Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Patrice Bollon A Moral Da Ma Scara
Patrice Bollon A Moral Da Ma Scara
. DA
MASCARA
M crvcilleux, Z a z o u s ,
D â n d i s , P u n k s , etc.
ritrxr
PATRICE BOLLON
A MORAL DA MÁSCARA
Merveilleux, Zazous,
Dândis, Punks, etc.
Tradução de
ANA M ARIA SCHERER
Eòceo'
Rio dc Janeiro — 1993
Ululo original
MORALE DU MASQUE
preparação de originais
MA1RA PARULA
revisão
WENDELL SETÚBAL
HENRIQUE TARNAPOLSKY
CIP-Brasil. CatalogaçAo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ.
Bollon, Patrice.
B674m A moral da máscara: mervállcux, zazous, d&ndis, punks, etc./
Patrice Bollon; tradução dc Ana Maria Scherer. — Rio de Janeiro:
Rocco. 1993.
CDD • 391
93-0522 CDU - 391
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
FIGURAS DE ESTILO
1. Inc’oyables e me’veilleuses......................................... 17
2. Tratado de luta simbólica.......................................... 37
3. Os românticos............................................................ 53
4. Os paraísos artificiais das aparências....................... 66
5. Zoot-suit e zoot-suiters.............................................. 77
6. Profetas de babados................................................... 90
7. Zazou-zazou-zazouhé................................................ 104
8. Ironizando o mundo.................................................. 117
9. Os punks..................................................................... 126
10. A revolta pelo estilo................................................ 145
SEGUNDA PARTE
A MORAL DA MÁSCARA
Superficiais por profundidade......................................... 163
A s duas “superficialidades.......................................... 171
Os trabalhos forçados da frivolidade............................. 179
O labirinto e o palácio.................................................... 187
O preço da graça............................................................. 196
A realidade do artifício................................................... 204
Café amargo ou café com açúcar?................................. 212
Da mentira como uma das Belas-Artes.......................... 219
Conclusão — A criação de si mesmo............................ 227
Dados bibliográficos........................................................ 235
Ah! esses gregos, como sabiam viver!
É preciso ser resoluto para ficar valentemente
na superfície, se limitar ao drapeado, à epider
me, adorar a aparência e acreditar na forma,
nos sons, nas palavras, em todo o Olimpo da
Aparência! Esses gregos eram superficiais...
em profundidade!
FIGURAS DE ESTILO
1
Inc’oyables e me’veilleuses
Os românticos
Os paraísos artificiais
das aparências
Como vimos, o Romantismo era um pouco de tudo ao mes
mo tempo: um traje, uma “ panóplia”, um estilo, uma arqui
tetura, uma mentalidade, um modo de vida, de hábitos, mas
também, num sentido geral, uma estética, uma filosofia, uma
mitologia, um panteão de figuras reais e imaginárias, um vo
cabulário, uma paleta de cores, um bestiário e uma flora (pois
havia também animais, árvores e flores “ românticos”, como
o gato e o salgueiro), uma fisionomia e uma silhueta, talvez
até, como sugerimos a respeito da teoria das emoções que ele
veiculava, uma maneira “ física” — em suma, uma total “con
cepção do mundo” que era aplicada a tudo ou pelo menos en
contrava sua tradução em cada coisa.
Esse caráter de “constelação sensível”, que regimentava por
meio de um sistema de sinais coerentes, de um modo ou de ou
tro, todas as manifestações da vida social, não era sempre tão
evidente nem tão explícito. Movimento global estendendo sua
influência por mais de meio século, o Romantismo era certa
mente uma das modas que mostrava nesse campo pretensões
mais amplas, quase totalitárias. Parecia que nada escapava ao
seu poder legislador. Ele influenciava todas as sensações, todas
as percepções, todas as idéias, como um prisma universal atra
vés do qual tudo deveria ser julgado, pesado e apreciado. Ele
estruturava tanto a realidade quanto o universo das represen
tações. Era a vida em sua totalidade que se achava regulamen
tada pelas normas por ele estabelecidas. Apesar disso: se o Ro
mantismo representa bem nesse campo um exemplo radical, qua
se de limite, todas as manias importantes, contanto que não nos
atenhamos às suas manifestações mais espetaculares e que ten
temos entrar em sua lógica interna, possuem, cm graus diver
sos, esse caráter de sistemas delimitando sensibilidades globais
PATRICE BOLLON 67
não podemos entendê-la com a ajuda dc algo que não seja eles.
