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Giorgio Zevini

A leitura orante
da Bíblia
Giorgio Zevini

A leitura orante
da Bíblia
COM A LEITURA ORANTE O CRISTÃO DEIXA
QUE A "PALAVRA FAÇA MORADA EM SI".

O SENHOR SE FAZ SEU COMPANHEIRO DE VIAGEM.

HOJE, NOVAMENTE, COMO NOS INÍCIOS,


NOS PRIMEIROS TEMPOS DA IGREJA.
2006 © Giorgio Zevini
Título original: La lectio divina nella uita del cristiano. Turim (Itália), Elledici, 2003.

Versão digital: A Leitura Orante da Bíblia, Brasília DF- 2014

Revisão: Zeneida Cereja da Silva

Sumário
Apresentação .................................................................................7
Deixar que a Palavra faça morada em nós ..................................9
1. Um pouco de história sobre a leitura orante ..........................12
2. Leitura orante: método pessoal de vida espiritual .................22

3. Collatio: da leitura orante pessoal à comunitária ...................35


4. Começar e terminar rezando ...................................................46

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EDB-EDITORA DOM BOSCO


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Apresentação

Giorgio Zevini é sacerdote salesiano e professor de Sagrada


Escritura na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia
Salesiana, em Roma. Recentemente, tornou-se também decano da
mesma faculdade.

Permito-me dizer que fui seu colega na Terra Santa e, mais


tarde, no Pontifício Instituto Bíblico, além de participarmos juntos
de diversos congressos da Associação Bíblica Salesiana, o último
deles foi o de Cracóvia, em que aprofundamos exatamente a leitura
orante em relação ao carisma salesiano. Sua amizade me é muito
preciosa e por ela louvo o Senhor.

A leitura orante da Bíblia, que agora apresento, é uma pequena


joia que vem enriquecer ainda mais nossas comunidades de oração.
O esquema do livro é simples: depois de uma introdução
(Deixar que a Palavra faça morada em nós), o autor apresenta uma
interessante síntese da história da leitura orante através dos séculos,
a partir do judaísmo antigo. Depois, trata da mesma enquanto rea-
lizada individualmente, e, a seguir, comunitariamente (collatio). Fi-
nalmente, informa sobre a oração inicial ao Espírito Santo (epiclese)
e sobre a oração final, com modelo para ambas. Sendo um volume

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de porte pequeno, as pessoas poderão lê-lo e relê-lo com facilidade
e grande utilidade.

Ao livro do caro colega desejo sucesso. E tudo de bom aos


seus atentos destinatários, sedentos ouvintes da Divina Palavra.

Introdução
Pe. Alcides Pinto da Silva, SDB
Instituto Teológico Pio XI, São Paulo
Deixar que a Palavra
faça morada em nós
Estamos vivendo na Igreja momentos de forte apelo espiritual,
e a escuta da Palavra de Deus na comunidade cristã e na vida de cada
fiel é lugar precioso onde o Espírito de Deus se manifesta. Hoje a
formação espiritual converge para uma realidade: conhecer, amar e
testemunhar o Cristo. O cristianismo é a experiência de uma pessoa
viva, de Alguém que quer entrar em diálogo conosco. As fontes vivas
para a formação espiritual são a Bíblia, a Liturgia e os escritos dos
Padres, nos quais o Espírito torna viva a Palavra, para ser inteligível e
sempre nova no interior da tradição e da fé da Igreja. 1
Este livro nasce da consciência de que é necessário voltar às
origens da vida cristã por meio do contato e da familiaridade com a
Bíblia, confrontando-a com a experiência pessoal e comunitária de
cada fiel.
O texto está dividido em quatro capítulos.

O primeiro traz uma breve história da lectio divina, então


leitura orante, das origens hebraicas até o período patrístico, e do
monge cartuxo Guido II (séc. 12) até nossos dias. Apresenta depois

___________________________
¹Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Dei Verbum (DV) [sobre a Revelação
divina], n. 12.

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Porém, conclui:
os momentos desse método antigo, mas ainda atual, para se con-
frontar com a Palavra de Deus. Se queremos encontrar algo daquilo que foi, nos primeiros séculos da
Igreja, o sentido espiritual da Escritura (isto é, a leitura orante), é im-
O segundo descreve a prática da leitura orante como método portante considerar as coisas com maior profundidade e maior liber-
pessoal, útil não apenas para os antigos monges, mas também para dade ao mesmo tempo. É necessário reproduzir incessantemente a luta
nós. Na verdade, o caminho da leitura orante não se conclui com a de Jacó com o anjo de Deus.
contemplatio, mas com a actio: um compromisso concreto de vida.
Este é um tempo de novo impulso espiritual para a vida da
O terceiro apresenta uma proposta metodológica de leitura Igreja, segundo as orientações do Concílio Vaticano II e as linhas
orante comunitária, como método sugerido aos párocos e aos ani- mestras do Magistério.
madores de grupos para "rezar a Palavra" em comum.
Por fim, acrescentamos dois modelos de oração, para o iní- Decifrar os sinais do nosso tempo
cio (epiclese) e a conclusão da leitura orante.
Sugerimos este livro sobre a leitura orante, esperando que ele
O itinerário espiritual tem como objetivo unificar o cristão ajude a decifrar, nas contradições do mundo de hoje, os sinais do
com a Palavra, para que ele possa percorrer um caminho de fé e Espírito e a interpretar os sinais dos tempos.
chegar à renovação eficaz da vida eclesial, que o conduza à comu-
Desejamos também que este texto auxilie a todos os que, não
nhão com Deus e com cada irmão e irmã. É fundamental, de fato,
tendo familiaridade com a Palavra de Deus, se deixem pouco a pou-
recriar a unidade da vida cristã ao redor da Palavra de Deus. Essa é
co iluminar e permitam que a Palavra faça morada em si, para irra-
a estrada aberta para um projeto de espiritualidade pastoral centrado
diar também aos outros a luz do Espírito de Deus.
na Bíblia. E a leitura orante divina apresenta um terreno prático e
fecundo de desenvolvimento e realização desse projeto. É necessário que o próprio Senhor se faça nosso companheiro de via-
gem ( ... ) e nos dê o seu Espírito. Somente Ele, presente entre nós, pode
fazer-nos compreender plenamente a sua Palavra e atualizá-la, pode
Reencontrar o entusiasmo dos inícios iluminar as mentes e aquecer os corações.²

A vida cristã conseguirá encontrar hoje o entusiasmo e a vita-


lidade dos inícios da Igreja, no tempo dos Padres, quando a leitura
orante marcava a vida de oração e de caridade apostólica das comu-
nidades cristãs? O cardeal Henri de Lubac (1896-1991) responde a
essa pergunta afirmando que faltam ainda a nós cristãos as condi-
ções para poder suscitar uma leitura bíblica "no Espírito", isto é,
uma leitura orante divina como a que praticavam a Igreja primitiva
e a época patrística. Ele escreve:
Falta a nós aquela fé cheia de entusiasmo, aquele senso de plenitude e
de unidade que as gerações passadas tinham, porque nos falta o Espíri-
to do qual provinham essas coisas. _________________________
2 CONGREGAÇAO PARA os INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOS-
TÓLICA, Instrução Partir de Cristo: um renovado compromisso da vida consagrada no terceiro
milênio, n. 2 (19/5/2002).

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Para nós, compreender a experiência da leitura orante signifi-
1. Um Pouco de história ca também conhecer seu itinerário histórico e os diversos aconteci-
mentos que acompanharam essa leitura popular e existencial da
sobre a leitura orante Palavra de Deus.

Para entender melhor nosso tema, não podemos prescindir de


O monge cartuxo Guido II (1115-1193), chamado a guiar, uma visão histórica da prática desta leitura. Isso vai permitir uma
como nono prior, a comunidade da grande cartuxa perto de
percepção mais acurada das motivações que geraram esse método
Grenoble, na França, descreve a experiência da leitura orante como
de leitura bíblica, do contexto que o alimentou e das condições e
um caminho do fiel em direção ao encontro com o Senhor Jesus,
exigências que o tornam possível ainda hoje.
palavra do Pai, que age e se revela por meio da Escritura:
Parece-nos útil, para essa panorâmica histórica, debruçar ra-
Um dia, enquanto estava ocupado no trabalho manual, pus-me a refle- pidamente sobre quatro momentos que caracterizaram o caminho da
tir sobre a atividade espiritual do ser humano. Então, improvisamente,
leitura orante na história: as raízes judaicas; a experiência da Igreja
quatro degraus espirituais se apresentaram à minha reflexão íntima: a
primitiva; o desenvolvimento monástico; e a crise da época
leitura, a meditação, a oração e a contemplação. Essa é a escada dos
monges, graças à qual são elevados da terra ao céu. É uma escada com moderna até o Concílio Vaticano II.
poucos degraus, mas de altura incomensurável, indizível. Sua extremi-
dade inferior está fixada à terra, a parte de cima penetra as nuvens e
1.1 A leitura orante no judaísmo antigo
sonda os segredos do céu.

