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A vítima menor no crime de violência doméstica: algumas

notas sobre o testemunho de violência doméstica por parte


do menor

Relatório de Mestrado em Direito e Ciência Jurídica - especialidade em


Direito Penal e Ciências Criminais
Disciplina de Metodologia da Investigação Científica
Regência: Senhor Professor Doutor Pedro Sánchez

Ana Cristina da Silva Pereira Coutinho1


Número: 52757

1
Contacto: 960457204
1
Índice

1. Introdução.............................................................................................................. 3

2. O conceito de maus tratos do art.º 152.º do Código Penal Português ....................... 4

3. A Convenção de Istambul: em especial, o artigo 26.º.............................................. 4

4. Direito interno........................................................................................................ 6

5. A via da mudança: alteração legislativa ou alteração interpretativa do art.º 152.º .... 8

6. Conclusão ............................................................................................................ 12

Bibliografia ................................................................................................................. 13

2
1. Introdução

O problema da violência doméstica não é novo, mas tem merecido a atenção do


legislador penal um pouco por todo o mundo, principalmente nos últimos anos. Em
Portugal, o legislador efetuou alterações no crime autónomo e especial de violência
doméstica em 2007, com as modificações legislativas que nesse ano sucederam, contando
com inspirações do Direito Penal Espanhol.
Para além do tratamento do problema a nível nacional, surgem convenções no
plano europeu e internacional, como é o caso da Convenção do Conselho da Europa para
a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica
(doravante designada por Convenção de Istambul), ratificada por Portugal, e que entrou
em vigor no dia 1 de agosto de 2014, com o objetivo de conceber um quadro global,
medidas e políticas de proteção e assistência a todas as vítimas desta violência, de modo
a atingir uma Europa livre da mesma.
Tanto no âmbito nacional como no internacional, surge uma menção aos menores
como sendo potenciais vítimas deste crime, seja de forma dita “direta”, casos em que o
menor é o principal “alvo” da violência, ou “indireta”, nos casos em que o menor
testemunha os maus tratos no seio familiar.
É, precisamente, sobre este segundo ponto que o nosso trabalho se debruça. O
tratamento da questão relativa ao impacto da exposição à violência doméstica nos
menores tem merecido maior atenção nos últimos anos, principalmente nos Estados
Unidos da América onde encontramos Estados a punir esta situação cumulativamente
com o crime de violência doméstica. A noção de testemunho varia de Estado para Estado:
nuns é definido como presença física do menor; noutros como presença física do menor
ou mera possibilidade de o menor ver ou ouvir os atos de violência.
Em Portugal este tema é ainda pouco mencionado, mas tem potencial de
desenvolvimento nos próximos anos, muito devido à apresentação de Projetos de Lei
nesta matéria (após saída de um relatório de avaliação de Portugal relativo ao
(in)cumprimento da Convenção de Istambul, que mereceu apontamentos no que toca à
proteção das crianças testemunhas de violência doméstica) que abriram portas à discussão
política.

3
2. O conceito de maus tratos do art.º 152.º do Código Penal Português

O conceito de maus tratos do art.º 152.º n.º1 do CP estipula que “quem, de modo
reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais [às
pessoas destacadas nas alíneas abaixo elencadas] é punido com pena de prisão de um a
cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”
O limite mínimo da moldura penal aumenta quando os atos indicados no n.º1
sejam praticados, entre outras situações, contra menor ou na presença deste, passando de
um para dois anos.
Quanto aos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica, é
comummente aceite que os mesmos são a integridade física e psíquica, a liberdade
pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra (Albuquerque, 2015: anotação
ao art.º 152.º).2 No entanto, para alguns autores, como Augusto Silva Dias, a dignidade
da pessoa humana é também um dos bens jurídicos protegidos por esta norma (Silva Dias,
2010: 110).3
É unânime na doutrina o entendimento de que os maus tratos físicos incluídos no
tipo são as ofensas à integridade física simples e que os maus tratos psíquicos são a
ameaça simples ou agravada, a coação simples, a difamação e as injúrias simples ou
qualificadas. Há ainda quem considere que a violência económica também se subsume a
este tipo de maus tratos (Albuquerque, 2015: anotação ao art.º 152.º).
No entanto, tal conceito de maus tratos é exemplificativo, concretizando-o de
forma não exaustiva. Assim sendo, haverá sempre espaço para se incluírem neste conceito
outros tipos de agressão, principalmente na vertente psíquica, por haver uma grande
panóplia de possíveis condutas que são passíveis de integrar uma ofensa desse tipo.

