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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Aspectos sufistas no Manual de Oniromancia Muçulmana de Ibn Sirin

Mario Henrique Domingues

Trabalho apresentado à Disciplina Abordagens Oníricas e


Onirocrítica (LEL 882), Ministrada pelo Prof. Dr. Marco
Lucchesi, para a obtenção de créditos de Doutorado – PPG
Letras – Ciência da Literatura

Rio de Janeiro – 2018.1


Introdução

Propomo-nos neste trabalho a analisar dois aspectos sufistas de


fundamental importância na obra “A interpretação dos sonhos”, de Ibn Sirin,
nascido no Califado de ‘Uthmân, um dos mais antigos califas islâmicos, em 634
d. C. Sirin é considerado o renovador da antiga oniromancia árabe.

O primeiro aspecto, particular e pontual, é o uso da simbologia sufista


para fins de exegese dos sonhos, e para tanto recorremos a traduções de
poemas de poetas sufis persas e árabes. O segundo aspecto, de natureza
geral, refere-se a certos preceitos sufistas que de muitas formas orientam o
modo de interpretação dos sonhos operado nesta obra.

1. “A interpretação dos sonhos”, de Ibn Sirin

A interpretação dos sonhos já era um dado cultural relevante entre os


povos árabes mesmo antes do Islã, praticada tanto por líderes religiosos como
por pessoas sem funções sacerdotais. Muitos primeiros adeptos tiveram por
meio de sonhos a confirmação da legitimidade da revelação de Maomé e seu
status de profeta. Naturalmente, o Islã não se furtou a esta “tradição árabe”,
visto que parte consistente da Revelação se dá no Corão por meio de visões.
Assim, no mundo islâmico, o sonho é visto tanto como uma “via de
comunicação privilegiada com os céus” 1 quanto como “revestir as ideias com
imagens”2.

Na oniromancia islâmica temos a divisão em três classes de sonhos,


estabelecida pelo próprio Maomé: o sonho simbólico (rahmâni), o sonho que
exprime os desejos individuais (nafsâni) e o sonho “propriamente
subconsciente” ou “infernal” (shaytâni). Estruturalmente, este tratado apresenta

1
PENOT, Dominique. In: SÎRÎN, Ibn. L’interprétation des rêves. Manuel d’oniromancie musulmane. Trad.
de Dominique Penot. Lyon: Aliph Éditions, 1992. p. I-II
2
Idem. p. III
grupos de “visões” 3, com os temas arranjados por afinidade temática, assim
como o que trata do sol, da lua, dos eclipses e dos planetas, entre outros. A
cada fim de capítulo, Sîrîn expõe uma anedota exemplificando o tema com uma
interpretação de sonho.

Para Sirin, o intérprete deve ter atributos tais como um bom


conhecimento do Corão e dos hadith, ser fisionomista e de “temperamento
sóbrio, de nobre moral e sincero”. Deve também conhecer “os princípios que
lhe permitirão classificar as diferentes visões, de modo que Deus permita que
ele interprete as visões com exatidão e adquira esse conhecimento, adequado
às pessoas perspicazes”. As visões são interpretadas a depender das
circunstâncias, ora de acordo com o Alcorão, ora com os hadiths e às vezes
segundo um ditado popular. 4

2. Símbolos sufistas presentes na obra de Sîrîn

Abordaremos, primeiramente, alguns dos símbolos sufistas utilizados na


oniromancia islâmica, que podem ser arrolados dos primeiros capítulos da obra
de Sirin, em face do uso que deles fizeram alguns poetas sufis. A começar pelo
ovo, símbolo da mulher no Corão: "Elas são como ovos escondidos (Cor. 37-
49)”5. Percebe-se que o cerne do signo ou a lógica da metáfora remetem a um
sentido de reprodutividade, por seu “caráter embrionário”. 6

