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ISSN: 2526-7892
ARTIGO
DA PALAVRA VIVA À PALAVRA MUDA: UM NOVO REGIME DE
ESCRITA EM JACQUES RANCIÈRE 1
Daniela Cunha Blanco2
Resumo: O intuito desse artigo é pensar um novo regime de escrita em Rancière pautado
no modo com que o autor interpreta Schiller, não a partir da linha argumentativa do texto,
mas, antes, a partir de seu caráter literário e descritivo. Partindo do debate em torno das
relações entre a imagem e a palavra, pretendemos dar a ver como Rancière pensa as
construções e desconstruções de uma série de hierarquias do pensamento estético que dizem
mais respeito a um regime de identificação das artes do que à simples defesa de uma arte em
detrimento de outra. Trata-se de pensar o modo como se relaciona a aisthesis à poiesis, assim
como as ideias de humanidade e de sujeito que essas relações dão a ver. O pensamento do
estatuto do sensível nos regimes de escrita nos auxiliará a pensar como certas operações
textuais – como a descrição – são, ora vistas como subordinadas a um encadeamento causal,
ora vistas em sua autonomia como pensamento. Trata-se de afirmar o surgimento de um
novo regime de escrita que rompe com as hierarquias do princípio mimético e que, ao fazê-
lo, rompe também com as ideias de humanidade e de sujeito que preexistiriam à escrita e à
linguagem.
Palavras-chave: Jacques Rancière, palavra muda, regimes de escrita, descrição, palavra e
imagem
Abstract: The purpose of this article is to think of a new regime of writing in Rancière based
on the way the author interprets Schiller, not from the argumentative line of the text, but
rather from its literary and descriptive character. Starting from the debate about the relations
between image and word, we intend to show how Rancière thinks about the constructions
and deconstructions of a series of hierarchies on the aesthetic thought that concern more
about a regime of identification of the arts rather than the simple defense of one art over
another. It is a question of thinking about the way in which we relate aisthesis to poiesis, as well
as the ideas of humanity and subject that these relationships make visible. Thinking of the
status of the sensible in the writing regimes will help us to think how certain textual
operations - such as description - are sometimes viewed as subordinate to a causal chain,
sometimes seen in their autonomy as thought. This is to affirm the emergence of a new
writing regime that breaks with the hierarchies of the mimetic principle and, in so doing, also
breaks with the ideas of humanity and subject that would pre-exist writing and language.
Keywords: Jacques Rancière, mute speech, regimes of wrinting, description, speech and
image
1From the mute speech to the living speech: a new regime of writing in Jacques Rancière
2Doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista Capes. Endereço de
email: danielablanco27@gmail.com
DA PALAVRA VIVA À PALAVRA MUDA: UM NOVO REGIME DE ESCRITA EM JACQUES RANCIÈRE
DANIELA CUNHA BLANCO
177
INTRODUÇÃO
Podemos perceber, em nosso modo de lidar com os textos, uma série de
pressupostos que delimitam e definem o que seria uma escrita filosófica, assim
como aquilo que seria uma escrita literária. Mas, não se trata, como afirma Jacques
Rancière3 – em discordância com uma série de autores da linguística e do dito
estruturalismo –, de uma convenção a partir da qual aceitamos que um texto seja
fictício e que um outro trate das questões da verdade ou da realidade. Não há
nenhuma espécie de decisão ou acordo que possa garantir uma relação estável entre
o enunciador e o leitor, capaz de configurar uma divisão fixa entre realidade e
ficção.4 Para Rancière, nem mesmo essa divisão pode ser considerada como certa a
partir do momento em que se considera que o próprio modo como percebemos e
habitamos o mundo é já configurado por um sensorium comum, por uma partilha do
sensível:
Nesse sentido, aquilo que consideramos como a realidade na qual vivemos é nada
mais que uma série de configurações sensíveis, modos de pensamentos e de
percepções que desenham o mundo que vemos e habitamos. Se essa é de fato a
realidade que habitamos, nada nos impede de pensar que ela poderia ser outra ou
Searle em Expression and meaning, acerca da ficção e da literatura. Para Searle, como afirma
Rancière, não existe nada próprio à ficção e à literatura, nada interno a estas, que possa
justificar um modo próprio de identificá-las. Logo, conclui Searle, se não são
propriedades internas à ficção que nos permitem perceber uma condição específica dos
atos de ficção, haveria propriedades externas que o fariam: a decisão, por parte do leitor,
de considerar que uma obra seja ou não literária. Mas, continua Rancière, em sua
interpretação de Searle, essa decisão não é totalmente aleatória. Ela acontece no interior
de uma convenção social: “o enunciado fictício é recebido exatamente pelo que é – nem
realidade, nem mentira – porque o escritor e o leitor juntos combinam suspender as
regras normais da asserção” (Ibid., p. 40). Para Rancière, a perspectiva apontada por
Searle na interpretação da ficção demonstra um certo medo daquilo que o autor
compreender como uma perturbação literária ou como a democracia literária. Noções que
dariam a ver esse próprio impróprio da literatura capaz de borrar quaisquer bordas ou
linhas que separam os campos de saberes e da escrita. Essa relação estável entre o
enunciador e o leitor é, diz Rancière (Ibid.), ela sim, uma ficção cujo interesse é não
permitir os desvios que o ser literário opera. A ideia da convenção da língua é pensada
também por Ferdinand de Saussure, cujo trabalho influenciou as diversas leituras
posteriores em torno da língua, da ficção e da literatura, demonstrando a radicalidade do
pensamento de Rancière em torno do tema.