Este texto foi tirado de uma breve carta, cujo título é "Esca- Para o povo hebreu, Palavra de Deus e oração são de tal forma
da dos monges ou Sobre a vida contemplativa", que Guido II en- ligadas entre si, que essa relação caracteriza a religiosidade hebraica
viou pouco antes de 1150 ao seu "muito amado irmão Gervásio", desde as origens. A leitura da Bíblia sempre foi entendida no judaísmo
um monge mais velho que ele e que o havia introduzido na vida a partir da vida, capaz de suscitar e alimentar a fé do povo eleito. Os
monástica. Com Guido, a leitura orante sofre um grande impulso rabinos diziam que a Palavra, a Torá, era a presença de Deus no
na Idade Média, ainda que seu método, já conhecido anterior- mundo criado, e que cada judeu piedoso a experimentava com a leitura,
mente, tenha suas raízes não só na fé da Igreja primitiva, mas tam- a meditação e a oração.
bém na piedade judaica. É significativa a descrição da leitura da Escritura na liturgia
hebraica, que se encontra no livro de Neemias. Nesse texto, leitura,
explicação e oração constituem o modo natural para se viver a rela-
ção com Deus (cf Ne 8,1-12). "O livro da Lei de Moisés, que o
Senhor havia prescrito a Israel", isto é, a Palavra de Deus, a Torá,
endereçada ao povo da eleição e da Aliança, constitui uma realidade
viva e uma presença real do Senhor.
De fato, é a proclamação da Lei que leva à convocação do
povo e que o constitui no monte Sinai em assembleia reunida (cf
Ex 19-24). É essa proclamação que, no tempo de Josias, permite a

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renovação da Aliança com Deus (cf 2Rs 23,1-25). É a centralidade Outro aspecto importante é a relação contínua de cada fiel
e a assunção da Lei, no tempo de Esdras, que levará o povo a jurar com o texto bíblico. Ao judeu é pedido que retribua o amor de Deus
fidelidade ao pacto com Deus (cf Ne 8,1-12; 10,1-40). em relação a ele com o mesmo amor, e essa atitude se expressa na
prática e no estudo das Escrituras.
A Palavra, religiosamente escutada e proclamada existencial-
mente, está presente em vários textos do Antigo Testamento, nas Cada judeu não tem apenas a obrigação de ler, mas também
liturgias solenes, onde a Lei mosaica, a Torá, era lida, em vista da de ter para si uma cópia da Torá, que se torna sagrada, a Sefer Torá,
conversão e do crescimento da fé do povo e de cada israelita. O povo o rolo da Palavra, e que precisa ser protegida e venerada como obje-
de Deus vive da Lei que, como um alimento celeste, pão substancioso to precioso. Tudo isso significa respeito e amor pelo texto sagrado,
e vinho inebriante, nutre e conserva os fiéis (cf Esd 15,26; Dt 8,3; no qual está escondida a verdade e o ensinamento da vida, e ao qual
32,46-47; Js 8,32-35; Pr 9,1-5; Eclo 24,18-19; Sb 16,26). todos devem acorrer para assimilar a "Palavra do Deus vivo". A lei-
tura, a meditação e a oração da Palavra conduzem a pessoa em sua
No centro, portanto, da vida e do culto hebraico está a escuta
relação com Deus, porque Ele está presente na Torá.
da Palavra: faz-se uma leitura solene e prolongada, seguida da expli-
cação e do comentário, que culmina no apelo de adesão de todos ao Não basta, portanto, apenas observar a Palavra. É preciso
Deus da Aliança e de compromisso com Ele. Recordemos a oração aplicar-se em lê-la e estudá-la com humildade interior, com des-
conhecida como "Shemá Israel": "Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus prendimento das coisas mundanas e com assiduidade. Essa prática
é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu cora- será depois vivida com maior fidelidade na comunidade de Qumran,
ção, com toda a tua alma e com todas as tuas forças" (Dt 6,4-5). Essa nos primeiros séculos antes de Cristo, cuja regra orienta seus mem-
escuta litúrgica comunitária continuará sempre em Israel. bros à prática assídua da leitura e da meditação da Lei, até o ponto
de prescrever que cada um faça, para si, uma cópia da Torá.
"Os preceitos que hoje te dou serão fixados em teu coração"
Na liturgia sinagogal, que prevê várias leituras bíblicas, igual- "Feliz quem na Lei do Senhor medita dia e noite"
mente se busca garantir o enraizamento contínuo da vida do povo no Para poder viver na fidelidade ao espírito e à realidade da
contexto da Aliança, prometida e realizada nas Escrituras, que são fi- Aliança, a Escritura deve ser lida e meditada dia e noite. Por isso,
xadas na mente, no coração e na vida: Deus ordenou a Josué no início do seu ministério: "Não cesses de
Trarás gravadas no teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. falar deste livro da Lei. Medita nele dia e noite, para que procures
Tu as repetirás com insistência a teus filhos e delas falarás quando esti- agir de acordo com tudo o que nele está escrito" (Js 1,8). Quem
veres sentado em casa ou andando a caminho, quando te deitares ou te permanece fiel a essa norma poderá fazer própria a bem-aventurança
levantares. Tu as prenderás como sinal à tua mão e as colocarás como da Palavra proclamada pelo salmista: "Feliz quem ( ... ) na Lei do
faixa entre os olhos, tu as escreverás nas entradas da tua casa e nos Senhor encontra sua alegria e nela medita dia e noite" (Sl 1,2).
portões da tua cidade (Dt 6,6-9).
Sintetizando, é possível afirmar que o judaísmo, ao longo de
O ensinamento dos rabinos segue essa direção e apresenta a
sua história, sempre compreendeu a leitura da Bíblia a partir da
proclamação da leitura bíblica na sinagoga como continuação da
vida, isto é, capaz de suscitar e reforçar a fé do povo na primeira
tradição hebraica viva, que é entregue à reflexão da comunidade.
Aliança.

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1.2 A leitura orante na Igreja primitiva Todos os Padres orientais e ocidentais praticaram o método
da leitura orante, especialmente nos esplêndidos comentários aos
O método clássico do judaísmo, de leitura, explicação e ora-
diversos livros da Bíblia, a tal ponto que esta leitura se difundiu
ção da Palavra, foi assumido também pelo cristianismo, como teste-
rapidamente entre o povo cristão como caminho privilegiado de
munham várias passagens do Novo Testamento (cf 2Tm 3,14-16;
oração e de experiência de Deus.
Lc 4,16-30; 24,13-35; At 8,26-40). A Igreja das origens, a exemplo
do próprio Jesus, continuou a rezar a Palavra, apesar de haver entre O primado da Palavra de Deus no contexto litúrgico, por-
as duas alianças uma relação de continuidade e descontinuidade. tanto, é um fato certo e muito importante da Igreja primitiva. A
Escritura era primeiro lida e depois penetrada no seu sentido mais
A novidade da experiência cristã na Palavra pode ser encon- profundo, por meio da exegese espiritual. Por fim, era atualizada
trada na vida de Jesus. Quando se insere no contexto litúrgico da numa perspectiva cristológica e eclesiológica.
sinagoga de Nazaré e de Cafarnaum, Jesus aprofunda o sentido e o
método da leitura orante, "não só porque ele atualiza em si o que as Esses elementos essenciais da leitura orante, além disso, reve-
Escrituras dizem, mas porque refere a palavra de Deus ao hoje", diz lavam um elemento exegético importante acerca da atitude necessá-
Enzo Bianchi. E continua: ria da parte do fiel para entender a Palavra, isto é, se abrir ao dom do
Espírito, o verdadeiro exegeta das Escrituras divinas.
Quando, em Nazaré, Jesus lê o trecho de Isaías 61, ele traz o texto para
aquele momento, e os ouvintes percebem que a palavra de Isaías, dita
há séculos, encontra o seu "hoje" na proclamação de Jesus (Lc 4, 16 1.3 A leitura orante no período monástico
ss). E as pessoas ficam estupefatas diante desse hoje.
Já mostramos a importância da contribuição dos Padres da
Depois de Pentecostes, a doutrina e a prática dos apóstolos e Igreja para a leitura orante. Eles representam uma época fundamen-
da Igreja primitiva será a mesma seguida por Jesus, das quais o epi- tal por causa do testemunho de fé e por terem colocado a Palavra de
sódio dos dois discípulos de Emaús permanece um modelo exem- Deus no centro do aprofundamento do pensamento cristão. Os
plar (cf Lc 24,13-35). A experiência de vida dos discípulos era de Padres liam as Escrituras in Ecclesia, na Igreja. Eles são, por isso, "os
obediência total ao Mestre, de viver a fé nele e de ver nele o cumpri- intérpretes da Palavra", "os comentadores dos livros sagrados" (San-
mento e a plenitude das Escrituras. Essa experiência totalmente nova to Agostinho). A Bíblia, para eles, não é apenas um livro importan-
e desconcertante foi um reflexo da ressurreição de Jesus e do envio te, mas o "livro" da vida, o caminho seguro que leva à descoberta do
do Espírito Santo, realidades extraordinárias "que transformaram o mundo de Deus e à comunhão com Ele.
coração dos primeiros cristãos. As origens do cristianismo são, por
isso, caracterizadas pelo frescor e pela novidade da experiência apos- Os Padres "respiram a Escritura". Esta se torna para eles o
tólica, centrada na Boa Nova de Jesus. Os primeiros discípulos di- pão e o alimento da sua "contínua ruminação" (Santo Atanásio).
fundiram o sentido e a eficácia dessa notícia, vendo nela a própria Eles a comentam na catequese e na pregação, propondo uma leitura
pessoa de Cristo. que reinterpreta o evento salvífico para a comunidade cristã.