No máximo poderíamos falar deles apenas sob o aspecto dc
puras tautologias: podemos descrevê-los, mas não analisá-los
porque não há nada a compreender além deles.
Faltaria contudo explicar por que esses movimentos to
talmente idealistas (no sentido em que eles são apenas puras
idéias, puras quimeras) conseguem dar, sobre suas épocas c so
ciedades, uma visão c às vezes antecipações realmente extraor
dinárias. De que maneira esses absolutos contra-sensos que são
os estilos acabam produzindo um sentido? A questão ainda
obceca nossas análises. Veremos como podemos superá-la par-
cialmcnte, ou pelo menos aplainar as contradições mais for
tes. Contentemo-nos com sugerir aqui uma pista — pois cer
tamente é apenas uma hipótese: no fundo, os estilos expressa
riam uma espécie de conhecimento “ poético” da realidade. Co
mo os mitos, os estilos, apesar de serem apenas fantasmas, ima
gens fluidas, no limite da recusa dc sentido, não atuam ccga-
mente: eles simplesmente assimilam o real de uma maneira di
ferente è complementar da linguagem.
5
Zoot-suit e zoot-suiters
ria existir apenas por sua vontade, unicamente por seu desejo
de ser. Ele se dizia também mais “ verdadeiro”, mais “ autênti
co”, mais “ franco” do que o mundo que o cercava, pois esta
va mais perto dos mais profundos impulsos fundamentais. Um
hedonismo sem limites — ou melhor, que só teria os limites
designados pelo desejo dos outros — lhe servia de única filo
sofia. Era preciso beber, dançar, seduzir, exibir-se, empolgar-
se e atordoar-se antes que a Noite caísse sobre aquele mundo
em suspenso. E mundo só existia um: o presente era o único
horizonte, o único futuro, que era preciso aproveitar antes que
ele se tornasse passado...
Isso não somente era possível, é claro, mas de uma certa
maneira era também uma atitude totalmente “ racional” — a
“ prova” sendo dada por aquela panóplia exuberante, unica
mente comandada pelo princípio do prazer, que portanto era
viável e onde nenhum elemento "oprimia” o outro. Assim co
mo a indumentária aristocrática do século XVIII, o zoot-suit
encontrava sua razão de ser na sua ausência de razão; sua fi
nalidade se confundia com sua absoluta falta de finalidade:
sua “ gratuidade” desenhava os marcos de um universo livre
das obrigações materiais onde tudo era apenas prazer, ociosi
dade, jogo libertino, e que é realmente o único que valia a pe
na ser vivido.
Paradoxalmente, seria uma medida governamental que iria
garantir a difusão daquela panóplia — extrema demais, aris
tocrática demais para se tornar por ela mesma popular — re
velando seu conteúdo protestatório. No início de 1941, o Ame
rican War Productions Board, encarregado de coordenar as in
dústrias civis e prevendo o estado de guerra então considera
do inevitável, introduziu normas muito precisas quanto à pro
dução e ao corte das roupas. Era preciso economizar tecido
e racionalizar os processos a fim de se produzir mais e por um
menor custo. Autoritariamente, a produção de trajes civis de
lã foi reduzida de um quarto. Os trajes que eram colocados
no mercado deviam ser curtos, estreitos e retos. As lapelas es
tavam banidas, assim como as pregas, as pinças, as virolas,
os bolsos duplos e as martingales — em suma, todos aqueles
supérfluos que provocavam gastos inúteis de tecido. Os om
bros deviam ser “ naturais”, sem padding. Tentavam o melhor
possível dispensar os forros. Era o fim do amplo, do vago, do
82 A MORAL DA MASCARA
Profetas de babados
tos cada vez mais violentos nas praias do sul, em Margate, de
pois em Hastings c finalmcnte em Brighton, onde colocaram
nitidamente em oposição duas concepções diferentes da evo
lução da classe operária na forma dos mods e dos rockers. De
um lado c do outro os insultos se definiram, revelando o de
bate que estava latente. Para os mods, os rockers eram “ retró
grados” e “ grosseiros”, próximos do lúmpen — enquanto os
rockers acusariam cada vez mais os mods de serem “esnobes
efeminados” e “ traidores” de sua classe. Em suma, cada um
iria se definir. A ideologia contida em cada estilo se expressa
ria na linguagem c essa expressão contribuiria para reforçar
as identidades dos mods c dos rockers.
