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UNIVERSIDADE LUSÍADA NORTE - PORTO

MESTRADO EM CRIMINOLOGIA
DIREITO PENAL AVANÇADO

O HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA

Docente: Prof. Dr. Fernando Torrão


Discente: Sandra Capitão Torres

PORTO
2022
Índice:

Introdução…………………………………………………………………………………………… 3
1. O que é o homicídio?……………………………………………………………………….……4
2. Tipos de homicídio em Portugal……………………………………………….………………. 5
3. Tipificação do Crime de Homicídio Negligente segundo o Código Penal Português…….……. 7
4. A Negligência…………………………………………………………………………………..11
5. Definição de Negligência Grosseira……………………………….…………………..……… 15
6. A Pena e a sua Medida………………………………………………………………………… 17
7. Da pena acessória de proibição de conduzir……………………………………………………19
8. Concurso entre um tipo criminal e um tipo contra-ordenacional…………………………..…. 20
9. Enquadramento do Crime na Realidade Rodoviária……………………………………………21
10. Conclusão…………………………………………………………………………………….…25
11. Bibliografia………………………………………………………………………………….….26

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Introdução

Vivemos numa sociedade marcada pelo aparecimento constante de novas e, cada vez mais
imprevisíveis, situações de risco, que surgiram essencialmente com a revolução industrial a partir
do séc. XIX. A par dos fenómenos perigosos da industrialização e da melhor qualidade de vida,
também surgiram novos perigos com a inovação científica-tecnológica e pelo fenómeno do stress,
nomeadamente a partir da 2º. metade do séc. XX.
Como sustenta Taipa de Carvalho, “no contexto desta nova “sociedade de risco”, a
negligência assume uma importância cada vez maior. É que a experiência demonstra que muitos
dos danos, quer pessoais quer comunitários são, frequentemente, o resultado, não de
comportamentos dolosos, mas de condutas negligentes, isto é, da não observância das regras de
cuidado, indispensáveis à minimizarão dos riscos inerentes às respetivas condutas.”
Alguns destes riscos, provenientes das atividades humanas é o que se verifica nos campos de
circulação rodoviária, ou seja, o trivial ato de conduzir, multiplicando-se as incriminações a título
de mera culpa. Em Portugal, os acidentes de viação com vítimas mortais são uma das maiores
causas de mortes.
Assim, e atendendo à realidade rodoviária, onde é frequente o fenómeno de homicídio por
negligência que vitima milhares de pessoas todos os anos, torna-se importante abordar o que é o
homicídio por negligência. Neste trabalho é ainda desenvolvido o que é a negligência e os seus
diferentes tipos, a sua pena e medida e o concurso entre tipo criminal e tipo contra-ordenacional.
Definir a negligência e os seus diferentes tipos torna-se relevante para a aplicação do tipo de
negligência evidenciada ao caso concreto e respetivamente à determinação e medida da pena a ser
aplicada ao agente.
Compreende-se que, embora se deva manter a regra de que a punibilidade do facto depende
do dolo do agente nos termos do artigo 13º do Código Penal, Taipa de Carvalho ressalva a
importância crescente dos crimes negligentes, pois esta limitação, não significa que os crimes
meramente culposos, sejam menos importantes, ou que a sua prática seja menos frequente
relativamente aos crimes dolosos.

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1. O que é o homicídio?

O homicídio é desde sempre considerado a forma mais brutal da interrupção da vida, sendo
por esta razão, o crime que mais alarme social causa na sociedade. O homicídio é, assim,
geralmente considerado o mais grave de todos os crimes, obviamente com as consequências mais
graves para a vítima.
É classificado como homicídio o ato humano e voluntário ou simples resultado de condutas
que origina a morte de outro ser humano, quando o comportamento da pessoa que a provoca não se
encontra “justificado” face à ordem social vigente.
O crime de homicídio está inserido no capítulo dos crimes contra a vida do Código Penal
Português, pelo que este tipo de crime ganha protagonismo na medida em que está em causa o bem
jurídico digno de maior e melhor proteção jurídica: a vida humana.
A vida constitui o principal bem jurídico do ordenamento para o qual se reclama proteção
máxima, mas não se trata apenas da vida humana, mas, em rigor, a vida de pessoa já nascida. Essa
proteção é conferida por dois diplomas fundamentais. São eles a Declaração Universal dos Direitos
do Homem (DUDH) e a Constituição da República Portuguesa (CRP). Neste último, o direito à vida
funda-se na norma constitucional que consagra a sua inviolabilidade e proíbe a pena de morte (“A
vida humana é inviolável” do artigo 24º, nº2 CRP). O valor da vida humana revela-se como
absoluto e indisponível, tanto assim é, que no ordenamento jurídico a protecção da vida adquire
natureza de interesse público, vinculando-o à proteção da vida humana independentemente da
vontade do seu titular.
No entendimento de Figueiredo Dias, o crime de homicídio consagrado no artigo 131º do
Código Penal é o tipo legal estruturante e responsável pela subsequente composição dos restantes
crimes que protegem a vida nascida, tipificados no Código Penal Português. O autor sublinha que
“o tipo de ilícito objectivo constante do artigo 131º basta para concretizar o conteúdo essencial do
ilícito de todos os “crimes contra a vida” de pessoa já nascida”. De facto, podemos pensar no
homicídio por negligência como uma especialização do homicídio simples relativamente ao “tipo
subjetivo e ao tipo de culpa congruente”, assim como conseguimos caracterizar o homicídio
qualificado como uma forma agravada e o homicídio privilegiado, o homicídio a pedido da vítima e
o infanticídio como construções atenuadas do homicídio tipificado no artigo 131º do Código Penal.

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2. Tipos de homicídio em Portugal

A definição de homicídio é, com ligeiras variações, a mesma desde o início da compilação


dessas normas – “Quem matar outra pessoa…”, elencando de seguida um conjunto de normas
adicionais que não são mais do que condições de tipificação, presumindo uma maior ou menor
intencionalidade por parte do autor, fazendo-se corresponder a essas condições ou circunstâncias
especiais, reveladoras de uma maior ou menor censurabilidade, um maior ou menor grau de
punição.
Nesta ordem de ideias, aparece o juízo de censura dirigido à vontade do facto e do resultado,
como característica dos crimes dolosos e, por outro lado, a não previsão do resultado concreto, com
o juízo de censura encaminhado unicamente à violação de dever de cuidado, nos crimes de
negligência.
No nosso ordenamento jurídico, temos assim os crimes de homicídio estipulados no capítulo
dos crimes contra a vida sendo o primeiro referente ao Homicídio Simples:

Artigo 131º - Homicídio


“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”

Segundo este artigo e, de acordo com Maia Gonçalves, os meios de execução do crime de
homicídio podem ser quaisquer uns, já que a lei não faz restrições. É indiferente, portanto, o uso de
meios diretos ou indiretos, mecânicos ou psíquicos. Segundo o autor, tanto comete o crime de
homicídio, aquele que, pelas suas próprias mãos, desfere os golpes mortais, como aquele que incita
outro a fazê-lo, como ainda aquele que adestra um animal perigoso para esse efeito. Citado por
Maia Gonçalves, Manzini, expende que o homicídio pode ser levado a cabo mediante uma atuação
positiva, como o uso de armas, venenos, etc., ou mediante omissão, que se pode traduzir na falta de
alimentação, omissão de cuidados devidos, entre outros. Podem ser utilizados meios diretos, isto é,
mediante atividade dirigida contra o corpo da vítima, ou meios indiretos, como a exposição de
pessoas incapacitadas a condições de ambiente perigosas, a um animal perigoso, etc.