Cremos ser pertinente aqui lembrar que a mulher, não como tema
metaforizado, mas como símbolo, vem a representar a própria Criação, como
se pode ler em Ibn Arabi em obras como o Diwan7 . São prolixos também os
exemplos desta simbólica em Hafiz, em seu livro Os Gazéis, sendo especial
neste sentido o poema “Sua beleza”, em que para louvar a Amada (mulher-
Criação), recorre a vários elementos da natureza, tais como a rosa, o vinho, a
3
PENOT, D. In: SÎRÎN, 1992. p. IV
4
SÎRÎN, 1992. p. 2
5
Idem. p. IV
6
PENOT, Dominique. In SÎRÎN, 1992, p. IV-V.
7
NARVION, C. V. In: ARABI, Ibn. El esplendor de los frutos del viaje. Ed. De Carlos Varona Narvión. Madri:
Ediciones Siruela, 2008. p. 16.
primavera, a relva, a brisa, o jardim, a tulipa, o mel, o rouxinol e o cipreste,
muitos deles também sendo símbolos sufistas: “Glorioso é o jardim, a rosa e o
vinho são gloriosos; mas que seriam todos eles sem a presença de minha
Amada?”. 8

Outro símbolo importantíssimo é a rosa, que significa a brevidade da


existência9, que também encontramos em Hafiz, no poema “Se as rosas se
vão”: “(...) Não te inquietes com a fuga do tempo (...). À rosa que morre, dize-
lhe um alegre adeus, e bebe do vinho rubro, rubro como as rosas” 10. Com o
mesmo significado, encontramos a rosa em Omar Khayyam:

Diz uma rosa: “Eu sou a maravilha


do Universo!
Em mim toda a beleza se resume!
Quem ousará destruir-me? Que perverso,
Em busca de um perfume?”
E canta o rouxinol: “Uma hora de alegria
Um ano nos trará, de mágoa e de agonia...” 11

Cumpre notar a destreza com que Khayyam envolve o símbolo da rosa,


apresentando como fundo o ser ela integrante da natureza, por meio de sua
voz ciente da própria beleza, a mesma beleza que permite ver na mulher toda a
beleza da Criação.

Outro símbolo da fugacidade da vida é o narciso 12, assim tratado por


Hafiz em “Os olhos de narciso”, símbolo usado para referir-se aos olhos da
Amada: “O tempo, esse vagabundo, não dorme nunca. (...) Se hoje ele não te
13
levou, amanhã, sem dúvida, serás presa dele” . Note-se aqui também a
mesma perícia que vimos acima, em Khayyam, quando Hafiz sugere sutilmente
o elemento da natureza, a criação, ao comparar os olhos da Amada com o
narciso.
8
HAFIZ. Os Gazéis. Trad. Aurélio Buarque de Hollanda. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro, 1944. p. 30
9
SIRIN, 1992. p. 6
10
HAFIZ, 1944. p. 118
11
KHAYYAM, Omar. Rubaiyát. Trad. Em verso de J. B. de Mello e Souza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013.
p. 32
12
SÎRÎN, 1992. p. 6
13
HAFIZ, 1944. p. 103
As lágrimas, outro símbolo abordado no tratado de Sirin, significam a
alegria, isto se forem derramadas em silêncio 14, e com tal significação
encontramos em Khayyam, ainda que de modo ultradiscreto, in absentia: “(...)
Não me contes, amigo, o teu desgosto; / Cala-te! Eu sei que uma paixão te
inspira. / Perdeste a tua amada... Estás sozinho... / Bebe, pois. Bebe mais. A
vida é uma mentira.”15 Note-se que a significação da alegria está oculta sob o
véu do símbolo do vinho, embutido em “bebe”, que por sua vez remete ao
vinho, a sagrada bebida do amor16. Hafiz assim articula a simbólica das
lágrimas: “Antes sofrer em silêncio de uma paixão escondida que confiá-la a
alguém” 17.

Constam os pássaros na obra de Sirin como sendo simbólicos do ser


humano, ou de uma pessoa que viaja muito 18. Neste caso, no âmbito da poesia
sufi, o exemplo incontornável é o Mantiq-ut-tair, A Conferência dos Pássaros,
de Farid-udin Attar. Este épico narra a viagem da poupa de outros pássaros em
busca de seu “misterioso rei”19, o Simurgh, que simboliza Alá. 20
Nesta busca,
os pássaros terão de cruzar sete vales, que representam as fases do sistema
de autodesenvolvimento entre os sufis de uma ordem supostamente criada e
21
desenvolvida por Attar . Hafiz assim articula este símbolo no poema “A
caravana dos desejos”: “Ó bela poupa, mando-te para o Oriente (...) Seria cruel
deixar-te nesta prisão cheia de tédio. Envio-te para o ninho dos amores fiéis”22.