3. A Convenção de Istambul: em especial, o artigo 26.º

No dia 2 de maio de 2011, Portugal assinou a Convenção de Istambul tendo a


mesma entrado em vigor a 1 de agosto de 2011. Trata-se de um diploma de grande relevo

2
Neste sentido veja-se também, a título de exemplo: TRE de 08/01/2013, proc. n.º 113/10.0TAVVC.E1.
3
Também assim alguma jurisprudência nacional, a título de exemplo: STJ 30/10/2003 e TRC 29/01/2014, proc. n.º
1290/12.1PBAVR.C1. No entanto, entendemos que este princípio deve apenas ser invocado como fundamento das
incriminações penais, e não como bem jurídico a ser protegido por um tipo penal. Só assim não será quando haja um
tratamento infra-humano direcionado ao ofendido.

4
em matéria de violência doméstica, reconhecendo que este é um crime com enorme
impacto em mulheres e crianças, principais vítimas do mesmo.
Tendo em consideração o impacto que a violência, no seio familiar, tem nas
crianças que vivem neste contexto, a Convenção dedica-lhe um artigo autónomo, o art.º
26.º, com a epígrafe “proteção e apoio a crianças testemunhas”, em que se estipula que
“as Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que, ao
oferecer serviços de proteção e apoio às vítimas, os direitos e as necessidades das crianças
testemunhas de todas as formas de violência cobertas pelo âmbito da presente Convenção
sejam devidamente tomados em conta. As medidas tomadas nos termos deste artigo
incluirão aconselhamento psicossocial adaptado à idade das crianças testemunhas de
todas as formas de violência cobertas pelo âmbito de aplicação da presente Convenção e
terão em devida conta o superior interesse da criança.”
No relatório de avaliação de Portugal, realizado pelo comité GREVIO4, publicado
a 21 de janeiro de 2019, são apontadas várias falhas na implementação da Convenção no
que toca, entre outros pontos, à proteção das crianças testemunhas. O comité afirma que
“encontrou (menos) medidas tomadas no sentido de providenciar a crianças testemunhas
o suporte e proteção por direito próprio como vítimas (indiretas) da violência. Ao invés,
as agências estatutárias envolvidas optam por dar prioridade ao presumido melhor
interesse da criança em manter o contacto com ambos os progenitores a todo o custo,
independentemente da violência que a criança testemunhou.”.5 O GREVIO insta as
entidades competentes a “reverem as suas políticas de forma a assegurar que as agências
estatutárias envolvidas, em particular a Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos
e Proteção de Crianças e Jovens em Risco e os serviços sociais, dão a devida consideração
aos direitos e necessidades das crianças testemunhas (...) e desenvolvem medidas para
apoiar as crianças testemunhas, através de avaliações de risco, pedidos de proteção e
encaminhamento para aconselhamento especializado.”. 6
Por fim, é apontado que em
Portugal “deveria ser possível incluir as crianças em uma e na mesma ordem de proteção
que as suas mães na medida em que aquelas são vítimas diretas ou indiretas por
experienciarem a violência elas próprias ou a testemunharem.”.7
Podemos, desde já, retirar algumas conclusões preliminares a partir das
considerações feitas pelo Comité. Por um lado, percebe-se a ambição da Convenção de

4
Relatório de avaliação disponível em: https://rm.coe.int/grevio-reprt-on-portugal/168091f16f.
5
Tradução livre, ibidem, parágrafo 147, p. 43.
6
Tradução livre, ibidem, parágrafo 148, p. 44.
7
Tradução livre, ibidem, parágrafo 219, p. 60.

