma tratar-se de algo além da mera subordinação de
uma arte a outra. Segundo o autor, as duas posições envolvidas no debate
expressam e configuram modos de relacionar o fazer, o ver e o pensar da arte que
determinam aquilo mesmo que é identificado como arte. Trata-se de compreender

23 Ibid.
24 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
25 Ibid.
26 Id. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,

2012.
27 Ibid.

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que a pintura e a poesia se relacionam, em cada regime, de um modo diverso. O


que não significa dizer que elas são compreendidas como coisas separadas, mas,
antes, que no interior da pintura, tanto quanto no interior da poesia, a palavra e a
imagem se relacionam sob uma determinada hierarquia, ou sob uma determinada
planaridade, a depender do regime de identificação na qual estão inseridas.28

A partir do princípio da mímesis, tanto na pintura quanto na poesia, a relação entre


a imagem e a palavra configura um regime de escrita pautado em uma hierarquia na
qual o pictural está sempre subordinado ao narrativo. Assim, Rancière afirma que
na poesia e na literatura concebidas pelos tratados clássicos da poética, os elementos
descritivos que dão visibilidade a uma determinada paisagem da narrativa aparecem
como adendo do encadeamento causal. E é justamente essa hierarquia que o regime
estético irá romper, afirmando uma planaridade entre o pictural e a palavra, ou seja,
afirmando que um não está a serviço do outro.

Trata-se, portanto, da configuração de um novo regime de escrita, ou da passagem


de um regime a outro (do representativo ao estético) que deve ser entendida a partir
do abandono da mímesis como princípio de visibilidade das artes e, ao mesmo
tempo, a partir do surgimento daquilo que Rancière denomina de experiência
sensível autônoma.29 Isso implica em pensar no abandono das categorias que

28 O tema das relações hierárquicas entre a arte da palavra e a das imagens refere-se a
expressão “ut pictura poesis” tal qual aparece no tratado poético de Horácio. A partir dessa
expressão, as relações entre a imagem e a palavra foram retomadas inúmeras vezes, em
especial ao longo do século XIX, nos tratados clássicos da poesia. Mas, como afirma
Oliveira, séculos antes, essa questão já estava apresentada nas discussões empreendidas
por Platão em torno da mímesis (OLIVEIRA, Ana Lúcia M. O fingidor e o filósofo:
breve ensaio acerca do ut pictura poesis. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.2, p.63-70, jan.
2007). Como afirma a autora, o tema das relações entre a imagem e a palavra, aparece em
Platão, sempre com o intuito de “reafirmar o primado da verdade, submetendo a pintura
às condições filosóficas que regulam o estatuto da aparência, isto é, de imagens cuja
referência é necessariamente constituída pelo que se considera como real” (Ibid., p. 65).
Desse modo, compreendemos como Rancière aponta que aquilo que está em jogo na
retomada desse debate é algo muito além de uma mera afirmação hierárquica entre as
diferentes artes. Antes, trata-se de uma tentativa sempre repetida de submeter a arte à
ideia de verdade.
29 Rancière concebe três regimes de identificação das artes, o ético, o representativo e o

estético, dos quais já tratamos em outro lugar (BLANCO, D. C. Jacques Rancière e o


regime estético das artes como recusa à ideia de modernidade. In: Prometheus, São
Cristóvão (SE), n.30, 227-243, maio de 2019b). Se optamos aqui por referir-nos não aos
nomes dos três regimes, mas sim ao princípio da mímesis, é porque este está colocado em
jogo tanto no regime ético quanto no representativo. No primeiro, como princípio a
partir do qual se relaciona a arte a uma comunidade ética e a partir da qual, Platão afirma
ser necessário expulsar os poetas da República. No segundo, a partir do pensamento
desse princípio como aquilo que divide e identifica um modo de fazer específico que não
se confunde com outros modos de fazer da comunidade – tal qual teorizado por
Aristóteles e nos tratados clássicos da poética e da retórica. Desse modo, nossa opção
pelo emprego do termo princípio mimético para referirmo-nos às características de ambos os
regimes que precedem o estético marca a radicalidade do modo de pensamento estético
em relação ao ético e ao representativo, auxiliando na economia do texto, interessado em
marcar o regime de escrita que surge com o rompimento em relação à mímesis.