Artigo 132º - Homicídio qualificado

“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou


perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número
anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;

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b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o
agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença
ou gravidez;
d) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou
para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou
nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima;
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou
assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio
particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na
intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
k) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da
República, magistrado, membro de órgão de governo próprio das Regiões Autónomas,
Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou
organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha,
advogado, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial
de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar,
agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou
membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob a
jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;
l) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade. “

Segundo Maia Gonçalves, o Código Penal seguiu a orientação de considerar o homicídio


simples o tipo basilar dos crimes dolosos contra a vida, sendo o homicídio qualificado uma forma
agravada do tipo basilar.
No que concerne à qualificação seguiu a técnica dos exemplos-padrão, que combina um
critério geral revelador de uma culpa agravada, especial censurabilidade ou perversidade, de acordo
com o n.º 1 do artigo 132.º, com exemplos-padrão elencados no n.º 2 do mesmo artigo, não sendo
estes taxativos, mas exemplificativos.

Artigo 133º - Homicídio privilegiado

“Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou
motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com
pena de prisão de 1 a 5 anos.”

O fundamento determinante do privilegiamento do crime de homicídio, de acordo com Maia


Gonçalves, é uma diminuição sensível da culpa do agente, que é dominado pelos fatores previstos
no artigo, a compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor
social ou moral, devendo existir para que seja possível o enquadramento da conduta neste

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homicídio privilegiado, o respetivo nexo de causalidade entre os elementos tipo e a prática do
crime.
3. Tipificação do Crime de Homicídio Negligente segundo o Código Penal Português

Feito este prisma, chegamos à previsão do homicídio por negligência, previsto no artigo 137º
do Código Penal na qual dispõe:

Artigo 137.º - Homicídio por negligência

“1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com
pena de multa.
2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.”

Este é um crime no qual atenta contra a vida humana, mas não existe dolo, ou seja, no qual
não existe intenção de o praticar e, portanto, de causar danos (neste caso mortais) por parte do autor.
Isto leva-nos a considerar que nos casos de homicídio por negligência estamos perante um erro
humano que leva à morte de alguém. Entende-se assim, que há homicídio involuntário, negligente
ou culposo quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou
diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe
exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e cauteloso, e de que
a mesma era capaz.
Efetivamente, por não existir dolo, a moldura penal do homicídio por negligência é menor que
a do homicídio qualificado ou simples, podendo ainda assim o arguido ser condenado a uma pena
de prisão de até cinco anos, consoante o juízo de censura, pois como vislumbra o artigo 137º do CP,
no seu nº1 será atribuída uma pena de prisão até 3 anos ou pena de multa em casos de homicídio
negligente simples e caso de trate de um homicídio por negligência grosseira a pena de prisão
poderá ir até aos 5 anos. Assim, por exemplo, nos casos de acidente rodoviário apesar de não existir
dolo por parte de condutores que negligentemente dão origem a um acidente que tem como
consequência vítimas mortais, estes podem ser julgados pelo crime de homicídio por negligência e
ser condenados a uma pena de até cinco anos de prisão.
O tipo de homicídio tratado no artigo 137º do Código Penal realiza-se com uma conduta que
viole um dever objectivo de cuidado do qual provenha a ocorrência do resultado típico, a morte de
uma ou várias pessoas e, portanto, é formado pelo “desvalor da ação” e pelo “desvalor do
resultado”.

A génese de um homicídio por negligência, tal como acontece no homicídio doloso, pode
assumir a forma de ação ou de omissão.

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De modo sucinto, relativamente ao crime de homicídio negligente por omissão de acordo com
o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09 de junho de 2020, este sustenta: “Sucede que a
conduta imputada a cada um dos arguidos se analisa não numa ação, mas numa omissão da ação
esperada com vista a evitar o resultado típico. Um dos pressupostos dos delitos de comissão por
omissão é a existência de uma situação típica e o incumprimento da ação esperada. Surge assim o
carácter «esperado» da ação irrealizada. Note-se que a omissão jurídica-penalmente relevante não é
simplesmente o agente não fazer nada, mas não fazer algo sendo este algo a ação esperada e exigida
ao garante”.
Por outro lado, relativamente aos crimes de homicídio por negligência de ação, Taipa de
Carvalho defende em Teoria Geral do Crime, Parte II que ao contrário do que tradicionalmente era
entendido, relativamente à “distinção do crime negligente face aos crimes dolosos se operava só no
plano da culpa, o certo é que, atualmente, a maioria da doutrina defende que a diferença entre um e
outro se verifica não só no plano da culpa mas também no plano do ilícito. Assim este refere que “à
semelhança do que se verifica no crime doloso, também o crime negligente é constituído pelo tipo
de ilícito negligente e pela culpa negligente”.
De facto, hoje a doutrina dominante é que a negligência contem um tipo de ilícito e um tipo
de culpa. Isto é, como violação de um dever de cuidado objetivo, faz parte do tipo de ilícito, como
censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é,
alias, consagrada na própria definição legal de negligência, plasmada no artigo 15º do Código
Penal: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado...” isto é violação do cuidado objetivamente devido, que
correspondente ao tipo de ilícito “... e de que é capaz”, ou seja, capacidade instrumental (violação
do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais),
que corresponde ao tipo de culpa”.
Segundo o autor Taipa de Carvalho em Direito Penal, Parte Geral, “uma vez que as ações,
constitutivas do ilícito negligente, são ações que, em si mesmas consideradas são em muitos casos,
permitidas, social e juridicamente, ou até mesmo juridicamente impostas, resulta que o “desvalor de
ação”, no ilícito negligente, é constitutivo pela violação de um dever objectivo de cuidado. Ou seja,
a essência do ilícito negligente está na forma descuidada com que o agente pratica a ação, e não na
ação abstratamente considerada”.
Ou, socorrendo-nos do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04 de abril de 2019, “a
negligência pressupõe o desvalor de ação, pela violação do dever objetivo de cuidado, elementos
aos quais se poderá acrescentar a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado.
Note-se que o desrespeito pelo cuidado devido e exigível numa determinada situação tida em
concreto corresponde ao desvalor de ação, enquanto o papel do resultado típico nos crimes