No entanto, é preciso se referir a Orígenes e aos Padres do Sob essa luz, a unidade entre Bíblia, teologia, espiritualidade
"século de ouro" da leitura das Escrituras para se falar da leitura orante e pastoral é de tal modo evidente para os Padres da Igreja, que para
como proposta explícita de leitura das Escrituras. Na leitura orante, se eles o sentido mais verdadeiro e profundo das Escrituras é colher o
recupera a ligação com o método rabínico, mas aprofundando-o por Espírito do texto sagrado. A intuição fundamental dos Padres é esta:
meio da revelação cristã. toda a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, nos fala de

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Cristo e diz respeito a cada pessoa. Esse imperativo metodológico é Nos acontecimentos ligados a essa prática, depois do fecun-
chamado pelos Padres de "leitura espiritual" da Escritura. Nessa vi- do período patrístico (séc, II a VII), verifica-se um duplo fenômeno:
são unitária dos dois Testamentos se insere a "doutrina dos quatro o povo cristão se afasta da prática dessa leitura e passa a conhecer
sentidos da Escritura", que compreende exegese, teologia, vida espi- a história bíblica somente por meio de afrescos e de vitrais das
ritual e compromisso comunitário. igre- jas, que narram a Bíblia aos pobres, ao passo que a leitura
orante é assumida e aprofundada no ambiente monástico.
Não uma prática de piedade, mas estilo de vida
Para a tradição monástica, a leitura orante não é uma prática
Um equilíbrio saudável entre leitura orante, liturgia e trabalho
de piedade, mas estilo de vida: os monges eram de tal forma ligados Os monges do deserto e especialmente os do Oriente cristão se
à Palavra, até se tornarem, por meio da leitura da Bíblia, uma coisa dedicam com zelo à leitura, meditação e oração da Escritura. Fazem
só com Deus. Eles estavam sempre atentos à Escritura, e se sentiam isso não apenas no momento da scrutatio Scripturarum [estudo das
"servos da Palavra", tanto que a obediência à Palavra de Deus era a Escrituras], mas também durante o trabalho manual, realizado na
virtude mais importante a ser praticada. Eles viviam em profunda contemplação e na "ruminação" da Palavra de Deus, e
escuta da Bíblia, porque ela é a Palavra do Pai tornada visível ao acentuando-lhe o valor ascético de conversão e de renovação
mundo no Filho feito carne (cf Jo 1,14). espiritual.
Santo Antão (séc. 3-4), o primeiro grande monge, iniciou sua A regulamentação da leitura orante é, portanto, obra das re-
conversão iluminado pela Palavra de Deus. Na solidão do deserto gras monásticas, que fixarão o horário, a matéria e o método de
realizou o caminho espiritual, até se tornar uma "biblioteca viva" leitura e de aprofundamento. À leitura da Bíblia se juntam também
das Escrituras. Depois dele, cada monge foi solicitado a as leituras dos Padres e mestres de vida espiritual.
deixar que a Palavra habitasse em si, até se tornar um Momento particularmente fecundo desse desenvolvimento
verdadeiro contemplativo das páginas sagradas e também da acontece no século 12, com a ordem cisterciense, especialmente em
história, porque esta, apesar das muitas contradições, contém Citeaux, na França, onde se desenvolve um equilíbrio saudável en-
sempre uma palavra reveladora de Deus. tre leitura orante, liturgia e trabalho manual, isto é, a situação con-
Um dos grandes difusores da leitura orante, que vai influen- creta. Esse processo formou gerações de homens contemplativos e
ciar toda a Idade Média, é Gregório Magno (540-604). Ele destaca santos, como Bernardo de Claraval (1110-1166), e foi um exemplo
sobretudo a relação entre Palavra e Espírito. Para o santo monge, que forte de vida para tantas experiências religiosas e espirituais que sur-
se tornou depois papa, a Palavra não deve ser considerada apenas giram nesse tempo.
como norma moral da vida humana, mas sobretudo como mo- Aqui se insere a experiência do monge cartuxo Guido II, que,
mento profético no qual a Igreja e cada fiel devem se inserir para com sua carta "Escada dos monges", vai oferecer uma apresentação
realizar na própria vida o mistério do amor de Cristo. Por isso, a sistemática e feliz do método desta leitura.
Palavra e o Espírito, que nela reina, edificarão a comunidade eclesial
nos diferentes momentos da história da salvação. Mas somente quem 1.4 A leitura orante na época moderna e contemporânea
se educa à escuta da Palavra e se deixa guiar pelo Espírito conseguirá
O início da crise ou decadência da leitura orante da Escritura
penetrar na mensagem bíblica, e a Escritura testemunhada por ele
na consciência dos fiéis acontece entre os séculos 12 e 13, quando se
poderá iluminar os outros.

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passa da leitura orante à introdução da quaestio e da disputatio, e em A esse propósito, como modelo exemplar, citamos a expe-
seguida à leitura espiritual, forma característica dos tempos moder- riência pastoral com a Palavra de Deus promovida pelo cardeal
nos. O primado da Palavra de Deus é substituído pelo subjetivismo Martini, de Milão, Itália, cujos resultados, no campo da animação
espiritual, típico da devoção moderna. espiritual com a prática da leitura orante são um exemplo vivo e
encorajador para todo o povo de Deus.
Para B. Calati, esse fenômeno da separação entre Escritura,
liturgia, vida e empenho concreto está ligado ao "processo lento de A leitura bíblica deve oferecer uma interpretação do texto
desagregação da eclesiologia de comunhão, em vantagem de uma vi- sagrado que seja teológica e espiritual, e que faça referência a toda a
são eclesiológica piramidal, que se afirma nos séculos posteriores à tradição cristã, tanto dos Padres como da liturgia e dos autores espi-
reforma gregoriana” (séc., IX), com a consequente prevalência do di- rituais, isto é, ao método de escuta da Bíblia que lê o texto junto
reito e da escolástica sobre a busca da sabedoria na Palavra de Deus. com todo o desenvolvimento que a tradição da Igreja acumulou.

A interpretação exegética medieval do sentido espiritual, li- A Palavra, enriquecida pela reflexão de Israel na antiga Lei,
gada a uma visão global e harmônica das perspectivas e dos sentidos depois pela vida cristã da comunidade primitiva e, por fim, pelo pen-
das Escrituras, é substituída, na Idade Moderna, pelo uso do méto- samento e pela experiência espiritual de toda a tradição posterior da
do histórico-crítico. Do Renascimento em diante, esse método se Igreja, adquire um significado sempre mais rico e profundo, e nos
limita a buscar apenas o sentido literal e histórico dos textos, ou no leva a compreender e a viver um tema tão caro aos antigos, o da mira
máximo a uma espécie de "acomodação de sentido", que desfigura o profonditas [extraordinária profundidade] da sagrada Escritura.³
significado autêntico da Palavra de Deus e não permite alcançar a
mensagem do Espírito. Assistimos, desse modo, à ruptura da uni-
dade entre teologia e santidade, como afirma Hans von Balthasar:
A harmonia do saber e da vida, típica do período patrístico e da Idade
Média tardia, é substituída pela progressiva separação dos diversos as-
pectos da vida cristã. O patrimônio antigo da integração entre exegese,
teologia, espiritualidade e pastoral num complexo orgânico unitário é,
dessa forma, desagregado com o surgimento da teologia do período
escolástico e, depois, com a emancipação de uma exegese autônoma na
Idade Moderna.

A leitura e a meditação da Palavra, assim desfigurada, caem


num mero raciocínio e, muitas vezes, em fantasia sentimental.

Hoje, o retorno promovido pelo Concílio Vaticano II


O retorno a uma nova harmonia entre Bíblia, espiritualidade
e vida, promovido pelo Concílio Vaticano II, aparece como uma
das exigências mais vivas e atuais da Igreja. A atenção renovada à
Palavra de Deus é certamente um sintoma feliz e um instrumento
____________________
fecundo dessa renovação (cf DV n. 21-26). 3 Cf.JOÃO PAULO II, Cana apostólica Novo Millennio Ineunte (NMI), n. 39-40.

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contemplação é a própria doçura que dá alegria e recobra as forças. A
leitura permanece na casca, a meditação penetra o miolo, a oração leva
à busca suscitada pelo desejo, a contemplação repousa no gozo da do-
çura alcançada.