Outro símbolo para os seres humanos são os animais selvagens 23, e


encontramos em Hakim Sanai, em “O jardim amuralhado da verdade”, o
exemplo das raposas:

14
SIRIN, 1992. p. 6
15
KHAYYAM, 2013. p. 62
16
SHAH, S. I. A. Princípios gerais do sufismo e outros textos. Trad. Álvaro de Souza Machado. São Paulo:
Attar Editorial, 1987. p. 21-22
17
HAFIZ, 1944. p. 68
18
SIRIN, 1992. p. 9-10
19
SHAH, I. Os sufis. Trad. Otávio Mendes Cajado. 9ª ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 1993. p. 134
20
ATTAR, Farid Ud-din. A conferência dos pássaros. Trad. Octávio Mendes Cajado. 9ª ed. São Paulo:
Editora Cultrix, 1993. p. 161
21
SHAH, I. p. 134
22
HAFIZ, 1944. p. 119
23
SIRIN, 19??. p. 9
Disse uma velha raposa a outra:
“Aqui estão duzentas moedas,
agora leva esta mensagem
de mim para aqueles cachorros ali”.
Disse a outra:
“O pagamento é melhor que uma patada nos dentes;
Mas é um trabalho pesado, perigoso;
E que serventia tem teu dinheiro para mim,
Quando eu tiver perdido minha vida na aventura?” 24

Aqui a segunda raposa parece estar simbolizando especificamente a


autoindulgência, por temer a “aventura” e não querer se arriscar. E o próprio
Sanai nos revela a natureza desta aventura viageira: “Funde-te nesta busca: /
arrisca tua vida e tua alma no caminho da sinceridade; esforça-te por passar do
nada ao ser, / e embriaga-te com o vinho de Deus” 25. Em Khayyam temos o
exemplo do chacal, que parece aqui remeter a uma dificuldade da humanidade
“adormecida” de receber adequadamente o impacto da emoção:

A brisa, num carinho,


passa de leve... É uma tarde outonal.
Linda jovem me traz uma ânfora de vinho,
e canta uma canção...
Khayyam, se nesse instante
Tu pensares em morte ou coisa semelhante,
Não passas de um chacal!26

A propósito das dificuldades perceptivas acima referidas, simbolizada pela


raposa e pelo chacal, aponta Shah:

A psicologia do sufi aponta para um mecanismo interno que


tenta, automaticamente, equilibrar os impactos geradores de
emoção. Esse mecanismo entra em funcionamento quando as
pessoas reagem contra alguma coisa que lhes foi dita ou que a
comunidade ou um grupo qualquer procura incutir-lhe na
mente. 27

24
SANAI, 1985. p. 58
25
Idem.
26
KHAYYAM, 2013. p. 95
27
SHAH, I. p. 365
Em Sanai encontramos também o leite como símbolo da ciência: “Se bebes o
vinho, não o proclames: / um bebedor de leite nada diz, porque haverias de
28
fazê-lo?”. Neste ponto o bebedor do vinho pode estar simbolizando o
iniciado no caminho sufi, e a intenção de Sanai pode ser lembrar ao buscador
sufi das diferenças entre ele e os doutores eruditos do clero islâmico,
excessivamente afeitos à palavra do Corão, se tomarmos “ciência” por
“erudição”, termo que ocorre em outra passagem do poema em que Sanai
também atenta para o caráter discreto do sufismo: “Deus não tem causa: / por
que estás buscando causas? / O sol da verdade se levanta sem fazer-se
anunciar, / e com ele se põe a lua da erudição”29.

