Você está na página 1de 24

De Anamaria Nunes

Adaptação e Direção: Fernanda Möller

PERSONAGENS

Empresária: Eduarda Julinha: Lívia

Auxiliar: Gabriela Heloísa: Giovanna Chu

Ensaiadora: Erica Mocinha 1: Julia

Assistente: Anna Mocinha 2: Amanda

Essa menina: Beatriz Autora: Sofia

Outra menina: Juliana Aprígia: Bruna

Doutor: João Isolda: Helena

Teodora: Sara Mota: André

Isaurinha: Giovana Gomes Osvaldo: Raul

1
Prólogo
(Sons de final de espetáculo, Ensaiadora está no meio do palco nervosa, Empresária confere os borderôs
com a Auxiliar e as duas meninas estão no outro canto, tentando enxergar atrás da cortina)
AUXILIAR — 102, 103, 104, 105, 106! 106 pessoas! Que prejuízo, meu Deus!
ENSAIADORA — Não consigo entender, a peça é boa, está bem ensaiada!
EMPRESÁRIA — É um fiasco.
ENSAIADORA — Mas pode vir a ser um sucesso!
EMPRESÁRIA — Para a senhora, que é a ensaiadora e, infelizmente, não paga ingresso!
ENSAIADORA — Espera, e a critica do jornal, Essa Menina? Dá-me o jornal (pega o jornal da mão da
menina e lê em voz alta) ”O elenco não se havia muito bem, errando as marcas e solicitando o ponto a
cada frase”... (devolve o jornal a essa menina) Esconda o jornal do Doutor, Essa menina.
ESSA MENINA — Sim, senhora.
ENSAIADORA — Imbecil.
ESSA MENINA — Não sou, não.
ENSAIADORA — O crítico. O crítico é um imbecil.
OUTRA MENINA (à parte). —"Quando a crítica é boa é a opinião de todo mundo; quando a crítica é má
é apenas a opinião de um imbecil."
EMPRESÁRIA — Um imbecil que todo mundo lê, diga-se de passagem.
(Aplausos ao fundo.)
OUTRA MENINA — Acabou o espetáculo!
ENSAIADORA — Veja, como aplaudem com vontade!
AUXILIAR — Mas é óbvio, temos um excelente cabo de claque!
OUTRA MENINA — Lá vem o doutor! Ele fica tão bonito com este figurino!
(Entra o doutor.)
DOUTOR —Chama-me a ponto agora. E ponha-a na tabela!
EMPRESÁRIA — Na tabela? A Dona Teodora? Mas o que houve?
DOUTOR — Imagina que a salafrária respondeu-me atravessado. Pedi-lhe a deixa e ela respondeu-me:
“ESTUDASSE” .
ESSA MENINA — Que desaforo!
ENSAIADORA — Uma impertinente!
AUXILIAR — Ponho-a já na tabela! Multada em 50% do cachê.
DOUTOR — Ótimo. Essa Menina, o jornal! Outra Menina, chame a Ponto (ela sai apressada)
ENSAIADORA (rápida) — Então, doutor, gostou do espetáculo?
DOUTOR — Eu gosto. Gosto muito.
2
ENSAIADORA — Não disse?
EMPRESÁRIA — um fracasso! 106 pessoas!
DOUTOR — 106 pessoas?
ENSAIADORA (rápido.) — O doutor fez o Cardeal Gonzaga esplendidamente!
DOUTOR — Fiz mesmo (Grita.) O Ponto e o jornal! (Lê a critica em voz baixa)
EMPRESÁRIA — Então, doutor, mudamos o repertório?
DOUTOR — 106 pagantes, a crítica... Está decidido: tiramos a peça de cartaz!
ENSAIADORA — Mas, doutor, a nossa peça...?
EMPRESÁRIA — O que a senhora quer dizer com "nossa peça?" É a sua peça!
ENSAIADORA — Com muita honra!
ESSA MENINA (à parte.) — Quando a peça é sucesso tem muitos donos, quando é fracasso é de um só!
(Ensaiadora olha a reprovando. Entra a ponto)
TEODORA — Pois não, Doutor!
EMPRESÁRIA — A senhora está na tabela.
TEODORA — Mas por quê?
EMPRESÁRIA — Então ousa fazer-se de desentendida?
AUXILIAR — Foi um desaforo, Dona Teodora.
OUTRA MENINA — Imperdoável, Dona Teodora.
ESSA MENINA — Francamente, Dona Teodora.
EMPRESÁRIA — Dizer ao doutor que estudasse o texto...
TEODORA — Eu?
DOUTOR — A senhora, sim. Quem mais? Pedi-lhe a fala e o que a senhora me respondeu? ”Estudasse!”
TEODORA — Não foi assim.
DOUTOR — Ousa chamar-me de mentiroso?
TEODORA — Não. Digo que se engana, Doutor. O que disse foi: “ISTO DA-SE”.
AUXILIAR — Ainda repete!
TEODORA — (explicando) “Isto...... dá-se”.
AUXILIAR — Creio ter ouvido "estudasse", dona Teodora.
TEODORA — Em outras palavras “isto se dá”!
DOUTOR — Ah? Ora, claro, claro, dona Teodora. (Brinca.) E eu a jurar que a senhora me repreendia...
TEODORA — Jamais faria isso. Sei o meu lugar.
AUXILIAR — Então, Doutor, tiro-a da tabela?

3
DOUTOR — É óbvio que sim, incompetente!
TEODORA — Preciso de um banho. Estou exausta. Pontuar é um trabalho difícil, ao invés de me
agradecerem, o Doutor me põe na tabela!
DOUTOR — Vamos, dona Teodora, não seja rancorosa. Foi um lamentável engano. (Ponto sai)
EMPRESÁRIA — Então, Doutor, como ficamos? Se tiramos a peça de cartaz hoje, domingo, que peça
vamos dar na sexta-feira? É preciso renovar o repertório.
DOUTOR —Escolher o repertório é tarefa ingrata. – "Há peças que são o meu ganha-pão..."
EMPRESÁRIA — São as que me interessam!
DOUTOR — Outras são o meu luxo, a minha fantasia.
EMPRESÁRIA — Falemos do seu ganha-pão, Doutor!
DOUTOR — "Mas as outras são a poesia do teatro”
EMPRESÁRIA — E que só dão prejuízo. (Pausa.) Mas onde está o êxito?
DOUTOR — Na comédia, eu sei.
AUXILIAR — Mas se pensa assim, por que monta "A Ceia dos Cardeais?"
DOUTOR - É a poesia do teatro, oras!
EMPRESÁRIA — E o prejuízo? Enquanto o senhor faz poesia com o teatro, sou obrigada a fazer mágica
para arcar com as despesas da companhia! O teatro é meu, é justo que me preocupe.
DOUTOR — Seu teatro não é lá grande coisa, anda mesmo precisando de reparos...
EMPRESÁRIA — Mas o público vem.
DOUTOR — Vem ver a mim, vem por causa do meu prestígio de ator!
EMPRESÁRIA — Não seja vaidoso, Doutor. As pessoas gostam do Trianon, das comédias ligeiras, do
nosso apuro, do nosso estilo... da nossa qualidade! Do Trianon, enfim.
DOUTOR — De mim.
EMPRESÁRIA — Do Trianon.
DOUTOR — De mim.
EMPRESÁRIA — Do Trianon
ENSAIADORA — Dos dois.
ESSA MENINA E OUTRA MENINA— Do Doutor.
AUXILIAR – Do Trianon
ENSAIADORA — Dos dois.
EMPRESÁRIA — Pois saiba que temos um artista muito melhor que o doutor! (Silêncio.)
DOUTOR — Então diga lá: quem é essa criatura?!
EMPRESÁRIA — "Mora na Avenida Central, tem um público certo e se chama Trianon!"

