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VIOLÊNCIAS NO COTIDIANO SOCIAL

E ESCOLAR:
DESNATURALIZANDO COM ARTE

Maria Cecília Luiz (org.)

São Carlos, 2020


© 2020, dos autores

Universidade Federal de São Carlos – UFSCar


Reitora
Wanda Aparecida Machado Hoffmann
Vice-Reitor
Walter Libardi

SEaD – Secretaria Geral de Educação a Distância – UFSCar


Secretária de Educação a Distância
Marilde Terezinha Prado Santos

Supervisão
Clarissa Bengtson
Douglas Henrique Perez Pino
Revisão Linguística
Paula Sayuri Yanagiwara
Editoração Eletrônica
Bruno Prado Santos
Capa
Jéssica Veloso Morito

Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da


Biblioteca Comunitária da UFSCar

Violências no cotidiano social e escolar : desnaturalizando


com a arte / organizadora: Maria Cecília Luiz. -- Docu-
V795v mento eletrônico -- São Carlos : SEaD-UFSCar, 2020.
266 p.

ISBN: 978-65-86891-09-6

1. Cotidiano escolar. 2. Violência. 3. Escola pública. 4.


Educação. I. Título.

CDD: 370 (20a)


CDU: 37
PREFÁCIO
APRENDER COM AS ARTES AS RESISTÊNCIAS DOS VIOLENTADOS

Miguel Gonzalez Arroyo1

O que nos revelam estes Ensaios Artísticos? Que existe vida nas esco-
las, que há criatividade, há narrativas de práticas pedagógicas de docentes,
educadores e educandos que inventam e mostram respostas corajosas, éti-
cas, pedagógicas, artísticas e políticas. Há educadoras e educadores que
buscam respostas aos dramas ético-pedagógicos que chegam aos corpos,
nas vidas violentadas, ameaçadas de milhões de educandos. Da riqueza des-
tes Ensaios Artísticos destaco algumas interrogações para a educação e a
docência: o que aprender com estas narrativas de respostas políticas, éticas,
pedagógicas, artísticas?
• Os educandos hoje são outros e exigem que os vejamos com outros
olhares
Outras crianças e adolescentes vêm chegando às escolas públicas que-
brando as velhas imagens românticas, cultuadas de infância e quebrando
as velhas autoimagens dos docentes, educadoras e educadores jardinei-
ros fiéis. No livro Imagens Quebradas (ARROYO, 2000) reflito sobre essas
quebras de olhares tradicionais dos educandos e dos educadores que nos
exigem a reinvenção de olhares. Os Ensaios Artísticos, apresentados neste
livro, nos convidam a ver as educandas e os educandos com o olhar das ar-
tes. Outros olhares realistas, trágicos das infâncias violentadas, como no livro
Vidas Ameaçadas (ARROYO, 2019a). Como vemos os educandos e como nos
vemos educadores? Interrogações que vêm destes Ensaios Artísticos.
• As violências existem e chegam às escolas
Os trabalhadores e as trabalhadoras na educação sabem que a socie-
dade é violenta e que as violências existem, pois carregamos para dentro

1 Professor titular emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas


Gerais (UFMG).
Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

das escolas as vivências de um trabalho violentado. Crianças, adolescentes


que chegam às escolas e jovens e adultos que chegam à EJA (Educação de
Jovens e Adultos) revelam que as violências existem como vivências cruéis
desde a infância. As escolas públicas e até as privadas recebem educandos
com vidas ameaçadas. As violências existem na sociedade, nos morros, nas
periferias pensadas como lugares de violentos, nas intervenções policiais
que se afirmam pacificadoras nos coletivos decretados violentos. Desde a
infância até a EJA chegam milhões de educandos das periferias às escolas,
carregando essas marcas de violências sofridas. Não há como ignorar que as
violências existem e chegam às escolas exigindo dos mestres que elas sejam
reconhecidas.
• Chegam às escolas os violentos ou os violentados?
A leitura destes textos nos faz refletir sobre esta indagação. O olhar da
sociedade, do poder sobre essas outras infâncias, adolescências nas escolas
públicas, populares, sobretudo, destaca que as escolas não são mais espa-
ços de convívios pacíficos, há violência porque os violentos estão chegando
de seus espaços violentos de sobrevivência para as escolas. A mídia reforça
essa visão negativa das escolas públicas e dos educandos. Nos ateliês, as
crianças não se pensam violentas, elas sabem-se violentadas. Exigem de nós,
educadores, vê-los como se sabem ser: não são violentos, mas violentados.
Os educandos exigem mudanças em tantas propostas de paz nas escolas,
através da educação contra as violências. Exigem reconhecer que violenta-
dos pela sociedade chegam esperando de seus mestres pedagogias e artes
que recuperem as autoimagens de violentados e destruam as imagens de
violentos com que a sociedade os estigmatizam
• Infâncias e adolescências que sabem-se violentadas e por quem
Nas experiências da pesquisa-intervenção com os educandos sobre vio-
lências sofridas foram explorados processos criativos artísticos em que eles
revelam saber-se violentados e por quem. Violentados por violências inter-
pessoais, mas, sobretudo, violentados pelas estruturas sociais, econômicas
e políticas. Pelos padrões de poder, pelas relações sociais, racistas, sexistas
e classistas. Muito cedo, desde a infância aprendem que são violentados
com seus coletivos, também oprimidos por tantas formas de opressão.
Aprendem que seus pais, mães são violentados porque há violentos que os
violentam. Nos conhecimentos dos currículos, nas lições dos seus mestres
aprendem que as estruturas, relações de poder os violentaram na história
Prefácio

e continuam violentando-os? Interrogações que aparecem com as vivências


de educandos violentados.
• Infâncias e adolescências que sabem-se violentados e por quê
Os educandos e educadores nos ateliês vivenciam que as violências sim-
bólicas, verbais, psicológicas, sexuais que são sofridas desde crianças não
são exceção na sociedade e até nas escolas. Revelam saber que vivenciam
essas violências em seus coletivos. Os educandos aprendem demasiado
cedo que os decretados violentos, sobretudo os violentados nas socieda-
des, em nossa história, têm cor, etnia e raça. Violências racistas, sexistas,
etnicistas, classistas estruturantes das nossas relações políticas, sociais e
econômicas. A radicalidade dessas violências ultrapassou em nossa história
os preconceitos interpessoais e foram, e continuam sendo, violências es-
truturais segregadoras de coletivos concretos, aqueles que chamamos de
outros têm etnia, raça, gênero e classe.
Nos ateliês os educandos revelam – desde a infância e na adolescência
– que sabem que são violentados e por quê. Porque são meninas negras,
meninos negros pobres da periferia, de rua. Voltam as interrogações que
chegam dos educandos que sabem-se violentados por esses padrões ra-
cistas, etnicistas, sexistas, classistas: quais currículos garantirão o direito a
saber-se violentados e por quê? Será que os currículos de formação inicial
e continuada conseguem garantir aos educadores esses conhecimentos?
Esses padrões segregadores de raça, classe social também não violentam
e segregam mulheres docentes e educadoras – maioria na educação infantil
e na educação fundamental? Elas, também, sabem-se violentadas como
educadoras? Por quem e por que mulheres e negras?
• Violências opressoras que roubam humanidades
Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido nos ensina Outro Paradigma Pe-
dagógico (ARROYO, 2019b). A pedagogia tem como função social, histórica
acompanhar os processos de humanização desde a infância, mas Paulo Frei-
re radicaliza essa função histórica lembrando-nos de que a desumanização
existe como realidade histórica. Dos oprimidos são roubadas suas humani-
dades. Os milhões de educandos que chegam às escolas até na EJA, ou nas
universidades, violentados por tantas opressões, chegam roubados das suas
humanidades. As crianças, adolescentes e jovens que sabem-se vítimas de
tantas violências estão exigindo da escola e dos seus docentes educadores,
Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

como função ética, política, pedagógica, reinventar as pedagogias por meio


da arte e recuperar suas humanidades roubadas, violentadas.
Estes Ensaios Artísticos pedagógicos revelam os avanços de escolas
educadoras e de educadores de como entender a violência mais violenta
que é feita com os educandos: roubar-lhes suas humanidades. Quais as exi-
gências de inventar artes e pedagogias que consigam recuperar humanida-
des roubadas, violentadas?
• As violências matrizes de desumanização
Na história, a Pedagogia e a docência assumiram como função social,
política, ética acompanhar e fortalecer os tensos processos de humanização
desde a infância. Estes Ensaios Artísticos revelam que os educandos sabem-
-se violentados em um percurso de vida violento. As violências vivenciadas
tão precocemente, desde a infância, roubam suas humanidades. Toda vio-
lência física, verbal, psicológica, sobretudo política e estrutural é matriz cruel
de desumanização. A função da docência, da educação não é apenas acom-
panhar processos de aprendizagem dos conteúdos escolares, nem apenas
acompanhar processos de humanização. Diante de milhões de educandos
violentados, a função ética, pedagógica, política dos docentes, educadoras,
educadores e gestores é recuperar as humanidades violadas pela vivência
das violências. Quando milhões de educandos chegam sofrendo a desuma-
nização que as violências têm provocado, a função docente-educadora se
radicaliza. Aprender com as artes a denunciar e a resistir às violências. As
artes na diversidade de suas linguagens têm sido instrumento pedagógico
para compreender as denúncias das violências.
• Violências totais que exigem resistências humanas totais
Estes Ensaios Artísticos com educandos e educadores revelam que
as violências físicas, verbais, psicológicas vividas dos diversos espaços da
sociedade, da cidade, das escolas não violentam essas infâncias e adoles-
cências de maneira isolada. As violências se reforçam na totalidade de suas
vidas, de seus tempos, lugares, na totalidade de dar condições de raça,
gênero, espaço e classe. Sabem-se violentados como negro, como pobre,
como moradores na periferia, como gênero e classe. Saberes que se refor-
çam, e reforçam as ameaças, violências que padecem. Chegam às escolas
infâncias, adolescências, jovens e adultos com vidas totais, vitimados por
violências totais que roubam suas identidades, humanidades totais. A essas
totalidades de vidas ameaçadas resistem em resistências totais, às violências
Prefácio

totais. Resistências totais que reafirmam processos totais de recuperação de


suas humanidades. Como trabalhar essas vivências totais? Como recuperar
humanidades totalmente violentadas? Através de que pedagogias e de que
artes?
• Aprender com as artes a entender, denunciar e resistir às violências
No livro "Passageiros da noite do Trabalho para a EJA" (ARROYO, 2017)
sugiro que uma forma de entender as tensas vivências dos jovens-adultos
pelo direito a uma vida justa é aprendendo com as artes. As artes na diversi-
dade de suas linguagens têm sido instrumentos pedagógicos para entender
e denunciar as violências, estes Ensaios Artísticos reconhecem, exploram
e trabalham com essas virtualidades pedagógicas das artes. A pedagogia,
sobretudo na educação infantil, explora as linguagens artísticas das crian-
ças. Como aprender com as artes as vivências cruéis de tantas violências?
Esta é a interrogação central destes Ensaios Artísticos, em que educandos
e educadores desenham suas vivências de cruéis violências. No livro Vidas
Ameaçadas (ARROYO, 2019a, p. 77) relembro uma notícia: "1.500 cartas de
crianças do complexo da favela da Maré enviadas para a justiça descrevem
o horror de suas vidas sob o fogo cruzado. Revelam saber-se violentadas e
por quem através das Artes". Na história as artes têm sido denunciantes das
violências históricas mais cruéis: Picasso em seu quadro Guernica denuncia
as violências opressoras contra as mães protegendo seus filhos. Portinari no
seu quadro "Os Retirantes" denuncia o sofrer e as violências não só da natu-
reza, mas das injustas e violentas estruturas econômicas e políticas.
O mérito central destes trabalhos é reconhecer que os educandos e
educadores chegam às escolas conscientes de serem violentados e bus-
cam nas artes revelar esses saberes e fortalecer suas resistências a tantas
violências. Lições pedagógicas desses Ensaios Artísticos que revelam que
os educandos e educadores desde a infância sabem-se violentados, por
quem e por que. Estas lições revelam que nas escolas há vida, há respostas
criativas de educadoras, educadores, educandas e educandos. Revelam que
dos violentados, por tantas injustiças, chegam lições éticas, pedagógicas a
aprender. A multiplicar.

Referências
ARROYO, M. G. Imagens quebradas: Trajetórias de tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes,
2000.
Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

ARROYO, M. G. Passageiros da Noite do Trabalho para a EJA: Itinerários pelo direito a uma vida
justa. Petrópolis: Vozes, 2017. 294 p.
ARROYO, M. G. Vidas ameaçadas: exigências-respostas éticas da educação e da docência. Petró-
polis: Vozes, 2019a. 256 p.
ARROYO, M. G. Paulo Freire: Outro Paradigma Pedagógico? Educação em Revista, Belo Horizonte,
v. 35, 2019b.
SUMÁRIO

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Parte I – Pesquisa-intervenção sobre violências: convívios e práticas


democráticas

1 Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e


Pesquisas em Educação, Subjetividade e Cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
Maria Cecília Luiz
Ridamar Aparecida de Oliveira

2 Estudantes e suas percepções sobre violências físicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39


Viviane Wellichan
Maria Cecília Luiz

3 Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências


simbólicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Célia Maria Rosa
Maria Cecília Luiz

4 Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de


linguagem que silencia: violência verbal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Jéssica Veloso Morito

5 Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir. . . . . . . . 99


Jussilene Rego Nunes
Maria Cecília Luiz
Caroline Miranda Palmieri da Silva

6 Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com


adolescentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Rafaela Maria Rodrigues
Bianca Kapp Cardoso

Parte II – Princípios teórico-metodológicos: considerações e a presença a arte

7 Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares. . . . . . . . . . . 133


Rafaela Marchetti

8 Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares. . . . . . . . . 157


Marcela Luiz Corrêa da Silva
Maria Cecília Luiz

9 Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos . . . . . . 175


Aline Cristina de Souza
10 Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência
doméstica: alguns referenciais teóricos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Maria Carolina do Carmo Gurgel
Tatiane Martins Moacir de Almeida

11 Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de


estudantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Rita de Cássia Rosa da Silva
Maria Cecília Luiz
Aialy de Souza Oliveira

12 Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na


expectativa do olhar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Renata Reis Genuíno

13 Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237


Maria Cristina Luiz Ferrarini
Maria Cecília Luiz

Biografia do autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267


| 13

APRESENTAÇÃO

É fato que a escola sente muita dificuldade em lidar com a violência estru-
tural (violência da própria sociedade), mas existe, também, aquela que está
dentro dos seus espaços, denominada de intramuros. Por vezes, educadores
sentem-se impotentes diante de uma rede de relações que desconhecem
e/ou não compreendem, havendo a busca por soluções ainda mais violen-
tas, como: ataques verbais, imposição de autoridade ou em muitos casos
expulsando o aluno ou transferindo-o para outra escola. Tanto as violências
extramuros como as intramuros resultam de problemas de ordem social –
manifestações de poder que podem ser geradas pelos espaços micro ou
macro – e estão ligadas às questões relacionais em seu ambiente.
A parceria entre uma Escola Estadual de Ensino Integral, no interior de
São Paulo, e o Gepesc (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Subjeti-
vidade e Cultura) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) surge nes-
te contexto, com uma pesquisa-intervenção que propiciou reflexões sobre
as questões de relacionamentos entre aluno/aluno, professores/aluno etc.,
nos anos de 2018 e 2019. De lá para cá, foram oferecidas quatro disciplinas
eletivas (uma por semestre, duas ao ano), para os Ensinos Fundamental e
Médio, em conjunto aos docentes da escola, tendo como foco contextuali-
zar a importância da alteridade e das convivências escolares, com intenção
de socializar olhares diferenciados e contribuir para possíveis e diferentes
soluções, utilizando expressões artísticas (música, movimento, dança, audio-
visuais, arte plástica, cinema etc.).
Durante esse processo tanto os discentes da Educação Básica como os
do Ensino Superior – integrantes do Gepesc – foram envolvidos e desafia-
dos a adotar diferentes perspectivas, com possibilidades de novos espaços
para repensar as relações com o entorno – e consigo mesmo. Os exercícios
aplicados nas experimentações funcionaram como jogos, cujo conjunto de
regras teria que desestabilizar o conhecimento prévio do estudante sobre a
temática e sobre as produções audiovisuais e/ou escritas. O fazer nos ateliês
de experimentação, bem como tudo o que foi produzido neles, modifica-
ram os relacionamentos na escola, com base na alteração dos modos de
14 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

percepção de si e desenvolvimento da alteridade. Isso propiciou a busca de


alternativas, de invenções de outros mundos, ou mesmo novas formas de
agir.
Nesse sentido, a ação de representar ou criar com a arte tornou-se uma
reflexão da vítima sobre a realidade, e o estudante não apenas disse o que
sentiu, ou interpretou suas vivências, mas pôde ampliar sua maneira de in-
terpretar situações e, como consequência, perceber a exclusão que ocorre
no processo escolar. Por vezes, jovens estudantes tornam-se protagonistas
de violência quando na verdade são vítimas e acabam a usando como forma
de revidar e aliviar seus ressentimentos e/ou sentimentos dolorosos. Esse
processo de reconhecimento, por parte do sujeito e do outro, em re-
lação ao ato violento, pode permitir a constituição de um novo saber
coletivo sobre a violência silenciada nas escolas. Não se trata apenas de
aprender novos hábitos ou comportamentos, de como se portar diante do
outro, mas, acima de tudo, de um processo de empatia, em que o sofrimento
do outro é vivido em mim também como o meu sofrimento.
Este livro é o resultado dessa experiência, uma jornada desafiadora e
gratificante para cada sujeito que, de alguma forma, fez parte desse cami-
nhar. Nessa perspectiva, a Parte I – Pesquisa-intervenção sobre violências:
convívios e práticas democráticas está composta de seções que relatam as
experiências de cada um dos Ateliês, ou de conteúdos desenvolvidos em
seus espaços.
Assim, a seção 1, "Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc
– Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Subjetividade e Cultura",
escrita por mim e por Ridamar Aparecida de Oliveira, aluna do Curso de
Pedagogia da UFSCar, contextualiza as duas vertentes da experiência rea-
lizada pelo Gepesc, a formação dos integrantes do grupo de pesquisa e a
descrição do que foi a experiência com a pesquisa-intervenção na escola de
Educação Básica.
Na seção 2, "Estudantes e suas percepções sobre violências físicas", de
autoria minha e de Viviane Wellichan, mestre em Educação pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFSCar, a intenção foi apresen-
tar resultados da pesquisa-intervenção realizada com alunos do 6º e 7º anos
do Ensino Fundamental da referida Escola Estadual de Ensino Integral, tra-
tando das questões sobre violências físicas que acontecem em sociedade,
na perspectiva da Análise de Conteúdo.
Apresentação | 15

A seção 3, "Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as vio-


lências simbólicas", foi escrita por mim e Célia Maria Rosa, mestre em Edu-
cação pelo PPGE/UFSCar, e teve como objetivo identificar e analisar o que
estudantes de Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Médio compreendiam
sobre violências simbólicas na escola.
A seção 4, "Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma
força de linguagem que silencia: violência verbal", escrita por Jéssica Veloso
Morito, aluna do Curso de Pedagogia da UFSCar, graduada em Matemática,
aponta os resultados da pesquisa-intervenção sobre violências verbais na
escola, e sua capacidade de abordar o tema traduz possibilidades de supe-
ração da naturalização das violências na escola.
A seção 5, "Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca
do ouvir", foi escrita por mim e as alunas Jussilene Rego Nunes – pedagoga
e graduanda em Bacharelado em Psicologia – e Caroline Miranda Palmieri
da Silva – pedagoga e mestranda em Educação pelo PPGE/UFSCar. Teve
como objetivo evidenciar os resultados da pesquisa-intervenção de caráter
qualitativo ao ouvir estudantes dos Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Mé-
dio da referida escola sobre violências psicológicas ocorridas nas relações
interpessoais, na escola e na família.
A seção 6, "Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção
com adolescentes", foi escrita por Rafaela Maria Rodrigues e Bianca Kapp
Cardoso, ambas alunas do Curso de Pedagogia da UFSCar.
A Parte II – Princípios teórico-metodológicos: considerações e a presen-
ça da arte está composta de seções que tratam de perspectivas teóricas
que utilizamos em pesquisa, em particular a pesquisa-intervenção, além da
busca pela arte como possibilidade de mudança nas relações violentas.
Assim, a seção 7, "Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais
e escolares", escrita por Rafaela Marchetti, doutoranda do PPGE/UFSCar,
traz como proposta elencar referenciais teóricos que embasem a discussão
sobre o significado de diferentes tipos de violências nos contextos sociais e
na escola, além de abordar, em específico, a violência simbólica.
A seção 8, "Comunicação não violenta e os benefícios nas relações es-
colares", desenvolvida por Marcela Luiz Corrêa da Silva e por mim, aborda
algumas técnicas sobre a Comunicação Não Violenta, de autoria de Marshall
Rosenberg, com o intuito de explaná-la no âmbito da escola.
16 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A seção 9, "Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodo-


lógicos", escrita por Aline Cristina de Souza, doutoranda do PPGE/UFSCar,
aborda os referenciais teóricos que embasam a discussão sobre as Ciências
Humanas e a questão das metodologias de pesquisas sociais, em específico,
os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa-intervenção.
A seção 10, "Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de
violência doméstica: alguns referenciais teóricos", escrita por Maria Carolina
do Carmo Gurgel e Tatiane Martins Moacir de Almeida, ambas pedagogas
formadas pela UFSCar, realizou uma revisão da literatura científica a fim de
verificar qual a compreensão e atuação dos docentes no ensino básico sobre
a violência doméstica/intrafamiliar.
Na seção 11, "Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo
instrumental de estudantes", escrita por mim e pelas alunas Rita de Cássia
Rosa da Silva – mestranda em Educação pelo PPGE/UFSCar, graduada em
Licenciatura em Música e Pedagogia – e Aialy de Souza Oliveira – graduanda
do Curso de Licenciatura em Física da UFSCar –, focou-se em alguns refe-
renciais teóricos sobre a importância da música na aprendizagem escolar e
refletiu-se sobre a experiência de ter instituído e desenvolvido um trabalho
com um grupo instrumental de estudantes de uma escola pública.
A seção 12, "Momentos de criação com audiovisuais: outros conheci-
mentos na expectativa do olhar", escrita por Renata Reis Genuíno, mestre
em Educação pelo PPGE/UFSCar e estudante do Curso de Psicologia da
UFSCar, relata de forma muito criativa a articulação dos ateliês com a arte.
A seção 13, "Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos", escrita
por mim e por Maria Cristina Luiz Ferrarini, mestre em Educação pelo PPGE/
UFSCar e professora de Artes, discorre sobre intenções, contextos e práticas
escolares que estão inseridos na concepção da Arte. Elenca fatos históricos
e os estilos artísticos que contribuíram e, ainda, contribuem para o desen-
volvimento e aprendizagem da Arte na educação, em especial, nas escolas
brasileiras.
Finaliza-se afirmando que as experimentações realizadas nos ateliês for-
neceram subsídios práticos e modificadores na relação do sujeito com uma
nova linguagem, o que significou alterar o modo como cada um se percebia
nas mais diversas situações escolares. A experiência do Gepesc em realizar
uma pesquisa-intervenção na escola pública, bem como a oportunidade de
formar estudantes do Ensino Superior na perspectiva transdisciplinar, está
Apresentação | 17

registrada neste livro, e esperamos que ele auxilie sua formação continua-
da, sua reflexão sobre ser educador, ou até mesmo no seu posicionamento
como ser humano, e isto significa, daqui para frente, acreditar na educação
de forma democrática e não violenta.

Boa leitura!

Maria Cecília Luiz


Maio de 2020
PARTE I
PESQUISA-INTERVENÇÃO SOBRE VIOLÊNCIAS:
CONVÍVIOS E PRÁTICAS DEMOCRÁTICAS
1

PRÁTICAS COLABORATIVAS E
RELAÇÕES HORIZONTAIS: GEPESC –
GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS
EM EDUCAÇÃO, SUBJETIVIDADE E
CULTURA
Maria Cecília Luiz
Ridamar Aparecida de Oliveira

Quando se pensa em grupos de pesquisa, automaticamente, se enten-


de que existem diferentes sujeitos com interesses comuns cujo objetivo é
realizar algo em conjunto no mesmo ambiente físico ou virtual. Parte-se do
pressuposto de que é por meio do trabalho coletivo que se pode obter co-
nhecimentos, experiências e interações em colaboração com cada integran-
te do grupo, cujo propósito é estudar e investigar sólidos conhecimentos
científicos.
Samea (2008) afirma que um grupo deve ter talento para ser um "espaço
potencializador de encontros e contato com o outro, de questionamentos e
indagações, de elaboração e trocas, de identificações e de confrontos" (p.
86).
Maximino e Liberman (2015) compreendem que o grupo é um lugar pri-
vilegiado de aprendizagem e significa "abrir-se para a construção coletiva e
a leitura crítica da realidade – o grupo cria uma interdependência no com-
partilhamento de tarefas e passa a aprender a planejar e colaborar" (p. 44).
Nesse sentido, os grupos de pesquisa são lugares propícios para a cons-
trução de conhecimentos de distintas áreas das Ciências, bem como possi-
bilitam a reflexão quanto ao papel e à importância da formação continuada.
O mais precioso desse tipo de envolvimento coletivo é ter o convívio de dife-
rentes pessoas, com pensamentos antagônicos, histórias de vida singulares,
e mesmo assim obter resultados proveitosos tanto na perspectiva individual
como grupal (FARIAS; ANTUNES, 2009).
22 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

O Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Subjetividade e Cultura


(Gepesc) é constituído de pesquisadores, educadores, estudantes de gra-
duação e de pós-graduação, profissionais oriundos de diferentes áreas do
conhecimento, e desenvolve estudos e pesquisas na área da educação e
correlatas, que possuem focos de análise relacionados à subjetividade hu-
mana e à cultura.
Em 2017 e 2018, desenvolveu uma pesquisa quanti-qualitativa sobre a
questão da Educação, Pobreza e Desigualdade Social, com o título "Direitos
e Políticas Públicas de Transferência de Renda em Municípios do Estado de
São Paulo", e atualmente desenvolve duas frentes de pesquisas:
• Convivências e violência: experimentações em ateliês nos Ensinos Fun-
damental (Anos Finais) e Médio;
• Programa de mentoria e cooperação em Gestão Escolar: gestor mentor.
Esta seção tem o intuito de apresentar as investigações que derivam do
primeiro item – Convivências e violência: experimentações em ateliês nos
Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Médio – com finalidade de refletir sobre
concretizações e/ou resultados obtidos pelo Gepesc, com dois objetivos: 1)
verificar as contribuições de uma formação transdisciplinar realizada com in-
tegrantes do Gepesc, tendo como enfoque estudos, pesquisas e desenvol-
vimento de aprendizagens democráticas e compartilhadas; e 2) analisar uma
pesquisa-intervenção concretizada pelo Gepesc em uma Escola Estadual de
Ensino Integral (Educação Básica), sobre os diferentes tipos de violências,
com intenção de potencializar mudanças no desenvolvimento pessoal e
grupal.
As duas perspectivas aconteceram, concomitantemente, nos anos de
2018 e 2019, com a participação de integrantes do Gepesc que estiveram
em busca de formação transdisciplinar, com objetivo de efetivar uma pes-
quisa-intervenção, uma extensão universitária, realizada em parceria com a
UFSCar (Departamento de Educação e Pró-Reitoria de Extensão) e com uma
escola pública de Educação Básica.
Durante esse período de dois anos, com a extensão universitária, foram
necessários vários encontros, formações e debates devido à atuação sema-
nal desses graduandos e pós-graduandos dentro da escola. Assim, esses
encontros tornaram-se desafiadores no sentido de buscar práticas educati-
vas, mudanças de atitudes e posturas, respeito às diversidades etc., sobre-
tudo quando se decidiu que a pesquisa-intervenção estaria desenvolvendo
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 23

reflexões e ações sobre a temática das violências em uma escola de Educa-


ção Básica. Dessa forma, traçou-se um delineamento de formação continua-
da, visto que a temática requer tratamento apurado de assuntos complexos
e amplos. A perspectiva da formação também proporcionou aos estudantes
do Ensino Superior utilizar a transdisciplinaridade na escola de Educação
Básica, visto que cada um tinha uma base de conhecimento atrelada a sua
área de formação inicial.
É importante lembrar que todo campo da educação advém de formação
processual e constante e que essa capacitação pode ser, ou não, transfor-
madora, no que diz respeito às ações e atitudes que são revitalizantes para
as convivências sociais. Portanto, a base de qualquer formação no Ensino
Superior deve estar no convívio ético e na responsabilidade social, assim
como no pensamento humanizado.
Nesse sentido, todas as expectativas e relatos que aconteceram neste
ínterim foram registrados pelos pesquisadores: estudantes de graduação e
pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento da UFSCar – bachare-
lado em Psicologia, licenciaturas em Pedagogia, Música, Matemática, Física,
Artes e Educação. As aprendizagens favoreceram a relação teoria e prática,
com o objetivo de contribuir com novos conhecimentos, valores e habilida-
des que são tão importantes para qualquer profissional (SUANNO, 2014).

Gepesc e a formação transdisciplinar: desafios e aprendizados


Desde o início, o grupo de pesquisa Gepesc tinha como alvo buscar uma
formação transdisciplinar, com a intenção de ser mais que uma união de
estudantes e professores universitários, ou seja, ter o comprometimento de
discutir e decidir sobre qualquer assunto com integração entre os diferentes
pensamentos de vários campos do conhecimento. Ao instituir a forma trans-
disciplinar como meta, os envolvidos tiveram que se empenhar, de forma
cooperativa, e respeitar os referenciais teóricos aprendidos por todos os
integrantes do grupo, mesmo sendo estes alunos aprendizes de distintas
áreas de conhecimento.
A procura pela transdisciplinaridade em estudos e trabalhos coletivos
ancora-se na abordagem qualitativa, cujo valor está no campo das vivências,
nas percepções de participantes e no vigor dos saberes e diálogos demo-
cráticos. Assim, as pesquisas sempre tiveram o propósito de dar vez e voz
aos pesquisadores e participantes da investigação, oportunizando aprender
24 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

em conjunto, a partir de experiências pessoais, profissionais e formativas.


É uma perspectiva que permite ao sujeito refletir sobre as formações que
obteve em seu percurso de vida.
Para a realização da pesquisa-intervenção foram necessários vários en-
contros semanais, com vistas a operacionalizar as ações relacionadas à esco-
la de Educação Básica (local em que foram desenvolvidas investigações do
grupo sobre as violências). Nessas reuniões graduandos e pós-graduandos
puderam elaborar e debater sobre as formas em que ocorreriam as atuações
na escola, bem como trocar ideias e experiências na formulação das oficinas
de experimentação, denominadas de ateliês.
No início, e por todo o processo, construir um espaço democrático e
transdisciplinar foi a grande dificuldade do grupo, e, mesmo assim, com a
possibilidade do diálogo, todos os participantes do Gepesc perceberam
que não era possível abordar diferentes tipos de violências (para alunos da
Educação Básica) apenas se baseando em uma área do conhecimento, ou
um conteúdo exclusivo, ou uma única linha de pensamento. O grande obs-
táculo foi sair da zona de conforto, integrar os possíveis conhecimentos e
compreender como estes se encaixariam para formar uma proposta capaz
de propiciar interações, obter subsídios e ferramentas para concluir os ob-
jetivos propostos.
Nesse sentido, pode-se dizer que o trabalho foi muito relevante, pois,
além de entrar na escola de Educação Básica com a intervenção, também
foi possível desenvolver uma formação transdisciplinar, fundamental para os
futuros profissionais, principalmente os licenciandos.
Essa pesquisa-intervenção proporcionou a presença de membros da
universidade dentro da escola de Educação Básica, cujo objetivo era fazer
com que os alunos reconhecessem os tipos de violências em suas vivências
no mundo e na escola, de modo que pudessem ressignificar as relações com
seus pares.
Segundo Santos (2001), é difícil superar o distanciamento
universidade-escola:

Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em


configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da
universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de exten-
são, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a
ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino (SAN-
TOS, 2001, p. 200).
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 25

Ao utilizar a transdisciplinaridade como ferramenta que garante a inter-


face disciplinar, o grupo Gepesc buscou obter uma visão mais complexa da
realidade, uma perspectiva epistemológica. Cada conhecimento e saber so-
cializado na formação continuada foram de extrema importância, visto que
era necessário extrapolar o entendimento reducionista de uma disciplina, ou
de uma área de formação, ou de um referencial teórico, pois nenhum con-
ceito único poderia abarcar toda a complexidade da realidade educacional.
Para Moraes (2015), o conhecimento transdisciplinar é dialógico e esta-
belece a ligação entre o mundo exterior do objeto e o mundo interior do
sujeito. Isso significa compreender os conhecimentos de forma mais ampla
e abandonar a ideia de que um único campo disciplinar abrange a realidade
escolar e/ou forma o pensamento necessário para o mundo contemporâneo.
Nicolescu (1999) define a transdisciplinaridade como:

a dualidade que opõe os pares binários: sujeito-objeto,


subjetividade-objetividade, matéria-consciência, natureza-divino, sim-
plicidade-complexidade, reducionismo-holismo, diversidade-unidade.
Esta dualidade é transgredida pela unidade aberta que engloba tanto o
Universo como o ser humano (NICOLESCU, 1999, p. 13).

Tanto para o grupo Gepesc como para os demais pesquisadores da área


da educação, hoje fica visível a divulgação de formas diferentes de abor-
dar as questões referentes ao ensino e à aprendizagem – principalmente
com o uso da tecnologia e com o acesso fácil à informação. Nesse contexto,
pensar em formação continuada para educadores, ou mesmo para licencian-
dos, significa levar em consideração as interações interdisciplinares. Toda
mudança ocorre de forma gradativa, por isso, uma visão interdisciplinar, ou
transdisciplinar, deve ser percebida como algo que acrescenta a perspectiva
da qualidade de ensino na escola.
Após os esclarecimentos sobre os caminhos que o Gepesc se propôs
a traçar, retoma-se o primeiro objetivo desta seção, que é verificar as con-
tribuições de uma formação continuada e transdisciplinar realizada para
estudantes do Ensino Superior. Para tanto, realizou-se uma pesquisa quali-
tativa de caráter exploratório com a ideia de verificar quais e como foram as
expectativas, melhorias, os desafios que essa formação proporcionou a es-
ses futuros profissionais, estudantes e integrantes do Gepesc, durante suas
participações na pesquisa-intervenção com alunos da escola de Educação
Básica.
26 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Tanto a formação como a pesquisa-intervenção ocorreram ao mesmo


tempo, como já foi dito, nos anos de 2018 e 2019. Durante essa ocasião,
foram gravados áudios, vídeos, além de serem recolhidos relatos em dife-
rentes situações, como: de decisão, de resultados das práticas pedagógicas,
de estudos, de elaboração de atividades etc., com participação da maioria
dos integrantes do Gepesc. Para este texto, devido ao seu espaço limitado,
foi selecionado apenas um recorte do que foi relatado pelos integrantes do
Gepesc sobre como a formação continuada e transdisciplinar possibilitou
ganhos ou dificultou as suas aprendizagens. Como procedimento meto-
dológico, decidiu-se utilizar entrevistas semiestruturadas, com perguntas
norteadoras que foram gravadas em vídeo. Para esta seção, analisaram-se
apenas três delas:

Você acha que sua participação no Gepesc influencia ou influenciou algo


em sua formação?
O fato de participar da pesquisa-intervenção melhorou, ou não, sua visão
sobre a escola pública de Educação Básica?
O que você acha que a escola pode ganhar com esse tipo de intervenção
em seus espaços?

Como os integrantes do grupo de pesquisa compunham mais de 30


pessoas, escolheu-se analisar somente os relatos de cinco estudantes: um
de Psicologia, um de Pedagogia, um de Física, um de Matemática e um es-
tudante de pós-graduação em Educação com formação em Artes. Cada um
representou uma das cinco áreas do conhecimento científico, e o critério
para a seleção desses cinco sujeitos foi a autorização para participar desta
investigação. Ressalta-se que entre os estudantes houve participação de
ambos os sexos, mas para este texto, respeitando o sigilo dos entrevista-
dos, chamamos todos e todas pelo masculino (conforme norma da Língua
Portuguesa).
Para análise dessas respostas, utilizou-se a análise do conteúdo na
perspectiva de Bardin (1977). Para a autora, tal análise possibilita verificar
o conteúdo dos dizeres e seus significados, isto é, uma descrição objetiva,
sistemática e quantitativa do conteúdo extraído das comunicações e sua
respectiva interpretação.
O primeiro estudante, o de Psicologia, destacou em seu relato que o
grande diferencial foi pensar e executar um trabalho de forma coletiva, com
oportunidade de escutar e respeitar a alteridade no processo de formação
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 27

continuada. Essa possibilidade permitiu que as relações entre o grupo de


pesquisa e o relacionamento dentro da instituição escolar – no âmbito da
escola de Educação Básica – fossem mais eficazes, visto que ouvir todas as
expressões e sentimentos foi fundamental para o entendimento do que es-
tava acontecendo, com possibilidade de conciliações.
Para esta questão, Morin (2004) afirma:

A reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da inteli-


gência para responder a esses desafios e permitiria a ligação de duas
culturas dissociadas. Trata-se de uma reforma não programática, mas
paradigmática, concernente a nossa aptidão para organizar o conheci-
mento (MORIN, 2004, p. 19).

Assim, ao compreender e compartilhar a importância de se colocar no


lugar do outro, o estudante de Psicologia afirma conseguir restabelecer as
interações entre os estudantes por meio do diálogo, sem precisar se impor
ou exercer relações de poder autoritária, como costuma ocorrer na escola.
O segundo estudante, o de Licenciatura em Física, revelou que fazer
parte do Gepesc trouxe uma perspectiva bem diferente das suas vivências e
do conhecimento que tinha sobre as violências. Os procedimentos na forma-
ção e na pesquisa-intervenção dentro da escola pública contribuíram para
o estudante obter uma visão distinta, isto é, se colocar no lugar do aluno de
Educação Básica. A possibilidade de estudar e reconhecer os tipos de vio-
lência fez com que apreendesse um pouco mais sobre a violência simbólica,
muito comum nas instituições. Segundo o estudante: "Essa violência deixa
de ser invisível e passa a ser perceptível... Isso faz toda a diferença".
É comum a sociedade vincular atos violentos apenas à existência de vio-
lências físicas, mas para Michaud (1989) existe uma amplitude de significados
atribuídos às violências. O autor afirma que compreender as violências im-
plica referenciar valores e normas, além de considerar as singularidades de
cada situação. Para Michaud (1989), a violência é percebida porque possui
uma atuação, pois há necessidade de ação para que possamos lhe atribuir
um valor:

há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores


agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos
a uma ou mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física,
seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações
simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, p. 11).
28 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Segundo o discente do Curso de Licenciatura em Física, essa forma de


pensar as relações na escola ficou mais clara, de tal forma que reconsiderou
as suas percepções sobre as violências, isto é, as interações que sofreu ou
produziu em seu período de escolarização, quando frequentava a Educação
Básica. Afirma que, depois dessa experiência, sua concepção mudou tanto
que não conseguiria voltar a pensar como antes. Conforme suas palavras: "a
partir do momento em que se descobre que a violência existe, a possibili-
dade de fingir que ela não está lá se torna impossível". Ainda identifica que
elaborar e executar as oficinas de experimentação na escola pública, com
pessoas de diferentes áreas, provocou, também, mudanças em sua maneira
de viver, em suas relações, principalmente, com relação às violências na so-
ciedade e na escola.
O terceiro estudante, o de pós-graduação com formação em Artes, en-
tende a relevância do trabalho no grupo e na escola e destaca a importância
de ter a universidade cada vez mais atuante, de maneira conjunta, no âmbito
das escolas públicas. Acredita que levar temas atuais, com um olhar mais
reflexivo sobre as relações existentes dentro das unidades escolares, ajuda a
proporcionar uma convivência diferenciada, com ações e condutas díspares
entre docentes e alunos da escola de Educação Básica.
Nesse sentido, segundo Japiassu (2013):

O grande desafio lançado ao Pensamento e à Educação nos dias de hoje,


neste início de século e de milênio, é a contradição entre, de um lado, os
problemas cada vez mais globais, interdependentes e planetários e, de
outro, a persistência de um modo de conhecimento que privilegia os sa-
beres fragmentados, parcelados e compartimentados (JAPIASSU, 2013).

Dessa forma, além da presença da universidade dentro dos ambientes


escolares, o estudante de pós-graduação compreende que esta deve enten-
der o contexto no qual a escola se encontra e fazer proposições conjuntas
(docentes e alunos) para possíveis soluções nas relações estabelecidas em
seus espaços.
O quarto estudante, o de Licenciatura em Pedagogia, foi enfático quanto
à experiência positiva da escola com a pesquisa-intervenção e relatou que,
dessa forma, novas relações e modelos foram estabelecidos entre aluno-alu-
no, aluno-professor e agentes escolares, em geral. Esse processo de mudan-
ça só foi possível por conta da troca de conhecimentos durante o período da
intervenção, na qual se esclareceu a importância de conhecer os vários tipos
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 29

de violência e as formas como se pode ressignificá-las – tanto dentro como


fora do ambiente escolar. Declarou, também, que essa perspectiva serviu
para todos os integrantes do Gepesc.
O quinto estudante, licenciado em Matemática e graduando em Pedago-
gia, começou seus dizeres contando um pouco sobre o tempo de convivên-
cia entre as pessoas envolvidas no grupo de pesquisa e na escola. Acredita
que esse convívio colaborou com a sua formação profissional, pois, segundo
o estudante, se aprende muito com a formação transdisciplinar.
Quanto à sua participação na pesquisa-intervenção na escola, relata que
teve uma percepção interessante do processo reverso, em que ele, como
professor, se coloca no lugar do aluno. Desse experimento, conclui que algo
deve ser considerado – por todos os educadores, em geral – com relação à
escola: que esta deve ser um local mais acolhedor, um lugar em que todos
os alunos deveriam se sentir parte do ambiente escolar. Seu maior ganho
em ambas as experiências – fazer parte do grupo e da pesquisa-intervenção
na escola – foi a aprendizagem da escuta consciente, da comunicação com
respeito e da consideração ao espaço do outro, não importando a hierarquia
das relações de poder instituídas na escola. Segundo o discente, "conflitos
vão sempre existir, mas podem ser mais bem resolvidos se houver o diálogo,
com intenção de achar um ponto em comum para a resolução dos proble-
mas". Finaliza afirmando que esse tipo de reflexão sobre convívio saudável
deve ser sempre algo a ser almejado em qualquer convívio social.
Desenvolver um estudo e atuar de forma transdisciplinar proporcionou,
aos futuros profissionais, ampliar suas apreciações, isto é, ter um olhar re-
flexivo e crítico sobre si, com perspectiva de transcender preconceitos e
discriminações que, muitas vezes, foram impostos pela sociedade. Segundo
Santos Neto (2006),

Tão importante quanto conhecer e discutir as ideologias políticas em vis-


ta da transformação social é também importante: o autoconhecimento;
o trabalho com o corpo, com as emoções, com a razão e com o espírito;
o desenvolvimento da consciência ecológica; o respeito pelas diferenças
pessoais, coletivas e raciais; a articulação entre o mundo da interioridade
e da exterioridade sociopolítico-econômica em uma realidade em que
todas as dimensões estão interligadas (SANTOS NETO, 2006, p. 42).

Segundo Boff (1994, p. 74), "nos grupos, transformam-se as pessoas, suas


práticas e suas relações com a sociedade circundante. A partir daí podemos
começar a mudar espaços mais amplos da sociedade". Assim, o trabalho em
30 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

grupo na perspectiva transdisciplinar propiciou mudanças de paradigmas,


constituindo-se em algo essencial para sensibilizar e valorizar a subjetivi-
dade de cada um, e esse novo olhar tornou-se a ponte de integração, de
socialização entre os integrantes do Gepesc.

Gepesc e a pesquisa-intervenção na escola: disposições e mudanças


na prática
É relevante iniciar este tópico lembrando que o grupo de pesquisa Ge-
pesc se propôs a desenvolver estudos e pesquisas com princípios éticos,
com atividades e compromissos sociais, tendo como base dois pilares: o
incentivo à produção e divulgação científica; e a perspectiva da interven-
ção, isto é, de propiciar atividades de caráter didático-pedagógico, cultural,
técnico-científico e de interação com a sociedade, especificamente com a
escola. Entre as principais atividades do grupo, destaca-se a investigação
sobre violências, com o propósito de: fazer levantamento de conhecimentos
das principais correntes teóricas; organizar e executar pesquisa-intervenção;
priorizar a aprendizagem compartilhada a partir de trocas de saberes e re-
sultados de investigações na área; estimular os seus integrantes a desenvol-
ver projetos de pesquisa individuais e coletivos etc.
Além de realizar a pesquisa qualitativa entre os estudantes do Gepesc
sobre a formação transdisciplinar, concomitantemente, como já foi dito,
desenvolveu-se uma pesquisa-intervenção em uma escola pública. Este é o
segundo objetivo desta seção: investigar e analisar a experiência da pesqui-
sa-intervenção sobre violências na Escola Estadual de Ensino Integral, com
vistas a promover modificações pessoais e grupais.
Esta pesquisa-intervenção, com perspectiva qualitativa, objetivou enten-
der como as violências interferiam, ou não, nas convivências de estudantes
dos Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Médio. Como já foi dito, a pesquisa
foi realizada durante os anos de 2018 e 2019, em uma Escola Estadual de
Ensino Integral, situada em uma cidade de médio porte no interior de São
Paulo.
É importante relatar que toda a proposta da pesquisa-intervenção sur-
giu de um pedido da própria escola, que compreendia que o diálogo era
um instrumento que poderia modificar a sua realidade, mas não estava con-
seguindo realizá-lo de forma satisfatória. O estudo evidenciou as relações
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 31

no cotidiano da escola, principalmente aquelas que aconteciam de forma


naturalizada nas microviolências do cotidiano.
O grupo Gepesc preferiu utilizar, como procedimento metodológico,
as oficinas de experimentação, denominadas de ateliês, por meio de uma
disciplina eletiva que faz parte do Programa de Ensino Integral de escolas
estaduais do governo do estado de São Paulo. As instituições escolares que
compõem esse Programa estão alicerçadas nas Diretrizes do Programa de
Ensino Integral (SÃO PAULO, 2012) e priorizam os conteúdos acadêmicos e
socioculturais. Está estabelecido nessas Diretrizes que, por meio de ações
programadas, a escola deve promover a melhoria da qualidade do ensino.
A educação de ensino integral oportuniza o acesso a diversos recursos
culturais, uma metodologia de processos de ensino e aprendizagem que
valoriza a diversidade e utilização de novas tecnologias. Além das aulas que
constam no currículo escolar, as ações programadas visam desenvolver as
habilidades dos alunos que irão apoiá-los no planejamento e na execução
do seu Projeto de Vida. Na matriz curricular, os alunos têm orientação de
estudos, preparação para o mundo do trabalho e auxílio na elaboração de
um Projeto de Vida (PV). Por isso, o currículo é composto de disciplinas obri-
gatórias e disciplinas eletivas, que são escolhidas de acordo com os PV.
Para o desenvolvimento das atividades dos ateliês, utilizaram-se vários
espaços da escola, com o propósito de romper com a rotina dentro das salas
de aula. Desse modo, o grupo escolhia toda semana um local da escola para
desenvolver os exercícios propostos.
Ao oferecer a disciplina eletiva, tinha-se como objetivo geral analisar os
discursos e identificar elementos constitutivos em processos criativos, nos
produtos escritos, artísticos e audiovisuais feitos pelos estudantes que abor-
dassem as temáticas dos quatro tipos de violência: simbólica, verbal, física
e psicológica. Para tanto, as oficinas de experimentação proporcionavam
aos alunos vivenciar experiências na prática e refletir sobre os desafios de
conflitos e violências. A ideia era viabilizar as reflexões sobre o que estava
ocorrendo no mundo, na escola e nas relações interpessoais.
Foram oferecidas quatro disciplinas eletivas durante os dois anos de pes-
quisa-intervenção (uma por semestre). Durante cada semestre, interagia-se
com duas turmas, separadamente, sendo uma para o Ensino Fundamental
(Anos Finais) e outra para o Ensino Médio. Cada turma tinha aproximada-
mente 35 alunos, e estes eram, também, separados em quatro grupos,
nomeados: Espaços do eu (Violência física); Nós e os corpos (Violência
32 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

psicológica); A invisibilidade de quem vê (Violência simbólica); e Comunica-


ção dos silêncios (Violência verbal).
O ateliê "Espaço do eu" desenvolveu as reflexões sobre as violências
físicas utilizando a arte dos movimentos: danças, expressões etc. O ateliê
"Nós e os corpos" abordou as violências psicológicas, utilizando-se das ar-
tes plásticas: com pintura a guache, desenho com carvão etc. O ateliê "A
invisibilidade de quem vê" focou as violências simbólicas, utilizando-se da
arte fotográfica e audiovisuais: com exercícios construídos dentro de uma
caixa, audiovisuais produzidos pelos alunos etc. O ateliê "Comunicação dos
silêncios" discutiu as violências verbais, utilizando-se da arte musical: com
exercícios de sons, de aprender a ouvir, prestar atenção ao silêncio, ao tim-
bre das vozes etc.
As oficinas de experimentação tinham a duração de 1 hora e 40 minutos
por encontro, tendo a carga horária semestral de 25 horas, distribuídas em 15
encontros semanais (30 encontros no ano letivo). Os conteúdos de todos os
ateliês foram desenvolvidos pelo Gepesc e foram inspirados inicialmente no
Caderno do Inventar (MIGLIORIN et al., 2014), envolvendo arte, movimentos,
músicas e fotografia, além do uso de materiais como tintas, carvão, poemas,
instrumentos musicais, dentre outros. Em conjunto, todos participaram da
construção dos ateliês para todas as violências e discutiram, nos encontros
do Gepesc e no decorrer da eletiva, a aplicabilidade e viabilidade dos exer-
cícios sugeridos, de acordo com o retorno que obtinham dos estudantes da
Educação Básica.
Os exercícios construídos a cada aula para debater os temas apresenta-
dos foram compreendidos como um conjunto de regras e/ou desafios por
meio da produção de uma tarefa na qual os alunos foram protagonistas tan-
to no processo (quando optavam por relatar exemplos vividos e/ou trazidos
para o debate suas várias problematizações) quanto no produto final, que se
tornou apenas um pequeno recorte das (re)construções possíveis durante
todo o desenvolvimento das atividades. Durante os processos criativos pro-
postos, todos os envolvidos eram desafiados a adotar diferentes perspecti-
vas, possibilitando novos espaços para repensar as relações com o entorno
e consigo mesmo.
Durante a intervenção foi possível conquistar a confiança desses estu-
dantes da Educação Básica, rompendo barreiras que, geralmente, apare-
cem em estudos empíricos realizados com essa faixa etária. Isso aconteceu
devido aos ateliês ocorrerem uma vez por semana, com duração de vários
Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 33

semestres, e o tempo tornou-se um grande aliado na criação de vínculos e


na construção de uma relação de respeito e reciprocidade entre pesquisa-
dores e estudantes.
Em todo início de semestre, para ambas as turmas (Ensinos Fundamental
e Médio), era oferecido uma introdução ao tema. No primeiro dia de aula,
os alunos refletiam sobre os vários tipos de violência e os locais em que elas
ocorriam. Havia também a explicação sobre o que significava fazer parte de
uma oficina de experimentação, isto é, o que constituía realizar um exercício
nessa oficina de forma coletiva e sobre a importância do trabalho em grupo.
Em seguida os alunos eram divididos em quatro grupos, e cada um escolhia
um nome para se identificar, além de tirar uma foto com todos os integrantes.
Ao fazer uma retrospectiva do 1º semestre de 2018, a primeira discipli-
na eletiva oferecida foi denominada de "Desafios da juventude: violências,
conflitos e incivilidades". Essa eletiva foi realizada apenas com alunos de 6º e
7º anos do Ensino Fundamental, porque havia duas turmas grandes. O obje-
tivo geral da eletiva foi analisar os discursos e identificar o desenvolvimento
das alteridades e o favorecimento da igualdade educativa e social de estu-
dantes, por meio de elementos textuais, artísticos e cinematográficos em
processos criativos. As habilidades em foco foram: conhecer e saber utilizar
adequadamente os textos expositivos como fontes de informação; organizar
informações sobre um mesmo tema, retiradas de textos-fontes diferentes;
escrever textos argumentativos; discutir sobre temas diversos; e construir
sequência de ideias.
No 2º semestre de 2018, o Gepesc realizou a pesquisa-intervenção com
a disciplina eletiva "Desafios da juventude: violências, conflitos e incivili-
dades". Neste semestre, tivemos duas turmas: uma de Ensino Fundamen-
tal (8º e 9º anos) e outra do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª séries). Os objetivos
foram: identificar formas de apropriação textual; promover a autonomia e
criatividade estética do "aluno-autor"; articular informações do texto com
conhecimentos prévios; identificar o sentido geral de um texto e relacioná-lo
a outro; possibilitar oficinas práticas – atuação e trabalho com o audiovisual
na escola; fomentar formas de linguagem e expressões constituintes do au-
diovisual e da escrita – partir do contexto escolar e se reinventar em modos
artísticos; investigar modos de repensar e recriar linguagens na escola e em
seu conjunto de relações sociais e pedagógicas.
No 1º semestre de 2019, a disciplina eletiva foi denominada de "Compar-
tilhando em ateliês: (com)vivências". Também houve duas turmas: uma de
34 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Ensino Fundamental (8º e 9º anos) e outra do Ensino Médio. As oficinas de


experimentação passaram a ser chamadas de ateliês, pois identificamos que
as artes auxiliavam os alunos a se conhecerem e a sentirem os problemas
relacionados como protagonistas ou vítimas de violências. Instituíram-se os
quatro ateliês denominados de "Espaço do eu", "Nós e os corpos", "A invisi-
bilidade de quem vê" e "Comunicação dos silêncios".
No 2º semestre de 2019, a disciplina eletiva chamou-se "Já sofreu vio-
lência na escola? Reflexões práticas em ateliês", tendo como público-alvo
estudantes de 6º e 7º anos do Ensino Fundamental (Anos Finais). A finalida-
de da pesquisa-intervenção continuou como antes: buscar compreender as
relações entre os sujeitos e as violências nos espaços escolares. O fazer nos
ateliês, bem como tudo o que foi produzido neles, foi na busca por mudar
os relacionamentos na escola, com perspectiva de alterar modos de per-
cepção de si e desenvolvimento da alteridade. Isso propiciou a busca de
alternativas, de invenções de outros mundos ou mesmo novas formas de
agir. Nesse semestre, não oferecemos duas turmas devido ao surgimento de
outra eletiva relacionada à Música na escola. A perspectiva de usar a Música
com os alunos que já tocavam instrumentos ou que gostariam de tocar e
com discentes que gostavam de cantar oportunizou a criação de um grupo
instrumental na escola1.
Também, acontecia – no final de todo semestre ou no final da discipli-
na eletiva – um planejamento para a execução de uma culminância, que se
assemelhava a uma feira de conhecimentos, em que todas as disciplinas
eletivas oferecidas na escola (havia várias) apresentavam suas produções,
como: quadros, livros, experimentos em laboratório, cartazes, danças, can-
tos, teatro etc. Nesse dia, de encerramento das disciplinas eletivas, a escola
proporcionava espaços de troca de conhecimentos, compartilhamentos das
vivências entre todos os estudantes, funcionários e comunidade.
Para finalizar, recupera-se o objetivo deste tópico, que foi entender como
as violências interferiam, ou não, nas convivências de estudantes dos Ensinos
Fundamental (Anos Finais) e Médio, e, segundo os dados, observou-se que
quando a escola atua somente na perspectiva de reprodução e conserva-
ção do que se faz há décadas e não valoriza as experiências individuais e
sociais de seus alunos, a tendência é de ampliar os conflitos e as violências
de forma significativa. A violência é parte da realidade social e está presente
nas escolas. Nesse sentido, com a intervenção, percebeu-se que a ação de

1 Este trabalho será descrito em outro texto sobre o Gepesc.


Práticas colaborativas e relações horizontais: Gepesc – Grupo de Estudos e Pesquisas em... | 35

sensibilizar e vivenciar experiências com a arte, nos ateliês, se tornou uma


possibilidade de garantir o conhecimento e a interpretação de situações de
violências, com finalidade de buscar soluções.

Considerações finais
A análise dos resultados apresentados permitiu identificar a progressiva
atuação do grupo de pesquisa Gepesc, que desde sua origem teve como
objetivo principal contribuir com estudos, pesquisas e o desenvolvimento
de habilidades para o trabalho em equipe e com práticas colaborativas. Esse
ambiente de aprendizagem foi representado, neste texto, por duas ações
realizadas pelo grupo Gepesc. Os desafios enfrentados durante o período
de dois anos – das pesquisas relatadas neste texto – foram imensos, e de
forma processual houve a garantia da comunicação democrática e do res-
peito entre integrantes do grupo, o qual, diferentemente de outros grupos
de pesquisa, procura não estimular as disputas individuais; ao contrário, fo-
menta a ajuda mútua, acreditando que o espaço do grupo é para apoiar os
momentos de dificuldades individuais dos pesquisadores.
Ingressar e permanecer no grupo Gepesc são opções que cabem a cada
membro, visto que o aprofundamento nos estudos sobre violências, a busca
por troca de saberes e de experiências com outros pesquisadores – forma-
ção transdisciplinar –, o desenvolvimento de pesquisas e a produção de
conhecimentos na área etc. devem ser o resultado para cada estudante ou
docente que busca impactos de aprendizagens, transformações nas vidas
privadas e nas práticas profissionais.
Os aspectos sinalizados como dificuldades enfrentadas no espaço do
grupo Gepesc são similares àqueles enfrentados em outros espaços de
convívio coletivo. Uma ação que ajudou para a continuidade deste grupo
foi se autoavaliar o máximo possível, buscando, assim, consolidar princípios,
objetivos, modos de funcionamento e sua própria estrutura organizacional.
Os relatos da pesquisa – feita com integrantes do Gepesc – trouxeram
uma percepção otimista quanto ao impacto na formação inicial e, especial-
mente, na formação para a licenciatura, além das possibilidades de conhecer
melhor as relações que ocorrem nos ambientes das escolas públicas e das
mudanças proveitosas que a intervenção do grupo Gepesc propiciou para a
instituição de Educação Básica participante. Nesse aspecto, com a realização
da pesquisa-intervenção, pôde-se perceber como as violências interferiam,
36 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

e muito, nas convivências da escola, e a partir dela surgiram novas buscas e


investigações em teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos,
textos para congressos etc., que foram publicizados pelos membros do
grupo, com a intenção de ajudar nas reflexões sobre o tema, instigando as
escolas de Educação Básica a repensarem suas condutas e relacionamentos
no âmbito escolar.
Finaliza-se afirmando que o grupo de pesquisa Gepesc tem se caracte-
rizado como uma incubadora de futuros profissionais por meio da formação
continuada, com perspectiva de formar laços e estabelecer relações huma-
nas. Caracteriza-se por ter um lócus privilegiado de compartilhamento de
saberes e de construção de aprendizagens, tendo como princípio as práticas
colaborativas e as comunicações horizontais.

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2

ESTUDANTES E SUAS PERCEPÇÕES


SOBRE VIOLÊNCIAS FÍSICAS
Viviane Wellichan
Maria Cecília Luiz

Quando as instituições socializadoras, como família, escola, igreja ou reli-


giões, sistema de justiça penal (policiamento, tribunais, judiciários, presídios)
etc., deixam de estimular a alteridade, rompem com o vínculo entre o eu e
o outro e incitam as crises. A violência está presente em diversos espaços
da sociedade brasileira e ocupa lugar de destaque na vida cotidiana das
pessoas. Sabe-se que ações e atitudes violentas podem mudar de acordo
com a época ou conforme o caráter prático de uma sociedade, mas isso
implica se alastrarem, caso não haja preocupação em detê-las. Ultimamen-
te, é frequente a sociedade brasileira considerar fenômenos de violências
físicas como algo comum, todavia, quando ocorre uma tragédia perto desta
mesma população, os sujeitos ficam perplexos com as ações extremamente
violentas. É isso que temos presenciado nos últimos dois anos, no Brasil,
com um governo federal que instiga a sociedade ao ódio e à agressividade
entre concidadãos, pelo simples fato de pensarem de forma diferente.
Waiselfisz (2016), Campos, Torres e Guimarães (2004), Velho (2000),
Zaluar e Leal (2001) são autores que escrevem sobre esse fenômeno que tem
transformado as relações sociais e culturais, com ampliação de tensões, com
as mídias dando enfoque a acontecimentos que envolvem violências físicas
em todos os contextos sociais.
Segundo Campos, Torres e Guimarães (2004) e Moser (1991), a violência
é conceituada como um ato de crueldade física e/ou psíquica contra alguém
e distingue relações interpessoais descritas como de sofrimento, humilha-
ção, temor e inquietação; existe num determinado contexto e se efetiva
na relação com o outro. Ela deve ser compreendida sempre como um fe-
nômeno social, em suas múltiplas formas e manifestações. Trata-se de um
fenômeno social complexo e, portanto, deve ser estudada em conjunto com
40 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

os sistemas simbólicos que lhe atribuem sentido; por isso sua problemática
sempre provoca perplexidade e preocupação.
Segundo investigações feitas por Abramovay et al. (2004), Adorno, Bor-
dini e Lima (1999), Pinheiro e Almeida (2003), as violências, quando envolvem
a juventude, têm caráter de fazer com que esta se torne ora vítima, ora pro-
tagonista, gerando uma grande inquietação social.
Nos dias de hoje, nomear algumas perspectivas que melhorem e/ou que
sejam eficazes nas convivências sociais se faz necessário, e por isso a impor-
tância de proporcionar um ambiente escolar com mais formação continuada
para estudantes, equipe gestora, professores e funcionários, com intenção
de desenvolver atividades pedagógicas coletivas que auxiliem nas relações
humanas e previnam situações extremas de violências. Pensando nessas
questões, elaboramos esta seção com a intenção de apresentar resultados
de uma pesquisa-intervenção realizada com alunos do 6º e 7º anos do Ensino
Fundamental da referida Escola Estadual de Ensino Integral, que tratou das
questões sobre violências físicas que acontecem em sociedade.

