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Ficha Técnica

Título: OS OTIMISTAS
Título original: THE GREAT BELIEVERS
Autor: Rebecca Makkai
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Revisão: Rita Almeida Simões
Capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia da autora: Ryan Fowler
ISBN: 9789892346083

Edições ASA II, S.A.


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© 2018, Rebecca Makkai Freeman


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


REBECCA MAKKAI
OS OTIMISTAS
Éramos os grandes crentes.
Nunca gostei tanto de outro homem como destes que sentiram as
primeiras primaveras quando eu as senti, que viram a morte pela frente e
se salvaram – e que caminham agora pelo longo verão tempestuoso.

F. Scott Fitzgerald, «My Generation»

o mundo é deslumbrante, mas as doses são pequenas

Rebecca Hazelton, «Slash Fiction»


1985
trinta quilómetros dali, trinta quilómetros a norte, começava a missa
A fúnebre. Yale olhou para o relógio enquanto subiam a Belden Avenue e
perguntou a Charlie:
– Achas que a igreja está muito vazia?
– Não nos preocupemos com isso – respondeu Charlie.
Quanto mais se aproximavam da casa de Richard, mais amigos avistavam
a caminhar na mesma direção. Alguns estavam bem vestidos, como se isto
fosse o funeral propriamente dito; outros usavam calças de ganga, blusões
de cabedal.
Na igreja deviam estar apenas os familiares, os amigos dos pais, o padre.
Se houvesse sanduíches numa sala de receção qualquer para depois da
cerimónia, a maioria ia estragar-se.
Yale encontrou no bolso o boletim do velório da noite anterior e dobrou-o
numa forma semelhante aos quantos-queres que os amigos de infância
faziam nos autocarros – aqueles que adivinhavam o destino («Famoso!» ou
«Assassino!») quando se levantava uma dobra. Este não tinha dobras para
levantar, mas cada quadrante exibia palavras, algumas de pernas para o ar,
todas cortadas pelos vincos: «Padre George H. Whitb»; «querido filho e
irmão, descansa em»; «Todas as coisas brilhantes e»; «vez de flores,
donativos para». De certa forma, pensou Yale, todas estas palavras eram
sobre o destino de Nico. Nico fora brilhante e belo. Flores de nada
serviriam.
As casas nesta rua eram altas e trabalhadas. Ainda havia abóboras nos
alpendres, mas poucas tinham caras recortadas – o que se via mais era
arranjos artísticos de abóboras e milho. Cercas de ferro forjado, portões.
Quando entraram no caminho de acesso à casa de Richard (um nobre
edifício de pedra castanha, paredes meias com vizinhos igualmente nobres),
Charlie murmurou:
– Foi a mulher dele que decorou a casa. Quando ele era casado. Em
1972.
Yale riu-se no pior momento possível, precisamente ao passarem por
Richard, que segurava a porta com um sorriso circunspecto. Era a ideia de
Richard a viver uma vida de heterossexual em Lincoln Park, com uma
mulher qualquer com jeito para a decoração. A imagem que Yale visualizou
era caricata: Richard a esconder um homem no roupeiro quando a mulher
voltava atrás para vir buscar a carteira Chanel de que se esquecera.
Yale controlou-se e virou-se para Richard.
– Tens uma casa muito bonita – elogiou. Uma vaga de pessoas entrou
atrás deles, empurrando Yale e Charlie para a sala de estar.
Lá dentro, a decoração era mais 1872 do que 1972: sofás floridos,
cadeiras de veludo com braços trabalhados, tapetes orientais. Yale sentiu
Charlie apertar-lhe a mão enquanto mergulhavam no mar de gente.
Nico deixara bem claro que queria que houvesse uma festa.
– Se eu puder andar por aí como fantasma, acham que quero ver choros?
Venho assombrar-vos, garanto. Se vir alguém sentado a chorar, atiro um
candeeiro contra a parede, ouviram? Enfio-vos um atiçador pelo rabo
acima, no mau sentido.
Se ele tivesse morrido dois dias antes, não teriam tido ânimo para isto.
Mas Nico morrera há três semanas e a família adiara o velório e o funeral
até o avô, aquele que ninguém via há vinte anos, poder vir de Havana. A
mãe de Nico era fruto de um breve casamento pré-Castro entre a filha de
um diplomata e um músico cubano – e agora esse velho cubano era crucial
para o planeamento do funeral, enquanto o companheiro de Nico dos
últimos três anos nem sequer era bem-vindo na igreja. Yale não podia
pensar nisso, porque teria um ataque de fúria, e Nico não havia de querer tal
coisa.
De qualquer modo, tinham passado três semanas a chorar a morte dele e
agora a casa de Richard transbordava com uma atmosfera de festividade
forçada. Ali estavam Julian e Teddy, por exemplo, a acenar-lhes do balcão