4
DOUTOR — Ahhh.... quer saber: ousa fazer pouco caso do meu prestígio de ator? Seu teatro tem púbico
certo? Pois então alegre-se. Ele é todo seu. Vou embora. (Entra a 2a. atriz.)
JULINHA — Boa noite, Doutor.
DOUTOR —Ah! senhorita! A sua beleza engrandece a cena 3 ! Isto compensa o mau humor da
empresária...
JULINHA —Meu coração está ocupado!
DOUTOR — Malvada!
JULINHA — Adeusinho! (Sai.)
DOUTOR — Essa atriz é um sucesso!
EMPRESÁRIA — Então, Doutor?
DOUTOR — Então o quê? Estou indo embora! (Entra a 1a. ATRIZ.)
ISAURINHA — Boa noite, Doutor!
DOUTOR — Como? Ah, senhorita! Mas vão todas de uma vez? Assim o teatro fica feio!
ISAURINHA — O carro de aluguel espera-me à porta...
DOUTOR — A senhorita está com uma encadernação belíssima!
ISAURINHA — E o senhor é um ladrão de corações!
DOUTOR — Jantamos amanhã?
ISAURINHA — Com prazer. Boa noite. (Sai.)
DOUTOR — Ciumenta!
EMPRESÁRIA — Isto acaba mal, ah se acaba!
DOUTOR — O que acaba mal?
EMPRESÁRIA — Tudo. O Doutor há de compreender que a companhia, ainda que artística, precisa viver.
DOUTOR — Está bem, escolhamos o repertório!
EMPRESÁRIA — Ufa. Que tal o Felisberto do Café?
ESSA MENINA — O Simpático Jeremias?
ENSAIADORA — Juriti.
DOUTOR — Não, não e não. Estão muito vistas.
ENSAIADORA — Onde Canta o Sabiá.
AUXILIAR — Sai da Porta, Deolinda.
OUTRA MENINA — Cala a Boca, Etelvina. (ponto retorna com uma pasta indo embora, fala algo com a
Auxiliar)
DOUTOR — Não, não e não. É tão difícil... Se temos a peça não temos os atores.
EMPRESÁRIA — Nada de saudosismo, Doutor. Temos grandes atores na nossa companhia mesmo...

5
ESSA MENINA — O Mota, por exemplo!
EMPRESÁRIA — Cale-se, essa menina!
DOUTOR – Aqui temos alguém que conhece toda a classe artística carioca, com certeza poderia nos
ajudar neste impasse. (para a ponto) Não sabemos qual peça escolher para o repertório.
TEODORA — Posso sugerir se a Sra Staffa concordar...
EMPRESÁRIA – Por favor, Dona Teodora.
TEODORA — Por que não um texto novo?
DOUTOR — Por que não?
TODOS — Por que não?
ENSAIADORA — Mas quem escreveria?
EMPRESÁRIA — Gastão Tojeiro.
AUXILIAR— Oduvaldo Viana.
ENSAIADORA — Armando Gonzaga.
AUXILIAR — Renato Viana, Viriato Correia, Paulo Magalhães...
DOUTOR — Não, não e não. Sabem, gostaria de ter um autor novo. Precisamos de gente nova. E depois
gosto de lançá-los, de levá-los glória!
TEODORA — Posso sugerir?
DOUTOR — Por favor, Dona Teodora.
TEODORA — Há uma moça que chegou nova na cidade e todos dizem que seus textos são excelentes.:
Anamaria Nunes.
DOUTOR — Está decidido: vamos atrás da moça!
EMPRESÁRIA — Onde podemos encontrá-la?
AUXILIAR — Será que ela escreve um texto até sexta-feira?
ESSA MENINA — Cinco dias é tempo demais pra se escrever um texto...
TEODORA — Ela frequenta o Café Simpatia.
AUXILIAR — Será que a encontramos agora?
TEODORA — É hora do jantar, provável que sim.
ENSAIADORA – Um texto novo, vou precisar de uma assistente...
EMPRESÁRIA – Contrate.
AUXILIAR — Vamos até o café, sra Staffa?
EMPRESÁRIA — Vamos, sim. Apaguem o teatro, Meninas. Boa noite para todos!
TODOS — Boa noite.
(Saem todos, exceto a Ponto e o Doutor.... a ponto entrega o chapéu ao doutor.)