Procedimentos metodológicos
Na busca por respostas para a questão das violências físicas na socie-
dade, surge a indagação: o que significa para os estudantes a presença das
violências físicas na sociedade? A partir dessa perspectiva, optou-se, meto-
dologicamente, pela pesquisa-intervenção, que, segundo Rocha e Aguiar
(2003), vem viabilizando a construção de espaços de problematização cole-
tiva junto às práticas de formação e potencializando a produção de um novo
pensar e fazer educação.
Este texto teve como propósito revelar os resultados da pesquisa sobre
violências escolares, realizada com 35 alunos do 6º e 7º anos do Ensino Fun-
damental da referida Escola Estadual de Ensino Integral, situada em uma
cidade de médio porte no interior de São Paulo. O levantamento de dados
aconteceu no segundo semestre de 2019, durante uma disciplina eletiva de-
nominada "Já sofreu violência na escola? Reflexões práticas em ateliês". Esta
disciplina eletiva foi pensada e ministrada por investigadores (professores e
estudantes de graduação e pós-graduação) da universidade e docentes da
escola em questão.
A finalidade foi analisar qual era o entendimento dos estudantes so-
bre a violência física e como eles poderiam desenvolver a alteridade e o
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 41

favorecimento da igualdade educativa e social entre alunos, por meio do uso


da arte, com elementos textuais, artísticos e cinematográficos. Assim, na dis-
ciplina eletiva foram utilizados vários processos de criação de fotografias e
vídeos, linguagens verbais e não verbais, gêneros textuais – argumentação,
artigo de opinião etc.
Por se tratar de pesquisa-intervenção, a disciplina eletiva tornou-se
uma oficina de experimentação em que os processos e as produções dos
materiais escritos, artísticos e audiovisuais foram elaborados pelos próprios
estudantes do Ensino Fundamental (Anos Finais). Intitularam-se de "exercí-
cios" as tarefas que estudantes e professores realizaram, segundo três pers-
pectivas – na sociedade, na escola e nas relações interpessoais –, e em cada
uma delas o intuito era relacionar quatro tipos de violências: física, verbal,
psicológica e simbólica. Nesta seção, tratamos apenas das violências físicas
e somente na perspectiva das relações existentes na sociedade, levando em
conta que a escola, hoje, tem enfrentado, também, situações de violências
agressivas, e isso tem afetado o âmbito escolar.
Para as análises desta pesquisa-intervenção, por conta das experimen-
tações, foi definido que a violência física ocorre no uso intencional da força
física, contra uma pessoa ou um grupo, que resulte em ferimentos, danos
ou privações, como: segurar alguém contra uma parede; tapas; empurrões;
socos; beliscões; pontapés; puxar blusa ou mochila; arranhar; colocar pé
para tropeçar; brigas; jogar coisas (objetos) no outro; e coagir impedindo a
passagem por meio da força física.
Após ouvir os áudios, gravados no processo de criação dos exercícios,
bem como os resultados produzidos pelos estudantes nas oficinas de expe-
rimentações, os dados foram agrupados em categorias de análises e foram
analisados segundo a perspectiva da Análise de Conteúdo, de Bardin (2011).
Para Bardin (2011), o objeto de estudo é o registro em si, que pode ser um
texto, um documento, uma fala ou um vídeo. Assim, a Análise de Conteúdo
foca, principalmente, técnicas de análises da comunicação, com utilização
de procedimentos sistemáticos, além de descrição de conteúdos que apa-
recem nas mensagens analisadas.

Resultados da análise de conteúdo


Para auxiliar na codificação dos dados utilizamos o software IRaMuTeQ
(Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de
42 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Questionnaires) na versão 0.7 alpha 2. Segundo Camargo e Justo (2018), este


instrumento metodológico ajuda a identificar em que contextos as palavras
ocorrem, de forma compreensível e visualmente clara, por meio de repre-
sentações gráficas. Sendo assim, para representar os dizeres dos alunos uti-
lizamos a nuvem de palavras e análise de similitude, como vemos nas Figuras
1 e 2.

Figura 1 Dados processados pelo software IRaMuTeQ: nuvem de palavras.

Fonte: IRaMuTeQ, a partir dos dados inseridos no programa.

A análise da nuvem de palavras, apesar de simples, auxilia a indicar a


frequência com que as palavras aparecem, tornando-se visualmente inte-
ressante, pois fornece uma ideia inicial do conteúdo do material. Com essa
análise podemos verificar quais palavras aparecem com mais constância e
também identificar núcleos de sentido, em que as semelhanças compõem
um conjunto de expressões. Ao vislumbrar a nuvem de palavras (o que apa-
rece mais vezes), temos como destaque o seu centro, que contém as seguin-
tes palavras: "não"; "violência"; "mulher"; "agressão" e "homem". A palavra
"não" está em destaque e fica vinculada às demais palavras, principalmente
com as palavras "violência" e "mulher".
Observa-se que o entendimento dos alunos em relação à violência é
negativo, algo acontece e não é bom, com forte relação à violência e à agres-
são a mulheres, com indícios de que o homem é o agressor, isto é, a agres-
são parece ter um caráter masculino, ou o agressor configura-se sempre com
a figura de um homem. Assim, podemos identificar que a palavra "não" no
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 43

centro do gráfico se relaciona com as palavras "mulher", "homem" e "agres-


são", e todas estão relacionadas com "violência física", "medo", "denunciar"
e "vítima".
Na Figura 2, temos mais clareza dessa associação por meio do gráfico
da análise de similitude, que, segundo Camargo e Justo (2018), estuda as
relações das palavras, permitindo identificar as ocorrências entre elas e tra-
zendo um resultado de conexidade da estrutura do conteúdo, cujas variáveis
podem ser identificadas em partes comuns, na análise.

Figura 2 Análise de similitude das palavras relacionadas.

Fonte: IRaMuTeQ, a partir dos dados inseridos no programa.

A nuvem de palavras (Figura 1) e a análise de similitude (Figura 2) aju-


dam a identificar a frequência das palavras e como elas estão relacionadas.
Esses gráficos ajudam-nos a visualizar o universo do estudo realizado. Essas
identificações só ocorrem, pois já temos um conhecimento prévio das falas
dos alunos, além de termos vivenciado a realização das atividades presen-
ciais (na disciplina eletiva). Por isso, apresentamos, a seguir, os resultados da
investigação com análises, também, dos dizeres dos alunos (Anos Finais do
Ensino Fundamental).
44 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Violências físicas em todos os espaços destacadas pelos estudantes


A violência física é vista pelos estudantes, por exemplo, quando: um
amigo faz uma brincadeira e machuca; um homem comete agressão contra
a mulher; um pai fica contra os filhos; uma pessoa fica contra a comunidade
LGBT; ocorrem brigas de trânsito etc. Com relação aos trabalhos desenvolvi-
dos pelos alunos, foi possível identificar que a maioria citou a violência con-
tra a mulher. Eles desenvolveram textos, poesias e desenhos, como vemos:

Eu escrevi o relato de uma vítima, aí colei uma imagem aqui e escrevi:


"Relato de uma vítima: Era sexta-feira quando meu marido chegou em
casa por volta das 10 horas. Ele chegou muito alterado por causa do
álcool, eu havia apenas perguntado ‘por quê?’. E ele estava daquela
maneira. Ele começou a me agredir, principalmente na parte do rosto, e
quanto mais eu gritava por socorro mais ele me batia. Naquela noite eu
achei que eu fosse morrer porque ele pegou uma faca para me matar. Até
que os vizinhos chegaram e tiraram ele de perto de mim. Trinta minutos
depois a polícia chegou e o levou preso, hoje faz um ano que ele está
preso (Relato de uma vítima de violência contra a mulher – escrita por
uma aluna do 7º Ano).

Também apareceram frases que relatam a diferença de amor e violência


entre um homem e uma mulher:

Aí eu escrevi as seguintes frases:


"Quando é agressão não é amor, denuncie".
"Não tenha medo de denunciar um agressor".
"Diga não à violência" e "Ligue para 190, salve sua vida" (Frases escritas
por uma aluna do 6º Ano).

Eu escrevi a frase:
"Não espere muito que você pode se decepcionar".
Foi inspirada na moça do vídeo que estava esperando muito de uma coi-
sa e no final ela acabou se decepcionando (Frase escrita por uma aluna
do 6º Ano).

Em seus dizeres, ficaram evidentes a preocupação e a violência física


contra a mulher para estas estudantes de 6º e 7º Anos. Isso já havia sido per-
cebido tanto na nuvem de palavras (Figura 1) como na análise de similitude
(Figura 2), visto que a frequência de palavras e suas relações compilaram um
entendimento por parte dos alunos de que existe agressão contra mulheres,
sendo o homem o seu agressor.
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 45

Nestas duas poesias criadas pelas alunas do 7º Ano, fica nítida a preocu-
pação com a mulher como vítima de violências:

Vivemos em uma sociedade em que


Mulheres são estupradas
Sonhos são destruídos
Vidas são desgastadas
A porta da sacada faz um ruído
A menina chora
Seus pulsos sangram
Seu coração e sua mente serão marcados para sempre (Poesia escrita por
uma aluna do 7º Ano).

Não se iluda com um abraço


Muito menos com um sorriso
Pois o urso mata abraçando
E o Coringa mata sorrindo (Poesia escrita por uma aluna do 7º Ano).

No relatório da World Health Organization (Organização Mundial de


Saúde) de 2013, consta que a violência contra a mulher é considerada no
mundo "como um problema mundial de saúde com proporções epidêmi-
cas" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013, p. 3, tradução nossa).
Mesmo a violência física contra a mulher sendo uma das principais formas
de violação dos direitos humanos – visto que afeta a legislação internacional
quanto ao direito à vida, saúde e integridade – conforme o Mapa da Violên-
cia (WAISELFISZ, 2016), o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres do
mundo, e a maioria das vítimas são mulheres entre 18 e 30 anos. A taxa de
homicídio de mulheres negras foi superior a 71% em relação às mulheres não
negras.
Em 2018, o anuário feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública cita
que, em 2017, ocorreram 221.238 casos de violência doméstica, sendo 606
por dia, 1.133 feminicídios, 4.539 homicídios de mulheres. A violência contra
a mulher apresenta dimensões alarmantes e necessita urgentemente ser
prevenida, enfrentada e superada, tanto em esferas internacionais quanto
nacionais. No Brasil, além da Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 (BRASIL,
2006), que protege as mulheres contra a violência, ocorreu uma alteração no
código penal incluindo a Lei do Feminicídio – Lei 13.104/15 (BRASIL, 2015),
este que pode ser de três tipos: doméstico, reprodutivo e sexual. O Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990) também protege as crian-
ças e adolescentes de abusos sexuais, assédio e demais violências.
46 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres


busca prevenção e enfrentamento, com assistência (atendimento às mulhe-
res em situação de violência) e monitoramento. O enfrentamento da violên-
cia contra a mulher deve ocorrer em nível social e relacional, o que exige
mudanças educativas, culturais e sociais, devendo reconhecer as dimensões
de gerações, classe, raça/etnia em seu processo (BRASIL, 2011).
Outro ponto destacado pelos alunos é que acreditam que a maioria das
agressões físicas ocorre com o envolvimento de homens, sendo estes mais
agressivos que as mulheres:

Eu não consigo, quando fala de violência física, imaginar duas mulheres


brigando, imagino mais dois homens, não que não exista, existem, mas
os casos são mais homens que são os agressores (Aluna do 6º Ano).

Åkerlund e Sandberg (2016) realizaram pesquisa sobre a percepção na-


turalizada de situações de violência, principalmente, nas relações maritais.
O discurso masculino perpetua-se por gerações e torna-se um fenômeno,
por ser presenciado por crianças, adolescentes e jovens (desde a infância)
nos relacionamentos violentos de cônjuges. Dessa forma, esses sujeitos
tendem a naturalizar e reproduzir esse modelo em seus próprios vínculos
conjugais ou sociais, com propensão a repetir esse comportamento em suas
relações futuras. Os autores defendem ainda que essas condutas agressivas
dos homens são utilizadas, mesmo que implicitamente, como método de
dominação, passando por distintas fases.
Para Thompson (2009), em estudo realizado no Brasil, o ciclo da violência
tem início com um acúmulo de tensão e desentendimentos, havendo suces-
sivos episódios de descontrole, ocorrência de agressão física e/ou situações
consideradas mais graves, e, por fim, a fase de reconciliação e promessas de
mudanças. Esse discurso masculino faz com que esse momento de violência
pareça algo passageiro para a mulher e a família, incutindo a ideia de que o
homem pode usar a força bruta para conseguir algo.
Outra violência física mencionada pelos estudantes foi a violência do-
méstica ou intrafamiliar. Segundo Venturini, Bazon e Biasoli-Alves (2004), a
literatura sobre a violência intrafamiliar expressa o abuso de poder dos pais
ou responsáveis, que coisificam as crianças e os adolescentes, fazendo deles
objetos e desrespeitando os seus direitos fundamentais.
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 47

Alguns casos de violência que acontecem bastante, não só de marido e


mulher, uma relação que ela não queira que está forçando, mas pai pode
fazer com filho ou com filha ou com outras pessoas (Aluna do 6º Ano,
grifos nossos).

Segundo autores como De Antoni, Mesquita e Koller (1998), os tipos mais


habituais de violência intrafamiliar infantil, frequentemente relatados e estu-
dados, são: o abuso físico, sexual, psicológico; a negligência e o abandono.
Uma variante importante no contexto brasileiro é a violência sexual contra
crianças e adolescentes, que tem sido o foco da atenção do poder público
e da sociedade civil, sobretudo a partir das duas últimas décadas, em que
houve uma mobilização civil para constituição de políticas sociais oficiais
para esta área.
Segundo Rocha, Lemos e Lirio (2011), algumas discussões promovidas
pela sociedade civil organizada fizeram com que o governo federal insti-
tuísse políticas públicas e que programas fossem desenvolvidos, como o
Programa Sentinela (2002), posteriormente denominado Centro de Referên-
cia Especializado de Assistência Social (Creas) e em obediência às Normas
Operacionais Básicas da Política Pública de Assistência Social, disseminadas
pelo governo federal em parceria com os governos municipais. Além disso,
temos os programas: "Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à
Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro" (Pair), fundamentado
no art. 86 do ECA; Disk Denúncia Nacional a partir do Ministério da Justiça e
da Associação Brasileira de Proteção à Infância (Abrapia) etc. Nesses casos,
a escola deve ter um compromisso ético e legal de notificar às autoridades
competentes casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos, o que inclui,
também, a violência sexual. Diante da gravidade das violências físicas, a es-
cola deve ter como objetivo garantir a qualidade de vida de seus alunos.
Outra questão que envolve a violência física descrita pelos discentes
participantes desta pesquisa foi o preconceito e a discriminação, principal-
mente, de negros e da comunidade LGBT.

Na maioria dos casos são os homens que agrediu uma mulher, esposo,
mãe ou da comunidade LGBT, até animais mesmo, ou homens com ho-
mens brigando (Aluna do 7º Ano).

Um dos alunos discorre sobre a violência física com o preconceito racial:


48 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Tipo assim, representa o preconceito: dois caras passando numa ponte,


só porque um era preto e o outro não, o segundo teve a audácia de dar
um "socão" no preto (Descrição de desenho representando o precon-
ceito racial, feito pelo aluno do 7º Ano).

Segundo Luiz, Riscal e Ribeiro Junior (2013), as distintas possibilidades de


expressão cultural, quer seja de orientação sexual, gênero, faixa etária, raça
ou cor, etnia, deficiência, ou qualquer outra, não podem ser consideradas
um motivo para que as minorias não tenham os mesmos direitos que os de-
mais. Apesar de existir um aparato legal e jurídico que promete a igualdade
social e a penalização de práticas discriminatórias, a tolerância nem sempre
acontece, e os alunos percebem que respeitar todos os valores culturais e
os sujeitos de diversos grupos significa não agredi-los. E, ao contrário, quan-
do há o etnocentrismo, as representações e práticas sociais consideradas
normais por uma determinada sociedade são privilegiadas, e as demais re-
duzidas, colocando os sujeitos em situações de injustiças e violências, algo
inaceitável no convívio social.
Com relação à violência física, ainda foi relatada a questão das brigas em
trânsito:

Tem briga no trânsito também. Acho que as pessoas devem ser mais
calmas. Tem brigas na escola também (Aluno do 7º Ano).

Insulto e/ou ameaças graves seguidas de violência física, com ou sem


arma, são evidentes em relatos midiáticos para descrever a insensatez huma-
na. Mesmo que a sociedade tenha regras e seja um local protegido de gra-
ves violências, nos dizeres dos alunos existe um sentimento de insegurança
que está sempre presente. As violências sociais deixam seus cidadãos em
estado de sobressalto, de ameaça permanente, sentindo que a calma pode
ser quebrada a qualquer momento. O acúmulo de incivilidades (pequenas
grosserias, piadas de mau gosto, recusa ao trabalho, indiferença ostensiva)
cria um clima entre as pessoas que, muitas vezes, acaba em tragédia com
vítimas de violência.
Outra violência física que identificam em sociedade, por meio de dese-
nho e de frases realizados nos ateliês, foi a violência contra animais, inclusive
trazem a problemática de esse tipo de violência levar algumas espécies à
extinção:
Então, eu tentei não deixar visível somente o lado de pessoas, mas tam-
bém coloquei os animais. Coloquei assim:
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 49

"Não pratique a violência física, isso é errado, você pode acabar deixan-
do marcas em outra pessoa ou até mesmo em você".
"Sabia que os animas também sentem? Não pratique violência com
eles".
"Às vezes essa violência pode levar você para trás das grades" (Frases
escritas por uma aluna do 6º Ano).

Eu fiz um desenho sobre a violência física, mas retratei aqui a violência


com os animais, com o exemplo da Arara Azul que está quase extinta
(Desenho e explicação de um aluno do 6º Ano).

Além de desenhos retratando a violência contra animais, alguns alunos


desenharam ou escreveram sobre brigas de rua. Podemos observar em algu-
mas falas que eles já presenciaram algum tipo de agressão ou briga com uso
de faca, e também desenharam sobre o uso de outros tipos de arma para
relatar a agressão física:

Eu fiz, o meu é psicopata, duas pessoas brigando, um está com uma faca,
eu fiz isso porque eu já vi gente na rua brigando com faca (Desenho e
explicação de um aluno do 7º Ano).
Eu fiz esse desenho igual ele falou, em que tem uma pessoa que matou
outra, porque eu já vi briga com faca e também tem muitas pessoas ma-
tando as outras (Desenho e explicação de um aluno do 7º Ano).
Eu fiz esse meu desenho aqui, muito elaborado. Esse desenho aqui eu
representei a minha expectativa sobre o mundo, que é a paz e o amor
e coloquei a realidade que é violência, por isso fiz algumas armas aqui
(Desenho e explicação de um aluno do 6º Ano, grifos nossos).

O relato de pessoas brigando com uma faca está assustadoramente re-


lacionado ao ataque em brigas. Esse estímulo ao ataque – deve atacar para
se defender – tem sido cada vez mais incentivado pela população brasileira,
inclusive, hoje, existem muitos debates, no Brasil, sobre o acesso e o porte
de armas por cidadãos; ou, pior, várias instituições sociais acreditam que o
armamento serve como proteção do sujeito, um suposto direito de se prote-
ger, quando na verdade petições neste sentido estimulam cada vez mais as
violências. Um erro nefasto, uma irresponsabilidade das instituições sociais e
do Estado, visto que armas (de qualquer tipo) estimulam as violências, cujos
malefícios são danosos para todos. Esse tipo de entendimento pode acar-
retar para a sociedade uma convivência mais problemática da que já se vive,
50 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

pois armar um cidadão é estimulá-lo, da pior maneira possível, a realizar atos


agressivos e violências físicas.

Violência física está relacionada à violência ao corpo


Para a maioria dos alunos a violência física está relacionada ao corpo, isto
é, ferir o corpo, machucá-lo:

Violência física é tudo aquilo que pode deixar marcado na sua pele, ou
sei lá, tipo uma agressão, você fazer algo que o outro não gosta é um tipo
de agressão. Tudo aquilo que me toca e eu não gosto, a partir do mo-
mento que aquilo me deixa ferido, sei lá (Aluno do 6º Ano, grifos nossos).

Algo fica nítido em suas falas e desenhos, quando conceituam a violência


física como algo errado e percebem que a relação entre agressor e agredido
é uma relação de poder, de dominação e medo:

Eu quis fazer um desenho como se alguém fosse atirar em outra pessoa e


que isso é errado (Desenho e explicação de um aluno do 6º Ano, grifos
nossos).
Eu fiz as expressões da violência física em que o agredido fica com medo
e sem reação e o agressor pode usar armas para agredir (Desenho e
explicação de um aluno do 6º Ano, grifos nossos).

O processo de violência física impede tanto a vítima como o agressor


de se reconhecerem nesta relação vítima/agressor. Dessa forma, o agres-
sor aprecia seu ato como confirmação e legitimação de sua superioridade e
autoridade, e a vítima, ainda que identifique o sofrimento, muitas vezes não
se reconhece como tal. Isto não é apenas um efeito da naturalização e bana-
lização da violência, mas decorre, antes, do fato de que as concepções de
violência e de vítima são construídas socialmente, e, por isso, o sofrimento
associado à violência depende, muitas vezes, de um processo de legitima-
ção social.
São as demandas sociais, associadas ao reconhecimento dos processos
de sofrimento perpetrados às vítimas, que possibilitaram a caracteriza-
ção do racismo, da discriminação de gênero e de preconceitos em geral
como atos de violência. Entretanto, para além desses sofrimentos social-
mente reconhecidos, há uma gama de sofrimentos de natureza pessoal e
Estudantes e suas percepções sobre violências físicas | 51

absolutamente individual, cujo caráter subjetivo dificulta o seu reconheci-


mento como violência.
Para Riscal e Riscal (2014), em muitos casos, esses sofrimentos não são
reconhecidos – ao serem acompanhados de angústias e ressentimentos – e
acabam por propiciar atos indiscriminados de agressão por parte da vítima,
precisamente por não ter sua condição de vítima reconhecida.
Durante a pesquisa-intervenção, desmascararam-se as formas de violên-
cia socialmente invisíveis, de natureza subjetiva, cuja dor só pode ser ava-
liada pelo próprio sujeito. Essa experiência propiciou revelar certas dores
solitárias de alunos, que muitas vezes não são objetivadas ou relatadas, pois
estão constituídas apenas psiquicamente, o aspecto mais invisível da violên-
cia cotidiana.
Segundo Sarti (2011), a vítima de violência só pode se tornar visível quan-
do o seu sofrimento pode ser representado por uma linguagem socialmente
inteligível. O sentimento de dor provocado pela violência precisa encontrar
uma forma de manifestação socialmente reconhecida, mas para isso precisa
encontrar uma forma de expressão que faça sentido para si e para os demais.
O processo de sociabilidade e civilidade é um aprendizado simbólico
que ressignifica continuamente as representações das relações entre o eu
e o outro. Os espaços escolares que utilizamos para potencializar a criativi-
dade dos alunos ampliaram o entendimento de si e o olhar para o outro. A
violência física é sentida pelo sujeito "na pele", como relatou o aluno do 6º
Ano, e provoca cicatrizes difíceis de curar.

Considerações finais
Os ateliês desenvolvidos na disciplina eletiva, durante o segundo semes-
tre de 2019, levaram os alunos a pensar sobre quantos tipos de violência físi-
ca podem ocorrer, levando-os a refletir sobre situações vivenciadas. Assim,
os resultados desta pesquisa-intervenção com estudantes do 6º e 7º anos do
Ensino Fundamental sobre violências físicas, no contexto social, auxiliaram
na compreensão de como os discentes participantes entendiam este tema.
Nesse sentido, é importante esclarecer que este estudo não tinha intenção
de obter conceitos de alunos participantes, mas, sim, compreender como
os tipos descritos e/ou enfrentados de violência física, em suas convivências
sociais, faziam parte de seus cotidianos e como as atitudes com agressões
físicas acabavam gerando brigas e desentendimentos.
52 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Também fica a reflexão sobre promover formação continuada para edu-


cadores discutirem os tipos de violência, e, aqui, não se trata apenas de
querer ensinar ou determinar novos hábitos ou atitudes nos discentes, mas,
acima de tudo, de enfatizar um processo de empatia, em que o sofrimento
do outro também faz sentido para nós. Por isso, saber a visão de alunos
e refletir sobre esse assunto possibilitaria, no futuro mais próximo, posicio-
namentos mais corajosos de quem acredita na justiça social, alguém ativo
que quer repensar e melhorar os relacionamentos humanos no coletivo. É
importante entender que as violências acontecem, também, nos microespa-
ços do dia a dia e possuem uma trajetória tanto fora quanto dentro da escola
que devem ser mais bem compreendida.
Durante este estudo, os estudantes tiveram oportunidade de expressar
suas vivências e compreensões sobre violências físicas, de conversar entre
amigos e amigas da turma, "o olho no olho", com uma perspectiva afetiva
que se faz tão necessária nessa idade, sobretudo para os jovens que estu-
dam em escolas de tempo integral. Perceber os significados abrangentes e
pessoais destes alunos do Ensino Fundamental (Anos Finais) sobre violên-
cias físicas propiciou a compreensão de suas visões, de adolescentes que
estão vivendo em uma sociedade com tantos tipos de violência. Acredita-se
que, quando discentes têm percepções e constatações a respeito das suas
convivências, as chances de melhorar as interações sociais aumentam, cons-
tituindo-se num grande ganho para uma sociedade que anda sem empatia,
com sujeitos sem paciência e alteridade.

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3

CRIAÇÃO DE ESTUDANTES DA
EDUCAÇÃO BÁSICA: FÁBULAS E AS
VIOLÊNCIAS SIMBÓLICAS
Célia Maria Rosa
Maria Cecília Luiz

A violência escolar sempre traz conotações próprias a sua realidade,


por isso, para Abramovay (2002), as violências simbólicas e psicológicas são
aquelas que mais deveriam ser focalizadas no ambiente escolar. Segundo
Debarbieux (2001), é importante que se estudem as percepções de atores
escolares sobre a temática, como forma de enfrentamento e resolução de
problemas diários. Para Odália (2004), nem sempre a violência se apresenta
como um ato, como uma relação, como um fato identificável. Ao contrá-
rio, ela se torna mais próxima da realidade, isto é, um ato cujo cerne passa
despercebido. Perceber um ato violento requer do sujeito um esforço para
superar sua aparência de rotina, pois, geralmente, é naturalizado.
Corroborando o pensamento desses e de vários autores, realizamos
uma pesquisa-intervenção da qual explicitamos os resultados nesta seção.
Assim, o objetivo deste texto é identificar e analisar o que estudantes de
Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Médio compreendiam sobre violências
simbólicas1 na escola.
A hipótese que tínhamos era que estudantes percebem – quando exis-
tem diálogo e esclarecimentos – a importância de refletir sobre violências
nos espaços da escola, e isso possibilita uma convivência mais acolhedora,
com prevenção de conflitos.
Dessa forma, foram priorizadas as interações com maior presença de
diálogo, com intenção de valorizar as intervenções, em função da valida-
de dos argumentos. A prática do diálogo difere das interações nas quais
predominam relações de poder. Para Tavares dos Santos (2009), o poder

1 A Violência Simbólica será explicitada, posteriormente, neste estudo, segundo Bour-


dieu (2007).
56 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

está presente nas relações de produção do social e quando praticado em


excesso pode acionar a violência.
Segundo Dani (2008), a violência na escola é uma maneira inadequada
para lidar com os conflitos por estar relacionada a atitudes coercitivas, auto-
ritárias e impositivas, com impossibilidade de solucionar impasses escolares
de forma assertiva.

Violências simbólicas na escola


Antes de abordar as fábulas que os estudantes criaram relacionadas às
violências simbólicas na escola, elenca-se como a violência simbólica é con-
ceituada, segundo Bourdieu (2003):

violência suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exer-


ce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e
do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do re-
conhecimento ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2003,
p. 7-8).

A violência simbólica é entendida por Bourdieu como uma prática sutil


e de difícil percepção, pois ela, por meio de coerção, institui dominação de
um sujeito sobre o outro, "pelo fato de serem, na verdade, a forma incorpo-
rada da estrutura da relação de dominação" (BOURDIEU, 2001, p. 206).
Para Santos (2019), a definição de violência simbólica é de uma ação ou
prática quase imperceptível e naturalizada. O autor elucida que "a perspec-
tiva bourdieusiana se refere às ações em que não há aparente imposição da
dor física, mas uma dimensão de dor moral e psicológica" (SANTOS, 2019,
p. 23). O autor entende que a violência simbólica pode acontecer por meio
de apelidos pejorativos ou formas de humilhação que antecedem atos de
força física.
Segundo Abramovay (2002), violência simbólica constitui-se de abuso
de poder por meio de uma autoridade e mediante uso de símbolos, comu-
nicação verbal e institucional, como discriminação, marginalização e práticas
de submissão utilizadas pelas instituições. Por ser sutil, a violência simbólica
ocorre de formas variadas e com significações que o sujeito dá à sua realida-
de (se apresentando como inquestionáveis), mas nem sempre o que ocorre
corresponde ao que de fato se apresenta no mundo social. Muitas vezes,
certos aspectos são questionáveis por representar uma construção sócio-
-histórica, um poder simbólico. Este é descrito sinteticamente a seguir.
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 57

Entende-se que o poder simbólico é exercido com a cooperação e co-


nivência dos sujeitos subordinados, pois eles o constroem como um poder
real, aderindo à lógica discursiva que integra a moral e, consequentemente,
a reprodução do consenso e ordem social instituída. Sendo assim, o poder
simbólico viabiliza e legitima o exercício de outras formas de poder, por
meio do obscurecimento da realidade.
Para Santos, Biasoli e Coito (2012), o poder sobre o outro acontece quan-
do a relação está legitimada, e esta se institui como regra orientadora de
conduta entre os sujeitos. Porém, é a problematização em torno dos dife-
rentes interesses que determina se uma relação é legítima ou não. Para os
autores, quando há diferentes interesses e os sujeitos almejam obediência e
poder (no sentido de impor a própria vontade numa relação social), desenro-
lam-se lutas e conflitos – estes são elementos inerentes à vida sociocultural.
Essa disputa gera um processo de dominação, no sentido de uma ordem
simbólica de significação a ser validada.
Para Bourdieu e Passeron (2014), o sujeito é caracterizado por uma ba-
gagem socialmente herdada. Essa bagagem é constituída de componentes
objetivos externos, como: o capital econômico tomado de bens e serviços;
o capital social, aquele constituído pelas relações sociais que são mantidos
pelas famílias; e o capital cultural intelectualizado (títulos escolares). O ca-
pital cultural favorece o desempenho escolar, facilita a aprendizagem dos
conteúdos e códigos escolares. As referências culturais e o domínio da lín-
gua culta trazidos de casa facilitariam na aprendizagem escolar e servem
como ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar. Portanto, a posse do
capital cultural favoreceria o êxito na aprendizagem e melhor desempenho
nas avaliações.
O capital cultural é entendido aqui por Hey, Catani e Medeiros (2017)
como sendo aquele institucionalizado, que é consolidado em títulos, diplo-
mas, certificados escolares, que agem como atestados de formação cultural.
Nessa perspectiva, os autores apontam o sistema de ensino como repro-
dutor e conservador da estrutura cultural social e das relações de força e
simbólicas entre classes.
Autores como Tiradentes (2015) e Guimarães e Oliveira Júnior (2014) de-
dicam-se aos estudos sobre as violências simbólicas. Estes pesquisam sobre
a violência simbólica na escola e sua função legitimadora – disseminar um
padrão único de ensino e aprendizagem –, além de conservadora social,
impondo, principalmente, a meritocracia para legitimar as desigualdades no
âmbito escolar.
58 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

De acordo com Oliveira, Santos e Santos (2017), muitas vezes o professor,


com certa naturalidade, corrobora o fortalecimento da desigualdade social
dentro da sala de aula, quando enaltece e valoriza as crianças que ele pres-
supõe terem determinadas qualidades e competências. Para os autores, es-
sas qualidades e competências são adquiridas na esfera familiar e social da
criança, como valores, padrões de comportamentos e regras. Esses mesmos
padrões comportamentais e regras sociais estão internalizados no professor,
que, dessa maneira, demonstra sua satisfação de autoridade na relação com
esse aluno, pois tem o feedback esperado. Ao contrário, comportamentos
considerados incorretos e inadequados são repudiados e estabelecem divi-
sões no interior da sala de aula pautada em hierarquias. Para Bourdieu (2015,
p. 219), trata-se de "uma agressão simbólica que se observa em todas as
situações".
No espaço escolar, assim como nas relações entre os sujeitos, é comum
observar as expressões do que é certo e errado, do que é bom e ruim, do
sujeito capaz e do incapaz. Segundo Machado (2005), as fronteiras entre es-
sas considerações do que é natural ou não são definidas de acordo com as
normas sociais, o que acarreta pouca tolerância para a indefinição e para a
ambiguidade.
Nessa mesma direção, Rosa e Brito (2009) fazem um comparativo da
violência simbólica em outras circunstâncias: os recém-chegados brancos
e negros, numa organização de maioria branca, e os héteros e homosse-
xuais, numa organização de maioria heteronormativa. A lógica da violência
simbólica reside em conservar padrões dominantes e manter a estabilidade,
"assegurando a dominação por parte daqueles que ocupam posições con-
sagradas nesses espaços descritos e, com isso, subjugar aqueles que nele se
inserem, ou seja, as minorias2" (ROSA; BRITO, 2009, p. 640).
Várias são as pesquisas que apontam a ocorrência da violência simbólica
nas relações interpessoais, seja entre alunos e professores ou entre pares. Na
pesquisa desenvolvida por Lobato e Souza Placco (2007), as mais recorrentes
são as relacionadas ao desrespeito com o professor, em que aparecem atitu-
des de rebeldia, apresentadas como: "insultos, ameaças de provocar danos
ou de violar a integridade física ou moral desses profissionais" (LOBATO;
SOUZA PLACCO, 2007, p. 77).

2 As minorias seriam grupos que dispõem de pouco poder e, por isso, ficam na depen-
dência de grupos com mais poder na sociedade: a maioria (ALVES; GALEÃO-SILVA,
2004).
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 59

Quanto à discriminação e ao preconceito, as autoras elucidam que exis-


tem casos de preconceitos com relação aos colegas considerados fora do
padrão de beleza, raça, "contra negros e aqueles que não possuem os pa-
drões estéticos vigentes". Existe também discriminação socioeconômica, ou
seja, com alunos mais pobres, "bem como a discriminação intelectual, tanto
com alunos muito estudiosos quanto com aqueles em maiores dificuldades
de aprendizagem" (LOBATO; SOUZA PLACCO, 2007, p. 78).
No documento normativo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas considera a capacidade
dialógica como algo que deve ser estimulado nas escolas. Nesse contexto,
desenvolver a capacidade do estudante para o diálogo com o outro, para
mediação, contribui para a desnaturalização de práticas de violências entre
discentes, ao mesmo tempo que promove reflexões sobre evidências e com-
plexidades do fenômeno. A função socializadora da escola, nesse sentido,
torna-se fundamental.

A metodologia de pesquisa
Esta pesquisa-intervenção qualitativa teve como objeto de estudo as
violências e, como objetivo, identificar e analisar o que estudantes de Ensi-
nos Fundamental (Anos Finais) e Médio compreendiam sobre violências sim-
bólicas, com reflexão sobre a violência na escola. Como já mencionado em
outros momentos deste livro, o Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação,
Subjetividade e Cultura (Gepesc) desenvolveu uma extensão universitária
em uma Escola Estadual de Ensino Integral nos anos de 2018 e 2019. Dessa
forma, no período de quatro semestres foi possível cultivar relações de res-
peito, reciprocidade e conquistar a confiança dos estudantes participantes.
As instituições escolares que compõem o Programa de Escolas Esta-
duais de Ensino Integral estão alicerçadas nas Diretrizes de Ensino Médio
período Integral (BRASIL, 2012) e priorizam os conteúdos acadêmicos e
socioculturais.
A Escola participante estava inserida nesse programa, e por isso foi pos-
sível propor no 1º e no 2º semestres de 2018 a disciplina eletiva: "Desafios
da juventude: violências, conflitos e incivilidades". Essa disciplina eletiva
foi realizada com duas turmas separadamente, havendo 35 estudantes do
Ensino Fundamental Anos Finais na primeira – que aconteceu no 1º semes-
tre de 2018 – e, na segunda, 36 alunos do Ensino Médio – ocorrida no 2º
60 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

semestre, visto que qualquer disciplina eletiva só poderia durar o tempo de


um semestre.
Durante o período da disciplina eletiva os alunos realizaram oficinas de
experimentações, chamadas de ateliês, e a cada semana era proposto um
exercício prático reflexivo. O exercício que os estudantes participaram com
a temática "violência simbólica na escola" teve como tarefa, primeiramente,
descrever alguma violência simbólica que ocorreu em sua vida escolar, isto é,
algo que observou, participou, percebeu ou vivenciou etc. Depois, o grupo
todo escolheu a narrativa de um acontecimento específico para retratar em
forma de fábula. Essa fábula – que tinha os personagens caracterizados por
animais e que foi encerrada com um contexto moral – foi elaborada e narra-
da com começo, meio e fim. O que motivou a escolha do gênero "fábulas"
foi a disciplina eletiva estar acoplada à disciplina Língua Portuguesa na área
de conhecimento Linguagem e Códigos.
A preferência por esse gênero discursivo esteve atrelada ao pensamen-
to de Waal (2009), segundo o qual se deve priorizar o ensino dos gêneros
discursivos e tê-los como principais objetivos da Língua Portuguesa, antes
mesmo do ensino da gramática. De acordo com Waal (2009):

Torna-se mais importante do que enfatizar as regras gramaticais da lín-


gua desde o inicio da alfabetização, é proporcionar aos alunos atividades
significantes, partindo dos conhecimentos que os mesmos já possuem,
no caso da linguagem de cada um, para então iniciar o estudo da norma
culta e sua gramática (WAAL, 2009, p. 990).

O estudo do gênero "fábula" visa proporcionar o desenvolvimento da


percepção das intenções do autor, considerando que uma narrativa também
é explícita ou implicitamente perpassada por um argumento. Nesse sentido,
a produção da fábula pelos alunos possibilitou a articulação da linguagem,
da visão e do conhecimento do aluno com o conteúdo temático, a violência
simbólica.
Para Bakhtin (2003, p. 262), "A riqueza e a diversidade dos gêneros do dis-
curso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme
atividade humana". As pesquisas linguísticas de orientação bakhtiniana têm
demonstrado que a atuação dos professores quando feita pela perspectiva
de gêneros textuais não só amplia, diversifica e enriquece a capacidade
dos alunos de produzir textos orais e escritos, mas aprimora a capacidade
de recepção, isto é, de leitura, audição, compreensão e interpretação dos
textos.
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 61

Para Coudry e Freire (2005), baseados em Papert, a aprendizagem é de


fato significativa quando o conteúdo aprendido ganha um sentido do ponto
de vista cognitivo (considerando o que já se sabe a respeito do assunto),
afetivo (sendo a aprendizagem dirigida internamente em função de um in-
teresse pessoal, condizente com a história de vida do sujeito), social (dada a
relevância que o sujeito confere ao conhecimento) e cultural (considerando
a inserção de tal aprendizado em um conjunto de sistemas e valores histori-
camente construído pela comunidade da qual o sujeito participa). Em outras
palavras, um determinado conteúdo é aprendido quando é usado, testado,
reaplicado a outros contextos, compartilhado com seus pares – pelo exercí-
cio da linguagem –, possibilitando seu entendimento.
A fábula pode ser escrita em verso ou prosa, possui uma moral, os prota-
gonistas são representados por animais, simbolizando com suas caracterís-
ticas as virtudes e os defeitos dos homens, e é transmitida por uma narrativa
curta e estrutura dramática.

O gênero fábula é construído por histórias ágeis, curtas, bastante sim-


bólicas, falando das/criticando as atitudes humanas ou aconselhando as
pessoas. Pode ser escrito em prosa ou em versos. Suas personagens [...]
são típicas, isto é, representam alguma atitude/característica humana-vir-
tudes e defeitos. Textos deste gênero exibem/mostram, quase sempre,
após a conclusão ou desfecho, uma moral da história (PERFEITO; NAN-
TES; FERRAGINI, 2011, p. 3).

Segundo Portella (1983, p. 135), "a preferência por animais deve-se, sem
dúvida, ao fato de que seus caracteres, qualidades e temperamento são so-
bejamente conhecidos, não sendo então necessária a prévia descrição des-
tes animais". Isso significa que, ao se tratar de certo animal nas fábulas, este
já está associado a uma característica, uma representação; por exemplo, a
raposa liga-se sempre à astúcia; a cobra liga-se à maldade; o leão liga-se à
majestade, dentre outros.
Para o autor, as associações estabelecidas nas fábulas, como as carac-
terísticas, as qualidades etc., não têm fundamentação em conhecimentos
científicos, mas apenas em observações populares. Um animal pode repre-
sentar várias qualidades, por exemplo, o lobo, em uma fábula, representa a
prepotência e, em outra, representa a ânsia de liberdade, amor à vida livre.
Para Portella (1983), a fábula deve relacionar-se com a vida, porque ela
deve executar a verdade e similaridade entre a vida e a realidade, sendo
também real, plástica, objetiva. As imagens empregadas devem do mesmo
62 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

modo ser de fácil percepção para que o leitor relacione a fábula e a própria
vida, tirando dela o proveito em forma de padrão de comportamento. A
fábula tem finalidade eminentemente didática, simples e objetiva.

"A vida é uma luta", "Viver é lutar", "Struggle for Live" são sentenças
criadas para caracterizar a insatisfação do homem e seu esforço perma-
nente em busca da felicidade terrena. E porque cada qual busca sua
própria felicidade, a satisfação de seus próprios desejos e paixões, inevi-
tavelmente entrará em choque com o seu semelhante, resultando daí o
conflito de que se serve a literatura para criar o drama, o conto, a fábula,
a novela, o romance (PORTELA, 1983, p. 128).

A fábula é a representação de um drama, por isso quando o aluno a


elabora, nos ateliês, pode repensar os conflitos e as violências simbólicas vi-
venciados ou observados. Com as fábulas concluídas, foi possível identificar
algumas concepções de alunos com relação ao tema e o que compreendiam
por violências simbólicas.
Para analisar as fábulas produzidas pelos alunos, utilizou-se a análise do
conteúdo, na perspectiva de Bardin (1977). A análise de conteúdo é uma
técnica utilizada como instrumento de análise das comunicações. Segundo
Bardin (1977), é um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em
constante aperfeiçoamento, que se aplica aos discursos (conteúdos e con-
tinentes) extremamente diversificados. Para a autora, uma análise de con-
teúdo deixa de ser uma análise de significados, ao contrário, ocupa-se de
uma descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo extraído das
comunicações e sua respectiva interpretação. "A análise de conteúdo é uma
busca de outras realidades através das mensagens" (BARDIN, 1977, p. 44).
Como instrumento metodológico, para auxiliar a análise de conteúdo,
utilizou-se o software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidi-
mensionnelles de Textes et de Questionnaires) na versão 0.7 alpha 2. De
acordo com Camargo e Justo (2018), o software começou a ser utilizado no
Brasil no ano de 2013 e trouxe muitas contribuições aos estudos em ciências
humanas e sociais, que têm o conteúdo simbólico proveniente dos materiais
textuais como uma fonte importante de dados de pesquisa.
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 63

As fábulas e os resultados da pesquisa


As amostras coletadas totalizaram 13 fábulas representando situações
vivenciadas ou experienciadas pelos alunos nas relações interpessoais, na
escola e na sociedade, conforme quadros a seguir. Diante das amostras, foi
realizado o primeiro polo cronológico, que, segundo Bardin (1977), é a orga-
nização, a leitura e a escolha do material a ser analisado.

Quadro 1 Criação das fábulas de alunos do Ensino Médio.


Títulos das fábulas —— Ensino Médio Em grupo / Individual
01 O João de Vento Grupo
02 Os sem comida Grupo
03 Ararinha Azul Grupo
04 A coelhinha e o sapo Grupo

Fonte: elaboração própria.

Quadro 2 Criação das fábulas de alunos do Ensino Fundamental (Anos Finais).


Títulos das fábulas —— Ensino Fundamental Em grupo / Individual
05 A História da Pigtigresa Grupo
06 Rãberta Grupo
07 Titi: O Passarinho Perdido Grupo
08 O Cavalo e o Porco Individual
09 O Rei Leão Individual
10 Aluno não colocou título (fábula A) Individual
11 Escola dos Animais Grupo
12 Chegada do Inverno Grupo
13 Alunos não colocaram título (fábula B) Grupo

Fonte: elaboração própria.

Os dados foram inseridos no programa IRaMuTeQ para iniciar as etapas


das análises que o software permite. Dentre as análises, o sistema fornece um
conjunto de palavras organizadas e apresentadas com tamanhos diferentes
em forma de nuvem, e, quanto maior a fonte da palavra, mais importância ela
detém no corpus textual. De acordo com Salviati (2017), a análise em forma
de nuvem é bastante simples e interessante, na medida em que possibilita
64 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

rápida identificação das palavras-chave e a visualização de seu conteúdo,


pois as palavras mais importantes estão no centro da nuvem.

Figura 1 Nuvem de palavras formada a partir das fábulas produzidas pelos alunos.

Fonte: IRaMuTeQ, a partir dos dados inseridos no programa.

Dentre as análises realizadas, uma das mais importantes do IRaMuTeQ


é o Dendograma – Método Reinert. Nela o software processa o texto de
modo que possam ser identificadas classes de vocabulários que permitem
inferir quais são as ideias principais do corpus textual (SALVIATI, 2017).
A figura a seguir explicita a análise de similitude, baseada na teoria dos
grafos, cujos resultados auxiliam no estudo das relações entre objetos de
um modelo matemático e ligação entre palavras. A partir dessa análise e da
ocorrência entre as palavras, é possível inferir a estrutura de construção do
texto e os temas de relativa importância (SALVIATI, 2017).
Com o objetivo de maior abrangência do entendimento do que fora
explicitado nas fábulas em relação aos sentimentos, foi utilizado o softwa-
re SAP HANA Versão 2.00.033.00.1535711040. O sistema é uma ferramenta
analítica de alto desempenho, e o processo consiste em extrair sentimentos
por meio de um conjunto de regras que atendem ao solicitado pelo usuá-
rio. A configuração envolve análise linguística complexa e correspondência
de padrões que inclui o processamento de partes da fala, padrões sintáti-
cos, negação e assim por diante. Assim como o IRaMuTeQ, o Sistema SAP
HANA utiliza-se de dicionários de palavras-chave usados para identificar e
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 65

classificar sentimentos, que também podem ser personalizados de acordo


com as necessidades.

Figura 2 Análise de similitude a partir das fábulas.

Fonte: IRaMuTeQ, a partir dos dados inseridos no programa.

Para a realização da análise, foram inseridas as 13 fábulas no Sistema,


e a análise foi realizada de forma individual. Essa configuração fornece a
capacidade de identificar relacionamentos funcionais (gramaticais) entre ele-
mentos em uma sentença de entrada (por exemplo, Assunto; Objeto Direto).
Nas análises das fábulas, identificamos as ocorrências de sentimentos ambí-
guos nas correlações com advérbios (não é), um adjetivo (muito triste, muito
medo), adjetivo, verbo, advérbio e verbo (idiota eu acho muito divertido).
Ao evidenciar as 13 fábulas e a moral de cada uma dessas histórias, per-
cebemos o universo de possibilidades que tínhamos para as análises. Por
isso, levando em conta a Figura 2 – com o gráfico do IRaMuTeQ – e o Quadro
3 – com dados do SAP HANA –, teve início uma grande trajetória. A primeira
visão ao olhar a Figura 1 – a nuvem gerada pelo IRaMuTeQ – é a palavra
"não". E não é por acaso que essa palavra é destaque em quantidade sig-
nificativa para o software. Além do "não", as palavras "diferente", "escola",
"mais", "dia", "apelido", "animais" também são encontradas com realce. Na
66 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Figura 2, observam-se as ramificações de várias palavras a partir do "não",


como "dizer", "estar", "escola" e "muito".

Quadro 3 Relação de frases e sentimentos das fábulas produzidas pelos alunos.


FRASES ANÁLISES
A Rãberta foi embora muito triste Sentimento
Triste Sentimento Negativo Forte
Não fique triste, rã Sentimento
Não fique Sentimento Negativo Fraco
Triste Sentimento Positivo Fraco
Ser diferente não é um problema Sentimento
Problema Sentimento Positivo Fraco
ele achava uma brincadeira idiota Sentimento
Idiota Sentimento Negativo Forte
Os seus servos tinham muito medo Sentimento
Medo Sentimento Negativo forte
Gostava Sentimento Negativo Forte
isso muito chato Sentimento
Chato Sentimento Negativo Forte

Fonte: dados fornecidos por SAP HANA.

Ao evidenciar as 13 fábulas e a moral de cada uma dessas histórias, per-


cebemos o universo de possibilidades que tínhamos para as análises. Por
isso, levando em conta a Figura 2 – com o gráfico do IRaMuTeQ – e o Quadro
3 – com dados do SAP HANA –, teve início uma grande trajetória. A primeira
visão ao olhar a Figura 1 – a nuvem gerada pelo IRaMuTeQ – é a palavra
"não". E não é por acaso que essa palavra é destaque em quantidade sig-
nificativa para o software. Além do "não", as palavras "diferente", "escola",
"mais", "dia", "apelido", "animais" também são encontradas com realce. Na
Figura 2, observam-se as ramificações de várias palavras a partir do "não",
como "dizer", "estar", "escola" e "muito".
A palavra "não" representou algo importante para a compreensão de
como pensavam os estudantes, visto que o não está relacionado a "não di-
zer", "não estar", "não escola", "não muito". O "não" representa a falta de
diálogo, de ser ouvido, pois representou a negativa, o corte, a autoridade
hierárquica que existe na escola.
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 67

Ao observar o Quadro 3, com dados do SAP HANA, percebeu-se o re-


trato de dois sentimentos que aparecem nas fábulas de forma significativa e
que são antagônicos: feliz e triste. Ao rever as palavras que mais se destaca-
ram nas 13 fábulas, encontramos "triste", como a primeira, incluindo as pala-
vras "tristeza" e "sofrer". Em segundo, ficaram evidentes as palavras "bela",
"belo" e "bonito". Logo depois as palavras "amizade" e "feliz", incluindo
"alegre".
Foram selecionados trechos das fábulas que remetiam às recorrências,
como representações dos participantes em relação ao tema estudado. Se-
gundo Dani (2008), os conflitos são oportunidades de aprendizagem, de
conhecimento de si e do outro, do exercício do diálogo e da democracia.
Outro aspecto destacado pela autora é que os conflitos sempre vêm acom-
panhados de uma carga emocional, e, sendo assim, os sentimentos também
precisam ser acolhidos e considerados no momento da problematização.
De acordo com Tognetta (2003), no que se refere aos sentimentos, deve-
-se buscar a compreensão do que leva o sujeito a experimentar tal emoção,
construindo, assim, a capacidade de autoconhecer-se. A mesma autora afir-
ma que "autoconhecer-se significa tomar conhecimento de seus próprios
gostos e sentimentos, aquilo que lhe confere prazer, que o faz sentir alegre,
triste, aquilo que causa mágoa ou admiração" (TOGNETTA, 2003, p. 118).
Quando o sujeito adquire a capacidade de autoconhecimento, torna-se pos-
sível, também, desenvolver a capacidade de autodomínio, ou seja, aprender
a lidar com "os desejos, a controlar a própria raiva" (TOGNETTA, 2003, p.
119). Aprender a lidar com os sentimentos não significa reprimi-los, mas, sim,
saber expressá-los de outra forma que não seja por meio da violência.
Nesse sentido, com as análises das fábulas, identificaram-se e, ao mes-
mo tempo, reconheceram-se os sentimentos que afloravam em situações
de conflito, o que também possibilitou aos alunos compreender as suas
causas, assim como as razões de seus pares. Revelou-se que os estudantes
reconheciam as violências nas relações interpessoais, principalmente, entre
aluno-aluno e professor-aluno.
A hipótese desta pesquisa – estudantes percebem quando existe o diálo-
go ou há esclarecimentos sobre violências nos espaços da escola, e isso pos-
sibilita uma convivência mais acolhedora, com prevenção de conflitos –, foi
comprovada tanto pelas análises das fábulas quanto pelas experiências nos
ateliês, visto que suas percepções eram amplas sobre o assunto, e, realmen-
te, com a comunicação mais assertiva – principalmente nos relacionamentos
68 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

–, tanto nas questões sociais como nas subjetivas, aconteciam menos confli-
tos no âmbito escolar.
Na moral das histórias, nas fábulas, assim como nas relações entre os
sujeitos, é comum observar as expressões do que é certo e errado, do que é
bom e ruim, do sujeito capaz e do incapaz, visto que vivemos em uma socie-
dade binária. Segundo Machado (2005), as fronteiras entre essas considera-
ções do que é natural são definidas de acordo com as normas sociais, assim
como estas elucidam o não natural. Ao verificar as fábulas e suas morais de
história, fica explícito que os estudantes abarcaram o "dizer" ou "não dizer"
como algo que estava sendo imposto. Esta forma de ver a realidade como
uma opção de "estar" ou "não estar" com alguém é percebida como algo
engessado, uma visão moralista da sociedade.
Essa dualidade aparece em várias fábulas em que o sujeito deve escolher
o que "quer ser" e/ou o que "quer fazer" nas relações entre as pessoas. Os
estudantes, autores destas fábulas, um público jovem, trouxeram, também,
personagens com características diferentes, isto é, em situações de mudan-
ças, em que alguém pode dizer, ser, fazer ou estar de forma diferente do
padrão estipulado.
A aparência, isto é, o "ser diferente" ou ter um status diferente, parece-
-nos ser uma percepção de estudantes que entendem a padronização nos
espaços da sociedade, da escola ou nas relações interpessoais. Essas rela-
ções foram demonstradas nas fábulas de forma explícita ou, muitas vezes,
de maneira implícita.
A escolha das fábulas como instrumento metodológico foi um meio en-
contrado para se aperceber de como os alunos compreendiam a violência
simbólica em espaços da sociedade, escola e relações interpessoais. Foi
possível criar uma relação de confiança em que estudantes puderam falar
sem receio, e desse clima emergiram suas percepções.
Importante dizer também que todos os alunos – que participaram de
grupos na eletiva, Ensinos Fundamental e Médio – não sabiam responder
qual era significado da violência simbólica. Ao iniciar a disciplina, eles tinham
a percepção de que a violência simbólica era uma violência utilizada por
meio símbolos, por exemplo, xingar (desagradar) alguém com algum gesto
ou desenho (sem usar as palavras). Essa concepção foi devida ao significado
que atribuíam à palavra "simbólica" (utilização de símbolos), pois nunca ti-
nham ouvido falar de tal violência.
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 69

Violências simbólicas nos relacionamentos escolares


Para Bourdieu (2007), o poder simbólico é exercido com a cooperação
e conivência de sujeitos subordinados, com a reprodução do consenso e a
ordem social instituída. Nesse sentido, ao legitimar um exercício de poder,
também se oculta a realidade. Associar a violência simbólica com a ideia
de poder, para o autor, significa impor uma vontade, isto é, impor o desejo
de um sujeito sobre outro. Bourdieu (1983) afirma que aqueles que detêm o
poder também têm condições sociais privilegiadas, como o acesso à cultura
e à educação. Dessa forma, o sujeito detentor de um nível maior de escola-
ridade acumula maior capital cultural.3
Conforme Arendt (2004), o poder nunca é somente de um sujeito, mas
pertence a um grupo, e é este quem determina e conserva os valores e pa-
drões que devem ser legitimados. Sem essa legitimação do grupo, a violên-
cia simbólica não existe como poder.
A fábula de número 8 tece como moral da história: "O lixo de um é o
tesouro do outro" – uma colocação dos estudantes de que aquilo que apa-
rentemente parece feio, sujo e ruim para uma pessoa pode significar muito
para outros, isto é, um tesouro precioso. Na moral da história a palavra "lixo"
representa um "tesouro", dando a entender que um grupo ou alguns sujei-
tos podem compreender de forma diferenciada o significado dessas duas
palavras. Por vezes, a instituição escolar define padrões a serem seguidos,
valorizando ou desvalorizando aquilo que lhe é conveniente. Os estudantes,
ao escreverem a fábula, demonstram perceber essa violência simbólica, isto
é, alguém que está fora dos padrões escolares, por vezes, torna-se lixo. A
existência de padrões e regras aparece de forma contrária na moral da his-
tória, pois o lixo se torna raro, isto é, alguém que não se deixa levar pelos
padrões estabelecidos, busca algo novo. A visão de que são os sujeitos que
estabelecem essas regras ficou clara na moral da história, demonstrando
que os estudantes entenderam a violência simbólica. Mas, ao mesmo tempo,
compreendeu-se que romper com esses padrões é algo complexo e difícil,
como vemos na fábula da Rãberta:

3 Como já afirmado anteriormente, capital cultural, de acordo com Hey, Catani e Medeiros
(2017), é aquele institucionalizado, que é consolidado em títulos, diplomas, certificados
escolares, que agem como atestados de formação cultural.
70 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Em um dia ensolarado, em um lago, havia uma rã.


Quando ela avistou do outro lado um sapo, e querendo fazer amizade, se
aproximou dele e disse:
- Oi! Eu sou a Rãberta! E você, como se chama?
O sapo respondeu:
- Aí, você parece ser nojenta! Vai embora!
A Rãberta foi embora muito triste. Foi conversar com seu amigo grilo
para desabafar e contar o que havia acontecido.
O grilo disse:
- Não fique triste, rã! Ser diferente não é um problema!
A Rãberta ficou bem depois dessa conversa com o grilo e decidiu não
ligar mais para as opiniões dos outros.
(fábula "Rãberta").

Ou na moral da história a seguir:

Nunca julgue os outros pela aparência (moral das fábulas "Chegada do


inverno" e "O Rei Leão").

Recusar ou excluir o que é padronizado também aparece fortemente na


escrita dessas fábulas, uma visão de sujeitos que querem quebrar os para-
digmas, como João de Vento, que quer ser diferente e feliz na sua diferença:

João de Barro, porém, priorizou seus valores e escolheu não ser igual a
todos e continuou seguindo feliz sua vida de aventura (fábula "O João
de Vento").

A maioria das fábulas revelou uma linguagem sobre a violência simbólica


como aquela que está presente nas relações sociais, por meio de preferên-
cias, de padrões estipulados e refutando aquilo que não foi estabelecido
por um grupo. Em várias fábulas os discentes mencionam que a violência
ocorre quando existem características de sujeitos diferentes, como acontece
com a discriminação e o preconceito de raça, etnia, beleza etc.
Como já foi dito, Rosa e Brito (2009) perceberam em seus estudos como
a escola conserva padrões dominantes e mantém a estabilidade do status
quo, ou seja, a intenção de manter o cenário atual. Por isso, em uma organi-
zação de maioria branca, por exemplo, os negros ainda vivenciam discrimi-
nação. Isso apareceu nas fábulas:

Chegando à escola, todos estranharam por sua cor, pelo fato de que
neste Reino todos eram vermelhos. Após alguns dias começaram a
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 71

apelidá-la de Acre por conta do seu lugar de origem (fábula "Ararinha


Azul", grifos nossos).

Além da questão de cor, raça, surgiu outra questão, relacionada aos mo-
vimentos migratórios. Paixão (1983) discute em suas pesquisas a problemáti-
ca do migrante, que nem sempre é acolhido na cidade que escolheu como
destino; ao contrário, pode ser apelidado ou discriminado por sua origem.
A situação específica da Ararinha Azul, na verdade, tinha um embasamento
claro: um aluno do grupo havia se mudado há pouco tempo do estado do
Acre para São Paulo. Assim como apontou Paixão (1983), a sua cidade natal
lhe rendeu um apelido, do qual o estudante afirmou não gostar.
Para Camargo e Herédia (2018), o acolhimento acontece de acordo com
a experiência migratória e o conhecimento da cultura do outro, isto é, nem
sempre ocorre com hospitalidade, podendo surgir conflitos oriundos da
disputa pelo espaço ou ainda pelo choque de culturas, o que propicia as
violências simbólicas e, fatalmente, as físicas.
Outra preocupação evidente foi a discriminação entre os personagens
devida aos padrões de beleza estabelecidos:

Em certo dia, dois animais estavam passeando pela Floresta e acabaram


encontrando outro animal, e ele não era um animal tão bonito quanto
eles, e eles começaram a zombar desse animalzinho (fábula A, sem
nome).

Para Lobato e Souza Placco (2007), esse tipo de situação que gera inse-
gurança, tensão e estresse nos jovens faz parte da convivência social, e é in-
crível perceber que em quase todas as fábulas essa padronização da beleza
ou estereótipos delineados emergem nas narrativas e na moral da história.
Aos estudantes jovens resta atender ao máximo as expectativas dos gru-
pos, com esperança de serem aceitos. O sofrimento sempre acompanha a
refutação, devido ao fato de se sentirem "estranhos", "anormais" ou fora do
que foi determinado. Uma dor e uma necessidade de aceitação que fazem o
discente rejeitar quem ele é e se tornar o que o grupo gostaria que ele fosse.
O problema, para Dubet (2003), não é só reconhecer quem está sendo
excluído, mas entender os processos que levaram à exclusão e os efeitos
desta sobre o estudante. Essa perspectiva é vista em várias fábulas:

O problema não é ser diferente, o problema é tratar diferente (moral da


fábula "Os sem comida", grifos nossos).
72 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Na moral da fábula "Os sem comida", fica evidente que o ser diferente
nem sempre significa um problema, mas o ser aceito, sim. A questão está na
maneira como se é tratado: excluído, ou não, do grupo.
Segundo Kornblit (2008), a ausência de sentimentos positivos e do con-
senso faz com que os conflitos aconteçam, havendo uma sensação de ser
estranho e/ou inimigo dos outros, propiciando a falta de pertencimento ao
grupo. Os diferentes e fora dos padrões são descartados de fazer parte do
grupo, isto é, a violência simbólica aparece na forma como são tratados os
excluídos:

Certo dia, em uma floresta, os animais perceberam a presença de um


indivíduo estranho e desajeitado. Naquela semana eles se uniram para
colher frutos, pois estava chegando o inverno, e o pato, gentilmente, se
ofereceu para ajudá-los. Os animais, rindo, recusaram, pois achavam que
o pato iria atrapalhar (fábula "Chegada do Inverno").