Os mods se tornariam mais uma “ tribo” do que um ver
dadeiro movimento cultural c social. E sua estética ultrapas
saria o estreito quadro de uma fração da juventude: ela se uniria
à grande revolução cultural c social dos anos 60 ingleses. Ela
faria parte completamcnte do ‘‘Swingin’ London’’ que muda
ria c renovaria de alto a baixo a cultura e a própria concepção
tradicional das elites inglesas.
Aliás, em breve as diferenças apareceriam entre os mods-.
os mais sofisticados, que se autodenominavam stylists, passa
ram francamente para uma espécie de dandismo ultra-indivi
dualista. Seu vestuário se tornou cada vez mais absurdo, cada
vez mais inventivo e também cada vez mais "ambíguo”. Al
guns chegaram a se maquiar: eram os pré-hippies c um dia se
tornariam, como David Bowie e Marc Bolan, ambos ex-mods
de base, os grandes gurus do glitter c do glam rock, o rock
"decadente” dos anos 70, com suas imagens sofisticadas, sua
pretensão cultural e seu gosto pelo exagero. Na outra extremi
dade apareceram os heavy mods, os mods durões, que preten
diam permanecer fiéis a sua origem operária. Em camisetas
Fred Perry e jeans uniformes, seriam estes que no futuro, a
cada feriado, desembarcariam nas praias para relaxar. Com al
gumas modificações superficiais, esses dândis lumpens se tor
nariam cm breve os skinheads, ou seja, uma espécie de rock
ers (pela afirmação dos valores operários de “ virilidade” c “so
lidariedade” ) com, a mais, um pequeno toque de dandismo
e de prazer pelo enfeite vindo de sua origem mod. Enquanto
os rockers eram inimigos das mudanças, eles seriam — o que
é mais duro de suportar — os desiludidos. Sempre teriam a
102 A MORAL DA MASCARA
Zazou-zazou-zazouhé
res? Era a música que contava e o que se fazia com ela. Que
passo de dança poderia ser inventado para Honeysuckle Ro
se, rebatizado de Chèvrefeuille, para apagar sua origem ame
ricana, ou ainda para Some o f these days, que se tornara pela
mesma razão Bébéd ’amourl E quando seria o próximo “ fes
tival de swing” onde eles poderiam se sacudir à vontade, ber
rar e lançar do balcão aviões de papel feitos com os progra
mas? Eis aí verdadeiras questões, essenciais, vitais mesmo; mas
saber se o famoso “ front russo” avançava de maneira defen
siva ou então recuava para melhor avançar, que importância
tinha isso? De toda maneira os jornais diziam o que queriam.
Pois sim! Os zazous tinham mais o que fazer do que se preo
cupar com aqueles probleminhas!