Naturalmente, a formação à leitura orante é um processo di-


nâmico e unitário que liga a leitura, a meditação, a oração e a con-
templação da Palavra de Deus. Guido, de fato, afirma:
A leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura está
sujeita ao erro. A oração sem meditação é morna, a meditação sem a
2. Leitura orante: método oração é infrutífera. A oração feita com fervor leva à aquisição da
contemplação, enquanto o dom da contemplação sem a oração é raro
e milagroso.
pessoal de vida espiritual O desenvolvimento de cada uma das etapas da leitura orante
encontra seu início depois de passar pelo grande portal de ingresso,
que é a invocação (epiclese) ao Espírito Santo. São fundamentais os
Uma frase da Bíblia introduz bem o método da leitura orante: três momentos: leitura, meditação e oração, que constituem o em-
"Esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu penho pessoal do fiel que entra em contato com a Palavra de Deus.
coração, para que a possas cumprir" (Dt 30,14). Quer dizer: a Pala-
vra de Deus está na boca para a leitura, no coração para a meditação Estes três tempos são iguais para todos, seja para quem tem
e a oração, e na prática para a contemplação. A prática desta leitura, um conhecimento bíblico, seja para quem ainda não tem.
de fato, é o modo mais verdadeiro e ideal para ler as sagradas Escri- Vamos descrever agora cada um dos momentos do cami-
turas. Essa é a oração nascida da Bíblia e feita com ela. nho da leitura orante. Faremos antes uma reflexão sobre a invoca-
Para escrever os passos do caminho da leitura orante, utilizo o ção ao Espírito Santo, o primeiro ator que permite abrir de forma
esquema clássico da tradição patrística e monástica que Guido II correta a Bíblia.
formulou em seu escrito. Refletindo sobre o texto de Mateus 7,7
sobre a oração –"Pedi e vos será dado! Procurai e encontrareis! Batei
2.1 Epiclese ou invocação ao Espírito Santo
e a porta vos será aberta!" –, ele apresenta as quatro etapas
clássicas da leitura orante, e assim comenta: "Buscai na leitura, A atitude prévia para entrar no caminho da Palavra é a invo-
encontrareis com a meditação; batei na oração, vos será aberta a cação ao Espírito, a oração que pede a luz necessária para compre-
contemplação". ender o Senhor que fala. Saber escutar é graça e fruto do Espírito.
O monge cartuxo, parafraseando os últimos dois convites do O Espírito é o verdadeiro mestre, o verdadeiro exegeta das
Senhor, resume seu método em quatro tempos: leitura, meditação, Escrituras. Somente quem entra em sintonia com ele pode conhe-
oração, contemplação. Depois, esclarece seu pensamento: cer as riquezas contidas na Bíblia, a profundidade da sabedoria de
A leitura pergunta e a meditação encontra, a oração pede e a contem- Deus. Seja ele, então, a nos revelar o que não conseguimos enten-
plação saboreia. A leitura pode-se dizer que leva à boca um alimento
der, a nos doar a compreensão que supera a letra, para entrar na
sólido, a meditação o mastiga e o tritura, a oração sente o sabor, a
inteligência espiritual que somente o Espírito pode nos dar.

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Podem nos ajudar nessa oração palavras espontâneas ou alguns 2.2 A leitura orante: o que diz a Palavra em si
versículos do Salmo 118, o salmo por excelência da escuta da Palavra.
O primeiro momento dessa leitura é a leitura do texto sagra-
Para os Padres da Igreja, a oração se torna viva só quando se do, com o qual me coloco em atitude de escuta daquele que fala e me
entra em comunhão com o Espírito, que está contido nessa Palavra deixo transportar para o encontro com a sua Palavra. Na leitura, dizia
e nela reside estavelmente. São Jerônimo (342?-420), "direciono as velas ao Espírito Santo". Isso
exige atenção, escuta, porque o objetivo é escutar com os ouvidos e
Santo Efrém (306-376), da Síria, dizia: "Antes da leitura, reza acolher com o coração, assumindo a Palavra com plena disponibili-
e suplica a Deus que se revele a ti".
dade, consciente de estar dando espaço a alguém: a pessoa viva que
Yussef Busnaya, outro escritor cristão da Síria, sugeria esta me fala e eu encontro é o próprio Deus. A leitura orante, de fato, é
invocação: "Diz-me, Senhor, as palavras de vida e de alegria por busca e encontro com Deus, com a Palavra de verdade e de sabedoria.
meio da boca e da língua das Escrituras. Permite-me escutar com
ouvidos interiores e renovados, e cantar a tua glória com a língua do O que significa na prática ler um texto bíblico?
Espírito Santo".
Significa lê-lo e relê-lo muitas vezes, também em voz alta, su-
Também São João Crisóstomo (347?-407), ao abrir a Bíblia,
blinhando, com um lápis, a palavra, a frase, ou a ideia que nos toca.
costumava rezar: "Abre, ó Espírito Santo, os olhos do meu coração,
para que compreenda e cumpra a tua vontade ( ... ), ilumina os meus As partes mais importantes do trecho bíblico são destacadas:
olhos com a tua luz". o contexto, os personagens, o ambiente, os sentimentos, as ima-
gens, os símbolos primários, o dinamismo das ações, os verbos, os
É o Espírito que abre a mente e guia o coração do cristão du- passos paralelos e os textos afins. Ou, como se diz, saber "ler a Bí-
rante a escuta da Palavra. O mesmo Espírito que no passado agiu nos blia com a Bíblia".
escritores sagrados, continua a agir hoje naqueles que leem a
Palavra. Esta somente se torna fecunda se o Espírito anima quem a lê. Pode ajudar esse passo fazendo-se perguntas ao texto: Quais
são os personagens principais e quais os secundários? Quais ações
São vários os efeitos dessa invocação ao Espírito Santo: liber- são significativas para o autor bíblico? Onde e quando se dá a narra-
ta o leitor de uma interpretação subjetiva e arbitrária e produz um tiva? Quais são as imagens e os símbolos usados no texto? Qual é a
desprendimento de si, a pureza do coração, a conversão e a docilidade ideia mais importante ou a palavra-chave que o autor quer comuni-
à Palavra. Todas essas realidades tornam o fiel livre para acolher com
car aos seus contemporâneos?
amor a mensagem de Deus.
A Escritura é um livro para se estar com e trabalhar sem pressa.
Dessa forma se atinge aquela humildade profunda e aquela
A fidelidade e a constância premiam o leitor fiel, o conduzem gra-
docilidade do coração que levam o cristão a se avizinhar do texto
dualmente à compreensão do texto e à descoberta da multiplicidade
com uma atitude de adoração reverente diante do mistério, fruto de
uma sinergia entre a vontade humana e a ação do Espírito. de coisas sempre novas contidas na Palavra de Deus.
Esse tempo de leitura, portanto, é o da busca do sentido lite-
Naturalmente, isso torna necessário um clima de silêncio in-
ral-histórico da Bíblia, buscando respeitar o texto. A leitura não
terior, um espaço de deserto e contemplação. Essas atitudes ajudam
acaba em si mesma, mas deve levar a uma interiorização da Palavra
a acolher o dom da Palavra para um discernimento no Espírito.
e ao diálogo de meditação.

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Podem ajudar nessa busca, de acordo com as exigências e dade, tanto pessoal como social. O texto, que foi escrito para mim,
circunstâncias dos leitores, alguns subsídios bíblico-patrísticos, con- deve falar a mim: "Prolongamento normal e necessário da leitura,
cordâncias bíblicas ou comentários bíblicos que sejam simples e bem pressupõe que eu saiba criar no coração um espaço no qual ressoe a
fundamentados no texto. A ajuda de um guia pode facilitar a busca Palavra de Deus; desemboca em uma assimilação viva que me trans-
de sentido do texto. A leitura da Bíblia feita dessa forma permite ao forma em uma biblioteca viva".
fiel ter um olhar seguro para ler a vida à luz do projeto de Deus e
para superar o fundamentalismo bíblico. É o que acontece quando Deus pede ao profeta Ezequiel: "Põe
em teu coração as palavras que eu te disser. Escuta-as bem" (Ez 3,10).
É importante relembrar que a leitura bíblica exige sempre tempo
determinado, frequência cotidiana e fidelidade constante. A leitura Meditar é refletir sobre o valor permanente do texto, que é a
orante não pode ser deixada para os retalhos de tempo livre ou como verdade escondida a ser descoberta e atualizada para nós; é buscar o
modo de preencher o dia. Exige ascese e disciplina, e necessita de um sabor da Palavra, não a ciência; é buscar o rosto de Cristo atrás de
tempo preciso e grande empenho no ritmo da própria vida espiritual. cada uma de suas palavras; é ruminar a Palavra, procurando assimilá-
la dentro de si num empenho de interioridade e concentração; é
A leitura orante pessoal deve ser feita com todo o ser: com os
fechar os olhos diante do Senhor e confrontar o texto com a vida,
lábios pronunciando as palavras, com a memória para fixá-las, com
evidenciando as atitudes e os sentimentos que a Palavra de Deus nos
a inteligência para compreender-lhe o significado, com a vontade
transmite.
para colocá-la em prática. Os Padres da Igreja diziam que um texto
bíblico deve ser assimilado por completo, memorizado e tornado A Virgem Maria é modelo para nós. Ela ruminava, meditava,
objeto de uma ruminação cotidiana. buscava compreender a Palavra, dia e noite, como o sábio da Escri-
tura (cf. Lc 2, 19.51).
"Quando um homem começa a ler as Escrituras divinas –
afirmava Santo Ambrósio (340-397) –, Deus volta a passear
com ele no paraíso terrestre." Três momentos da meditação
Santo Agostinho (354-430) dizia que o texto deve ser como
2.3 A meditatio: o que diz a Palavra para mim que "ruminado e mastigado na boca", antes de descer ao coração e
levado à vida (cf. Ez 3,1-3).
Quando a leitura nos torna familiares com o texto bíblico, a
ponto de a Palavra se tornar nossa, então estamos no segundo mo- Na tradição espiritual, a meditação inclui três momentos.
mento da leitura orante. A meditação "não permanece no exterior,
O primeiro é o da colheita diligente da mensagem central do
não se fixa na superfície, mas eleva seu passo um pouco mais alto,
penetra mais fundo, sonda cada particular". São João Cassiano (360- texto que se está meditando. Essa mensagem deve ser relacionada ao
465) dizia: "Penetrados pelos mesmos sentimentos com os quais o mistério de Cristo que unifica todas as Escrituras.
texto foi escrito, chegamos, por assim dizer, a nos tornar autores". Trata-se de individuar o conceito-chave, que depois se abre
para outros textos paralelos, que conduzem nossa memória bíblica
A meditação é o momento em que Deus nos fala. Então,
a unificar o todo e poder recolher assim o primeiro fruto espiritual.
façamos silêncio; vamos abrir o ouvido: "Ouvirei o que diz o Se-
nhor Deus" (SI 85,9). A meditação sublinha o esforço que se faz Os Padres da Igreja, quando falam desse ponto, usam a imagem
para atualizar o texto e o inserir no horizonte de nossa vida e reali- da formiga, que diligentemente recolhe o alimento (o verbo grego
syndghein quer dizer recolher, colocar junto; cf. Pr 6,6-11) e o guarda.

