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sumário

1. ALGO GRAVE
2. RUMO AO NINHO DO FALCÃO
3. OGION
4. KALESSIN
5. PARA O MELHOR
6. PARA O PIOR
7. RATOS
8. FALCÕES
9. ENCONTRANDO PALAVRAS
10. O GOLFINHO
11. EM CASA
12. INVERNO
13. O MESTRE
14. TEHANU
POSFÁCIO
SOBRE A AUTORA
apenas no silêncio a palavra,
apenas nas trevas a luz,
apenas na morte vida:
o voo do falcão reluz
no céu límpido.

— a criação de éa
capítulo 1

algo grave

D epois que o fazendeiro Pederneira, do Vale Central, morreu, sua viúva


permaneceu na casa da fazenda. O filho dela fora para o mar e a filha se
casara com um mercador de Valmouth, por isso ela vivia sozinha na Fazenda
do Carvalho. O povo dizia que ela havia sido o tipo de pessoa importante na
terra estrangeira de onde viera, e de fato o mago Ogion costumava passar
pela Fazenda do Carvalho para visitá-la; mas isso não contava muito, já que
Ogion visitava todo indivíduo pé de chinelo.
Ela tinha um nome estrangeiro, mas Pederneira a chamava de Goha, que
é como os gonteses chamam a aranhinha branca que produz teias. Esse
nome caía muito bem, porque ela tinha a pele branca, era pequena e uma
boa fiandeira de velino de cabra e lã de ovelha. Por isso, agora Goha era
viúva de Pederneira, proprietária de um rebanho de ovelhas e da terra para
pastoreá-las, quatro campos, um pomar de peras, dois chalés de
arrendatários, a velha casa de pedra sob os carvalhos e o cemitério da família
no alto da colina onde jazia Pederneira, enterrado na terra dele.
— Morei muitas vezes perto de lápides — disse ela à filha.
— Ah, mãe, venha morar na cidade conosco! — pediu Mattiana, mas a
viúva não queria sair da sua solidão.
— Talvez mais tarde, quando houver bebês e você precisar de ajuda —
respondeu, olhando com alegria para sua filha de olhos cinzentos. — Mas
agora, não. Você não precisa de mim. E eu gosto daqui.
Quando Mattiana voltou para seu jovem marido, a viúva fechou a porta e
ficou parada sobre o chão lajeado da cozinha na casa da fazenda. Já estava
anoitecendo, mas ela não acendeu a lamparina, pensando em seu próprio
marido acendendo-a: as mãos, a faísca, o rosto escuro e atento sob a
incandescência que crescia. A casa estava em silêncio.
Eu estava acostumada a morar em uma casa silenciosa, sozinha, pensou ela.
Farei isso outra vez. Ela acendeu a lamparina.
Certo final de tarde do primeiro tempo quente, Cotovia, a velha amiga
da viúva, saiu da aldeia, apressando-se pela estrada poeirenta.
— Goha — chamou, ao vê-la arrancando ervas daninhas da plantação de
feijão. — Goha, aconteceu algo grave. Aconteceu algo muito grave. Você
pode vir?
— Sim — respondeu a viúva. — O que seria essa coisa grave?
Cotovia prendeu a respiração. Ela era uma mulher pesada, simples, de
meia-idade, cujo nome não combinava mais com seu corpo. Mas ela já havia
sido uma menina franzina e bonita e fez amizade com Goha, sem dar
atenção aos aldeões que fofocavam sobre aquela bruxa karginesa de rosto
branco que Pederneira trouxera para casa; e amigas eram desde então.
— Uma criança queimada — explicou.
— De quem?
— Dos andarilhos.
Goha foi fechar a porta da casa da fazenda e elas seguiram pela alameda,
Cotovia falando enquanto caminhavam. A amiga estava com falta de ar e
suando. Pequenas sementes da grama pesada que ladeava a estrada grudaram
em suas bochechas e testa, e ela as limpava à medida que contava:
— Estiveram acampados nas campinas do rio durante todo o mês. Um
homem que se fez passar por funileiro, mas é ladrão, e uma mulher que o
acompanhava. E outro homem, mais jovem, ficou com eles a maior parte do
tempo. Não estão trabalhando, nenhum deles. Furtam, mendigam e vivem às
custas da mulher. Os meninos da parte baixa do rio faziam coisas da fazenda
chegarem até ela. Você sabe como funciona agora, esse tipo de coisa. E
gangues nas estradas, passando pelas fazendas. Se eu fosse você, trancaria
minha porta a partir de hoje. Então esse rapaz, o mais novo, entrou na
aldeia, eu estava na frente de casa, e ele disse: “A criança não está bem”. Eu
mal tinha visto uma criança com eles, uma coisinha pequena como um furão
desapareceu de vista com tanta rapidez que não tive certeza se estava lá. Aí
perguntei: “Não está bem? Está com febre?”. E o sujeito respondeu: “Ela se
machucou ao acender a fogueira”, e por isso, antes que eu estivesse pronta
para acompanhá-lo, ele fugiu. Sumiu. E quando fui até lá, na beira do rio, a
outra dupla também havia sumido. Deram o fora. Não havia ninguém.
Todas as armadilhas e o lixo também sumiram. Havia apenas a fogueira
deles, ainda chamuscando, e bem perto dela, quase ali em cima, no chão…
Cotovia parou de falar durante muitos passos. Olhava para a frente, não
para Goha.
— Nem colocaram um cobertor em cima dela — lamentou, seguindo em
frente. — A criança foi empurrada para o fogo enquanto ele estava
queimando — revelou. Cotovia engoliu em seco e limpou as sementes
grudadas do rosto quente. — Eu diria que talvez ela tivesse caído, mas, se
estivesse acordada, teria tentado se salvar. Acho que bateram nela e
pensaram que estava morta, quiseram esconder o que lhe tinham feito, então
eles… — Parou de novo, e então retomou. — Talvez não tenha sido ele.
Talvez ele a tenha puxado para fora. Afinal, veio buscar ajuda para ela. Deve
ter sido o pai. Não sei. Não importa. Quem vai saber? Quem vai se
importar? Quem vai cuidar da criança? Por que fazemos o que fazemos?
Goha perguntou em voz baixa:
— Ela vai sobreviver?
— Talvez — respondeu Cotovia. — Talvez sobreviva, sim.
Depois de algum tempo, ao se aproximarem da aldeia, ela disse:
— Não sei por que precisei ir até você. Hera está lá. Não tem nada a se
fazer.
— Eu poderia ir para Valmouth, atrás de Faia.
— Não há nada que ele possa fazer. Já não depende… de ajuda. Eu a
aqueci. Hera lhe deu uma poção e lançou um encanto para dormir. Eu a
carreguei para casa. Ela deve ter seis ou sete anos, mas não pesa o que uma
criança de dois anos pesaria. Ela nem acordou de verdade. Mas solta um
arfar… Sei que não tem nada que você possa fazer. Mas eu queria você.
— Quero ir — assegurou Goha. Antes de entrarem na casa de Cotovia,
contudo, ela fechou os olhos e prendeu a respiração por um instante, com
medo.
As crianças de Cotovia foram mandadas para fora e a casa ficou em
silêncio. A pequena jazia inconsciente na cama de Cotovia. A bruxa da
aldeia, Hera, passara unguento de aveleira-de-bruxa e cura-tudo nas
queimaduras menores, mas não tocou o lado direito do rosto e da cabeça,
nem a mão direita, que estava carbonizada até os ossos. Ela havia desenhado
a runa Pirr acima da cama e deixado por isso mesmo.
— Consegue fazer alguma coisa? — perguntou Cotovia num murmúrio.
Goha ficou observando a criança queimada. Suas mãos estavam imóveis.
Ela balançou a cabeça.
— Você aprendeu a curar lá no alto da montanha, não aprendeu? — Dor,
vergonha e raiva falavam por intermédio da voz de Cotovia, implorando por
alívio.
— Nem Ogion conseguiria curar isso — respondeu a viúva.
Cotovia se virou, mordendo o lábio, e chorou. Goha a segurou,
acariciando seu cabelo grisalho. As mulheres se abraçaram.
A bruxa Hera veio da cozinha, carrancuda ao ver Goha. Embora a viúva
não lançasse encantos nem se dedicasse a feitiços, dizia-se que, quando
chegou a Gont pela primeira vez, ela morara em Re Albi como aprendiz do
mago, que conhecia o Arquimago de Roke e que, sem dúvida, possuía
poderes estrangeiros e misteriosos. Com inveja dos privilégios dela, a bruxa
foi até a cama e se ocupou ali ao lado, colocando um montinho de alguma
coisa em um prato e ateando-lhe fogo para que soltasse fumaça e mau
cheiro enquanto ela murmurava um encanto de cura como uma ladainha. A
forte fumaça de ervas fez a criança queimada tossir e quase despertar,
encolhida e trêmula. Ela começou a fazer um barulho ofegante, com
respirações rápidas, curtas e ásperas. Seu único olho parecia fitar Goha.
Goha deu um passo à frente e pegou a mão esquerda da criança. Falou
em sua própria língua:
— Eu os servi e os abandonei — disse. — Não vou deixar que levem
você.
A criança fixava o olhar nela, ou no nada, tentando respirar, tentando de
novo, e mais uma vez.
capítulo 2

rumo ao ninho do falcão

Passado mais de um ano, nos dias quentes e largos depois da Longa


Dança, um mensageiro desceu a estrada do norte rumo ao Vale Central
perguntando pela viúva Goha. As pessoas da aldeia o colocaram no caminho
e ele chegou à Fazenda do Carvalho no fim da tarde. Era um homem de
rosto afilado e olhos ágeis. Ele observou Goha e as ovelhas no aprisco além
dela e disse:
— Belos cordeiros. O Mago de Re Albi manda chamar você.
— Ele mandou você? — perguntou Goha, incrédula e brincalhona.
Ogion, quando queria vê-la, tinha mensageiros mais rápidos e mais sutis:
uma águia grasnando ou simplesmente a própria voz dele, dizendo o nome
dela baixinho: “Você vem?”.
O homem assentiu.
— Ele está doente — explicou. — Você vai vender alguma das
ovelhinhas?
— Talvez. Pode falar com o pastor, se quiser. Ali perto da cerca. Quer
jantar? Você pode passar a noite aqui se quiser, mas já estarei a caminho.
— Hoje à noite?
Dessa vez não havia brincadeira no olhar de leve desprezo de Goha.
— Não vou ficar esperando — respondeu.
Ela conversou por um minuto com o velho pastor, Arroio Claro, e depois
se virou, subindo em direção à casa construída junto à encosta da colina,
perto do bosque de carvalhos. O mensageiro a seguiu.
Na cozinha de piso de pedra, uma criança, para quem o mensageiro logo
olhou e de quem sem demora desviou o olhar em seguida, serviu-lhe leite,
pão, queijo e cebolinha, e depois foi embora, sem dizer uma palavra. Ela
reapareceu ao lado da mulher, ambas calçadas para viajar e carregando leves
bolsas de couro. O mensageiro seguiu-as e a viúva trancou a porta da casa da
fazenda. Partiram todos juntos, ele tratando de seus negócios, pois a
mensagem de Ogion fora um mero favor acrescentado à séria questão de
comprar um carneiro reprodutor para o Senhor de Re Albi; a mulher e a
criança queimada despediram-se dele no local onde o caminho levava para a
aldeia. Elas seguiram pela estrada por onde o mensageiro chegara, em
direção ao norte e depois ao oeste, até o sopé da Montanha de Gont.
Caminharam até que o longo crepúsculo do verão começasse a escurecer.
Então, saíram da estrada estreita e acamparam em um vale perto de um
riacho que corria rápido e silencioso, refletindo a palidez do céu do início da
noite entre matagais de salgueiros. Goha fez uma cama de grama seca e
folhas de salgueiro, escondida entre os matagais com formato de lebre, e
enrolou a criança em um cobertor.
— Agora — disse ela —, você é um casulo. De manhã você será uma
borboleta e sairá daí. — Goha não acendeu fogo, mas se deitou sobre sua
capa ao lado da criança, observando as estrelas se iluminarem uma a uma e
ouvindo o que o riacho dizia baixinho, até adormecer.
Quando acordaram no frio que precede a aurora, ela acendeu uma
fogueirinha e aqueceu uma panela com água a fim de preparar mingau de
aveia para a criança e para si. A borboletinha ferida saiu do casulo, trêmula, e
Goha esfriou a panela na grama orvalhada para que a criança a segurasse e
bebesse dela. O leste já se iluminava acima da encosta alta e escura da
montanha quando retomaram a viagem.
Elas caminharam o dia todo ao ritmo de uma criança que se cansa com
facilidade. O coração da mulher ansiava por apressar o passo, mas ela
caminhou devagar. Não conseguia carregar a criança por longas distâncias e,
para tornar a jornada mais fácil, contou-lhe histórias.
— Vamos ver um homem, um homem velho, chamado Ogion —
explicou Goha à medida que caminhavam pela estrada estreita que subia
serpenteando entre as florestas. — Ele é um homem sábio e um feiticeiro.
Sabe o que é um feiticeiro, Therru?
Se a criança tivera um nome, ela não o sabia ou não o diria. Goha a
chamou de Therru.
A pequena balançou a cabeça.
— Bem, eu também não — admitiu a mulher. — Mas sei o que eles
podem fazer. Quando eu era nova, mais velha que você, mas ainda jovem,
Ogion se tornou meu pai, do mesmo jeito que sou sua mãe agora. Ele
cuidou de mim e tentou me ensinar o que eu precisava saber. Ficou comigo
quando preferia vagar sozinho. Ele gostava de caminhar por todas essas
estradas como estamos fazendo agora, e pelas florestas, pelos lugares
selvagens. Ia por toda parte na montanha, observando as coisas, escutando.
Sempre escutando, por isso o chamaram de o Silencioso. Mas costumava
conversar comigo. Ele me contou histórias. Não só as histórias grandiosas
que todo mundo aprende, sobre heróis e reis e coisas que aconteceram há
muito tempo e em lugares distantes, mas histórias que só ele conhecia. —
Goha caminhou calada antes de prosseguir: — Vou contar uma dessas
histórias agora.
“Uma das coisas que os feiticeiros podem fazer é se transformar em outra
coisa… Assumir outra forma. Metamorfose, é como eles chamam. Um
ocultista comum pode se fazer parecer com outra pessoa, ou com um
animal, só para que você não saiba nem por um instante o que está vendo…
Como se ele tivesse colocado uma máscara. Mas os feiticeiros e magos
podem fazer mais do que isso. Eles podem ser a máscara, podem se
transformar de fato em outro ser. Por isso, se um feiticeiro quisesse
atravessar o mar e não tivesse barco, poderia se transformar em uma gaivota
e atravessá-lo voando. Mas ele precisa ter cuidado. Se permanecer como
pássaro, vai começar a pensar o que um pássaro pensa e esquecer o que um
homem pensa, e poderá voar e ser uma gaivota, mas nunca mais será um
homem. Então, contam que no passado existiu um grande feiticeiro que
gostava de se transformar em urso, e fazia isso com muita frequência, aí se
tornou um urso e matou o próprio filho; tiveram de caçá-lo e matá-lo. Mas
Ogion também costumava brincar assim. Certa vez, quando os ratos
entraram em sua despensa e estragaram o queijo, ele pegou um deles graças
a um feitiço de ratoeira, ergueu o rato assim, olhou-o nos olhos e falou: ‘Eu
disse para você não brincar de rato!’. E por um minuto pensei que ele
estivesse falando sério…
“Bom, essa história é sobre uma coisa parecida com a metamorfose, mas
Ogion disse que ia além de todas as metamorfoses que ele conhecia, porque
era um caso de ser duas criaturas, dois seres, ao mesmo tempo e sob a
mesma forma, e disse que isso está além do poder dos feiticeiros. Mas ele
descobriu isso em um pequeno vilarejo na costa noroeste de Gont, um lugar
chamado Kemay. Tinha uma mulher lá, uma velha pescadora, não era uma
bruxa, não era instruída; mas ela fazia canções. Foi assim que Ogion a ouviu.
Estava vagando por lá, da maneira que fazia, caminhando ao longo da costa,
escutando; e ouviu alguém cantando, consertando uma rede ou calafetando
um barco e cantando enquanto trabalhava:

Mais a oeste do que o oeste


além da terra
meu povo está dançando
no outro vento.

“Foram a melodia e as palavras que Ogion ouviu, e ele nunca as tinha


ouvido antes, por isso perguntou de onde vinha a canção. E de uma resposta
a outra, chegou aonde alguém disse: ‘Ah, essa é uma das canções da Mulher
de Kemay’. Então ele foi até Kemay, o pequeno porto pesqueiro onde a
mulher morava, e encontrou a casa dela perto do ancoradouro. Ogion bateu
à porta com seu cajado de mago, e a mulher veio e abriu.
“Agora você sabe, você se lembra de quando conversamos sobre nomes,
sobre como as crianças têm nomes de criança e todo mundo tem um nome
usual, e talvez também um apelido. Pessoas diferentes podem chamar você
de jeitos diferentes. Você é minha Therru, mas talvez você tenha um nome
usual hárdico quando ficar mais velha. Mas, além disso, quando chegar à
idade de mulher, você receberá, se tudo for feito corretamente, seu nome
verdadeiro. Será dado por alguém com poder verdadeiro, um feiticeiro ou
um mago, porque esse é o poder deles, essa é a arte deles: nomear. E esse é o
nome que você talvez nunca diga a outra pessoa, porque seu próprio eu está
em seu nome verdadeiro. É sua força, seu poder; mas para outra pessoa é um
risco e um fardo, que só pode ser oferecido em extrema necessidade e
confiança. Mas um grande mago, conhecendo todos os nomes, pode
conhecê-lo sem que você o diga.
“Então Ogion, que é um grande mago, parou na porta da casinha ali
perto do dique e a velha abriu a porta. Ogion recuou e ergueu seu cajado de
carvalho e ergueu também a mão, assim, como se tentasse se proteger do
calor de um fogo, e, surpreso e com medo, disse o nome verdadeiro dela em
voz alta: ‘Dragão!’.
“Naquele primeiro momento, ele me contou, não foi uma mulher que viu
à porta, mas o brilho e a glória do fogo, e um cintilar de escamas douradas e
garras, e os grandes olhos de um dragão. Dizem que você não deve encarar
um dragão nos olhos.
“Então, tudo isso desapareceu e ele não viu nenhum dragão, mas uma
velha parada ali à porta, um pouco curvada, uma velha e alta pescadora de
mãos grandes. Ela o fitou e ele a fitou. E a velha disse: ‘Entre, Senhor
Ogion’.
“Ele entrou. A velha serviu sopa de peixe, eles comeram e depois
conversaram perto da lareira. Ogion pensou que ela devia ser uma
metamorfa, mas não sabia, veja bem, se era uma mulher que podia se
transformar em dragão ou um dragão que podia se transformar em mulher.
Então Ogion finalmente perguntou: ‘Você é uma mulher ou um dragão?’. E
a velha não respondeu, mas disse: ‘Vou cantar-lhe uma história que
conheço’.”
Therru tinha uma pedrinha no sapato. Elas pararam para tirá-la e
seguiram em frente em passo muito vagaroso, pois a estrada subia
acentuadamente entre colunas de pedra que se projetavam acima do matagal
onde as cigarras cantavam no calor do verão.
— A história que ela cantou para ele, para Ogion, é esta.
“Quando Segoy fez emergir do mar as ilhas do mundo, no início dos
tempos, os dragões foram os primeiros a nascer do solo e do vento que
soprava sobre o solo. Assim conta a Canção da Criação. Mas a velha
também dizia que, no início, o dragão e o humano eram um só. Eram um só
povo, uma só raça, alada, e falando a Língua Verdadeira.
“Eles eram lindos, fortes, sábios e livres.
“Mas, com o tempo, nada pode ser sem se tornar. Assim, entre o povo
dragão, alguns tornaram-se cada vez mais apaixonados pelo voo e pela
selvageria e tinham cada vez menos a ver com os trabalhos de construção,
com o estudo e a aprendizagem, com casas e cidades. Queriam apenas voar
cada vez mais longe, caçando e comendo suas presas, ignorantes e
desinteressados, buscando mais e mais liberdade.
“Outros integrantes do povo dragão passaram a se importar pouco com o
voo, mas acumularam tesouros, riquezas, coisas construídas, coisas
aprendidas. Construíram casas, fortalezas para guardar seus tesouros, assim
poderiam repassar tudo o que obtiveram para seus descendentes, buscando
sempre mais e mais. Passaram a temer os selvagens, que poderiam vir
voando e destruir todo o seu querido patrimônio, queimá-lo em uma
explosão de chamas por mero descuido e ferocidade.
“Os selvagens não temiam nada. Não aprenderam nada. Por serem
ignorantes e destemidos, não conseguiam se salvar quando o povo que não
voava os capturava como animais e os matava. Mas outros selvagens
chegavam voando e lançando fogo nas belas casas, destruindo, matando. Os
mais fortes, selvagens ou sábios, foram os primeiros a matar uns aos outros.
“Aqueles que tinham mais medo se escondiam da luta e, quando não
havia mais como se esconder, fugiam. Usaram suas habilidades de
construção, fizeram barcos e navegaram para o leste, longe das ilhas
ocidentais, onde os grandes seres alados guerreavam entre as torres em
ruínas.
“Assim, aqueles que eram tanto dragões quanto humanos mudaram,
tornando-se dois povos — os dragões, cada vez em menor número e mais
selvagens, espalhados por sua ambição e raiva intermináveis e ineptas, nas
ilhas distantes do Extremo Ocidental; e o grupo humano, sempre mais
numeroso em suas ricas vilas e cidades, preenchendo as Ilhas Centrais e
todo o sul e leste. Mas entre eles houve alguns que conservaram o
aprendizado dos dragões — a Língua Verdadeira da Criação — e agora eles
são os feiticeiros.
“Mas, a canção dizia, também há entre nós quem sabe que já foi dragão, e
entre os dragões há os que sabem de seu parentesco conosco. Eles contam
que, quando o povo uno estava se tornando dois, alguns deles, ainda
humanos e dragões, ainda alados, não foram para o leste, mas para o oeste,
atravessando o Mar Aberto até chegarem ao outro lado do mundo. Lá eles
vivem em paz, grandes seres alados, selvagens e sábios, com mente humana e
coração de dragão. Então ela cantou:

Mais a oeste do que o oeste


além da terra
meu povo está dançando
no outro vento.

“E essa foi a história contada na canção da Mulher de Kemay; acabava


com essas palavras.
“Então, Ogion disse-lhe: ‘Quando a vi pela primeira vez, percebi seu
verdadeiro ser. Esta mulher que está sentada à minha frente, do outro lado
da lareira, não é mais do que o vestido que usa’.
“Mas ela balançou a cabeça e riu, tudo o que disse foi: ‘Que bom seria se
fosse tão simples!’.
“Depois, passado certo tempo, Ogion regressou a Re Albi. E quando me
contou a história, ele me contou: ‘Desde aquele dia, tenho me perguntado se
alguém, homem ou dragão, já esteve mais a oeste do que o oeste; e quem
somos e onde reside nossa totalidade’… Você está ficando com fome,
Therru? Parece que há um bom lugar para se sentar, lá em cima, onde a
estrada faz curvas. Talvez dali consigamos avistar o Porto de Gont, lá
embaixo, no sopé da montanha. É uma cidade grande, ainda maior que
Valmouth. Vamos nos sentar quando chegarmos à curva e descansar um
pouco.
Do canteiro mais alto da estrada a mulher e a criança puderam, de fato,
avistar as amplas encostas da floresta e dos prados rochosos até a cidade na
baía e ver os penhascos que protegiam a entrada da baía e os barcos na água
escura como lascas de madeira ou besouros aquáticos. Muito à frente, na
estrada e um pouco acima dela, um penhasco se projetava da encosta da
montanha: Overfell, onde ficava a aldeia de Re Albi, o Ninho do Falcão.
Therru não reclamava, mas quando Goha disse “Certo, vamos
continuar?”, a criança, sentada ali entre a estrada e os abismos de céu e do
mar, balançou a cabeça em negativa. O sol estava quente e elas tinham
caminhado muito desde o desjejum na várzea.
Goha pegou a garrafa de água e elas beberam de novo; depois ela pegou
um saquinho de passas e nozes e o entregou à criança.
— Já conseguimos avistar para onde vamos — disse Goha —, e eu
gostaria de estar lá antes de escurecer, se possível. Estou ansiosa para
encontrar Ogion. Você vai ficar muito cansada, mas não vamos caminhar
rápido. Chegaremos lá seguras e aquecidas hoje à noite. Fique com o
saquinho, prenda-o no cinto. As passas fortalecem as pernas. Você gostaria
de ter um cajado, como um mago, para ajudá-la a andar?
Therru ruminou e assentiu. Goha pegou sua faca e cortou um ramo firme
de aveleira para a criança e depois, vendo um amieiro caído estrada acima,
quebrou um de seus galhos e o desbastou para produzir um lenho firme e
leve para si mesma.
Elas partiram outra vez, e a criança avançou com dificuldade, induzida
pelas passas. Goha cantava para divertir a ambas, canções de amor, canções
de pastoreio e baladas que aprendera no Vale Central; mas de repente sua
voz ficou mais baixa no meio de uma melodia. Ela parou e esticou a mão em
um gesto de advertência.
Os quatro homens à frente delas na estrada a viram. Não adiantava tentar
se esconder na floresta até que eles continuassem ou passassem ao largo.
— Viajantes — explicou calmamente a Therru, e retomou a caminhada.
Ela segurou o bastão de amieiro com firmeza.
O que Cotovia dissera sobre gangues e ladrões não era só a reclamação
que todas as gerações fazem de que as coisas não são mais o que
costumavam ser e que o mundo está indo de mal a pior. Nos últimos anos
houve uma perda de paz e confiança nas cidades e zonas rurais de Gont. A
juventude se comportava como forasteira entre o próprio povo, abusando da
hospitalidade, roubando e vendendo o que roubavam. A mendicância era
comum onde já fora rara, e o pedinte insatisfeito ameaçava com violência.
As mulheres não gostavam de andar sozinhas por ruas e estradas e também
não gostavam dessa perda de liberdade. Algumas jovens fugiram para se
juntar às gangues de ladrões e caçadores furtivos. Muitas vezes, voltaram
para casa em menos de um ano, taciturnas, machucadas e grávidas; entre
ocultistas e bruxas das aldeias corria o boato de que os negócios relacionados
à profissão iam mal: encantos que sempre curaram não mais o faziam;
feitiços de descoberta não encontravam nada ou encontravam a coisa errada;
poções do amor levavam os homens a um furor que não era de desejo, mas
de ciúme assassino. E, pior do que isso, dizia-se, pessoas que nada
conheciam da arte da magia, de suas leis, de seus limites e dos perigos de
quebrá-los, se autodenominavam pessoas de poder, prometendo maravilhas
de riqueza e saúde aos seus seguidores, prometendo até mesmo a
imortalidade.
Hera, a bruxa da aldeia de Goha, falou de maneira sombria sobre esse
enfraquecimento da magia, e Arroio Claro, o ocultista de Valmouth,
também. Ele era um homem perspicaz e modesto, que fora ajudar Hera a
fazer o pouco que pudesse ser feito para diminuir a dor e as cicatrizes das
queimaduras de Therru. Ele dissera a Goha:
— Acho que uma época em que situações como esta ocorrem deve ser
uma época de ruína, o fim de uma era. Quantos séculos se passaram desde
que houve um rei em Havnor? Não pode continuar assim. Devemos nos
voltar outra vez para o centro ou estaremos perdidos, ilha contra ilha,
homem contra homem, pai contra criança… — Ele a olhou, com um tanto
de timidez, mas com seu olhar claro e perspicaz. — O Anel de Erreth-Akbe
foi restaurado à Torre em Havnor — contou ele. — Sei quem o levou para
lá… Foi o sinal, com certeza foi o sinal de que a nova era estava por vir! Mas
não agimos. Não temos rei. Não temos centro. Devemos encontrar nossa
paixão, nossa força. Talvez o Arquimago finalmente aja. — E acrescentou,
com confiança: — Afinal, ele é de Gont.
Mas não chegou notícia de qualquer ação do Arquimago ou de qualquer
herdeiro do Trono em Havnor; e as circunstâncias iam mal.
Por isso, foi com medo e uma raiva amarga que Goha assistiu aos quatro
homens na estrada à sua frente colocarem-se dois de cada lado, de modo que
ela e a criança teriam de passar entre eles.
Conforme elas avançavam em ritmo constante, Therru manteve-se bem
perto de Goha, com a cabeça baixa, mas não lhe segurou a mão.
Um dos homens, um sujeito de peitoral grande e pelos pretos e ásperos
sobre o lábio superior cobrindo a boca, começou a falar, sorrindo um pouco:
— Opa.
Mas Goha falou ao mesmo tempo e mais alto:
— Saiam do meu caminho! — ordenou, erguendo o bastão de amieiro
como se fosse o cajado de um feiticeiro. — Tenho assuntos a tratar com
Ogion!
Ela caminhou entre os homens e seguiu em frente, com Therru trotando
ao seu lado. Os homens, confundindo afronta com bruxaria, ficaram
parados. O nome de Ogion talvez ainda guardasse poder. Ou talvez
houvesse poder em Goha, ou na criança. Pois quando as duas passaram, um
deles falou:
— Vocês viram aquilo? — Cuspiu e fez o sinal de afastar o mal.
— A bruxa e a monstrinha dela — disse outro. — Deixem para lá!
Outro, um homem com capuz de couro e jaqueta, ficou observando por
um instante enquanto os outros seguiram seu caminho. O rosto dele tinha
um aspecto doente e abatido, mas parecia estar se virando para seguir a
mulher e a criança, quando o homem de lábios peludos o chamou:
— Vamos, Habilidoso!
E ele obedeceu.
Depois de desaparecerem de vista, na curva da estrada, Goha pegou
Therru e correu com ela até precisar colocá-la no chão e ficar parada,
ofegante. A criança não fez perguntas nem demorou. Assim que Goha pôde
continuar, a criança caminhou o mais rápido que pôde ao seu lado,
segurando-lhe a mão.
— Você está vermelha — comentou a criança. — Como fogo.
Ela raramente falava e não o fazia com nitidez, sua voz era muito rouca;
mas Goha conseguia entendê-la.
— Estou com raiva — explicou Goha com uma espécie de risada. —
Quando estou com raiva, fico vermelha. Como vocês, vocês, povos
vermelhos, vocês, bárbaros das terras ocidentais… Olhe, tem uma cidade lá
na frente, deve ser Caldas de Carvalho. É a única aldeia nesta estrada.
Vamos parar ali e descansar um pouco. Quem sabe conseguimos um pouco
de leite. Depois, se for possível continuar, se você achar que pode caminhar
até o Ninho do Falcão, chegaremos lá ao cair da noite, espero.
A criança assentiu. Ela abriu o saquinho de passas e nozes e comeu
algumas. Caminharam penosamente.
O sol já havia se escondido há muito tempo quando elas atravessaram a
aldeia e chegaram à casa de Ogion, no alto do desfiladeiro. As primeiras
estrelas brilhavam acima de uma massa escura de nuvens a oeste, no
horizonte alto do mar. O vento marítimo soprava, arqueando a grama curta.
Uma cabra balia nas pastagens atrás da casinha baixa. Na única janela
cintilava um amarelo difuso.
Goha apoiou seu bastão e o de Therru contra a parede junto à porta,
segurou a mão da criança e bateu uma vez.
Não houve resposta.
Ela empurrou a porta. O fogo da lareira estava apagado, só brasas e
cinzas, mas uma lamparina a óleo sobre a mesa produzia uma pequena
semente de luz, e do seu colchão no chão, no canto mais afastado do
cômodo, Ogion disse:
— Entre, Tenar.
capítulo 3

ogion

Ela colocou a criança deitada no catre da alcova a oeste. Acendeu a


lareira. Foi se sentar ao lado da cama de Ogion no chão, de pernas cruzadas.
— Ninguém está cuidando de você!
— Mandei-os embora — murmurou ele.
Seu rosto estava tão escuro e duro como sempre, mas seu cabelo era ralo
e branco, e a luz baixa da lamparina não produzia nenhuma centelha de luz
em seus olhos.
— Você poderia ter morrido sozinho — disse ela, furiosa.
— Então me ajude a fazer isso — respondeu o velho.
— Ainda não — pediu, curvando-se e apoiando a testa na mão de
Ogion.
— Não esta noite — concordou. — Amanhã.
O mago ergueu a mão para acariciar o cabelo dela uma vez, era toda a
força que tinha.
Ela se sentou outra vez. O fogo pegou. A luz brincava nas paredes e no
teto baixo e fazia com que as sombras se condensassem nos cantos do longo
cômodo.
— Se Ged viesse — murmurou o velho.
— Você mandou buscá-lo?
— Desapareceu — disse Ogion. — Ele está desaparecido. Uma nuvem.
Uma névoa sobre as terras. Foi para o oeste. Carregando o galho da sorveira.
Na névoa escura. Perdi meu falcão.
— Não, não, não — sussurrou ela. — Ele vai voltar.
Eles ficaram em silêncio. O calor do fogo começou a penetrar ambos,
fazendo Ogion relaxar e deixar-se levar pelo sono, permitindo que Tenar
encontrasse um descanso confortável depois de um longo dia de caminhada.
Ela esfregou os pés e os ombros doloridos. Carregara Therru durante parte
da última e longa subida, pois a criança começara a ofegar de cansaço na
tentativa de acompanhá-la.
Tenar se levantou, aqueceu água e tirou do corpo a poeira da estrada.
Aqueceu leite, comeu o pão que encontrou na despensa de Ogion e voltou
para se sentar ao seu lado. Enquanto o mago dormia, ela ficou pensando,
observando-lhe o rosto, a luz da lareira e as sombras.
Pensou em como uma garota ficara sentada em silêncio, pensando, no
meio da noite, há muito tempo e muito longe dali, uma garota em um
quarto sem janelas, criada para se conhecer apenas como aquela que havia
sido devorada, sacerdotisa e serva dos poderes das trevas da terra. Houve
uma mulher que ficara sentada no silêncio pacífico de uma casa de fazenda
enquanto o marido e os filhos dormiam, para pensar, para ficar sozinha por
um tempo. Havia a viúva que carregara uma criança queimada até ali, que se
sentava ao lado de moribundos, que esperava a volta de um homem. Assim
como todas as mulheres, qualquer mulher, fazendo o que as mulheres fazem.
Mas não foi pelos nomes de serva, esposa ou viúva que Ogion a chamou.
Nem Ged o fizera na escuridão das Tumbas. Nem — há muito mais tempo,
muito mais longe — sua mãe, a mãe de quem ela se lembrava apenas como
o calor e a cor de leão da lareira, a mãe que lhe dera seu nome.
— Eu sou Tenar — sussurrou. O fogo, atingindo um galho seco de
pinheiro, saltou em uma labareda amarela.
A respiração de Ogion tornou-se agitada e ele se esforçava para respirar.
Ela o ajudou como pôde até que encontrasse algum conforto. Os dois
dormiram um pouco, Tenar cochilando no silêncio aturdido e oscilante dele,
entrecortado por palavras estranhas. Uma vez, no meio da noite, ele falou
em voz alta, como se encontrasse um amigo na estrada:
— Você está aqui, então? Você o viu?
E mais uma vez, quando Tenar despertou para reavivar o fogo, ele
começou a falar, mas dessa vez parecia conversar com alguém em sua
memória de anos já passados, pois falou nitidamente como uma criança
falaria:
— Tentei ajudar ela, mas o telhado da casa caiu. Caiu em cima das
pessoas. Foi o terremoto. — Tenar ouviu. Ela também presenciara um
terremoto. — Tentei ajudar! — disse o menino na voz do velho, sofrendo.
Então, a luta ofegante para respirar voltou.
À primeira luz da manhã, Tenar foi despertada por um som que, a
princípio, pensou vir do mar. Era uma grande movimentação de asas. Um
bando de pássaros voava baixo, eram tantos que suas asas se chocavam e a
janela estava escurecida pelas sombras agitadas. Aparentemente,
circundaram a casa uma vez e depois desapareceram. Não cantaram nem
crocitaram, e ela não sabia que pássaros eram.
Naquela manhã, chegaram pessoas da aldeia de Re Albi, da qual a casa
de Ogion mantinha-se afastada, mais ao norte. Veio uma jovem pastora,
uma mulher para ordenhar o leite das cabras de Ogion e outras pessoas para
perguntar o que poderiam fazer por ele. Musgo, a bruxa da aldeia, apontou
para o bastão de amieiro e o galho de aveleira junto à porta e espiou lá
dentro, esperançosa, mas nem ela se aventurou a entrar, e Ogion resmungou
de seu catre:
— Mande-os embora! Mande todo mundo embora!
Ele parecia mais forte e mais confortável. Quando a pequena Therru
acordou, Ogion conversou com ela no tom grave, gentil e calmo de que
Tenar se lembrava. A criança saiu para brincar ao sol, e ele perguntou a
Tenar:
— De que nome você a chama?
Ele conhecia a Língua Verdadeira da Criação, mas nunca aprendera uma
palavra em karginês.
— “Therru” significa ardente, a chama do fogo — respondeu.
— Ah, ah — murmurou Ogion, seus olhos reluziram e ele franziu a
testa. Pareceu tentar encontrar as palavras por um instante. — Aquela —
disse —, aquela… Eles vão temê-la.
— Já a temem — lamentou Tenar, com amargura.
O mago balançou a cabeça.
— Ensine-a, Tenar — sussurrou ele. — Ensine tudo a ela! Nada de
Roke. Eles têm medo… Por que deixei você ir? Por que você se foi? Para
trazê-la aqui… tarde demais?
— Aquiete-se, aquiete-se — pediu a mulher com ternura, pois ele se
esforçava com as palavras e a respiração, e não conseguia encontrar nenhuma
delas.
O mago balançou a cabeça e arfou.
— Ensine-a!
E se aquietou.
Ele não queria comer e só bebia um pouco de água. No meio do dia,
adormeceu. Acordando no fim da tarde, disse:
— Agora, filha.
Sentou-se. Tenar segurou-lhe a mão, sorrindo para ele.
— Ajude-me a me levantar.
— Não, não.
— Sim — insistiu ele. — Lá fora. Não posso morrer dentro de casa.
— Aonde gostaria de ir?
— Qualquer lugar. Mas, se eu conseguir, até o caminho da floresta —
pediu. — Até a faia acima do prado.
Quando ela percebeu que Ogion conseguia se levantar e estava
determinado a sair, ajudou-o. Juntos chegaram à porta, onde ele parou e
analisou ao redor do único cômodo de sua casa. No canto escuro à direita da
soleira, seu cajado alto estava encostado na parede, cintilando levemente.
Tenar estendeu a mão a fim de pegá-lo para Ogion, mas ele recusou com a
cabeça.
— Não — falou —, nada disso. — Olhou em volta outra vez, como se
procurasse algo ausente, esquecido. — Vamos — chamou, por fim.
Quando o vento intenso do oeste soprou em seu rosto, ele mirou o
horizonte e declarou:
— Isso é bom.
— Deixe que eu chame algumas pessoas da aldeia para fazer uma liteira
e carregar você — sugeriu Tenar. — Estão todos esperando para fazer algo
por você.
— Quero caminhar — explicou o velho.
Therru se aproximou da casa e observou de modo solene enquanto
Ogion e Tenar avançavam, um passo de cada vez, parando a cada cinco ou
seis passos para Ogion tomar ar, e atravessavam o prado em direção aos
bosques que subiam íngremes pela encosta da montanha a partir do centro
do penhasco. O sol estava quente, e o vento, frio. Demorou muito para
atravessar aquele prado. O rosto de Ogion estava cinzento e suas pernas
tremiam como grama ao vento quando enfim chegaram ao pé de uma faia
vasta e jovem, no meio da floresta, a poucos metros do início do caminho da
montanha. Lá, ele afundou entre as raízes da árvore, com as costas apoiadas
no tronco. Por muito tempo, Ogion não conseguiu se mexer nem falar, seu
coração palpitava e falhava, sacudindo-lhe corpo. Ele finalmente acenou
com a cabeça e sussurrou:
— Tudo bem.
Therru os seguira a distância. Tenar aproximou-se dela, abraçou-a e
conversou brevemente com a criança. Voltou até Ogion.
— Ela está trazendo uma manta — avisou a mulher.
— Não está frio.
— Eu estou com frio.
Viu-se um lampejo de sorriso no rosto dela.
A criança veio carregando um cobertor de lã de cabra. Ela sussurrou para
Tenar e saiu correndo outra vez.
— Érica vai deixar que ela ajude a ordenhar as cabras e ficará de olho
nela — disse Tenar a Ogion. — Assim posso ficar aqui com você.
— Nunca uma só tarefa para você — disse ele em um sussurro rouco e
sibilante que era toda a voz que lhe restava.
— Não. Sempre pelo menos duas tarefas, e geralmente mais — afirmou
Tenar. — Mas estou aqui.
Ogion assentiu.
Por muito tempo, ele não falou nada, mas reclinou-se contra o tronco da
árvore, com os olhos fechados. Assistindo ao rosto do mago, Tenar viu-o
mudar tão lentamente quanto a luz mudava no oeste.
Ele abriu os olhos e contemplou o céu ocidental por uma abertura na
mata. Parecia observar alguma coisa, algum ato ou proeza, naquele espaço de
luz distante, claro e dourado. Sussurrou uma vez, hesitante, como se não
tivesse certeza:
— O dragão…
O sol se pôs, o vento diminuiu.
Ogion olhou para Tenar.
— Acabou — sussurrou, exultante. — Tudo mudou…! Mudou, Tenar!
Espere… espere aqui, pelo… — Um tremor tomou conta de seu corpo,
agitando-o como um galho de árvore levado por um vento forte. Ogion
ofegou. Seus olhos se fecharam e se abriram, fixando-se além dela. O mago
colocou a mão sobre a de Tenar; ela se inclinou para ele; ele disse o próprio
nome para ela, para que depois de sua morte pudesse ser verdadeiramente
conhecido.
Agarrou a mão dela, fechou os olhos e começou mais uma vez a lutar
para respirar, até não haver mais fôlego. Então, deitou-se como uma das
raízes da árvore enquanto as estrelas surgiam e brilhavam, transparecendo
entre as folhas e os galhos da floresta.
Tenar ficou sentada ao lado do morto no crepúsculo e na escuridão. Uma
lamparina reluzia como um vaga-lume no prado. Ela posicionara o cobertor
de lã sobre ambos, mas a mão dela, segurando a dele, esfriara, como se
segurasse uma pedra. Tenar tocou a própria testa com a mão dele mais uma
vez. Levantou-se, dolorida e zonza, com uma sensação estranha no corpo, e
foi ao encontro, para guiá-la, da pessoa que se aproximava com a luz.
Naquela noite, os vizinhos de Ogion se sentaram junto dele, e ele não os
mandou embora.

***

A mansão do Senhor de Re Albi ficava em um afloramento rochoso na


encosta da montanha acima de Overfell. De manhã cedo, bem antes que o
sol tivesse clareado a montanha, o feiticeiro a serviço do senhor desceu
atravessando a aldeia; e logo depois outro feiticeiro subiu com dificuldade a
estrada íngreme que vinha do Porto de Gont, tendo iniciado o trajeto na
escuridão. Ou eles receberam a notícia de que Ogion estava morrendo ou o
poder que possuíam era tanto que eles sabiam da morte de um grande
mago.
A aldeia de Re Albi não tinha nenhum ocultista, apenas seu mago, e uma
bruxa para realizar os trabalhos inferiores de descoberta, regeneração e
alinhamento dos ossos, com os quais as pessoas não incomodariam o mago.
Tia Musgo era uma criatura carrancuda, solteira, como a maioria das bruxas,
e suja, com cabelos grisalhos amarrados em curiosos nós encantados e olhos
avermelhados pela fumaça das ervas. Foi ela quem atravessou o prado com a
lamparina e, com Tenar e os outros, velou o corpo de Ogion à noite. Ela
acendeu uma vela de cera em um quebra-luz de vidro, lá na floresta, e
queimou óleos doces em um prato de argila; disse as palavras que deveriam
ser ditas e fez o que deveria ser feito. Quando foi preciso tocar o corpo a fim
de prepará-lo para o enterro, lançou um olhar para Tenar como se pedisse
permissão e depois prosseguiu com suas funções. As bruxas de aldeia
geralmente cuidavam da acolhida, como chamavam, dos mortos, e muitas
vezes do enterro.
Quando o feiticeiro, um jovem alto com um cajado prateado de pinho,
veio da mansão, e o outro, um homem corpulento de meia-idade com um
cajado curto de teixo, veio do Porto de Gont, tia Musgo não olhou para eles
com seus olhos injetados de sangue, mas abaixou a cabeça, fez uma
reverência e recolheu seus pobres encantos e bruxarias.
Depois de ajeitar o cadáver como ele deveria ser enterrado, virado para a
esquerda e com os joelhos dobrados, ela colocou na mão esquerda, voltada
para cima, uma trouxinha de amuletos, algo embrulhado em pele macia de
cabra e amarrado com cordão colorido. O feiticeiro de Re Albi afastou
aquilo com a ponta de seu cajado.
— A sepultura está aberta? — perguntou o feiticeiro do Porto de Gont.
— Sim — respondeu o feiticeiro de Re Albi. — Foi aberta no cemitério
da casa do meu senhor. — Apontou para a mansão no alto da montanha.
— Entendo — falou o do Porto de Gont. — Eu tinha pensado que
nosso mago seria enterrado com todas as honras na cidade que ele salvou do
terremoto.
— Meu senhor deseja fazer as honras — disse Re Albi.
— Mas ao que parece… — começou o do Porto de Gont, e se deteve,
por não gostar de discutir, entretanto sem estar preparado para ceder à
alegação cômoda do jovem. Fitou o homem morto. — Ele deve ser
enterrado inominado — comentou, com pesar e amargura. — Caminhei a
noite toda, mas cheguei tarde demais. Uma grande perda que se torna ainda
maior!
O jovem feiticeiro não disse nada.
— O nome dele era Aihal — disse Tenar. — O desejo dele era repousar
aqui, onde está agora.
Os dois homens se viraram para ela. O jovem, ao ver uma aldeã de meia-
idade, simplesmente desviou o olhar. O homem do Porto de Gont encarou-a
por um momento e disse:
— Quem é você?
— Sou chamada de viúva de Pederneira, Goha — respondeu. — Quem
sou é de sua conta saber, creio. Mas não cabe a mim dizer.
Diante disso, o feiticeiro de Re Albi achou-a digna de um breve olhar.
— Cuidado, mulher, com o modo como fala com homens de poder!
— Espere, espere — disse o do Porto de Gont, dando tapinhas no ar e
tentando acalmar a indignação do feiticeiro de Re Albi, mas ainda
encarando Tenar. — Você foi… Você foi aprendiz dele, no passado?
— E amiga — acrescentou Tenar. Então virou a cabeça e ficou em
silêncio. Ela ouviu a raiva na própria voz ao proferir aquela palavra, “amiga”.
Olhou para seu amigo, um cadáver preparado para a sepultura, ausente e
imóvel. Estavam diante dele, vivos e cheios de poder, sem oferecer amizade,
apenas desprezo, rivalidade, raiva. — Sinto muito — desculpou-se Tenar. —
Foi uma noite longa. Eu estava com ele quando morreu.
— Não é…
O jovem feiticeiro começou a falar, mas inesperadamente a velha tia
Musgo o interrompeu, declarando em voz alta:
— Ela era. Sim, ela era. Ninguém mais além dela. Ele mandou buscá-la.
Enviou o jovem Toutinegra, o negociante de ovelhas, para dizer a ela que
viesse circundando a montanha, e ele esperou para morrer até que ela
chegasse e estivesse com ele, e então ele morreu, e morreu onde queria ser
enterrado, aqui.
— E… — disse o homem mais velho — … e ele revelou para você…?
— O nome dele. — Tenar os olhou, e, por mais que ela fizesse, a
incredulidade no rosto do homem mais velho, o desprezo do outro,
despertaram nela um desrespeito correspondente. — Eu disse o nome —
afirmou. — Devo repeti-lo para vocês?
Consternada, ela percebeu pelas expressões deles que, na verdade, não
tinham ouvido o nome, o nome verdadeiro de Ogion; não prestaram atenção
nela.
— Oh! — lamentou. — É uma época difícil… Uma época em que até
mesmo tal nome assim pode passar despercebido, pode cair como uma
pedra! Será que ouvir não é um poder? Ouçam, então: o nome dele era
Aihal. Seu nome na morte é Aihal. Nas canções ele será conhecido como
Aihal de Gont. Se ainda houver canções a serem feitas. Ele foi um homem
silencioso. Agora ele é muito silencioso. Talvez não haja canções, apenas
silêncio. Não sei. Estou muito cansada. Perdi meu pai e meu precioso amigo.
A voz dela falhou; a garganta se fechou em um soluço. Tenar se virou
para ir embora. No caminho da floresta, avistou a trouxinha de amuletos que
tia Musgo fizera. Pegou-a, ajoelhou-se ao lado do cadáver, beijou a palma da
mão esquerda aberta e colocou a trouxinha nela. Ali, de joelhos, a mulher
olhou mais uma vez para os dois homens. E perguntou baixinho:
— Vocês vão garantir que o túmulo dele seja cavado aqui, onde ele o
desejou?
Primeiro o homem mais velho e em seguida o mais novo, ambos
assentiram.
Tenar se levantou, alisou a saia e começou a atravessar o prado sob a luz
da manhã.
capítulo 4

kalessin

– Espere — dissera Ogion, que agora era Aihal, pouco antes de o


vento da morte sacudi-lo e libertá-lo da vida. — Acabou… Tudo mudou —
sussurrara, e depois: — Tenar, espere… — Mas ele não completara pelo que
ela deveria esperar. A mudança que ele viu ou conheceu, talvez; mas que
mudança? Será que se referia à própria morte, à própria vida que havia
acabado? Ele havia falado com alegria, exultante. Ele a havia encarregado de
esperar.
— O que mais tenho de fazer? — perguntou Tenar a si mesma, varrendo
o chão da casa dele. — O que mais já fiz? — E conversando com a
lembrança que guardava de Aihal: — Devo esperar aqui, na sua casa?
— Sim — respondeu Aihal, o Silencioso, silenciosamente, sorrindo.
Então ela varreu a casa, limpou a lareira e arejou os colchões. Jogou fora
algumas louças lascadas e uma panela furada, mas as manuseou com
delicadeza. Chegou a recostar a face em um prato rachado enquanto o
levava para a pilha, pois aquilo era evidência da doença do velho mago no
ano anterior. Ele fora austero, vivera com tanta simplicidade quanto um
pobre fazendeiro, porém, quando sua visão estava nítida e ele tinha forças,
jamais teria usado um prato quebrado nem deixado uma panela sem
conserto. Esses sinais de fraqueza a entristeciam, fazendo-a desejar ter
estado com ele para lhe prestar cuidados.
— Eu teria gostado disso — disse à lembrança de Aihal, mas não houve
resposta. Ele nunca teve ninguém além de si mesmo para cuidar de si. Será
que teria dito a ela: “Você tem coisas melhores a fazer?”. Tenar não sabia.
Ele permaneceu em silêncio. Mas algo ela fez certo, permanecer ali na casa
dele, agora ela não tinha dúvidas.
Panaché e seu marido, o velho Arroio Claro, que estavam na fazenda no
Vale Central há mais tempo do que ela, cuidariam dos rebanhos e do pomar;
o outro casal da fazenda, Turra e Mana, cuidaria da colheita. O restante das
coisas teria de cuidar de si mesmas por um tempo. As framboesas seriam
colhidas pelas crianças da vizinhança. Pior para ela, que adorava framboesas.
Ali em Overfell, com o vento marítimo sempre a soprar, era frio demais para
cultivar framboesas. Mas o pessegueiro pequeno e velho de Ogion, no
recanto da casa e protegido pela parede voltada para o sul, deu dezoito
pêssegos, e Therru os observou como um gato observa um rato até o dia em
que entrou e disse, com a sua voz rouca e pouco nítida:
— Dois dos pêssegos estão inteirinhos vermelhos e amarelos.
— Ah — compreendeu Tenar. Foram juntas até o pessegueiro e
colheram os dois primeiros pêssegos maduros e os comeram ali mesmo, com
casca. O sumo lhes escorreu pelo queixo. Elas lamberam os dedos.
— Posso plantar isso? — perguntou Therru, encarando o caroço
enrugado do seu pêssego.
— Pode. Aqui é um bom lugar, perto da velha árvore. Mas não muito
perto. Assim, as duas têm espaço para as raízes e os galhos.
A criança escolheu um lugar e abriu uma pequena cova. Colocou o
caroço ali e o cobriu. Tenar a observou. Nos poucos dias desde que moravam
ali, Therru já havia mudado, ela pensou. Ainda era impassível, sem raiva, sem
alegria; contudo, desde que estavam ali, o constante estado de alerta dela, a
imobilidade, haviam cedido quase de modo imperceptível. Ela havia
desejado os pêssegos. Ela tinha pensado em plantar o caroço, em aumentar o
número de pêssegos do mundo. Na Fazenda do Carvalho ela só não temia
duas pessoas: Tenar e Cotovia; mas ali se apegou com bastante facilidade a
Érica, a pastora de cabras de Re Albi, uma jovem insensata de vinte anos,
voz berrante, gentil, que tratava a criança como se fosse mais uma cabra, um
filhote fraco. Estava tudo bem; e com tia Musgo também estava bem, apesar
de seu cheiro.
Quando Tenar morou pela primeira vez em Re Albi, vinte e cinco anos
antes, Musgo não era uma bruxa velha, e sim jovem. Ela abaixava a cabeça,
fazia reverências e sorria para “a jovem senhora”, “a Senhora Branca”, a
protegida e aprendiz de Ogion, sem nunca lhe dirigir a palavra, mas sempre
com o máximo respeito. Tenar sentia que aquele respeito era falso, uma
máscara para a inveja, a aversão e a desconfiança que lhe eram muito
familiares, vindas de mulheres em relação às quais ela fora colocada em
posição de superioridade, mulheres que viam a si mesmas como comuns e a
ela como rara, como privilegiada. Sacerdotisa das Tumbas de Atuan ou
aprendiz estrangeira do Mago de Gont, ela foi deixada de lado, colocada
acima. Os homens lhe deram poder, os homens compartilharam seu poder
com ela. As mulheres a viam de fora, às vezes com rivalidade, em geral com
um sinal de zombaria.
Tenar se sentiu descartada, excluída. Havia escapado dos Poderes das
tumbas do deserto, e depois ela abandonou os poderes de aprendizado e
habilidade que lhe foram oferecidos por seu guardião, Ogion. Deu as costas
para tudo aquilo, seguiu para o outro lado, outro espaço, onde as mulheres
viviam, para ser uma delas. Uma esposa, uma esposa de fazendeiro, uma
mãe, uma dona de casa, assumindo o poder para o qual uma mulher nascia, a
autoridade que lhe foi atribuída pelos arranjos da humanidade.
Lá, no Vale Central, a esposa de Pederneira, Goha, de modo geral, foi
bem recebida entre as mulheres; uma estrangeira, é verdade, de pele branca e
fala um tanto estranha, mas notável administradora do lar, excelente
fiandeira, com filhos bem-comportados, saudáveis, e uma fazenda próspera:
respeitável. Para os homens, ela era a mulher de Pederneira, fazendo o que
uma mulher deve fazer: dormir, procriar, assar, cozinhar, limpar, fiar, costurar,
servir. Uma boa mulher. Aprovaram-na. Pederneira se deu bem, afinal de
contas, diziam. Imagine como é uma mulher branca, todinha branca, diziam
os olhos deles, observando-a, até que ela envelheceu e eles não a viram mais.
Ali, naquele momento, tudo estava mudado, não havia nada disso.
Enquanto ela e Musgo velavam Ogion juntas, a bruxa deixou evidente que
seria sua amiga, seguidora, serva, fosse lá o que Tenar quisesse que ela fosse.
Tenar não tinha certeza quanto ao que queria que tia Musgo fosse;
considerava-a imprevisível, pouco confiável, incompreensível, fervorosa,
ignorante, astuta e suja. Porém, Musgo se dava bem com a criança
queimada. Talvez fosse Musgo quem estivesse operando aquela mudança,
aquela ligeira serenidade, em Therru. Com ela, Therru se comportava como
com todas as outras pessoas — inexpressiva, indiferente, dócil como algo
inanimado, como uma pedra, é dócil. Mas a velha a perseguia, oferecendo-
lhe docinhos e pequenos tesouros, subornando-a, persuadindo-a, adulando-
a.
— Venha com a tia Musgo agora, minha querida! Venha, e tia Musgo vai
mostrar a coisa mais bonita que você já viu…
O nariz de Musgo se inclinava sobre suas mandíbulas desdentadas e seus
lábios finos; havia uma verruga em sua bochecha, do tamanho de um caroço
de cereja; o cabelo era um emaranhado negro-acinzentado de nós
encantados e mechas; e ela tinha um cheiro tão forte, abrangente, profundo
e complexo quanto o cheiro da toca de uma raposa. “Venha para a floresta
comigo, minha querida!”, diziam as velhas bruxas nas fábulas contadas às
crianças de Gont. “Venha comigo e vou mostrar para você uma coisa tão
linda!” Então a bruxa trancava a criança no forno, assava-a e a comia, ou a
jogava em seu poço, onde ela pulava e coaxava tristemente para sempre, ou
ainda a colocava para dormir por cem anos dentro uma grande pedra, até
que o Filho do Rei, o Príncipe Encantado, viesse para quebrar a pedra com
uma palavra, acordar a donzela com um beijo e matar a bruxa malvada…
— Venha comigo, minha querida!
Ela levava a criança para o campo e lhe mostrava um ninho de cotovia
no feno verde, ou iam para os pântanos a fim de colher cânhamo branco,
hortelã selvagem e mirtilos. Não teve de trancar a criança no forno,
transformá-la em um monstro ou prendê-la em pedra. Isso tudo já havia
sido feito.
Ela era gentil com Therru, mas era uma gentileza cheia de adulação e,
quando estavam juntas, parecia conversar demais com a criança. Tenar não
sabia o que Musgo lhe contava ou ensinava, se deveria deixar a bruxa encher
a cabeça da criança. “Fraco como magia de mulher, perverso como magia de
mulher”, ela já ouvira isso centenas de vezes; e, na verdade, ela tinha visto
que a bruxaria de mulheres como Musgo e Hera quase sempre era fraca em
sentido e às vezes perversa na intenção ou devido à ignorância. As bruxas de
aldeia, por mais que conhecessem muitos feitiços e encantos e algumas das
grandes canções, nunca foram treinadas nas Artes Elevadas nem nos
princípios da magia. Nenhuma mulher foi treinada assim. A feitiçaria era
trabalho de homem, habilidade de um homem; a magia era feita por
homens. Nunca houve uma mulher maga. Embora algumas poucas se
autodenominassem feiticeiras ou ocultistas, o poder delas não fora treinado,
era força sem arte ou conhecimento, meio frívolo, meio perigoso.
A bruxa comum de aldeia, como Musgo, vivia de algumas palavras da
Língua Verdadeira transmitidas como grandes tesouros por bruxas mais
velhas ou compradas a alto custo de ocultistas, e também de um suprimento
de feitiços simples de descoberta e reparo, rituais insignificantes, criação de
enigmas e falas incoerentes, um sólido treinamento experiencial em paridela,
alinhamento de ossos e cura de doenças animais e humanas, um bom
conhecimento de combinação de ervas com uma confusão de superstições
— tudo isso construído com base em algum dom inato que ela pudesse ter
para curar, cantar, se metamorfosear ou lançar feitiços. Essa mistura pode ser
boa ou ruim. Algumas bruxas eram mulheres ferozes e amargas, prontas para
fazer mal e desconhecedoras de qualquer motivo para não o fazer. A maioria
eram parteiras e curandeiras com algumas poções do amor, amuletos de
fertilidade e feitiços para a potência, além de uma boa dose de cinismo
silencioso quanto a eles. Algumas, possuindo sabedoria mesmo sem
instrução, usavam seu dom puramente para o bem, embora não pudessem
dizer, assim como qualquer aprendiz de feiticeiro poderia, a razão para fazê-
lo, nem tagarelar sobre a Harmonia e o Caminho do Poder para justificar
sua ação ou abstenção.
— Sigo meu coração — dissera uma dessas mulheres a Tenar quando ela
era protegida e aprendiz de Ogion. — O Senhor Ogion é um grande mago.
Ele honra você ao ensiná-la. Mas observe e perceba, criança, se tudo o que
ele ensinou para você não foi, afinal de contas, a seguir seu coração.
Já naquela época, Tenar havia pensado que a sábia mulher estava certa,
mas não completamente; faltava algo. E ela ainda pensava assim.
Agora, ao observar Musgo com Therru, ela achava que a bruxa seguia seu
coração, mas era um coração sombrio, selvagem e estranho, como um corvo
seguindo o próprio caminho ao cuidar das próprias missões. Ela achava que
Musgo poderia ter se aproximado de Therru não apenas por gentileza, mas
pela dor de Therru, pelo mal que lhe fizeram: pela violência, pelo fogo.
Nada do que Therru fazia ou dizia, no entanto, demonstrava que estava
aprendendo alguma coisa com tia Musgo, exceto o lugar em que a cotovia
fazia ninho, onde os mirtilos cresciam e como jogar cama de gato com uma
mão só. A mão direita de Therru fora tão consumida pelo fogo que se tornou
uma espécie de clava, cujo polegar só podia ser usado como pinça, tal qual
uma garra de um caranguejo. Mas tia Musgo conhecia um incrível conjunto
de camas de gato para quatro dedos e um polegar e de rimas que
combinavam com os números:

Mexe, mexe, tudo é brasa!