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negligentes de resultado permanece em contenda. Todavia, o elemento fulcral do crime negligente
(ação ou omissão negligente) é o dever objectivo de cuidado.”
A violação do dever objectivo de cuidado pressupõe a previsibilidade objetiva do perigo para
determinado bem jurídico e não observância do cuidado objetivamente adequado a impedir a
ocorrência do resultado típico, isto é, do resultado que a experiência indica que está conexionada
com a espécie de ação praticada.
Portanto o primeiro elemento para efeitos de afirmação ou negação do preenchimento do tipo
de ilícito negligente, é a previsibilidade objetiva do perigo, que surge quando a ação praticada
aparecer, à pessoa consciente e cuidadosa, como suscetível de provocar um resultado desvalioso.
Sendo objetivamente previsível o risco, então o agente tem de atuar com o cuidado
objetivamente exigível, isto é, com o cuidado que, apesar dos riscos inerentes à ação em causa, será,
no geral, adequado a evitar que tais riscos se concretizem. Se, apesar do agente ter procedido com o
cuidado exigível, mesmo assim o resultado desvalioso se produzir, este não pode ser imputado à
ação do agente. Ora, sem “desvalor da ação” não há ilícito.
Portanto o segundo pressuposto e elemento do tipo de ilícito negligente é a violação do dever
objectivo de cuidado, isto é o não cumprimento do dever de cuidado que, se tivesse sido cumprido,
portavelmente o resultado teria sido evitado. Por sua vez, o dever objectivo de cuidado traduz-se no
comportamento adequado a evitar possíveis consequências perigosas da conduta. Tal dever pode
resultar de normas legais destinadas a prevenir a violação de bens jurídicos ou onde não existam
normas legais através da comparação do comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um
homem comum inteligente e prudente. Ora, uma das fontes concretizadoras do dever de cuidado são
precisamente as “normas jurídicas de comportamento” (Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte
Geral, tomo I, pais. 875), categoria em que se inserem as normas do Código da estrada e legislação
e regulamentação completar, que visam sobretudo e antes de mais garantir a segurança do transito,
atento o facto de a condução rodoviária, pela sua própria natureza, envolver determinados e
incontornáveis perigos para diversos bens jurídicos, designadamente a integridade e a vida
humanas. Assim, o exercício da condução é acompanhado pela imposição de determinados deveres
especiais de cuidado, de previsão do perigo e de adoção de comportamentos consoantes com tal
previsão. Dai que a violação do dever objectivo de cuidado, em matéria de tráfego rodoviário, possa
resultar, desde logo, da inobservância de uma específica norma de direito estradal.
Desde logo está em causa a diligência de que cada um é capaz. A lei não se contenta em
estabelecer um padrão generalizador de comportamento; em direito penal subjetiva o dever de
cuidado medindo-o por aquilo de que o sujeito é capaz. Revela-se importante a questão do critério
do cuidado objetivamente exigível. Segundo Taipa de Carvalho “à partida, está excluído que o
cuidado exigível seja aquele de que o agente é capaz, pois a capacidade subjetivo-individual do

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agente representar os riscos da sua ação e de adotar as necessárias cautelas para que tais riscos não
se concretizem é pressuposto do juízo de culpabilidade negligente e não do prévio juízo de ilicitude
negligente de ação.” O critério tem de ser objectivo, como a própria expressão “dever objectivo” o
indica. Objetivo, mas não abstrato, mas sim concreto.
Como a generalidade da doutrina o refere, deve considerar-se, como critério-padrão, o
cuidado que seria adotado pelo “homem consciente e cuidadoso” do setor da atividade a que
pertence o agente, ou seja, do setor da atividade onde ocorreu o facto.
Uma questão que divide a doutrina é a relevância das capacidades ou conhecimentos especiais
e acima da média. Diz Figueiredo Dias, que “para a configuração do cuidado devido em sede de
ilícito-típico negligente não relevarão as capacidades individuais do agente senão quando superiores
às do homem médio”. Capacidades inferiores às consideradas anteriormente não podem relevar no
sentido de excluir a tipicidade, devendo apenas ser consideradas ao nível do tipo de culpa. No que
às capacidades superiores à média diz respeito, estas já entrarão na constituição do tipo de ilícito do
homicídio negligente. Este é um critério duplo, pois faz-se valer de um juízo generalizador
relativamente aos agentes que tenham aptidões médias ou inferiores à média e individualizado
quanto a agentes dotados de especiais capacidades. Portanto, no dizer de Pinto de Albuquerque “as
capacidades do agente inferiores à do homem médio não excluem a tipicidade da conduta. Mas as
capacidades do agente superiores à do homem médio podem fundar a tipicidade da conduta”.
Ora, segundo Taipa de Carvalho, quanto ao grau e intensidade do cuidado exigível este está
em relação direta com os seguintes fatores: a relevância do bem jurídico suscetível de ser lesado ou
posto em perigo pela ação; a proximidade ou intensidade do perigo associado à respetiva ação e as
circunstâncias concretas em que a ação é praticada. Assim, por exemplo, a condução, numa
autoestrada, a 100 km/h pode configurar uma violação do dever de cuidado, se tal condução ocorrer
em situações de invernia ou de denso nevoeiro, pois o limite de 120 km/h é para condições normais.
E quanto mais intenso for o cuidado exigível, mais grave é o seu incumprimento e, portanto,
mais grave é o respetivo ilícito negligente. Daqui poder afirmar-se, à semelhança do que acontece
nos crimes dolosos, também no crime negligente, a maior ou menor gravidade da negligência (leve,
grave, grosseira) não se situa apenas no plano da culpa, mas também logo no plano do ilícito.
A previsibilidade do perigo direcionada a um concreto bem jurídico a par com a inobservância
do cuidado objetivamente adequado a obstar à ocorrência do resultado típico constituem requisitos
incontornáveis para a verificação da violação do dever objectivo de cuidado, mas não chega.
Enquanto crime material ou de resultado, a produção do resultado e a violação do dever objetivo de
cuidado, só por si, não preenchem o correspondente ilícito típico do crime de homicídio negligente.
Chegamos assim, ao último pressuposto, na qual é necessário que a morte seja objetivamente
imputável a uma conduta violadora de um dever de cuidado, sendo que o resultado só é

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objetivamente imputável à conduta quando ela produz um risco proibido de ocorrência do resultado
e o processo que provoca aquele resultado é o desenvolvimento daquele risco proibido. É nesta
ordem de ideias, imprescindível em abstrato, que a ação seja idónea para causar o resultado, isto é,
que o resultado seja uma consequência normal típica da ação.
Conforme se foi dito, o crime de homicídio negligente é um crime de resultado (morte), pelo
que se vislumbra esta ideia no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/2/2010 em que “a relação de
causalidade entre a ação e o resultado e a imputação objetiva do resultado ao autor da ação que o
causou são o pressuposto mínimo para afirmar a responsabilidade, nos crimes de resultado, pelo
resultado produzido”. A morte terá, então, que ser objetivamente imputada à conduta ou omissão do
agente, o que supõe, nos casos de comportamentos negligentes, a violação de um dever objectivo de
cuidado.
Tal processo lógico deve ser o de uma prognose costuma, ou seja, de um juízo de idoneidade
referido ao momento em que a ação se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda
verificado: o chamado juiz ex ante.

Tentando sintetizar o ilícito negligente, poderá dizer-se que o ilícito é constituído pela
previsibilidade objetiva, a violação do dever objetivo de cuidado e a imputação do resultado à
violação deste dever de cuidado. Só na presença destes pressupostos se poderá fazer o juízo de
censura negligente.