A ausência de valorização da subjetividade e as experiências de exclusão


no sistema propiciam um desencanto daqueles que fracassam, já que para o
Estado (ou a escola – que representa uma instituição) cada um é responsável
por sua própria educação.
Esse tipo de tratamento inclui a ausência de respeito, uma das especi-
ficidades da violência, além da negação do outro e da violação dos direitos
humanos.

Aceite as diferenças, e todos deverão ser respeitados por elas (moral da


fábula "Ararinha azul", grifos nossos).

A violência, para Arendt (1983), nega a dignidade humana, reforça a au-


sência de compaixão e a falta de alteridade, que acarretam danos físicos,
psicológicos e/ou sociais aos sujeitos de uma sociedade. Um fenômeno que
não reconhece o outro.
Apesar das particularidades, o reconhecimento social, vinculado ao
status social, deve ser garantido pela universalização dos direitos huma-
nos – com o princípio de que todo sujeito é digno de ser respeitado. Os
maus-tratos ou a falta de reconhecimento social, conforme Honneth (2003),
retiram do sujeito a confiança em si, uma lesão moral – privação de direitos
ou exclusão social –, somada à desvalorização social – perda do reconheci-
mento por suas propriedades e capacidades –, que o leva para uma morte
social – privação de direitos ou exclusão social – e vexação – degradação
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 73

cultural. Em movimento contrário, a interação entre os sujeitos fortalece o


processo de formação de identidade, e a existência do diálogo intersubje-
tivo promove o reconhecimento social, com possibilidades de o sujeito se
conhecer e se aceitar como é.

No Brasil, como já foi dito, onde a violência fez parte da sua história (com
a escravidão, principalmente), o desrespeito ao outro e às regras de con-
vívio social constitui uma prática comum. Infelizmente, essas diversidades
sociais e culturais defrontam-se no espaço escolar, isto é, estão presente
no cotidiano da escola. Sem refletir sobre essas problemáticas ou sem
perspectivas de Políticas Públicas que tentem inverter esse quadro, difi-
cilmente teremos a diminuição das violências escolares.

Outra perspectiva importante percebida nas fábulas foi a ocorrência do


bullying como pertencente ao contexto da violência simbólica.

Ele não gostava desse apelido, um dia ele até tentou pedir para nunca
mais o chamar desse apelido. Mas depois de um tempo ele percebeu
que todo mundo o chamava de branquinho, ele viu que isso se natura-
lizou porque todo mundo esqueceu o nome dele (fábula A, sem nome,
grifos nossos).

Para Fante (2005), vítimas de bullying sentem medo de reagir contra seus
agressores. Segundo Lobato e Souza Placco (2007), várias são as pesquisas
sobre violência simbólica nas relações interpessoais, seja entre alunos e pro-
fessores ou entre pares. As mais recorrentes são relacionadas ao desrespei-
to com o professor, em que aparecem atitudes de rebeldia, apresentadas
como "insultos, ameaças de provocar danos ou de violar a integridade física
ou moral desses profissionais" (LOBATO; SOUZA PLACCO, 2007, p. 77).
As diversas manifestações e sentimentos abarcados até o momento,
neste texto, promovem a recorrência do fenômeno violência, por meio da
falta de diálogo, da indiferença, ou seja, da falta do olhar para o outro.

Considerações finais
Ao finalizar esta seção, retoma-se seu objetivo, que foi identificar e ana-
lisar o que estudantes de Ensinos Fundamental (Anos Finais) e Médio com-
preendiam sobre violências simbólicas na escola. A hipótese, desde o início,
era que estudantes percebem – quando existe diálogo e esclarecimentos
– a importância de refletirem sobre violências nos espaços da escola, e isso
74 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

possibilita uma convivência mais acolhedora, com prevenção de conflitos.


Essa hipótese foi comprovada, pois, mesmo não tendo compreensão abso-
luta (esclarecimento mais profundo) da violência simbólica, o que se perce-
beu foi que depois dos exercícios propiciados na disciplina eletiva, isto é,
após terem participado dos ateliês em um espaço de diálogo e explicações
sobre várias questões que não compreendiam, os discentes começaram a
enxergar as violências, principalmente a simbólica, de outra forma.
Na moral das histórias, nas fábulas, assim como nas relações entre os
sujeitos, é comum observar a característica de uma sociedade binária, e isso
é comprovado com estudos de Machado (2005), conforme os quais as con-
siderações do que é natural são definidas de acordo com as normas sociais,
assim como estas elucidam o não natural. Essa dualidade aparece em várias
fábulas em que o sujeito deve saber fazer escolhas ou, ao mesmo tempo, em
que os personagens vivenciam situações de mudanças, isto é, podem dizer,
ser, fazer ou estar de forma diferente do padrão estipulado.
A visão de que são os sujeitos sociais que estabelecem os padrões esti-
pulados ficou clara na moral da história – como acontece com a discriminação
e o preconceito de raça, etnia, beleza –, demonstrando que os estudantes
entenderam a violência simbólica. Em contrapartida, compreendeu-se que
romper com esses padrões é algo complexo e difícil. É visível que alunos
jovens possuem expectativas de serem aceitos pelos grupos, e o sofrimento
sempre acompanha a refutação, devido ao fato de se sentirem "estranhos",
"anormais", ou fora do que foi determinado. Uma dor e uma necessidade
de aceitação, que fazem o discente rejeitar quem ele é e se tornar o que o
grupo gostaria que ele fosse.
Segundo os estudos de Martinelli (2009), o aluno tem dificuldades em
desempenhar bem suas funções sociais quando está sujeito a sofrer con-
sequências emocionais que podem resultar em uma baixa autoestima ou
mesmo em uma percepção negativa de si. O estudo aponta para a urgência
de considerar as relações sociais estabelecidas na escola, com mais pre-
ocupação e reflexão sobre a importância dessas relações no contexto do
processo de ensino e aprendizagem.
O estudante que possui elevada autoestima é mais capaz de implemen-
tar com sucesso outros aspectos de seus autoconceitos. Nesse sentido, as
fábulas revelaram que usar a violência para acabar com a violência é, no mí-
nimo, uma contradição. As consequências da violência da escola (segundo
Charlot (2020)) podem marcar a vida de um aluno de forma assustadora, e
Criação de estudantes da educação básica: fábulas e as violências simbólicas | 75

essa violência foi demostrada quando nas fábulas aparecem personagens


que se sentem sozinhos ou sem a ajuda do professor em suas atividades
escolares.
Na fábula "Os sem comida", escrita pelo grupo do Ensino Médio, relata-
-se a história de uma macaquinha que precisou sacrificar a sua pata para
sobreviver. Esse fato trouxe sequelas tanto para seu físico quanto para o seu
emocional, e por isso os autores enfatizam a dor que sentia para se adaptar
ao novo estilo de vida. O mais triste foi que a macaquinha, além de ter que
enfrentar todas as adversidades por causa da sua deficiência, sofreu com a
discriminação por parte dos outros animais, por ser considerada diferente.
Mas a história traz uma reviravolta, pois a floresta é consumida pelo fogo,
e os animais que a discriminavam começaram a passar fome, e apenas a
macaquinha (mesmo sem a pata) era capaz de subir até o topo das árvores
que sobraram para se alimentar. O final desta história é surpreendente, pois,
ao invés de guardar rancor, ela sobe nas árvores e ajuda a alimentar todos
os animais, que, muito agradecidos, reconhecem o erro e passam a tratá-la
sem discriminação. A moral da história é "O problema não é ser diferente, o
problema é tratar diferente" .
Observa-se nessa fábula que os alunos relatam a história com a ideia
de que as pessoas podem ser superiores aos seus algozes, contrariando as
expectativas. Neste contexto, aparece a pretensão dos discentes em serem
compassivos e dispostos ao diálogo com os outros, com finalidade de me-
diar situações de conflitos e discriminação.

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4

RUPTURA DO PROCESSO
COMUNICATIVO E A CONFIGURAÇÃO
DE UMA FORÇA DE LINGUAGEM QUE
SILENCIA: VIOLÊNCIA VERBAL
Jéssica Veloso Morito

O processo de transmissão e recepção de sinais e códigos, de um orga-


nismo para o outro, denominado linguagem, ocorre por meio da oralidade,
gestos ou outros símbolos. A comunicação é um instrumento fundamental
na interação social e na convivência do ser humano, e a linguagem configura-
-se como um instrumento socializador, uma ferramenta que media as rela-
ções entre o sujeito e o mundo (BOCK, 2003). A comunicação é a percepção
da compreensão do sujeito no coletivo, não podemos nos compreender
individualmente, afinal, só existimos – como seres sociais – na relação com o
outro, ou seja, na mediação da comunicação. A importância de se comunicar
está vinculada ao conviver em ambiente social – estruturar as ideias e posi-
cionamentos para melhoria das relações interpessoais –, e esse avanço con-
tribui para a formação de hábitos sociais e para a personalidade de cada um.
Além disso, segundo Moscovici (2004), diminui a distância entre os pares e
facilita a socialização via representação, e, nessa perspectiva, a comunicação
não é um recorte da realidade, mas a forma como o coletivo compreende a
realidade em que atua.
Para que haja a interação comunicativa, os meios de transmissão ne-
cessitam ser validados entre os organismos: o emissor e o receptor. Para
Mesquita e Duarte (1996), envolve codificação e decodificação do uso de
códigos, por meio de trocas entre os sujeitos, não sendo constituída apenas
de código verbal, mas também de expressões físicas, gesticulações, movi-
mentos, sinais e representações gráficas (desenhos e/ou escrita). O homem
é um ser social e precisa comunicar-se, uma vez que se vive em conjunto, e,
quando as pessoas não se comunicam, se isolam (AYALA, 1979). Assim, para
a comunicação ser efetiva, faz-se necessária, além do tecnicismo do código
80 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

– codificar e decodificar –, a habilidade da percepção sensível no interesse


de dizer algo sem desconfigurar a percepção da realidade do sujeito, mas
transpor pontos em comum para se criar um novo discernimento conjunto.
Nesse contexto, esta seção teve como objetivo apontar os resultados
de uma pesquisa-intervenção sobre violências verbais na escola, realizada
com 35 alunos, do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental da Escola Estadual
de Ensino Integral com que fizemos parceria, situada em uma cidade de mé-
dio porte no interior de São Paulo. O levantamento de dados aconteceu no
segundo semestre de 2019, durante uma disciplina eletiva denominada "Já
sofreu violência na escola? Reflexões práticas em ateliês". Essa disciplina ele-
tiva foi elaborada e ministrada por pesquisadores (professores e estudantes
de graduação e pós-graduação) do Grupo de Estudos e Pesquisas em Edu-
cação e Cultura (Gepesc) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e
por docentes da escola em questão.
Sabemos que o ímpeto da violência se estabelece na ruptura do ele-
mento participativo ao sobrepor o controle, o monopólio da interação em
um determinado organismo, pela comunicação: a linguagem impõe-se
contra os que a utilizam e os controla. Pelo conformismo se impregna esse
comportamento relacional e se estabelece um novo modo de inter-relações
de submissão e ordenamento. Esses elementos, que descrevem uma nova
configuração do real, subverte a comunicação, transfigurando-a, de forma
banalizada e superficial, em benefício do sentimento de superioridade; a lin-
guagem no tecido social passa a ser instrumento de ordem e inferiorização
do outro que, em determinada hierarquização social, não detém o poder,
seja este em qualquer recorte determinado.
Trazer outro ponto de vista é refletir sobre como a comunicação que re-
metia ao estar junto passa a subsidiar o oposto, a ausência da compreensão,
a indiferença e o substrato da força em forma de controle que corrói as es-
truturas comunicativas; e é nessa quebra do vínculo coletivo que a violência
verbal se medra, pois haverá uma resistência permanente contra a potência
impositiva no controle da recepção, podendo se expandir, ou seja, a capaci-
dade de estabelecer comunhão e partilha entre indivíduos e grupos que se
identificam com determinada ameaça. Ora, nessa prática, a comunicação só
consegue ponderar universos segmentados; todavia, propicia aproximações
pela comunhão de sentimentos, oferecendo um ponto de encontro de iden-
tificação, culminando na criação de novas relações de pares ou grupais que,
ao vivenciarem a imposição pela comunicação, assimilam o processo como
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 81

validador de ações e, então, reproduzem as mesmas atitudes – que podem


ou não ter alterações – como forma de resistir.
Em paralelo, quando uma nova forma comunicativa é validada, adquire
lógica de modalidade, gerando um afastamento que subsiste na relação com
a forma geral, para ressignificar as práticas já existentes. Mesmo na atual
conjuntura da sociedade mediada tecnologicamente em redes, a comunica-
ção se fragmenta e configura um produto social para um novo sentimento de
sensibilidade: o sentimento de (des)pertencimento ao estar junto. Em suma,
a comunicação vai se consolidando na atração e, pela imposição de forças,
na repulsão às relações de empatia, que se tornam decisivas na estruturação
do tecido social e em seus lugares de encontro e de convivência. Assim,
a violência transfigura-se para além da agressão, mas na transgressão de
ocupar espaços comunicativos sonegados.

Violência verbal: definições teóricas e algumas considerações


práticas
Se a ponderação até o presente momento era na complexidade da co-
municação e da linguagem como a corporificação da violência verbal, defini-
-la precede a compreensão para além das limítrofes percepções do significa-
do da verbalidade, mas a ampliação do que compreendemos como verbo. A
definição no dicionário sobre "verbo" é: "classe de palavras que indica ação,
processo, estado ou alteração de um estado; a linguagem, a palavra ou o
discurso; o tom expressado pela voz, a entonação; a demonstração do pen-
samento por palavras" (VERBO, 1980). Isso significa que a palavra "verbo" é a
consolidação da comunicação independentemente dos artifícios utilizados;
pois através da linguagem, e de seu codificar e decodificar, podemos esta-
belecer uma relação entre o emissor e o receptor de dada informação.
Paralelamente, a definição de verbal é "relativo à comunicação, o que é
expresso, a função do verbo" (VERBAL, 1980); a verbalidade estabelece-se
como o efeito de propagar algo para que haja a conexão entre os sujeitos e
o meio, podendo ser representada pela oralidade, escrita, signos, corporei-
dades, espaços e tempos. Eis uma das maiores abstrações necessárias para
compreender o conceito, uma vez que "a consciência de si é um problema
para muita gente, que percebe, pela primeira vez, que o movimento do cor-
po comunica" (DAVIS, 1979, p. 16); é na desnaturalização de que a violência
verbal é apenas relacionada à palavra com cunho de agressão. De tal modo,
82 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

compreenderemos a violência como o uso intencional de forças e/ou poder,


concreto ou abstrato contra o próprio ser, outro sujeito, um grupo ou uma
comunidade, que resulte ou possa resultar em conflitos e possíveis danos,
sendo estes reversíveis ou não, desenvolvimento prejudicado ou privação
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1996); as violências elencadas pelas mu-
danças sociais e transformações na cultura criam impasses e/ou conflitos que
poderiam – e deveriam – ser administrados e solucionados na perspectiva
do diálogo (DUBET, 1994).
No sentido oposto, na ausência do viés comunicativo, o conflito deixa
de ser um potencializador para novas percepções nas etapas comunicativas
e pode engajar os quadros de violências; na assiduidade e transposição da
comunicação para validar esse novo panorama, vai havendo uma disposição
cultural na sociedade que considera os fenômenos de violências explícitas
como algo natural, que faz parte do comum, e que tira as violências das
excepcionalidades. A violência é naturalizada, interiorizada e reproduzi-
da como algo comum, assume a ruptura do diálogo e, por diversas vezes,
o substitui como forma de se expressar para se correlacionar aos grupos
ou sobressair-se àquilo que se julga como inferior, ocorrendo "com o uso
intencional de agredir verbalmente, como: falar palavrões; xingar alguém;
desacato; humilhações; impedir de se expressar; coagir por meio de goza-
ções em grupo (ridicularizar); mandar calar a boca; colocar apelidos; gritar; e
ameaçar" (LUIZ, 2019).
Quanto à violência verbal, podemos dizer que se caracteriza pela inércia
prescrita abruptamente, pela passividade imposta à força e pelo silêncio, de
modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anula-
das, há agressão.

caracteriza-se essa violência como uma atitude oral ou escrita agressiva,


bem como a utilização de palavras danosas, que tem a intenção de ridi-
cularizar, manipular, silenciar, ameaçar etc. Esta prática pode estar velada
sob a perspectiva de brincadeiras que deixam os sujeitos sem graça, en-
vergonhados e, muitas vezes, sem condições de defesa (MORITO; SILVA;
MOURA, 2019, p. 141).

Ainda nesse ponto, além de a violência verbal ser concebida como a


ruptura do viés comunicativo, promove o distanciamento dos corpos do
discurso, que por resistência respondem à força imposta com uma força
equivalente. Assim há uso do verbo para transgredir a sensação de coibição,
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 83

rebaixamento, indiferença ou limitação pela imposição de poder, utilizando


meios diversos correlacionados aos corpos, espaços e tempos e suas ex-
pressões ao todo, havendo ou não alteridade nesse enlace. Basicamente, a
violência verbal será adotada como uma falha no princípio da comunicação,
que é a interlocução dos sujeitos, na utilização da verbalidade e de todos os
compostos, como corpo, espaço, tom, gestos, reações físicas e afins, para
retribuir uma imposição a fim de tentar se igualar ou ferir o outro na mesma
proporção da agressão sentida, ou seja, o uso do verbo para resolver uma
situação de conflito agravada pela falta de diálogo e resoluções.

Como a violência verbal se manifesta no contexto escolar?


Após conceituar a violência verbal, é fundamental compreender como
ela se estrutura no contexto escolar e se enraíza nas práticas pedagógicas e
nas interpelações entre os pares. A escola é o espaço em que a maioria das
crianças e jovens passa grande parte do tempo diário, visando à construção
de conhecimentos, formação crítica em prol da autonomia e ampliação da
socialização, ou seja, é uma via para conduzir ao desenvolvimento humano
mais harmonioso, combater as intolerâncias e opressões (DELORS, 2001).
Outro ponto crucial é ter em vista que nenhum organismo é apenas pro-
dutor ou alvo de processos violentos, existem envolvimentos em que somos
vítimas e/ou protagonistas, principalmente quando resgatamos a vinculação
da violência verbal à ruptura do processo comunicativo e à imposição; o
sujeito, ao se sentir coagido – seja em qual forma for –, pode responder
ao estímulo violento com a mesma proporção ou em maior intensidade.
É fundamental salientar que ser um reprodutor da violência verbal não
configura um sujeito como ruim ou bom; não há dualidade tão bem-definida,
mas uma linha tênue entre o reconhecimento da ação e a reprodução natu-
ralizada, sem a percepção da violência inculcada na dialogicidade que se
propõe ou impõe. De tal forma, na busca por respostas para a questão das
violências escolares, surge uma indagação: como a presença da violência
verbal interfere nas relações cotidianas da convivência escolar?
A princípio, é importante compreender que a universalização da Educa-
ção Básica e a garantia do acesso a todos os cidadãos (BRASIL, 1996) condi-
cionam uma mudança no sistema educacional que amplia e passa a receber
uma camada populacional que era distanciada nas unidades escolares. A
escola, então, depara-se com uma dificuldade imensa de se adequar à nova
84 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

população, ou seja, não há um processo de adaptação para aqueles novos


atores poderem se comunicar com novos códigos e novos valores. Esse des-
preparo, pouco sanado no decorrer dos anos, é novamente intensificado
com as novas estruturações sociais que vão se consolidando, ora pela ne-
cessidade de expressão igualitária das pessoas na constituição dos espaços,
ora pelos avanços das tecnologias que facilitam e multiplicam os espaços
comunicativos, ora pela formação dos sujeitos – professores na formação
acadêmica e alunos no disciplinamento do corpo – que compõem o espaço,
mas trazem consigo novas inquietações.
Assim, muitas vezes, encontramos uma escola excludente, elitista, pa-
dronizada, disciplinadora e impositiva, não respeitando os sujeitos que a
compõem e forçando-os a se enquadrarem, direta ou indiretamente, ao seu
espaço. Os contextos das relações sociais vão sendo ampliados, e as desi-
gualdades têm reflexos no universo escolar, uma vez que a massificação do
acesso à educação afirma uma igualdade de acesso e uma desigualdade
de desempenhos; ou seja, a escola integra mais, porém, também exclui na
mesma proporção aumentativa (DUBET, 1994).
Desse modo, há uma contradição nos documentos oficiais que legislam
sobre a importância – e obrigatoriedade – de a escola ser inclusiva e criar
mecanismos para integrar todos os sujeitos ao espaço escolar. Contudo, há
uma quebra nas expectativas dos estudantes que buscam no sistema edu-
cacional expandir suas relações sociais, realizar e construir aportes para seus
ideais e consolidar amparos para sua criticidade e que acabam encontrando
um local que formata uma padronização de identidades, geralmente, pela
imposição.
A instituição escolar produz e reproduz violências, na medida em que
sua estrutura e organização criam tensões e conflitos que não são solucio-
nados, mas silenciados; na inquietação da imposição de uma configuração
monopolizada de poder, os sujeitos se frustram, aglomeram descontenta-
mentos, e, individualmente – ou na proximidade com outros indivíduos que
atribuem o mesmo valor à descrença daquele viés comunicativo impositivo
–, há fomentação das violências no cotidiano escolar.
Nesse cenário atual, o professor vê sua profissão como algo fragmenta-
do e não consegue lidar com a inserção das novas estruturações sociais na
cultura escolar, com um público jovem que indaga e questiona, e reflete nos
alunos suas concepções formativas como discente, conduzindo sua prática
na imposição, depreciação ou reforçamento de padrões sociais, como ser
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 85

ou não alguém com "futuro", na verbalidade de tentar manter uma ordena-


ção estrutural que dentro do seu imaginário ainda é vigente. Há, também,
um processo de desumanização do profissional docente, visto que sobre
ele recaem sobrecargas referentes à profissão, direcionamentos imprecisos,
sentimento de incapacidade – mediante as cobranças de índices de desem-
penho escolar –, inferências sociais e emocionais, colocando-o em situação
praticamente sobre-humana, em que esses acúmulos podem direcioná-lo a
práticas de violência verbal, como uma forma de descarregar tensões ou por
conta de descontrole emocional.
Em complementação, também há um direcionamento impreciso no pa-
pel do aluno, o qual é inserido no meio social, por vezes, tendo que buscar
o respeito nos espaços escolares e nos seu posicionamento, e isso significa
não aceitar a dinâmica escolar de ser apenas um observador e cumpridor
de normas. A escola é direcionada por regras formuladas e implementadas
de forma unilateral e, por isso, aplica um caráter obrigatório em relação a
um determinado comportamento, formal ou informal, imposto sem ouvir os
estudantes.
Nesse contexto, o aluno rebela-se, e geram-se os conflitos, o que dificulta
a solução dos problemas, aumenta a problematização, coibição ou minimi-
zação das ocorrências, resultando, também, em questionamentos calorosos,
inquietações verbalizadas e/ou ofensas. Após essa perspectiva, o estudante
e o docente são desqualificados de seus papéis no processo educativo. As
regras, para serem cumpridas, devem ser pensadas "democraticamente e
revisadas por todos os membros da comunidade" (ORTEGA, 2003, p. 19).
Na maioria das escolas públicas, os estudantes não podem ter sua repre-
sentatividade garantida, e isso acontece devido à imposição da linguagem
dos educadores silenciando suas vozes. Por vezes, percebemos que na esco-
la, para se imporem regras, se faz necessário o aumento do tom de voz, ou, o
pior, para não haver debates se desqualifica ou inferioriza a posição do aluno
como um todo. A este, resta respeitar os professores, diretores, funcionários
e afins, mesmo que os discentes não sejam respeitados.
Para Ortega (2003), os educadores, ao não serem democráticos, pro-
vocam "disfunções no reconhecimento de identidades sociais" (ORTEGA,
2003, p. 19). Os alunos não se sentem sujeitos da escola, porque não há uma
representação dos assuntos diretamente ligados a eles, causando uma sensa-
ção de não pertencimento. Esse (des)pertencer também propicia interações
negativas, pois na repulsa de imposições há a proximidade ou o afastamento
86 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

de discursos similares. Esse tipo de reação possibilita agrupamentos e acen-


tua rivalidades com quem discorda de determinadas regras estabelecidas, e
por isso são comuns os conflitos entre os pares, ou subgrupos, na interação
escolar, em que a verbalização permite definir um determinante de domínio,
poder, do espaço. Esse domínio de espaço pela definição do que é validado
como certo na proximidade do discurso ou refutado pela fragmentação da
não concordância do que é dito impõe a hierarquização na relação entre os
estudantes, e, geralmente, a manutenção desse status condiz com as amea-
ças verbais, as ofensas aos outros, o bullying, as gozações grupais, devido ao
cenário violento que condiciona as relações em inferiorização de terceiros,
com a garantia de um status quo, ou seja, a representatividade do que deve
ser seguido.
A violência verbal entre estudantes garante, de certo modo, a manifes-
tação da cultura juvenil no espaço escolar e cria vários pontos de tensão
quando essa agressão é sonegada. Esses sujeitos, atores sociais com identi-
dade própria, percebem na imposição da submissão o desejo do outro em
ser submisso. A cultura escolar não tem demonstrado receptividade à lin-
guagem e às várias formas de expressão de adolescentes e jovens, focando
apenas na cultura baseada em ausência de diálogo e nas relações de poder
assimétricas. Os adultos têm certa dificuldade em aceitar as novas gerações
que possuem culturas diferentes, e a falta de flexibilização de ideias aca-
ba gerando posicionamentos antidemocráticos, visto que na escola não há
espaço para indagar, questionar as regras de convivência etc. A instituição
torna-se um ambiente fechado (sem possibilidades) para os alunos, e estes
têm pouco espaço para modificar as condutas impostas, o que traz como
consequência a falta de autonomia e de formação de identidades.
Nesse aspecto, situações de discussões verbais calorosas predominam
com: ofensas; luta pelo reconhecimento – debates constantes e persegui-
ções; discursos de desmerecimento e humilhação; e gritos para se fazer ou-
vir. O processo comunicativo perde seu viés de acolhimento, e nessa ruptura
há os casos de violência verbal. A naturalização das microviolências acontece
quando os altos tons que coíbem as falas já são vistos como comuns, não são
mais percebidos como atos violentos. Muitas vezes, o convívio em sala de
aula causa um descontentamento coletivo, uma "desordem" que "agride", e
assim se perde um tempo pedagógico sem se aperceber. Essa tensão per-
passa a relação aluno-professor e se estende para as relações aluno-aluno,
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 87

visto que, quando há legitimação da violência, esta é aceita como meio de


todas as interações na escola.
Em contraponto, as práticas violentas são construídas socialmente, e, por
isso, o sofrimento associado à violência depende, muitas vezes, de um con-
senso social. Havendo uma amenização em certas posturas violentas, legiti-
madas pelo coletivo, aceita-se a possibilidade de empoderamento de certos
sujeitos; dependendo da situação – como uma brincadeira, ou apenas algo
momentâneo para a diversão dos outros –, a violência torna-se algo normal,
corriqueiro. São as demandas sociais, associadas à falta de reconhecimento
dos processos de sofrimento das vítimas, que mesmo em caráter subjetivo
se ferem por meio dessas práticas – que se configuram como um ato violento
–, e nada se faz, como no caso de apelidos depreciativos ou vexatórios.
Enfim, a violência verbal interfere no processo pedagógico, quando
distancia o aluno da produção coletiva, um dos caminhos para se adquirir
conhecimento; quando o docente impossibilita a defesa de estudantes que
sofrem violências verbais, isto é, quando não cria um tempo-espaço para
debates com os estudantes, que permitem a desnaturalização desses tipos
de atitude; ou quando o educador não se responsabiliza pela redução de
violências verbais, permitindo que as vítimas nos espaços escolares tenham
sentimentos depreciativos, sendo, às vezes, menosprezados ou silenciados.
Todos têm culpabilidade nas relações cotidianas da convivência escolar,
principalmente quando esta reforça as estruturações hierárquicas de poder
e o distanciamento entre os pares e suas – possíveis – relações que amparam
a constituição do ser social pela comunicação.

Pesquisa-intervenção sobre violência verbal: superação da


naturalização na escola
A proposta aqui relatada buscou trazer possíveis modos de superação
da naturalização da violência verbal no âmbito escolar, mas sem se caracte-
rizar por estabelecer receituários para métodos genéricos, até porque não
se acredita em unicidades de contexto para elaboração de ações de um
planejamento escolar que sirva para toda e qualquer escola ou para todas as
situações de convivências. O que se consolida e nos traz o "esperançar" de
Paulo Freire (2014) é o discorrer sobre um trabalho pedagógico articulado
que amplie a escuta consciente e possibilite a integralização de todos os
agentes escolares nas práticas educativas.
88 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A pesquisa-intervenção realizada permitiu-nos ministrar oficinas de ex-


perimentação, denominadas de ateliês, que deram subsídios práticos aos
estudantes e possibilitaram modificações nas relações entre sujeitos e na
forma de ver outras perspectivas de linguagem. Para tanto, refletiu-se sobre
o modo como cada um se percebia – nas mais diversas situações – e como
as similaridades estavam presentes, mesmo nos discursos que, a princípio,
pareciam distantes.
O primeiro momento configurou-se em um espaço complexo, pois expli-
cita as questões das proximidades nos grupos sociais nos quais os sujeitos
se reconhecem, e, consequentemente, a ruptura do sujeito ao relacionar-
-se com outro grupo e/ou indivíduos não pertencentes ao seu coletivo de
reconhecimento causa resistências compreensíveis. Contudo, ao vislumbrar
a naturalização das violências verbais e questioná-la como um processo que
não é natural, é possível perceber como há uma negação das diferenças
como um direito de todo ser humano, em especial nas vivências com várias
multiplicidades de identidade, e como provocar o desequilíbrio de concei-
tos já cristalizados gera conflitos. Aqui, fica uma sugestão válida para os afa-
zeres em grupo, em sala de aula: mesclar os agrupamentos para diferentes
tarefas e trabalhos escolares. A articulação do trabalho funcional, técnico,
pedagógico entre professores, gestores e discentes, com ponto de vista
voltado para as relações de poder horizontais, propicia uma maior facilidade
em diagnosticar os focos e as causas de violência, pois se criam espaços para
discussão e reflexão sobre cada situação violenta e se garantem estratégias
com respeito mútuo, práticas igualitárias no tratamento, com participação
ativa de todos, e momentos reflexivos envolvendo a valorização das diferen-
ças, com tolerância, solidariedade e cooperação.

Ateliê de produção de textos e a violência verbal: a produção dos


sujeitos
O uso da escrita, quando correlacionado à verbalização, produz um es-
paço natural para o sujeito, principalmente em ambientes escolares. A escri-
ta ultrapassa as limitações da escola, pois o sujeito desde sua infância tem
contato com produções literárias, seja por prazer (lazer) ou pela obrigação
na escolarização. Assim, a literatura permite a proximidade das narrativas de
casos e contos que podem ser aproveitados em todas as atividades com o
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 89

máximo de interesse e maior eficiência (TAHAN, 1961), valorizando a identi-


dade e propagando o respeito à multiplicidade (BUSATTO, 2003).
Nesse parâmetro, a produção de textos consente o exercício da recons-
trução da experiência, por meio da trama de relações sociais materiais que
organizam a experiência cotidiana e pessoal do aluno, para que este articule
o diálogo na comparação e no respeito real pelas diferenças individuais e ou
grupais. Não importa a uniformidade, mas o discurso, abarcando a produção
de texto – e a literatura – no trabalho da interdisciplinaridade, abordagem
concebida em toda essa proposta, reconhecendo lugares, temporalidades,
óticas, inferências sociais comportamentais e afins.
Comumente, no uso da escrita em textos, aparece a reprodução de va-
lores e concepções, mas também um romper com essa estruturação, cuja
forma possibilita a explanação do sujeito a fim de ocorrer proximidade com
seus semelhantes. Nessa perspectiva, o uso da produção de textos é vin-
culado à subjetividade e às emoções, cuja compreensão se dá pelo sim-
bolismo da realidade, e objetiva auxiliar na construção da identidade e do
reconhecimento da alteridade frente à diversidade do outro, por causa das
experiências conjuntas ou similares.
Em suma, nas produções os alunos podiam, metaforicamente, poetica-
mente, fantasiosamente ou condizente com o mundo concreto, transpor suas
inquietações, vivências e provocações com relação à temática da violência,
uma vez que, ao compor coletivamente, as propostas exemplificam – e rea-
firmam – em comum acordo o que era verdadeiro ao grupo ou, no trabalho
individual, pontuavam as subjetividades que atingem cada sujeito. Essa
perspectiva pode ser um trabalho contínuo, com os mais diferentes gêneros,
ou trabalhada com distintos aportes literários, para serem consumidos e (re)
estruturados, (re)produzidos e/ou modificados conforme a intencionalidade
de cada um. Outra perspectiva foi uma proposta livre de escrita e levanta-
mento de conduções pedagógicas, sempre com indicações ao respeito à
produção do sujeito, não diminuindo e/ou invalidando a verdade que foi
transcrita.

Ateliê de produção de desenhos e a violência verbal: a subjetividade


A criatividade não deve ter limites. O lúdico deve ser uma instância sem-
pre presente – e cativada – no âmbito escolar, pois o ato de desenhar possui
um papel muito importante no desenvolvimento do sujeito, além de poder
90 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

revelar a forma como ele enxerga o mundo. O desenho é uma forma de


expressão, de verbalização por representações visuais, e por isso revela uma
expressão e contribui em distintos aspectos, inclusive, na organização do
pensamento e na comunicação. Assim, quando nos deparamos com uma
representação ilustrativa, muitas vezes, não conseguimos ver uma lógica ou
sentido. Essa suposta incompreensão provém da subjetividade que esta pes-
quisa-intervenção permite, pois concebeu um espaço confortável em que o
sujeito criou sua cópia e/ou representação da realidade, imprimindo seus
sentimentos e posicionamentos, com explanação de situações vivenciadas,
de quadros de violências que a mente do aluno registrou.
Utilizar o desenho como um método de linguagem é possibilitar ao es-
tudante expor a internalização do que há de vivência, obtendo direta ou in-
diretamente informações sobre as mais distintas situações. Por meio dos tra-
ços e cores, dá corpo à visualização de como se reconhece em determinado
temas, seja nas relações dentro da escola ou em qualquer outro espaço. O
desenho permite a expressão, o controle/exposição das emoções, além de
se configurar com uma função terapêutica: espaço seguro para um desabafo
ou diálogo sobre algo que o fere. Ao se estimularem as atividades artísticas,
aceita-se – além de um momento para a individualidade – uma proposta
para o coletivo, para vínculos e proximidades, o que por si só já auxilia no
diálogo para a desnaturalização da violência, sendo interessante pontar que
conhecer um sujeito diferente não assume um potencializador de distancia-
mento, todavia, instiga a não convivência, por medo e estranhamento.
Essa nova proposta de linguagem concede ao aluno retratar suas ex-
periências na busca da própria identidade, nos conflitos e nas rupturas do
seu dia a dia. Paralelamente, trabalhar com a linguagem, o conhecimento
e a imaginação também auxilia na formação da sua subjetividade, além de
exemplificar como o sujeito percebe o contexto social e histórico no qual
está inserido. Nesse caso, pode ser um trabalho recorrente, utilizado como
complementar ou em unicidade, para além das aulas de artes, pois são vá-
rias as possibilidades, como: transcrição de notícias trabalhadas; identidade
visual para os aportes literários; nova proposta de narrativa; além de um
momento de deleite sem delimitações de temáticas para capturar a natura-
lidade do que desejam representar, instigando as produções mais densas e
representativas.
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 91

Ateliê da sonorização e a violência verbal: os corpos e os objetos


Quando pensamos em violência verbal, tem-se em mente aquilo que
é oral e produz sonoridade. O ser humano relaciona-se com o meio, um
mundo repleto de estímulos sensoriais das mais distintas origens e formas,
todavia, somos mais vulneráveis aos sons do que às imagens, sendo mais
sensibilizados pelo que ouvimos (TUAN, 1980). Desse modo, as sonorida-
des tendem a resgatar, alimentar e nutrir nossas lembranças, afetividades e
repulsas e, com efeito, podem ampliar ou limitar as experiências espaciais e
sociais, uma vez que a audição é responsável por formar a dimensão de es-
paço em nossas mentes, aproximando ou distanciando objetos aos próprios
corpos.
Na atualidade, o som é tratado como um problema social, mas pode
oferecer a voz para as minorias, com intuito de ressaltar suas reinvindicações,
e a ausência do espaço para essas vozes é tida quase como um crime. No
cotidiano há uma enorme – e distinta – variedade de fontes, intensidades,
assiduidades de sons, revelando um universo sonoro com certas limitações,
intercepções e/ou dualidades avaliativas, sendo estas ora tidas como boas,
ora como ruins. Por exemplo, quando se aborda o volume de um aglomerado
de pessoas ou um rádio muito alto, ambos possuem intensidades elevadas,
mas causam sensações variadas dependendo do sujeito.
A paisagem sonora constitui-se como uma unidade de sons de um dado
local, englobando o que for agradável ou desagradável, onde se expressam
as identidades de uma dada comunidade, de modo que a marca sonora
daquele espaço corresponda aos sons assíduos do campo – que podem ser
fundamentais1 –, o "lugar onde todos os sons ocorrem" (SCHAFER, 2001,
p. 214). Nessa expectativa, a escola vai reafirmando a aglomeração de es-
tímulos auditivos como normalidade: sinais e campainhas com sons muito
altos; espaços pequenos de lazer, com aglomerações de pessoas falando
ou gritando; legitimação de ruídos que perturbam e são interiorizados pelos
alunos como se fossem naturais; espaços de fala em sala de aula por meio
da imposição, do gritar, do ameaçar, do diminuir e/ou do ofender, impondo,
muitas vezes, o silêncio.
Essa ruptura provoca conflitos, pois os sujeitos não aceitam essa valida-
ção, em determinados momentos, ou a sua refutação apenas para imposição

1 Conforme Schafer (2001), som fundamental é aquele ouvido continuamente por deter-
minado grupo ou sociedade de modo muitas vezes inconsciente, formando um fundo
impositivo contra qualquer outro som que poderia ser percebido.
92 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

da ordem ou das relações hierárquicas. Nessa mesma dimensão, a ausência


de som também é agressão, pois é a ruptura do ato comunicativo. A ausên-
cia do diálogo, por alteração na tonalidade do que se discursa, também é
imposta. Essa ação faz com que haja o não reconhecimento de sons agressi-
vos e que o debate cause um desconforto ao perceberem que estão imersos
em um campo sonoramente agressivo.
A percepção do distanciamento, do silenciamento, não existe apenas
com os dizeres da fala, mas também com os corpos. Assim, a sonoridade
corporal pode ser igualmente negada, e o seu resgate é complexo, pois a
violência verbal ocorre por meio do falar do corpo, que é capaz de gesticular,
ocupar espaços ou restringi-los. A compreensão da ausência do som ocorre
concomitantemente às recordações de memórias afetivas e paisagens so-
noras dos estudantes, que ora agradam, ora causam repulsa, conforme as
lembranças que os acometem – mesmo que indiretamente. Dentro desse
cenário, a música permite a regressão aos conceitos gerais do que é agra-
dável ou desagradável, explorando instrumentos com distintas intensidades
de notas, ruídos, em um momento de deleite. Como também, na proposição
de cenas utilizando apenas o artifício de sonoridades, através de objetos
adversos – que no jogo simbólico assumem outra funcionalidade para além
da sua criação –, o próprio corpo necessita indicar, aos outros, a que se re-
fere aquele ato que tentam representar, dando a ênfase à necessidade da
avaliação corporal quando falamos da violência verbal.
Assim, no ateliê de criação dos sinos dos ventos, os alunos puderam
abordar a presença ou ausência de algo que ecoou dentro das suas me-
mórias, com possibilidade de atrelar o sonoro ao visual, pois a intenciona-
lidade da comunicação é também visual, não apenas sonora. Esse ateliê
promoveu momentos de criatividade e produção artística que puderam ser
atrelados às mídias audiovisuais, fotográficas ou gráficas, com características
de discursos, aglomerações, manifestos, passagens históricas, configurando
a violência nesses patamares. Por conta da presença ou ausência do som,
cabe aqui uma escuta consciente dos professores, dos funcionários e da
equipe gestora para compreenderem, e não refutarem, o que está sendo
dito, questionado, reivindicado por meio do diálogo, evitando os ataques e/
ou as violências verbais.
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 93

Ateliê de teatro e a violência verbal: representações e sensibilidade


A violência verbal conduz o aluno ao estado de negação de sua própria
pessoa e do outro – principalmente os adolescentes –, e isso acaba acarre-
tando uma fuga – com a ajuda do silêncio –, colocando-o em desespero per-
manente por conta de algo que não foi dito ou que não conseguiu dizer, com
fortes riscos de desequilíbrio emocional, como a autopunição, danos físicos
e psicológicos etc. Nesse sentido, o teatro, em sua base cênica, propicia a
interpretação dos anseios e questionamentos por meio de uma atmosfera
em que a arte imita a vida, e as problemáticas levam à análise de um deter-
minado contexto político, social e cultural. Desse modo, o uso dessa lingua-
gem na escola permite que os alunos, até então tidos como espectadores,
ao serem convidados a entrar em cena, teatralmente, pela ação e diálogos,
encontrem estratégias para os conflitos interiorizados.
Essa nova reestruturação de lugares, além de expor outras potencialida-
des de falas, lugares e participação, dá ao teatro uma dimensão democrá-
tica e um aprendizado coletivo, baseado em oposições, e aborda qualquer
aspecto que afete os agentes de cena. O cerne da questão é como o "novo
artista" vai reagir, isto é, vai se opor, ou não, às tendências conflituosas que
são apresentadas. Desse modo, os alunos atores, por meio da representa-
ção cênica, atuaram sobre a influência das violências nos diferentes ambien-
tes sociais, representando-as, abdicando-se das restrições que sofreram
inúmeras vezes, por não terem espaço de fala. Por meio de metáforas, os
discentes atenuaram a voracidade de opiniões e os efeitos da violência, ao
ponto de se sensibilizarem e não repulsarem as situações-problema. Assim,
os alunos atores – como personagens e, também, sujeitos reais – retrataram
os conflitos e suas ações ou reprimiram o que não concordavam, e, portanto,
estando em cena ou na plateia, todos se identificavam com o que estava
incomodando nas encenações.
Os artistas, de maneira geral, observam aspectos que outras pessoas
não veem e podem exagerar na sua representação com tamanha realida-
de que provoca a aproximação do público, transformando suas intenções
em explanações daquilo em que acredita, isto é, um grito de socorro. As
peças, também, comunicam-se com o público, ao mesmo tempo que dá
voz aos atores, apresentando acontecimentos e situações que afetam as
pessoas – inclusive eles mesmos. Essa encenação teatralizada proporciona
acontecimentos e consegue, simultaneamente, mostrar suas razões para
94 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

encenar e problematizar os efeitos, confrontando todos com as agressões


que diretamente permeiam as relações.
O teatro possibilitou um trabalho articulado com as temáticas didáticas
e sociais, pois está ao lado das minorias, dá corpo ao que é descrito e na re-
presentação choca ao apresentar como conflito o que era tido como natural.
É uma ferramenta pedagógica, social e artística que concede ao sujeito um
sentimento de pertencimento e protagonismo.

Ateliê de fotografia e a violência verbal: manifestações culturais


A fotografia é um meio de gravar e reproduzir manifestações culturais,
visões e subjetividades. Como linguagem, é no ato de fotografar que se ob-
têm a comunicação e a subjetivação de interpretações, isto é, de intenciona-
lidades e/ou de mensagens a serem transmitidas. A imagem dialoga com o
todo e, como linguagem, constitui-se na forma de expressão das vontades,
das aspirações, das realizações, como também revela os medos, as repul-
sões e a contrariedade, ou seja, lugar comum de todas as pessoas que têm
a necessidade de mostrar em imagens uma mensagem, seja esta qual for.
Contudo, ao se trabalhar com a fotografia na sala de aula, faz-se necessário
certo cuidado ao explanar o motivo da obtenção, pois esse diálogo pode
ser manipulado ou conduzido para certa análise que mascara a realidade.
Cabe, especificamente, um cuidado com a forma de comunicação, a inter-
posição do relato de quem registra e as conjunturas de uma multiplicidade
de produções de distintos atores. O registro fotográfico, na escola, necessita
de entendimento quanto a sua constituição, como produção humana e fonte
documental, e precisa de esclarecimentos sobre a sua utilidade, o seu leque
de possibilidades de análises, bem como suas limitações.
A fotografia como um registro, uma comunicação social também retrata
as violências, talvez de forma mais representativa, ao propor novos olhares
para locais que causam desconforto e ao fazer ver a assiduidade de locais e/
ou objetos registrados. A proposta de registrar, no ateliê, objetiva transpor
conforto e ver locais que, por diversas vezes, não são ocupados na escola,
pois guardam o silenciamento de grupos excluídos, representam ambientes
de encontros ou refúgios daqueles que não falam. Também, há a possibilida-
de do resgaste histórico dos espaços da escola, trazendo registros de mar-
cos, eventos, momentos históricos e as formas de abordagem da violência,
correlacionando às próprias vivências dos sujeitos e problematizando: Por
Ruptura do processo comunicativo e a configuração de uma força de linguagem que silencia:... | 95

que algumas dessas violências seriam recorrentes? Como o silenciar é tão


presente quando pensamos em momentos que o violentam?
A fotografia é tida como a escrita da luz, e sua relação com a violência é
mais estreita do que se pode discorrer, pois ambas congelam o tempo, numa
bidimensionalidade avessa à simbolização, como fragmento de um recorte
subjetivo e representação do real. Ela dá voz à fragilidade, aos efeitos da
agressão, abordando sombras, falta de luz, tonalidades para provocar quem
consome aquele diálogo. Pode ser um trabalho permanente, pois resgata a
historicidade, e paralelamente se recriam, se reestruturam ou se (re)propõem
novos olhares. A fotografia reafirma discursos, eterniza uma manifestação de
algo importante que afeta a comunidade escolar. É ter um registro de comu-
nicação que foi eternizada como fotografia, permitindo a problematização e
novos olhares ao que necessita ser debatido, mesmo quando este aparenta
não ter espaço ou é normalizado socialmente.

Algumas considerações
A questão que sempre deve pontuar uma pesquisa-intervenção com
inserções na escola e a autorreflexão no trabalho com grupos de pessoas na
desnaturalização das violências é: qual seria a maneira mais eficaz de abordar
essa temática com o corpo escolar, de forma que este possa compreender o
real significado desse problema sem renegá-lo, tampouco diminuí-lo a uma
questão pontual, com sensacionalismo na abordagem e no esquecimento,
na (des)continuidade do trabalho?
Assim, quando a escola está mobilizada e sensibilizada ao tema, compro-
metida a desenvolver esses processos continuamente – uma vez que cada
sujeito se vincula às propostas conforme o seu tempo, inclusive porque pre-
cisa se despir de suas barreiras ao que está sendo abordado –, é necessário
não permitir a inércia. Conhecer o ambiente escolar significa compreender
que este é mutável, e por isso as questões de violências verbais têm tendên-
cia a aumentar.
É imprescindível não adotar uma ideia de produto final, pois essas inser-
ções em ateliês devem ser processos contínuos, com intenção de perceber
o despercebido, de diagnosticar as situações de conflitos que podem estar
acontecendo na escola, para agir. Os resultados devem considerar todos os
envolvidos e conduzir, por meio do diálogo entre os pares, à troca de im-
pressões, experiências e sentimentos, com foco no clima escolar. Reitera-se
96 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

a suma importância de manter respeitados os combinados feitos, de manter


uma postura de escuta para reclamações ou sugestões e do mapeamento
dos casos de violência: para reforçar, modificar, reestruturar o que for neces-
sário, adotando novas estratégias de prevenção e resolução de conflitos, se
necessário.
Por fim, a pesquisa-intervenção abriu espaço para o diálogo, além da
possibilidade de superar as naturalizações de agressões, com imposição da
força e/ou ordem. Compreender os processos, durante os ateliês, foi enri-
quecedor, no sentido de possibilitar que alunos não se martirizassem; ao
contrário, foi o começo para a autorreflexão, para o não silenciamento, para
dizeres com tonalidades mais altas, a não aceitação de palavras que ofen-
dem etc. Aquilo que não queremos é um condenar brusco de um sujeito ao
outro, apenas pelo fato da sua existência; ao invés disso, transferir o uso da
comunicação que agride para a verbalização que propõe espaços democrá-
ticos, diálogos e resoluções.

Referências
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Hospital de São Paulo, São Paulo, v. 26, p. 219-223, 1979.
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Geneva: WHO, 1996.
5

ESTUDANTES E AS VIOLÊNCIAS
PSICOLÓGICAS: IMPLICAÇÕES
ACERCA DO OUVIR
Jussilene Rego Nunes
Maria Cecília Luiz
Caroline Miranda Palmieri da Silva

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, promovida pela


Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em 20 de no-
vembro de 1989, favoreceu e influenciou legislações brasileiras, como o arti-
go 227 da Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988) e a promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990), e as principais
mudanças ocorreram quanto à garantia de direitos. Destaca-se o artigo 2º,
desta Convenção:

Os Estados Partes devem adotar todas as medidas apropriadas para


assegurar que a criança seja protegida contra todas as formas de
discriminação ou punição em função da condição, das atividades, das
opiniões manifestadas ou das crenças de seus pais, representantes le-
gais ou familiares (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989, art. 2º,
grifos nossos).

Neste contexto, esta seção tem a intenção de evidenciar os resultados


de uma pesquisa-intervenção de caráter qualitativo com o objetivo de ouvir
estudantes do Ensino Fundamental (Anos Finais) e Médio da Escola Estadual
de Ensino Integral já referenciada neste livro, situada em uma cidade de mé-
dio porte no interior de São Paulo, sobre violências psicológicas ocorridas
nas relações interpessoais, na escola e na família. Parte-se do pressuposto
de que ao possibilitar a voz ou praticar a escuta ativa os alunos que frequen-
tam a escola de Educação Básica mudam suas perspectivas de convívio e
interação social.
100 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Sassaki (2007), quando escreve "Nada sobre nós, sem nós: da integração
à inclusão", discute, também, valores essenciais na inclusão de pessoa com
deficiência e instiga-nos a buscar o coletivo, isto é, refletir sobre ter vez e voz,
uma perspectiva que pode ser utilizada para qualquer situação que envolve
grupos de pessoas cujo objetivo é a garantia de direitos, com superação
de barreiras e preconceitos. A frase do autor inspira, quando se pretende
analisar os efeitos da violência psicológica de uma pesquisa-intervenção
com discentes de uma Escola Estadual de Ensino Integral, em que estes
revelam as relações existentes na família e na escola – relações entre ado-
lescentes-adolescentes, adolescentes-docentes, adolescentes-familiares
etc. As participações aconteceram por meio dos seus dizeres e trouxeram
perspectivas que soaram de maneiras distintas e que, por serem únicas, se
tornaram extremamente importantes.
É frustrante para um sujeito quando é desacreditado ou tido como inca-
paz de decidir e/ou participar, no que concerne a sua própria vida ou iden-
tidade. Dessa forma, o direito à participação situa-se num paradigma que
deve reconhecer crianças, adolescentes e jovens como sujeitos qualificados
para opinar e tomar decisões acerca daquilo que lhes afetam e interessam,
além do reconhecimento como pessoas ativas.
Faz-se necessário o reconhecimento do lugar de cada um, de suas po-
tencialidades e vulnerabilidades, com visão de dois aspectos: "o ouvir o ou-
tro", dando, realmente, voz nas decisões que se referem a ele e aos demais; e
"a fala com o outro", como função terapêutica. Na perspectiva das violências
psicológicas, ou de qualquer outra violência sofrida, evidencia-se que des-
cobrir como falar, isto é, encontrar as palavras para relatar um sofrimento já
se caracteriza por ser um grande desafio, principalmente, para este público
mais jovem. Ressalta-se que é comum os adultos ensinarem as crianças, ado-
lescentes e jovens a negarem seus desejos e pensamentos, assim, se o "não
falar" é abominável, o poder falar também é apontado como terrível, visto
que os estudantes, quando explanam suas histórias, as tornam reais.

A pesquisa-intervenção como metodologia


Como já foi dito, o objetivo deste texto é apresentar os resultados de
uma pesquisa-intervenção de caráter qualitativo, com o recorte nas violên-
cias psicológicas, na visão de estudantes do Ensino Fundamental (Anos Fi-
nais) e Médio, nas relações interpessoais, na escola e na família, levando em
consideração as relações existentes em cada âmbito.
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 101

Com relação à pesquisa-intervenção, pode-se afirmar que, ao aprofun-


dar a ruptura com os enfoques de pesquisa tradicionais e ampliar as bases
teórico-metodológicas, a atuação nesta perspectiva reformula a realidade
sociopolítica, já que sua ordem de intervenção ocorre nos espaços da micro-
política em contextos sociais.

não visamos à mudança imediata da ação instituída, pois a mudança é


consequência da produção de outra relação entre teoria e prática, assim
como entre sujeito e objeto.
[...] A pesquisa-intervenção, por sua ação crítica e implicativa, amplia as
condições de um trabalho compartilhado (ROCHA; AGUIAR, 2003, p. 71).

O Gepesc (Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Subjetividade


e Cultura) realizou essa extensão universitária, com proposição de minis-
trar uma disciplina eletiva na escola mencionada nos anos de 2018 e 2019.
Durante o período dessa disciplina, os alunos realizaram oficinas de experi-
mentações, chamadas de ateliês, sendo oferecidos quatro ateliês sobre as
violências: psicológicas, simbólicas, físicas e verbais. A Cada semana foram
propostos vários exercícios práticos reflexivos, com a intenção de atingir os
objetivos de cada ateliê.
Após ouvir os áudios, gravados no processo de criação dos exercícios,
bem como os resultados produzidos pelos estudantes nas oficinas de expe-
rimentações, os dados foram agrupados em categorias de análises.

Natureza do desenvolvimento humano e as violências


Para Blaya et al. (2006), em face da violação de seus direitos, vivendo
em exposições estressantes e traumáticas, crianças, adolescentes e jovens,
normalmente, recorrem a três defesas: repressão, negação e dissociação.
Essas formas individuais de se proteger ocorrem em sujeitos que sofrem ou
sofreram qualquer tipo de violência – sem possível resolução para vítima
– no período de seu desenvolvimento, pois faltou proteção em situações
violentas que, geralmente, ocorrem dentro do convívio familiar.
Esses sujeitos – notoriamente as crianças ou os mais novos de idade –
costumam lidar com situações de dimensões complexas que resultam em
grandes dificuldades, em uma idade em que não se sentem – e nem estão
– preparados para enfrentar, pois deveriam estar construindo vínculos de
confiança e segurança com os adultos, o que auxiliaria no fortalecimento do
102 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

seu desenvolvimento psicossocial. Pensando nas crianças e adolescentes e


na capacidade de se defenderem em formatos limitados – pois estão na fase
de dependerem de outra(s) pessoa(s) –, ao invés de vivenciarem relações de
confiança e/ou serem incentivados a ter iniciativas próprias, experimentam
em seus empenhos individuais duas perspectivas maléficas para qualquer
desenvolvimento humano: conflitos internos e ausência de equilíbrio.
A Psicologia refere-se a esse dano – que prejudica a identidade de
um sujeito – como a perda do senso de coerência ou da integridade de si
próprio. Um exemplo prático disso é quando o bebê descobre os dedos
das mãos e obtém a consciência de que estes lhe pertencem. A mesma
perspectiva fisiológica realiza-se no cognitivo e afetivo, isto é, logo cedo
a criança aprende que seus pensamentos e sentimentos lhe pertencem e
que possui controle de para quem ou como expressá-los. Ao crescer em um
ambiente favorável de aceitação e descoberta vai aprender o que é "eu"
e o que não é "eu". Ao contrário, quando vive em uma infância exposta à
violência psicológica, esse processo de descoberta de si, do espontâneo, se
perde, e, infelizmente, o que se tem é uma criança ou adolescente tentando
sobreviver, erguendo defesas emocionais ou perdendo etapas de cada fase
do seu desenvolvimento.
Assim, analisando as três defesas, temos:
a ) A repressão, sendo, provavelmente, a defesa menos dilacerante para o
sujeito em desenvolvimento. Ao empregar esse mecanismo inconsciente
está dizendo "esqueço que isso aconteceu". Remover algo da realidade,
por meio da repressão, é colocá-lo de lado, é manter distante aquilo
que me faz ou fez sofrer. Geralmente, a criança precisa empregar outras
defesas junto à repressão.
b ) A negação significa dizer "isso não está acontecendo". Negar o que é
real requer distorção da percepção, isto é, danos na verificação da reali-
dade. A negação expõe a vítima ao perigo, pois esta se programa para
não reconhecer os sinais que, de alguma forma, lembram o trauma ori-
ginal, assim sua resposta automática é "isso não está acontecendo". O
perigo é ignorar aspectos que são vitais para seu bem-estar.
c ) E, finalmente, a dissociação, em que a criança ou o adolescente afirma
"isso não está acontecendo comigo", ou talvez "isso não está aconte-
cendo com outra pessoa". O uso dessa defesa traz consequências mais
graves, pois resulta da dissociação da vítima em alterar seu pensamento,
romper com sua sensação de tempo, alterar a imagem de seu corpo,
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 103

distorcer suas respostas, experimentar uma perda de controle, alterar


suas respostas emocionais, mudar o significado das coisas, sendo uma
situação muito complexa, como se o sujeito se fragmentasse.
As defesas emocionais desenvolvem-se em situações de violências, mas
não só as visíveis – como o caso da violência sexual e da física. É importante
destacar que as violências psicológicas sofridas são silenciosas, envolvem
segredos e preservação da família, de pessoas próximas à vítima e afetam
diretamente o comportamento e o emocional de quem é violentado. Com-
parar uma criança ou adolescente com outra pessoa, apontar os defeitos
físicos e intelectuais ou castigá-la intensamente são exemplos de violência
psicológica que podem gerar medos e conflitos. A violência psicológica está
nas relações de poder, como a figura de autoridade de pai, mãe, parentes
próximos, professores, líderes religiosos, um adulto, que sempre mantém a
vítima em silêncio. Por vezes, o algoz incute na cabeça da criança ou ado-
lescente uma versão de si, e este passa a acreditar ser merecedor de tais
castigos ou que deve ser subjugado, conviver com sentimentos de alguém
negligenciado, diminuído ou incapaz.
Sofrer violência psicológica é viver em sigilo – um silêncio vivenciado
pela surdez do outro –, sob ameaça do abandono, da rejeição, é sobreviver
com medo de apanhar ou passar por mais situações violentas ao afirmar
ser verdade o que sente e brigar por sua defesa. É comum em ambientes
familiares ou escolares ouvir vozes de adultos que distorcem e mentem, co-
locando a criança ou o adolescente em situações de violências psicológicas,
e, infelizmente, isso conduz a vítima a se acostumar com a invisibilidade –
pois, além de não ser ouvido, não recebe ajuda de pessoas próximas, o que
assimila é que está tudo bem, mesmo se estiver fingindo, mesmo que no seu
interior o sofrimento seja tão grande a ponto de querer morrer.
Segundo Carl Rogers (1985), a criança tem um contato maior com ele-
mentos internos e, por isso, expõe o que pensa, sente e se expressa de ma-
neira mais fácil e espontânea. Porém, com o seu desenvolvimento e o avanço
da idade, a tendência é distanciar ou pressupor esses elementos como ina-
dequados. Nesse contexto, qualquer exigência de um sujeito (ação externa)
afasta a criança ou adolescente de elementos internos, o que pode gerar
conflitos, no sentido de não conseguirem se expressar, ou por desequilíbrio
emocional sobre si, ou por não ter entendimento de quem é o outro.
O que se observa é que, geralmente, na sociedade nem todas as crian-
ças, adolescentes e jovens têm a possibilidade de crescer satisfatoriamente
104 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

protegidos ou em ambientes que os motivem e preparem para lidar com


situações adversas, visto que alguns precisam amadurecer prematuramente
e assumir responsabilidades para as quais nem sempre estão preparados,
desencadeando conflitos consigo mesmo ou com os outros. Ao ser exposta
às violências e/ou aos abusos, principalmente na fase de desenvolvimento,
a criança terá consequências profundas, uma vez que os relacionamentos
primários que dão sustentação para ensinar sobre quem somos e quem são
os outros, de forma sustentável, quando negligenciados acabam erguendo
barreiras emocionais, que permanecem até a idade adulta.

O aporte teórico: as fases psicossociais de Erik Erikson


Para compreender como a violência psicológica é percebida pelos es-
tudantes participantes da pesquisa-intervenção, suas falas foram analisadas
conforme as fases psicossociais de Erik Erikson (1976). Por meio dessa teoria
do desenvolvimento psicossocial, o autor associa a psicanálise a diversos
campos do conhecimento, como a antropologia cultural.
Erik Erikson (1976) considera o desenvolvimento do ser humano por meio
de estágios previsíveis, que sofrem influências das experiências sociais. Sob
essa perspectiva, a cada estágio do desenvolvimento, a pessoa depara-se
com um conflito central, isto é, uma crise normal e saudável a ser vencida.
Segundo o autor, todo sujeito vivencia crises e, para ultrapassá-las, precisa
se estruturar, na perspectiva freudiana. Assim, a pessoa pode ter um ego
consolidado ou um ego debilitado, de acordo com seus conflitos. No final, a
forma como essa pessoa enfrenta uma crise influencia o estágio seguinte, e
seu desenvolvimento individual está articulado ao contexto social, local de
suas crises. Assim, se as crises da infância não são resolvidas e controladas
de forma satisfatória, o sujeito continua travando batalhas da infância na vida
adulta. A seguir, descrevem-se suscintamente tais crises do ego.
A primeira fase, denominada de confiança básica X desconfiança bási-
ca, é referente ao nascimento até o primeiro ano de vida do neném. Nesse
estágio, o bebê desenvolve um relacionamento com alguém em que possa
confiar para atender suas necessidades. Quando o equilíbrio se inclinar para
a confiança, o bebê tem chances melhores de resistir a crises posteriores,
por isso, crianças com atitudes de confiança provêm de famílias que as ali-
mentaram e/ou as confortaram quando tiverem dor ou medo.
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 105

Quando o bebê vivencia positivamente estas descobertas, e quando a


mãe confirma suas expectativas e esperanças, surge a confiança básica,
ou seja, a criança tem a sensação de que o mundo é bom, que as coisas
podem ser reais e confiáveis. Do contrário, surge a desconfiança básica,
surge a desconfiança básica, o sentimento de que mundo é mau e peri-
goso. A partir daí, já podemos perceber alguns traços da personalidade
se formando, ainda que em tão tenra idade (RABELO; PASSOS, 2018, p.
4).