5
que as Partes considerem que as crianças testemunhas são, por direito próprio, vítimas de
violência doméstica, ainda que “indiretas” (será discutido, adiante, qual o melhor caminho
dogmático e metodológico para esta conclusão). Por outro lado, o facto de os tribunais
portugueses terem tendência a presumir que o melhor interesse da criança é manter
contacto com ambos os progenitores, é apontado como uma falha. Situações como esta dão
azo a uma desvalorização da situação de violência vivenciada pelo menor. Não raros são
os casos em que se decide que o pai violento deve manter o direito de visitar a criança
num abrigo, com base na argumentação de que “é mau marido, mas não mau pai” 8.

4. Direito interno

Em Portugal, para além do Código Penal, existem duas leis que assumem especial
relevância na proteção das vítimas dos atos de violência, de violência no seio familiar, e
na proteção das crianças que são envolvidas em tais situações: a Lei de Proteção de
Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99 de 1 de setembro) e o Regime Jurídico
Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência das suas
Vítimas (Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro).
O primeiro diploma, tem como objetivo a promoção, defesa e concretização dos
direitos da criança e do jovem. As entidades envolvidas avaliam, diagnosticam e intervêm
em situações de risco e de perigo, implementam estratégias de intervenção necessárias e
adequadas ao afastamento dos fatores de risco, acompanham as crianças e jovens e
respetivas famílias e executam os atos materiais inerentes às medidas de promoção e
proteção aplicadas pela comissão de proteção ou pelo tribunal, nos termos do art.º 6.º e
seguintes.
O segundo diploma tem como objetivos, estipulados no seu art.º 3.º, desenvolver
políticas de sensibilização a vários níveis, consagrar direitos das vítimas, criar medidas
de proteção neste âmbito, garantir os direitos económicos das vítimas, entre outras, com
os propósitos de prevenir, evitar e punir a violência doméstica.

8
Como nota Leonor Valente Monteiro (Monteiro, 2016: 53) “na prática, muitas mulheres que alegam a violência
doméstica nos processos de regulação das responsabilidades parentais são desacreditadas, por se considerar que estas
alegações são uma estratégia manipuladora ou vingativa por parte das mães para justificar a recusa do direito de visita
ou do exercício conjunto das responsabilidades. Esta desconfiança ocorre mesmo quando existem processos-crime
em curso. E temos assistido a casos de crianças retiradas à guarda da mãe para serem entregues a pais acusados de
abuso sexual e/ou violência doméstica. Constata-se a facilidade com que, nestes casos, os Tribunais tendem a separar
as questões criminais das familiares, quando a Convenção de Istambul vem impedir que não se faça (31.º)”.