4. A Negligência

De modo a entendermos melhor o crime de homicídio por negligência será relevante


abordarmos o que é a negligência e os seus diferentes tipos para a aplicação do tipo de negligência
evidenciada no caso concreto e respetivamente à determinação da pena ao caso concreto.
No entanto, retiramos, desde logo, a conclusão que a nossa lei penal não contém nenhuma
definição geral do que se entende por negligência. Daí a necessidade de recorrer à doutrina para
obtermos uma noção deste conceito.
O conceito material da culpa negligente jurídico-penal, por mérito de Figueiredo Dias
corresponde a uma definição precisa e aceite na dogmática penal. Segundo este, a culpa negligente
é a atitude ético-pessoal de descuido ou leviandade do agente perante o bem jurídico lesado ou
posto em perigo pela respetiva ação ilícita negligente. O que, no juízo de culpa negligente, se
censura ao agente é a atitude pessoal de leviandade perante os bens jurídicos-penais, que a sua ação,

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praticada descuidadamente, põe em sério risco de lesão; atitude esta que se materializa no facto
praticado”.
Assim, e como dispõe na tese de Jescheck, “a negligência é um tipo especial de punibilidade
que oferece uma estrutura própria, quer ao nível do ilícito, quer ao nível da culpa. A negligência
determina-se no fundo segundo um duplo critério: de um lado, examina-se que comportamento seria
objetivamente devido para evitar a violação involuntária de um bem jurídico perante uma dada e
concreta situação de perigo e outro lado, se tal comportamento poderá ser exigido pessoalmente
aquele agente segundo as suas características e capacidade individuais”.
Esta tese é, no essencial, seguida por Eduardo Correia, onde considera ser a negligência a
omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se
traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização (elemento objetivo), e que o
agente, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais, podia ter
cumprido (elemento subjetivo).
Conclui-se, pois, que a essência da negligência e a caracterização desta enquanto conduta
ilícita pressupõe a conjugação de uma perspetiva objetiva e de uma perspetiva subjetiva.
Assim, como nos crimes dolosos, relativamente à culpa dolosa, também nos crimes por
negligência pressupõe a imputabilidade penal, ou seja, pressupostos específicos do juízo de culpa
negligente, sendo estes a previsibilidade subjetiva do perigo e a possibilidade de o agente ter
cumprido o dever objectivo de cuidado.
Diferentemente da previsibilidade objetiva, que é pressuposto do ilícito negligente e que se
determina por um critério objetivo, aqui, na previsibilidade subjetiva, como pressuposto do juízo de
culpa negligente, o critério tem, necessariamente, de ser subjetivo-individual. Esta previsibilidade
subjetiva do perigo significa que a possibilidade de o agente, segundo as suas capacidades
individuais e as circunstâncias concretas em que a ação é praticada, ter previsto os perigos ou riscos
da sua ação.
O segundo pressuposto à possibilidade de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado.
Ora, claro que se o agente não tinha possibilidade de cumprir os cuidados exigíveis, isto é, se não
tinha os conhecimentos, técnicas necessárias para evitar que os riscos da sua ação se concretizassem
em resultados danosos, não poderá, o agente, em princípio ser considerado culpado. É este o sentido
do art. 15º, quando diz: “Age com negligência quem (…) não proceder com o cuidado (…) de que é
capaz “.

Existe ainda a culpa por assunção que consiste nos casos em que o agente, apesar de saber ou
ter obrigação de saber que não está “preparado” para praticar a ação, mesmo assim decide-se
(levianamente) a praticá-la. Assim, nestes casos o agente é culpado por, levianamente ter assumido

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a prática de uma ação para a qual estava impreparado. Exemplos desta “culpa por assunção” podem
ser os mais diversos como por exemplo o automobilista, recém-encartado, que circula a 120 km/h,
numa autoestrada, vindo a provocar um acidente, por falta de destreza.

Feito este intróito, os eventos negligentes são absorvidos por uma das duas categorias
apontadas pela doutrina: a negligência consciente e a negligência inconsciente, plasmado no artigo
15º do Código Penal. Posto isto, segundo o:

Artigo 15º do Código Penal Português:

“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
(a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas
atuar sem se conformar com essa realização; ou
(b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.

Ora, a negligência consciente abarca as situações da aliena a) em que o agente, não obstante
reconhecer como possível a produção do resultado típico, “confia, podendo e devendo não confiar”,
na sua não realização. A representação dos perigos da ação não a inibe na medida em que o agente
acredita que aqueles não se concretizarão em lesão ou perigo de lesão e, portanto, não se conforma
com o resultado típico.
Poderá perguntar-se, na medida em que o agente só pratica a ação porque está convencido que
o resultado não se produzirá, onde está a sua culpa? A doutrina tem entendido, que o agente ao estar
convencido de que o resultado não se verificará não é ter certeza de que o resultado não se
concretizará, pelo que o agente não deixa de saber que há sempre o risco do que o resultado se
verifique e, portanto, ao agir, o agente aceita sempre correr tal risco, por pequeno que lhe pareça.
Alem disto, o agente decide praticar a ação, porque, levianamente, sobreavalia as suas capacidades
e/ou porque, leviana ou precipitadamente, subavalia os riscos da sua ação. Logo, o comportamento
do agente que age com negligência consciente não deixa de ser censurável.
Por outra banda, a negligência inconsciente, abarcando os casos da alínea b), conceptualiza os
casos em que o agente “não previu, como podia e devia ter previsto”, que a sua ação se podia
consubstanciar num resultado típico de lesão ou perigo de lesão de um bem jurídico tutelado.
Afirma Taipa de Carvalho que o agente “nem sequer representa a possibilidade de a sua ação vir a
traduzir na prática de um tipo de ilícito”.
Segundo o autor Maia Gonçalves na negligência inconsciente é necessário conseguir
determinar que era exigível a antevisão dos resultados que o agente não previu, embora devesse,

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para que, consequentemente, se possa asseverar a existência de um crime. Vejamos a este respeito o
que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão que data de 31 de março de 2009.
O juiz relator assinala que “para apurar da negligência há que fazer um juízo ex ante”, na medida
em que importa atender às circunstâncias de tempo, lugar e à conjuntura em que os acontecimentos
surgiram e, assim, ponderar sobre “como é que o homem médio, nas circunstâncias e com os
conhecimentos do agente, teria valorado aquela concreta situação, se teria ou não percecionado o
perigo para o bem jurídico”. Ato contínuo, dever-se-á contrapor o comportamento expectável com
a conduta concreta do agente para colacionar se o agente atuou negligentemente por agir em
desconformidade com a ação devida naquele contexto. A deliberação ora observada frisa que,
relativamente a acidentes rodoviários, a incumbência de definição da essência do dever objectivo de
cuidado encontra-se simplificada pela existência de normas reguladoras do tráfego circulação
rodoviário cuja transgressão constitui indício da violação daquele dever.
A realização deste juízo é ainda importante na medida em que, como sustenta Taipa de
Carvalho, apesar de sermos induzidos na ideia de que a negligência consciente é mais censurável
que a negligência inconsciente, esta última poderá ser de certo modo, mais grave. Isto explica-se
pelo facto de o agente ao nem sequer representar tais riscos pode, na maior parte dos casos, ser
revelador de uma personalidade que já se “habituou” a não representar sequer os perigos da sua
ação, o que, portanto, esta atitude pode acabar por ser mais perigosa e mais culposa do que aquele
que, embora não deixe de ser censurável, diante de uma ação em si mesmo perigosa, representa tais
perigos.