6
DOUTOR — Obrigado, Dona Teodora.
TEODORA — É um prazer servi-lo, Doutor.
DOUTOR — Ainda está magoada?
TEODORA — Não.
DOUTOR — Vamos? (saindo) Então, Dona Teodora?
TEODORA — "Um teatro vazio dá-me a impressão de que a vida foi ontem".
DOUTOR — Bonito.
TEODORA — Um grande ator me disse isso.
DOUTOR — Fui eu?
TEODORA — Por que não?
Cena 01
(Luz de serviço. Cortina aberta. Palco nu. Construção do cenário em "off". Martelo. Luzes vão acendendo
no ritmo do samba. Acaba o samba.. Muito papel amassado que a autora atira no palco. A Essa Menina
recolhe os papéis. Barulho de máquina de escrever.)
AUTORA — Escuta, Essa menina, como está o humor da Empresária?
ESSA MENINA — Parece-me alegre. É estreia. A casa vai estar lotada. O lucro, certamente, será
fabuloso.
AUTORA — Está decidido: peço-lhe um aumento!
EMPRESÁRIA (entrando) — Isto ainda acaba mal, ah se acaba!
AUTORA — Empresária...eu gostaria de saber se a senhora não pode me dar um aumento...
(entram as Mocinhas observando tudo)
EMPRESÁRIA — Um aumento? Pois se lhe pago cinco cadeiras por espetáculo!
AUTORA — É pouco se considerarmos o tamanho do teatro.
EMPRESÁRIA — É muito se considerarmos o tamanho do seu texto.
AUTORA — Mas eu pensei...
EMPRESÁRIA — Pensou errado. Isso é com o doutor! Dou-lhe casa, comida e cinco cadeiras por
espetáculo. O doutor dá-lhe a fama. Então, é pouco? É a escrita, Srta Anamaria.
MOCINHA 1— Dá licença?
OUTRA MENINA — Senhora Empresária, a gente precisa de duas lâmpadas.
EMPRESÁRIA — O que você quer dizer com "precisa?"
OUTRA MENINA — Queimaram duas lâmpadas do panelão, ué. (Barulho de martelo)
EMPRESÁRIA — De uma vez só? Olha o prejuízo! Isto não vai acabar bem, ah não vai. (Grita para coxia.)
Ô mestre Quintino, que barulheira é essa?
(a Mocinha 2 fala mais alto)
7
MOCINHA 2 - Com licença?
EMPRESÁRIA — Digam!
MOCINHA 2 — É que... nós gostaríamos de fazer um teste de elenco. Podemos entrar?
EMPRESÁRIA — Entrar onde?
MOCINHA 1 — Na companhia.
EMPRESÁRIA — Mas as senhoritas já me disseram isso. (Grita.) Quintino, aproveita que está aí na
escada e prega um reforço na tapadeira. O pano está a esgarçar-se e cuidado para não esgarçar de vez!
MOCINHA 1 — Por favor.
EMPRESÁRIA — Falem de uma assentada só. Estou muito ocupada.
MOCINHA 2 — Nós queríamos entrar para a Cia.
EMPRESÁRIA – Vocês são atrizes?
MOCINHA 1 – Não de profissão, mas somos muito talentosas ( som de martelo)
EMPRESARIA – (gritando para a coxia) Seu Quintino, não há quem suporte isto!! Olha, mocinhas, se
Deus existir, estreamos dentro em pouco e não posso estar a preocupar-me com isso.
MOCINHA 1— Mas eu pensei...
EMPRESÁRIA — Pensou errado. Isso é com o doutor.
MOCINHA 2— Vamos falar com o doutor?
EMPRESÁRIA (à parte). — Fãs! E essa agora? (Para ela.) Mocinhas, é proibida a entrada de estranhos.
Esperem na porta, por favor,
ENSAIADORA (entrando) — Empresária, preciso que libere o palco para o ensaio do entreato.
EMPRESÁRIA — Já está liberado. Quando quiser, professora.
ENSAIADORA — Vou buscar o elenco. Libere o palco e apresse a autora. Assim não é possível
trabalhar...
EMPRESÁRIA — Faço o que posso. (Grita.) Srta Anamaria!
AUTORA — O que é?
EMPRESÁRIA — A peça está quase a dar-se e a senhora não termina o texto!
AUTORA – Faço o que posso.
EMPRESÁRIA – É pouco!
AUTORA — Pouco? Escrever um texto em quatro dias é pouco?
EMPRESÁRIA — A senhora é ou não é uma escritora?
AUTORA — Sou escritora. Não sou máquina.
EMPRESÁRIA — No Trianon trabalha-se assim. É a escrita, Srta Anamaria, é a escrita! (sai de cena)
ENSAIADORA (gritando de fora) — Elenco no palco! Ensaio do entreato!
(Julinha, a 2ª Atriz entra, é barrada pelas mocinhas.)
8
MOCINHA 1 — Dá licença? A senhorita é a 1ª. atriz?
JULINHA — Sou a segunda atriz. A primeira é dona Isaurinha, mas ela AINDA não chegou. É sempre
assim, todo dia chega atrasada
MOCINHA 2 — E o doutor?
JULINHA —Deve estar chegando, por quê?
MOCINHA 2 — Sabe o que é? Nós queremos ser atrizes.
JULINHA — Clássico.
MOCINHA 1 — A empresária mandou-nos falar com o doutor.
JULINHA— Clássico! Ela sempre faz isso. Quando não sabe resolver um assunto diz que é o doutor quem
resolve e no final é assim mesmo. Então vocês querem ser atrizes?
MOCINHA 1 e 2 — (felizes) SIM!.
JULINHA —Têm experiência?
MOCINHA 1 e 2 — (tristes) Não!
MOCINHA 2 – Mas desde pequeninas este sempre foi o nosso sonho, e nossa mãe diz que temos muito
talento, somos muito charmosas...!
ASSISTENTE — (entra com um microfone de lapela) Testando... testando... Atenção: Elenco no palco.
(entra a ensaiadora e fica conversando com ela, olhando o texto)
JULINHA — Queridas, desculpe, mas durante o ensaio é proibida a entrada de estranhos. É melhor vocês
esperarem o doutor na porta. Boa sorte!
(Elas saem. Entra o elenco do entreato.)
MOTA — Estou pronto, professora.
ENSAIADORA — Vamos lá, então. Quero muito realismo nas cenas. Muita emoção. É preciso comover o
público. Vamos?
(começam a falar os textos com interpretações exageradamente grandes. Mota começa a frase alto e
vai diminuindo a voz.)
MOTA — INtolerável já me contaram tudo, não adianta me enganar!
JULINHA — O senhor não pode acreditar nesta infâmia!
MOTA — É A MInha honra, canalha! A minha honra!
JULINHA — É uma vil calúnia!
MOTA — CALÚNIA? Pois vou matá-la como se mata a um cão danado!
ENSAIADORA – Senhor Mota, o senhor está começando todas as falas fortes e terminando fraco, o
contrário ficará melhor...
MOTA - Faço de novo, professora?
ENSAIADORA - Por favor...
(Agora Mota faz EXATAMENTE o contrário)
9
MOTA — Intolerável já me contaram tudo, não adianta me enGANAR!
JULINHA — O senhor não pode acreditar nesta infâmia!
MOTA — É a minha honra, canalha! A minha honRA!
JULINHA — É uma vil calúnia!
MOTA — Calúnia? Pois vou matá-la como se mata a um cão danaDO!
JULINHA — Não.
MOTA — Sim. (Puxa a pistola.)
JULINHA — Não.
MOTA — Morra, traidoRA! (Atira.)
JULINHA — (cai no chão, mas antes dá as ultimas palavras ) Miserável, tua bala arrancou-me a vida!
ASSISTENTE — Excelente dona Julinha.
ENSAIADORA - Melhorou, seu Mota, mas por favor, um pouco mais de verdade no texto final.
ASSISTENTE - Próxima cena: Dona Isaurinha, Mota e seu Osvaldo, cadê a Dona Isaurinha?
ISAURINHA – (vem correndo da coxia) Cheguei, cheguei!
OSVALDO — Pronta?
ISAURINHA — Meu batom. Minha interpretação não fica perfeita sem retocar meu batom (retoca)
Agora sim, estou pronta!
(começam a cena 2)
OSVALDO – Que tiro foi este?? O que fizeste?
MOTA – Resistiu-me, assassinei-a. E quanto a você, seu miserável! Infame! Não sei onde estou que não
te esbofeteio!
OSVALDO — Infame és tu, que vives a cair de bêbado pelas vielas, sempre na companhia de gente do
teu quilate.
MOTA — Tu não passas de um patife a quem hei de matar.
OSVALDO — Experimenta!
MOTA (Puxa a pistola e atira)— Morra!
OSVALDO — Covarde! (Cai morto.)
ISAURINHA (Entra). — Oh! Não! Quanto sangue!! O que foi que você fez?? Ó, meu Deus! Meu Deus!
ENSAIADORA — Muito bom! Obrigado. Seu Mota, por favor, a cortina número 5.
MOTA — Estou pronto (sai)
ENSAIADORA — Vamos lá!
MOTA — Ó Desgraça!
ENSAIADORA — Desgraça, digo eu, seu Mota! Eu disse para o senhor entrar pela direita baixa e vir para
o centro.
10
MOTA — Não foi o que eu fiz?
ENSAIADORA — O senhor veio pela esquerda.
MOTA — E olha que não sou canhoto! Com licença.
OSVALDO – Como é canastrão.
ISAURINHA – Que o Mota não nos ouça Osvaldinho, mas ele é um desastre. Gosta do meu batom?
ASSISTENTE – Silencio, por favor.
MOTA - (volta entrando pela direita) Ó Desgraça! Não suporto mais tanto remorso! Sou um canalha! Só
na morte encontrarei...
ENSAIADORA — Dá-me apenas uma pausa mais longa entre "canalha" e "só na morte!" (Grita.) Ô Essa
Meniiiina!
MOTA — Ó Desgraça! Não suporto mais tanto remorso! Sou um canalha! (Pausa grandeeee.) Só na
morte encontrarei perdão para todos os meus pecados!
ENSAIADORA – Não Mota, agora demorou muito, uma pausa menos longa, por favor.
MOTA - Ó Desgraça! Não suporto mais tanto remorso! Sou um canalhasóna morte encontrarei perdão...
ENSAIADORA – Agora você não deu pausa nenhuma, Seu Mota.
MOTA – Assim você me confunde... Pausa longa ou curta?
ENSAIADORA – Longa, seu Mota, que seja longa...
MOTA - Ó Desgraça! Não suporto mais tanto remorso! Sou um canalha! (Pausa ainda maior) Só na
morte encontrarei perdão para todos os meus pecados! (Apanha o punhal.) Morre, consciência! (Enfia o
punhal no peito.)
ENSAIADORA — (desanimada) Magnífico! Magnífico seu Mota!
MOCINHA 1 e 2 — Dá licença?
ESSA MENINA (Entra) — Chamou?
ENSAIADORA — Trouxe a bexiga com sangue?
ESSA MENINA — Está na mão. Precisei mandar matar a galinha do vizinho.
MOTA — A pobre galinha foi sacrificada pelo engrandecimento da arte teatral!
ENSAIADORA — Quando o senhor se apunhalar a bexiga arrebenta.
ESSA MENINA — Com a pressão da ponta da faca. Seu peito vai ficar cheio de sangue! Que bonito,
professora!
ENSAIADORA — Obrigada, Essa Menina. Vamos lá. Cena 4
(ao atores tomam as marcações. Começa a cena)
ISAURINHA (ao lado do corpo de Osvaldo no chão) Não!
MOTA – Ó minha amada, não aguentava mais te ver junto a este homem, eu a desejo com toda minha
alma

