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1. ALGO GRAVE
2. RUMO AO NINHO DO FALCÃO
3. OGION
4. KALESSIN
5. PARA O MELHOR
6. PARA O PIOR
7. RATOS
8. FALCÕES
9. ENCONTRANDO PALAVRAS
10. O GOLFINHO
11. EM CASA
12. INVERNO
13. O MESTRE
14. TEHANU
POSFÁCIO
SOBRE A AUTORA
apenas no silêncio a palavra,
apenas nas trevas a luz,
apenas na morte vida:
o voo do falcão reluz
no céu límpido.
— a criação de éa
capítulo 1
algo grave
ogion
***
kalessin
para o melhor
E le jazia como um morto, mas não estava morto. Onde estivera? O que
enfrentara? Naquela noite, à luz da fogueira, Tenar lhe despiu as roupas
manchadas, gastas e endurecidas pelo suor. Ela o banhou e o deixou deitado,
nu, entre o lençol de linho e o cobertor macio e pesado de lã de cabra.
Embora fosse um homem baixo e esguio, ele havia sido robusto, musculoso;
agora estava magro como se estivesse esgotado até os ossos, debilitado,
frágil. Até as cicatrizes que lhe sulcavam o ombro e o lado esquerdo do
rosto, da têmpora ao queixo, pareciam atenuadas, prateadas. E o cabelo dele
estava grisalho.
Estou cansada de chorar mortes, pensou Tenar. Cansada de chorar mortes,
cansada do luto. Não vou me enlutar por ele! Ele não veio até mim montando o
dragão? Certa vez, eu quis matá-lo, continuou a pensar. Agora, se eu puder, vou
fazê-lo viver. Ela o encarou com olhos desafiadores e impiedosos.
— Quem de nós salvou o outro do Labirinto, Ged?
Sem ouvir e imóvel, ele dormia. Tenar estava muito cansada. Banhou-se
na água que aquecera para lavá-lo e deitou-se na cama, ao lado do silêncio
leve, quente e sedoso que era Therru adormecida. Tenar dormiu e seu sono
se estendeu para um espaço amplo, com um vento tempestuoso e uma névoa
de tons rosados e dourados. Ela voava. Sua voz clamava:
— Kalessin!
Uma voz respondeu, chamando dos abismos de luz.
***
***
***
Ela olhava dentro da casa de quando em quando para ver se Gavião ainda
dormia. Naquele instante, ela fez isso. Quando voltou a se sentar com
Musgo, sem querer retornar à conversa que estavam tendo, porque a mulher
mais velha parecia circunspecta e mal-humorada, Tenar falou:
— Hoje de manhã, quando acordei, senti, ah, como se um vento novo
estivesse soprando. Uma mudança. Talvez só do clima. Você sentiu isso?
Mas Musgo não queria afirmar ou negar.
— Muitos ventos sopram aqui em Overfell, alguns bons, outros ruins.
Alguns trazem nuvens, alguns trazem bom tempo, e alguns trazem notícias
para quem é capaz de ouvi-las, mas quem não quer ouvir não consegue
ouvir. Quem sou eu para saber, uma velha sem o estudo da magia, sem o
estudo dos livros? Todo o meu estudo está na terra, na terra escura. Abaixo
dos pés deles, dos orgulhosos. Abaixo dos pés deles, dos senhores e magos
orgulhosos. Por que deveriam olhar para baixo, os estudados? O que sabe
uma bruxa velha?
Ela seria uma inimiga formidável, considerou Tenar, e era uma amiga
difícil.
— Tia — disse, pegando um junco —, cresci entre mulheres. Só
mulheres. Nas terras karginesas, no extremo leste, em Atuan. Fui tirada da
minha família ainda criança para ser criada como sacerdotisa em um lugar
no deserto. Não sei que nome tem, porque na nossa língua chamávamos só
assim, o lugar. O único lugar que eu conhecia. Havia soldados vigiando, mas
eles não podiam vir para dentro das muralhas. E nós não podíamos ir para
fora das muralhas. Só em grupo, todas mulheres e meninas, com eunucos
nos vigiando, mantendo os homens fora de vista.
— O que você disse?
— Eunucos? — Tenar usara a palavra karginesa sem pensar. — Homens
castrados — explicou.
A bruxa encarou e disse:
— Tsekh! — Fez o gesto para evitar o mal. Sugou os lábios.
Surpreendera-se com o próprio ressentimento.
— Uma dessas pessoas foi o que tive lá de mais parecido com uma
mãe… Mas, você entende, tia, nunca vi um homem até ser uma mulher
adulta. Eram só meninas e mulheres. Ainda assim, eu não sabia o que são as
mulheres, porque as mulheres eram tudo o que eu conhecia. Como os
homens que vivem entre homens, marinheiros, soldados e magos em
Roke… Eles sabem o que são os homens? Como podem saber se nunca
falam com uma mulher?
— Pegam e cortam eles como se fossem carneiros e bodes — perguntou
Musgo —, assim, de repente, com uma faca de castração?
O horror, o macabro e um lampejo de vingança tinham vencido tanto a
raiva quanto a razão. Musgo não queria abordar nenhum assunto além do
dos eunucos.
Tenar não podia lhe contar muita coisa. Ela percebeu que nunca havia
pensado sobre o tema. Quando era menina, em Atuan, havia homens
castrados; e um deles a adorava ternamente, e ela o adorava; e ela o matou
para fugir dele. Depois foi para o Arquipélago, onde não havia eunucos, e se
esqueceu deles, afundou-os na escuridão junto ao corpo de Manan.
— Acho — disse ela, tentando satisfazer a ânsia de Musgo por detalhes
— que pegam os meninos e… — Mas ela se deteve. As mãos dela pararam
de se mover. — Assim como foi com Therru — continuou ela depois de
uma longa pausa. — Para que serve uma criança? Para que serve? Para ser
usada. Ser estuprada, ser castrada… Escute, Musgo. Quando eu morava nos
lugares escuros, era isso o que faziam lá. Quando cheguei aqui, achei que iria
entrar na luz. Aprendi as palavras verdadeiras. Tive meu marido, meus
filhos, vivi bem. Em plena luz do dia. E em plena luz do dia eles fizeram
aquilo… com a criança. Nas campinas à beira do rio. O mesmo rio que surge
na nascente onde Ogion nomeou minha filha. À luz do sol. Estou tentando
descobrir onde posso viver, Musgo. Entende o que quero dizer? O que estou
tentando dizer?
— Ora, ora — falou a mulher mais velha. Depois de algum tempo: —
Minha querida, já existe sofrimento o bastante no mundo sem procurar por
ele. — Vendo as mãos de Tenar tremerem enquanto ela tentava separar um
junco resistente, Musgo repetiu: — Não vá cortar o dedão nessas coisas,
minha querida.
***
Somente no dia seguinte Ged acordou. Musgo, que era muito hábil, embora
terrivelmente anti-higiênica como enfermeira, conseguira lhe dar um pouco
de caldo de carne com a colher.
— Morrendo de fome — disse ela — e seco de sede. Onde quer que ele
estivesse, lá não se comia e bebia muito. — E depois de avaliá-lo de novo: —
Já deveria ter partido há muito tempo. Eles ficam fracos, entende, não
conseguem nem beber, apesar de ser tudo aquilo de que precisam. Conheço
um homem grande e forte que morreu assim. Em poucos dias, reduzido a
uma sombra, igualzinho. — Mas, com uma paciência implacável, Musgo lhe
deu algumas colheradas de sua mistura de carne e ervas. — Vamos ver agora
— falou. — Já é tarde demais, acho. Ele está partindo. — A bruxa falava
sem lamentar, talvez com satisfação. O homem não era nada para ela; uma
morte era um acontecimento. Talvez ela pudesse enterrar esse mago. Eles
não a deixaram enterrar o velho.
No dia seguinte, quando Tenar estava passando unguento em suas mãos,
ele acordou. Deve ter ficado montado por muito tempo nas costas de
Kalessin, pois a compressão nas escamas férreas arrancou a pele de suas
palmas e a parte interna dos dedos estava cortada e recortada. Dormindo, ele
mantinha as mãos cerradas como se não quisessem soltar o dragão ausente.
Ela teve de forçar os dedos de Ged a se abrir, com delicadeza, para lavar e
ungir as feridas. Enquanto o fazia, ele gritou, assustando-se e estendendo a
mão, como se sentisse que caía. Seus olhos se abriram. Ela falou baixinho.
Ele a fitou.
— Tenar — disse Ged, sem sorrir, em um reconhecimento puro para
além da emoção. A mulher se encheu de pura satisfação, como a de um
sabor doce ou de uma flor, porque ainda havia um homem vivo que sabia o
nome dela, e este era aquele homem.
Ela se inclinou para a frente e o beijou na face.
— Fique quieto — ordenou ela. — Deixe-me terminar isto aqui. — Ele
obedeceu, logo retornando ao sono, dessa vez com as mãos abertas e
relaxadas.
Mais tarde, enquanto caía no sono ao lado de Therru, à noite, ela pensou:
Mas nunca o beijei. O pensamento a abalou. No início, ela não acreditou.
Com certeza em tantos anos… Não nas Tumbas, mas depois, viajando
juntos pelas montanhas… No Visão Ampla, quando navegaram juntos até
Havnor… Quando ele a trouxe ali para Gont…?
Não. Ogion nunca a beijou, nem ela o beijou. Ele a chamara de Filha e a
amara, mas nunca encostara nela; e ela, criada como uma sacerdotisa
solitária, intocada, uma criatura sagrada, não procurava o contato, ou não
sabia que o procurava. Talvez apoiasse a testa ou a bochecha por um
momento na mão aberta de Ogion, e ele talvez tenha acariciado o cabelo
dela, uma vez, muito levemente.
E quanto a Ged, nem isso.
Será que nunca pensei nisso?, perguntou-se em uma espécie de espanto
incrédulo.
Não sabia. Enquanto tentava pensar a respeito, um horror, uma sensação
de transgressão, tomou conta dela com muita força e depois desapareceu,
incompreensível. Seus lábios conheciam a pele ligeiramente áspera, seca e
fria do rosto dele, perto da boca, do lado direito, e só esse conhecimento
tinha importância, tinha peso.
Ela dormiu. Sonhou que uma voz a chamava:
— Tenar! Tenar!
Ela respondia, gritando como uma ave marinha, voando sob a luz acima
do mar; mas não sabia qual nome chamava.
***
***
Estavam sentados à mesa, após terminarem o jantar. Therru tinha saído para
brincar.
— Foi de Selidor que você veio, então, montado em Kalessin?
Quando ela repetiu o nome do dragão, foi o próprio nome quem falou,
moldando a boca de Tenar de acordo com seu formato e som,
transformando o hálito dela em um fogo suave.
Ao ouvir o nome, Ged lhe ergueu os olhos, um olhar intenso que a fez
perceber que ele normalmente não a fitava diretamente. O homem
concordou com a cabeça. Depois, com uma honestidade forçada, corrigiu a
concordância:
— De Selidor para Roke. E depois de Roke para Gont.
Mil quilômetros? Dez mil quilômetros? Ela não fazia ideia. Tinha visto
os grandes mapas dos tesouros de Havnor, mas ninguém lhe ensinara os
números e as distâncias. Tão longe quanto Selidor… Será que o voo de um
dragão podia ser medido em quilômetros?
— Ged — falou Tenar, usando o nome verdadeiro dele, uma vez que
estavam sozinhos —, sei que você passou por muita dor e perigo. E se você
não quiser, ou se talvez não puder, não deve me contar… Mas, se eu
soubesse, se soubesse alguma coisa, talvez eu seria de maior serventia para
você. Eu gostaria disso. E logo eles virão de Roke procurando-o, enviando
um navio atrás do Arquimago, sei lá, enviando um dragão atrás de você! E
você irá embora de novo. E nunca teremos conversado. — Ao falar, a mulher
cerrou as mãos diante da dissimulação de seu tom e de suas palavras. Fazer
piada sobre o dragão… Choramingar como uma esposa acusadora!
Ged estava olhando para baixo, para a mesa, taciturno e resistente, como
um fazendeiro depois de um dia difícil no campo enfrentando alguma
gritaria doméstica.
— Ninguém virá de Roke, eu acho — falou, e isso lhe custou tanto
esforço que ele demorou um pouco até continuar: — Dê um pouco de
tempo para mim.
Ela considerou que era tudo o que o feiticeiro diria e respondeu:
— Sim, claro. Sinto muito.
Já estava se levantando para tirar a mesa quando ele disse, ainda mirando
para baixo, confuso:
— Agora o tenho.
Então ele também se levantou, levou o prato até a pia e terminou de tirar
a mesa. Lavou a louça enquanto Tenar guardava a comida. Aquilo despertou
o interesse dela. Vinha comparando-o com Pederneira; só que Pederneira
nunca lavou um prato na vida. Era trabalho de mulher. Mas Ged e Ogion
moraram ali, solteiros, sem mulheres; não havia mulheres em nenhum lugar
onde Ged morou; por isso, ele fazia o “trabalho de mulher” e não se
importava com isso. Seria uma pena, imaginou ela, se o feiticeiro pensasse a
respeito, se começasse a temer que a dignidade dele estava presa a um pano
de prato.
Ninguém veio de Roke à sua procura. Quando conversaram a esse
respeito, mal tinha dado tempo de algum navio chegar, exceto um que
tivesse o vento mágico em suas velas durante todo o percurso; mas os dias
foram passando e não houve nenhuma mensagem ou sinal para ele. Parecia
estranho para ela que deixassem seu arquimago passar tanto tempo
sossegado. Ged devia ter proibido que lhe enviassem mensagens; ou talvez
tivesse se escondido ali com magia, para que não soubessem onde ele estava
e para que não pudesse ser reconhecido. Porque os aldeões curiosamente
ainda lhe davam pouca atenção.
O fato de que não veio ninguém da mansão do Senhor de Re Albi era
menos surpreendente. Os senhores daquela casa nunca se deram bem com
Ogion. As mulheres da casa eram, segundo diziam as histórias da aldeia,
adeptas das artes das trevas. Uma tinha se casado com um senhor do norte
que, afirmavam, enterrou-a viva debaixo de uma pedra; outra havia
interferido na criança ainda não nascida em seu ventre, tentando
transformá-la em uma criatura poderosa e, de fato, a criança balbuciou
palavras ao nascer, mas não tinha ossos.
— Como um saquinho de pele — sussurrou a parteira da aldeia —, um
saquinho com olhos e voz. O bebê nunca mamou, mas falou em uma língua
estranha e morreu…
Qualquer que fosse a verdade de tais histórias, os Senhores de Re Albi
sempre se mantiveram distantes. Amiga do mago Gavião, pupila do mago
Ogion, portadora do Anel de Erreth-Akbe para Havnor, Tenar poderia, ao
que parece, ter sido convidada a ficar na mansão quando pisou em Re Albi
pela primeira vez; mas não foi. Pelo contrário, para sua satisfação, morou
sozinha, em uma cabaninha que pertencia ao tecelão da aldeia, Flabelo, e
raramente via as pessoas da grande casa, sempre a distância. Musgo lhe
contou que agora não havia nenhuma senhora na casa, apenas o velho
senhor, já muito velho, o neto dele e o jovem feiticeiro, chamado Álamo, que
fora contratado da Escola de Roke.
Depois que Ogion foi enterrado, com o talismã de tia Musgo na mão,
sob a faia junto ao caminho da montanha, Tenar não viu mais Álamo. Por
mais estranho que parecesse, ele não sabia que o Arquimago de Terramar
estava em sua própria aldeia ou, se sabia, se manteve afastado por algum
motivo. Por sua vez, o feiticeiro do Porto de Gont, que também participara
do enterro de Ogion, da mesma maneira não regressou. Mesmo que não
soubesse que Ged estava ali, ele certamente sabia quem era ela, a Senhora
Branca, que usara o Anel de Erreth-Akbe no punho, que completara a Runa
da Paz… E há quantos anos foi isso, sua velha!, disse a si mesma. É isso que lhe
aperta o calo?
Mesmo assim, foi ela quem lhes revelou o nome verdadeiro de Ogion.
Parecia que lhe deviam alguma cortesia.
Mas os feiticeiros, os propriamente ditos, nada tinham a ver com
cortesia. Eram homens de poder. Só lidavam com o poder, e que poder
Tenar tinha agora? Ou que alguma vez teve? Quando menina, sacerdotisa,
fora um receptáculo: o poder dos refúgios sombrios passava por ela, usava-a,
deixava-a vazia e intocada. Quando jovem, aprendeu um conhecimento
poderoso com um homem poderoso e o deixou de lado, ignorou-o e não
tocou nele. Quando mulher adulta, ela tinha escolhido e possuía os poderes
de uma mulher em sua época, e o tempo passou; sua condição de esposa e
mãe chegou ao fim. Não havia nada nela, nenhum poder que alguém
reconhecesse.
Mas um dragão falou com ela. “Eu sou Kalessin”, disse ele, ao que ela
respondeu: “Eu sou Tenar”.