5 Id. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo:
de outro jeito, que ela já tenha sido configurada de maneira diversa, ainda, que essa
configuração ou partilha do sensível seja sempre diferente e contingencial em cada
espaço-tempo no qual nos inserimos. Realidade e ficção, assim, tornam-se termos
não tão distantes quanto o senso comum gostaria de crê-los. Suas bordas e linhas
são desenhadas e redesenhadas por um encontro, sempre contingencial, entre a
estética e a política – duplo sentido que o termo partilha do sensível expressa no
pensamento de Rancière.
A partir da ideia de uma escrita que opera uma partilha do sensível, pretendemos
OBJETIVO pensar o modo como Rancière se empenha em retraçar as bordas que separam a
escrita filosófica da escrita literária, retraçando, também, com isso, a configuração
sensível que determina nossos modos de ver e pensar. Trata-se de pensar que o
modo com que essas escritas se separam ou se entrelaçam dá a ver uma outra
divisão: a dos regimes de visibilidade das artes, tais quais sintetizados por Rancière9 em
A partilha do sensível. Se o autor está interessado em pensar o modo com que a arte
é identificada como tal nesses diferentes regimes, nosso intuito aqui será o de
pensar como a escrita e as ideias de humanidade e de subjetividade a ela relacionadas
também são afetadas e reconfiguradas por essas mudanças de regime. Nossa
HIPÓTESE hipótese, assim, é pensar como Rancière entrelaça política, estética e escrita de
modo a configurar o pensamento de regimes de escrita. Caminhando entre uma escrita
filosófica e uma escrita literária, esses regimes de escrita estariam inseridos em uma
partilha do sensível que define o que pode ou não ser considerado como pensamento.
Trata-se de pensar uma escrita da política, ou seja, pensar o modo como o literário,
ou, nas palavras de Rancière, o ser literário,
Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b, p. 31.
Na carta a que se refere Rancière, Schiller14 se empenha por pensar como seria
possível a unidade entre dois impulsos contraditórios um em relação ao outro: o
impulso sensível – que teria como objeto a vida – e o impulso formal – que teria como
objeto a forma. Schiller está interessado no pensamento da possibilidade de um
homem livre e, portanto, de um Estado que permita a liberdade do homem, tendo
em vista a dualidade entre o dever e a inclinação, entre o necessário e o contingencial.
O autor alemão concebe um terceiro impulso – irrealizável –, o impulso lúdico,
compreendido como aquele que seria capaz de reunificar o entendimento especulativo
ao intuitivo. Esse terceiro impulso, expressando uma necessidade da razão
transcendental, configuraria uma comunidade entre os impulsos formal e sensível, pois,
afirma Schiller, “apenas a unidade de realidade e forma, de contingência e
necessidade, de passividade e liberdade, completa o conceito de humanidade”.15
A humanidade pensada por Schiller é aquela que não é coagida pela lei e tampouco
pela necessidade; é aquela das faculdades que estão livres para jogar entre uma coisa
e outra, entre as exigências do impulso formal e as do impulso sensível. Daí surgiria o
sentido do terceiro impulso, o lúdico, compreendido como aquele do livre jogo do
11 Ibid., p. 108.
12 Id. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004.
13 Ibid., p. 41, tradução nossa.
14 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas.
Trad. Roberto Shwarz e Márcio Suzuki. 7. reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2013.