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O segundo momento é o das reflexões, a partir da coleta ção, assim, nos ajuda a colher o sentido espiritual, isto é, o sentido
feita precedentemente. Os antigos usavam a imagem da abelha que que o Espírito de Deus quer comunicar hoje a mim e a nós-Igreja
tra balha para fazer o mel, e chamavam essa fase meletán (do verbo
por meio do texto bíblico. Meditando a Palavra, nosso coração se
grego meletáo, que quer dizer fazer o mel, meditar; cf Pr 6,8).
dilata até compreender o próprio coração de Deus, porque o Espí-
Assim exortava Guerrico de Igny (l070?-1157): "Vós, que
rito age dentro da Escritura (cf 2Tm 3,16) e nos ajuda a descobrir o
percorreis os degraus das Escrituras, não deveis atravessá-los com
sentido pleno das suas palavras (cf. Jo 16,13).
pressa ou negligentemente. Escavai cada palavra para fazer
penetrar o Espírito. Irnitai a abelha trabalhadora que recolhe de
cada flor o seu mel". 2.4 A oratio: o que digo ao Senhor com a Palavra
Nessa etapa, a Palavra, que foi semeada antes, é recolhida e
A passagem da meditação à oração acontece quando temos
guardada no bom terreno do próprio coração, com vigilância e com
claro diante de nós o que Deus nos solicita, a partir da meditação da
amor, confiando que o Senhor mesmo a trabalhe.
leitura orante. Eis o degrau da oração. Torna-se espontâneo pergun-
O terceiro momento, por fim, é o do confronto. A Palavra tar-se agora: O que quero dizer a Deus?
interiorizada desprende uma luz e uma força tais, que ilumina a
vida e a orienta decididamente para Deus. É o tempo de Este é o tempo da invocação. Rezar é responder a Deus de-
discernimento da Palavra, ou, como costumavam dizer os Padres, é pois de o ter escutado. É dizer sim à sua vontade e ao seu projeto a
o tempo de separação do grão da casca. Chamavam esse momento respeito de nós. Santo Agostinho afirmava: "A tua oração é um falar
de sýnkrisis, do verbo grego krínein, que quer dizer separar. com Deus. Quando lês a sagrada Escritura, Deus fala a ti; quando
rezas, tu falas a Deus".
Aqui o confronto acontece no interior e é percebido dentro da
alma. Aquele que medita a Palavra experimenta-a como um fogo que Com a meditação descobrimos o que Deus nos diz no segre do
o aquece e o orienta no caminho em direção à experiência de Deus. da consciência. Agora cabe a nós respondermos à sua Palavra
na oração. Em outros termos, depois que a Palavra se
incorporou em nosso mundo interior, a oração a faz voltar a
Fazer perguntas ao texto Deus em forma vocativa.
Um modo simples e prático de meditação é fazer perguntas
ao texto: qual é para mim a ideia e o valor fundamental do texto A oração, portanto, é o momento no qual nos envolvemos
lido? Por que é importante? O que me sugere e como me questiona? nos sentimentos religiosos que o texto nos sugere e suscita dentro de
Com qual personagem me identifico? Que sentimentos e atitudes nós. A Palavra de Deus, feita oração, torna-se assim em nós motivo
me transmite? Como posso, com esses pensamentos, iluminar mi- de louvor, de agradecimento, de súplica, de confiança, de arrepen-
nha vida? Trata-se de deixar que a Palavra penetre profundamente dimento, de bênção. Dizia ainda Santo Agostinho:
na intimidade do meu coração, e depois mobilizar todas as energias Se o texto é oração, reze; se é gemido, gema; se é reconhecimento,
para confrontar-se, ir dentro da Palavra e converter-se a ela. fique alegre. Se é um texto de esperança, espere; se exprime temor,
tema. Porque as coisas que sentes no texto bíblico são o espelho de ti
O texto, mastigado longamente no confronto consigo mes- mesmo.
mo, deve continuar a ser ruminado também ao longo do dia, fazen-
A oração é fazer voltar a Deus a Palavra que Ele nos deu.
do-o vibrar dentro de si, ou uma palavra ou uma frase tirada do
Repetia, de fato, Santo Ambrósio: "Quando rezamos, falamos a Ele;
texto, para dividi-la na cotidianidade das próprias ações. A medita-
e o escutamos quando lemos os oráculos divinos".

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Modalidades de oração Rezar é "partir para a ação"

Na leitura orante, o momento da oração se desenvolve segun- Não se deve esquecer, no entanto, que o Deus da oração é o
do várias modalidades, que cada um percebe dentro de si como Deus da salvação, o Deus da vida. Sob essa luz, a oração não é uma
arrependimento, pedido, agradecimento e louvor. experiência separada da vida, ou um fato isolado. Reza-se o que se
vive, e se ama a Deus por meio de nossas situações e das coisas
A oração de arrependimento nos faz tomar consciência da concretas que vivemos. Transformar a Palavra em oração significa se
nossa distância do Pai, cujo amor traímos, e por isso nos coloca no espelhar, através da Palavra, nas realidades cotidianas, feitas de ale-
caminho de volta a Ele com um ânimo penitente, igual ao filho grias e de amarguras, de conquistas e de perdas, e confrontar essas
pródigo (cf Lc 15,11-32), e nos ensina a pedir a salvação com hu- realidades com a vontade de Deus. É pedir com confiança filial e
mildade, como o pecador: "Meu Deus, tem compaixão de mim, perseverante a força de Deus para levar adiante deveres e situações,
que sou pecador!" (Lc 18,13). como Ele quer, e desejar realmente aquilo que pedimos.
Com a oração de pedido e de intercessão somos convidados a Enquanto existir uma fratura entre a oração e a ação, não é
solicitar qualquer coisa ao Pai em nome de Jesus para obter com possível chegar a uma oração encarnada e a uma ação vivida com
abundância o dom do Espírito Santo (cf. Lc 11,13). profundidade espiritual. No fundo, somente quem ama verdadeira-
Com a oração de agradecimento e de louvor experimenta- mente é capaz de transformar em oração todas as realidades da vida,
mos a ação salvífica de Deus em nossa vida e seu amor misericor- pois rezar é partir para a ação; rezar não é cair num sentimentalismo,
dioso que nos acompanha no dia a dia. Por isso, tudo se torna dom, mas buscar a vontade de Deus e realizá-la com generosidade e alegria.
estupor pelas maravilhas que Deus realiza em nós, agradecimento e
alegria no Senhor.
2.5 A contemplatio: que dom recebo e que fruto carrego
Uma outra modalidade de oração com a Palavra se alcança
Chegados ao momento da oração, poderíamos parar nesse
quando nos damos conta de que a oração nos conduz a algo mais
ponto, porque toda oração verdadeira é contemplativa. Mas, segun-
simples. Esse processo de simplificação nos leva primeiramente a
do à tradição da leitura orante, a oração desemboca na contempla-
nos concentrar em um número sempre menor de palavras do texto
ção, como seu vértice e fruto natural, tempo no qual a Palavra é
sagrado e, depois, unifica nossa oração, que, ao mesmo tempo, é
saboreada com o coração.
unidade com o Senhor, porque tudo se funde em um diálogo pro-
fundo com Deus. Cada um pode encontrar o próprio caminho de A contemplação não é uma técnica ou alguma coisa que se
oração, feito daquele acento peculiar que privilegia ou o silêncio, acrescenta do exterior. É um dom do Espírito, que nasce da pró-
ou a escuta, ou a capacidade de maravilhamento e de fé. pria experiência da leitura orante bem-feita: é conhecer a Deus com
a experiência do coração; é a concentração contemplativa no mis-
Cada um pode deixar aparecer sempre mais na oração seu
tério de Deus. Lemos no Evangelho de João: "Esta é a vida eterna:
mundo cultural, fisiológico e espiritual, e descobrir o modo de ser e
que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo,
de se comunicar com Deus e com os outros. Nesse caminho, todavia,
aquele que enviaste" (Jo 17,3).
só o Espírito é capaz de traçar na profundidade do coração o itinerá-
rio de aproximação da Palavra que cada um é chamado a viver. Se a leitura, a meditação e a oração são o momento ativo da
leitura orante, isto é, o momento do nosso empenho e da nossa