“O que é um Senhor dos Dragões?”, ela havia perguntado a Ged, no
refúgio sombrio, o Labirinto, tentando negar o poder dele, tentando fazer
com que ele reconhecesse o dela. Ged havia respondido com uma
honestidade que a desarmou para sempre: “Um homem com quem os
dragões vão conversar”.
Então, ela era uma mulher com quem os dragões conversariam. Seria essa
a novidade, o conhecimento acumulado, a semente de luz que ela sentiu em
si mesma ao acordar embaixo da janelinha que dava para o oeste?
Poucos dias depois daquela breve conversa à mesa, ela estava limpando o
canteiro da horta de Ogion, salvando das ervas daninhas do verão as cebolas
que ele plantara na primavera. Ged passou pelo portão da cerca alta que
mantinha as cabras afastadas e começou a limpar a outra extremidade da
carreira. Trabalhou um pouco e depois se sentou, olhando para as mãos.
— Elas precisam de tempo para sarar — explicou Tenar, com brandura.
Ele assentiu.
Os pés altos de feijão na carreira seguinte floresciam. Tinham um aroma
muito doce. Ele estava sentado, com os braços finos apoiados nos joelhos,
fitando o emaranhado ensolarado de trepadeiras, flores e vagens de feijão
penduradas. Tenar falou enquanto trabalhava:
— Quando Aihal morreu, ele disse: “Tudo mudou…”. E desde a sua
morte, tenho chorado por ele, tenho sofrido, mas algo suspende minha dor.
Algo está para nascer… foi libertado. Eu sei, quando estou dormindo e
assim que acordo, que algo mudou.
— Sim — concordou ele. — Um mal acabou. E… — Depois de um
longo silêncio, ele recomeçou. Ele não olhou para ela, mas a voz dele soou,
pela primeira vez, como a voz de que ela se lembrava, calma, baixa, com o
seco sotaque gontês. — Você se lembra, Tenar, de quando chegamos a
Havnor?
Como eu esqueceria?, disse o coração dela, mas ficou em silêncio por medo
de que Ged voltasse ao silêncio.
— Atracamos o Visão Ampla e subimos até o cais… Os degraus são de
mármore. E as pessoas, todas as pessoas… E você ergueu o braço para lhes
mostrar o Anel…
“E segurei sua mão: fiquei aterrorizado além do terror: os rostos, as
vozes, as cores, as torres, as bandeiras e estandartes, o ouro e a prata e a
música, e tudo que eu conhecia era você… No mundo inteiro, tudo que eu
conhecia era você, ali ao meu lado enquanto caminhávamos…
“Os administradores da Casa Real nos conduziram ao pé da Torre de
Erreth-Akbe, por ruas lotadas de gente. E subimos os degraus altos, nós dois
sozinhos. Você lembra?”
Ela assentiu. Apoiou as mãos na terra que estava capinando, sentindo o
frescor granulado.
— Eu abri a porta. Era pesada, travou no começo. E nós entramos. Você
lembra?
Era como se ele pedisse confirmação… Isso aconteceu? Eu lembro?
— Era um salão grande de pé-direito alto — respondeu Tenar. — O
lugar me fez pensar no meu Salão, onde fui devorada, mas apenas por ser
muito alto. A luz vinha das janelas na parte de cima da torre. Raios de luz
solar se entrecruzavam como espadas.
— E o trono — completou Ged.
— O trono, sim, todo dourado e carmesim. Mas vazio. Assim como o
trono no Salão de Atuan.
— Agora não — disse ele, e a fitou através dos brotos verdes de cebola.
O rosto de Ged estava tenso, saudoso, como se nomeasse uma alegria que
não conseguia apreender. — Existe um rei em Havnor — continuou —, no
centro do mundo. A profecia foi cumprida. A Runa foi restaurada, e o
mundo está intacto. Os dias de paz chegaram. Ele… — Ged parou de falar e
olhou para baixo, cerrando as mãos. — Ele me carregou da morte para a
vida. Arren de Enlad. Lebannen das canções a serem entoadas. Ele adotou
seu nome verdadeiro, Lebannen, Rei de Terramar.
— É isso, então? — perguntou ela, ajoelhando-se e observando-o. — A
alegria, a entrada na luz?
Ele não respondeu.
Um rei em Havnor, pensou ela. Disse em voz alta:
— Um rei em Havnor!
A visão da linda cidade a tomou, as ruas largas, as torres de mármore, os
telhados feitos de telhas e bronze, os navios de velas brancas no porto, a
maravilhosa sala do trono onde a luz do sol descia como espadas, a riqueza, a
dignidade e a harmonia, a ordem ali conservada. Daquele centro brilhante,
Tenar viu a ordem se espalhar como anéis perfeitos na água, como a linha
reta de uma rua pavimentada ou de um navio navegando contra o vento:
seguindo na direção que deveria seguir, um canal para a paz.
— Você se saiu bem, meu amigo — comentou ela.
Ged fez um gesto sutil, como se quisesse interromper as palavras dela, e
depois se virou, pressionando a mão sobre a boca. Tenar não suportava ver as
lágrimas dele. Inclinou-se para trabalhar. Arrancou uma erva daninha, e
outra, cuja raiz dura se partiu. Ela cavou com as mãos, à procura da raiz da
erva daninha no solo áspero, na escuridão da terra.
— Goha — chamou a voz fraca e entrecortada de Therru junto ao
portão, e Tenar a olhou. O meio rosto da criança a encarava diretamente,
tanto pelo olho que via quanto pelo olho cego. Devo lhe dizer que existe um
rei em Havnor?, pensou Tenar.
Ela se levantou e foi até o portão a fim de poupar Therru de tentar fazer-
se ouvir. Enquanto esteve inconsciente no fogo, disse Faia, a criança havia
inspirado fogo. “A voz dela está queimada”, explicou ele.
— Eu estava vigiando Tetê — sussurrou Therru —, mas ela saiu do pasto
de giesta. Não consigo achar ela.
Foi o discurso mais longo que ela já proferira. Tremia por ter corrido e
por tentar não chorar. Não podemos ficar todos chorando, disse Tenar a si
mesma. É estúpido, não podemos permitir isto!
— Gavião! — exclamou ela, virando-se. — Uma cabra escapou.
Ele se levantou de imediato e foi até o portão.
— Procure no reservatório da fonte — sugeriu. Ele olhou para Therru
como se não visse suas cicatrizes horríveis, como se mal a visse: era uma
criança que tinha perdido uma cabra, que precisava encontrar uma cabra. Foi
a cabra que ele viu. — Ou ela vai se juntar ao rebanho da aldeia —
completou ele.
Therru já estava correndo rumo ao reservatório da fonte.
— Ela é sua filha? — perguntou ele a Tenar. Ele nunca tinha dito nem
uma palavra sobre a criança e, por um instante, tudo em que Tenar
conseguiu pensar foi como os homens eram estranhos.
— Não, nem minha neta. Mas é minha criança — respondeu. O que a
fez zombar dele, escarnecer dele, de novo?
Ele saiu pelo portão no mesmo momento que Tetê corria na direção
deles, um relâmpago marrom e branco, seguido bem de longe por Therru.
— Oi! — gritou Ged de repente.
Com um salto, ele bloqueou o caminho da cabra, conduzindo-a
diretamente ao portão aberto e aos braços de Tenar. Ela conseguiu agarrar a
coleira de couro frouxa de Tetê. A cabra ficou imediatamente imóvel, meiga
como qualquer cordeiro, encarando Tenar com um dos olhos amarelos e,
com o outro, observando as carreiras de cebola.
— Fora — ordenou Tenar, conduzindo-a para o lado externo do paraíso
das cabras e para o pasto mais pedregoso, no qual ela deveria estar.
Ged havia se sentado no chão, tão sem fôlego quanto Therru, ou mais,
pois ofegava e estava evidentemente tonto; mas pelo menos não chorava.
Pode confiar em uma cabra para estragar qualquer coisa.
— Érica não deveria ter dito para você vigiar Tetê — reclamou Tenar a
Therru. — Ninguém consegue vigiar Tetê. Se ela fugir de novo, avise Érica e
não se preocupe. Combinado?
Therru assentiu. Estava olhando para Ged. Ela raramente olhava as
pessoas, e mais raramente ainda no caso dos homens, exceto de relance; mas
Therru o contemplava fixamente, a cabeça inclinada como a de um pardal.
Será que uma heroína estava surgindo?
capítulo 6
para o pior
***
Ela estava penteando a cabra preta para remover o subpelo que fiaria e
levaria a um tecelão a fim de transformar em tecido, a sedosa “felpa” da Ilha
de Gont. A velha cabra preta já fora penteada mil vezes e gostava,
inclinando-se para sentir os dentes do pente de arame. As cristas negras e
cinzentas transformavam-se em uma nuvem macia e suja, a qual Tenar
finalmente enfiava em uma sacola de rede de pesca; ela tirou algumas
rebarbas das franjas das orelhas da cabra como forma de agradecimento e
deu um tapinha amigável no flanco bojudo.
— Bááá! — baliu a cabra, e saiu trotando.
Tenar saiu do pasto cercado e deu a volta pela frente da casa, olhando
para o prado em busca de se certificar de que Therru ainda estava brincando
ali.
Musgo havia mostrado à criança como tecer cestos de grama e, por mais
desajeitada que fosse sua mão mutilada, Therru começou a entender o
truque. Estava sentada na grama do prado com o trabalho no colo, mas não
estava trabalhando. Estava observando Gavião.
Ele estava bem longe, perto da beira do penhasco. De costas, sem saber
que alguém o fitava, pois observava uma ave, uma jovem fêmea de falcão-
peneireiro; e ela, por sua vez, observava a pequena presa que avistara na
grama. Ficou no ar batendo as asas, querendo espantar o rato ou a ratazana,
assustá-la e fazê-la correr para o ninho. O homem ficou ali, igualmente
decidido, igualmente faminto, contemplando a ave. Devagar, ele ergueu a
mão direita, mantendo-a na altura do antebraço, e pareceu falar, embora o
vento dispersasse suas palavras. O pássaro se virou, soltando seu grito alto,
áspero e agudo, e disparou em direção às florestas.
O homem abaixou o braço e ficou parado, observando a ave. A criança e
a mulher estavam imóveis. Só a ave voava, livre.
***
— Ele veio me encontrar uma vez como um falcão, um falcão peregrino —
dissera Ogion, diante da fogueira, certo dia de inverno. Estava contando a
ela sobre os feitiços de Transformação, as mutações, o mago Bordger que se
tornou um urso. — Ele voou até mim, até meu punho, vindo do norte e do
oeste. Eu o trouxe perto do fogo, aqui dentro. Ele não conseguia falar. Como
eu o conhecia, pude ajudá-lo; ele poderia se despir do falcão e ser um
homem outra vez. Mas sempre houve algum falcão dentro dele. Chamavam-
no de Gavião em sua aldeia porque os falcões selvagens vinham até ele,
segundo contou. Quem somos nós? O que é ser homem? Antes que ele
recebesse seu nome, antes que ele tivesse conhecimento, antes que tivesse
poder, o falcão estava nele, e o homem, e o mago, e muito mais… Ele era o
que não podemos nomear. Todos nós também somos.
A garota sentada junto à lareira, mirando o fogo, ouvindo, viu o falcão;
viu o homem; viu as aves se aproximarem dele, obedecendo à sua palavra, ao
nome que ele lhes dava, batendo as asas para segurar seu braço com suas
garras ferozes; viu a si mesma como o falcão, a ave selvagem.
capítulo 7
ratos
***
Depois que o negociante foi embora, sem acordo, Tenar ficou inquieta. Ela
lhe disse: “Não sei se nós vamos vender”, e foi uma tolice dizer nós, em vez
de eu, sendo que ele não pediu para falar com Gavião, nem mesmo fez
alusão ao feiticeiro, como era mais do que provável quando um homem
negociava com uma mulher, especialmente quando ela recusava sua oferta.
Ela não sabia o que pensavam de Gavião, da presença e da não presença
dele na aldeia. Ogion, distante, silencioso e, de certa forma, temido, tinha
sido o mago e conterrâneo deles na aldeia. Gavião talvez os orgulhasse como
nome, o Arquimago que viveu certo tempo em Re Albi e proporcionou
feitos maravilhosos, enganando um dragão nas Ilhas Noventa, recuperando
o Anel de Erreth-Akbe de um lugar ou outro; mas não o conheciam. Nem
Ged os conhecia. Ele não fora à aldeia desde que chegou, apenas à floresta, à
natureza. Tenar não tinha pensado a respeito antes, mas o mago evitava a
aldeia com a mesma determinação de Therru.
Deviam ter falado sobre ele. Era uma aldeia e as pessoas conversavam.
Mas fofocas sobre as realizações de feiticeiros e magos não iam longe. O
assunto era muito inquietante, a vida dos homens de poder, muito diferente
da vida comum.
— É assim mesmo. — Tenar ouvia os aldeões do Vale Central
aconselharem quando alguém começava a especular com muita liberdade
sobre um manipulador do clima que estava de visita ou sobre o próprio
feiticeiro local, Faia. — É assim mesmo. Ele segue pelo próprio caminho,
não pelo nosso.
Quanto a ela, o fato de ter permanecido ali, para cuidar e servir àquele
homem de poder, não lhes pareceria um assunto questionável; mais uma vez,
era um caso de “É assim mesmo”. Ela própria não frequentava muito a
aldeia; com ela, não eram amigáveis nem hostis. Tenar já tinha morado ali,
na casa de Flabelo, o tecelão, e era protegida do velho mago, o qual havia
enviado Toutinegra ao outro lado da montanha para buscá-la; tudo isso era
verdade. Mas aí a mulher chegou com a criança, que era horrível de se ver, e
quem andaria com ela à luz do dia por escolha própria? Que tipo de mulher
seria aprendiz de um feiticeiro e enfermeira de um feiticeiro? Com certeza
havia bruxaria nisso, e estrangeira ainda por cima. Contudo, mesmo assim,
ela era esposa de um rico fazendeiro lá no Vale Central; embora ele estivesse
morto, e ela, viúva. Bem, quem poderia entender os costumes dessa gente da
feitiçaria? É assim mesmo, é melhor que seja assim mesmo…
Ela encontrou o Arquimago de Terramar quando ele passou pela cerca
do jardim.
— Dizem que chegou um navio da cidade de Havnor — comentou
Tenar.
Ele se deteve. Fez um movimento, rapidamente controlado, mas tinha
sido o começo de uma meia-volta para correr, para disparar e correr como
um rato corre de um falcão.
— Ged! — interpelou ela. — O que foi?
— Não consigo — respondeu ele. — Não consigo ficar cara a cara com
eles.
— Eles quem?
— Os homens dele. Do rei.
O rosto tinha adquirido um tom acinzentado, como quando Ged chegou
ali à procura de um lugar para se esconder.
Seu terror era tão urgente e indefeso que Tenar só pensava em como
poupá-lo.
— Não precisa se encontrar com eles. Se alguém vier, eu o mando
embora. Agora, volte para casa. Você não comeu o dia todo.
— Tinha um homem aqui — declarou ele.
— Toutinegra, avaliando o preço das cabras. Mandei ele embora. Vamos!
Ged a acompanhou e, quando estavam dentro de casa, ela fechou a porta.
— Eles, com certeza, não poderiam fazer mal a você, Ged. Por que
teriam essa intenção?
Ele se sentou à mesa e balançou a cabeça, entorpecido.
— Não, não.
— Sabem que você está aqui?
— Não sei.
— De que você tem medo? — indagou ela, não com impaciência, mas
com certa autoridade racional.
Ged colocou as mãos no rosto, esfregando as têmporas e a testa, olhando
para baixo.
— Eu era… — disse ele. — Não sou…
Foi tudo o que conseguiu dizer. Tenar o interrompeu, dizendo:
— Tudo bem, está tudo bem. — Ela não ousou encostar nele para não
piorar sua humilhação com qualquer sinal de pena. Estava com raiva dele e
por ele. Continuou: — Não é da conta deles onde você está, ou quem você é,
ou o que escolhe fazer ou deixar de fazer! Se vierem se intrometer, podem ir
embora curiosos. — Essa era uma expressão de Cotovia. Tenar sentiu uma
pontada de saudade da companhia de uma mulher comum e sensata. — De
qualquer forma, o navio pode não ter nada a ver com você. Podem estar
caçando piratas onde moram. Também será bom quando o rei começar a
fazer isso… Encontrei um pouco de vinho no fundo do armário, algumas
garrafas, me pergunto há quanto tempo Ogion vinha armazenando isso.
Acho que nós dois precisamos de um copo de vinho. E um pouco de pão e
queijo. A pequena jantou e saiu com Érica em busca de rãs. Quem sabe
teremos pernas de rã para a ceia. Mas, por enquanto, é pão e queijo. E vinho.
Fico imaginando de onde são, quem as trouxe para Ogion e quantos anos
têm?
Ela continuou a falar, em uma tagarelice de mulher, poupando-o de
precisar responder ou interpretar mal qualquer silêncio, até que superasse a
crise de vergonha, comesse um pouco e bebesse um copo do vinho tinto
velho e suave.