Queima, queima, tudo é cinza!
Venha, venha, ó dragão!
E o barbante formaria quatro triângulos que se tornavam um
quadrado… Therru nunca cantava em voz alta, mas Tenar a ouvia murmurar
o canto enquanto fazia as figuras sozinha, sentada à soleira da porta da casa
do mago.
E, pensou Tenar, que vínculo a ligava à criança, para além da piedade,
para além do mero dever para com os desamparados? Cotovia ficaria com
ela caso Tenar não a tivesse levado. Mas Tenar a levara sem nunca se
perguntar por quê. Estaria ela seguindo o seu coração? Ogion não
perguntou nada sobre a criança, mas disse:
— Eles vão temê-la.
E Tenar havia respondido:
— Já a temem. — Era verdade. Talvez ela mesma temesse a criança,
assim como temia a crueldade, o estupro e o fogo. Será que era o medo o
vínculo que a segurava?
— Goha — chamou Therru, sentada em cima dos calcanhares sob o
pessegueiro, olhando para o lugar na terra dura do verão onde plantara o
caroço de pêssego —, o que são dragões?
— Criaturas enormes — descreveu Tenar —, parecidas com lagartos,
mas mais compridas do que um navio… Maiores do que uma casa. Com
asas, como os pássaros. Eles soltam fogo.
— Eles vêm aqui?
— Não — respondeu Tenar.
Therru não perguntou mais nada.
— Tia Musgo andou falando com você sobre dragões?
Therru balançou a cabeça.
— Você falou — respondeu a pequena.
— Ah! — exclamou Tenar, e em seguida: — O pêssego que você plantou
precisará de água para crescer. Uma vez por dia, até a chuva chegar.
Therru se levantou e saltitou até o canto da casa em direção ao poço.
Suas pernas e pés estavam perfeitos, ilesos. Tenar gostava de vê-la caminhar
ou correr, com os pezinhos escuros, empoeirados e delicados na terra. Ela
voltou com o regador de Ogion, carregando-o com esforço, e derrubou uma
pequena enxurrada na nova planta.
— Então você se lembra da história de quando as pessoas e os dragões
eram todos iguais… Ela contava como os humanos vieram para cá, para o
leste, mas todos os dragões ficaram nas ilhas ocidentais. Muito, muito longe.
Therru assentiu. Ela não parecia prestar atenção, mas quando Tenar,
pronunciando “ilhas ocidentais”, apontou para o mar, Therru virou o rosto
para o horizonte alto e brilhante, avistado entre o amontoado de pés de
feijão e o galpão de ordenha.
Uma cabra apareceu no telhado do galpão de ordenha e se posicionou de
perfil para as duas, com a cabeça equilibrada, em uma postura nobre;
aparentemente, considerava-se uma cabra montesa.
— Tetê se soltou de novo — comentou Tenar.
— Béééé! Béééé! — Era Therru, imitando Érica chamando as cabras; e a
própria Érica apareceu perto da cerca de feijão, gritando “Béééé!” para a
cabra, que a ignorou, analisando atenta os feijões.
Tenar deixou as três brincando de pega-pega. Caminhou, afastando-se
do canteiro de feijão, em direção à borda do penhasco ao longo dele. A casa
de Ogion ficava isolada da aldeia e mais perto do que qualquer outra casa da
borda de Overfell, que ali era uma encosta íngreme, coberta de grama e
interrompida por saliências e afloramentos rochosos, onde as cabras podiam
pastar. À medida que se ia para o norte, a queda tornava-se mais e mais
acentuada, até começar a cair abruptamente; no caminho, a rocha de um
grande ressalto aflorava do solo, até que, a cerca de um quilômetro e meio ao
norte da aldeia, Overfell se estreitava com a formação de uma plataforma de
arenito avermelhado pendurada acima do mar, erodida na base, mais de
seiscentos metros abaixo.
Nada crescia naquela extremidade de Overfell a não ser líquenes,
arbustinhos e, em dado ponto ou outro, uma margarida azul, atrofiada pelo
vento, como um botão caído na pedra áspera e em ruínas. Penhasco adentro,
ao norte e ao leste, acima de uma estreita faixa de pântano, o lado escuro e
gigantesco de Gont se erguia coberto de árvores quase até o topo. O
penhasco repousava tão alto acima da baía que era preciso olhar para baixo a
fim de ver suas margens externas e as indistintas planícies de Essary. Além
dali, em todo o sul e o oeste, não havia nada além de céu acima do mar.
Tenar gostava de ir para lá nos anos que morou em Re Albi. Ogion
adorava as florestas, mas ela, que vivera em um deserto onde as únicas
árvores em um raio de 160 quilômetros ficavam em um pomar emaranhado
de pêssegos e maçãs, regado à mão nos verões intermináveis, onde não
crescia nada verde, úmido e comum, onde não havia nada além de uma
montanha, uma grande planície e o céu… ela gostava mais da beira do
penhasco do que da floresta no entorno. Gostava de não ter nada acima da
cabeça.
Dos líquenes, dos arbustinhos acinzentados e das margaridas sem caule
ela também gostava; eram familiares. Tenar se sentou na rocha a poucos
metros da borda e fitou o mar, como costumava fazer. O sol estava quente,
mas o vento incessante esfriava o suor de seu rosto e seus braços. Ela se
reclinou, apoiada nas mãos, e não pensou em coisa alguma: sol e vento, céu e
mar a preencheram, tornando-a transparente ao sol, ao vento, ao céu, ao mar.
Mas a mão esquerda recordou-a de sua existência, e ela olhou em volta para
ver o que estava arranhando a base da mão. Era um pequeno cardo,
encolhido em uma fenda no arenito, mal expondo os seus espinhos incolores
à luz e ao vento. Balançava, rígido, enquanto o vento soprava, resistente ao
vento, enraizado na rocha. A mulher o observou por um longo tempo.
Quando contemplou o mar outra vez, Tenar viu, no azul sob a névoa azul
onde o mar encontrava o céu, o contorno de uma ilha: Oranea, a mais
oriental das Ilhas Centrais.
Ela contemplou aquela forma onírica e tênue, sonhando, até que um
pássaro que sobrevoava o mar vindo do oeste atraiu seu olhar. Não era uma
gaivota, pois seu voo era contínuo, e alto demais para ser o de um pelicano.
Seria um ganso selvagem ou um albatroz, o grande e raro viajante do mar
aberto, surgindo entre as ilhas? Ela observou o lento movimento das asas,
distante e alto, no céu radiante. Então se levantou, recuando um pouco da
beira do penhasco, e permaneceu imóvel, com o coração batendo forte e a
respiração presa na garganta, observando o corpo sinuoso e escuro como
ferro suportado por longas asas membranosas, vermelhas como fogo, com as
garras estendidas e espirais de fumaça desvanecendo no ar por onde passava.
Voou direto para Gont, direto para Overfell, direto para ela. Tenar viu a
faísca das escamas de cor preto-ferrugem e o reluzir do olho comprido. Viu
a língua vermelha que era uma língua de fogo. O mau cheiro de queimado
encheu o ar quando o dragão, com um rugido sibilante, virando-se para
pousar na plataforma rochosa, exalou um suspiro de fogo.
Os pés dele se chocaram contra a rocha. A cauda espinhosa trepidou,
contorcendo-se, e as asas, escarlates nos pontos em que a cintilação do sol as
atravessava, agitaram-se e farfalharam até se dobrarem junto aos flancos
cobertos de escamas. A cabeça virou lentamente. O dragão olhou para a
mulher que estava ali, ao alcance das lâminas de foice que eram suas garras.
A mulher olhou para o dragão. Ela sentiu o calor daquele corpo.
Haviam-na prevenido que os homens não devem encarar um dragão nos
olhos, mas aquilo não significava nada para ela. Ele a mirou fixamente com
olhos amarelos sob carapaças blindadas que se estendiam acima do nariz
estreito de narinas dilatadas e fumegantes. E os olhos escuros de Tenar,
pequenos em um seu rosto delicado, miraram-no fixamente.
Nenhum deles falou.
O dragão virou um pouco a cabeça para que a mulher não fosse
consumida quando ele falasse, ou talvez para rir, um grande “Haha!” de
chama alaranjada.
Então ele abaixou o corpo e falou, mas não com ela.
— Ahivaraihe, Ged — disse, com bastante brandura e fumaça, em um
lampejo da língua ardente; em seguida, abaixou a cabeça.
Tenar então percebeu o homem montado nas costas do dragão. Estava
sentado na fenda entre os gumes de dois dos espinhos altos que subiam em
fileira ao longo da coluna do dragão, logo atrás do pescoço e acima dos
ombros, onde as asas se enraizavam. As mãos do homem agarravam as
escamas preto-ferrugem do pescoço do dragão e a cabeça dele se apoiava na
base do gume do espinho, como se dormisse.
— Ahi eheraihe, Ged! — disse o dragão, um pouco mais alto; sua boca
comprida parecia sorrir sempre, exibindo dentes tão longos quanto o
antebraço de Tenar, amarelados, com pontas brancas e afiadas.
O homem não se mexeu.
O dragão virou a longa cabeça e encarou Tenar novamente.
— Sobriost — disse, em um sussurro que soou como aço deslizando sobre
aço.
Aquela palavra da Língua da Criação ela conhecia. Ogion ensinou tudo
o que Tenar viria a aprender dessa língua. “Suba”, o dragão disse, “monte!”. E
ela viu o caminho para montar. O pé com garras, o cotovelo torto, a
articulação do ombro, a primeira musculatura da asa: quatro passos.
— Haha! — disse ela também, mas não estava rindo, apenas tentando
recuperar o fôlego, que ficara preso na garganta. Tenar abaixou a cabeça por
um momento para deter a vertigem. Em seguida, avançou, passando pelas
garras, pela longa boca sem lábios e pelo longo olho amarelo, montando no
ombro do dragão. Segurou o braço do homem. Ele não se moveu, mas
certamente não estava morto, pois o dragão o levara até ali e falara com ele.
— Vamos lá — disse; e então, ao observar-lhe o rosto enquanto soltava a
mão esquerda dele: — Vamos, Ged. Vamos…
O homem ergueu um pouco a cabeça. Os olhos estavam abertos, mas
sem enxergar. Ela teve de escalar ao seu redor, arranhando as pernas na pele
quente e escamada do dragão, e soltar a mão direita do homem de uma
saliência córnea na base do gume do espinho. Fez com que ele segurasse os
braços dela e assim pôde carregá-lo e arrastá-lo por aqueles quatro degraus
estranhos até a terra.
O homem despertou o suficiente para tentar segurá-la, mas não tinha
força. Estendeu-se do dragão até a rocha como um saco descarregado e ali
ficou.
O dragão virou a cabeça imensa e, em um gesto completamente
animalesco, fungou e farejou o corpo do homem.
Ele ergueu a cabeça e as asas também subiram um pouco em um som
profundo e metálico. Afastou os pés de Ged, aproximando-se da beira do
penhasco. Virando a cabeça no pescoço espinhoso, olhou mais uma vez
diretamente para Tenar e, em uma voz que era como o rugido seco do fogo
de uma fornalha, falou:
— Thesse Kalessin.
O vento do mar assobiava nas asas entreabertas do dragão.
— Thesse Tenar — anunciou a mulher com uma voz nítida e trêmula.
O dragão desviou o olhar, para oeste, por cima do mar. Contorceu o
corpo comprido com o tinido e o estalo das escamas de ferro, depois abriu
abruptamente as asas, agachou-se e se lançou direto para fora do penhasco
ao vento. Ao passar, a cauda arrastada deixou um rastro no arenito. As asas
vermelhas desceram, subiram e desceram, e Kalessin logo estava longe da
terra, voando em linha reta, voando para oeste.
Tenar o observou até que ficasse do tamanho de um ganso selvagem ou
de uma gaivota. O ar estava frio. Enquanto o dragão estava ali, o ar estava
quente, quente como uma fornalha do fogo interno do dragão. Tenar tremia.
Ela se sentou na rocha ao lado de Ged e começou a chorar. Escondeu o
rosto entre os braços e chorou alto.
— O que posso fazer? — lamentava ela. — O que eu posso fazer agora?
No mesmo instante, enxugou os olhos e o nariz na manga, prendeu o
cabelo para trás com as duas mãos e se voltou para o homem deitado ao seu
lado. Ele estava imóvel, tão acomodado na rocha nua como se pudesse
repousar ali para sempre.
Tenar suspirou. Não havia nada que ela pudesse fazer, mas havia sempre
outra coisa por fazer.
Ela não podia carregá-lo. Teria de buscar ajuda. Isso significava deixá-lo
sozinho. Mas ela achava que ele estava muito perto da beira do precipício.
Se ele tentasse se levantar, fraco e zonzo como estaria, poderia cair. Como
conseguiria movê-lo? O homem não despertou nem quando ela falou nem
quando mexeu nele. Tenar o segurou por baixo dos ombros e tentou puxá-lo.
Para sua surpresa, conseguiu; para um peso morto, ele não pesava muito.
Resoluta, ela o arrastou por três ou quatro metros para o interior, afastando-
o da plataforma rochosa nua até um pedaço de terra onde uma touceira dava
a ilusão de abrigo. Ali, teve de deixá-lo. Tenar não conseguia correr porque
suas pernas tremiam e sua respiração ainda era entrecortada por soluços.
Caminhou o mais depressa possível até a casa de Ogion, chamando Érica,
Musgo e Therru ao se aproximar.
A criança veio do galpão de ordenha e, como era seu costume, obedeceu
ao chamado de Tenar, mas não se adiantou para recebê-la ou para ser
recebida.
— Therru, corra até a cidade e peça a qualquer pessoa que venha,
qualquer pessoa forte, há um homem ferido no penhasco.
Therru continuou ali. Nunca fora sozinha à aldeia. Ficou congelada entre
a obediência e o medo. Tenar percebeu e perguntou:
— Tia Musgo está aqui? E Érica? Nós três conseguimos carregá-lo. Só
que… Depressa, depressa, Therru! — Ela sentia que, se deixasse Ged lá,
desprotegido, ele certamente morreria. Teria desaparecido quando ela
voltasse… Teria morrido, caído, sido levado por dragões. Tudo poderia
acontecer. Ela deveria se apressar antes que isso acontecesse. Pederneira
morrera nos campos por causa de um derrame e Tenar não estava com ele.
Ele tinha morrido sozinho. O pastor o encontrara caído perto do portão.
Ogion tinha morrido e ela não pôde evitar que acontecesse, não pôde dar-
lhe fôlego. Ged voltara para casa à procura de morrer e era o fim de tudo,
não havia mais nada, nada a ser feito, mas ela tinha de fazer algo. —
Depressa, Therru! Traga alguém!
Ela mesma começou a caminhar, trêmula, em direção à aldeia, mas viu a
velha Musgo correndo pelo pasto, caminhando pesadamente com seu grosso
bastão de espinheiro.
— Você me chamou, minha querida?
A presença de Musgo foi um alívio imediato. Tenar começou a recuperar
o fôlego e a capacidade de pensar. Musgo não perdeu tempo com perguntas,
mas ao ouvir que havia um homem ferido que deveria ser removido, pegou a
pesada capa de lona do colchão que Tenar estava arejando e a arrastou até a
borda de Overfell. Ela e Tenar rolaram Ged para cima da capa, e estavam
arrastando com dificuldade esse veículo para casa quando Érica chegou
correndo, seguida por Therru e Tetê. Érica era jovem e forte, e, com sua
ajuda, elas conseguiram erguer a lona como uma liteira e levar o homem
para casa.
Tenar e Therru dormiam na alcova, na parede oeste do único e comprido
cômodo. Ali ao fundo havia apenas o catre de Ogion, agora coberto com um
pesado lençol de linho. Deitaram o homem ali. Tenar posicionou o cobertor
de Ogion sobre ele, enquanto Musgo murmurava encantos ao redor da cama
e Érica e Therru observavam, paradas.
— Vamos deixá-lo em paz agora — determinou Tenar, conduzindo todas
para a frente da casa.
— Quem é ele? — perguntou Érica.
— O que ele estava fazendo em Overfell? — perguntou Musgo.
— Você o conhece, Musgo. Ele já foi aprendiz de Ogion… de Aihal.
A bruxa sacudiu a cabeça em concordância.
— Aquele era o rapaz de Dez Amieiros, minha querida — disse ela. —
Aquele que é Arquimago em Roke agora.
Tenar assentiu.
— Não, minha querida — considerou Musgo. — Parece com ele. Mas
não é ele. Este homem não é um mago. Nem mesmo um ocultista.
Érica olhava para uma e para outra, entretida. Ela não entendia a maioria
das coisas que as pessoas falavam, mas gostava de ouvi-las falando.
— Mas eu o conheço, Musgo. É Gavião. — Dizer o nome usual de Ged
liberou certa ternura nela, de tal maneira que, pela primeira vez, pensou e
sentiu que era ele de fato e que todos os anos desde o primeiro dia que o viu
constituíam o vínculo entre ambos. Ela vislumbrou uma luz, como uma
estrela na escuridão, subterrânea, há muito tempo, e o rosto dele sob a luz.
— Eu o conheço, Musgo. — Sorriu e depois ampliou o sorriso. — Ele é o
primeiro homem que vi — explicou.
Musgo resmungou e se inquietou. Ela não gostava de contradizer a
“Senhora Goha”, mas estava completamente cética.
— Existem truques, disfarces, transformações, metamorfoses — alertou a
bruxa. — É melhor ter cuidado, minha querida. Como ele chegou ao local
onde você o encontrou, lá fora? Alguém o viu passar pela aldeia?
— Nenhuma de vocês… viu…? — As três a encararam. Ela tentou
completar com “o dragão”, mas não conseguiu. Seus lábios e sua língua não
formavam a palavra. Mas uma palavra se formou nelas, formando-se em sua
boca e sua respiração. — Kalessin — disse.
Therru fixou os olhos nela. Uma onda de ardor, de calor, parecia fluir da
criança como se estivesse com febre. Ela não disse nada, mas moveu os
lábios como se repetisse o nome, e aquele calor febril queimou ao seu redor.
— Truques! — falou Musgo. — Agora que nosso mago se foi, todos os
tipos de trapaceiro vão se aproximar.
— Fui de Atuan para Havnor, de Havnor para Gont, com Gavião, em
um barco aberto — afirmou Tenar, seca. — Você viu quando ele me trouxe
aqui, Musgo. Ele não era arquimago na época. Mas ele era o mesmo, o
mesmo homem. Existem outras cicatrizes como essas?
Confrontada, a mulher mais velha ficou imóvel, recompondo-se. Olhou
para Therru.
— Não — respondeu. — Mas…
— Acha que eu não o reconheceria?
Musgo contorceu a boca, franziu a testa e esfregou um polegar no outro,
encarando as próprias mãos.
— Existem criaturas más no mundo, senhora — explicou ela. — Uma
criatura que assume a forma e o corpo de um homem, mas a alma desse
homem desapareceu… Devorada…
— O gebbeth?
Musgo se encolheu diante da palavra dita abertamente. Ela assentiu.
— Dizem que, certa vez, o mago Gavião veio para cá, muito tempo atrás,
antes de você vir com ele, e uma criatura da escuridão veio com ele… atrás
dele. Talvez ainda venha. Talvez…
— O dragão que o trouxe aqui — contou Tenar — o chamou pelo nome
verdadeiro. E eu conheço esse nome. — A indignação diante da suspeita
obstinada da bruxa ecoou em sua voz.
Musgo calou-se. Seu silêncio era um argumento melhor do que suas
palavras.
— Talvez a sombra em cima dele seja a morte — cedeu Tenar. — Talvez
ele esteja morrendo. Não sei. Se Ogion…
Ao pensar em Ogion, Tenar voltou a chorar, refletindo como Ged
chegara tarde demais. Engoliu o choro e foi até a caixa de lenha a fim de
acender a lareira. Entregou a chaleira a Therru, para que ela a enchesse,
tocando o rosto da menina ao falar com ela. As cicatrizes suturadas e
grosseiras eram quentes ao toque, mas a criança não estava com febre. Tenar
ajoelhou-se para acender o fogo. Alguém naquele belo domicílio — uma
bruxa, uma viúva, uma mutilada e uma inepta — tinha de fazer o que
precisava ser feito, sem assustar a criança com choradeiras. Mas o dragão se
fora, será que nada mais estava por vir além da morte?
capítulo 5

para o melhor

E le jazia como um morto, mas não estava morto. Onde estivera? O que
enfrentara? Naquela noite, à luz da fogueira, Tenar lhe despiu as roupas
manchadas, gastas e endurecidas pelo suor. Ela o banhou e o deixou deitado,
nu, entre o lençol de linho e o cobertor macio e pesado de lã de cabra.
Embora fosse um homem baixo e esguio, ele havia sido robusto, musculoso;
agora estava magro como se estivesse esgotado até os ossos, debilitado,
frágil. Até as cicatrizes que lhe sulcavam o ombro e o lado esquerdo do
rosto, da têmpora ao queixo, pareciam atenuadas, prateadas. E o cabelo dele
estava grisalho.
Estou cansada de chorar mortes, pensou Tenar. Cansada de chorar mortes,
cansada do luto. Não vou me enlutar por ele! Ele não veio até mim montando o
dragão? Certa vez, eu quis matá-lo, continuou a pensar. Agora, se eu puder, vou
fazê-lo viver. Ela o encarou com olhos desafiadores e impiedosos.
— Quem de nós salvou o outro do Labirinto, Ged?
Sem ouvir e imóvel, ele dormia. Tenar estava muito cansada. Banhou-se
na água que aquecera para lavá-lo e deitou-se na cama, ao lado do silêncio
leve, quente e sedoso que era Therru adormecida. Tenar dormiu e seu sono
se estendeu para um espaço amplo, com um vento tempestuoso e uma névoa
de tons rosados e dourados. Ela voava. Sua voz clamava:
— Kalessin!
Uma voz respondeu, chamando dos abismos de luz.

***

Quando Tenar acordou, os pássaros cantavam nos campos e no telhado. Ao


se sentar, deparou-se com a luz da manhã que atravessava o vidro rugoso da
janela inferior voltada para o oeste. Havia algo nela, algum grão ou raio de
luz novo, pequeno demais para ser visto ou dar o que pensar. Therru ainda
dormia. Tenar se sentou ao lado dela, olhando pela janelinha para as nuvens
e para a luz do sol, pensando em sua filha Mattiana, na tentativa de se
lembrar de Mattiana quando bebê. Era só um vislumbre tênue, que
desapareceu quando ela deu atenção a ele: o corpinho gorducho
estremecendo em uma risada, o cabelo fino e esvoaçante… E o segundo
bebê, Faísca, foi batizado como uma brincadeira, porque era um rebento de
Pederneira. Ela não sabia o nome verdadeiro dele. Foi uma criança tão
doente quanto Mattiana foi uma criança saudável. Nascido prematuro e
muito pequeno, quase morreu de crupe aos dois meses, e durante os dois
anos seguintes criá-lo foi como criar um filhote de pardal: nunca se sabia se
ele estaria vivo pela manhã. Mas ele aguentou, a faisquinha não se apagava.
E, ao crescer, tornou-se um menino rijo, infinitamente ativo e determinado;
inútil na fazenda; sem qualquer paciência com animais, plantas, pessoas; só
usava palavras para o necessário, nunca por prazer, nem para dar nem para
receber amor e conhecimento.
Ogion fizera uma visita durante suas andanças quando Mattiana tinha
treze anos e Faísca, onze. Ogion, então, nomeou Mattiana nas nascentes do
Kaheda, no alto do vale; linda, ela caminhara pela água verde, a mulher-
criança, e ele lhe deu seu nome verdadeiro, Hayohe. Ele ficou um ou dois
dias na Fazenda do Carvalho e perguntou ao menino se queria passear um
pouco com ele pelas florestas. Faísca apenas sacudiu a cabeça.
— O que você faria se pudesse? — perguntou o mago.
E o menino disse o que nunca conseguira falar ao pai ou à mãe:
— Iria para o mar.
Então, três anos depois, Faia lhe deu seu nome verdadeiro, e ele
embarcou como marinheiro a bordo de um navio mercante que fazia
negócios de Valmouth a Oranea e ao Porto Norte de Havnor. De vez em
quando, ele visitava a fazenda, mas não com frequência e nunca por muito
tempo, embora, com a morte do pai, aquela propriedade passasse a ser sua.
Ele tinha a pele branca como a de Tenar, mas ficou alto como Pederneira,
com um rosto estreito. Não contou aos pais seu nome verdadeiro. Talvez
nunca houvesse alguém a quem o revelasse. Tenar não o via há três anos.
Talvez ele soubesse ou não da morte do pai. O rapaz mesmo poderia ter
morrido, se afogado, mas a mãe achava que não. Ele carregaria aquela faísca
pelas águas ao longo da vida, atravessando as tempestades.
Era o que parecia haver nela naquele momento: uma faísca; como a
certeza corporal de uma concepção; uma mudança, algo novo. O que era ela
não queria perguntar. Você não perguntou. Não pediu um nome verdadeiro. Ele
lhe foi dado ou não.
Tenar se levantou e se vestiu. Embora fosse cedo, estava quente, portanto
não acendeu nenhum fogo. Sentou-se à soleira da porta para beber um copo
de leite e observar a sombra da Montanha de Gont se aproximando do mar.
Havia tão pouco vento quanto possível naquela plataforma rochosa
fustigada pelo ar, e a brisa dava uma sensação de verão, suave e exuberante,
com o aroma dos prados. Havia uma doçura no ar, uma mudança.
— Tudo mudou! — sussurrara o velho moribundo, feliz. Colocando a
mão sobre a dela, dando-lhe o presente, o nome dele, revelando-o.
— Aihal! — sussurrou ela.
Como resposta, um casal de cabras baliu atrás do galpão de ordenha,
esperando que Érica chegasse.
— Méééé — disse uma.
E a outra, em som mais profundo, metálico:
— Máá! Máá!
“Confie em uma cabra”, costumava dizer Pederneira, “para estragar
qualquer coisa”. Pederneira, um pastor, não gostava de cabras. Mas Gavião
tinha sido pastor de cabras, ali do outro lado da montanha, quando menino.
Ela entrou. Encontrou Therru parada, contemplando o homem
adormecido. Colocou o braço em volta da criança e, embora Therru
normalmente se esquivasse ou fosse passiva a toques ou carinhos, desta vez
ela aceitou e talvez até tenha se recostado um pouco em Tenar.
Ged repousava no mesmo sono exausto e pesado. Seu rosto estava de
lado, expondo as quatro cicatrizes brancas que o marcavam.
— Ele se queimou? — sussurrou Therru.
Tenar não respondeu de imediato. Ela não sabia o que causara aquelas
cicatrizes. Ela havia perguntado a Ged muito tempo antes, na Sala Pintada
do Labirinto de Atuan, zombando: “Um dragão?”. E ele respondeu, sério:
“Não, não foi um dragão. Foi um dos parentes dos Inominados; mas
descobri o nome dele…”. Isso era tudo que ela sabia. Mas Tenar sabia o que
“se queimou” significava para a criança.
— Sim — disse ela.
Therru continuou a contemplá-lo. Ela inclinou a cabeça para usar o
único olho que enxergava, o que lhe fazia parecer um passarinho, um pardal
ou um tentilhão.
— Venha, tentilhão, passarinha, ele precisa dormir, você precisa de um
pêssego. Será que tem um pêssego maduro agora de manhã?
Therru saiu trotando para descobrir, e Tenar a acompanhou.
Ao comer o pêssego, a criança avaliou o lugar onde plantara o caroço da
fruta no dia anterior. Estava evidentemente desapontada porque nenhuma
árvore havia crescido ali, mas não se pronunciou.
— Regue — sugeriu Tenar.

***

Tia Musgo chegou no meio da manhã. Uma de suas habilidades como


bruxa-faz-tudo era produzir cestos utilizando o junco do Pântano de
Overfell, e Tenar pediu que ela lhe ensinasse a arte. Quando criança, em
Atuan, Tenar aprendera a aprender. Como forasteira, em Gont, ela
descobrira que as pessoas gostavam de ensinar. Ela tinha aprendido a ser
ensinada e, portanto, a ser aceita, a ter a sua condição de estrangeira
perdoada.
Ogion lhe havia ensinado o conhecimento dele, e Pederneira, depois,
ensinou o conhecimento que tinha. Era um hábito de vida de Tenar:
aprender. Parecia haver sempre muito a aprender, mais do que ela teria
acreditado quando era aprendiz de sacerdotisa ou pupila de um mago.
Os juncos estavam de molho e, naquela manhã, elas deveriam separá-los,
uma tarefa exigente, mas não complicada, que deixava muita atenção de
sobra.
— Tia — disse Tenar enquanto se sentavam na soleira da porta com a
tigela de juncos encharcados entre si e uma esteira à frente para colocar os
juncos separados —, como se sabe se um homem é feiticeiro ou não?
A resposta de Musgo foi tortuosa, começando com os aforismos e as
obscuridades habituais:
— O profundo reconhece o profundo — afirmou ela, profundamente. —
O que nasce falará. — E ela contou uma história sobre a formiga que pegou
uma pontinha de cabelo no chão de um palácio e correu para o formigueiro;
e à noite o abrigo brilhava no subsolo como uma estrela, pois o cabelo era da
cabeça do grande mago Brost. Mas apenas os sábios conseguiam ver o
formigueiro brilhante. Para olhos ordinários, tudo estava escuro.
— Então, é preciso treino — concluiu Tenar.
Talvez sim, talvez não: essa foi a essência da resposta misteriosa de
Musgo.
— Algumas pessoas nascem com esse dom — explicou. — Mesmo que
não saibam, ele está lá. Como o cabelo do mago no buraco no chão, ele vai
se iluminar.
— Sim — concordou Tenar. — Já vi isso. — Ela separava o junco e
voltava a separá-lo, de modo impecável, e colocava os talos na esteira. —
Como sabe, então, quando um homem não é um feiticeiro?
— Ele não está lá — respondeu Musgo —, ele não está lá, minha
querida. O poder. Agora, veja. Se eu tiver olhos na cabeça, posso ver que
você tem olhos, não posso? E se você for cega, vou ver isso. E se você só tem
um olho, como a pequena, ou se você tem três, eu vou ver, não é? Mas se não
tenho olho para ver, não vou saber que você tem até que me conte. Mas eu
sei. Eu vejo, eu sei. O terceiro olho!
Ela tocou a testa e deu uma risada alta e seca, como uma galinha
triunfante por causa de um ovo. Ela estava satisfeita por ter encontrado as
palavras para dizer o que queria dizer. Grande parte da sua obscuridade e
hipocrisia, Tenar tinha começado a perceber, era mera inépcia com palavras
e ideias. Ninguém jamais a ensinou a pensar de modo sequencial. Ninguém
jamais ouviu o que ela falava. Tudo o que se esperava, tudo o que se queria
dela, era confusão, mistério, resmungos. Ela era uma bruxa. Ela não tinha
nada a ver com clareza.
— Entendo — afirmou Tenar. — Então… talvez se trate de uma
pergunta que você não queira responder. Então, quando olha para uma
pessoa com seu terceiro olho, com seu poder, você vê o poder dela… ou não
vê?
— É mais um saber — explicou Musgo. — Ver é só jeito de falar. Não é
como ver você, ver esse junco, ver a montanha ali. É um saber. Sei o que
existe em você, e não existe na coitada da cabeça-oca da Érica. Sei o que
existe em um filho querido e não naquele outro. Sei… — Ela não conseguia
ir além disso. Resmungou e cuspiu. — Qualquer bruxa com algum valor
conhece outra bruxa! — declarou, enfim, de forma franca e impaciente.
— Vocês se reconhecem.
Musgo assentiu.
— É, é isso. Essa é a palavra. Reconhecer.
— E um feiticeiro reconheceria o seu poder, reconheceria você como
uma ocultista…
Mas Musgo estava rindo de maneira forçada para ela, um riso que era
uma caverna sombria de sorriso em uma teia de rugas.
— Minha querida — disse ela —, você está falando de um homem, um
homem da feitiçaria? O que um homem poderoso tem a ver com a gente?
— Mas Ogion…
— O Senhor Ogion era bom — respondeu Musgo, sem ironia.
Elas separaram os juncos em silêncio por algum tempo.
— Não vá cortar o dedão nessas coisas, minha querida — alertou Musgo.
— Ogion me ensinou. Como se eu não fosse menina. Como se eu fosse
aprendiz dele, como Gavião. Ele me ensinou a Língua da Criação, Musgo.
O que eu perguntava, ele me dizia.
— Não tinha outro igual a ele.
— Eu que não quis ser ensinada. Eu o abandonei. O que eu ia querer
com os livros dele? De que me serviriam? Eu queria viver, queria um
homem, queria minhas crianças, queria minha vida. — Ela separava os
juncos com cuidado e rapidez usando a unha. — E eu consegui —
acrescentou.
— Pegue com a mão direita, jogue fora com a esquerda — orientou a
bruxa. — Bom, minha querida senhora, quem pode saber? Quem pode
saber? Querer um homem me colocou em apuros terríveis mais de uma vez.
Mas querer me casar… Nunca! Não, não. Para mim, não.
— Por que não? — questionou Tenar.
Desconcertada, Musgo respondeu apenas:
— Ora essa, que homem se casaria com uma bruxa? — Então, com um
movimento de mandíbula de mastigação lateral, como uma ovelha
ruminando: — E que bruxa se casaria com um homem?
Elas separaram juncos.
— O que tem de errado com os homens? — perguntou Tenar, com
cautela.
Com a mesma cautela, baixando a voz, Musgo respondeu:
— Não sei, minha querida. Já pensei nisso. Várias vezes pensei nisso. O
que posso dizer é que é assim. Um homem está na própria pele, entende,
como uma noz na casca. — Ela ergueu os dedos compridos, curvados e
molhados, como se segurasse uma noz. — E essa casca é dura e forte, e está
toda cheia dele. Cheia do grande homem-carne, do homem-alma. E só isso.
Ele é tudo e não existe mais nada lá dentro.
Tenar ponderou um pouco e começou a perguntar, por fim:
— Mas se ele for um feiticeiro…
— Então, o poder dele é tudo, por dentro. O poder dele é ele mesmo,
entende? É assim. E isso é tudo. Quando o poder dele acaba, ele acaba. Fica
vazio. — Ela quebrou a noz invisível e jogou as cascas fora. — Nada.
— E uma mulher?
— Ah, veja, minha querida, uma mulher é uma criatura completamente
diferente. Quem sabe onde uma mulher começa e onde termina? Escute,
senhora, eu tenho raízes, tenho raízes mais profundas que esta ilha. Mais
profundas que o mar, mais antigas que a elevação das terras. Eu volto à
escuridão. — Os olhos de Musgo cintilavam com uma radiância estranha
nas bordas vermelhas, e sua voz era melodiosa como um instrumento. — Eu
volto para a escuridão! Antes da lua, eu existia. Ninguém sabe, ninguém
sabe, ninguém pode dizer o que sou, o que uma mulher é, uma mulher de
poder, o poder de uma mulher, mais profundo que as raízes das árvores, mais
profundo que as raízes das ilhas, mais antigo que a Criação, mais antigo que
a lua. Quem se atreve a fazer perguntas à escuridão? Quem vai perguntar à
escuridão o nome dela?
A velha balançava e cantava, perdida em seu encantamento; mas Tenar
ajustou a postura e separou um junco até a metade com a unha do polegar.
— Eu vou — disse ela. Separou outro junco. — Vivi bastante tempo na
escuridão — prosseguiu.

***

Ela olhava dentro da casa de quando em quando para ver se Gavião ainda
dormia. Naquele instante, ela fez isso. Quando voltou a se sentar com
Musgo, sem querer retornar à conversa que estavam tendo, porque a mulher
mais velha parecia circunspecta e mal-humorada, Tenar falou:
— Hoje de manhã, quando acordei, senti, ah, como se um vento novo
estivesse soprando. Uma mudança. Talvez só do clima. Você sentiu isso?
Mas Musgo não queria afirmar ou negar.
— Muitos ventos sopram aqui em Overfell, alguns bons, outros ruins.
Alguns trazem nuvens, alguns trazem bom tempo, e alguns trazem notícias
para quem é capaz de ouvi-las, mas quem não quer ouvir não consegue
ouvir. Quem sou eu para saber, uma velha sem o estudo da magia, sem o
estudo dos livros? Todo o meu estudo está na terra, na terra escura. Abaixo
dos pés deles, dos orgulhosos. Abaixo dos pés deles, dos senhores e magos
orgulhosos. Por que deveriam olhar para baixo, os estudados? O que sabe
uma bruxa velha?
Ela seria uma inimiga formidável, considerou Tenar, e era uma amiga
difícil.
— Tia — disse, pegando um junco —, cresci entre mulheres. Só
mulheres. Nas terras karginesas, no extremo leste, em Atuan. Fui tirada da
minha família ainda criança para ser criada como sacerdotisa em um lugar
no deserto. Não sei que nome tem, porque na nossa língua chamávamos só
assim, o lugar. O único lugar que eu conhecia. Havia soldados vigiando, mas
eles não podiam vir para dentro das muralhas. E nós não podíamos ir para
fora das muralhas. Só em grupo, todas mulheres e meninas, com eunucos
nos vigiando, mantendo os homens fora de vista.
— O que você disse?
— Eunucos? — Tenar usara a palavra karginesa sem pensar. — Homens
castrados — explicou.
A bruxa encarou e disse:
— Tsekh! — Fez o gesto para evitar o mal. Sugou os lábios.
Surpreendera-se com o próprio ressentimento.
— Uma dessas pessoas foi o que tive lá de mais parecido com uma
mãe… Mas, você entende, tia, nunca vi um homem até ser uma mulher
adulta. Eram só meninas e mulheres. Ainda assim, eu não sabia o que são as
mulheres, porque as mulheres eram tudo o que eu conhecia. Como os
homens que vivem entre homens, marinheiros, soldados e magos em
Roke… Eles sabem o que são os homens? Como podem saber se nunca
falam com uma mulher?
— Pegam e cortam eles como se fossem carneiros e bodes — perguntou
Musgo —, assim, de repente, com uma faca de castração?
O horror, o macabro e um lampejo de vingança tinham vencido tanto a
raiva quanto a razão. Musgo não queria abordar nenhum assunto além do
dos eunucos.
Tenar não podia lhe contar muita coisa. Ela percebeu que nunca havia
pensado sobre o tema. Quando era menina, em Atuan, havia homens
castrados; e um deles a adorava ternamente, e ela o adorava; e ela o matou
para fugir dele. Depois foi para o Arquipélago, onde não havia eunucos, e se
esqueceu deles, afundou-os na escuridão junto ao corpo de Manan.
— Acho — disse ela, tentando satisfazer a ânsia de Musgo por detalhes
— que pegam os meninos e… — Mas ela se deteve. As mãos dela pararam
de se mover. — Assim como foi com Therru — continuou ela depois de
uma longa pausa. — Para que serve uma criança? Para que serve? Para ser
usada. Ser estuprada, ser castrada… Escute, Musgo. Quando eu morava nos
lugares escuros, era isso o que faziam lá. Quando cheguei aqui, achei que iria
entrar na luz. Aprendi as palavras verdadeiras. Tive meu marido, meus
filhos, vivi bem. Em plena luz do dia. E em plena luz do dia eles fizeram
aquilo… com a criança. Nas campinas à beira do rio. O mesmo rio que surge
na nascente onde Ogion nomeou minha filha. À luz do sol. Estou tentando
descobrir onde posso viver, Musgo. Entende o que quero dizer? O que estou
tentando dizer?
— Ora, ora — falou a mulher mais velha. Depois de algum tempo: —
Minha querida, já existe sofrimento o bastante no mundo sem procurar por
ele. — Vendo as mãos de Tenar tremerem enquanto ela tentava separar um
junco resistente, Musgo repetiu: — Não vá cortar o dedão nessas coisas,
minha querida.

***

Somente no dia seguinte Ged acordou. Musgo, que era muito hábil, embora
terrivelmente anti-higiênica como enfermeira, conseguira lhe dar um pouco
de caldo de carne com a colher.
— Morrendo de fome — disse ela — e seco de sede. Onde quer que ele
estivesse, lá não se comia e bebia muito. — E depois de avaliá-lo de novo: —
Já deveria ter partido há muito tempo. Eles ficam fracos, entende, não
conseguem nem beber, apesar de ser tudo aquilo de que precisam. Conheço
um homem grande e forte que morreu assim. Em poucos dias, reduzido a
uma sombra, igualzinho. — Mas, com uma paciência implacável, Musgo lhe
deu algumas colheradas de sua mistura de carne e ervas. — Vamos ver agora
— falou. — Já é tarde demais, acho. Ele está partindo. — A bruxa falava
sem lamentar, talvez com satisfação. O homem não era nada para ela; uma
morte era um acontecimento. Talvez ela pudesse enterrar esse mago. Eles
não a deixaram enterrar o velho.
No dia seguinte, quando Tenar estava passando unguento em suas mãos,
ele acordou. Deve ter ficado montado por muito tempo nas costas de
Kalessin, pois a compressão nas escamas férreas arrancou a pele de suas
palmas e a parte interna dos dedos estava cortada e recortada. Dormindo, ele
mantinha as mãos cerradas como se não quisessem soltar o dragão ausente.
Ela teve de forçar os dedos de Ged a se abrir, com delicadeza, para lavar e
ungir as feridas. Enquanto o fazia, ele gritou, assustando-se e estendendo a
mão, como se sentisse que caía. Seus olhos se abriram. Ela falou baixinho.
Ele a fitou.
— Tenar — disse Ged, sem sorrir, em um reconhecimento puro para
além da emoção. A mulher se encheu de pura satisfação, como a de um
sabor doce ou de uma flor, porque ainda havia um homem vivo que sabia o
nome dela, e este era aquele homem.
Ela se inclinou para a frente e o beijou na face.
— Fique quieto — ordenou ela. — Deixe-me terminar isto aqui. — Ele
obedeceu, logo retornando ao sono, dessa vez com as mãos abertas e
relaxadas.
Mais tarde, enquanto caía no sono ao lado de Therru, à noite, ela pensou:
Mas nunca o beijei. O pensamento a abalou. No início, ela não acreditou.
Com certeza em tantos anos… Não nas Tumbas, mas depois, viajando
juntos pelas montanhas… No Visão Ampla, quando navegaram juntos até
Havnor… Quando ele a trouxe ali para Gont…?
Não. Ogion nunca a beijou, nem ela o beijou. Ele a chamara de Filha e a
amara, mas nunca encostara nela; e ela, criada como uma sacerdotisa
solitária, intocada, uma criatura sagrada, não procurava o contato, ou não
sabia que o procurava. Talvez apoiasse a testa ou a bochecha por um
momento na mão aberta de Ogion, e ele talvez tenha acariciado o cabelo
dela, uma vez, muito levemente.
E quanto a Ged, nem isso.
Será que nunca pensei nisso?, perguntou-se em uma espécie de espanto
incrédulo.
Não sabia. Enquanto tentava pensar a respeito, um horror, uma sensação
de transgressão, tomou conta dela com muita força e depois desapareceu,
incompreensível. Seus lábios conheciam a pele ligeiramente áspera, seca e
fria do rosto dele, perto da boca, do lado direito, e só esse conhecimento
tinha importância, tinha peso.
Ela dormiu. Sonhou que uma voz a chamava:
— Tenar! Tenar!
Ela respondia, gritando como uma ave marinha, voando sob a luz acima
do mar; mas não sabia qual nome chamava.

***

Gavião decepcionou tia Musgo. Ele permaneceu vivo. Depois de um ou dois


dias, ela o considerou salvo. A bruxa vinha e o alimentava com seu caldo de
carne de cabra, raízes e ervas, amparando-o contra si, envolvendo-o com o
cheiro forte de seu corpo, dando-lhe vida a colheradas e reclamando.
Embora Ged a tivesse reconhecido e a chamasse por seu nome usual, de
modo que ela não podia negar que ele parecia ser o homem chamado
Gavião, ela queria negar. Não gostava dele. Tudo estava errado nele, dizia
Musgo. Tenar respeitava suficientemente a sagacidade da bruxa a ponto de
ficar confusa com isso, mas não conseguia encontrar nenhuma suspeita em si
mesma, apenas o prazer pela presença dele ali e por seu lento regresso à vida.
— Quando ele voltar a ser ele mesmo, você vai ver — disse Tenar a
Musgo.
— Ele mesmo! — repetiu Musgo, e fez aquele gesto com os dedos de
quebrar e deixar cair uma casca de noz.
Ged logo perguntou sobre Ogion. Tenar temera essa pergunta. Dissera a
si mesma, e quase se convencera, que ele não iria perguntar, que ele saberia
da mesma maneira que os magos sabiam, assim como até os feiticeiros do
Porto de Gont e de Re Albi souberam quando Ogion morreu. Mas na
quarta manhã ele estava acordado quando Tenar se aproximou e, encarando-
a, ele afirmou:
— Esta é a casa de Ogion.
— A casa de Aihal — respondeu ela, com toda a tranquilidade que lhe
foi possível; ainda não lhe era fácil falar o nome verdadeiro do mago. Ela
não sabia se Ged conhecia aquele nome. Sem dúvida, sim. Para ele, Ogion o
teria revelado, ou não precisara revelar.
Por algum tempo ele não reagiu e, quando falou, foi em tom
inexpressivo.
— Então ele morreu.
— Dez dias atrás.
Ele ficou deitado olhando para cima como se refletisse, como se tentasse
pensar em alguma coisa.
— Quando cheguei aqui?
Ela teve de se aproximar para escutá-lo.
— Quatro dias atrás, no início da noite.
— Não havia mais ninguém nas montanhas — disse Ged. Então o seu
corpo se contraiu e estremeceu como se sentisse dor ou a intolerável
lembrança da dor. Fechou os olhos, franzindo a testa, e respirou fundo.
À medida que suas forças retornavam aos poucos, as sobrancelhas
franzidas, a respiração presa e as mãos cerradas tornaram-se familiares a
Tenar. A força lhe retornou, mas não o conforto nem a saúde.
Certo momento, sob o sol da tarde de verão, ele se sentou à entrada da
casa. Era a distância mais longa que ele percorria desde que saíra da cama.
Ficou sentado na soleira, observando o dia, e Tenar, aproximando-se da casa,
vindo da plantação de feijão, observava-o. Ele ainda tinha uma aparência
cinzenta e sombria. Não eram apenas os cabelos grisalhos, mas uma
característica de pele e osso, e ele não era muito mais do que isso. Não havia
luz em seus olhos. No entanto, aquela sombra, aquele homem pálido, era o
mesmo cujo rosto ela vira pela primeira vez sob o esplendor do poder dele, o
rosto forte com nariz de falcão e boca fina, um homem bonito. Ged sempre
foi um homem orgulhoso e bonito.
Tenar veio na direção dele.
— É da luz do sol que você precisa — afirmou ela; o homem assentiu,
mas suas mãos continuaram cerradas enquanto permanecia sentado no calor
radiante do verão.
Ged estava tão calado com ela que Tenar pensou que talvez fosse a sua
presença que o perturbava. Talvez ele não pudesse ficar à vontade com ela
como costumava ficar. Afinal, era arquimago agora — ela sempre se esquecia
disso. Já haviam se passado 25 anos desde que caminharam pelas montanhas
de Atuan e navegaram juntos no Visão Ampla atravessando o mar do leste.
— Onde está Visão Ampla? — perguntou Tenar, subitamente, surpresa
por essa ideia, e então pensou: Mas que estupidez de minha parte! Todos esses
anos se passaram, e ele é arquimago, não manteria aquele barquinho agora.
— Em Selidor — respondeu ele, com o rosto marcado por um
sofrimento estático e incompreensível.
No início dos tempos, tão longe quanto Selidor…
— A última das ilhas — disse ela. Era uma meia pergunta.
— O oeste mais longínquo — respondeu ele.