A distinção entre estas duas espécies de negligência situa-se no plano do ilícito negligente,
caracterizando-se o tipo de ilícito com negligência consciente, face ao tipo de ilícito com
negligência inconsciente, pela circunstância de naquele, que não existe no último, existir o elemento
de subjetivo “representação” da possibilidade do resultado.
A negligência consciente aproxima-se do dolo eventual, sendo que o dolo eventual representa
o menos grave dos dolos e a negligência consciente a mais graves das formas culpa, a principal
diferença entre estes dois tipos assenta no facto de no dolo eventual o resultado ser o desejado pelo
agente, assumindo este o risco de o produzir, já na negligência consciente o resultado não é
desejado, não tendo o agente a intenção de produzir esse mesmo resultado. Assim, esta conexão
psicológico-volitiva que existe entre o agente e o seu facto típico e ilícito, no caso do dolo eventual,
não se verifica no caso da negligência consciente. E é essa conexão psicológica-volitiva de
conformação com o risco de realização de um tipo de ilícito que constitui o substrato da
possibilitação de um juízo de culpa dolosa.

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5. Definição de Negligência Grosseira

O artigo 137º do Código Penal para além de diferenciar as espécies de negligência,


autonomiza no seu nº2 a espécie mais grave ou especialmente qualificada de culpa negligente.
Assim, como refere Taipa de Carvalho “No artigo 137º nº2, o legislador considera a negligência
grosseira como causa de uma agravação modificativa da pena legal aplicável, em princípio, ao
homicídio por negligência.”
O específico enquadramento de uma situação no âmbito da negligência grosseira acarreta
alterações na determinação da pena: por um lado, porque alguns tipos legais, como é o caso
paradigmático do tipo legal de homicídio negligente, preveem uma moldura legal mais severa para
as situações de negligência grosseira (artigo 137º, nº 2), por outro lado, porque na determinação
concreta da pena se deve ter em consideração, de acordo com o nº 2 do artigo 71º do Código Penal,
(a)) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências,
bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; (b)) a intensidade do dolo ou da
negligência.
A negligência grosseira é um termo utilizado juridicamente mas que, não estando
explicitamente definida no Código Penal, tem várias posições doutrinais que não são facilmente
aplicáveis a todos os tipos de crimes. As bases doutrinais e o apoio jurisprudencial são ainda
manifestamente diminutos e insuficientes no que à definição de negligência grosseira concerne.
Segundo Figueiredo Dias, “Seguro é que a negligência grosseira constitui um grau
essencialmente aumentado ou expandido de negligência. Para além disto, porém, é importante
decidir se o carácter grosseiro da negligência constitui exclusivamente uma forma qualificada da
culpa negligente (uma característica da atitude do agente que operaria ao nível da culpa) ou uma
graduação do ilícito em função do especial dever de cuidado que concretamente sobre o agente
recai, do perigo aumentado e (ou) da especial frequência de verificação do resultado”.
O autor sustenta que o conceito de negligência grosseira traduz uma especial vivificação da
negligência não apenas no que à culpa diz respeito, mas também relativamente ao tipo de ilícito.
Entenda-se que a categorização de uma situação nos moldes da negligência grosseira deriva, como

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se entende, da conjuntura da demanda em apreço, ou seja, depende das circunstâncias do caso
concreto, relativas ao tipo de ilícito negligente praticado e à pessoa do respetivo agente.
Em simultâneo, Taipa de Carvalho acrescenta a estes condicionalismos que a decisão do
tribunal não pode ser pura e simplesmente discricionária, pelo que o tribunal deve atender a fatores
como a especial relevância do bem jurídico lesado ou posto em perigo pela ação descuidada, a
intensificação acrescida do perigo, ou seja o forte risco de produção do resultado e o especial dever
de cuidado, considerando o estatuto, a profissão ou as funções do agente para fundamentar um juízo
de negligência grosseira ao caso concreto.
Segundo o autor, quanto à localização categorial-sistemática da negligência grosseira, “parece
claro que esta releva, em primeiro lugar, no plano do tipo de ilícito, sendo, portanto, uma espécie
qualificada do ilícito negligente. É irrefutável tratar-se de uma conduta de particular perigosidade e
estarmos perante um resultado de constatação altamente crível mediante a ação adotada.”
Mas também parece evidente que, para ter relevância no plano da agravação modificativa da
pena ou da “agravação” dentro do limite máximo da pena legal do crime negligente, o caracter
qualificado ou grosseiro da negligência também tem de relevar no plano da culpa negligente”. Ou
seja, há ainda que valorizar o grau de censurabilidade do comportamento do agente que tem de ser
caracterizável como de intensificada leviandade ou forte descuido.
Significa, isto que o caracter grosseiro do crime negligente tem de se analisar no duplo plano
do ilícito e da culpa e que como refere Figueiredo Dias, “não se deve, a partir da afirmação da
existência de um ilícito negligente grosseiro, concluir automaticamente pela afirmação de uma
culpa negligente grosseira. Ou seja, pode, em alguns casos, existir aquele e não existir esta. O que
pode afirmar-se é que, não havendo ilícito grosseiro, jamais pode afirmar-se uma culpa grosseira e,
consequentemente, nunca pode existir um crime negligente grosseiro.”
Assim, de modo a perceber o que se entende por negligência grosseira, é necessário recorrer
aos conceitos gerais para se enquadrar esse tipo de negligência com o facto em apreço. Um exemplo
relacionado com o problema de qualificação da negligência como grosseira, é o acórdão da Relação
de Coimbra de 6 de abril de 1994, em que o fórum preceitua que “pode-se dizer que a negligência
grosseira, que qualifica o crime de homicídio por negligência, existe, em casos de acidente de
viação, quando o condutor não põe na condução uma atuação prudente, e antes se esquece dos
mais rudimentares e elementares deveres de precaução e prudência, revelando ligeireza e
temeridade”. O Tribunal considera que o acidente foi o resultado expectável de uma condução
inexperiente marcada pela falta de “automatismos mínimos necessários”. Nesta ordem de ideias,
explana que a deliberação do arguido de, sem a habilitação exigida e sem a prontidão e agilidade
indispensáveis, conduzir na via pública um veículo automóvel, é demonstrativa duma atitude de
pura leviandade face aos bens jurídicos violados.

16
Assim, na determinação desta forma qualificada da culpa negligente deverá averiguar-se
medida da divergência entre a conduta do agente e a conduta exigível e que devia ter sido assumida,
partindo das regras de cuidado que devem ser tomadas em cada caso concreto, sendo que, quanto
maior for a medida da divergência, mais facilmente se poderá concluir pela ocorrência de
negligência grosseira. Não bastará, a violação de regras de transito qualificadas como
contraordenações graves ou muito graves para caracterizar o comportamento negligente daí
resultante como qualificado.

Concluímos que o artigo 137º nº2 do Código Penal ao aludir à negligência grosseira pretende
abranger aqueles casos em que, de forma mais flagrante e notória, se omitem os cuidados mais
elementares que devem ser observados, ou aquelas situações em que o agente se comporta com
elevado grau de imprudência, revelando grande irreflexão e insensatez. Para além disto, denote-se
que o carácter grosseiro da negligência deve ser tido em conta para a determinação da medida da
pena (artigo 71.º nº2 do Código Penal, quando estabelece que, para este efeito, o tribunal deve
atender ao “grau de ilicitude do facto”, ao “grau de violação dos deveres impostos ao agente” e à
“intensidade da negligência”).