15 Ibid., p. 73-74.
homem entre a realidade de sua existência física e limitada como matéria sensível e
sua existência como natureza racional, capaz de, como diz Schiller, “levar harmonia
à multiplicidade dos fenômenos e afirmar sua pessoa em detrimento de toda
alternância de estado”.16 Está em questão, portanto, o livre jogo das faculdades
entre a contingência de um corpo sensível afetado pelas coisas do mundo e a
necessidade de se dar uma ordem às sensações. A livre aparência seria a expressão
dessa unidade impossível entre os dois impulsos contraditórios e a partir da qual se
poderia jogar com o terceiro impulso.
Rancière irá demonstrar como essa ideia do medium (ou meio) pode ser desviada a
partir daquilo que Schiller entendia sob a ideia de aparência livre. Em Schiller, diz o
autor francês, “o medium em jogo não é a matéria sobre a qual o artista trabalha. É
um meio sensível, um sensorium particular, estrangeiro às formas ordinárias da
experiência sensível”.19 Schiller não está interessado em pensar as possibilidades da
criação artística ou as especificidades de uma matéria ou medium como ponto focal
da autonomia da forma artística. O que está em jogo no autor alemão é uma outra
forma de autonomia: a do livre jogo das faculdades, que será reinterpretada por
Rancière como a autonomia da experiência sensível. O medium e a superfície plana
deixam de ser pensados como propriedade de uma ou outra arte e passam a ser
compreendidos como o próprio espaço no qual as diversas artes vem se misturar,
no qual a palavra e a imagem se entrelaçam, no qual, ainda, pode-se ver o
16 Ibid., p. 60.
17 GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. Trad. Otacílio Nunes. São
Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 29.
18 RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de
Assim, podemos compreender que, para Rancière, não se trata mais do pensamento
da autonomia de um modo de fazer da arte, mas sim da autonomia da experiência
sensível que esse espaço do sensorium comum cria.
20 Id. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012, p. 98.
21 Id. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004.
22 SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas.
Trad. Roberto Shwarz e Márcio Suzuki. 7. reimpressão. São Paulo: Iluminuras, 2013, p.
77.
A estátua, ou, antes, a descrição que Schiller faz dela, aparece para Rancière como
expressão do paradigma estético: o surgimento de um sensorium comum no qual a
arte passa a ser identificada como tal, em sua autonomia, no momento mesmo em
que perde as prerrogativas que a afirmavam como um fazer específico apartado das
coisas comuns da vida. Trata-se de compreender o regime estético como configuração
de nossos modos de perceber e pensar a arte a partir da ruptura entre a poiesis,
compreendida como um modo de fazer, e a aisthesis, pensada como um modo de
visibilidade. Segundo Rancière,25 no regime estético é desfeito o nó que ligava uma
natureza produtora a uma natureza sensível e que, juntos, definiam uma ideia de
natureza humana pautada em uma ordenação do sensível na qual a forma prevalece
sobre a matéria, a razão sobre o sensível, a atividade sobre a passividade. É
exatamente a ruptura dessa ordenação sensível que a descrição da Juno Ludovisi
feita por Schiller dá a ver. Tudo se passa como se, entre o corpo da estátua e a
palavra de Schiller, todo o sensorium comum da arte tivesse se reconfigurado.
23 Ibid.
24 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
25 Ibid.
26 Id. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto,
2012.
27 Ibid.
28 O tema das relações hierárquicas entre a arte da palavra e a das imagens refere-se a
expressão “ut pictura poesis” tal qual aparece no tratado poético de Horácio. A partir dessa
expressão, as relações entre a imagem e a palavra foram retomadas inúmeras vezes, em
especial ao longo do século XIX, nos tratados clássicos da poesia. Mas, como afirma
Oliveira, séculos antes, essa questão já estava apresentada nas discussões empreendidas
por Platão em torno da mímesis (OLIVEIRA, Ana Lúcia M. O fingidor e o filósofo:
breve ensaio acerca do ut pictura poesis. In: Artefilosofia, Ouro Preto, n.2, p.63-70, jan.
2007). Como afirma a autora, o tema das relações entre a imagem e a palavra, aparece em
Platão, sempre com o intuito de “reafirmar o primado da verdade, submetendo a pintura
às condições filosóficas que regulam o estatuto da aparência, isto é, de imagens cuja
referência é necessariamente constituída pelo que se considera como real” (Ibid., p. 65).
Desse modo, compreendemos como Rancière aponta que aquilo que está em jogo na
retomada desse debate é algo muito além de uma mera afirmação hierárquica entre as
diferentes artes. Antes, trata-se de uma tentativa sempre repetida de submeter a arte à
ideia de verdade.