***

Estavam sentados à mesa, após terminarem o jantar. Therru tinha saído para
brincar.
— Foi de Selidor que você veio, então, montado em Kalessin?
Quando ela repetiu o nome do dragão, foi o próprio nome quem falou,
moldando a boca de Tenar de acordo com seu formato e som,
transformando o hálito dela em um fogo suave.
Ao ouvir o nome, Ged lhe ergueu os olhos, um olhar intenso que a fez
perceber que ele normalmente não a fitava diretamente. O homem
concordou com a cabeça. Depois, com uma honestidade forçada, corrigiu a
concordância:
— De Selidor para Roke. E depois de Roke para Gont.
Mil quilômetros? Dez mil quilômetros? Ela não fazia ideia. Tinha visto
os grandes mapas dos tesouros de Havnor, mas ninguém lhe ensinara os
números e as distâncias. Tão longe quanto Selidor… Será que o voo de um
dragão podia ser medido em quilômetros?
— Ged — falou Tenar, usando o nome verdadeiro dele, uma vez que
estavam sozinhos —, sei que você passou por muita dor e perigo. E se você
não quiser, ou se talvez não puder, não deve me contar… Mas, se eu
soubesse, se soubesse alguma coisa, talvez eu seria de maior serventia para
você. Eu gostaria disso. E logo eles virão de Roke procurando-o, enviando
um navio atrás do Arquimago, sei lá, enviando um dragão atrás de você! E
você irá embora de novo. E nunca teremos conversado. — Ao falar, a mulher
cerrou as mãos diante da dissimulação de seu tom e de suas palavras. Fazer
piada sobre o dragão… Choramingar como uma esposa acusadora!
Ged estava olhando para baixo, para a mesa, taciturno e resistente, como
um fazendeiro depois de um dia difícil no campo enfrentando alguma
gritaria doméstica.
— Ninguém virá de Roke, eu acho — falou, e isso lhe custou tanto
esforço que ele demorou um pouco até continuar: — Dê um pouco de
tempo para mim.
Ela considerou que era tudo o que o feiticeiro diria e respondeu:
— Sim, claro. Sinto muito.
Já estava se levantando para tirar a mesa quando ele disse, ainda mirando
para baixo, confuso:
— Agora o tenho.
Então ele também se levantou, levou o prato até a pia e terminou de tirar
a mesa. Lavou a louça enquanto Tenar guardava a comida. Aquilo despertou
o interesse dela. Vinha comparando-o com Pederneira; só que Pederneira
nunca lavou um prato na vida. Era trabalho de mulher. Mas Ged e Ogion
moraram ali, solteiros, sem mulheres; não havia mulheres em nenhum lugar
onde Ged morou; por isso, ele fazia o “trabalho de mulher” e não se
importava com isso. Seria uma pena, imaginou ela, se o feiticeiro pensasse a
respeito, se começasse a temer que a dignidade dele estava presa a um pano
de prato.
Ninguém veio de Roke à sua procura. Quando conversaram a esse
respeito, mal tinha dado tempo de algum navio chegar, exceto um que
tivesse o vento mágico em suas velas durante todo o percurso; mas os dias
foram passando e não houve nenhuma mensagem ou sinal para ele. Parecia
estranho para ela que deixassem seu arquimago passar tanto tempo
sossegado. Ged devia ter proibido que lhe enviassem mensagens; ou talvez
tivesse se escondido ali com magia, para que não soubessem onde ele estava
e para que não pudesse ser reconhecido. Porque os aldeões curiosamente
ainda lhe davam pouca atenção.
O fato de que não veio ninguém da mansão do Senhor de Re Albi era
menos surpreendente. Os senhores daquela casa nunca se deram bem com
Ogion. As mulheres da casa eram, segundo diziam as histórias da aldeia,
adeptas das artes das trevas. Uma tinha se casado com um senhor do norte
que, afirmavam, enterrou-a viva debaixo de uma pedra; outra havia
interferido na criança ainda não nascida em seu ventre, tentando
transformá-la em uma criatura poderosa e, de fato, a criança balbuciou
palavras ao nascer, mas não tinha ossos.
— Como um saquinho de pele — sussurrou a parteira da aldeia —, um
saquinho com olhos e voz. O bebê nunca mamou, mas falou em uma língua
estranha e morreu…
Qualquer que fosse a verdade de tais histórias, os Senhores de Re Albi
sempre se mantiveram distantes. Amiga do mago Gavião, pupila do mago
Ogion, portadora do Anel de Erreth-Akbe para Havnor, Tenar poderia, ao
que parece, ter sido convidada a ficar na mansão quando pisou em Re Albi
pela primeira vez; mas não foi. Pelo contrário, para sua satisfação, morou
sozinha, em uma cabaninha que pertencia ao tecelão da aldeia, Flabelo, e
raramente via as pessoas da grande casa, sempre a distância. Musgo lhe
contou que agora não havia nenhuma senhora na casa, apenas o velho
senhor, já muito velho, o neto dele e o jovem feiticeiro, chamado Álamo, que
fora contratado da Escola de Roke.
Depois que Ogion foi enterrado, com o talismã de tia Musgo na mão,
sob a faia junto ao caminho da montanha, Tenar não viu mais Álamo. Por
mais estranho que parecesse, ele não sabia que o Arquimago de Terramar
estava em sua própria aldeia ou, se sabia, se manteve afastado por algum
motivo. Por sua vez, o feiticeiro do Porto de Gont, que também participara
do enterro de Ogion, da mesma maneira não regressou. Mesmo que não
soubesse que Ged estava ali, ele certamente sabia quem era ela, a Senhora
Branca, que usara o Anel de Erreth-Akbe no punho, que completara a Runa
da Paz… E há quantos anos foi isso, sua velha!, disse a si mesma. É isso que lhe
aperta o calo?
Mesmo assim, foi ela quem lhes revelou o nome verdadeiro de Ogion.
Parecia que lhe deviam alguma cortesia.
Mas os feiticeiros, os propriamente ditos, nada tinham a ver com
cortesia. Eram homens de poder. Só lidavam com o poder, e que poder
Tenar tinha agora? Ou que alguma vez teve? Quando menina, sacerdotisa,
fora um receptáculo: o poder dos refúgios sombrios passava por ela, usava-a,
deixava-a vazia e intocada. Quando jovem, aprendeu um conhecimento
poderoso com um homem poderoso e o deixou de lado, ignorou-o e não
tocou nele. Quando mulher adulta, ela tinha escolhido e possuía os poderes
de uma mulher em sua época, e o tempo passou; sua condição de esposa e
mãe chegou ao fim. Não havia nada nela, nenhum poder que alguém
reconhecesse.
Mas um dragão falou com ela. “Eu sou Kalessin”, disse ele, ao que ela
respondeu: “Eu sou Tenar”.
“O que é um Senhor dos Dragões?”, ela havia perguntado a Ged, no
refúgio sombrio, o Labirinto, tentando negar o poder dele, tentando fazer
com que ele reconhecesse o dela. Ged havia respondido com uma
honestidade que a desarmou para sempre: “Um homem com quem os
dragões vão conversar”.
Então, ela era uma mulher com quem os dragões conversariam. Seria essa
a novidade, o conhecimento acumulado, a semente de luz que ela sentiu em
si mesma ao acordar embaixo da janelinha que dava para o oeste?
Poucos dias depois daquela breve conversa à mesa, ela estava limpando o
canteiro da horta de Ogion, salvando das ervas daninhas do verão as cebolas
que ele plantara na primavera. Ged passou pelo portão da cerca alta que
mantinha as cabras afastadas e começou a limpar a outra extremidade da
carreira. Trabalhou um pouco e depois se sentou, olhando para as mãos.
— Elas precisam de tempo para sarar — explicou Tenar, com brandura.
Ele assentiu.
Os pés altos de feijão na carreira seguinte floresciam. Tinham um aroma
muito doce. Ele estava sentado, com os braços finos apoiados nos joelhos,
fitando o emaranhado ensolarado de trepadeiras, flores e vagens de feijão
penduradas. Tenar falou enquanto trabalhava:
— Quando Aihal morreu, ele disse: “Tudo mudou…”. E desde a sua
morte, tenho chorado por ele, tenho sofrido, mas algo suspende minha dor.
Algo está para nascer… foi libertado. Eu sei, quando estou dormindo e
assim que acordo, que algo mudou.
— Sim — concordou ele. — Um mal acabou. E… — Depois de um
longo silêncio, ele recomeçou. Ele não olhou para ela, mas a voz dele soou,
pela primeira vez, como a voz de que ela se lembrava, calma, baixa, com o
seco sotaque gontês. — Você se lembra, Tenar, de quando chegamos a
Havnor?
Como eu esqueceria?, disse o coração dela, mas ficou em silêncio por medo
de que Ged voltasse ao silêncio.
— Atracamos o Visão Ampla e subimos até o cais… Os degraus são de
mármore. E as pessoas, todas as pessoas… E você ergueu o braço para lhes
mostrar o Anel…
“E segurei sua mão: fiquei aterrorizado além do terror: os rostos, as
vozes, as cores, as torres, as bandeiras e estandartes, o ouro e a prata e a
música, e tudo que eu conhecia era você… No mundo inteiro, tudo que eu
conhecia era você, ali ao meu lado enquanto caminhávamos…
“Os administradores da Casa Real nos conduziram ao pé da Torre de
Erreth-Akbe, por ruas lotadas de gente. E subimos os degraus altos, nós dois
sozinhos. Você lembra?”
Ela assentiu. Apoiou as mãos na terra que estava capinando, sentindo o
frescor granulado.
— Eu abri a porta. Era pesada, travou no começo. E nós entramos. Você
lembra?
Era como se ele pedisse confirmação… Isso aconteceu? Eu lembro?
— Era um salão grande de pé-direito alto — respondeu Tenar. — O
lugar me fez pensar no meu Salão, onde fui devorada, mas apenas por ser
muito alto. A luz vinha das janelas na parte de cima da torre. Raios de luz
solar se entrecruzavam como espadas.
— E o trono — completou Ged.
— O trono, sim, todo dourado e carmesim. Mas vazio. Assim como o
trono no Salão de Atuan.
— Agora não — disse ele, e a fitou através dos brotos verdes de cebola.
O rosto de Ged estava tenso, saudoso, como se nomeasse uma alegria que
não conseguia apreender. — Existe um rei em Havnor — continuou —, no
centro do mundo. A profecia foi cumprida. A Runa foi restaurada, e o
mundo está intacto. Os dias de paz chegaram. Ele… — Ged parou de falar e
olhou para baixo, cerrando as mãos. — Ele me carregou da morte para a
vida. Arren de Enlad. Lebannen das canções a serem entoadas. Ele adotou
seu nome verdadeiro, Lebannen, Rei de Terramar.
— É isso, então? — perguntou ela, ajoelhando-se e observando-o. — A
alegria, a entrada na luz?
Ele não respondeu.
Um rei em Havnor, pensou ela. Disse em voz alta:
— Um rei em Havnor!
A visão da linda cidade a tomou, as ruas largas, as torres de mármore, os
telhados feitos de telhas e bronze, os navios de velas brancas no porto, a
maravilhosa sala do trono onde a luz do sol descia como espadas, a riqueza, a
dignidade e a harmonia, a ordem ali conservada. Daquele centro brilhante,
Tenar viu a ordem se espalhar como anéis perfeitos na água, como a linha
reta de uma rua pavimentada ou de um navio navegando contra o vento:
seguindo na direção que deveria seguir, um canal para a paz.
— Você se saiu bem, meu amigo — comentou ela.
Ged fez um gesto sutil, como se quisesse interromper as palavras dela, e
depois se virou, pressionando a mão sobre a boca. Tenar não suportava ver as
lágrimas dele. Inclinou-se para trabalhar. Arrancou uma erva daninha, e
outra, cuja raiz dura se partiu. Ela cavou com as mãos, à procura da raiz da
erva daninha no solo áspero, na escuridão da terra.
— Goha — chamou a voz fraca e entrecortada de Therru junto ao
portão, e Tenar a olhou. O meio rosto da criança a encarava diretamente,
tanto pelo olho que via quanto pelo olho cego. Devo lhe dizer que existe um
rei em Havnor?, pensou Tenar.
Ela se levantou e foi até o portão a fim de poupar Therru de tentar fazer-
se ouvir. Enquanto esteve inconsciente no fogo, disse Faia, a criança havia
inspirado fogo. “A voz dela está queimada”, explicou ele.
— Eu estava vigiando Tetê — sussurrou Therru —, mas ela saiu do pasto
de giesta. Não consigo achar ela.
Foi o discurso mais longo que ela já proferira. Tremia por ter corrido e
por tentar não chorar. Não podemos ficar todos chorando, disse Tenar a si
mesma. É estúpido, não podemos permitir isto!
— Gavião! — exclamou ela, virando-se. — Uma cabra escapou.
Ele se levantou de imediato e foi até o portão.
— Procure no reservatório da fonte — sugeriu. Ele olhou para Therru
como se não visse suas cicatrizes horríveis, como se mal a visse: era uma
criança que tinha perdido uma cabra, que precisava encontrar uma cabra. Foi
a cabra que ele viu. — Ou ela vai se juntar ao rebanho da aldeia —
completou ele.
Therru já estava correndo rumo ao reservatório da fonte.
— Ela é sua filha? — perguntou ele a Tenar. Ele nunca tinha dito nem
uma palavra sobre a criança e, por um instante, tudo em que Tenar
conseguiu pensar foi como os homens eram estranhos.
— Não, nem minha neta. Mas é minha criança — respondeu. O que a
fez zombar dele, escarnecer dele, de novo?
Ele saiu pelo portão no mesmo momento que Tetê corria na direção
deles, um relâmpago marrom e branco, seguido bem de longe por Therru.
— Oi! — gritou Ged de repente.
Com um salto, ele bloqueou o caminho da cabra, conduzindo-a
diretamente ao portão aberto e aos braços de Tenar. Ela conseguiu agarrar a
coleira de couro frouxa de Tetê. A cabra ficou imediatamente imóvel, meiga
como qualquer cordeiro, encarando Tenar com um dos olhos amarelos e,
com o outro, observando as carreiras de cebola.
— Fora — ordenou Tenar, conduzindo-a para o lado externo do paraíso
das cabras e para o pasto mais pedregoso, no qual ela deveria estar.
Ged havia se sentado no chão, tão sem fôlego quanto Therru, ou mais,
pois ofegava e estava evidentemente tonto; mas pelo menos não chorava.
Pode confiar em uma cabra para estragar qualquer coisa.
— Érica não deveria ter dito para você vigiar Tetê — reclamou Tenar a
Therru. — Ninguém consegue vigiar Tetê. Se ela fugir de novo, avise Érica e
não se preocupe. Combinado?
Therru assentiu. Estava olhando para Ged. Ela raramente olhava as
pessoas, e mais raramente ainda no caso dos homens, exceto de relance; mas
Therru o contemplava fixamente, a cabeça inclinada como a de um pardal.
Será que uma heroína estava surgindo?
capítulo 6

para o pior

Já se passara bem mais de um mês desde o solstício, mas as noites ainda


eram longas na face oeste de Overfell. Therru havia chegado tarde de uma
expedição de um dia em busca de ervas com tia Musgo, cansada demais para
comer. Tenar colocou-a na cama e sentou-se ao lado, cantando para ela.
Quando a criança ficava muito cansada, não conseguia dormir, e se encolhia
na cama como um animal petrificado, fitando as alucinações até entrar em
um estado de pesadelo, sem dormir nem acordar, incomunicável. Tenar
descobriu que podia evitar isso abraçando-a e cantando para que ela
dormisse. Quando acabaram as canções que aprendera quando casada com
um fazendeiro do Vale Central, ela cantou intermináveis cânticos kargineses
que aprendera quando criança e sacerdotisa das Tumbas de Atuan, ninando
Therru com o zunido e o doce lamento das oferendas aos Poderes
Inomináveis e ao Trono Vazio, agora coberto pela poeira e pelas ruínas do
terremoto. Ela não sentia poder algum nessas canções, mas sim o do canto
em si; e gostava de cantar em sua própria língua, embora não conhecesse as
canções que uma mãe cantava para uma criança em Atuan, as canções que
sua mãe havia cantado para ela.
Therru enfim adormeceu profundamente. Tenar deslizou-a do colo para a
cama e esperou um instante para se certificar de que ela continuava
dormindo. Então, depois de observar ao redor para ter certeza de que estava
sozinha, com uma rapidez quase culpada, mas com a cerimônia da alegria,
de grande prazer, colocou a mão fina e de pele clara no rosto da criança,
onde o olho e a face foram devorados pelo fogo, deixando uma marca de
cicatrizes grossa e esbranquiçada. Sob seu toque, tudo isso desapareceu. A
carne estava íntegra, era o rosto redondo, macio e adormecido de uma
criança. Era como se seu toque restaurasse a verdade.
Com delicadeza e relutância, ela ergueu a palma da mão e viu a perda
irremediável, a cura que nunca seria completa.
Ela se abaixou e beijou a cicatriz, levantou-se sem fazer barulho e saiu de
casa.
O sol estava se pondo em meio a uma névoa extensa e perolada. Não
havia ninguém por perto. Gavião provavelmente estava na floresta. Ele
começara a visitar o túmulo de Ogion, passando horas naquele lugar
tranquilo debaixo da faia, e, à medida que ganhou mais forças, começou a
vagar pelos caminhos da floresta que Ogion adorava. A comida
evidentemente não tinha sabor para ele; Tenar tinha de lhe pedir que
comesse. Ele evitava companhia, tentando ficar sozinho. Therru o seguia
para qualquer lugar e, como era tão silenciosa quanto ele, a criança não o
incomodava, mas Ged ficava inquieto e logo a mandava para casa e seguia
sozinho, indo cada vez mais longe; para onde, Tenar não sabia. Ele chegava
tarde, adormecia e muitas vezes saía de novo antes que ela e a criança
acordassem. Ela deixava pão e carne para que ele levasse.
Agora, Tenar o viu se aproximar pelo caminho do prado que tinha sido
tão longo e difícil quando ela ajudara Ogion a percorrê-lo pela última vez.
Ele vinha atravessando o ar reluzente, a grama agitada pelo vento,
caminhando com firmeza, trancado em seu sofrimento obstinado, duro
como pedra.
— Você vai cuidar da casa? — perguntou a ele de longe. — Therru está
dormindo. Quero caminhar um pouco.
— Sim. Vá em frente — disse ele, e ela seguiu, refletindo sobre a
indiferença de um homem em relação às exigências que regem uma mulher:
a de que alguém deve estar por perto de uma criança adormecida, de que a
liberdade de uma pessoa significa a falta de liberdade de outra, a menos que
um equilíbrio sempre mutável, móvel, seja alcançado, como o equilíbrio de
um corpo em movimento, como o dela, agora, sobre duas pernas, primeiro
uma depois a outra, praticando aquela arte notável, o caminhar… Então as
cores cada vez mais profundas do céu e a suave persistência do vento
substituíram seus pensamentos. Ela continuou caminhando, sem metáforas,
até chegar aos penhascos de arenito. Lá ela se deteve e observou o sol
desaparecer na névoa serena e rosada.
Ela se ajoelhou e identificou com os olhos e depois com a ponta dos
dedos uma longa ranhura, superficial e indistinta na rocha, se estendendo até
a beira do penhasco: o rastro da cauda de Kalessin. Ela o seguiu várias vezes
com os dedos, olhando para os abismos do crepúsculo, sonhando. Ela o
pronunciou. O nome não foi fogo em sua boca dessa vez, mas sibilou e se
estendeu com suavidade de seus lábios:
— Kalessin…
Ela olhou para o leste. As cimeiras da Montanha de Gont acima das
florestas estavam vermelhas, captando a luz que já desparecera ali embaixo.
A cor perdia intensidade enquanto ela observava. Ela desviou o olhar e,
quando olhou outra vez, o topo estava cinzento, obscurecido, as encostas
arborizadas escurecidas.
Ela esperou pela estrela da noite. Quando brilhou acima da neblina,
Tenar caminhou lentamente para casa.
Casa, não lar. Por que estava ali na casa de Ogion e não em sua própria
casa na fazenda, cuidando das cabras e das cebolas de Ogion e não de seus
próprios pomares e rebanhos? “Espere”, dissera ele, e ela esperou; e o dragão
veio; e Ged agora estava bem… bem o bastante. Ela fizera sua parte.
Cuidara da casa. Não era mais necessária. Já era hora de partir.
No entanto, não conseguia pensar em abandonar aquela plataforma
elevada, aquele ninho de falcão, e descer novamente para as terras baixas, as
terras fáceis de cultivar, o interior sem vento, não conseguia pensar a respeito
sem que seu coração se oprimisse e ensombrecesse. E quanto ao sonho que
ela teve ali, sob a janelinha voltada para o oeste? E quanto ao dragão que
veio até ela, ali?
A porta da casa estava aberta como sempre, para deixar entrar luz e ar.
Gavião estava sentado, sem lamparina ou fogo aceso, em um assento baixo
perto da lareira limpa. Ele costumava se sentar ali. Ela acreditava que aquele
fora o lugar dele quando era menino, durante seu breve aprendizado com
Ogion. Fora o lugar dela nos dias de inverno, quando ela era aprendiz de
Ogion.
Ele estava observando-a entrar, mas os olhos não miravam a porta, e sim
o ponto ao lado dela, à direita, o canto escuro atrás da porta. O cajado de
Ogion estava ali, um bastão de carvalho, pesado, desgastado e liso na
empunhadeira, da altura do próprio homem. Ao lado, Therru colocara o
galho de aveleira e o bastão de amieiro que Tenar cortara para elas enquanto
caminhavam para Re Albi.
O cajado dele, o cajado de feiticeiro, de madeira de teixo, que Ogion lhe deu…
Onde está?, questionou-se Tenar. E ao mesmo tempo: Por que não pensei nisso
antes?.
Estava escuro na casa e parecia abafado. Tenar sentia-se oprimida.
Desejou que Ged ficasse para conversar com ela, mas agora que o feiticeiro
estava sentado ali, ela não tinha nada a lhe dizer, e vice-versa.
— Estive pensando — disse ela, enfim, arrumando os quatro pratos no
aparador de carvalho — que é hora de voltar para minha fazenda.
Ele não se manifestou. Provavelmente assentiu, mas ela estava de costas.
Ela se sentiu cansada de repente, querendo ir para a cama, mas ele estava
sentado ali, na parte frontal da casa, e ainda não escurecera totalmente; ela
não podia se despir na frente dele. A vergonha a deixou com raiva. Tenar
estava prestes a pedir-lhe que saísse brevemente quando ele falou, limpando
a garganta, hesitante:
— Os livros. Os livros de Ogion. O Livro das Runas e os dois Livros de
Ensinamentos. Você os levaria consigo?
— Comigo?
— Você foi a última aluna dele.
Ela se aproximou da lareira e se sentou diante de Ged na cadeira de três
pés de Ogion.
— Aprendi a escrever as runas em hárdico, mas esqueci a maior parte
delas, sem dúvida. Ele me ensinou um pouco da língua que os dragões
falam. Algumas dessas coisas eu me lembro. Mas nada mais. Não me tornei
uma adepta, uma feiticeira. Eu me casei, você sabe. Ogion teria deixado os
livros de sabedoria à mulher de um fazendeiro?
Depois de uma pausa, Ged disse, em tom inexpressivo:
— Ele não os deixou para ninguém, então?
— Para você, com certeza.
Gavião não respondeu.
— Você foi o último aprendiz dele, o orgulho e o amigo. Ele nunca
verbalizou essas palavras, mas é claro que elas ficam com você.
— O que devo fazer com elas?
Tenar o contemplou ao crepúsculo. A janela oeste reluzia pálida na sala.
A ira severa, implacável e inexplicável em sua voz despertou a raiva dela.
— Você, o Arquimago, pergunta para mim? Por que me faz de boba mais
do que já sou, Ged?
O homem, então, se levantou. A voz estava trêmula:
— Mas você não… Você não consegue entender… Tudo isso acabou… se
foi! — Tenar continuou sentada, com os olhos fixos nele, tentando enxergar
seu rosto. — Eu não tenho poder, nada. Eu o entreguei… gastei… tudo o
que tinha. Para encerrar… Para que… Então, está feito, acabado.
Ela tentou negar o que ele disse, mas não conseguiu.
— É como derramar um pouco de água — continuou ele —, um copo
d’água na areia. Na Terra Árida. Tive de fazer isso. Mas agora não tenho
nada para beber. E que diferença, que diferença fez, faz, um copo d’água em
todo o deserto? O deserto acabou…? Ah! Ouça…! Sussurrava-se isso para
mim dali, detrás da porta: ouça, ouça! E fui para a Terra Árida quando era
jovem. E a conheci, tornei-me ela, me casei com minha morte. Ela me deu
vida. Água, a água da vida. Eu era uma fonte, uma nascente, fluindo,
suprindo. Mas lá as fontes não funcionam. No fim das contas, tudo o que eu
tinha era um copo d’água, e tive de despejá-la na areia, no leito do rio seco,
nas pedras na escuridão. Por isso, terminou. Acabou. Esgotou.
Ela sabia o bastante, por meio de Ogion e do próprio Ged, para
compreender de que terra ele falava e que, embora falasse em imagens, elas
não eram máscaras da verdade, e sim a própria verdade tal como ele a
conhecera. Ela sabia também que deveria negar o que ele dizia, apesar de ser
verdade.
— Você não dá tempo a si mesmo, Ged — afirmou ela. — Voltar da
morte deve ser uma longa jornada… Mesmo nas costas de um dragão. É
preciso tempo. Tempo e sossego, silêncio, quietude. Você foi ferido. Vai se
curar.
O homem ficou calado, parado ali, por um longo tempo. Tenar pensou
que tinha dito a coisa certa e lhe oferecido algum conforto. Mas ele falou,
por fim:
— Assim como a criança? — Aquilo foi como uma faca, tão afiada que
Tenar não a sentiu penetrando seu corpo. Ele continuou, na mesma voz
baixa e seca: — Não sei por que você a acolheu, sabendo que ela não pode
ser curada. Sabendo como deve ser a vida dela. Suponho que seja parte desse
tempo que vivemos… Um tempo sombrio, uma era de ruína, o fim dos
tempos. Você a acolheu, imagino, quando fui encontrar meu inimigo, porque
era tudo o que você podia fazer. Assim, devemos viver na nova era, com os
despojos da nossa vitória sobre o mal. Você com sua criança queimada, e eu
sem absolutamente nada.
O desespero fala com constância, em voz baixa.
Tenar se virou a fim de observar o cajado do mago no recanto escuro à
direita da porta, mas não havia luz nele. Estava todo escuro, por dentro e por
fora. Pela porta aberta era visível um par de estrelas, altas e pálidas. Ela as
observou. Queria saber quais estrelas eram. Ela se levantou e passou
tateando pela mesa até a porta. A névoa se intensificara e não havia muitas
estrelas visíveis. Uma das que vira de dentro da casa era a estrela branca do
verão, à qual chamavam, na língua dela, em Atuan, de Tehanu. Ela não
conhecia a outra. Tenar não sabia como Tehanu era chamada ali, em hárdico,
ou qual era o seu nome verdadeiro, como era chamada pelos dragões. Sabia
somente como sua mãe a chamava: Tehanu, Tehanu. Tenar, Tenar…
— Ged — chamou ela, da porta, sem se virar —, quem criou você
quando era criança?
O homem se aproximou dela, também observando o horizonte enevoado
do mar, as estrelas, a massa escura da montanha acima deles.
— Praticamente ninguém — respondeu ele. — Minha mãe morreu
quando eu era bebê. Eu tinha irmãos mais velhos. Não me lembro deles.
Tinha meu pai, o ferreiro. E a irmã de minha mãe. Ela era a bruxa de Dez
Amieiros.
— Tia Musgo — disse Tenar.
— Mais nova. Ela tinha certo poder.
— Qual era o nome dela?
Ged ficou em silêncio.
— Não consigo lembrar — respondeu com lentidão. Depois de certo
tempo, ele falou: — Ela me ensinou os nomes. Falcão, falcão-peregrino,
águia, águia-pescadora, milhafre, gavião…
— Como vocês chamam aquela estrela? A branca, bem no alto.
— Coração do Cisne — revelou ele, mirando o céu. — Em Dez
Amieiros, chamavam de Flecha.
Mas ele não disse o nome na Língua da Criação, nem os nomes
verdadeiros do falcão, do falcão-peregrino e do gavião ensinados pela bruxa.
— O que eu disse… ali… foi errado — admitiu ele, baixinho. — Eu não
deveria falar sobre coisa alguma. Perdão.
— Se não quer falar, o que eu posso fazer a não ser deixar você? — Ela se
virou para ele. — Por que só pensa em si mesmo? Sempre em você? Vá lá
fora um pouco — mandou Tenar, furiosa. — Quero ir para a cama.
Perplexo, murmurando algumas desculpas, Ged saiu; e ela, indo para a
alcova, despiu-se e deitou-se na cama, escondendo o rosto no calor
adocicado da nuca sedosa de Therru.
Sabendo como deve ser a vida dela…
A raiva que Tenar sentia dele e a negação estúpida da verdade do que ele
tinha contado emergiram da decepção. Embora Cotovia tivesse dito dezenas
de vezes que nada poderia ser feito, ainda assim esperava que Tenar pudesse
curar as queimaduras; e, apesar de ter dito que nem mesmo Ogion
conseguiria fazer isso, Tenar esperara que Ged conseguisse curar Therru…
Que pudesse colocar a mão sobre a cicatriz, e ela ficaria perfeita e bem; o
olho cego, brilhante; a mão com formato de garra, macia; a vida arruinada,
intacta.
Sabendo como deve ser a vida dela…
Os rostos desviados, os sinais contra o mal, o horror e a curiosidade, a
piedade doentia e a ameaça indiscreta, pois o mal atrai o mal… e jamais os
braços de um homem. Jamais alguém para abraçá-la. Jamais outra pessoa
além de Tenar. Ah, ele estava certo, a criança devia ter morrido, devia estar
morta. Deviam tê-la deixado partir para aquela terra árida, ela, Cotovia e
Hera, velhas intrometidas, de coração mole e cruel. Ele estava certo, ele
sempre estava com a razão. Mas, por outro lado, os homens que a usaram
para suas necessidades e jogos, a mulher que permitiu que a criança fosse
usada, eles tiveram toda a razão em espancá-la até deixá-la inconsciente e
empurrá-la para o fogo para morrer queimada. Só que eles não foram
eficientes. Perderam a coragem, deixaram um pouco de vida nela. Isso foi
um erro; e tudo o que ela, Tenar, fez foi um erro. Fora entregue aos poderes
das trevas quando criança: fora devorada por eles, sofrera para ser devorada.
Será que ela acreditava que, ao cruzar o mar, ao aprender outras línguas, ao
ser esposa de um homem, mãe de crianças, que apenas vivendo a própria
vida, ela poderia ser qualquer coisa menos o que era: a serva deles, o
alimento deles, a ser usada para as necessidades e jogos deles? Destruída, ela
atraiu para si o que estava destruído, parte de sua própria ruína, o corpo de
seu próprio mal.
O cabelo da criança era fino, quente e cheiroso. Ela ficou encolhida no
calor dos braços de Tenar, sonhando. Que erro ela poderia ser? Injustiçada,
imperfeita além de qualquer reparação, mas não um erro. Não arruinada, não
arruinada, não arruinada. Tenar a abraçou e ficou imóvel, concentrou-se na
luz de seus sonhos, nas rajadas de ar luminoso, no nome do dragão, no nome
da estrela, Coração do Cisne, Flecha, Tehanu.

***

Ela estava penteando a cabra preta para remover o subpelo que fiaria e
levaria a um tecelão a fim de transformar em tecido, a sedosa “felpa” da Ilha
de Gont. A velha cabra preta já fora penteada mil vezes e gostava,
inclinando-se para sentir os dentes do pente de arame. As cristas negras e
cinzentas transformavam-se em uma nuvem macia e suja, a qual Tenar
finalmente enfiava em uma sacola de rede de pesca; ela tirou algumas
rebarbas das franjas das orelhas da cabra como forma de agradecimento e
deu um tapinha amigável no flanco bojudo.
— Bááá! — baliu a cabra, e saiu trotando.
Tenar saiu do pasto cercado e deu a volta pela frente da casa, olhando
para o prado em busca de se certificar de que Therru ainda estava brincando
ali.
Musgo havia mostrado à criança como tecer cestos de grama e, por mais
desajeitada que fosse sua mão mutilada, Therru começou a entender o
truque. Estava sentada na grama do prado com o trabalho no colo, mas não
estava trabalhando. Estava observando Gavião.
Ele estava bem longe, perto da beira do penhasco. De costas, sem saber
que alguém o fitava, pois observava uma ave, uma jovem fêmea de falcão-
peneireiro; e ela, por sua vez, observava a pequena presa que avistara na
grama. Ficou no ar batendo as asas, querendo espantar o rato ou a ratazana,
assustá-la e fazê-la correr para o ninho. O homem ficou ali, igualmente
decidido, igualmente faminto, contemplando a ave. Devagar, ele ergueu a
mão direita, mantendo-a na altura do antebraço, e pareceu falar, embora o
vento dispersasse suas palavras. O pássaro se virou, soltando seu grito alto,
áspero e agudo, e disparou em direção às florestas.
O homem abaixou o braço e ficou parado, observando a ave. A criança e
a mulher estavam imóveis. Só a ave voava, livre.

***
— Ele veio me encontrar uma vez como um falcão, um falcão peregrino —
dissera Ogion, diante da fogueira, certo dia de inverno. Estava contando a
ela sobre os feitiços de Transformação, as mutações, o mago Bordger que se
tornou um urso. — Ele voou até mim, até meu punho, vindo do norte e do
oeste. Eu o trouxe perto do fogo, aqui dentro. Ele não conseguia falar. Como
eu o conhecia, pude ajudá-lo; ele poderia se despir do falcão e ser um
homem outra vez. Mas sempre houve algum falcão dentro dele. Chamavam-
no de Gavião em sua aldeia porque os falcões selvagens vinham até ele,
segundo contou. Quem somos nós? O que é ser homem? Antes que ele
recebesse seu nome, antes que ele tivesse conhecimento, antes que tivesse
poder, o falcão estava nele, e o homem, e o mago, e muito mais… Ele era o
que não podemos nomear. Todos nós também somos.
A garota sentada junto à lareira, mirando o fogo, ouvindo, viu o falcão;
viu o homem; viu as aves se aproximarem dele, obedecendo à sua palavra, ao
nome que ele lhes dava, batendo as asas para segurar seu braço com suas
garras ferozes; viu a si mesma como o falcão, a ave selvagem.
capítulo 7

ratos

Toutinegra, o negociante de ovelhas que levara a mensagem de Ogion à


fazenda no Vale Central, passou pela casa do mago certa tarde.
— Você vai vender as cabras, agora que o Senhor Ogion se foi?
— Talvez — respondeu Tenar em tom neutro.
Na verdade, ela estava se perguntando como, se permanecesse em Re
Albi, conseguiria progredir. Como qualquer feiticeiro, Ogion recebera apoio
de pessoas às quais as suas habilidades e poderes serviam… No caso dele,
qualquer pessoa em Gont. Bastava que ele pedisse e o que necessitava lhe
seria ofertado com gratidão, uma pechincha pela boa vontade de um mago;
mas ele nunca precisou pedir. Pelo contrário, tinha de doar o excesso de
alimentos, roupas, ferramentas, gado e todos os bens necessários e supérfluos
que lhe eram oferecidos ou simplesmente deixados à sua porta.
— O que devo fazer com elas? — questionava Ogion, perplexo, com os
braços cheios de galinhas indignadas cacarejando, metros de tapeçaria ou
potes de beterraba em conserva.
Mas Tenar deixara sua vida no Vale Central. Quando partiu de modo tão
repentino, não tinha pensado em quanto tempo poderia ficar. Não havia
levado consigo as sete moedas de marfim, o tesouro de Pederneira; esse
dinheiro nem teria sido útil na aldeia, exceto para comprar terras ou gado,
negociar com algum comerciante do Porto de Gont que vendesse peles de
pelauí ou sedas de Lorbanery para os fazendeiros ricos e os pequenos
senhores de Gont. A fazenda de Pederneira dava tudo o que ela e Therru
precisavam para comer e vestir; mas as seis cabras de Ogion, os feijões e as
cebolas atendiam mais ao prazer do que a necessidade do mago. Tenar vivia
da despensa de Ogion, dos presentes que os aldeões lhe deram por causa
dele e da generosidade de tia Musgo. Ainda no dia anterior, a bruxa dissera:
— Minha querida, a ninhada da minha galinha de pescoço pelado
eclodiu e trarei dois ou três pintinhos para você quando começarem a ciscar.
O mago não queria ficar com eles, dizia que eram muito barulhentos e
bobos, mas o que é uma casa sem pintinhos na porta?
Na verdade, as galinhas entravam e saíam a seu bel-prazer pela porta da
casa de Musgo, dormiam em sua cama e enriqueciam inacreditavelmente os
cheiros do cômodo escuro, enfumaçado e fedorento.
— Tem uma fêmea de um ano, castanha e branca, que dará uma
excelente cabra leiteira — declarou Tenar ao homem de rosto afilado.
— Eu estava pensando em todas — explicou ele. — Talvez. São só cinco
ou seis, certo?
— São seis. Estão no pasto lá em cima, se quiser dar uma olhada.
— Vou fazer isso. — Mas o negociante não se mexeu. Nenhuma
empolgação deveria ser demonstrada de nenhum dos lados, é claro. — Viu o
navio grande que chegou? — perguntou ele.
A casa de Ogion dava para o oeste e o norte, e dela só se viam os
promontórios rochosos na entrada da baía, os Penhascos Bracejados; mas da
própria aldeia, em vários lugares, avistavam-se a estrada íngreme que ia e
vinha do Porto de Gont, as docas e todo o porto. A observação de navios era
uma atividade regular em Re Albi. Geralmente havia dois homens velhos no
banco atrás da oficina do ferreiro, de onde se tinha a melhor vista, e, ainda
que talvez nunca tivessem percorrido os quinze quilômetros em zigue-zague
da estrada até o Porto de Gont, eles assistiam às idas e vindas de homens e
navios como a um espetáculo, estranho e mesmo assim familiar, que lhes
oferecia entretenimento.
— Veio de Havnor, o filho do ferreiro que disse. Ele estava no porto
negociando lingotes. Subiu ontem à noite. Contou que o grande navio vem
do Grande Porto de Havnor.
Toutinegra provavelmente estava falando para desviar o pensamento dela
do preço das cabras e a astúcia em seu olhar talvez fosse apenas o modo
como os olhos dele eram formados. Mas o Grande Porto de Havnor
negociava pouco com Gont, uma ilha pobre e remota, notável apenas por
feiticeiros, piratas e cabras; algo nas palavras “o grande navio” a perturbava
ou alarmava, Tenar não sabia por quê.
— Ele comentou que dizem que agora há um rei em Havnor —
prosseguiu o negociante de ovelhas, com um olhar de soslaio.
— Isso pode ser bom — comentou Tenar.
Toutinegra assentiu.
— Poderia manter longe a ralé estrangeira. — Tenar concordou em um
movimento amigável de sua cabeça estrangeira. — Mas tem gente no Porto
que talvez não fique contente.
Ele se referia aos capitães piratas de Gont, cujo controle dos mares do
nordeste vinha crescendo nos últimos anos, a ponto de muitos dos antigos
horários comerciais com as ilhas centrais do Arquipélago terem sido
interrompidos ou abandonados; isso empobreceu todo mundo em Gont,
exceto os piratas, mas não impediu que estes fossem heróis na percepção da
maioria da população gontesa. Até onde Tenar sabia, seu próprio filho era
marinheiro de um navio pirata. Talvez estivesse mais seguro como tal do que
em um navio mercante estável. Melhor ser tubarão do que arenque, dizia o
ditado.
— Sempre tem alguém que não se contenta, aconteça o que acontecer —
respondeu Tenar. Seguia automaticamente os protocolos de conversas, mas
estava impaciente o suficiente com eles a ponto de acrescentar, levantando-
se: — Vou lhe mostrar as cabras. Você pode dar uma olhada. Não sei se
venderemos todas ou mesmo alguma. — E levou o homem até o portão do
pasto de giesta. Tenar não gostava dele. Não era culpa de Toutinegra ter sido
portador de más notícias uma ou talvez duas vezes, mas os olhos dele
meneavam e ela não gostava da companhia. Não lhe venderia as cabras de
Ogion. Nem mesmo Tetê.

***

Depois que o negociante foi embora, sem acordo, Tenar ficou inquieta. Ela
lhe disse: “Não sei se nós vamos vender”, e foi uma tolice dizer nós, em vez
de eu, sendo que ele não pediu para falar com Gavião, nem mesmo fez
alusão ao feiticeiro, como era mais do que provável quando um homem
negociava com uma mulher, especialmente quando ela recusava sua oferta.
Ela não sabia o que pensavam de Gavião, da presença e da não presença
dele na aldeia. Ogion, distante, silencioso e, de certa forma, temido, tinha
sido o mago e conterrâneo deles na aldeia. Gavião talvez os orgulhasse como
nome, o Arquimago que viveu certo tempo em Re Albi e proporcionou
feitos maravilhosos, enganando um dragão nas Ilhas Noventa, recuperando
o Anel de Erreth-Akbe de um lugar ou outro; mas não o conheciam. Nem
Ged os conhecia. Ele não fora à aldeia desde que chegou, apenas à floresta, à
natureza. Tenar não tinha pensado a respeito antes, mas o mago evitava a
aldeia com a mesma determinação de Therru.
Deviam ter falado sobre ele. Era uma aldeia e as pessoas conversavam.
Mas fofocas sobre as realizações de feiticeiros e magos não iam longe. O
assunto era muito inquietante, a vida dos homens de poder, muito diferente
da vida comum.
— É assim mesmo. — Tenar ouvia os aldeões do Vale Central
aconselharem quando alguém começava a especular com muita liberdade
sobre um manipulador do clima que estava de visita ou sobre o próprio
feiticeiro local, Faia. — É assim mesmo. Ele segue pelo próprio caminho,
não pelo nosso.
Quanto a ela, o fato de ter permanecido ali, para cuidar e servir àquele
homem de poder, não lhes pareceria um assunto questionável; mais uma vez,
era um caso de “É assim mesmo”. Ela própria não frequentava muito a
aldeia; com ela, não eram amigáveis nem hostis. Tenar já tinha morado ali,
na casa de Flabelo, o tecelão, e era protegida do velho mago, o qual havia
enviado Toutinegra ao outro lado da montanha para buscá-la; tudo isso era
verdade. Mas aí a mulher chegou com a criança, que era horrível de se ver, e
quem andaria com ela à luz do dia por escolha própria? Que tipo de mulher
seria aprendiz de um feiticeiro e enfermeira de um feiticeiro? Com certeza
havia bruxaria nisso, e estrangeira ainda por cima. Contudo, mesmo assim,
ela era esposa de um rico fazendeiro lá no Vale Central; embora ele estivesse
morto, e ela, viúva. Bem, quem poderia entender os costumes dessa gente da
feitiçaria? É assim mesmo, é melhor que seja assim mesmo…
Ela encontrou o Arquimago de Terramar quando ele passou pela cerca
do jardim.
— Dizem que chegou um navio da cidade de Havnor — comentou
Tenar.
Ele se deteve. Fez um movimento, rapidamente controlado, mas tinha
sido o começo de uma meia-volta para correr, para disparar e correr como
um rato corre de um falcão.
— Ged! — interpelou ela. — O que foi?
— Não consigo — respondeu ele. — Não consigo ficar cara a cara com
eles.
— Eles quem?
— Os homens dele. Do rei.
O rosto tinha adquirido um tom acinzentado, como quando Ged chegou
ali à procura de um lugar para se esconder.
Seu terror era tão urgente e indefeso que Tenar só pensava em como
poupá-lo.
— Não precisa se encontrar com eles. Se alguém vier, eu o mando
embora. Agora, volte para casa. Você não comeu o dia todo.
— Tinha um homem aqui — declarou ele.
— Toutinegra, avaliando o preço das cabras. Mandei ele embora. Vamos!
Ged a acompanhou e, quando estavam dentro de casa, ela fechou a porta.
— Eles, com certeza, não poderiam fazer mal a você, Ged. Por que
teriam essa intenção?
Ele se sentou à mesa e balançou a cabeça, entorpecido.
— Não, não.
— Sabem que você está aqui?
— Não sei.
— De que você tem medo? — indagou ela, não com impaciência, mas
com certa autoridade racional.
Ged colocou as mãos no rosto, esfregando as têmporas e a testa, olhando
para baixo.
— Eu era… — disse ele. — Não sou…
Foi tudo o que conseguiu dizer. Tenar o interrompeu, dizendo:
— Tudo bem, está tudo bem. — Ela não ousou encostar nele para não
piorar sua humilhação com qualquer sinal de pena. Estava com raiva dele e
por ele. Continuou: — Não é da conta deles onde você está, ou quem você é,
ou o que escolhe fazer ou deixar de fazer! Se vierem se intrometer, podem ir
embora curiosos. — Essa era uma expressão de Cotovia. Tenar sentiu uma
pontada de saudade da companhia de uma mulher comum e sensata. — De
qualquer forma, o navio pode não ter nada a ver com você. Podem estar
caçando piratas onde moram. Também será bom quando o rei começar a
fazer isso… Encontrei um pouco de vinho no fundo do armário, algumas
garrafas, me pergunto há quanto tempo Ogion vinha armazenando isso.
Acho que nós dois precisamos de um copo de vinho. E um pouco de pão e
queijo. A pequena jantou e saiu com Érica em busca de rãs. Quem sabe
teremos pernas de rã para a ceia. Mas, por enquanto, é pão e queijo. E vinho.
Fico imaginando de onde são, quem as trouxe para Ogion e quantos anos
têm?
Ela continuou a falar, em uma tagarelice de mulher, poupando-o de
precisar responder ou interpretar mal qualquer silêncio, até que superasse a
crise de vergonha, comesse um pouco e bebesse um copo do vinho tinto
velho e suave.
— É melhor eu ir embora, Tenar — ponderou ele. — Até aprender a ser
o que sou agora.
— Ir para onde?
— Para o topo da montanha.
— Perambular… como Ogion? — Ela o fitou. Lembrou-se de ter
caminhado com Ged pelas estradas de Atuan, zombando dele: “Os
feiticeiros costumam pedir esmolas?”. Respondeu: “Sim, mas eles tentam
oferecer algo em troca”. Tenar sugeriu com cautela: — Você poderia
trabalhar por algum tempo como manipulador do clima ou descobridor? —
E encheu o copo dele.
Ged sacudiu a cabeça. Bebeu o vinho e desviou o olhar.
— Não — respondeu. — Nada disso. Nada disso.
Ela não acreditou. Quis se rebelar, desmenti-lo, dizer-lhe: “Como não,
como você pode dizer isso… Como se você tivesse esquecido tudo o que
sabe, tudo o que aprendeu com Ogion, em Roke e nas suas viagens! Você
não pode ter esquecido as palavras, os nomes, as práticas de sua arte. Você
aprendeu, você conquistou seu poder!”. Tenar se conteve para não dizer isso,
mas murmurou:
— Não entendo. Como pode tudo…
— Um copo d’água — pediu ele, inclinando um pouco o copo como se
fosse despejá-lo. Depois de um instante: — O que não entendo é por que
ele me trouxe de volta. A bondade dos jovens é crueldade… Por isso estou
aqui, tenho de seguir em frente até poder voltar.
Tenar não sabia com clareza o que ele queria dizer, mas ouviu um tom de
culpa ou reclamação que, nele, a chocava e irritava. Falou em tom hostil:
— Foi Kalessin quem trouxe você aqui.
Estava escuro na casa com a porta fechada e apenas a janelinha oeste
deixava entrar a luz do fim da tarde. Ela não conseguia distinguir a
expressão do homem; mas logo ele lhe ergueu o copo com um sorriso
sombrio e bebeu.
— Este vinho — comentou ele. — Algum grande mercador ou pirata
deve ter trazido para Ogion. Nunca bebi igual. Nem mesmo em Havnor. —
Virou o copo bojudo nas mãos, contemplando-o. — Vou dar a mim algum
nome — disse — e atravessar a montanha até foz do Ar e a região da
Floresta do Leste, de onde vim. Vão estar envolvidos com a preparação do
feno. Sempre tem trabalho no feno e na colheita.
Tenar não sabia como responder. Com aparência frágil e doente, ele só
conseguiria esse tipo de trabalho por caridade ou por crueldade; e se
conseguisse, não seria capaz de o executar.
— As estradas não são mais como eram — alertou ela. — Nos últimos
anos, ficaram cheias de ladrões e gangues por toda parte. Ralé estrangeira,
como diz meu amigo Toutinegra. Mas não é mais seguro ir sozinho.
Olhando para ele sob a luz do crepúsculo para ver como reagia, Tenar se
perguntou por um instante como era nunca ter temido um ser humano…
Como era ter de aprender a ter medo.
— Ainda assim, Ogion ia… — começou a falar Ged, mas depois fechou
a boca; lembrou-se de que Ogion era um mago.
— Na parte sul da ilha — explicou Tenar — há muito pastoreio.
Ovelhas, cabras, gado. Eles os levam para as colinas antes da Longa Dança e
os deixam pastar ali até as chuvas. Estão sempre precisando de pastores. —
Ela bebeu um gole de vinho. Foi como se o nome do dragão estivesse em
sua boca. — Mas por que você não pode simplesmente ficar aqui?
— Não na casa de Ogion. É o primeiro lugar a que virão.
— Bem, e se vierem? O que vão querer de você?
— Que eu seja o que fui.
A desolação na voz dele deu calafrios em Tenar.
Ela ficou em silêncio, tentando lembrar como era ter sido poderosa, a
Devorada, a Sacerdotisa Una das Tumbas de Atuan, e depois perder isso,
jogar tudo fora, tornar-se apenas Tenar, apenas ela mesma. Ela pensou em
como era ter sido uma mulher no auge da vida, com crianças e um homem, e
depois perder tudo isso, ficando velha e viúva, impotente. Mesmo assim, ela
sentia que não compreendia a vergonha de Ged, a agonia da humilhação.
Talvez apenas um homem pudesse sentir aquilo. Uma mulher se acostumava
com a vergonha.
Ou talvez tia Musgo estivesse certa e, quando a carne acabava, a casca
estava vazia.
Ideias de bruxa, ela pensou. Para convencer Ged e a si mesma, e também
porque o vinho suave e quente acelerou seu raciocínio e sua língua, ela disse:
— Sabe, pensei… Quando Ogion me ensinou e não quis continuar, mas
fui, encontrei meu fazendeiro e me casei com ele… Pensei, quando fiz isso,
pensei, no dia do meu casamento: “Ged vai ficar furioso quando souber
disso!”. — Ela ria enquanto falava.
— Eu fiquei — admitiu ele.
Ela esperou.
O homem disse:
— Fiquei desapontado.
— Furioso — sugeriu ela.
— Furioso — repetiu ele.
Ged encheu o copo de Tenar.
— Eu tinha o poder de reconhecer o poder naquela época — explicou
ele. — E você… você cintilava naquele lugar terrível, o Labirinto, naquela
escuridão…
— Ótimo, então me diga: o que eu deveria ter feito com o meu poder e o
conhecimento que Ogion tentou me ensinar?
— Usá-lo.
— Como?
— Como é usada a Arte da Magia.
— Por quem?
— Pelos feiticeiros — respondeu ele, com certo pesar.
— Magia significa as habilidades, as artes dos feiticeiros, dos magos?
— O que mais poderia significar?
— Isso é tudo que poderia significar? — Ged ponderou, fitando-a uma
ou duas vezes. — Quando Ogion me ensinava — contou ela — aqui… Ali
na lareira… As palavras da Língua Arcaica, elas eram tão fáceis e tão firmes
na minha boca quanto na dele. Foi como aprender a língua que eu falava
antes de nascer. Mas o restante… A tradição, as runas de poder, os feitiços,
as regras, a elevação das forças: tudo isso estava morto para mim. Era a
língua de outra pessoa. Eu costumava pensar que poderia estar vestida como
guerreira, com uma lança, uma espada, um penacho e tudo mais, mas não
me enquadraria, não é? O que eu faria com a espada? Ela faria de mim uma
heroína? Eu mesma estaria com roupas que não me serviriam, simples
assim, mal conseguiria andar. — Tenar tomou um gole de vinho. Prosseguiu:
— Então tirei tudo e coloquei minhas próprias roupas.
— O que Ogion disse quando você o deixou?
— O que Ogion costumava dizer?
Isso despertou o sorriso sombrio novamente. Ged não disse nada.
Tenar assentiu.
Depois de um tempo, ela prosseguiu, em tom mais brando:
— Ogion me aceitou porque você me trouxe até ele. Ele não queria
aprendizes depois de você, nunca teria aceitado uma garota se não fosse por
você, por pedido seu. Mas ele me amou. Ele me respeitou, eu o amei e o
respeitei. Mas ele não poderia me dar o que eu queria e eu não poderia
aceitar o que ele tinha para me dar. Ele sabia disso. Mas, Ged, a situação foi
diferente quando Ogion viu Therru. Um dia antes de morrer. Você diz, e
Musgo diz, que o poder reconhece o poder. Não sei o que viu nela, mas ele
disse: “Ensine-a!”. Também disse… — Ged esperou. — Também disse:
“Eles vão temê-la”. E disse: “Ensine tudo a ela! Nada de Roke”. Não sei o
que ele quis dizer. Como posso saber? Se eu tivesse ficado aqui com ele,
talvez soubesse, talvez pudesse ensiná-la. Mas pensei: Ged virá, ele saberá.
Ele saberá o que ensinar a ela, o que ela precisa saber, minha injustiçada.
— Não sei — lamentou o outro, falando muito baixo. — Eu vi… Na
criança só vejo… Os erros cometidos. O mal. — Ele bebeu seu vinho. —
Não tenho nada para dar a ela — confessou Ged.
Houve uma pequena batida à porta. Ele se levantou no mesmo instante
com aquele giro indefeso de corpo, à procura de um lugar para se esconder.
Tenar foi até à porta, abriu-a um pouco e sentiu o cheiro de Musgo antes
de vê-la.
— Há homens na aldeia — sussurrou a velha, com dramaticidade. —
Todo tipo de gente de bem chegando do Porto, do grande navio que, dizem,
é da cidade de Havnor. Estão atrás do Arquimago, dizem.
— Ele não quer se encontrar com eles — revelou Tenar, com franqueza.
Ela não tinha ideia do que fazer.
— Imagino que não — respondeu a bruxa. Depois de uma pausa,
ansiosa: — Onde ele está, então?
— Aqui — falou Gavião, aproximando-se da porta e abrindo-a ainda
mais. Musgo olhou para ele e não disse nada. — Eles sabem onde estou?
— Não de minha parte — afirmou Musgo.
— Se vierem aqui — disse Tenar —, tudo o que você precisa fazer é
mandá-los embora… Afinal, você é o Arquimago…
Nem Ged nem Musgo estavam prestando atenção a ela.
— Eles não irão até a minha casa — afirmou Musgo. — Venha, se
preferir.
Ele a seguiu, lançando um olhar, mas sem dizer nada para Tenar.
— Mas o que devo falar para eles? — quis saber Tenar.
— Nada, minha querida — orientou a bruxa.