Naquele final de abril de 1942, o tempo estava bom e fa
zia calor em Paris. A primavera estava atrasada naquele ano,
e depois, como acontece muitas vezes nesse caso, tudo chega
ra ao mesmo tempo, de uma só vez. O ar ficara mais ameno,
as castanheiras do bulevar Saint-Michel brotaram da noite para
o dia, os olhares começaram a brilhar e os bares tinham posto
suas mesas e cadeiras nos terraços. Uma verdadeira e bela pri
mavera, apesar de um pouco atrasada. Todavia, até o mais in
consciente dos zazous podia sentir: algo pairava no ar, como
se este estivesse mais pesado, mais carregado de ameaças som
brias. Não se passava um dia sem que a imprensa falasse de
les, dos zazous. Repórteres vieram entrevistá-los, observá-los,
mostravam-se até simpáticos naquele momento. Sim, mas o
fato é que o que depois era publicado não tinha muito a ver
com o que eles haviam dito. Estupefatos, tinham descoberto
assim, na revista Jeunesse, que eles eram todos “ judegaullis-
tas” “ attentistas”. “ Os jovens muito swing não têm o espírito
fascista, que é antes o espírito de alegria”, escrevera Robert Bra-
sillach num dos seus editoriais caudalosos no Je suispartout.
E o jovem e brilhante crítico teatral de Lm Gerbe, um tal de
André Castelot, chegara a se propor para lhes dar uma “ pal
mada pública”. Ah, é claro, tudo isso era apenas conversa; mas
mesmo assim os zazous teriam que tomar suas precauções —
como se uma ofensiva estivesse sendo preparada contra eles...
No entanto, até então os zazous tinham se divertido bas
tante. Tudo começara rcalmcnte depois da debandada, duran
te o inverno de 1940, um dos mais frios que Paris conhecera.
PATRICE BOI.LON 109
Zazous/ [...] Y ’a des Zazous dans mon quartier/ Moi, j ’le suis
déjà à moitié/ Un de ces jours ça vous prendra/ Ouadaladi-
doudadidouda — oua oua!”).'
Aliás, ouvindo com atenção cssa grande brincadeira ("Si
vous rencontrez un jour sur voire passage/ Un particulier coiffé
d ’un fromage mou/Tenant dans ses mains un poisson en ca
ge/ C ’est urn Zazou/C’est un Zazou [...] A son fu tu r gendre
avanl-hier/Ma concierge disait voyez-vous/Ma filie est vrai bi-
jou/Elle est encore mieux que vierge/Elle est zazoue/Elle est
zazoue”),' chegamos a duas conclusões: a primeira é que,
apesar de todos os ataques que sofreram, os zazous e seus ab
surdos passaram melhor, com mais galhardia, pela Ocupação
do que seus inimigos. A segunda é que de um estilo de indu
mentária, a palavra — como ocorre geralmente hoje em dia
— se tornou uma espccic de adjetivo, designando todas as trans
gressões gratuitas, impossíveis de compreender, do tipo lou
cura mansa e outras singularidades. Como se, depois do seu
desaparecimento, a sociedade conservasse ainda a lembrança
daqueles sujeitos que a atacaram em sua cpoca com a arma
suave, mas insuportável, da futilidade.1
1 ‘‘Até hoje na terra/ Um homem podia ser/ Branco ou preto/ Ou amarelo ou ver
melho/ E é só/ Mas uma outra raça está surgindo/ Sào os zazous./ Há zazous no
meu bairro/ Eu já sou meio um deles/ Um desses dias isso pegará cm vocc..." (N. da T.)
2 “ Sc encontrar um dia cm seu caminho/ Um sujeito com um chapéu de queijo bran
co/ Segurando um peixe numa gaiola/ É um zazou./ Anteontem ao seu genro/ Dizia
a minha zeladora/ Minha filha é uma jóia/ Melhor do que virgem/ Ela é zazoue.”
(N. da T.)
8
Ironizando o mundo
Os punks
sobretudo retroativa. Ela não era motora. Não era ela quem
ditava seus atos, ela se contentava em extrair o sentido c per
manecia parcial, incompleta, fugitiva e descontínua, subordi
nada que era ao seu desejo espontâneo de vida, desarmando
todos os cálculos c às vezes levando tudo em seu caminho. Em
resumo, nem os zazous nem os muscadins tinham, por assim
dizer, uma “estratégia” : eles queriam viver como desejavam;
e essa vontade de vida bastava para criar o escândalo, consti
tuía ela própria um escândalo.