6
No art.º 2.º a) é definido o conceito de vítima, como sendo uma “pessoa singular
que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um
dano emocional ou moral ou uma perda material no âmbito do crime de violência
doméstica do art.º 152.º do CP”. Na alínea b) é definido o conceito de vítima
especialmente vulnerável, sendo aquela “cuja especial fragilidade resulte,
nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto
de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências
graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”.
Podemos, desde, já notar que em nenhum dos diplomas se faz referência expressa
às crianças testemunhas de violência e que apenas reflexamente as mesmas se podem
incluir nestes conceitos. Isto porque, na medida em que o conceito de vítima acima citado
remete para o âmbito de aplicação do art.º 152.º do CP (excluindo os danos psíquicos,
morais e emocionais criados através do preenchimento de outro tipo legal do Código
Penal), os danos psíquicos, morais ou emocionais que podem dar azo à criação do estatuto
de vítima para efeitos de aplicação do regime jurídico, são os mesmos que se consideram
incluídos naquele art.º 152.º. Desta forma, podemos inferir que se não for aceite que as
crianças que estão expostas a violência doméstica sofrem tais danos de forma a preencher
o conceito de maus tratos psíquicos nos termos do art.º 152.º, as mesmas não são
consideradas vítimas no sentido do conceito apresentado no regime jurídico e vice-versa,
tendo o critério aplicativo de ser, necessariamente, coincidente, por motivos de coerência
sistemática.
Tendo em consideração que não há uma menção expressa das crianças
testemunhas de violência doméstica como vítimas, e com os olhos postos na Convenção
de Istambul e no relatório de avaliação de Portugal realizado pelo GREVIO, que acima
demos nota, surgiram dois projetos-lei em 2019, por parte dos partidos Bloco de Esquerda
(BE) e Pessoas-Animais-Natureza (PAN) com o objetivo de reconhecer, de forma
expressa, como vítimas do crime de violência doméstica, as crianças que vivenciam esse
contexto no seio familiar que integram e quando sejam testemunhas dessa realidade.9

9
Projeto de lei n.º 1183/XIII/4.ª e Projeto de Lei n.º 92/XIV/1.ª. O projeto do BE encontrou apoio no parecer da
Procuradoria-Geral da República, ofício n.º 126449.19 de 02b05/2019 – DA n.º 4772/19 27/03/2019, p.3, onde se lê
que a Procuradoria está “claramente de acordo quanto ao reconhecimento legal expresso das crianças enquanto
vítimas do crime de violência doméstica quando vivenciam esse contexto no seio da família que integram e quando
sejam testemunhas presenciais dessa mesma realidade”. Ambos os Projetos de Lei obtiveram os seguintes resultados
na votação na generalidade: o PCP, PEV, PSD, CDS, Chega, Livre e três deputadas socialistas (Elza Pais, Sónia
Fertuzinhos e Graça Reis) abstiveram-se. Os restantes deputados do PS votaram contra. O PS justificou a sua
orientação referindo que “no regime atual, a inflição de maus tratos psicológicos a crianças já está prevista” e que a
novidade estaria “(n)uma espécie de presunção de que se um cônjuge maltrata o outro e com eles moram por exemplo

7
5. A via da mudança: alteração legislativa ou alteração interpretativa do
art.º 152.º

Feitas as abordagens preliminares e tendo analisado brevemente o ponto de


situação em Portugal, resta saber se podemos considerar que a exposição à violência
existente no lar consubstancia um caso de maus tratos psíquicos, quanto aos menores que
a testemunhem. A questão tem sido principalmente discutida nos Estados Unidos da
América (Edleson, 2004: 8-29; Kerig et al., 1999: 103-115) onde existem diversas
abordagens possíveis sobre o tema. Em 22 Estados existem leis que estipulam
consequências para casos em que crianças testemunham atos de violência doméstica,
quando o agressor tem esse conhecimento. Entre as mesmas, surgem, por exemplo, a
agravação do crime de violência doméstica, resultando numa pena superior, ou a punição
do agente por um outro crime, autónomo, de maus tratos a crianças, em concurso efetivo
com o crime de violência doméstica (Langevin, 2005: i).
Assumindo que Portugal está em incumprimento parcial da Convenção de
Istambul, conclusão retirada da análise do relatório de avaliação sobre o cumprimento da
mesma por parte de Portugal (pela falta de medidas de proteção para as crianças
testemunhas de violência doméstica), há que saber qual o melhor caminho a seguir para
corrigir esta situação de inadimplemento.
A abordagem ao problema deve iniciar-se por tentar entender o que será correto,
afinal, incluir no conceito de maus tratos psíquicos para o preenchimento do tipo do art.º
152.º do CP, sendo possível seguir uma de duas vias: partir para uma alteração legislativa,
idêntica à proposta pelos projetos-lei referidos, incluindo um número específico no art.º
152.º que puna autonomamente os atos de violência doméstica praticados na presença de
menores, ou incluindo expressamente no conceito de vítima especialmente vulnerável do
regime jurídico as crianças testemunhas dessa violência; ou seguir a via da alteração
interpretativa do art.º 152.º do CP, tendo em consideração que o conceito de maus tratos