***

Érica e Therru regressaram dos pântanos com sete rãs mortas num saco de
rede de pesca, e Tenar se ocupou cortando e esfolando as pernas para a ceia
das caçadoras. Estava prestes a terminar quando ouviu vozes do lado de fora
e, olhando para a porta aberta, avistou pessoas paradas ali… Homens com
chapéus, um toque dourado, uma faísca.
— Senhora Goha? — chamou uma voz educada.
— Entrem! — respondeu ela.
Eles entraram: cinco homens altos e grandes, parecendo duas vezes mais
numerosos no cômodo de teto baixo. Eles olharam ao redor e Therru notou
o que viram.
Viram uma mulher parada junto a uma mesa, segurando uma faca longa
e afiada. Sobre a mesa havia uma tábua de cortar e, sobre ela, de um lado, um
montinho de pernas nuas, branco-esverdeadas; do outro, um monte de rãs
corpulentas, ensanguentadas e mortas. Na sombra atrás da porta, algo se
escondia: uma criança, mas uma criança mutilada, imperfeita, com um rosto
pela metade, a mão em garra. Em uma cama, na alcova sob a única janela,
estava sentada uma jovem grande e ossuda, encarando-os com a boca aberta.
Suas mãos estavam cobertas de sangue e de lama, e sua saia úmida cheirava
à água do pântano. Ao se deparar com eles fitando-a, ela tentou esconder o
rosto com a saia, expondo as pernas até a coxa.
Desviaram o olhar dela e da criança, e não havia mais ninguém para
olhar além da mulher com as rãs mortas.
— Senhora Goha — repetiu um deles.
— É como sou chamada — respondeu a mulher.
— Viemos de Havnor, em nome do rei — disse a voz educada. Ela não
conseguia ver o rosto do homem nitidamente contra a luz. — Procuramos o
Arquimago, Gavião de Gont. O Rei Lebannen será coroado na virada do
outono, e ele almeja ter consigo o Arquimago, seu senhor e amigo, a fim de
se preparar para a coroação e para coroá-lo, se ele desejar.
O homem falava em tom firme e formal, como se conversasse com uma
senhora em um palácio. Usava calças sóbrias de couro e uma camisa de linho
empoeirada pela subida desde o Porto de Gont, mas era de um tecido fino,
com bordados de fios de ouro no pescoço.
— Ele não está aqui — respondeu Tenar.
Alguns meninos da aldeia espiaram pela porta e recuaram, espiaram
novamente e fugiram aos gritos.
— Talvez você possa nos dizer onde ele está, Senhora Goha — propôs o
homem.
— Não posso.
Tenar olhou para todos eles. O medo que ela sentiu no início, talvez
causado pelo pânico de Gavião ou pela mera agitação tola ao ver estranhos,
diminuía. Ali estava ela, na casa de Ogion; e ela sabia muito bem por que
Ogion nunca teve medo de pessoas importantes.
— Devem estar cansados depois dessa longa estrada — sugeriu. —
Querem se sentar? Tem vinho. Aqui, vou lavar os copos.
Ela carregou a tábua de cortar até o aparador, colocou as pernas de rã na
despensa, raspou o resto no balde de lavagem que Érica levaria para os
porcos de Flabelo, o tecelão, lavou as mãos, os braços e a faca na bacia,
derramou água fresca e enxaguou os dois copos em que ela e Gavião
beberam. Havia mais um copo no armário e duas xícaras de barro sem alças.
Ela os colocou sobre a mesa e serviu vinho para os visitantes; restava apenas
o suficiente na garrafa para uma rodada. Eles trocaram olhares e não se
sentaram. A escassez de cadeiras justificava isso. As regras de hospitalidade,
porém, os obrigavam a aceitar o que ela oferecia. Cada homem pegou um
copo ou xícara com um murmúrio educado. Saudando-a, beberam.
— A honra! — anunciou um deles.
— Andrades: a Colheita Tardia — disse outro, com olhos arregalados.
Um terceiro balançou a cabeça.
— Andrades: o Ano do Dragão — asseverou, solene.
O quarto assentiu e tomou outro gole, reverente.
O quinto, que foi o primeiro a falar, ergueu novamente a xícara de barro
para Tenar e disse:
— Honras-nos com um vinho de rei, senhora.
— Era de Ogion — explicou ela. — Esta era a casa de Ogion. Esta é a
casa de Aihal. Vocês sabiam disso, meus senhores?
— Nós sabíamos, senhora. O rei nos enviou para esta casa, acreditando
que o Arquimago viria aqui; quando a notícia da morte de seu mestre
chegou a Roke e a Havnor, estava ainda mais certo disso. Mas foi um dragão
que carregou o Arquimago de Roke, e nenhuma palavra ou mensagem
chegou da parte dele desde então, em Roke ou ao rei. É muito fundamental
para o rei, e do interesse de todos nós, saber que o Arquimago está aqui e
que está bem. Ele veio aqui, senhora?
— Não posso dizer — respondeu ela, mas foi um equívoco infeliz,
repetido, e ela percebeu que os homens pensavam assim. Tenar ajustou a
postura, colocando-se atrás da mesa. — O que quero dizer é que não vou
falar. Acredito que, se o Arquimago quiser vir, ele virá. Se não quiser ser
encontrado, vocês não o encontrarão. Certamente vocês não o procurarão
contra a vontade dele.
O mais velho e mais alto dos homens disse:
— A vontade do rei é a nossa vontade.
O primeiro orador interveio, em tom mais conciliador:
— Somos apenas mensageiros. O que há entre o Rei e o Arquimago das
Ilhas fica entre eles. Procuramos apenas portar a mensagem e a resposta.
— Se eu puder, farei com que sua mensagem chegue até ele.
— E a resposta? — quis saber o homem mais velho.
Ela não se manifestou, e o primeiro orador disse:
— Estaremos aqui por alguns dias na casa do Senhor de Re Albi, que, ao
saber da chegada de nosso navio, nos ofereceu sua hospitalidade.
Tenar teve a sensação de uma armadilha preparada ou de um laço sendo
apertado embora não soubesse por quê. A vulnerabilidade de Gavião e a
noção que ele tinha da própria fraqueza a contagiaram. Consternada, ela
usou como defesa sua aparência, parecendo ser uma mera boa esposa, uma
administradora do lar de meia-idade, mas será que era aparência? Também
era verdade, e essas questões eram ainda mais sutis do que os disfarces e as
metamorfoses dos feiticeiros… Tenar abaixou a cabeça e avaliou:
— Isso será mais adequado ao conforto de Vossas Senhorias. Percebam
que aqui vivemos de maneira muito simples, tal como fez o velho mago.
— E bebem vinho das Andrades — acrescentou aquele que identificara a
safra, um homem de olhos brilhantes, bonito, com um sorriso de vitória. A
mulher, representando seu papel, manteve a cabeça baixa. Mas quando o
grupo se despediu e saiu, ela sabia que, por mais que parecesse e fosse o que
pudesse, se não soubessem agora que ela era Tenar do Anel, saberiam em
breve; e assim saberiam que ela mesma conhecia o Arquimago e era de fato
o caminho até ele caso estivessem determinados a procurá-lo.
Quando se foram, Tenar soltou um longo suspiro. Érica fez o mesmo e
enfim fechou a boca, que permanecera aberta durante todo o tempo que
estiveram ali.
— Não acredito — disse ela, em tom de profunda e plena satisfação, e foi
ver aonde as cabras tinham ido.
Therru saiu do lugar escuro atrás da porta, onde se protegera dos
estranhos com o cajado de Ogion, o bastão de amieiro de Tenar e o seu
próprio galho de aveleira. Ela se moveu da maneira tensa e furtiva que havia
abandonado quase por completo desde que chegaram ali, sem olhar para
cima, com a metade desfigurada do rosto curvada em direção ao ombro.
Tenar aproximou-se dela e ajoelhou-se a fim de segurá-la nos braços.
— Therru — falou —, eles não vão machucar você. Não pretendem fazer
mal algum.
A criança não queria fitá-la. Deixou que Tenar a segurasse tal qual um
bloco de madeira.
— Basta você dizer, e não os deixo entrar aqui em casa de novo.
Depois de um tempo, a criança se mexeu um pouco e perguntou com sua
voz rouca e grossa:
— O que eles vão fazer com Gavião?
— Nada — assegurou Tenar. — Nenhum mal! Eles vieram… Eles
pretendem homenageá-lo.
Mas ela começara a perceber o que a tentativa de o homenagear faria
com Ged: negaria sua perda, negaria sua dor pelo que havia perdido,
forçando-o a desempenhar o papel de quem ele não era mais.
Quando ela soltou a criança, Therru foi até ao armário e pegou a vassoura
de Ogion. Varreu de maneira meticulosa o chão onde os homens de Havnor
estiveram, eliminando suas pegadas, a poeira de seus pés para fora da porta,
para além da soleira da porta.
Observando-a, Tenar tomou uma decisão.
Foi até a estante em que estavam os três grandes livros de Ogion e a
vasculhou. Encontrou várias penas de ganso e um frasco de tinta meio seco,
mas nenhum pedaço de papel ou pergaminho. Ela cerrou o maxilar, odiando
causar danos a algo tão sagrado como um livro, e marcou e rasgou uma tira
fina de papel da folha final em branco do Livro das Runas. Sentou-se à
mesa, molhou a pena e escreveu. Nem a tinta nem as palavras vieram com
facilidade. Não escrevia praticamente nada desde que se sentara naquela
mesma mesa, há um quarto de século, com Ogion espiando por cima de seu
ombro, ensinando-lhe as runas do hárdico e as Grandes Runas de Poder. Ela
escreveu:

vá fazenda do carvalho val centr até arroio claro


diz goha mandou para cuidar de jardim & ovelhas

Ela levou quase tanto tempo para ler o bilhete quanto para escrevê-lo. A
essa altura, Therru já terminara de varrer e a observava, atenta. Tenar
acrescentou duas palavras:

esta noite

— Onde está Érica? — perguntou à criança, enquanto dobrava o papel


duas vezes. — Quero que ela leve isso à casa de tia Musgo.
Ela desejava ir pessoalmente, encontrar-se com Gavião, mas não ousava
ser vista no caminho, temendo que a estivessem observando para levá-los até
ele.
— Eu vou — sussurrou Therru.
Tenar olhou-a com atenção.
— Você terá de ir sozinha, Therru. Passar pela aldeia.
A criança assentiu.
— Entregue somente para ele!
Therru assentiu outra vez.
Tenar enfiou o papel no bolso da criança, abraçou-a, beijou-a e deixou-a
ir. Therru partiu, já não se encolhia nem se esgueirava, e sim corria
livremente, voava, imaginou Tenar, vendo-a desaparecer na luz do
entardecer, para além do batente escuro da porta, voando como um pássaro,
um dragão, uma criança, livre.
capítulo 8

falcões

Therru voltou logo com a resposta de Gavião:


— Ele disse que vai partir esta noite.
Tenar ouviu aquilo com satisfação, aliviada por ele ter aceitado o seu
plano, por ele se afastar daqueles mensageiros e daquelas mensagens que
temia. Só depois de ela alimentar Érica e Therru com seu banquete de
pernas de rã, colocar Therru na cama, cantar para ela e se sentar sozinha, sem
lamparina ou luz do fogo, é que seu coração começou a pesar. Ele se fora.
Ged não estava forte, estava confuso e inseguro, precisava de amigos; e ela o
mandou embora para longe daqueles que eram e desejavam ser seus amigos.
Ele tinha ido embora, e ela deveria ficar, para manter os cães longe do rastro
dele, ao menos até saber se permaneceram em Gont ou navegaram de volta
a Havnor.
O pânico de Ged e sua própria obediência começaram a lhe parecer tão
irracionais que Tenar considerou igualmente irracional, improvável, que Ged
de fato fosse. Ele usaria sua inteligência e simplesmente se esconderia na
casa de Musgo, que era o último lugar em toda a Terramar onde um rei
procuraria um arquimago. Seria muito melhor se ele ficasse lá até os homens
do rei partirem. Depois poderia voltar para a casa de Ogion, onde era o seu
lugar, e tudo continuaria como antes, Tenar cuidando dele até que Ged
recuperasse as forças, e ele lhe oferecendo sua cara companhia.
Uma sombra tampando as estrelas ao fundo apareceu na porta:
— Psiu! Está acordada? — Tia Musgo entrou. — Bem, ele foi embora
— disse ela, conspiratória e exultante. — Partiu pela velha estrada da
floresta. Diz que amanhã vai cortar caminho para o Vale Central passando
por Caldas de Carvalho.
— Ótimo — declarou Tenar.
Mais ousada do que de costume, Musgo se sentou sem ser convidada.
— Dei um pão e um pouco de queijo para ele, para a viagem.
— Obrigada, Musgo. Foi muita gentileza sua.
— Senhora Goha. — Na escuridão, a voz de Musgo adquiriu a
ressonância monótona de seu canto e de seus feitiços. — Tem uma coisa que
eu queria lhe contar, minha querida, sem ir além do que posso saber, pois sei
que você viveu entre grandes pessoas e foi uma delas, e calo minha boca
quando penso no assunto. No entanto, há coisas que sei que você não teria
como saber, apesar de todo o aprendizado das runas, da Língua Arcaica e de
tudo o que aprendeu com os sábios e nas terras estrangeiras.
— É mesmo, Musgo.
— É, que bom. Então, quando falamos sobre como a bruxa reconhece a
bruxa e o poder reconhece o poder, eu disse, sobre aquele que se foi agora,
que ele não era um mago agora, seja lá o que tenha sido, e ainda assim você
negou… Mas eu estava certa, não estava?
— Sim.
— É. Eu estava.
— Ele mesmo disse isso.
— Claro. Ele não mente nem diz que isso é aquilo e aquilo é aquilo
outro até você não saber onde vai parar, vou dizer isso por ele. Ele também
não é do tipo que tenta colocar a carroça na frente dos bois. Mas vou falar
sem rodeios que estou contente por ele ter ido embora porque não ia dar
certo, não ia mais dar certo, já que a situação dele é diferente agora e tudo
mais.
Tenar não fazia ideia do que ela estava dizendo, exceto pela imagem da
carroça na frente dos bois.
— Não sei por que ele está com tanto medo — comentou Tenar. —
Bem, em parte, eu sei, mas não entendo por que sente tanta vergonha. Mas
sei que ele pensa que devia ter morrido. E sei que tudo o que entendo como
vida é ter seu trabalho para fazer e ser capaz de fazê-lo. Esse é o prazer, a
glória e tudo mais. E se você não consegue fazer o trabalho, ou se ele é
tirado de você, então de que adianta? É preciso ter alguma coisa…
Musgo ouviu e acenou com a cabeça como se ouvisse palavras de
sabedoria, porém, depois de uma breve pausa, ela disse:
— É estranho para um homem velho ser um menino de quinze anos,
sem dúvida!
Tenar quase perguntou: “Do que você está falando, Musgo?”. Entretanto,
algo a impediu. Ela percebeu que estava ouvindo Ged entrar em casa depois
de sua perambulação pela encosta da montanha, que estava ouvindo o som
da voz dele, que o corpo dela negava a ausência dele. De repente, Tenar
olhou para a bruxa, um corpo disforme e preto empoleirado na cadeira de
Ogion, junto à lareira vazia.
— Ah! — exclamou, com muitos pensamentos inesperados surgindo em
sua mente, todos ao mesmo tempo. — É por isso… — tentou falar. — É por
isso que eu nunca… — Depois de um longo silêncio, perguntou: — Eles…
Os feiticeiros… É um feitiço?
— Com certeza, com certeza, minha querida — afirmou Musgo. — Eles
se enfeitiçam. Alguns dirão que fazem uma troca, como um casamento
invertido, com votos e tudo, e então obtêm o poder. Mas para mim isso soa
errado, é mais como um acordo com os Antigos Poderes do que aquilo com
que uma verdadeira bruxa lida. O velho mago, ele me disse que eles não
faziam tal coisa. Embora eu saiba que algumas bruxas façam isso e não
sofram grandes danos com isso.
— Aquelas que me criaram faziam isso, prometendo virgindade.
— Ah, é, nenhum homem, você me disse, e eles, os yurnix. Terrível!
— Mas por que, por que… por que eu nunca pensei…
A bruxa riu alto.
— Porque esse é o poder deles, minha querida. Você não pensa! Você não
pode! Nem eles, depois de fazerem o feitiço. Como pensariam? Dado o
poder deles? Não adiantaria, não é, não adiantaria. Você não ganha nada sem
dar em troca. Isso vale para todo mundo, com certeza. Então, eles sabem
disso, os homens bruxos, os homens de poder, eles sabem disso melhor do
que ninguém. Mas, você sabe, é uma coisa desconfortável para um homem
não ser um homem, não importa se ele consegue fazer com que o sol desça
do céu. Então tiraram isso da cabeça, com seus feitiços de amarração. E é
verdade. Mesmo nesses tempos difíceis por que estamos passando, com os
feitiços dando errado e tudo mais, ainda não ouvi falar de um feiticeiro
quebrando esses feitiços, procurando usar seu poder para satisfazer a luxúria
do corpo. Até o pior deles teria medo de fazer isso. Claro, existem aqueles
que criam ilusões, mas apenas enganam a si mesmos. E existem os homens
bruxos de pouca importância, homens bruxos de fundo de quintal e coisa
assim, alguns deles vão testar os próprios feitiços de sedução nas mulheres
do campo, mas, pelo que sei, esses feitiços não significam grande coisa. O
que acontece é que um poder é tão grande quanto o outro, e cada um segue
o próprio caminho. É assim que entendo.
Tenar ficou pensativa, absorta. Por fim, disse:
— Eles se diferenciam.
— É. Um feiticeiro tem de fazer isso.
— Mas você, não.
— Eu? Sou só uma bruxa velha, minha querida.
— De quantos anos?
Depois de um minuto, a voz de Musgo soou na escuridão, com uma
risadinha:
— Velha o suficiente para ficar longe de problemas.
— Mas você disse… Você não foi celibatária.
— O que é isso, minha querida?
— Que nem os feiticeiros.
— Ah, não. Não, não! Nunca tinha nada para olhar, mas tinha uma
maneira de olhar para eles… Sem bruxaria, sabe, minha querida, sabe o que
quero dizer… Existe uma maneira de olhar, e ele se aproximava, era certo,
assim como um corvo grasna, em um ou dois ou três dias ele aparecia na
minha casa. “Preciso de uma cura para a sarna do meu cachorro”, “Preciso de
um chá para minha avó doente”… Mas eu sabia do que eles precisavam e, se
eu gostasse deles o suficiente, talvez conseguissem. E por amor, por amor…
Não sou uma delas, sabe, embora talvez algumas bruxas sejam, mas elas
desonram a arte, é só o que digo. Faço minha arte por dinheiro, mas tenho
prazer por amor, é o que digo. Não que seja tudo prazer, tudo isso. Fui louca
por um homem por muito tempo aqui, anos, um homem que era bonito,
mas que tinha um coração duro e frio. Está morto há muito tempo. Pai
daquele Toutinegra que voltou a morar aqui, você conhece. Ah, eu estava tão
entregue àquele homem que usei minha arte, gastei muitos encantos com
ele, mas foi tudo um desperdício. Tudo por nada. Não se tira leite de
pedra… E vim aqui para Re Albi, primeiro porque, quando era garota,
estava enrolada com um homem do Porto de Gont. Mas não posso falar
disso, pois eram pessoas ricas, gente grande. Eles é que tinham o poder, não
eu! Não queriam que o filho deles se envolvesse com uma garota comum
como eu, “vadia nojenta” era como me chamavam, e teriam me tirado do
caminho, com a facilidade de matar um gato, se eu não tivesse fugido para
cá. Mas, ah, eu gostava mesmo daquele rapaz, com seus braços e pernas
roliços e macios e seus olhos grandes e escuros, consigo vê-lo como se fosse
ontem, depois de todos esses anos…
As duas ficaram sentadas em silêncio por um longo tempo na escuridão.
— Quando você tinha um homem, Musgo, você tinha de abrir mão do
seu poder?
— Nem um pouco — respondeu a bruxa, satisfeita.
— Mas você disse que não se ganha sem dar algo em troca. É diferente,
então, para homens e para mulheres?
— O que não é, minha querida?
— Não sei — admitiu Tenar. — Parece que inventamos a maior parte
das diferenças e depois reclamamos delas. Não vejo por que a Arte da
Magia, por que o poder, deveria ser diferente entre um homem bruxo e uma
mulher bruxa. A menos que o poder em si seja diferente. Ou a arte.
— Um homem larga, minha querida. Uma mulher acolhe. — Tenar
permaneceu sentada em silêncio, mas insatisfeita. — Nosso poder é só um
pouco de poder, ao que parece, se comparado ao deles — explicou Musgo.
— Mas é profundo. Cheio de raízes. É como um bosque de amoras antigo.
E o poder de um feiticeiro é como um abeto, talvez, grande, alto e
imponente, mas cai na primeira tempestade. Nada mata uma amoreira
silvestre. — Musgo deu sua risada de galinha, satisfeita com a comparação
que fez. — Bem, então! — disse ela, logo em seguida. — Como eu disse,
talvez seja melhor que ele esteja a caminho e fora do caminho, antes que as
pessoas do vilarejo comecem a falar.
— Falar?
— Você é uma mulher respeitável, minha querida, e a reputação é a
riqueza de uma mulher.
— A riqueza — repetiu Tenar no mesmo tom inexpressivo; em seguida,
repetiu: — A riqueza. O tesouro. O patrimônio. O valor… — Ela se
levantou, incapaz de ficar parada, esticando as costas e os braços. — Como
os dragões que encontraram cavernas, que construíram fortalezas para seu
tesouro, para que seu patrimônio ficasse seguro, para dormirem em cima de
seu tesouro, para serem seu tesouro. Acumular, acumular, sem nunca dar
nada!
— Você vai saber o valor de uma boa reputação — afirmou Musgo
secamente — quando a perder. Não é tudo. Mas é difícil de substituir.
— Você desistiria de ser bruxa para ser respeitável, Musgo?
— Não sei — admitiu a bruxa depois de um tempo, reflexiva. — Não sei
se saberia como fazer isso. Tenho um dom, talvez, mas não o outro.
Tenar se aproximou e lhe segurou as mãos. Surpresa com o gesto, Musgo
se levantou, afastando-se um pouco; mas Tenar a puxou para a frente e
beijou sua bochecha.
A mulher mais velha levantou uma mão e tocou timidamente o cabelo de
Tenar, um carinho tal como Ogion costumava fazer. Depois se afastou e
murmurou sobre ter de ir para casa, começou a sair; da porta, perguntou:
— Ou você prefere que eu fique, com aqueles estrangeiros por aí?
— Vá — respondeu Tenar. — Estou acostumada com estrangeiros.

***

Naquela noite, deitada para dormir, ela entrou novamente nos vastos
abismos de vento e luz, mas a luz era fumarenta, vermelha, laranja-
avermelhada e âmbar, como se o próprio ar fosse fogo. Nesse elemento ela
estava e não estava; voando ao vento e sendo o vento, o sopro do vento, a
força que se liberta; e nenhuma voz a chamou.

***

De manhã, Tenar se sentou na soleira da porta escovando os cabelos. Ela


não era loira, como muitas pessoas karginesas; sua pele era pálida, mas seu
cabelo, escuro. Ainda estava escuro, mal se encontrava um fio grisalho. Ela o
lavou com um pouco da água que estava esquentando para lavar as roupas,
pois decidira que lavar roupa seria seu trabalho do dia, já que Ged estava
fora e sua respeitabilidade, garantida. Ela secou o cabelo ao sol, escovando-o.
Na manhã quente e ventosa, faíscas seguiam a escova e estalavam nas pontas
esvoaçantes de seu cabelo.
Therru chegou e ficou atrás dela, observando. Tenar virou-se e viu-a tão
concentrada que quase tremia.
— O que foi, passarinha?
— O fogo voando — respondeu a criança, com medo ou enlevo. — Por
todo o céu!
— São só as faíscas do meu cabelo — explicou Tenar, um pouco
surpresa.
Therru sorria, e Tenar não sabia se já vira a criança sorrir antes. Therru
estendeu ambas as mãos, a inteira e a queimada, como se quisesse tocar e
seguir o voo de algo em torno do cabelo solto e flutuante de Tenar.
— Os fogos, todos voando — repetiu ela, e riu.
Nesse momento, Tenar ponderou pela primeira vez como Therru a via,
como via o mundo, e percebeu que não sabia: que não podia saber o que se
via com um olho que tinha sido queimado. E as palavras de Ogion, “Eles
vão temê-la”, ocorreram-lhe novamente; mas ela não sentia medo da
criança. Em vez disso, escovou o cabelo mais uma vez, com vigor, para que as
faíscas voassem, e mais uma vez ouviu a risada rouca de alegria.
Tenar lavou os lençóis, os panos de prato, a combinação, o vestido extra e
os vestidos de Therru e os colocou (depois de se certificar de que as cabras
estavam no pasto cercado) no prado para secar na grama seca, usando pedras
como peso, pois o vento era tempestuoso, trazendo consigo uma selvageria
de fim de verão.
Therru estava crescendo. Ainda era muito pequena e magra para a idade,
que devia ser de mais ou menos oito anos, porém, nos últimos meses, com os
ferimentos finalmente curados e sem dor, a menina começou a correr mais e
a comer mais. Suas roupas estavam ficando pequenas, roupas de segunda
mão da filha caçula de Cotovia, uma menina de cinco anos.
Tenar pensou que poderia ir até a aldeia visitar Flabelo, o tecelão, e ver se
ele teria uma ou duas sobras de tecido para dar em troca da lavagem que ela
lhe mandava para os porcos. Ela gostaria de costurar algo para Therru.
Também gostaria de visitar o velho Flabelo. A morte de Ogion e a doença
de Ged afastaram-na da aldeia e das pessoas que lá conhecera. Afastaram-
na, como sempre, daquilo que conhecia, do que sabia fazer, do mundo em
que escolhera viver: um mundo que não era de reis e rainhas, de grandes
poderes e domínios, de artes elevadas, de viagens e de aventuras (ela refletiu
enquanto se certificava de que Therru estava com Érica e partia para a
cidade), e sim de pessoas comuns executando tarefas comuns, como se casar,
educar as crianças, cultivar, costurar e lavar roupa. Tenar considerou tudo
isso como uma espécie de vingança, como se o pensamento fosse dirigido a
Ged, agora, sem dúvida, a meio caminho do Vale Central. Imaginou-o na
estrada, perto do vale onde ela e Therru tinham dormido. Imaginou o
homem franzino e de cabelos grisalhos caminhando sozinho e em silêncio,
com meio pedaço do pão da bruxa no bolso e muita tristeza no coração.
Talvez seja hora de você descobrir, conjecturou, dirigindo-se a ele. Já é hora
de você descobrir que não aprendeu tudo em Roke! Enquanto ralhava com ele
mentalmente, outra imagem lhe ocorreu: avistou, perto de Ged, um dos
homens que esperaram por ela e Therru naquela estrada. Sem querer, ela
disse: “Ged, tenha cuidado!”; pois temia por ele, pois ele não carregava
sequer um bastão. Não era o sujeito grande de lábios peludos que ela
encontrou, mas outro deles, um homem mais jovem com um capuz de
couro, aquele que encarara Therru fixamente.
Ela olhou para cima e vislumbrou a cabaninha ao lado da casa de
Flabelo, onde ela morava quando vivia ali. Entre ela e a cabana passou um
homem. Era o homem de quem ela estava se lembrando, imaginando, o
homem com capuz de couro. Ele passava pela cabana, pela casa do tecelão; e
não a viu. Tenar o observou subir a rua da aldeia sem parar. Ele estava se
encaminhando para a curva da estrada da colina ou para a mansão.
Sem parar a fim de refletir o porquê, Tenar seguiu-o a distância até
perceber qual curva ele tomava. Subiu a colina até o domínio do Senhor de
Re Albi, e não desceu a estrada por onde Ged tinha seguido.
Virou-se e visitou o velho Flabelo.
Embora quase recluso, assim como muitos tecelões, Flabelo tinha sido
gentil e tímido com a garota karginesa, além de vigilante. Quantas pessoas,
pensou ela, haviam protegido sua respeitabilidade? Agora quase cego, Flabelo
tinha uma aprendiz que fazia a maior parte da tecelagem. Ele ficou feliz por
receber uma visita. Sentou-se, com toda a pompa, em uma velha cadeira
entalhada, sob o objeto de onde vinha seu nome: um grande leque pintado, o
tesouro de sua família — presente, segundo a história, de um generoso
pirata do mar a seu avô por ter produzido velas prestemente em um
momento de necessidade. O leque estava exposto na parede, aberto. Os
homens e mulheres delicadamente pintados em seus magníficos paramentos
rosa, jade e anis, as torres, pontes e estandartes do Grande Porto de Havnor,
tudo se tornou familiar a Tenar assim que ela reviu o leque. Os visitantes de
Re Albi eram frequentemente trazidos para vê-lo. Era a coisa mais
requintada da aldeia, todos concordavam.
Ela o admirou, ciente de que isso agradaria ao velho e porque era
realmente muito bonito. Então ele falou:
— Você não viu muita coisa igual a isso, em todas as suas viagens, não é?
— Não, não. Não vi nada parecido no Vale Central — declarou ela.
— Quando esteve aqui, na minha casa, alguma vez lhe mostrei o outro
lado?
— O outro lado? Não — respondeu ela, e então não havia nada a fazer
senão baixar o leque; só que ela teve de subir e fazê-lo, desprendendo-o com
cuidado, já que ele não conseguia enxergar bem o suficiente e não conseguia
subir na cadeira. Ele a orientou ansiosamente. Tenar o colocou nas mãos
dele, e Flabelo o fitou com seus olhos turvos, fechou-o até a metade para ter
certeza de que os frisos dobravam livremente, depois fechou-o por inteiro,
virou-o e entregou-o a ela.
— Abra devagar — recomendou.
Ela o fez. Dragões se moviam conforme as dobras do leque se moviam.
Pintados de forma sutil e requintada na seda amarelada, em pálidos
vermelhos, azuis e verdes, dragões moviam-se e agrupavam-se, como as
figuras do outro lado se agrupavam, entre nuvens e picos de montanhas.
— Segure-o contra a luz — disse o velho Flabelo.
Ela o fez e viu os dois lados, as duas pinturas, unidos pela luz que fluía
através da seda, de modo que as nuvens e os picos eram as torres da cidade,
os homens e as mulheres eram alados e os dragões fitavam com olhos
humanos.
— Viu?
— Vi — murmurou ela.
— Agora não posso ver, mas está na minha mente. Não mostro isso a
muitas pessoas.
— É muito lindo.
— Eu pretendia mostrá-lo ao velho mago — comentou Flabelo —, mas,
com uma coisa e outra, nunca o fiz.
Tenar voltou a virar o leque contra da luz e depois o montou tal como
estava, os dragões escondidos na escuridão, os homens e as mulheres
caminhando à luz do dia.
Flabelo levou-a para ver seus porcos, um belo casal, engordando bem
para virar embutidos no outono. Eles discutiram a incompetência de Érica
como alimentadora de porcos. Tenar lhe disse que estava interessada em um
pedaço de tecido para um vestido de criança, e ele ficou encantado, puxando
para ela uma peça inteira de linho fino, ao passo que a jovem que era sua
aprendiz, e que parecia ter absorvido toda a insociabilidade dele, bem como
a arte, resmungava no grande tear, determinada e carrancuda.
Ao voltar para casa, Tenar pensou em Therru sentada naquele tear. Seria
uma vida decente. A maior parte do trabalho era enfadonha, sempre igual,
mas a tecelagem era um ofício honroso e, em algumas mãos, uma arte nobre.
As pessoas esperavam que aqueles que trabalhavam com tecelagem fossem
um pouco tímidos, muitas vezes solteiros, sempre trancados no trabalho; e
ainda assim eram respeitados. Além disso, trabalhando em um tear dentro
de casa, Therru não teria de mostrar o rosto. Mas a mão em garra? Será que
aquela mão conseguiria manejar a lançadeira e urdir o tear?
E Therru teria de se esconder por toda a vida?
Mas o que ela, Tenar, deveria fazer? Sabendo como deve ser a vida dela…
Tenar decidiu pensar em outro assunto. O vestido que ela faria. Os
vestidos da filha de Cotovia eram grosseiros, simples como barro. Ela
poderia tingir metade daquela extensão, talvez de amarelo ou com garança
vermelha do pântano; e depois um avental completo ou um vestido branco,
com babados. A criança deveria ficar escondida em um tear no escuro e
nunca ter babados na saia? Ainda sobraria o suficiente para uma muda e um
segundo avental se ela cortasse com cuidado.
— Therru! — chamou ela enquanto se aproximava da casa. Érica e
Therru estavam no pasto quando ela partiu. Tenar chamou de novo,
querendo mostrar o material a Therru e lhe contar sobre o vestido. Érica
veio do reservatório da fonte, boquiaberta, puxando Tetê por uma corda.
— Onde está Therru?
— Com você — respondeu a jovem com tanta serenidade que Tenar
observou em volta à procura da criança antes de compreender que Érica não
fazia ideia de onde estava a menina e simplesmente declarara o que queria
que fosse verdade.
— Onde você a deixou?
Érica não tinha ideia. Ela nunca decepcionara Tenar; parecia
compreender que Therru tinha de ser mantida mais ou menos à vista, como
uma cabra. Mas quem sabe tenha sido Therru que sempre compreendeu isso
e se manteve à vista? Ao menos foi o que Tenar pensou, como não tinha
nenhuma orientação compreensível de Érica, e começou a olhar e a chamar
a criança, sem obter resposta.
Ela se manteve afastada da beira do penhasco o máximo que pôde. No
primeiro dia ali, tinha explicado a Therru que ela nunca deveria descer
sozinha pelos campos inclinados abaixo da casa ou ao longo da encosta
íngreme ao norte, porque a visão de um olho só não pode avaliar a distância
ou a profundidade com exatidão. A criança obedeceu. Sempre obedecia. Mas
as crianças esquecem. Porém ela não esqueceria. Mas poderia chegar perto
do limite sem saber. No entanto, com certeza tinha ido à casa de Musgo. Era
isso: tendo ido sozinha até lá na noite anterior, ela iria de novo. Era isso, é
claro.
Ela não estava lá. Musgo não a viu.
— Vou achar a menina, vou achar, minha querida — garantiu a bruxa a
Tenar; mas, em vez de subir o caminho da floresta em sua busca, tal como
Tenar esperava que fizesse, Musgo começou a prender o cabelo, preparando-
se para lançar um feitiço de descoberta.
Tenar correu de volta à casa de Ogion, chamando sem parar. E dessa vez
ela olhou para os campos íngremes abaixo da casa, à espera de ver a pequena
silhueta agachada brincando entre as pedras. Mas tudo o que viu foi o mar,
enrugado e escuro, ao fim daqueles campos em declive, e ficou tonta, com o
coração apertado.
Ela foi até o túmulo de Ogion e avançou um pouco pelo caminho da
floresta, chamando. Ao voltar pelo prado, a fêmea de falcão-peneireiro
caçava no mesmo local onde ficara Ged a observando. Dessa vez ela se
abaixou, atacou e se ergueu com alguma criaturinha nas garras. Ela voou
rápido para a floresta. Está alimentando os filhotes, pensou Tenar. Todos os
tipos de pensamentos passaram por sua mente, muito vívidos e precisos,
enquanto passava pela roupa estendida na grama, agora seca; ela deveria
retirá-la antes do anoitecer. Ela deveria procurar na casa, na fonte, no galpão
de ordenha, com mais cuidado. Era culpa sua. Tinha provocado aquilo
quando pensou em transformar Therru em tecelã, fechando-a no escuro para
trabalhar, para ser respeitável. Quando Ogion dissera: “Ensina-a, ensine
tudo a ela, Tenar!”. Quando ela sabia que um erro que não pode ser reparado
deve ser transcendido. Quando ela sabia que a criança lhe tinha sido dada e
ela havia fracassado em sua tarefa, que traíra a confiança dela, perdera-a,
perdera o grande presente.
Tenar entrou na casa, tendo revistado todos os cantos das outras
instalações, e olhou novamente na alcova e ao redor da outra cama. Ela se
serviu de água, pois sua boca estava seca como areia.
Atrás da porta, os três bastões de madeira, o cajado de Ogion e os
bastões de apoio, moviam-se nas sombras e um deles disse:
— Aqui.
A criança estava agachada naquele canto escuro, envolvida no próprio
corpo, de modo que não parecia maior que um cachorrinho, a cabeça
inclinada até o ombro, braços e pernas bem contraídos, o único olho
fechado.
— Passarinha, pardalzinho, foguinho, qual o problema? O que
aconteceu? O que fizeram com você agora? — Tenar segurou o pequeno
corpo, fechado e rígido como pedra, balançando-o nos braços. — Como
pôde me assustar tanto? Como pôde se esconder de mim? Ah, eu estava com
tanta raiva! — Ela chorou e suas lágrimas caíram no rosto da criança. —
Ah, Therru, Therru, Therru, não se esconda de mim!
Um arrepio percorreu os membros nodosos que, com lentidão, se
soltaram. Therru moveu-se e, de repente, agarrou-se a Tenar, escondendo o
rosto na cavidade entre o peito e o ombro da mulher, apertando-a com mais
força até agarrá-la desesperadamente. Não chorou. Ela nunca chorava; talvez
as lágrimas dela tivessem sido queimadas; ela não tinha nenhuma. Mas a
criança emitiu um som longo, gemendo e soluçando.
Tenar segurou-a, embalando-a, embalando-a. Muito, muito lentamente,
o aperto desesperado relaxou. A cabeça estava apoiada no peito de Tenar.
— Fale para mim — murmurou a mulher.
— Ele veio aqui — respondeu a criança em seu sussurro fraco e rouco.
O primeiro pensamento de Tenar foi para Ged, e sua mente, ainda
agitada com a rapidez do medo, compreendeu, percebeu o que “ele”
significava para ela. Deu um sorrisinho amargo, mas seguiu em frente,
indagando:
— Quem veio aqui? — Não houve resposta, e sim uma espécie de tremor
interno. — Um homem — sugeriu Tenar, calmamente —, um homem com
um capuz de couro.
Therru assentiu uma vez. Tenar prosseguiu:
— Nós o vimos na estrada, vindo para cá. — Nenhuma resposta. — Os
quatro homens… Aqueles de quem fiquei com raiva, você lembra? Ele era
um deles. — Mas ela recordou que Therru manteve a cabeça baixa,
escondendo o lado queimado, sem olhar para cima, como sempre fazia entre
estranhos. — Você conhece o homem, Therru?
— Sim.
— Desde… desde a época que você morava no acampamento perto do
rio?
Houve um aceno de cabeça.
Os braços de Tenar se estreitaram em volta da menina.
— Ele veio aqui? — perguntou Tenar, e todo o medo que ela sentia se
transformou em raiva enquanto ela falava, uma raiva que ardia nela por todo
o corpo como um bastão de fogo. Ela deu uma espécie de risada: — Haha!
— E naquele momento se lembrou de Kalessin, de como Kalessin rira.
Mas não era tão simples para uma humana, uma mulher. O fogo deve ser
contido. E a criança deve ser consolada.
— Ele viu você?
— Eu me escondi.
Naquele momento, Tenar prometeu, acariciando o cabelo de Therru:
— Ele nunca vai encostar em você, Therru. Escute e acredite em mim:
ele nunca mais vai encostar em você. Ele nunca mais vai ver você, a menos
que eu esteja com você, e nesse caso ele vai ter de lidar comigo. Você
entendeu, minha querida, minha preciosa, minha linda? Você não precisa ter
medo dele. Não deve ter medo dele. Ele quer que você tenha medo dele. Ele
se alimenta do seu medo. Vamos matá-lo de fome, Therru. Vamos matá-lo
de fome até que ele devore a si mesmo. Até que ele se engasgue roendo os
ossos das próprias mãos… Ah, ah, ah, não me escute agora, só estou com
raiva, só com raiva… Estou vermelha? Estou vermelha como uma gontesa
agora? Como um dragão, estou vermelha? — tentou brincar ela.
Therru, levantando a cabeça, mirou o rosto dela com o próprio rosto
enrugado, trêmulo e consumido pelo fogo, e disse:
— Sim. Você é um dragão vermelho.

***

A ideia de que aquele homem fora até a casa, estivera na casa, dera uma
olhada no trabalho que tinha feito, talvez pensara em melhorá-lo, sempre
que essa ideia ocorria a Tenar era menos um pensamento do que uma crise
de enjoo, uma necessidade de vomitar. Mas a náusea se incendiava
tornando-se raiva.
Ambas se levantaram e se lavaram, e Tenar decidiu que o que mais sentia
naquele momento era fome.
— Estou varada de fome — disse a Therru e lhes serviu uma refeição
substanciosa composta de pão e queijo, feijão frio com óleo e ervas, uma
cebola fatiada e linguiça seca. Therru comeu bastante e Tenar comeu
bastante.
Enquanto recolhiam as coisas, Tenar disse:
— Por enquanto, Therru, não vou me separar de você de jeito nenhum, e
você não vai se separar de mim. Combinado? E nós duas deveríamos ir
agora para a casa de tia Musgo. Ela estava fazendo um feitiço para encontrar
você e não precisa se preocupar em continuar, mas talvez não saiba disso.
Therru parou de se mover. Olhou uma vez para a porta aberta e se
afastou dali.
— Precisamos ir buscar a roupa, também. Quando voltarmos, vou lhe
mostrar o tecido que ganhei hoje. Para fazer um vestido. Um vestido novo
para você. Um vestido vermelho.
A criança ficou parada, encolhida.
— Se nos escondermos, Therru, nós o alimentamos. Nós vamos devorar.
E vamos matá-lo de fome. Venha comigo.
A dificuldade, a barreira que era aquela passagem para o exterior era
tremenda para Therru. Ela se encolheu, escondeu o rosto, tremeu, tropeçou;
foi cruel forçá-la a atravessá-lo, foi cruel expulsá-la do esconderijo, mas
Tenar não teve piedade.
— Venha — chamou, e a criança foi.
Elas caminharam de mãos dadas pelos campos até a casa de Musgo.
Uma ou duas vezes Therru conseguiu erguer os olhos.
Musgo não ficou surpresa ao se deparar com elas, mas tinha uma
aparência estranha e cautelosa. Disse a Therru para correr para dentro de sua
casa a fim de conhecer os novos pintinhos da galinha de pescoço pelado e
escolher quais seriam os seus; Therru desapareceu imediatamente naquele
refúgio.
— Ela estava em casa o tempo todo — contou Tenar. — Escondida.
— Bem, ela deveria — disse Musgo.
— Por quê? — perguntou Tenar em tom áspero. Não estava disposta a se
esconder.
— Existem… seres rondando — respondeu a bruxa, não de forma
portentosa, mas com inquietação.
— Existem canalhas rondando — corrigiu Tenar, e Musgo olhou para
ela e recuou um pouco.
— Ah, agora — disse ela. — Ah, minha querida. Você tem um fogo à sua
volta, um brilho de fogo ao redor de toda a sua cabeça. Lancei o feitiço para
encontrar a criança, mas não deu certo. De alguma forma, o feitiço seguiu
seu próprio caminho e ainda não sei se acabou. Estou confusa. Vi seres
grandes. Procurei a menininha, mas encontrei esses seres voando nas
montanhas, voando nas nuvens. E agora você tem essa coisa em volta de
você, como se seu cabelo estivesse queimando. O que está errado, o que deu
de errado?
— Um homem com um capuz de couro — contou Tenar. — Um homem
jovem. De relativa boa aparência. A costura do ombro do colete está rasgada.
Você o viu por aí?
Musgo assentiu.
— Levaram-no para a produção de feno, na mansão.
— Eu disse para você que ela — Tenar olhou para a cabana — estava
com uma mulher e dois homens? Ele é um deles.
— Quer dizer que é um dos que…
— Sim.
Musgo permaneceu imóvel como uma velha esculpida em madeira,
rígida, um bloco.
— Não sei — falou, por fim. — Achei que sabia o suficiente. Mas não. O
que… Ele viria… Viria… para ver a menina?
— Se ele é o pai, talvez tenha vindo reivindicá-la.
— Reivindicar?
— Ela é propriedade dele — explicou Tenar calmamente. Olhava para o
topo da Montanha de Gont enquanto considerava: — Mas acho que não é o
pai. Acho que este é o outro. O que veio e disse para minha amiga na aldeia
que a criança tinha “se machucado”.
Musgo ainda estava confusa, ainda estava assustada com as próprias
conjurações e visões, com a ferocidade de Tenar, com a presença do mal
abominável. Balançou a cabeça, desolada.
— Não sei — disse ela. — Achei que soubesse o suficiente. Por que ele
voltaria?
— Para devorar — respondeu Tenar. — Devorar. Não vou deixar a
menina sozinha de novo. Mas amanhã, Musgo, talvez lhe peça que a
mantenha aqui por mais ou menos uma hora, no início do dia. Você faria
isso enquanto vou até a mansão?
— Sim, minha querida. É claro. Posso colocar um feitiço para esconder a
menina, se quiser. Mas… mas eles estão lá em cima, os grandes homens da
Cidade Real.
— Ora, então eles podem ver como é a vida das pessoas comuns —
provocou Tenar, e Musgo recuou de novo como se uma chuva de faíscas
fosse soprada contra ela, vinda de uma chama ao vento.
capítulo 9

encontrando palavras

Os segadores estavam produzindo feno no extenso prado do Senhor de


Re Albi, espalhados pela encosta nas sombras claras da manhã. Três eram
mulheres e, entre os dois homens, um era um garoto, como Tenar pôde
perceber a distância, e o outro era encurvado e grisalho. Ela se aproximou
das fileiras segadas e perguntou a uma das mulheres pelo homem com o
capuz de couro.
— Aquele que veio de Valmouth, ah — disse a segadora. — Não sei para
onde ele foi.
Os outros vieram ao longo da fileira, felizes com a pausa. Nenhum deles
sabia onde estava o homem do Vale Central ou por que não estava cortando
a plantação com eles.
— Esse tipo não fica — comentou o homem grisalho. — É folgado. A
senhora conhece o rapaz?
— Não por opção — respondeu Tenar. — Ele veio espreitando minha
casa… Assustou a criança. Nem sei como ele se chama.
— Ele se autodenomina Habilidoso — revelou o garoto
voluntariamente.
Os outros olharam para Tenar ou desviaram o olhar sem dizerem nada.
Estavam começando a descobrir quem ela deveria ser, a mulher karginesa na
casa do velho mago. Eram arrendatários do Senhor de Re Albi, desconfiados
dos aldeões e hesitantes com qualquer coisa que tivesse a ver com Ogion.
Afiaram as foices, viraram-se, espalharam-se de novo e se puseram a
trabalhar. Tenar desceu do campo na encosta, passando por uma fileira de
nogueiras, rumo à estrada.
Nela, um homem estava esperando. Seu coração teve um sobressalto. Ela
caminhou para encontrá-lo.
Era Álamo, o feiticeiro da mansão. Estava apoiado de modo elegante em
seu alto cajado de pinho, à sombra de uma árvore à beira da estrada.
Quando Tenar saiu para a estrada, ele disse:
— Está procurando trabalho?
— Não.
— Meu senhor precisa de ajudantes de campo. Este tempo quente está
chegando, o feno precisa ser guardado.
Para Goha, a viúva de Pederneira, o que ele disse era apropriado, e Goha
lhe respondeu educadamente:
— Sem dúvida, sua habilidade pode afastar a chuva dos campos até que o
feno esteja guardado. — Mas ele sabia que ela era a mulher a quem Ogion,
moribundo, dissera o seu nome verdadeiro e, dado esse conhecimento, o que
ele disse foi tão insultuoso e deliberadamente falso que serviu como um
aviso nítido. Ela estava prestes a perguntar se o feiticeiro sabia do paradeiro
de Habilidoso. Em vez disso, disse: — Vim dizer ao feitor daqui que um
homem que ele contratou para produzir o feno deixou minha aldeia como
ladrão e coisa pior, não é alguém que ele escolheria ter no lugar. Mas parece
que o homem seguiu em frente.
Ela olhou calmamente para Álamo até que ele respondeu, com certo
esforço:
— Não sei nada sobre essas pessoas.
Na manhã da morte de Ogion, ela pensara que ele era um jovem, um
jovem alto e bonito de capa cinzenta e cajado prateado. Não parecia tão
jovem quanto ela pensava, ou era jovem, mas de alguma forma seco e
definhado. Seu olhar e sua voz eram agora abertamente desdenhosos, e ela
respondeu com a voz de Goha:
— Com certeza. Perdão.
Tenar não queria problemas com ele. Fez menção de voltar para a aldeia,
mas Álamo interveio:
— Espere! — Ela esperou. — “Um ladrão e coisa pior”, você diz, mas
calúnia é barata, e a língua de uma mulher é pior do que a de qualquer
ladrão. Você veio aqui para causar rixa entre os trabalhadores do campo,
lançando calúnias e mentiras, a semente de dragão que toda bruxa semeia
atrás de si. Achou que eu não reconhecia você como uma bruxa? Quando vi
aquela peste imunda que se agarrou a você, acha que eu não sabia como ela
foi gerada e a que propósito? Fez bem o homem que tentou destruir aquela
criatura, mas o trabalho deveria ser concluído. Você me desafiou uma vez,
diante do corpo do velho feiticeiro, e então me abstive de puni-la, por causa
dele e na presença de outros. Mas agora você foi longe demais, estou
avisando, mulher! Não permitirei que coloque os pés neste domínio. E se
contrariar minha vontade ou se atrever a falar comigo novamente, farei com
que seja expulsa de Re Albi e de Overfell, com os cães em seus calcanhares.
Você me entendeu?
— Não — respondeu Tenar. — Nunca entendi homens como você.
Ela se virou e seguiu pela estrada.
Algo parecido com um toque acariciante subiu por sua coluna, seu cabelo
se arrepiou. Tenar se virou bruscamente e viu o feiticeiro estender o cajado
em sua direção, os relâmpagos escuros se juntaram em torno do objeto, e os
lábios dele se abriram para falar. Como Ged perdeu a magia, pensei que todos os
homens a tivessem perdido, mas estava errada!, pensou ela naquele momento.
Uma voz educada disse:
— Ora, ora. O que temos aqui?
Dois dos homens de Havnor tinham saído para a estrada, vindos dos
pomares de cerejeira do outro lado. Olhavam de Álamo para Tenar com
expressões suaves e corteses, como se lamentassem a necessidade de impedir
um feiticeiro de lançar uma maldição sobre uma viúva de meia-idade, mas,
na verdade, isso não seria possível.
— Senhora Goha — disse o homem com a camisa bordada a ouro, e lhe
fez uma reverência.
O outro, o de olhos brilhantes, também a saudou, sorrindo.
— A Senhora Goha — disse — é alguém que, assim como o rei, carrega
seu nome verdadeiro abertamente, eu acho, e sem medo. Morando em Gont,
ela pode preferir que usemos seu nome gontês. Mas, conhecendo seus feitos,
peço-lhe que a honre; pois ela portou o Anel que nenhuma mulher portava
desde Elfarran. — Ele se ajoelhou como se fosse a coisa mais natural do
mundo, pegou a mão direita de Tenar com muita leveza e rapidez e tocou-
lhe o punho com a testa. Ele a soltou e se levantou, abrindo aquele sorriso
gentil e conivente.
— Ah — soltou Tenar, perturbada e amigável —, há todos os tipos de
poder no mundo! Obrigada.
O feiticeiro ficou imóvel, observando. Ele tinha fechado a boca diante da
maldição e recuado o cajado, mas ainda havia uma escuridão visível sobre ele
e sobre seus olhos.
Tenar não sabia se ele já tinha conhecimento ou se acabava de saber que
ela era Tenar do Anel. Isso não importava. Ele não tinha como odiá-la mais.
Ser mulher era culpa dela. Nada poderia piorar ou reparar isso aos olhos
dele; nenhuma punição era suficiente. Ele olhara para o que tinha sido feito
a Therru e aprovara.
— Senhor — disse ela ao homem mais velho —, qualquer coisa menos
do que honestidade e franqueza parece uma desonra para o rei, por quem
você fala… e age, como agora. Gostaria de homenagear o rei e seus
mensageiros. Mas a minha própria honra permanece em silêncio, até que o
meu amigo me liberte. Eu… Eu tenho certeza, meus senhores, de que ele
enviará alguma mensagem para vocês, com o tempo. Apenas concedam-lhe
tempo, eu lhes peço.
— Com certeza — disseram um e outro. — Quanto tempo ele quiser. E
sua confiança, minha senhora, nos honra acima de tudo.
Tenar enfim seguiu pela estrada para Re Albi, abalada pelo choque e pela
mudança das coisas, pelo ódio punitivo do feiticeiro, por seu próprio
desprezo raivoso, por seu terror diante do súbito conhecimento da vontade e
do poder dele de lhe fazer mal, do fim repentino daquele terror no refúgio
oferecido pelos enviados do rei — os homens que vieram no navio de velas
brancas do porto, a Torre da Espada e do Trono, o centro do direito e da
ordem. Seu coração se elevou em gratidão. Havia de fato um rei naquele
trono, e em sua coroa a principal joia seria a Runa da Paz.
Ela gostou do rosto do homem mais jovem, inteligente e gentil, da
maneira como se ajoelhou diante dela como se fosse uma rainha e de seu
sorriso que escondia uma piscadela escondida. Tenar se virou a fim de olhar
para trás. Os dois enviados subiam a estrada para a mansão com o feiticeiro
Álamo. Pareciam conversar amigavelmente com ele, como se nada tivesse
acontecido.
Aquilo fez submergir um pouco sua onda de confiança esperançosa. Na
verdade, eram cortesãos. Não lhes cabiam brigar ou julgar e desaprovar; e ele
era um feiticeiro, o feiticeiro do anfitrião deles. Mesmo assim, pensou ela, eles
não precisavam ter caminhado e conversado com ele tão confortavelmente.