A confiança básica tem grande importância, segundo Erikson (1987),


pois evidencia que o bebê "não só aprendeu a confiar na uniformidade e na
continuidade dos provedores externos, mas também em si próprio e na ca-
pacidade dos próprios órgãos para fazer frente aos seus impulsos e anseios"
(ERIKSON, 1987, p. 102).
A segunda fase, nomeada de autonomia X vergonha e dúvida, está re-
lacionada ao bebê de dois e três anos de vida, e o enfoque está no apren-
dizado e no controle social. A criança pequena observa o que os adultos
próximos esperam dela, destacando-se: limites, obrigações e privilégios.
Desse aprendizado, do conhecimento das regras de convívio, advém uma
criança pronta para julgar, caso alguém as descumpra, são pequenos juízes
repressores. O problema maior nessa fase é conseguir equilíbrio correto
para promover a autonomia da criança, visto que ela se situa entre o fracasso
e o sucesso de cumprir as regras exigidas. Quando fracassa sente vergonha
e, ao contrário, quando é bem-sucedida se sente encorajada. Conforme o
autor:

De um sentimento de autocontrole sem perda de autoestima resulta um


sentimento constante de boa vontade e orgulho; de um sentimento de
perda do autocontrole e de supercontrole exterior resulta uma propen-
são duradoura para a dúvida e a vergonha (ERIKSON, 1976, p. 234).

O cuidado vital, nesse estágio, é saber a correta proporcionalidade de


autonomia que se deve dar à criança, isto é, ela não pode ser exigida além
da conta, pois perde sua autoestima, e ao mesmo tempo não pode ser rara-
mente exigida, pois isso resultará em dúvidas a respeito de suas capacida-
des, tendo a percepção de abandono. Além disso, uma criança que recebe
muito auxílio ou é resguardada demais torna-se insegura e envergonhada,
e, em contrapartida, se for pouco protegida se sentirá ordenada além de
suas capacidades. Assim, o adulto deve, ao mesmo tempo, oportunizar a
106 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

sensação de autonomia, mas com proximidade para socorrer a criança nos


momentos em que a empreitada for além de suas aptidões, uma tarefa com-
plexa e difícil para o cotidiano.
A terceira fase, denominada de iniciativa X culpa, refere-se aos quatro
e cinco anos de idade da criança, em que precisa ser encorajada a fazer o
maior número de escolhas possível. A tarefa básica é estabelecer competên-
cia e iniciativa, e esta última propicia à criança a vontade de investigar tudo
com curiosidade, de falar sem cessar e de se mover constantemente.

A combinação confiança-autonomia dá à criança um sentimento de de-


terminação, alavanca para a iniciativa. Com a alfabetização e a ampliação
de seu círculo de contatos, a criança adquire o crescimento intelectual
necessário para apurar sua capacidade de planejamento e realização
(ERIKSON, 1987, p. 116).

Segundo Erikson (1987), nesse estágio existe a ameaça da personificação.


Isso ocorre quando a criança tenta se esquivar da frustração de algo que não
consegue realizar e, ao fugir desse desconforto, excede na fantasia de obter
distintas personalidades. Esse comportamento compulsivo de ocultar seu
"eu" verdadeiro pode resultar em um adulto que encena distintos "papéis"
em convívio social e se distancia cada vez mais de si mesmo.
A quarta fase, chamada de empenho X inferioridade, refere-se aos seis
anos de idade até a puberdade, e a criança, no caso, com a educação esco-
lar, além de executar suas atividades intelectuais, começa a compreender o
que os adultos valorizam e se habitua a esse novo mundo. Nesse período
a criança busca com perseverança atender as exigências dos adultos, pois
aprendeu o significado da palavra recompensa, inclusive a planejar ações
em longo prazo, pois passa a se interessar pelo futuro. Assim, a criança
esforça-se para realizar bem suas tarefas e obter o reconhecimento e elogio
por suas conquistas pessoais. Quando tem êxito, sente-se competente, mas
quando fracassa se sente inútil, possui um sentimento de inferioridade. Para
Erikson (1987), nesse estágio a criança dá valor à ordem e às formalidades,
mas o autor esclarece que a propagação dessas formalidades sem significa-
do danifica as suas relações sociais, além de propiciar o empobrecimento da
sua personalidade.
A quinta fase, denominada de identidade X confusão de identidade,
refere-se à adolescência, e nessa fase se encontra o ápice da busca pela
personalidade, isto é, o adolescente está tentando descobrir quem ele é, de
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 107

preferência com separação de seus familiares. Pode sentir-se muito confuso


sobre quem ele é durante esse período em que tenta desenvolver uma per-
cepção de si, pois até as mudanças fisiológicas que acontecem rapidamente
nessa idade fazem com que seu corpo lhe pareça estranho.
A preocupação com qualquer julgamento alheio faz com que o adoles-
cente transforme suas atitudes, de tempos em tempos, com uma persona-
lidade que se remodela tanto quanto suas mudanças físicas, e assim suas
preocupações em descobrir como agradar o seu meio social estabelecem
uma desordem de identidade. Nessa confusão, sente-se ansioso, incapaz,
isolado, o que o leva a se projetar em outros sujeitos, pois não gosta da sua
identidade. Para Erikson (1987), a confusão de identidade é a base para a
concepção de preconceitos e discriminações, pois se o adolescente não tiver
sanado suas crises anteriores, também, tem instabilidade em sua identidade.
A sexta fase, nomeada de intimidade X isolamento, refere-se ao início
da maioridade civil e acontece quando um jovem adulto, razoavelmente
saudável intensifica os seus relacionamentos íntimos, busca-os sem medo,
pois não sente a sua identidade ameaçada. Quando o ego não está suficien-
temente seguro, o sujeito acaba se isolando de relacionamentos, tem receio
de compromissos, pois precisa "conservar" seu ego frágil. Destaca-se que
ficar em isolamento por um curto tempo não se caracteriza como algo ruim,
pois pode se tratar de um tempo de amadurecimento do ego; em contrapar-
tida, se o sujeito rejeita assumir compromissos por um longo período, isso
pode-se caracterizar como uma crise.
A sétima fase, chamada de produtividade X estagnação, refere-se à
meia-idade, em que o sujeito está centrado em guiar a próxima geração, por
meio da educação de filhos ou esforços criativos e produtivos. Caso essa
transmissão não ocorra, sente que o que fez e construiu não contribuiu para
nada, não significou nada. Nesse estágio, é comum os sujeitos preservarem
a tradição e se utilizarem de autoridade excessiva para controlar os mais jo-
vens, e nesse contexto – excesso de autoridade –, com o pretexto de cuidar,
o sujeito torna-se um adulto autoritário. Segundo Erikson (1987), os sujeitos
também podem permanecer apáticos ou lamentar a vida que têm, o que o
autor chama de estagnação.
A oitava fase, denominada de integridade X desespero, refere-se à
terceira-idade, que é quando o sujeito se desespera ao se aproximar da
morte, com sentimentos de que é o fim de tudo, de que é inútil para a so-
ciedade, família etc. Estes são aquelas pessoas que vivem em um inacabável
108 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

desânimo e agonia por sua senilidade; ao contrário, existem os sujeitos


íntegros e distintos, que acreditam ter cumprido seus deveres e ainda se
agradam de compartilhar suas experiências. Erikson (1987) define esse es-
tágio em duas perspectivas de pessoas: ocupam seu tempo e utilizam suas
vivências com algo que ajuda o seu cotidiano; ou mantêm-se estagnadas no
que determinam ser o fim de suas vidas.
Segundo Erikson (1987), as crises e suas consequências formam a
personalidade:

uma personalidade saudável domina ativamente seu meio, demonstra


possuir certa unidade de personalidade [...]. De fato, podemos dizer que
a infância se define pela ausência inicial desses critérios e de seu desen-
volvimento gradual em passos complexos de crescente diferenciação.
Como é, pois, que uma personalidade vital cresce ou, por assim dizer,
advém das fases sucessivas da crescente capacidade de adaptação às
necessidades da vida – com algumas sobras de entusiasmo vital? (ERIK-
SON, 1987, p. 91).

O autor apresenta os estágios de desenvolvimento como fases relacio-


nais, numa condição de conhecer e ser conhecido. O sujeito compreende-se
nas diferentes formas da vida social e, por isso, quando se trata de situações
de violências, muitas vezes ele se restringe a viver em isolamento. O senti-
mento de abandono é algo decisivo na vida de uma criança ou adolescente,
e conviver em ambientes violentos, mesmo de violências invisíveis como a
psicológica, pode destruir o mundo interior de um ser humano, mesmo se
este não demonstra de forma explícita.

Dando voz a quem tem direito: análise dos ateliês


Todas as violências, em específico as psicológicas, provocam efeitos no
desenvolvimento dos sujeitos; no caso, o período da adolescência, em es-
pecial, traz muitos conflitos, e, consequentemente, estudantes acabam apre-
sentando problemas de adaptação e/ou de ajuste escolar, às vezes, devido
a todo o histórico sofrido na infância. Nesse sentido, evidenciam-se a seguir
alguns dizeres dos estudantes participantes da pesquisa-intervenção – com
idade relacionada à adolescência –, com a preocupação de analisar os dile-
mas que foram relatados nos ateliês.
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 109

Violências psicológicas no âmbito da família


Para Eisenberg et al. (1999), o apoio dos familiares permite à criança e ao
adolescente desenvolver atitudes equilibradas para enfrentar as circunstân-
cias do dia a dia, tanto no cognitivo como no emocional e social. Os laços
afetivos, em especial entre pais e filhos, propiciam um desenvolvimento hu-
mano mais estável, com articulações positivas que permitem ao sujeito se
ajustar em outros ambientes dos quais participa, por exemplo, a escola.
Nesse contexto, foi preocupante ouvir alguns discentes, em particular
do Ensino Fundamental (Anos Finais) – que possuem em média de 13 a 14
anos de idade –, relatarem que sofreram violências psicológicas no ambiente
familiar, como:

Minha mãe é surtada, ela grita, chora e grita... Eu puxei pra ela. As pesso-
as não refletem suas ações (aluna do Ensino Fundamental).
Eu apanho do meu irmão. Ele me persegue (aluno do Ensino Fundamental).

Como já foi dito, nem todo adolescente vive em um lar que promove
proteção ou que tenha relacionamentos saudáveis, e esses momentos são
percebidos pelos estudantes durante os exercícios dos ateliês. Eles relatam
se sentirem em conflito consigo mesmos e com os outros. No dizer do aluno
do Ensino Médio, chama a atenção a forma em que é colocado em palavras
o sofrimento de quem ouve críticas contundentes dos pais:

Os pais podem falar palavras ruins que uma pessoa carrega para o resto
da vida (aluno do Ensino Médio).

Segundo o psiquiatra Bowlby (1990), o relacionamento ou apego propor-


ciona a base para a sensação de segurança e proteção no mundo:

A característica central de meu conceito de cuidado parental é que


ambos os pais proporcionem uma base segura da qual uma criança ou
um adolescente possa fazer incursões no mundo exterior e à qual possa
retornar tendo a certeza de que será bem vindo quando chegar, que será
nutrido física e emocionalmente, confortado quando aflito, tranquilizado
quando atemorizado (BOWLBY, 1990, p. 11).

Segundo Volling e Elins (1998), a família desempenha ampla influência na


constituição de conexões afetivas, como o autoconceito ou a autoestima de
sujeitos na infância e na adolescência, isto é, os modelos que vivenciam nos
110 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

relacionamentos dentro de casa são transferidos para as interações sociais


em ocasiões posteriores.

Violências psicológicas no âmbito da escola


O ambiente familiar não é o único que influencia a vida de adolescentes,
visto que a escola também faz parte do seu desenvolvimento, principalmen-
te na obtenção de diferentes conhecimentos culturalmente constituídos. Se-
gundo Szymanski (2001), a escola, diferentemente da família, é institucional e
possui um currículo formal com objetivos, métodos, conteúdos e avaliações,
além das partes relacionadas à afetividade social. Por isso, as violências
psicológicas ocorrem de diferentes maneiras nas relações existentes, como
mostra a fala de um aluno do Ensino Médio:

Estamos inseridos em um contexto no qual existe grande valorização


monetária, em relação à escolha da profissão, e fica difícil fugir desta
lógica (aluno do Ensino Médio).

Por estar cursando a 3ª série do Ensino Médio, o aluno revela a pressão


psicológica que sofre da escola e da família para escolher uma profissão,
passar no vestibular, afirmando ser difícil sair dessa lógica capitalista, que
é vista como um padrão. Outros estudantes do Ensino Fundamental tam-
bém disseram que na escola é coerente estar inserido no padrão estipulado,
referindo-se às relações entre aluno-aluno:

Existem alguns padrões que são estabelecidos e quem está fora do pa-
drão é julgado (aluna do Ensino Fundamental).
Sua visibilidade é diferente dependendo da sua classe social (aluno do
Ensino Fundamental).

Uma ideia que apareceu constantemente entre os adolescentes é a


preocupação com um corpo bonito e condizente aos padrões de beleza.
Quando, em específico, as meninas achavam que não conseguiam ter um
corpo bonito, afirmavam: "não mereço sentir-me bem". Nesse contexto, vá-
rias se automutilam para aliviar estados emocionais insuportáveis e até mes-
mo por acreditarem no julgamento de outros adolescentes que as agridem
psicologicamente.
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 111

Quando existe comparação à beleza do outro, anula a nossa (aluno do


Ensino Fundamental).

Como vimos, para Erikson (1987), o julgamento alheio afeta muito um


adolescente, a ponto de este se modificar com relação às suas ações e até
à sua personalidade, somente para agradar o meio social. Nesse aspecto,
sente-se incapaz de manter o padrão estabelecido pelo grupo e começa a
projetar-se em outros sujeitos, pois não quer ter a sua identidade, e infeliz-
mente esta tem sido a base para perpetuar preconceitos e discriminações
existentes na escola.
Além dessas afirmações, em relação a se inserir no padrão estabelecido
– segundo as interações sociais –, uma aluna discorda e expressa uma posi-
ção contrária a esses padrões estipulados por estudantes na escola:

Não pode julgar, não é legal julgar a aparência... Nem a interior (aluna do
Ensino Fundamental).

Quando se trata de relações estabelecidas entre os profissionais da edu-


cação e os adolescentes, também se ouviu o desalento de alunos:

Somos ouvidos no ateliê, mas não na escola (aluno do Ensino Médio).


Senti liberdade e gostei, consegui me expressar [no ateliê] (aluno do
Ensino Médio).

À medida que as atividades nos ateliês foram ocorrendo, também a rela-


ção de confiança se instituiu, formando um ambiente acolhedor, sem julga-
mentos, dos grupos, e suas declarações sobre violências psicológicas foram
relatadas, pois havia a cumplicidade e a garantia do sigilo, uma conexão
de respeito aos sentimentos que estavam sendo expostos. Nem todos os
discentes conseguiram enfrentar suas tensões, confusões e ansiedades ao
falarem de si, mas os que se dispuseram aprovaram a experiência.
Da mesma forma que ocorre nas relações familiares, estabelecer rela-
ções com os adolescentes, dentro da escola, requer incentivo à autonomia
de forma proporcional, visto que os educadores não devem exigir demais
deles – instigando a baixa autoestima – nem ignorá-los, pois se sentiriam
abandonados.
Segundo Oliveira & Bastos (2000), os alunos, ao enfrentarem estresses
com as dificuldades habituais do dia a dia, precisam de auxílio, na perspectiva
112 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

psicológica e social, de adultos que estão próximos, criando laços afetivos e


de segurança.

Violências psicológicas no âmbito das relações interpessoais


Para Erik Erikson (1976), a adolescência é um período de crise que perpas-
sa pelo desenvolvimento da identidade e representa mudanças contínuas,
inclusive de experiências e conhecimentos adquiridos nos relacionamentos
com os outros. Assim, as relações interpessoais de um adolescente são de-
correntes de encorajamentos, ou não, que possibilitaram o surgimento de
sentimentos de bem-estar e domínio sobre si, ou de decadência e mal-estar.
Nesse sentido, ao ouvir os alunos nos ateliês, com referência às relações
interpessoais, alguns pontos em suas falas chamaram a atenção, como:

A pessoa abusada fica marcada e tem medo de falar (aluno do Ensino


Fundamental).
A violência psicológica não marca por fora, mas sim por dentro (aluno do
Ensino Médio).

No contexto escolar pode haver dificuldades para o desenvolvimento e as


interações saudáveis entre adolescentes, com intervenção em situações de
violências. As experiências e conhecimentos adquiridos nos relacionamen-
tos com os outros possibilitam violências em diferentes ambientes – familiar,
escolar, social etc. –, e esses cenários ocorrem durante as diversas fases do
desenvolvimento psicossocial, propiciando, muitas vezes, o desequilíbrio do
sujeito. O educador pode instituir um laço afetivo com o adolescente e/ou
jovem, ao invés de ser um agressor. Nesse sentido, Araújo e Vieira declaram:

Acredita-se que a qualidade do processo de aprendizagem passa, por


um lado, pela construção de uma relação pedagógica com base na acei-
tação e compreensão da pessoa do aluno e, por outro, pelo pressuposto
de que o aluno contém em si potencialidades para aprender e, como tal,
terá motivação para "o fazer" – o papel do professor facilitador será o de
estimular e desenvolver as potencialidades do aluno e simultaneamente
manter a motivação necessária ao seu crescimento e desenvolvimento
pessoal (ARAÚJO; VIEIRA, 2013, p. 99).
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 113

Também para Gottfredson e Gottfredson (2002), as intervenções podem


ser realizadas na escola, quando existe um ambiente amistoso, com uma
visão integral do aluno, levando em conta todas as suas complexidades.
A violência psicológica, sendo subjetiva, promove um tipo de agressão,
às vezes, difícil de ser identificado, pois até o silêncio pode se caracterizar
como violência. A escola mascara, muitas vezes, o controle que exerce sobre
os estudantes, quando: protege demais; faz ironias com os problemas afe-
tivos; ofende os sujeitos que estão fora do padrão; manipula os alunos que
não conseguem se defender; ameaça com disciplinamento etc. Ainda com
relação às relações interpessoais:

As pessoas não são do jeito que a gente quer (aluno do Ensino Médio).
Eu pratico e sofro violência psicológica (aluno do Ensino Fundamental).

Ao realizarem os exercícios nos ateliês, vários discentes perceberam


como a falta do conhecimento de si faz com que eles não enxerguem os
outros, e, portanto, tornam-se agressores e vítimas em suas relações com
violências psicológicas. Ao perceber que suas falas nem sempre são ouvidas
pelos adultos, uma aluna do Ensino Fundamental lembra-se da ausência de
conversar com um adulto e desabafa:

Às vezes quero falar, mas não tem pessoa para ouvir. Eu choro e converso
com amigas da sala ou prima (aluna do Ensino Fundamental).

Para Booth, Rubin e Rose-Krasnor (1998), os adolescentes anulam seus


laços afetivos quando não têm uma base relacional e/ou emocional com a
mãe ou com outra pessoa que tenha substituído essa figura, no período
da infância. Segundo pesquisas dos autores, essa falta de relacionamento
materno provoca uma quebra na relação com os adultos mais próximos e
pode ser substituída por outras relações interpessoais, por exemplo, com
parentes da mesma faixa etária ou amigos da escola.
Erik Erikson (1976) também indica essa importância na primeira fase psi-
cossocial, nomeada confiança básica X desconfiança básica, como já foi dito,
visto que o bebê, quando tem a expectativa e confiança da mãe, possui
um sentimento de que a vida é boa e de que os adultos podem ser confi-
áveis; em contrapartida, quando não existem esses laços, a personalidade
é constituída na perspectiva de que tudo é ruim, existindo a desconfiança.
Percebem-se essas questões nos dizeres:
114 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Às vezes a influência de outra pessoa é boa, mas também pode ser ruim
(aluno do Ensino Fundamental).
Às vezes quero falar, mas fico preso, medo de julgamento (aluno do En-
sino Fundamental).

Nesse sentido, Carl Rogers (1985), ao trazer a teoria centrada no sujeito,


defende que o aluno deve ser visto de maneira global, tendo seus sentimen-
tos e emoções valorizados e respeitados, e, para tanto, a escola (os educa-
dores) precisa mudar sua forma de se relacionar – aluno-aluno, professor-
-aluno, diretor-aluno e funcionário-aluno –, com modificações implicadas até
mesmo na questão do ensino e da aprendizagem.
No ambiente escolar, é inegável a influência do professor na vida do alu-
no, e o discente percebe a autenticidade e a autonomia intelectual de um
docente. Uma relação com aceitação incondicional – sem juízo de valor ou
críticas pessoais – possibilita essa autenticidade e congruência, no processo
de empatia, isto é, de alteridade – se colocar no lugar do outro.
Por vezes, um sujeito com problemas emocionais também comprome-
te o seu aprendizado, apresentando várias dificuldades, o que prejudica o
trabalho pedagógico na escola. Com os exercícios realizados nos ateliês,
durante a pesquisa-intervenção, os estudantes puderam utilizar a arte, como
o desenho e a pintura, para expressarem seus sentimentos, um diferencial
que rompeu barreiras emocionais e afrouxou o receio de serem julgados por
alguém da turma, resultando em uma experiência positiva.

Considerações finais
Finaliza-se esta seção retomando o seu objetivo, que foi ouvir estudantes
de Ensino Fundamental (Anos Finais) e Médio sobre violências psicológicas
ocorridas nas relações interpessoais, na escola e na família. A hipótese de
que ao obter voz ou praticar a escuta ativa os estudantes mudariam suas
perspectivas de convívio e interação social foi confirmada. Ao serem estimu-
lados a experienciar e falar nos ateliês sobre as violências psicológicas, os
alunos ouviram uns aos outros, uma perspectiva terapêutica, de quem não
sofre sozinho. Ao expressarem seus sentimentos reprimidos, bem como ao
compreenderem que estes têm nomes e podem ser compartilhados, tam-
bém puderam se responsabilizar pelas suas emoções.
Estudantes e as violências psicológicas: implicações acerca do ouvir | 115

Acredita-se que o ambiente escolar pode se tornar um local acolhedor,


em especial se: ocorrer o respeito ao outro; forem estabelecidas boas co-
nexões e sensações; houver espaço para todos se expressarem; enfim, tiver
resgate e controle do "eu" físico e emocional. A violência também ocorre
na escola, em diferentes espaços, em especial – como foi relatado pelos
estudantes – nas interações preconceituosas e discriminatórias, seja por
"brincadeiras" ou atos diretamente ofensivos, e por isso urge o preparo de
profissionais da educação para lidar com tais situações, por meio de uma
formação continuada tão importante e necessária na condução das relações
em sala de aula ou até mesmo da proposta de reformulação curricular com
inclusão dessa temática.
Finaliza-se este texto retornando à frase de Sassaki (2007), "nada sobre
nós, sem nós: da integração a inclusão". Essa expectativa de que a escola
seja cada vez mais um local de intervenções e projetos, com plena participa-
ção de estudantes, tanto individual como coletiva, é o que se espera, visto
que nada pode ser realizado em seus espaços com a ausência do grande
motivo da sua existência: o aluno.

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6

FACES DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA


EM UMA PESQUISA-INTERVENÇÃO
COM ADOLESCENTES
Rafaela Maria Rodrigues
Bianca Kapp Cardoso

Esta seção tem como objetivo discutir especificamente sobre a violência


psicológica na atuação de uma pesquisa-intervenção com jovens de uma
escola estadual, que ocorreu por meio de uma disciplina eletiva, com a in-
tenção de melhorar as convivências, principalmente as relações cotidianas,
criando espaços de reflexões e compartilhamento. Dessa forma, este texto
traz relatos e vivências das e dos estudantes – que são citados por iniciais
fictícias para proteção de suas identidades – e de docentes acerca do que
puderam aprender e ressignificar após a conclusão dos ateliês artísticos da
violência em questão.
É necessário compreender que a violência existe desde os primórdios
da civilização e se adapta de acordo com o espaço-tempo. Para Martín-Baró
(1997), a violência possui um caráter histórico. Além disso, é um fenômeno
que pode ser significado de diversas formas, pois se transforma de acordo
com a localidade, gênero, grupos, culturas e especificidades.
Abramovay (2006, p. 53) aponta que "apresentar um conceito de violên-
cia requer certa cautela, isso porque ela é, inegavelmente, algo dinâmico
e mutável". Dessa forma, para se analisar a violência é imprescindível que
se considerem o contexto e os fatores que se relacionam diretamente. A
Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a violência como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra


si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (ORGANI-
ZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2002, p. 4).
118 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A partir dessa definição ampla, entende-se que a natureza dos atos


violentos pode ser caracterizada por violência física, verbal, simbólica e
psicológica.
Há um consenso entre pesquisadores da área de que não é possível es-
tabelecer uma só definição para o que é violência escolar, entretanto, Abra-
movay (2006) pontua alguns aspectos significativos para a compreensão da
violência no âmbito educacional, como: a prática educacional; questões de
gênero; relações raciais e étnicas; situações familiares; influências dos meios
de comunicação; o espaço social em que as escolas estão inseridas; as re-
gras e as disciplinas dos projetos pedagógicos propostos pela escola e seu
sistema de punições; e a relação entre docentes e estudantes.

Pesquisa-intervenção em uma escola estadual


Diante das especificidades e nuances do que se concebe por violência
e violência escolar, diversos autores têm sugerido que, para compreender
este fenômeno e propor ações combatentes à violência no contexto escolar,
é necessário que se estude a concepção que os atores escolares possuem
acerca da violência escolar (DEBARBIEUX, 2001). A pesquisa-intervenção de
que trata este livro, de modo geral, tomou como base esta perspectiva.
Segundo Rocha e Aguiar (2003), a pesquisa-intervenção visa à transfor-
mação como produto da mudança da relação entre o sujeito e objeto. Para
Serrano-Garcia e Collazo (1992), os processos investigativos e intervencionais
são simultâneos, pois, durante o processo de pesquisa, "desde o momento
em que uma pessoa começa a fazer indagações, altera, de forma mínima
ou máxima o ambiente e as pessoas que a rodeiam" (SERRANO-GARCIA;
COLLAZO, 1992, p. 218). Dos norteadores desse modelo de pesquisa,
destacam-se a ruptura do paradigma da neutralidade do investigador e a
produção concomitante do sujeito e do objeto.
Dessa maneira, a atuação na escola em questão buscou trabalhar com as
diversas formas pelas quais a violência se manifesta, por meio de uma disci-
plina eletiva denominada "Compartilhando em Ateliês: (com)vivências". Ela
foi ofertada regularmente às sextas-feiras, com duração de 1 hora e 25 minu-
tos, relacionava-se aos eixos de Ciências Humanas e Linguagens e Códigos.
Em busca de trabalhar os contornos e os desdobramentos da violência,
promoveram-se, nesta disciplina, ateliês artísticos e específicos para dialo-
gar sobre cada vertente de violência. O ateliê da violência psicológica, que
Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com adolescentes | 119

será explicitado mais adiante, foi denominado "Nós e os corpos" e propôs


vivências com artes plásticas, como pintura, colagem e desenho.
A análise dos dados foi realizada por meio de gravações autorizadas de
áudios durante a aplicação dos ateliês e do registro fotográfico dos mate-
riais produzidos pelos estudantes. Além disso, as vivências e os resultados
dos ateliês foram compartilhados, discutidos e estudados pelos alunos de
graduação e pós-graduação do Gepesc que estavam no ateliê referente à
violência psicológica, pois a partir de diferentes perspectivas puderam com-
preender melhor tanto o próprio processo de aprendizagem quanto o dos
estudantes que participaram da eletiva.

A violência psicológica e seus impactos no contexto escolar


A violência psicológica é caracterizada como toda ação que causa dano
psicológico à saúde, autoestima e ao desenvolvimento do indivíduo. Pode
ocorrer entre os jovens por meio do bullying, cyberbullying e está presente
nas ações de homofobia, racismo e machismo. Engloba a exclusão, intimi-
dação, exploração, insulto, humilhação, controle, perseguição e privação,
causando prejuízo à saúde psicológica, dano emocional e deterioração da
autoestima da vítima. Ademais, dentre as diversas violências, é uma das mais
difíceis de ser identificada, fazendo com que as situações perdurem por mui-
to tempo e se agravem (BRASIL, 2001).
A existência da violência no cenário da escola, muitas vezes, pode ser
associada apenas a danos físicos e visíveis, entretanto, os aspectos psicoló-
gicos são o segundo maior responsável pelo aumento da violência, sendo
considerada a mais frequente entre os jovens (NEGRÃO; GUIMARÃES, 2006).
De acordo com Piva e Sayad (2000), a violência psicológica pode an-
teceder a agressão física presente no ambiente escolar, isto porque fre-
quentemente a violência psicológica acontece de forma sutil e subjetiva,
passando-se por um ato natural que esconde sua essência, dificultando sua
identificação. Dessa forma, a violência psicológica acaba sendo negligen-
ciada até mesmo por quem a sofre, por não conseguir perceber claramente
seus efeitos.
A invisibilidade do tema da violência psicológica nas instituições esco-
lares contribui para a naturalização deste fenômeno nas relações que per-
meiam a escola, o que resulta em um ambiente pouco seguro e reprodutor
120 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

de violências, enquanto deveria ser um espaço acolhedor para a reflexão e


orientação, visando o bem-estar e a saúde de todos os agentes escolares.
Gagné (2001) relata que o impacto da violência psicológica provavel-
mente leva o estudante a sofrer grande dificuldade no aspecto social e de
escolarização durante seu desenvolvimento, uma vez que esses atos infligem
dor emocional como medo e angústia. De acordo com dados da OMS (2019),
a violência contra crianças e adolescentes causa mal desenvolvimento do
cérebro e do sistema nervoso, maior propensão ao consumo de drogas, iní-
cio prematuro da vida sexual, pode levar a vítima a desencadear depressão,
ansiedade e até suicídio. Além disso, há grandes chances de as vítimas se
tornarem perpetradoras de violência, como sequela do que passaram.
Segundo Kairys et al. (2002), a American Academy of Pediatrics (2002)
acrescenta como efeitos da violência: prejuízos nos pensamentos intrapes-
soais; prejuízos na saúde emocional; instabilidade emocional; problemas
em controlar impulso e raiva; transtorno alimentar; comportamentos antis-
sociais; baixa competência social; baixa simpatia e empatia pelos outros;
delinquência e criminalidade; baixa realização acadêmica; prejuízo moral e
na saúde física.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2017) pontua que,
se as tendências atuais permanecerem, quase 2 milhões de crianças e ado-
lescentes serão mortos por violência até 2030. Em vista disso, é preciso, além
de pesquisas acadêmicas e científicas – que entendam e deem indicativos
de dados para o desenvolvimento de prevenção de violência –, o trabalho
de campo com crianças e adolescentes, para que estes saibam identificar as
violências e ter informações da gravidade destas.

Considerando o enraizamento das violências no cotidiano da escola,


afetando a convivência e as relações sociais, é necessário pensar em uma
atuação voltada para os direitos humanos, de modo a possibilitar que a
escola repense seus problemas estruturais, tais como a repetência, a eva-
são, a má qualidade do ensino e, até mesmo, o aumento das violências
nas escolas (ABRAMOVAY, 2006, p. 375).

Nesse sentido, os ateliês da violência psicológica buscaram, antes de


tudo, praticar a escuta do grupo em relação às violências e, dessa forma,
incentivá-los a ouvir o outro, para formar uma rede de apoio que fosse aco-
lhedora para o trabalho durante os ateliês. Em vista disso, exploramos de
início a realidade e a compreensão atual das e dos adolescentes sobre o
Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com adolescentes | 121

que era violência, como ela acontece dentro e fora da escola e demandas
particulares que foram surgindo. No decorrer dos ateliês, conceituamos a
violência psicológica e conversamos sobre ela por meio da arte.

O desenvolvimento dos ateliês artísticos1


A sequência de ateliês voltados para a discussão sobre violência psico-
lógica foi nomeada de "Nós e os corpos", pois tinha a intenção de cativar o
olhar sensível para si e para o outro, considerando seu espaço e sua indivi-
dualidade. Sendo assim, o desenvolvimento dos ateliês foi conduzido pelos
alunos de graduação e pós-graduação do Gepesc que estavam no ateliê
referente à violência psicológica, de maneira a priorizar a manifestação da
palavra de cada estudante da eletiva, propiciando um espaço acolhedor e
respeitoso.
A violência psicológica possuía três ateliês distintos. O primeiro deles,
"Marcado", foi desenvolvido para iniciar os diálogos acerca de violência em
seus conceitos amplos e posteriormente sobre a violência psicológica. O
nome "Marcado" fazia alusão às marcas que se podiam deixar com as tintas,
da mesma maneira que essas marcas se relacionavam aos danos, visíveis ou
não, deixados por esta violência em questão.
A atividade artística deste ateliê envolveu materiais como tinta guache,
água, tela, pincéis e outros materiais externos (escolhidos pelos estudantes,
como folhas, flores e gravetos), de modo que cada aluno podia experienciar
trabalhar com a tinta e objetos de maneiras não convencionais, sem direcio-
namentos ou restrições. Além disso, possibilitou-se aos alunos experimentar
o descontrole da tinta na superfície da tela, observando como ela podia ser
manipulada por eles e como as ações podiam mudar o curso da tinta no
papel.
Na medida em que o grupo se envolvia com o exercício manual, estabe-
leceram-se diálogos sobre a violência psicológica, norteados com perguntas
como: O que vocês entendem por violência psicológica? Como definem a
violência psicológica? É possível dar exemplos de violência psicológica na
escola? Posteriormente, os facilitadores discorreram sobre a violência de
modo geral e, especificamente, a psicológica, apresentando que não há um

1 Texto com pequenas atualizações para publicação neste livro, já publicado em Rodri-
gues (2019).
122 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

consenso entre pesquisadores acerca de sua definição e que ela pode ser
concebida de forma diferente para cada um, pois é subjetiva.
Ademais, propôs-se refletir sobre como é difícil controlar o que senti-
mos, pois as relações se estabelecem em diversas direções e, como as mar-
cas da tinta, são influenciadas pelo exterior, por pessoas, por outras relações
e situações, fazendo, desta forma, uma analogia à atividade artística em
questão. Da mesma maneira que a água alimenta e guia a tinta pelo papel,
nossas relações podem mudar de acordo com a forma como simbolizamos e
como somos marcados pelas violências psicológicas. Por fim, em discussão,
questionou-se sobre a libertação das marcas da violência, de forma a apren-
der com as experiências, ressignificando-as.
Em sequência, foi realizado o ateliê "Eu e eu mesmo", que tinha como
objetivo provocar reflexões em conjunto com o grupo, mas principalmente
motivar análises individuais, como ilustra o nome deste ateliê. Utilizaram-se
as imagens do artista Susano Correia2, que retratam de forma impactante e
incômoda frases e temas do cotidiano, reafirmando a possibilidade de ela-
boração na expressão de sentimentos e pensamentos por meio da arte. Por
meio da apreciação das ilustrações de Susano, propôs-se que os estudantes
refletissem sobre os sentimentos elucidados, identificando-se ou não com
eles.
Para isso, as ilustrações foram expostas por meio de projetor, e assim o
grupo pôde observá-las e concomitantemente compartilhar seus sentimen-
tos em relação a cada uma, bem como expressar a primeira palavra que lhes
viesse à mente, falar se gostavam ou não, se achavam agradável, bonita ou
feia, criar hipóteses para o que o artista buscava representar e nomear cada
imagem (o tempo de exposição de cada imagem dependeu do quanto o
grupo interagiu com elas).
Por derradeiro, a proposta foi que os discentes utilizassem carvão e pa-
pel vergê para fazer um autorretrato – não necessariamente de forma con-
vencional, mas que os representasse – e buscassem expressar sentimentos
cotidianos que sentissem vontade de expor ou que fossem marcantes para
eles em determinado ponto de suas vidas, e após o desenho, eles escolhe-
ram um nome para seu autorretrato.
A finalização do exercício consistiu em o grupo compartilhar a ilustra-
ção, e neste momento também houve o estabelecimento de perguntas

2 Artista de Florianópolis formado em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa


Catarina. Mais informações em: <https://www.susanocorreia.com.br/>.
Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com adolescentes | 123

norteadoras, como: Vocês acham que o exercício de hoje possui alguma


relação com a violência psicológica? Qual? Vocês expressam, verbalmente
ou não, o que os incomoda? E o que os agrada? Sentem que possuem um
espaço seguro e têm apoio para se expressar, seja na escola, em casa ou
entre os amigos? Possuem meios de escape para extravasar e externalizar os
sentimentos? Sim: quais? Não: acham importante ter ou já tentaram alguma
forma?
O ateliê que encerrou o ciclo da violência psicológica foi intitulado
"Olhos sem regras" e objetivava, por meio da produção fotográfica, incitar
uma discussão ampla acerca dessa violência, com foco no âmbito social. A
proposta era que os estudantes experienciassem diferentes possibilidades
de fotografar e refletissem sobre os padrões socialmente impostos, bem
como sobre as formas que estes reverberam em cada indivíduo.
Inicialmente, para fomentar a discussão, uma questão foi posta para os
estudantes: Por que escolhemos determinados ângulos, o que escolhemos
fotografar e o que deixamos de fora do enquadramento? Em seguida, o gru-
po foi subdividido em três, de maneira que cada um foi acompanhado por
uma facilitadora, que disponibilizou seu celular para que cada integrante pro-
duzisse uma fotografia. Esta precisava ser feita sem que eles olhassem para
o visor do celular e sem que o aparelho estivesse na altura dos olhos, para
que pudessem experimentar novas óticas. Ao final desse momento, o grupo
todo se reuniu novamente para ver e discutir sobre as fotos produzidas.
Diante de um contexto que prioriza, busca e perpetua a padronização de
mentes e corpos, o exercício visou problematizar o que consideramos nor-
mal e anormal, questionando como a sociedade impõe padrões de compor-
tamentos e de pensar, na medida em que se vislumbra a predominância da
suposta normalidade. Norteando a finalização do ateliê, foram pontuados
questionamentos como: O padrão é imposto por quem? Quantas formas
de fazer e ser existem? Há diferença entre as fotografias feitas no ateliê e as
que vocês fazem habitualmente? Se sim, é possível fazer uma relação com a
padronização produzida e vivenciada pela nossa sociedade?

Resultados e ressignificações de jovens e docentes


O diálogo apresenta-se como um importante instrumento de interação
social e de ensino e aprendizagem, e sendo assim, em todos os momentos,
utilizou-se a Comunicação Não Violenta (CNV), conceito desenvolvido pelo
124 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

psicólogo Marshall Rosenberg (2006), que consiste na comunicação pacífica


e empática com o outro, priorizando as falas, a autonomia e a escuta, bem
como seus desejos e sentimentos.
De acordo com Guimarães (2011), é em uma prática dialógica que o edu-
cando confirma a importância de sua palavra e da sua presença. No papel de
facilitadores, apenas há a mediação e condução para as vivências, e em vista
disto os ateliês, em sua totalidade, ocorreram no espaço externo à sala de
aula, como pátio e jardins, pois se entende que, na concepção dos discentes,
permanecer constantemente em sala de aula lhes causa uma sensação de
prisão, onde não há liberdade para ocupar outros espaços que têm vontade.
Articulando entre as vertentes de violência, este projeto de extensão
construiu-se de forma interdisciplinar, permeando conceitos de Ciências Hu-
manas, Linguagens e Códigos, fortalecendo e ampliando o aprendizado em
outras áreas. Entre as dez competências gerais da Educação Básica estabe-
lecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a quarta competência
trata da importância de utilizar diferentes linguagens, bem como conheci-
mentos das linguagens artísticas para se expressar e partilhar experiências,
ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem
ao entendimento mútuo. Nesse sentido, a diretora Alexsandra Gonçalves
Zago pontua, em entrevista cedida a Profa. Dra. Maria Cecília Luiz, sobre o
papel desta eletiva na escola:

Dentro da nossa proposta pedagógica ela tem um... a gente fala um


grande peso, estabelecer uma parceria com profissionais que têm um
grande conhecimento acerca desse tema. O Estado de São Paulo tra-
balha muito a questão do bullying, a questão da violência, incivilidade,
tipos de violência. Então a parceria com a UFSCar trouxe para nossa
escola a ampliação e o aprofundamento do nosso currículo, porque ela
não só associa essa parte interdimensional, mas também aprofunda ou-
tros conhecimentos do nosso currículo. Então é muito importante que
isso aconteça aqui e que os alunos participem de forma ativa (trecho da
entrevista com a diretora Alexsandra Gonçalves Zago, em 2019).

Para Candau (2001), do ponto de vista dos professores, a violência é um


fenômeno que "se origina na sociedade e se reflete na escola, seu dinamis-
mo é de fora para dentro" (CANDAU, 2001, p. 142). Desse modo, segundo a
autora, os docentes, em sua maioria, têm dificuldade em reconhecer e no-
mear as violências ocorridas no ambiente escolar ou mesmo em conceber a
cultura escolar como fonte de violência.
Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com adolescentes | 125

Para a professora Teresa Brito Gigante, também entrevistada pela Profa.


Dra. Maria Cecília Luiz, em 2019, a eletiva "ajuda nessa questão de trabalhar
esses tipos de violência que às vezes a gente nem percebia como sendo
uma violência". Em vista disso, este projeto de extensão pôde promover o
conhecimento teórico juntamente ao reconhecimento da prática da violên-
cia e seus desdobramentos, pois "a violência apresenta múltiplas formas e
[...] entre elas podem dar-se diferenças muito importantes" (MARTÍN-BARÓ,
1997, p. 370). Nessa perspectiva, a professora Ana Lígia Criado Suman, em
entrevista com a Profa. Dra. Maria Cecília Luiz, pontua que:

Nós sabemos que a realidade da escola pública é cheia de conflitos, de


atritos, então a eletiva vem no primeiro momento trazer todo esse apara-
to teórico de como nomear as violências ocorridas neste espaço, e, mais
do que isso, é provocar um olhar sensível para a individualidade do aluno
num primeiro momento e os espaços sociais em que ele circula (trecho
da entrevista com a professora Ana Lígia Criado Suman, em 2019).

No ouvir do outro, os sujeitos tornam-se espelhos que refletem as indivi-


dualidades que estão em constante formação, e desta forma se constroem o
respeito e a valorização da opinião do outro (ZANINI; LEITE apud KONRATH,
2013). A sensibilidade de olhar, ouvir e acolher o colega num momento de
compartilhamento de experiências ou de sentimentos estabelece uma rede
de apoio e empatia, que faz com que cada aluno se sinta reconhecido e
amparado.
Além disso, a eletiva estreitou os laços entre os grupos, estabelecendo
novas relações de empatia e amizade, mudando beneficamente a relação do
sujeito com a escola e os demais ambientes em que está inserido. Expõe J.
do 2º ano do Ensino Fundamental: "Eu descobri várias coisas nessa eletiva,
principalmente palavras diferentes, costumes e várias coisas que modifica-
ram cada vez mais minha vida, aprendemos sobre alteridade" (Relato do
aluno J.).
De acordo com os estudantes, inúmeras são as violências presentes no
cotidiano escolar, e com o auxílio da eletiva foram capazes de identificar as
violências psicológicas até mesmo nos contextos em que antes passavam
despercebidas. Tais concepções condizem com a própria natureza do fenô-
meno, que é mutável e polissêmico. Nas palavras de G., do 8º ano do Ensino
Fundamental: "Essa eletiva mudou bastante meu jeito de pensar e agir e
está me ajudando de certa forma. Depois que eu entrei nela fiz mais amigos,
126 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

fiquei mais amigável e pude diferenciar o que é bullying e o que é brincar"


(Relato do aluno G.).
Na realização do primeiro ateliê, "Marcado", os discentes relataram a
sensação de liberdade proporcionada ao experimentar os materiais artísti-
cos e os espaços da escola de forma diferente da convencional, que lhes é
imposta. Discutimos também sobre como o descontrole da tinta os incomo-
dava e ao mesmo tempo provocava uma sensação relaxante, por poder errar
e refazer, sem a necessidade de atingir um objetivo de exercício considerado
correto.
De todos os ateliês, o que mais sensibilizou reflexões internas e pesso-
ais foi o "Eu e eu mesmo". As imagens de Susano Correia transmitiram, na
percepção dos estudantes, sentimentos de angústia, tristeza, solidão, e as-
sim deduziram que Suzano estava passando por momentos difíceis quando
desenhou algumas das ilustrações. Houve alguns integrantes do grupo que
pediram para que mostrássemos imagens "mais agradáveis", pois aquelas
se mostravam muito "tocantes". Nesse momento, as conversas se guiaram
para questionamentos acerca de por que é difícil falar e lidar com os senti-
mentos e, sendo assim, sobre como, sem sabermos o que fazer, acabamos
nos fechando e não comunicando o que nos aflige. Em relatos, os estudantes
colocaram que diversas vezes não são ouvidos ou não recebem a atenção
que desejam para falar de seus problemas internos no ambiente escolar e
que, por isso, preferem guardar o que sentem.
Após a observação das imagens deste ateliê, os discentes produziram
autorretratos, pois, de acordo com Almeida (2003), o desenho mostra-se
como uma alternativa para o aluno "dizer" coisas e representar elementos da
realidade que observam, de modo a ampliar seu domínio e poder influenciar
o ambiente em que estão inseridos. Posteriormente, no compartilhamento
do desenho feito com o grupo, foi visível a mudança na maneira de falarem
sobre os sentimentos, em comparação com o início desta atividade: agora
as palavras eram pronunciadas de forma mais calma e expressiva. Depois da
reflexão artística no papel, pontuaram que olhar para si era um movimento
positivo. De acordo com Barbosa (1991), é por meio de imagens e uso da arte
que a criança pode desenvolver a capacidade de formular hipóteses, julgar,
justificar e contextualizar.
No ateliê "Olhos sem regras", os grupos discutiram sobre como o que é
considerado bonito se relaciona com os padrões postos e exigidos pela so-
ciedade e também sobre como eles mesmos os reproduzem – principalmente
Faces da violência psicológica em uma pesquisa-intervenção com adolescentes | 127

nas redes sociais – de maneira automática. Os estudantes destacaram o fato


de os padrões serem diferenciados por gênero e como isso se relaciona a
outras questões que permeiam nossa sociedade, como a sexualização de
corpos femininos e a obrigatoriedade de homens carregarem uma postura
que exale masculinidade, aspectos que se fazem evidentes na escolha de
poses para fotos, por exemplo. Tudo se relaciona com o que é tido como
aceitável, dentro do padrão e "normal" e o que é considerado "anormal".
Em entrevista, G. do 3º ano do Ensino Médio disse: "Essa eletiva me
ajuda a ver, a fazer coisas que eu adoro. Tem vezes que é pesado? É, mas
vale muito a pena. Pesado porque tem vezes que toca nos sentimentos das
pessoas e as pessoas choram" (Relato do aluno G.). Segundo Murray (1967, p.
80), as emoções são "poderosas reações que exercem efeitos motivadores
sobre o comportamento. As emoções são reações fisiológicas e psicológicas
que influem na percepção, aprendizagem e desempenho". Rosenberg (2006)
coloca que a exposição dos sentimentos nos humaniza diante do outro,
pois expomos nossa vulnerabilidade e estabelecemos uma conexão emo-
cional que pode ser de grande ajuda na resolução de conflitos. Em virtude
disso, ressalta-se a necessidade de a escola atentar-se para os sentimen-
tos dos estudantes, devido a sua importância e influência no processo de
aprendizagem.

Algumas considerações
Durante o desenvolvimento dos ateliês e conversas sobre a violência
psicológica, houve diversos compartilhamentos em grupo sobre vivências
pessoais e sentimentos, que se manifestaram a fim estabelecer um terreno
frutífero para uma troca de experiências de forma empática e colaborativa.
Pontua-se a necessidade da valorização da individualidade de cada aluno
no ambiente escolar e de viabilizar espaços seguros e acolhedores para o
diálogo, de forma a estimar os sentimentos e as relações sociais e interpes-
soais, observando que contextos externos aos pedagógicos influenciam no
processo de formação dos educandos.
Há mais: é preciso atentar-se para o desenvolvimento da cultura da vio-
lência dentro da escola, "que se alastra e favorece todo um processo de
banalização e naturalização de diferentes formas de violência" (CANDAU,
2001, p. 146). A maneira com que esse fenômeno se manifesta aponta para
a ausência do diálogo nas relações, acompanhada da falta de criticidade
128 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

e espaço para os sentimentos, por quem vivencia ou assiste à violência. É


fundamental ouvir e compreender o que está sendo dito na linguagem que
se manifesta por meio da violência (OLIVEIRA; MARTINS, 2007).
Segundo Sposito (1998), a violência escolar expressa aspectos epidê-
micos de processos de natureza mais ampla, ainda insuficientemente co-
nhecidos, que requerem investigação. Investigar a concepção dos agentes
educacionais é indispensável para entender como ocorre a naturalização e
banalização da violência neste contexto, e a arte mostra-se como um instru-
mento indispensável para esse processo.
Por derradeiro, este projeto de extensão se manteve no intuito de rom-
per com a cultura violenta posta no contexto escolar, dando luz à autono-
mia dos jovens, às suas falas e sentimentos, estabelecendo em união novas
formas de linguagem e expressões, novos mecanismos de comunicação,
fortalecendo o trabalho em equipe e as relações pedagógicas e, por fim,
considerando a educação como um processo de formação humana que vai
além dos conteúdos formais.

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PARTE II
PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS:
CONSIDERAÇÕES E A PRESENÇA DA ARTE
7

VIOLÊNCIAS, CONFLITOS E
INDISCIPLINAS: CONTEXTOS SOCIAIS
E ESCOLARES
Rafaela Marchetti

Violência é um fenômeno presente em nossa sociedade que interfere


nas relações que se estabelecem entre os sujeitos. Cada sociedade define
violência segundo seus critérios de valores, leis, normas, religião, tradição,
história e outros fatores. Assim, as definições de violência envolvem variadas
expressões e fenômenos, com padrões sociais diversos. Tais significados
estão constantemente relacionados a uma forma de força ou potência, que
agride algo ou alguém.
Esta seção traz como proposta elencar referenciais teóricos que emba-
sem a discussão sobre o significado de diferentes tipos de violências nos
contextos sociais e na escola, além de abordar, em específico, a violência
simbólica (BOURDIEU, 2007). Para a produção deste texto foram utilizados
levantamentos bibliográficos da minha tese de doutorado, desenvolvida sob
orientação da Profa. Dra. Maria Cecília Luiz, docente do Programa de Pós-
-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/
UFSCar). Esclarece-se que as violências, os conflitos e as indisciplinas, nesta
seção, podem aparecer explicitados de maneira fragmentada, mas isso ocor-
re apenas para compreendê-los melhor, pois esses fenômenos acontecem
concomitantemente e possuem grande complexidade nas relações sociais,
e os sujeitos, em geral, vivenciam essas situações em sociedade, no ambien-
te escolar, no local em que vivem (familiares, amigos etc.), entre outros.
As situações de conflito fazem parte da vida cotidiana e, segundo Chris-
pino (2004, p. 46), "elas podem ter origens nas diferenças de interesse, dese-
jos e aspirações dos indivíduos". Não há uma noção única do que é certo ou
errado, mas de posições diferentes que são defendidas segundo o ponto de
vista de cada um. A disciplina e a indisciplina – devido aos relacionamentos
134 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

existentes – estão, prioritariamente, relacionadas ao contexto escolar e po-


dem variar de acordo com as percepções de cada sujeito. Segundo Ratto
(2004), as várias disciplinas em especial tratam de técnicas que direcionam
a vida e o corpo e sofrem mudanças de acordo com as instituições sociais.
Para a autora, a escola que produz e persegue constantemente a disciplina
acaba por produzir constantemente a indisciplina. Pensar a indisciplina como
o rompimento de certos comportamentos socialmente aceitos e estabele-
cidos pela escola remete a refletir também sobre a violência, termo este tão
associado à indisciplina.
Muitas vezes, professores, pais, equipe gestora e os próprios alunos sen-
tem dificuldades em lidar com tais fenômenos, pois estes são compreendi-
dos de diferentes maneiras dentro do contexto escolar, e, consequentemen-
te, as medidas adotadas variam de acordo com cada contexto. Ressalta-se
que esta realidade de indisciplina no cotidiano escolar faz parte não só das
escolas no Brasil, mas também de outros países.

Violências nos contextos e relações sociais


Atualmente, existem pesquisas que denominam diversos tipos de vio-
lência, que podem se manifestar em diferentes espaços, privados e públi-
cos, inclusive na escola. Compreender a violência e suas variações em uma
perspectiva que vá além de uma historicidade que apresenta fatos históricos
acontecidos em uma linearidade é essencial para entender a multiplicidade
de acontecimentos que fizeram emergir diferentes maneiras de compreender
a violência em nossa sociedade. A violência pode ter diversas manifestações
que se apresentam em diferentes locais, como a escola, família, trabalho,
entre outros. Para Maffesoli (1987), a violência possui diversos significados,
devido à socialização e aos acordos estabelecidos entre os indivíduos. Na
perspectiva do autor, a violência é traduzida como uma força que encontra
seu lugar no dinamismo social e é fruto da instabilidade presente no relacio-
namento humano.
Segundo Bauman (2003), a vida em sociedade, por mais que seja orienta-
da por um ordenamento jurídico ou valores morais – com o objetivo de esta-
belecer limites para a vontade individual em contraste com uma convivência
harmônica coletiva –, está constituída por sujeitos que, em ações eventuais
ou não, produzem atos que podem ser classificados como violentos.
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 135

Segundo Gullo (1998, p. 105), "a violência, considerada como um fenô-


meno social, é analisada como um filtro que permite esclarecer certos aspec-
tos que denotam características do grupo social e revela o seu significado no
contexto social". Assim, considera-se que as violências acontecem o tempo
todo na sociedade, porém, possuem suas singularidades e seus modos es-
pecíficos de manifestação.
Para Tavares dos Santos (2002), as possíveis causas da violência social
podem ser classificadas em cinco grupos: a violência criminal, compreendida
como contra a propriedade, patrimônio e contra a pessoa (mulher, crian-
ça, jovem, adulto); a violência micropolítica; a violência das instituições de
vigilância; a violência no campo contra as populações indígenas e/ou nas
relações de trabalho; e a violência ecológica.
O autor afirma que o aumento dos processos de exclusão social colabo-
rou para aumentar práticas violentas, como uma norma socialmente aceita
em determinados grupos sociais para a resolução dos seus conflitos. O au-
tor também fez pesquisas no intuito de compreender as diversas formas de
violência, com o objetivo de verificar, no exercício de cada relação de poder
existente nas relações sociais, as produções de violências.

A ideia de força, ou de coerção, supõe um dano que se produz em outro


indivíduo ou grupo social, seja pertencente a uma classe ou categoria
social, a um gênero ou a uma etnia, a um grupo etário ou cultural. For-
ça, coerção e dano, em relação ao outro, enquanto um ato de excesso
presente nas relações de poder – tanto nas estratégias de dominação
do poder soberano quanto nas redes de micropoderes entre os grupos
sociais – caracteriza a violência social contemporânea (TAVARES DOS
SANTOS, 2002, p. 17).

Também há pesquisas sobre a violência com perspectivas mais amplas,


como a de Wacquant (1999) sobre a criminalização da pobreza, descrita
como uma forma de minimizar as responsabilidades do Estado em relação
às questões sociais, econômicas, da segurança, transferindo para o sujeito
a responsabilidade de obter expectativas sociais sem recursos. O autor re-
alizou pesquisas nos Estados Unidos e França – e mostrou em seus estudos
certa tendência em nomear as classes menos favorecidas como uma camada
de sujeitos despossuídos, caracterizando sua situação como a criminalização
da pobreza.
Segundo Costa (1999), tais atos não eram somente praticados pelos ditos
"pobres" e "excluídos", mas também por outros sujeitos que aparentemente
136 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

não teriam motivos para tal. Observava-se que a violência na sociedade mo-
derna, em destaque nas ultimas décadas, teria se reconfigurado em suas
manifestações.
Segundo Dadoun (1998), a violência na sociedade possui diversas for-
mas, sendo elas: física, institucional, intrafamiliar, patrimonial, psicológica,
sexual e simbólica. A violência física trata-se de uma ação ou até mesmo uma
omissão que coloque em risco a integridade física de um ou mais sujeitos.
No que se refere ao aspecto institucional, são as violências simbólicas que
são manifestadas por meio das desigualdades de gênero, étnico-raciais,
econômicas, e tais desigualdades são institucionalizadas nas mais diferentes
organizações – tanto públicas como privadas –, presentes em diversos gru-
pos sociais. A violência intrafamiliar ocorre no âmbito familiar e, geralmente,
é praticada por um membro da família, tendo como exemplos o abuso físico,
sexual e psicológico, a negligência e o abandono. A violência moral pode
ser entendida como ato de difamação, calúnia e injúria entre os sujeitos. A
patrimonial pode ser dano, perda, subtração, destruição de objetos, docu-
mentos, bens e valores. A violência psicológica refere-se a uma ação ou até
mesmo omissão com o objetivo de humilhar ou controlar ações, comporta-
mentos, de outro sujeito, por meio de: intimidação, manipulação, ameaça di-
reta ou indireta, isolamento ou qualquer outra atitude que implique danos à
saúde psicológica ou ao desenvolvimento pessoal do indivíduo. A violência
sexual condiz com uma ação que obriga uma pessoa a manter contato físico
involuntário por meio de coação, anulando a vontade do indivíduo.
No contexto brasileiro, Adorno (2002) mostra que, na sociedade como
um todo, sentimentos como de insegurança e medo têm aumentado, e,
além disso, as estatísticas oficiais sobre a criminalidade apontam que – a
partir de 1970 – houve crescimento de todas as categorias de delito e crimes,
como homicídios, roubos, sequestro, estupro etc., com indícios de que há
mudanças nos padrões de criminalidade e até mesmo nos perfis das pessoas
envolvidas nos atos delinquentes. Em geral, no país, o grande alvo dessas
mortes são adolescentes e adultos de classes populares urbanas. Na região
metropolitana de São Paulo, por exemplo, há maior ocorrência de registros
de mortes violentas nos bairros que constituem a periferia urbana, onde as
condições sociais são mais precárias.
Dados elaborados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) sobre a violência no Brasil mostram índices e pesquisas realizadas
a fim de fornecer subsídios às ações governamentais para a formulação e
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 137

reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento. O


documento foi reunido com base nos dados de 2017 do Sistema de Infor-
mações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS). A publicação
mostra a escalada do aumento da violência no Brasil a partir de 1980, assim
como as ocorrências nos estados federativos, com evidências nos diversos
tipos de violência. O atlas mostra o índice de 65.602 homicídios em 2017,
considerado o maior índice da história do país, e o número de 35.783 de
jovens assassinados em 2017. É evidente o crescimento da violência em suas
diversas formas e aparições contra mulheres, negros e jovens.
Adorno (2002) ressalta que a desigualdade social é uma das origens das
estruturas da violência, criando a segregação social dentro do próprio es-
paço urbano. Os indicadores revelam a existência de mortes violentas nos
bairros da periferia urbana, onde as condições de vida são mais precárias,
e os índices de vítimas de homicídio, nestes locais, são significativos (bem
maiores) se comparado às regiões tidas como centrais ou que possuem me-
lhor infraestrutura.
Ainda segundo Adorno (2002), a violência tornou-se um problema so-
cial, e pesquisas realizadas sobre a temática estão sendo realizadas cada vez
mais. Para o autor, essas investigações podem ser agrupadas em três gran-
des categorias. A primeira refere-se às mudanças ocorridas na sociedade
e nos padrões considerados convencionais de delinquência e violência. As
mudanças que ocorreram na sociedade em relação aos meios de produção,
concentração industrial e tecnológica e utilização da força de trabalho pro-
moveram alterações nas relações entre os sujeitos com o próprio Estado,
propiciando conflitos sociais, como também diferentes formas de resolução.
A segunda categoria engloba a violência e a desigualdade social, isto é,
a associação entre esses dois fatores. Não há como negar que há divergên-
cias na distribuição das rendas financeiras na sociedade brasileira, o que,
consequentemente, influencia a qualidade de vida coletiva, principalmente
em bairros periféricos, onde a violência eclode de maneira mais intensa.

no município de São Paulo, a maior concentração de homicídios estava


associada ao congestionamento habitacional, fenômeno característico
dos bairros onde habitam preferencialmente trabalhadores urbanos de
baixa renda. Tudo isso parece indicar, nesses bairros, maior predisposição
para desfechos fatais em conflitos sociais, interpessoais e intersubjetivos
(ADORNO, 2002, p. 3).
138 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A terceira categoria é referente à crise no sistema de justiça criminal.


Existem estudos que admitem a precariedade do sistema criminal do país,
como as agências policiais, o ministério público, os tribunais de justiça e o
sistema penitenciário, de forma que tais instâncias não conseguiram acom-
panhar as mudanças sociais, com o aumento de crimes e violências, e apenas
continuaram a proceder da mesma maneira.
Para Adorno (2002), essa situação pode ser constatada pelas dificulda-
des – por parte desses poderes públicos – no enfrentamento das suas tare-
fas constitucionais de conter a violência, como as rebeliões em presídios, ou
de manter a ordem nas grandes cidades, de modo que prevalecem as regras
do narcotráfico.
Evidencia-se que todas essas formas de violências sociais acabam re-
fletindo no contexto escolar e até mesmo nas relações dentro do seu es-
paço: alunos/alunos; discentes/docentes; equipe gestora/docentes; equipe
gestora/discentes etc. Por isso, o próximo tópico abordará as violências, os
conflitos e a indisciplina no ambiente escolar.