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pautavam a mímesis: as ideias de que a forma definia a matéria, de que a razão era
superior ao sensível, de que a ação era mais importante do que a descrição, de que os
personagens eram mais relevantes do que as coisas. E aqui chegamos ao ponto que
nos interessa: é na descrição do corpo da estátua que se pode ver a configuração
particular de um novo regime, exatamente porque aquilo que, segundo a mímesis –
de Aristóteles aos tratados poéticos do classicismo –, era uma operação de segundo
escalão ressurge no regime estético como expressão de um modo de pensamento da
arte. A descrição da Juno Ludovisi nada mais é, afinal, que um elemento pictural no
interior de um texto filosófico cuja maior relevância, pressupõe-se, estaria no
encadeamento argumentativo e narrativo. O que Rancière faz, ao partir da descrição
da Juno Ludovisi para pensar a configuração de um novo regime de visibilidade das
artes, é afirmar a ruptura da hierarquia entre razão e sensível, entre forma e matéria,
é afirmar a ruptura com o princípio mimético. No regime estético, o sensível é
também um modo de pensamento, e a antiga divisão entre os aspectos formais e
conteudísticos da arte deixam de fazer sentido. Do mesmo modo, no regime de
escrita da ficção, que aqui nos empenhamos em construir, a construção de uma
cena a partir das palavras e das imagens é já a construção de uma realidade, de uma
partilha do sensível.

As relações entre a pintura e a poesia, ou entre imagem e palavra (tais quais


debatidas em torno da expressão ut picutra poesis, definem-se, a partir de então, em
um movimento constante e contingencial no qual a escrita passa a ser também
escrita da materialidade sensível, não estando mais limitada a ordenar uma
linearidade causal de acontecimentos responsável por dar forma à matéria inerte.
Assim, essa escrita da materialidade do sensível aparece, para Rancière,30 na
descrição feita por Schiller da estátua Juno Ludovisi, pois o corpo da estátua não
interessa mais apenas na medida em que carrega ou expressa uma ação, em que dá
forma a uma cadeia causal. Ao contrário, o corpo da estátua expressa uma espécie
de mudez, o rosto da Juno não nos diz o que pensa ou que ações estaria prestes a
fazer ou já teria feito. A ociosidade da estátua, para a qual Rancière chama a atenção,
nada mais é que sua existência completamente desprovida de quaisquer funções ou
intencionalidades. É por isso que, segundo nossa hipótese, a palavra que pode falar
sobre ela, que a descreve, é também aquela que Rancière31 denomina, em outra
discussão, de palavra muda, palavra que nada tem a explicar, justificar ou argumentar.
A descrição feita por Schiller não opera como parte essencial do texto, sem a qual
a linha argumentativa estaria perdida ou incompleta. Não se pode afirmar que, na
linha narrativa do texto, após a descrição da Juno, se compreende um novo
argumento ou conceito, tampouco que ela seja um mero exemplo que represente
aquilo sobre o qual o autor discorria anteriormente. Sua descrição surge como uma
fenda no texto, a partir da qual nada de novo foi incluído na ordem causal, no
entanto, a partir da qual, nada mais permanece como está. A palavra muda que
descreve a Juno introduz uma suspensão no encadeamento causal do texto,
configurando uma planaridade entre o pictural e o textual, configurando uma cena
cujas operações e modos de visibilidade redesenham as bordas que separam a ficção

30 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
31 Id. La parole muette. Paris: Librairie Arthème Fayard/Pluriel, 2010.

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do real, a literatura da filosofia. Pensada por Rancière como oposição ao


pensamento aristotélico da mímesis – da ficção como encadeamento causal de
ações –, “a cena é o que expõe as diferentes maneiras pelas quais a mesma coisa
pode ser percebida: é sempre para mim o momento em que as coisas podem
mudar”.32 A cena, continua Rancière, não divide ficção de realidade, antes, é “uma
cena de construção de uma realidade”.33

É a partir desse entrelaçamento entre ficção e realidade do regime estético que


Rancière34 concebe a palavra muda como aquela que surge com a literatura
romanesca em oposição ao modo da escrita mimético, cuja palavra poderia ser
denominada de palavra viva. Esse par de termos marca o espaço ocupado pelo pai
da escrita, pelo autor, sujeito ou identidade social que dá corpo ao texto; marca a
oposição entre um regime de oralidade da palavra e um regime de escrita. A palavra
viva estaria, assim, associada à mímesis, marcando a linearidade entre o enunciador,
o texto escrito, e o leitor ou espectador. É aquela de um “enunciado acompanhado”,
aquela que pressupõe um enunciador especializado e um receptor autorizado,
impossibilitando qualquer desvio. A palavra muda, por sua vez, é aquela que Rancière
afirma ser

ao mesmo tempo muda e falante demais. Ela é muda.