***
Os homens de Havnor permaneceram vários dias com o Senhor de Re Albi,
talvez à espera de que o Arquimago mudasse de ideia e fosse ter com eles,
mas não o procuraram nem pressionaram Tenar sobre onde ele poderia
estar. Quando por fim partiram, Tenar disse a si própria que devia decidir o
que fazer. Não havia qualquer razão real para ela ficar ali, e havia duas razões
fortes para partir: Álamo e Habilidoso. Ela não podia confiar que algum
deles dois a deixasse em paz com Therru. No entanto, Tenar achava difícil se
decidir, porque era difícil pensar em partir. Ao deixar Re Albi agora, ela
deixava Ogion, perdia-o, assim como ela não o perdia enquanto cuidasse da
casa dele e arrancasse as ervas daninhas das cebolas dele. Nunca vou sonhar
com o céu lá embaixo, pensava ela. Ali, onde Kalessin viera, ela era Tenar,
refletia. No Vale Central, seria apenas Goha novamente. Protelou. Disse a si
mesma: “Devo temer esses canalhas, fugir deles? É isso que querem que eu
faça. Vão me fazer ir e vir a seu bel-prazer?”. Ela disse a si mesma: “Vou só
terminar de preparar o queijo”. Manteve Therru sempre com ela; e os dias
passaram.
Musgo veio com uma história para contar. Tenar lhe perguntara sobre o
feiticeiro Álamo, sem contar a ela toda a história, mas dizendo que ele a
tinha ameaçado — o que, na verdade, poderia muito bem ser tudo o que
pretendera fazer. Musgo geralmente se mantinha longe dos domínios do
velho senhor, mas estava curiosa sobre o que acontecia lá e disposta a
encontrar a oportunidade de conversar com algumas conhecidas de lá, uma
mulher com quem ela aprendera paridela e outras as quais atendera como
curandeira ou descobridora. Ela as fez falar sobre o que estava acontecendo
na mansão. Todas odiavam Álamo e por isso estavam completamente
prontas para falar sobre ele, mas suas histórias deviam ser ouvidas como
sendo, em parte, despeito e medo. Ainda assim, haveria fatos entre as
fantasias. A própria Musgo atestou que, até a chegada de Álamo, três anos
antes, o senhor mais jovem, o neto, estava em boa forma e bem, embora
fosse um homem tímido e taciturno, “como se estivesse assustado”, disse ela.
Então, na época que a mãe do jovem senhor morreu, o velho senhor mandou
buscar um feiticeiro em Roke… “Para quê? Com o Senhor Ogion a menos
de um quilômetro de distância? E na própria mansão são todos gente da
feitiçaria.”
Mas Álamo viera. Ele prestara os seus respeitos a Ogion e nada mais,
permanecia sempre lá no alto, na mansão, segundo Musgo. Desde então,
cada vez menos se via o neto e dizia-se agora que ele ficava deitado dia e
noite na cama, “como um bebê doente, todo encarquilhado”, comparou uma
das mulheres que tinha entrado na casa para alguma tarefa. Mas o velho
senhor, “com cem anos, ou perto disso, ou mais”, insistiu Musgo (ela não
tinha medo de números nem respeito por eles), o velho senhor estava no
auge, “cheio de energia”, diziam. E um dos homens, pois só tinham homens
para servi-los na mansão, disse a uma das mulheres que o velho senhor havia
contratado o feiticeiro para fazê-lo viver para sempre e que o feiticeiro
estava fazendo isso, alimentando-o, disse o homem, com a vida do neto. O
homem não via mal nenhum nisso, dizendo: “Quem não gostaria de viver
para sempre?”.
— Bem — comentou Tenar, surpresa. — Que história horrível. Não
falam sobre tudo isso na aldeia?
Musgo deu de ombros. Era uma questão para “É assim mesmo”
novamente. As ações dos poderosos não deveriam ser julgadas pelos
impotentes. E havia a lealdade obscura e cega, o enraizamento no lugar: o
velho era o senhor deles, Senhor de Re Albi, o que ele fazia não era da conta
de mais ninguém… Evidentemente, Musgo também sentia isso.
— Arriscado — afirmou ela —, está fadado a dar errado, um truque
desses. — Mas ela não disse que era perverso.
Não havia qualquer sinal de que o sujeito Habilidoso tivesse sido visto na
mansão. Desejando ter a certeza de que ele houvesse saído de Overfell,
Tenar perguntou a um ou dois conhecidos da aldeia se viram tal homem,
mas obteve respostas ambíguas e relutantes. Não queriam tomar parte nos
assuntos dela. “É assim mesmo…” Apenas o velho Flabelo a tratava como
amiga e conterrânea de aldeia, e isso talvez acontecesse porque os olhos dele
estavam tão turvos que ele não conseguia ver Therru com nitidez.
Agora, Tenar levava a criança quando ia à aldeia ou a algum lugar
qualquer que fosse a distância de casa.
Therru não achava cansativo esse cativeiro. Ficava perto de Tenar como
faria uma criança muito mais nova, trabalhando com ela ou brincando. Sua
brincadeira era a cama de gato, a cestaria e um par de figuras de ossos que
Tenar encontrara em um saquinho de ervas em uma das prateleiras de
Ogion. Um animal que poderia ser um cachorro ou uma ovelha e uma figura
que poderia ser uma mulher ou um homem. Para Tenar, não davam qualquer
sensação de poder ou perigo, e Musgo disse: “Apenas brinquedos”. Para
Therru, eram uma grande magia. Ela os movia nos padrões de alguma
história silenciosa por horas a fio; não falava enquanto brincava. Às vezes,
construía casas para a pessoa e para o animal, montes de pedra, cabanas de
barro e palha. Estavam sempre no bolso dela, no saco de erva. Estava
aprendendo a fiar; conseguia segurar a roca com a mão queimada e girar o
fuso com a outra. Tinham penteado as cabras regularmente desde que
chegaram e agora tinham um bom saco cheio de pelos sedosos para fiar.
Mas eu devia ensiná-la, pensou Tenar, angustiada. “Ensine tudo a ela”, disse
Ogion, e o que estou ensinando? A cozinhar e a fiar? Então outra parte de sua
mente disse, na voz de Goha: E não são essas as verdadeiras artes, necessárias e
nobres? A sabedoria se resume a palavras?.
Mesmo assim, ela se preocupava com o assunto e certa tarde, enquanto
Therru puxava o pelo de cabra para limpá-lo, soltá-lo e cardá-lo, à sombra
do pessegueiro, disse:
— Therru, talvez seja a hora de você começar a aprender o nome
verdadeiro das coisas. Existe uma língua em que todas as coisas carregam
seus nomes verdadeiros, e ação e palavra são uma só. Ao falar essa língua,
Segoy ergueu as ilhas das profundezas. É a língua falada pelos dragões.
A criança ouviu, em silêncio.
Tenar largou os pentes de cardar e pegou uma pedrinha do chão.
— Nessa língua — ensinou —, isto é tolk.
Therru observou o que ela fazia e repetiu a palavra, tolk, mas sem voz,
formando-a apenas com os lábios, que eram um pouco recuados no lado
direito por causa das cicatrizes.
A pedra estava na palma da mão de Tenar, uma pedra.
As duas ficaram em silêncio.
— Ainda não — disse Tenar. — Não é isso que tenho de ensinar para
você agora. — Deixou a pedra cair no chão e pegou os pentes e um punhado
de lã cinzenta e turva que Therru preparara para cardar. — Talvez quando
você tiver seu nome verdadeiro, talvez seja a hora. Agora não. Agora escute.
Agora é a hora das histórias, de você começar a aprender as histórias. Posso
lhe contar histórias do Arquipélago e das Terras Kargad. Contei uma
história que aprendi com meu amigo Aihal, o Silencioso. Agora vou contar
uma coisa que aprendi com minha amiga Cotovia quando ela contou aos
filhos dela e aos meus. Esta é a história de Andaur e Avad. No início dos
tempos, tão longe quanto Selidor, vivia um homem chamado Andaur, um
lenhador, que subia sozinho as colinas. Certo dia, nas profundezas da
floresta, ele derrubou um grande carvalho. Ao cair, a árvore gritou para ele
com voz humana…
Foi uma tarde agradável para ambas.
Mas, naquela noite, ao se deitar ao lado da criança adormecida, Tenar
não conseguia dormir. Estava inquieta, preocupada com uma ansiedade
insignificante após a outra… Será que fechei o portão do pasto, será que minha
mão dói por causa da cardação ou é a artrite chegando, e assim por diante.
Depois ela ficou muito inquieta, imaginando ter ouvido barulhos do lado
externo da casa. Por que não tenho um cachorro?, pensou. É burrice não ter um
cachorro. Uma mulher e uma criança que moram sozinhas deveriam ter um
cachorro hoje em dia. Mas esta é a casa de Ogion! Ninguém viria aqui para fazer
o mal. Mas Ogion está morto, morto, enterrado nas raízes da árvore à beira da
floresta. E ninguém virá. Gavião se foi, fugiu. Nem é mais Gavião, um homem
sombrio, que não serve para ninguém, um homem morto forçado a estar vivo. Eu
não tenho forças, não há nada de bom em mim. Digo a palavra da Criação e ela
morre na minha boca, perde o sentido. Uma pedra. Sou uma mulher, uma velha,
fraca, burra. Tudo o que faço é errado. Tudo o que toco vira cinzas, sombra, pedra.
Sou a criatura da escuridão, inchada pela escuridão. Somente o fogo pode me
purificar. Somente o fogo pode me devorar, me consumir como…
Ela se sentou e gritou em voz alta na sua própria língua:
— Que a maldição seja invertida e volte! — Estendeu o braço direito
para baixo, apontando diretamente para a porta fechada. Então, saltando da
cama, foi até a porta, abriu-a de modo abrupto e disse para a noite nublada:
— Você chegou tarde demais, Álamo. Fui devorada há muito tempo. Vá
limpar sua própria casa!
Não houve resposta, nenhum som, mas um cheiro fraco, azedo e
pestilento de queimado… de tecido ou cabelo chamuscado.
Ela fechou a porta, encostou nela o cajado de Ogion e viu que Therru
ainda dormia. Tenar, por sua vez, não dormiu naquela noite.

***

De manhã, levou Therru à aldeia no intuito de perguntar a Flabelo se ele


queria a lã que elas estavam fiando. Era uma desculpa para sair de casa e
ficar um pouco entre as pessoas. O velho disse que ficaria feliz em tecer o
fio, e eles conversaram por alguns minutos, sob o grande leque pintado,
enquanto a aprendiz fazia uma careta e, mal-humorada, batia o tear. Quando
Tenar e Therru saíram da casa de Flabelo, alguém apareceu na esquina da
cabaninha onde ela tinha morado. Alguma coisa, vespas ou abelhas, picava o
pescoço e a cabeça de Tenar, e havia uma chuva torrencial por todo o lado,
uma trovoada, mas não havia nuvens: pedras. Ela viu os seixos atingirem o
chão. Therru parou, assustada e confusa, olhando em volta. Dois meninos
saíram correndo de trás do chalé, meio escondidos, meio se exibindo,
gritando um para o outro e rindo.
— Venha — chamou Tenar com firmeza, e elas caminharam até a casa
de Ogion.
Tenar tremia, e o tremor piorava à medida que caminhavam. Ela tentou
esconder isso de Therru, que parecia perturbada, mas não assustada, por não
ter entendido o que havia acontecido.
Assim que entraram na casa, Tenar percebeu que alguém tinha estado lá
enquanto elas estavam na aldeia. Cheirava a carne e cabelo queimados. A
colcha da cama estava desarrumada.
Quando tentou pensar no que fazer, soube que havia um feitiço sobre
ela. Estava à sua espreita. Tenar não conseguia parar de tremer e sua mente
estava confusa, lenta, incapaz de decidir. Não conseguia pensar. Havia dito a
palavra, o nome verdadeiro da pedra, e a pedra foi atirada nela, no rosto dela
— na face do mal, a face abominável. Ela ousou falar… Ela não podia
falar…
Não posso pensar em hárdico, pensou, em sua própria língua. Não devo.
Ela podia pensar em karginês. Não depressa. Era como se tivesse de
pedir à menina Arha, quem ela fora há muito tempo, que saísse da escuridão
e pensasse por ela. Para ajudá-la. Assim como a ajudara na noite anterior,
invertendo a maldição do feiticeiro contra ele. Arha não aprendera grande
parte do que Tenar e Goha sabiam, mas ela sabia como amaldiçoar, viver na
escuridão e permanecer em silêncio.
Era difícil fazer isso, permanecer em silêncio. Ela queria gritar. Queria
conversar: ir até Musgo e lhe contar sobre o acontecido, o motivo pelo qual
ela deveria partir, ao menos para dizer adeus. Ela tentou dizer a Érica: “As
cabras são suas agora, Érica”, e conseguiu dizer isso em hárdico, para que a
jovem entendesse, mas Érica não entendeu. Ela olhou e riu.
— Ah, são as cabras do Senhor Ogion! — respondeu.
— Então… você… — Tenar tentou dizer “continue a cuidar delas para
ele”, mas uma náusea insuportável apoderou-se dela e ela ouviu a sua voz
dizer estridentemente: — Mulher tola, idiota, imbecil!
Érica olhou e parou de rir. Tenar cobriu a boca com a mão. Ela pegou
Érica e virou-a para olhar os queijos amadurecendo no galpão de ordenha,
apontou para eles e para Érica, de um lado para outro, até que a garota
assentiu vagamente e riu de novo porque Tenar estava agindo de forma
muito estranha.
Tenar acenou com a cabeça para Therru:
— Venha! — E entrou na casa, onde o mau cheiro era mais forte,
fazendo Therru se encolher.
Tenar pegou as bolsas e os sapatos de viagem. Na própria bolsa, colocou
o vestido e a combinação sobressalentes, os dois vestidos velhos de Therru, o
novo pela metade e o tecido sobressalente; as espirais do fuso que havia
esculpido para si e para Therru; um pouco de comida e uma garrafa de barro
com água para o caminho. Na bolsa de Therru, estavam os melhores cestos
da menina, a pessoa de ossos e o animal de ossos no saquinho de ervas,
algumas penas, um pequeno tapete de labirinto que Musgo lhe dera e um
saco de nozes e passas.
Ela queria dizer: “Vá regar o pessegueiro”, mas não ousou. Levou a
criança para fora e mostrou a ela. Therru regou cuidadosamente o pequeno
ramo.
Elas varreram e arrumaram a casa, trabalhando rápido, em silêncio.
Tenar recolocou um jarro no lugar e avistou, na outra extremidade da
prateleira, os três grandes livros, os livros de Ogion.
Arha os viu e não significavam nada para ela, grandes caixas de couro
cheias de papel.
Mas Tenar olhou para eles e mordeu o nó de um dedo, franzindo a testa
no esforço para decidir, para saber o que fazer e descobrir como carregá-los.
Não podia carregá-los. Mas devia. Eles não podiam ficar ali, na casa
profanada, a casa onde o ódio havia entrado. Eram dele. De Ogion. De Ged.
Dela. O conhecimento. Ensine tudo a ela! Ela tirou a lã e os fios do saco que
pretendia carregar e colocou os livros ali dentro, um em cima do outro, e
amarrou o saco com uma tira de couro, dando um laço para prendê-la.
Então, anunciou:
— Precisamos ir agora, Therru. — Ela falava em karginês, mas o nome
da criança era o mesmo, era uma palavra karginesa, chama, chamejante. A
menina foi, sem fazer perguntas, carregando nas costas seu pequeno tesouro
na mochila.
Pegaram os bastões de apoio, o ramo de aveleira e o galho de amieiro.
Deixaram o cajado de Ogion ao lado da porta, no canto escuro. Deixaram a
porta da casa aberta ao vento do mar.

***

Um sentido animal guiou Tenar para longe dos campos e para longe da
estrada montanhosa por onde viera. Ela pegou um atalho pelas pastagens
íngremes, segurando a mão de Therru, até a estrada de carroças que descia
em zigue-zague até o Porto de Gont. Ela sabia que estaria perdida se
encontrasse Álamo e pensou que ele poderia estar à sua espera no caminho.
Mas não, talvez, naquele caminho.
Depois de cerca de um quilômetro e meio de descida, Tenar começou a
ser capaz de pensar. O que ela pensou primeiro foi que havia seguido o
caminho certo. Pois as palavras hárdicas estavam voltando à sua memória e,
depois de dado tempo, as palavras verdadeiras, de modo que ela se abaixou,
pegou uma pedra e segurou-a na mão, dizendo mentalmente: Tolk. Colocou
aquela pedra no bolso. Ela olhou para as vastas camadas de ar e nuvens e
disse mentalmente, uma vez: Kalessin, e sua mente se desanuviou, assim
como o ar claro.
Tenar e Therru chegaram a um longo trecho sombreado por margens
altas e gramadas e afloramentos rochosos, onde ela se sentiu um pouco
inquieta. Ao saírem de uma curva, avistaram a baía azul-escura abaixo delas
e, ali, entre os Penhascos Bracejados, um belo navio com velas a toda
velocidade. Tenar temeu o último desses navios, mas não aquele. Queria
correr pela estrada a fim de alcançá-lo.
Isso ela não conseguiria fazer. Seguiram ao ritmo de Therru. Foi um
ritmo melhor do que dois meses antes, e a descida também tornou tudo
mais fácil. Mas o navio se apressou ao encontro delas. Havia um vento
mágico em suas velas; atravessou a baía como um cisne voador. Chegou ao
porto antes que Tenar e Therru estivessem a meio caminho da próxima
grande curva da estrada.

***

Cidades de qualquer tamanho eram lugares muito estranhos para Tenar. Ela
não havia morado em lugares do tipo. Tinha visitado a maior cidade de
Terramar, Havnor, uma vez, durante algum tempo; e tinha navegado para o
Porto de Gont com Ged, anos antes, mas eles subiram a estrada para
Overfell sem parar nas ruas. A única outra cidade que ela conhecia era
Valmouth, onde morava sua filha, uma cidade portuária pacata e ensolarada
onde um navio mercante vindo das Andrades era um grande acontecimento
e a maior parte das conversas dos habitantes girava em torno de peixe seco.
Ela e a criança chegaram às ruas do Porto de Gont quando o sol ainda
estava bem acima do mar ocidental. Therru tinha caminhado quase 25
quilômetros sem reclamar e sem se sentir cansada, embora decerto estivesse
exausta. Tenar também estava cansada, por não ter dormido na noite
anterior e por estar muito angustiada; e os livros de Ogion também eram
um fardo pesado. No meio do caminho ela os colocou na bolsa e a comida e
as roupas no saco de lã, o que era melhor, mas não muito melhor. Então
caminharam com dificuldade entre as casas periféricas até o portão de
embarque da cidade, onde a estrada, passando entre dois dragões esculpidos
em pedra, se transformava em uma rua. Ali, um homem, o guarda do portão,
olhou para elas. Therru inclinou o rosto queimado em direção ao ombro e
escondeu a mão queimada sob o avental do vestido. — Vai a uma casa na
cidade, senhora? — perguntou o guarda, olhando para a criança.
Tenar não sabia o que dizer. Ela não sabia que havia guardas nos portões
da cidade. Não tinha nada com que pagar um coletor de pedágio ou um
estalajadeiro. Não conhecia ninguém no Porto de Gont. Exceto, pensou ela
naquele instante, o feiticeiro, aquele que fora enterrar Ogion, como ele se
chamava? Mas ela não o sabia. Ficou ali, com a boca aberta, como Érica.
— Vá em frente, vá em frente — permitiu o guarda, entediado, e se virou.
Ela queria lhe perguntar onde encontraria a estrada para o sul, que
atravessava os promontórios, a estrada costeira para Valmouth; mas não
arriscou despertar-lhe o interesse outra vez, para que ele não decidisse que
ela era, afinal de contas, uma vagabunda ou uma bruxa ou o que quer que ele
e os dragões de pedra devessem manter fora do Porto de Gont. Assim, elas
passaram entre os dragões — Therru olhou um pouco para cima para
enxergá-los — e caminharam pelas pedras do calçamento, cada vez mais
impressionadas, confusas e envergonhadas. Para Tenar parecia que pessoa
nem coisa alguma no mundo tinha sido mantida fora do Porto de Gont.
Estava tudo ali. Altas casas de pedra, carroças, carretas, carrinhos, gado,
burros, mercados, lojas, multidões, pessoas e mais pessoas — quanto mais
elas avançavam, mais gente havia. Therru agarrou-se à mão de Tenar,
deslizando, escondendo o rosto com o cabelo. Tenar agarrou-se à mão de
Therru.
Ela não sabia como poderiam ficar ali, então a única coisa a fazer era
seguir para o sul e continuar até o anoitecer, que agora era muito cedo, na
esperança de acampar na floresta. Tenar escolheu uma mulher corpulenta,
com um amplo avental branco, que fechava as venezianas de uma loja, e
atravessou a rua, decidida a lhe perguntar qual era a estrada rumo ao sul,
saindo da cidade. O rosto firme e corado da mulher parecia bastante
amigável, mas, enquanto Tenar reunia coragem para falar com ela, Therru
agarrou-a com força como se tentasse esconder-se, e, olhando para cima,
Tenar viu descendo a rua em sua direção o homem com o capuz de couro.
Ele a viu no mesmo instante. Ele se deteve.
Tenar agarrou o braço de Therru, quase arrastando-a, quase virando-a.
— Venha — disse ela, e passou direto pelo homem. Depois de
ultrapassá-lo, ela andou mais rápido, descendo a colina em direção ao brilho
e à escuridão da água ao pôr do sol, das docas e dos cais ao pé da rua
íngreme. Therru correu com ela, ofegando como havia feito depois de ser
queimada.
Mastros altos balançavam contra o céu vermelho e amarelo. O navio,
com as velas amainadas, estava encostado no cais de pedra, além de uma galé
a remos.
Tenar olhou para trás. O homem as encalçava, bem de perto. Sem pressa.
Ela correu para o cais, porém, depois de algum tempo, Therru tropeçou e
não conseguiu continuar, incapaz de recuperar o fôlego. Tenar a pegou no
colo e a criança segurou-a, escondendo o rosto no ombro de Tenar. Mas a
mulher mal conseguia mover-se, de tão sobrecarregada. As pernas tremiam
sob seu corpo. Ela deu um passo, e outro, e outro. Chegou à pequena ponte
de madeira que fora construída entre o cais e o convés do navio. Colocou a
mão na amurada.
Um marinheiro no convés, um sujeito careca e magricelo, fitou-a.
— Qual é o problema, senhora? — perguntou ele.
— É… é o navio de Havnor?
— Da Cidade Real, isso.
— Deixe-me embarcar!
— Bem, não posso fazer isso — disse o homem, sorrindo, mas os olhos
dele se moveram; estava encarando o homem que se colocou ao lado de
Tenar.
— Você não precisa fugir — disse Habilidoso para ela. — Não quero
causar nenhum mal a vocês. Não quero machucar vocês. Vocês não
entendem. Fui eu quem conseguiu ajuda para ela, não fui? Realmente sinto
muito pelo que aconteceu. Quero ajudar você com ela. — O homem
estendeu a mão como se fosse irresistivelmente atraído a tocar Therru. Tenar
não conseguia se mover. Ela havia prometido a Therru que ele nunca mais
encostaria nela. Ela viu a mão dele tocar o braço nu e trêmulo da criança.
— O que você quer com ela? — disse outra voz. Outro marinheiro
ocupou o lugar do careca: um jovem. Tenar pensou que fosse seu filho.
Habilidoso foi rápido ao responder:
— Ela está… Ela pegou minha menina. Minha sobrinha. Ela é minha.
Ela a enfeitiçou, fugiu com ela, veja…
Tenar não conseguia falar nada. As palavras lhe escaparam novamente,
lhe foram tiradas. O jovem marinheiro não era seu filho. O rosto dele era
fino e duro, com olhos claros. Encarando-o, ela encontrou as palavras:
— Deixe-me subir a bordo. Por favor!
O jovem estendeu a mão. Tenar a segurou, e ele a levou pela prancha até
o convés do navio.
— Espere aí — disse ele a Habilidoso, e a ela: — Venha comigo.
Mas as pernas dela não a sustentavam. Ela caiu no convés do navio que
vinha de Havnor, deixando cair o saco pesado, mas agarrada à criança.
— Não deixe que ele leve a criança, ah, não deixe que eles fiquem com
ela, não, de novo não, de novo não!
capítulo 10

o golfinho

E la não soltaria a criança, não daria a criança para eles. Eram todos
homens a bordo do navio. Só depois de muito tempo ela começou a
conseguir pensar no que eles diziam, no que havia sido feito, no que estava
acontecendo. Quando entendeu quem era o jovem, aquele que tinha
pensado ser seu filho, foi como se ela tivesse entendido tudo o tempo todo,
só que ela não tinha conseguido pensar. Ela não tinha sido capaz de pensar
em nada.
Ele tinha voltado das docas para o navio e agora conversava perto da
prancha de embarque com um homem de cabelos grisalhos, pela sua
aparência, o comandante do navio. Ele olhou para Tenar, que eles tinham
permitido que ficasse agachada com Therru em um canto do convés, entre a
amurada e um grande molinete. O cansaço do longo dia venceu o medo de
Therru; ela dormia profundamente, abraçada a Tenar, com sua bolsinha
servindo de almofada, e a capa, de cobertor.
Tenar se levantou com vagarosidade e o jovem logo se aproximou. Ela
endireitou a saia e tentou alisar o cabelo para trás.
— Eu sou Tenar de Atuan — declarou ela. O rapaz permaneceu parado.
Ela disse: — Acho que você é o rei.
Era muito jovem, mais novo que o filho dela, Faísca. Ainda não deveria
ter vinte anos. Mas havia nele um olhar que não era nada jovem, algo em
seus olhos que a fez pensar: Ele passou pelo fogo.
— Meu nome é Lebannen de Enlad, minha senhora — apresentou-se
ele, prestes a curvar-se ou até mesmo a ajoelhar-se diante dela.
Tenar pegou as mãos dele a fim de ficarem cara a cara.
— Não para mim — disse ela —, nem eu para você!
Ele riu surpreso e segurou as mãos dela enquanto a olhava francamente.
— Como sabia que eu a procurava? Você estava vindo até mim quando
aquele homem…?
— Não, não. Eu estava fugindo… dele… de… de encrenqueiros… Estava
tentando voltar para casa, só isso.
— Para Atuan?
— Ah, não! Para minha fazenda. No Vale Central. Aqui em Gont. —
Ela riu também, uma risada cheia de lágrimas. As lágrimas poderiam ser
choradas agora, e seriam choradas. Ela soltou as mãos do rei para poder
enxugar os olhos.
— Onde fica o Vale Central? — perguntou ele.
— A sul e a leste, circundando os promontórios de lá. Valmouth é o
porto.
— Nós a levaremos até lá — falou ele, com prazer em poder fazer a
oferta e realizá-la.
Ela sorriu e enxugou os olhos, balançando a cabeça em aceitação.
— Uma taça de vinho. Um pouco de comida, um pouco de descanso —
disse ele — e uma cama para sua criança.
O comandante do navio, ouvindo com discrição, deu as ordens. O
marinheiro careca, de quem ela se lembrava como algo que parecia ter
acontecido há muito tempo, se adiantou. Ele ia buscar Therru. Tenar
colocou-se entre ele e a criança. Não podia deixar que o homem encostasse
nela.
— Eu a carrego — anunciou Tenar, com a voz tensa e alta.
— Há escadas, senhora. Eu farei isso — disse o marinheiro, e ela sabia
que ele era gentil, mas não podia deixá-lo encostar em Therru.
— Permita-me — disse o jovem, o rei, e, com um olhar para ela, pedindo
permissão, ele se ajoelhou, pegou a criança adormecida, carregou-a até a
escotilha e desceu cuidadosamente a escada. Tenar o seguiu.
Ele a deitou em um beliche em uma cabine minúscula, desajeitadamente
e com ternura. Colocou a capa em volta dela. Tenar o permitiu.
Em uma cabine maior, que se estendia pela popa do navio, com uma
longa janela que dava para a baía ao crepúsculo, o rapaz pediu que ela se
sentasse à mesa de carvalho. Ele pegou uma bandeja do marinheiro que a
trouxe, serviu vinho tinto em taças de vidro grosso e ofereceu-lhe frutas e
bolos.
Tenar provou o vinho.
— É muito bom, mas não é o Ano do Dragão — constatou.
Ele a encarou com uma surpresa desprotegida, como qualquer garoto.
— É de Enlad, não das Andrades — disse ele, com humildade.
— É excelente — assegurou ela, bebendo outra vez.
Ela pegou um bolo. Era um bolinho amanteigado, muito saboroso, não
adocicado. As uvas verdes e âmbares eram doces e ácidas. Os sabores vívidos
da comida e do vinho eram como as cordas que atracavam o navio,
amarravam-no ao mundo, à sua mente de novo.
— Fiquei com muito medo — falou ela em tom de desculpa. — Acho
que voltarei a ser eu mesma em breve. Ontem… Não, hoje, esta manhã…
houve um… um feitiço… — Era quase impossível pronunciar a palavra, ela
gaguejou: — Uma m-maldição… lançada contra mim. Levou minha fala e
minha inteligência, eu acho, e fugimos disso, mas corremos direto até o
homem, o homem que… — Ela olhou desesperada para o jovem que a
ouvia. Os olhos graves dele permitiram que ela dissesse o que deveria ser
dito. — Ele foi uma das pessoas que mutilou a criança. Ele e os pais dela.
Eles a estupraram, espancaram e queimaram; essas coisas acontecem, meu
senhor. Essas coisas acontecem com crianças. E ele continua a segui-la, para
chegar até ela. E… — Ela se conteve e bebeu vinho, obrigando-se a provar o
sabor. — E então corri dele para você. Para o porto.
Ela olhou para as vigas baixas e esculpidas da cabine, para a mesa polida,
para a bandeja de prata, para o rosto magro e tranquilo do jovem. Seu cabelo
era escuro e macio, sua pele era de um vermelho bronzeado claro; ele estava
bem vestido, com simplicidade, sem nenhuma corrente, anel ou marca
externa de autoridade. Mas tinha a aparência que um rei deveria ter,
acreditava ela.
— Lamento ter deixado o homem partir — disse ele. — Mas ele pode
ser encontrado. Quem lançou o feitiço contra você?
— Um feiticeiro. — Ela não quis revelar o nome. Não queria pensar
sobre tudo aquilo. Queria deixar todos para trás. Sem retribuição, sem
perseguição. Deixá-los entregues aos seus ódios, superá-los, esquecer.
Lebannen não pressionou, mas perguntou:
— Você estará a salvo desses homens em sua fazenda?
— Acredito que sim. Se eu não estivesse tão cansada, tão confusa com…
com… Tão confusa em minha mente, a ponto de não conseguir pensar, não
teria medo de Habilidoso. O que ele poderia ter feito? Com todas as pessoas
por perto, na rua? Eu não devia ter fugido dele. Mas tudo que eu conseguia
sentir era o medo dela. Ela é tão pequena que tudo o que pode fazer é temê-
lo. Terá de aprender a não ter medo dele. Tenho de ensinar isso a ela…
Tenar estava divagando. Pensamentos surgiam em sua cabeça em
karginês. Ela estava falando em karginês? Lebannen pensaria que ela era
louca, uma velha louca tagarelando. Ela o espiou de soslaio. Os olhos escuros
dele não estavam nela; ele olhava para a chama da lamparina de vidro que
pendia sobre a mesa, uma chama pequena, imóvel e clara. O rosto dele era
muito triste para o rosto de um homem jovem.
— Você veio procurar por ele — declarou ela. — O Arquimago. Gavião.
— Ged — completou ele, fitando-a com um leve sorriso. — Você, ele e
eu usamos nossos nomes verdadeiros.
— Você e eu, sim. Mas ele, só para você e para mim. — Lebannen
assentiu. — Ele está em perigo por causa de homens invejosos, homens de
má vontade, e ele não tem… nenhuma defesa agora. Sabe disso?
Tenar não conseguiu ser mais explícita, mas Lebannen respondeu:
— Ele me disse que seu poder como mago havia acabado. Foi gasto no
ato que salvou a mim e a todos nós. Mas foi difícil de acreditar. Eu queria
não acreditar nele.
— Eu também. Mas é verdade. Por isso ele… — Tenar hesitou mais uma
vez. — Ele quer ficar sozinho até que suas feridas se curem — disse ela
enfim, cautelosa.
Lebannen explicou:
— Ele e eu estávamos juntos na terra escura, na Terra Árida. Morremos
juntos. Juntos cruzamos as montanhas dali. Pode-se voltar pelas montanhas.
Há uma maneira. Ele sabia disso. Mas o nome das montanhas é Dor. As
pedras… As pedras cortam, e os cortes demoram muito para sarar.
O jovem olhou para suas mãos. Ela pensou nas mãos de Ged, marcadas e
cortadas, cerradas em suas feridas. Segurando os cortes unidos, fechadas.
A mão de Tenar segurava a pedrinha em seu bolso, a palavra que ela
havia colhido na estrada íngreme.
— Por que ele se esconde de mim? — O jovem chorou de tristeza.
Então, calmamente: — Eu esperava mesmo vê-lo. Mas, se ele não quiser,
ponto-final, é claro. — Tenar reconheceu a cortesia, a civilidade e a
dignidade dos mensageiros de Havnor e apreciou-as; reconhecia o valor que
tinham. Mas ela o amava por sua dor.
— Ele por certo virá até você. Apenas dê-lhe tempo. Ele ficou tão ferido,
tudo lhe foi tirado… No entanto, quando falou de você, quando disse seu
nome, ah, então eu o vi por um momento como ele era, como ele será
novamente… Todo orgulhoso!
— Orgulhoso? — repetiu Lebannen, como se estivesse espantado.
— Sim. É claro, orgulhoso. Quem deveria estar orgulhoso, senão ele?
— Sempre pensei nele como… Ele era tão paciente — disse Lebannen, e
depois riu da inadequação de sua descrição.
— Agora ele não tem paciência — relatou ela — e é duro consigo
mesmo além de qualquer razão. Não há nada que possamos fazer por ele,
creio, exceto deixá-lo seguir seu próprio caminho e se encontrar no fim da
linha, como dizem em Gont… — De repente, ela chegou ao fim da própria
linha, tão cansada que se sentiu mal. — Acho que devo descansar agora —
concluiu.
O jovem se levantou de imediato.
— Senhora Tenar, você diz que fugiu de um inimigo e encontrou outro;
mas vim em busca de um amigo e encontrei outra.
Ela sorriu diante da inteligência e da bondade de Lebannen. Que bom
garoto ele é, pensou.

***

O navio estava em plena atividade quando Tenar acordou: o rangido e o


gemido das madeiras, o baque de pés apressados acima de sua cabeça, o
barulho das lonas, os berros dos marinheiros. Therru foi difícil de acordar e
acordou entorpecida, talvez febril, embora estivesse sempre tão quente que
Tenar tinha dificuldade em avaliar as suas febres. Arrependida por ter
arrastado a criança frágil por quase 25 quilômetros a pé e por tudo o que
acontecera no dia anterior, Tenar tentou animá-la, dizendo que estavam em
um navio, que um rei de verdade estava a bordo e que a cabine que elas
ocupavam era o quarto dele próprio; que o navio as levaria para casa, para a
fazenda, e tia Cotovia estaria à sua espera em casa, e talvez Gavião também
estivesse lá. Nem isso despertou o interesse de Therru. Ela estava vazia,
inerte, muda.
No bracinho magro, Tenar viu uma mancha: quatro dedos, vermelhos,
como se fossem uma marca, como hematomas de uma mão. Mas Habilidoso
não a agarrara, apenas encostara nela. Tenar lhe disse, lhe prometeu, que ele
nunca mais tocaria nela. A promessa foi quebrada. Sua palavra não
significava nada. Que palavra significava alguma coisa contra a violência
surda?
Ela se abaixou e beijou as marcas no braço de Therru.
— Eu gostaria de ter tido tempo para terminar seu vestido vermelho —
disse Tenar. — O rei provavelmente gostaria de vê-lo. Mas acho que as
pessoas não usam suas melhores roupas em um navio, nem mesmo os reis.
Therru se sentou no beliche, com a cabeça baixa, e não respondeu. Tenar
lhe escovou o cabelo. Enfim crescia, formando uma cortina preta e sedosa
sobre as partes queimadas do couro cabeludo.
— Está com fome, passarinha? Você não jantou ontem à noite. Talvez o
rei nos ofereça o desjejum. Ele me deu bolos e uvas ontem à noite.
Nenhuma resposta.
Quando Tenar anunciou que era hora de sair do cômodo, ela obedeceu.
No convés, ficou com a cabeça inclinada sobre o ombro. Não olhou para as
velas brancas cheias do vento da manhã, nem para a água cintilante, nem
para a Montanha de Gont erguendo no céu seu volume e majestade de
floresta, penhasco e topo. Não levantou os olhos quando Lebannen falou
com ela.
— Therru — disse Tenar baixinho, ajoelhando-se ao lado dela —,
quando um rei fala com você, é para responder.
A menina ficou em silêncio.
A expressão de Lebannen ao olhar para a menina era ilegível. Uma
máscara, talvez, uma máscara cortês para a repulsa e o choque. Mas os olhos
escuros do jovem se mantinham fixos. Ele tocou levemente o braço da
criança, dizendo:
— Deve ser estranho para você acordar no meio do mar.
Therru comeu apenas um pouco de fruta. Quando Tenar perguntou se
queria voltar à cabine, ela assentiu. Relutante, Tenar a deixou enrolada no
beliche e voltou ao convés.
O navio passava entre os Penhascos Bracejados, paredões imponentes e
sombrios que pareciam inclinar-se acima das velas. Os arqueiros de guarda,
em pequenos fortes iguais a ninhos de lama de andorinhas, no alto dos
penhascos, olhavam para eles no convés, e os marinheiros gritavam-lhes
alegremente.
— Abram caminho para o rei! — bradaram.
A resposta não foi muito mais alta do que o chamado das andorinhas das
alturas:
— O rei!
Lebannen estava na proa alta com o comandante do navio e um homem
idoso, magro e de olhos estreitos, vestido com a capa cinzenta dos magos da
Ilha de Roke. Ged usara um manto assim, limpo e elegante, no dia que ele e
Tenar levaram o Anel de Erreth-Akbe à Torre da Espada; um manto velho,
manchado, sujo e desgastado pela viagem tinha sido todo o seu cobertor nas
pedras frias das Tumbas de Atuan e na terra das montanhas desérticas que
eles atravessaram juntos. Ela pensava nisso enquanto a espuma voava pelas
laterais do navio e os altos penhascos ficavam para trás.
Quando o navio passou pelos últimos recifes e começou a virar para o
leste, os três homens se aproximaram dela. Lebannen disse:
— Minha senhora, este é o Mestre Cifra dos Ventos, da Ilha de Roke.
O mago fez uma reverência, mirando-a com elogios em seus olhos
penetrantes, e também com curiosidade; era um homem que gostava de
saber para que lado soprava o vento, imaginou ela.
— Agora não preciso ter esperança de que o bom tempo se mantenha,
posso contar com isso — disse Tenar a ele.
— Sou apenas uma carga num dia como este — comentou o mago. —
Além disso, com um marinheiro como Mestre Serrathen comandando o
navio, quem precisa de um manipulador do clima?
Somos tão educados, pensou Tenar, todos Senhores, Senhoras e Mestres, todos
elogios e reverências. Ela fitou o jovem rei. Ele estava olhando para ela,
sorrindo, mas reservado.
Ela se sentia como se sentira em Havnor quando menina: uma bárbara,
rude entre as suavidades deles. Mas como já não era uma menina, não ficou
impressionada, apenas se perguntou como os homens ordenavam seu mundo
nessa dança de máscaras e com que facilidade uma mulher poderia aprender
a dançá-la.
Demoraria apenas um dia, disseram-lhe, para navegar até Valmouth.
Com aquele vento a favor nas velas, chegariam no fim da tarde.
Ainda muito cansada da longa angústia e da tensão do dia anterior, ela se
contentou em permanecer no assento que o marinheiro careca fez para ela
com um colchão de palha e um pedaço de lona, observando as ondas e as
gaivotas e contemplando a silhueta da Montanha de Gont, azul e onírica à
luz do meio-dia, mudar à medida que contornavam suas margens íngremes a
apenas um ou dois quilômetros da terra. Ela levou Therru para tomar sol e a
criança ficou deitada ao seu lado, observando e cochilando.
Um marinheiro, um homem muito escuro e desdentado, aproximou-se,
descalço, com solas dos pés que pareciam cascos e dedos horrivelmente
retorcidos; ele colocou algo na lona perto de Therru.
— Para a menininha — anunciou ele com voz rouca.
Afastou-se no mesmo instante, ainda que não para muito longe. Ele
espiava, esperançoso, de tempos em tempos, para ver se ela tinha gostado do
presente e depois fingia que não tinha olhado. Therru não tocou o pacotinho
embrulhado no pano. Tenar teve de abri-lo. Era uma escultura primorosa de
um golfinho, em osso ou marfim, do comprimento de seu polegar.
— Ele pode morar no seu saquinho de ervas — disse Tenar —, junto aos
outros, o povo dos ossos.
Diante disso, Therru despertou o bastante para pegar seu saquinho de
ervas e colocar o golfinho ali dentro. Mas Tenar teve de agradecer ao
humilde doador. Therru não queria olhar nem falar com ele. Passado certo
tempo, a criança pediu para voltar à cabine e Tenar a deixou lá com a pessoa
de ossos, o animal de ossos e o golfinho como companhia.
É tão fácil, pensou ela com raiva, é tão fácil para Habilidoso tirar dela a luz
do sol, tirar dela navio, o rei e a infância, e é tão difícil devolvê-los! Passei um ano
tentando devolvê-los a ela, e com um toque ele os toma e joga fora. Que bem isso
faz a ele? Qual é o prêmio, o poder dele? Será que o poder é isso: um vazio?
Tenar se juntou ao rei e ao mago na amurada do navio. O sol estava
agora bem a oeste e o navio navegava por uma luz gloriosa que a fez pensar
em seu sonho do voo com os dragões.
— Senhora Tenar — disse o rei —, não lhe dou nenhuma mensagem
para nosso amigo. Parece-me que fazer isso é colocar um fardo sobre a
senhora e também usurpar a liberdade dele; e não quero fazer nenhuma das
duas coisas. Serei coroado dentro de um mês. Se fosse ele quem segurasse a
coroa, meu reinado começaria como meu coração deseja. Todavia, esteja lá
ou não, ele me levou ao meu reino. Ele me fez rei. Não me esquecerei disso.
— Sei que você não esquecerá — respondeu Tenar, com gentileza.
Lebannen era tão intenso, tão sério, blindado pela formalidade de sua
posição e, ainda assim, vulnerável em sua honestidade, na pureza de sua
vontade. Seu coração ansiava por Ged. Ele achava que tinha aprendido a
dor, mas a reaprenderia muitas vezes, durante toda a vida, e não se
esqueceria de nada nela.
E, portanto, ele não faria, como Habilidoso, a coisa mais fácil a se fazer.
— Levarei uma mensagem de bom grado — disse Tenar. — Não é fardo
algum. Se ele ouvirá, isso depende dele.
O Mestre Cifra dos Ventos sorriu.
— Sempre dependeu — comentou o mago. — Tudo o que ele fez
dependia dele.
— O senhor o conhece há muito tempo?
— Ainda mais do que você, minha senhora. Ensinei-o. O que eu pude…
Ele chegou à Escola de Roke, sabe, quando era menino, com uma carta de
Ogion nos dizendo que portava um grande poder. Mas a primeira vez que o
levei de barco para aprender a falar com o vento, sabe, ele levantou uma
tromba d’água. Foi então que vi para que deveríamos nos preparar. Concluí:
ou ele vai se afogar antes dos dezesseis anos, ou será arquimago antes dos
quarenta… Ao menos, gosto de pensar que concluí isso.
— Ele ainda é arquimago? — perguntou Tenar. A pergunta parecia
totalmente ignorante e, como foi recebida com silêncio, ela temeu que
tivesse sido pior do que ignorância.
O mago disse, por fim:
— Agora não há arquimago de Roke. — Seu tom foi extremamente
cauteloso e preciso.
Ela não ousou perguntar o que ele queria dizer.
— Acho — disse o rei — que o Restaurador da Runa da Paz pode fazer
parte de qualquer conselho deste reino; não acha, senhor?
Após outra pausa e evidentemente com um pouco de esforço, o mago
disse:
— Certamente.
O rei esperou, mas ele não disse mais nada.
Lebannen mirou a água brilhante e falou como se começasse uma
história:
— Quando ele e eu fomos para Roke, vindos do oeste mais longínquo,
carregados pelo dragão… — Ele fez uma pausa e o nome do dragão surgiu
por conta própria na mente de Tenar, Kalessin, como o toque de um gongo.
— O dragão me deixou lá, mas o levou embora. O sentinela da porta da
Casa de Roke disse, então: “Ele fez o que tinha de fazer. Vai para casa”.
Antes disso, na praia de Selidor, ele me ordenou que deixasse seu cajado,
dizendo que agora não era mais um mago. Então os Mestres de Roke
reuniram o conselho para escolher um novo arquimago.
“Levaram-me entre eles, para que eu pudesse aprender o que seria bom
para um rei saber sobre o Conselho dos Sábios. Também fiquei para
substituir um deles: Thorion, o Invocador, cuja arte foi voltada contra ele por
aquele grande mal que meu senhor Gavião encontrou e ao qual pôs fim.
Quando estávamos lá, na Terra Árida, entre a muralha e as montanhas, vi
Thorion. Meu senhor falou com ele, contando-lhe o caminho de volta à vida
do outro lado da muralha. Mas ele não aceitou. Ele não voltou.”
As mãos fortes e finas do jovem seguraram com força a amurada do
navio. Ainda encarava o mar enquanto falava. Ficou em silêncio por um
minuto e então retomou sua história:
— Então completei o número, nove, que se reúne para escolher o novo
arquimago. Eles são… São homens sábios — disse, olhando para Tenar. —
Não são apenas eruditos em sua arte, mas também homens conhecedores.
Usam suas diferenças, como eu tinha visto antes, para tomar decisões fortes.
Mas daquela vez…
— O fato é que — explicou o Mestre Cifra dos Ventos, vendo Lebannen
parecer pouco disposto a criticar os Mestres de Roke — éramos todos
diferença e nenhuma decisão. Poderíamos não chegar a nenhum acordo.
Porque o Arquimago não estava morto: estava vivo, percebe, e ainda assim
não era um mago; e ainda assim era um senhor dos dragões, ao que
parecia… Como nosso Transformador ainda estava abalado com a virada de
sua própria arte sobre ele, e acreditava que o Invocador retornaria da morte e
nos implorava que esperássemos por ele… Como o Mestre Padronista não
falava nada. Ele é karginês, minha senhora, assim como você, sabia disso?
Ele veio de Karego-At. — Os olhos aguçados do mago a observaram: para
que lado sopra o vento? — Então, devido a tudo isso, ficamos perdidos.
Quando o Sentinela perguntou os nomes daqueles que escolheríamos,
nenhum nome foi pronunciado. Todo mundo olhou para todo mundo…
— Eu olhei para o chão — afirmou Lebannen.
— Então, finalmente olhamos para aquele que conhece os nomes: o
Mestre Nomeador. Ele estava observando o Padronista, que não disse uma
palavra, mas ficou sentado entre suas árvores como um toco. É no Bosque
que nos encontramos, sabe, entre aquelas árvores cujas raízes são mais
profundas que as ilhas. Já era tarde da noite. Às vezes há luz entre aquelas
árvores, mas não naquela noite. Estava escuro, sem luz de estrelas, um céu
nublado acima das folhas. E então o Padronista se levantou e falou… Mas
em sua própria língua, não na Língua Arcaica, nem em hárdico, e sim em
karginês. Poucos de nós conhecíamos ou sequer sabíamos que língua era, e
não sabíamos o que pensar. Mas o Nomeador nos contou o que o Padronista
havia dito. Ele disse: “uma mulher em Gont”.
Ele parou. Não estava mais olhando para Tenar. Depois de um tempo, ela
disse:
— Nada mais?
— Nem mais uma palavra. Quando o pressionamos, ele nos encarou e
não conseguiu responder; pois ele estava na visão, veja bem: ele estava vendo
a forma das coisas, o padrão; pouco disso pode ser expresso em palavras e
menos ainda em ideias. Ele não sabia mais que o restante de nós o que
pensar do que havia dito. Mas era tudo o que tínhamos.
Afinal, os Mestres de Roke eram professores, e o Cifra dos Ventos era
um professor muito bom; não pôde deixar de esclarecer sua história. Talvez
esclarecer mais do que ele gostaria. Olhou mais uma vez para Tenar e para
longe.
— Então, veja bem, parecia que deveríamos ir para Gont. Mas para quê?
À procura de quem? “Uma mulher”… não diz muita coisa! Evidentemente,
essa mulher deve nos guiar, mostrar-nos o caminho, de alguma forma, até
nosso arquimago, e imediatamente, como pode pensar, minha senhora,
falaram de você, pois de que outra mulher em Gont já tínhamos ouvido
falar? A ilha não é grande, mas sua fama é. Então um de nós disse: “Ela nos
levaria a Ogion”. Mas todos sabíamos que Ogion há muito se recusara ser
arquimago e certamente não aceitaria agora que estava velho e doente. De
fato Ogion estava morrendo enquanto conversávamos, creio eu. Então, outro
disse: “Mas ela também nos levaria a Gavião!”. E então ficamos realmente
no escuro.
— Realmente — corroborou Lebannen. — Pois começou a chover ali
entre as árvores. — Ele sorriu. — Pensei que nunca mais ouviria a chuva
cair. Foi uma grande alegria para mim.
— Nove de nós, encharcados — disse o Cifra dos Ventos —, e um de
nós feliz.
Tenar riu. Não pôde deixar de gostar do homem. Se ele era tão cauteloso
com ela, cabia a ela ser cautelosa com ele; mas para Lebannen, e na presença
de Lebannen, apenas a franqueza serviria.
— A “mulher em Gont” não pode ser eu, pois não os levarei a Gavião.
— Minha opinião foi que não poderia ser você, minha senhora — falou
o mago com aparente e talvez verdadeira franqueza. — Por um lado, ele
teria dito seu nome, certamente, na visão. Pouquíssimos são aqueles que
ostentam abertamente seu nome verdadeiro! Mas fui incumbido pelo
Conselho de Roke de lhe perguntar se conhece alguma mulher nesta ilha
que possa ser aquela que procuramos, irmã ou mãe de um homem poderoso,
ou mesmo professora dele; pois existem bruxas muito sábias à sua maneira.
Talvez Ogion conhecesse tal mulher? Dizem que ele conhecia todas as
almas desta ilha, pois vivia sozinho e vagava pela natureza. Eu gostaria que
ele estivesse vivo para nos ajudar agora!
Tenar já tinha pensado na pescadora da história de Ogion. Mas aquela
mulher já era velha quando Ogion a conheceu, anos atrás, e já devia estar
morta. Mesmo que os dragões, considerou ela, vivessem vidas muito longas,
pelo que se dizia.
Ela não se pronunciou por um tempo, depois simplesmente disse:
— Não conheço ninguém desse tipo.
Ela podia sentir a impaciência controlada do mago com ela. O que ela está
esperando? O que ela quer? Sem dúvida era o que ele estava pensando, e ela se
perguntou por que não podia lhe contar. A surdez dele a silenciou. Ela não
conseguia nem dizer que ele estava surdo. Disse, enfim:
— Então, não existe nenhum arquimago de Terramar. Mas existe um rei.
— Em quem nossa esperança e confiança estão bem fundamentadas —
completou o mago com um calor que lhe caiu bem. Lebannen, observando e
escutando, sorriu.
— Nestes últimos anos — comentou Tenar, hesitante —, houve muitos
problemas, muitas misérias. Minha… A garotinha… Essas coisas têm sido
muito comuns. E ouvi homens e mulheres de poder falarem sobre o declínio
ou a mudança do poder que detinham.
— Aquele que o Arquimago e meu senhor derrotaram na Terra Árida,
Cob, causou danos e ruína incalculáveis. Vamos reparar nossa arte, curar
nossos magos e nossa feitiçaria, por muito tempo, ainda — disse o mago,
decidido.
— Eu me pergunto se poderia haver mais a ser feito além de reparar e
curar — respondeu ela —, embora isso também, é claro… Mas eu me
pergunto, será que… que se alguém como Cob pudesse ter tal poder porque
as coisas já estavam mudando… e que uma mudança, uma grande mudança,
está acontecendo, e aconteceu? E é por causa dessa mudança que temos um
rei novamente em Terramar… Talvez um rei em vez de um arquimago?
O Cifra dos Ventos a encarou como se visse uma nuvem de tempestade
muito distante no horizonte mais remoto. Ele até levantou a mão direita em
sinal, o primeiro esboço de um feitiço de amarração do vento, e depois
baixou-a novamente. Sorriu.
— Não tema, minha senhora — asseverou ele. — Roke e a Arte da
Magia resistirão. Nosso tesouro está bem guardado!
— Diga isso a Kalessin — retrucou Tenar, de repente incapaz de
suportar a total inconsciência do desrespeito do mago. Isso o fez olhar, é
claro. Ele ouviu o nome do dragão. Mas isso não fez com que ele a ouvisse.
Como ele, que nunca tinha ouvido uma mulher desde que sua mãe lhe
cantou sua última canção de ninar, poderia ouvi-la?
— De fato — disse Lebannen —, Kalessin veio a Roke, que dizem ser
totalmente protegida dos dragões; e não por meio de qualquer feitiço do
meu senhor, pois ele não tinha magia naquele momento… mas não creio,
Mestre Cifra dos Ventos, que a Senhora Tenar temesse por si.
O mago fez um esforço sério para corrigir a ofensa.
— Sinto muito, minha senhora — desculpou-se —, falei como se fosse
uma mulher comum.
Ela quase riu. Poderia tê-lo abalado. No entanto, disse apenas, com
indiferença:
— Meus temores são temores comuns. — Não adiantou; ele não era
capaz de ouvi-la.
Mas o jovem rei ficou em silêncio, ouvindo.
Um marinheiro, no mundo vertiginoso e oscilante à frente, dos mastros,
das velas e do cordame, gritou nítida e docemente:
— Cidade à vista!
Em um minuto aqueles que estavam no convés avistaram o pequeno
amontoado de telhados de ardósia, os pináculos de fumaça azul, algumas
janelas de vidro refletindo o sol poente e as docas e os cais de Valmouth em
sua baía de água azul-acetinada.
— Devo conduzir o navio ou o senhor o fará? — perguntou o pacato
comandante do navio.
— Conduza-o, mestre. Não quero ter de lidar com todos esses destroços!
— respondeu o Cifra dos Ventos, acenando com a mão para as dezenas de
embarcações de pesca que estavam espalhadas pela baía.
Assim, o navio real, como um cisne entre patinhos, aproximou-se com
vagar e foi saudado por todos os barcos pelos quais passava.
Tenar observou ao longo das docas, mas não encontrou nenhum outro
navio de travessia marítima.
— Tenho um filho marinheiro — contou ela a Lebannen. — Achei que
o navio dele poderia estar aqui.
— Qual é o navio dele?
— Ele era o terceiro imediato a bordo do Gaivota de Eskel, mas isso foi
há mais de dois anos. Ele pode ter mudado de navio. É um homem inquieto.
— Ela sorriu. — Quando o vi pela primeira vez, pensei que fosse meu filho.
Você não é nada parecido com ele, exceto por ser alto, magro e jovem. E eu
estava confusa, assustada… Temores comuns.
O mago subiu ao posto do mestre na proa, e Tenar e Lebannen ficaram
sozinhos.
— Há muito temor comum — concordou ele.
Era sua única chance de falar com ele a sós, e as palavras saíram
apressadas e incertas:
— Eu gostaria de dizer, mas de nada adiantava, mas será que há uma
mulher em Gont, não sei quem, não tenho ideia, mas pode ser que exista, ou
venha a existir, ou possa existir, uma mulher, e que eles a procurem, que
precisem dela. É impossível?
Ele ouviu. Não era surdo. Mas ele franziu a testa, atento, como se
tentasse entender uma língua estrangeira. Disse apenas, baixinho:
— Pode ser.
Uma pescadora em seu pequeno bote gritou:
— De onde?
E o garoto no cordame gritou de volta como um galo cantando:
— Da Cidade Real!
— Qual é o nome deste navio? — perguntou Tenar. — Meu filho vai
perguntar em que navio naveguei.
— Golfinho — revelou Lebannen, sorrindo-lhe.
Meu filho, meu rei, meu menino querido, pensou ela. Como eu gostaria de
mantê-lo por perto!
— Preciso buscar minha pequena — declarou Tenar.
— Como a senhora vai chegar em casa?
— Andando. Fica a apenas alguns quilômetros vale acima. — Ela
apontou para além da cidade, para o interior, onde o Vale Central se
estendia, amplo e ensolarado, entre dois braços da montanha, como um colo.
— A aldeia fica às margens do rio, e minha fazenda fica a oitocentos metros
da aldeia. É um lindo recanto do seu reino.
— Mas a senhora estará segura?
— Ah, sim. Passarei a noite com minha filha aqui em Valmouth. E na
aldeia todos são confiáveis. Não estarei sozinha.
Os olhos deles se encontraram por um momento, mas nenhum dos dois
falou o nome que ambos pensavam.
— Eles virão de novo, de Roke? — perguntou Tenar. — Procurando pela
“mulher em Gont”… ou por ele?
— Por ele, não. Isso, se propuserem novamente, eu proibirei — assegurou
Lebannen, sem perceber quanto ele revelara a Tenar nessas duas palavras. —
Mas quanto à busca por um novo arquimago, ou pela mulher da visão do
Padronista, sim, isso poderá trazê-los até aqui. E talvez até você.
— Eles serão bem-vindos na Fazenda do Carvalho — garantiu ela. —
Embora não tão bem-vindos quanto você seria.
— Visitarei quando puder — disse ele, em tom um tanto severo; e em
tom um tanto melancólico: — Se puder.
capítulo 11