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fidelidade cotidiana à Palavra, a contemplação é o momento passi- à caridade que se faz serviço segundo o modelo de Maria, e ao en-
vo de intimidade, no qual a iniciativa cabe a Deus. Não se chega à contro com cada ser humano, para lhe comunicar Deus, sua pre-
contemplação mediante o esforço pessoal ou o exercício da vonta- sença e os grandes valores da vida humana e espiritual.
de. Ela é o fruto que se experimenta depois de uma prolongada
oração sobre a Palavra. Esse fruto é a presença do Senhor, que susci- Assim, a leitura orante, "tendo chegado aos umbrais da visão,
ta em nós estupor, maravilha, olhar límpido da realidade com os se faz escatológica e prepara o momento final da vinda de Cristo,
olhos dos simples, cheios de fé, alegria e paz. quando a contemplação será eterna. A leitura orante produz o fruto
que acelera o evento final e último, e está junto com a profecia".
A intimidade com Deus, então, se torna profunda e real, e
exige novamente o silêncio, porque nada mais se pode dizer. Deus
2.6 A leitura orante não é um esquema rígido
nos introduz na contemplação do seu mistério, do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Contemplar a Palavra é esquecer os particulares e Ao término da descrição do itinerário da leitura orante, com
chegar ao essencial. Descobre-se com o coração a própria vida, o seus vários tempos, segundo a concepção clássica, é útil recordar
próprio mistério no mistério de Deus, com um olhar que é simpli- que esses não são esquemas rígidos que se devam praticar sem que
cidade, adoração, conhecimento e experiência de um Pai que nos haja possibilidade de movimento e de criatividade pessoal. Relembra
ama como filhos. o cardeal Martini:

Sente-se, então, necessidade de olhar apenas Jesus, de repou- A subdivisão é útil para quem tem necessidade de começar ou de reto-
sar nele, de acolher seu amor por nós, de fazer crescer dentro de nós mar esse exercício. A nossa oração é como um fio vermelho que liga
um dia ao outro, e pode suceder que sobre um texto da Escritura nos
o Reino de Deus.
fixamos um dia, sobretudo com a meditatio, enquanto em outro, pas-
A contemplação é ver com olhos de admiração, no silêncio, samos rapidamente à contemplação.
o mistério de Deus Pai, de Jesus Amigo, do Espírito de Amor. É Isso quer dizer que, depois de certo período de exercício com
encontrar a participação límpida e transparente da realidade de a leitura orante, poderemos ficar mais tempo naquele aspecto em
Deus, própria dos puros, dos simples, dos pobres ('anawîn) de Deus. que temos maior necessidade, sempre recordando que a Palavra,
Não é fruto de carismas especiais, nem de esforços suplementares, para ser rezada, deve antes ser compreendida e confrontada com a
nem de extase: é deixar agir em nós o Espírito de Deus, própria vida.
conscientes de que tudo é dom de um Pai que é Amor.

A contemplação, como resultado da leitura, é a atitude de quem Como um ícone


se imerge nos acontecimentos, para ali descobrir e degustar a presença
Um dos frutos específicos da leitura orante é a espiritualidade
ativa da Palavra, e se empenha no processo de transformação na his-
marcada por uma relação com a experiência cristã e com a vida.
tória que a Palavra provoca. A contemplação realiza e coloca em prá-
Fruto do Espírito, de fato, é a ação (actio), isto é, o agir evangélico
tica a Palavra, produzindo uma saborosa experiência, que antecipa a
que segue à escolha concreta, e que depois se torna na pessoa teste-
alegria que "Deus preparou para os que o amam" (1 Cor 2,9).
munho, anúncio, evangelização e catequese. É preciso trabalhar a
Nesse ponto, as vicissitudes pessoais do cristão passam para relação entre Escritura e vida. Trata-se de compreender e transfor-
um segundo plano, em relação à experiência objetiva da contempla- mar em nós mesmos o que lemos e meditamos, para que nos torne-
ção. Esta deve necessariamente levar à prática, à evangelização, mos "imitadores de Cristo" (1Cor 11,1). Esta leitura leva ao

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compromisso cristão, à conformidade com Cristo, a viver a
Palavra com retidão e caridade, pois o agir cristão nasce da
oração, e o fazer nasce do ser. É a escuta da Palavra no
Espírito que suscita cada projeto de ação.

Como conclusão dessa descrição do método, cabe a reflexão


de Enzo Bianchi:

Demo-nos conta de que o fiel que segue esse método, adaptando-o a si


segundo o seu espírito, é como um pintor de ícones (...) Pintar um 3. Collatio: da leitura orante
ícone é fazer uma leitura específica visível, traduzida em
imagem, pois, pela pintura, como por um texto, pouco a pouco
surge o rosto de Cristo cheio de luz e de glória, que vemos na
pessoal à comunitária
contemplação.
Ao lado da leitura orante pessoal, temos também a leitura co-
munitária ou a partilha das Escrituras (collatio). A escuta da Palavra
de Deus não é somente um ato pessoal, mas necessariamente tem
uma dimensão comunitária e de comunhão. A leitura, a meditação e
a oração são uma atividade ao mesmo tempo pessoal e comunitária.

A partilha do que a Palavra diz a cada um é uma riqueza para


não se desperdiçar, porque evidencia a dimensão eclesial da Bíblia e
leva toda a comunidade a crescer junto no conhecimento e na acei-
tação de si e dos outros, e a progredir na fé e na vida espiritual.
Santo Atanásio (296-373) confirma isso, dizendo: ''As sagradas Es-
crituras bastam para nosso ensino, mas é bom que nos exortemos
reciprocamente à fé e que nos edifiquemos com as palavras".
Por isso, é muito importante que a Palavra de Deus seja
lida, meditada e rezada não só pessoalmente, mas sobretudo em
comunidade.

3.1 A leitura orante comunitária: requisitos e dificuldades


O que é, então, a leitura comunitária ou collatio? É a escuta
comum do Senhor por meio da Palavra, durante a qual cada pessoa

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busca edificar a própria comunidade, manifestando, com verdade e São palavras sábias que refletem a experiência de vida e colo-
simplicidade de coração, a própria reação diante da Palavra escutada, cam em evidência algumas posturas que devem ser evitadas quando
interiorizada e rezada antes pessoalmente. Trata-se de estabelecer um se toma a palavra no grupo, como o desejo de autoafirmação e
verdadeiro diálogo entre as pessoas que se encontram, em um clima de afirmação das próprias ideias, uso de palavras eruditas, meticulosi-
escuta, para se colocar diante de Deus, que nos fala nas Escrituras, e dade no expor o próprio pensamento, que acaba por se prender em
chegar com sua ajuda a rezar a Palavra e enriquecer a vida. questões sutis e que contam pouco. Essas atitudes fecham o cami-
Naturalmente há alguns requisitos, necessários para o bom nho para a verdadeira sabedoria da Palavra e esfriam o coração dos
êxito da collatio, que cada pessoa deve levar em conta quando parti- simples e daqueles que não têm tanto estudo.
cipa nesse diálogo em grupo. Como toda realidade humana, a partilha fraterna da Palavra
apresenta alguns riscos, principalmente para quem está começando:
Os requisitos do diálogo em grupo infantilidade e superficialidade nas exposições; sentimentalismo li-
gado à própria religiosidade natural; medo de expor o próprio pen-
Os requisitos são: formação de grupos de sete ou oito pes-
samento; refugiar-se no silêncio ou ficar atrás de uma fórmula
soas; disposição para aprender e docilidade para assimilar o que é
edificante; ostentação de erudição e outros riscos.
sugerido pelos outros; acolhida e abertura a cada pessoa, evitando
atitudes de crítica ou preconceito; convicção de que cada fiel possui Tais dificuldades, no entanto, não devem frear essa prática
o Espírito Santo e, por isso, pode ser o meio pelo qual o Senhor se religiosa que os Padres da Igreja consideravam de grande utilidade
serve para iluminar a vida dos outros. para o crescimento espiritual da comunidade de fé. Também é bom
recordar que a collatio produz ótimos resultados quando o diálogo
Essas atitudes constituem a condição necessária para se che- fraterno se nutre da Palavra de Deus e é resultado da experiência
gar mais facilmente a um clima de reflexão sobre a Palavra e à verda- pessoal de vida interior, colocada à disposição dos outros.
deira finalidade da collatio, que é a edificação comum na fé, o
crescimento no amor fraterno e o conforto na esperança.
3.2 Metodologia
Além disso, nesse diálogo entre os fiéis deve ser banida toda
forma de discussão ou de disputa. Isso faria desaparecer a verdadei- Que metodologia seguir na reflexão comunitária da Palavra
ra identidade da leitura comunitária, que é a busca de Deus entre os de Deus? Baseados na experiência amadurecida nos muitos anos de
irmãos e as irmãs de fé, e o conhecimento da sabedoria da Palavra, prática da collatio, em diversos ambientes e com pessoas as mais
que ajuda a construir o Reino de Deus em si e nos outros. variadas, sugerimos um esquema que contempla seis momentos su-
cessivos e que deve envolver todos os participantes, mesmo quando
São preciosos, também para nós, os conselhos que São Basí- se tenha a intenção de contar com a presença de um animador para
lio (329-379) dava a quem desejava compartilhar a Palavra: facilitar o bom andamento dessa experiência.
Falar conhecendo o assunto; perguntar sem vontade de litigar; respon- 1) O encontro deve ser iniciado com uma oração ou invoca-
der sem arrogância; não interromper quem fala, se diz coisas úteis; não
ção ao Espírito Santo. Poderá ser formulada espontaneamente por
intervir apenas por ostentação; ser comedidos no falar e no escutar;
aprender sem se envergonhar; ensinar sem buscar algum interesse; não
um dos participantes da comunidade e com palavras simples. É uma
esconder o que se aprendeu dos outros. oração para convidar os presentes à escuta da Palavra e à acolhida da