6. A Pena e a sua Medida

O tribunal, nos casos e homicídio negligente depois de realizar um enquadramento jurídico-


penal do comportamento do arguido, determina a natureza e medida concreta da sanção a aplicar.
Ora, o crime de homicídio negligente previsto no artigo 137º, nº 1, do Código Penal, é punido com
pena de prisão de três anos ou com pena de multa e nos termos nº2 do mesmo artigo relativo aos
crimes de homicídio por negligência grosseira é punível com penal de prisão até 5 anos, e ainda
com pena acessória de proibição de conduzir veiculos motorizados entre 3 meses e 3 anos, nos
termos do artigo 69º a) do CP.
De harmonia com o plasmado no artigo 70º do Código Penal “se ao crime forem aplicáveis,
em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda
sempre que esta realize de forma adequada e suficientes as finalidades da punição”. Resulta desta
disposição legal que a pena de multa é a preferida pelo legislador, pelo que sempre que o julgador
se convença seriamente que, com essa pena, ficam salvaguardas as finalidades da punição, que
como se sabe são as que resultam do artigo 40º, nº1 do Código Penal (finalidades de proteção de
bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade), deve optar pela sua aplicação em
17
detrimento das penas detentivas. E no juízo subjacente à aplicação deste preceito, apenas devem
interferir razões preventivas, designadamente razões de prevenção especial.
A este propósito refere Figueiredo Dias que o que interessa “são finalidades exclusivamente
preventivas, de prevenção geral e prevenção especial, não finalidades de compensação da culpa, que
justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a
sua efetiva aplicação”.
Relativamente à determinação concreta da pena recorre-se ao critério global previsto no nº1
do artigo 71º do Código Penal e que de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de
09 de Maio de 2018, “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita
em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Donde se extrai que a determinação
da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção - especial e geral positiva ou de
integração -, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.”
Sustenta ainda o acórdão que “na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da
totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (fatores de medida da pena) que
relevam para a culpa e a prevenção, há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte
do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (art. 71º, nº 2, do CP),” constituindo a
culpa o limite inultrapassável da pena (artigo 40º nº2 do Código Penal).
Depois de o tribunal, atendendo a estes pressupostos aplicar uma medida concreta da pena a
cumprir pelo agente, caso se trate de uma pena de prisão, ou seja, uma pena detentiva deverá o
tribunal decidir se é caso ou não de substituir a pena única de prisão determinada para o arguido por
uma pena não detentiva. Nos termos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09 de maio de
2018 “Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal (art. 40º) o da
preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais
eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de
prevenção geral e especial”.
Denote-se que a pena mais elevada a aplicar aos casos de homicídio negligente consta no
respetivo artigo 137º nº2 do Código Penal, que é uma pena de prisão até 5 anos. Dispõe o artigo 50º
nº1 do Código Penal, que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida
não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua
conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do
facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. E
avança no seu nº5 que “O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
Feito este intróito, é percetível que aos caso em que ao arguido é condenado por crime de
homicídio por negligência, na maioria dos casos é aplicada a suspensão da execução da pena, uma
vez que a moldura penal máxima vai até aos 5 anos, preenchendo assim o primeiro requisito

18
referente à suspensão da execução da pena de prisão e atendendo ás circunstancias do agente, uma
vez que na maior parte das vezes os arguidos são primários, ou seja não tem antecedentes criminais,
estão integrados profissionalmente e familiarmente e agem com negligência simples (a forma
menos grave de violação de deveres de cuidado) pelo que muitas vezes é suficiente para alcançar a
prevenção geral.
A suspensão da execução da pena de prisão contemplada no artigo 50º do Código Penal
constitui assim um substitutivo das penas privativas da liberdade, aceite pelo legislador como um
instrumento alternativo à pena detentiva, capaz de sanar o mal produzido à comunidade pela ação
do delinquente, sem outras consequências mais drásticas.
Deverá ser aplicada quando seja de perspetivar, através de um juízo assente em fatores
conhecidos (personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao
crime e às circunstâncias deste), que é possível, mantendo o agente no seio da vida comunitária,
recompor o tecido social afetado pelo seu comportamento (proteção de bens jurídicos) e recuperar o
infrator (reintegração do agente na sociedade).
Para este efeito, e nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de junho de
2007, “é necessário que se possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao
comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para
realizar as finalidade da punição, ou seja, a suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base
uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentir a sua condenação como uma
advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime”.
São as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de
salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma
incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que
inspira o instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
Mesmo que aconselhada à luz das exigências de socialização do condenado, a suspensão da
exeução da pena não poderá ter lugar, se a tal se opuserem a tutela dos bens jurídicos violados e as
expectativas comunitárias, quanto à capacidade dos mecanismos e das instituições previstos na
ordem jurídica para repor a validade e a eficácia das normas que a integram e de as fazerem
respeitar.
Neste prisma, verificando-se os pressupostos do artigo 50.º do Código Penal e feito um juízo
de prognose pelo juiz ao caso concreto, o tribunal vai entender pela aplicação ou não da suspensão
da execução da pena.

7. Da pena acessória de proibição de conduzir


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Segundo o disposto no art.º 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, quem for punido por crime
previsto nos artigos 291.º e 292.º, do CP, é condenado na proibição de conduzir veículos com motor
por um período fixado entre três meses e três anos.
A proibição de conduzir veículos motorizados como pena acessória que é deve ser graduada,
tal como a pena principal, segundo os critérios gerais de determinação das penas que decorrem dos
artigos 40.º e 71.º do Código Penal, já referenciados.
No entanto, apesar da identidade de critérios, tratando-se de realidades complementares e
distintas, não pode deixar de se ter conta a natureza e finalidades próprias da pena acessória de
modo que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas
dentro do programa político-criminal em matéria dos fins das penas enunciado pelo artigo 40.º do
Código Penal.
Sendo certo que a pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja
finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também, ao menos em
alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal
sancionatório da condenação.
Daí que a determinação da pena acessória deva operar-se mediante recurso aos critérios gerais
consignados no artigo 71º do Código Penal com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena
acessória é mais restrita na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a
perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
Assim, determinando o tribunal a pena concreta ao caso concreto e ponderando este sobre a
sua respetiva substituição ou não pela suspensão da execução da pena, deverá para além da
aplicação desta pena principal ser aplicada ao agente uma pena acessória de proibição de condução,
nos termos do artigo 69.º n.º1 do CP.

8. Concurso entre um tipo criminal e um tipo contra-ordenacional:

A sinistralidade rodoviária grave implica, na maioria dos casos, a prática de vários tipos de
crimes. Os acidentes rodoviários não resultam de um só facto tipo, mas da conjugação de uma série
de factores que em conjunto contribuem para o resultado.
Existindo concurso entre um tipo criminal e um tipo contra-ordenacional, ou seja, quando no
caso concreto a conduta do agente preenche formalmente um tipo de crime e um tipo contra-
ordenacional a lei impõe que o agente seja punido pelo crime, que é a infração de natureza mais
grave. Segundo António Beça pereira, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas,