três crianças haverá sempre um concurso de quatro crimes de violência doméstica. Trata-se de solução merecedora de
reservas logo no plano da conformidade constitucional, desde logo por se não identificarem claramente os bens
jurídicos tutelados e a ofensividade inerente à conduta do agente. (...) Por outro lado, conceitos como 'viver em
contexto de violência doméstica', para além de introduzirem perigosos elementos de indeterminação, parecem
pressupor uma associação da violência doméstica necessariamente à reiteração, o que representaria um gigantesco
retrocesso sob o enfoque da proteção das vítimas”, declarações prestadas à rúbrica “Polígrafo-SIC”, disponível em:
https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/deputados-do-ps-chumbaram-cinco-projetos-de-lei-que-visavam-proteger-as-
vitimas-de-violencia-domestica.

8
é exemplificativo, incluindo nos danos psíquicos aqueles que são causados pelo
testemunho, por parte do menor, dos atos de violência.
A modificar a forma como encaramos este problema, a segunda opção parece-nos
ser a melhor, tendo em conta que o art.º 152.º nº1 do CP dá espaço para que tal aconteça,
não definindo o que se deve entender por maus tratos e, ficando, portanto, esse trabalho a
cargo da doutrina e jurisprudência, através da interpretação da norma. Ou um ato é tido
como violência e deve caber no tipo do artigo, ou não é tido como tal e não deve ser
punido.
As crianças expostas a violência doméstica estão desde logo potencialmente sob
grave risco de se tornarem vítimas, elas próprias, dessa violência (Shetty et al., 2005: 126;
Appel et al., 1998: 581; Edleson 2004: 17) na medida em que a criança pode ser apanhada
no meio da discussão, muitas vezes por interferir para apartar o conflito (Sani, 2006: 857-
858). O simples testemunho dessa violência por parte das crianças e jovens tem nestes
um impacto bastante relevante, criando diversos efeitos negativos, mormente
agressividade, baixo aproveitamento escolar, medo, dificuldades em dormir, isolamento,
ansiedade, trauma, raiva, depressão, comportamentos imaturos e baixa auto-estima
(Carriço, 2013: 16-17; Edleson, 2004: 9-11; Osofsky, 1999: 36-38). Há ainda quem
conclua que os impactos emocional, comportamental e psicológico, nos jovens que
experienciam violência doméstica, são muito similares àqueles encontrados em crianças
que são abusadas psicologicamente e negligenciadas, bem como em crianças que
experienciaram abusos sexuais (National Resource Center on Domestic Violence, 2002:
4; World Health Organization, 2002: 103).
Quanto ao número de crianças que se encontram nesta situação, o primeiro estudo
realizado a nível mundial, com dados do Secretariado-Geral das Nações Unidas sobre
violência sobre crianças, apresenta números alarmantes. Estima-se que, a nível mundial,
entre 133 e 275 milhões de crianças estão expostas a violência doméstica, e que desses
números, entre 4.6 e 11.3 milhões se encontram em países desenvolvidos. (Secretariado
Geral das Nações Unidas, 2006: ponto 47).
Na medida em que a nossa Constituição adota um conceito material de crime, que
deve subjazer à classificação de dada conduta como passível de aplicação de uma pena,
no seu art.º 18.º, no qual encontramos a necessidade de intervenção do jus puniendi
sempre que tal seja impreterível para a salvaguarda de “direitos e interesses
constitucionalmente protegidos”. Esta norma articula-se com o art.º 40.º do CP que refere