Pelo contrário, com os punks, a consciência parecia ser
importante e contínua, instrumental e motora: ela era uma
“ causa” de onde nascia um cálculo, que nunca cedia diante
da exaltação de uma vida fantasmática. Nada de menos “es
pontâneo”, apesar das aparências, do que aqueles punks cul-
tuadores da desordem. Neles, tudo, até o mínimo detalhe, era
concebido como veículo de um possível efeito. O movimento
punk era um movimento tenso mesmo que nem sempre se pu
desse ver claramcnte para onde ele tendia, e o desejo de vida
nunca era expresso no estado puro, em toda a inocência da pai
xão: ao contrário, ele se misturava permanentemente a um cál
culo, estava sempre enquadrado, às vezes contrariado pela von
tade — que podia ir, como o vimos, até ao masoquismo e à
mortificação — isto é, à negação da vida —, de fazer o maior
mal possível. Nos punk, a consciência precedia c guiava a ação
— e nesse caso era realmentc uma verdadeira “consciência”.
Neles, a dimensão da intenção, além de estar sempre pre
sente e palpável, era reivindicada, constantemente reafirma
da, como “ encenada”. Os punks pareciam regozijar-sc tanto,
se não mais, de se verem c de se mostrarem provocando, quanto
de provocar realmente. Entre eles e seus atos se interpunham
constantemente um ou mais “graus” que eles não procuravam
absolutamente esconder, mas que, pelo contrário, mostravam
com ostentação. E a publicidade de seus atos parecia ser para
eles sempre mais importante do que os próprios atos, como
se estes não tivessem valor próprio, mas primeiro pelas conse
quências que podiam acarretar na sociedade. Se existem “ pro
vocadores” entre os movimentos de estilo, são ccrtamcnte os
punks. No fundo, viviam permanentemente diante de um es
pelho. Neles, tudo era dirigido para o “exterior”. Eles eram
espetaculares de ponta a ponta. E seu “ escândalo” era um es-
148 A MORAL DA MASCARA
A MORAL DA MÁSCARA
A s duas “superficialidades”
cusa passar por cima desta, por qualquer razão que seja. Ele
é filosofia no sentido estrito, original, pleno, do termo: amor
de sabedoria, sabedoria amante, sabedoria de vida. E da mes
ma forma que a superficialidade grega se confunde com o má
ximo de profundidade porque ela integra em si os limites da
profundidade, essa gaia ciência representa um saber superior
porque ela conhece seus limites como saber: ela aparece como
uma espécie de saber do saber, que como anuncia, e como dis
semos, forma o horizonte c o ponto de fuga da superficialida
de grega. E desta, ela chega a ser a tradução moral. Aliás, na
realidade, seria melhor, para evitar qualquer mal-entendido,
para designar essa atitude e esse processo de consciência, fa
iar de “ leveza” cm vez de “ superficialidade” como faz Nietz
sche, pois c rcalmente um verdadeiro “ alijamento” conscien
te, voluntário, deliberado, que prega aqui o autor de A gaia
ciência: uma maneira de se íibertar, sem cessar e com elegân
cia, do peso natural das coisas c para celebrar o milagre da
vida — em suma, uma ética inteira de vida, tanto em relação
a si próprio quanto em relação aos outros.
lho, o dândi só deve deixar este refletir a parte que ele quer
oferecer aos olhares dos outros. A dúvida, a sensibilidade, se
fazem parte de sua vida íntima, devem ficar “ fora do campo
visual”. Nenhum protesto de “ essência” pode vir dele, sob o
risco de ver ruir a fachada que ele construiu pacientemcntc.