11
ISAURINHA — (chorando exageradamente perante o cadáver) Não quero ser sua. Não o amo.
MOTA — Se não for minha não será de mais ninguém! (A pistola.)
ISAURINHA — Louco.
MOTA — Adeus, meu amor! (som de tiro)
ISAURINHA — Oh! (Cai morta.) (Mota pega a arma.)
ENSAIADORA — Mas o que há, seu Mota?
MOTA — Não ouvi a deixa.
ISAURINHA — Eu caio morta, seu Mota, não é suficiente? Eu caio morta e não vou cair nem mais uma
vez, ora. Que coisa! Francamente, professora, assim não é possível!
ENSAIADORA — Compreendo perfeitamente, dona Isaurinha! A deixa, seu Mota, é "Adeus, meu amor!"
MOTA — Pois jurava que era "Oh".
ISAURINHA — O senhor quer matar-me, isso sim!
ASSISTENTE — Calma, dona Isaurinha, calma. Vamos repetir.
ISAURINHA — Preciso retocar o meu batom.
ASSISTENTE — Mas está ótimo!
ISAURINHA — Não, não está. E depois, sinto-me insegura com tanta violência, sem meu batom...
ASSISTENTE (à parte) — E essa agora?
(vai se maquiar, Osvaldo, Julinha, Mota, Ensaiadora e Assistente se reúnem para conversar, entra a
Outra Menina)
OUTRA MENINA — Srta Anamaria...
AUTORA — Que é?
OUTRA MENINA — O texto.
AUTORA — Até você?
OUTRA MENINA — Gosto de estar bem informada. Se a senhora quiser fazer parte da companhia do
doutor, tem que ser mais ligeira, como o Gastão, por exemplo...
AUTORA — Gastão?
OUTRA MENINA — O Tojeiro, naturalmente. Escreve com as mãos nas costas. É nosso autor favorito.
Deu-nos grande sucesso.
AUTORA — E por que não o chamaram?
OUTRA MENINA — Queríamos um autor novo, desconhecido. É que gostamos de lançá-los, de levá-los à
glória!
(foco nos atores)
ISAURINHA — Estou pronta, professora.
ENSAIADORA — Até que enfim. Vamos.
12
(recomeça a cena)
ISAURINHA — Não.
MOTA – Ó minha amada, não aguentava mais te ver junto a este homem, eu a desejo com toda minha
alma
ISAURINHA — (chorando exageradamente perante o cadáver) Não quero ser sua. Não o amo.
MOTA — Se não for minha não será de mais ninguém! (A pistola.)
ISAURINHA — Louco.
MOTA — Adeus, meu amor! (Atira.)
ISAURINHA — Oh! (Cai morta.)
ENSAIADORA — Excelente! Vamos à primeira cortina trágica! Srta Aprígia! Decorou o texto?
APRÍGIA — Sim, professora.
ASSISTENTE – Dona Heloísa, é sua vez.
HELOÍSA – Até que enfim é a minha vez... Sou a primeira que chega e a última que ensaia.
ENSAIADORA – Vamos dona Heloísa, sem tanto rancor...
HELOÍSA — (interpretando exageradamente) Então, doutora, qual o diagnóstico?
APRÍGIA — Tuber...culose.
HELOÍSA — Não pode ser. A doutora por certo há de se ter enganado...
APRÍGIA — Não. Posso te assegurar que... que.... que minhas... minhas...
ENSAIADORA — Então decorou o texto?
APRÍGIA — minhas....
ENSAIADORA — Obrigado, Srta Aprígia, mas não temos mais tempo. A senhorita fará esta cortina na
semana que vem.
APRÍGIA — Por que não posso entrar em cena? Temos a Teodora para falar o texto que esquecermos.
ENSAIADORA — A ponto pontua, não interpreta.
HELOÍSA – E eu?
ENSAIADORA – Se ela não entra, também não entra a senhora.
HELOÍSA – Mas isto é um absurdo, eu sei minhas falas.
ENSAIADORA - A senhora entra na ultima cena junto com o doutor e dê-se por satisfeita.
HELOÍSA – É uma espiga.
ASSISTENTE - Estão liberados para o café!