9
como objetivo da lei penal a salvaguarda de bens jurídicos, devendo estes entender-se
como obrigatoriamente consagrados a nível constitucional.
Assim sendo, e tendo em consideração o impacto psicológico que a exposição a
atos de violência familiar pode ter em crianças e jovens (que a existir, é similar ao impacto
criado por ofensas verbais diretas, unanimemente enquadradas no conceito legal de maus
tratos psíquicos) poderá haver necessidade de considerar mais seriamente este problema,
através de uma visão que engloba estas situações como maus tratos psíquicos nos termos
do art.º 152.º. Os bens jurídicos lesados nestes casos serão a integridade pessoal, na sua
vertente psíquica, e o livre desenvolvimento da personalidade. Tendo em consideração o
panorama atual da situação, não estão os mesmos a ser eficazmente protegidos por outros
meios.
Autores como Edleson (Edleson, 2004: 9-11) não defendem, automaticamente, que
a exposição da criança à violência doméstica seja definida como uma forma de maus
tratos. A verdade é que nem sempre há um impacto negativo manifestamente tão visível
nos menores que se deparam com estes problemas. Isto porque tal impacto e os danos
causados variam consoante diversos fatores, tais como o nível de violência na família, o
nível de exposição do menor a essa violência, o nível de exposição a outros fatores de
risco que não a violência doméstica ou a resiliência do menor (Edleson, 2004: 9-11;
Groves, 1999: 123).
Em nosso entender, para que se incluam estes atos de exposição a violência
intrafamiliar no conceito de maus tratos psíquicos, terá sempre de ser analisado o efetivo
dano gerado na criança ou jovem, pelo facto de a violência doméstica ser um crime de
dano e não de mero perigo abstrato ou concreto, ou seja, tem de haver uma lesão efetiva
a um bem jurídico. Ademais, deve ser analisada a conduta adotada pelo agressor, que
deve sempre ser adequada a produzir o efeito danoso (assim como deve ser analisado o
dolo, que deverá ser, pelo menos, eventual). Estas circunstâncias para preenchimento do
tipo já são analisadas nos restantes atos que integram os maus tratos (físicos e psíquicos),
para preenchimento do art.º 152.º do CP, entendendo-se que o agente comete tantos
crimes de violência doméstica, quantas vítimas atingidas.
Questão que deve ser colocada em último lugar (sem desprimor de outros tópicos
neste assunto de igual relevância, que por falta de oportunidade, não serão aqui
discorridos) prende-se com o sentido, ou eventual falta no mesmo, de continuar a vigorar
a agravante do n.º 2 do art.º 152.º do CP, na medida em que poderá estar aqui em causa
um problema de dupla incriminação, em violação do princípio do ne bis in idem (seguindo

10
a posição acima adotada, a exposição a atos de violência doméstica seria assim punida
simultaneamente pelo art.º 152.º, n.º2 a), primeira parte – como um crime contra menor,
distinto e autónomo do crime praticado contra a vítima “direta” dos atos de violência – e
pelo art.º 152.º, n.º2 a) quando se refere “na presença de menor” – como um crime contra
a vítima “direta”, agravado pelo facto de um menor estar presente).
Parece-nos que a agravante deve continuar a ter aplicação em casos menos graves.
Assim sendo, vigoraria o art.º 152.º, n.º 2 a) na parte em que se refere a atos praticados
contra menor, sempre que se considere que o agente atuou sabendo que a criança ou jovem
estava a ouvir ou a ver os maus tratos contra uma das pessoas elencadas no n.º1 do mesmo
artigo, ou quando não tem a certeza que tal esteja a ser assistido pelo menor, mas
representa tal possibilidade e conforma-se com a sua verificação e o menor apresente
danos psíquicos consideráveis, seja pela reiteração dos maus tratos, seja pela gravidade
dos mesmos (pense-se no exemplo de uma tentativa de homicídio de um progenitor contra
o outro, em frente do menor).10 Por outro lado, vigoraria o art.º 152.º, n.º2 a), na parte em
que se refere a atos praticados na presença de menor, apenas quando os atos de violência
tenham um impacto menos intenso no menor.
Esta solução parece proteger os menores de uma forma mais eficaz, sem
necessidade de alteração legislativa ao Código Penal (podendo e devendo haver lugar a
alterações em diplomas avulsos, no que toca à proteção das crianças testemunhas), sendo
no entanto necessária uma alteração interpretativa, por parte da doutrina e da
jurisprudência, do art.º 152.º do CP no sentido de se entender que as crianças expostas a
violência no contexto familiar podem ser afetadas a nível psíquico de forma
suficientemente marcante para que, em certos casos e quando tal ocorra, se autonomize
os maus tratos direcionadas a elas.