— É melhor eu ir embora, Tenar — ponderou ele. — Até aprender a ser
o que sou agora.
— Ir para onde?
— Para o topo da montanha.
— Perambular… como Ogion? — Ela o fitou. Lembrou-se de ter
caminhado com Ged pelas estradas de Atuan, zombando dele: “Os
feiticeiros costumam pedir esmolas?”. Respondeu: “Sim, mas eles tentam
oferecer algo em troca”. Tenar sugeriu com cautela: — Você poderia
trabalhar por algum tempo como manipulador do clima ou descobridor? —
E encheu o copo dele.
Ged sacudiu a cabeça. Bebeu o vinho e desviou o olhar.
— Não — respondeu. — Nada disso. Nada disso.
Ela não acreditou. Quis se rebelar, desmenti-lo, dizer-lhe: “Como não,
como você pode dizer isso… Como se você tivesse esquecido tudo o que
sabe, tudo o que aprendeu com Ogion, em Roke e nas suas viagens! Você
não pode ter esquecido as palavras, os nomes, as práticas de sua arte. Você
aprendeu, você conquistou seu poder!”. Tenar se conteve para não dizer isso,
mas murmurou:
— Não entendo. Como pode tudo…
— Um copo d’água — pediu ele, inclinando um pouco o copo como se
fosse despejá-lo. Depois de um instante: — O que não entendo é por que
ele me trouxe de volta. A bondade dos jovens é crueldade… Por isso estou
aqui, tenho de seguir em frente até poder voltar.
Tenar não sabia com clareza o que ele queria dizer, mas ouviu um tom de
culpa ou reclamação que, nele, a chocava e irritava. Falou em tom hostil:
— Foi Kalessin quem trouxe você aqui.
Estava escuro na casa com a porta fechada e apenas a janelinha oeste
deixava entrar a luz do fim da tarde. Ela não conseguia distinguir a
expressão do homem; mas logo ele lhe ergueu o copo com um sorriso
sombrio e bebeu.
— Este vinho — comentou ele. — Algum grande mercador ou pirata
deve ter trazido para Ogion. Nunca bebi igual. Nem mesmo em Havnor. —
Virou o copo bojudo nas mãos, contemplando-o. — Vou dar a mim algum
nome — disse — e atravessar a montanha até foz do Ar e a região da
Floresta do Leste, de onde vim. Vão estar envolvidos com a preparação do
feno. Sempre tem trabalho no feno e na colheita.
Tenar não sabia como responder. Com aparência frágil e doente, ele só
conseguiria esse tipo de trabalho por caridade ou por crueldade; e se
conseguisse, não seria capaz de o executar.
— As estradas não são mais como eram — alertou ela. — Nos últimos
anos, ficaram cheias de ladrões e gangues por toda parte. Ralé estrangeira,
como diz meu amigo Toutinegra. Mas não é mais seguro ir sozinho.
Olhando para ele sob a luz do crepúsculo para ver como reagia, Tenar se
perguntou por um instante como era nunca ter temido um ser humano…
Como era ter de aprender a ter medo.
— Ainda assim, Ogion ia… — começou a falar Ged, mas depois fechou
a boca; lembrou-se de que Ogion era um mago.
— Na parte sul da ilha — explicou Tenar — há muito pastoreio.
Ovelhas, cabras, gado. Eles os levam para as colinas antes da Longa Dança e
os deixam pastar ali até as chuvas. Estão sempre precisando de pastores. —
Ela bebeu um gole de vinho. Foi como se o nome do dragão estivesse em
sua boca. — Mas por que você não pode simplesmente ficar aqui?
— Não na casa de Ogion. É o primeiro lugar a que virão.
— Bem, e se vierem? O que vão querer de você?
— Que eu seja o que fui.
A desolação na voz dele deu calafrios em Tenar.
Ela ficou em silêncio, tentando lembrar como era ter sido poderosa, a
Devorada, a Sacerdotisa Una das Tumbas de Atuan, e depois perder isso,
jogar tudo fora, tornar-se apenas Tenar, apenas ela mesma. Ela pensou em
como era ter sido uma mulher no auge da vida, com crianças e um homem, e
depois perder tudo isso, ficando velha e viúva, impotente. Mesmo assim, ela
sentia que não compreendia a vergonha de Ged, a agonia da humilhação.
Talvez apenas um homem pudesse sentir aquilo. Uma mulher se acostumava
com a vergonha.
Ou talvez tia Musgo estivesse certa e, quando a carne acabava, a casca
estava vazia.
Ideias de bruxa, ela pensou. Para convencer Ged e a si mesma, e também
porque o vinho suave e quente acelerou seu raciocínio e sua língua, ela disse:
— Sabe, pensei… Quando Ogion me ensinou e não quis continuar, mas
fui, encontrei meu fazendeiro e me casei com ele… Pensei, quando fiz isso,
pensei, no dia do meu casamento: “Ged vai ficar furioso quando souber
disso!”. — Ela ria enquanto falava.
— Eu fiquei — admitiu ele.
Ela esperou.
O homem disse:
— Fiquei desapontado.
— Furioso — sugeriu ela.
— Furioso — repetiu ele.
Ged encheu o copo de Tenar.
— Eu tinha o poder de reconhecer o poder naquela época — explicou
ele. — E você… você cintilava naquele lugar terrível, o Labirinto, naquela
escuridão…
— Ótimo, então me diga: o que eu deveria ter feito com o meu poder e o
conhecimento que Ogion tentou me ensinar?
— Usá-lo.
— Como?
— Como é usada a Arte da Magia.
— Por quem?
— Pelos feiticeiros — respondeu ele, com certo pesar.
— Magia significa as habilidades, as artes dos feiticeiros, dos magos?
— O que mais poderia significar?
— Isso é tudo que poderia significar? — Ged ponderou, fitando-a uma
ou duas vezes. — Quando Ogion me ensinava — contou ela — aqui… Ali
na lareira… As palavras da Língua Arcaica, elas eram tão fáceis e tão firmes
na minha boca quanto na dele. Foi como aprender a língua que eu falava
antes de nascer. Mas o restante… A tradição, as runas de poder, os feitiços,
as regras, a elevação das forças: tudo isso estava morto para mim. Era a
língua de outra pessoa. Eu costumava pensar que poderia estar vestida como
guerreira, com uma lança, uma espada, um penacho e tudo mais, mas não
me enquadraria, não é? O que eu faria com a espada? Ela faria de mim uma
heroína? Eu mesma estaria com roupas que não me serviriam, simples
assim, mal conseguiria andar. — Tenar tomou um gole de vinho. Prosseguiu:
— Então tirei tudo e coloquei minhas próprias roupas.
— O que Ogion disse quando você o deixou?
— O que Ogion costumava dizer?
Isso despertou o sorriso sombrio novamente. Ged não disse nada.
Tenar assentiu.
Depois de um tempo, ela prosseguiu, em tom mais brando:
— Ogion me aceitou porque você me trouxe até ele. Ele não queria
aprendizes depois de você, nunca teria aceitado uma garota se não fosse por
você, por pedido seu. Mas ele me amou. Ele me respeitou, eu o amei e o
respeitei. Mas ele não poderia me dar o que eu queria e eu não poderia
aceitar o que ele tinha para me dar. Ele sabia disso. Mas, Ged, a situação foi
diferente quando Ogion viu Therru. Um dia antes de morrer. Você diz, e
Musgo diz, que o poder reconhece o poder. Não sei o que viu nela, mas ele
disse: “Ensine-a!”. Também disse… — Ged esperou. — Também disse:
“Eles vão temê-la”. E disse: “Ensine tudo a ela! Nada de Roke”. Não sei o
que ele quis dizer. Como posso saber? Se eu tivesse ficado aqui com ele,
talvez soubesse, talvez pudesse ensiná-la. Mas pensei: Ged virá, ele saberá.
Ele saberá o que ensinar a ela, o que ela precisa saber, minha injustiçada.
— Não sei — lamentou o outro, falando muito baixo. — Eu vi… Na
criança só vejo… Os erros cometidos. O mal. — Ele bebeu seu vinho. —
Não tenho nada para dar a ela — confessou Ged.
Houve uma pequena batida à porta. Ele se levantou no mesmo instante
com aquele giro indefeso de corpo, à procura de um lugar para se esconder.
Tenar foi até à porta, abriu-a um pouco e sentiu o cheiro de Musgo antes
de vê-la.
— Há homens na aldeia — sussurrou a velha, com dramaticidade. —
Todo tipo de gente de bem chegando do Porto, do grande navio que, dizem,
é da cidade de Havnor. Estão atrás do Arquimago, dizem.
— Ele não quer se encontrar com eles — revelou Tenar, com franqueza.
Ela não tinha ideia do que fazer.
— Imagino que não — respondeu a bruxa. Depois de uma pausa,
ansiosa: — Onde ele está, então?
— Aqui — falou Gavião, aproximando-se da porta e abrindo-a ainda
mais. Musgo olhou para ele e não disse nada. — Eles sabem onde estou?
— Não de minha parte — afirmou Musgo.
— Se vierem aqui — disse Tenar —, tudo o que você precisa fazer é
mandá-los embora… Afinal, você é o Arquimago…
Nem Ged nem Musgo estavam prestando atenção a ela.
— Eles não irão até a minha casa — afirmou Musgo. — Venha, se
preferir.
Ele a seguiu, lançando um olhar, mas sem dizer nada para Tenar.
— Mas o que devo falar para eles? — quis saber Tenar.
— Nada, minha querida — orientou a bruxa.
***
Érica e Therru regressaram dos pântanos com sete rãs mortas num saco de
rede de pesca, e Tenar se ocupou cortando e esfolando as pernas para a ceia
das caçadoras. Estava prestes a terminar quando ouviu vozes do lado de fora
e, olhando para a porta aberta, avistou pessoas paradas ali… Homens com
chapéus, um toque dourado, uma faísca.
— Senhora Goha? — chamou uma voz educada.
— Entrem! — respondeu ela.
Eles entraram: cinco homens altos e grandes, parecendo duas vezes mais
numerosos no cômodo de teto baixo. Eles olharam ao redor e Therru notou
o que viram.
Viram uma mulher parada junto a uma mesa, segurando uma faca longa
e afiada. Sobre a mesa havia uma tábua de cortar e, sobre ela, de um lado, um
montinho de pernas nuas, branco-esverdeadas; do outro, um monte de rãs
corpulentas, ensanguentadas e mortas. Na sombra atrás da porta, algo se
escondia: uma criança, mas uma criança mutilada, imperfeita, com um rosto
pela metade, a mão em garra. Em uma cama, na alcova sob a única janela,
estava sentada uma jovem grande e ossuda, encarando-os com a boca aberta.
Suas mãos estavam cobertas de sangue e de lama, e sua saia úmida cheirava
à água do pântano. Ao se deparar com eles fitando-a, ela tentou esconder o
rosto com a saia, expondo as pernas até a coxa.
Desviaram o olhar dela e da criança, e não havia mais ninguém para
olhar além da mulher com as rãs mortas.
— Senhora Goha — repetiu um deles.
— É como sou chamada — respondeu a mulher.
— Viemos de Havnor, em nome do rei — disse a voz educada. Ela não
conseguia ver o rosto do homem nitidamente contra a luz. — Procuramos o
Arquimago, Gavião de Gont. O Rei Lebannen será coroado na virada do
outono, e ele almeja ter consigo o Arquimago, seu senhor e amigo, a fim de
se preparar para a coroação e para coroá-lo, se ele desejar.
O homem falava em tom firme e formal, como se conversasse com uma
senhora em um palácio. Usava calças sóbrias de couro e uma camisa de linho
empoeirada pela subida desde o Porto de Gont, mas era de um tecido fino,
com bordados de fios de ouro no pescoço.
— Ele não está aqui — respondeu Tenar.
Alguns meninos da aldeia espiaram pela porta e recuaram, espiaram
novamente e fugiram aos gritos.
— Talvez você possa nos dizer onde ele está, Senhora Goha — propôs o
homem.
— Não posso.
Tenar olhou para todos eles. O medo que ela sentiu no início, talvez
causado pelo pânico de Gavião ou pela mera agitação tola ao ver estranhos,
diminuía. Ali estava ela, na casa de Ogion; e ela sabia muito bem por que
Ogion nunca teve medo de pessoas importantes.
— Devem estar cansados depois dessa longa estrada — sugeriu. —
Querem se sentar? Tem vinho. Aqui, vou lavar os copos.
Ela carregou a tábua de cortar até o aparador, colocou as pernas de rã na
despensa, raspou o resto no balde de lavagem que Érica levaria para os
porcos de Flabelo, o tecelão, lavou as mãos, os braços e a faca na bacia,
derramou água fresca e enxaguou os dois copos em que ela e Gavião
beberam. Havia mais um copo no armário e duas xícaras de barro sem alças.
Ela os colocou sobre a mesa e serviu vinho para os visitantes; restava apenas
o suficiente na garrafa para uma rodada. Eles trocaram olhares e não se
sentaram. A escassez de cadeiras justificava isso. As regras de hospitalidade,
porém, os obrigavam a aceitar o que ela oferecia. Cada homem pegou um
copo ou xícara com um murmúrio educado. Saudando-a, beberam.
— A honra! — anunciou um deles.
— Andrades: a Colheita Tardia — disse outro, com olhos arregalados.
Um terceiro balançou a cabeça.
— Andrades: o Ano do Dragão — asseverou, solene.
O quarto assentiu e tomou outro gole, reverente.
O quinto, que foi o primeiro a falar, ergueu novamente a xícara de barro
para Tenar e disse:
— Honras-nos com um vinho de rei, senhora.
— Era de Ogion — explicou ela. — Esta era a casa de Ogion. Esta é a
casa de Aihal. Vocês sabiam disso, meus senhores?
— Nós sabíamos, senhora. O rei nos enviou para esta casa, acreditando
que o Arquimago viria aqui; quando a notícia da morte de seu mestre
chegou a Roke e a Havnor, estava ainda mais certo disso. Mas foi um dragão
que carregou o Arquimago de Roke, e nenhuma palavra ou mensagem
chegou da parte dele desde então, em Roke ou ao rei. É muito fundamental
para o rei, e do interesse de todos nós, saber que o Arquimago está aqui e
que está bem. Ele veio aqui, senhora?
— Não posso dizer — respondeu ela, mas foi um equívoco infeliz,
repetido, e ela percebeu que os homens pensavam assim. Tenar ajustou a
postura, colocando-se atrás da mesa. — O que quero dizer é que não vou
falar. Acredito que, se o Arquimago quiser vir, ele virá. Se não quiser ser
encontrado, vocês não o encontrarão. Certamente vocês não o procurarão
contra a vontade dele.
O mais velho e mais alto dos homens disse:
— A vontade do rei é a nossa vontade.
O primeiro orador interveio, em tom mais conciliador:
— Somos apenas mensageiros. O que há entre o Rei e o Arquimago das
Ilhas fica entre eles. Procuramos apenas portar a mensagem e a resposta.
— Se eu puder, farei com que sua mensagem chegue até ele.
— E a resposta? — quis saber o homem mais velho.
Ela não se manifestou, e o primeiro orador disse:
— Estaremos aqui por alguns dias na casa do Senhor de Re Albi, que, ao
saber da chegada de nosso navio, nos ofereceu sua hospitalidade.
Tenar teve a sensação de uma armadilha preparada ou de um laço sendo
apertado embora não soubesse por quê. A vulnerabilidade de Gavião e a
noção que ele tinha da própria fraqueza a contagiaram. Consternada, ela
usou como defesa sua aparência, parecendo ser uma mera boa esposa, uma
administradora do lar de meia-idade, mas será que era aparência? Também
era verdade, e essas questões eram ainda mais sutis do que os disfarces e as
metamorfoses dos feiticeiros… Tenar abaixou a cabeça e avaliou:
— Isso será mais adequado ao conforto de Vossas Senhorias. Percebam
que aqui vivemos de maneira muito simples, tal como fez o velho mago.
— E bebem vinho das Andrades — acrescentou aquele que identificara a
safra, um homem de olhos brilhantes, bonito, com um sorriso de vitória. A
mulher, representando seu papel, manteve a cabeça baixa. Mas quando o
grupo se despediu e saiu, ela sabia que, por mais que parecesse e fosse o que
pudesse, se não soubessem agora que ela era Tenar do Anel, saberiam em
breve; e assim saberiam que ela mesma conhecia o Arquimago e era de fato
o caminho até ele caso estivessem determinados a procurá-lo.
Quando se foram, Tenar soltou um longo suspiro. Érica fez o mesmo e
enfim fechou a boca, que permanecera aberta durante todo o tempo que
estiveram ali.
— Não acredito — disse ela, em tom de profunda e plena satisfação, e foi
ver aonde as cabras tinham ido.
Therru saiu do lugar escuro atrás da porta, onde se protegera dos
estranhos com o cajado de Ogion, o bastão de amieiro de Tenar e o seu
próprio galho de aveleira. Ela se moveu da maneira tensa e furtiva que havia
abandonado quase por completo desde que chegaram ali, sem olhar para
cima, com a metade desfigurada do rosto curvada em direção ao ombro.