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ação do Espírito, a fim de que ele esteja presente, ajude a comunida- O animador
de a dividir a Palavra e facilite a comunhão sincera entre todos.
Foi lembrado anteriormente a figura do animador para a lei-
2) Um leitor abre a Bíblia e, com calma e atenção, faz a pro- tura comunitária. Queremos acrescentar que sua figura e função é
clamação da Palavra, cada participante sabendo que escuta a pró-
útil, não só para a animação do momento da collatio, mas também
pria pessoa do Senhor. Naturalmente, o texto, lido e meditado antes
para a preparação do ambiente onde ela se realiza.
na leitura pessoal, individualmente, é agora objeto da proclamação
comunitária. O lugar da reunião seja, preferencialmente, uma sala adequa-
da, bem arrumada e com cadeiras colocadas em círculo, para que
3) À leitura da Palavra de Deus, segue-se um tempo de silên- todos possam se ver mutuamente.
cio meditativo, que deverá ser breve, já que o texto foi lido e medi-
tado individualmente antes. O silêncio é um meio de comunicação
que facilita a interiorização e assimilação do texto bíblico, ilumina 3.3 Conselhos aos participantes
os corações e os une, inserindo-os no firmamento do Espírito.
Depois de termos vistos, nas páginas precedentes, uma intro-
4) Entramos no coração da collatio quando os participantes, dução à leitura orante, o método com suas etapas, os dons espiri-
um depois do outro, começam a comunicar a Palavra escutada no tuais que a Palavra de Deus produz na vida do fiel e de toda a
íntimo do coração, partindo de uma expressão ou de uma frase do comunidade cristã, em vista de um caminho de vida espiritual fun-
próprio texto bíblico. A Palavra é iluminada por um sereno con- dado sobre a Escritura, nos parece útil agora apresentar alguns con-
fronto pessoal, que tem como objetivo ajudar os outros a ver como selhos práticos para o uso correto e eficaz dessa leitura.
essa Palavra comunica, mexe, converte, estimula pessoalmente. Tra-
Estas sugestões não nascem apenas da longa tradição eclesial
ta-se de comunicar principalmente a experiência feita no contato
nesse campo, mas é também fruto da experiência pessoal vivida em
com a Palavra.
contato com as Escrituras, especialmente entre as pessoas simples,
5) Depois que todos se expressaram com liberdade e com- entre grupos de jovens e entre várias comunidades religiosas. São
partilharam as próprias reflexões, os participantes começam a rezar indicações práticas que poderão ser úteis para todos os que prati-
a Palavra. Aqui podem ser usados diversos tipos de oração: louvor, cam a leitura orante, em âmbito pessoal ou comunitário. Natural-
agradecimento, súplica, pedido, arrependimento, confiança, mas mente, tanto as pessoas como as comunidades devem personalizar
sempre se dirigindo diretamente ao Senhor e usando as palavras do esses conselhos, adaptando-os às situações particulares, aos ambien-
próprio texto. Isso ajudará todos a se familiarizarem com a Palavra tes e aos diversos contextos de vida nos quais se encontram.
de Deus e a adquirirem uma linguagem e uma oração mais bíblica.
Para percorrer um caminho fecundo com a Palavra de Deus e
6) Antes de fechar a Bíblia, escolhe-se um propósito concre- chegar a uma práxis válida da leitura orante, com todos os seus frutos
to e se conclui a reunião, usando diferentes possibilidades, de acor- espirituais, são necessárias a criatividade pessoal, que facilita o encon-
do com a sensibilidade e as exigências da comunidade. Algumas tro com o Senhor, a boa vontade e a perseverança fiel na experiência.
dessas possibilidades são: uma oração de agradecimento em comum;
um canto apropriado; uma frase ou palavra-chave do texto, que os
Um guia. Já foi dito antes que todos os fiéis, sem distinção,
participantes poderão "ruminar" depois no dia a dia. Pode-se
devem ter acesso direto às Escrituras e se familiarizar com o texto
também discutir propostas e projetos operacionais úteis para o
sagrado. Isso quer dizer que existe espaço para todos no caminho da
grupo.

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vida espiritual, também para quem não possui conhecimento nesse 3.4 Lugar, tempo e duração da leitura orante
campo. Todos os cristãos, para se tornarem adultos na fé e alcançarem
O lugar onde acontece a leitura orante deve favorecer um
a intimidade com Cristo, necessitam estar sintonizados com a Palavra.
clima externo de silêncio, de recolhimento e de oração. Por esse
A A Igreja, de fato, sempre a considerou um meio importante para o
motivo, deve-se procurar uma capela ou um ambiente adaptado,
processo de aprendizagem e comunicação da fé para cada cristão. Isso
onde cada um possa ficar à vontade. Esse será o lugar da luta de
é ainda mais verdadeiro na situação atual.
cada pessoa com seu coração, o verdadeiro deserto onde o Senhor
Todavia, é aconselhável haver um guia que possa introduzir nos fala, nos converte, nos educa e nos atrai a si.
no mundo bíblico os que o conhecem pouco, e assim facilitar a
Para a leitura pessoal, pode ser útil uma capela. Mas para a
compreensão do sentido literal e histórico, que são como portas de
leitura comunitária, é preferível uma sala onde as pessoas possam
acesso ao sentido mais profundo das Escrituras e à mensagem que o
ficar em torno de alguns símbolos que, pelo seu sentido espiritual,
Espírito colocou nelas.
consigam falar ao grupo. Sugestões: colocar a Bíblia aberta no cen-
Além da presença do animador, convém dizer algo mais so- tro; acender o círio pascal (símbolo do Cristo ressuscitado, vivo e
bre o número de participantes. Nesse campo, a experiência nos presente no meio do grupo) ou uma luz que facilite o recolhimento;
sugere que para a collatio, ou leitura comunitária, é melhor formar dispor algumas flores e um ícone ou imagem que faça referência ao
pequenos grupos, de no máximo dez pessoas, de tal modo que faci- que se está para meditar; deixar um fundo musical, que acompanhe
lite a comunicação espontânea e o diálogo fraterno, e que ajude as a leitura da Palavra e a reflexão pessoal.
pessoas a sair de um certo anonimato.
Também o tempo reservado à leitura é importante para a
O ambiente que se cria no grupo favorece um resultado po- assimilação da Palavra de Deus: ele deve ritmar a vida do cristão,
sitivo do encontro. Algumas disposições de ânimo dos participan- sem jamais o cansar (cf. Lc 18,1-8; 1 Ts 5,17). Para que uma leitura
tes beneficiam esse ambiente: atitude de conversão contínua, sem da Palavra seja profícua, exige-se um tempo determinado e cotidia-
preconceitos e julgamentos sobre a Palavra de Deus; coração purifi- no. A esse propósito, afirmava Guilherme de Saint-Thierry (1085-
cado; calma interior; humildade; simplicidade de vida do fiel e li- 1148):
berdade de expressão.
É preciso se dedicar em horas determinadas a uma leitura determina-
O texto de São João Cassiano é bastante iluminador a esse da. De fato, uma leitura ocasional, sem referências e descoberta quase
casualmente, não edifica a alma, mas a torna inconstante: acolhida
propósito:
com pressa, desaparece da memória ainda mais rapidamente.
Uma coisa é a facilidade da palavra e a elegância no dizer, outra é
penetrar no significado íntimo das palavras celestes e contemplar com Cada um encontrará o que é mais adaptado às possibilidades
um olhar puríssimo os mistérios profundos e escondidos. Isso jamais pessoais, mas é preciso lembrar que, ao diálogo com o Senhor e à
possuirá a ciência e a erudição profana, mas somente a pureza de uma oração, deve-se reservar o melhor tempo do dia, quando mente e
alma iluminada pelo Espírito Santo. corpo estejam repousados, porque também o físico requer sua parte
Essas são as atitudes interiores que criam o espaço ideal e em cada experiência que se abre à ação do Espírito.
favorecem em nós o cuidado da Palavra. Para alguns, as primeiras horas da manhã são ideais; para
outros, à tarde, ao término das várias tarefas, mais facilmente se
pode criar um clima de recolhimento e oração.