CENA 02
(Entra a Empresária junto com a Auxiliar, falam sobre o cenário)

13
APRÍGIA — Senhora Empresaria, preciso falar-lhe.
EMPRESÁRIA — Mas quem é a senhorita?
APRÍGIA — Sou atriz da companhia.
EMPRESÁRIA — Eu sou a empresaria. (Pra auxiliar.) Atriz da companhia! A que ponto nós chegamos!
APRÍGIA — A ensaiadora não quer me aproveitar...
EMPRESÁRIA — Boas razões terá...
APRÍGIA — Mas minha família, em peso, virá!
AUXILIAR – (debochando) Uma poeta...
APRÍGIA - Preciso estar em cena.
AUXILIAR — E quantos são?
APRÍGIA — O quê?
AUXILIAR— Os familiares, minha amiga.
APRÍGIA — São 72.
AUXILIAR — Que beleza, Sra Staffa!
EMPRESÁRIA — Continue ensaiando. A senhorita irá longe.
(Aprígia vai para um cantinho ler seu texto, as duas começam a fazer contas. Entra a Ensaiadora)
EMPRESÁRIA — Professora, temos aqui uma moça iniciante... aquela ali, escondida na cortina, com cara
de maluca!
ENSAIADORA — A senhorita Aprígia!
EMPRESÁRIA — Aprígia, pois é, gostaria que ela estivesse em cena.
ENSAIADORA — Mas ela é um horror!
EMPRESÁRIA — Acredito que sim, contudo sua família tem 72 pessoas e, em tempo de crise...
ENSAIADORA — Não acho que arte se faça assim.
AUXILIAR — Arte faz-se com dinheiro.
ENSAIADORA — Mas eu pensei...
EMPRESÁRIA — Pensou errado. Eu só quero os arames! (Faz sinal de dinheiro com os dedos.) Os
arames!
ENSAIADORA — Eu sei. Arte é com o doutor!
AUXILIAR — Pois sim! (Empresária e Auxiliar saem)
ENSAIADORA — Srta Anamaria, inclua uma personagem que diz hmmm: “o seu jornal, doutor!”
AUTORA — Incluo onde?
ENSAIADORA — Onde a senhora quiser, mas inclua.
AUTORA — Mas...

14
ENSAIADORA — Pensou errado. Coisas da Empresária. (À Aprigia) Srta Aprígia!
APRÍGIA — Sim.
ENSAIADORA — A senhora fará a última cortina. É apenas uma ponta.
APRIGIA — Tenho alguma fala?
ENSAIADORA — “O seu jornal, doutor”.
APRÍGIA — Só isso?
ENSAIADORA — E dê-se por satisfeita. E trate de ensaiar para não esquecer a fala. A senhora entra pela
direita alta e entrega o jornal ao doutor. E sai.
APRÍGIA — (mostrando a esquerda) Direita alta: o seu jornal, doutor!
ENSAIADORA — Perfeito. (Aprígia vai pro canto ensaiar, entra Isolda) Até que enfim, pensei que a
senhora não fosse aparecer.
ISOLDA — Boas tardes, professora, desculpe-me pelo atraso, mas ensaiei bastante a partitura que a
senhora me entregou. Creio que fecharei o espetáculo com chave de ouro.
ENSAIADORA – Acho bom, por que da última vez encerrou o espetáculo com chave de braço.
ISOLDA – Jogaram-me um tomate. Qualquer pessoa faria o mesmo. Não acontecerá novamente.
ENSAIADORA — Ótimo. Ensaiou os graves?
ISOLDA — E os agudos.
ENSAIADORA — Vamos, à vontade...
ISOLDA – É para cantar?
ENSAIADORA - (irônica) Não, para fazer um bolo!
ISOLDA – (não entendendo) Bolo? Mandaram só a partitura do canto para mim.
ENSAIADORA – (sem paciência) Então cante!
ISOLDA — (se prepara e então canta desafinada). Eu queria...
ENSAIADORA — A afinação, dona Isolda.
ISOLDA — Eu queria ser uma arvore / Para voar, voar
ENSAIADORA - Arvores não voam Srta Isolda, o correto é “AVE”.
ISOLDA - Bem que eu tinha achado estranho. (sem graça) Bom, agora farei corretamente: Eu queria ser
uma ave / Para voar, voar. Eu queria ser uma ave/ Para ruflar, ruflar.
ENSAIADORA — De novo! E mais agudo no 2º. ruflar.
ISOLDA — Eu queria ser uma ave/ Para voar, voar. Eu queria ser uma ave/ Para ruflar, ruflaaaaaaar.
Ficou bom, professora?
ENSAIADORA: (debochada) Digamos que eu queria que a senhora fosse uma ave, para voar... voar...
ISOLDA: Ai que bom que gostou!