29 Rancière concebe três regimes de identificação das artes, o ético, o representativo e o
pautavam a mímesis: as ideias de que a forma definia a matéria, de que a razão era
superior ao sensível, de que a ação era mais importante do que a descrição, de que os
personagens eram mais relevantes do que as coisas. E aqui chegamos ao ponto que
nos interessa: é na descrição do corpo da estátua que se pode ver a configuração
particular de um novo regime, exatamente porque aquilo que, segundo a mímesis –
de Aristóteles aos tratados poéticos do classicismo –, era uma operação de segundo
escalão ressurge no regime estético como expressão de um modo de pensamento da
arte. A descrição da Juno Ludovisi nada mais é, afinal, que um elemento pictural no
interior de um texto filosófico cuja maior relevância, pressupõe-se, estaria no
encadeamento argumentativo e narrativo. O que Rancière faz, ao partir da descrição
da Juno Ludovisi para pensar a configuração de um novo regime de visibilidade das
artes, é afirmar a ruptura da hierarquia entre razão e sensível, entre forma e matéria,
é afirmar a ruptura com o princípio mimético. No regime estético, o sensível é
também um modo de pensamento, e a antiga divisão entre os aspectos formais e
conteudísticos da arte deixam de fazer sentido. Do mesmo modo, no regime de
escrita da ficção, que aqui nos empenhamos em construir, a construção de uma
cena a partir das palavras e das imagens é já a construção de uma realidade, de uma
partilha do sensível.
30 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
31 Id. La parole muette. Paris: Librairie Arthème Fayard/Pluriel, 2010.
2010.
35 Id. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora Vilanova,
Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b, p. 8-9.
36 BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema. Trad. Míriam
aqui, como deixa claro Rancière, de uma oposição entre razão e sensível, mas, antes,
entre duas formas de pensamento: aquela da mímesis, que pressupõe uma
ordenação causal e linear entre cada elemento em prol de um todo, e essa outra, do
regime estético que pressupõe uma quebra de hierarquias entre razão e sensível, que
afirma, ainda, a possibilidade de uma experiência sensível autônoma – o que
significa dizer que os elementos sensíveis de uma estátua ou de um texto não
aparecem mais subordinados a uma razão geral de significação e exposição da
verdade, mas, antes, esses elementos significam por si mesmos. Há, no sensível,
uma forma de pensamento e há, no pensamento, uma forma de não-pensamento.
Não é isso que vemos acontecer na literatura romanesca que surge no regime
estético. As longas descrições de autores como Gustave Flaubert, dentre outros,
que aparecem a partir do século XIX, não apenas ganham uma liberdade
quantitativa quanto qualitativa. Afinal, além de aparecerem ao longo de páginas e
mais páginas, também passam a estare isentas de qualquer função ou
intencionalidade. Não se trata mais de descrever um personagem para justificar e
explicar suas ações. Mas, antes, de descrever por descrever, operando uma escrita
sem função. Há, assim, duas coisas que desaparecem na passagem de um regime a
37 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’esthétique. Paris: Éditions Galilée, 2004, p. 41-
42, tradução nossa.
38 HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette Livre, 1993.
outro que aqui nos interessam em especial para pensar a relevância dada por
Rancière à descrição da Juno feita por Schiller: a importância da ideia de autor –
compreendido como aquele que leva a palavra viva a um receptor sem que ela sofra
desvios – e a importância da figura do homem – como aquele que é o fundamento
e a essência de toda narrativa, na medida em que narrar é narrar um encadeamento
de ações. Podemos, assim, apresentar a hipótese de que a passagem do regime de
escrita da palavra viva (ou regime da mímesis) ao regime da palavra muda (ou regime
da ficção) em Rancière pressupõe uma certa ideia de morte ou desaparecimento do
sujeito – aproximando-o, assim, de uma certa filosofia francesa contemporânea de
autores como Michel Foucault, Roland Barthes, dentre outros. Afinal, como afirma
Foucault, no texto O que é um autor?,
Ou seja, como ponto comum entre todos esses autores dentre os quais
pretendemos inserir Rancière está o empenho por questionar a metafísica e a ideia
de que o homem ou o sujeito preexistem à fala e à escrita. O texto e a escrita (ou
escritura) serão agora pensados como o trabalho infinito de um pensamento que não
tem mais origem nem destino. Com a morte do sujeito, resta ao pensamento buscar
as fissuras nos limites de uma língua que pressupõe um sujeito e um predicado.