que dava a volta à sala no primeiro piso. Havia ainda outro piso por cima
desse, e uma claraboia redonda e elaborada a presidir sobre todo o espaço.
Nem a igreja parecia tanto uma catedral, com certeza. Alguém soltou uma
gargalhada estridente muito perto dos ouvidos de Yale.
Charlie disse:
– Acho que a ideia é passarmos um bom bocado.
Yale estava convencido de que o sotaque britânico de Charlie se tornava
mais pronunciado quando ele era sarcástico.
– Estou à espera de ver entrar bailarinos seminus – disse Yale.
Richard tinha um piano e alguém se pusera a tocar «Fly Me to the
Moon».
Que raio estavam a fazer?
Um homem escanzelado que Yale nunca tinha visto envolveu Charlie
num abraço apertado. Alguém de fora, calculou, um indivíduo que já tinha
morado na cidade mas se mudara antes de Yale entrar em cena.
– Como é que estás cada vez mais novo? – disse Charlie.
Yale ficou à espera que alguém o apresentasse, mas o outro homem
estava a contar uma história urgente sobre uma pessoa que Yale não
conhecia. Charlie era o eixo de muitas rodas.
Uma voz ao ouvido de Yale:
– Estamos a beber cubas-libres.
Era Fiona, a irmã mais nova de Nico, e Yale virou-se para a abraçar e
inspirar o aroma a limão do cabelo dela.
– Não é ridículo?
Nico orgulhava-se das suas raízes cubanas, mas se soubesse o caos que a
chegada do avô ia causar teria vetado a escolha de bebidas.
Fiona dissera-lhes a todos, na noite anterior, que não ia ao funeral – que
só estaria ali, com eles – mas, mesmo assim, era um choque vê-la, saber que
cumprira o prometido. No entanto, ela afastara-se da família com a mesma
determinação com que a família tinha afastado Nico nos anos antes de ele
adoecer. (Até o virem reivindicar nos últimos dias, insistir para que ele
morresse nos subúrbios, num hospital mal equipado mas com papel de
parede bonito.) Fiona tinha o rímel borrado. Descalçara-se, mas cambaleava
como se ainda estivesse de saltos altos.
Fiona deu a sua bebida a Yale – um copo meio cheio, com um arco cor-
de-rosa de batom na orla. Tocou com o dedo no lábio superior dele.
– Ainda não acredito que o tiraste. Quer dizer, fica-te bem. Ficas com um
ar mais...
– Hetero.
Ela riu-se e depois disse:
– Oh... Oh! Não te obrigaram, pois não? Na Northwestern?
Fiona tinha uma das melhores expressões de preocupação que Yale já vira
– as suas sobrancelhas uniam-se, os lábios desapareciam dentro da boca –
mas custava a acreditar que ela ainda tivesse realmente emoções para
gastar.
– Não – respondeu. – É... quer dizer, sou responsável pelo
desenvolvimento. Tenho de falar com muitos antigos alunos, pessoas mais
velhas.
– Para angariar dinheiro?
– Dinheiro e arte. É uma dança estranha. – Yale aceitara o emprego na
nova galeria Brigg da Universidade de Northwestern em agosto, na mesma
semana em que Nico adoecera, e ainda não sabia bem onde começavam e
acabavam as suas responsabilidades. – Quer dizer, eles sabem do Charlie.
Os meus colegas. Não há problema. É uma galeria, não um banco. – Provou
a cuba-libre. Uma bebida inapropriada para a terceira semana de novembro,
mas na verdade a tarde estava invulgarmente quente e isto era exatamente o
que ele precisava. Talvez o refrigerante até o acordasse.
– Tinhas um ar muito Tom Selleck. Odeio quando homens loiros deixam
crescer o bigode. Parecem os pelinhos de um pêssego. Mas os homens de
cabelo escuro são os meus favoritos. Devias ter ficado com ele! Mas não
faz mal, porque agora pareces o Luke Duke. No bom sentido. Não, pareces
o Patrick Duffy! – Yale não conseguia rir-se, e Fiona inclinou a cabeça e
fitou-o com ar sério.
Tinha vontade de esconder o rosto no cabelo dela e chorar, mas não o fez.
Passara o dia a alimentar o entorpecimento, a agarrar-se a ele como uma
boia de salvação. Se esta reunião tivesse tido lugar três semanas antes,
podiam simplesmente ter chorado juntos. Mas agora a ferida já criara crosta
e, ainda por cima, havia esta necessidade de festejar, este imperativo de
estarem, de alguma forma, bem-dispostos. Alegres.
E o que fora Nico para Yale? Apenas um bom amigo. Não era família,
não era um amante. Nico, na verdade, fora o primeiro amigo a sério que
Yale fizera depois de se mudar para a cidade, o primeiro com quem se
sentara apenas a conversar sem ser num bar, sem ser aos gritos por cima de
música. Yale adorava os desenhos de Nico, costumava levá-lo a comer
panquecas, ajudara-o a estudar para o exame de equivalência do ensino
secundário e dizia-lhe que era talentoso. Charlie não se interessava por arte,
e o companheiro de Nico, Terrence, também não, por isso Yale levava Nico