10
Transpomos para esta parte da questão a orientação que Nuno Brandão (BRANDÃO, 2010: 9-24) adota quanto aos
maus tratos no n.º1 do art.º 152.º, ou seja, um conceito restrito para aplicação do n.º 2 na parte a que se refere “contra
menor”, exigindo-se que o comportamento “seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou
estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde (...) psíquica da vítima”, no
caso, do menor que assiste a estes atos praticados contra as pessoas elencadas no n.º1.

11
6. Conclusão

Este trabalho teve como foco uma breve análise dos riscos associados à exposição a
violência doméstica para o desenvolvimento das crianças e jovens. Este é um problema
com reflexos a nível mundial e tem sido alvo de estudo, principalmente nos Estados
Unidos da América, nos últimos 30 anos. Em Portugal ainda encontramos poucos estudos
sobre o real impacto destas situações em menores, tendo apenas recentemente surgido
estudos a nível europeu por parte das Nações Unidas e da UNICEF.
Após análise do Relatório do Comité GREVIO, percebemos que Portugal está em
incumprimento parcial da Convenção de Istambul, no que toca à existência de medidas
de proteção para as crianças testemunhas de violência no seio familiar, entendendo o
Comité que os sistemas sociais neste domínio e a legislação existente não são suficientes.
Assim, concluímos que as agências competentes devem atuar de forma mais eficaz, de
modo a colmatar algumas falhas na resposta a estas crianças, que devem ser reconhecidas,
por direito próprio, como vítimas, ainda que indiretas, de violência doméstica.
Tendo em consideração os diversos fatores que influenciam o impacto que a violência
doméstica tem em crianças e jovens, não consideramos que se deva entender que o
testemunho a essa violência deve ser automaticamente incluído no art.º 152.º como uma
situação de maus tratos psíquicos. Terá de se atender à concreta conduta do agente, de
modo a não negligenciar os princípios da ofensividade e da adequação, bem como à culpa
do mesmo. Ademais, deve atender-se ao dano criado nos bens jurídicos protegidos, que
serão a integridade pessoal, na sua vertente psíquica, e o livre desenvolvimento da
personalidade.
Assim sendo, em certas situações, deve aplicar-se o art.º 152.º n.º2 a) na parte a que
se refere “contra menor”, seja pela gravidade do ato de violência doméstica a que o menor
assistiu, seja pela reiteração de diversos atos de menor gravidade, que ainda assim se
mostram insuportáveis para o menor. Por outro lado, deve continuar a prevalecer a
agravante presente no nº2 a), nos casos de menor ou quase inexistente lesão dos bens
jurídicos que se pretendem proteger.
Por fim, creio que deve este tópico ser estudado de forma mais atenta e aprofundada,
tanto por juristas, como por psicólogos, de modo a poderem ser retiradas conclusões mais
assertivas sobre a melhor forma de lidar com este problema.

12
Bibliografia

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