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A experiência ensina que urna hora é suficiente para se desen- A familiaridade produz a completa sintonia e plasma as fi-
volver urna leitura com seus diversos momentos, tanto pessoal como bras da alma com uma união de espíritos que leva à unidade.
comunitariamente. Deve-se lembrar, no entanto, que quem
É certo que, para alcançar essa meta, são exigidas condições
pratica a leitura orante precisa estar atento para não se deixar
bem precisas. São João Cassiano, a respeito disso, fixa limites bem
envolver ou se perturbar intimamente com urgências ou obrigações
precisos:
que dificultem a concentração. De coração livre, deve dar todo o
tempo necessário às coisas de Deus e aos problemas que a Palavra Banir toda preocupação ou pensamento terreno, para se aplicar com
suscita no coração e que necessitam ser enfrentadas oportunamente à assiduidade – ou melhor, com continuidade – à leitura. O ouvido este-
luz do Espírito Santo. ja sempre aberto com avidez às palavras de salvação, e os
lábios sempre prontos a proferi-las. Não é o contrário de um
3.5 Familiaridade e sintonia com a Palavra de Deus instante, como a percepção vaga de um perfume difuso no ar.
É uma comunhão perma- nente com a Palavra, da mesma forma
Entre as notas características da leitura orante, vistas como como é contínuo o respirar. Então, o que sucede? A leitura se
exigências ou requisitos necessários para se poder falar realmente de incorpora ao mundo interior.
leitura espiritual da Palavra, devem ser destacadas, além do que já Os termos são fortes e muito evocativos. Algumas páginas
foi dito, a familiaridade ou assiduidade com a Palavra e a sintonia depois, ele diz: "Virá o momento em que a meditação contínua
com seu mundo interior. impregnará tua alma e a plasmará à sua imagem".
A Escritura, para ser compreendida e saboreada, além da ne- A palavra de Cassiano a respeito do compromisso do fiel de
cessidade de encontrar um coração aberto e disponível, exige uma permanecer na Escritura faz eco à palavra de Jesus sobre o discípulo
longa familiaridade. É preciso ler e reler o texto para que ele pene- autêntico: "Se permanecerdes em minha palavra, sereis verdadeira-
tre na profundidade da pessoa. São João Cassiano aconselha a leitu- mente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos
ra assídua e constante para uma ajuda válida no caminho de fé: tornará livres" (Jo 8,31-32).
Eis a que deves tender com todos os meios: aplica-te com constância e
assiduidade à leitura, até que uma meditação incessante impregne o teu
3.6 O Lecionário litúrgico e a leitura orante
espírito e, por assim dizer, a Escritura te transforme à sua semelhança.
Algumas perguntas nascem espontâneas aos que pensam ini-
Por meio de uma leitura assídua se adquire a necessária fa- ciar o caminho da leitura orante, e nós a escutamos tantas vezes:
miliaridade com o mundo da Bíblia e a sempre maior sintonia da Que textos da Bíblia utilizar para este tipo de leitura? É suficiente
própria mente, da própria vida e da própria palavra com a expe- uma leitura da Bíblia que esteja ligada à oração? É melhor privile-
riência bíblica. A familiaridade com a Palavra é o sinal e a medida giar o Lecionário festivo e ferial, ou um livro particular da Bíblia?
da vida espiritual do cristão. São Jerônimo dizia de modo conciso: Convém iniciar a leitura bíblica partindo do Novo ou do Antigo
''A leitura produz assiduidade, a assiduidade produz familiaridade Testamento?
e a familiaridade produz e faz crescer a fé". Quem é superficial e Essas são perguntas corretas, que exigem uma resposta. To-
inconstante não está apto a penetrar no mundo das riquezas de memos a definição da leitura orante bastante ampla e clara que F.
Deus, tiradas da Escritura. Só a alma farta de leitura e curvada Rossi de Gasperis dá:
com amor sobre o texto sagrado pode ser impregnada no coração
dos segredos da Palavra. Leitura orante é a leitura contínua de todas as Escrituras, na qual cada
livro e cada sessão é lida, estudada e meditada, compreendida e degustada
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mediante o recurso ao contexto de toda a revelação bíblica, Antigo e ração por parte dos fiéis, porque "é Ele quem fala quando a Igreja lê
Novo Testamento. Por causa de sua adesão simples e respeito humilde a Escritura",4 e é Ele quem dispõe o coração e a mente à inteligência
ao texto bíblico inteiro, a leitura orante é uma práxis de obediência espiritual das Escrituras.
plena e incondicional a Deus que fala, e o lugar onde o homem se
torna um ouvinte atento da Palavra ( ... ). Na ação litúrgica, a Palavra de Deus volta, a partir do texto
escrito, a se fazer vida e escuta do Senhor. As Escrituras encontram sua
A leitura orante não faz uma escolha de textos adaptados a temas e
unidade no mistério pascal de Cristo e se tornam evento narra- do que se
assuntos já escolhidos e decididos com antecedência, em vista de ne-
cessidades e de gostos já experimentados ou sugeridos pelo leitor ou pela anuncia e história que se realiza.
comunidade que lê. A leitura orante não adota também o esquema de
temas bíblicos, preferindo ao contrário ficar à parte de toda forma de
Na liturgia, a Palavra volta a Deus como resposta de oração
seleção teológica da mensagem bíblica. Ela começa pela Palavra de e de compromisso de fé renovada, e se torna leitura orante no ato
Deus e a segue passo a passo do princípio ao fim. A leitura divina supõe e pessoal e comunitário que a interioriza na alma e a prolonga no
leva a sério a unidade de toda a Escritura. testemunho da vida.

Do que foi exposto resulta que o modo mais adequado à


leitura orante é a "leitura contínua" de um texto bíblico, tanto do
Antigo como do Novo Testamento, mas feito do início ao fim,
obviamente segundo as exigências das pessoas ou das
comunidades.
Na realidade, a utilização dos textos bíblicos deve ser vista
em harmonia com o que a Igreja nos propõe na Liturgia renovada
pelo Concílio, por meio do Lecionário ferial e festivo, oferecido a
todo o povo de Deus, e que segue o critério da leitura contínua das
sagradas Escrituras.

Com razão, afirma o cardeal Martini:


O Lecionário renovado tende a colocar o fiel em contato praticamente
com toda a Escritura, ao longo de três anos nos domingos, e de dois
anos nas leituras feriais. É a essa leitura global da Igreja que se deve
fazer referência, ajudando cada fiel a colocar a leitura orante, que lhe é
proposta, no quadro de toda a Escritura e o ensinando a buscar e a
encontrar também sozinho as referências que iluminam cada texto.

O encontro da Palavra na ação litúrgica


Sabemos que o lugar privilegiado do encontro da Palavra de
Deus é a assembleia litúrgica, onde o Cristo ressuscitado e vivo "está
presente de um modo especial". Jesus em pessoa preside, não so- _________________________
4 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Sacrossanctum Concilium [Sobre a renovação da Sa-
mente à proclamação da Palavra, mas também à escuta e à interpre- grada Liturgia ] , n. 7.

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para fazê-la frutificar numa caridade
operante. Mas te pedimos, sobretudo,
pelos méritos de Cristo, Palavra do Pai,
que vive contigo pelos séculos dos séculos.
Amém.

4. Começar e terminar rezando Oração de conclusão da leitura orante


Antes de fechar a Bíblia, concluirei meu encontro com o Verbo,
Epiclese ou invocação ao Espírito Santo Palavra do Pai, rezando assim:
A invocação ao Espírito é a oração com a qual pedimos a luz
necessária para compreender o Senhor que fala. Podemos rezar assim: Pai Santo,
a pergunta de Jesus ressuscitado a Maria: ''A quem procuras?"

Vem Espírito Santo, pode surpreender também a nós cada dia de nossa vida.

abre nossa mente para o encontro com Jesus, Nem sempre quem queremos encontrar

Palavra feita carne, é Aquele que quer se dar a nós.

e nos doa a sabedoria do coração. Faz, ó Pai bom, que Aquele que buscamos

Concede-nos saber parar um instante seja verdadeiramente o todo ao qual nossa alma deseja aderir.

e escutar o som de tua voz, Buscar o Cristo é o sinal

para que, dóceis à tua Palavra, que já o encontramos em alguma medida,

nos deixemos purificar e plasmar sob o exemplo de Cristo, mas encontrar o Cristo seja estímulo para continuar a buscá-lo.

e, renovados no coração, Conhecer Aquele do qual se é conhecido:

possamos ser testemunhas de comunhão. eis o que é indispensável.

Assim pedimos, por intercessão de Maria, Concede-nos aprender a calar e a escutar;

a Virgem do silêncio e do serviço, o coração deve aprender a estrada do exílio

que escutou a Palavra para andar longe de tudo o que


o tem mantido preso aos seus velhos e tristes amores.
e a guardou em seu coração
Amém

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A leitura orante (divina)
é um modo de oração
que se faz com base na Sagrada Escritura.
Essa leitura propicia a meditação e a contemplação,
interiorizando um diálogo com Deus
para firmar, assim, a comunhão com Ele.

"Feliz aquele que encontra sua alegria na lei do Senhor


e nela medita dia e noite. "
(Salmo 1,2)

Leia também, do mesmo autor:


Bíblia, carta de amor
Salmos, oração da comunidade

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