Resta procurar aquilo que Barthes42 denominou de vazio de fala, Derrida43 de silêncio
da escrita, Foucault44 de uma voz sem nome que precederia a fala, ou, em outra
ocasião, de uma afasia, referindo-se a uma linguagem arruinada por “ter perdido o
‘comum’ do lugar e do nome”,45 Rancière46 de palavra muda e ou de letra desincorporada.
É isso que havíamos pretendido pensar aqui a partir do modo como Rancière busca
as descrições literárias no interior de textos filosóficos, com o intuito de marcar seu
caráter suspensivo em relação ao princípio mimético. Rancière aponta a força da
literatura romanesca como aquela das cenas “nas quais o relato é sobrecarregado
por elementos descritivos impossíveis de serem reduzidos à funções narrativas”.47
Uma descrição que poderia ser pensada a partir daquela ociosidade ou indiferença
da estátua Juno Ludovisi que, como afirma Rancière, seria sua característica
essencialmente divina mas, também, aquilo que lhe conferiria uma sensibilidade
totalmente diversa em relação ao comum da vida.
Nesse sentido, quando Rancière48 afirma que a literatura romanesca, ao operar uma
revolução estética no regime de identificação das artes, altera o sentido da ideia de
humanidade, está em jogo o pensamento das mudanças operadas na subjetividade.
No regime de escrita da mímesis ou palavra viva, a centralidade do homem aparece
tanto na figura do autor – e na compreensão deste como um sujeito detentor do
pensamento – quanto na figura dos personagens – pensados como ponto central
para o qual toda a narrativa deve voltar-se. Narrar, nesse regime, é narrar as ações
de um sujeito. A humanidade que surge com o rompimento da mímesis e da relação
entre a asthesis e a poiesis é, como afirma Rancière49, uma humanidade perdida, ou
uma humanidade por vir. E se a escrita da mímesis, escrita da palavra viva,
pressupunha uma concordância entre os modos de fazer e os modos de visibilidade,
a escrita que surge com a mudança de regime é a da palavra muda/ falante demais, na
qual a descrição surge como operação privilegiada da suspensão de sentido, da
suspensão do encadeamento causal, a partir da confusão entre o pictural e o textual,
possibilitando uma experiência sensível autônoma. A escrita que se configura nesse
regime é, segundo Rancière, aquela da letra desincorporada. A entrada do sensível e da
materialidade do corpo na experiência e no pensamento implica o desaparecimento
42 BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2016.
43 DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa, António M.
2010; Id. Políticas da Escrita. 2º edição. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora
Vilanova, Ligia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017b.
47 Id. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Trad. Marcelo Mori. São Paulo:
Esse modo da escrita que denomimanos aqui descritivo não pode ser apontado como
uma novidade atribuída ao pensamento de Rancière, como se este tivesse sido o
primeiro dos autores da filosofia a ver nele uma certa importância. Trata-se, antes,
de pensar como essa descrição a qual se refere o autor apresenta um modo
específico de pensamento no qual já se sabe de partida que o trabalho de escrever
e de pensar é não apenas infinito mas, também, sem nenhum fundamento ou
destino certo, pois, não pressupõe nenhuma verdade imutável, nenhum centro ou
ponto fixo a partir do qual se parta em busca de um conhecimento absoluto. A
descrição para a qual o autor se volta aparece, em nossa hipótese, como um modo
de pensamento no qual a ligação entre a aisthesis e a poiesis só existe enquanto
contingência, ainda, no qual a ideia de humanidade e, portanto, de homem, só pode
ser pensada como uma instância precária ou um por vir. Um regime de escrita cuja
palavra é a do silêncio e do vazio e cujo sujeito ou autor só existe enquanto
desaparição. A palavra muda da descrição surge, assim, como uma escrita possível
para o vazio do espaço do sujeito, para o vazio, ainda, das verdades metafísicas. Um
trabalho infinito, sem começo, fim, ou ainda, sem fins.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016.
BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema. Trad.
Míriam Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.
BLANCO, Daniela Cunha. Rancière, bordas da escrita. 2019. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019a. doi:10.11606/D.8.2019.tde-
04062019-112825. Acesso em: 2019-12-11.
______________________. Jacques Rancière e o regime estético das artes como
recusa à ideia de modernidade. In: Prometheus, São Cristóvão (SE), n.30, 227-
243, maio de 2019b.
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa,
António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: _______. Estética: literatura e
pintura, música e cinema (Ditos e escritos, v. III). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.