Tratemos, por fim, do símbolo da lua em Rumi. No manual de


oniromancia de Sirin, vimos que ela significa “o ministro do rei, a esposa ou a
criança piedosa” 30. Devido ao intrincado sistema simbólico sufista, que
comporta muitas variantes dependendo das diferentes ordens sufis e dos
poetas que o articulam, é preciso investigar primeiramente, na primeira
significação, o sentido de “rei”, relacionado ao sol e a Alá. Então, a lua é
ministro do rei no sentido de que este cargo político é reflexo do poder do
próprio rei – de fato, o ministro representa o poder do rei. Rumi assim articula
essa simbólica:

Busca a Sua Beleza na beleza


e segue intrépido, sem vacilar.
(...)
A luz emana de Seu rosto claro
e olhos de lua; que sabem os cegos? 31

Então, os “olhos de lua” são o reflexo do sol, o mesmo que o rei, simbolizando
Alá, e cumpre lembrar aqui o preceito sufista: “Há um Deus. Todas as coisas
28
SANAI, 1985. p. 42
29
Idem. p. 32
30
SIRIN, 19??. p. 26
31
RUMI, Jalâl AL-Dîn. A flauta e a lua - poemas de Rûmî. Trad. Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2016. p. 34. O poema está enfeixado na seção “A sombra do Amado”, cotraduzidos por Luciana
Persice.
estão nele e ele está em todas as coisas. Todas as coisas, visíveis e invisíveis,
emanam dele” 32. Noutro poema de Rumi, assim surge a lua:

Morrei, morrei, de tanto amor morrei,


morrei, morrei de amor e vivereis.
(...)
Morrei, morrei, deixai a triste névoa,
tomai o resplendor da Lua cheia! 33

O poema está tematizando o preceito sufista de “morrer em Deus”, no sentido


de abdicar dos desejos e paixões do mundo sem precisar deixar de estar no
mundo. Esta morte em vida leva à unidade, à união com Deus:

Alcança-se a união através de duas formas de renúncia e


alheamento: a renúncia aos desejos, vaidades e devaneios, de
um lado; e, de outro, a renúncia às coisas do mundo – o amor
ao poder, à fama, às riquezas e as honras. 34

Repare-se que a imagem em Rûmî é a do “esplendor da Lua”, pois a lua em si


é o ministro, como vimos em Sîrîn, o que reflete o poder do rei, ou seja, a lua
reflete a luz do sol, que simboliza Alá. Isto pode ficar ainda mais claro se
pensarmos em “brilhante”, termo técnico sufista: “‘Brilhante e ocultação’ são os
termos gêmeos que se referem à manifestação e à falta de percepção de Deus
na humanidade. “Brilhante” significa o surgimento do sol da realidade de Deus
35
dentre as nuvens da humanidade” . Assim, o resplendor da lua corresponde
ao brilho oculto da realidade de Deus.

3 – A visão edificante do sufismo

32
TASSY, Garcin de. In ATTAR, 1993. p. 151
33
RUMI, 2016. p. 34. O poema está enfeixado na seção “A sombra do Amado”, com poemas
cotraduzidos por Luciana Persice.
34
TASSY, Garcin de. In ATTAR, 1993. p. 151
35
SHAH, I. 1993, p. 303
A despeito da importância dos símbolos na poesia sufi para a
oniromancia de Sirin, talvez a maior contribuição sufista para esta obra sejam
alguns de seus preceitos. Tais postulados conferem à interpretação dos sonhos
no islã uma capacidade de distinção entre todas as variantes do sonho,
propiciando exatidão na exegese, ao considerar suas matizes e propiciar o
discernimento entre o elemento essencial e o acessório, e exigem uma
dialética constante entre a universalidade do símbolo e a ampla
circunstancialidade do sonhador, seja ela interna ou externa ao sonho em si.

Trataremos aqui primeiramente dos preceitos indicados por Dominique


Perot na introdução ao livro; em seguida traremos outros preceitos apontados
por Idries Shah na obra “Os Sufis”; e, por fim, arrolaremos exemplos colhidos
no Manual.