Entendamos com isso que não há nenhuma voz presente para
dar o tom de verdade às palavras que ela organiza, para
acompanhá-las de modo a semeá-las no espírito preparado para
as receber e fazê-las frutificar. A escrita está liberta do ato da
palavra que confere a um logos sua legitimidade, que o inscreve
nos modos legítimos do falar e do ouvir. [...] É por isso também
que ela é falante demais: a letra morta vai rolar de um lado para
o outro sem saber a quem se destina, a quem deve ou não falar.
Qualquer um pode então apoderar-se dela, dar a ela uma voz
que não é mais a ‘dela’, construir com ela uma outra cena de fala,
determinando uma outra divisão do sensível.35

Do mesmo modo, o corpo da estátua não está imbuído da intencionalidade do


artista, tampouco tem como função a transmissão de uma mensagem justa e clara.
O pensamento da arte que surge com o regime estético não tem nada a ver com
aquela clareza e distinção cartesiana, antes, se aproxima mais daquela ideia
apresentada no texto tido como fundador da estética, de Alexander Gottlieb
Baumgarten:36 um pensamento ao mesmo tempo claro e confuso. Que a confusão
adentre o pensamento, que passe a lhe qualificar, dá a ver que o pensamento passa
a comportar também a ideia de um não-pensamento, de um sensível. E não se trata

32 RANCIÈRE, Jacques; JDEY, Adney. La méthode de la scène. Paris: Editions Lignes,


2018, p. 31, tradução nossa.
33 Ibid., p. 29, tradução nossa.
34 RANCIÈRE, Jacques. La parole muette. Paris: Librairie Arthème Fayard/Pluriel,

2010.
35 Id. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora Vilanova,

Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b, p. 8-9.
36 BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema. Trad. Míriam

Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.

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aqui, como deixa claro Rancière, de uma oposição entre razão e sensível, mas, antes,
entre duas formas de pensamento: aquela da mímesis, que pressupõe uma
ordenação causal e linear entre cada elemento em prol de um todo, e essa outra, do
regime estético que pressupõe uma quebra de hierarquias entre razão e sensível, que
afirma, ainda, a possibilidade de uma experiência sensível autônoma – o que
significa dizer que os elementos sensíveis de uma estátua ou de um texto não
aparecem mais subordinados a uma razão geral de significação e exposição da
verdade, mas, antes, esses elementos significam por si mesmos. Há, no sensível,
uma forma de pensamento e há, no pensamento, uma forma de não-pensamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A DESCRIÇÃO E A


SUSPENSÃO DO CORPO DA LETRA
A partir dessa compreensão do regime estético, podemos propor uma perspectiva
a partir da qual pensar o estranhamento no texto de Rancière.37 Que o autor se
volte, não para os argumentos e conceitos construídos no texto de Schiller, mas,
sim, para a descrição da Juno Ludovisi, significa que a configuração do regime
estético das artes não se dá em uma teoria, ao contrário, esta teoriza uma série de
mudanças e configurações que já estariam latentes nas artes, mas principalmente,
em nossos modos de perceber o mundo, no sensorium comum que Rancière
denomina de partilha do sensível. Que se possa, assim, perceber uma mudança no
regime de identificação a partir de uma descrição, em detrimento de uma linha
argumentativa, só é possível pois a partilha do sensível que faz com que certas coisas
sejam percebidas como pensamento foi reconfigurada. A descrição no regime de
escrita pautado na mímesis, como podemos ver a partir do que argumenta Philippe
Hamon,38 era considerada, nos tratados clássicos da poesia, como mero adendo,
como passagem entre uma ação e outra, esta sim de maior importância. Tratava-se,
na idade clássica, ainda segundo Hamon, de controlar os excessos de detalhes
desnecessários que a descrição apresentava como risco. Ela só deveria aparecer na
narrativa com uma finalidade muito clara: qual seja, aquela de dar a ver um
personagem e suas características, apenas na medida em que estas fossem
necessárias para explicar a ação anterior ou aquela que se seguiria. Palavra viva, cuja
centralidade da figura do homem, seja na posição de autor, seja na posição de
personagem, determinava o percurso da palavra, entre um enunciador especializado
e um receptor preparado.