Tenar aproximou-se dela e ajoelhou-se a fim de segurá-la nos braços.
— Therru — falou —, eles não vão machucar você. Não pretendem fazer
mal algum.
A criança não queria fitá-la. Deixou que Tenar a segurasse tal qual um
bloco de madeira.
— Basta você dizer, e não os deixo entrar aqui em casa de novo.
Depois de um tempo, a criança se mexeu um pouco e perguntou com sua
voz rouca e grossa:
— O que eles vão fazer com Gavião?
— Nada — assegurou Tenar. — Nenhum mal! Eles vieram… Eles
pretendem homenageá-lo.
Mas ela começara a perceber o que a tentativa de o homenagear faria
com Ged: negaria sua perda, negaria sua dor pelo que havia perdido,
forçando-o a desempenhar o papel de quem ele não era mais.
Quando ela soltou a criança, Therru foi até ao armário e pegou a vassoura
de Ogion. Varreu de maneira meticulosa o chão onde os homens de Havnor
estiveram, eliminando suas pegadas, a poeira de seus pés para fora da porta,
para além da soleira da porta.
Observando-a, Tenar tomou uma decisão.
Foi até a estante em que estavam os três grandes livros de Ogion e a
vasculhou. Encontrou várias penas de ganso e um frasco de tinta meio seco,
mas nenhum pedaço de papel ou pergaminho. Ela cerrou o maxilar, odiando
causar danos a algo tão sagrado como um livro, e marcou e rasgou uma tira
fina de papel da folha final em branco do Livro das Runas. Sentou-se à
mesa, molhou a pena e escreveu. Nem a tinta nem as palavras vieram com
facilidade. Não escrevia praticamente nada desde que se sentara naquela
mesma mesa, há um quarto de século, com Ogion espiando por cima de seu
ombro, ensinando-lhe as runas do hárdico e as Grandes Runas de Poder. Ela
escreveu:
Ela levou quase tanto tempo para ler o bilhete quanto para escrevê-lo. A
essa altura, Therru já terminara de varrer e a observava, atenta. Tenar
acrescentou duas palavras:
esta noite
falcões
***
Naquela noite, deitada para dormir, ela entrou novamente nos vastos
abismos de vento e luz, mas a luz era fumarenta, vermelha, laranja-
avermelhada e âmbar, como se o próprio ar fosse fogo. Nesse elemento ela
estava e não estava; voando ao vento e sendo o vento, o sopro do vento, a
força que se liberta; e nenhuma voz a chamou.
***
***
A ideia de que aquele homem fora até a casa, estivera na casa, dera uma
olhada no trabalho que tinha feito, talvez pensara em melhorá-lo, sempre
que essa ideia ocorria a Tenar era menos um pensamento do que uma crise
de enjoo, uma necessidade de vomitar. Mas a náusea se incendiava
tornando-se raiva.
Ambas se levantaram e se lavaram, e Tenar decidiu que o que mais sentia
naquele momento era fome.
— Estou varada de fome — disse a Therru e lhes serviu uma refeição
substanciosa composta de pão e queijo, feijão frio com óleo e ervas, uma
cebola fatiada e linguiça seca. Therru comeu bastante e Tenar comeu
bastante.
Enquanto recolhiam as coisas, Tenar disse:
— Por enquanto, Therru, não vou me separar de você de jeito nenhum, e
você não vai se separar de mim. Combinado? E nós duas deveríamos ir
agora para a casa de tia Musgo. Ela estava fazendo um feitiço para encontrar
você e não precisa se preocupar em continuar, mas talvez não saiba disso.
Therru parou de se mover. Olhou uma vez para a porta aberta e se
afastou dali.
— Precisamos ir buscar a roupa, também. Quando voltarmos, vou lhe
mostrar o tecido que ganhei hoje. Para fazer um vestido. Um vestido novo
para você. Um vestido vermelho.
A criança ficou parada, encolhida.
— Se nos escondermos, Therru, nós o alimentamos. Nós vamos devorar.
E vamos matá-lo de fome. Venha comigo.
A dificuldade, a barreira que era aquela passagem para o exterior era
tremenda para Therru. Ela se encolheu, escondeu o rosto, tremeu, tropeçou;
foi cruel forçá-la a atravessá-lo, foi cruel expulsá-la do esconderijo, mas
Tenar não teve piedade.
— Venha — chamou, e a criança foi.
Elas caminharam de mãos dadas pelos campos até a casa de Musgo.
Uma ou duas vezes Therru conseguiu erguer os olhos.
Musgo não ficou surpresa ao se deparar com elas, mas tinha uma
aparência estranha e cautelosa. Disse a Therru para correr para dentro de sua
casa a fim de conhecer os novos pintinhos da galinha de pescoço pelado e
escolher quais seriam os seus; Therru desapareceu imediatamente naquele
refúgio.
— Ela estava em casa o tempo todo — contou Tenar. — Escondida.
— Bem, ela deveria — disse Musgo.
— Por quê? — perguntou Tenar em tom áspero. Não estava disposta a se
esconder.
— Existem… seres rondando — respondeu a bruxa, não de forma
portentosa, mas com inquietação.
— Existem canalhas rondando — corrigiu Tenar, e Musgo olhou para
ela e recuou um pouco.
— Ah, agora — disse ela. — Ah, minha querida. Você tem um fogo à sua
volta, um brilho de fogo ao redor de toda a sua cabeça. Lancei o feitiço para
encontrar a criança, mas não deu certo. De alguma forma, o feitiço seguiu
seu próprio caminho e ainda não sei se acabou. Estou confusa. Vi seres
grandes. Procurei a menininha, mas encontrei esses seres voando nas
montanhas, voando nas nuvens. E agora você tem essa coisa em volta de
você, como se seu cabelo estivesse queimando. O que está errado, o que deu
de errado?
— Um homem com um capuz de couro — contou Tenar. — Um homem
jovem. De relativa boa aparência. A costura do ombro do colete está rasgada.
Você o viu por aí?
Musgo assentiu.
— Levaram-no para a produção de feno, na mansão.
— Eu disse para você que ela — Tenar olhou para a cabana — estava
com uma mulher e dois homens? Ele é um deles.
— Quer dizer que é um dos que…
— Sim.
Musgo permaneceu imóvel como uma velha esculpida em madeira,
rígida, um bloco.
— Não sei — falou, por fim. — Achei que sabia o suficiente. Mas não. O
que… Ele viria… Viria… para ver a menina?
— Se ele é o pai, talvez tenha vindo reivindicá-la.
— Reivindicar?
— Ela é propriedade dele — explicou Tenar calmamente. Olhava para o
topo da Montanha de Gont enquanto considerava: — Mas acho que não é o
pai. Acho que este é o outro. O que veio e disse para minha amiga na aldeia
que a criança tinha “se machucado”.
Musgo ainda estava confusa, ainda estava assustada com as próprias
conjurações e visões, com a ferocidade de Tenar, com a presença do mal
abominável. Balançou a cabeça, desolada.
— Não sei — disse ela. — Achei que soubesse o suficiente. Por que ele
voltaria?
— Para devorar — respondeu Tenar. — Devorar. Não vou deixar a
menina sozinha de novo. Mas amanhã, Musgo, talvez lhe peça que a
mantenha aqui por mais ou menos uma hora, no início do dia. Você faria
isso enquanto vou até a mansão?
— Sim, minha querida. É claro. Posso colocar um feitiço para esconder a
menina, se quiser. Mas… mas eles estão lá em cima, os grandes homens da
Cidade Real.
— Ora, então eles podem ver como é a vida das pessoas comuns —
provocou Tenar, e Musgo recuou de novo como se uma chuva de faíscas
fosse soprada contra ela, vinda de uma chama ao vento.
capítulo 9
encontrando palavras
***
Os homens de Havnor permaneceram vários dias com o Senhor de Re Albi,
talvez à espera de que o Arquimago mudasse de ideia e fosse ter com eles,
mas não o procuraram nem pressionaram Tenar sobre onde ele poderia
estar. Quando por fim partiram, Tenar disse a si própria que devia decidir o
que fazer. Não havia qualquer razão real para ela ficar ali, e havia duas razões
fortes para partir: Álamo e Habilidoso. Ela não podia confiar que algum
deles dois a deixasse em paz com Therru. No entanto, Tenar achava difícil se
decidir, porque era difícil pensar em partir. Ao deixar Re Albi agora, ela
deixava Ogion, perdia-o, assim como ela não o perdia enquanto cuidasse da
casa dele e arrancasse as ervas daninhas das cebolas dele. Nunca vou sonhar
com o céu lá embaixo, pensava ela. Ali, onde Kalessin viera, ela era Tenar,
refletia. No Vale Central, seria apenas Goha novamente. Protelou. Disse a si
mesma: “Devo temer esses canalhas, fugir deles? É isso que querem que eu
faça. Vão me fazer ir e vir a seu bel-prazer?”. Ela disse a si mesma: “Vou só
terminar de preparar o queijo”. Manteve Therru sempre com ela; e os dias
passaram.
Musgo veio com uma história para contar. Tenar lhe perguntara sobre o
feiticeiro Álamo, sem contar a ela toda a história, mas dizendo que ele a
tinha ameaçado — o que, na verdade, poderia muito bem ser tudo o que
pretendera fazer. Musgo geralmente se mantinha longe dos domínios do
velho senhor, mas estava curiosa sobre o que acontecia lá e disposta a
encontrar a oportunidade de conversar com algumas conhecidas de lá, uma
mulher com quem ela aprendera paridela e outras as quais atendera como
curandeira ou descobridora. Ela as fez falar sobre o que estava acontecendo
na mansão. Todas odiavam Álamo e por isso estavam completamente
prontas para falar sobre ele, mas suas histórias deviam ser ouvidas como
sendo, em parte, despeito e medo. Ainda assim, haveria fatos entre as
fantasias. A própria Musgo atestou que, até a chegada de Álamo, três anos
antes, o senhor mais jovem, o neto, estava em boa forma e bem, embora
fosse um homem tímido e taciturno, “como se estivesse assustado”, disse ela.
Então, na época que a mãe do jovem senhor morreu, o velho senhor mandou
buscar um feiticeiro em Roke… “Para quê? Com o Senhor Ogion a menos
de um quilômetro de distância? E na própria mansão são todos gente da
feitiçaria.”
Mas Álamo viera. Ele prestara os seus respeitos a Ogion e nada mais,
permanecia sempre lá no alto, na mansão, segundo Musgo. Desde então,
cada vez menos se via o neto e dizia-se agora que ele ficava deitado dia e
noite na cama, “como um bebê doente, todo encarquilhado”, comparou uma
das mulheres que tinha entrado na casa para alguma tarefa. Mas o velho
senhor, “com cem anos, ou perto disso, ou mais”, insistiu Musgo (ela não
tinha medo de números nem respeito por eles), o velho senhor estava no
auge, “cheio de energia”, diziam. E um dos homens, pois só tinham homens
para servi-los na mansão, disse a uma das mulheres que o velho senhor havia
contratado o feiticeiro para fazê-lo viver para sempre e que o feiticeiro
estava fazendo isso, alimentando-o, disse o homem, com a vida do neto. O
homem não via mal nenhum nisso, dizendo: “Quem não gostaria de viver
para sempre?”.
— Bem — comentou Tenar, surpresa. — Que história horrível. Não
falam sobre tudo isso na aldeia?
Musgo deu de ombros. Era uma questão para “É assim mesmo”
novamente. As ações dos poderosos não deveriam ser julgadas pelos
impotentes. E havia a lealdade obscura e cega, o enraizamento no lugar: o
velho era o senhor deles, Senhor de Re Albi, o que ele fazia não era da conta
de mais ninguém… Evidentemente, Musgo também sentia isso.
— Arriscado — afirmou ela —, está fadado a dar errado, um truque
desses. — Mas ela não disse que era perverso.
Não havia qualquer sinal de que o sujeito Habilidoso tivesse sido visto na
mansão. Desejando ter a certeza de que ele houvesse saído de Overfell,
Tenar perguntou a um ou dois conhecidos da aldeia se viram tal homem,
mas obteve respostas ambíguas e relutantes. Não queriam tomar parte nos
assuntos dela. “É assim mesmo…” Apenas o velho Flabelo a tratava como
amiga e conterrânea de aldeia, e isso talvez acontecesse porque os olhos dele
estavam tão turvos que ele não conseguia ver Therru com nitidez.
Agora, Tenar levava a criança quando ia à aldeia ou a algum lugar
qualquer que fosse a distância de casa.
Therru não achava cansativo esse cativeiro. Ficava perto de Tenar como
faria uma criança muito mais nova, trabalhando com ela ou brincando. Sua
brincadeira era a cama de gato, a cestaria e um par de figuras de ossos que
Tenar encontrara em um saquinho de ervas em uma das prateleiras de
Ogion. Um animal que poderia ser um cachorro ou uma ovelha e uma figura
que poderia ser uma mulher ou um homem. Para Tenar, não davam qualquer
sensação de poder ou perigo, e Musgo disse: “Apenas brinquedos”. Para
Therru, eram uma grande magia. Ela os movia nos padrões de alguma
história silenciosa por horas a fio; não falava enquanto brincava. Às vezes,
construía casas para a pessoa e para o animal, montes de pedra, cabanas de
barro e palha. Estavam sempre no bolso dela, no saco de erva. Estava
aprendendo a fiar; conseguia segurar a roca com a mão queimada e girar o
fuso com a outra. Tinham penteado as cabras regularmente desde que
chegaram e agora tinham um bom saco cheio de pelos sedosos para fiar.
Mas eu devia ensiná-la, pensou Tenar, angustiada. “Ensine tudo a ela”, disse
Ogion, e o que estou ensinando? A cozinhar e a fiar? Então outra parte de sua
mente disse, na voz de Goha: E não são essas as verdadeiras artes, necessárias e
nobres? A sabedoria se resume a palavras?.
Mesmo assim, ela se preocupava com o assunto e certa tarde, enquanto
Therru puxava o pelo de cabra para limpá-lo, soltá-lo e cardá-lo, à sombra
do pessegueiro, disse:
— Therru, talvez seja a hora de você começar a aprender o nome
verdadeiro das coisas. Existe uma língua em que todas as coisas carregam
seus nomes verdadeiros, e ação e palavra são uma só. Ao falar essa língua,
Segoy ergueu as ilhas das profundezas. É a língua falada pelos dragões.
A criança ouviu, em silêncio.
Tenar largou os pentes de cardar e pegou uma pedrinha do chão.
— Nessa língua — ensinou —, isto é tolk.
Therru observou o que ela fazia e repetiu a palavra, tolk, mas sem voz,
formando-a apenas com os lábios, que eram um pouco recuados no lado
direito por causa das cicatrizes.
A pedra estava na palma da mão de Tenar, uma pedra.
As duas ficaram em silêncio.
— Ainda não — disse Tenar. — Não é isso que tenho de ensinar para
você agora. — Deixou a pedra cair no chão e pegou os pentes e um punhado
de lã cinzenta e turva que Therru preparara para cardar. — Talvez quando
você tiver seu nome verdadeiro, talvez seja a hora. Agora não. Agora escute.
Agora é a hora das histórias, de você começar a aprender as histórias. Posso
lhe contar histórias do Arquipélago e das Terras Kargad. Contei uma
história que aprendi com meu amigo Aihal, o Silencioso. Agora vou contar
uma coisa que aprendi com minha amiga Cotovia quando ela contou aos
filhos dela e aos meus. Esta é a história de Andaur e Avad. No início dos
tempos, tão longe quanto Selidor, vivia um homem chamado Andaur, um
lenhador, que subia sozinho as colinas. Certo dia, nas profundezas da
floresta, ele derrubou um grande carvalho. Ao cair, a árvore gritou para ele
com voz humana…
Foi uma tarde agradável para ambas.
Mas, naquela noite, ao se deitar ao lado da criança adormecida, Tenar
não conseguia dormir. Estava inquieta, preocupada com uma ansiedade
insignificante após a outra… Será que fechei o portão do pasto, será que minha
mão dói por causa da cardação ou é a artrite chegando, e assim por diante.
Depois ela ficou muito inquieta, imaginando ter ouvido barulhos do lado
externo da casa. Por que não tenho um cachorro?, pensou. É burrice não ter um
cachorro. Uma mulher e uma criança que moram sozinhas deveriam ter um
cachorro hoje em dia. Mas esta é a casa de Ogion! Ninguém viria aqui para fazer
o mal. Mas Ogion está morto, morto, enterrado nas raízes da árvore à beira da
floresta. E ninguém virá. Gavião se foi, fugiu. Nem é mais Gavião, um homem
sombrio, que não serve para ninguém, um homem morto forçado a estar vivo. Eu
não tenho forças, não há nada de bom em mim. Digo a palavra da Criação e ela
morre na minha boca, perde o sentido. Uma pedra. Sou uma mulher, uma velha,
fraca, burra. Tudo o que faço é errado. Tudo o que toco vira cinzas, sombra, pedra.