Violências, conflitos e indisciplina no espaço escolar


No contexto escolar, segundo Garcia (2009), qualquer forma de violência
é capaz de afetar não somente iniciativas e práticas de professores, mas tam-
bém o cumprimento das finalidades mais amplas que são de sua responsa-
bilidade, como: aprendizagem, acesso à cultura, formação e cidadania. São
várias as perspectivas internacionais e nacionais a respeito do tema violên-
cias escolares, e, ao analisá-las, percebe-se a importância de referendar os
diversos autores, assim como seus estudos, contextualizando o local onde
foram realizados.
Debarbieux e Blaya (2002) observaram que nos estudos sobre a temática
existia certo receio em se usar a palavra "violência", visto que para muitos
países a palavra tinha conotação pejorativa. Os estudos apenas considera-
vam tais fenômenos como perturbações escolares, com foco nas práticas
violentas. O propósito era reduzir ou evitar possíveis comportamentos tidos
como antissociais entre alunos e alunos e entre discentes e docentes, pon-
derar as perturbações comportamentais relacionadas somente aos alunos e
elaborar programas para modificar ou promover outros padrões de compor-
tamento mais aceitáveis.
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 139

Pesquisadores franceses sempre participaram de debates internacionais


utilizando a palavra "violência". Na França, a temática já era tratada com
perspectivas voltadas para o âmbito escolar, tanto que em 1998 o centro
de pesquisas francês criou o Observatório Europeu da Violência Escolar.
Esse observatório tornou-se referência na Europa e agregou pesquisas de
diferentes países, como França, Inglaterra, Espanha e Bélgica. Em 2001, or-
ganizou uma conferência mundial chamada "Violência nas escolas: dez abor-
dagens europeias", e as discussões foram sistematizadas em um documento
publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco) e organizado por Eric Debarbieux e Catherine Blaya,
publicado no Brasil em 2002.
Bernard Charlot (2002), ainda no contexto francês, realizou estudos que
relacionavam o conhecimento, o ensino e a aprendizagem na escola. O seu
enfoque primário estava relacionado às histórias de sucesso e fracasso es-
colar, e por isso fundou a equipe de pesquisa em "Educação, Socialização e
Comunidades Locais" (Escol), em 1987. O objetivo era conhecer o processo
social e histórico das diferentes formas e contextos da educação, a sociali-
zação escolar e não escolar e os diferentes métodos educativos das diversas
instituições escolares.
Charlot (2002) tinha interesse em estudar a relação estabelecida entre
a classe social do estudante e seu desempenho escolar. Suas pesquisas
indicaram que alunos advindos das camadas populares possuíam menos
chances de ter sucesso escolar do que os de classes sociais bem-sucedidas
economicamente. Apesar disso, verificou casos de discentes provenientes
de famílias ricas que, no transcorrer de sua escolarização, tinham dificulda-
des de finalizar os estudos de forma satisfatória.
Dessa forma, a educação escolar tem papel fundamental, e em seus es-
paços podem ocorrer situações motivadoras para o processo de ensino e
aprendizagem. Contudo, o oposto também pode acontecer e provocar a
desmotivação do discente em aprender ou ir à escola, tendo como único ob-
jetivo obter diploma e/ou ter um bom emprego, um futuro melhor etc. Como
consequência, a educação torna-se, em certa medida, superficial, visto que
o ato de aprender e a vida cotidiana não possuem correlação.
Charlot (2002), na época, também alertou acerca da idade dos adoles-
centes envolvidos em casos de violência escolar, visto que eram cada vez
mais jovens, com faixa etária entre oito e treze anos de idade. Acontecimen-
tos de enfrentamento envolvendo discentes e adultos, com xingamentos e
140 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

até mesmo agressões físicas, começaram a se tornar comuns. O autor tam-


bém discutiu, por fim, as influências vindas do externo escolar, por exemplo,
alunos que resolvem situações de conflitos com colegas da escola dentro
do ambiente escolar, ou familiares – às vezes em tom inquisitivo com os pro-
fessores ou equipe gestora – que procuram informações de procedimentos
realizados com seus filhos.
Para Charlot (2000), a grande dificuldade em se conceituar a violência
escolar está relacionada à constante modificação desse fenômeno, o que
dificulta sua observação, e às representações sociais presentes na socieda-
de. Os estudos de Charlot (2002) classificam em três os tipos de violências
escolares: violência na escola, violência da escola, violência à escola.

Violência na escola é aquela que se produz dentro do espaço escolar,


sem estar ligada à natureza e às atividades da instituição escolar: quando
um bando entra na escola para acertar contas das disputas que são as do
bairro, a escola é apenas o lugar de uma violência que teria podido acon-
tecer em qualquer outro local. Violência à escola esta ligada à natureza
e às atividades da instituição escolar: quando os alunos provocam incên-
dios, batem nos professores ou os insultam, eles se entregam a violências
que visam diretamente a instituição e aqueles que a representam. Essa
violência contra a escola deve ser analisada com a violência da escola:
uma violência institucional, simbólica, que os próprios jovens suportam
através da maneira como a instituição e seus agentes os tratam (modos
de composição das classes, de atribuição de notas, de orientação, pa-
lavras desdenhosas dos adultos, atos considerados pelos alunos como
injustos ou racistas) (CHARLOT, 2002, p. 434-435).

Além dos tipos de violências, Charlot (2002) também conceitua o que


significa violência, transgressão e incivilidade, visto que estes podem se di-
ferenciar conforme a realidade. Para o autor, a violência refere-se à violação
da lei, por meio do uso da força ou com a intenção de usá-la. A transgressão
compreende o não cumprimento do regulamento interno da instituição,
porém, não é algo considerado ilegal perante a lei. E, finalmente, a incivi-
lidade refere-se a quando os sujeitos não acatam as regras de convivência
e, por meio de suas atitudes, quebram a harmonia da coletividade. Essas
três distinções, muitas vezes, acabam não sendo distinguidas no contexto
escolar conforme o ocorrido, devido à falta de formação continuada ou com-
preensão mais aprofundada de educadores. Por exemplo, as incivilidades
– empurrões entre alunos, palavras de baixo calão –, que ocorrem com mais
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 141

frequência dentro da escola, acabam sendo denominadas de violências,


quando na verdade não o são, na perspectiva de Charlot (2002).
Debarbieux (2001) dedicou-se a conceituar, em suas pesquisas, as ques-
tões mais relacionadas às violências físicas e simbólicas. Para o autor, o meio
social influencia as violências, como as condições socioeconômicas de bair-
ros periféricos, mas também há reflexões sobre a existência de atos violentos
em bairros considerados de classe alta economicamente. Sobre as incivili-
dades no contexto escolar, o autor as classifica como violências antissociais
e antiescolares. Afirma que quando as incivilidades são tratadas de forma
banal ou silenciadas pela escola acabam causando traumas nos alunos:

A incivilidade que se revela na escola não deve ser pensada sob a forma
do conflito "bárbaros" X "civilizados": a incivilidade não é a não civiliza-
ção, nem simplesmente a má educação. Ela é conflito de civilidades, mas
não um conflito de civilidades estranhas umas às outras e para sempre
irredutíveis e relativas. Há, antes, troca e oposição de valores, de senti-
mentos de pertinências diversas (DEBARBIEUX, 2001, p. 179).

Sposito (2001) realiza pesquisas acadêmicas sobre a violência escolar e


revela a ausência de informações sobre a violência no Brasil. A autora indi-
ca que os primeiros dados e estudos produzidos sobre a temática foram
realizados por órgãos ligados ao governo, a associações ou sindicatos de
educadores. Essas primeiras produções brasileiras tinham foco em situações
de violências relacionadas aos atos de vandalismo, isto é, em questões que
aconteciam fora da escola – com intenção de entender como esse tipo de
violência interferia nos espaços escolares (em específico, nos bairros perifé-
ricos vulneráveis ao tráfico de drogas ou ao crime organizado).
Para Sposito (1998, p. 4), "violência é todo ato que implica a ruptura de
um nexo social pelo uso da força". A autora compreende que a identificação
de um ato violento não é determinada pelos sujeitos em condições históricas
e sociais. Por isso, ressalta outras formas de violências que se apresentam
sutilmente no cotidiano escolar, como atitudes de intolerância, racismo e
certos mecanismos relacionados à violência simbólica descrita por Bourdieu
(BOURDIEU, 2007).
Também segundo Sposito (1998), atitudes que foram consideradas e
classificadas como infrações às regras disciplinares podem ser identificadas
como violentas. Da mesma maneira, atos que envolvem agressões físicas são
compreendidos como episódios de descumprimento das regras de convívio
escolar:
142 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Por essas razões, um dos aspectos ainda a serem investigados diz res-
peito ao modo como, no âmbito da instituição escolar, são construídas
as definições que designam e normalizam condutas – violentas ou in-
disciplinadas – por parte dos atores envolvidos: professores, alunos,
funcionários, pais, entre outros (SPOSITO, 1998, p. 4).

Para Sposito (1998), o fenômeno das violências não está relacionado


apenas à pobreza. A visão muitas vezes preconceituosa de que a violência
escolar acontece somente em locais em que existe pobreza ou com sujeitos
em situação de miséria foi desmistificada pela autora. Assim, não há uma
relação explícita que caracterize que atos violentos são produzidos ou feitos
por sujeitos pobres.
Tais concepções classistas e discriminatórias – infelizmente, também pre-
sentes nas falas de muitos educadores – tiveram origem na década de 1980,
período em que houve intensa democratização do ensino no Brasil, assim
como a instituição de sua obrigatoriedade, que oportunizou que as classes
menos favorecidas economicamente pudessem frequentar a escola pública.
Nessa ocasião, o modelo de escola pública não se estruturou para oferecer
um ensino de qualidade com igualdade de condições para todos, de forma
democrática, resultando assim em conflitos internos que, muitas vezes, ge-
raram violência. Devido ao fracasso escolar, muitos alunos desacreditaram
da escola e criaram certo bloqueio em relação ao ensino e à aprendizagem.
A instituição escolar não se preparou para lidar com a diversidade nem
com as diferentes situações que apareceram em seu ambiente e, por isso,
muitas vezes, tornou-se excludente e reforçou a divisão de classes sociais.
Consequentemente, houve aumento da violência nas instituições em que
os alunos não entenderam que educação é um direito adquirido por lei, ou
mesmo naquelas escolas cujas reais necessidades não foram atendidas.
Zaluar e Leal (1992) também realizaram estudos sobre a temática e veri-
ficaram que a comercialização de drogas e armas era responsável por aliciar
estudantes jovens de camadas mais pobres. Geralmente, esses meninos
provinham de bairros pobres de cidades grandes, propiciando o aumento
da vitimização por homicídio: "A existência de opções de trabalho informal
no mercado ilegal das drogas, assim como outros tipos de crimes, aos olhos
dos alunos, também contribuem para diminuir, a importância da escolariza-
ção" (ZALUAR, 2001, p. 158).
Na pesquisa de Zaluar e Leal (1992), alguns professores, funcioná-
rios e gestores declararam ter dificuldade em desenvolver seus trabalhos
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 143

educativos devido ao tráfico de drogas e, às vezes, acreditavam que não


precisavam se esforçar para ensinar esses alunos, visto que, em suas concep-
ções, estes não teriam um futuro promissor.
Em relação ao contexto familiar, Zaluar (2001) destaca que situações
que aconteciam em casa também contribuíam para que os estudantes não
frequentassem a escola, por exemplo, dificuldades econômicas na família,
conflitos e separações, tarefas domésticas que assumiam devido à mãe es-
tar trabalhando, ausência paterna, entre outros. A violência pode apresentar
duas dimensões: fora dos muros da escola e dentro. As situações vivencia-
das por estudantes fora da escola acabam suscitando discriminações e pre-
conceitos, principalmente em relação ao trato da equipe escolar com esses
alunos:

(1) a violência física perpetrada por traficantes ou bandidos nos bair-


ros onde se encontram, assim como por alguns dos agentes do poder
público encarregado da manutenção da ordem e da segurança, e (2) a
violência que se exerce também pelo poder das palavras que negam,
oprimem ou destroem psicologicamente o outro (ZALUAR, 2001, p. 148).

Outra autora brasileira, Abramovay (2005), relata que a equipe escolar


deve ser capaz de criar condições para que as aprendizagens ocorram, além
de propiciar interações melhores entre alunos, professores e funcionários
para estabelecer um ambiente escolar pacífico. Por ter papel fundamental
na formação de alunos, a escola e os seus educadores devem influenciar no
modo de vida de seus estudantes, assim como nas suas percepções:

A despeito das dificuldades em algumas relações estabelecidas entre


os vários atores sociais envolvidos, a escola surge como espaço de
socialização para os jovens. É o lugar onde ocorrem aprendizagens sig-
nificativas, já que o modo de vida dos sujeitos em interação no cenário
escolar propicia trocas materiais e simbólicas (ABRAMOVAY, 2005, p. 35,
grifos nossos).

Para Abramovay e Castro (2006), não existe apenas um tipo de jovem ou


juventude, ao contrário, existem vários grupos juvenis, que formam um con-
junto heterogêneo com diferentes características. Nesse aspecto, há influên-
cias de vários fatores, como estereótipos, momentos históricos, classe social,
gênero, etnia, grupo etc., vindos das diferentes maneiras que as sociedades
compreendem a juventude.
144 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Segundo Pais (2003), as representações que a sociedade possui sobre o


jovem perpassam, de acordo com a sociologia da juventude, por duas linhas
teóricas. A primeira compreende a juventude como um grupo social homo-
gêneo, com características únicas devidas a essa fase da vida, relacionado à
faixa etária. Nesta linha, o objetivo é analisar os aspectos uniformes e cons-
tantes dessa etapa da vida. A outra linha teórica reconhece a existência de
múltiplas culturas constituídas a partir de diferentes interesses e inclusões
na sociedade.
Com base nesta última perspectiva teórica, o autor acredita que os
discentes que frequentam a escola podem ter a mesma faixa etária, mas
possuem características singulares. Essas diferenças podem originar alguns
conflitos no contexto escolar, e por isso os educadores devem se ocupar
de fundamentar as funções da escola, como socialização, aprendizagens e
respeito às diversidades.
Para Abramovay, Cunha e Calaf (2009), as situações de violência podem
comprometer o que deveria ser a identidade da escola. Essas situações
podem ser classificadas em três níveis: 1º) violências duras – caracterizadas
como crimes ou infrações legais como lesões corporais, ameaças, tráfico de
drogas; 2º) microviolências ou incivilidades – ações que não condizem com
as regras de boa convivência, identificando-se pelas desordens, e que não
se caracterizam como transgressões à lei ou ao regimento do estabeleci-
mento; e 3º) violências simbólicas – são aquelas que, muitas vezes, passam
despercebidas pela vítima, pois são veladas e pertencem a um sistema sim-
bólico que se baseia nas relações de poder, legitimando as atitudes e ações
que devem ser padronizadas, mas sem fazer uso da força.
No âmbito escolar, segundo Abramovay, Cunha e Calaf (2009), ocorrem
brigas, atos agressivos e de violências, e as atitudes tomadas para solucionar
tais conflitos competem à equipe escolar. O que os pesquisadores percebe-
ram foi que os procedimentos, em sua maioria, acabam por ser advertências,
suspensões, transferências e expulsões, que são aplicados de acordo com
a gravidade de cada caso. Assim, as violências escolares são resultado de
diferentes histórias de vida que convivem em um mesmo ambiente escolar e
das relações que se estabelecem nele. Por vezes, as violências acabam sen-
do percebidas como fenômenos corriqueiros para aqueles que já vivenciam
este tipo de situação.
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 145

Outro autor brasileiro que aborda a temática da violência na escola é


Tavares dos Santos (1995, 2001, 2002, 2009). Seus estudos abordam as múl-
tiplas formas e contextos pelos quais as violências aparecem no cotidiano
escolar:

A violência seria a relação social de excesso de poder que impede o reco-


nhecimento do outro – pessoa, classe, gênero ou raça – mediante o uso
da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, configurando
o oposto das possibilidades da sociedade democrática contemporânea
(TAVARES DOS SANTOS, 2001, p. 107).

Tavares dos Santos (1995) realizou investigações em escolas municipais


no estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no final da década de
1990, com o objetivo de problematizar como são nomeados os atos conside-
rados violentos e como situações de vandalismo ou de incivilidades podem
ser entendidas de várias maneiras pelos grupos sociais. Suas pesquisas reve-
laram que muitas escolas municipais eram depredadas, mas não aconteciam
furtos, o que fez o pesquisador compreender que os vandalismos por vezes
eram o embate entre os códigos de conduta de diferentes grupos sociais ou
seriam uma reação de jovens descrentes da função da escola.
Para o autor, a relação estabelecida entre escola e grupos culturais
singulares é marcada pela violência simbólica advinda da própria institui-
ção. Em alguns casos, professores, equipe gestora e funcionários possuem
"uma relação de poder que impõe um conjunto de valores ao conjunto da
população envolvida" (TAVARES DOS SANTOS, 2001, p. 112). Dentro dessa
perspectiva, há um descompasso entre escola e especificidades culturais da
população pobre das cidades, e essa situação configura-se em uma com-
plexidade de fenômenos sociais que se estabelecem entre a instituição e o
meio social.
As contradições de diferentes classes sociais, associadas às diversas ex-
pectativas dos alunos perante a escola, têm criado situações que, muitas
vezes, são caracterizadas como violência gerada pela escola. Essa violência,
com relação às prescrições feitas pela escola, tem dois aspectos: primeiro,
um autoritarismo pedagógico caracterizado por uma repressão feita por do-
centes em sala de aula; e, segundo, a questão de uma norma social imposta,
que marca as relações entre as pessoas em grupos sociais específicos com
violência simbólica. Essas normas manifestam-se como regra no cotidiano de
alunos e seus familiares, com transferência direta na realidade educacional;
146 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

"estamos, em grande medida, diante de um conflito de códigos de conduta


ou conflito de civilidades" (TAVARES DOS SANTOS, 2001, p. 117).
Segundo Tavares dos Santos (2001), os conflitos proporcionam oportu-
nidades de discussão, e, ao identificar coletivamente suas causas e com-
preender suas raízes, respostas positivas podem criar boas comunicações e
desenvolver responsabilidades nas relações pedagógicas:

Isto significa assumir uma prática de negociação instaurada no interior


da escola, em especial nos próprios grupos de alunos, por meio, por
exemplo, da ideia de mediação pelos pares, de forma a criar responsabi-
lidades entre os próprios membros da escola, na tentativa de satisfazer as
necessidades dos jovens mediante o desenvolvimento de um ambiente
solidário, humanista e cooperativo (TAVARES DOS SANTOS, 2001, p.
120).

Tavares dos Santos (2001) entende que a escola é afetada pela violên-
cia externa e por diferentes formas de sociabilidade violenta, além de certo
autoritarismo por parte da própria equipe escolar. O pesquisador também
observa que as normas violentas que são transferidas para o contexto es-
colar – vindas de fora dos muros da escola – não são feitas de forma impo-
sitiva, mas dependem das relações e da comunicação da escola. Além das
violências, em suas diferentes formas, destacam-se, também, as situações
caracterizadas como conflito, as quais fazem parte de relações estabelecidas
em sociedade.
Segundo Chrispino (2004), é com a ausência da mediação de conflitos
que, geralmente, acontece a violência. Os conflitos não devem ser vistos
como anomalias, isto é, contra a ordem social, mas como um fenômeno
presente e necessário na democracia. O conflito se faz presente em espa-
ços democráticos, pois neles existem convívios de pessoas com diferentes
aspirações, modos de vida e opiniões, e há a possibilidade de divergências.
O autor afirma que o conflito é essencial para o desenvolvimento social,
e seus efeitos podem ser positivos se conduzidos corretamente, a fim de
estabelecer relações de cooperação. Quando se resolvem os problemas,
também são favorecidas as partes em debate, e isto é entendido como uma
oportunidade de crescimento e amadurecimento social.
O conflito pode surgir devido a duas motivações: um desejo individual
ou a ideia de manter uma relação com o outro de forma satisfatória, para
ambos:
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 147

Conflito é toda opinião divergente ou maneira diferente de ver ou inter-


pretar algum acontecimento. A partir disso, todos os que vivemos em
sociedade temos a experiência do conflito. Desde os conflitos próprios
da infância, passamos pelos conflitos pessoais da adolescência e, hoje,
visitados pela maturidade, continuamos a conviver com o conflito intra-
pessoal (ir/não ir, fazer/não fazer, falar/não falar, comprar/não comprar,
vender/não vender, casar/não casar, etc.) ou interpessoal, sobre o qual
nos deteremos. São exemplos de conflito interpessoal a briga de vizi-
nhos, a separação familiar, a guerra e o desentendimento entre alunos
(CHRISPINO; CHRISPINO, 2002, p. 16, grifos nossos).

Assim, o conflito faz parte da vida e da própria atividade social – presente


em sociedades antigas e contemporâneas –, e sua origem está na diferença
de interesses, nos desejos, nas posições que são defendidas de acordo com
a perspectiva de cada sujeito.
Para Chrispino (2004), o conflito escolar resulta de divergências de opini-
ões de dois ou mais sujeitos. No universo escolar, as diferenças entre alunos,
professores e funcionários podem ser causas de conflitos.
Segundo Martinez Zampa (2005), evidenciam-se os conflitos escolares a
partir de características da escola ou do sistema educacional, pois seus atri-
butos delimitam os espaços de atores escolares (alunos, professores, equipe
gestora e familiares) e as rotinas fixas. A forma como é tratado o conflito
pode variar de escola para escola, visto que este pode ser encarado como
instrumento de crescimento ou como um problema que deve ser ignorado.
Para este autor, os conflitos referentes à escola podem ser classificados de
quatro maneiras diferentes:

Conflito em torno da pluralidade de pertencimento: surge quando o


docente faz parte de diferentes estabelecimentos de ensino ou mesmo
de níveis diferentes de ensino. Conflitos para definir o projeto institu-
cional: surge porque a construção do projeto educacional favorece a
manifestação de diferentes posições quanto a objetivos, procedimentos
e exigências no estabelecimento escolar. Conflito para operacionalizar o
projeto educativo: surge porque, no momento de executar o projeto ins-
titucional, surgem divergências nos âmbitos de planejamento, execução
e avaliação, levando a direção a lançar mão de processos de coalizão,
adesões, etc. Conflito entre as autoridades formal e funcional: surge
quando não há coincidência entre a figura da autoridade formal (diretor)
e da autoridade funcional (líder situacional) (MARTINEZ ZAMPA, 2005, p.
30, grifos nossos).
148 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Os conflitos educacionais têm suas origens nas próprias ações de sis-


temas escolares ou nas relações que envolvem todos os membros da co-
munidade escolar. Além disso, outras situações são indicadas por Martinez
Zampa (2005), como: relações de poder; diferenças pessoais; e intolerâncias.
Segundo Chrispino (2004), o conflito no ambiente escolar pode ser en-
tendido de forma positiva, e ações podem ser realizadas a fim de promover
o exercício do diálogo e da comunicação. A primeira característica para a
mediação do conflito na instituição escolar é assumir que situações de conflito
existem e que para a escola exercer sua função de ensino e aprendizagem é
necessário que tais situações sejam superadas.

Chamaremos de mediação de conflito o procedimento no qual os


participantes, com a assistência de uma pessoa imparcial – o Mediador –
colocam as questões em disputa com o objetivo de desenvolver opções,
considerar alternativas e chegar a um acordo que seja mutuamente acei-
tável (CHRISPINO, 2004, p. 17).

Outra questão relacionada às violências e aos conflitos escolares é a


indisciplina. Para compreender a questão da indisciplina, utilizamos os estu-
dos de Foucault (2009). Para o autor, a disciplina serve para regulamentar a
vida dos seres humanos, controlar suas ações, com intenção de utilizá-los ao
máximo, isto é, usar suas potencialidades e aperfeiçoar suas capacidades. O
disciplinamento aumenta a capacidade de trabalho e transforma o ser huma-
no em força de trabalho. Isso significa dar ao sujeito: a utilidade econômica;
a diminuição da capacidade de resistência; e um corpo dócil.
Em seu livro "Microfísica do Poder", Foucault (2008) apresenta algumas
considerações sobre a disciplina, entendendo-a também como a organiza-
ção do espaço, controle do tempo, registro contínuo do conhecimento e
vigilância. A organização do espaço relaciona-se à distribuição dos sujeitos
por meio da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classifica-
tório e combinatório. O controle do tempo estabelece a sujeição do corpo
ao tempo, com o objetivo de maximizar a sua eficácia e a rapidez. O registro
contínuo do conhecimento está associado a um apontamento em que ne-
nhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar escapa a este saber.
E a vigilância seria o olhar que observa para controlar. A disciplina implica
uma "vigilância perpétua e constante dos indivíduos" (FOUCAULT, 2009, p.
164), mas não é um olhar único, e sim o olhar de todos sobre todos e sobre si.
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 149

O conceito de indisciplina, segundo Estrela (2002, p. 17), "tem assumido


ao longo dos tempos diferentes significações: punição; dor; instrumento de
punição; direção moral; regra de conduta para fazer reinar a ordem numa
coletividade; obediência a essa regra". A indisciplina é entendida como algo
que é contrário à disciplina, ou seja, a definição pela negação, ela surge
como uma ação de insurreição contra as normas e regras estabelecidas na
vida cotidiana e contra o grupo social.
Foucault (2008) também abordou alguns aspectos que se referem ao po-
der disciplinar. Em seus estudos, considera que o termo disciplina se refere
a algo complexo e que está intrinsecamente relacionado ao exercício do
poder.

O poder deve ser analisado localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou bem. O poder funciona
e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas
estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer com sua
ação: nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros
de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos,
passa por eles (FOUCAULT, 2008, p. 83).

Este poder não é instrumento de dominação de um sobre o outro, mas


perpassa todas as relações humanas, sendo uma prática social construída
historicamente por meio das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos
e instituições. Foucault (2008), ao definir o poder, estabelece certa relação
também com a disciplina presente na sociedade, visto que ela individualiza,
cronometra, adestra os movimentos, tornando os corpos "dóceis", produti-
vos e eficientes. Assim, a disciplina é uma ferramenta de exercício do poder,
porém, não foi inventada, mas foi formada em seus objetivos fundamentais
durante o século XVIII. Segundo Foucault (2008), historicamente, as disciplinas
existiam há muito tempo na Idade Média e até mesmo na Antiguidade, sen-
do, portanto, mecanismos disciplinares antigos.

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto


e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção
dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela se trei-
na, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam
(FOUCAULT, 2009, p. 125).
150 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Porém, nem todos são sujeitados, isto é, possuem uma reação de passivi-
dade, uma vez que os sujeitos podem participar deste poder. Nesse sentido,
a indisciplina surge quando alguém realiza um comportamento desordena-
do, que vai contra o modelo engendrado pelo poder disciplinar.
Segundo Aquino (1996), questões relacionadas à indisciplina estão pre-
sentes, diariamente, na vida profissional de educadores, porém, este tema
não possui grande relevância para os pesquisadores. A indisciplina tem sido
vivenciada nas relações dentro do contexto escolar e pode ser a causa de
determinados obstáculos para o aproveitamento escolar de alguns educan-
dos. O autor afirma que são várias as origens de atitudes indisciplinadas
de alunos, mas o que mais influencia são a estrutura escolar, atitudes de
professores, equipe gestora ou funcionários, e compreendê-las exige uma
reflexão sobre o assunto de forma ampla e variável.

O conceito de indisciplina, como toda criação cultural, não é estático,


uniforme, nem tampouco universal. Ele se relaciona com o conjunto de
valores e expectativas que variam ao longo da história, entre as diferen-
tes culturas e numa mesma sociedade (AQUINO, 1996, p. 26).

Outra questão para Aquino (1998) está relacionada à indisciplina. O autor


afirma que, hoje, as crianças e adolescentes não possuem limites e não sabem
o que é autoridade ou respeitar regras. Esses alunos, que antes eram repri-
midos no cotidiano escolar, na contemporaneidade são vistos como pessoas
que contribuem para a violência em sala de aula, sendo ingovernáveis.
Outra afirmação feita pelo autor refere-se às queixas de muitos professo-
res com relação à indisciplina dentro de sala de aula, visto que os alunos não
se sentem atraídos pelo ensino e pela aprendizagem:

Ainda, os meios de comunicação podem ter como objetivo o entre-


tenimento, o lazer. Escola, ao contrário, é lugar de trabalho árduo e
complexo, mas nem por isso menos prazeroso. Por essa razão, assim
como afirmamos anteriormente que professor não é pai e aluno não é
filho, é preciso acrescentar: o professor não é um difusor de informações,
e muito menos um animador de plateia, da mesma forma que o aluno
não é um espectador ou ouvinte. Ele é um sujeito atuante, corresponsá-
vel pela cena educativa, parceiro imprescindível do contrato pedagógico
(AQUINO, 1998, p. 195).

Com base nos referenciais de Foucault, Ratto (2004) analisa a lógica dis-
ciplinar existente dentro da instituição escolar e as relações de poder que
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 151

estão explícitas nos registros, como: punições, ameaças, vigilâncias, exames,


normalização, aplicação de regras etc. Essas relações expressas por meio
das violências, conflitos e indisciplina que acontecem dentro do âmbito es-
colar, muitas vezes, revelam situações de relações de poder ou de violência
simbólica advindas da própria escola.

Violência simbólica: conceituando


Segundo Bourdieu (2007), o campo é um universo intermediário entre o
individual e social, como os campos literário, artístico, jurídico ou científico.
Ou seja, é o universo em que estão inseridos os indivíduos e as instituições
que produzem e reproduzem ou fundam a arte, a literatura ou a ciência.
Este universo é um mundo social, mas que possui leis próprias. O campo é
compreendido por ser um pequeno mundo social, mas com certa autonomia
e com leis e regras específicas, que ao mesmo tempo é influenciado e se
relaciona a um espaço social mais amplo, sendo também um espaço de lutas
entre os sujeitos que o integram em busca de manter ou alcançar determi-
nadas posições. Para Bourdieu (2007), essas posições são adquiridas pelas
disputas de capitais específicos que são valorizados pelo campo, e tais ca-
pitais são tidos em maior ou menor grau pelos indivíduos que constituem o
campo, mas que determinam as posições hierárquicas que cada um ocupa.
Ainda segundo o autor, o capital social refere-se aos contatos que são
adquiridos, os sujeitos que conhecemos e que reconhecem a importância
de cada indivíduo dentro do campo. Para ele seria "o agregado dos recursos
efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais
ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo"
(BOURDIEU, 1985, p. 241). O capital intelectual trata do conhecimento que
cada um possui, e este conhecimento pode ser alcançado por estudos pró-
prios por meio das instituições – escolas, faculdades, entre outras – os quais
terão uma certificação e mostrarão o quão apto o indivíduo está para realizar
uma tarefa perante a sociedade. Para Bourdieu (1985), o capital cultural está
associado à cultura que se adquire, pois esta serve para distinguir a origem
social do indivíduo, se ele possui a cultura erudita ou a cultura de classes
sociais mais pobres, sendo também um meio de distinção para classificá-lo
dentro do campo.
Para este tipo de capital, o autor definiu três categorias: incorpora-
do, objetivado e institucionalizado. O primeiro refere-se à inculcação e
152 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

incorporação do capital acumulado pelo indivíduo e é obtido por meio


da socialização dele em uma determinada cultura – não é transferível, mas
adquirido ao longo do tempo. No segundo, o capital cultural é objetivado
pelos bens materiais econômicos, porém, mostra simbolicamente quem é o
indivíduo que detém este tipo de capital, por exemplo: obras de artes, equi-
pamentos científicos, entre outros. E o terceiro, o capital institucionalizado,
está no acúmulo de qualificações acadêmicas.
O capital simbólico trata de um bem pessoal, porém, só existe pelo
reconhecimento que o outro dá a ele. Para Bourdieu (1985, p. 296), este capi-
tal "nos livra da insignificância, como ausência de importância e de sentido".
Assim, esse tipo de capital pode ser manifesto em qualquer das formas cita-
das, na medida em que é representado e apreendido simbolicamente, pois
o indivíduo que detiver o capital simbólico fará parte da classe dominante
dentro do campo. Neste contexto, Bourdieu (2007) conceitua o poder sim-
bólico. O autor acredita que esse poder simbólico acontece por meio da lín-
gua, da arte, da religião etc, os quais ele denominou de sistemas simbólicos.

É assim que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de


instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que
contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra
(violência simbólica), dando o reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão
de Weber, para a domesticação dos dominados (BOURDIEU, 2007, p. 11).

Para Bourdieu (2007), os símbolos são parte do modo como é represen-


tada a realidade do mundo, sendo a maneira pela qual uma cultura expressa
seus valores. Porém, esse processo acontece na medida em que o poder
simbólico se cumpre, o que significa que é reconhecido a partir de símbolos
que integram uma determinada comunidade artística, linguística, religiosa
etc. Os símbolos contribuem para afirmar e reproduzir paradigmas e/ou
ideias de uma ordem social.
O poder simbólico é exercido por meio de símbolos que expressam a
realidade vivida, como instrumento estruturado e estruturante de comunica-
ção e de conhecimento que possui função política, cuja imposição legitima
a dominação de uma classe sobre a outra de tal maneira que produz a vio-
lência simbólica.
Bourdieu (2007) conclui que as produções simbólicas são ferramentas
de dominação: o campo de produção simbólico é um pequeno espaço de
Violências, conflitos e indisciplinas: contextos sociais e escolares | 153

lutas simbólicas entre as classes, e, dessa maneira, a classe dominante que


detém a grande maioria do capital econômico tem o objetivo de assegurar
sua dominação pela própria produção simbólica. Assim, o poder simbólico
é praticado com o consenso daqueles sujeitos que lhe são subordinados,
uma vez que é compreendido como um poder real. Torna-se praticamente
invisível, pois funciona como instrumento de manutenção das desigualdades
sociais, atua nas estruturas sociais de maneira a construir realidades, sem
que estas sejam questionadas – os símbolos legitimam a coerção social e a
dominação.

O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada, quer


dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de po-
der: só se pode passar para além da alternativa dos modelos energéticos
que descrevem as relações sociais com relações de força e dos modelos
cibernéticos que fazem delas relações de comunicação, na condição
de se descreverem as leis de transformação que regem a transmutação
das diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em especial,
o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eu-
femização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações
de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas se encarregam
objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de
produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia (BOURDIEU,
2007, p. 15).

Este poder gera, segundo Bourdieu (2007), a violência simbólica, carac-


terizada por ser uma forma de violência exercida pelo corpo, porém, sem
uso da força física, causando danos morais e/ou psicológicos. É uma forma
de repressão que se apoia no reconhecimento de determinada imposição,
seja econômica, social, cultural ou institucional. Apoia-se na construção de
crenças que induzem os sujeitos a se posicionar no espaço social seguindo
critérios impostos pela classe dominante.
A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos indivíduos
que fazem parte delas e que se apoiam no exercício da autoridade. Nesse
sentindo, a escola como instituição, muitas vezes, é norteada por violências
simbólicas. A violência da escola (CHARLOT, 2002) é uma violência simbólica
presente nas ações dos seus agentes.
Segundo Bourdieu e Passeron (2008, p. 26), "toda ação pedagógica é
objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder
arbitrário". Os autores entendem que o indivíduo não possui consciência, e
154 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

as relações pedagógicas passam a reproduzir, inconscientemente, as ações


estabelecidas pelo grupo dominante. A violência simbólica exercida pelos
educadores na escola aparece na transmissão da cultura escolar (conteúdos,
programas, métodos de trabalho e avaliação, relações pedagógicas) comum
à classe dominante. Por vezes, esses educadores não levam em considera-
ção as características das classes populares, negando as diferenças sociais,
culturais, econômicas, linguísticas, entre outras, dos alunos que frequentam
o cotidiano escolar.

Algumas considerações
Para finalizar esta seção, retoma-se o seu objetivo, que foi revisar a bi-
bliografia que tratasse das temáticas acerca das violências, conflitos e in-
disciplinas na sociedade e escola, com foco nas violências simbólicas. Para
Foucault (2006), os micropoderes são garantidos pelo monitoramento, por
meio da força e das normas, com intenção de articular uma suposta harmo-
nia na sociedade. Agem sobre os corpos individuais dos sujeitos, e por isso o
poder está relacionado à dominação desses corpos e sua utilidade. O corpo
ser produtivo e submisso está legitimado por um saber e pelo controle que
formam uma microfísica do poder.
Segundo Sposito (1998), ainda temos um grande problema a resolver,
que está nas formas como opiniões e valores dos educadores envolvidos
com a escola – equipe gestora, professores, e funcionários – acabam por
designar e normatizar os atos violentos, conflituosos ou indisciplinares e,
o principal, como esses sujeitos traçam seus procedimentos de condutas
escolares. Apesar de não esgotarmos o assunto, foi possível compreender
os conflitos, as violências e indisciplinas de várias formas, e ao centralizar os
temas com a bibliografia também foi possível refletir sobre sua importância
na convivência escolar.

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8

COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA


E OS BENEFÍCIOS NAS RELAÇÕES
ESCOLARES
Marcela Luiz Corrêa da Silva
Maria Cecília Luiz

Na contemporaneidade, um dos temas mais polêmicos que a escola


enfrenta é relacionado aos conflitos e às violências. Nunca se viu de forma
tão intensa pessoas atacarem umas às outras com agressividade e desres-
peito, não somente verbalmente, mas também no espaço virtual. Todos nós
já passamos por conflitos com outras pessoas e com nós mesmos, em maior
ou menor medida, e foi pensando sobre o assunto que Rosenberg (2006)
elaborou algumas técnicas, como a "Comunicação Não Violenta – CNV",
para auxiliar na resolução de comunicações violentas.
Educadores – gestores, docentes e funcionários – têm encontrado no
ambiente escolar dois dos maiores desafios contemporâneos: adversidades
tanto de comunicação como de relacionamentos entre sujeitos. Às vezes,
por conta da perspectiva multicultural ou da diversidade, principalmente,
entre as diferentes minorias, estudantes ficam isolados, estigmatizados e ex-
cluídos, com menos chances de aprendizagem e mais situações de conflitos.
O comunicar-se na sala de aula, ou mesmo fora dela – em diversos espaços
escolares –, ainda é um grande obstáculo para educadores que buscam a
qualidade de ensino e a diminuição da evasão escolar.
Foi refletindo sobre o tema que esta seção foi elaborada, isto é, busca-se
trazer subsídios da teoria da "Comunicação Não Violenta – CNV", criada por
Marshall Rosenberg (2006), um psicólogo americano que tratou de várias
questões a respeito do autoconhecimento, com intenção de tornar mais fácil
a identificação de necessidades e sentimentos, bem como a forma como
dialogamos sobre impasses com nós mesmos e com os outros. A partir
de algumas experiências pessoais, o autor questiona, em seu livro Comu-
nicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais
158 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

e profissionais (2006), quais seriam os motivos pelos quais alguns sujeitos


conseguem ter compaixão com relação a outras pessoas, mesmo quando
submetidos às piores circunstâncias.
Acreditando neste potencial, este texto tem o intuito de explanar a
técnica da Comunicação Não Violenta, conectando-a às possibilidades no
âmbito da escola. A ideia é termos mais habilidades na forma como nos
comunicamos, preferencialmente de maneira mais agradável e assertiva.
Segundo o autor, sem um autoconhecimento, isto é, na ausência de apoio a
si mesmo, não conseguimos sanar as necessidades de forma certeira, o que
impossibilita acordos entre os sujeitos e, o pior, induz a violência.
Outro aspecto importante encontrado neste livro é aprender a ouvir e
falar de forma que a comunicação esteja sempre com o intuito de observar
as necessidades e os sentimentos do outro, algo extremamente importante
dentro dos relacionamentos escolares, pois, ao ajudar o outro a se expressar,
há mais compreensão e menos conflitos, as relações se fortalecem, tornan-
do-se mais saudáveis e bem-sucedidas. O autor compreendeu que o fenô-
meno da compaixão era fundamental para abordar o papel da linguagem e
das palavras nesse processo.

Abordagem específica da comunicação – falar e ouvir – [...] nos leva a nos


entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de ma-
neira tal que permite que nossa compaixão natural floresça. Denomino
essa abordagem Comunicação Não-Violenta, usando o termo "não-
-violência" na mesma acepção que lhe atribuía Gandhi – referindo-se a
nosso estado compassivo natural quando a violência houver se afastado
do coração (ROSENBERG, 2006, p. 21).

Rosenberg (2006) cita Etty Hillesum, que continuou compassiva ainda


quando sujeita às grotescas condições de um campo de concentração ale-
mão. Assim, evidencia as palavras do seu diário:

Não é fácil me amedrontar. Não porque eu seja corajosa, mas porque


sei que estou lidando com seres humanos e que preciso tentar ao má-
ximo compreender tudo que qualquer pessoa possa fazer. E foi isso o
que realmente importou hoje de manhã – não que um jovem oficial da
Gestapo, contrariado, tenha gritado comigo, mas, sim, que eu não tenha
me sentido indignada, antes tenha sentido verdadeira compaixão e de-
sejado perguntar: "O senhor teve uma infância muito infeliz? Brigou com
a namorada?". É, ele parecia atormentado e obcecado, mal-humorado
e fraco. Eu gostaria de ter começado a tratá-lo ali mesmo, pois sei que
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 159

jovens dignos de pena como ele se tornam perigosos tão logo fiquem
soltos no mundo (HILLESUM apud ROSENBERG, 2006, p. 20).

Para Rosenberg (2006), por meio da CNV é possível que haja um fluxo na-
tural de compaixão, pois ela reformula a maneira pela qual nos expressamos
e ouvimos os outros. Nesse sentido, é fundamental que as comunicações na
escola deixem de ter reações automáticas para se tornarem conscientes. O
foco está em perceber o que de fato se está sentindo ou desejando. Dessa
forma, busca-se que a expressão – de todos que estão envolvidos com a es-
cola – seja honesta e clara, ao mesmo tempo respeitosa e empática a todos,
sem exceção.
Para Pelizzoli (2012), a CNV utiliza a palavra "compaixão" para tratar da
natureza humana, referenciando aquilo que é mais intenso: aflição (dor) e
alegria (bem-estar). Nessa teoria não se discute o sujeito "bonzinho", ou o
sujeito religioso, ou aquele que sempre abdica de tudo, ou aquele que con-
tinuamente está emotivo etc. Implica sentir e compreender que convivemos
em uma sociedade vulnerável e que existem pessoas realizando ações boas
e ruins o tempo todo, com a desculpa de quererem ser felizes. Por isso, não
é incomum que os sujeitos sejam conduzidos pela ignorância de seus valo-
res e/ou anseios preconceituosos. Em geral, estes desacreditam da palavra
amor, mas querem ser amados, ou mesmo amar.

Quando este processo relacional é afetado/ferido – visto que não somos


apenas um sujeito racional, material, objetal, frio e calculista – e ocorre o
que chamamos de violência, minha ou de outrem, então nós sofremos.
Em tempos de desagregação e crise do sujeito (altos índices de depres-
são, estresse, suicídio, ansiedade, tristeza crônica, fadiga emocional,
traumas de várias ordens, consumo enorme de psicofármacos etc.) mais
do que nunca precisamos e queremos a todo custo nos conectar com a
nossa natureza afetiva, cuidadora, de valores humanos, tais como amiza-
de, generosidade, solidariedade, apoio e outras (PELIZZOLI, 2012, p. 4).

A forma como se olha para o outro faz toda a diferença. Ao identificar


o outro, observando quais sentimentos existem entre as pessoas, podemos
perceber quais as necessidades e as possibilidades que enriquecem as re-
lações entre elas. Como já dissemos, o importante é ocorrer um fluxo de
comunicação em que a compaixão aparece de forma natural.
160 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

CNV e seus quatros componentes: observação, sentimento,


necessidade e pedido
O processo da CNV funciona por meio de quatro componentes: obser-
vação; sentimento; necessidades; e pedido. É imprescindível observar quais
atitudes e comportamentos do outro incomodam, sem nenhum tipo de jul-
gamento, o que se configura em algo bastante difícil. Nesse contexto, o bom
seria verificar qual sentimento se observa naquela situação – mágoa, decep-
ção, alegria etc. – e, por fim, reconhecer quais são as necessidades que estão
ligadas a esses sentimentos identificados. Rosenberg (2006) exemplifica a
utilização dos componentes:

Uma mãe poderia expressar essas três coisas ao filho adolescente di-
zendo: "Roberto, quando eu vejo duas bolas de meias sujas debaixo da
mesinha e mais três perto da TV, fico irritada, porque preciso de mais
ordem no espaço que usamos em comum".
Ela imediatamente continuaria com o quarto componente – um pedido
bem específico: "Você poderia colocar suas meias no seu quarto ou na
lavadora?". Esse componente enfoca o que estamos querendo da outra
pessoa para enriquecer nossa vida ou torná-la mais maravilhosa (ROSEN-
BERG, 2006, p. 25).

Para o autor, uma das formas de bloquear a compaixão na comunicação


é a utilização de julgamentos moralizantes. Eles são criados, de forma auto-
ritária, a partir de percepções do que é certo e errado, conforme os valores
e experiências estipulados pela sociedade. Assim, frases como "Você é pre-
guiçoso!", "Eles são egoístas", "Eles são preconceituosos" nos afastam da
conexão com o outro. O sentimento de culpa, as rotulações, as críticas e as
comparações são formas de julgamento.
Quando o foco das atenções está em ver o que o outro fez de errado,
automaticamente nos afastamos de nossas necessidades e das necessida-
des de quem se comunica conosco. Essa maneira de comunicação é trágica,
pois afasta a possibilidade de o outro ser compassivo e, pelo contrário, ele
passa a ter postura defensiva. De outra forma, também, pode ter alguém
que decide agir conforme o esperado, ou "correto", mas estará fazendo por
medo, culpa ou vergonha, o que também resulta em afastamento.
Existem três maneiras de bloquear a compaixão na comunicação: julga-
mento (comparação); negação; e exigência. Conforme relata o autor, a lin-
guagem e a violência são temas de vários pesquisadores, entre eles Harvey,
um professor de psicologia da Universidade do Colorado:
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 161

Na raiz de grande parte ou talvez de toda violência – verbal, psicológica


ou física, entre familiares, tribos ou nações –, está um tipo de pensa-
mento que atribui a causa do conflito ao fato de os adversários estarem
errados, e está a correspondente incapacidade de pensar em si mesmos
ou nos outros em termos de vulnerabilidade – o que a pessoa pode estar
sentindo, temendo, ansiando, do que pode estar sentindo falta, e assim
por diante. Durante a Guerra Fria, testemunhamos essa perigosa maneira
de pensar. Nossos líderes viam os russos como um "império do mal" de-
dicado a destruir o American way of life. Os líderes russos se referiam ao
povo americano como "opressores imperialistas" que tentavam subjugá-
-los. Nenhum dos dois lados reconhecia o medo que se escondia por trás
daqueles rótulos (ROSENBERG, 2006, p. 40-41).

As comparações que as pessoas estabelecem entre os sujeitos, com


vistas a julgá-los, são vistas pela CNV como altamente prejudiciais para os
relacionamentos. Na escola, quando um professor se utiliza de comparação
entre alunos, destrói possíveis relações amigáveis e pacíficas entre aluno-
-aluno e/ou professor-aluno.
Da mesma forma, segundo o autor, quando acontece a negação da res-
ponsabilidade, por meio das comunicações na escola, a frase do discente
"tenho que fazer algo" acaba não sendo substituída pelos dizeres "faço a
opção por fazer algo" ou "faço porque para mim é importante", o que oca-
siona mais irresponsabilidade de seus próprios atos.
Por fim, a exigência na comunicação prejudica a compaixão, é tratar os
pedidos como algo obrigatório. Muitas vezes, familiares, responsáveis e
educadores, em geral, possuem certo grau de poder nas relações e se sen-
tem emponderados de fazer exigências para os "subordinados". Contudo,
não se pode obrigar ninguém a nada, o máximo que podemos fazer é impor
aos filhos, alunos etc. que façam algo por medo da punição, culpa ou ver-
gonha. No caso do âmbito escolar, por ser um espaço educativo, deseja-se
que estudantes possam querer mudar suas comunicações e posturas por
compreender que a mudança os beneficiará, e não por medo da punição.
Para utilizar a CNV é preciso compreender seus componentes, e por isso,
de forma didática, explicitamos, neste espaço, as quatro etapas importantes
dessa técnica, que ajudarão na realização de práticas no ambiente escolar. A
primeira etapa da CNV é a observação. Nela, o autor sugere a simples e pura
observação dos atos que geram mal-estar, sem qualquer tipo de avaliação
ou julgamento. Quando alguém observa um sujeito e, em seguida, o julga,
isso pode ser encarado como crítica, e, consequentemente, a pessoa resiste
162 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

a internalizar o que está sendo dito, tornando-se mínimas as perspectivas


de mudanças. A CNV é uma linguagem dinâmica que desestimula gene-
ralizações estáticas. Marshall Rosenberg (2006) cita o semanticista Wendell
Johnson:

Nossa linguagem é um instrumento imperfeito, criado por homens anti-


gos e ignorantes. É uma linguagem animista, que nos convida a falar a
respeito de estabilidade e constâncias, de semelhanças, normalidades
e tipos, de transformações mágicas, curas rápidas, problemas simples
e soluções definitivas. No entanto, o mundo que tentamos simbolizar
com essa linguagem é um mundo de processos, mudanças, diferenças,
dimensões, funções, relações, crescimentos, interações, desenvolvimen-
to, aprendizado, abordagem, complexidade. E o desencontro entre este
nosso mundo sempre em mutação e as formas relativamente estáticas
de nossa linguagem é parte de nosso problema (ROSENBERG, 2006, p.
50-51).

A segunda etapa da CNV é o sentimento. As relações humanas, geral-


mente, são compostas de aspectos defensivos, o que acaba propiciando a
inibição de sentimentos. Isto implica não ter grande abertura para comuni-
car a forma como estamos nos sentindo, e o que vigora é a necessidade de
rotular a maneira certa de se pensar – de preferência definida por aqueles
que exercem poder ou autoridade.
Segundo Rosenberg (2006), ao identificar e expressar sentimentos, as
pessoas preocupam-se primeiro com o que pensam os outros, em vez de
entrar em contato com elas mesmas, e isso acontece devido à forma como
foram ensinadas, isto é, tendem a imaginar como os outros acham que elas
deveriam ser, dizer ou fazer, para serem aceitas.
Rosenberg (2006) conta a história de um universitário que dizia que seu
colega de quarto deixava o aparelho de som tão alto, que ele não conseguia
dormir.

Quando pedi que expressasse o que sentia quando isso acontecia, o es-
tudante respondeu: "Sinto que não é certo tocar música tão alta à noite".
Expliquei que, quando ele dizia a palavra sinto seguida de que, estava
expressando uma opinião, mas não revelando seus sentimentos. Pedi
que tentasse novamente expressar seus sentimentos, e ele respondeu:
"Acho que, quando as pessoas fazem coisas como esta, é um distúrbio
de personalidade". Expliquei que aquilo ainda era uma opinião, e não
um sentimento. Ele fez uma pausa pensativa e então anunciou com
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 163

veemência: "Não tenho absolutamente nenhum sentimento a respeito


disso!" (ROSENBERG, 2006, p. 64).

Na linguagem é comum se empregar a palavra "sinto" sem o sentido


real de sentimentos, isto porque quase nunca a palavra "sinto" indica algum
sentimento quando vem seguida de "que", "como", "como se" ou de prono-
mes como "ele/ela". O autor dá exemplos, como: "Eu sinto que você deveria
saber isso melhor do que ninguém"; "sinto-me como um fracassado"; "sinto
que eu tenho de estar constantemente disponível" etc.
Quando um aluno anuncia "sinto que sou um mau estudante", ele está
expressando um pensamento, e não um sentimento. Por outro lado, se o
discente diz "eu me sinto desapontado comigo mesmo como estudante",
está expressando um sentimento. As duas maneiras de dizer (ora como pen-
samento, ora como sentimento) quando se utiliza a palavra "sinto", segundo
o autor, muitas vezes, não são ditas de forma clara, principalmente quando
se trata de sentimentos. Esse tipo de confusão na forma como cada um se
expressa é comum, e por isso se faz necessário identificar melhor qual co-
municação se quer expressar. Ao identificar e nomear sentimentos, o sujeito
consegue conectar mais facilmente com os outros e com ele mesmo. Outra
colocação importante é admitir a vulnerabilidade dos sujeitos em situações
de conflitos, com vistas a facilitar resoluções.
Fica claro que a CNV distingue a palavra "sentimento" dos vocábulos
"pensamento", "opinião" ou "julgamento". Segundo Rosenberg (2006), a
forma como uma pessoa se expressa ao se comunicar com outra pode esti-
mular sentimentos de raiva, mas, na verdade, a causa da raiva não foi o que
foi dito, e sim a forma como o sujeito se expressou. Os sentimentos estão
articulados com o "como" compreendemos o que os outros dizem ou fazem.
Quando recebemos mensagens negativas, por exemplo, "você é a pior
professora que já vi!", podemos reagir de quatro maneiras diferentes: 1)
culpando a nós mesmos –damos importância exagerada à informação, to-
mando-a para o lado pessoal, e sentimos culpa, vergonha ou depressão, e
neste caso há um grande custo para nossa autoestima; 2) culpando os outros
– quando culpamos os outros, é provável que sintamos raiva; 3) escutando
os sentimentos e as necessidades – ao fazer esse exercício, conseguimos
perceber por que tivemos determinado sentimento desconfortável naque-
le momento, já que descobrimos as necessidades que não estavam sendo
atendidas, por exemplo, quando uma pessoa ouve que é a pior professora
que alguém já viu, ela fica magoada, pois precisa de algum reconhecimento
164 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

por seus esforços; 4) escutando os sentimentos e necessidades do outro –


neste caso, se um estudante julga a professora como a pior que ele já viu, ela
pode pensar em quais seriam seus sentimentos e necessidades, tendo uma
comunicação como: Você está magoado porque precisa de mais considera-
ção da minha parte? Não tenho respeitado suas preferências?
A terceira etapa da CNV é a responsabilidade pelos sentimentos, quan-
do identificamos quais são as necessidades, valores, expectativas, desejos
e pensamentos naquele contexto. Assim, ao invés de culpar os outros, as
regras ou as autoridades, podemos compreender melhor quais são os sen-
timentos e as necessidades. Assim, por exemplo, troca-se a frase "Algo que
realmente me enfurece é quando erros de ortografia aparecem em avalia-
ções escolares" por "Sinto-me realmente enfurecido quando erros de or-
tografia aparecem em avaliações escolares, porque para mim é importante
que os alunos aprendam". Dessa maneira, ligam-se os sentimentos às neces-
sidades, e, assim, o problema (erros de ortografia) torna-se responsabilidade
de todos, professores e alunos.
O autor acredita que culpar alguém é mais fácil do que expressar as
próprias necessidades e que esse fato é ainda mais verdadeiro quando diz
respeito às relações da escola. Isso porque essas relações são estabelecidas
de forma hierárquica, e, assim, muitos alunos, para agradarem os docentes,
acabam negligenciando e não expressando suas próprias necessidades.
Essa é uma forma de escravidão emocional, pois estudantes avaliam que
são responsáveis pelos sentimentos positivos dos educadores, muitas vezes,
para serem reconhecidos socialmente.
Para adquirir uma libertação emocional, segundo Rosenberg (2006), de-
ve-se passar pelo estágio denominado de ranzinza, no qual há a recusa em
aceitar que os sentimentos e as necessidades de todos importam, além dos
nossos, e, em seguida, ir para o estágio nomeado de libertação emocional,
em que aceitamos totalmente a responsabilidade por nossos próprios sen-
timentos e compreendemos que os outros também são responsáveis pelos
seus. Este é o primeiro passo para entender que, ao ouvir as necessidades e
agir compassivamente com outra pessoa, também abrimos o caminho para
expressar as nossas próprias necessidades.
A quarta e última etapa da CNV é o pedido. Rosenberg (2006) indica que
temos que descobrir como pedir ao outro o que enriquece a nossa vida. Para
tanto, a primeira regra é não fazer pedidos de forma negativa, como "Não
faça baderna na sala". Isso pode gerar no outro confusão e resistência. Isto
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 165

é agravado quando o docente diz que gostaria que o discente fosse mais
responsável, mas não especifica quais as ações concretas que ele poderia to-
mar para ser mais ponderado, deixando o pedido extremamente vago. Esse
tipo de comunicação não tem respostas positivas dos alunos, já que estes
possuem percepções e interpretações totalmente únicas – e provavelmente
diferentes – sobre o que está acontecendo. Além de dificultar as relações,
essas formas de solicitação sem sentimentos e necessidades do professor
podem soar como exigências, por exemplo, "por que você não está fazendo
a tarefa de casa?", ao passo que de outra forma pode soar diferente: "estou
preocupada, porque você não está cumprindo seus deveres escolares, o que
está acontecendo?". Essa forma soa de forma mais positiva, facilitando que
o ouvinte seja compassivo e compreenda bem o pedido.
Além da preocupação com a maneira como as pessoas se comunicam,
a CNV também estabelece atenção especial no sujeito que a ouviu, ou seja,
tem-se a preocupação em saber se a mensagem foi compreendida, sendo
admirável pedir um retorno ao ouvinte, como: "Eu consegui ser clara? Você
poderia repetir o que eu disse até aqui?".
Somente quando recebemos o retorno de algumas comunicações temos
a certeza de que quem a ouviu compreendeu, ou, então, percebemos que
precisamos explicar melhor a mensagem. Quando notamos que o outro não
nos compreendeu, podemos, a princípio, validar a tentativa de repetição do
que dissemos, com palavras como: "Muito obrigada por dizer o que você
escutou, mas acho que não me fiz entender de forma clara. Então, deixe-me
tentar novamente". Se dissermos algo como "não foi isso que eu disse" ou
"você não me entendeu", isso pode soar como repreensão.

Quando começamos a pedir aos outros para repetir o que nos ouviram
dizer, isso pode parecer esquisito, porque tais pedidos raramente são
feitos. Quando enfatizo a importância de nossa capacidade de formular
esses pedidos, é comum que as pessoas expressem reservas. Elas ficam
preocupadas com reações como: "O que você acha que eu sou, surdo?".
Ou: "Pare com seus joguinhos psicológicos". Para evitar esse tipo de res-
posta, podemos explicar às pessoas com antecedência por que às vezes
poderemos pedir que elas repitam nossas palavras, deixando claro que
não estamos testando sua capacidade auditiva, e sim nos certificando de
que nos expressamos com clareza. Entretanto, se o ouvinte responder:
"Ouvi o que você disse, não sou estúpido!" – então temos a opção de
nos concentrarmos em seus sentimentos e necessidades e perguntar, em
voz alta ou em silêncio: "Você está dizendo que ficou chateado porque
166 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

deseja respeito por sua capacidade de compreender as coisas?" (RO-


SENBERG, 2006, p. 114-115).

Ao se comunicar abertamente, é comum que as pessoas queiram ser


ouvidas ou saber o que o interlocutor que a ouviu tem a dizer a respeito do
assunto tratado. Para Rosenberg (2006, p. 118), "num grupo, perde-se muito
tempo quando as pessoas não estão certas de que tipos de respostas de-
sejam em retorno a suas palavras". Assim, para obter honestidade, é preciso
saber que respostas esperamos, e para isso o autor aponta três caminhos:
1) para conhecer o que o ouvinte está sentindo, pode-se perguntar "como
se sente a respeito do que acabei de falar e quais são suas razões para se
sentir assim?"; 2) para buscar compreender o que o ouvinte está pensando,
geralmente se pergunta "gostaria de saber o que você pensa do que eu
acabei de dizer?", quando o correto seria "gostaria que você me dissesse se
acha que minha proposta terá sucesso e quais os motivos para você pensar
dessa forma"; 3) para saber o que o ouvinte está disposto a mudar em suas
atitudes – quando a pessoa está disposta, ou não, a tomar certas atitudes,
pode-se perguntar de forma específica: "Você não concorda? Você acha que
devemos adiar esta conversa?". A seguir, trazemos um exemplo dado pelo
autor:

Conheci os membros de um desses grupos, que havia se organizado


para produzir mudanças no sistema escolar local. Eles acreditavam que
vários pontos do sistema escolar eram discriminatórios para com os alu-
nos com base na raça. Pelo fato de suas reuniões serem improdutivas e o
grupo estar perdendo membros, eles me convidaram para observar suas
discussões. Sugeri que eles conduzissem sua reunião como de costume,
e eu lhes diria se visse qualquer maneira pela qual a CNV pudesse ser
útil. Um homem iniciou a reunião chamando a atenção do grupo para um
artigo recente de jornal, no qual uma mãe afro-americana fazia reclama-
ções e manifestava preocupações a respeito de como o diretor da escola
tratava a filha dela. Em resposta, uma mulher contou uma situação que
havia ocorrido com ela quando era aluna da mesma escola. Um a um, os
membros relataram experiências semelhantes. Depois de vinte minutos,
perguntei ao grupo se suas necessidades estavam sendo atendidas pela
discussão em andamento. Ninguém disse que sim. "Isso é o que sempre
acontece nessas reuniões!" – disse um homem indignado. "Tenho coisas
melhores a fazer com meu tempo do que sentar aqui e ouvir as mesmas
besteiras de sempre!". Dirigi-me então ao homem que havia iniciado a
discussão: "Você poderia me dizer que resposta estava esperando do
grupo ao trazer o artigo de jornal?" – "Achei que fosse interessante",
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 167

ele respondeu. Expliquei que eu estava perguntando que tipo de res-


posta ele desejava obter do grupo, e não o que ele achava do artigo. Ele
pensou um pouco e então admitiu: "Não tenho certeza do que queria"
(ROSENBERG, 2006, p. 116-118).