Um primeiro elemento sufista apontado por Perot é a divisão do mundo


em três domínios: o mundo da potência, do inteligível e das ideias puras; o
mundo corporal ou sensível; e o mundo sutil ou intermediário, que permite a
ligação entre os dois anteriores, “tornando sutil a densidade da matéria ou
corporificando o inteligível”. Assim, o sonho é visto como “uma maneira de
revestir as ideias com imagens de acordo com uma correspondência existente
entre os diferentes domínios da Realidade”. 36

Conforme Perot, o sufismo lançou uma luz sobre a oniromancia islâmica


no sentido de proporcionar uma distinção entre os elementos particulares e
universais do sonho:

O sonho, assim como os textos sagrados, nos colocam uma


questão fundamental: como aquilo que não tem forma
(disforme) pode se comunicar através do que tem forma
(informe)? Como o indizível pode ser expresso pela palavra
articulada: o infinito por meio do finito? E quando isto se
produz, como determinar a parte que é individual e a que é
universal? Só o sufismo pode dar uma resposta satisfatória. 37

36
PENOT, D. In SÎRÎN, 1992, p. III
37
PENOT, D. In SÎRÎN, 1992, p. IV
Assim, prossegue Perot, a exatidão na interpretação deve considerar
algumas “linhas de ação”, principalmente a natureza de quem teve a visão: “Em
outras palavras, seja qual for a universalidade do símbolo percebido no sonho,
não é menos verdade que essa universalidade será condicionada, pelo menos
38
em parte, pelo universo mental do sonhador”. Tal universo contará com
dados culturais do rêveur, sua nacionalidade, religião e também questões
éticas e morais, entre muitos outros dados.

O fato de Sîrîn estabelecer que um dos atributos do bom intérprete de


sonhos é ter um domínio proficiente da língua árabe e seus processos de
derivação é também um elemento sufista39. Esta derivação, no sufismo,
associada ao sistema abjad, que correlaciona letras e algarismos arábicos,
serve tanto no uso da “linguagem secreta”, quanto na adoção de nomes
quando o que se busca é um sentido muito específico, mas que deve ser
mantido oculto. A linguagem cifrada dos sufis é útil na medida 40 em que lança
luzes na interpretação do nome de alguém com quem se sonha, pela
investigação da formação vocabular a partir de seus radicais consonantais
trilíteros.

Passamos agora aos preceitos sufistas apontados por Shah, a começar


pela importância dos sonhos para a iniciação, em que o mestre orienta o
discípulo: “Dentre as regras de conduta que o discípulo sufi tem de observar
perante seu mestre ou xeque está: (...) “Contar seus sonhos ao xeque para que
este lhe diagnostique os pensamentos” 41. Então, este aspecto mental do sonho
é pertinente para que o mestre detecte certos condicionamentos mentais do
discípulo, e está concorde com a reflexão sobre a viagem em Ibn Arabi, sendo
o sonho uma “viagem da mente”:

O movimento constante dos quatro elementos e dos seres


criados, a mudança e as transformações geradas a cada
respiração, assim como a viagem dos ares de quem respira e a

38
Idem.
39
SÎRÎN, 1992, p. 2
40
Idem, p. 6
41
SHAH, I. 1993. p. 293
das visões das coisas vistas na vigília e no sonho (...) tudo isto
é sem dúvida uma viagem para a mente! 42

Shah aponta também a Ciência do Estado, uma das “ciências


especializadas sufistas”: “Não existe nenhuma ciência sufista maior do que
esta, porque ela é a metodologia por cujo intermédio se observam as
gradações do hal"43, a saber, o estado místico em que se encontra o
discípulo44, de grande importância para o mestre, no sentido que a experiência
direta envolvida na iniciação sufista pode gerar no discípulo estados
estacionários indesejáveis.

Por mais que não tenhamos notado nas anedotas de interpretação do


sonho um traço desta distinção do estado místico do sonhador, resta aqui o
valor de se reconhecer minimamente o estado dos elementos envolvidos no
sonho. No caso do sonhador, a distinção entre uma pessoa boa ou má, a
despeito da carga moral nela embutida, ampara-se filosoficamente no nível da
distinção entre os graus de consciência da realidade.