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“Trata-se de imposição que decorre do principio non bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser
julgado mais do que uma vez pela pratica do mesmo facto (artigo 29º, nº5 da Constituição da
Republica Portuguesa), sendo certo que conquanto a lei fundamental apenas proíba o duplo
julgamento e não também a dupla penalização, é obvio que a proibição do duplo julgamento
pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela
prática da infração, como a aplicação renovada de sanções pela prática do mesmo facto”.
Portanto o arguido havendo concurso aparente entre um tipo criminal e um tipo contra-
ordenacional não é punido quanto às contraordenações previstas e punidas no Código da Estrada, e
tal é assim uma vez que os factos suscetíveis de configurar a pratica de ilícitos contraordenacionais
são os mesmos em que se funda a imputação ao arguido da pratica do crime de homicídio
negligente, ou seja, sendo as contraordenações causais do crime pelo qual se responsabilizou já o
arguido, não sendo possível autonomizar esses mesmos comportamentos, sob pena de violação do
principio constitucionalmente consagrado do “ne bis in idem”, não sendo o arguido punido por tais
contraordenações.
Tal resulta, ademais, do disposto no Artigo 134.º do Código da Estrada relativo ao Concurso
de infrações e no artigo 20º do DL nº443/82, de 27 de Outubro, onde dispõe no seu nº1 que “Se o
mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título
de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação” cabendo
segundo o nº2 do mesmo artigo “A aplicação da sanção acessória, nos termos do número anterior,
cabe ao tribunal competente para o julgamento do crime.”
Como já referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 16/5/2012, “Cremos que com estas
normas o legislador quis deixar claro que nas situações em que o “facto” contra-ordenacional
integra já um crime e é punido a título de dano – nomeadamente com pena de prisão ou multa,
como é o caso no homicídio negligente – seria excessivo punir a mesma realidade fáctica com uma
coima. (…) Entendemos assim que a censura adicional pelo crime cometido no exercício da
condução de veículo, traduzida na sanção acessória de inibição de conduzir prevista no art. 134.º,
n.º1 do Código da Estrada, é para o legislador sanção suficiente quando a contraordenação é causal
do crime. De outro modo, não vislumbramos sentido útil ao disposto no art. 134.º, n.º1 do Código
da Estrada.”    

9. Enquadramento do Crime na Realidade Rodoviária:

Atualmente, as mortes na estrada alcançam números supérfluos relativamente aos tipos de


morte por ano. Ora, muitas destas mortes são crimes por homicídio negligente, em que, portanto,
são acidentes rodoviários em que não há culpa do autor na morte. São, assim, muito elevadas as
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necessidades de prevenção geral uma vez que a insegurança na circulação rodoviária é hoje uma
preocupação geral, tendo vindo a aumentar a sinistralidade estradal, tantas das vezes em vítimas
mortais.
O homicídio por negligência em meio rodoviário baseia-se num erro humano por parte de um
dos intervenientes de um acidente que lhe confere a responsabilidade por um acidente do qual
resultaram vítimas mortais. Portanto, se alguém é responsável por um acidente torna-se também, e
logicamente, responsável pelas consequências deste, e assim torna-se responsável pela morte das
vítimas.
Nomeadamente, se na origem de um acidente de onde resultaram vítimas mortais estiver uma
infração ao código da estrada, pode-se considerar que o condutor que cometeu essa infração não
procedeu com o cuidado devido pois não seguiu as regras estradais exigidas pelo código, e assim
pode ser considerado negligente e consequentemente culpado da morte que resultou do acidente de
viação. Assim, será constituído arguido pelo crime de Homicídio por Negligência.
De acordo com a jurisprudência, analisada a panóplia de decisões da jurisprudência que, nesta
matéria, têm vindo a ser proferidas pelos Tribunais nacionais, facilmente se compreenderá que são
os acidentes de viação o motivo que mais frequentemente coloca a questão controvertida.
A título de exemplo importará atentar no conteúdo do Acórdão de 21 de junho de 2007, no
qual o Supremo Tribunal de Justiça é chamado a analisar a conduta de um agente que conduzia,
durante uma noite de chuva e trovões, uma carrinha ligeira de mercadorias, não sendo titular de
qualquer título que o habilitasse a conduzir veículos automóveis. Na viatura de apenas dois lugares
seguiam sete ocupantes, cinco dois quais sentados na caixa de carga. O arguido conduzia a uma
velocidade estimada de cerca de 70 quilómetros por hora numa estrada nacional em condições
climatéricas de visível risco quando, após descrever uma curva para a sua direita, entrou em
despiste, invadindo a berma do lado direito e, por isso, tendo embatido num poste da linha de baixa
tensão, em betão, que ficou tombado com a força do embate. Na sequência dos factos relatados, a
porta traseira da carrinha soltou-se e os cinco ocupantes da caixa de carga foram projetados, sendo
que dois deles sofreram morte imediata. Foi dada como provada a falta de preocupação do agente
com o estado de saúde dos restantes ocupantes do veículo, que culminou com a fuga do mesmo.
Acresce que o arguido havia já sido condenado pela prática de crimes de condução sem carta e,
portanto, diante do ilustrado, o Supremo Tribunal de Justiça considera que “não se deve hesitar no
enquadramento legal do caso em apreço: o arguido, que não era titular de carta de condução, e
tripulava um veículo sem seguro, conduziu durante quase oito horas, e seguramente mais de 100
km (face à ida e volta ao Porto), uma carrinha com cinco passageiros no lugar da carga, o que já
seria suficiente para fazer do arguido um “modelo” de imprudência e de total irresponsabilidade
face a si próprio, aos seus companheiros e aos demais utentes da via. A isto acrescendo as

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circunstâncias concretas do acidente, já supra analisadas, não restam quaisquer dúvidas de que o
arguido agiu de forma temerária, manifestando total desprezo pelos cuidados necessários à
condução rodoviária. Deve, pois, o arguido ser punido pela prática do crime de homicídio por
negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 1 e nº 2, em concurso real com as contraordenaçõeses já
referidas, de que se curará em pormenor mais adiante”.
Outro acórdão, a titulo de exemplo, é o proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 29
de Janeiro de 2003 que dispõe que: “em sede de crimes rodoviários, a imputação de um crime
negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emerge das regras de
experiência comum ou da violação das normas do Código da Estrada, ou da violação de ambas, pelo
que, «tendo existido uma violação das normas estradais, e sendo o evento produzido do tipo que a
lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, deve presumir-se a negligência”. Também o
Supremo Tribunal de Justiça assegura que “provando-se uma atuação contravencional do condutor
do veículo, presume-se a sua culpa, no sentido de se projetar no juízo de censura final o desvalor da
conduta contravencional como causa do resultado típico criminal”.
No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de junho de 2020, refere ainda que “O
crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º do C.P. é um crime de
perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efectivo
para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor
elevado, mas o que tem de ser concreto é o perigo de tal ocorrer, não sendo necessário que se
verifique efetivamente a lesão.” Mas acrescenta ainda que, “Porém, não é suficiente que se violem
as regras de condução. “É necessário que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras,
ou seja, uma violação de elementares deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter
particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos
pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres (não podem ser
punidas violações de pequena dimensão)”. Neste caso, o tribunal socorreu-se da Lei n.º 77/2001, de
13 de julho, em aditamento introduzido à alínea b) do n.º 1 do citado artigo 291º, que passou a
elencar quais as manobras que podem constituir violação grosseira das regras de condução. E, são
elas, as relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direção, à
passagem de peões, à inversão do sentido de marcha e à marcha atrás em autoestradas ou em
estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de
rodagem da direita. Ainda neste contexto, o Prof. Germano Marques da Silva referindo-se ao
conceito de violação grosseira considera que “não se trata simplesmente de violação das regras de
trânsito, nem da violação que ocasione um perigo concreto …, mas de temeridade, de ousadia
perante o perigo quase certo, previsto e previsível atentas as circunstâncias”, in Crimes Rodoviários
– Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 51. O Supremo Tribunal de Justiça tem seguido, a