O autor acredita que, ao nos comunicar com um grupo sem dizermos, de


forma clara, o que desejamos como resposta, é comum que ocorram discus-
sões infrutíferas. Contudo, se apenas um membro do grupo tiver consciência
de pedir claramente a resposta desejada, essa consciência vai se expandir
para todos. Por exemplo, no caso relatado, um pedido poderia ser: "Estou
confuso sobre qual resposta você gostaria que déssemos para essa questão.
Você pode falar mais sobre isso?".
Quando os pedidos são interpretados como exigências, o ouvinte é
compelido a tomar uma das seguintes atitudes: submeter-se ou rebelar-se.
Contudo, ambas as opções não geram conexão entre solicitante e ouvinte,
sendo aquele visto como opressor, arbitrário. Isso acontece cotidianamente
nas relações dentro da escola, resultando em discentes que ou se rebelam
com as regras (ordens), ou se submetem, porque os educadores sempre
pedem ou se comunicam com pedidos que são explanados como uma
exigência.
Para saber se um pedido é, de fato, um pedido ou se é uma exigên-
cia, deve-se analisar qual atitude a pessoa solicitante tomará caso não seja
atendida. Se a resposta for uma acusação ou um julgamento, trata-se de
exigência, e não de pedido. Pensemos num exemplo: um docente pede ao
aluno que se sente, e este responde negativamente, dizendo que não quer
se sentar ou simplesmente que quer ficar de pé. Se o professor responde ao
aluno de forma repressora e o encaminha para a diretoria para tomar uma
advertência, não houve pedido; na realidade, era uma exigência.
Segundo Rosemberg (2006), conseguir de fato ouvir alguém não é tarefa
fácil, pois precisamos nos despir de todo e qualquer julgamento ou precon-
ceito que tenhamos. Precisamos ouvir com a alma, e não com os ouvidos
nem com o intelecto. Precisamos estar completamente presentes. Essa em-
patia verdadeira é bastante difícil de manter.
Existem algumas atitudes comuns que impedem o exercício da empatia
para com o outro:
168 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Aconselhar: "Acho que você deveria"; "Por que é que você não faz
assim?".
Competir pelo sofrimento: "Isso não é nada; espere até ouvir o que acon-
teceu comigo".
Educar: "Isso pode acabar sendo uma experiência muito positiva para
você, se você apenas".
Consolar: "Não foi sua culpa, você fez o melhor que pôde".
Contar uma história: "Isso me faz lembrar uma ocasião".
Encerrar o assunto: "Anime-se. Não se sinta tão mal".
Solidarizar-se: "Oh, coitadinho".
Interrogar: "Quando foi que isso começou?".
Explicar-se: "Eu teria telefonado, mas".
Corrigir: "Não foi assim que aconteceu" (ROSENBERG, 2006, p. 135).

A CNV fundamenta-se nos quatro pontos descritos até aqui, e estes de-
vem fazer parte das comunicações, mesmo que outros sujeitos se contrapo-
nham: é importante observar, perceber o que estão sentindo, quais são suas
necessidades e o que estão pedindo para enriquecer suas vidas. Isso é ouvir
com empatia e com presença. Para o autor, parafrasear é uma maneira de
fazer com que o outro perceba que foi ouvido. Maneiras interessantes de pa-
rafrasear são sempre focadas nas observações, sentimentos, necessidades e
possíveis pedidos do outro, demonstrando que, de fato, o estamos ouvindo
e validando seus sentimentos. Por exemplo:

O que os outros estão observando: "Você está reagindo à quantidade de


noites em que estive fora na semana passada?".
Como os outros estão se sentindo e quais as necessidades que estão
gerando esses sentimentos: "Você está magoado porque gostaria de
receber mais reconhecimento por seus esforços do que obteve?".
O que os outros estão pedindo: "Você está querendo que eu exponha
meus motivos para ter dito o que disse?" (ROSENBERG, 2006, p. 140).

Para exercer de fato a empatia para com o outro, podem-se perceber


dois sinais possíveis: a pessoa se sente aliviada fisicamente, ou então ela
para de falar. Ao perceber que não ocorreu o processo de empatia, o mais
correto a se fazer é perguntar: "tem mais alguma coisa que você gostaria
de me dizer?". Segundo o autor, "se nos treinarmos para sentir empatia por
nós mesmos, frequentemente experimentamos uma liberação natural de
energia que, em poucos segundos, nos permite estar presentes para o ou-
tro" (ROSENBERG, 2006, p. 149). A ausência de empatia deve ser lidada com
pelos menos três perspectivas diferentes: 1) parar, respirar, sentir empatia
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 169

por nós mesmos; 2) gritar de modo não violento, dizendo o que estamos
sentindo; 3) dar um tempo, retirando-se fisicamente do local.
Segundo Rosenberg (2006), receber empatia traz um enorme alívio de
tensão, e problemas que, antes, pareciam insolúveis passam a ser algo muito
menor. O autor cita exemplos de pessoas que passaram por situações apa-
vorantes e extremamente perigosas, das quais conseguiram sair usando a
CNV e escutando os sentimentos e as necessidades por trás das palavras e
das atitudes das pessoas. Segue uma delas, relatando o que aconteceu com
uma mulher que foi vítima de um assalto:

Agressor: Tire a roupa!


Vítima: (notando que ele estava tremendo) Estou percebendo que isso é
muito assustador para você.
Agressor: Você me ouviu? P..., tire a roupa!
Vítima: Sinto que você está realmente irritado neste momento e quer que
eu faça o que você me diz.
Agressor: Isso mesmo, e você vai se machucar se não fizer.
Vítima: Gostaria que você me dissesse se há alguma outra maneira de
atender as suas necessidades que não me machuque.
Agressor: Eu disse para tirar a roupa!
Vítima: Estou percebendo o quanto você quer isso. Ao mesmo tempo,
quero que você saiba o quanto estou me sentindo péssima e assustada e
como eu ficaria grata se você fosse embora sem me ferir.
Agressor: Dê-me a sua bolsa (ROSENBERG, 2006, p. 165).

Mesmo utilizando todas as técnicas da CNV corretamente, ainda é pos-


sível que o sujeito com quem nos comunicamos diga "não" e, simplesmente,
não atenda ao nosso pedido, isto é, assim como nós, o outro também é livre
para tomar decisões. Dependendo da situação conflituosa, não devemos
levar uma negativa como algo pessoal, mas tentar compreender quais os
sentimentos e as necessidades do outro por trás disso.
Para Rosenberg (2006), talvez a faceta mais importante da CNV seja a
autoempatia. Precisamos sentir compaixão por nós mesmos, para que a te-
nhamos com relação aos outros. O autor afirma que a maioria das pessoas é
muito dura consigo e se julga quando comete qualquer tipo de erro. Assim,
mesmo aprendendo com o erro, talvez sejamos severos e maléficos.
Nas palavras de Rosenberg (2006, p. 181): "eu gostaria que a mudan-
ça fosse estimulada por um claro desejo de melhorar nossa vida e a dos
outros, em vez de por energias destrutivas como a vergonha ou a culpa".
Geralmente, os nossos duros julgamentos com relação a nós mesmos estão
170 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

relacionados à ideia do dever. Assim, evitar dizer ou pensar "eu deveria" é


uma boa forma de exercer a compaixão por nós mesmos. Isso porque o ser
humano não foi feito para ser escravo, mas para ter liberdade. Por essa razão,
temos a tendência de responder a uma exigência de forma resistente. O
autor afirma que, quando nos tratamos com julgamentos, culpa e exigências,
estamos nos vendo "mais parecidos com uma cadeira do que com um ser
humano" (ROSENBERG, 2006, p. 183).

Então, quando estamos fazendo algo pouco enriquecedor, nosso desafio


é o de nos autoavaliarmos a cada momento de forma tal que leve a uma
mudança: (1) na direção em que gostaríamos de ir, e (2) por respeito e
compaixão para com nós mesmos, em vez de por ódio, culpa ou vergo-
nha (ROSENBERG, 2006, p. 183).

Também disserta sobre a importância do autoperdão:

Voltando a atenção àquela parte de nós que escolheu agir daquela


maneira, levando à situação atual, nos questionamos: "Quando me
comportei da maneira da qual agora me arrependo, qual de minhas ne-
cessidades eu buscava atender?". Acredito que os seres humanos estão
sempre a serviço de necessidades e valores. Isso é verdadeiro tanto se
a ação atender à necessidade quanto se não atender a ela, e tanto se
acabarmos comemorando a ação quanto se nos arrependermos dela
(ROSENBERG, 2006, p. 185).

E a autoconexão com nossas necessidades de forma empática aumenta


as chances de trazermos aprendizados libertadores. Para o autor, não de-
vemos fazer nada que não seja por prazer, sendo muito criticado por esse
posicionamento. Segundo suas reflexões, mesmo quando estamos realizan-
do um trabalho duro, temos a possibilidade de contribuir para que tanto a
nossa vida quanto a dos outros fiquem melhores. Ao fazer isso, sem culpa,
dever, vergonha, medo ou obrigação, sente-se prazer de realizar qualquer
tipo de trabalho. Por outro lado, uma atividade que poderia ser prazerosa,
porém, executada por medo, culpa, dever, obrigação ou vergonha, deixará
de sê-lo e acabará gerando resistência.
A CNV não prevê que a raiva seja sufocada, mas que o sujeito possa
expressá-la de forma não conflituosa. Como dito anteriormente, o autor
acredita que não se deve culpar ninguém pelo que nos fizeram, já que nunca
são as causas de nossos sentimentos. O que alguma pessoa te fizer pode ser
o estímulo, mas nunca a causa. Segundo o autor, quando sentimos raiva, na
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 171

realidade, temos alguma necessidade que não está sendo atendida. Assim,
ele propõe que usemos a raiva como "radar" para perceber nossas necessi-
dades. Como forma de praticar esse olhar, seria bom substituir a frase "estou
com raiva porque eles" por outra: "estou com raiva porque estou precisando
de".
Quando nos sentimos com raiva, podemos reagir rapidamente, gerando
violência. "A violência vem da crença de que as outras pessoas nos trazem
sofrimento e, portanto, merecem ser punidas" (ROSENBERG, 2006, p. 205). A
proposta é passar por quatro passos para controlar a raiva: 1) parar e respirar,
antes de tomar qualquer atitude; 2) perceber quais pensamentos indicam
julgamentos; 3) conectar-nos com nossas necessidades; e 4) expressar, para
o outro, quais sentimentos e necessidades não estão sendo atendidos. Este
é um exercício difícil, pois, muitas vezes, é mais fácil reagir de forma violenta
para com o outro. Para passar do passo 3 ao 4, precisamos exercer nossa
empatia para com o outro, isto é, para com seus sentimentos e necessidades
que, também, não foram atendidos. Para manter-se na CNV, é preciso prati-
car e caminhar em seu próprio ritmo.
Geralmente, na escola, quando um educador utiliza a força, o faz visando
a "correção" de um ou vários alunos, buscando que estes de alguma maneira
"sofram" o suficiente para perceberem que estão errados e, assim, se arre-
pendam de suas atitudes e mudem. Contudo, é mais provável que esse tipo
de ação gere ressentimento e hostilidade nos estudantes, pois esse tipo de
atitude gera resistência às mudanças que os educadores estão buscando.
Para Rosenberg (2006, p. 237), "a depressão é indicativa de um estado
de alienação de nossas próprias necessidades". Isso porque, em nossa cultu-
ra, somos ensinados a não ter consciência de nossas próprias necessidades
e também, em contrapartida, de como julgamos os outros. Ele conta a his-
tória de uma mulher com depressão que foi solicitada a indicar quais vozes
surgiam em sua mente quando se sentia mais deprimida e a escrevê-las na
forma de diálogo, como se fossem duas pessoas conversando:

Voz 1: (a "profissional") Eu deveria fazer algo mais por minha vida. Estou
desperdiçando minha educação e meus talentos.
Voz 2: (a "mãe responsável") Você não está sendo realista. Você é mãe de
dois filhos e não consegue nem dar conta dessa responsabilidade; então,
como pode dar conta de qualquer outra coisa? (ROSENBERG, 2006, p.
237).
172 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

É possível notar que essas vozes estão impregnadas de julgamentos,


como "deveria", "desperdiçando minha vida" e "não consegue dar conta".
Assim, a mulher foi solicitada a transformar esse diálogo interno em um
diálogo "não violento", da seguinte forma: "Quando acontece (a), sinto-me
(b), porque preciso de (c). Portanto, agora eu gostaria de (d)".

Ela substituiu o "Eu deveria fazer algo mais com minha vida. Estou des-
perdiçando minha educação e meu talento" por "Quando passo tanto
tempo em casa com meus filhos sem exercer minha profissão, sinto-me
deprimida e desestimulada, porque preciso da realização que outrora
tive em meu trabalho. Portanto, agora gostaria de encontrar um empre-
go de meio expediente em minha profissão". Aí foi a vez de a voz da
"mãe responsável" passar pelo mesmo processo. Suas frases iniciais –
"Você não está sendo realista. Você é mãe de dois filhos e não consegue
nem dar conta dessa responsabilidade; então, como pode dar conta de
qualquer outra coisa?" – foram transformadas em: "Quando me imagino
indo trabalhar, sinto-me amedrontada, porque preciso ter certeza de que
as crianças estarão sendo bem cuidadas. Portanto, agora eu gostaria de
planejar um meio de proporcionar cuidados de qualidade para meus
filhos enquanto trabalho e de encontrar tempo suficiente para ficar com
as crianças quando eu não estiver cansada" (ROSENBERG, 2006, p. 238).

A mulher sentiu enorme alívio ao fazer esse exercício, porque pôde ofe-
recer empatia a si própria, e não mais se julgar. Assim, poderia começar a
pensar em estratégias para a satisfação de suas necessidades.

Considerações finais
Ao retomar a finalidade deste texto, acredita-se que a leitura e o estudo
mais aprofundado a respeito de habilidades e estilos de comunicações e
interações na escola devem ser embasados com empatia ou, como o próprio
Rosenberg (2006) indica, com compaixão.
Ao refletir sobre os subsídios da teoria da Comunicação Não Violenta,
encontramos um potencial para sua utilização na esfera escolar, local em que
situações de conflitos e, por vezes, até circunstâncias violentas acontecem
no cotidiano. O princípio de julgar ou de impor conceitos de "certo" e "erra-
do" – tão presentes na fala de educadores – deve ser repensado, pois com
a CNV temos a oportunidade de vivenciar a cada dia um novo aprendizado,
observando interações e diálogos despercebidos, pela sua sutileza, mas que
nem por isso são menos importantes ou formidáveis. A prática da CNV traz
Comunicação não violenta e os benefícios nas relações escolares | 173

experiências e aprendizados que nos tornam aquilo que realmente somos.


Segundo o autor, sem um autoconhecimento não conseguimos compreen-
der nossas necessidades de forma mais correta e, consequentemente, não
propiciamos um acordo entre todos os envolvidos com a escola, o que nos
leva às violências, principalmente, a verbal, a psicológica e a simbólica.
Quando educadores e educandos se propõem a se comunicar com
menos atitudes de defesa, as barreiras desfazem-se e há possibilidades de
caminhos para compreender quais são as suas verdadeiras necessidades,
identificando com maior clareza o que realmente querem. Na contramão do
que hoje acontece no mundo – um planeta cada vez mais violento –, a CNV,
por meio de formação, pode propiciar uma perspectiva de comunicação
com mais diálogo e dinâmicas de cooperação na escola. Pode proporcionar
ao ambiente escolar um bem-estar de todos os envolvidos e a constituição
coletiva de um local mais harmônico.
O objetivo de uma escola socializadora é vivenciar relacionamentos "não
violentos", o que significa que todos devem se sentir igualmente mais com-
prometidos com sua qualidade, abdicando de avaliação e de atribuição de
juízo de valor em conversas e atitudes. Nos momentos difíceis, em que vários
conflitos e entraves acontecem na escola, nos desafios de relações cotidia-
nas, é importante lembrar que a instituição deve promover a humanização.
Ao conviver com os outros de forma empática, exploram-se as emoções e
atitudes interiores, pois, quando se tem a compreensão do que está acon-
tecendo, sente-se o alívio de conviver sem julgamentos. Os educadores e
discentes não podem se intimidar por aquilo que pessoas dizem ou fazem,
ao contrário, devem buscar um ambiente seguro, mesmo que haja conversas
difíceis, pois é crucial manter os locais da escola com menos violências.

Referências
ROSENBERG, M. B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais
e profissionais. Tradução de Mário Vilela. 2. ed. São Paulo: Ágora, 2006.
PELIZZOLI, M. L. Introdução à Comunicação Não Violenta (CNV): reflexões sobre fundamentos e
método. In: PELIZZOLI, M. L. (org.). Diálogo, mediação e cultura de paz. Recife: Editora da UFPE,
2012.
9

PESQUISA-INTERVENÇÃO E
SEUS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-
METODOLÓGICOS
Aline Cristina de Souza

Esta seção tem como finalidade abordar referenciais teóricos que emba-
sam a discussão sobre as Ciências Humanas e a questão das metodologias
de pesquisas sociais, em específico a pesquisa-intervenção, apresentando e
discutindo os pressupostos teórico-metodológicos desta metodologia. Tal
propósito tem como pano de fundo compreender um pouco mais sobre a
perspectiva da pesquisa-intervenção por conta das investigações realizadas
pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Subjetividade e Cultura
(Gepesc), lembrando que o foco deste texto não é discorrer sobre tais inves-
tigações, mas fazer uma análise de bibliografias com diferentes autores que
contribuem e esclarecem sobre a importância deste tipo de metodologia
nas Ciências Humanas e, em especial, na educação.
Rosenthal (2014) afirma que a pesquisa social busca tratar de fatos, por
meio do levantamento de hipóteses e teorias, com um objeto de estudo –
uma aproximação do pesquisador junto a seu objeto de pesquisa –, além
de um mecanismo de investigação que compreenda o processo a partir de
um olhar macro. O que implica a pesquisa social é o desejo crescente de
conhecer melhor a sociedade, tanto em suas faces quantitativas quanto nas
qualitativas. Em sua complexidade dramática – um espaço que não é linear
– a sociedade se manifesta e esconde, salta e se anestesia a torto e a direito,
irrompe e submerge cá e lá, de tal sorte que, quanto mais sabemos, mais
compreendemos que nada sabemos (DEMO, 2008).
A partir do pressuposto de que nada se sabe, isto é, de que existe o
desconhecido, Gil (2011) confirma que a ciência social tem como objetivo
fundamental chegar à veracidade dos fatos, não se distinguindo de outras
formas de conhecimento. O que torna, porém, o conhecimento científi-
co distinto dos demais é que tem como característica fundamental a sua
verificabilidade.
176 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Nessa perspectiva, Voirol (2012) aponta para o uso sistemático e recor-


rente da ciência, tornando-a desproporcional em relação às necessidades
humanas, e afirma que

A sociedade exige um autoconhecimento qualitativo, mas a ciência


oferece apenas uma acumulação quantitativa de especializações parti-
culares. A ciência está submetida a uma "especialização caótica", em
que cada domínio mantémse sob a ilusão de um monopólio da verdade.
A proliferação de disciplinas científicas especializadas, explorando em
detalhes seu universo social separado, sem que haja uma comunicação
entre elas, impossibilita a concepção da sociedade como um todo. Essa
proliferação da especialização instrumental parcial a serviço de interesses
econômicos não contribui para o desenvolvimento do conhecimento ra-
cional. Isso leva à impossibilidade de se compreender a sociedade como
um todo e oferece uma representação irracional da realidade. O estado
de crise na ciência burguesa acentua a crise na sociedade através da sua
própria organização. E esse estreitamento da racionalidade científica leva
a uma atitude positivista em que a ciência não é capaz de ser autorrefle-
xiva (VOIROL, 2012, p. 84).

Pode-se definir ciência, segundo Gil (2011), a partir da identificação de


suas características essenciais, de forma que pode ser descrita como um
meio de encontrar/buscar o conhecimento de forma objetiva, racional, sis-
temática, geral, verificável e falível. Desse modo, o conhecimento científico
do pesquisador perpassa, sobretudo, pela razão, e não pelas sensações,
impressões ou mesmo emoções, para chegar a seus resultados. Trata-se de
um processo sistemático, que se preocupa em construir um organograma
de ideias organizadas de tal forma que, racionalmente, se incluem os co-
nhecimentos parciais em totalidades cada vez mais amplas. Somado a isto,
consiste também em um produto geral, parte do seu interesse dirige-se
fundamentalmente à elaboração de leis ou normas gerais, que explicam
todos os fenômenos de certo tipo, além de ser verificável, o que possibilita
demonstrar a veracidade das informações. Por fim, é falível, uma vez que,
ao contrário de outros sistemas de conhecimento elaborados pelo homem,
reconhece sua própria capacidade de errar.
Portanto, a ciência é provável e refutável. Entretanto, quando se realiza
ciência, tem-se por trás uma extensa metodologia de pesquisa, uma neces-
sidade de delinear um método preciso. Este requer um estudo prévio e a
correlação direta com os objetivos propostos de todo o trabalho. Partindo
do exposto, Minayo (1994, p. 16) afirma que "metodologia é o caminho do
Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos | 177

pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade". Os métodos


variam de acordo com a natureza da pesquisa, a área da ciência, a forma de
abordagem, o objeto-problema e as fontes, os objetivos e ainda os procedi-
mentos (PANASIEWICZ; BAPTISTA, 2013).
Tais métodos variam, sendo utilizados de diferentes formas, a partir de
cada área do conhecimento. Nessa perspectiva, Gil (2011, p. 3) discorre:

Dentre as ciências naturais estão: a Física, a Química, a Astronomia e a


Biologia. Dentre as ciências sociais estão: a Sociologia, a Antropologia,
a Ciência Política, a Economia e a História. A Psicologia, a despeito de
apresentar algumas características que a aproximam das ciências naturais,
constitui também uma ciência social. Isto porque, ao tratar do estudo do
comportamento humano, trata-o sobretudo a partir da interação entre
os indivíduos.

Assim, o delineamento metodológico corresponde, também, à definição


de qualitativo e/ou quantitativo. Neste texto, nos atentaremos apenas ao
qualitativo, devido a ser uma abordagem estritamente social.

Procedimentos metodológicos: a escolha para realizar a pesquisa


Como visto anteriormente, a pesquisa qualitativa aborda diversos
campos do saber, dentre eles: antropologia, sociologia, economia, psico-
logia, administração, biologia, ciências sociais e educação. É conhecida
também como "estudo de campo", "observação participante", "entrevista
qualitativa", "abordagem de estudo de caso", "pesquisa participante", en-
tre outras formas. Não pretendemos exaurir a busca das denominações da
pesquisa qualitativa, tampouco definir aquele tipo de pesquisa que melhor
representaria o enfoque qualitativo (OLIVEIRA; STRASSBURG; PIFFER, 2017).
Partindo desse paradigma, Galvão e Galvão (2017) indicam que é possí-
vel perceber o quanto o objeto de investigação das ciências sociais é emi-
nentemente qualitativo, tendo em vista só ser possível apreendê-lo por meio
de uma aproximação efetiva entre pesquisador e participante/campo de
estudo. A realidade social apresenta ao pesquisador fenômenos complexos
e carregados de significados, impondo a qualquer teoria ou pensamento
construído sobre eles a necessidade de trazer/apresentar seus limites, uma
vez que, ao pensar e elaborar uma explicação, o pesquisador faz escolhas,
estabelece fatalmente um processo de divisão, separação e distinção,
178 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

próprios do processo de nomeação e compreensão dos objetos e da relação


homem-mundo.
É o que afirma Minayo no excerto a seguir:

Pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se pre-


ocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode
ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um
espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que
não podem ser reduzidos à operacionalização e variáveis (MINAYO, 1994,
p. 21).

A pesquisa qualitativa corresponde, portanto, a uma percepção do


sujeito em sua individualidade, em seu caráter subjetivo, não passível de
mensuração, e por isso o seu uso nas ciências sociais e na compreensão
do mundo. São variados os tipos de pesquisas que possibilitam o uso do
método qualitativo, dentre eles as pesquisas que possuem o ser humano
como objeto de estudo, que são denominadas como "pesquisas de campo"
ou "pesquisas participativas".
Tais pesquisas partem do contexto histórico vivenciado nos anos de 1980
e 1990, e, segundo Galvão e Galvão (2017), o momento vivenciado promo-
veu no Brasil o crescimento e a disseminação de abordagens e metodolo-
gias voltadas para as ciências sociais. Desde então, cientistas de diferentes
perspectivas passaram a trabalhar com pesquisas do tipo fenomenologia-
-hermenêutica, bem como a partir da crítica dialética. Trata-se, portanto, de
um paradigma positivista, projetado para encontrar outras possibilidades
de apreender e compreender fenômenos antes não estudados, mas que
passaram a preocupar a sociedade. Assim, as ciências sociais reveem seus
processos metodológicos, refletindo a partir de uma autocrítica, com vistas a
produzir conhecimento a partir da realidade vivenciada, com agentes ativos.
Destarte, pesquisas participativas, de acordo com Soglio (2017), surgem
em um contexto de metodologias que apresentam como relevante a par-
ticipação de agentes, como mecanismo de resposta a demandas existen-
tes na sociedade para uma ciência mais aplicada aos problemas locais. Por
coabitarem contextos particulares, nem sempre os problemas podem ser
generalizados, não sendo possível realizar/aplicar um método mais conven-
cional de pesquisa. Somado a isto, acredita-se que a participação de tais
agentes possibilita o processo de conhecimento local, seleciona e define
Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos | 179

a prática ao longo do desenvolvimento da pesquisa, bem como valida o


método aplicado.
Rocha e Aguiar (2003) discorrem que o mais relevante na pesquisa par-
ticipativa consiste no conhecimento a ser produzido, e este deve, em suma,
estar permanentemente disponível para toda a comunidade, descentrali-
zando, assim, o conhecimento. A pesquisa participante configura-se como
uma metodologia com pressupostos comuns de pesquisa, porém, engloba
diferentes ações no processo investigativo e propicia enfoque a objetivos
específicos e pré-delimitados.
Assim, tem-se que dentre as pesquisas participativas se situa a pesquisa-
-intervenção, de orientação institucionalista, na tentativa de defender a não
separação sujeito/objeto e que leva em consideração a implicação do pes-
quisador, a complexidade e a indissociabilidade da produção de conheci-
mento da atuação/intervenção. Analisando e atuando nas instituições, esses
pesquisadores têm em comum a perseguição da complexidade, a postura
crítica, o combate ao reducionismo, a busca da desnaturalização e, sobre-
tudo, uma grande preocupação com a transformação dos campos em que
estão inseridos (ROMANGNOLI, 2014).
A pesquisa-intervenção surge como mecanismo metodológico de com-
preensão do social, na busca pela desnaturalização de práticas enraizadas
na sociedade que reproduzem mecanismos de sobrevivência, que considera
o sujeito como ser particular, plural e passível de criticidade dialógica. Com-
preende-se que a pesquisa-intervenção tem início por meio de dispositivos
mobilizadores, e durante todo o processo é fundamental uma participação
ativa da comunidade, implicada na análise da micropolítica ali produzida,
explicitada nos seus movimentos, nas problemáticas, nas formas de ação, ou
mesmo em processos sociais (ROCHA, 2006).

Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/objeto pesquisado é


dinâmica e determinará os próprios caminhos da pesquisa, sendo uma
produção do grupo envolvido. Pesquisa é, assim, ação, construção,
transformação coletiva, análise das forças sócio-históricos e políticas que
atuam nas situações e das próprias implicações, inclusive dos referen-
ciais de análise. É um modo de intervenção, na medida em que recorta
o cotidiano em suas tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática
– variáveis imprescindíveis à manutenção do campo de trabalho que se
configura como eficiente e produtivo no paradigma do mundo moderno
(AGUIAR; ROCHA, 1997, p. 97).
180 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Gabre (2012, p. 2-3) aponta cinco características da pesquisa-intervenção:

1. Deve acontecer dentro do contexto pesquisado;


2. É desencadeada pela demanda, contribuindo na solução de
problemas;
3. O pesquisador atua como mediador que articula, organiza encon-
tros, sistematiza as vozes e os saberes produzidos pelos sujeitos
envolvidos na pesquisa, agindo num processo de escuta ativa;
4. Interação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa;
5. As experiências cotidianas e práticas do coletivo, sistematizadas,
permitem descobertas e elaborações teórico-metodológicas.

Assim, a pesquisa-intervenção encontra-se em um rol de pesquisas que


se referem à coletividade, à participação de sujeitos. Este delineamento
rompe com pressupostos de relevância nas pesquisas sociais, como a dife-
renciação entre teoria e prática, sujeito e objeto, que baseiam a neutralidade
do pesquisador (CHASSOT; SILVA, 2018).
Especificamente, Rocha e Aguiar indicam que, "na pesquisa-intervenção,
não visamos à mudança imediata da ação instituída, pois a mudança é con-
sequência da produção de outra relação entre teoria e prática, assim como
entre sujeito e objeto" (ROCHA; AGUIAR, 2003, p. 71).
Somado a isto, Santos, Sgarbi e Santiago (2019, p. 527) discorrem que
a "pesquisa-intervenção tem por objetivo intrínseco a obtenção de algum
resultado a partir da alteração consciente da realidade, num dado contexto,
observadas as condições de obtenção desse resultado". Trata-se, portanto,
de um novo meio de realizar pesquisa contando com a participação de sujei-
tos, considerando a realidade vivenciada, o contexto no qual estão inseridos,
partindo de suas relações e de suas próprias subjetividades.
Acredita-se que a realidade a ser conhecida na perspectiva da diferen-
ça recusa codificações universais, refuta a redução das multiplicidades e
diversidades existenciais a qualquer tipo de unidade que venha a empo-
brecer o que é verdadeiro. Não mais como parte de um todo previamente
organizado, a realidade revela-se como realidade imanente, na qual o que
existe é resultado do encontro de múltiplas dimensões ou de linhas de força
(PAULON, 2005).
O conceito de intervenção, para Rocha e Aguiar (2003, p. 71), está as-
sociado à "construção e/ou utilização de analisadores, conceito-ferramenta
formulado no percurso do institucionalismo francês, que funcionam como
Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos | 181

catalizadores de sentido, desnaturalizando o existente e suas condições e


realizando a análise".
Entre os aspectos centrais que norteiam o desenvolvimento da pesqui-
sa-intervenção, destaca-se: mudança de parâmetros de investigação no que
tange à neutralidade e à objetividade do pesquisador, acentuando-se o
vínculo entre gênese teórica e social, assim como a produção concomitante
do sujeito e do objeto. Desse modo, a pesquisa-intervenção é balizada pela
reflexividade, ou seja, ela busca instaurar práticas de desconstrução das
abordagens essencialistas, androcêntricas, redutoras, restritivas, opressoras
e limitadoras das especificidades culturais e da diversidade social (MENE-
ZES; COLAÇO; ADRIÃO, 2018).
Maurente (2015) discorre que, no campo da pesquisa-intervenção, a bus-
ca pela desnaturalização de práticas que produzem sofrimento se organiza
a partir de estratégias que visam à invenção de problemas. Situações que se
fazem invisíveis pela sua regularidade em um contexto institucional precisam
encontrar vias de expressão e análise. Por isso, a pesquisa-intervenção é uti-
lizada nos mais diferentes âmbitos e cenários, sejam eles educacionais, de
saúde, econômicos etc. É um método que perpassa vários setores e contri-
bui diretamente para o conhecimento da sociedade e dos comportamentos
nela presenciados. Somado a isto, a pesquisa-intervenção também trabalha
com a dialogicidade, dando vozes a atores e considerando suas próprias
vivências. Com relação a isto, Snyder et al. (2016, p. 298) afirmam que

A participação dos atores sociais traz a perspectiva de transformação so-


cial, pois a tomada de consciência, acerca das condições de possibilidade
históricas, políticas, econômicas e sociais das condições de saúde, pro-
move questionamento sobre o que está instituído e sua transformação.

Os atores sociais podem ser transformados por meio das relações pre-
estabelecidas (condição social) e da compreensão de mundo, e essas mu-
danças estabelecem novos significados, conforme os seus discursos e suas
concepções do que é coletivo e/ou individual.

Uma alternativa em debate: análise do discurso na perspectiva de


Foucault
Fisher (2001) interpretou os postulados de Michel Foucault e compreen-
deu que se faz necessário estabelecer um nível de existência para as palavras
182 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

ditas. A autora acredita ser relevante destrinchar o próprio discurso, o qual


se caracteriza por uma complexidade e peculiaridade. Somado a isto, afir-
ma ser importante compreender os conjuntos de signos e significantes que
permeiam os discursos, quase sempre ocultos, distorcidos e muitas vezes
deturpados, com interpretações errôneas e descontextualizados. Segundo
Veyne (2011, p. 26),

Explicitar um discurso, uma prática discursiva, consistirá em interpretar o


que as pessoas faziam ou diziam, em compreender o que supõem seus
gestos, suas palavras, suas instituições, coisa que fazíamos a cada minu-
to: nós nos compreendemos entre nós.

Trata-se de dar atenção ao discurso, ao que é enunciado pelo interlocu-


tor, pela linguagem propriamente dita. De acordo com Fisher (2003, p. 377),
deve-se observar a linguagem sempre "como constituidora, como produ-
tora, como inseparável das práticas institucionais de qualquer setor da vida
humana".
Entretanto, o discurso parte de um diálogo. Sobre as relações discursi-
vas, Foucault (2008, p. 619) aponta que

As relações discursivas não são internas ao discurso, mas também não


são relações exteriores. Elas estão, de algum modo, no limite do dis-
curso: oferecem-lhe objetos de que ele pode falar (suposição de que os
objetos são formados de um lado e o discurso do outro) e determinam o
feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou
quais objetos. Essas relações caracterizam o próprio discurso enquanto
prática.

Assim, tem-se que o discurso consiste em um elemento que perpassa


todo o processo da pesquisa-intervenção, e, por ser subjetivo, necessita de
uma interpretação imparcial e neutra do pesquisador, a fim de exprimir o
contexto real do enunciado e do discurso que parte de seu interlocutor.
Para Fisher (2001, p. 198-99), "analisar o discurso seria dar conta exata-
mente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão
vivas nos discursos". Outro fator pertencente à pesquisa-intervenção remete
à relação sujeito-objeto no processo de tomada de consciência e reflexão da
temática abordada. Rocha e Aguiar (2003, p. 67) indicam que

A equivalência sujeito-indivíduo servirá para o congelamento das possibi-


lidades de análise dos processos de subjetivação, plurais e heterogêneos,
Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos | 183

sustentando a concepção de sujeito enquanto consciência unitária pre-


sente nas teorias construídas ao longo da era moderna. Além disso, o
pressuposto da interioridade, pretendendo garantias frente à ameaça
desestabilizadora da multiplicidade de uma realidade que lhe é exterior,
irá aprofundar a cisão homem X mundo.

Nessa perspectiva, Mendes, Pezzato e Sacardo (2016, p. 1739) discorrem:

Se, por um lado, a perspectiva processual dos fenômenos investigados


indica a constituição de um coletivo e de um "plano comum" entre sujei-
to e objeto, entre "nós" e "eles", por outro lado, se coloca o desafio de
resistir à captura das diferentes lógicas homogeneizantes e totalizantes
da diversidade dos sujeitos singulares, mantendo abertos os fluxos co-
municacionais entre eles. Trata-se de se constituir uma grupalidade para
além das dicotomias e hierarquias que hegemonicamente regem as re-
lações institucionais e intersubjetivas no âmbito da saúde, sobrepujando
as fronteiras preestabelecidas das disciplinas e dos saberes dos partici-
pantes da pesquisa para que, coletivamente, seja possível compreender
a complexidade da realidade investigada.

Desse modo, o discurso produzido por esses agentes/atores apresenta-


-se como o mecanismo de compreensão social.

Algumas pesquisas-intervenção realizadas com sucesso


Considera-se um fator preponderante na pesquisa-intervenção a com-
preensão das instituições, por exemplo, escola, igreja, família etc., a fim de
compreender os diferentes pontos de vista dos sujeitos/agentes que as
compõem, considerando suas vicissitudes, pluralidade cultural, práticas, me-
dos, tabus, dogmas, crenças e perspectivas, estabelecendo, assim, contato
direto com tais sujeitos/agentes, determinando trocas expressivas de conhe-
cimento e aprendizagem, ponderando contradições e expressões (GALVÃO;
GALVÃO, 2017).
Desse modo, os principais conceitos que servem como ferramentas de
intervenção nas ações coletivas são a (re)conceituação de grupo e de insti-
tuição, a análise das demandas, os analisadores históricos ou construídos e
a análise da transversalidade e das implicações. É ainda importante ressaltar
que o método na análise institucional não é só uma questão de procedimen-
to, mas uma postura frente ao trabalho, ao outro, à vida (ROCHA, 2006).
184 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Portanto, a pesquisa-intervenção é um recurso muito utilizado para o


cenário educacional e das violências. Alguns estudos foram realizados uti-
lizando este método e obtiveram resultados precisos na compreensão de
realidades diversas, como no presente livro, em que são apresentadas pes-
quisas que retratam esta metodologia e diferentes dispositivos associados.
A seguir serão descritos alguns estudos que obtiveram resultados positivos
no uso da pesquisa-intervenção.
Bonamigo et al. (2014) realizaram um estudo de caráter quali-quantitati-
vo, em que se refletiu sobre a violência no cenário escolar, e a partir de uma
pesquisa-intervenção e de revisão bibliográfica se pôde entender melhor o
que estava ocorrendo no âmbito das escolas. Participaram da pesquisa 408
sujeitos, sendo 221 alunos, 105 docentes, 63 familiares, oito coordenadores
e 11 diretores. A pesquisa propiciou discussão sobre as práticas violentas,
dando vozes aos participantes, principalmente na relação professor-aluno,
de modo que os embates serviram para melhorar as relações conflitantes.
Assim, a pesquisa permitiu compreender que o tema das violências possibi-
lita pensar também a imperiosa necessidade de superar as atuais formas es-
colares de disciplinar, as quais demonstram um estado cada vez mais agudo
de esvaziamento e esgotamento, a partir de seus próprios agentes.
Jaqueline Tittoni (2014) realizou uma pesquisa intitulada "Fotografia e
pesquisa-intervenção: reflexões sobre os modos de ver, falar e viver". Esta
tinha por objetivo fazer pensar sobre como as imagens podem orientar pro-
cessos de criação de dispositivos coletivos para tensionar as linhas de visibi-
lidade que compõem o trabalho no grupo. A pesquisa foi realizada junto a
um grupo de estudantes de Direito da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). O estudo apresentou as diferentes visibilidades referentes
às forças irredutíveis que produzem modos de ver e de dizer, organizadas
pelas instituições, e concebeu a intervenção fotográfica como um processo
que envolve o fotografar e os agenciamentos sempre diferentes entre os
equipamentos, as situações e as posições de fotografar.
Miranda et al. (2016) promoveram uma pesquisa, no Ceará, que tinha
por objetivo discutir as relações intraescolares evidenciadas na pesquisa-
-intervenção a partir do uso de mídias. A pesquisa contou com duas escolas
– uma Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) e uma Escola de En-
sino Fundamental e Médio (EEFM). A primeira escola, a técnica, contou com
um grupo de 21 alunos, e estes produziram quatro vídeos: 1) "Verdade"; 2)
"Só mais um besteirol"; 3) "Viaje na ideia"; e 4) "Vamos brincar de quê?". A
Pesquisa-intervenção e seus pressupostos teórico-metodológicos | 185

segunda escola contou com 10 alunos, e estes produziram cinco pequenas


narrativas com o celular, que se transformaram em um único vídeo, denomi-
nado "O mundo com celular". A pesquisa contribuiu para diferentes percep-
ções acerca da relação intraescolar, como competição, empregabilidade e
a concorrência, seja no estágio ou na busca por emprego. Somado a isto, a
pesquisa contribuiu para a possibilidade de um curso profissionalizante de
audiovisual, além da apresentação para todos os demais pares e gestores.
Félix e Viotto Filho (2019) realizaram um estudo que trazia a metodologia
da pesquisa-intervenção com a arte, a fim de desenvolver e compreender
o sentimento e as emoções de alunos no ambiente escolar. A pesquisa
durou 26 encontros semanais, com duração de aproximadamente 90 minu-
tos. Contou com oito crianças que frequentavam o segundo ano do Ensino
Fundamental – Anos Iniciais. Os alunos realizaram atividades artísticas com
música e pintura, como meio para o desenvolvimento afetivo e cognitivo.
Como resultado, as crianças apresentaram diferentes aspectos relacionados
às emoções. Somado a isto, a vivência das artes contribuiu para o desenvol-
vimento de empoderamento, local e espaço de fala das emoções.
Estes estudos demonstram a amplitude da pesquisa-intervenção, que
pode ser utilizada em diferentes áreas, com vários dispositivos e mecanis-
mos de compreensão e reprodução de questões relevantes para a socie-
dade. Temos, então, que a pesquisa-intervenção traz como proposta criar
dispositivos de análise da vida dos grupos na sua diversidade qualitativa, e
isto significa que esta proposição investigativa tem como alvo o movimen-
to, as rupturas que as ações individuais e coletivas imprimem no cotidiano.
Assim, como diz Rocha (2006, p. 171), "os processos em desenvolvimento na
pesquisa-intervenção produzem permanentemente a realidade na qual cada
um de nós e os diferentes grupos são um modo de expressão".

Considerações finais
Ao retomar o objetivo deste texto, evidencia-se que os referenciais teóri-
cos deram suporte para a compreensão específica da pesquisa-intervenção.
É nesse sentido que foi percebido que a intervenção se articula à pesquisa
e produz outras relações entre: teoria/prática; sujeito/objeto; instituição de
formação/aplicação dos conhecimentos etc.
Na maior parte, o que impede a processualidade das práticas de for-
mação nas universidades está na perspectiva de utilizar modelos universais;
186 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

naturalizar a realidade social; buscar conceitos com especialistas científicos;


traduzir técnicas a serem aplicadas etc. Ao contrário, a pesquisa-intervenção
possibilita ao pesquisador, por meio de pesquisas empíricas, contextualizar
a realidade sociopolítica e compreender como está acontecendo efetiva-
mente a educação como campo científico.
Para Santos (1987) e Stengers (1990), o processo de caracterizações
da pesquisa-intervenção rompe com o aspecto tradicional de pesquisa e
expande as bases teórico-metodológicas, principalmente de pesquisas
participativas, como possibilidade de ação transformadora da realidade
sociopolítica.
Finaliza-se destacando que definir a pesquisa-intervenção, seus referen-
ciais que embasam a concepção de sujeito e de grupo, de autonomia, de
práticas de liberdade e de ação transformadora é estabelecer a ideia de
uma investigação capaz de interferir na relação sujeito/objeto pesquisado,
visto que essa intervenção não significa problema para as pesquisas sociais,
pois a subjetividade pode ser superada ou justificada conforme o tratamen-
to de dados e tornar-se compreensível e adequada ao conhecimento.

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10

COMPREENSÃO DOCENTE ACERCA DE


ESTUDANTES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA: ALGUNS REFERENCIAIS
TEÓRICOS
Maria Carolina do Carmo Gurgel
Tatiane Martins Moacir de Almeida

Este estudo parte da concordância com a concepção de Siqueira, Alves


e Leão (2012) de que a violência doméstica é aquela sofrida no ambiente
familiar, mas que pode ser praticada por agentes de outras relações inter-
pessoais, por exemplo, um vizinho, um parente distante ou agregado da
família. Violência intrafamiliar será, portanto, entendida aqui como aquela
praticada/sofrida dentro das relações familiares, mesmo que não exista laço
consanguíneo. Ainda de acordo com Siqueira, Alves e Leão (2012, p. 4), pode
ser considerado tudo aquilo que viole os direitos da criança, seja negligên-
cia, abuso físico, sexual e/ou psicológico. Assim, esta seção objetiva realizar
uma revisão da literatura científica a fim de verificar qual a compreensão e
atuação dos/as docentes no ensino básico sobre a violência doméstica/intra-
familiar. Este texto está dividido em tópicos: a definição do que é violência,
o que a legislação fala sobre o tratamento que a violência deve receber no
ambiente escolar e, por último, a percepção e o papel do/a professor/a em
relação às situações de violência sofridas por seus/as alunos/as.
A preocupação com o tema surgiu da percepção da ausência de abor-
dagem durante o curso de Pedagogia realizado na UFSCar, tanto nas discus-
sões em sala de aula quanto na grade curricular do curso. Durante as aulas
da disciplina "Violência na/à/da escola", foi estudado que, embora a violên-
cia nos pareça algo recente, historicamente, em meados dos anos 1950 ou
1960, já haviam relatos de violência (CHARLOT, 2002).
Em seu estudo, Charlot (2002) aponta que hoje a violência se encontra em
todos os níveis de ensino e que, embora a violência não seja algo novo nos
sistemas escolares, seus tipos e formas são. Diversas áreas de conhecimento
190 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

realizam investigações para melhor explicar as violências que vêm ocorrendo


em nossas escolas.
Para este artigo, tomaremos como definição as contribuições de Charlot
(2002), que distingue a violência de três formas: violência na escola, violên-
cia à escola e violência da escola. Quando nos referimos ao termo violência
na escola, pensamos na violência que ocorre dentro da instituição escolar,
mas que não tem nenhuma ligação com as atividades escolares, e quando
utilizamos o conceito de violência à escola estamos nos referindo a atitudes
violentas com ligação às atividades escolares, sendo atos de vandalismo, de-
terioração do patrimônio escolar, pichações exemplos de violência à escola.
Já a violência da escola é aquela recebida pelos/as alunos/as de seus/as pro-
fessores/as, funcionários/as e diretores/as. Hoje percebemos que a violência
da escola é velada, que de certa forma se naturalizou e a encaramos como
algo corriqueiro, e as notas, não permissão para sair da sala, as ameaças que
os/as professores/as fazem aos/às alunos/as são exemplos dessa violência.
Desta questão veio a necessidade de fazer uma pesquisa bibliográfica a
fim de saber o que a literatura diz a respeito do tema e como ele é tratado
dentro das escolas, particularmente dentro da sala de aula. Sabemos que a
maioria dos/as estudantes passa boa parte do tempo dentro da escola, e o/a
professor/a é a figura de autoridade com que o/a aluno/a tem mais contato
dentro do ambiente escolar. Qual o papel das/os docentes na detecção e
na atuação após a descoberta de que o/a estudante está sendo vítima de
abuso? As/os docentes estão preparadas/os para lidar com essa realidade
dentro das escolas?
O objetivo principal desta revisão é identificar e conhecer as pesquisas
que vêm sendo realizadas no país sobre a atuação das/os docentes em casos
de estudantes vítimas de violência doméstica\intrafamiliar.

Método
A fim de atingir o objetivo descrito, foi realizada uma revisão da literatura
na base de dados Google Acadêmico, sendo selecionados artigos que en-
tendemos ser mais relevantes ao campo da Educação e Psicologia. A busca
pelos referenciais teóricos foi realizada pelas autoras entre abril e maio de
2018, sendo selecionados apenas as publicações dos últimos sete anos, en-
globando o período compreendido entre 2010 e 2017.
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 191

Para tanto, foram utilizados os descritores "violência", "doméstica", "in-


trafamiliar", "crianças", "enfrentamento", "professor", "escola", "docente",
no campo "palavras do título" da base de dados. Como o objetivo prin-
cipal desta revisão bibliográfica é identificar e conhecer as pesquisas que
vêm sendo realizadas no Brasil, foram selecionados artigos publicados em
periódicos nacionais reconhecidos, portanto, publicações acerca do tema
apenas em língua portuguesa, sendo descartados os artigos publicados em
outras línguas. Também foram descartados os artigos repetidos, ou seja,
que haviam sido publicados em mais de uma base de dados. Com essa es-
tratégia, houve uma recuperação de um número maior de referências, garan-
tindo a detecção da maioria dos trabalhos publicados dentro dos critérios
preestabelecidos.
A análise dos artigos deu-se pela leitura do texto completo. Foram anali-
sados aspectos de suma importância na abordagem da violência doméstica/
intrafamiliar contra crianças, focando as consequências da violência na vida
escolar e a atuação do/a professor/a neste contexto. A necessidade de es-
colher pelas duas áreas para a pesquisa (Educação e Psicologia) foi devida
ao fato de encontrarmos poucos artigos, com os descritores utilizados, na
área da educação. A grande maioria dos artigos sobre violência intrafamiliar
é da área da saúde, especialmente a pediatria. Percebe-se, então, a suma
importância desta discussão, pois professoras/es estão sendo formadas/os,
estão entrando nas escolas e se deparando com situações de violência sem
saber a melhor forma de atuação.

Resultados e discussão
A partir dos descritores, foram encontrados 14.800 artigos. Todos os ar-
tigos selecionados têm como base a definição de violência da Organização
Mundial da Saúde (KRUG et al., 2002). Dos 14.800 artigos encontrados, 13
foram selecionados por estarem dentro dos aspectos definidos, com os se-
guintes resultados de publicação:
192 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Quadro 1 Número de artigos publicados (que atenderam os objetivos definidos) en-


contrados no período entre 2010 e 2017.
Ano Artigos
2010 1
2011 5
2012 2
2013 0
2014 1
2015 1
2016 2
2017 1

Fonte: elaboração própria.

Dos 13 artigos, três foram publicados em revista voltada para a educação,


entretanto, um deles correspondia a artigo desenvolvido por profissionais
da área da saúde. Ainda, do total, 11 eram da área da saúde (Psicologia), que
foi o curso cujos artigos melhor serviram como suporte para conceituarmos
violência contra crianças e adolescentes. Ao pesquisar os conceitos sobre
violência, os artigos mais atuais que encontramos eram do período entre
2000 e 2005.
No tocante à legislação, tomamos como marco a Constituição Federal
de 1988 e demais leis posteriores, com breve resumo das políticas públicas
que foram mencionadas em alguns artigos as quais entendemos serem im-
portantes para o desenvolvimento do artigo.
Encontramos um único artigo que mais se aproximava à nossa aborda-
gem, um estudo direcionado à Universidade Federal do Mato Grosso e cujos
gráficos tiveram como resultado a dificuldade de encontrar literatura.
A fim de buscar qual a percepção/atuação do/a docente iniciante neste
processo, fizemos leitura dos 13 artigos e encontramos entrevistas em cinco
deles. Os/as participantes eram em sua grande maioria mulheres, docentes
atuantes em escola pública, e alguns/mas atuavam em escolas públicas e
privadas.
Destes cinco artigos, somente dois envolviam docentes de Educação
Fundamental I, e em nenhum deles aparecia o/a docente iniciante como
entrevistado.
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 193

Violência doméstica e intrafamiliar de crianças no cenário atual


A definição de violência que será adotada neste texto será aquela pre-
sente no Primeiro Relatório Mundial sobre Violência e Saúde da Organização
Mundial da Saúde, que a descreve como

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra


si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG et
al., 2002, p. 5).

Considerada uma epidemia mundial e um problema de saúde pública,


a violência atinge toda a população mundial, em maior ou menor grau, de-
pendendo de classe social, cor, credo, raça, orientação sexual ou de gênero,
dentre outros agravantes. Historicamente, a violência contra crianças esteve
quase sempre vinculada ao processo educativo, constituindo-se um pro-
blema histórico-cultural que tem percorrido todas as décadas até o século
atual, nas suas diferentes formas de expressão. Ao considerar o contexto da
violência no Brasil, é possível observar sua presença desde a década de 1970
como uma das principais causas de morbimortalidade, despertando, no
setor da saúde, uma grande preocupação com essa temática, que, progres-
sivamente, deixa de ser considerada um problema exclusivo da área social
e jurídica para ser, também, incluída no universo da saúde pública (BRITO et
al., 2005).
Sobre o tema, deve-se ainda destacar a violência intrafamiliar, que de
acordo com a Secretaria de Políticas de Saúde é definida como:

Toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física,


psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro
membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum
membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função pa-
rental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder
à outra (BRASIL, 2001a, p. 15).

Na política oficial atualmente em vigor, a violência sexual contra crianças


e adolescentes passa a ser vista como um crime, verdadeiramente uma vio-
lação legal de direitos humanos universais.
194 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

O enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes


A Constituição Brasileira de 1988 (BRASIL, 1988) e o Estatuto da Criança
e do Adolescente – ECA, de 1990 (BRASIL, 1990), asseguram que crianças
e adolescentes são sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento que
devem ser tratadas como prioridade absoluta. Sobre esse aspecto, a Cons-
tituição Federal, em seu artigo 227, declara ainda que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao ado-


lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig-
nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

O ECA reafirma esse compromisso em 1990, em seu artigo 5º, em que


se lê:

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais (BRASIL, 1990).

Dessa forma, o enfrentamento a esse tipo de violência sexual tem ga-


nhado impulso no Brasil. Tem-se como marco a criação e a implantação do
Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e
Adolescentes, inserido no Plano Plurianual, a partir de 2000. Em julho de
2000, a temática ganha maior força e visibilidade com a entrada em vigor do
Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil (BRA-
SIL, 2001b), homologado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente (Conanda), que tinha como objetivo principal a ordenação
e a articulação de todos os principais atores que trabalham com a criança e
o adolescente vulneráveis à violência sexual, no sentido de definir ações e
metas fundamentais para assegurar a proteção integral da criança e do ado-
lescente em situação ou risco de violência sexual (ROCHA; LEMOS; LIRIO,
2011).
Seguindo as orientações do Plano Nacional, em 2003, a SEDH, em par-
ceria com o MEC e uma equipe de pesquisadores, elaborou o "Guia Escolar:
identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adoles-
centes" (SANTOS; IPPOLITO, 2011).
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 195

Assim, nas últimas décadas o abuso e a exploração sexual de crianças e


adolescentes entraram como prioridade nas agendas políticas internacional
e nacional, demandando reflexões teóricas e conceituais e transformando
de forma paradigmática a abordagem desse tipo de violência, de forma que
hoje há um consenso político e institucional sobre a multidimensionalidade
do fenômeno e a necessidade de uma visão interdisciplinar e multiprofis-
sional sobre a proteção da criança e do/a adolescente por todos/as os/as
profissionais que atuam com ou tratam sobre eles/as.
Reconhecendo a importância da escola na rede de enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes e o/a professor/a como agen-
te importante e responsável pela proteção integral de crianças, o ECA, em
seu artigo 245, prevê como infração administrativa, sujeita a pena de multa:

Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de


atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de co-
municar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento,
envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou
adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplican-
do-se o dobro em caso de reincidência (BRASIL, 1990).

Neste contexto, a escola passa a ser vista como agente importante e


necessário para participar da rede de enfrentamento, pois a educação, de-
vidamente entendida como direito de todos/as e dever do Estado, como
um dos princípios constitucionais fundamentais, destina-se, conforme o art.
205 da Constituição, ao pleno desenvolvimento da pessoa, a sua qualifica-
ção para o trabalho e, principalmente, ao seu preparo para o exercício da
cidadania. É fato que, para que a escola possa assumir e efetivar plenamente
essa demanda, se faz necessário garantir a qualificação dos sujeitos sociais
que a integram.
Para atender a essa necessidade e às indicações constantes no Plano
Nacional, em 2004 foi criado – além do já mencionado Guia Escolar – o Pro-
jeto Escola que Protege (EqP), uma promoção da Secad/MEC em parceria
técnica com o Instituto Partners of the Americas e com coordenação local
das pró-reitoras de Extensão Universitária das instituições públicas federais
de ensino superior. O Projeto Escola que Protege visa, de acordo com o
portal do MEC, "prevenir e romper o ciclo da violência contra crianças e
adolescentes no Brasil". Nesse sentido, pretende-se, portanto, que os/as
profissionais sejam capacitados para uma atuação qualificada em situações
196 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

de violência identificadas ou vivenciadas no ambiente escolar. Ainda confor-


me o que consta no site do MEC, o projeto propõe a capacitação de

profissionais de educação, membros dos conselhos de educação,


conselhos escolares, além de profissionais da saúde, assistência social,
conselheiros tutelares, agentes de segurança e justiça, entre outros pro-
fissionais ligados à Rede de Proteção e Garantia de Direitos de Crianças e
Adolescentes para promoção e a defesa dos direitos dessa população e
o enfrentamento e prevenção das violências no contexto escolar (BRASIL,
2018).

Para possibilitar a execução do programa, o MEC desenvolve parceria


com as universidades públicas e oferece cursos de extensão gratuitos às/aos
profissionais de educação do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.
De acordo com Faleiros e Faleiros (2006, p. 17), o EqP teve a função de
organizar e realizar o módulo presencial, uma vez que houve módulo a dis-
tância, e o ensino presencial teve como objetivo formar profissionais para
atuar na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situações de vio-
lência física, psicológica negligência, abandono, abuso sexual, exploração
do trabalho infantil, exploração sexual comercial e tráfico para esses fins, em
uma perspectiva preventiva.

Escola e enfrentamento da violência sexual contra crianças e


adolescentes
Apesar da multiplicidade de documentos apresentados, ainda é difícil
encontrar muitos dados sobre a violência sofrida por crianças e adolescentes
no Brasil. O que se sabe é que existem alguns fatores que afetam direta-
mente a situação, aumentando os casos de violação de direitos. Dentre os
principais fatores, podem-se citar a pobreza, a exclusão, a desigualdade so-
cial e questões ligadas à raça, gênero e etnia. O Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef) no Brasil divulgou que, em 2015, segundo o Disque
100, foram registradas 17.588 denúncias de violência sexual contra crianças
e adolescentes, o que equivale a duas denúncias por hora. Foram 22.851
vítimas, 70% delas meninas. Essas crianças estão dentro das escolas, e em
muitos casos é no ambiente escolar que elas revelam o abuso que sofrem,
seja explicitamente (falando sobre o que aconteceu), seja indiretamente
(por mudanças no comportamento, presença de machucados e feridas em
seus corpos, entre outros sintomas). Sobre essa relação entre a escola e a
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 197

identificação dos sintomas de violência no ambiente escolar, é significativa


a afirmação de que

Para diagnosticar se o aluno é vítima ou não de violência doméstica, a


escola tem como profissional principal o professor. Na rotina do dia a dia
escolar, na relação que se estabelece entre os alunos e os profissionais
envolvidos na educação se destaca a figura do professor. Podemos con-
siderar que o professor é o profissional que mais tempo convive com os
alunos, o que faz surgir uma relação de afetividade e aproximação entre
esses personagens. Essa relação é de suma importância, pois, além de
criar um elo de confiança entre professor e aluno, pode favorecer e dei-
xar mais evidente para o profissional as possíveis situações de violência
doméstica cometidas contra a criança (RODRIGUES, 2013, p. 3).

Os estudos têm demonstrado que, quando uma criança sofre violência


sexual, ela, de alguma maneira, "conta" o que aconteceu. Nem sempre isso
é feito por meio de palavras, pois de forma recorrente os/as que foram viti-
mados/as se manifestam apenas com gestos, comportamentos diferencia-
dos ou por meio de desenhos (SANTOS; IPPOLITO, 2011). Os/as educadores/
as, por passarem longos períodos com as crianças e adolescentes, podem
perceber tais mudanças. Além de estarem preparados/as para captar essas
pistas, nem sempre tão óbvias, os/as educadores/as precisam estar capaci-
tados/as para lidar com a criança e suas famílias. Estabelecer uma relação de
confiança com a criança ou o/a adolescente, sem preconceitos e moralismos,
é um desafio para esses/as profissionais.
O/a professor/a torna-se a pessoa mais próxima de seus/as alunos/as por
causa da relação construída no cotidiano escolar, sendo a pessoa mais indi-
cada a ser o agente de identificação da violência sexual. A Abrapia defende,
então, que "identificar os casos de violência contra a criança e o adolescente
são obrigações dos profissionais que trabalham com crianças e adolescentes
e, em especial, do professor" (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA MULTI-PROFIS-
SIONAL DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA, 1997, p. 6).
Brino e Willians (2003) ainda mencionam uma pesquisa que apontou que,
em 44% dos casos de abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes,
o/a professor/a é a primeira pessoa a saber. O/a professor/a no exercício
da sua função, no ambiente escolar, está diretamente integrado/a à rede
de proteção da criança e do/a adolescente, pois a escola tem como função
principal educar e contribuir para o pleno desenvolvimento físico, cognitivo,
afetivo e psicomotor, de forma a corroborar a construção da consciência
198 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

crítica cidadã. Todavia, quanto ao exercício dos direitos das crianças e dos/as
adolescentes, as escolas são consideradas partícipes (SANTOS; GONÇAL-
VES; VASCONCELOS, 2014, p. 133).
Garantir a qualificação dos sujeitos sociais que integram a escola se faz
necessário para que possam assumir plenamente seu papel na rede de en-
frentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, e a escola
tem, portanto, um compromisso ético e legal de notificar às autoridades
competentes casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos, o que inclui a
violência sexual. Assim, diante da gravidade que encerra a violência sexual
contra a criança e o/a adolescente e considerando que a escola deve ter
como objetivo garantir a qualidade de vida de sua clientela, bem como pro-
mover a cidadania, surge-nos a preocupação de conhecer as concepções de
professores e professoras.