Sou a criatura da escuridão, inchada pela escuridão. Somente o fogo pode me
purificar. Somente o fogo pode me devorar, me consumir como…
Ela se sentou e gritou em voz alta na sua própria língua:
— Que a maldição seja invertida e volte! — Estendeu o braço direito
para baixo, apontando diretamente para a porta fechada. Então, saltando da
cama, foi até a porta, abriu-a de modo abrupto e disse para a noite nublada:
— Você chegou tarde demais, Álamo. Fui devorada há muito tempo. Vá
limpar sua própria casa!
Não houve resposta, nenhum som, mas um cheiro fraco, azedo e
pestilento de queimado… de tecido ou cabelo chamuscado.
Ela fechou a porta, encostou nela o cajado de Ogion e viu que Therru
ainda dormia. Tenar, por sua vez, não dormiu naquela noite.
***
***
Um sentido animal guiou Tenar para longe dos campos e para longe da
estrada montanhosa por onde viera. Ela pegou um atalho pelas pastagens
íngremes, segurando a mão de Therru, até a estrada de carroças que descia
em zigue-zague até o Porto de Gont. Ela sabia que estaria perdida se
encontrasse Álamo e pensou que ele poderia estar à sua espera no caminho.
Mas não, talvez, naquele caminho.
Depois de cerca de um quilômetro e meio de descida, Tenar começou a
ser capaz de pensar. O que ela pensou primeiro foi que havia seguido o
caminho certo. Pois as palavras hárdicas estavam voltando à sua memória e,
depois de dado tempo, as palavras verdadeiras, de modo que ela se abaixou,
pegou uma pedra e segurou-a na mão, dizendo mentalmente: Tolk. Colocou
aquela pedra no bolso. Ela olhou para as vastas camadas de ar e nuvens e
disse mentalmente, uma vez: Kalessin, e sua mente se desanuviou, assim
como o ar claro.
Tenar e Therru chegaram a um longo trecho sombreado por margens
altas e gramadas e afloramentos rochosos, onde ela se sentiu um pouco
inquieta. Ao saírem de uma curva, avistaram a baía azul-escura abaixo delas
e, ali, entre os Penhascos Bracejados, um belo navio com velas a toda
velocidade. Tenar temeu o último desses navios, mas não aquele. Queria
correr pela estrada a fim de alcançá-lo.
Isso ela não conseguiria fazer. Seguiram ao ritmo de Therru. Foi um
ritmo melhor do que dois meses antes, e a descida também tornou tudo
mais fácil. Mas o navio se apressou ao encontro delas. Havia um vento
mágico em suas velas; atravessou a baía como um cisne voador. Chegou ao
porto antes que Tenar e Therru estivessem a meio caminho da próxima
grande curva da estrada.
***
Cidades de qualquer tamanho eram lugares muito estranhos para Tenar. Ela
não havia morado em lugares do tipo. Tinha visitado a maior cidade de
Terramar, Havnor, uma vez, durante algum tempo; e tinha navegado para o
Porto de Gont com Ged, anos antes, mas eles subiram a estrada para
Overfell sem parar nas ruas. A única outra cidade que ela conhecia era
Valmouth, onde morava sua filha, uma cidade portuária pacata e ensolarada
onde um navio mercante vindo das Andrades era um grande acontecimento
e a maior parte das conversas dos habitantes girava em torno de peixe seco.
Ela e a criança chegaram às ruas do Porto de Gont quando o sol ainda
estava bem acima do mar ocidental. Therru tinha caminhado quase 25
quilômetros sem reclamar e sem se sentir cansada, embora decerto estivesse
exausta. Tenar também estava cansada, por não ter dormido na noite
anterior e por estar muito angustiada; e os livros de Ogion também eram
um fardo pesado. No meio do caminho ela os colocou na bolsa e a comida e
as roupas no saco de lã, o que era melhor, mas não muito melhor. Então
caminharam com dificuldade entre as casas periféricas até o portão de
embarque da cidade, onde a estrada, passando entre dois dragões esculpidos
em pedra, se transformava em uma rua. Ali, um homem, o guarda do portão,
olhou para elas. Therru inclinou o rosto queimado em direção ao ombro e
escondeu a mão queimada sob o avental do vestido. — Vai a uma casa na
cidade, senhora? — perguntou o guarda, olhando para a criança.
Tenar não sabia o que dizer. Ela não sabia que havia guardas nos portões
da cidade. Não tinha nada com que pagar um coletor de pedágio ou um
estalajadeiro. Não conhecia ninguém no Porto de Gont. Exceto, pensou ela
naquele instante, o feiticeiro, aquele que fora enterrar Ogion, como ele se
chamava? Mas ela não o sabia. Ficou ali, com a boca aberta, como Érica.
— Vá em frente, vá em frente — permitiu o guarda, entediado, e se virou.
Ela queria lhe perguntar onde encontraria a estrada para o sul, que
atravessava os promontórios, a estrada costeira para Valmouth; mas não
arriscou despertar-lhe o interesse outra vez, para que ele não decidisse que
ela era, afinal de contas, uma vagabunda ou uma bruxa ou o que quer que ele
e os dragões de pedra devessem manter fora do Porto de Gont. Assim, elas
passaram entre os dragões — Therru olhou um pouco para cima para
enxergá-los — e caminharam pelas pedras do calçamento, cada vez mais
impressionadas, confusas e envergonhadas. Para Tenar parecia que pessoa
nem coisa alguma no mundo tinha sido mantida fora do Porto de Gont.
Estava tudo ali. Altas casas de pedra, carroças, carretas, carrinhos, gado,
burros, mercados, lojas, multidões, pessoas e mais pessoas — quanto mais
elas avançavam, mais gente havia. Therru agarrou-se à mão de Tenar,
deslizando, escondendo o rosto com o cabelo. Tenar agarrou-se à mão de
Therru.
Ela não sabia como poderiam ficar ali, então a única coisa a fazer era
seguir para o sul e continuar até o anoitecer, que agora era muito cedo, na
esperança de acampar na floresta. Tenar escolheu uma mulher corpulenta,
com um amplo avental branco, que fechava as venezianas de uma loja, e
atravessou a rua, decidida a lhe perguntar qual era a estrada rumo ao sul,
saindo da cidade. O rosto firme e corado da mulher parecia bastante
amigável, mas, enquanto Tenar reunia coragem para falar com ela, Therru
agarrou-a com força como se tentasse esconder-se, e, olhando para cima,
Tenar viu descendo a rua em sua direção o homem com o capuz de couro.
Ele a viu no mesmo instante. Ele se deteve.
Tenar agarrou o braço de Therru, quase arrastando-a, quase virando-a.
— Venha — disse ela, e passou direto pelo homem. Depois de
ultrapassá-lo, ela andou mais rápido, descendo a colina em direção ao brilho
e à escuridão da água ao pôr do sol, das docas e dos cais ao pé da rua
íngreme. Therru correu com ela, ofegando como havia feito depois de ser
queimada.
Mastros altos balançavam contra o céu vermelho e amarelo. O navio,
com as velas amainadas, estava encostado no cais de pedra, além de uma galé
a remos.
Tenar olhou para trás. O homem as encalçava, bem de perto. Sem pressa.
Ela correu para o cais, porém, depois de algum tempo, Therru tropeçou e
não conseguiu continuar, incapaz de recuperar o fôlego. Tenar a pegou no
colo e a criança segurou-a, escondendo o rosto no ombro de Tenar. Mas a
mulher mal conseguia mover-se, de tão sobrecarregada. As pernas tremiam
sob seu corpo. Ela deu um passo, e outro, e outro. Chegou à pequena ponte
de madeira que fora construída entre o cais e o convés do navio. Colocou a
mão na amurada.
Um marinheiro no convés, um sujeito careca e magricelo, fitou-a.
— Qual é o problema, senhora? — perguntou ele.
— É… é o navio de Havnor?
— Da Cidade Real, isso.
— Deixe-me embarcar!
— Bem, não posso fazer isso — disse o homem, sorrindo, mas os olhos
dele se moveram; estava encarando o homem que se colocou ao lado de
Tenar.
— Você não precisa fugir — disse Habilidoso para ela. — Não quero
causar nenhum mal a vocês. Não quero machucar vocês. Vocês não
entendem. Fui eu quem conseguiu ajuda para ela, não fui? Realmente sinto
muito pelo que aconteceu. Quero ajudar você com ela. — O homem
estendeu a mão como se fosse irresistivelmente atraído a tocar Therru. Tenar
não conseguia se mover. Ela havia prometido a Therru que ele nunca mais
encostaria nela. Ela viu a mão dele tocar o braço nu e trêmulo da criança.
— O que você quer com ela? — disse outra voz. Outro marinheiro
ocupou o lugar do careca: um jovem. Tenar pensou que fosse seu filho.
Habilidoso foi rápido ao responder:
— Ela está… Ela pegou minha menina. Minha sobrinha. Ela é minha.
Ela a enfeitiçou, fugiu com ela, veja…
Tenar não conseguia falar nada. As palavras lhe escaparam novamente,
lhe foram tiradas. O jovem marinheiro não era seu filho. O rosto dele era
fino e duro, com olhos claros. Encarando-o, ela encontrou as palavras:
— Deixe-me subir a bordo. Por favor!
O jovem estendeu a mão. Tenar a segurou, e ele a levou pela prancha até
o convés do navio.
— Espere aí — disse ele a Habilidoso, e a ela: — Venha comigo.
Mas as pernas dela não a sustentavam. Ela caiu no convés do navio que
vinha de Havnor, deixando cair o saco pesado, mas agarrada à criança.
— Não deixe que ele leve a criança, ah, não deixe que eles fiquem com
ela, não, de novo não, de novo não!
capítulo 10
o golfinho
E la não soltaria a criança, não daria a criança para eles. Eram todos
homens a bordo do navio. Só depois de muito tempo ela começou a
conseguir pensar no que eles diziam, no que havia sido feito, no que estava
acontecendo. Quando entendeu quem era o jovem, aquele que tinha
pensado ser seu filho, foi como se ela tivesse entendido tudo o tempo todo,
só que ela não tinha conseguido pensar. Ela não tinha sido capaz de pensar
em nada.
Ele tinha voltado das docas para o navio e agora conversava perto da
prancha de embarque com um homem de cabelos grisalhos, pela sua
aparência, o comandante do navio. Ele olhou para Tenar, que eles tinham
permitido que ficasse agachada com Therru em um canto do convés, entre a
amurada e um grande molinete. O cansaço do longo dia venceu o medo de
Therru; ela dormia profundamente, abraçada a Tenar, com sua bolsinha
servindo de almofada, e a capa, de cobertor.
Tenar se levantou com vagarosidade e o jovem logo se aproximou. Ela
endireitou a saia e tentou alisar o cabelo para trás.
— Eu sou Tenar de Atuan — declarou ela. O rapaz permaneceu parado.
Ela disse: — Acho que você é o rei.
Era muito jovem, mais novo que o filho dela, Faísca. Ainda não deveria
ter vinte anos. Mas havia nele um olhar que não era nada jovem, algo em
seus olhos que a fez pensar: Ele passou pelo fogo.
— Meu nome é Lebannen de Enlad, minha senhora — apresentou-se
ele, prestes a curvar-se ou até mesmo a ajoelhar-se diante dela.
Tenar pegou as mãos dele a fim de ficarem cara a cara.
— Não para mim — disse ela —, nem eu para você!
Ele riu surpreso e segurou as mãos dela enquanto a olhava francamente.
— Como sabia que eu a procurava? Você estava vindo até mim quando
aquele homem…?
— Não, não. Eu estava fugindo… dele… de… de encrenqueiros… Estava
tentando voltar para casa, só isso.
— Para Atuan?
— Ah, não! Para minha fazenda. No Vale Central. Aqui em Gont. —
Ela riu também, uma risada cheia de lágrimas. As lágrimas poderiam ser
choradas agora, e seriam choradas. Ela soltou as mãos do rei para poder
enxugar os olhos.
— Onde fica o Vale Central? — perguntou ele.
— A sul e a leste, circundando os promontórios de lá. Valmouth é o
porto.
— Nós a levaremos até lá — falou ele, com prazer em poder fazer a
oferta e realizá-la.
Ela sorriu e enxugou os olhos, balançando a cabeça em aceitação.
— Uma taça de vinho. Um pouco de comida, um pouco de descanso —
disse ele — e uma cama para sua criança.
O comandante do navio, ouvindo com discrição, deu as ordens. O
marinheiro careca, de quem ela se lembrava como algo que parecia ter
acontecido há muito tempo, se adiantou. Ele ia buscar Therru. Tenar
colocou-se entre ele e a criança. Não podia deixar que o homem encostasse
nela.
— Eu a carrego — anunciou Tenar, com a voz tensa e alta.
— Há escadas, senhora. Eu farei isso — disse o marinheiro, e ela sabia
que ele era gentil, mas não podia deixá-lo encostar em Therru.
— Permita-me — disse o jovem, o rei, e, com um olhar para ela, pedindo
permissão, ele se ajoelhou, pegou a criança adormecida, carregou-a até a
escotilha e desceu cuidadosamente a escada. Tenar o seguiu.
Ele a deitou em um beliche em uma cabine minúscula, desajeitadamente
e com ternura. Colocou a capa em volta dela. Tenar o permitiu.
Em uma cabine maior, que se estendia pela popa do navio, com uma
longa janela que dava para a baía ao crepúsculo, o rapaz pediu que ela se
sentasse à mesa de carvalho. Ele pegou uma bandeja do marinheiro que a
trouxe, serviu vinho tinto em taças de vidro grosso e ofereceu-lhe frutas e
bolos.
Tenar provou o vinho.
— É muito bom, mas não é o Ano do Dragão — constatou.
Ele a encarou com uma surpresa desprotegida, como qualquer garoto.
— É de Enlad, não das Andrades — disse ele, com humildade.
— É excelente — assegurou ela, bebendo outra vez.
Ela pegou um bolo. Era um bolinho amanteigado, muito saboroso, não
adocicado. As uvas verdes e âmbares eram doces e ácidas. Os sabores vívidos
da comida e do vinho eram como as cordas que atracavam o navio,
amarravam-no ao mundo, à sua mente de novo.
— Fiquei com muito medo — falou ela em tom de desculpa. — Acho
que voltarei a ser eu mesma em breve. Ontem… Não, hoje, esta manhã…
houve um… um feitiço… — Era quase impossível pronunciar a palavra, ela
gaguejou: — Uma m-maldição… lançada contra mim. Levou minha fala e
minha inteligência, eu acho, e fugimos disso, mas corremos direto até o
homem, o homem que… — Ela olhou desesperada para o jovem que a
ouvia. Os olhos graves dele permitiram que ela dissesse o que deveria ser
dito. — Ele foi uma das pessoas que mutilou a criança. Ele e os pais dela.
Eles a estupraram, espancaram e queimaram; essas coisas acontecem, meu
senhor. Essas coisas acontecem com crianças. E ele continua a segui-la, para
chegar até ela. E… — Ela se conteve e bebeu vinho, obrigando-se a provar o
sabor. — E então corri dele para você. Para o porto.
Ela olhou para as vigas baixas e esculpidas da cabine, para a mesa polida,
para a bandeja de prata, para o rosto magro e tranquilo do jovem. Seu cabelo
era escuro e macio, sua pele era de um vermelho bronzeado claro; ele estava
bem vestido, com simplicidade, sem nenhuma corrente, anel ou marca
externa de autoridade. Mas tinha a aparência que um rei deveria ter,
acreditava ela.
— Lamento ter deixado o homem partir — disse ele. — Mas ele pode
ser encontrado. Quem lançou o feitiço contra você?
— Um feiticeiro. — Ela não quis revelar o nome. Não queria pensar
sobre tudo aquilo. Queria deixar todos para trás. Sem retribuição, sem
perseguição. Deixá-los entregues aos seus ódios, superá-los, esquecer.
Lebannen não pressionou, mas perguntou:
— Você estará a salvo desses homens em sua fazenda?
— Acredito que sim. Se eu não estivesse tão cansada, tão confusa com…
com… Tão confusa em minha mente, a ponto de não conseguir pensar, não
teria medo de Habilidoso. O que ele poderia ter feito? Com todas as pessoas
por perto, na rua? Eu não devia ter fugido dele. Mas tudo que eu conseguia
sentir era o medo dela. Ela é tão pequena que tudo o que pode fazer é temê-
lo. Terá de aprender a não ter medo dele. Tenho de ensinar isso a ela…
Tenar estava divagando. Pensamentos surgiam em sua cabeça em
karginês. Ela estava falando em karginês? Lebannen pensaria que ela era
louca, uma velha louca tagarelando. Ela o espiou de soslaio. Os olhos escuros
dele não estavam nela; ele olhava para a chama da lamparina de vidro que
pendia sobre a mesa, uma chama pequena, imóvel e clara. O rosto dele era
muito triste para o rosto de um homem jovem.
— Você veio procurar por ele — declarou ela. — O Arquimago. Gavião.
— Ged — completou ele, fitando-a com um leve sorriso. — Você, ele e
eu usamos nossos nomes verdadeiros.