Não é isso que vemos acontecer na literatura romanesca que surge no regime
estético. As longas descrições de autores como Gustave Flaubert, dentre outros,
que aparecem a partir do século XIX, não apenas ganham uma liberdade
quantitativa quanto qualitativa. Afinal, além de aparecerem ao longo de páginas e
mais páginas, também passam a estare isentas de qualquer função ou
intencionalidade. Não se trata mais de descrever um personagem para justificar e
explicar suas ações. Mas, antes, de descrever por descrever, operando uma escrita
sem função. Há, assim, duas coisas que desaparecem na passagem de um regime a

37 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
38 HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette Livre, 1993.

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outro que aqui nos interessam em especial para pensar a relevância dada por
Rancière à descrição da Juno feita por Schiller: a importância da ideia de autor –
compreendido como aquele que leva a palavra viva a um receptor sem que ela sofra
desvios – e a importância da figura do homem – como aquele que é o fundamento
e a essência de toda narrativa, na medida em que narrar é narrar um encadeamento
de ações. Podemos, assim, apresentar a hipótese de que a passagem do regime de
escrita da palavra viva (ou regime da mímesis) ao regime da palavra muda (ou regime
da ficção) em Rancière pressupõe uma certa ideia de morte ou desaparecimento do
sujeito – aproximando-o, assim, de uma certa filosofia francesa contemporânea de
autores como Michel Foucault, Roland Barthes, dentre outros. Afinal, como afirma
Foucault, no texto O que é um autor?,

na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto


de escrever: não se trata da amarração de um sujeito em uma
linguagem: trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que
escreve não para de desaparecer.39

Do mesmo modo, para Barthes, a partir de trabalhos como aquele empreendido


em O império dos signos, trata-se de pensar em um trabalho com a linguagem e com a
escrita que recuse a ideia de um sujeito pensado como “núcleo pleno que pretende
dirigir nossas frases, do exterior e do alto”.40 Trata-se de compreender a escrita a
partir do vazio de fala – espaço que teria se configurado a partir da morte das
verdades e certezas metafísicas que fundamentavam ou eram fundamentadas pelo
cogito cartesiano, pela ideia de um sujeito anterior a todo e qualquer pensamento.

Como afirma Olgária Matos,

todos esses filósofos [Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze,


Barthes, dentre outros] questionam o sujeito cartesiano-
kantiano humanista, o sujeito autônomo, livre, autoconsciente,
tradicionalmente tomado como fonte de todo conhecimento e
da ação moral e política.41

Ou seja, como ponto comum entre todos esses autores dentre os quais
pretendemos inserir Rancière está o empenho por questionar a metafísica e a ideia
de que o homem ou o sujeito preexistem à fala e à escrita. O texto e a escrita (ou
escritura) serão agora pensados como o trabalho infinito de um pensamento que não
tem mais origem nem destino. Com a morte do sujeito, resta ao pensamento buscar
as fissuras nos limites de uma língua que pressupõe um sujeito e um predicado.

39 FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: _______. Estética: literatura e pintura,


música e cinema (Ditos e escritos, v. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p.
269.
40 BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2016, p. 12.


41 MATOS, Olgária. A filosofia francesa no Brasil: a pragmática da leitura

humanista. In: Do positivismo à desconstrução. Org. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:


EDUSP, 2004, p. 208.

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Resta procurar aquilo que Barthes42 denominou de vazio de fala, Derrida43 de silêncio
da escrita, Foucault44 de uma voz sem nome que precederia a fala, ou, em outra
ocasião, de uma afasia, referindo-se a uma linguagem arruinada por “ter perdido o
‘comum’ do lugar e do nome”,45 Rancière46 de palavra muda e ou de letra desincorporada.