em casa

G rande parte do povo de Valmouth desceu às docas para ver o navio de


Havnor quando soube que o rei estava a bordo, o novo rei, o jovem rei ao
qual se referiam as novas canções. Ainda não conheciam as novas canções,
mas conheciam as antigas, e o velho Relli surgiu com sua harpa e cantou
uma parte da Saga de Morred, pois um rei de Terramar seria com certeza
herdeiro de Morred. Logo o próprio rei apareceu no convés, tão jovem, alto
e bonito quanto poderia ser, e acompanhavam-no um mago de Roke, além
de uma mulher e uma menina vestindo capas velhas, não muito melhores
que as de pedintes, mas ele as tratou como se fossem uma rainha e uma
princesa, então talvez fosse isso que eram.
— Talvez seja a mãe dele — disse Canelinha, tentando ver por cima das
cabeças dos homens à sua frente.
Sua amiga Mattiana a agarrou pelo braço e disse em uma espécie de
grito sussurrado:
— É… é a mãe!
— É a mãe de quem? — perguntou Canelinha.
— A minha. E aquela é Therru.
Mas ela não avançou no meio da multidão, mesmo quando um oficial do
navio desembarcou para convidar o velho Relli a bordo a fim de tocar para o
rei. Ela esperou com os outros. Assistiu enquanto o rei recebia os notáveis de
Valmouth e ouviu Relli cantar para ele. Observou quando ele se despediu
dos convidados, pois o navio voltaria ao mar antes do cair da noite, diziam as
pessoas, e voltaria para casa, em Havnor. As últimas a cruzar a prancha
foram Therru e Tenar. O rei deu a cada uma delas um abraço formal,
colando o rosto ao delas, ajoelhando-se para abraçar Therru.
— Ah! — exclamou a multidão no cais.
O sol se punha em uma névoa dourada, deixando um grande rastro
dourado através da baía, quando as duas desceram pela prancha de
embarque gradeada. Tenar carregava uma bolsa e uma sacola pesadas; o
rosto de Therru estava curvado e escondido pelos cabelos. A prancha de
embarque foi erguida, os marinheiros saltaram para o cordame, os oficiais
gritaram e o navio Golfinho seguiu seu caminho. Então, Mattiana finalmente
abriu caminho no meio da multidão.
— Olá, mãe — disse ela.
— Olá, filha — respondeu Tenar. Elas se beijaram e Mattiana pegou
Therru nos braços.
— Como você cresceu! Você é duas vezes a garota que era. Vamos, venha
para casa comigo.
Mas Mattiana estava um pouco tímida com a mãe naquela noite, na
agradável casa de seu jovem marido mercador. Olhou para ela várias vezes
com uma expressão pensativa, quase cautelosa.
— Isso nunca significou nada para mim, mãe, você sabe — disse ela à
porta do quarto de Tenar. — Tudo isso, a Runa da Paz e você trazer o Anel
para Havnor. Era como uma das canções. Há mil anos! Mas foi mesmo
você, não foi?
— Foi uma garota de Atuan — disse Tenar. — Há mil anos. Acho que
eu poderia dormir durante mil anos, agora mesmo.
— Vá para a cama então. — Mattiana virou-se e depois voltou, com a
lâmpada na mão. — Beijoqueira de rei — brincou ela.
— Vá cuidar da sua vida — devolveu Tenar.

***

Mattiana e o marido ficaram com Tenar durante alguns dias, mas depois
disso ela decidiu ir para a fazenda. Então Mattiana caminhou com ela e
Therru ao longo do plácido e prateado Kaheda. O verão estava se
transformando em outono. O sol ainda estava quente, mas o vento estava
fresco. A folhagem das árvores tinha uma aparência cansada e empoeirada, e
os campos estavam cortados ou em colheita.
Mattiana falou sobre como Therru estava muito mais forte e sobre como
ela caminhava com firmeza agora.
— Gostaria que você a tivesse visto em Re Albi — comentou Tenar. —
Antes… — E parou de falar. Ela havia decidido não preocupar a filha com
tudo aquilo.
— O que aconteceu? — perguntou a filha.
Mattiana falou de forma tão decidida a saber que Tenar cedeu e
respondeu em voz baixa:
— Um deles.
Therru estava alguns metros à frente das duas, com as pernas compridas e
o seu vestido que não lhe cabia mais, caçando amoras nas sebes enquanto
caminhava.
— O pai dela? — perguntou Mattiana, enojada com a ideia.
— Cotovia disse que aquele que parece ser o pai se autodenomina
Merluza. Esse é mais novo. É o que foi até Cotovia para contar a ela.
Chama-se Habilidoso. Ele estava… rondando em Re Albi. E então, por
azar, nos deparamos com ele no Porto de Gont. Mas o rei o expulsou. Agora
estou aqui e ele está lá, e tudo isso acabou.
— Mas Therru ficou assustada — constatou Mattiana, um pouco
soturna.
Tenar assentiu.
— Mas por que você foi para o Porto de Gont?
— Ah, bem, esse homem, Habilidoso, estava trabalhando para um
homem… Um mago da casa do Senhor de Re Albi que não foi com a
minha cara… — Ela tentou pensar no nome usual do mago e não
conseguiu; tudo o que ela conseguia pensar era em Tuaho, uma palavra
karginesa para um tipo de árvore, do qual não conseguia se lembrar.
— E?
— Bem, então pareceu melhor voltar para casa.
— Mas por que esse bruxo não gostava de você?
— Por ser mulher, principalmente.
— Ah — disse Mattiana. — Velho fedorento.
— Jovem fedorento, nesse caso.
— Pior ainda. Bem, que eu saiba, ninguém por aqui viu os pais, se é que
essa é a palavra para designá-los. Mas, se ainda estão por aí, não quero que
você fique sozinha na casa da fazenda.
Que agradável é ser cuidada por uma filha, como se ela fosse sua mãe, e se
comportar como a filha de uma filha. Tenar disse, impaciente:
— Vou ficar perfeitamente bem!
— Você poderia pelo menos arranjar um cachorro.
— Já pensei no assunto. Alguém na aldeia pode ter um cachorrinho.
Perguntaremos a Cotovia quando passarmos por lá.
— Não um cachorrinho, mãe. Um cachorro.
— Mas um jovem, com que Therru pudesse brincar — implorou Tenar.
— Um lindo cachorrinho vai beijar os ladrões — disse Mattiana,
caminhando, bonachona, de olhos cinzentos, rindo da mãe.
Elas chegaram à aldeia por volta do meio-dia. Cotovia deu as boas-
vindas a Tenar e Therru com uma festa de abraços, beijos, perguntas e
comidas. O silencioso marido de Cotovia e outros aldeões pararam a fim de
cumprimentar Tenar. Ela sentiu a felicidade de voltar para casa.
Cotovia e os dois mais novos de seus sete filhos, um menino e uma
menina, acompanharam-nas até a fazenda. As crianças conheciam Therru
desde que Cotovia a levara para casa, é claro, e estavam habituadas a ela,
embora a separação de dois meses as tivesse deixado tímidas no início. Com
elas, e mesmo com Cotovia, a criança permanecia retraída, passiva, como nos
velhos tempos.
— Ela está exausta, confusa com toda essa viagem. Ela vai superar isso.
Evoluiu maravilhosamente bem — explicou Tenar a Cotovia, mas Mattiana
não deixou a situação passar com tanta facilidade.
— Um deles apareceu e aterrorizou ela e a mãe — interferiu Mattiana.
Aos poucos, entre elas, a filha e a amiga extraíram toda a história de
Tenar naquela tarde enquanto abriam a casa fria, abafada e empoeirada,
arrumavam-na, arejavam a roupa de cama, balançavam a cabeça por causa
das cebolas germinadas, colocavam um pouco de comida na despensa e uma
grande chaleira com sopa para o jantar. O que extraíram foi dito uma
palavra por vez. Tenar parecia não conseguir revelar o que o feiticeiro fizera;
um feitiço, ela disse vagamente, ou talvez ele tivesse enviado Habilidoso
atrás dela. Mas quando ela começou a falar sobre o rei, as palavras jorraram:
— E então lá estava ele… O rei! Como uma lâmina de espada… E
Habilidoso encolhendo-se e murchando para escapar dele… E pensei que
ele fosse Faísca! Pensei, de fato, por um instante… Eu estava tão… tão fora
de mim…
— Bem — disse Mattiana —, tudo bem, porque Canelinha pensou que
você fosse a mãe do rei. Quando estávamos nas docas vendo você navegar
em sua glória. Ela o beijou, sabe, tia Cotovia. Beijou o rei… Simples assim.
Achei que logo em seguida ela ia beijar aquele mago. Mas não fez isso.
— Imagino que não, que ideia. Que mago? — questionou Cotovia, com
a cabeça enfiada em um armário. — Onde está sua lata de farinha, Goha?
— Sua mão está nela. Um mago de Roke, à procura de um novo
arquimago.
— Aqui?
— Por que não? — indagou Mattiana. — O último foi de Gont, não foi?
Mas não gastaram muito tempo procurando. Navegaram direto de volta
para Havnor depois de se livrarem da mãe.
— Olhe como você fala.
— Estava à procura de uma mulher, ele me disse — explicou Tenar. —
“Uma mulher em Gont”. Mas ele não parecia muito feliz com isso.
— Um feiticeiro procurando uma mulher? Bem, isso é novidade — disse
Cotovia. — Eu já estava pensando que a história estava estranha a essa
altura, mas está perfeita. Vou assar um ou dois pães, tudo bem? Onde está o
óleo?
— Vou precisar tirar um pouco da vasilha que está na câmara fria. Ah,
Panaché! Aí está você! Como vai? Como vai Arroio Claro? Como vai tudo?
Vocês venderam os cordeiros?
Sentaram-se nove para jantar. À suave luz amarela do entardecer, na
cozinha de piso de pedra, à comprida mesa da fazenda, Therru começou a
levantar um pouco a cabeça e falou algumas vezes com as outras crianças;
mas ainda havia nela um retraimento e, à medida que escurecia lá fora, ela se
sentou de modo que seu olho vidente pudesse observar a janela.
Só quando Cotovia e as crianças foram para casa, ao crepúsculo,
Mattiana estava cantando para Therru dormir e ela estava lavando a louça
com Panaché, Tenar perguntou por Ged. De alguma forma, não queria fazer
isso enquanto Cotovia e Mattiana ouviam; haveria explicações a dar. Tinha
se esquecido de mencionar a presença dele em Re Albi. E ela não queria
mais falar sobre Re Albi. Sua mente parecia escurecer quando tentava pensar
no lugar.
— Um homem veio aqui no mês passado em meu nome, para ajudar no
trabalho?
— Ah, esqueci! — gritou Panaché. — Falcão, você quer dizer, um com as
cicatrizes no rosto?
— Isso — confirmou Tenar. — Falcão.
— Ah, é, bem, ele está lá em cima na montanha das Fontes Termais,
acima de Lissu, lá em cima com as ovelhas, com as ovelhas de Serry, acho.
Ele veio aqui e disse que você o enviou, mas não havia um pingo de trabalho
para ele aqui, sabe, com Arroio Claro e eu cuidando das ovelhas, eu
cuidando dos laticínios e o velho Turra e Mana me ajudando quando
necessário, quebrei a cabeça, mas Arroio Claro disse: “Vá perguntar ao
homem de Serry, ao supervisor do fazendeiro Serry, perto de Kahedanan, se
precisam de pastores nas pastagens altas”, disse ele, e aquele Falcão foi
embora e fez isso, foi contratado e saiu no dia seguinte. “Vá perguntar ao
homem de Serry”, disse Arroio Claro, e foi isso que ele fez e foi contratado
imediatamente. Então, ele voltará com os rebanhos no outono, sem dúvida.
Lá em cima, em Cerros Largos, acima de Lissu, nas pastagens altas. Acho
que talvez fosse para cabras que eles o queriam. Sujeito de boa fala. Ovelhas
ou cabras, não me lembro quais. Espero que esteja tudo bem por não
ficarmos com ele aqui, Goha, mas a verdade é que não tinha um pingo de
trabalho para ele, comigo, Arroio Claro e o velho Turra, e a Mana cuidou do
linheiro. Ele disse que tinha sido pastor de cabras lá de onde veio,
circundando a montanha, em algum lugar acima de Armouth, ele disse,
embora afirmasse que nunca tinha pastoreado ovelhas. Talvez sejam as
cabras que o levaram lá para cima.
— Talvez — concordou Tenar. Ela ficou muito aliviada e muito
desapontada. Queria encontrá-lo bem e em segurança, mas também queria
encontrá-lo ali.
Mas já era o bastante, disse a si mesma, simplesmente estar em casa, e
talvez fosse melhor que ele não estivesse ali, que absolutamente nada
estivesse ali, que todas as tristezas, sonhos, feitiçarias e terrores de Re Albi
tivessem ficado para trás, para sempre. Ela estava ali, agora, e aquele era o
seu lar, aqueles pisos e paredes de pedra, aquelas janelinhas, os carvalhos do
lado de fora, escuros sob a luz das estrelas, aqueles quartos silenciosos e
arrumados. Tenar ficou acordada por algum tempo naquela noite. A filha
dormia no quarto ao lado, o quarto das crianças, com Therru, e Tenar
deitou-se na própria cama, a cama do marido, sozinha.
Ela dormiu. Acordou sem se lembrar de nenhum sonho.

***
Depois de alguns dias na fazenda, ela mal pensava no verão passado em
Overfell. Foi há muito tempo e era muito longe. Apesar da insistência de
Panaché de que não havia um pingo de trabalho a ser feito na fazenda, ela
encontrou muito que precisava ser feito: tudo o que havia sido deixado por
fazer durante o verão e tudo o que tinha de ser feito na época da colheita
nos campos e nos laticínios. Ela trabalhava desde o amanhecer até o
anoitecer e, se por acaso tivesse tempo para se sentar, fiava ou costurava para
Therru. O vestido vermelho finalmente estava pronto, um vestido bonito,
além de um avental branco para roupas elegantes e de um marrom-
alaranjado para o dia a dia.
— Agora, então, você está linda! — exclamou Tenar com orgulho de
costureira quando Therru o experimentou pela primeira vez.
Therru virou o rosto.
— Você é linda — disse Tenar em um tom diferente. — Escute, Therru.
Venha aqui. Você tem cicatrizes, cicatrizes feias, porque uma coisa feia e
maligna foi feita a você. As pessoas veem as cicatrizes. Mas também veem
você, e você não se resume às cicatrizes. Você não é feia. Você não é má.
Você é Therru e é linda. Você é Therru, que sabe trabalhar, andar, correr e
dançar lindamente com um vestido vermelho.
A criança ouviu, o lado liso e ileso do rosto tão inexpressivo quanto o
lado rígido e marcado pelas cicatrizes.
Therru olhou para as mãos de Tenar e tocou-as com seus dedinhos.
— É um lindo vestido — elogiou ela com sua voz fraca e rouca.
Quando Tenar ficou sozinha, dobrando os pedaços de tecido vermelho,
as lágrimas arderam-lhe nos olhos. Sentiu-se repreendida. Ela fizera o certo
ao costurar o vestido e falara a verdade à criança. Mas o certo e a verdade
não bastavam. Havia uma fenda, um vazio, um abismo, além do certo e da
verdade. O amor, o amor dela por Therru e o amor de Therru por ela, era
uma ponte sobre essa fenda, uma ponte de teia de aranha, mas o amor não
preenchia nem fechava a fenda. Nada fazia isso, e a criança sabia disso
melhor do que Tenar.
Chegou o dia do equinócio, um sol brilhante de outono queimando
através da névoa. O bronze estava nas folhas dos carvalhos. Na leiteria,
enquanto esfregava as panelas para lhes tirar o creme, com a janela e a porta
abertas para o ar doce, Tenar pensou que seu jovem rei estava sendo coroado
naquele dia em Havnor. Os senhores e senhoras circulavam em suas roupas
azuis, verdes e carmesim, mas ele usaria branco, ela imaginou. Ele subiria os
degraus da Torre da Espada, os degraus que ela e Ged tinham escalado. A
coroa de Morred seria colocada em sua cabeça. Ele se viraria ao som das
trombetas e se sentaria no trono há tantos anos vazio, contemplando seu
reino com aqueles olhos escuros que sabiam o que era dor, o que era medo.
Governe bem, governe por muito tempo, pensou ela, pobre rapaz! E ela pensou:
Ged devia estar colocando a coroa na cabeça dele. Ele devia ter ido.
Mas Ged estava nas pastagens altas pastoreando as ovelhas, ou talvez as
cabras, do homem rico. Era um outono claro, seco e dourado, e eles não
iriam trazer os rebanhos até que a neve caísse nas alturas.
Quando entrou na aldeia, Tenar fez questão de passar pela casa de Hera,
no final da Alameda do Engenho. Conhecer Musgo em Re Albi fez com
que ela desejasse conhecer Hera melhor, se conseguisse superar a suspeita e
o ciúme da bruxa. Tenar sentia falta de Musgo, embora tivesse Cotovia ali;
Tenar aprendera com a bruxa e passara a amá-la, e Musgo dera a ela e a
Therru algo de que precisavam. Esperava encontrar uma substituta para isso
ali. Mas Hera, embora muito mais limpa e confiável que Musgo, não tinha
intenção de desistir da sua antipatia por Tenar. Ela tratava as suas propostas
de amizade com um desprezo que, Tenar admitiu, talvez fosse merecido.
— Você segue o seu caminho, eu sigo o meu — disse a bruxa de todas as
formas, menos com palavras; e Tenar obedeceu, embora continuasse a tratar
Hera com grande respeito quando se encontravam. Ela considerou que, por
tê-la desprezado tantas vezes e por tanto tempo, devia-lhe reparação.
Evidentemente concordando, a bruxa aceitou o que lhe era devido com ira
inflexível.
Em meados do outono, o ocultista Faia subiu o vale, chamado por um
rico fazendeiro para tratar sua gota. Permaneceu algum tempo nas aldeias do
Vale Central, como costumava fazer, e passou uma tarde na Fazenda do
Carvalho, examinando Therru e conversando com Tenar. Queria saber tudo
o que ela lhe contasse sobre os últimos dias de Ogion. Ele fora aprendiz de
um aprendiz de Ogion e um admirador devoto do mago de Gont. Tenar
descobriu que não era tão difícil falar de Ogion como de outras pessoas de
Re Albi e contou-lhe tudo o que pôde. Quando ela terminou, Faia
perguntou com um pouco de cautela:
— E o Arquimago… Ele veio?
— Sim — respondeu Tenar.
Faia, um homem de pele lisa e aparência serena, na casa dos quarenta
anos, um pouco propenso ao sobrepeso, com semicírculos escuros sob os
olhos que desmentiam a suavidade do rosto, olhou para ela e não perguntou
nada.
— Ele veio depois da morte de Ogion. E foi embora — explicou Tenar.
E em seguida: — Ele não é arquimago agora. Sabia disso? — Faia assentiu.
— Há alguma notícia da escolha de um novo arquimago?
O ocultista sacudiu a cabeça em sinal negativo.
— Teve um navio vindo das Enlades não muito tempo atrás, mas não
houve palavra alguma de sua tripulação sobre qualquer coisa além da
coroação. Só falavam disso! E parece que todos os auspícios e eventos foram
afortunados. Se a boa vontade dos magos é valiosa, então esse nosso jovem
rei é um homem afortunado… e ativo, ao que parece. Há uma ordem vinda
por terra do Porto de Gont, pouco antes de eu deixar Valmouth, para que os
nobres, os mercadores, o prefeito e seu conselho se reúnam e façam com que
os oficiais de justiça do distrito sejam homens dignos e responsáveis, pois
agora são os representantes do rei e devem fazer a vontade dele e promulgar
sua lei. Bem, você pode imaginar como o Senhor Heno recebeu isso! —
Heno era um notável patrono dos piratas, que por muito tempo manteve em
seu bolso a maioria dos oficiais de justiça e xerifes do mar no sul de Gont.
— Mas havia homens dispostos a enfrentar Heno, com o rei na retaguarda
deles. Demitiram de imediato o antigo grupo e nomearam quinze novos
oficiais de justiça, homens decentes, pagos com os fundos do prefeito. Heno
saiu furioso, jurando destruição. É uma nova era! Não toda de uma vez, é
claro, mas está chegando. Gostaria que o Mestre Ogion tivesse vivido para
vê-la.
— Ele viu — disse Tenar. — Quando estava morrendo, ele sorriu e disse:
“Tudo mudou…”.
Faia interpretou isso com sua maneira sóbria, assentindo lentamente.
— Tudo mudou — repetiu ele. Depois de um instante, disse: — A
pequena está muito bem.
— Bem o bastante… Às vezes acho que não o suficiente.
— Senhora Goha — disse o ocultista —, se eu ou qualquer ocultista ou
bruxa ou, ouso dizer, feiticeiro, a tivéssemos mantido e usado todo o poder
de cura da Arte da Magia nela durante todos esses meses desde que foi
ferida, ela não estaria melhor. Talvez não tão bem quanto está. Você fez tudo
o que podia ser feito, senhora. Você operou uma maravilha.
Tenar ficou emocionada com o elogio sincero de Faia, mas aquilo a
deixava triste; ela lhe disse por quê:
— Não é o suficiente. Não posso curá-la. Ela é… O que ela deve fazer?
O que será dela? — A mulher soltou o fio que estava tecendo na haste do
fuso e admitiu: — Estou com medo.
— Por ela — completou Faia, quase como uma interrogação.
— Com medo porque o medo dela atrai para si, para ela mesma, a causa
do medo dela. Com medo porque… — Mas a mulher não conseguia
encontrar palavras para dizê-lo. — Se viver com medo, ela provocará o mal
— concluiu, enfim. — Tenho medo disso.
O ocultista ponderou.
— Pensei — disse ele finalmente com seu jeito tímido — que talvez, se
ela tiver o dom, como acho que tem, ela poderia ser um pouco treinada na
Arte. E, como uma bruxa, ela… A aparência não se colocaria tão contra
ela… Possivelmente. — Ele limpou a garganta. — Existem bruxas que
fazem um trabalho muito digno de crédito — acrescentou.
Tenar deslizou entre os dedos o fio que fiara, testando a regularidade e a
resistência.
— Ogion me disse para ensiná-la. “Ensine tudo a ela”, disse ele, e depois,
“Nada de Roke”. Não sei o que quis dizer.
Faia não teve dificuldade com aquilo.
— Ele quis dizer que o aprendizado de Roke, as Artes Elevadas, não
seria adequado para uma garota — explicou o ocultista. — Muito menos
para alguém com deficiência. Mas se ele disse para ensinar tudo a ela, menos
essa tradição, parece que ele também via que o caminho dela poderia muito
bem ser o caminho das bruxas. — Faia ponderou novamente, com mais
alegria, tendo o peso da opinião de Ogion do seu lado. — Em um ou dois
anos, quando ela estiver bem forte e crescer um pouco mais, você pode
considerar pedir a Hera que comece a ensiná-la um pouco. Não muito, é
claro, nem mesmo para esse tipo de coisa, até que ela saiba o próprio nome
verdadeiro. — Tenar sentiu uma resistência forte e imediata à sugestão. Não
a verbalizou, mas Faia era um homem sensível. — Hera é uma pessoa rígida.
Mas o que ela sabe faz com honestidade. E isso não vale para todas as
bruxas. “Fraco como magia de mulher”, você sabe, “perverso como magia de
mulher”! Mas conheci bruxas com verdadeiro poder de cura. A cura convém
a uma mulher. É natural para ela. E a criança pode se sentir atraída por isso,
tendo sido tão machucada.
A bondade dele, refletiu Tenar, era inocente.
Ela agradeceu, alegando que pensaria com carinho em suas palavras. E,
de fato, foi o que fez.

***

Antes do fim do mês, as aldeias do Vale Central se reuniram no Celeiro


Redondo de Sodeva a fim de nomear os próprios oficiais de justiça e oficiais
de paz e também visando cobrar um imposto sobre si próprias para pagar os
salários dos oficiais de justiça. Eram as ordens do rei, levadas aos prefeitos e
aos anciãos das aldeias, prontamente obedecidas, pois havia tantos pedintes
armados e ladrões nas estradas como sempre, e os aldeões e fazendeiros
ansiavam por ordem e segurança. Corriam alguns rumores horríveis, como o
de que o Senhor Heno formara um Conselho de Trapaceiros e estava
recrutando todos os bandidos do campo para andarem em gangues
arrebentando a cabeça dos oficiais de justiça do rei; mas, em sua maioria, as
pessoas disseram:
— Eles que tentem! — E foram para casa dizendo umas às outras que
agora um homem honesto poderia dormir em segurança na cama à noite e
que o rei estava corrigindo o que estava errado, embora os impostos
estivessem além do razoável e todos ficariam eternamente pobres tentando
pagá-los.
Tenar ficou contente ao ouvir tudo isso de Cotovia, mas não prestou
muita atenção. Andava trabalhando muito; e desde que chegou em casa,
quase sem perceber, tinha decidido não permitir que a imagem de
Habilidoso ou de qualquer rufião desse tipo governasse sua vida ou a de
Therru. Ela não podia manter a criança por perto a todo instante, renovando
os terrores dela, lembrando-lhe sempre daquilo que ela não podia lembrar
nem viver. A criança devia ser livre e saber-se livre, para crescer com
dignidade.
Aos poucos, perdera o jeito retraído e medroso, e agora andava sozinha
pela fazenda, pelos atalhos e até pela aldeia. Tenar não lhe dava nenhum
conselho, mesmo quando tinha de se impedir de fazê-lo. Therru estava
segura na fazenda, segura na aldeia, ninguém lhe faria mal: isso devia ser
considerado inquestionável. Na verdade, Tenar não questionava isso com
frequência. Com Tenar, Panaché e Arroio Claro por toda parte, Mana e
Turra na casa de baixo e a família de Cotovia por toda a aldeia, no doce
outono do Vale Central, que mal iria acontecer à criança?
Ela também arranjaria um cachorro quando ouvisse falar de um que
queria: um dos grandes pastores cinzentos de Gont, com suas cabeças
espertas e cacheadas.
Eu devia estar ensinando a criança!, pensava ela de vez em quando, como
fizera em Re Albi. Foi o que Ogion disse. Mas, de alguma forma, nada parecia
ser ensinado a ela, exceto trabalho agrícola e histórias, à noite, quando o sol
se punha e elas se sentavam perto do fogo da cozinha após o jantar, antes de
irem para a cama. Talvez Faia tivesse razão e Therru devesse ser enviada a
uma bruxa para saber o que as bruxas sabiam. Era melhor do que torná-la
aprendiz de tecelão, como Tenar considerara fazer. Mas não muito melhor. E
ela ainda não era tão grande; era muito ignorante para sua idade, pois nada
lhe fora ensinado antes que chegasse à Fazenda do Carvalho. Era como um
pequeno animal, mal conhecendo a fala humana e sem nenhuma habilidade
humana. Aprendia rápido e era duas vezes mais obediente e diligente do que
as meninas rebeldes e os meninos risonhos e preguiçosos de Cotovia. Sabia
limpar, servir e fiar, cozinhar um pouco, costurar um pouco, cuidar das aves,
buscar as vacas e fazer um excelente trabalho na leiteria. Uma verdadeira
camponesa, chamara o velho Turra, bajulando-a um pouco. Tenar também o
vira fazer o sinal para evitar o mal, discretamente, enquanto Therru passava
por ele. Como a maioria das pessoas, Turra acreditava que as pessoas eram o
que acontecia com elas. Os ricos e fortes devem ter virtude; aquele a quem o
mal foi feito deve ser mau e pode ser punido com razão.
Nesse caso, não ajudaria muito se Therru se tornasse a camponesa mais
próspera de Gont. Nem mesmo a prosperidade diminuiria a marca visível do
que lhe foi feito. Por isso Faia pensou nela como bruxa, aceitando, fazendo
uso da marca. Será que foi isso que Ogion quis dizer quando declarou “Nada
de Roke”, quando disse “Eles vão temê-la”? Era só isso?
Um dia, quando um acaso as reuniu na rua da aldeia, Tenar disse a Hera:
— Há uma pergunta que quero fazer, Senhora Hera. Uma questão da sua
profissão.
A bruxa olhou para ela. Tinha um olhar destruidor.
— Minha profissão, hein? — Tenar assentiu, firme. — Vamos lá, então
— Hera disse, dando de ombros, descendo a Alameda do Engenho até sua
casinha.
Não era um covil de infâmia e de galinhas, como a casa de Musgo, mas
era uma casa de bruxa, as vigas cobertas de ervas secas ou postas para secar, o
fogo aceso sobre cinzas escuras com um pequeno carvão brilhando como um
olho vermelho, um gato preto ágil e gordo, de bigode branco, dormindo em
uma prateleira, e uma profusão por toda parte de caixinhas, potes, jarras,
bandejas e garrafas fechadas com rolhas, aromáticas, pungentes, adocicadas
ou estranhas.
— O que posso fazer por você, Senhora Goha? — perguntou Hera,
muito seca, quando elas estavam lá dentro.
— Diga-me, por favor, se acha que minha protegida, Therru, tem algum
dom para sua arte… Algum poder nela.
— Ela? É óbvio! — confirmou a bruxa.
Tenar ficou um pouco desconcertada com a resposta rápida e
desdenhosa.
— Bem — ela disse —, Faia pareceu pensar que sim.
— Um morcego cego em uma caverna poderia ver — disse Hera. — Isso
é tudo?
— Não. Quero seu conselho. Depois que eu fizer minha pergunta, a
senhora pode me dizer o preço da resposta. É justo?
— É justo.
— Devo colocar Therru como aprendiz de bruxa quando ela for um
pouco mais velha?
Hera ficou em silêncio durante um minuto, decidindo os seus
honorários, imaginou Tenar. Em vez disso, respondeu à pergunta:
— Eu não a receberia — anunciou Hera.
— Por quê?
— Teria medo — explicou a bruxa, com um olhar súbito e feroz para
Tenar.
— Medo? De quê?
— Dela! O que é ela?
— Uma criança. Uma criança maltratada!
— Isso não é tudo que ela é.
Uma raiva sombria tomou conta de Tenar e ela disse:
— Uma aprendiz de bruxa deve ser virgem, então?
Hera ficou olhando. Depois de um instante, falou:
— Eu não quis dizer isso.
— O que você quis dizer?
— Quis dizer que não sei o que ela é. Quis dizer que quando ela olha
para mim com aquele olho que enxerga e o outro que é cego, não sei o que
ela vê. Vejo você andando com ela como se fosse uma criança qualquer, e
penso: “O que elas são? Qual a força daquela mulher, pois ela não é boba
para segurar o fogo pela mão, para fiar o fio com o redemoinho?”. Dizem,
senhora, que você mesma viveu, quando criança, com os Antigos, os
Tenebrosos, os Subterrâneos, e que você era rainha e serva desses poderes.
Talvez seja por isso que você não tem medo deste. Que poder ela tem, não
sei, não digo. Mas ele está além do meu ensinamento, disso eu sei… Ou do
ensinamento de Faia, ou de qualquer feiticeiro ou bruxa que já conheci! Vou
lhe dar meu conselho, senhora, de graça e sem taxas. É este: cuidado.
Cuidado com ela, no dia em que ela encontrar forças! Isso é tudo.
— Agradeço-lhe, Senhora Hera — disse Tenar com toda a formalidade
da Sacerdotisa Una das Tumbas de Atuan, e saiu do cômodo quente para o
vento fraco e cortante do fim de outono.
Tenar ainda estava com raiva. Ninguém iria ajudá-la, refletiu. Sabia que o
trabalho estava além de suas capacidades, ninguém precisava lhe dizer isso,
mas nenhum deles queria ajudar. Ogion tinha morrido, a velha Musgo
vociferou, Hera avisou, Faia manteve-se afastado e Ged — aquele que
poderia de fato ter ajudado —, Ged fugiu. Fugiu como um cão chicoteado e
nunca lhe enviou sinais ou palavras, nunca pensou nela ou em Therru, e sim
apenas em sua própria e completa vergonha. Essa era a criança dele, o bebê
dele. Isso era tudo com que ele se importava. Ele nunca se importou ou
pensou nela, apenas no poder — no poder dela, no poder dele, em como ele
poderia usá-lo, em como poderia obter com ele mais poder ainda. Unindo o
Anel quebrado, restaurando a Runa, colocando um rei no trono. E quando
seu poder se foi, ainda era tudo em que ele conseguia pensar: que se foi, se
perdeu, deixando-lhe apenas ele mesmo, a vergonha e o vazio dele.
Você não está sendo justa, disse Goha a Tenar.
Justa!, disse Tenar. Ele foi justo?
Sim, disse Goha. Ele foi. Ou tentou.
Bem, então ele pode ser justo com as cabras que está pastoreando; não significa
nada para mim, disse Tenar, voltando para casa sob o vento e a primeira
chuva fria e esparsa.
— Neva esta noite, talvez — disse seu arrendatário, Turra, encontrando-a
na estrada ao lado dos prados do Kaheda.
— Neve, tão cedo? Espero que não.
— Geada, então, com certeza.
Quando o sol se pôs, geou: as poças de chuva e bebedouros dos animais
com camadas finas, depois opacos e congelados; os juncos do Kaheda
ficaram imóveis, presos no gelo; o próprio vento parou como se estivesse
congelado, incapaz de se mover.
Ao lado do fogo, um fogo mais doce que o de Hera, pois a lenha era de
uma velha macieira derrubada no pomar na primavera, Tenar e Therru
ficaram sentadas, fiando e conversando depois de retirarem a louça do jantar.
— Conte a história sobre os fantasmas dos gatos — pediu Therru com
sua voz rouca enquanto girava a roda para transformar uma massa de lã de
cabra escura e sedosa em um fio de felpa.
— Essa é uma história de verão. — Therru inclinou a cabeça. — No
inverno as histórias deveriam ser as grandes histórias. No inverno aprende-
se A criação de Éa, para poder cantá-la na Longa Dança quando chegar o
verão. No inverno você aprende o Conto de inverno e a Saga do Jovem Rei, e
no Festival do Regresso do Sol, quando o sol se volta para o norte para
trazer a primavera, você pode cantá-los.
— Não posso cantar — sussurrou a garota.
Tenar enrolava o fio da roca em uma bola, com mãos hábeis e rítmicas.
— Não é só a voz que canta — disse a mulher. — A mente canta. A voz
mais bonita do mundo não serve de nada se a mente não conhece as
músicas. — Ela desamarrou o último pedaço de fio, que fora o primeiro a ser
fiado. — Você tem força, Therru, e a força que é ignorante é perigosa.
— Como aqueles que não quiseram aprender — disse Therru. — Os
selvagens. — Tenar não entendeu o que ela queria dizer e lhe lançou um
olhar interrogativo. — Os que ficaram no oeste — disse Therru.
— Ah… Os dragões… Na canção da Mulher de Kemay. Isso.
Exatamente. Então, por onde começaremos: como as ilhas foram erguidas
do mar ou como o Rei Morred fez recuar os Barcos Negros?
— As ilhas — sussurrou Therru. Tenar tinha esperança de que ela
escolhesse a Saga do Jovem Rei, pois via o rosto de Lebannen como o de
Morred; mas a escolha da criança foi acertada.
— Muito bem — concordou. Ela olhou para os grandes Livros de
Ensinamentos de Ogion sobre a cornija da lareira, encorajando-se a pensar
que, caso esquecesse, poderia encontrar as palavras ali; respirou fundo; e
começou.
Na hora de dormir, Therru sabia como Segoy erguera, das profundezas
do Tempo, a primeira das ilhas. Em vez de cantar para ela, Tenar sentou-se
na cama depois de aconchegá-la e recitaram juntas, suavemente, a primeira
estrofe da canção da Criação.
Tenar levou a pequena lamparina a óleo de volta para a cozinha, ouvindo
o silêncio absoluto. A geada havia limitado o mundo, trancando-o.
Nenhuma estrela apareceu. A escuridão pressionava a única janela da
cozinha. O frio estava no piso de pedra.
Ela voltou para o fogo, pois ainda não estava com sono. As belas palavras
da canção agitaram seu espírito, e ainda havia nela raiva e inquietação por
causa da conversa com Hera. Tenar pegou o atiçador a fim de despertar uma
pequena chama em um pedaço de lenha no fundo da lareira. Quando bateu
no tronco, houve um eco do som nos fundos da casa.
Ela se endireitou e ficou ouvindo.
Novamente: uma pancada ou baque surdo — do lado externo da casa —
na janela da leiteria?
Com o atiçador ainda na mão, Tenar desceu o corredor escuro até a porta
que dava para a câmara fria. Depois da câmara, ficava a leiteria. A casa foi
construída contra uma colina baixa, e ambos os espaços desciam para a
colina como porões, embora no mesmo nível do restante da casa. A câmara
fria tinha apenas saídas de ar; a leiteria dispunha de uma porta e de uma
janela, baixas e largas como a janela da cozinha, na única parede externa.
Parada à porta da câmara fria, Tenar conseguiu ouvir a janela sendo aberta
ou forçada, e vozes de homens sussurrando.
Pederneira era um chefe de família metódico. Todas as portas de sua
casa, exceto uma, tinham um ferrolho em cada lado, um pedaço robusto de
ferro fundido preso em corrediças. Todos eram mantidos limpos e
lubrificados; nenhum jamais foi trancado.
Tenar passou o ferrolho pela porta da câmara fria. Ele deslizou para o
lugar sem fazer barulho, encaixando-se perfeitamente na pesada fenda de
ferro no batente.
Ela ouviu a porta externa da leiteria se abrir. Um deles enfim pensou em
experimentar a porta antes de quebrar a janela e descobriu que não estava
trancada. Ela ouviu o murmúrio de vozes de novo. Depois o silêncio, longo o
suficiente para que ela ouvisse as batidas do próprio coração em seus
ouvidos, tão altas que temeu não conseguir ouvir outro som além delas.
Sentiu suas pernas tremendo sem parar e o frio do chão subindo por baixo
de sua saia como uma mão.
— Está aberto — sussurrou uma voz masculina perto dela, e seu coração
deu um pulo doloroso.
Tenar colocou a mão no ferrolho: pensando que estava aberto, ela o havia
destrancado, não trancado… Quase o devolvera para o lugar quando ouviu a
porta entre a câmara fria e a leiteria ranger, abrindo-se. Ela reconheceu
aquele rangido da dobradiça superior. Também reconheceu a voz que havia
falado, mas era uma forma diferente de reconhecimento.
— É um depósito — disse Habilidoso, e então, quando a porta contra a
qual ela estava chacoalhou no ferrolho: — Esta está trancada. —
Chacoalhou novamente. Uma fina lâmina de luz, como a lâmina de uma
faca, passou entre a porta e o batente. Tocou seu seio e ela recuou como se a
tivesse cortado.
A porta chacoalhou outra vez, mas não muito. Era sólida, com
dobradiças sólidas, e o ferrolho era firme.
Eles murmuraram juntos do outro lado da porta. Tenar sabia que
estavam planejando dar a volta e tentar a frente da casa. Ela se viu na porta
da frente, passando o ferrolho, sem saber como tinha chegado ali. Talvez
aquilo fosse um pesadelo. Sonhara com isso, com eles tentando entrar na
casa, enfiando facas finas nas frestas das portas. As portas… Havia alguma
outra porta pela qual pudessem entrar? As janelas… As venezianas das
janelas do quarto… Sua respiração era tão curta que ela achou que não
conseguiria chegar ao quarto de Therru, mas ela estava lá, puxou as pesadas
venezianas de madeira do outro lado do vidro. As dobradiças estavam
rígidas e se encaixaram com estrondo. Agora eles sabiam. Agora estavam
vindo. Iriam até a janela do quarto ao lado, o quarto dela. Estariam lá antes
que Tenar pudesse fechar as venezianas. E eles estavam.
Ela viu os rostos, borrões em movimento na escuridão lá fora, enquanto
tentava soltar a veneziana esquerda do ferrolho. Estava emperrada. Ela não
conseguia fazer com que se movesse. Uma mão tocou o vidro, branca opaca
contra ele.
— Lá está ela.
— Abra para entrarmos. Não vamos machucar vocês.
— Só queremos falar com vocês.
— Ele só quer ver a filhinha dele.
Tenar soltou a veneziana e arrastou-a pela janela. Mas se quebrassem o
vidro, conseguiriam abrir as venezianas pelo lado de fora. Fixava-se apenas
com um gancho que sairia da madeira se fosse forçado.
— Abra para entrarmos e não vamos machucar vocês — disse uma das
vozes.
Ela ouviu os pés dos homens no chão congelado, estalando nas folhas
caídas. Therru estava acordada? O estrondo das venezianas fechando poderia
tê-la acordado, mas ela não emitiu som algum. Tenar ficou parada na porta
entre seu quarto e o de Therru. Estava escuro como breu, silencioso. Ela
estava com medo de tocar a criança e acordá-la. Deveria ficar no quarto com
ela. Deveria lutar por ela. Estava com o atiçador na mão, onde o havia
colocado? Ela o havia largado para fechar as venezianas. Não conseguiu
encontrar. Tateou em busca dele na escuridão do quarto que parecia não ter
paredes.
A porta da frente, que dava para a cozinha, chacoalhou, sacudindo no
batente.
Se ela conseguisse encontrar o atiçador, ficaria ali, lutaria contra eles.
— Aqui! — chamou um deles, e ela sabia o que ele havia encontrado. O
homem estava olhando para a janela da cozinha, ampla, sem venezianas, fácil
de alcançar.
Ela foi tateando, o que pareceu demorar muito, até a porta do quarto.
Agora o quarto de Therru. Era o quarto de suas crianças. O quarto das
crianças. Era por isso que não havia fechadura na parte interna da porta.
Assim, as crianças não poderiam se trancar e ficar assustadas se o ferrolho
emperrasse.
Lá atrás da colina, do outro lado do pomar, Arroio Claro e Panaché
estariam dormindo na cabana deles. Se chamasse, talvez Panaché ouvisse. Se
abrisse a janela do quarto e chamasse… Ou se acordasse Therru e elas
pulassem a janela e corressem pelo pomar… Mas os homens estavam ali,
bem ali, à espera.
Era mais do que ela podia suportar. O terror congelado que a prendia se
rompeu e, furiosa, Tenar correu para a cozinha, que era uma luz avermelhada
em seus olhos, tirou a faca de açougueiro longa e afiada do tijolo, puxou o
ferrolho da porta e parou na porta.
— Entrem, então! — disse ela.
Enquanto ela falava, houve um uivo e um arquejo, e um homem berrou:
— Cuidado!
Outro gritou:
— Aqui! Aqui!
Depois fez-se silêncio.
A luz que entrava pela porta aberta atravessava o gelo escuro das poças,
brilhava nos galhos escuros dos carvalhos e nas folhas prateadas caídas, e,
quando sua visão clareou, ela percebeu que algo rastejava em sua direção no
caminho, uma massa ou um monte escuro rastejando na direção dela,
soltando um gemido alto e soluçante. Atrás da luz, uma forma escura corria
e disparava, longas lâminas brilhavam.
— Tenar!
— Pare aí — ordenou ela, erguendo a faca.
— Tenar! Sou eu… Falcão, Gavião!
— Fique aí — disse ela.
A silhueta escura e veloz ficou parada ao lado da massa escura que jazia
no caminho. A luz que entrava na porta brilhava fracamente sobre um
corpo, um rosto, um forcado de dentes longos erguido, como um cajado de
feiticeiro, analisou ela.
— É você? — perguntou.
Ele estava ajoelhado perto da criatura preta no caminho.
— Eu o matei, acho — disse ele. Ele olhou por cima do ombro e se
levantou. Não havia sinal ou som dos outros homens.
— Onde eles estão?
— Fugiram. Uma ajudinha, Tenar.
Ela segurou a faca em uma mão. Com a outra, segurou o braço do
homem que estava encolhido no caminho. Ged o pegou pelos ombros e eles
o arrastaram degrau acima, para dentro da casa. Ficou deitado no piso de
pedra da cozinha, o sangue escorrendo de seu peito e de seu abdômen como
água de uma jarra. Seu lábio superior estava afastado dos dentes e apenas o
branco dos olhos aparecia.
— Tranque a porta — disse Ged, e ela trancou a porta.
— Roupa de cama — disse Tenar, e ele pegou um lençol e rasgou-o para
fazer ataduras, que ela amarrou em volta do abdômen e do peito do homem,
nos quais três dos quatro dentes do forcado haviam entrado com toda a
força, criando três fontes irregulares de sangue que pingavam e esguichavam
enquanto Ged apoiava o torso do homem para que ela enrolasse as
ligaduras. — O que está fazendo aqui? Veio com eles?
— Sim. Mas eles não sabiam disso. Isso é tudo o que você pode fazer,
Tenar. — Ged deixou o corpo do homem ceder e recostou-se, respirando
com dificuldade, enxugando o rosto com as costas da mão ensanguentada.
— Acho que o matei — repetiu.
— Talvez você tenha feito isso. — Tenar observou as manchas vermelhas
brilhantes espalharem-se com lentidão no linho pesado que envolvia o peito
e o abdômen magros e peludos do homem. Ela se levantou e cambaleou,
muito zonza. — Vá para perto do fogo — ela disse. — Você deve estar
acabado.
Ela não sabia como o reconhecera na escuridão lá fora. Por sua voz,
talvez. Ged usava um volumoso casaco de inverno de pastoreio feito de lã
cortada, com o lado do couro para fora, e um gorro de pastor de tricô,
puxado para baixo; seu rosto estava enrugado e envelhecido, o cabelo estava
comprido e grisalho. Ele cheirava a fumaça de lenha, geada e ovelhas. Estava
tiritando, o corpo todo tremendo.
— Vá para perto do fogo — repetiu ela. — Coloque lenha nele.
Ele fez isso. Tenar encheu a chaleira e balançou-a no braço de ferro sobre
o fogo.
Havia sangue em sua saia e ela usou uma ponta de linho embebida em
água fria para limpá-la. Deu o pano a Ged para limpar o sangue das mãos.
— O que você quis dizer — perguntou ela — com ter vindo com eles,
mas eles não saberem?
— Eu estava descendo. Da montanha. Na estrada das nascentes do
Kaheda — falou Ged com uma voz monótona, como se estivesse sem
fôlego, e seu tremor fazia com que sua fala fosse arrastada. — Ouvi homens
atrás de mim e me afastei. Para dentro da floresta. Não tive vontade de
conversar. Não sei. Tinha alguma coisa neles. Fiquei com medo deles.
Tenar assentiu com impaciência e sentou-se diante dele, junto à lareira,
inclinando-se para ouvir, com as mãos apertadas no colo. A saia úmida
estava fria contra as pernas.
— Ouvi um deles dizer “Fazenda do Carvalho” enquanto passavam.
Depois disso, eu os segui. Um deles continuou falando. Sobre a criança.
— O que ele disse?
Ele ficou em silêncio. Por fim, falou:
— Que iria pegá-la de volta. Puni-la, ele disse. E depois cuidar de você.
Por roubá-la, ele disse. Ele disse… — Ged parou.
— Que ele me puniria também.
— Todos falaram. Sobre… sobre aquilo.
— Este não é Habilidoso. — Ela acenou com a cabeça em direção ao
homem no chão. — É o…?
— Ele falou que ela era dele. — Ged também olhou para o homem e
depois para o fogo. — Ele está morrendo. Devíamos procurar ajuda.
— Ele não vai morrer — disse Tenar. — Vou mandar buscar Hera pela
manhã. Os outros ainda estão por aí… Quantos são?
— Dois.
— Se ele morrer, morreu; se viver, viveu. Nenhum de nós vai sair. — Ela
se levantou, com um espasmo de medo. — Você trouxe o forcado, Ged?
Ele apontou para a ferramenta, os quatro longos dentes brilhando,
encostada na parede ao lado da porta.
Tenar se sentou outra vez no assento da lareira, mas agora tremia, tremia
da cabeça aos pés, assim como tinha acontecido com ele. Ged estendeu a
mão a fim de tocar o braço dela.
— Está tudo bem — afirmou ele.
— E se ainda estiverem por aí?
— Eles fugiram.
— Poderiam voltar.
— Dois contra dois? E nós temos o forcado.
Ela baixou a voz para um sussurro e disse, aterrorizada:
— A podadeira e as foices estão no abrigo do celeiro.
Ele balançou sua cabeça.
— Eles fugiram. Eles viram… ele… e você na porta.
— O que você fez?
— Ele veio na minha direção. Então fui até ele.
— Quero dizer, antes. Na estrada.
— Eles ficaram com frio, andando. Começou a chover, eles ficaram com
frio e começaram a falar de vir para cá. Antes era só isso, falar da criança e
de você, de dar… dar uma lição… — A voz dele sumiu. — Estou com sede
— comentou.
— Eu também. A chaleira ainda não está fervendo. Continue.
Ele respirou fundo e tentou contar a história de maneira coerente.
— Os outros dois não lhe davam muito ouvido. Já tinham escutado tudo
aquilo antes, talvez. Estavam com pressa para embarcar. Para chegar a
Valmouth. Como se estivessem fugindo de alguém. Indo embora. Mas
esfriou, e ele falou sobre a Fazenda do Carvalho, e aquele com o capuz disse:
“Bem, por que não ir lá e passar a noite com…”.
— Com a viúva, sim.
Ged cobriu o rosto com as mãos. Ela esperou.
Ele olhou para o fogo e prosseguiu com firmeza:
— Aí os perdi por um tempo. A estrada desembocava no vale e eu não
conseguia seguir o caminho que estava fazendo, pela floresta, logo atrás
deles. Tive de me afastar, pelos campos, mantendo-me fora da vista deles.
Não conheço essa região, só a estrada. Tive medo de me perder e perder a
casa se atravessasse o campo. E estava escurecendo. Achei que tivesse
perdido a casa, passado por ela. Voltei para a estrada e quase esbarrei neles…
ali na curva. Eles viram o velho passar. Decidiram esperar até escurecer e
terem certeza de que ninguém mais viria. Esperaram no celeiro. Fiquei do
lado de fora. Do outro lado da parede.
— Você deve ter congelado — observou Tenar, em tom monótono.
— Estava frio. — Ged aproximou as mãos no fogo como se pensar no
assunto o congelasse outra vez. — Encontrei o forcado perto da porta do
abrigo. Os homens foram até os fundos da casa quando saíram. Eu poderia
ter ido até a porta da frente para avisar você, era o que deveria ter feito, mas
tudo em que consegui pensar foi pegá-los de surpresa: pensei que fosse
minha única vantagem, arrisquei… Achei que a casa estaria trancada e eles
teriam de arrombar. Mas aí ouvi o grupo entrando, lá atrás, ali. Entrei, na
leiteria, atrás deles. Tinha acabado de sair quando eles chegaram à porta
trancada. — Ged soltou uma espécie de risada. — Passaram por mim no
escuro. Eu poderia ter dado uma rasteira neles… Um deles tinha uma
pederneira e aço, ele acendia uma fagulha quando queriam ver uma
fechadura. Vieram para a frente. Ouvi você fechando as venezianas: sabia
que você os tinha ouvido. Falaram sobre quebrar a janela onde a viram.
Então o de capuz viu a janela, aquela janela… — Ged acenou com a cabeça
em direção à janela da cozinha, com seu parapeito interno largo e fundo. —
Ele disse: “Tragam uma pedra, vou quebrar isso”, e eles chegaram ao local
onde ele estava prestes a erguê-lo até o peitoril. Então soltei um grito, ele
caiu e um deles, este aqui, veio correndo em minha direção.
— Ah, ah. — O homem caído no chão ofegou, como se estivesse
contando a história de Ged para ele. Ged levantou-se e inclinou-se sobre
ele.
— Ele está morrendo, eu acho.
— Não, não está — disse Tenar. Ela não conseguia parar de tremer, mas
agora era apenas um tremor interno. A chaleira cantava. Tenar preparou um
bule de chá e colocou as mãos nas laterais grossas de cerâmica do bule
enquanto preparava a infusão. Serviu duas xícaras, depois uma terceira, nas
quais colocou um pouco de água fria. — Está quente demais para beber —
avisou a Ged —, espere um minuto. Vou ver se ele bebe isso. — Ela se
sentou no chão ao lado da cabeça do homem, levantou-a com um braço,
levou a xícara de chá amornado à boca dele e empurrou a borda entre os
dentes à mostra. O líquido escorreu para sua boca; ele engoliu em seco. —
Ele não vai morrer — Tenar disse. — O piso parece gelo. Ajude-me a
aproximá-lo do fogo.
Ged começou a tirar o tapete de um banco que corria ao longo da parede
entre a chaminé e o corredor.
— Não use isso, é uma boa peça de tecelagem — advertiu Tenar.
Foi até o armário e tirou uma capa de feltro surrada, que estendeu como
cama para o homem. Puxaram o corpo inerte para cima do tecido e o
envolveram. As manchas vermelhas encharcadas nas bandagens não tinham
aumentado.
Tenar levantou-se e ficou imóvel.
— Therru — disse ela.
Ged olhou em volta, mas a criança não estava lá. Tenar saiu
apressadamente da sala.
O quarto das crianças, o quarto da criança, estava perfeitamente escuro e
silencioso. Ela tateou até a cama e colocou a mão na curva quente do
cobertor sobre o ombro de Therru.
— Therru?
A respiração da criança estava tranquila. Não havia acordado. Tenar
sentia o calor do corpo da criança, como uma radiância no quarto frio.
Ao sair, Tenar passou a mão pela cômoda e tocou o metal frio: o atiçador
que largara quando fechou as venezianas. Ela o levou de volta à cozinha,
passou por cima do corpo do homem e pendurou a ferramenta no gancho da
chaminé. Ficou mirando o fogo.
— Não pude fazer nada — Tenar disse. — O que eu deveria ter feito?
Sair correndo, depressa, gritar, correr até Arroio Claro e Panaché. Eles não
teriam tido tempo de machucar Therru.
— Eles teriam ficado dentro da casa com ela, e você fora dela, com o
velho e a mulher. Ou poderiam tê-la apanhado e ido embora com ela. Você
fez o que podia. O que você fez foi certo. Na hora certa. A luz da casa, e
você saindo com a faca, e eu ali: eles puderam ver o forcado… e ele caído.
Então correram.
— Aqueles que puderam — concluiu Tenar. Ela se virou e mexeu um
pouco a perna do homem com a ponta do sapato, como se ele fosse algo
pelo qual ela tivesse um pouco de curiosidade, um pouco de repulsa, como
uma víbora morta. — Você fez a coisa certa — ela disse.
— Acho que ele nem viu. Correu direto para o forcado… Foi como… —
Ele não disse como. Falou: — Beba seu chá. — Serviu-se de mais líquido do
bule, mantido aquecido sobre os tijolos da lareira. — É bom. Sente-se —
pediu ele, e ela o fez. Contou depois de algum tempo: — Quando eu era
menino, os kargineses invadiram minha aldeia. Eles tinham lanças. Longas,
com penas amarradas na haste…
Ela assentiu.
— Guerreiros dos Irmãos-Deuses — disse ela.
— Eu fiz um… um feitiço de neblina. Para confundi-los. Mas eles
vieram, alguns deles. Vi um deles correr direto para um forcado, tal como
este aí. Só que o atravessou direto. Abaixo da cintura.
— Você atingiu uma costela — observou Tenar. Ele assentiu. — Foi o
único erro que você cometeu — continuou ela. Seus dentes batiam agora.
Ela bebeu o chá. — Ged, e se eles voltarem?
— Não vão voltar.
— Eles poderiam colocar fogo na casa.
— Nesta casa? — Ele olhou para as paredes de pedra.
— No celeiro de feno…
— Eles não vão voltar — teimou Ged.
— Não.
Ambos seguravam as xícaras com cuidado, aquecendo as mãos.
— Ela ficou dormindo durante isso tudo.
— Ainda bem.
— Mas ela vai vê-lo… aqui… de manhã…
Eles se encararam.
— Se eu o tivesse matado… se ele morresse! — disse Ged com raiva. —
Eu poderia arrastá-lo para fora e enterrá-lo…
— Faça isso. — Ele apenas balançou a cabeça com raiva, negando. Tenar
questionou: — O que é que isso importa? Por que, por que não podemos
fazer isso?
— Não sei.
— Assim que amanhecer…
— Vou tirá-lo de casa. No carrinho de mão. O velho pode me ajudar.
— Ele não consegue mais levantar nada. Eu ajudo.
— Seja como for, vou levá-lo para a aldeia. Há algum tipo de curandeiro
lá?
— Uma bruxa, Hera.
De repente, Tenar se sentiu profundamente cansada. Mal conseguia
segurar a xícara na mão.
— Tem mais chá — ofereceu ela, enrolando a língua.
Ged se serviu de outra xícara.
O fogo dançou em seus olhos. As chamas nadaram, incendiaram-se,
desapareceram, brilharam outra vez contra a pedra fuliginosa, contra o céu
escuro, contra o céu pálido, os abismos da noite, as profundezas do ar e da
luz além do mundo. Chamas amarelas, laranja, laranja-avermelhadas,
labaredas vermelhas, línguas de fogo, as palavras que ela não conseguia
pronunciar. Tenar.
— Chamamos a estrela de Tehanu — observou ela.
— Tenar, querida. Vamos. Venha comigo.
Não estavam junto ao fogo. Estavam no escuro, no corredor escuro. A
passagem escura. Já estiveram lá antes, conduzindo um ao outro, seguindo
um ao outro, na escuridão sob a terra.
— O caminho é este — guiou ela.
capítulo 12