— Você e eu, sim. Mas ele, só para você e para mim. — Lebannen
assentiu. — Ele está em perigo por causa de homens invejosos, homens de
má vontade, e ele não tem… nenhuma defesa agora. Sabe disso?
Tenar não conseguiu ser mais explícita, mas Lebannen respondeu:
— Ele me disse que seu poder como mago havia acabado. Foi gasto no
ato que salvou a mim e a todos nós. Mas foi difícil de acreditar. Eu queria
não acreditar nele.
— Eu também. Mas é verdade. Por isso ele… — Tenar hesitou mais uma
vez. — Ele quer ficar sozinho até que suas feridas se curem — disse ela
enfim, cautelosa.
Lebannen explicou:
— Ele e eu estávamos juntos na terra escura, na Terra Árida. Morremos
juntos. Juntos cruzamos as montanhas dali. Pode-se voltar pelas montanhas.
Há uma maneira. Ele sabia disso. Mas o nome das montanhas é Dor. As
pedras… As pedras cortam, e os cortes demoram muito para sarar.
O jovem olhou para suas mãos. Ela pensou nas mãos de Ged, marcadas e
cortadas, cerradas em suas feridas. Segurando os cortes unidos, fechadas.
A mão de Tenar segurava a pedrinha em seu bolso, a palavra que ela
havia colhido na estrada íngreme.
— Por que ele se esconde de mim? — O jovem chorou de tristeza.
Então, calmamente: — Eu esperava mesmo vê-lo. Mas, se ele não quiser,
ponto-final, é claro. — Tenar reconheceu a cortesia, a civilidade e a
dignidade dos mensageiros de Havnor e apreciou-as; reconhecia o valor que
tinham. Mas ela o amava por sua dor.
— Ele por certo virá até você. Apenas dê-lhe tempo. Ele ficou tão ferido,
tudo lhe foi tirado… No entanto, quando falou de você, quando disse seu
nome, ah, então eu o vi por um momento como ele era, como ele será
novamente… Todo orgulhoso!
— Orgulhoso? — repetiu Lebannen, como se estivesse espantado.
— Sim. É claro, orgulhoso. Quem deveria estar orgulhoso, senão ele?
— Sempre pensei nele como… Ele era tão paciente — disse Lebannen, e
depois riu da inadequação de sua descrição.
— Agora ele não tem paciência — relatou ela — e é duro consigo
mesmo além de qualquer razão. Não há nada que possamos fazer por ele,
creio, exceto deixá-lo seguir seu próprio caminho e se encontrar no fim da
linha, como dizem em Gont… — De repente, ela chegou ao fim da própria
linha, tão cansada que se sentiu mal. — Acho que devo descansar agora —
concluiu.
O jovem se levantou de imediato.
— Senhora Tenar, você diz que fugiu de um inimigo e encontrou outro;
mas vim em busca de um amigo e encontrei outra.
Ela sorriu diante da inteligência e da bondade de Lebannen. Que bom
garoto ele é, pensou.
***
em casa
***
Mattiana e o marido ficaram com Tenar durante alguns dias, mas depois
disso ela decidiu ir para a fazenda. Então Mattiana caminhou com ela e
Therru ao longo do plácido e prateado Kaheda. O verão estava se
transformando em outono. O sol ainda estava quente, mas o vento estava
fresco. A folhagem das árvores tinha uma aparência cansada e empoeirada, e
os campos estavam cortados ou em colheita.
Mattiana falou sobre como Therru estava muito mais forte e sobre como
ela caminhava com firmeza agora.
— Gostaria que você a tivesse visto em Re Albi — comentou Tenar. —
Antes… — E parou de falar. Ela havia decidido não preocupar a filha com
tudo aquilo.
— O que aconteceu? — perguntou a filha.
Mattiana falou de forma tão decidida a saber que Tenar cedeu e
respondeu em voz baixa:
— Um deles.
Therru estava alguns metros à frente das duas, com as pernas compridas e
o seu vestido que não lhe cabia mais, caçando amoras nas sebes enquanto
caminhava.
— O pai dela? — perguntou Mattiana, enojada com a ideia.
— Cotovia disse que aquele que parece ser o pai se autodenomina
Merluza. Esse é mais novo. É o que foi até Cotovia para contar a ela.
Chama-se Habilidoso. Ele estava… rondando em Re Albi. E então, por
azar, nos deparamos com ele no Porto de Gont. Mas o rei o expulsou. Agora
estou aqui e ele está lá, e tudo isso acabou.
— Mas Therru ficou assustada — constatou Mattiana, um pouco
soturna.
Tenar assentiu.
— Mas por que você foi para o Porto de Gont?
— Ah, bem, esse homem, Habilidoso, estava trabalhando para um
homem… Um mago da casa do Senhor de Re Albi que não foi com a
minha cara… — Ela tentou pensar no nome usual do mago e não
conseguiu; tudo o que ela conseguia pensar era em Tuaho, uma palavra
karginesa para um tipo de árvore, do qual não conseguia se lembrar.
— E?
— Bem, então pareceu melhor voltar para casa.
— Mas por que esse bruxo não gostava de você?
— Por ser mulher, principalmente.
— Ah — disse Mattiana. — Velho fedorento.
— Jovem fedorento, nesse caso.
— Pior ainda. Bem, que eu saiba, ninguém por aqui viu os pais, se é que
essa é a palavra para designá-los. Mas, se ainda estão por aí, não quero que
você fique sozinha na casa da fazenda.
Que agradável é ser cuidada por uma filha, como se ela fosse sua mãe, e se
comportar como a filha de uma filha. Tenar disse, impaciente:
— Vou ficar perfeitamente bem!
— Você poderia pelo menos arranjar um cachorro.
— Já pensei no assunto. Alguém na aldeia pode ter um cachorrinho.
Perguntaremos a Cotovia quando passarmos por lá.
— Não um cachorrinho, mãe. Um cachorro.
— Mas um jovem, com que Therru pudesse brincar — implorou Tenar.
— Um lindo cachorrinho vai beijar os ladrões — disse Mattiana,
caminhando, bonachona, de olhos cinzentos, rindo da mãe.
Elas chegaram à aldeia por volta do meio-dia. Cotovia deu as boas-
vindas a Tenar e Therru com uma festa de abraços, beijos, perguntas e
comidas. O silencioso marido de Cotovia e outros aldeões pararam a fim de
cumprimentar Tenar. Ela sentiu a felicidade de voltar para casa.
Cotovia e os dois mais novos de seus sete filhos, um menino e uma
menina, acompanharam-nas até a fazenda. As crianças conheciam Therru
desde que Cotovia a levara para casa, é claro, e estavam habituadas a ela,
embora a separação de dois meses as tivesse deixado tímidas no início. Com
elas, e mesmo com Cotovia, a criança permanecia retraída, passiva, como nos
velhos tempos.
— Ela está exausta, confusa com toda essa viagem. Ela vai superar isso.
Evoluiu maravilhosamente bem — explicou Tenar a Cotovia, mas Mattiana
não deixou a situação passar com tanta facilidade.
— Um deles apareceu e aterrorizou ela e a mãe — interferiu Mattiana.
Aos poucos, entre elas, a filha e a amiga extraíram toda a história de
Tenar naquela tarde enquanto abriam a casa fria, abafada e empoeirada,
arrumavam-na, arejavam a roupa de cama, balançavam a cabeça por causa
das cebolas germinadas, colocavam um pouco de comida na despensa e uma
grande chaleira com sopa para o jantar. O que extraíram foi dito uma
palavra por vez. Tenar parecia não conseguir revelar o que o feiticeiro fizera;
um feitiço, ela disse vagamente, ou talvez ele tivesse enviado Habilidoso
atrás dela. Mas quando ela começou a falar sobre o rei, as palavras jorraram:
— E então lá estava ele… O rei! Como uma lâmina de espada… E
Habilidoso encolhendo-se e murchando para escapar dele… E pensei que
ele fosse Faísca! Pensei, de fato, por um instante… Eu estava tão… tão fora
de mim…
— Bem — disse Mattiana —, tudo bem, porque Canelinha pensou que
você fosse a mãe do rei. Quando estávamos nas docas vendo você navegar
em sua glória. Ela o beijou, sabe, tia Cotovia. Beijou o rei… Simples assim.
Achei que logo em seguida ela ia beijar aquele mago. Mas não fez isso.
— Imagino que não, que ideia. Que mago? — questionou Cotovia, com
a cabeça enfiada em um armário. — Onde está sua lata de farinha, Goha?
— Sua mão está nela. Um mago de Roke, à procura de um novo
arquimago.
— Aqui?
— Por que não? — indagou Mattiana. — O último foi de Gont, não foi?
Mas não gastaram muito tempo procurando. Navegaram direto de volta
para Havnor depois de se livrarem da mãe.
— Olhe como você fala.
— Estava à procura de uma mulher, ele me disse — explicou Tenar. —
“Uma mulher em Gont”. Mas ele não parecia muito feliz com isso.
— Um feiticeiro procurando uma mulher? Bem, isso é novidade — disse
Cotovia. — Eu já estava pensando que a história estava estranha a essa
altura, mas está perfeita. Vou assar um ou dois pães, tudo bem? Onde está o
óleo?
— Vou precisar tirar um pouco da vasilha que está na câmara fria. Ah,
Panaché! Aí está você! Como vai? Como vai Arroio Claro? Como vai tudo?
Vocês venderam os cordeiros?
Sentaram-se nove para jantar. À suave luz amarela do entardecer, na
cozinha de piso de pedra, à comprida mesa da fazenda, Therru começou a
levantar um pouco a cabeça e falou algumas vezes com as outras crianças;
mas ainda havia nela um retraimento e, à medida que escurecia lá fora, ela se
sentou de modo que seu olho vidente pudesse observar a janela.
Só quando Cotovia e as crianças foram para casa, ao crepúsculo,
Mattiana estava cantando para Therru dormir e ela estava lavando a louça
com Panaché, Tenar perguntou por Ged. De alguma forma, não queria fazer
isso enquanto Cotovia e Mattiana ouviam; haveria explicações a dar. Tinha
se esquecido de mencionar a presença dele em Re Albi. E ela não queria
mais falar sobre Re Albi. Sua mente parecia escurecer quando tentava pensar
no lugar.
— Um homem veio aqui no mês passado em meu nome, para ajudar no
trabalho?
— Ah, esqueci! — gritou Panaché. — Falcão, você quer dizer, um com as
cicatrizes no rosto?
— Isso — confirmou Tenar. — Falcão.
— Ah, é, bem, ele está lá em cima na montanha das Fontes Termais,
acima de Lissu, lá em cima com as ovelhas, com as ovelhas de Serry, acho.
Ele veio aqui e disse que você o enviou, mas não havia um pingo de trabalho
para ele aqui, sabe, com Arroio Claro e eu cuidando das ovelhas, eu
cuidando dos laticínios e o velho Turra e Mana me ajudando quando
necessário, quebrei a cabeça, mas Arroio Claro disse: “Vá perguntar ao
homem de Serry, ao supervisor do fazendeiro Serry, perto de Kahedanan, se
precisam de pastores nas pastagens altas”, disse ele, e aquele Falcão foi
embora e fez isso, foi contratado e saiu no dia seguinte. “Vá perguntar ao
homem de Serry”, disse Arroio Claro, e foi isso que ele fez e foi contratado
imediatamente. Então, ele voltará com os rebanhos no outono, sem dúvida.
Lá em cima, em Cerros Largos, acima de Lissu, nas pastagens altas. Acho
que talvez fosse para cabras que eles o queriam. Sujeito de boa fala. Ovelhas
ou cabras, não me lembro quais. Espero que esteja tudo bem por não
ficarmos com ele aqui, Goha, mas a verdade é que não tinha um pingo de
trabalho para ele, comigo, Arroio Claro e o velho Turra, e a Mana cuidou do
linheiro. Ele disse que tinha sido pastor de cabras lá de onde veio,
circundando a montanha, em algum lugar acima de Armouth, ele disse,
embora afirmasse que nunca tinha pastoreado ovelhas. Talvez sejam as
cabras que o levaram lá para cima.
— Talvez — concordou Tenar. Ela ficou muito aliviada e muito
desapontada. Queria encontrá-lo bem e em segurança, mas também queria
encontrá-lo ali.
Mas já era o bastante, disse a si mesma, simplesmente estar em casa, e
talvez fosse melhor que ele não estivesse ali, que absolutamente nada
estivesse ali, que todas as tristezas, sonhos, feitiçarias e terrores de Re Albi
tivessem ficado para trás, para sempre. Ela estava ali, agora, e aquele era o
seu lar, aqueles pisos e paredes de pedra, aquelas janelinhas, os carvalhos do
lado de fora, escuros sob a luz das estrelas, aqueles quartos silenciosos e
arrumados. Tenar ficou acordada por algum tempo naquela noite. A filha
dormia no quarto ao lado, o quarto das crianças, com Therru, e Tenar
deitou-se na própria cama, a cama do marido, sozinha.
Ela dormiu. Acordou sem se lembrar de nenhum sonho.
***
Depois de alguns dias na fazenda, ela mal pensava no verão passado em
Overfell. Foi há muito tempo e era muito longe. Apesar da insistência de
Panaché de que não havia um pingo de trabalho a ser feito na fazenda, ela
encontrou muito que precisava ser feito: tudo o que havia sido deixado por
fazer durante o verão e tudo o que tinha de ser feito na época da colheita
nos campos e nos laticínios. Ela trabalhava desde o amanhecer até o
anoitecer e, se por acaso tivesse tempo para se sentar, fiava ou costurava para
Therru. O vestido vermelho finalmente estava pronto, um vestido bonito,
além de um avental branco para roupas elegantes e de um marrom-
alaranjado para o dia a dia.
— Agora, então, você está linda! — exclamou Tenar com orgulho de
costureira quando Therru o experimentou pela primeira vez.
Therru virou o rosto.
— Você é linda — disse Tenar em um tom diferente. — Escute, Therru.
Venha aqui. Você tem cicatrizes, cicatrizes feias, porque uma coisa feia e
maligna foi feita a você. As pessoas veem as cicatrizes. Mas também veem
você, e você não se resume às cicatrizes. Você não é feia. Você não é má.
Você é Therru e é linda. Você é Therru, que sabe trabalhar, andar, correr e
dançar lindamente com um vestido vermelho.
A criança ouviu, o lado liso e ileso do rosto tão inexpressivo quanto o
lado rígido e marcado pelas cicatrizes.
Therru olhou para as mãos de Tenar e tocou-as com seus dedinhos.
— É um lindo vestido — elogiou ela com sua voz fraca e rouca.
Quando Tenar ficou sozinha, dobrando os pedaços de tecido vermelho,
as lágrimas arderam-lhe nos olhos. Sentiu-se repreendida. Ela fizera o certo
ao costurar o vestido e falara a verdade à criança. Mas o certo e a verdade
não bastavam. Havia uma fenda, um vazio, um abismo, além do certo e da
verdade. O amor, o amor dela por Therru e o amor de Therru por ela, era
uma ponte sobre essa fenda, uma ponte de teia de aranha, mas o amor não
preenchia nem fechava a fenda. Nada fazia isso, e a criança sabia disso
melhor do que Tenar.
Chegou o dia do equinócio, um sol brilhante de outono queimando
através da névoa. O bronze estava nas folhas dos carvalhos. Na leiteria,
enquanto esfregava as panelas para lhes tirar o creme, com a janela e a porta
abertas para o ar doce, Tenar pensou que seu jovem rei estava sendo coroado
naquele dia em Havnor. Os senhores e senhoras circulavam em suas roupas
azuis, verdes e carmesim, mas ele usaria branco, ela imaginou. Ele subiria os
degraus da Torre da Espada, os degraus que ela e Ged tinham escalado. A
coroa de Morred seria colocada em sua cabeça. Ele se viraria ao som das
trombetas e se sentaria no trono há tantos anos vazio, contemplando seu
reino com aqueles olhos escuros que sabiam o que era dor, o que era medo.
Governe bem, governe por muito tempo, pensou ela, pobre rapaz! E ela pensou:
Ged devia estar colocando a coroa na cabeça dele. Ele devia ter ido.
Mas Ged estava nas pastagens altas pastoreando as ovelhas, ou talvez as
cabras, do homem rico. Era um outono claro, seco e dourado, e eles não
iriam trazer os rebanhos até que a neve caísse nas alturas.
Quando entrou na aldeia, Tenar fez questão de passar pela casa de Hera,
no final da Alameda do Engenho. Conhecer Musgo em Re Albi fez com
que ela desejasse conhecer Hera melhor, se conseguisse superar a suspeita e
o ciúme da bruxa. Tenar sentia falta de Musgo, embora tivesse Cotovia ali;
Tenar aprendera com a bruxa e passara a amá-la, e Musgo dera a ela e a
Therru algo de que precisavam. Esperava encontrar uma substituta para isso
ali. Mas Hera, embora muito mais limpa e confiável que Musgo, não tinha
intenção de desistir da sua antipatia por Tenar. Ela tratava as suas propostas
de amizade com um desprezo que, Tenar admitiu, talvez fosse merecido.