É isso que havíamos pretendido pensar aqui a partir do modo como Rancière busca
as descrições literárias no interior de textos filosóficos, com o intuito de marcar seu
caráter suspensivo em relação ao princípio mimético. Rancière aponta a força da
literatura romanesca como aquela das cenas “nas quais o relato é sobrecarregado
por elementos descritivos impossíveis de serem reduzidos à funções narrativas”.47
Uma descrição que poderia ser pensada a partir daquela ociosidade ou indiferença
da estátua Juno Ludovisi que, como afirma Rancière, seria sua característica
essencialmente divina mas, também, aquilo que lhe conferiria uma sensibilidade
totalmente diversa em relação ao comum da vida.

Nesse sentido, quando Rancière48 afirma que a literatura romanesca, ao operar uma
revolução estética no regime de identificação das artes, altera o sentido da ideia de
humanidade, está em jogo o pensamento das mudanças operadas na subjetividade.
No regime de escrita da mímesis ou palavra viva, a centralidade do homem aparece
tanto na figura do autor – e na compreensão deste como um sujeito detentor do
pensamento – quanto na figura dos personagens – pensados como ponto central
para o qual toda a narrativa deve voltar-se. Narrar, nesse regime, é narrar as ações
de um sujeito. A humanidade que surge com o rompimento da mímesis e da relação
entre a asthesis e a poiesis é, como afirma Rancière49, uma humanidade perdida, ou
uma humanidade por vir. E se a escrita da mímesis, escrita da palavra viva,
pressupunha uma concordância entre os modos de fazer e os modos de visibilidade,
a escrita que surge com a mudança de regime é a da palavra muda/ falante demais, na
qual a descrição surge como operação privilegiada da suspensão de sentido, da
suspensão do encadeamento causal, a partir da confusão entre o pictural e o textual,
possibilitando uma experiência sensível autônoma. A escrita que se configura nesse
regime é, segundo Rancière, aquela da letra desincorporada. A entrada do sensível e da
materialidade do corpo na experiência e no pensamento implica o desaparecimento

42 BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2016.
43 DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa, António M.

Magalhães. Campinas: Papirus, 1991.


44 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.

São Paulo: Edições Loyola, 1996.


45 Id. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma

Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XIV.


46 RANCIÈRE, Jacques. La parole muette. Paris: Librairie Arthème Fayard/Pluriel,

2010; Id. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora
Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b.
47 Id. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo Mori. São Paulo:

Martins Fontes, 2017a, p. 15.


48 Id. A revolução estética e seus resultados. São Paulo: Projeto Revoluções, 2011.

Disponível em: http://www.revolucoes.org.br . Último acesso em: 15 de janeiro de 2015.


49 Ibid.

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do corpo da letra, aquele que identificava a escrita a um sujeito determinado e cujo


discurso tomava forma em um espaço-tempo delimitado por um encadeamento de
ações. Não se trata mais, como diz Rancière, da “palavra-ato do orador”, mas sim
da escritura.50

Esse modo da escrita que denomimanos aqui descritivo não pode ser apontado como
uma novidade atribuída ao pensamento de Rancière, como se este tivesse sido o
primeiro dos autores da filosofia a ver nele uma certa importância. Trata-se, antes,
de pensar como essa descrição a qual se refere o autor apresenta um modo
específico de pensamento no qual já se sabe de partida que o trabalho de escrever
e de pensar é não apenas infinito mas, também, sem nenhum fundamento ou
destino certo, pois, não pressupõe nenhuma verdade imutável, nenhum centro ou
ponto fixo a partir do qual se parta em busca de um conhecimento absoluto. A
descrição para a qual o autor se volta aparece, em nossa hipótese, como um modo
de pensamento no qual a ligação entre a aisthesis e a poiesis só existe enquanto
contingência, ainda, no qual a ideia de humanidade e, portanto, de homem, só pode
ser pensada como uma instância precária ou um por vir. Um regime de escrita cuja
palavra é a do silêncio e do vazio e cujo sujeito ou autor só existe enquanto
desaparição. A palavra muda da descrição surge, assim, como uma escrita possível
para o vazio do espaço do sujeito, para o vazio, ainda, das verdades metafísicas. Um
trabalho infinito, sem começo, fim, ou ainda, sem fins.

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50RANCIÈRE, Jacques. La parole muette. Paris: Librairie Arthème Fayard/Pluriel,


2010, p. 34, tradução nossa.

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Artigo recebido em: 12/11/2019 e aceito em: 11/12/2019

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