inverno

E la estava acordando, sem querer acordar. Um cinza fraco brilhava na


janela em fendas finas através das venezianas. Por que a janela estava
fechada? Ela se levantou depressa e atravessou o corredor até a cozinha.
Ninguém estava sentado perto do fogo, ninguém estava deitado no chão.
Não havia sinal de ninguém, nada. Exceto o bule e as três xícaras no balcão.
Therru acordou ao nascer do sol, e tomaram o desjejum como de
costume; enquanto tiravam a mesa, a garota perguntou:
— O que aconteceu? — Ela ergueu uma ponta de lençol molhado da
tina na despensa. A água da tina estava com veios e turva de um vermelho-
acastanhado.
— Ah, a minha menstruação chegou cedo — disse Tenar, assustada com
a mentira à medida que a contava.
Therru ficou estática por um momento, as narinas dilatadas e a cabeça
imóvel, como um animal farejando. Então jogou o lençol de volta na água e
saiu para alimentar as galinhas.
Tenar sentia-se mal; seus ossos doíam. Ainda fazia frio e ela ficou em
casa o máximo que pôde. Tentou manter Therru dentro de casa, porém,
quando o sol apareceu com um vento agradável e iluminado, Therru quis
sair.
— Fique com Panaché no pomar — pediu Tenar.
Therru não se pronunciou conforme saía.
O lado queimado e mutilado de seu rosto tornou-se rígido pela
destruição dos músculos e pela espessura da superfície de cicatrizes, mas à
medida que as marcas envelheciam e Tenar aprendia, com uma prática
prolongada, a não desviar o olhar, ela a via não como uma deformidade, e
sim como uma face que tinha expressões próprias. Quando Therru se
assustava, o lado queimado e escurecido “fechava-se”, pensava Tenar,
contraindo-se, endurecendo. Quando ela estava animada ou atenta, até a
órbita cega parecia olhar, e as cicatrizes ficavam vermelhas e quentes ao
toque. Agora, ao sair, ela tinha uma expressão estranha, como se seu rosto
não fosse humano, um animal, alguma estranha criatura selvagem, de pele
áspera e um olho brilhante, silenciosa, em fuga.
E Tenar soube que, assim como tinha lhe mentido pela primeira vez,
Therru iria desobedecê-la pela primeira vez. A primeira, e não a última vez.
Ela se sentou ao lado da lareira com um suspiro cansado e não fez nada
por um tempo.
Houve uma batida à porta: eram Arroio Claro e Ged… Não, Falcão, era
como devia chamá-lo… Falcão… Parados na soleira da porta. O velho
Arroio Claro cheio de conversa e importância, e Ged, austero, calado e
corpulento com seu casaco sujo de pele de carneiro.
— Entrem — falou ela. — Tomem um chá. Quais as novidades?
— Tentaram fugir, até Valmouth, mas os homens de Kahedanan, os
oficiais de justiça, desceram e os encontraram no banheiro externo de
Amarena — relatou Arroio Claro, agitando o punho.
— Ele escapou? — O horror tomou conta dela.
— Os outros dois — disse Ged. — Ele, não.
— Encontraram o corpo nas velhas ruínas da Colina Redonda, todo
esmurrado, lá nas velhas ruínas, perto de Kahedanan, então dez, doze deles
se autodenominaram oficiais de justiça e foram atrás dos homens. E houve
uma busca por todas as aldeias ontem à noite, e hoje de manhã, antes de
amanhecer, encontraram-nos escondidos no banheiro externo de Amarena.
Estavam meio congelados.
— Ele está morto, então? — perguntou ela, confusa.
Ged tinha tirado o casaco pesado e estava agora sentado na cadeira de
vime, junto à porta, para tirar as polainas de couro.
— Ele está vivo — disse em sua voz calma. — Hera está com ele. Eu o
levei esta manhã no carrinho de entulho. Havia pessoas na estrada antes do
amanhecer, caçando os três. Eles mataram uma mulher nas colinas.
— Que mulher? — Tenar murmurou.
Os olhos de Tenar estavam fixos nos de Ged. Ele assentiu levemente.
Arroio Claro queria que a história fosse dele e a contou em voz alta:
— Veja, conversei com alguns deles lá e me disseram que os quatro
estavam perambulando, acampando e vagando perto de Kahedanan, e a
mulher entrava na aldeia para pedir esmolas, toda machucada, com
queimaduras e hematomas por toda parte. Eles a mandavam ir, os homens,
veja, para pedir e então ela voltava para eles, e ela dizia às pessoas que, se
voltasse sem nada, iam bater nela ainda mais; então as pessoas diziam: por
que voltar? Mas, se ela não voltasse, eles viriam atrás dela, ela disse, veja, e
ela sempre voltava para eles. Até que eles finalmente foram longe demais e a
espancaram até a morte, deixaram o cadáver no velho matagal, onde ainda
resta um pouco do fedor, sabe, talvez pensando que isso ia esconder o que
fizeram. E depois vieram para cá, ontem à noite. Por que você não gritou e
chamou ontem à noite, Goha? Falcão diz que eles estavam bem aqui,
espreitando a casa, quando ele os encontrou. Eu certamente teria ouvido, ou
Panaché teria ouvido, os ouvidos dela podem ser mais aguçados que os
meus. Já contou a ela? — Tenar sacudiu a cabeça. — Vou contar a ela —
declarou o velho, maravilhado por ser o primeiro a dar a notícia, e atravessou
o pátio. Ele se virou no meio do caminho. — Nunca imaginei que você fosse
tão útil com um forcado! — gritou para Ged, deu uma palmada na coxa
dele, rindo, e prosseguiu.
Ged retirou as polainas pesadas e os sapatos enlameados, colocou estes
na soleira da porta e aproximou-se do fogo só de meias. Calças, gibão e
camisa de lã caseira: um pastor de cabras gontês de rosto astuto, nariz de
falcão e olhos límpidos, escuros.
— Terá gente lá fora em breve — pontuou Ged. — Para contar tudo a
você e ouvir novamente o que aconteceu aqui. Trancaram os dois que
fugiram em uma adega sem vinho, e há quinze ou vinte homens os vigiando,
e vinte ou trinta garotos tentando dar uma espiada… — Ele bocejou,
sacudiu os ombros e os braços à procura de relaxar e, com uma olhadela em
Tenar, pediu autorização para se sentar junto ao fogo.
A mulher apontou para o assento da lareira.
— Você deve estar exausto — sussurrou ela.
— Dormi um pouco, aqui, ontem à noite. Não consegui ficar acordado.
— Bocejou de novo. Fitou-a, observando, analisando como ela estava.
— Era a mãe de Therru — disse ela. Sua voz não passava de um sussurro.
Ged assentiu. Sentou-se um pouco inclinado para a frente, com os braços
sobre os joelhos, como Pederneira costumava fazer, olhando para o fogo.
Eram muito parecidos e totalmente diferentes, tão diferentes quanto uma
pedra enterrada e um pássaro voando alto. O coração dela doía e os ossos
dela doíam, e sua mente estava confusa entre presságios, aflições, recordações
de medo e uma leveza preocupada.
— A bruxa está com nosso homem — retomou ele. — Amarrado, para o
caso de se sentir animado. Com os furos nele cheios de teias de aranha e
feitiços para estancar o sangue. Ela diz que ele viverá para ser enforcado.
— Enforcado.
— Cabe aos Tribunais do Rei, agora que estão se reunindo outra vez.
Enforcado ou submetido ao trabalho escravo. — Ela sacudiu a cabeça,
franzindo a testa. — Você não o deixaria ir, Tenar — continuou ele, com
brandura, observando-a.
— Não.
— Eles devem ser punidos — afirmou ele, ainda a encará-la.
— “Punidos”. Foi o que ele disse. Punir a criança. Ela é má. Deve ser
punida. E eu, punida por levá-la. Por ser… — Ela se esforçou para falar. —
Eu não quero punição! Isso não devia ter acontecido… Eu gostaria que você
o tivesse matado!
— Fiz o meu melhor — respondeu Ged.
Depois de um bom tempo, ela riu, um tanto trêmula.
— Você fez, com certeza.
— Pense em como teria sido fácil — continuou ele, olhando novamente
para o carvão — quando eu era um feiticeiro. Eu poderia ter lançado um
feitiço de amarração sobre eles, lá em cima na estrada, antes que
percebessem. Poderia tê-los levado até Valmouth como um rebanho de
ovelhas. Ou, ontem à noite, aqui, pense nos fogos de artifício que eu poderia
ter disparado! Eles nunca saberiam o que os atingiu.
— Eles ainda não sabem — observou Tenar.
Ged lhe lançou um olhar. Havia nele um leve e irreprimível brilho de
triunfo.
— Não — concordou. — Não sabem.
— Útil com um forcado — murmurou ela.
Ged deu um bocejo enorme.
— Por que não entra e dorme um pouco? Vá ao segundo quarto no fim
do corredor. A menos que queira entreter as visitas. Estou vendo Cotovia e
Margarida chegando, e algumas das crianças. — Tenar tinha se levantado, ao
ouvir as vozes, a fim de espiar pela janela.
— Vou fazer isso — concordou Ged, e saiu.
***

Cotovia, o marido e Margarida, a mulher do ferreiro, além de outros amigos


da aldeia, vieram durante todo o dia para contar e saber de tudo, tal como
Ged previra. Tenar descobriu que a companhia deles a reanimou, afastou
pouco a pouco da presença constante do terror da noite anterior, até que ela
pôde começar a olhar para trás e vê-la como algo que havia acontecido, não
algo que estava acontecendo, que deveria estar sempre acontecendo com ela.
Era isso que Therru também tinha de aprender a fazer, refletiu ela, mas
não com uma noite: com a vida.
Confidenciou a Cotovia quando os outros foram embora:
— O que me deixa com raiva de mim mesma é como fui estúpida.
— Eu disse que você deveria manter a casa trancada.
— Não… Talvez… É isso mesmo.
— Eu sei — concordou Cotovia.
— Mas eu quis dizer que, quando eles estavam aqui… eu poderia ter
saído correndo e ter chamado Panaché e Arroio Claro, talvez eu pudesse ter
levado Therru. Ou eu mesma poderia ter ido até o abrigo e pegado o
forcado. Ou a podadeira de macieiras. Tem dois metros de comprimento e
uma lâmina que parece uma navalha: eu a mantenho do mesmo jeito que
Pederneira a mantinha. Por que não fiz isso? Por que não fiz alguma coisa?
Por que simplesmente me tranquei quando não adiantava nada tentar? Se
ele… Se Falcão não estivesse aqui… Tudo o que fiz foi aprisionar a mim
mesma e a Therru. Até que, finalmente, fui até a porta com a faca de
açougueiro e gritei com eles. Eu estava meio louca. Mas isso não os teria
assustado.
— Não sei — ponderou Cotovia. — Foi uma loucura, mas talvez… Não
sei. O que você poderia fazer senão trancar as portas? Mas é como se
passássemos a vida inteira trancando portas. É a casa em que moramos.
Elas olharam para as paredes de pedra, o piso de pedra, a chaminé de
pedra, a janela ensolarada da cozinha da Fazenda do Carvalho, a casa do
fazendeiro Pederneira.
— Aquela garota, aquela mulher que eles assassinaram — falou Cotovia,
encarando Tenar com sagacidade. — Era a mesma.
Tenar assentiu.
— Um deles me disse que estava grávida. Quatro, cinco meses.
Ambas ficaram em silêncio.
— Aprisionada — declarou Tenar.
Cotovia recostou-se, as mãos na saia, nas coxas pesadas, as costas retas, o
rosto bonito e sério.
— Medo — ela disse. — Do que temos tanto medo? Por que deixamos
que nos digam que estamos com medo? Do que eles têm medo? — Cotovia
pegou a meia que estava cerzindo, girou-a nas mãos e ficou em silêncio por
um momento; e finalmente disse: — Por que eles têm medo de nós?
Tenar virou-se e não respondeu.
Therru entrou correndo e Cotovia a cumprimentou:
— Aí está o meu docinho! Venha me dar um abraço, querida!
Therru a abraçou com pressa.
— Quem são os homens que eles capturaram? — perguntou ela em sua
voz rouca, inexpressiva, olhando de Cotovia para Tenar.
Tenar parou a menina e falou devagar:
— Um deles era Habilidoso. Outro deles era um homem chamado
Cormorão. O que foi ferido se chama Merluza. — Ela manteve os olhos
fixos no rosto de Therru; viu o fogo, a cicatriz ficando vermelha. — A
mulher que eles mataram se chamava Senny, eu acho.
— Senini — sussurrou a criança. Tenar assentiu. — Eles a mataram? —
Tenar assentiu de novo. — Girino disse que eles estiveram aqui. — Ela
assentiu outra vez. A criança olhou ao redor da sala, assim como as mulheres
haviam feito; mas seu olhar era de total negação, não enxergava as paredes.
— Vocês vão matá-los?
— Pode ser que sejam enforcados.
— Mortos?
— Sim.
Therru assentiu, um tanto indiferente. Saiu de novo, reunindo-se com os
filhos de Cotovia junto à casa do poço.
As duas mulheres não disseram nada. Giraram e se recompuseram, em
silêncio, perto do fogo, na casa de Pederneira.
Depois de muito tempo Cotovia disse:
— O que foi feito daquele sujeito, o pastor, que os seguiu até aqui?
Falcão, você disse que é o nome dele?
— Ele está lá dentro dormindo — explicou Tenar, apontando para a
parte de trás da casa.
— Ah — exclamou Cotovia.
A roda soou.
— Eu o conhecia antes de ontem à noite.
— Ah. Em Re Albi, não foi?
Tenar assentiu. A roda soou.
— Para seguir aqueles três e enfrentá-los no escuro com um forcado, foi
preciso um pouco de coragem. Não é um jovem, não é?
— Não. — Depois de um tempo, ela continuou: — Ele estava doente e
precisava de trabalho. Então o mandei até a montanha para dizer a Arroio
Claro que o trouxesse aqui. Mas Arroio Claro acha que ainda pode fazer
tudo sozinho, então o mandou para as Fontes Termais a fim de pastorear no
verão. Ele estava voltando de lá.
— Acho que você vai mantê-lo aqui, então?
— Se ele quiser — disse Tenar.

***

Outro grupo foi da aldeia à Fazenda do Carvalho querendo ouvir a história


de Goha, contar-lhe sobre sua participação na grande captura dos
assassinos, olhar para o forcado, comparar seus quatro longos dentes com as
três manchas de sangue nas bandagens do homem chamado Merluza e falar
tudo de novo. Tenar ficou contente por ver a noite chegar, chamar Therru e
fechar a porta.
Ela levantou a mão para trancá-la. Abaixou a mão e se obrigou a se
afastar, deixando-a destrancada.
— Gavião está no seu quarto — informou-lhe Therru, voltando à
cozinha com os ovos da câmara fria.
— Eu queria lhe dizer que ele estava aqui… Desculpe.
— Sei quem ele é — disse Therru, lavando o rosto e as mãos na
despensa. Quando Ged entrou, com os olhos pesados e despenteado, ela foi
direto até ele e levantou os braços.
— Therru — disse Ged, pegando-a e abraçando-a. A criança se agarrou a
ele por um breve instante e depois se soltou.
— Conheço o começo da Criação — ela contou.
— Você vai cantar para mim? — Olhando novamente para Tenar em
busca de permissão, ele se sentou no seu lugar junto à lareira.
— Eu só consigo recitar.
Ele assentiu e esperou, a expressão do rosto bastante séria. A criança
disse:

A criação vem da destruição,


O fim vem do princípio,
Quem saberá com certeza?
O que conhecemos é o portal entre eles
pela qual entramos partindo.
Entre todos os seres que sempre retornam,
o ancião, o Sentinela, Segoy…

A voz da criança era como uma escova de metal arranhando o metal,


como folhas secas, como o silvo do fogo a queimar. Ela recitou até o final da
primeira estrofe:

Então, vinda da espuma, a brilhante Éa irrompeu.

Ged assentiu com aprovação breve e firme.


— Ótimo — elogiou ele.
— Foi ontem à noite — explicou Tenar. — Foi ontem à noite que ela
aprendeu. Parece que foi há um ano.
— Posso aprender mais — disse Therru.
— E vai — garantiu-lhe Ged.
— Agora termine de limpar a abóbora, por favor — pediu Tenar, e a
criança obedeceu.
— O que devo fazer? — perguntou Ged. Tenar fez uma pausa, fitando-o.
— Preciso daquela chaleira cheia e aquecida.
O homem assentiu e levou a chaleira até a bomba d’água.
Eles prepararam e comeram o jantar, e o retiraram.
— Repita a Criação, tudo o que você sabe — pediu Ged a Therru, junto à
lareira —, e prosseguiremos a partir daí.
Ela proferiu a segunda estrofe uma vez com ele, uma vez com Tenar, uma
vez sozinha.
— Cama — disse Tenar.
— Você não contou a Gavião sobre o rei.
— Conte você — sugeriu Tenar, divertindo-se com esse pretexto para a
postergação.
Therru virou-se para Ged. Seu rosto, cheio de cicatrizes e intacto, vidente
e cego, atento e ardente.
— O rei veio em um navio. Ele tinha uma espada. Ele me deu o golfinho
de osso. O navio dele estava voando, mas eu estava doente porque
Habilidoso encostou em mim. Mas o rei encostou em mim aqui e a marca
desapareceu. — A criança mostrou o braço redondo e fino. Tenar olhou
fixamente. Havia se esquecido da marca. — Algum dia quero voar para onde
ele mora — disse Therru a Ged, que assentiu. — Vou fazer isso — asseverou
ela. — Você conhece o rei?
— Conheço, sim. Fiz uma longa viagem com ele.
— Para onde?
— Para onde o sol não nasce e as estrelas não se põem. E depois de volta
desse mesmo lugar.
— Você voou?
Ged balançou a cabeça, negando.
— Apenas consigo andar — explicou ele.
A criança ponderou e então, como se estivesse satisfeita, disse:
— Boa noite. — E foi para seu quarto. Tenar a seguiu; mas Therru não
queria que ela a ninasse até dormir. — Posso dizer a Criação no escuro —
justificou ela. — As duas estrofes.
Tenar regressou à cozinha e sentou-se outra vez diante de Ged, junto à
lareira.
— Como ela está mudando! — exclamou. — Não consigo acompanhar.
Estou velha para criar uma criança. E ela… Ela me obedece, mas só porque
quer.
— É a única justificativa para a obediência — observou Ged.
— Mas quando ela decidir me desobedecer, o que posso fazer? Há uma
selvageria nela. Às vezes ela é minha Therru, às vezes ela é outra coisa, fora
de alcance. Perguntei a Hera se ela consideraria ensiná-la. Faia sugeriu isso.
Hera recusou. “Por que não?”, questionei. “Tenho medo dela!”, foi o que
respondeu… Mas você não tem medo dela. Nem ela de você. Você e
Lebannen são os únicos homens por quem Therru deixou ser encostada. Eu
deixei… aquele Habilidoso… Não consigo falar sobre isso. Ah, estou
cansada! Não entendo nada…
Ged colocou um nó de madeira no fogo para que queimasse baixo,
devagar, e ambos observaram o sobressalto e a agitação das chamas.
— Eu gostaria que você permanecesse aqui, Ged — falou. — Se você
quiser. — O homem não respondeu de imediato. Tenar disse: — Talvez você
esteja indo para Havnor…
— Não, não. Não tenho para onde ir. Eu estava procurando trabalho.
— Bem, há muito o que fazer aqui. Arroio Claro não admite, mas a
artrite praticamente acabou com ele para qualquer coisa, menos para a
jardinagem. Estou querendo ajuda desde que voltei. Eu poderia ter dito ao
velho idiota o que penso dele por ter mandado você montanha acima
daquela maneira, mas não adianta. Ele não ouviria.
— Foi bom para mim — reconheceu Ged. — O tempo de que eu
precisava.
— Você estava pastoreando ovelhas?
— Cabras. Bem no topo das pastagens. Um garoto que eles tinham
adoeceu e Serry me aceitou, me mandou para lá no primeiro dia. Mantêm-
nas lá em cima até tarde, assim a lã fica mais espessa. No último mês tive a
montanha praticamente só para mim. Serry me enviou aquele casaco e
alguns suprimentos e mandou manter o rebanho no local mais alto que
pudesse, enquanto pudesse. Então, foi o que fiz. Estava tudo bem lá em
cima.
— Solitário — observou Tenar. Ele assentiu, com um sorriso parcial. —
Você sempre esteve sozinho.
— Estive. — Ela não falou nada. Ged a fitou. — Eu gostaria de trabalhar
aqui — afirmou ele.
— Está resolvido, então. — Depois de um tempo, ela acrescentou: —
Pelo menos, para o inverno.
A geada estava mais forte naquela noite. O mundo deles estava
perfeitamente silencioso, exceto pelo sussurro do fogo. O silêncio era como
uma presença entre eles. Tenar levantou a cabeça e o observou.
— Bem — disse ela —, em que cama devo dormir, Ged? A da criança ou
a sua?
Ele respirou fundo. Falou baixo:
— Na minha, se você quiser.
— Quero.
O silêncio o deteve. Ela conseguia perceber o esforço que ele fazia para
rompê-lo.
— Se você for paciente comigo — acrescentou ele.
— Tenho sido paciente com você há 25 anos — respondeu ela. Olhou
para ele e caiu na risada. — Vamos, vamos, querido, antes tarde do que
nunca! Sou apenas uma velha… Nada é desperdiçado, nada jamais é
desperdiçado. Você me ensinou isso.
Ela se levantou e ele se levantou; ela estendeu as mãos e ele as segurou.
Abraçaram-se, e o abraço os aproximou. Eles se abraçaram com tanta força,
com tanto carinho, que deixaram de se conhecer. Não importava em que
cama pretendiam dormir. Naquela noite, deitaram-se nas pedras da lareira, e
ali Tenar ensinou a Ged o mistério que o homem mais sábio não poderia
ensinar a ele.
Ele acendeu o fogo uma vez e pegou a boa peça de tecelagem do banco.
Desta vez, Tenar não fez qualquer objeção. A capa dela e o casaco de pele de
carneiro dele eram os cobertores.
Acordaram ao amanhecer. Uma leve luz prateada brilhava nos galhos
escuros e sem metade das folhas dos carvalhos do lado externo da janela.
Tenar alongou-se ao máximo para sentir o calor dele contra ela. Depois de
um tempo, murmurou:
— Ele estava deitado aqui. Merluza. Bem embaixo de nós. — Ged fez
um pequeno ruído de protesto. — Agora você é realmente um homem —
declarou ela. — Primeiro, cravou um monte de buracos em outro homem,
depois se deitou com uma mulher. Essa é a ordem correta, imagino.
— Shhh — murmurou, virando-se para ela e deitando a cabeça em seu
ombro. — Não.
— Eu quero, Ged. Pobre homem! Não há misericórdia em mim, apenas
justiça. Não fui treinada para a misericórdia. O amor é a única habilidade
que tenho. Ah, Ged, não tenha medo de mim! Você era um homem quando
o vi pela primeira vez! Não é uma arma ou uma mulher que pode fazer um
homem, nem magia, nem qualquer poder, qualquer coisa além de si mesmo.
Eles ficaram deitados no calor e em um doce silêncio.
— Conte-me uma coisa. — Ged murmurou uma anuência sonolenta. —
Como você ouviu o que eles estavam dizendo? Merluza, Habilidoso e o
outro. Como é que você estava lá naquele momento?
Ele se apoiou em um cotovelo a fim de poder olhar para o rosto dela. O
próprio rosto dele estava tão aberto e vulnerável em sua tranquilidade,
satisfação e ternura que Tenar precisou estender a mão e tocar sua boca,
onde ela o beijara pela primeira vez, meses antes, o que o levou a tomá-la
nos braços de novo, e a conversa não continuou com palavras.

***

Havia formalidades a serem cumpridas. A principal delas era comunicar a


Arroio Claro e aos outros arrendatários da Fazenda do Carvalho que ela
havia substituído “o velho mestre” por um trabalhador contratado. Tenar o
fez prontamente e sem rodeios. Eles não podiam fazer nada a respeito, nem
isso lhes representava qualquer ameaça. A posse da propriedade de seu
marido por uma viúva dependia de não haver herdeiro ou requerente do
sexo masculino. O filho de Pederneira, o marinheiro, era o herdeiro, e a viúva
de Pederneira apenas administrava a fazenda para ele. Se ela morresse,
caberia a Arroio Claro conservá-la para o herdeiro; se Faísca nunca a
reivindicasse, iria para um primo distante de Pederneira em Kahedanan. Os
dois casais que não eram proprietários da terra, mas tinham interesse
vitalício no trabalho e no lucro da agricultura, como era comum em Gont,
não podiam ser desalojados por qualquer homem com quem a viúva se
relacionasse, mesmo que ela se casasse com ele; mas Tenar temia que eles se
ressentissem de sua falta de fidelidade a Pederneira, que afinal conheciam há
mais tempo que ela. Para seu alívio, não fizeram qualquer objeção. “Falcão”
conquistou a aprovação deles com um golpe de forcado. Além disso, era de
bom senso que uma mulher quisesse um homem em casa para protegê-la. Se
o levasse para a cama, bem, os apetites das viúvas eram lendários. E, afinal
de contas, ela era estrangeira.
A atitude dos aldeões era praticamente a mesma. Um pouco de sussurros
e risadinhas, não muito mais que isso. Parecia que ser respeitável era mais
fácil do que Musgo pensava; ou talvez fosse porque os bens usados tinham
pouco valor.
Tenar se sentiu tão sórdida e diminuída com a aceitação deles quanto se
sentiria com a desaprovação deles. Só Cotovia a libertou da vergonha, ao
não fazer julgamento algum e ao não utilizar palavras (homem, mulher,
viúva, estrangeira) no lugar do que via, mas simplesmente olhando,
observando Goha e Falcão com interesse, curiosidade, inveja e generosidade.
Como Cotovia não via Falcão pelas palavras pastor, empregado, amante
da viúva, e sim olhava para ele mesmo, notou muita coisa que a confundiu.
A dignidade e a simplicidade dele não eram maiores que as de outros
homens que ela conhecera, mas eram um pouco diferentes em qualidade;
havia uma grandiosidade nele, pensava ela, não altura ou circunferência,
certamente, mas alma e mente. Ela disse a Hera:
— Aquele homem não viveu entre cabras a vida toda. Ele sabe mais
sobre o mundo do que sobre uma fazenda.
— Eu diria que ele é um ocultista que foi amaldiçoado ou que perdeu o
poder de alguma forma — aventou a bruxa. — Acontece.
— Ah — murmurou Cotovia.
Mas a palavra “arquimago” era uma palavra muito longa e grandiosa para
ser trazida das pompas e dos palácios distantes e se adequar ao homem de
olhos escuros e cabelos grisalhos da Fazenda do Carvalho, e ela nunca fez
isso. Se o tivesse feito, ela não estaria tão confortável com ele como estava.
Mesmo a ideia de que ele teria sido um ocultista a deixava um pouco
inquieta, a palavra obstruía o caminho do homem, até que ela de fato o viu
outra vez. Falcão estava em uma das velhas macieiras do pomar, podando a
madeira morta, e cumprimentou-a quando ela chegou à fazenda. O nome
do homem combinava bem com ele, refletiu ela, empoleirado ali, e acenou
para ele e sorriu enquanto prosseguia.
Tenar não havia se esquecido da pergunta que fizera a Ged nas pedras da
lareira, sob o casaco de pele de carneiro. Ela perguntou de novo, alguns dias
ou meses depois — o tempo passou muito doce e fácil para ambos na casa
de pedra, na fazenda durante o inverno.
— Você nunca me contou — disse ela — como os ouviu conversando na
estrada.
— Eu contei, acho. Eu tinha me afastado, me escondido, quando ouvi
homens vindo atrás de mim.
— Por quê?
— Eu estava sozinho e sabia que havia gangues por perto.
— Sim, claro… Mas quando eles passaram, Merluza estava falando de
Therru?
— Ele disse “Fazenda do Carvalho”, eu acho.
— Tudo é perfeitamente possível. Parece tão conveniente. — Ciente de
que ela não duvidava dele, Ged recostou-se e esperou. — É o tipo de coisa
que acontece com um feiticeiro — disse Tenar.
— E com outras pessoas.
— Talvez.
— Querida, você não está… tentando me reconduzir ao cargo?
— Não. Não, de jeito nenhum. Isso seria algo sensato a se fazer? Se você
fosse um feiticeiro, estaria aqui? — Estavam na grande cama de carvalho,
bem cobertos com peles de carneiro e colchas de penas, pois o quarto não
tinha lareira e a noite era de geada forte sobre a neve caída. — Mas o que eu
quero saber é isso. Existe algo além do que você chama de poder… que
venha antes dele, talvez? Ou algo que seja utilizado por meio do poder? Por
exemplo: Ogion disse certa vez que, antes de ter qualquer aprendizado ou
treinamento como feiticeiro, você era um mago. Um mago nato, ele disse.
Então imaginei que, para ter poder, é preciso primeiro ter espaço para o
poder. Um vazio para preencher. E quanto maior o vazio, mais poder poderá
preenchê-lo. Mas se o poder nunca fosse obtido, ou fosse tirado, ou fosse
doado… ainda assim ele existiria.
— Esse vazio — completou ele.
— Vazio é uma palavra para isso. Talvez não seja a palavra certa.
— Potencial? — sugeriu ele, e balançou a cabeça. — O que é capaz de
ser… De se tornar.
— Acho que você estava naquela estrada, naquele momento, por causa
disso… Porque é isso que acontece com você. Você não fez isso acontecer.
Você não causou isso. Não foi por causa do seu “poder”. Aconteceu com
você. Por causa do seu… vazio.
Depois de um tempo, Ged disse:
— Isso não é muito diferente do que me ensinaram quando garoto em
Roke: que a verdadeira magia reside em fazer apenas o que você deve fazer.
Mas iria mais longe. Não em fazer, mas em ser feito…
— Não acho que seja bem isso. É mais parecido com o que surge do
verdadeiro fazer. Você não veio e salvou minha vida… não enfiou um
forcado em Merluza? Isso era “fazer”, tudo bem, fazer o que você deve
fazer…
Ele ponderou novamente e, por fim, perguntou-lhe:
— Essa é uma sabedoria que lhe foi ensinada quando você era
Sacerdotisa das Tumbas?
— Não. — Tenar se espreguiçou um pouco, mirando a escuridão. —
Arha aprendeu que, para ser poderosa, ela deve se sacrificar. Sacrificar a si e
aos outros. É uma barganha: dê e receba. E não posso afirmar que isso não
seja mentira. Mas minha alma não pode viver nesse lugar estreito: isto por
aquilo, dente por dente, morte por vida… Existe uma liberdade além disso.
Além do pagamento, da retribuição, da redenção… Além de todas as
barganhas e saldos, há liberdade.
— O portal entre eles — recitou baixinho.
Naquela noite, Tenar sonhou. Ela sonhou que via o portal d’A criação de
Éa. Era uma janelinha de vidro grosso, retorcido e embaçado, instalada na
parede oeste de uma velha casa acima do mar. A janela estava trancada.
Havia sido bloqueada. Ela queria abri-la, mas havia uma palavra ou uma
chave, algo que esquecera, uma palavra, uma chave, um nome, sem o qual
não conseguiria abri-la. Procurou-a em salas de pedra que ficavam cada vez
menores e mais escuras, até perceber que Ged a segurava, tentando acordá-la
e reconfortá-la, dizendo:
— Está tudo bem, meu amor, vai ficar tudo bem!
— Não consigo me libertar! — gritou ela, agarrando-se a Ged.
Ele a acalmou, acariciando-lhe o cabelo; deitaram-se juntos e ele
sussurrou:
— Olhe.
A velha lua havia surgido. Seu brilho branco na neve precipitada refletia-
se na sala, pois, por mais frio que estivesse, Tenar não queria fechar as
venezianas. Todo o espaço acima deles estava luminoso. Estavam deitados na
sombra, mas o teto parecia um simples véu entre eles e profundezas
infinitas, prateadas e tranquilas de luz.

***
Foi um inverno de fortes nevascas em Gont, e um inverno longo. A colheita
foi boa. Havia comida para os animais e para as pessoas, e não havia muito o
que fazer além de comê-la e manter-se aquecido.
Therru aprendeu A criação de Éa toda. Ela recitou o Conto de inverno e a
Saga do Jovem Rei no dia do Regresso do Sol. Ela sabia manusear uma massa
de torta, girar a roda de fiar e fazer sabão. Ela conhecia o nome e o uso de
todas as plantas que emergiam da neve e uma vasta quantidade de outros
conhecimentos, herbais e verbais, que Ged guardara na cabeça desde sua
curta aprendizagem com Ogion e de seus longos anos na Escola de Roke.
Mas ele não havia retirado o Livro das Runas ou os Livros de Ensinamentos
da cornija da lareira nem ensinado à criança qualquer palavra da Língua da
Criação.
Ele e Tenar falaram sobre isso. Ela lhe contou como ensinara a Therru
uma única palavra, tolk, e depois parou, pois não lhe parecera correto,
embora não soubesse o porquê.
— Pensei que talvez fosse porque nunca tinha falado verdadeiramente
essa língua, nunca a usei em magia. Achei que talvez ela devesse aprender
com um verdadeiro falante.
— Nenhum homem é isso.
— Nenhuma mulher é metade disso.
— Quis dizer que apenas os dragões a falam como língua nativa.
— Eles a aprendem?
Impressionado com a pergunta, Ged demorou a responder, obviamente
recordando tudo o que se dizia e sabia sobre os dragões.
— Não sei — respondeu, enfim. — O que sabemos sobre eles? Será que
ensinariam como nós, de mãe para filho, do mais velho para o mais novo?
Ou são como os animais, ensinando algumas coisas, mas sabendo a maior
parte já ao nascer? Mesmo isso não sabemos. Meu palpite é que o dragão e a
fala do dragão são um só. Um ser.
— E eles não falam outra língua.
Ged assentiu.
— Eles não aprendem — disse. — Eles são.
Therru passou pela cozinha. Uma de suas tarefas era manter cheia a caixa
de gravetos, e ela estava ocupada com isso, embrulhada em uma jaqueta e
um capuz de pele de cordeiro, trotando de um lado para o outro do depósito
de madeira até a cozinha. Ela largou a carga na caixa perto do canto da
chaminé e partiu novamente.
— O que é que ela canta? — Ged perguntou.
— Therru?
— Quando está sozinha.
— Mas ela nunca canta. Ela não consegue.
— Do jeito dela de cantar. “Mais a oeste do que o oeste”…
— Ah! — compreendeu Tenar. — Essa história! Ogion nunca lhe contou
sobre a Mulher de Kemay?
— Não — disse ele —, me conte.
Tenar contou-lhe a história enquanto fiava, e o ruído e o silêncio da roda
acompanhavam as palavras da história. No final, disse:
— Quando o Mestre Cifra dos Ventos me contou como veio procurar
por “uma mulher em Gont”, pensei nela. Mas ela já estaria morta, sem
dúvida. E como uma pescadora que era um dragão poderia ser arquimaga,
de qualquer maneira?
— Bem, o Padronista não disse que uma mulher em Gont seria
arquimaga — pontuou Ged. Ele estava consertando uma calça muito
rasgada, sentado no parapeito da janela para aproveitar a pouca luz que o dia
escuro proporcionava. Passara-se meio mês desde o Regresso do Sol e era a
época mais fria até então.
— O que ele disse, então?
— “Uma mulher em Gont”. Segundo você me contou.
— Mas eles estavam perguntando quem seria o próximo arquimago.
— E não obtiveram resposta para essa pergunta.
— Infinitos são os debates entre os magos — evocou Tenar um tanto
secamente.
Ged arrancou o fio com uma mordida e enrolou o pedaço não utilizado
em torno de dois dedos.
— Aprendi a tergiversar um pouco em Roke — admitiu ele. — Mas isso
não é uma tergiversação, eu acho. “Uma mulher em Gont” não pode se
tornar arquimaga. Nenhuma mulher pode ser arquimaga. Ela destruiria o
que se tornou ao tornar-se. Os Magos de Roke são homens: o poder deles é
o poder dos homens, o conhecimento deles é o conhecimento dos homens.
Tanto a masculinidade quanto a magia são construídas sobre a mesma
rocha: o poder pertence aos homens. Se as mulheres tivessem poder, o que
seriam os homens senão mulheres que não podem ter filhos? E o que seriam
as mulheres senão os homens que podem?
— Arrá! — soltou Tenar; e logo, com certa astúcia, retorquiu: — Não
houve rainhas? Elas não eram mulheres poderosas?
— Uma rainha é apenas uma mulher-rei — afirmou Ged. Tenar bufou.
— Quero dizer que os homens dão poder a ela. Deixaram-na usar seu
poder. Mas não é dela, certo? Não é porque ela é mulher que ela é poderosa,
e sim apesar de ser mulher.
Tenar assentiu. Ela se espreguiçou, recostando-se na roda.
— Qual é o poder de uma mulher, então? — perguntou ela.
— Acho que não sabemos.
— Quando uma mulher tem poder porque é mulher? Com os filhos,
suponho. Por um tempo…
— Na casa dela, talvez.
Tenar passou os olhos pela cozinha.
— Mas as portas estão fechadas — disse ela —, as portas estão
trancadas.
— Porque você é valiosa.
— Ah, sim. Somos preciosas. Enquanto estivermos impotentes…
Lembro-me de quando aprendi isso pela primeira vez! Kossil me
ameaçou… Eu, a Sacerdotisa Una das Tumbas. E percebi que estava
indefesa. Eu tinha a honra; mas ela tinha o poder, do Deus-Rei, o homem.
Ah, isso me deixou com raiva! E me assustou… Cotovia e eu conversamos
sobre isso uma vez. Ela questionou: “Por que os homens têm medo das
mulheres?”.
— Se a força de alguém é apenas a fraqueza do outro, vive-se com medo
— respondeu Ged.
— Sim; mas as mulheres parecem temer a própria força, ter medo de si
mesmas.
— Já foram ensinadas a confiar em si mesmas? — perguntou Ged, e
enquanto ele falava, Therru voltou realizando seu trabalho. Os olhos dele e
de Tenar se encontraram.
— Não — replicou Tenar. — Confiança não é o que aprendemos. — Ela
observou a criança empilhando a lenha na caixa. — Se o poder fosse
confiança — disse ela. — Eu gosto dessa palavra. Se não fossem todos esses
arranjos: um acima do outro, reis, mestres, magos e proprietários… Tudo
parece tão desnecessário. O verdadeiro poder, a verdadeira liberdade,
residiria na confiança, e não na força.
— Assim como as crianças confiam nos pais — disse ele. Ambos ficaram
em silêncio. Ged continuou: — Do jeito que as coisas estão, até a confiança
é corrupta. Os homens em Roke confiam em si mesmos e uns nos outros.
Seu poder é puro, nada mancha sua pureza, e por isso consideram essa
pureza como sabedoria. Não conseguem conceber o ato de fazer algo errado.
Tenar ergueu os olhos para ele. Ged nunca havia falado sobre Roke dessa
maneira antes, de uma forma totalmente externa, livre.
— Talvez precisem de algumas mulheres lá para lhes apontar essa
possibilidade — comentou ela, e ele riu. Tenar reiniciou a roda. — Ainda
não vejo por que, se pode haver mulheres-reis, não possa haver mulheres-
arquimagos.
Therru estava ouvindo.
— Neve quente, água seca — disse Ged, um ditado gontês. — Os reis
recebem o poder de outros homens. O poder de um mago é dele mesmo… é
ele mesmo.
— E é um poder masculino. Porque nem sabemos o que é o poder da
mulher. Tudo bem. Eu entendo. Mesmo assim, por que eles não conseguem
encontrar um arquimago… Um homem-arquimago?
Ged estudou a costura esfarrapada das calças.
— Bem — ponderou ele —, se o Padronista não estava respondendo à
pergunta deles, estava respondendo a uma que eles não perguntaram. Talvez
o que tenham de fazer é perguntar.
— É um enigma? — perguntou Therru.
— É — respondeu Tenar. — Mas não sabemos o enigma. Apenas
sabemos a resposta dele. A resposta é: “uma mulher em Gont”.
— Existem muitas delas — observou Therru depois de refletir um pouco.
Aparentemente satisfeita com isso, saiu para pegar a próxima carga de
gravetos.
Ged observou-a partir.
— Tudo mudou — disse ele. — Tudo… Às vezes penso, Tenar,
pergunto-me se a realeza de Lebannen é apenas um começo. Um portal… E
ele o sentinela. Para impedir a passagem.
— Ele parece tão jovem — disse Tenar, com ternura.
— Tão jovem quanto Morred era quando defrontou os Barcos Negros.
Jovem como eu era quando… — Ele parou de falar, olhando através da
janela os campos cinzentos e congelados por entre as árvores nuas. — Ou
como você, Tenar, naquele lugar escuro… O que é juventude ou idade? Não
sei. Às vezes sinto como se estivesse vivo há mil anos; às vezes sinto que
minha vida tem sido como uma andorinha voadora vista através da fresta de
uma parede. Morri e renasci, tanto na Terra Árida como aqui sob o sol, mais
de uma vez. A Criação nos diz que todos nós retornamos e voltamos para
sempre à fonte e que a fonte é incessante. Apenas na morte vida… Pensei
nisso quando estava com as cabras na montanha, onde um dia durava uma
eternidade e ainda assim não passava nenhum tempo antes que a noite
chegasse e a manhã novamente… Aprendi a sabedoria das cabras. Então,
pensei: para que serve essa minha dor? Por qual homem estou de luto? Ged,
o Arquimago? Por que Falcão, o pastor de cabras, está doente de tristeza e
vergonha por ele? O que fiz para me envergonhar?
— Nada — respondeu Tenar. — Nada, nunca!
— Ah, sim — disse Ged. — Toda a grandeza dos homens se baseia na
vergonha, é feita dela. Então Falcão, o pastor de cabras, se enlutou por Ged,
o Arquimago. Também cuidava das cabras, como se poderia esperar que um
menino de sua idade fizesse.
Passado algum tempo, Tenar sorriu. Ela disse, um pouco tímida:
— Musgo disse que você estava com cerca de quinze anos.
— Isso estava mais ou menos certo. Ogion me deu o nome no outono; e
no verão seguinte fui para Roke… Quem era aquele garoto? Um vazio…
Uma liberdade.
— Quem é Therru, Ged?
Ele não respondeu até que ela pensasse que ele não iria responder, e
então disse:
— Assim formada, que liberdade existe para ela?
— Somos a nossa liberdade, então?
— Penso que sim.
— Você parecia, em seu poder, tão livre quanto um homem pode ser.
Mas a que custo? O que o tornou livre? E eu… fui criada, moldada como
barro, pela vontade das mulheres que serviam aos Antigos Poderes ou que
serviam aos homens que criavam todos os serviços, modos e lugares, já não
sei quais. Depois fiquei livre, com você, por um momento, e com Ogion.
Mas não era minha liberdade. Só que isso me deu escolha; e eu escolhi.
Escolhi me moldar como barro para os fins de uma fazenda, de um
fazendeiro e de nossos filhos. Criei de mim mesma um receptáculo.
Conheço sua forma. Mas não o barro. A vida me dançou. Conheço as
danças. Mas não sei quem é a dançarina.
— E ela — acrescentou Ged depois de um longo silêncio —, se algum
dia dançasse…
— Eles vão temê-la — sussurrou Tenar.
Então a criança voltou e a conversa girou em torno da massa do pão que
crescia na caixa perto do fogão. Eles conversaram assim, baixinho e por
muito tempo, passando de um assunto para outro, girando e voltando,
durante metade do curto dia, muitas vezes, tecendo e costurando suas vidas
com palavras, os anos, as proezas e os pensamentos que não haviam
compartilhado. Então, de novo, ficavam em silêncio, trabalhando, pensando
e sonhando, e a criança silenciosa estava com eles.
Assim se passou o inverno, até que chegou a época do nascimento dos
cordeiros e o trabalho ficou muito pesado por um tempo à medida que os
dias se prolongavam e ficavam claros. Então as andorinhas vieram, com o
sol, das ilhas do Extremo Sul, onde a estrela Gobardon brilha na constelação
do Fim; mas toda a conversa das andorinhas entre si era a respeito do início.
capítulo 13

o mestre

T al como as andorinhas, os navios começaram a voar entre as ilhas com


o regresso da primavera. Nas aldeias falava-se, segundo boatos de Valmouth,
que os navios do rei estavam saqueando os saqueadores, levando piratas bem
estabelecidos à ruína, confiscando seus navios e fortunas. O próprio Senhor
Heno enviou seus três melhores e mais rápidos navios, capitaneados pelo
lobo-marinho-ocultista Tally, temido por todos os navios mercantes, de
Soléa às Andrades; sua frota deveria emboscar os navios reais ao largo de
Oranea e destruí-los. Mas foi um dos navios reais que chegou à baía de
Valmouth com Tally acorrentado a bordo e sob ordens de escoltar o Senhor
Heno até o Porto de Gont para ser julgado por pirataria e assassinato. Heno
barricou-se em sua mansão de pedra, nas colinas atrás de Valmouth, mas se
descuidou ao não acender uma fogueira, pois era um clima quente de
primavera; então, cinco ou seis dos jovens soldados do rei entraram pela
chaminé, e toda a tropa o levou acorrentado pelas ruas de Valmouth e o
conduziu à justiça.
Ao ouvi-lo, Ged disse com amor e orgulho:
— Tudo o que um rei pode fazer, ele fará bem.
Habilidoso e Cormorão foram levados imediatamente pela estrada norte
para o Porto de Gont, e, quando seus ferimentos estavam suficientemente
cicatrizados, Merluza foi levado para lá de navio, para ser julgado por
assassinato nos Tribunais do Rei. A notícia de sua condenação às galés
causou muita comoção e autocongratulação no Vale Central; Tenar e, ao seu
lado, Therru ouviram em silêncio.
Chegaram outros navios transportando outros homens enviados pelo rei,
nem todos eles estimados entre cidadãos e aldeões da rude Gont: xerifes
reais, enviados para informar sobre o sistema de oficiais de justiça e oficiais
de paz e ouvir queixas e acusações das pessoas comuns; relatores fiscais e
cobradores de impostos; nobres visitantes dos pequenos senhores de Gont,
aqueles questionando de maneira educada a fidelidade destes à Coroa em
Havnor; e homens de magia, que iam aqui e ali, parecendo fazer pouco e
dizer menos ainda.
— Acho que afinal estão à procura de um novo arquimago — concluiu
Tenar.
— Ou à procura de abusos da arte — disse Ged —, feitiçaria que deu
errado.
Tenar estava prestes a dizer: “Então deviam procurar na mansão de Re
Albi!”, mas sua língua tropeçou nas palavras. O que eu ia dizer?, pensou.
Alguma vez contei a Ged… Estou ficando esquecida. O que eu ia dizer a Ged?
Ah, seria melhor consertarmos o portão inferior do pasto antes que as vacas saiam.
Sempre havia algo, uma dúzia de coisas, em sua mente, assuntos da
Fazenda. “Nunca uma só tarefa para você”, dissera Ogion. Mesmo com a
ajuda de Ged, todos os seus pensamentos e dias se concentravam nos
negócios da fazenda. Ele compartilhava o trabalho doméstico com ela, o que
Pederneira não fizera; mas Pederneira era fazendeiro, e Ged não. Ele
aprendeu rápido, mas havia muito o que aprender. Eles trabalhavam. Havia
pouco tempo para conversar agora. No fim do dia, jantavam juntos, iam para
a cama juntos, dormiam, acordavam de madrugada e voltavam ao trabalho, e
assim ocorria em um ciclo constante, tal qual a roda de um moinho d’água,
subindo cheia e se esvaziando, os dias como a água brilhante caindo.
— Oi, mãe — cumprimentou o sujeito magro no portão da fazenda.
Tenar pensou que fosse o filho mais velho de Cotovia e disse:
— O que o traz aqui, rapaz? — Então olhou para ele em meio às
galinhas cacarejando e aos gansos desfilando. — Faísca! — gritou,
assustando as aves e correndo para ele.
— Chega, chega — disse ele. — Não continue.
Faísca deixou que ela o abraçasse e lhe acariciasse o rosto. Ele entrou e
sentou-se na cozinha, à mesa.
— Você comeu? Viu a Mattiana?
— Eu poderia comer.
Tenar vasculhou a despensa bem abastecida.
— Em que navio você está? Ainda é o Gaivota?
— Não. — Uma pausa. — Meu navio acabou.
Ela se virou, horrorizada:
— Naufragou?
— Não. — Ele sorriu sem graça. — A tripulação se separou. Os homens
do rei o assumiram.
— Mas… não era um navio pirata…
— Não.
— Então, por quê…?
— Disseram que o capitão estava vendendo mercadorias que eles
queriam — explicou ele, hesitante. Ele estava magro como sempre, mas
parecia mais velho, bronzeado, com cabelos escorridos e um rosto longo e
estreito como o de Pederneira, mas ainda mais estreito e mais forte. —
Onde está o pai? — perguntou.
Tenar ficou imóvel.
— Você não passou na casa de sua irmã.
— Não — disse ele, indiferente.
— Pederneira morreu há três anos — revelou ela. — De um derrame.
Nos campos… No caminho que sai dos currais dos cordeiros. Arroio Claro
o encontrou. Faz três anos.
Houve um silêncio. Ele não sabia ou não tinha o que dizer.
Tenar colocou comida diante do filho, que começou a comer com tanta
fome que ela imediatamente serviu mais.
— Quando comeu pela última vez?
Faísca deu de ombros e continuou a comer.
Ela se sentou à mesa diante dele. O sol do fim da primavera entrava pela
janela baixa do outro lado da mesa e brilhava no guarda-fogo de latão da
lareira.
Ele empurrou o prato, finalmente.
— Então, quem administra a fazenda? — perguntou ele.
— O que isso tem a ver com você, filho? — perguntou ela, com calma,
mas secamente.
— É minha — respondeu ele, em um tom bastante semelhante.
Passado um minuto, Tenar se levantou e retirou a louça.
— É mesmo.
— Você pode ficar, é claro — disse ele, muito sem jeito, talvez tentando
brincar; mas ele não era bom com brincadeiras. — O velho Arroio Claro
ainda está por aí?
— Ainda estão todos aqui. E um homem chamado Falcão e uma criança
que crio. Aqui. Na casa. Você terá de dormir no sótão. Vou colocar a escada.
— Ela o encarou novamente. — Está aqui para ficar, então?
— Pode ser.
Do mesmo modo Pederneira respondera às perguntas dela durante vinte
anos, negando-lhe o direito de fazê-las, posto que nunca respondia sim ou
não, e mantendo uma liberdade baseada na ignorância dela; um tipo de
liberdade pobre e estreita, considerava Tenar.
— Pobre rapaz — disse ela. — Sua tripulação se separou, seu pai morreu,
e estranhos estão em sua casa, tudo em um dia. Vai querer um tempo para se
acostumar com tudo isso. Sinto muito, meu filho. Mas estou feliz que esteja
aqui. Pensei muitas vezes em você, nos mares, nas tempestades, no inverno.
Ele não se pronunciou. Não tinha nada a oferecer e era incapaz de
aceitar. Empurrou a cadeira para trás e estava prestes a levantar-se quando
Therru entrou. Ele ficou olhando, a meio caminho de se erguer por inteiro.
— O que aconteceu com ela? — perguntou.
— Ela foi queimada. Este é meu filho, de quem lhe falei, Therru, o
marinheiro, Faísca. Therru é sua irmã, Faísca.
— Irmã!
— Adotiva.
— Irmã! — repetiu ele, e passou os olhos pela cozinha como se buscasse
testemunhas, então encarou a mãe.
Tenar o encarou de volta.
Faísca saiu, passando ao lado de Therru, que permanecera imóvel. Ele
bateu a porta atrás de si.
Tenar começou a falar com Therru, mas não conseguia.
— Não chore — disse a criança que não chorava, aproximando-se dela e
tocando-a no braço. — Ele machucou você?
— Ah, Therru! Deixe-me abraçá-la! — Ela se sentou à mesa com Therru
no colo e nos braços, embora a menina estivesse ficando grande para ser
segurada e nunca tivesse aprendido a aceitar isso com facilidade. Mas Tenar
abraçou-a e chorou, e Therru inclinou o rosto cheio de cicatrizes contra o de
Tenar, até ficar molhado de lágrimas.