Percepção e papel do/a professor/a


Das dificuldades encontradas para a realização deste trabalho, a maior
foi a falta de material bibliográfico para pesquisa. Percebemos que a litera-
tura sobre a formação do/a professor/a, especialmente a formação inicial,
dentro da temática da violência doméstica e intrafamiliar infantil, é quase
inexistente. A grande maioria dos artigos encontrados se baseia na área da
saúde, mas na área da educação a produção é bastante escassa. Com as
palavras-chave utilizadas, foram encontrados cinco artigos que discorrem
sobre a formação do/a professor/a para lidar com a violência sofrida pelo/a
aluno/a e mais dois projetos que funcionam como "manuais" de comporta-
mento para o/a professor/a.
Utilizaremos aqui o estudo feito por Elsen et al. (2011), o qual é também
utilizado por nossa segunda fonte – Siqueira, Alves e Leão (2012). O primeiro
artigo apresenta uma pesquisa realizada em duas escolas públicas do muni-
cípio de Itajaí-SC, em que foram entrevistados/as 14 professores/as e cinco
orientadores/as pedagógicos/as entre outubro de 2007 e fevereiro de 2008.
Ao longo da pesquisa foi verificado que os/as professores/as reconhecem o
que é violência, reconhecem situações de violência vivenciadas pelos/as alu-
nos/as, porém, nem sempre se sentem confortáveis para fazer intervenções,
seja por medo da represália familiar, medo de agravar a situação, pelo sen-
timento de incapacidade gerado pela gravidade do problema ou por não
acharem que seja parte de seu trabalho enquanto educador/a intervir em
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 199

assuntos familiares. A maioria dos/as entrevistados/as relata passar adiante a


situação, seja para a coordenação/orientação pedagógica ou para a direção.
Um dos fatores destacados é a falta de preparo para lidar com as ocorrên-
cias pela falta de capacitação formal.
Nos dois artigos são elencadas algumas das atitudes dos/as estudantes
a que o/a professor/a deve estar atento/a. De acordo com Siqueira, Alves e
Leão (2012, p. 5), os aspectos principais são as mudanças no comportamento
dos/as alunos/as. Cada violência sofrida desperta uma mudança diferente.
A violência física pode ser percebida por meio de hematomas, cicatrizes,
contusões em partes não convencionais do corpo (lugares que a criança não
machucaria normalmente), escoriações, e isso acompanhado de mudanças
comportamentais, como medo constante, principalmente dos responsáveis,
baixa autoestima, fuga de casa. Sobre a violência psicológica, as autoras
afirmam:

na violência psicológica, percebem-se problemas de saúde sem causa


orgânica como, por exemplo, distúrbios de fala e sono juntamente com
isolamento social, carência afetiva, regressão a comportamentos infantis,
apatia, dificuldades escolares, entre outros (SIQUEIRA; ALVES; LEÃO,
2012, p. 369).

A negligência pode ser percebida de maneira mais fácil, pois os sinais


são mais visíveis:

a negligência pode ser percebida por meio de necessidades não aten-


didas como higiene, alimentação, educação (evasão escolar), pouca
atividade motora devido à falta de estimulação, aliada ao desenvolvi-
mento de atividades impróprias para a idade como cuidado doméstico,
isolamento social, carência afetiva, falta de concentração. [...] A respeito
da violência sexual, as autoras afirmam que o professor ou a professora
devem ter um olhar mais sensível. Sintomas como doenças sexualmen-
te transmissíveis, doenças psicossomáticas sem explicação, dor para
se sentar e baixo controle esfincteriano são alguns dos mais comuns,
juntamente com comportamentos hipersexualizados, baixo nível de au-
toestima, sentimento de culpa (SIQUEIRA; ALVES; LEÃO, 2012, p. 369).

Segundo as autoras, o/a professor/a, em sua formação inicial, não re-


cebe respaldo algum para lidar com situações de violência em que se en-
contram seus/as alunos/as. Foi constatado que durante a formação inicial
não há uma preocupação formal na preparação do/a professor/a para lidar
200 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

com essas possíveis situações, formação esta que se evidenciou de extrema


necessidade.
No que tange à ação do/a professor/a iniciante, como já citado, a literatu-
ra é quase inexistente, visto que não foi encontrado nenhum material especí-
fico sobre a formação do/a professor/a iniciante a respeito do tema. Quando
as autoras (pesquisadoras) deste texto especularam sobre o assunto, surgi-
ram as seguintes justificativas: a falta de sensibilidade do/a professor/a ini-
ciante por conta da falta de preparo para perceber, reconhecer e saber agir
diante do ocorrido, a falta de preocupação do/a professor/a iniciante sobre o
tema, visto que ser iniciante na docência exige uma concentração e esforço
maior na esfera "ensino-aprendizagem do conteúdo específico". Indepen-
dentemente do motivo, fato é que o/a professor/a iniciante é ignorado/a nos
assuntos que podem ser considerados "transversais", sendo alvo apenas da
formação específica do conteúdo.

Considerações finais
O presente artigo teve o intuito de apresentar o que a literatura nacional
diz sobre a formação de professores/as iniciantes para lidar com os casos de
crianças vítimas de violência doméstica e intrafamiliar. Com as palavras-cha-
ve utilizadas na pesquisa, não foram encontrados artigos que discorressem
sobre a formação do/a professor/a na área da educação. Como explicitado
nos resultados, foram encontrados 13 artigos sobre o tema, sendo 11 da área
da saúde, somente um da área da educação e nenhum da pedagogia em
específico.
Concordamos com Rocha (2010) quando aponta para o fato de que, no
geral, as escolas estão se articulando à rede de enfrentamento da violência
sexual contra crianças e adolescentes. Este autor concluiu que as escolas
não promovem ações específicas de enfrentamento, nem mesmo adotam
medidas preventivas que contribuam para um efetivo combate a este tipo
de violência, tais como a informação da comunidade escolar sobre a realida-
de da violência sexual, a criação de ambiente que verdadeiramente inclua a
criança diferente, ou mesmo o trabalho com membros das famílias respon-
sáveis pela educação das crianças.
É a partir desta constatação da ausência da escola na rede de en-
frentamento da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes
e acreditando que este enfrentamento não obterá êxito se não houver o
Compreensão docente acerca de estudantes vítimas de violência doméstica: alguns... | 201

engajamento de toda a sociedade que defendemos ser fundamental que es-


sas instituições revejam seu papel neste processo. Diretores/as, professores/
as e orientadores/as pedagógicos/as devem estar atentos/as às situações
de vulnerabilidade, sobretudo de violência sexual, a que os/as alunos/as
possam estar submetidos/as ou que estejam vivendo. É fundamental que a
escola consiga, por exemplo, reconhecer sinais de maus-tratos nas crianças
e nos/as adolescentes. E não se trata apenas de observar as marcas físicas.
Acreditamos que, por meio da articulação da escola na rede de en-
frentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, sobretudo
integrando-a na rede de proteção, ela poderá aumentar a capilaridade das
suas ações, bem como poderá vir a ter uma maior troca de experiências com
vários atores institucionais, potencializando o acúmulo de experiência e de
conhecimento.

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11

MÚSICA NA APRENDIZAGEM
ESCOLAR: INTERAÇÕES DE UM
GRUPO INSTRUMENTAL DE
ESTUDANTES
Rita de Cássia Rosa da Silva
Maria Cecília Luiz
Aialy de Souza Oliveira

Com a promulgação da Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008 (BRASIL,


2008), que altera o artigo 26, parágrafo 6 da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação Nacional (Lei 9.394/96), a música passa a ocupar espaço dentro das
escolas, juntamente a outras linguagens como dança, teatro e artes visuais,
como conteúdo obrigatório do componente curricular da disciplina de Arte.
Mesmo com a existência dessa legislação, segundo Fonterrada (2007, 2008),
a ausência do ensino de música por tantos anos na educação brasileira pro-
piciou um descaso para com a contribuição da música em diferentes aspec-
tos na formação de estudantes. Para Souza (2014), as escolas receberam um
grande desafio para se adaptar às exigências da referida lei, devido ao longo
período de ausência de música na escola e pela falta de professores com
formação em Educação Musical.
Nesse sentido, a intenção deste texto é abordar alguns referenciais teó-
ricos sobre a importância da música na aprendizagem escolar e refletir sobre
a experiência de ter instituído um grupo instrumental (formação musical
compondo instrumentos e coral) em uma Escola Estadual de Ensino Inte-
gral, analisando os resultados de uma pesquisa-intervenção com enfoque
no desenvolvimento musical de estudantes. A proposição da pesquisa-inter-
venção ocorreu por conta de uma disciplina eletiva na escola que aconteceu
no 2º semestre de 2019, em parceria com o Grupo de Estudos e Pesquisas
em Educação, Subjetividade e Cultura (Gepesc) da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar).
204 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Rocha e Aguiar (2003) indicam que a pesquisa-intervenção possui uma


relação entre o pesquisador e o objeto pesquisado que é dinâmica e apre-
sentam os caminhos da pesquisa, que são: ação, construção, transformação
coletiva, análise das forças sócio-históricas e políticas. A partir de estudos
teóricos, como a perspectiva do reconhecimento social em Honneth (2003),
e refletindo acerca da importância da música na aprendizagem escolar, no
entendimento das dificuldades enfrentadas na formação musical na escola,
foi possível verificar os diferentes aprendizados decorrentes das interações
experienciadas no grupo instrumental musical pelos seus diferentes atores.
Este texto está dividido nos seguintes tópicos: a contextualização da
trajetória do ensino de música no Brasil até o modelo atual; a verificação da
importância da música na aprendizagem escolar; e a reflexão sobre a experi-
ência de criação de um grupo instrumental em uma Escola Estadual de Ensi-
no Integral e os diferentes aprendizados por meio da pesquisa-intervenção.
Este estudo parte do entendimento de que "a música é a nossa mais an-
tiga forma de expressão, mais antiga do que a linguagem ou a arte; começa
com a voz e com a nossa necessidade preponderante de nos dar os outros"
(MENUHIN; DAVIS, 1981, p. 1 apud PENNA, 2018, p. 28). Para Penna (2018), a
música pode ser entendida "como uma atividade essencialmente humana,
de criação de significados, [...] de caráter dinâmico" (p. 13), e, "sendo uma
linguagem artística, culturalmente construída, a música – juntamente com
seus princípios de organização – é um fenômeno histórico e cultural" (p. 28).
Segundo Caetano e Gomes (2012), a música é a forma de linguagem
artística manifestada pelos sentidos e que se faz presente desde a fase in-
trauterina, em que a criança já tem suas primeiras interações com o mundo
sonoro. Ela exerce importante papel na formação do ser humano, o que faz
com que sua presença no currículo escolar seja de suma importância.
Ao refletirmos sobre a importância do ensino de música na aprendiza-
gem escolar, devemos considerar que a música sempre esteve presente na
educação do ser humano, modificando-se juntamente às transformações da
sociedade em cada época. Para melhor compreensão da importância do
ensino de música dentro do contexto escolar e de como se ensina no mo-
delo atual de ensino, é preciso entender quais foram os processos que nos
trouxeram até o atual momento, como nos mostram alguns autores (FON-
TERRADA, 2007, 2008; FIGUEIREDO, 2013; QUEIROZ, 2012, MARTINS, 1992;
LOUREIRO, 2001; SOUZA, 2014).
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 205

Contextualização da trajetória do ensino de música


Para compreender o modelo contemporâneo de ensino de música na
educação brasileira, faz-se necessário entender quais processos nos fizeram
chegar até o presente momento e como esse ensino foi visto durante as
reformas da educação, sua inserção no currículo e qual a importância que a
música ocupou em diferentes períodos da história de nosso país. Para tanto,
verificou-se a necessidade da realização do levantamento de um referencial
teórico que nos mostrasse como a música, através da história, esteve presen-
te na educação da humanidade, modificando-se com as transformações de
cada sociedade, ocupando um lugar de maior ou menor destaque em cada
época.
Martins (1992), ao apresentar uma síntese histórica da música na socie-
dade ocidental, partindo da civilização greco-romana, relata-nos que a mú-
sica tinha grande influência na formação do caráter e da cidadania, ligada
a outras linguagens artísticas, como a dança, o teatro e a poesia. Segundo
o autor, "para os gregos a música educa, aprofunda e refina as ideias, os
sentimentos e as expressões do ser humano. Por essa razão, ela tem pre-
sença marcante na formação do jovem, na sua preparação para exercer a
cidadania" (MARTINS, 1992, p. 7).
Ainda segundo Martins (1992), o primeiro músico e teórico a destacar-
-se por suas preocupações e virtudes pedagógicas foi Guido d’Arezzo (990-
1050), monge italiano que criou vários recursos para o ensino da leitura e
escrita musical. Conforme o autor, no período da Idade Média a música
alcançou as universidades, compondo uma das disciplinas da estrutura cur-
ricular do Quadrivium, junto à aritmética, geometria e astronomia, e a Igreja
Católica demonstrou grande interesse na leitura e escrita musical. Durante
vários séculos esteve presente nas igrejas como forma de catequese e de
adoração a Deus, usada para estabelecimento de costumes e transmissão
dos conhecimentos litúrgicos, sendo dividida em músicas sacras e profanas,
esta última ligada às camadas sociais menos abastadas.
Martins (1992) também nos relata que, após a Revolução Francesa, a
música definitivamente alcançou o povo e passou a ser considerada uma
linguagem, por ser entendida como racionalidade pura, e também a mais
universal das linguagens. Com a entrada do século XX, as transformações
econômicas, políticas, sociais e ideológicas provocaram grandes mudanças
na cultura e nas artes. O aumento populacional, o surgimento de novos sons
pelas indústrias modificaram de maneira significativa a música.
206 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

No decorrer do século XXI, segundo o trabalho de Bertoni (2001), a músi-


ca passou a ser objeto de exploração do mercado de consumo, favorecendo
a Indústria Cultural, fazendo com que a educação musical de qualidade se
tornasse cada vez mais cara. Segundo Adorno (1986), a música passou a ser
usada como forma de massificação e dominação cultural, interferindo no
desenvolvimento natural da cultura popular. Dessa forma, a repetição mu-
sical torna-se reconhecimento, e o reconhecimento transforma-se em acei-
tação, compreendendo a "teoria do ouvinte". Para Adorno (1986, p. 125), "a
repetição confere ao hit (música) uma importância psicológica que, de outro
modo, ele jamais poderia ter".
No que se refere ao ensino de música no Brasil, segundo Loureiro (2001),
seu início tem como ponto de partida o processo de colonização, em 1549,
com a vinda dos jesuítas, apesar de já existir a prática musical indígena. Os
padres jesuítas utilizaram-se da música como fonte para a catequização dos
indígenas em função da forte ligação que estes tinham com essa manifesta-
ção artística. No período colonial a educação formal não sofreu muitas alte-
rações do modelo implantado pelos jesuítas, que foram expulsos da colônia
em 1759 pelo Marquês de Pombal.
Loureiro (2001) também nos relata que, com a vinda da Família Real de
Portugal para o Brasil, em 1808, a situação do ensino de música se alterou,
uma vez que a igreja perdeu a supremacia em seu ensino e a música se es-
tendeu ao teatro, mantendo como repertório as obras musicais europeias.
Até este período, o ensino de artes no geral não estava inserido no currículo
das escolas públicas brasileiras, e sua inserção oficial deu-se em 1854, por
um decreto que determinava que o ensino de música ocorresse sob dois as-
pectos, "noção de música" e "exercício de canto", sem mais detalhes sobre
o assunto.
Queiroz (2012, p. 25) mostra-nos em seu trabalho uma análise de "cinco
momentos históricos caracterizados pela promulgação de leis, decretos e
decretos-lei, que marcaram consideravelmente a história político-educacio-
nal da música nas escolas brasileiras". São eles: a) a música na escola primária
e secundária do Império, a partir do Decreto nº 1.331, de 1854; b) as primeiras
aspirações para a música na escola do Brasil republicano, a partir do Decreto
nº 981, de 1890; c) a inserção e prática do canto orfeônico como base para as
aulas de música no ensino secundário, a partir do Decreto nº 19.890, de 1931;
d) a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 4.024,
de 1961, alterada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 207

5.692, de 1971, que inclui a Educação Artística (substituindo o canto orfeôni-


co) como componente educacional; e) a aprovação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 1996, alterada pela Lei nº 11.769,
de 2008, que traz de volta a música como componente curricular obrigatório
na educação básica brasileira.
Figueiredo (2013), ao abordar as transformações no ensino de música,
diz: "ao se traçar uma linha do tempo, nota-se que, desde o século XIX até os
dias de hoje, a música esteve presente nos currículos escolares, com diversas
abordagens" (p. 31). Segundo Fonterrada (2007, p. 28), com a promulgação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71, em 1971, o ensino
de música, que até o momento seguia o mesmo modelo desde a época do
Canto Orfeônico, perdeu seu espaço no currículo escolar, no qual a música
foi a linguagem que mais teve problemas para se adaptar ao novo modelo
estabelecido por essa lei.
Fonterrada (2007, p. 28) também nos fala que as transformações que
ocorreram no ensino de música na educação brasileira no século XX, provo-
cadas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71, fizeram
com que a música e outras linguagens fossem incorporadas numa única
disciplina, a Educação Artística, e o professor passa a lecionar de forma po-
livalente em cursos de Licenciatura.
Outro ponto que contribuiu para as modificações no ensino de música
na educação brasileira é que, de acordo com a orientação da Lei 5692/71, a
Educação Artística passa a ser considerada atividade, e não mais disciplina,
dentro do currículo escolar. Fonterrada (2007, p. 28) fala-nos que as ativida-
des de Educação Artística eram oferecidas de maneira marginal ao currículo
escolar, com organizações conforme as conveniências da própria escola,
sem o cumprimento de um plano definido e sem avaliação. Após um longo
período da história da educação brasileira, a partir da promulgação da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, o país iniciou
uma preparação para adotar novas condutas educacionais (FONTERRADA,
2008). No texto da referida lei, no art. 26, parágrafo 2º, verifica-se o retorno
da arte como componente curricular obrigatório, como segue:

Art. 26 [...]
§ 2º O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório,
nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o
desenvolvimento cultural dos alunos (BRASIL, 1996).
208 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Segundo Fonterrada (2008), abre-se assim um espaço para as discus-


sões sobre o que é educação musical e o que pode ou não ser apropriado
para o contexto das escolas brasileiras, nos diferentes níveis da educação.
Com a promulgação da Lei Federal 11.769/08, a música passa a ser conteúdo
obrigatório, porém, não exclusivo dentro da disciplina de Arte, a partir da
inserção do § 6º do art. 26:

da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescido do


seguinte § 6º: [...]
§ 6º A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do
componente curricular de que trata o § 2º deste artigo." (BRASIL, 2008).

Para Souza (2014, p. 115), com a implementação da Lei Federal 11.769/08,


que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de música na educação, foi
apresentado para as escolas um grande desafio. Isso porque os sistemas de
ensino tiveram três anos para se adaptar para atender a exigência da referida
lei, de forma que a música, na maioria das vezes, esteve ausente das grades
curriculares de ensino, devido à implantação da Educação Artística pela LDB
5692/71.
Ainda segundo Souza (2014, p. 115), isso fez com que o trabalho de mú-
sica nas escolas fosse realizado de maneira pouco sistemática, inviabilizando
seu acesso aos alunos de maneira democrática e inclusiva. Figueiredo (2013)
também aponta os problemas enfrentados para essa nova adaptação do
ensino de música nas escolas. Segundo o autor:

A Lei n. 11769/08 trouxe à tona discussões importantes para o ensino das


artes na escola ao estabelecer a música como conteúdo obrigatório. Ao
estabelecer tal obrigatoriedade, a lei não detalha de que maneira esta
área será incluída, que tipo de professor seria responsável pela música
na escola, qual seria a carga horária destinada ao ensino de música e
como estas atividades seriam distribuídas ao longo da educação básica,
dividindo espaços com outras linguagens artísticas (FIGUEIREDO, 2013,
p. 44-45).

Para Queiroz (2012), o grande desafio depois da Lei 11.769/08 é especifi-


car como ensinar música na escola. Segundo o autor,

apesar de a mencionada lei trazer grande contribuição, tanto para as


reflexões acerca da educação musical escolar quanto para o estabele-
cimento de ações efetivas para a inserção da música como componente
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 209

curricular da educação básica, é preciso reconhecer que diversas outras


iniciativas já foram realizadas no país a partir de decretos, leis, diretrizes
e outros documentos oficiais que vislumbram a presença curricular do
ensino de música nas escolas brasileiras (QUEIROZ, 2012, p. 24).

A partir do entendimento da trajetória do ensino de música nas escolas


brasileiras, é necessário compreender qual a importância que a música tem
na aprendizagem e como se dão as atividades musicais em espaço escolar,
por meio de possibilidades que a escola oferece, mesmo com os problemas
apresentados até o momento.

A importância da música na aprendizagem escolar


Vários são os autores que apontam a importância da música no ensino
escolar, seja pela aprendizagem da música como arte, seja pelas possibili-
dades de desenvolvimentos que vão além do conhecimento musical. Para
Garcia e Santos (2012), a música está presente em diversas situações e com
diferentes objetivos. Para os autores, a música

É vista por muitos como a primeira das artes, tanto no que se refere à
história humana quanto à sua importância na vida de todos nós. Para as
civilizações primitivas, os sons tinham significado, o qual também estava
presente em seus primitivos instrumentos. Já para nós, ela é reconfor-
tante e, muitas vezes, auxilia o nosso equilíbrio emocional. Talvez isso
aconteça porque a música nos remete ao primeiro e mais importante
som da vida: as batidas do coração de nossa mãe. O som uterino está
gravado no inconsciente e simboliza proteção, aconchego e tranquilida-
de (GARCIA; SANTOS, 2012, s/p.).

Para Chiarelli e Barreto (2005), na atualidade existem diversas definições


para música, e de modo geral ela é considerada ciência e arte, pela sua
relação com a matemática e a física (ciências) e com as manifestações por
meio de escolhas de arranjos e combinações (arte).
Gainza (1988, p. 22) relata que "a música e o som, enquanto energia, es-
timulam o movimento interno e externo no homem; impulsionam-no à ação
e promovem nele uma multiplicidade de condutas de diferentes qualidade
e grau". Para Caetano e Gomes (2012), a música é uma forma de expres-
são, de manifestação dos sentimentos, fazendo-se lembrada em diferentes
momentos da vida; ao inseri-la na educação escolar haveria uma possibili-
dade de desenvolvimento das relações afetivas, psicomotoras, cognitivas e
210 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

linguísticas, além de contribuir no processo de aprendizagem, concentração


e memorização.
Ao refletir sobre os processos de ensino de música na escola, dentro de
um contexto de ausência no cenário educacional brasileiro ao longo dos
anos e nas perspectivas apresentadas até aqui, deparamo-nos com a difi-
culdade de saber: Como trabalhar os elementos musicais? Qual abordagem
deve ser seguida? Isto é, deve-se pensar em uma educação musical voltada
para o desenvolvimento artístico-cultural dos alunos? Para o desenvolvi-
mento de práticas musicais tendo a música como objeto e finalidade em si
mesma? Ou para o desenvolvimento de diferentes aspectos, como emocio-
nal, social, recreativo, de tolerância a outras culturas, conforme apresentado
por autores como Del Ben (2013, 2015), Penna (2018), Aquino (2013), entre
outros? Ao tentar trazer respostas para essas indagações, Chiarelli e Barreto
(2005) indicam:

as atividades musicais realizadas na escola não visam à formação de mú-


sicos, e sim, através da vivência e compreensão da linguagem musical,
propiciar a abertura de canais sensoriais, facilitando a expressão de emo-
ções, ampliando a cultura geral e contribuindo para a formação integral
do ser (CHIARELLI; BARRETO, 2005, s/p.).

Em seu trabalho de pesquisa, Del Ben (2012), ao questionar licenciados


em música sobre as representações sociais e o ensino de música na edu-
cação básica, verificou que a visão de formação geral ou humana não está
desvinculada da formação musical, mas a problemática está no fato de que
o saber específico em música é tratado apenas nos aspectos procedimentais
e conceituais e, apesar de necessário, não é suficiente.
Silva (2014), ao analisar os trabalhos de Gainza, de Caregnato e de Later-
za Filho, argumenta:

embora ressaltem aspectos diferentes quanto à importância do ensino


de música nas escolas – a música como alimento, como linguagem, des-
tituída de funcionalidade e como compromisso com a formação musical
dos indivíduos –, os três autores apresentam argumentos centrados no
mesmo pressuposto, qual seja, de que a música deve ser ensinada na
escola e/ou em qualquer outro contexto por ser fundamental e inerente
à vida de qualquer ser humano (SILVA, 2014, p. 13).
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 211

Outro ponto a ser considerado, segundo Amato (2006) e Silva (2017), é o


fato de encontrarmos lacuna nos documentos oficiais e materiais didáticos
para o ensino e a aprendizagem da música no contexto escolar, principal-
mente para o Ensino Médio. No caso do Ensino Fundamental (Anos Iniciais
e Finais), a Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo (SEE/
SP) disponibiliza material didático, no formato de apostilas, com conteúdos
a serem trabalhados na disciplina de Arte, abordando artes visuais, dança,
teatro e música, porém, de maneira generalista.
Para o Ensino Médio, é possível encontrar, na página oficial do Ministé-
rio da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mé-
dio (PCN), que abordam os conteúdos a partir de uma divisão em quatro
volumes das áreas gerais de conhecimento, além do documento intitulado
"Orientações Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio – PCN +", que traz a mesma divisão do documento anterior,
mas em cada volume apresenta seus conteúdos divididos por disciplina.
Segundo Silva (2017), esses documentos de ensino e de aprendizagem
de música na escola tratam de informações generalistas sobre os assuntos
das aulas de Arte, permitindo distintas interpretações de como o ensino
de música deve ser realizado nas escolas brasileiras, em especial no Ensino
Médio.
Amato (2006), Fonterrada (2007, 2008), Aquino (2013), entre outros, tam-
bém trazem a preocupação de qual profissional tem capacidade de ministrar
as atividades musicais em sala de aula, pois a lei permite que seja um profes-
sor de arte com formação geral nas diferentes linguagens artísticas ou um
docente com especialidade em uma modalidade.
Frente a tantas incertezas e indagações que o ensino e a aprendizagem
de música apresentam no cenário atual da educação básica brasileira, o que
se conclui é que, seja pelas contribuições na formação humana, seja para a
própria sensibilização artística-cultural de nossos estudantes, a aprendiza-
gem musical na escola é de grande importância. Para Del Ben (2015, p. 122),
"sabemos que não é possível aprender música sem experiência musical ou
uma vivência direta da música (seja cantar, tocar, ouvir, compor ou improvi-
sar, por exemplo)", e a escola é o local propício para esse desenvolvimento,
seja por meio de aulas regulares ou de outras propostas de atividades.
212 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Reflexão sobre a interação do grupo instrumental: diferentes


aprendizados
Como já foi dito, diante da nova perspectiva educacional no cenário bra-
sileiro, que tem a música como componente obrigatório de ensino, os do-
centes, por conta da ausência de tradição educacional e sem um direciona-
mento para sua prática, depararam-se com várias possibilidades de ensino.
Ao fazer um levantamento bibliográfico sobre possíveis ações educativas,
nesta perspectiva, encontramos autores que, devido às experiências de ati-
vidades com oficinas e projetos de extensão, arriscaram trilhar nestes novos
caminhos para a educação musical escolar. Autores como Arroyo (1999), Silva
(2014), Vieira et al. (2004), entre outros, mostram-nos em seus trabalhos di-
ferentes práticas de ensino de música na Educação Básica, com atividades
realizadas por meio de oficinas e/ou grupos de pesquisa e extensão, nas
quais os resultados são surpreendentes, mas são atividades realizadas em
um contexto propício para seu desenvolvimento.
Nessa perspectiva, e com base em estudos realizados sobre pesquisa-
-intervenção e sobre as relações escolares, com a perspectiva do reconhe-
cimento social em Honneth (2003), foi feita a parceria do Gepesc com uma
Escola Estadual de Ensino Integral do interior paulista, no 2º semestre de
2019, que possibilitou a realização da disciplina eletiva denominada "Música
no Conde: percepção musical e expressividade".
Esta disciplina eletiva faz parte da proposta curricular de Escolas Esta-
duais de Ensino Integral da Secretaria Estadual de Educação do Estado de
São Paulo (SEE/SP), e esse modelo de disciplina permite que os alunos do
Ensino Fundamental (Anos Finais) e do Ensino Médio possam escolher, a
cada semestre, aulas que proporcionem atividades educativas alinhadas a
suas vocações, projeto de vida, desejos e realidade. Conforme o Programa
da SEE/SP, o intuito de promover as disciplinas eletivas condiz com o desen-
volvimento intelectual, emocional, social e cultural dos estudantes, além de
reduzir a evasão escolar, melhorar o clima nas escolas, fortalecer a ação dos
professores e criar novos vínculos com os alunos (SÃO PAULO, 2012).
A disciplina eletiva de música foi composta de 35 alunos dos Ensinos
Fundamental (Anos Finais) e Médio – o número máximo por sala, e a dire-
ção teve que organizar uma lista de espera para estudantes que ficaram de
fora. O requisito para matricular-se na disciplina eletiva foi o conhecimento
prévio em música, com aptidões para a prática instrumental e/ou gosto pelo
canto. Esses alunos escolheram por livre e espontânea vontade o desafio
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 213

de trabalhar com esta arte e abraçaram o sonho de criar um grupo instru-


mental. As bases do planejamento da disciplina foram às áreas de Ciências
Humanas e Linguagem e Códigos, levando em consideração não apenas
uma abordagem conceitual sobre música, mas a formação de um grupo ins-
trumental na escola, tendo como motivação central propor atividades que
possibilitassem o desenvolvimento do protagonismo juvenil, da autonomia,
da criatividade e da formação de opinião. Além disso, foi planejada, no final
do semestre, uma culminância, em que o grupo instrumental se apresentou
na escola como um evento cultural, conforme pedido pela direção escolar.
Durante as primeiras atividades realizadas, verificou-se a necessidade de
separação dos alunos em três grupos experimentais, denominados de ateli-
ês, conforme as famílias instrumentais: coral de vozes; instrumentos de cor-
das; e instrumentos de sopro. Essa separação possibilitou aos participantes
(discentes e professores da escola e membros do Gepesc/UFSCar) adequa-
ção das atividades propostas para a formação musical, no desenvolvimento
de talentos individuais e coletivos e na colaboração entre os alunos durante
a realização das atividades propostas.
Também foi possível verificar que, durante o percurso do semestre, os
processos de aprendizagem – exercícios musicais e o convívio entre o grupo
– foram mais importantes do que o produto final apresentado na culminân-
cia, que consistiu em uma apresentação do grupo instrumental como um
todo para toda a escola – alguns momentos de execução de músicas que
foram trabalhados durantes o semestre.
Alguns dos objetivos que tínhamos traçado foram: a) criar um grupo
instrumental de música, com foco não só na formação do grupo instrumen-
tal – a fim de desenvolver o gosto musical e aperfeiçoar a expressividade,
explorar os elementos constitutivos da música, promover percepção com
experimentação, reprodução e criação de sons diversos e atuação com mú-
sica na escola –, mas também a formação humana e das relações sociais;
b) aprender a trabalhar em grupo; c) fomentar formas de linguagem e ex-
pressões constituintes a partir da música; d) participar de oficinas práticas
por meio da interação e sociabilização; e e) promover o bom convívio e o
reconhecimento social.
A partir desses objetivos foi possível, durante a pesquisa-intervenção,
refletir sobre a formação humana e musical, além de verificar que havia
espaços violentos nas relações interpessoais (entre os estudantes), princi-
palmente quando verbalizavam seus diálogos ou conversas (um tom alto e
214 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

agressivo), nas brincadeiras de mau gosto com empurrões ou apelidos, na


falta de sentimento coletivo, propiciando o não compromisso com as ações
do grupo instrumental: eles não se sentiam um conjunto de pessoas tocando
música.
Segundo Rocha e Aguiar (2003, p. 66), a pesquisa-intervenção se dá
pela tendência participativa da natureza da pesquisa, "que busca investigar
a vida de coletividades nas suas diversidades qualitativas, assumindo uma
intervenção de caráter socioanalítico".
Neste contexto – de possibilidade de intervenção em espaços de con-
vivência em um grupo instrumental instituído em uma escola pública –,
refletiu-se sobre o reconhecimento social, na perspectiva de Honneth (2003).
Esta teoria permite-nos compreender a existência de um potencial significa-
tivo relacionado aos conflitos no ambiente escolar e na sociedade. Com base
nas reflexões de Honneth (2003), Silva, Ferrarini e Oliveira (2019) destacam:

A ideia de reconhecimento propicia um modo de agir entre sujeitos que


é capaz de melhorar a qualidade das relações, sobretudo na escola. É
através do reconhecimento social que se criam condições para amenizar
os conflitos e possibilidades de ver o "outro" (seja ele quem for) como
um sujeito reconhecido por suas singularidades e que por elas seja res-
peitado (SILVA; FERRARINI; OLIVEIRA, 2019, p. 162).

As autoras ainda nos dizem que é nessa interação entre os sujeitos que o
processo de formação da identidade é fortalecido, em diferentes ambientes
de convívio, incluindo o ambiente escolar. Outro ponto a ser considerado é
que, segundo Honneth (2003), o reconhecimento social possibilita o respeito
às distintas singularidades e à diversidade, com bons resultados no convívio
social. Segundo o autor, é pela intersubjetividade que se torna possível arti-
cular diversas lógicas, com a intenção de manter na escola um ambiente de
socialização, de trocas culturais e capacidade de exercício ativo da cidadania
e de formação de habilidades, nos meios de produção e existência de dife-
rentes gerações.
Ao refletir sobre as diferentes funções que a música ocupa no ambiente
escolar, seja pela sua linguagem artístico-cultural ou pelas possibilidades de
desenvolvimento humano, percebemos que a experiência vivida na escola
pública com o grupo instrumental teve êxito devido à preocupação dos pes-
quisadores e pesquisadoras com relação à convivência dos estudantes no
Música na aprendizagem escolar: interações de um grupo instrumental de estudantes | 215

cotidiano escolar, realizando um trabalho pedagógico e social com base na


autoconfiança, autorrespeito e autoestima.
Por vezes, identificamos que as violências física, verbal, simbólica e psico-
lógica estavam naturalizadas nas relações entres os alunos, inclusive na per-
cepção de docentes da escola. A maneira como dialogamos e resolvemos
os problemas, durante a disciplina eletiva, com relação às agressividades
ou à falta de respeito de um para com o outro, bem como o fato de ouvir-
mos os discentes e suas reclamações (constantes) de brigas e disputas para
chamar a atenção – levando em conta que eram adolescentes e jovens que
precisam do aval e da proteção dos demais colegas para viverem em grupos
–, permitiu que laços afetivos e de confiança se estabelecessem, entre parti-
cipantes do Gepesc, professores da escola e estudantes, um diferencial para
mudanças nos relacionamentos e nos convívios semanais. Evidentemente, a
música – o som, a busca pelo ritmo, pela melodia etc. – ajudou muito nessas
modificações de atitudes e amenizou as violências entre os alunos – as quais
eram muito fortes no início da disciplina eletiva – de forma tão precisa e
integradora que no final do semestre, em apenas quatro meses, nem parecia
o mesmo grupo instrumental.

Considerações finais
Finaliza-se esta seção resgatando os objetivos que foram propostos:
abordar perspectivas teóricas sobre o ensino e a aprendizagem da música
na escola e refletir sobre os resultados de uma pesquisa-intervenção na es-
cola pública, em especial de ter constituído um grupo instrumental com es-
tudantes. Neste contexto, afirma-se que os estudos teóricos e as interações
da pesquisa-intervenção nos fizeram compreender que, mesmo com todas
as dificuldades de efetivar o ensino e a aprendizagem de música na escola,
ocasionar diferentes atividades desta natureza, de formação musical, signi-
fica promover o desenvolvimento humano, a formação da expressividade e
da cultura musical em estudantes.
Para Menegale (1994), a cultura e a arte não podem ficar em último lugar
no currículo e nas ações da escola.

Elas deveriam sair de qualquer lista, porque não são etapas nem segmen-
tos, mas sim dimensões. Assim como se fala em política de educação,
política de transportes, não se pode falar em política de cultura. Acho
216 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

que a política é que teria que ser cultural e a arte teria que estar alimen-
tando tudo isto (MENEGALE, 1994, p. 15).

Apesar das inúmeras dificuldades em trabalhar a música na escola, como


a ausência de instrumentos para os alunos, de professores preparados e/ou
habilitados para ensinar a tocar e cantar, de local apropriado para tocar um
instrumento e/ou cantar na escola (acústica) etc., esta experiência revelou-
-nos a importância de o aluno conhecer seu gosto musical – formas e estilos
de música que aparecem conforme a curiosidade, sustentar um diálogo de-
mocrático – respeitando a todos que estão a sua volta –, constituir inovações
pelos sentidos – aprendendo sonoridades e sentindo a música –, além de
tantas outras possibilidades, o que condiz com a função essencial da escola
de prover atividades humanas com a arte.

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12

MOMENTOS DE CRIAÇÃO
COM AUDIOVISUAIS: OUTROS
CONHECIMENTOS NA EXPECTATIVA
DO OLHAR1
Renata Reis Genuíno

O que merece, ou não, ser registrado?


Como acontece essa forma de registro?
Como minhas imagens dizem da forma que vejo, entendo e sinto o
mundo?
As imagens nos atravessam: produzem memórias, sensações, cheiros,
afetos. As imagens que produzimos trazem em sua construção o entorno e
nós mesmos.
Somos educados e educamos em tal sistema visual enquanto temáticas
para produzir as imagens e, também, nas formas de registros de objetos,
pessoas, lugares etc. no audiovisual.

1 As fotos utilizadas neste texto compõem um acervo de diversas fotografias realizadas


durante a disciplina eletiva na Escola Estadual de Ensino Integral.
220 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Naturalizamos e direcionamos o que se torna "rotineiro" no olhar, mu-


dando nossa perspectiva visual e, portanto, subjetiva do que é considerado,
ou não, violento e também das maneiras como comunicamos tais violências:

a expansão das novas mídias e a adesão das mesmas pela população


mundial tem acontecido em velocidade inédita no cenário da comu-
nicação. Estudar como elas transformam o cotidiano e os modos de
comunicar se faz necessário para que conheçamos os limites e as possibi-
lidades que surgem a partir desses novos dispositivos. As transformações
estão explícitas no dia a dia do homem contemporâneo, sobretudo do
indivíduo que vive em ambiente urbano [...] as mídias modificam os es-
paços urbanos, os subúrbios, os centros e, sobretudo, as maneiras de
comunicar (BRANDÃO; COUTINHO; LEAL, 2012, p. 309).

As imagens do cinema, da televisão, das redes sociais ditam referências


na educação visual contemporânea em que estamos inseridos e em que o
sentido político-estético se coloca como um modo de subjetivação, como
uma forma ensinada de ver e sentir o mundo:

Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não


se vê na imagem, tudo o que foi subtraído para torná-la "interessante".
Mas às vezes ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e
espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que
foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo (DELEUZE,
1997, p. 32).

Durante a pesquisa-intervenção realizada na Escola Estadual de Ensino


Integral, por meio de uma disciplina eletiva que se utilizou de ateliês para
pensar as violências por meio da arte, pudemos, como qualquer outra forma
de construção de relações pela proximidade e criação, (re)colocar os víncu-
los postos em um espaço de escuta mais atenta (e, talvez, mais empática) e
com possibilidade de apresentar outras formas de olhar e de mediação dos
conflitos trazidos. Era nas conversas, nos momentos em que fotografámos,
testávamos a luz e movimentos de cena que percebíamos que "quebra es-
tética" no habitual possa, talvez, ser uma rachadura em perceber que não
há uma única forma de ser, sentir, existir, aprender... no/com o entorno e nas
relações que se colocam presentes.
É importante ressaltar que tal escuta acontecia também pelas relações
de confiança que se tornavam parte presente do processo – erámos em
média dois pesquisadores para oito alunos, e a potencialidade numérica que
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 221

se colocava era muito positiva para a condução das propostas –, em que o


falar, repensar, escutar e registrar aspectos relacionados às violências, por
meio das potencialidades estéticas das imagens, se coloca como uma ação
que diz sobre o ato de (re)educar em sua potencialidade emocional, estética,
política, de consumo, de relação etc.
Escolher formas e discursos e histórias e imagens e sons e cheiros para
construir suas fotografias, vídeos, poemas sugere o escolher, também,
aspectos que os representam como indivíduo e socialmente: filmar sob a
perspectiva do agressor e do agredido, redefinir o papel, ensaiar outras res-
postas, ouvir além do seu grupo, professor, família. Sempre havia um convite
a vivenciar a diferença.
Perceber tais nuances, talvez, seja uma forma de resistir às imagens que
nos são impostas, de perceber parte das nossas escolhas (des)naturalizadas,
sentir outras formas de se relacionar com o Outro, pautados no respeito e
na compreensão de que ele difere de mim sem uma implicação de perda de
respeito ou depreciação.
A disciplina eletiva, que apresenta como nome o lugar de criação "ate-
liê", é um convite criado, assim como uma brecha dentro das forças (hierár-
quicas) que se impõem na construção dos currículos no processo de criação.
Apropriar-se da (re)produção de imagens e sons nos convida a ressigni-
ficar as experiências com o entorno e trazer fraturas visuais no contexto de
mídias pós-massivas, em que a relação com a imagem vai além da recepção
e engloba o emitir das informações, em que somos, também, a todo tempo,
produtores de conteúdo trazendo outras (re)figurações da indústria cultural
(LEMOS, 2007, p. 128).
O contato estabelecido entre os sujeitos e os dispositivos que se pro-
põem a formar imagens, como as câmeras de celulares, e também as plata-
formas que as reproduzem – TV, internet, redes sociais etc. – contribui com
o processo de naturalização das composições de imagens ali veiculadas, a
partir do acesso facilitado a sua utilização.
A produção de imagem e suas (des)naturalizações foram abordadas no
contexto escolar para repensar os signos no cotidiano, as relações estabele-
cidas com estes e as formas com que eles nos educam nas formas de ser e
nos relacionarmos com o entorno: "o mundo não mais ocupa o espaço deli-
mitado pela sua estrutura física, mas passa a caber na palma da mão [...] e nos
chega via sms (short message service), internet e outras várias possibilidades
de comunicação permitidas no celular" (LEMOS, 2007, p. 133).
222 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Para trazer esses questionamentos à tona, com a escolha de vivenciar as


propostas com os alunos, os ateliês foram baseados na metodologia apre-
sentada por Migliorin et al. (2014), que trazem propostas de criação na escola
com o audiovisual, no projeto denominado "Inventar com a Diferença – cine-
ma, educação e direitos humanos", em parceria com a Secretaria de Direitos
Humanos e Ministé-
rio da Cultura.
Os exercícios
fotográficos e literá-
rios criados podem
ser compreendidos
como um conjunto
de regras e desafios
aplicados semanal-
mente para que os
alunos se expressas-
sem por audiovisual
sob algumas condi-
ções chamadas de
regras, por exemplo, manter a câmera fixa durante a filmagem ou represen-
tar uma história a partir de dois pontos de vista.
Recolocamos os alunos nos espaços da escola – jardim, pátio, cantina,
refeitório, sala de aula – com outras propostas práticas de observação e cap-
tação de imagens, sob novas perspectivas, que desafiavam o olhar que se
colocava de maneira rotineira.
Durante o processo, repensamos juntos – pesquisadores e alunos – as re-
lações estabelecidas nas escolas não mais como práticas hegemônicas que
levam ao silenciamento social, pois, segundo Migliorin et al. (2014, p. 12), é
na construção criativa, no fazer cinema, lidando com o seu entorno, com a
alteridade e com as diferenças que passamos a descobrir e recriar as forças
que existem em reproduzir um ponto de vista sobre o mundo:

falar em emancipação demanda a urgência de um realinhamento da


noção para que não a entendamos em um processo que supõe dois
sujeitos, o emancipado e o a emancipar. Emancipar não é tarefa de um
mestre que indica o caminho àqueles que não têm luz. Sem essa divisão,
a situação de criação no ambiente educacional demanda do mestre e das
propostas colocadas em prática, um gesto de abertura ao que pertence
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 223

aos alunos e à multiplicidade de mundos trazidos por eles. Ou seja, an-


tes de um lugar de hierarquia entre aquele que sabe e o que não sabe,
a emancipação demanda um estado de criação e montagem entre os
diversos atores envolvidos em uma produção criativo-pedagógica (MI-
GLIORIN, 2014, p. 2).

O provocar-fazer cinema é compreendido não apenas como uma ferra-


menta, um apanhado de tecnologias, um campo da arte e ou entretenimen-
to, mas sim uma forma de ver, pensar e criar com os entornos.
Nesse processo, vamos "desalojando-nos" de nossas perspectivas e
memórias, ao passo que desocupamos o lugar de espectador e adotamos
as narrações para externalizar as experiências e, dessa forma, nos reencon-
tramos com a perspectiva do outro mesmo em situações que não foram
vividas na história individual, mas, ainda assim, sentidas pela potência de
"narração por outros olhares".
Os adolescentes, nos encontros, tiveram a chance de conhecer aspectos
pessoais do outro e, da mesma forma, de lidar consigo mesmo pelos diálo-
gos, mas, principalmente, como produtores de imagens, de vídeos, de po-
emas – que os convidavam a (re)observar os entornos, a escutar os sons dos
ambientes, a rever seus autoconceitos e as formas de relação estabelecidas.
A educação imagética que se coloca em filmes, novelas, produção de
vídeos e outras mídias de compartilhamento de imagem naturaliza os aspec-
tos de violência como forma de ver e estar no mundo. Essa naturalização, en-
tretanto, acarreta observação superficial do entorno, como apresentado por
Migliorin et al. (2014, p. 33): "Estamos cotidianamente rodeados de imagens,
um excesso que, muitas vezes, nos leva à cegueira: quanto mais imagens
vemos no mundo, menos as percebemos em suas micro composições – e
cada vez mais elas se parecem umas com as outras".
Como nós, educadores, poderíamos propor questionamentos sobre
esse sistema visual que é formatado? Como, sabendo dos atravessamentos
em um mundo violento, se podem criar outras formas de (re)ação?
Reolhar a escola é abrir-se a suas possibilidades, e o que era, então, natu-
ralizado foi identificado como uma criação: criação pelas montagens de ima-
gens, da mídia, da coordenação, do currículo etc. Logo, se tais aspectos são
criados, são também percebidos pelos alunos como passíveis a mudanças:
224 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

a atualização de uma potencialidade revolucionária explica-se menos


pelo estado de causalidade, no qual, todavia, ela está compreendida,
do que pela efetividade de um corte libidinal num momento preciso,
esquiza cuja única causa é o desejo, isto é, a ruptura de causalidade que
força a reescrever a história no próprio real e produz esse momento es-
tranhamento plurívoco onde tudo é possível (DELEUZE; GUATTARI, 2011,
p. 501).

São momentos de criação, de negação de conteúdos e imagens que


nos bombardeiam, pensando quais as lógicas que gostaríamos presentes
na relação. Para isso, aprendemos, como educadores, a ouvir para, então,
enxergar melhor aquilo que os alunos gostariam de nos mostrar sobre eles,
sobre os processos de ensino, sobre a escola como lugar de (in)seguranças,
como possibilidade de compartilhar sonhos, angústias e desejos.
Sonhos, angústias e desejos que vazam em imagens e palavras, mas,
muitas vezes, não estamos prontos a escutar, não estamos aptos a ver e,
tampouco, escrever
enquanto relato, já
que o próprio ato
de escrever, como
coloca Deleuze
(1997), é um caso
de devir, sempre
inacabado, sempre
em via de fazer-se e
que extravasa qual-
quer matéria vivível
ou vivida.
Produzir ima-
gens de si e da es-
cola, com desafios que desnaturalizam o uso da máquina, em um contexto
no qual a produção de imagens já é algo rotineiro, é um convite a repensar
as potências de criação. Outras estratégias narrativas se colocam, outras
formas de criar na escola:
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 225

Criação de si.
Criação do coletivo escolar.
Criação de novas formas de relação.
E, então, por que não criação de relações que não sejam pautadas na
violência, mas em escuta, confiança, atenção e respeito às diferenças?

A disciplina eletiva, como possibilidade adicionada ao currículo que foge


da necessidade de
mensuração com nota,
mas com avaliação pela
participação e enga-
jamento, teve como
proposta repensar e
ofertar outras formas
de organização do pró-
prio espaço formativo
do currículo escolar.
Dada essa possibili-
dade, criamos brechas
no ver, ao compartilhar
perguntas que refor-
mam a noção naturalizada da escola enquanto uma hierarquia vertical, estru-
tural e, por vezes, violenta: por que as cadeiras são organizadas assim? Por
que temos que aprender esses conteúdos nesses tempos? Qual a melhor
forma em que eu aprendo? Além do conteúdo, o que mais a escola me
ensina?

Adicionamos novas
imagens à escola.
A aula não era na sala.
Quem mais falava não
eram os professores.

A busca pelo "vídeo-


-imagem-fotografia-
-poema-forma de ex-
pressão" que os ateliês
226 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

provocavam acontecia por meio de processos provocativos: os alunos, a


coordenação e os pesquisadores enxergavam outras visões e perspectivas
da forma que educamos e para quem educamos.
Brincamos de reposicionar a visão dos alunos,
Muitas vezes desfazíamos as nossas:

se o ensino de cinema pode ser atravessado pelo desejo que rompe uma
causalidade e uma linha reta do mestre ao estudante, esse princípio de
igualdade demandaria o desaparecimento do mestre? A descentraliza-
ção total? Entendemos que não. A igualdade não é uma igualdade de
posição do sujeito, mas uma igualdade produtiva, fruto da produção do
coletivo que não existe sem o trabalho e a igualdade de inteligências – a
possibilidade de um sujeito qualquer fazer parte e diferença na criação.
Partir da igualdade não é, assim, dizer da indiferença entre professores e
estudantes, mas partir das possibilidades inventivas do grupo que de-
pende de um princípio de igualdade de inteligências que se atualizam
[...] e não por princí-
pios exteriores a essas
(MIGLIORIN, 2014, p.
3).

A naturalidade e individua-
lidade eram tensionadas quan-
do provocávamos o pensar, a
produção das experiências em
grupo, com todos, em relação.
Para que a cena-ideia aconte-
cesse, o grupo precisa se en-
gajar a seguir o desafio criado,
a interagir com os objetos no
presente e buscar formas de romper aquele cenário habitual escolar e des-
tacar o silencioso-sensível da imagem que se coloca no processo de rotina:
aulas de 50 minutos, com os corpos parados, sentados, em fileira, ouvindo.
A formação desses grupos no surgir da ideia e do debate das temáticas
que envolvem a violência que vivenciam necessitava da acolhida da dúvida,
e não do seu silenciamento, o que por si só já foge de aspectos que antes
violentavam, silenciosamente, os processos criativos, por exemplo, ao trazer
a possibilidade de dizer "não sei" e da resposta "não esperada", e assim ter
o acolhimento do grupo, abraçar as dúvidas – já que questionávamos todas
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 227

as formas de certeza – e buscar o descobrir, o tentar, o inventar novas formas


de lidar com nós mesmos e os outros:

Criamos no dia a dia escolar, momentos de lacunas (?)


Outras experiências e relatos surgiram (.)
Outras imagens e memórias transbordaram (!)
Outras tantas ----- Lacunas, ficaram.
Ficaram.
Permaneceram presas nas próprias limitações que o título de educador(a),
no contexto escolar, com nossas dificuldades de escuta e expressão,
prende.

Muito ainda havia o que aprofundar,


Sempre nos lembrávamos
(e sempre sentíamos)
Também que tínhamos nossas prisões
Que também somos violentos:
Mas a pergunta é como não ser?
somos fruto dessa educação que
também silenciou
que também impediu os atos de
criar
A questão é que, como
educadores,
Temos muito o que desaprender,
para, então,
aprender a ver-com-o-outro,
a sentir-com-o-outro,
não só tolerar o diferente,
mas acolher as diferenças como forma
de ser e estar COM o outro
228 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

A imagem e as criações se colocam como uma pequena ponta do pro-


cesso, sendo a noção da experiência com alunos aquela que fica como ver-
dadeiramente o processo
inovador em nossa propos-
ta de desnaturalização da
violência que se aplica,
também, na padronização
do olhar.
A violência em uma úni-
ca forma de ver o mundo é
estrutural?
Será a câmera fotográ-
fica uma forma de deslocar
esse olhar?

E a partir daí, o que sobra das


-relações-
-ações-
-reações-
Violentas que sofremos?
Ou vivenciamos?
Exercitamos outras formas de
escuta
incentivamos as mudanças no
olhar
Mas quais são as novas
molduras de si
~ e para si ~
(re) criados?
Novos enquadramentos
sobre o mundo
Outras possibilidades para a
escola
Reagir e agir sobre o que
incomoda.
Sabemos que as estruturas de subjetivação não serão desfeitas, mas
qual a potência de criar, para si, as imagens que representam, ou não, o que
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 229

eu sou? E quem melhor que os alunos para mostrar e criar suas imagens para
o mundo?
Conversar sobre o que é violência, e em grupo, é trazer à tona muitas
concepções (inclusive perspectivas diferentes) sobre o que é "natural" nas
relações. E, a partir da descoberta, potencializada pela imagem, as possibili-
dades de criação de mundo e narração ganham compartilhamento, pois ao
se criarem novas imagens também aparecem novos olhares, e a fotografia
deixa de ser apenas registro visual ou memória, mas formas de ser e existir.
O trabalho com exercícios fotográficos associado à desnaturalização das
violências foi uma forma de tensionar o real, suspender uma normatividade
– às vezes violenta – e instaurar novas possibilidades de ver, sentir e agir
sobre o mundo: percebemos que, ao evidenciar essa nova prática de escuta
durante as conversas, há o surgimento de novas vozes, antes silenciadas, que
narravam suas histórias e acolhiam as dores, sentimentos e alegrias do outro.
Quais são as aspirações da imagem? Foto tem objetivo?
A imagem e o vídeo são presos à atuação para passar sensações?
Mas, então, como eu represento a raiva sem agressão? Como represento
choro sem lágrima? Como falar da solidão em sentir-se sozinho em um inter-
valo, ou na aula, lugares cheios de pessoas?
As decisões de reposicionamentos, as novas perspectivas e os novos
intervalos entre as imagens movimentam novas conexões entre os alunos/
personagens, sendo desafiados a rever o entorno e potencializando as pos-
sibilidades de percepções para notarem que "a fotografia é fruto de deci-
sões e escolhas" (MIGLIORIN et al., 2014, p. 33) e que a desnaturalização nos
permite estar mais conscientes desse processo.
Além disso, o reposicionamento dos olhares e as novas perguntas dos
alunos traziam à tona o silenciamento das emoções não trabalhadas no co-
letivo escolar. Traziam sempre em suas imagens e vídeos a necessidade de
diálogo sobre regras, sobre o que a escola espera deles e como as expec-
tativas postas muitas vezes não coincidem com o desejo. Não escutar essa
necessidade de fala é uma violência que se coloca.
É preciso deixar surgirem os conflitos que existem no coletivo, e não os
silenciar. Não dar prioridade aos sentimentos e às trocas de experiências
dos alunos, focando apenas em conteúdos, também é uma ação violenta
de nossa parte como educadores: é preciso criar momentos para lidar com
os conflitos do coletivo, diminuindo a angústia de não ser atendido ou ter
a responsabilidade de cuidar de si e do outro. Todos esses aspectos já são
230 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

presentes na escola, presentes no dia a dia; a eletiva, desse modo, colocou-


-se como um lugar de encontro, de potência para trazer esses temas sem,
necessariamente, ter que resolver o conflito, mas, agora, o aceitando.
Colocaram-se luz, foco e posicionamentos sobre as possíveis feridas
antes não vistas. Qual a potência, então, em ver suas próprias feridas e ter a
dimensão de como os atos e comportamentos adotados influem no outro?
Talvez o aceitar o conflito e a discordância nos torne menos violentos com os
outros. Torne-nos menos violentos com nós mesmos!
Passamos a observar o processo educativo proposto na eletiva como
uma experiência que era sensorial, afetiva e existencial com aqueles que se
permitiam conduzir e ser conduzidos pela prática, pousar o olhar sobre o
desconforto da regra naturalizada e inventar com o que tínhamos como
possibilidades.
O contato com espaços de criar com a imagem se colocou como uma
forma de reinventar o espaço, produzir sentidos, criar mundos em que as
intenções e sensibilidades da imagem são inventadas pelos alunos e os pro-
cessos são mais importantes que os produtos.
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 231

A disciplina eletiva brincou com as


imagens do mundo.
A disciplina eletiva recolocou nossa
experiência como educadores
Em que pela imagem
Em que pela música
Em que pela produção de poesia
Todos nós nos desformamos:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação


transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades
Manoel de Barros
Percebendo-se como agentes ati-
vos na construção do espaço, foram,
também, ativos na (des)organização
de regras impostas que não faziam
sentido, e das conversas e execução
dos materiais audiovisuais vazavam
tristezas, ressentimentos e insatisfa-
ções que não poderiam ali se resolver.
E tudo bem. A escola é parte de um
sistema educacional, e eles observa-
vam que não era ali, naquele espaço,
que mudariam tudo; mas era ali, na-
quele espaço, que poderiam recons-
truir uma forma de convivência que
fugia a essa normalização violenta a
que estamos acostumados.
Tal ponto resultou em novas pos-
sibilidades de escuta, que foram além
do tempo da eletiva/aula, mas que trouxeram elementos para questionarem
as hierarquias escolares quando se sentirem desrespeitados e, nesse
232 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

sentido, negarem a homogeneização dos indivíduos e sua passividade no


processo educativo.
Ao repensar o olhar
e o posicionamento,
as produções audiovi-
suais para as crianças
passam a ser uma nova
forma de tensionamen-
to da naturalização das
imagens pertencentes
à educação visual da
memória. Dessa forma,
convidar o jovem a re-
fletir os recortes e os
meios midiáticos torna-
-se uma alternativa de
resistência ao fluxo pré-condicionado imposto.
A relação que os alunos têm com a imagem é, em um processo histórico,
estabelecida de outras potencialidades que os adultos pouco dimensionam.
Dessa forma, os discentes, pelo avanço das tecnologias, vivenciadas ou mar-
cadas por uma produção tecnológica que aperfeiçoa a reprodução imagéti-
ca progressivamente pelo uso e compartilhamento de imagens via redes
sociais, conseguem ter outro olhar. O olhar, capturar e registrar torna-se
mais automatizado, e olhamos o mundo
pensando a forma de registro do visível.
É no processo de reolhar o mundo, a
escola e a si, por meio de propostas imagéti-
cas, que se recolocam imagens naturalizadas
sob a lógica de diálogo e desnaturalização.
A arte deve ser um momento de estar junto;
não é resultado, mas processo; seria, então,
nossa proposta de atingi-los pela via do
sensível, em que a relação sujeito-imagem e
seus resultados não podem partir de uma análise das imagens, e na qual o
processo desestabilize as formas prontas, moldadas de dizer sobre si e sobre
os contextos, como potência a desnaturalizar aspectos hierárquicos postos
no ambiente escolar que não mais fazem sentido na lógica de cooperação.
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 233

A fabricação de imagem alinhada à educação visual da memória, se-


gundo Milton José de Almeida (1999), é um processo que, no passado, já
acontecia nas mãos de pintores, literários e arquitetos por meio do planeja-
mento de suas obras; atualmente, encontra-se na televisão, no cinema e nos
outdoors, por meio dos artistas, intelectuais e agências de propaganda. As
imagens selecionadas e apresentadas pelos veículos de comunicação em
massa passam a povoar e influenciar o imaginário social de adultos e crian-
ças em um processo – inevitavelmente – educativo:

estamos frente a uma educação visual cuja configuração estética é uma


configuração política e religiosa. Uma forma complexa e ao mesmo tem-
po simples de um viver cultural e social permeado de representações
visuais [...] estamos dentro de um processo de educação cultural da inte-
ligência visual. Uma arte que, em forma plástica, dá visibilidade estética a
um momento social, político e religioso (ALMEIDA, 1999, p. 39).

A produção de imagem e suas (des)naturalizações precisam ser aborda-


das no contexto escolar para repensarmos os signos no cotidiano, as relações
estabelecidas com estes e as formas com que eles nos educam. Durante os
processos criativos propostos, todos os envolvidos são desafiados a adotar
diferentes perspectivas, possibilitando novos espaços para repensar a rela-
ção entre o "individual" e o "coletivo": Como recontar as histórias? Quem
serão filmados e por quê? Como os filmaremos?
234 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

No processo de evidenciar essa nova prática de criação de imagens e


formas de escuta, há o surgimento de novas vozes antes silenciadas: sujeitos
produtores de imagens – que possibilitam rever o entorno, como aborda-
do por Migliorin (2006) ao defender que o mecanismo de produção criativa
possibilita uma situação na qual os personagens são colocados a agir, e,
nesta ação, acontece uma efetivação de potencialidades do real. O ateliê,
baseado na noção de dispositivo, coloca-se a criar mecanismos para even-
tualmente captar o que é contingente, destacando que o interesse está no
acontecimento, enfatizando principalmente o processo de construção, e não
o produto final:

Os alunos, durante as produções, são incentivados frequentemente a


discutir, circular e deixar-se afetar com o que está "distante", mas em
"contato" com isso são tensionadas outras maneiras de experimentar o
mundo, estimulando o direito de cada um a narrar o próprio território,
a própria vida. Diante das possibilidades levantadas graças às novas
configurações, permanecem os questionamentos: "o que pode uma
imagem? O que pode o cinema? Como ele pode auxiliar-nos na invenção
de processos pedagógicos mais democráticos e emancipatórios, que
ofereçam aos estudantes a possibilidade de atuar politicamente? Como
pode o cinema produzir novos territórios sensíveis e afetivos, permitindo
um compartilhamento do tempo-espaço do mundo com os outros?"
(MIGLIORIN, 2014, p. 26).
Momentos de criação com audiovisuais: outros conhecimentos na expectativa do olhar | 235

A pesquisa-intervenção e sua metodologia de criação com audiovisuais


apostaram que, ao conhecer bem a imagem que fez, o estudante deses-
tabiliza e transforma o que vê e o que mostra em seus enquadramentos.
Na construção criativa, no fazer cinema, lidando com o seu entorno, com a
alteridade e com as diferenças, passamos a descobrir e recriar as forças que
existem em reproduzir um ponto de vista sobre o mundo (MIGLIORIN et al.,
2014, p. 11).
As experiências com os ateliês, ou as dúvidas que surgiram desse encon-
tro, contribuíram para a desnaturalização do olhar estabelecido dentro da
escola. A educação, no contexto escolar – sem as ações pautadas exclusiva-
mente "nos pedagógicos" –, faz o educador perceber como o educar, a cada
dia, se torna um ato de incerteza, de coragem e de revisão. Ao revisar sua
atuação e/ou o contexto escolar, o educador pode refletir sobre imposições
e modelos que se perpetuam de como ensinar. Esta é uma boa oportunida-
de de olhar e de ter uma escuta atenta ao outro por meio de metodologias
abertas de ensino que, coletivamente, visem descobrir novas (im)possibilida-
des e diferentes perspectivas de ensino e aprendizagem.
236 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Referências
ALMEIDA, M. J. de. CINEMA: A arte da Memória. Campinas: Autores Associados, 1999.
BENJAMIN, W. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W.
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BRANDÃO, C.; COUTINHO, I.; LEAL, P. R. F. (org.). Televisão, cinema e mídias digitais. Florianópo-
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COUTO, E. S. A infância e o brincar na cultura digital. Perspectiva, Florianópolis, v. 31, n. 3, p.
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DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011. v. 2.
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MIGLIORIN, C. O ensino de cinema e a experiência do filme-carta. E-compós: revista da Associa-
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MIGLIORIN, C. et al. Inventar com a diferença: cinema e direitos humanos. Niterói: Editora da UFF,
2014.
13

ARTE NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: A


CRIAÇÃO DE SENTIDOS
Maria Cristina Luiz Ferrarini
Maria Cecília Luiz

Porque a criação pressupõe, tanto quanto a alienação, a capacidade de


dar-se aquilo que não é. O essencial da criação não é descoberta, mas
constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui; e a relação do
que ela constitui com o real, relação seguramente muito complexa, não é
uma relação de verificação (CASTORIADIS, 1982, p. 162).