O segredo, o enigma, devem permanecer para sempre o regis
tro obrigatório do dândi. “A invisibilidade me parece ser a con
dição da elegância”, escreve Cocteau no primeiro capítulo do
seu Journal d ’un inconnu, como para inscrever sua existência
sob uma máxima genérica que a resume inteiramente; porém
essa “ invisibilidade” que é também, diz Cocteau, “ uma mo
ral”, se torna progressivamente “o pretexto de mil mal
entendidos que se chamam glória”. Portanto aqui o drama é
interno, inevitável, pois resultante das próprias condições da
elegância. Nesse ponto o dandismo se parece com uma espé
cie de pacto quase satânico, no fim do qual o dândi vende ou
abdica de sua alma em troca de uma beleza exterior perfeita.
Verdadeiramente “condenado”, autocondcnado aos trabalhos
forçados da aparência, o dândi não saberia realmente se de
fender do julgamento dos outros. Ele deve se proibir qualquer
explicação, qualquer resposta sobre si mesmo. Sua imagem,
a que ele fabricou, não lhe pertence mais, pelo menos nesse
plano. Ela se torna uma realidade própria, que possui auto
nomia e sobre a qual o dândi não pode ter influência. A tal
ponto essa imagem é sua construção, a tal ponto ela se torna
seu destino, que seria inconsequência de sua parte — imper
feição radical — queixar-se das interpretações que ela pode pro
vocar. Dorian Gray, o herói de Oscar Wilde, deixa correr os
boatos que circulam sobre ele, sem tentar interrompê-los ou
corrigi-los. Desmenti-los seria reconhecer que, por trás da per
feita fachada que ele apresenta, existe um homem sob todos
os pontos igual aos outros, imperfeito, vil, lamentavelmente
humano. Esse segredo não pode ser revelado, sob pena de fa
zer tudo explodir. Se, como escreve Wilde, “ por trás de tudo
o que é delicioso, encontramos a tragédia”, essa tragédia não
deveria ser revelada, pois essa revelação significaria a morte
do dândi como tal. Queda eminentemente simbólica: no ro
mance de Wilde, Dorian Gray morre no mesmo instante em
que o segredo é desvendado. O dândi só é dândi porque ele
permanece, porque ele sabe permanecer fachada e apenas fa-
PATRICE BOI.LON 185
O labirinto e o palácio
O preço da graça
A realidade do artifício
A criação de si mesmo
1 Termo dc zombaria dado aos filósofos do scculo XVIII pelos seus adversários.
(N. da T.)
234 A MORAI. DA MASCARA
PRIMEIRA PARTE
Capítulos I c 2. Os muscadins
A obra clássica a cssc respeito continua sendo a célebre Histoire de lasocieté/rançai-
se pendam le Directoirc, dos irmáos Edmond c Jules de Goncourt (Paris, 1864) à qual
Im Jcuncsse dorée, de François Gcndron (Editions des Presses de PUnivcrsité du Québec,
1979) acrescenta numerosos detalhes históricos.
Capítulos 3 c 4. Os românticos
Os dois clássicos sáo Le Romantisme et la Mode de Louis Maigron (Paris, 1911) c,
é claro, Les Jcunes France de Théophile Gautier (reeditado cm 1979 pela Editions
des Autrcs), que podemos completar pela antologia sobre La France frénétique de
1830, de Jcan-Luc Stcinmctz (Editions Phébus, 1978).
Capítulos 5 c 6. Os zoot-suiters
Nào existe nenhum livro específico sobre este assunto, mas duas ficções recentes uti
lizam as “ revoltas do zoot-suit" como pano de fundo para sua açâo: Le Dahha noir,
de James Ellroy (Editions Rivagcs, 1988, para a traduçáo francesa), e Le Boulevard
des trahisons fZoot-Suit Murders), de Thomas Sanchez (Editions du Scuil; 1979, tam
bém para a traduçáo francesa).
Capítulos 7 c 8. Os zazous
A obra de referência, c única aliás, é a excelente monografia sobre Les Zazous, de
Jcan-Claudc Loiscau (Editions du Sagittairc, 1977, reeditada pela Grassct rcccntemcntc).
SEGUNDA PARTE