15
ENSAIDORA: (não entende) Continue ensaiando, a senhora entrará depois do doutor, e peça para a Rosa
lhe providenciar chapéu, caso aja um novo acidente do tomate.
ISOLDA: Que bom! Adoro usar chapéu em cena... Vou ensaiar professora... (elas saem. Mota entra
ensaiando e logo depois entram as Mocinhas)
MOCINHA 1 — O doutor vai demorar muito?
MOTA — Deve estar chegando.
MOCINHA 1— Precisamos falar com ele.
MOTA — Falar o quê, se me permite?
MOCINHA 2 — Somos candidatas a atrizes.
MOTA — Encantado. Sou Mota, grande ator trágico e dono da Sapataria Mota, conhecem?
MOCINHAS 1 E 2 — Claro! (Canta.) Sapataria Mota, chinelos e botas, Sapataria Mota...
MOCINHA 1: Desculpe, não diga nada. Somos assim desde pequenas: desenvoltas. Nossa mãe sempre
diz isso.
MOCINHA 2: Mas é que adoramos o teatro. É tudo tão bonito aqui.
MOTA — Pois vieram ao lugar certo: Teatro Trianon! E estão falando com a pessoa certa: Mota!
ENSAIADORA — (em off) Seu Mota, por favor.
MOTA — Com licença, mocinhas. O dever me chama. Ah, e não deixem de me assistir, hem?
(sai Mota por um lado e as mocinhas pelo outro. Entram as meninas)

CENA 3
ESSA MENINA – Presta bastante atenção nas cenas e quando o Mota apertar o revolver, você bate com
tudo nesta madeira, daí vai parecer um tiro, mas tem que ser no momento certo hein?
OUTRA MENINA – Fica tranquila, Essa menina, se tem uma coisa que eu sei é bater martelo na madeira,
nunca acerto o prego mesmo.
ESSA MENINA – Mas é melhor ensaiar um pouco, eu vou falando as falas e você fazendo os tiros, venha.
(Aprígia caminha memorizando o texto. Heloisa entra a observando)
HELOISA— O que tanto ensaia?
APRÍGIA — Vou entregar o jornal.
HELOISA — Ah, que bom, você acabou com a minha cena, mas conseguiu outra.
APRIGIA – Que sorte não?
HELOISA – (irônica) Muita. (esperta) Não tem fala?
APRÍGIA — Uma só.
HELOÍSA — (planejando) Que fala?
APRÍGIA — “O seu jornal, doutor”.
16
HELOÍSA— E ele responde?
APRÍGIA — Não. Dá-me uma moeda.
HELOÍSA — Pois então aproveite. Nunca ouviu falar em caco?
APRÍGIA: — Caco?
HELOÍSA — É texto que os atores acrescentam às falas. Juro que muitas vezes é melhor que o texto
original. Tem até autores que se alimentam de cacos. Ah, pode-se criar grandes papéis. Eu vi um
figurante transformar uma ponta num 2o. papel!
APRÍGIA — Nossa!
HELOÍSA — Então?
APRÍGIA — Não sei...
HELOÍSA — Quando ele lhe der a moeda...
APRÍGIA — Eu... eu lhe digo: Perdão, senhor, mas não sou mendiga!
HELOÍSA — Muito bem, muito bem. Só que não é mendiga.
APRÍGIA — Não?
HELOÍSA — É mENdiga.
APRÍGIA — MENdiga? De forma alguma.
HELOÍSA — Tenho certeza. É assim que o doutor fala.
APRÍGIA — O doutor? Jura?
HELOÍSA — Juro.
APRÍGIA — MENdiga.., tem certeza?
HELOÍSA — Absoluta.
(Aprigia sai ensaiando e Dona Heloísa sai rindo pelo outro lado. Entram as mocinhas na ponta do pé.
Logo depois entra Outra Menina)
OUTRA MENINA – Quem são vocês?
MOCINHA 1 — Somos candidatas a atrizes.
OUTRA MENINA — Já estão aprovadas!
MOCINHA 2 — Agradecidas. Mas quem é a senhora?
OUTRA MENINA — Outra menina. Pois quando entrei na Companhia já existia a Essa Menina, então
fiquei sendo a Outra. Nós duas somos as contrarregras.
MOCINHA 2 — Contrarregras?
OUTRA MENINA — Então querem ser atrizes e não conhecem os termos do ramo? Contrarregra é
assim.., é a figura indispensável! Vulgarmente conhecida como ‘pau pra toda obra". Na verdade a
companhia sem mim não anda. E muito em breve serei promovida! O doutor prometeu-me até mesmo
umas cotas na sociedade.

17
MOCINHA 1 — Nossa
EMPRESÁRIA — (em off) Essa menina, traz um comprimido de cafiaspirina pra mim!
OUTRA MENINA — Vê? Somos até mesmo um pouco médicas. É como disse: sem a gente a companhia
não anda!
MOCINHA 2— Nossa! Deve ser bom ser assim.., assim tão indispensável!
ENSAIADORA (em off) — Outra Menina! Fica nas marcas do doutor... Vamos passar a luz.
OUTRA MENINA (para a mocinha) — Isso é fácil! É só ficar aqui, bem no centro, quando muito um
passinho pra lá, outro pra cá!
ENSAIADORA— (Experimenta-se a luz ) Mais pra frente. Outra menina! Ai!
OUTRA MENINA — Não disse que era fácil?
MOCINHAS — Nossa!
OUTRA MENINA – Agora é melhor vocês se esconderem, se percebem vocês aqui, estou lascada. (elas
saem)
TEODORA — (entrando) Boas tardes!
OUTRA MENINA — Até que enfim.
ESSA MENINA — Isso lá são horas, dona Teodora? (Todos vão entrando juntos)
TEODORA — O que há?
AUXILIAR — A senhora está com duas horas de atraso.
EMPRESÁRIA — (entra) — Afinal a senhora chegou!
TEODORA — Mas o que há por aqui? São três horas da tarde e eu estou no rigor do meu horário.
TODOS — São cinco horas, Dona Teodora.
TEODORA — Não pode ser. É uma brincadeira. E de muito mau gosto por sinal. (Todos riem.)
ESSA MENINA — Queríamos pregar-lhe uma peça!
TEODORA — Mas por quê? Eu mereço? Dou 3 sessões diárias. Acabo o dia coberta de poeira. Será isso
motivo de deboche? Eu mereço? Talvez algum dia quando alguém quiser saber um pouco sobre o que
seja "amor ao teatro", alguém se lembre do ponto. Eu amo o teatro. A glória é de vocês. Já eu? Nunca
tenho os aplausos. Não recebo flores. Eu sofro. "Outro dia quis cuspir e o cuspe não me saia, tão
ressecado ficou de poeira."
ESSA MENINA — Que bonito, dona Teodora.
AUXILIAR — Belas palavras, dona Teodora. Estudou o texto?
TEODORA — Perfeitamente. (Em rodinha discutem o texto)
AUTORA — (Chamando) Sra Empresária, por favor! Lembrei-me de uma coisa: o doutor não ensaiou!
EMPRESÁRIA — Claro que ensaiou. Ele estuda o texto em casa.
AUTORA - Mas ele não tem o texto!