— Você segue o seu caminho, eu sigo o meu — disse a bruxa de todas as
formas, menos com palavras; e Tenar obedeceu, embora continuasse a tratar
Hera com grande respeito quando se encontravam. Ela considerou que, por
tê-la desprezado tantas vezes e por tanto tempo, devia-lhe reparação.
Evidentemente concordando, a bruxa aceitou o que lhe era devido com ira
inflexível.
Em meados do outono, o ocultista Faia subiu o vale, chamado por um
rico fazendeiro para tratar sua gota. Permaneceu algum tempo nas aldeias do
Vale Central, como costumava fazer, e passou uma tarde na Fazenda do
Carvalho, examinando Therru e conversando com Tenar. Queria saber tudo
o que ela lhe contasse sobre os últimos dias de Ogion. Ele fora aprendiz de
um aprendiz de Ogion e um admirador devoto do mago de Gont. Tenar
descobriu que não era tão difícil falar de Ogion como de outras pessoas de
Re Albi e contou-lhe tudo o que pôde. Quando ela terminou, Faia
perguntou com um pouco de cautela:
— E o Arquimago… Ele veio?
— Sim — respondeu Tenar.
Faia, um homem de pele lisa e aparência serena, na casa dos quarenta
anos, um pouco propenso ao sobrepeso, com semicírculos escuros sob os
olhos que desmentiam a suavidade do rosto, olhou para ela e não perguntou
nada.
— Ele veio depois da morte de Ogion. E foi embora — explicou Tenar.
E em seguida: — Ele não é arquimago agora. Sabia disso? — Faia assentiu.
— Há alguma notícia da escolha de um novo arquimago?
O ocultista sacudiu a cabeça em sinal negativo.
— Teve um navio vindo das Enlades não muito tempo atrás, mas não
houve palavra alguma de sua tripulação sobre qualquer coisa além da
coroação. Só falavam disso! E parece que todos os auspícios e eventos foram
afortunados. Se a boa vontade dos magos é valiosa, então esse nosso jovem
rei é um homem afortunado… e ativo, ao que parece. Há uma ordem vinda
por terra do Porto de Gont, pouco antes de eu deixar Valmouth, para que os
nobres, os mercadores, o prefeito e seu conselho se reúnam e façam com que
os oficiais de justiça do distrito sejam homens dignos e responsáveis, pois
agora são os representantes do rei e devem fazer a vontade dele e promulgar
sua lei. Bem, você pode imaginar como o Senhor Heno recebeu isso! —
Heno era um notável patrono dos piratas, que por muito tempo manteve em
seu bolso a maioria dos oficiais de justiça e xerifes do mar no sul de Gont.
— Mas havia homens dispostos a enfrentar Heno, com o rei na retaguarda
deles. Demitiram de imediato o antigo grupo e nomearam quinze novos
oficiais de justiça, homens decentes, pagos com os fundos do prefeito. Heno
saiu furioso, jurando destruição. É uma nova era! Não toda de uma vez, é
claro, mas está chegando. Gostaria que o Mestre Ogion tivesse vivido para
vê-la.
— Ele viu — disse Tenar. — Quando estava morrendo, ele sorriu e disse:
“Tudo mudou…”.
Faia interpretou isso com sua maneira sóbria, assentindo lentamente.
— Tudo mudou — repetiu ele. Depois de um instante, disse: — A
pequena está muito bem.
— Bem o bastante… Às vezes acho que não o suficiente.
— Senhora Goha — disse o ocultista —, se eu ou qualquer ocultista ou
bruxa ou, ouso dizer, feiticeiro, a tivéssemos mantido e usado todo o poder
de cura da Arte da Magia nela durante todos esses meses desde que foi
ferida, ela não estaria melhor. Talvez não tão bem quanto está. Você fez tudo
o que podia ser feito, senhora. Você operou uma maravilha.
Tenar ficou emocionada com o elogio sincero de Faia, mas aquilo a
deixava triste; ela lhe disse por quê:
— Não é o suficiente. Não posso curá-la. Ela é… O que ela deve fazer?
O que será dela? — A mulher soltou o fio que estava tecendo na haste do
fuso e admitiu: — Estou com medo.
— Por ela — completou Faia, quase como uma interrogação.
— Com medo porque o medo dela atrai para si, para ela mesma, a causa
do medo dela. Com medo porque… — Mas a mulher não conseguia
encontrar palavras para dizê-lo. — Se viver com medo, ela provocará o mal
— concluiu, enfim. — Tenho medo disso.
O ocultista ponderou.
— Pensei — disse ele finalmente com seu jeito tímido — que talvez, se
ela tiver o dom, como acho que tem, ela poderia ser um pouco treinada na
Arte. E, como uma bruxa, ela… A aparência não se colocaria tão contra
ela… Possivelmente. — Ele limpou a garganta. — Existem bruxas que
fazem um trabalho muito digno de crédito — acrescentou.
Tenar deslizou entre os dedos o fio que fiara, testando a regularidade e a
resistência.
— Ogion me disse para ensiná-la. “Ensine tudo a ela”, disse ele, e depois,
“Nada de Roke”. Não sei o que quis dizer.
Faia não teve dificuldade com aquilo.
— Ele quis dizer que o aprendizado de Roke, as Artes Elevadas, não
seria adequado para uma garota — explicou o ocultista. — Muito menos
para alguém com deficiência. Mas se ele disse para ensinar tudo a ela, menos
essa tradição, parece que ele também via que o caminho dela poderia muito
bem ser o caminho das bruxas. — Faia ponderou novamente, com mais
alegria, tendo o peso da opinião de Ogion do seu lado. — Em um ou dois
anos, quando ela estiver bem forte e crescer um pouco mais, você pode
considerar pedir a Hera que comece a ensiná-la um pouco. Não muito, é
claro, nem mesmo para esse tipo de coisa, até que ela saiba o próprio nome
verdadeiro. — Tenar sentiu uma resistência forte e imediata à sugestão. Não
a verbalizou, mas Faia era um homem sensível. — Hera é uma pessoa rígida.
Mas o que ela sabe faz com honestidade. E isso não vale para todas as
bruxas. “Fraco como magia de mulher”, você sabe, “perverso como magia de
mulher”! Mas conheci bruxas com verdadeiro poder de cura. A cura convém
a uma mulher. É natural para ela. E a criança pode se sentir atraída por isso,
tendo sido tão machucada.
A bondade dele, refletiu Tenar, era inocente.
Ela agradeceu, alegando que pensaria com carinho em suas palavras. E,
de fato, foi o que fez.
***
inverno
***
***
***
Foi um inverno de fortes nevascas em Gont, e um inverno longo. A colheita
foi boa. Havia comida para os animais e para as pessoas, e não havia muito o
que fazer além de comê-la e manter-se aquecido.
Therru aprendeu A criação de Éa toda. Ela recitou o Conto de inverno e a
Saga do Jovem Rei no dia do Regresso do Sol. Ela sabia manusear uma massa
de torta, girar a roda de fiar e fazer sabão. Ela conhecia o nome e o uso de
todas as plantas que emergiam da neve e uma vasta quantidade de outros
conhecimentos, herbais e verbais, que Ged guardara na cabeça desde sua
curta aprendizagem com Ogion e de seus longos anos na Escola de Roke.
Mas ele não havia retirado o Livro das Runas ou os Livros de Ensinamentos
da cornija da lareira nem ensinado à criança qualquer palavra da Língua da
Criação.
Ele e Tenar falaram sobre isso. Ela lhe contou como ensinara a Therru
uma única palavra, tolk, e depois parou, pois não lhe parecera correto,
embora não soubesse o porquê.
— Pensei que talvez fosse porque nunca tinha falado verdadeiramente
essa língua, nunca a usei em magia. Achei que talvez ela devesse aprender
com um verdadeiro falante.
— Nenhum homem é isso.
— Nenhuma mulher é metade disso.
— Quis dizer que apenas os dragões a falam como língua nativa.
— Eles a aprendem?
Impressionado com a pergunta, Ged demorou a responder, obviamente
recordando tudo o que se dizia e sabia sobre os dragões.
— Não sei — respondeu, enfim. — O que sabemos sobre eles? Será que
ensinariam como nós, de mãe para filho, do mais velho para o mais novo?
Ou são como os animais, ensinando algumas coisas, mas sabendo a maior
parte já ao nascer? Mesmo isso não sabemos. Meu palpite é que o dragão e a
fala do dragão são um só. Um ser.
— E eles não falam outra língua.
Ged assentiu.
— Eles não aprendem — disse. — Eles são.
Therru passou pela cozinha. Uma de suas tarefas era manter cheia a caixa
de gravetos, e ela estava ocupada com isso, embrulhada em uma jaqueta e
um capuz de pele de cordeiro, trotando de um lado para o outro do depósito
de madeira até a cozinha. Ela largou a carga na caixa perto do canto da
chaminé e partiu novamente.
— O que é que ela canta? — Ged perguntou.
— Therru?
— Quando está sozinha.
— Mas ela nunca canta. Ela não consegue.
— Do jeito dela de cantar. “Mais a oeste do que o oeste”…
— Ah! — compreendeu Tenar. — Essa história! Ogion nunca lhe contou
sobre a Mulher de Kemay?
— Não — disse ele —, me conte.
Tenar contou-lhe a história enquanto fiava, e o ruído e o silêncio da roda
acompanhavam as palavras da história. No final, disse:
— Quando o Mestre Cifra dos Ventos me contou como veio procurar
por “uma mulher em Gont”, pensei nela. Mas ela já estaria morta, sem
dúvida. E como uma pescadora que era um dragão poderia ser arquimaga,
de qualquer maneira?
— Bem, o Padronista não disse que uma mulher em Gont seria
arquimaga — pontuou Ged. Ele estava consertando uma calça muito
rasgada, sentado no parapeito da janela para aproveitar a pouca luz que o dia
escuro proporcionava. Passara-se meio mês desde o Regresso do Sol e era a
época mais fria até então.
— O que ele disse, então?
— “Uma mulher em Gont”. Segundo você me contou.
— Mas eles estavam perguntando quem seria o próximo arquimago.
— E não obtiveram resposta para essa pergunta.
— Infinitos são os debates entre os magos — evocou Tenar um tanto
secamente.
Ged arrancou o fio com uma mordida e enrolou o pedaço não utilizado
em torno de dois dedos.
— Aprendi a tergiversar um pouco em Roke — admitiu ele. — Mas isso
não é uma tergiversação, eu acho. “Uma mulher em Gont” não pode se
tornar arquimaga. Nenhuma mulher pode ser arquimaga. Ela destruiria o
que se tornou ao tornar-se. Os Magos de Roke são homens: o poder deles é
o poder dos homens, o conhecimento deles é o conhecimento dos homens.
Tanto a masculinidade quanto a magia são construídas sobre a mesma
rocha: o poder pertence aos homens. Se as mulheres tivessem poder, o que
seriam os homens senão mulheres que não podem ter filhos? E o que seriam
as mulheres senão os homens que podem?
— Arrá! — soltou Tenar; e logo, com certa astúcia, retorquiu: — Não
houve rainhas? Elas não eram mulheres poderosas?
— Uma rainha é apenas uma mulher-rei — afirmou Ged. Tenar bufou.
— Quero dizer que os homens dão poder a ela. Deixaram-na usar seu
poder. Mas não é dela, certo? Não é porque ela é mulher que ela é poderosa,
e sim apesar de ser mulher.
Tenar assentiu. Ela se espreguiçou, recostando-se na roda.
— Qual é o poder de uma mulher, então? — perguntou ela.
— Acho que não sabemos.
— Quando uma mulher tem poder porque é mulher? Com os filhos,
suponho. Por um tempo…
— Na casa dela, talvez.
Tenar passou os olhos pela cozinha.
— Mas as portas estão fechadas — disse ela —, as portas estão
trancadas.
— Porque você é valiosa.
— Ah, sim. Somos preciosas. Enquanto estivermos impotentes…
Lembro-me de quando aprendi isso pela primeira vez! Kossil me
ameaçou… Eu, a Sacerdotisa Una das Tumbas. E percebi que estava
indefesa. Eu tinha a honra; mas ela tinha o poder, do Deus-Rei, o homem.
Ah, isso me deixou com raiva! E me assustou… Cotovia e eu conversamos
sobre isso uma vez. Ela questionou: “Por que os homens têm medo das
mulheres?”.
— Se a força de alguém é apenas a fraqueza do outro, vive-se com medo
— respondeu Ged.
— Sim; mas as mulheres parecem temer a própria força, ter medo de si
mesmas.
— Já foram ensinadas a confiar em si mesmas? — perguntou Ged, e
enquanto ele falava, Therru voltou realizando seu trabalho. Os olhos dele e
de Tenar se encontraram.
— Não — replicou Tenar. — Confiança não é o que aprendemos. — Ela
observou a criança empilhando a lenha na caixa. — Se o poder fosse
confiança — disse ela. — Eu gosto dessa palavra. Se não fossem todos esses
arranjos: um acima do outro, reis, mestres, magos e proprietários… Tudo
parece tão desnecessário. O verdadeiro poder, a verdadeira liberdade,
residiria na confiança, e não na força.
— Assim como as crianças confiam nos pais — disse ele. Ambos ficaram
em silêncio. Ged continuou: — Do jeito que as coisas estão, até a confiança
é corrupta. Os homens em Roke confiam em si mesmos e uns nos outros.
Seu poder é puro, nada mancha sua pureza, e por isso consideram essa
pureza como sabedoria. Não conseguem conceber o ato de fazer algo errado.
Tenar ergueu os olhos para ele. Ged nunca havia falado sobre Roke dessa
maneira antes, de uma forma totalmente externa, livre.
— Talvez precisem de algumas mulheres lá para lhes apontar essa
possibilidade — comentou ela, e ele riu. Tenar reiniciou a roda. — Ainda
não vejo por que, se pode haver mulheres-reis, não possa haver mulheres-
arquimagos.
Therru estava ouvindo.
— Neve quente, água seca — disse Ged, um ditado gontês. — Os reis
recebem o poder de outros homens. O poder de um mago é dele mesmo… é
ele mesmo.
— E é um poder masculino. Porque nem sabemos o que é o poder da
mulher. Tudo bem. Eu entendo. Mesmo assim, por que eles não conseguem
encontrar um arquimago… Um homem-arquimago?
Ged estudou a costura esfarrapada das calças.
— Bem — ponderou ele —, se o Padronista não estava respondendo à
pergunta deles, estava respondendo a uma que eles não perguntaram. Talvez
o que tenham de fazer é perguntar.
— É um enigma? — perguntou Therru.
— É — respondeu Tenar. — Mas não sabemos o enigma. Apenas
sabemos a resposta dele. A resposta é: “uma mulher em Gont”.
— Existem muitas delas — observou Therru depois de refletir um pouco.
Aparentemente satisfeita com isso, saiu para pegar a próxima carga de
gravetos.
Ged observou-a partir.
— Tudo mudou — disse ele. — Tudo… Às vezes penso, Tenar,
pergunto-me se a realeza de Lebannen é apenas um começo. Um portal… E
ele o sentinela. Para impedir a passagem.
— Ele parece tão jovem — disse Tenar, com ternura.
— Tão jovem quanto Morred era quando defrontou os Barcos Negros.
Jovem como eu era quando… — Ele parou de falar, olhando através da
janela os campos cinzentos e congelados por entre as árvores nuas. — Ou
como você, Tenar, naquele lugar escuro… O que é juventude ou idade? Não
sei. Às vezes sinto como se estivesse vivo há mil anos; às vezes sinto que
minha vida tem sido como uma andorinha voadora vista através da fresta de
uma parede. Morri e renasci, tanto na Terra Árida como aqui sob o sol, mais
de uma vez. A Criação nos diz que todos nós retornamos e voltamos para
sempre à fonte e que a fonte é incessante. Apenas na morte vida… Pensei
nisso quando estava com as cabras na montanha, onde um dia durava uma
eternidade e ainda assim não passava nenhum tempo antes que a noite
chegasse e a manhã novamente… Aprendi a sabedoria das cabras. Então,
pensei: para que serve essa minha dor? Por qual homem estou de luto? Ged,
o Arquimago? Por que Falcão, o pastor de cabras, está doente de tristeza e
vergonha por ele? O que fiz para me envergonhar?
— Nada — respondeu Tenar. — Nada, nunca!
— Ah, sim — disse Ged. — Toda a grandeza dos homens se baseia na
vergonha, é feita dela. Então Falcão, o pastor de cabras, se enlutou por Ged,
o Arquimago. Também cuidava das cabras, como se poderia esperar que um
menino de sua idade fizesse.
Passado algum tempo, Tenar sorriu. Ela disse, um pouco tímida:
— Musgo disse que você estava com cerca de quinze anos.
— Isso estava mais ou menos certo. Ogion me deu o nome no outono; e
no verão seguinte fui para Roke… Quem era aquele garoto? Um vazio…
Uma liberdade.
— Quem é Therru, Ged?
Ele não respondeu até que ela pensasse que ele não iria responder, e
então disse:
— Assim formada, que liberdade existe para ela?
— Somos a nossa liberdade, então?