No capítulo “Aspirante ao saber” Shah relata ter testemunhado um


encontro entre um mestre sufista indiano e uma aspirante a discípulo. Logo no
início da conversa, o visitante, muito crítico e racionalizador, já não parece mais
ser aspirante, e assim mesmo conta com toda a paciência do mestre, que Shah
apresenta como não esperando dali uma “vitória verbal”. Por fim, numa síntese
a grosso modo, o mestre afirma que o visitante elegeu “um único método de
enfocar a verdade”. O ex-aspirante partiu, e assim Shah encerra seu
45
testemunho: “Todos tínhamos aprendido, cada qual com o seu status” . Este
status refere-se aos diferentes graus de compreensão da realidade por
diferentes indivíduos: “Um homem pode pensar que está vendo alguma coisa
que, na realidade, não existe. Pode também ver alguma coisa diferente da que

42
ARABI, 2008. p. 60-61
43
SHAH, I. 1993. p. 299
44
Idem. p. 297
45
SHAH, I. 1993. p. 341
de fato existe. Como a vê e o que vê dependerão de sua própria capacidade de
compreensão” 46.

Assim como cada indivíduo é único, Shah indica que para o sufi, toda
situação é singular 47, e que “toda ação, como toda palavra, tem um efeito e um
48
lugar. Esta é a base do sistema sufista, que é um sistema sem sistema” .O
próprio Sîrîn escreve algumas linhas apontando para a importância da análise
da circunstancialidade do sonhador:

É necessário que o intérprete compreenda as motivações daquele que


teve o sonho. Se é uma visão autêntica, coerente, e todos os elementos
têm um real escopo simbólico, ele só tem que dar uma boa interpretação.
Se a visão apresenta uma heterogeneidade, é preciso examinar qual parte
merece um real interesse, com base na conformidade com os princípios de
interpretação, mas se ela é desarticulada e não baseada em nenhum
princípio essencial, não se deve ver mais que sonhos vãos. Se a
interpretação apresenta ambiguidades, o intérprete deverá questionar o
sonhador a respeito de sua atitude durante as preces, se a visão tiver a
prece como objeto. Se a visão tiver por tema a viagem, deve-se questionar
o sonhador sobre suas eventuais viagens. 49

Por fim, um preceito sufista apontado por Shah que parece tocar todo o
matizado da oniromancia de Sirin é a teoria das causas múltiplas:

Supor, simplesmente porque uma coisa pode ser explicada em


termos racionais, que essa é a única explicação para ela não é
nenhum absurdo na experiência comum. Mas será incorreto
para quem vive num nível em que constata a possibilidade de
várias explicações diferentes serem realmente possíveis, de
acordo com a qualidade do receptor de beneficiar-se delas. A
ciência moderna não adquiriu o refinamento especial da
diferenciação – suas dimensões não são suficientes para esse
fim. 50

Então, Shah apresenta o sufi como alguém que experimenta a possibilidade de


admitir múltiplas causas para cada efeito, uma experiência que proporciona um
46
Idem. p. 357
47
Id. p. 324
48
Id. p. 339
49
SÎRÎN, 1992. p. 8-9
50
SHAH, I. 1993. p. 357-358
“refinamento especial da diferenciação”, que pode ser percebido em Sîrîn e em
outros oniromantes citados na obra.

Traremos agora de exemplos de interpretações de sonhos que


consideram os mais diversos aspectos circunstanciais ligados à pessoa do
sonhador, às unidades temporais, às ações que integram a visão e ao estado
das coisas que nela constam.
Se alguém em sonho vê a si mesmo com a mão atada ao pescoço, o
significado variará de acordo com atributos do próprio sonhador: “se ele é um
homem de bem e religioso, sua visão significa que ele se abstém de
desobedecer a Deus, de cometer torpezas e testifica sua piedade; se não, ele é
um homem rebelde, que estará destinado ao inferno”. 51
Sîrîn relata numa anedota que um homem veio ter com ele e disse ter
sonhado que estava prestes a fazer o adhân, o chamado para orações entre os
muçulmanos. Sirin disse que significava que iriam lhe cortar a mão. Um outro
apareceu relatando o mesmo sonho, e Sîrîn assim interpretou: “Você seguirá
para o hajj”, a peregrinação a Meca. Seus companheiros perguntaram-lhe a
razão das diferentes interpretações, e Sirin respondeu:

O primeiro era claramente um homem desonesto, e interpretei


sua visão apoiando-me neste versículo: “Um arauto
(muadhdhin) anunciou (adhdhana): ‘Caravaneiros, vós sois
ladrões’” (Cor. 12-70). O segundo me pareceu ser um homem
de bem, e assim me apoiei para interpretar seu sonho em outro
versículo: “Chamai (addhin) os homens à peregrinação” (Cor.
22-27). Os acontecimentos lhe dariam razão. 52

Outro exemplo de variação da interpretação conforme alguma


característica do sonhador é o sonhar com o relâmpago: para um viajante, é
um presságio temeroso, mas para um residente fixo significa uma fonte de
esperança. A interpretação teve por base o Corão: “Foi Ele que vos fez ver o
relâmpago para vos inspirar medo e confiança” (13-12). 53

51
SÎRÎN, 1992. p. 8
52
SÎRÎN, 1992. p. 21
53
SÎRÎN, 1992. p. 33
Em uma das anedotas do livro, o imam Jafar AL Sadiq interpreta o
sonho de estar à sombra de uma nuvem: se o homem fosse doente, iria se
curar; se fosse pobre, Deus o iria enriquecer. Sadiq embasou este significado
positivo da nuvem porque uma nuvem protegeu Maomé durante a guerra.54

O valor da circunstancialidade provindo da sabedoria sufi também


aponta para características internas de cada sonho, como por exemplo as
unidades temporais dia-noite: ver-se montado num elefante de noite significa
tratar um assunto importante de uma maneira proveitosa, mas se for durante o
55
dia, significa repudiar sua esposa . Outro exemplo é o da ação de falar, pois
se uma pessoa doente sonhar que está bem de saúde e saindo de casa “sem
dizer nada”, significa que morrerá em breve; mas estiver falando, isto será um
sinal de cura56.

O estado físico das coisas materiais também provoca interpretações


diferentes para cada sonho:

A neve, o granizo e o gelo permitem o augúrio de


aborrecimentos e preocupações, a menos que a neve seja
muito espessa e que caia num lugar onde as pessoas estejam
acostumadas a vê-la cair, pois neste caso ela é sinônimo de
fertilidade. 57

Também ocorre assim no caso de se sonhar que se cruza um rio: se o


movimento intenta apenas passar à outra margem, e não houver nada de
impeditivo, simboliza preocupação e medo, mas se o rio estiver agitado e turvo,
significa que o sonhador irá apaziguar um adversário ou que o deixará para
trás em alguma disputa 58.

Outro exemplo é o sonhar que se está bebendo água do mar: se o mar


estiver calmo, significa adentrar nas possessões de um reino, de cuja grandeza
dependerá da quantidade de água engolida, o que determinará em que grau a
54
SÎRÎN, 1992. p. 34
55
SÎRÎN, 1992. p. 8
56
SÎRÎN, 1992. p. 6
57
SÎRÎN, 1992. p. 34
58
SÎRÎN, 1992. p. 37
vida será agradável ao sonhador. Porém, se o mar estiver agitado, a visão
anuncia medo, preocupações e catástrofes 59. Doutra parte, beber água limpa e
doce, “em quantidade indeterminada, sem estar viajando, sem ter feito as
abluções e estando em um lugar desconhecido” significa que se terá uma vida
agradável 60.

Por fim, sonhar que se está a bordo de um navio que está enchendo-se
de água é sempre sinal de doenças, preocupações ou de aprisionamentos.
Mas ver-se desembarcando de um navio, seu significado variará de acordo
com o meio onde está o barco: se o barco estiver na água, significa um alívio
rápido, mas se o barco estiver em terra seca, significa que será preciso resistir
aos aborrecimentos, e assim estes logo cessarão. 61

REFERÊNCIAS

ARABI, Ibn. El esplendor de los frutos del viaje. Ed. De Carlos Varona Narvión.
Madri: Ediciones Siruela, 2008.

ATTAR, Farid ud-Din. A conferência dos pássaros. Trad. Octávio Mendes


Cajado. 9ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.

HAFIZ. Os Gazéis. Trad. Aurélio Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Livraria


José Olympio, 1944.

KHAYYAM, Omar. Rubaiyát. Trad. em verso de J. B. de Mello e Souza. Rio de


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