18
AUXILIAR — Não tem porque a senhora não escreveu, oras!
AUTORA – Só não escrevi o final.
EMPRESÁRIA — Pois então ele só não ensaiou o final. E depois o doutor conta com o Dona Teodora, a
melhor ponto da cidade, quiçá do país...
AUTORA — E vai dar tudo certo?
EMPRESÁRIA — Sempre dá. É melhor a senhora acabar de escrever. Em teatro é assim, só se tem
sucesso quando cada um faz a sua parte da melhor maneira possível.
AUTORA — E como se juntam as partes?
AUXILIAR — Algum anjo faz o arranjo no céu.
(Dona Isaurinha grita)
ISAURINHA— Não aceito! Perdoe-me, professora, mas estou muito preocupada.
ENSAIADORA — Paciência, dona Isaurinha.
ISAURINHA — Paciência, digo eu. Não vê que não posso entrar em cena sem o texto final?
ENSAIADORA — Eu sei, mas a autora é nova no oficio.
ISAURINHA — Que tente outro ofício então. Não entro em cena.
JULINHA – Sem o texto completo também não entro.
HELOÍSA — Se dona Isaurinha não entra, também não entro eu!
OSVALDO — Nem eu.
MOTA — Também eu não entro.
APRÍGIA (à parte, feliz) — Eu entro!
(todos a ignoram)
ENSAIADORA – O que é isso, um motim?
EMPRESÁRIA — Isso acaba mal, ah se acaba! Cadê a cafiaspirina? Essa Menina, liga para o doutor! Estou
farta! Que ele venha logo, senão quem sai.. sou eu! (Saída falsa da essa menina.)
ESSA MENINA — O doutor chegou! (Aplausos.)
ENSAIADORA — Finalmente!
TEODORA — Começava a preocupar-me.
AUTORA — Ainda tenho 10 minutos para terminar o texto!
DOUTOR — Boa tarde!!
TODOS — Boas tardes, doutor.
ENSAIADORA — Graças a Deus, doutor Isso aqui está uma loucura! A peça está quase a dar-se. Dona
Isaurinha e dona Julinha não entram em cena, dona Heloísa também não. Srta Anamaria não termina o
texto...
ESSA MENINA — A baleira não veio.
19
DOUTOR — Calma, calma. Atrasei-me um pouco...! Mas creio que há tempo para fazer os acertos!
Então, dona Heloísa, não entra em cena?
HELOISA — Sem a última cena, recuso-me.
AUTORA — Falta a cena que o doutor prometeu escrever...
DOUTOR — (para Heloísa) E se eu lhe garantir que a última cena não tem mistérios? Será uma cena
curta, muito curta, é uma cena sem dificuldades, você só precisa ficar ao meu lado. Confie em mim.
HELOÍSA— Está bem. Eu confio,
DOUTOR — E dona Isaurinha hein?
ISAURINHA – Se o doutor diz que está tudo certo, então entro...
JULINHA — Se dona Isaurinha entra em cena, também entro eu!
DOUTOR — Muito bem.
EMPRESÁRIA (à parte) — Que sacripanta! — Se der tudo certo, mudo de ramo.
AUXILIAR — Se der tudo certo, você fica no ramo.
EMPRESÁRIA — Meu coração ainda arrebenta!
ASSISTENTE – Temos apenas dez minutos! Preciso de alguém para descer o painel.
ESSA MENINA — Quem fica no lugar da baleira? Ah já sei, tenho uma ideia.
ENSAIADORA — Todos maquilados e vestidos? (Chamando) Essa Menina!
ESSA MENINA – Senhora...
ENSAIADORA – Tem certeza que os tiros vão sair no momento certo?
ESSA MENINA – Pode confiar professora, tenho tudo planejado!
(todos começam a ensaiar e aquecer a voz ao mesmo tempo)
MOTA — Ó Desgraça! Ó Desgraça!
APRÍGIA — Perdão, mas não sou mENdigo!
MOTA — Morre, consciência!
EMPRESÁRIA — Montem o cenário!
AUXILIAR — Isto acaba mal, ah se acaba!
ENSAIADORA — Tudo pronto?
TODOS — Tudo!
Black- out
CENA 4
(Acende-se a luz na platéia apenas, som de pessoas conversando. Entram as Mocinhas no meio da
plateia carregando uma cesta de bala cada uma. Oferecem doces e balas para todos que assistem.
Ouve-se a chamada do espetáculo dizendo que após este intervalo “serão conferidas as cenas finais que
contem as Cortinas Trágicas do espetáculo "Entrou de caixeiro e saiu de sócio."” e em seguida as 3
20
batidas que anunciam o começo do espetáculo. Apaga-se a luz da plateia e acende-se no palco, nisso
estão em cena JULINHA e OSVALDO, todos os atores sempre com trajes muito exagerados)

JULINHA – Oh meu amor, fuja, fuja logo pela janela antes que meu marido o veja. (Osvaldo sai correndo
pela coxia e Mota entra pela outra trazendo uma arma)
MOTA — Intolerável já me contaram tudo, não adianta me enganar
JULINHA — O senhor não pode acreditar nesta infâmia!
MOTA — É a minha honra, canalha! A minha honra!
JULINHA — É uma vil calúnia!
MOTA — Calúnia? Pois vou matá-la como se mata a um cão danado!
JULINHA — Não.
MOTA — Sim. (Puxa a pistola.)
JULINHA — Não.
MOTA — Morra, traidora! (Atira, mas o tiro falha)
JULINHA — Não!
MOTA — Morra, traidora! (Atira de novo e de novo o tiro falha... É quando, desesperado, sem saber o
que fazer para continuar a cena, Mota chuta Julinha na canela)
JULINHA – (improvisando) Miserável, tua bota arrancou-me a vida porque estava envenenada!
MOTA — É uma bota da Sapataria MOTA! Canalha!
(Osvaldo entra pela porta correndo, vê Julinha morta, grita e vai até ela)
OSVALDO – Que tiro foi este?? O que fizeste?
MOTA – (esqueceu o texto) É... é...
OSVALDO — Que fizeste? Responda!
TEODORA — (aparecendo no canto do palco) Resistiu-me...
OSVALDO — Que fizeste, animal? Responda logo!
TEODORA — Resistiu-me, assassinei-a!
MOTA - ....
TEODORA — Resistiu-me, assassinei-a!
OSVALDO — Que fizeste? Fala senão te mato!
MOTA - ....
JULINHA — (levantando) Resisti-lhe, assassinou-me! (morre de novo) Óh!
MOTA – (lembrando) Ah é... Resistiu-me, assassinei-a. E quanto a você, seu miserável! Infame! Não sei
onde estou que não te esbofeteio!