Pode-se afirmar que a Arte e, em especial, as imagens estiveram e estão


no cotidiano dos seres humanos e se fazem presentes por meio de formas
visuais fixas e/ou em animações que influenciam, estimulam e ensinam as
pessoas a lerem o mundo, mesmo quando estas não percebem como isso
funciona.
Na atualidade, sujeitos rodeados por informações midiáticas, desde
pequenos, ficam incapazes de fazer uma leitura a respeito do mundo ima-
gético, resultando em um olhar pouco crítico das imagens (paradas ou em
movimento), de seus valores, conceitos e anseios, ou às vezes ficam sem
refletir sobre o que está sendo produzido neste campo.
Diversos autores chamam a atenção e alertam para o fato de a educa-
ção ter que se preocupar com o discurso visual. Na perspectiva escolar, a
disciplina que deveria trabalhar esta temática, sem dúvida, é a Arte. Dentre
os autores que citam a importância da leitura visual, destaca-se Ana Mae
Barbosa (1998):

Ensinar a gramática visual e sua sintaxe através da arte e tornar as crian-


ças conscientes da produção humana de alta qualidade é uma forma de
prepará-las para compreender e avaliar todo tipo de imagem, conscienti-
zando-as de que estão aprendendo com estas imagens (BARBOSA, 1998,
p. 17).
238 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Nesse sentido, e de acordo com a autora, conhecer um pouco sobre a


história da produção artística, com certeza, auxiliaria na utilização de ima-
gens de obras de arte nas práticas educativas, com vistas a formar estu-
dantes mais críticos e estéticos. É fato que as imagens de obras de arte
foram utilizadas, no ensino da Arte, com diferentes propósitos, ao longo da
trajetória histórica da Arte na educação.
O propósito deste texto é compreender a concepção de Arte inserida
nas intenções, nos contextos e nas práticas escolares. Assim, o objetivo prin-
cipal foi perceber como os fatos históricos e os estilos artísticos contribuí-
ram e ainda contribuem para o desenvolvimento e aprendizagem da Arte na
educação, em especial nas escolas brasileiras.
Partiu-se do pressuposto de que é fundamental o entendimento da Arte
na escola; assim, acredita-se que, ao verificar e compreender o passado,
tem-se um juízo melhor do presente. Docentes que lecionam Arte – ou qual-
quer professor que gostaria de introduzi-la em suas aulas –, ao verificar a
história de como a arte foi sendo concebida durante os diferentes séculos,
pode apreender essa importância, isto é, toda expressão que acontece na
arte (pintada, desenhada, esculpida etc.), o que necessariamente está rela-
cionado à importância da vida dos discentes.

Arte Barroca e Arte Neoclássica: no mundo e no Brasil


Este tópico não tem pretensão de tratar toda a história do século XIX,
mas busca evidenciar acontecimentos que influenciaram o desenvolvimento
do ensino da Arte no Brasil. Começando por 1808, com a vinda de D. João VI
ao Brasil, um dos privilégios deste acontecimento foi o Decreto-Lei datado
de 1816, com a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que em
1826 passou a ser designada Academia Imperial de Belas-Artes (BARBOSA,
2002a). Neste período, destacam-se dois movimentos artísticos: o Barroco
e o Neoclássico. O primeiro, por ser o movimento artístico vigente no Brasil
na época da vinda de D. João VI; e o segundo, por se tratar do principal
movimento artístico a influenciar a metodologia do ensino da arte.
Segundo Santos (2007, p. 131), "o Barroco rompeu o equilíbrio entre sen-
timento e razão e entre arte e ciência que os artistas renascentistas procura-
vam estabelecer de forma consciente". Algumas características específicas
do barroco podem ser apreciadas em diversas linguagens artísticas. Por
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 239

exemplo: a utilização do movimento, do drama e do contraste entre luz e


sombra, na arquitetura, na escultura e na pintura.
Para Monterado (1978), as construções arquitetônicas religiosas, que no
princípio apresentavam um espírito de austeridade, aos poucos foram sen-
do carregadas de rica e abundante decoração, oferecendo um verdadeiro
espetáculo àqueles que a adentrassem. As produções artísticas deste movi-
mento são marcadas por esplendor, requinte e suntuosidade, e o Barroco na
Europa alcançou seu apogeu na primeira metade do século XVIII.
Já o Neoclassicismo, ou Academicismo, propunha como ideal a simplici-
dade dos modelos clássicos, em oposição à redundância superficial e à re-
tórica barroca. O europeu assistiu, nessa época, às irreversíveis transforma-
ções sociais, econômicas e políticas que marcaram esse período histórico:
ascensão da burguesia, início da industrialização e o surgimento de novos
ideais filosóficos.
O movimento Neoclássico representava com perfeição "os valores
próprios de uma nova e fortalecida burguesia" (SANTOS, 2007, p. 171). Os
enfeites e subterfúgios dos estilos barroco e rococó, que eram associados
à aristocracia, já não serviam para exprimir e retratar o mundo em que se
vivia, e fazia-se necessário encontrar uma nova forma de expressão. O "belo
ideal", conceito criado na Antiguidade romana, retratado em suas obras por
meio da perfeição, da objetividade das linhas acadêmicas e do heroísmo,
em pouco tempo, obtém a adesão total dos artistas dessa época.
Influenciados pelos ideais iluministas, aqueles que se reuniam sob a divi-
sa da igualdade, da liberdade e da fraternidade popularizaram o novo estilo
artístico, por considerarem as características de clareza, racionalidade e
proporcionalidade, atributos inerentes à cultura greco-romana, compatíveis
com os ideais revolucionários.
Quatro movimentos artísticos se sucederam durante o século XIX na
Europa: Neoclassicismo, Romantismo, Realismo ou Naturalismo e Impres-
sionismo. Embora cada movimento tenha nascido em reação contrária ao
outro, numa perspectiva histórica eles pareciam "fases de uma evolução que
do artifício leva à natureza, da obra pensada à sensação, do belo ideal à
observação da realidade" (MONTERADO, 1978, p. 171).
Foi a partir do Neoclássico que houve uma incidência maior do desenho
e da linha sobre a cor. O desenho adquiriu mais importância que a cor, a
técnica do sfumato, muito usada na pintura renascentista, era utilizada no
240 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

sombreado esfumaçado a lápis, o que dava aos desenhos uma textura que
lembrava as antigas esculturas de mármore.
Segundo Santos (2007), o Neoclássico ou Academicismo foi o movimen-
to que mais influenciou as metodologias do ensino da arte e a sua prática
educativa, pois as concepções artísticas do mundo greco-romano tornaram-
-se os conceitos básicos para o ensino das artes nas academias de belas-
-artes e só foram questionadas, mais tarde, pela arte moderna.
O desenvolvimento pleno do Barroco, no Brasil, deu-se no século XVIII,
100 anos após o seu surgimento na Europa, e estendeu-se até o início do
século XIX, período em que a arte na Europa "voltava-se novamente para os
modelos clássicos" (SANTOS, 2007, p. 152)
No Brasil, a arte barroca é associada à religião católica, devido a dois
fatores: primeiro, a arte no Brasil colônia, tendo sido introduzida pelos jesu-
ítas, era de cunho religioso; segundo, é na arquitetura religiosa que melhor
notamos a presença e a evolução desse estilo, embora muitas construções
de arquitetura civil, como câmaras municipais, cadeias, moradias etc., apre-
sentem as características barrocas (BARBOSA, 2002a).
O estilo Barroco praticado no Brasil diferia do Barroco europeu e apre-
sentava contribuição renovadora: "uma arte de traços originais que podemos
designar como barroco brasileiro" (BARBOSA, 2002a, p. 19). Nesse período,
os artistas brasileiros em sua grande maioria eram mestiços e de origem po-
pular, considerados simples artesãos. Um dos maiores contribuidores desse
movimento no Brasil foi Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como
Aleijadinho. Natural de Vila Rica, era mestiço, filho de um arquiteto portu-
guês, Manuel Francisco Lisboa, e de uma escrava. Dentre os seus trabalhos
principais está a planta da Igreja de São Francisco de Assis, construída em
Ouro Preto (antiga Vila Rica). Além de um grande arquiteto e decorador, este
artista também foi um excelente escultor.
Os artistas barrocos expressavam em suas obras as pressões que sofriam
estando eles entre dois polos opostos: Igreja e pensamento renascentista,
fé e razão. Tem-se no início do século XIX, com os membros da Missão Ar-
tística Francesa ao Brasil, o Neoclássico. O grupo de artistas franceses que
veio com a incumbência de organizar a primeira instituição de arte nacional
chegou oito anos após a corte portuguesa aportar em terras brasileiras.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 241

Figura 1 Santuário de Bom Jesus de Matosinhos – A capela e os 12 profetas. Obra na


cidade de Congonhas, Minas Gerais, Brasil.

Fonte: http://www.abim.inf.br/bicentenario-da-morte-de-aleijadinho/.

As características neoclássicas de simplicidade, nas linhas, formas, cores


e temas, não agradaram a classe popular, que vivia o auge da arte barroca.
Somente a pequena burguesia, aliada à monarquia, aceitou imediatamente
a influência dos artistas franceses, pois esta classe social via nesta aliança
uma forma de ascensão e classificação. A rejeição popular à nova estética é
compreensível por duas razões. Primeiro, os modelos europeus chegavam
ao Brasil com um enorme atraso, e o Neoclassicismo representava a "moder-
nidade" que, não fosse a chegada da Missão, ainda levaria muito tempo para
se tornar uma tendência no Brasil (BARBOSA, 2002a). E, segundo, também,
um movimento artístico normalmente se contrapõe à visão do movimento
anterior, diferindo nas características principais, na técnica e nos temas, e,
nesse caso, a simplicidade neoclássica fez oposição ao excesso barroco.
O artista da Missão Francesa mais conhecido pelos brasileiros foi o pin-
tor histórico Jean-Baptiste Debret, e muitos de seus trabalhos, registrando
a vida no Brasil durante o século XIX, estão presentes nos livros escolares.
Segundo Santos (2007, p. 198), Debret documentou "os usos e costumes dos
indígenas brasileiros, a sociedade do Rio de Janeiro e assuntos diversos,
como paisagens naturais e urbanas, retratos, estudo de condecorações, pe-
ças de vestuário e acessórios de montaria".
242 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Outras obras de artistas brasileiros muito conhecidas são "Independên-


cia ou Morte" (1888), de Pedro Américo, e "A primeira missa no Brasil" (1866),
de Vitor Meireles. Ambos estudaram na Academia Imperial de Belas-Artes, e
suas pinturas são, sem dúvida, acadêmicas e ligadas ao Neoclassicismo. A in-
fluência das concepções clássicas nas obras dos artistas brasileiros estende-
-se até o final do século XIX, quando os artistas começaram a seguir novas
direções, influenciados pelos movimentos Impressionistas e Pontilhistas.

Educação Tradicional e obras de arte na sala de aula


A pedagogia tradicional teve suas raízes no século XIX, e o método uti-
lizado para aquisição dos conhecimentos era proposto por meio de elabo-
rações intelectuais e com ênfase em modelos e pensamentos já conhecidos
(FUSARI; FERRAZ, 2001). Na prática, esta forma de educação resume-se no
ensino mecanizado, que enfatiza a figura do professor como o detentor e
distribuidor de verdades absolutas.
Durante todo o século XIX, a Academia Imperial de Belas-Artes impôs o
academicismo da arte neoclássica, e como o objetivo do academicismo ne-
oclássico era a observação e reprodução completa e perfeita de modelos e
obras de "artistas de valor" fica claro que estas obras eram disponibilizadas
aos alunos para serem copiadas ou imitadas.
A autora Ana Mae Barbosa (2002a), em seu livro intitulado "Arte-Educa-
ção no Brasil", descreveu uma aula de modelo vivo, que exemplificou, perfei-
tamente, de que forma estes recursos foram utilizados:

o modelo era um homem branco, não muito jovem, descarnado e mes-


mo mal feito. Os alunos e o professor olhavam para o triste indivíduo,
mas não o reproduziam sobre o papel, onde apareciam belas figuras que
nada tinham com a imagem viva […] a figura era produzida obedecendo
ao conjunto de regras, ditadas pelos ideais de beleza greco-romanos […]
ensinavam seus alunos a trabalharem o corpo de acordo com o sistema
de aperfeiçoamento matemático como Dürer ou Leonardo da Vince
(BARBOSA, 2002a, p. 23).

Para Francastel (1993), as cópias dos modelos vivos eram produções


artísticas mais idealistas do que realistas, pois não retratavam a realidade,
mas sim como se gostaria que ela fosse. Os modelos vivos, pessoas contra-
tadas para posar, transformavam-se, independentemente de suas aparên-
cias, em Netuno, Apolo ou Júpiter. A cópia constante de modelos prontos,
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 243

embora levasse à perfeição da técnica, resultava em um empobrecimento


da invenção.
Segundo Monterado (1978), os autênticos representantes do neoclássico
foram medíocres e não enriqueceram o patrimônio artístico, havendo as-
sim, neste período, um relaxamento das atividades criadoras. A partir do
Neoclássico, o ensino da arte passou a ser realizado em academias de arte,
lugar destinado à formação do artista, sempre priorizando dois aspectos: a
supremacia da técnica e a necessidade de um projeto (que fique claro que o
projeto era o desenho).
A aula de arte na escola tradicional era predominantemente dedicada ao
ensino do desenho, influenciada pela concepção neoclássica, que enfatizava
a linha, o contorno e o traçado. Do ponto de vista metodológico, as aulas
eram desenvolvidas pelo professor, que aplicava exercícios de produção de
modelos prontos, e estes exercícios seriam fixados pela repetição.
A imagem de obras de arte, nesse tipo de prática, era utilizada ape-
nas para exercitar a técnica; sendo assim, o desenvolvimento da consciên-
cia estética nesse tipo de metodologia fica nulo, porque a estética, sendo
predeterminada, implicou a adoção de um padrão de beleza imposto, não
ocorrendo desenvolvimento da consciência estética. Tampouco há estímulo
do desenvolvimento da consciência crítica, pois, nesta pedagogia, não se
pretendia a formação de um sujeito autônomo e crítico, mas sim um repro-
dutor de conhecimentos adquiridos.
Segundo Fusari e Ferraz (2001), a utilização de uma teoria mimética, isto
é, mais ligada às cópias do "natural" e com apresentação de "modelos" para
os alunos imitarem, presentes desde a época do reinado, infelizmente ainda
persiste, ou seja, até os dias de hoje podemos constatar a aplicação da pe-
dagogia tradicional em aulas de Arte em algumas escolas no Brasil.

Arte Moderna e Arte Contemporânea: no mundo e no Brasil


O século XX notabilizou-se pelos inúmeros avanços tecnológicos e pela
difusão do progresso industrial, iniciado no século precedente. A dinâmica
espacial e social, nesse período, foi caracterizada pela urbanização e pelo
capitalismo; e, nunca, em toda a História, as transformações ocorreram tão
depressa.
Importantes invenções e descobertas foram feitas nesse século, nas mais
diversas áreas do conhecimento. Podemos citar exemplos significativos,
244 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

como: a linha de montagem e a produção em massa de automóveis (o que


permitiu a popularização desse veículo); a invenção das máquinas voadoras
e do motor a jato (o que encurtou as distâncias e tornou o mundo "menor");
tecnologias de mídia de massa, como o cinema e a televisão (o que propor-
cionou a comunicação das ideias e culturas com um impacto sem preceden-
tes); a disponibilidade em massa do telefone e depois do computador e da
internet (o que tornou a comunicação quase instantânea); a descoberta da
penicilina (primeiro antibiótico); a criação do anticonceptivo; as teorias da
relatividade, do Big Bang e a teoria quântica etc.
O século XX também foi marcado por profundas conturbações políti-
cas, como: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, o surgimento do
fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, a Segunda Guerra Mundial, a
intensificação das pesquisas sobre energia nuclear e sua utilização para fins
bélicos, a Guerra Fria e a corrida espacial. Para Santos (2007), esse contex-
to do século XX foi complexo e, muitas vezes, angustiante, pois a arte foi
retratada conforme os movimentos e as tendências artísticas, cada espaço,
período e/ou momento a seu modo; neste sentido, o período esteve mar-
cado pela perplexidade de acontecimentos e, consequentemente, pelo ser
humano que o viveu.
Não há um consenso entre os autores que pesquisam e refletem sobre a
arte a respeito dos limites temporais que separam os movimentos artísticos
que fazem parte do que conhecemos como Arte Moderna. Tampouco existe
uma conformidade em relação a algumas das características dos movimen-
tos moderno, pós-moderno e contemporâneo.
Não se pode constatar uma exata distinção cronológica entre o clás-
sico e o moderno, o moderno e o contemporâneo, e entre o moderno e o
pós-moderno; contudo, neste texto, descreve-se o que a literatura traz a
este respeito, procurando relacionar acontecimentos históricos, culturais e
artísticos com as metodologias e práticas de ensino da arte.
O francês Charles Baudelaire, poeta e teórico da arte, foi o primeiro a
utilizar o termo modernidade. O termo foi lançado no artigo "Le peintre de
la vie moderne", publicado em 1863, e teve grande repercussão e aceita-
ção nos ambientes literários e artísticos da segunda metade do século XIX.
Depois da Segunda Guerra Mundial o termo reapareceu e foi amplamente
difundido.
Antes da Revolução Industrial, toda atividade produtiva era inteiramente
artesanal e manual, porém, depois dela, foi impossível associar a produção
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 245

artesanal à crescente demanda de consumo, e o sistema artesanal entrou


em crise. Uma nova realidade surgiu com a industrialização: o trabalho artís-
tico mecanizado.
Para Santos (2007), a partir do surgimento da indústria artesanal o artista
passou a ser um intelectual apartado da produção, houve uma preocupação
em se estabelecer uma colaboração entre as artes e a indústria artesanal,
por se temer que o processo de produção industrial vulgarizasse ou mesmo
destruísse o conteúdo artístico dos objetos industrializados, mas a contribui-
ção dos artistas era limitada ao aprimoramento do design das manufaturas.
De acordo com o Documentário "Através da Arte – Do impressionismo
às últimas tendências" (2002), o termo "impressionista" foi usado pela pri-
meira vez por um crítico com intenção irônica, referindo-se a um grupo de
artistas que estava criando uma nova forma de se expressar. A definição da
palavra fazia alusão às impressões fugazes capturadas e retratadas em suas
obras artísticas. As obras impressionistas tinham duas características que
as diferenciavam das obras criadas até então: a primeira estava relacionada
à utilização de cores, que pareciam mais limpas e luminosas; e a segunda
podia ser percebida pela forma pela qual os contornos e o desenho eram re-
alizados, os quais pareciam ter forma borrada, como se fossem sacrificados
em nome do efeito imediato.
A popularização da fotografia, no início do século XX, proporcionou aos
artistas uma nova forma de ver a arte. Com a introdução de câmaras foto-
gráficas mais simples no mercado de massa, qualquer consumidor comum
podia perpetuar a sua imagem, do mesmo modo que os nobres faziam ao
contratar os pintores para fazer seus retratos. Além de a fotografia ter pro-
porcionado o registro "instantâneo" de uma imagem (antes dela isso era
impossível), também proporcionou outras perspectivas e formas de enqua-
dramento de uma cena.
O espaço de tempo que compreende a última exposição impressionista
e o surgimento do Cubismo foi preenchido por obras desenvolvidas por pin-
tores de tendências bem diversas, como Gaughin, Cézanne, Van Gogh, que
se identificaram com o impressionismo apenas no início de suas carreiras.
Esses artistas são chamados de pós-impressionistas e influenciaram os mo-
vimentos artísticos subsequentes, cada um a sua maneira (SANTOS, 2007).
Contrapondo-se ao Impressionismo, que foi um movimento que se pre-
ocupou apenas com as sensações de luz e cor, as obras do Expressionismo
buscavam expressar as emoções humanas e decodificar as angústias que
246 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

caracterizavam psicologicamente o homem do início do século XX. A es-


tética expressionista retratou o desastre e a miséria que caracterizavam o
cotidiano alemão antes e depois da Primeira Guerra Mundial.
Uma das obras expressionistas mais conhecidas, e um bom exemplo dos
temas que sensibilizavam os artistas simpatizantes dessa tendência, é a pin-
tura de Edvard Munch intitulada "O grito". O Expressionismo não estabele-
ceu um dogma, ou seja, um conjunto de regras preestabelecidas, porém, as
obras pertencentes a este movimento apresentavam características comuns.

Figura 2 O grito (1893), de Edvard Munch; óleo e pastel sobre cartão.

Fonte: https://www.todamateria.com.br/o-grito/.

O Fauvismo foi outra corrente artística derivada do Impressionismo que


surgiu na mesma época do Expressionismo. Fauves, em francês, significa
feras, bestas selvagens, e esse nome foi dado ao movimento em alusão ao
modo e à intensidade com que as cores, sem mistura ou matizes, eram usa-
das nas obras. Ao contrário dos Impressionistas, que usavam cores suaves e
cintilantes, os fauvistas utilizavam as cores puras, de forma violenta, dando
uma ênfase expressiva às suas obras.
Segundo Santos (2007, p. 252), dois princípios regeram esse movimento
artístico: "a simplificação das formas das figuras e o emprego das cores pu-
ras". A obra de Henry Matisse intitulada "A dança" exemplifica muito bem
esses dois princípios. As obras fauvistas apresentavam figuras de formas
simplificadas, que não representavam a realidade, mas apenas a sugeriam.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 247

Figura 3 A dança (1910), de Henri Matisse; tela.

Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/a-danca-henri-matisse/.

O Cubismo foi uma revolução estética e técnica importantíssima para a


arte ocidental. A partir desse movimento a arte passou a ter uma maior pre-
ocupação com a técnica e com os aspectos psicológicos em detrimento dos
estéticos. Segundo Monterado (1978), o movimento cubista não impôs uma
nova maneira expressiva, motivo pelo qual outros movimentos (Futurismo,
Expressionismo, Surrealismo e Abstracionismo) tentaram racionalizar a nova
forma de expressão iniciada pelo Cubismo.
A forma de representação do Cubismo era baseada na exibição dos ob-
jetos como se eles estivessem abertos, com todas as suas partes retratadas
no plano frontal, de frente para o observador. Essa decomposição não tinha
nenhum compromisso com a realidade e significava o total abandono da
perspectiva tridimensional, tão perseguida pelos artistas renascentistas.
Segundo Santos (2007), tivemos duas grandes tendências cubistas: o
Cubismo Analítico e o Cubismo Sintético. Os objetos, nas pinturas cubistas
de tendência analítica, passaram a ser retratados de forma cada vez mais
fragmentada, até chegar a um ponto em que não foi mais possível reconhe-
cê-los. Um exemplo dessa tendência é a obra de Georges Braque, intitulada
"Violino e cântaro".
248 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Figura 4 Violino e cântaro (1910), de Georges Braque; óleo sobre tela.


Fonte: https://pt.artsdot.com/@@/8LJ2BV-Georges-Braque-violino-e-c%C3%A2ntaro.

Como reação a essa excessiva fragmentação, os cubistas abandonaram


a fase analítica e a substituíram pela sintética. O Cubismo Sintético passou a
retratar as figuras de forma a torná-las reconhecíveis novamente, porém, não
de maneira realista. A obra intitulada "Mulher com violino", de Braque, é um
exemplo de Cubismo Sintético.

Figura 5 Mulher com violino (1913), de Georges Braque; óleo e carvão sobre tela.
Fonte: https://www.pinterest.de/pin/548735535848321648/.

Outro movimento desenvolvido no início do século XX foi o Abstracio-


nismo, em que o artista não fazia a representação da realidade ou narrava
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 249

figurativamente alguma cena, apenas utilizava as relações formais entre co-


res, linhas e superfícies para compor a sua obra.
Embora esse movimento tenha se diversificado bastante, duas ten-
dências estabeleceram-se com características definidas: o Abstracionismo
Informal, com a predominância das formas e cores criadas livremente, e o
Abstracionismo Geométrico, cuja composição é resultado de formas e cores
organizadas numa concepção geométrica (SANTOS, 2007).
A obra de Wassily Kandinsky intitulada "Amarelo, vermelho, azul" apre-
senta a dimensão da tendência informal, e a obra "Composição" (1921), de
Piet Mondrian, revela a tendência geométrica.

Figura 6 Amarelo, vermelho, azul. 1925.


Fonte: http://artenarede.com.br/blog/wp-content/uploads/2018/06/Kandinsky_Yellow-Red-
-Blue_1925.jpg.

Figura 7 Composição (1921), Piet Mondrian; óleo sobre tela.


Fonte: http://www.arte.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=403.
250 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

O Futurismo iniciou-se a partir do Manifesto Futurista (1909), do poeta


e escritor italiano Filippo Tommaso Marinetti, e foi uma tendência muito in-
fluenciada pela literatura do início do século XX. Nas artes plásticas, os futu-
ristas exaltavam o futuro e a velocidade e evitavam qualquer relação com a
imobilidade e com o realismo (MONTERADO, 1978).
Observa-se, na obra futurista de Giacomo Balla, a utilização de cores.

Figura 8 The Spring, c.1916, de Giacomo Balla; óleo sobre tela, Solomon R. Gugge-
nheim Museum, Nova York.

Fonte: https://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-seculo-20/futurismo/#jp-carou-
sel-6955.

Dadaísmo foi um movimento efêmero e de negação integral, que nas-


ceu do senso de angústia provocado pela Primeira Guerra Mundial e da
decepção com as instituições de uma civilização que não conseguiu evitar
a guerra. As suas manifestações literárias e artísticas foram marcadas pelo
pessimismo irônico, pelo desprezo da humanidade e proposital ausência do
pensamento racionalista.
Segundo Monterado (1978), o Surrealismo surgiu do Dadaísmo e herdou
desse movimento a aversão ao racionalismo, além de ter se inspirado nas
teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (técnica da livre associação e análise
dos sonhos).
O movimento literário e pictórico teve como fim captar as profundezas
do subconsciente e trazê-las à superfície, exprimindo-as em palavras e for-
mas por meio de simbolismos.
Para Santos (2007), as obras surrealistas dividiram-se em duas tendências:
a figurativa e a abstrata. Salvador Dali foi um mestre do surrealismo, e suas
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 251

obras eram de tendência figurativa; as imagens, excessivamente realistas,


das suas pinturas foram associadas entre si de forma a compor conjuntos ir-
reais, e podemos tomar como exemplo a obra intitulada "Dali, aos seis anos,
quando acreditava que era uma garotinha, levantando a pele da água para
ver um cão dormir na sombra do mar".

Figura 9 Dali, aos seis anos, quando acreditava que era uma garotinha, levantando a
pele da água para ver um cão dormir na sombra do mar (1950), de Salvador Dali; óleo
sobre tela.

Fonte: https://www.todocoleccion.net/postales-arte/postal-cuadro-dali-edad-seis-anos-
-cuando-pensaba-que-era-una-nina-salvador-dali~x191879726.

Nas pinturas de Joan Miró de tendência abstrata, normalmente não en-


contramos elementos que podem ser identificados. Este artista trabalhava
com linhas e cores apresentando uma composição muito livre.

Figura 10 A estrela da manhã (1940), de Joan Miró; guache e pintura à essência de


terebintina sobre papel.

Fonte: https://www.arteeblog.com/2015/04/serie-joan-miro-constelacoes.html.
252 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Barbosa (2002a), em concordância com alguns historiadores brasileiros,


acredita que a concepção de cultura brasileira tem origem depois do tér-
mino da Primeira Guerra Mundial (1918) ou a partir da Semana de Arte Mo-
derna (1922). Segundo Tirapeli (2006), devido a um significativo progresso
econômico e algumas transformações sociais, o Brasil obtém um crescimen-
to industrial e uma oferta de trabalho que estimularam a vinda de grande
número de imigrantes. A influência exercida pelas culturas dos imigrantes e
a vivência da ruptura da arte mundial em razão das novas tendências artísti-
cas (expressionismo, abstracionismo, cubismo etc.) contribuíram para que os
artistas nacionais repensassem as suas concepções estéticas, ocasionando
uma grande mudança na cultura e na arte brasileira.
O início do movimento modernista no Brasil aconteceu, primeiramente,
na literatura (1912), com alguns escritores, como Oswald de Andrade, Me-
notti del Picchia e Mário de Andrade, que escreviam sobre a contemporanei-
dade. Na pintura, a arte moderna brasileira teve dois pioneiros, Lasar Segall
(imigrante lituano) e Anita Malfatti (brasileira que estudou na Alemanha e
Estados Unidos), e ambos realizaram exposições de tendência expressionis-
ta, respectivamente em 1913 e 1917.
Os artistas que defendiam uma estética renovadora contrapunham-se
ao academicismo e falavam em nacionalismo artístico, em exaltação do in-
dividualismo e do caboclismo; e os temas urbanos de suas obras revelavam
o entusiasmo pela era industrial. O mote desse movimento era o futurismo,
porém, não havia uma plástica futurista.
Para Monterado (1978), no Brasil, até 1922, o Futurismo representou ape-
nas a bandeira da revolução artística. Embora houvesse uma grande polê-
mica a respeito das novas manifestações artísticas, ela estava limitada aos
jornais, e o movimento era mais literário que plástico: "era preciso alguma
coisa que chocasse a indiferença da classe burguesa pela cultura e a mumi-
ficação acadêmica" (MONTERADO, 1978, p. 302).
Na época, aconteceu a realização da Semana de Arte Moderna, também
conhecida como Semana de 1922, que foi um marco do movimento, reunin-
do artistas de diferentes áreas, como literatos, músicos, artistas plásticos,
poetas e arquitetos. A Semana teve grande repercussão no país, porque
consolidou o desejo de uma nova orientação nas manifestações artísticas.
Esse evento assinalou a presença de uma nova concepção do fazer e com-
preender a obra de arte no Brasil.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 253

Para Santos (2007), a partir da segunda metade do século XX, a Europa


começou a se recuperar dos danos causados pela Segunda Guerra Mundial,
e a economia norte-americana fortaleceu-se. Redobrou-se a capacidade de
produção da indústria, que passou a colocar no mercado produtos larga-
mente consumidos.
Nesse cenário surgem dois modos de expressão artística: a Op Art e a
Pop Art. O Op Art ou "arte óptica" caracterizava-se por uma representação
abstrata construída por figuras geométricas, explorando-se as possibilida-
des da luz e da cor para produzir efeitos ópticos, de padrões dinâmicos.
Segundo Roig (2008), esse tipo de arte explora a ilusão de ótica, um
fenômeno conhecido por enganar nosso cérebro por meio de figuras que
provocam no espectador a sensação de movimento. Exemplos dessa ten-
dência são as obras "Feny", de Victor Vasarely, e "Movemente in squares",
de Bridget Riley.

Figura 11 Feny (1973), de Victor Vasarely; colagem sobre madeira.

Fonte: http://www.artnet.fr/artistes/victor-vasarely/feny-Bj6z7VCFrYvIMfY6crk2XQ2.
254 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Figura 12 Movement in square (1961), de Bridget Riley; colagem sobre madeira.

Fonte: https://artsandculture.google.com/asset/movement-in-squares-bridget-
-riley/5gGo7raKbm-NtQ.

Pop Art, expressão inglesa que significa arte popular, foi o nome dado
ao movimento artístico que apareceu nos Estados Unidos e que expressava
a realidade contemporânea, a tecnologia industrial e a cultura de massa.
Os mesmos recursos utilizados nos meios de comunicação de massa
eram utilizados como recursos expressivos da Pop Art. Os temas eram os
símbolos e os produtos industriais dirigidos às massas urbanas.
Segundo Santos (2007), essa obra pode ser interpretada como uma for-
ma de o artista mostrar que a imagem de uma celebridade, assim como
os objetos produzidos em série, pode ser manipulada para o consumo do
grande público.
A obra de Andy Warhol intitulada "Marilyn Monroe", na qual reprodu-
ções fotográficas idênticas da atriz são dispostas em uma sequência com
variações de cores, é um exemplo de Pop Art.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 255

Figura 13 Marilyn Monroe, de Andy Warhol.

Fonte: https://www.myartbroker.com/artist/andy-warhol/marilyn/.

Outras formas de comunicação de massa, como as imagens publicitárias


e as histórias em quadrinhos, também foram utilizadas como recursos ex-
pressivos da Pop Art. Então, surge o questionamento: o que é obra de arte?
E a arte passa a questionar a própria arte. A obra "Fonte", de Marcel
Duchamp, é um exemplo desse questionamento. Usando o pseudônimo R.
Mutt, Marcel Duchamp teve sua obra "Fonte" recusada na mostra Indepen-
dents Art Exhibitions em 1971, porém, essa polêmica tornou-se o assunto do
evento.

Figura 14 Fonte (1917), de Marcel Duchamp; porcelana.

Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/fonte-marcel-duchamp/.
256 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Duchamp foi o precursor deste novo conceito de arte que ficou conheci-
do como ready-made, em que o artista seleciona um objeto industrializado
e o expõe como obra de arte. Duchamp lançou a ideia de que uma obra só
está completa quando se soma à interpretação do espectador, estimulando
uma verdadeira troca intelectual com quem admirasse as suas obras. Antes
dele, as produções dos artistas visavam à pura admiração visual da obra.
A arte contemporânea não é pensada apenas em categorias como pin-
tura e escultura, ela ultrapassa os limites sociais e artísticos do modernismo,
abrindo-se a experiências culturais díspares. Outros tipos de manifestações
são propostas pelos artistas contemporâneos, e podemos destacar, entre
outros: performances – combinação dos elementos do teatro, das artes
visuais e música; happening – combinação dos elementos do teatro, das
artes visuais e da música, normalmente com a participação do espectador;
instalações – também chamadas assemblages ou ambientes, são espaços
construídos com os mais variados materiais de modo que o espectador pos-
sa "percorrer" a obra; arte conceitual – a prioridade na arte conceitual é a
ideia, ficando a execução relegada a um segundo plano, podendo inclusive
ser executada por outra pessoa que não o artista; e arte pública – desig-
nação dada à arte feita fora do espaço destinado a ela, museus e galerias,
mudando a paisagem de forma definitiva ou provisória (ENCICLOPÉDIA Itaú
Cultural, 2005).
No Brasil, no período da ditadura, muitos artistas e pensadores de todas
as áreas foram exilados e tiveram suas obras censuradas. Com o fechamen-
to dos salões de arte, os artistas plásticos não chegavam a realizar as suas
obras, elas eram apenas projetadas e pensadas. Para se livrarem da censura
eles começaram a se comunicar por meio de cartas, projetos de obras, fo-
tografias etc.
Segundo Tirapeli (2006, p. 49), essas comunicações eram arte conceitual,
pois "o que mais importava era a mensagem em si, e não a sua realização".
Os artistas conceituais criaram novos meios de fazer arte, utilizando diversos
suportes, técnicas e tecnologias.
Com a globalização da arte, os comerciantes de obras de arte, conhe-
cidos como marchands, começaram a vender e valorizar obras de determi-
nados artistas, e os curadores, críticos e organizadores de exposições de
artes selecionavam obras conforme as tendências para exposições nacionais
e internacionais.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 257

O artista brasileiro Hélio Oiticica, cuja produção se sobressai pelo cará-


ter experimental e inovador, criou diversas obras utilizando os mais variados
meios, técnicas e suportes. A obra inicialmente batizada de "penetrável" e
depois intitulada "Magic Square nº 5" é uma instalação que foi criada a partir
de estruturas labirínticas coloridas. Trata-se de um "lugar de percurso", uma
obra para ser vista ou percorrida, tateada e vivenciada. Em 1964, Hélio Oiti-
cica transformou o ser humano em suporte artístico ao criar as obras-roupas
"Parangolés".
Ao se movimentar o "suporte artístico", criavam-se múltiplas formas tem-
porárias no ar. A arte contemporânea questiona as concepções em relação
ao que seja arte e qual seria a sua utilidade. A partir da segunda metade do
século XX a arte, elemento importante na comunicação e psicologia huma-
nas, passa a ter inúmeras possibilidades e a ficar ao alcance de todos.

Figura 15 Magic Square nº 5, De luxe, de Hélio Oiticica, é uma das instalações deno-
minadas "Penetráveis" (1977); madeira e tinta a óleo.

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/241575967486639376/.

Ensino da Arte no século XX


Nos primeiros anos do século XX, o ensino da Arte, no Brasil, sofreu
influência de acontecimentos enraizados no século anterior, entre eles: "os
processos resultantes do impacto do encontro efetivo entre as artes e a
indústria e o processo de cientifização da Arte" (BARBOSA, 2002a, p. 32).
258 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

Nesse período, podemos destacar a representatividade que tinha a Aca-


demia de Belas-Artes (depois da proclamação da República passou a se
chamar Escola Nacional de Belas-Artes), que foi referência de metodologia
e de estética para a Arte.
Para Barbosa (2002a), os acontecimentos pré-modernistas, como a ex-
posição de Lasar Segall (1913) e Anita Malfatti (1917), ou mesmo o artigo de
Oswald de Andrade, publicado em 1917, em prol de uma "arte nacional", não
impactaram a sistemática do ensino de Arte nas escolas primárias, secundá-
rias e de ensino superior. As ideias de Rui Barbosa (escritas a partir da segun-
da metade do século XIX) a respeito da inclusão da Arte nos currículos e seu
modelo de implantação foram a base da implementação e obrigatoriedade
do ensino da Arte nas escolas primárias e secundárias no início do século XX.
Na concepção pedagógica de Rui Barbosa, a técnica do desenho tinha
um lugar de destaque, principalmente no currículo primário. Por acreditar
na importância desta técnica na formação dos brasileiros e na construção
de uma nação autossustentável, ele se dedicou a este estudo e ao ensino
da Arte como nenhum outro educador brasileiro (BARBOSA, 2002a). Nessa
perspectiva, a importância que foi atribuída ao desenho teve como conse-
quência um grande destaque na arte ensinada, somada ao fato de que as
raízes da Escola Nacional de Belas-Artes se encontravam imbuídas no movi-
mento neoclassicista, cujas características marcantes eram a representação
ilustrativa, figurativa e com contornos exatos. Assim, a partir do século XX,
o desenho passou a ser a única técnica ensinada, devido a sua utilização
prática na indústria.
O desenho foi valorizado e considerado como uma aptidão natural do
homem e defendido por diversos educadores, intelectuais e artistas como
uma forma de escrita, mais do que uma arte plástica, sendo valorizado por
sua "equivalência funcional com o escrever" (BARBOSA, 2002b, p. 34). Três
categorias de desenho foram ensinadas nas escolas primárias e secundárias
brasileiras: o desenho linear ou geométrico (desenho de réguas e compasso);
o desenho figurado (representação à mão livre de objetos e figuras); e o de-
senho de ornato ou arte decorativa, por influência da Escola de Belas-Artes.
O ensino da Arte sofreu, também, influência de duas tendências peda-
gógicas: a escolanovista e a tecnicista. Segundo Fusari e Ferraz (2001), o
movimento da Escola Nova surgiu contrapondo-se à educação tradicional. A
partir desse novo modo de entender a educação, as experiências cognitivas
eram propostas de maneira gradual, valorizando os interesses, as aspirações
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 259

e respeitando as necessidades individuais de cada educando. A estrutura-


ção racional e lógica dos conhecimentos, enfatizada na pedagogia tradicio-
nal, passa a ser menos significativa. As práticas pedagógicas diretivas foram
revistas, e deu-se maior ênfase aos processos de desenvolvimento do aluno
(BRASIL, 1998).
Ainda no Brasil, Anísio Teixeira foi um dos principais educadores do
Movimento Escola Nova, na década de 1930. Mesmo sendo inspirado por
Dewey e suas ideias de arte como experiência consumatória, difusa, ou seja,
desenvolvida durante todo o processo (noção adotada pela Escola Nova), o
ensino brasileiro não conseguiu difundir tal perspectiva de maneira correta.
Pouco da concepção estética de Dewey foi compreendido, e as experiências
com arte ficaram mais próximas da escola progressista americana, ou seja,
a arte era considerada uma ferramenta importante no auxílio das demais
disciplinas, mas não era uma delas.
Os professores de Arte na Escola Nova romperam com as teorias e prá-
ticas estéticas direcionadas exclusivamente à mimese, que eram aplicadas
na escola tradicional, por isso, foram abolidas as "cópias" de modelos ou do
ambiente circundante. Depois disso, começaram-se a valorizar os estados
psicológicos e as concepções estéticas, embasados pela Psicologia Cogniti-
va e Psicanálise (FUSARI; FERRAZ, 2001).
Após a Semana de Arte Moderna houve um crescimento dos movimen-
tos culturais de vanguarda no Brasil, e no início da década de 1930 surgiram
as primeiras tentativas de arte como atividade extracurricular, com a aber-
tura de escolas especializadas em arte para crianças e adolescentes. Essas
escolas assumiram concepções de caráter mais expressivo, de orientação
baseada na livre expressão e buscavam desenvolver a espontaneidade e
estimular a autoexpressão dos alunos. As práticas pedagógicas aplicadas
nessas escolas foram influenciadas pela estética modernista e pelas novas
teorias sobre o ensino da Arte que eram divulgadas no Brasil e no exterior
(BRASIL, 1998).
Durante a ditadura de Getúlio Vargas (Estado Novo – 1937-1945), as pro-
postas de implantação da Escola Nova foram interrompidas e foram reto-
madas somente a partir de 1948. Segundo Barbosa (2003), nesse período de
estado político ditatorial, iniciou-se a pedagogização da arte na escola, isto
é, as aulas de Arte limitavam-se à aplicação de técnicas aos alunos, que eram
treinados para reproduzir conhecimentos. Os procedimentos mais comuns
260 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

em artes limitavam-se ao desenho geométrico, desenho pedagógico e có-


pia de estampas usadas para a aula de composição em Língua Portuguesa.
A partir de 1958, com a aprovação do Parecer 31/58 do CNE, houve a
criação de classes experimentais na escola comum; as práticas aplicadas
nas Escolinhas de Arte alcançaram a escola pública. O objetivo desta lei
era proporcionar a investigação de alternativas pedagógicas e desenvolver
metodologias de ensino de caráter experimental, e a presença da Arte nos
currículos experimentais da escola pública permitiu a aplicação da meto-
dologia de livre expressão, que era utilizada nas Escolinhas de Arte. Uma
variedade de técnicas e de diversos materiais foi aplicada durante as práticas
educativas nessas classes experimentais (BARBOSA, 2003).
Depois dos anos 1960, o método de livre expressão – que caracterizou
o modernismo da arte-educação – foi aplicado mecanicamente nas esco-
las, sem o devido estudo e fundamentação, o que acabou por reduzi-lo,
segundo Barbosa (2004), a um "deixar fazer", isto é, deixar o aluno fazer arte
sem nenhuma intervenção. A figura do professor passou a ser cada vez mais
irrelevante e passiva, visto que o entendimento era de que a expressão do
aluno não deveria sofrer influências externas.
As aulas de Arte desenvolvidas na perspectiva da pedagogia escolano-
vista tinham como objetivo o desenvolvimento da expressividade do aluno.
Acreditava-se que esta era inerente à criança. Nesse aspecto, as imagens
de obras de arte foram abolidas dos espaços escolares, uma vez que se
acreditava que a "arte adulta" poderia influenciar a espontânea expressão
infantil (BRASIL, 1998). Mesmo tendo a intenção de não influenciar a produ-
ção artística dos alunos, esse tipo de metodologia – que não disponibiliza
imagens de obras de artes – dificulta o desenvolvimento desta consciência
estética, privando os discentes da apreciação da arte, do conhecimento das
produções artísticas ao longo da história.
Na tentativa de preservar a originalidade e a criatividade das crianças, o
que realmente acontecia era o afastamento das obras de Arte e da dimen-
são da historicidade, limitando cada vez mais a produção artística destes
alunos à introspecção, à experiência individual, impedindo o exercício da
capacidade crítica, e a ausência desta apropriação resultou em discentes
sem apropriação da história da Arte.
A Pedagogia Tecnicista foi introduzida nas escolas brasileiras com o
propósito de atender às solicitações do mercado de trabalho. Em 1971,
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71 estabeleceu a
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 261

obrigatoriedade da arte no currículo escolar, com o título de Educação


Artística, nomenclatura que passou a designar o ensino conjunto de artes
plásticas, educação musical e artes cênicas (teatro e dança). Ela não foi con-
siderada disciplina, mas sim "atividade artística" (BRASIL, 1998). Ao mesmo
tempo, nessa época, a pedagogia tecnicista estabeleceu-se definitivamente
como uma tendência e como um reflexo da valorização do processo de in-
dustrialização e do desenvolvimento econômico.
A escola, nessa perspectiva tecnicista, tinha como objetivo a preparação
de sujeitos "competentes" e produtivos que pudessem de preferência ser
formados para o mercado de trabalho. O currículo utilitarista e a utilização
de meios de ensino modernos, como recursos audiovisuais (gravadores, pro-
jetores de slides, de filmes etc.), foram as características dessa pedagogia.
A organização racional e mecânica era o novo modo de pensar a educação,
tendo como consequência a redução da docência a simples "funções téc-
nicas", isto é, o professor apenas deveria ser responsável pela organização
e planejamento dos elementos curriculares (objetivo, conteúdo, estratégia,
técnicas, avaliação), sendo estes devidamente apontados em documentos,
tais como planos de cursos e de aulas (FUSARI; FERRAZ, 2001).
Mesmo com a introdução da Educação Artística no currículo escolar, e
acreditando que este conteúdo representaria um avanço na educação bra-
sileira, o ensino da Arte na prática, efetivado em salas de aulas, não obteve
uma perspectiva tão impactante. Com docentes despreparados para aplicar
as várias linguagens artísticas, com grande déficit de formação na área, as
aulas de Arte tornaram-se práticas pedagógicas limitadas a seguir guias
curriculares oficiais, aplicando listas de atividades e/ou utilizando livros di-
dáticos (BRASIL, 1998).
Os conteúdos escolares e métodos de ensino utilizados na pedagogia
tradicional ou escolanovista foram submetidos aos objetivos comportamen-
tais e organizacionais da pedagogia tecnicista e aplicados em sala de aula.
Mediante este quadro, o ensino da Educação Artística foi resumido a pro-
postas de atividades variadas, que não aprofundavam os saberes específicos
de cada uma das modalidades artísticas (FUSARI; FERRAZ, 2001).
As aulas de Arte desenvolvidas com a concepção tecnicista não estimu-
lavam a consciência crítica e estética dos alunos, e esta concepção atingiu
seu auge nos anos 1970, juntamente ao autoritarismo advindo do Estado e
do regime militar, período no qual o espírito crítico e reflexivo foi banido
das escolas (SCHRAMM, 2001). A prática de arte nas escolas públicas foi, em
262 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

geral, dominada por temas alusivos a comemorações cívicas, religiosas e ou-


tras festas, por meio da técnica do desenho livre ou de pintura de desenhos
prontos.
No século XX surgiram algumas propostas que foram elaboradas na
perspectiva de o ensino da Arte ir além do desenvolvimento da autoexpres-
são. Nesse contexto, os conhecimentos em Arte foram desenvolvidos com a
mesma exigência e aplicados com a mesma conduta esperadas nas ciências
exatas e humanas.
Em 1988, Robert Ott, professor americano, ministrou o curso "Ensinan-
do Arte através da Crítica de Arte" no Museu de Arte Contemporânea da
USP (MAC) e desenvolveu o sistema conhecido como Image Watching. Esse
sistema é aplicado em cinco níveis de leitura de imagem: no primeiro ní-
vel, descrevendo, os aspectos formais da imagem serão analisados (linha,
cor, textura, forma etc.); no segundo, analisando, os aspectos conceituais
serão considerados (composição, técnica, temática etc.); no terceiro nível,
interpretando, serão destacados os aspectos pessoais, ou seja, as impres-
sões pessoais; no quarto nível, fundamentando, o contexto será analisado
(conhecimento sócio-histórico da obra); e no último, revelando, com base
na experiência da leitura da obra, faz-se uma produção artística (ARSLAN;
IAVELBERG, 2006).
Outro professor, Michael Parson, da Ohio State University (USA) desen-
volveu uma pesquisa de leitura de imagem com enfoque cognitivo. Para ele,
o desenvolvimento da apreciação estética acontece em cinco estágios.
No primeiro estágio, denominado favoritismo, o interesse da criança
(principalmente as pequenas) pela obra ou imagem se dá espontaneamen-
te, motivado pela temática ou pelo reconhecimento de um único elemento.
Quando a criança é capaz de relacionar todos os elementos da obra e até
de criar uma história que a explique, está no segundo estágio: beleza e re-
alismo. Nele, o assunto é importante, pois uma imagem será bela se o seu
tema também for. No terceiro estágio, chamado expressão, a expressão e a
intenção do artista passam a ter mais importância que a beleza, o realismo
ou a técnica para a compreensão da obra. No quarto estágio, estilo e forma,
surgem o interesse pelas características formais da obra e a relação desta
com a expressão pretendida. No quinto e último estágio, autonomia, os con-
textos social e estilístico da obra são observados, procurando relacioná-los à
leitura (ARSLAN; IAVELBERG, 2006).
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 263

Sociedade atual e a importância da Arte na escola


Os escritos de Ana Mae Barbosa (2005b) enfatizam a importância da
presença das Artes na escola, inclusive para a construção do cognitivo, visto
que o conhecer se opera por meio de níveis não só racionais, mas também
afetivos e emocionais.
Em síntese, acredita-se que a arte na escola, como expressão pessoal
e como cultura, pode constituir um canal privilegiado tanto para o desen-
volvimento individual como para a identificação cultural. Por meio da arte é
possível desenvolver a percepção e a imaginação, propiciando o desenvol-
vimento de capacidades críticas; a apreensão da realidade e do meio am-
biente; e a ampliação da criatividade, de maneira a mudar de alguma forma
a realidade que foi analisada.
São muitos os desafios para a escola, em especial para os docentes que
queiram ministrar a arte ao pensar uma educação que não seja para a repro-
dução e muito menos para uma recepção passiva de saberes preestabele-
cidos. Com intuito de compreender melhor a importância do conhecimento
em Artes, neste texto, intentou-se perceber que toda aprendizagem é uma
organização dinâmica do organismo, do ambiente, do social, em um contex-
to de interação, com resultados diretos tanto nas transformações individuais
como nas coletivas.
Para quem faz arte, o criar é dar forma, é possibilitar a comunicação e/ou
a realização de algo. O ato de criar abrange várias capacidades, entre elas a
de se relacionar, de significar etc. e, desta forma, ordenar o mundo interno e
externo e compreender melhor os vários diálogos do interior e do exterior.
Ser criativo implica ser curioso, pois a curiosidade sempre indica admiração,
inquietação, um conjunto de indagações ou silêncios, com o propósito de
fazer uma releitura do mundo.
Um dos objetivos da arte na escola é promover a capacidade do aluno
de se desenvolver por meio da possibilidade de experiências de criação
ou percepção de formas expressivas. Nessa atividade, "sensibilidades são
refinadas, distinções fazem-se mais sutis, a imaginação é estimulada e ha-
bilidades são desenvolvidas para dar forma sentindo" (EISNER, 2002, p. 24).
Para Fayga Ostrower (1999), artista plástica, escritora e pesquisadora,
a criatividade é um potencial inerente ao ser humano, e sua realização é
uma necessidade. Ela entende a criatividade como aquela que "correspon-
de a aspectos expressivos de um desenvolvimento interior na pessoa, re-
fletindo processos de crescimento e de maturação cujos níveis integrativos
264 | Violências no cotidiano social e escolar: desnaturalizando com arte

consideramos indispensáveis para a realização das potencialidades criativas"


(OSTROWER, 1999, p. 5).
A sensibilidade do sujeito é aculturada, por isso orienta o fazer e o ima-
ginar individual. Para Ostrower (1999, p. 12), os processos de criação ocor-
rem no âmbito da intuição e, por isso, "interligam-se intimamente com o
nosso ser sensível, pois a criação se articula principalmente no âmbito da
sensibilidade".
A criatividade não pode ser ensinada, mas é possível criar as condições
culturais para seu desenvolvimento. Em termos educacionais, isso implicará
"uma pedagogia capaz de hibridizar modos diferentes de apreender a rea-
lidade, conjugando a abordagem lógica e metódica do mundo com a per-
cepção global e intuitiva típica das práticas artísticas" (SODRÉ, 2012, p. 104).
A adoção desta perspectiva supõe o entendimento de que a percepção
estética e a imaginação criadora são configuradas pelo modo de aprender.
Para Boal:

O corpo humano é a fonte, e as linguagens estéticas são os meios de um


pensamento simultâneo ao Pensamento Simbólico das palavras e dos
gestos convencionados. Esta é a razão da arte. As formas estéticas de
conhecer produzem um Pensamento Sensível específico, que somente
através delas se obtém e às outras se acrescenta (BOAL, 2009, p. 91).

Na medida em que a expressão artística é considerada importante, isto


é, quando ela se torna tão necessária quanto qualquer outro saber, temos a
arte como algo de destaque e respeito, ou melhor, temos aquela que move
as ações criadoras do estudante na escola. Essas são as bases de um pensa-
mento educacional contemporâneo. Segundo Eisner (2002, p. 4), "educação
é o processo de aprender a criar a nós mesmos e o papel das artes é refinar
os sentidos e alargar a imaginação: é isso que as artes promovem, como um
processo e como os frutos desse processo".
Nesse contexto, segundo o autor, a educação, mais especificamente a
escola torna-se um espaço de formação de sujeitos criativos e críticos, com
experiências estéticas e éticas em que podem se reconhecer e serem mobi-
lizados para mudanças.
Arte nas escolas brasileiras: a criação de sentidos | 265

Algumas considerações
O propósito deste texto foi perceber como os fatos históricos e os estilos
artísticos contribuíram e ainda contribuem para o desenvolvimento e apren-
dizagem da Arte na educação, em especial nas escolas brasileiras. Apesar
de ser um texto com limites, ao contemplar esta questão, entende-se que a
criatividade, a criticidade e a afetividade formam uma possibilidade impor-
tante de "liberação das energias de vida e de conhecimento desconhecidas
e recalcadas pelos poderes-saberes instituídos" (ASSMANN, 1998, p. 134).
Ao compreender o pensamento e o conhecimento como feitos não ape-
nas de razão, o aluno cria sentidos e valores que fundamentam sua ação no
seu ambiente cultural, de modo que haja coerência entre o falar e o fazer,
entre o pensar e o agir, entre o sentir e o atuar. A educação com Arte é en-
tendida como um processo no qual o estudante é levado a criar um sentido
pessoal para a sua vida, a partir da análise, crítica e seleção dos sentidos
veiculados por sua cultura e demais culturas.

É preciso educar para as polissemias. Para o conhecimento como


multiplicidade. Para as entrelinhas dos textos que entretecem o real.
Educar para a convivência quotidiana com diversas fontes simultâneas,
com redes de ideias e de dados. Educar para a interpretação. Para a
criação. Criar e revelar sentidos: necessidades vitais nossas e de nossos
trabalhos de ensinar e aprender (ANTÔNIO, 2003, p. 33).

As imagens e as diferentes linguagens artísticas podem ser utilizadas


como um meio propício ao acontecimento de aprendizagens significativas,
constituindo um local privilegiado de criação na escola, de sentidos para o
viver individual e coletivo. Essa perspectiva permite explorar diversas formas
e, principalmente, potencializar a criatividade, ampliar o entendimento de
si e o olhar para o outro. Durante os processos criativos, acredita-se que os
estudantes são desafiados a adotar diferentes perspectivas, com possibili-
dades de novos espaços para repensar as relações com o entorno e consigo
mesmos.

Referências
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Janeiro: Lucerna, 2002.
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TIRAPELI, P. Arte moderna e contemporânea: figuração, abstração e novos meios – séculos 20 e 21.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. (Coleção Arte Brasileira).
Biografia dos autores

Aialy de Souza Oliveira, graduanda do Curso de Licenciatura em


Física da UFSCar. Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Subjetividade e Cultura).

Aline Cristina de Souza, Doutoranda em educação pelo Programa


Pós-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, mestre em Educação Espe-
cial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da PPGEES/
UFSCar, graduada em Licenciatura em Pedagogia e Educação Especial pela
UFSCar, Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Subjetividade e Cultura). Professora substituta do Instituto Federal de São
Paulo – IFSP.

Bianca Kapp Cardoso, graduanda do Curso de Licenciatura em Pe-


dagogia da UFSCar, Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Subjetividade e Cultura).

Caroline Miranda Palmieri da Silva, mestranda em Educação


pelo Programa de Pós-graduação em Educação pelo PPGE/UFSCar, gradua-
da em Licenciatura em Pedagogia e Membro do GEPESC (Grupo de Estudos
e Pesquisas em Educação Subjetividade e Cultura).

Célia Maria Rosa, mestre em Educação pelo Programa de Pós-gradu-


ação em Educação da PPGE/UFSCar, graduada em Licenciatura em Peda-
gogia da UFSCar Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Subjetividade e Cultura).
Jéssica Veloso Morito, graduada em Licenciatura em Matemática
pela UFSCar, graduanda do Curso em Licenciatura em Pedagogia da UFS-
Car. Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Sub-
jetividade e Cultura).

Jussilene Rego Nunes, graduada em Licenciatura em Pedagogia


pela UNITINS (Universidade Estadual de Tocantins) e graduanda em Bacha-
relado em Psicologia pela UNICEP (Centro Universitário Central Paulista).

Marcela Luiz Corrêa da Silva, graduada em Bacharelado em Direi-


to pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP, Mediadora e conciliadora
judicial de conflitos formada pela CAMCESP (Câmara de Arbitragem, Media-
ção, Conciliação e Estudos de São Paulo) e formada em Comunicação Não
Violenta pela empresa AprendeAí. Membro do GEPESC (Grupo de Estudos
e Pesquisas em Educação Subjetividade e Cultura).

Maria Carolina do Carmo Gurgel, graduada em Licenciatura em


Pedagogia pela UFSCar, e graduada como Bacharel em Direito pelo Instituto
Paulista de Ensino Superior.

Maria Cecília Luiz, doutora em Educação Escolar pela Unesp/Arara-


quara, mestre em educação pelo PPGE/UFSCar, graduada em Licenciatura
em Pedagogia pela UFSCar. Professora associada do Departamento de Edu-
cação da UFSCar, credenciada no Programa de Pós-graduação em Educação
da PPGE/UFSCar na linha de pesquisa: Educação, Cultura e Subjetividade.
Coordenadora do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Subjetividade e Cultura).

Maria Cristina Luiz Ferrarini, mestre em Educação pelo Programa


Pós-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, Especialização em Arte,
Educação e Movimento pelo Centro Universitário Central Paulista (UNICEP),
graduada em Educação Física pela Fundação de Educação Física de São
Carlos e graduada em Artes e Música pelo Centro Universitário Claretiano.
Professora certificada pela Royal Academy of Dance of London desde 1996
(nº 141117R). Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educa-
ção Subjetividade e Cultura).
Miguel Gonzalez Arroyo, graduado em Ciências Sociais pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais (1970), mestre em Ciência Política pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1974) e doutor (PhD em Educação)
- Stanford University (1976). É Professor Titular Emérito da Faculdade de Edu-
cação da UFMG. Foi Secretário Adjunto de Educação da Prefeitura Municipal
de Belo Horizonte, coordenando e elaborando a implantação da proposta
político-pedagógica Escola Plural. Acompanha propostas educativas em
várias redes estaduais e municipais do país. Autor dos livros "Imagens que-
bradas: Trajetórias de tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes, 2000";
Vidas ameaçadas: exigências-respostas éticas da educação e da docência.
"Petrópolis: Vozes, 2019"; e "Passageiros da Noite do Trabalho para a EJA:
Itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017".

Rafaela Maria Rodrigues, graduanda do Curso em Licenciatura em


Pedagogia da UFSCar

Rafaela Marchetti, doutora e mestre em Educação pelo Programa Pós-


-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, graduada em Licenciatura em
Pedagogia pela UNESP/Araraquara, Membro do GEPESC (Grupo de Estudos
e Pesquisas em Educação Subjetividade e Cultura).

Ridamar Aparecida de Oliveira, graduanda do Curso em Licen-


ciatura em Pedagogia da UFSCar, Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação Subjetividade e Cultura).

Rita de Cássia Rosa da Silva, mestranda em Educação pelo Pro-


grama de Pós-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, especialista em
Computação Aplicada à Educação (USP); Educação e Tecnologias (UFSCar);
especialista em Ensino de Arte (UNICID), graduada em Licenciatura em Edu-
cação Musical (UFSCar) e Pedagogia (UNESP), Membro do GEPESC (Grupo
de Estudos e Pesquisas em Educação Subjetividade e Cultura).

Renata Reis Genuíno, mestre em Educação pelo Programa Pós-


-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, graduada em Licenciatura em
Pedagogia, graduanda do Curso de Psicologia da UFSCar.
Tatiane Martins Moacir de Almeida, mestranda em Educação
pelo Programa Pós-graduação em Educação da PPGE/UFSCar, graduada
em Licenciatura em Pedagogia pela UFSCar e Licenciatura em Letras pela
UNIFRAN.

Viviane Wellichan, mestre em Educação pelo Programa de Pós-gradu-


ação em Educação da PPGE/UFSCar, graduada em Licenciatura em Peda-
gogia pela UFSCar, Membro do GEPESC (Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Subjetividade e Cultura).

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