23
este respeito, uma jurisprudência uniforme no sentido de que existindo uma violação das normas
estradais e se o evento produzido foi do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada,
se deve presumir a negligência. Com isto não se extravasa o juízo de censura limitado à culpa do
agente: os crimes negligentes não prescindem da voluntariedade e liberdade do comportamento, ou
seja, de uma ação ainda em si dependente da vontade, na medida em que a omissão voluntária de
um dever quer dizer que, quando se viola esse dever de cuidado a pessoa o faz de forma livre, isto é,
tinha a possibilidade de cumprir esse dever.
Na realidade rodoviária, este tipo de negligência pode ser associado a atos como o consumo
de bebidas alcoólicas para além do limite permitido por lei, o não cumprimento de regras de
trânsito, o conduzir em velocidade excessiva, o conduzir sem título habilitante entre outras condutas
em que quem as pratica está consciente de que estas são prejudiciais para a sua condução.
O estudo de Hanowski, Carroll, Wierwille e Olson (2002) fala precisamente de
comportamentos intencionais dos condutores, referindo-se a situações em que o condutor conduziu
de uma forma inapropriada ou incorreta tendo a consciência que o estava a fazer, ou seja,
conduzindo com negligência de uma forma mais grosseira. Logo, apesar destas condutas poderem
não representar um crime por si só, se estiverem associadas por exemplo à causa de um acidente de
viação onde existem vítimas, podem vir a representar uma negligência grosseira, por haver
consciência de que se quebraram regras de prudência para uma boa condução.
Vislumbra-se assim, que no âmbito de acidentes rodoviários, ao arguido é lhe imputado a
prática em autoria material e na forma consumada na prática de contraordenação que foi causal de
um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º nº1 e 2 e artigo 69º nº1 a)
CP. O bem jurídico protegido pelo preceito incriminador é a vida humana.
Enquanto crime material ou de resultado, o tipo de ilícito do crime de homicídio negligente
consiste em causar a morte a outra pessoa, sendo ainda necessário que a morte seja objetivamente
imputável a uma conduta violadora de um dever de cuidado, sendo que o resultado só é
objetivamente imputável à conduta quando ela produz um risco proibido de ocorrência do resultado
e o processo que provoca aquele resultado é o desenvolvimento daquele risco proibido.
Por sua vez, o dever objetivo de cuidado traduz-se no comportamento adequado a evitar
possíveis consequências perigosas da conduta. Tal dever pode resultar de normas legais destinadas a
prevenir a violação de bens jurídicos (uma das fontes concretizadoras do dever de cuidado são as
normas jurídicas de comportamento que se inserem as normas do Código de Estrada que visam
sobretudo e antes de mais garantir a segurança do transito, atento ao facto de a condução rodoviária,
pela sua própria natureza, envolver determinados e incontornáveis perigos para diversos bens
jurídicos, designadamente a integridade e vida humanas) ou onde não existam normas legais através

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da comparação do comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum
inteligente e prudente.
Assim, o exercício da condução é acompanhado pela imposição de determinados deveres
especiais de cuidado, de previsão do perigo e de adoção de comportamentos constantes com tal
previsão. Dai que a violação do dever objectivo de cuidado, em matéria de tráfego rodoviário, possa
resultar, desde logo, na inobservância de uma especifica norma de direito estradal.

10. Conclusões

Como destaquei ao longo do trabalho, o crime de homicídio por negligência vítima inúmeras
pessoas todos os anos, principalmente no meio rodoviário. Estes, são crimes que apesar de não
serem praticados com dolo, ou seja, com a efetiva intenção do agente praticar o crime e
consequentemente, tirar a vida a alguém, a verdade é que este crime afeta o bem jurídico mais
valioso e protegido pela nossa legislação, a vida humana.
Assim, torna-se importante perceber o que é o crime por negligência e os seus pressupostos.
Através da revisão jurisprudencial efetuada destaco a importância da noção de Negligência e a
diferenciação dos seus tipos, pois conforme o tipo de negligência (consciente, inconsciente e
grosseira) que o Tribunal determina ao caso concreto, tem influência na atribuição da medida e
natureza da pena a aplicar ao agente, ou seja a aplicação de uma moldura penal mais ou menos
favorável, a possibilidade ou não de suspensão da execução da pena.
Com a realização deste trabalho consegui aprofundar ainda os meus conhecimentos
relativamente ao crime de homicídio por negligência ao nível da jurisprudência no contexto
estradal. Nomeadamente, como são realizados os processos, como é efetuada a aplicação da pena
acessória a estes crimes negligentes e como os tribunais deliberam entre o concurso entre o tipo
criminal e o tipo contra-ordenacional.
Motivo de almejar, com a realização deste trabalho concluí que, em Portugal, na maior parte
dos crimes de homicídio negligente em contexto rodoviário, a pena de prisão atribuída pelo tribunal
ao agente culminou quase sempre pela aplicação da respetiva suspensão de execução da pena (pelo

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preenchimento dos pressupostos do artigo 50º nº1 do CP) e pela aplicação de uma pena acessória de
inibição de conduzir.

11. Referencias Bibliográficas:

Albuquerque, Paulo Pinto, Comentário do Código Penal, 2010, anotação 2 ao art. 15º.

Carvalho, Américo Taipa de, Direito Penal Parte Geral

Carvalho, Américo Taipa de, Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais Teoria Geral do
Crime, Coimbra Editora, 2ª edição, 2008

Constituição da República Portuguesa: Lei Constitucional n.º 01/05 de 12 de Agosto (Sétima


Revisão Constitucional). Coimbra: Almedina, 2010.

Correia, Eduardo Henrique Da Silva, A teoria do concurso em Direito Criminal, Almedina ,


Coimbra

Dias, Jorge Figueiredo, Direito Penal: Parte Geral: Tomo I, Coimbra Editora, 2º Edição, 2007

Dias, Jorge Figueiredo, In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I

Dias, Jorge Figueiredo, In Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Coimbra
Editora.

Gonçalves, Manuel Maia, Código Penal Português. Na Doutrina e na Jurisprudência (2ª ed.).
Coimbra: Livraria Almedina.

Gonçalves, Manuel Maia, Código Penal Português - Anotado e Comentado, anotação ao art. 15º do
C.P.

Pereira, António Beça, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2º edição.

Silva, Fernando – Direito Penal Especial: Os Crimes Contra as Pessoas. Lisboa: Quid Juris, 2011. p.
33.
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Dissertações de Mestrado:

Pimentel, A. (2014). A Conduta Negligente causadora de uma pluralidade de vitimas. Dissertação


apresentada com vista à obtenção do grau de mestre, UC-Universidade Católica Portuguesa -
Figueira da Foz.

Rebisco, P. (2017). A Responsabilidade criminal em acidentes de viação com vitimas mortais.


Dissertação de Mestrado com vista á obtenção do grau de mestre, Universidade Nova de Lisboa.

Jurisprudência:

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09 de Junho de 2020.

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03 de Maio de 2004.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Abril de 1994.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04 de Abril de 2019.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de Fevereiro de 2010.

Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31 de Março de 2009.

Acórdão do Supremo Tribunal De Justiça de 21 de Junho de 2007.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Janeiro de 2003.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09 de Maio de 2018.

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