21
OSVALDO — Infame és tu, que vives a cair de bêbado pelas vielas, sempre na companhia de gente do
teu quilate.
MOTA — Tu não passas de um patife a quem hei de matar
OSVALDO — Experimenta!
MOTA (Puxa a pistola e atira)— Morra! (Atira, mas o tiro falha. Mota pega o punhal com decisão.)
Morra! (Quando vai esfaqueá-lo — punhal no ar — ouvem-se três tiros. Osvaldo deita. Mota disfarça)
Covarde, morreste miseravelmente de susto!
ISAURINHA (Entra e vê o corpo). — Oh não! Quanto sangue! O que você fez?? Ó, meu Deus! Meu Deus!
MOTA – Ó minha amada, não aguentava mais te ver junto a este homem, eu a desejo com toda minha
alma
ISAURINHA — (chorando exageradamente perante o cadáver) Não quero ser sua. Não o amo.
MOTA — Se não for minha não será de mais ninguém! (A pistola.)
ISAURINHA — Louco.
MOTA — Adeus, meu amor! (antes de atirar ouve-se três tiros.)
ISAURINHA — O! (Cai morta. Ele tira a arma do bolso)
MOTA — Ó Desgraça! Não suporto mais tanto remorso! Sou um canalha! (pausa grande) Só na morte
encontrarei perdão para todos os meus pecados! (Apanha o punhal.) Morre, consciência! (Enfia o
punhal no peito e a bexiga com sangue cai do seu peito e sai quicando pelo palco.) Não fujas,
consciência! (Finalmente enterra-lhe o punhal.) Morro! (Cai morto.)
(foco do outro lado num canto do palco, entra o Doutor acompanhado por Heloísa)

DOUTOR – Ah belo dia, finalmente acho que vou ter boas noticias... (espera pela entrada de Aprigia que
trará o jornal, esta não entra, então doutor enrola) Preciso saber se meu plano para eliminar aqueles
quatro forasteiros foi realmente bem sucedido (olha em direção a coxia querendo saber o porquê
Aprígia não entra) No JORNAL desta manha deve ter alguma informação só preciso aguardar que ME
TRAGAM O JORNAL..
(Entra Aprígia, muito timidamente, cumprimenta os familiares na plateia. Desvia dos mortos no chão.)
APRÍGIA — O seu jornal, doutor...
(doutor lhe dá uma moeda.)
APRÍGIA — Perdão, senhor, mas não sou mENdiga...
DOUTOR — Não és mENdiga, não és mendiga, és um BURRA!
(da um tabefe em Aprígia que recua atordoada e sai. Dona Heloisa sorri satisfeita)
DOUTOR – (cheio de trejeitos e exagerando-se em todas as falas dando um ar de galã desnecessário
para a cena, vemos Essa menina puxando o cabo da iluminação. Ele fala as ultimas falas no escuro) Aqui
está: os quatro imbecis estão mortos e eu herderei toda a fortuna de meu pai sozinho. Sozinho!
Sozinho! (ela acende a iluminação e ele fica sem jeito. Sai de cena sem graça. Entra a cantora)

22
ISOLDA - Eu queria ser uma árvore, aveeeee/ Para voar, voar. Eu queria ser uma ave/ Para ruflar,
ruflaaaaaaar. (barulho de vidro quebrando, sorriso amarelo dela. Black-out. Saída falsa rápida e voltam)

Black-out
(Todos saem rapidamente de cena, barulho de aplauso. Voltam a entrar aos poucos)

CENA 5
JULINHA (grita) — Não!
ENSAIADORA — Mas dona Julinha... (Luz acende completamente)
JULINHA — Não faço mais entreatos! Foi tudo uma vergonha desastrosa.
MOTA — Eu não tive culpa, o meu personagem...
ENSAIADORA — Cale-se! O senhor está na tabela! (Grita.) Essa Menina!
ESSA MENINA — Chamou?
ENSAIADORA — E os tiros, hein, sacripanta?
ESSA MENINA — Falharam todos (olha brava para a Outra menina)!
ENSAIADORA — Que fiasco, meu Deus!
OSVALDO — Também eu não faço mais os entreatos! Passei por maus bocados, professora!
ISAURINHA — Um fiasco! A cantora errou a letra e estourou os tímpanos da plateia. Custava ensaiar os
agudos?
ISOLDA — Mortos não dão agudos, dona Isaurinha. Depois disso, me matarei!
(Entra o Doutor e Heloísa.)
DOUTOR — Matar-se? Por que, dona Isolda? A senhora é ótima! E o Mota então. O Mota é um estouro.
ASSISTENTE — Mota é um estouro?
DOUTOR — O Mota, meu Deus, o Mota é incrível! A partir de amanhã teremos Cortinas Cômicas!
(Entra a empresária com a auxiliar)
EMPRESÁRIA — 1104, 1105. 1106! 1106 pagantes! É um sucesso!
TODOS — Sucesso?
AUXILIAR — É um sucesso!
EMPRESÁRIA — Um sucesso!
DOUTOR — Parabéns a todos! (para Ensaiadora) E a senhora, professora, é uma gênia! Tapeou-me com
essa história de tragédia... fez tudo às avessas! Meus parabéns! E que amanhã saia tudo igual,
professora!
ENSAIADORA — (Desconcertada) Está visto que sim, doutor!
ESSA MENINA — Nós ajudaremos!

23
DOUTOR (vai até Essa Menina e Outra Menina) — Não sei se já lhes disse isso, mas sem vocês a
companhia não anda! (elas ficam empolgadas e saem comentando)
EMPRESÁRIA — Que sucesso, elenco! 1106 pagantes! Continuem exatamente dessa forma. Parabéns!
(aos poucos alguns vão saindo de cena)
DOUTOR — Dona Isaurinha...
ISAURINHA — Pois não.
DOUTOR — Janta comigo no Hotel Palace?
ISAURINHA — Aceito. Será uma grande honra (Percebe que ele caminha em direção à boca de cena de
forma nostálgica) Vamos, Doutor?
DOUTOR — Um teatro vazio dá--me a impressão de que a vida foi ontem...
ISAURINHA — Bonito.
DOUTOR — Um grande ator disse isso.
ISAURINHA — Quem?
DOUTOR (brincando) — Eu!
(os dois dão risada)

BLACK-OUT - FIM

24

Você também pode gostar