— Penso que sim.
— Você parecia, em seu poder, tão livre quanto um homem pode ser.
Mas a que custo? O que o tornou livre? E eu… fui criada, moldada como
barro, pela vontade das mulheres que serviam aos Antigos Poderes ou que
serviam aos homens que criavam todos os serviços, modos e lugares, já não
sei quais. Depois fiquei livre, com você, por um momento, e com Ogion.
Mas não era minha liberdade. Só que isso me deu escolha; e eu escolhi.
Escolhi me moldar como barro para os fins de uma fazenda, de um
fazendeiro e de nossos filhos. Criei de mim mesma um receptáculo.
Conheço sua forma. Mas não o barro. A vida me dançou. Conheço as
danças. Mas não sei quem é a dançarina.
— E ela — acrescentou Ged depois de um longo silêncio —, se algum
dia dançasse…
— Eles vão temê-la — sussurrou Tenar.
Então a criança voltou e a conversa girou em torno da massa do pão que
crescia na caixa perto do fogão. Eles conversaram assim, baixinho e por
muito tempo, passando de um assunto para outro, girando e voltando,
durante metade do curto dia, muitas vezes, tecendo e costurando suas vidas
com palavras, os anos, as proezas e os pensamentos que não haviam
compartilhado. Então, de novo, ficavam em silêncio, trabalhando, pensando
e sonhando, e a criança silenciosa estava com eles.
Assim se passou o inverno, até que chegou a época do nascimento dos
cordeiros e o trabalho ficou muito pesado por um tempo à medida que os
dias se prolongavam e ficavam claros. Então as andorinhas vieram, com o
sol, das ilhas do Extremo Sul, onde a estrela Gobardon brilha na constelação
do Fim; mas toda a conversa das andorinhas entre si era a respeito do início.
capítulo 13
o mestre
***
Ged e Faísca entraram ao anoitecer, vindos de extremos opostos da fazenda.
Era evidente que Faísca tinha conversado com Arroio Claro e pensado na
situação, e Ged estava evidentemente tentando analisar o recém-chegado.
Muito pouco foi dito no jantar e sempre com cautela. Faísca não se queixou
de não ter seu próprio quarto de volta, mas subiu correndo a escada até o
sótão, como o marinheiro que era, e, ao que pareceu, ficou satisfeito com a
cama que sua mãe preparara para ele lá, pois só voltou para baixo no fim da
manhã.
Ele queria o desjejum e esperava que lhe fosse servido. Seu pai sempre
foi servido por mãe, esposa, filha. Ele era menos homem que o pai? Ela
deveria provar isso? Tenar serviu a refeição, retirou-a para ele e voltou para o
pomar onde ela, Therru e Panaché estavam queimando uma praga de
lagartas que ameaçava destruir os frutos recém-formados.
Faísca foi se juntar a Arroio Claro e Turra. Ficava principalmente com
eles, à medida que os dias passavam. O trabalho pesado que exigia músculos
e o trabalho qualificado com as colheitas e as ovelhas era feito por Ged,
Panaché e Tenar, enquanto os dois velhos que estiveram lá durante toda a
vida, os homens do pai dele, circulavam com Faísca pelas terras e contavam
como administravam tudo, de fato acreditando que estavam administrando
tudo e compartilhando sua crença com ele.
Tenar sentia-se infeliz em casa. Era somente ao ar livre, no trabalho da
fazenda, que sentia alívio da raiva e da vergonha que a presença de Faísca
lhe trazia.
— É minha vez — disse ela a Ged, com amargura, na escuridão estrelada
do quarto deles. — É minha vez de perder aquilo de que mais me orgulhava.
— O que você perdeu?
— Meu filho. O filho que não criei para ser homem. Eu falhei. Eu falhei
com ele. — Ela mordeu o lábio, fitando a escuridão com os olhos secos.
Ged não tentou discutir com ela nem a convencer a se desvencilhar de
sua dor. Ele perguntou:
— Acha que ele vai ficar?
— Sim. Ele tem medo de tentar voltar para o mar. Ele não me contou a
verdade, ou não me contou toda a verdade, sobre seu navio. Ele era o
segundo imediato. Suponho que estivesse envolvido no transporte de
mercadorias roubadas. Pirataria de segunda mão. Não ligo. Os marinheiros
gonteses são todos em parte piratas. Mas ele mente sobre isso. Ele mente.
Está com ciúmes de você. É um homem desonesto e invejoso.
— Creio que esteja assustado — ponderou Ged. — Ele não é mau, e é a
fazenda dele.
— Então ele pode ficar com ela! E que ela seja tão generosa com ele
quanto…
— Não, meu amor — interveio Ged, amparando-a com a voz e com as
mãos —, não fale… Não pragueje!
Ele era tão rápido, tão apaixonadamente sincero, que a raiva dela se
transformou no amor que era sua fonte, e ela chorou.
— Eu não amaldiçoaria a ele ou a este lugar! Não quis dizer isso! Só que
isso me dá tanta pena, tanta vergonha! Sinto muito, Ged!
— Não, não, não. Querida, não me importo com o que o garoto pensa de
mim. Mas ele é muito duro com você.
— E com Therru. Ele a trata como… Ele disse, ele me disse: “O que ela
fez para ficar assim?”. O que ela fez…!
Ged acariciou o cabelo dela, como sempre fazia, com uma carícia leve,
lenta e repetida que deixava ambos sonolentos de prazer afetuoso.
— Eu poderia voltar a pastorear cabras — disse ele, por fim. — Isso
facilitaria as coisas para você aqui. Exceto pelo trabalho…
— Prefiro ir com você.
Ged acariciou-lhe o cabelo e pareceu refletir.
— Suponho que sim — concordou ele. — Havia algumas famílias lá em
cima pastoreando ovelhas, acima de Lissu. Mas depois vem o inverno…
— Talvez algum fazendeiro nos contrate. Conheço o trabalho… e as
ovelhas… E você conhece as cabras… E você é rápido em tudo…
— Útil com forcados — ele murmurou e obteve uma risadinha dela.
Na manhã seguinte, Faísca acordou cedo para comer com eles, pois ia
pescar com o velho Turra. Levantou-se da mesa e disse com mais graça do
que de costume:
— Vou trazer uma porção de peixes para o jantar.
Tenar tomara decisões durante a noite. Ela disse:
— Espere; você pode tirar a mesa, Faísca. Coloque os pratos na pia e
coloque água sobre eles. Serão lavados junto às coisas do jantar.
Ele a encarou por um momento.
— Isso é trabalho de mulher. — respondeu enquanto colocava uma
boina.
— É trabalho para qualquer um que coma nesta cozinha.
— Não meu — disse ele, categoricamente, e saiu.
Tenar o seguiu. Ela ficou na soleira da porta.
— É do Falcão, mas não seu? — questionou. Faísca apenas assentiu e
atravessou o pátio. — É tarde demais — assumiu ela, voltando para a
cozinha. — Falhei, falhei. — Ela podia sentir as rugas em seu rosto, rígidas,
ao lado da boca, entre os olhos. — Pode-se regar uma pedra — disse —, mas
ela não vai crescer.
— É preciso começar quando eles são jovens e tenros — disse Ged. —
Como eu.
Desta vez ela não conseguiu rir.
Voltaram para casa depois do dia de trabalho e viram um homem
conversando com Faísca no portão da frente.
— Aquele é o sujeito de Re Albi, não é? — perguntou Ged, cujos olhos
eram muito bons.
— Venha, Therru — chamou Tenar, pois a criança tinha parado. — Que
sujeito? — Ela era bastante míope e semicerrou os olhos na direção do
quintal. — Ah, qual é o nome dele? O negociante de ovelhas. Toutinegra.
Por que ele está aqui, esse urubu?
O humor dela durante todo o dia tinha sido feroz, e Ged e Therru
sabiamente não se pronunciaram.
Tenar foi até os homens no portão.
— Veio por causa das cordeiras, Toutinegra? Você está um ano atrasado;
mas ainda há algumas deste ano no rebanho.
— É o que o mestre está me contando — disse o visitante.
— Está, é? — respondeu Tenar. O rosto de Faísca ficou mais sombrio do
que nunca com o tom dela. — Então não vou interromper você e o mestre
— avisou ela.
Já estava se virando quando Toutinegra falou:
— Tenho uma mensagem para você, Goha.
— A terceira vez é a que dá sorte.
— A velha bruxa, você sabe, a velha Musgo, ela está mal. Ela disse, já que
eu estava a caminho do Vale Central, ela disse: “Diga à Senhora Goha que
eu gostaria de vê-la antes de morrer, se houver uma chance de ela vir”.
Urubu, urubu, pensou Tenar, olhando com ódio para o portador de más
notícias.
— Ela está doente?
— Prestes a morrer — respondeu Toutinegra, com uma espécie de
sorriso que poderia ser uma expressão de simpatia. — Ficou doente no
inverno e está piorando rapidamente, então pediu para lhe dizer que deseja
muito ver a senhora, antes de ela morrer.
— Obrigada por trazer a mensagem — disse Tenar, com sobriedade, e
foi para casa. Toutinegra seguiu com Faísca até os currais.
Enquanto preparavam o jantar, Tenar disse a Ged e a Therru:
— Tenho de ir.
— É claro — concordou Ged. — Nós três, se você quiser.
— Vocês iriam? — Pela primeira vez naquele dia, seu rosto se iluminou e
a nuvem de tempestade se dissipou. — Ah — disse ela. — Isso… Isso é
bom… Eu não queria pedir, pensei que talvez… Therru, gostaria de voltar
para a casinha, a casa de Ogion, por uns tempos?
Therru parou a fim de refletir.
— Eu poderia ver meu pessegueiro — lembrou ela.
— Sim, e Érica… e Tetê… e Musgo, pobre Musgo! Ah, eu ansiava,
desejava voltar para lá, mas não parecia certo. Havia a fazenda para
administrar… E tudo…
Parecia-lhe que havia alguma outra razão pela qual não voltara, sequer se
permitira cogitar o retorno, nem mesmo sabia até aquele momento que
ansiava por ir; mas, qualquer que fosse a razão, desapareceu como uma
sombra, uma palavra esquecida.
— Alguém cuidou de Musgo, eu me pergunto, alguém mandou chamar
um curandeiro? Ela é a única curandeira em Overfell, mas há pessoas no
Porto de Gont que por certo poderiam ajudá-la. Ah, pobre Musgo! Eu
quero ir… É tarde demais, mas amanhã, amanhã cedo; e o mestre pode
preparar o próprio desjejum!
— Ele aprende — afirmou Ged.
— Não, ele não aprende. Ele encontrará alguma mulher tola para fazer
isso por ele. Ah! — Tenar passou os olhos pela cozinha, a expressão em seu
rosto era radiante e feroz. — Detesto ter de deixar para ela os vinte anos que
poli aquela mesa. Espero que ela goste!
Faísca trouxe Toutinegra para o jantar, mas o negociante de ovelhas não
quis passar a noite, embora, é claro, lhe fosse oferecida uma cama, por
hospitalidade. Teria sido uma das camas deles, e Tenar não gostou da ideia.
A mulher ficou feliz ao vê-lo partir para a casa de seus anfitriões na aldeia,
no crepúsculo azul da primavera.
— Amanhã vamos para Re Albi logo cedo, filho — disse ela a Faísca. —
Falcão, Therru e eu.
Ele parecia um pouco assustado.
— Vão sair assim?
— Assim como você foi; assim como você veio — retrucou a mãe. —
Agora, veja bem, Faísca: este é o cofrinho do seu pai. Tem sete moedas de
marfim nele e aquelas promissórias do velho Bridgeman, mas ele nunca vai
pagar, não tem nada com que pagar. Estas quatro moedas andradenses
Pederneira conseguiu vendendo peles de carneiro ao fornecedor do navio em
Valmouth durante quatro anos consecutivos, quando você era menino. Estas
três havnorianas foram o que Tholy nos pagou pela fazenda do Riacho Alto.
Pedi ao seu pai que comprasse aquela fazenda e o ajudei a limpá-la e vendê-
la. Vou pegar essas três moedas, pois as mereci. O restante e a fazenda são
seus. Você é o mestre.
O jovem alto e magro permaneceu ali, encarando o cofrinho.
— Pegue tudo. Eu não quero isso — respondeu ele em voz baixa.
— Não preciso disso. Mas agradeço, meu filho. Fique com as quatro
moedas. Quando você se casar, diga que são meu presente para sua esposa.
Ela guardou a caixa no lugar, atrás do prato grande da prateleira de cima
da cômoda, onde Pederneira sempre a guardava.
— Therru, prepare suas coisas agora, porque sairemos bem cedo.
— Quando você vai voltar? — perguntou Faísca.
O tom na voz dele fez com que Tenar pensasse na criança inquieta e
frágil que o filho fora. Ela apenas respondeu:
— Não sei, querido. Se precisar de mim, eu venho. — Tenar se ocupou
em pegar os sapatos e as bolsas de viagem. — Faísca, você pode fazer uma
coisa por mim.
Ele se acomodara no assento da lareira, parecendo inseguro e taciturno.
— O quê?
— Vá até Valmouth logo e veja sua irmã. E diga-lhe que voltei para
Overfell. Diga-lhe que, se ela quiser que eu venha, basta mandar uma
mensagem.
O filho assentiu. Observou Ged, que já tinha arrumado os seus poucos
pertences com o cuidado e a rapidez de quem muito viajara e agora
arrumava a louça para deixar a cozinha em bom estado. Feito isso, sentou-se
em frente a Faísca para passar uma corda nova pelos ilhós da bolsa a fim de
fechá-la na parte superior.
— Tem um nó que eles usam para isso — disse Faísca. — Nó de
marinheiro.
Ged lhe entregou a bolsa e assistiu a Faísca, em silêncio, do outro lado da
lareira, demonstrar o nó.
— Desliza, viu só? — comentou ele, e Ged assentiu.
***
tehanu
***
***
Conseguiram levar Musgo para a luz e o ar livre, lavar suas feridas e queimar
os lençóis sujos de sua cama enquanto Therru trazia roupa de cama limpa da
casa de Ogion. Ela também trouxe consigo Érica, a pastora de cabras. Com
a ajuda de Érica, a velha ficou confortável em sua cama, com suas galinhas; e
a pastora prometeu voltar com algo para comerem.
— Alguém tem de ir ao Porto de Gont atrás do feiticeiro de lá — disse
Ged. — Para cuidar de Musgo; ela pode ser curada, e ir à mansão. O velho
vai morrer agora. O neto poderá viver se a casa estiver limpa… — Ele havia
se sentado à porta da casa de Musgo. Encostou a cabeça no batente, sob a
luz do sol, e fechou os olhos. — Por que fazemos o que fazemos? —
questionou.
Tenar lavava o rosto, as mãos e os braços em uma bacia com água limpa
que pegara da bomba. Ela olhou em volta quando terminou.
Completamente exausto, Ged adormecera, com o rosto um pouco virado
para a luz da manhã. Ela se sentou ao seu lado na soleira da porta e apoiou a
cabeça em seu ombro. Fomos poupados?, pensou ela. Como é que fomos
poupados?
Olhou para a mão de Ged, relaxada e aberta no degrau de terra. Pensou
no cardo que balançava ao vento e na pata do dragão, com garras e escamas
vermelhas e douradas. Estava quase adormecendo quando a criança se
sentou ao seu lado.
— Tehanu — murmurou Tenar.
— A arvorezinha morreu — lamentou a criança.
Passado algum tempo, a mente cansada e sonolenta de Tenar
compreendeu e acordou o suficiente para responder.
— Há pêssegos na velha árvore?
Ambas falavam baixo, para não acordar o homem adormecido.
— Só uns pequenos e verdes.
— Vão amadurecer depois da Longa Dança. Em breve.
— Podemos plantar um?
— Mais de um, se você quiser. Tudo bem com a casa?
— Está vazia.
— Vamos morar lá? — Tenar despertou um pouco mais e colocou o
braço em volta da criança. — Tenho dinheiro — disse ela —, o bastante
para comprar um rebanho de cabras e o pasto de inverno de Turby, se ainda
estiver à venda. Ged sabe aonde levá-las montanha acima, no verão… Será
que a lã que penteamos ainda está lá?
Dizendo isto, ela pensou: Deixamos os livros, os livros de Ogion! Na lareira
da Fazenda do Carvalho… Para Faísca, coitado, que não consegue ler uma
palavra deles!
Mas não parecia importar. Havia coisas novas a serem aprendidas, sem
dúvida, e ela poderia mandar alguém buscar os livros, se Ged os quisesse. E
sua roda de fiar. Ou ela mesma poderia descer, no outono, para ver o filho,
visitar Cotovia e ficar um pouco com Mattiana. Teriam de replantar
imediatamente a horta de Ogion se quisessem quaisquer vegetais no verão.
Tenar pensou nas fileiras de feijões e no perfume de suas flores. Pensou na
janelinha que dava para o oeste.
— Acho que podemos morar lá — concluiu.
posfácio
***
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são
produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com fatos
reais é mera coincidência.
ISBN: 978-65-6099-002-9