***
Ged e Faísca entraram ao anoitecer, vindos de extremos opostos da fazenda.
Era evidente que Faísca tinha conversado com Arroio Claro e pensado na
situação, e Ged estava evidentemente tentando analisar o recém-chegado.
Muito pouco foi dito no jantar e sempre com cautela. Faísca não se queixou
de não ter seu próprio quarto de volta, mas subiu correndo a escada até o
sótão, como o marinheiro que era, e, ao que pareceu, ficou satisfeito com a
cama que sua mãe preparara para ele lá, pois só voltou para baixo no fim da
manhã.
Ele queria o desjejum e esperava que lhe fosse servido. Seu pai sempre
foi servido por mãe, esposa, filha. Ele era menos homem que o pai? Ela
deveria provar isso? Tenar serviu a refeição, retirou-a para ele e voltou para o
pomar onde ela, Therru e Panaché estavam queimando uma praga de
lagartas que ameaçava destruir os frutos recém-formados.
Faísca foi se juntar a Arroio Claro e Turra. Ficava principalmente com
eles, à medida que os dias passavam. O trabalho pesado que exigia músculos
e o trabalho qualificado com as colheitas e as ovelhas era feito por Ged,
Panaché e Tenar, enquanto os dois velhos que estiveram lá durante toda a
vida, os homens do pai dele, circulavam com Faísca pelas terras e contavam
como administravam tudo, de fato acreditando que estavam administrando
tudo e compartilhando sua crença com ele.
Tenar sentia-se infeliz em casa. Era somente ao ar livre, no trabalho da
fazenda, que sentia alívio da raiva e da vergonha que a presença de Faísca
lhe trazia.
— É minha vez — disse ela a Ged, com amargura, na escuridão estrelada
do quarto deles. — É minha vez de perder aquilo de que mais me orgulhava.
— O que você perdeu?
— Meu filho. O filho que não criei para ser homem. Eu falhei. Eu falhei
com ele. — Ela mordeu o lábio, fitando a escuridão com os olhos secos.
Ged não tentou discutir com ela nem a convencer a se desvencilhar de
sua dor. Ele perguntou:
— Acha que ele vai ficar?
— Sim. Ele tem medo de tentar voltar para o mar. Ele não me contou a
verdade, ou não me contou toda a verdade, sobre seu navio. Ele era o
segundo imediato. Suponho que estivesse envolvido no transporte de
mercadorias roubadas. Pirataria de segunda mão. Não ligo. Os marinheiros
gonteses são todos em parte piratas. Mas ele mente sobre isso. Ele mente.
Está com ciúmes de você. É um homem desonesto e invejoso.
— Creio que esteja assustado — ponderou Ged. — Ele não é mau, e é a
fazenda dele.
— Então ele pode ficar com ela! E que ela seja tão generosa com ele
quanto…
— Não, meu amor — interveio Ged, amparando-a com a voz e com as
mãos —, não fale… Não pragueje!
Ele era tão rápido, tão apaixonadamente sincero, que a raiva dela se
transformou no amor que era sua fonte, e ela chorou.
— Eu não amaldiçoaria a ele ou a este lugar! Não quis dizer isso! Só que
isso me dá tanta pena, tanta vergonha! Sinto muito, Ged!
— Não, não, não. Querida, não me importo com o que o garoto pensa de
mim. Mas ele é muito duro com você.
— E com Therru. Ele a trata como… Ele disse, ele me disse: “O que ela
fez para ficar assim?”. O que ela fez…!
Ged acariciou o cabelo dela, como sempre fazia, com uma carícia leve,
lenta e repetida que deixava ambos sonolentos de prazer afetuoso.
— Eu poderia voltar a pastorear cabras — disse ele, por fim. — Isso
facilitaria as coisas para você aqui. Exceto pelo trabalho…
— Prefiro ir com você.
Ged acariciou-lhe o cabelo e pareceu refletir.
— Suponho que sim — concordou ele. — Havia algumas famílias lá em
cima pastoreando ovelhas, acima de Lissu. Mas depois vem o inverno…
— Talvez algum fazendeiro nos contrate. Conheço o trabalho… e as
ovelhas… E você conhece as cabras… E você é rápido em tudo…
— Útil com forcados — ele murmurou e obteve uma risadinha dela.
Na manhã seguinte, Faísca acordou cedo para comer com eles, pois ia
pescar com o velho Turra. Levantou-se da mesa e disse com mais graça do
que de costume:
— Vou trazer uma porção de peixes para o jantar.
Tenar tomara decisões durante a noite. Ela disse:
— Espere; você pode tirar a mesa, Faísca. Coloque os pratos na pia e
coloque água sobre eles. Serão lavados junto às coisas do jantar.
Ele a encarou por um momento.
— Isso é trabalho de mulher. — respondeu enquanto colocava uma
boina.
— É trabalho para qualquer um que coma nesta cozinha.
— Não meu — disse ele, categoricamente, e saiu.
Tenar o seguiu. Ela ficou na soleira da porta.
— É do Falcão, mas não seu? — questionou. Faísca apenas assentiu e
atravessou o pátio. — É tarde demais — assumiu ela, voltando para a
cozinha. — Falhei, falhei. — Ela podia sentir as rugas em seu rosto, rígidas,
ao lado da boca, entre os olhos. — Pode-se regar uma pedra — disse —, mas
ela não vai crescer.
— É preciso começar quando eles são jovens e tenros — disse Ged. —
Como eu.
Desta vez ela não conseguiu rir.
Voltaram para casa depois do dia de trabalho e viram um homem
conversando com Faísca no portão da frente.
— Aquele é o sujeito de Re Albi, não é? — perguntou Ged, cujos olhos
eram muito bons.
— Venha, Therru — chamou Tenar, pois a criança tinha parado. — Que
sujeito? — Ela era bastante míope e semicerrou os olhos na direção do
quintal. — Ah, qual é o nome dele? O negociante de ovelhas. Toutinegra.
Por que ele está aqui, esse urubu?
O humor dela durante todo o dia tinha sido feroz, e Ged e Therru
sabiamente não se pronunciaram.
Tenar foi até os homens no portão.
— Veio por causa das cordeiras, Toutinegra? Você está um ano atrasado;
mas ainda há algumas deste ano no rebanho.
— É o que o mestre está me contando — disse o visitante.
— Está, é? — respondeu Tenar. O rosto de Faísca ficou mais sombrio do
que nunca com o tom dela. — Então não vou interromper você e o mestre
— avisou ela.
Já estava se virando quando Toutinegra falou:
— Tenho uma mensagem para você, Goha.
— A terceira vez é a que dá sorte.
— A velha bruxa, você sabe, a velha Musgo, ela está mal. Ela disse, já que
eu estava a caminho do Vale Central, ela disse: “Diga à Senhora Goha que
eu gostaria de vê-la antes de morrer, se houver uma chance de ela vir”.
Urubu, urubu, pensou Tenar, olhando com ódio para o portador de más
notícias.
— Ela está doente?
— Prestes a morrer — respondeu Toutinegra, com uma espécie de
sorriso que poderia ser uma expressão de simpatia. — Ficou doente no
inverno e está piorando rapidamente, então pediu para lhe dizer que deseja
muito ver a senhora, antes de ela morrer.
— Obrigada por trazer a mensagem — disse Tenar, com sobriedade, e
foi para casa. Toutinegra seguiu com Faísca até os currais.
Enquanto preparavam o jantar, Tenar disse a Ged e a Therru:
— Tenho de ir.
— É claro — concordou Ged. — Nós três, se você quiser.
— Vocês iriam? — Pela primeira vez naquele dia, seu rosto se iluminou e
a nuvem de tempestade se dissipou. — Ah — disse ela. — Isso… Isso é
bom… Eu não queria pedir, pensei que talvez… Therru, gostaria de voltar
para a casinha, a casa de Ogion, por uns tempos?
Therru parou a fim de refletir.
— Eu poderia ver meu pessegueiro — lembrou ela.
— Sim, e Érica… e Tetê… e Musgo, pobre Musgo! Ah, eu ansiava,
desejava voltar para lá, mas não parecia certo. Havia a fazenda para
administrar… E tudo…
Parecia-lhe que havia alguma outra razão pela qual não voltara, sequer se
permitira cogitar o retorno, nem mesmo sabia até aquele momento que
ansiava por ir; mas, qualquer que fosse a razão, desapareceu como uma
sombra, uma palavra esquecida.
— Alguém cuidou de Musgo, eu me pergunto, alguém mandou chamar
um curandeiro? Ela é a única curandeira em Overfell, mas há pessoas no
Porto de Gont que por certo poderiam ajudá-la. Ah, pobre Musgo! Eu
quero ir… É tarde demais, mas amanhã, amanhã cedo; e o mestre pode
preparar o próprio desjejum!
— Ele aprende — afirmou Ged.
— Não, ele não aprende. Ele encontrará alguma mulher tola para fazer
isso por ele. Ah! — Tenar passou os olhos pela cozinha, a expressão em seu
rosto era radiante e feroz. — Detesto ter de deixar para ela os vinte anos que
poli aquela mesa. Espero que ela goste!
Faísca trouxe Toutinegra para o jantar, mas o negociante de ovelhas não
quis passar a noite, embora, é claro, lhe fosse oferecida uma cama, por
hospitalidade. Teria sido uma das camas deles, e Tenar não gostou da ideia.
A mulher ficou feliz ao vê-lo partir para a casa de seus anfitriões na aldeia,
no crepúsculo azul da primavera.
— Amanhã vamos para Re Albi logo cedo, filho — disse ela a Faísca. —
Falcão, Therru e eu.
Ele parecia um pouco assustado.
— Vão sair assim?
— Assim como você foi; assim como você veio — retrucou a mãe. —
Agora, veja bem, Faísca: este é o cofrinho do seu pai. Tem sete moedas de
marfim nele e aquelas promissórias do velho Bridgeman, mas ele nunca vai
pagar, não tem nada com que pagar. Estas quatro moedas andradenses
Pederneira conseguiu vendendo peles de carneiro ao fornecedor do navio em
Valmouth durante quatro anos consecutivos, quando você era menino. Estas
três havnorianas foram o que Tholy nos pagou pela fazenda do Riacho Alto.
Pedi ao seu pai que comprasse aquela fazenda e o ajudei a limpá-la e vendê-
la. Vou pegar essas três moedas, pois as mereci. O restante e a fazenda são
seus. Você é o mestre.
O jovem alto e magro permaneceu ali, encarando o cofrinho.
— Pegue tudo. Eu não quero isso — respondeu ele em voz baixa.
— Não preciso disso. Mas agradeço, meu filho. Fique com as quatro
moedas. Quando você se casar, diga que são meu presente para sua esposa.
Ela guardou a caixa no lugar, atrás do prato grande da prateleira de cima
da cômoda, onde Pederneira sempre a guardava.
— Therru, prepare suas coisas agora, porque sairemos bem cedo.
— Quando você vai voltar? — perguntou Faísca.
O tom na voz dele fez com que Tenar pensasse na criança inquieta e
frágil que o filho fora. Ela apenas respondeu:
— Não sei, querido. Se precisar de mim, eu venho. — Tenar se ocupou
em pegar os sapatos e as bolsas de viagem. — Faísca, você pode fazer uma
coisa por mim.
Ele se acomodara no assento da lareira, parecendo inseguro e taciturno.
— O quê?
— Vá até Valmouth logo e veja sua irmã. E diga-lhe que voltei para
Overfell. Diga-lhe que, se ela quiser que eu venha, basta mandar uma
mensagem.
O filho assentiu. Observou Ged, que já tinha arrumado os seus poucos
pertences com o cuidado e a rapidez de quem muito viajara e agora
arrumava a louça para deixar a cozinha em bom estado. Feito isso, sentou-se
em frente a Faísca para passar uma corda nova pelos ilhós da bolsa a fim de
fechá-la na parte superior.
— Tem um nó que eles usam para isso — disse Faísca. — Nó de
marinheiro.
Ged lhe entregou a bolsa e assistiu a Faísca, em silêncio, do outro lado da
lareira, demonstrar o nó.
— Desliza, viu só? — comentou ele, e Ged assentiu.

***

Saíram da fazenda no escuro e no frio da manhã. A luz do sol chega tarde


ao lado oeste da Montanha de Gont, e apenas caminhar os mantinha
aquecidos até que por fim o sol contornasse a grande massa do pico sul e
brilhasse nas costas deles.
Therru caminhava duas vezes mais rápido que no verão anterior, mas
ainda assim eram dois dias de jornada para eles. À tarde, Tenar perguntou:
— Vamos tentar chegar hoje a Caldas de Carvalho? Há uma espécie de
pousada. Tomamos um copo de leite lá, lembra, Therru?
Ged fitava a encosta da montanha com uma expressão distante.
— Conheço um lugar…
— Tudo bem — disse Tenar.
Pouco antes de chegarem ao topo da estrada, de onde se avistava pela
primeira vez o Porto de Gont, Ged desviou da estrada e entrou na floresta
que cobria as encostas íngremes acima dela. O sol poente enviava raios
oblíquos vermelho-dourados que penetravam a escuridão por entre os
troncos e sob os galhos. Eles subiram cerca de um quilômetro, sem nenhum
caminho que Tenar pudesse enxergar, e alcançaram um pequeno degrau ou
plataforma na encosta da montanha, um prado protegido do vento pelos
penhascos ali atrás e pelas árvores que o rodeavam. Dali podia-se vislumbrar
as alturas da montanha ao norte e, entre as copas dos grandes abetos, tinha-
se uma visão nítida do mar ocidental. Ali era totalmente silencioso, exceto
quando o vento soprava nos abetos. Uma cotovia da montanha cantou longa
e docemente, à luz do sol, antes de mergulhar em seu ninho na grama
intacta.
Os três comeram pão e queijo. Observaram a escuridão vinda do mar
subir a montanha. Fizeram a cama com as capas e dormiram, Therru ao lado
de Tenar, ela ao lado de Ged. No meio da noite, Tenar acordou. Uma coruja
chirriava ali perto, uma nota doce e repetida como um sino, e do alto da
montanha sua companheira respondia como o fantasma de um sino. Vou
observar o poente das estrelas no mar, pensou Tenar, mas adormeceu
imediatamente, com o coração em paz.
Ela acordou na manhã cinzenta e viu Ged sentado ao seu lado, com a
capa puxada sobre os ombros, olhando através da abertura para oeste. Seu
rosto escuro estava imóvel, cheio de silêncio, como ela o vira uma vez, muito
tempo antes, na praia de Atuan. Os olhos não estavam abatidos, como
daquela vez; ele perscrutava o oeste sem fim. Olhando com ele, Tenar viu o
dia chegando, a glória rósea e dourada refletia-se nitidamente no céu.
Ele se virou para ela, e a mulher lhe disse:
— Amo você desde a primeira vez que o vi.
— Concessora da vida — respondeu ele, e inclinou-se para a frente,
beijando-a no peito e na boca. Ela o segurou por um momento. Colocaram-
se de pé, acordaram Therru e seguiram caminho; mas, ao entrarem no meio
das árvores, Tenar espiou uma vez mais o pequeno prado, como se o
incumbisse de preservar sua felicidade ali.
No primeiro dia de jornada, o objetivo deles fora iniciar a jornada. Neste
novo dia, eles chegariam a Re Albi. Por isso, a mente de Tenar estava muito
concentrada em tia Musgo, perguntando-se o que tinha acontecido e se ela
estava mesmo morrendo. Mas, com o avançar do dia e do caminho, sua
mente não conseguia mais se ater ao pensamento de Musgo ou a qualquer
pensamento. Estava cansada. Não gostou de caminhar outra vez assim, em
direção à morte. Passaram por Caldas de Carvalho, desceram até o
desfiladeiro e recomeçaram a subida. No último longo trecho de subida até
Overfell, as suas pernas pesavam e a mente dela estava burra e confusa,
fixando-se numa palavra ou imagem até que aquilo perdesse o sentido: o
armário de pratos na casa de Ogion ou as palavras “golfinho de osso”, que
lhe vieram à cabeça ao deparar-se com o saquinho de ervas com brinquedos
de Therru e depois se repetiram interminavelmente.
Ged avançava com o seu passo tranquilo de viajante, e Therru caminhava
bem ao lado dele, a mesma Therru que tinha se exaurido naquela longa
subida há menos de um ano e que precisou ser carregada. Mas aquilo tinha
se passado depois de um longo dia de caminhada. E, então, a criança ainda
se recuperava de sua punição.
Tenar estava ficando velha, velha demais para andar tão longe e tão
rápido. Foi tão difícil subir a colina. Uma senhora idosa deveria ficar em
casa, perto da lareira. O golfinho de osso, o golfinho de osso. Osso,
amarrado, feitiço de amarração. O homem de ossos e o animal de ossos. Lá
iam eles à frente. Ficaram esperando-a. Ela era lenta. Ela estava cansada. Ela
subiu com dificuldade o último trecho da colina e os alcançou onde a
estrada chegava à altura de Overfell. À esquerda ficavam os telhados de Re
Albi, inclinados em direção à beira do penhasco. À direita, a estrada subia
até a mansão.
— Por aqui — orientou Tenar.
— Não — disse a criança, apontando para a esquerda, para a aldeia.
— Por aqui — repetiu Tenar, e partiu pelo caminho da direita. Ged a
acompanhou.
Os dois caminharam por entre os pomares de nogueira e os campos
gramados. Era um fim de tarde quente de início de verão. Os pássaros
cantavam nas árvores do pomar, próximas e distantes. Ele vinha descendo a
estrada que saía da mansão na direção dos três, aquele cujo nome Tenar não
conseguia lembrar.
— Bem-vindos! — saudou ele, e deteve-se, sorrindo para o trio.
Eles pararam.
— Que grandes figuras vieram homenagear a casa do Senhor de Re Albi
— disse ele. Tuaho, esse não era o nome dele. O golfinho de ossos, o animal
de ossos, a criança de ossos. — Meu Senhor Arquimago! — Fez uma
reverência e Ged curvou-se diante dele. — E minha Senhora Tenar de
Atuan! — Curvou-se ainda mais para ela, que se ajoelhou na estrada.
A cabeça de Tenar afundou, ela colocou as mãos na terra e se agachou até
que sua boca também estivesse na terra da estrada.
— Agora rasteje — disse ele.
E ela começou a rastejar na direção dele.
— Pare — ordenou.
E ela parou.
— Você consegue falar? — perguntou.
Ela não disse nada, não tendo palavras que lhe saíssem da boca, mas Ged
respondeu com a sua habitual voz calma:
— Sim.
— Onde está a monstra?
— Não sei.
— Achei que a bruxa traria a família consigo. Mas, em vez disso, ela
trouxe você. O Senhor Arquimago Gavião. Que substituto esplêndido! Tudo
o que posso fazer com bruxas e monstros é livrar o mundo deles. Mas com
você, que já foi homem um dia, posso falar; você é capaz de falar
racionalmente, pelo menos, e capaz de compreender punições. Você pensou
que estava seguro, suponho, com seu rei no trono, e meu mestre, nosso
mestre, destruído. Pensou que tivesse feito a sua vontade e destruiu a
promessa da vida eterna, não foi?
— Não — respondeu a voz de Ged.
Tenar não conseguia vê-los. Só conseguia ver a terra da estrada e sentir
seu gosto na boca. Ouviu Ged falar. Ele disse:
— Na morte está a vida.
— Quá, quá, cite as Canções, Mestre de Roke, professor! Que visão
engraçada de se ver, o grande Arquimago ressurgiu como um pastor de
cabras, e não havia um pingo de magia nele, nem uma palavra de poder.
Consegue dizer um feitiço, Arquimago? Apenas um feiticinho, apenas um
encantinho de ilusão? Não? Nenhuma palavra? Meu mestre derrotou você.
Agora você sabe disso? Você não o conquistou. O poder dele está vivo! Eu
poderia manter você vivo aqui por algum tempo, para que veja esse poder: o
meu poder. Veja o velho que mantenho longe da morte, e posso usar sua vida
para isso, se precisar, e veja seu rei intrometido fazer papel de bobo, com seus
senhores mesquinhos e feiticeiros estúpidos, procurando uma mulher! Uma
mulher para nos governar! Mas o governo está aqui, a maestria está aqui,
aqui, nesta casa. Durante todo este ano venho reunindo outros a mim,
homens que conhecem o verdadeiro poder. De Roke, alguns deles, bem
debaixo do nariz dos professores; e de Havnor, debaixo do nariz daquele
chamado Filho de Morred, que quer uma mulher para governá-lo, o seu rei
que pensa estar tão seguro que pode usar o nome verdadeiro. Você sabe meu
nome, Arquimago? Você se lembra de mim, há quatro anos, quando você era
o grande Mestre dos Mestres e eu era um humilde aluno em Roke?
— Você se chamava Álamo — disse a voz paciente.
— E meu nome verdadeiro?
— Não sei seu nome verdadeiro.
— O quê? Você não sabe? Não consegue lembrar? Os magos não sabem
todos os nomes?
— Eu não sou um mago.
— Ah, diga de novo.
— Eu não sou um mago.
— Gosto de ouvir você dizer isso. Diga de novo.
— Eu não sou um mago.
— Mas eu sou!
— Sim.
— Diga!
— Você é um mago.
— Ah! Isto é melhor do que eu esperava! Vim pescar a enguia e peguei a
baleia! Vamos, então, venha conhecer meus amigos. Você pode andar. Ela
pode rastejar.
Subiram a estrada até a mansão do Senhor de Re Albi e entraram, Tenar
de joelhos na estrada, nos degraus de mármore até a porta, nos pavimentos
de mármore dos salões e salas.
Dentro de casa estava escuro. Com a escuridão, uma escuridão tomou a
mente de Tenar de modo que ela entendia cada vez menos o que era dito.
Apenas algumas palavras e vozes chegavam-lhe com nitidez. Ela
compreendia o que Ged dizia e, quando ele falava, pensava no nome dele e
agarrava-se a ele em sua mente. Mas ele falava muito raramente, e apenas
para responder àquele cujo nome não era Tuaho. Aquele que falava com ela
de vez em quando, chamando-a de vadia.
— Este é meu novo animal de estimação — anunciou ele a outros
homens, vários deles que estavam ali na escuridão onde as velas faziam
sombras. — Veem como ela é bem adestrada? Role, vadia! — Tenar rolou e
os homens riram. — Ela tinha um filhote que eu planejava terminar de
punir, já que ficou meio queimado. Mas me trouxe um pássaro que ela havia
capturado, um gavião. Amanhã vamos ensiná-lo a voar.
Outras vozes diziam palavras, mas ela não entendia mais as palavras.
Algo foi amarrado em seu pescoço e ela foi obrigada a subir, rastejando,
mais escadas e a entrar em uma sala que cheirava a urina, carne podre e
flores doces. Vozes falavam. Uma mão fria como pedra deu tapinhas em sua
cabeça enquanto algo ria:
— É, é, é. — Como uma porta velha rangendo para a frente e para trás.
Então ela foi chutada e obrigada a rastejar pelos corredores. Tenar não
conseguia fazê-lo rápido o suficiente e foi chutada nos seios e na boca.
Então, ouviu-se uma porta bater, fez-se silêncio e escuridão. Ela ouviu
alguém chorando e pensou que era uma criança, a criança dela. Ela queria
que a criança não chorasse. Por fim, parou.
capítulo 14

tehanu

A criança virou à esquerda e avançou um pouco antes de olhar para trás,


deixando que a sebe florida a escondesse.
Aquele chamado Álamo, cujo nome era Erisen, e que ela via como uma
escuridão bifurcada e contorcida, amarrara sua mãe e seu pai, com uma
correia na língua dela e uma correia no coração dele, e conduzia-os em
direção ao lugar onde ele se escondia. O cheiro do lugar era nauseante para
ela, mas ela seguiu um pouco para ver o que ele fazia. O feiticeiro os
conduziu para dentro e fechou a porta. Era uma porta de pedra. Ela não
conseguiria entrar ali.
Ela precisava voar, mas não conseguia voar; ela não era um dos seres
alados.
Correu o mais rápido que pôde pelos campos, passou pela casa de tia
Musgo, pela casa de Ogion e pela casa das cabras, pelo caminho ao longo do
penhasco, até a beira do penhasco, aonde não devia ir porque só podia vê-lo
com um olho. Foi cuidadosa. Olhou cuidadosamente com este olho. Ficou
na beirada. A água estava bem abaixo e o sol se punha ao longe. Mirou o
oeste com o outro olho e chamou com a outra voz o nome que ouvira no
sonho de sua mãe.
A menina não esperou por uma resposta, mas virou-se novamente e
retornou, passando primeiro pela casa de Ogion a fim de avaliar se o seu
pessegueiro crescera. A velha árvore produzia muitos pêssegos pequenos e
verdes, mas não havia sinal da muda. As cabras tinham comido. Ou morreu
porque ela não lhe colocou água. Ficou aparada contemplando a terra por
algum tempo, depois respirou fundo e atravessou os campos até a casa de tia
Musgo.
As galinhas, indo para o poleiro, cacarejaram e se debateram em protesto
contra a entrada dela. A cabaninha estava escura e repleta de cheiros.
— Tia Musgo? — chamou ela, na voz que tinha para essas pessoas.
— Quem está aí? — A velha estava na cama, escondida. Ela estava
assustada e tentara criar pedras à sua volta para manter todas as pessoas
afastadas, mas não funcionou; ela não estava forte o bastante. — Quem é?
Quem está aí? Ah, minha querida, ah, minha querida criança, minha
pequena queimada, minha linda, o que está fazendo aqui? Onde ela está,
onde ela está, sua mãe, ah, ela está aqui? Ela veio? Não entre, não entre,
minha querida, estou amaldiçoada, ele amaldiçoou a velha, não chegue perto
de mim! Não se aproxime!
Ela chorou. A criança estendeu a mão e a tocou.
— Você está fria — percebeu ela.
— Você é como fogo, criança, sua mão me queima. Ah, não olhe para
mim! Ele fez minha carne apodrecer, murchar e apodrecer de novo, mas ele
não me deixa morrer… Ele disse que eu traria você aqui. Eu tentei morrer,
eu tentei, mas ele me segurou, ele segurou minha vida contra minha
vontade, ele não me deixa morrer, ah, me deixe morrer!
— Você não deveria morrer — declarou a criança, franzindo a testa.
— Criança — sussurrou a velha —, minha querida, me chame pelo meu
nome.
— Hatha — falou a criança.
— Ah. Eu sabia… Minha querida, me liberte!
— Preciso esperar — explicou a criança. — Até eles chegarem.
A bruxa ficou mais tranquila, respirando sem dor.
— Até quem chegar, minha querida? — sussurrou.
— Meu povo.
A mão grande e fria da bruxa estava presa como um feixe de gravetos na
sua. Ela segurava com firmeza. Estava tão escuro naquele momento fora da
cabana quanto dentro dela. Hatha, que se chamava Musgo, dormiu; e logo a
criança, sentada no chão ao lado da cama, com uma galinha empoleirada por
perto, também adormeceu.

***

Os homens vieram quando a luz chegou. Ele disse:


— Levante-se, vadia! Levante-se! — Ela ficou de joelhos. Ele riu,
dizendo: — Até em cima! Você é uma vadia esperta, consegue andar nas
patas traseiras, não consegue? É isso. Finja ser humana! Temos um caminho
a percorrer agora. Venha!
A correia ainda estava em volta do pescoço dela, e ele a puxou. Ela o
seguiu.
— Aqui, você a leva — disse o homem, e agora era aquele, aquele que ela
amava, quem segurava a correia, mas ela não sabia mais o nome dele.
Todos saíram do lugar escuro. A pedra bocejou para deixá-los passar e se
fechou atrás deles.
Ele estava sempre perto dela e de quem segurava a correia. Outros
vinham atrás, três ou quatro homens.
Os campos estavam cinzentos de orvalho. A montanha estava escura
com o céu pálido ao fundo. Os pássaros começaram a cantar nos pomares e
nas sebes, cada vez mais alto.
Chegaram ao fim do mundo e caminharam por ali durante algum tempo
até chegarem a um lugar onde o chão era apenas pedra e a borda era muito
estreita. Havia uma linha na rocha, para a qual ela olhou.
— Ele pode empurrá-la — disse o homem. — E aí o falcão pode voar
sozinho.
Ele desatou a correia do pescoço dela.
— Vá para a beirada — ordenou.
Ela seguiu a marca na pedra até a borda. O mar estava ali embaixo, e
nada mais. O ar estava acima dela.
— Agora, Gavião vai dar um empurrão nela — planejou ele. — Mas,
primeiro, talvez ela queira dizer alguma coisa. Ela tem muito a dizer. As
mulheres sempre fazem isso. Não há nada que você gostaria de nos dizer,
Senhora Tenar?
Ela não conseguia falar, mas apontou para o céu acima do mar.
— Albatroz — disse ele.
Ela riu alto.
Nos abismos de luz, vindo pelo portal do céu, o dragão voava, o fogo
arrastando-se atrás do corpo espiralado e coberto de escamas. Tenar, então,
falou:
— Kalessin! — gritou, e depois virou-se, agarrando o braço de Ged,
puxando-o para a rocha, enquanto o rugido do fogo passava por cima deles,
o tilintar das escamas e o silvo do vento nas asas erguidas, o estrondo das
garras como lâminas de foices na rocha.
***

O vento soprava do mar. Um pequeno cardo crescia em uma fenda na rocha,


perto da mão dela, e balançava ao vento que vinha do mar.
Ged estava ao lado dela. Estavam agachados lado a lado, o mar atrás
deles e o dragão na frente deles.
Ele os espiou de soslaio, com o olho comprido e amarelo.
Ged falou com voz rouca e trêmula, na língua do dragão. Tenar
compreendeu as palavras, que eram apenas:
— Nossos agradecimentos, Ancião.
Fitando Tenar, Kalessin falou em uma voz estrondosa como uma
vassoura de metal sendo arrastada por um gongo:
— Aro Tehanu?
— A criança — disse Tenar. — Therru! Levantou-se para correr, para
procurar a criança. Viu-a caminhando pela saliência rochosa entre a
montanha e o mar, em direção ao dragão. — Não corra, Therru! — gritou
ela, mas a criança a avistara e estava correndo, correndo direto para ela.
Abraçaram-se uma à outra.
O dragão virou a cabeça enorme e escura para observá-las com os dois
olhos. As narinas, grandes como chaleiras, brilhavam com o fogo, e fios de
fumaça saíam delas. O calor do corpo do dragão trespassou o vento frio do
mar.
— Tehanu — disse o dragão.
A criança se virou para olhá-lo.
— Kalessin — disse ela.
Então Ged, que permanecera ajoelhado, levantou-se, ainda trêmulo,
agarrando o braço de Tenar a fim de equilibrar-se. Ele riu.
— Agora sei quem te chamou, Ancião! — anunciou ele.
— Eu chamei — confirmou a criança. — Não sabia mais o que fazer,
Segoy.
Ela ainda olhava para o dragão e falava na língua dos dragões, nas
palavras da Criação.
— Muito bem, criança — disse o dragão. — Procurei por ti durante
muito tempo.
— Vamos para lá agora? — perguntou a criança. — Onde estão os
outros, no outro vento?
— Você os deixaria?
— Não — disse a criança. — Eles não podem vir?
— Não. A vida deles é aqui.
— Fico com eles — respondeu ela, quase sem fôlego.
Kalessin virou-se de lado e soltou aquela imensa explosão de riso, de
desprezo, de alegria ou de raiva:
— Haha! — Então, olhando novamente para a criança: — Tudo bem.
Você tem trabalho a fazer aqui.
— Eu sei — disse a criança.
— Voltarei para buscar a ti — disse Kalessin. — No devido tempo. —
Para Ged e Tenar: — Dou-lhes minha criança, assim como me darão a de
vocês.
— No devido tempo — respondeu Tenar.
A grande cabeça de Kalessin abaixou-se ligeiramente e a longa boca com
dentes no formato de espadas curvou-se no canto.
Ged e Tenar afastaram-se com Therru quando o dragão se virou,
arrastando a armadura pela plataforma, colocando cuidadosamente as patas
com garras, juntando como um gato as ancas escuras, até saltar no ar. As asas
esvoaçantes subiram, carmesins sob a nova luz, a cauda com esporas sibilou
na rocha e ele voou, partiu… Uma gaivota, uma andorinha, um pensamento.
Onde ele estivera, havia trapos chamuscados de tecido e couro e outras
coisas.
— Venham — chamou Ged.
Mas a mulher e a criança ficaram de pé e olharam para aquelas coisas.
— Eles são pessoas de ossos — disse Therru. Ela se virou e partiu. Foi à
frente do homem e da mulher pelo caminho estreito.
— A língua nativa dela — disse Ged. — A língua materna dela.
— Tehanu — disse Tenar. — O nome dela é Tehanu.
— Ela o recebeu do concessor de nomes.
— Ela é Tehanu desde o início. Sempre foi Tehanu.
— Vamos! — chamou a criança, encarando-os. — Tia Musgo está
doente.

***

Conseguiram levar Musgo para a luz e o ar livre, lavar suas feridas e queimar
os lençóis sujos de sua cama enquanto Therru trazia roupa de cama limpa da
casa de Ogion. Ela também trouxe consigo Érica, a pastora de cabras. Com
a ajuda de Érica, a velha ficou confortável em sua cama, com suas galinhas; e
a pastora prometeu voltar com algo para comerem.
— Alguém tem de ir ao Porto de Gont atrás do feiticeiro de lá — disse
Ged. — Para cuidar de Musgo; ela pode ser curada, e ir à mansão. O velho
vai morrer agora. O neto poderá viver se a casa estiver limpa… — Ele havia
se sentado à porta da casa de Musgo. Encostou a cabeça no batente, sob a
luz do sol, e fechou os olhos. — Por que fazemos o que fazemos? —
questionou.
Tenar lavava o rosto, as mãos e os braços em uma bacia com água limpa
que pegara da bomba. Ela olhou em volta quando terminou.
Completamente exausto, Ged adormecera, com o rosto um pouco virado
para a luz da manhã. Ela se sentou ao seu lado na soleira da porta e apoiou a
cabeça em seu ombro. Fomos poupados?, pensou ela. Como é que fomos
poupados?
Olhou para a mão de Ged, relaxada e aberta no degrau de terra. Pensou
no cardo que balançava ao vento e na pata do dragão, com garras e escamas
vermelhas e douradas. Estava quase adormecendo quando a criança se
sentou ao seu lado.
— Tehanu — murmurou Tenar.
— A arvorezinha morreu — lamentou a criança.
Passado algum tempo, a mente cansada e sonolenta de Tenar
compreendeu e acordou o suficiente para responder.
— Há pêssegos na velha árvore?
Ambas falavam baixo, para não acordar o homem adormecido.
— Só uns pequenos e verdes.
— Vão amadurecer depois da Longa Dança. Em breve.
— Podemos plantar um?
— Mais de um, se você quiser. Tudo bem com a casa?
— Está vazia.
— Vamos morar lá? — Tenar despertou um pouco mais e colocou o
braço em volta da criança. — Tenho dinheiro — disse ela —, o bastante
para comprar um rebanho de cabras e o pasto de inverno de Turby, se ainda
estiver à venda. Ged sabe aonde levá-las montanha acima, no verão… Será
que a lã que penteamos ainda está lá?
Dizendo isto, ela pensou: Deixamos os livros, os livros de Ogion! Na lareira
da Fazenda do Carvalho… Para Faísca, coitado, que não consegue ler uma
palavra deles!
Mas não parecia importar. Havia coisas novas a serem aprendidas, sem
dúvida, e ela poderia mandar alguém buscar os livros, se Ged os quisesse. E
sua roda de fiar. Ou ela mesma poderia descer, no outono, para ver o filho,
visitar Cotovia e ficar um pouco com Mattiana. Teriam de replantar
imediatamente a horta de Ogion se quisessem quaisquer vegetais no verão.
Tenar pensou nas fileiras de feijões e no perfume de suas flores. Pensou na
janelinha que dava para o oeste.
— Acho que podemos morar lá — concluiu.
posfácio

entre o último capítulo de As Tumbas de Atuan e o primeiro capítulo de


Tehanu, passam-se cerca de vinte e cinco anos, tempo suficiente para a
menina Tenar ficar viúva, com uma filha e um filho adultos.
Entre o último capítulo de A última margem e o quarto capítulo de
Tehanu passou-se um ou dois dias, tempo suficiente para o dragão Kalessin
transportar Ged de Roke para Gont.
Entre a conclusão de A última margem e o início de Tehanu, passaram-se
dezoito anos de minha vida, tempo suficiente para que eu aprendesse a
escrever este livro.
Nunca pensei em Terramar como uma trilogia, mas durante muito
tempo o vislumbrei como uma cadeira de três pernas.
Eu sabia que a história de Tenar precisava ser contada e que ela e Ged
tinham de se unir. Então, logo depois de concluir o terceiro livro, comecei o
quarto. Mas, embora eu soubesse que Tenar não tinha permanecido com
Ogion, e sim ido embora, se casado com um fazendeiro e vivido uma vida
normal e sem magia, eu não sabia por quê. A história ficou emperrada. Eu
não conseguia prosseguir. Foram necessários anos levando minha vida
normal e um grande aprendizado de como pensar sobre esses assuntos, a
maior parte dele vindo de outras mulheres, antes que eu conseguisse
compreender por que Tenar fez o que fez e quem era ela no final. Então,
enfim, consegui escrever Tehanu.
Quando o livro foi lançado, parte da crítica e do público ficaram
desapontados. Não era como os três primeiros livros. Não era o que eles
esperavam. Ninguém fez barulho quando inverti a tradição racista de heróis
brancos e vilões negros; mas agora eu estava mexendo com gênero. E sexo.
As fantasias heroicas, mesmo em 1990 e mesmo que incluíssem heroínas,
eram (e em sua maioria ainda são) baseadas em instituições, hierarquias e
valores construídos por homens. Fiéis à tradição, as personagens do primeiro
e do terceiro livros de Terramar eram quase exclusivamente masculinas, e,
em As Tumbas de Atuan, Tenar divide o palco com Ged. Mas, para início de
conversa, Tehanu é todo sobre mulheres e crianças. Ogion aparece apenas
para morrer; e, quando Ged chega, parece um homem alquebrado, tão fraco
que aceita o refúgio de uma bruxa comum e depois sai para pastorear cabras,
deixando Tenar sozinha para lidar com a incompreensão e a malevolência.
Onde está o cara de cajado brilhante? Quem vai fazer a grande magia? Uma
garotinha? Ora, por favor. Isso não é uma história de herói!
Eu não queria que fosse. Quando escrevi este livro, eu precisava olhar de
fora e de baixo para o heroísmo, do ponto de vista das pessoas que não estão
incluídas. Aquelas que não conseguem fazer magia. Aquelas que não têm
cajados ou espadas brilhantes. Mulheres, crianças, pessoas empobrecidas,
envelhecidas, impotentes. Anti-heróis, pessoas comuns: meu povo. Eu não
queria mudar Terramar, mas precisava ver como Terramar era visto por nós.
Parte do público leitor, que se identificava com Ged como uma figura
masculina de poder, considerou que eu o havia traído e humilhado em uma
espécie de espasmo feminista vingativo. Pelo que sei, não tive espasmos nem
traí Ged. Muito pelo contrário, acho. Em Tehanu, ele pôde, enfim, se tornar
plenamente homem. Ele não é mais servo de seu poder.
Mas para onde foi o poder? A magia está, de fato, morrendo em
Terramar, como parecia estar acontecendo no terceiro livro?
Não creio que seja esse o caso, mas certamente há uma enorme mudança
em curso no mundo, apenas começando a se tornar visível e ainda não
compreensível. Ogion a vê enquanto morre. Tenar tem intuições a esse
respeito, vindas da história da Mulher de Kemay, do leque pintado na casa
do velho tecelão, de seus sonhos, do que sabe e do que não sabe sobre sua
filha adotiva, Therru.
Therru é a chave do livro. Só quando a vi é que pude começar a escrevê-
lo. Mas o que vi me surpreendeu. Therru não é nada comum. Sua vida foi
arruinada no início. Ela não está apenas impotente, mas também mutilada,
deformada e aterrorizada. Não pode ser curada. O mal cruel cometido
contra ela veio com o colapso da sociedade de Terramar, que o novo rei
poderá reparar; mas e para Therru, haverá reparação?
“O que não pode ser reparado deve ser transcendido.”
Talvez a mudança que está ocorrendo em Terramar tenha algo a ver com
não associar mais a liberdade ao poder, com a separação entre ser livre e estar
no controle. Há uma espécie de recusa em servir ao poder que não é uma
revolta ou uma rebelião, mas uma revolução no sentido da inversão de
significados, de mudar a maneira como as coisas são entendidas. Qualquer
pessoa que tenha sido capaz de se libertar de uma crença controladora e
paralisante, de uma intolerância ou de uma ignorância forçada, conhece a
sensação de sair para a luz e para o ar, de se libertar, de ser libertada para
voar, para transcender.

***

Tanto em As Tumbas de Atuan quanto em Tehanu, livros em que as mulheres


são centrais na história, há um tipo de raiva que não creio estar presente em
O feiticeiro de Terramar e A última margem. É a raiva dos oprimidos, a fúria
contra a injustiça social, a raiva vingativa que as mulheres muitas vezes são
obrigadas a sentir. Enfim aprendi a reconhecer essa raiva em mim e a tentar
expressá-la sem injustiça. Assim, Ged, o Arquimago, poderia ficar
extremamente sereno ao paralisar piratas com um aceno de seu cajado, mas
Ged, o pastor de cabras, em fúria cega, usa um forcado em seu inimigo; e,
assim, Álamo, o feiticeiro de Re Albi, é detestável de uma forma que nem
mesmo Cob é, porque Álamo ostenta todos os comportamentos que causam
essa raiva: a fobia e a aversão às mulheres, a arrogância dos poderosos e a
doentia cobiça humana pela dominação que leva à crueldade sem fim.
Não surpreende que Tehanu tenha sido rotulado como “feminista”. Mas a
palavra é usada de forma tão variada que é pior do que inútil. Se você vê o
feminismo como um preconceito vingativo contra os homens, o rótulo
permite que você descarte o livro sem o ler; se você vê o feminismo como
uma crença em propriedades superiores exclusivas das mulheres e espera que
o livro confirme essa crença, você o achará equivocado.
A conversa entre Tenar e a bruxa Musgo no quinto capítulo é um bom
exemplo. É “feminista”? Musgo despreza bastante os homens em geral,
tendo sido tratada por eles com desprezo durante toda a vida. Está tudo
bem, e considero que sua discussão sobre o poder dos homens e o poder das
mulheres seja dura e incompleta, mas interessante. Em seguida, ela faz um
elogio encantatório ao misterioso conhecimento feminino: “Quem sabe
onde uma mulher começa e onde termina? […] eu tenho raízes, tenho raízes
mais profundas que esta ilha. […] Eu volto à escuridão”; e ela conclui com
uma pergunta retórica: “Quem vai perguntar à escuridão o nome dela?”.
“Eu vou”, diz Tenar. “Vivi bastante tempo na escuridão.”
Muitas vezes vi a rapsódia de Musgo citada com aprovação. A resposta
feroz de Tenar quase sempre passa sem ser citada, despercebida. No entanto,
é uma recusa ao misticismo repleto de autoadmiração de Musgo. Toda a
vida de Tenar está nessa fala.
Tenar é três pessoas. Como a jovem Arha, vivenciou uma vida cruel,
rígida e mecânica de obediência ritual em uma comunidade de mulheres que
adoravam os Poderes das Trevas, os Inominados. Ela se libertou dessa prisão
e partiu com Ged, que pôde lhe devolver o nome verdadeiro e mostrar o
poder de saber os nomes das coisas. Depois ela deu um segundo passo, mais
obscuro, em direção à liberdade, recusando-se a permanecer com o gentil
professor, Ogion, cuja sabedoria não era exatamente aquilo de que ela
precisava. Estava farta da vida celibatária e assexuada em Atuan. Pensando
que a melhor maneira de saber onde uma mulher começa e onde termina
fosse experienciar a vida de uma mulher tão plenamente quanto pudesse e
aproveitar todos os riscos que uma mulher corre, ela partiu para casar-se,
para viver como Goha, a esposa do fazendeiro, para ter crianças e criá-las.
Agora, mais velha e tendo-se responsabilizado por uma criança ferida e
vulnerável, ela sabe que está pronta, não para vislumbres místicos vagos e
instintivos, mas para a sabedoria de que necessita e que conquistou. Além da
adoração obscura dos poderes terrenos das trevas, e além do bom senso da
vida diária, ela deseja compreensão. Experimentando o mistério da vida
cotidiana, ela anseia pela iluminação do pensamento. Tenar tem uma mente
excelente e forte. As duas pessoas mais capazes de ver e respeitar isso nela
eram Ged e Ogion. Ogion faleceu; Ged voltou para ela.
Mas Ged também precisa desesperadamente de uma nova sabedoria. Ele
perdeu muito: sua fama e posição elevada, o dom que moldou sua vida desde
que era menino, o uso de tudo que aprendeu em Roke. Como ele viverá
como um homem comum? Agora que toda a sua magia se foi, se esgotou, foi
cedida, será que ele consegue respeitar a si mesmo? Ele (como perguntou
Musgo, com sagacidade) alguma vez foi algo além de seu poder? Quando o
poder acaba, resta algo dele além de uma casca vazia?
Tenar pode saber a resposta a essa pergunta, mas para que Ged possa
respondê-la por conta própria, como deve, ele deve descobrir do que abriu
mão para se tornar um homem de poder. Isso pode ser definido como tudo,
exceto esse poder. Ou pode ser visto como um tipo diferente de
aprendizado. O tipo de aprendizado que as pessoas comuns obtêm
conversando na cozinha nas noites de inverno…
Ou é algo que está além do aprendizado: o tipo de magia que os homens
perderam, mas os dragões preservaram?
sobre a autora

© Marian Wood Kolisch

ursula k. le guin é uma das maiores autoras de ficção científica, além de


ser aclamada também por suas obras sensíveis e poderosas de não ficção,
fantasia e de ficção contemporânea. Conhecida por abordar questões de
gênero, sistemas políticos e alteridade em suas obras, recebeu prêmios
honrosos como Hugo, Nebula, National Book Award e muitos outros.
Copyright © 1990 por Ursula K. Le Guin
Copyright Renovado © 2006 por Inter-Vivos Trust para Le Guin Children
Posfácio copyright © 2012 por Ursula K. Le Guin
Ilustrações copyright © 2018 por Charles Vess
Mapas copyright © 1968 por Ursula K. Le Guin

Título original: Tehanu

Direção editorial: Victor Gomes


Acompanhamento editorial: Mariana Correia Santos e Thiago Bio
Tradução: Heci Regina Candiani
Preparação: Letícia Nakamura
Revisão: Nestor Turano Jr.
Ilustrações de capa e miolo: Charles Vess
Projeto gráfico: Eduardo Kenji Iha
Diagramação e adaptação de capa original: Mariana Souza
Diagramação de e-book: Calil Mello Serviços Editoriais

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são
produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com fatos
reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes, através de


quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


L521t Le Guin, Ursula K.
Tehanu / Ursula K. Le Guin; Tradução: Heci Regina Candiani – São Paulo : Editora Morro Branco, 2024.

ISBN: 978-65-6099-002-9

1. Literatura americana. 2. Fantasia – Romance. I. Candiani, Heci Regina. II. Título.


CDD 813

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Produzido no Brasil
2024

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