a exposições e palestras sobre arte, apresentava-o a artistas. Mesmo assim:
se a irmã mais nova de Nico estava a aguentar-se tão bem, Yale não teria
obrigação de estar melhor?
– É difícil para todos – disse Fiona.
Os pais tinham cortado relações com Nico quando este tinha quinze anos,
mas Fiona levava-lhe comida, dinheiro e medicamentos para as alergias, às
escondidas, à casa que ele partilhava com quatro tipos na Broadway
Avenue. Apanhava o metro e depois o comboio, sozinha, desde Highland
Park. Com onze anos. Quando apresentava Fiona a alguém, Nico dizia
sempre:
– Esta é a senhora que me criou.
Yale não conseguia encontrar palavras suficientes para aquilo que valia a
pena dizer.
Fiona sugeriu-lhe que desse uma vista de olhos no piso de cima, quando
tivesse oportunidade.
– Parece o Palácio de Versalhes.
Yale não conseguia encontrar Charlie no meio da multidão. Apesar de dar
a impressão de ser muito alto, Charlie estava apenas um pouco acima da
média – e Yale ficava sempre surpreendido, em situações como esta, por
não avistar o seu corte de cabelo sério, a barba bem aparada, os olhos
sonolentos, acima das outras pessoas.
Julian Ames descera as escadas e parara ao pé dele.
– Começámos a beber à hora de almoço! Estou perdido! – Eram cinco da
tarde e o céu já escurecia. Encostou-se a Yale e riu-se. – Assaltámos as
casas de banho. Ou ele não tem nada, ou está tudo escondido. Bom, alguém
encontrou um frasco antigo de poppers ao fundo do frigorífico. Mas os
poppers servem para alguma coisa além de sexo?
– Não. Valha-me Deus. Poppers?
– É uma pergunta séria! – Julian endireitou-se.
Tinha uma madeixa de cabelo escuro à frente, que Charlie afirmava fazê-
lo parecer o Super-Homem. («Ou um unicórnio», acrescentava Yale.)
Afastou-a dos olhos e fez beicinho. Julian era demasiado perfeito. Fizera
uma rinoplastia antes de deixar Atlanta – era melhor para a sua carreira de
ator – e Yale desejava que não o tivesse feito. Preferia o Julian imperfeito.
– Estou a responder a sério. Não faz sentido absolutamente nenhum usar
poppers num velório.
– Mas isto não é um velório, é uma festa. E é como... – Julian estava
outra vez ao pé dele, a sussurrar-lhe em tom conspirador ao ouvido. – É
como aquela história do Poe, a da Morte Vermelha. A morte está lá fora,
mas aqui dentro vamos divertir-nos imenso.
– Julian. – Yale bebeu o resto da cuba-libre e cuspiu um pedaço de gelo
novamente para dentro do copo. – A questão não é essa. Não é assim que a
história acaba.
– Nunca fui de acabar os trabalhos de casa.
Julian pousou o queixo no ombro de Yale – coisa que tinha o hábito de
fazer, coisa que deixava sempre Yale preocupado com a possibilidade de
Charlie olhar para ele nesse preciso momento. Yale passara os últimos
quatro anos a assegurar a Charlie que nunca fugiria com alguém como
Julian, ou como Teddy Naples, que estava agora perigosamente debruçado
sobre o corrimão, com os pés no ar, a chamar um amigo cá em baixo.
(Teddy era tão pequeno que provavelmente alguém o conseguiria apanhar
se caísse, mas mesmo assim Yale fez uma careta e desviou o olhar.) Charlie
não tinha razões para tal insegurança, tirando a aparência dos dois homens e
a tendência que ambos tinham para o flirt. Tirando o facto de que Charlie
nunca se sentiria seguro. Fora Yale a sugerir uma relação monogâmica, mas
Charlie andava sempre atormentado com a possibilidade de isso não
acontecer. E escolhera os dois homens mais bonitos de Chicago como
centro das suas ansiedades. Yale enxotou Julian com uma sacudidela do
ombro e Julian afastou-se com um sorriso malicioso.
O nível de ruído na sala aumentara e o som ecoava nos pisos superiores à
medida que entravam cada vez mais pessoas. Dois homens muito jovens e
muito bonitos circulavam com tabuleiros de mini-quiches, cogumelos
recheados e ovos verdes. Yale estranhou que a comida não fosse cubana
também, para condizer com as bebidas, mas Richard provavelmente tinha
um plano único para todas as festas: abrir as portas, abrir o bar, rapazes com
quiche.
De qualquer maneira, era infinitamente melhor do que aquele velório
estranho e desonesto da noite anterior. A igreja cheirava bem, a incenso,
mas, fora isso, Nico não teria gostado de muito mais.
– Nem morto o apanhariam aqui dentro – comentara Charlie, e depois
apercebera-se da ironia das palavras e tentara rir. Os pais tinham tido o
cuidado de convidar o companheiro de Nico para o velório, dizendo que era
«uma ocasião apropriada para os amigos virem prestar a sua homenagem».
O que queria dizer, na realidade, «escusa de vir à missa fúnebre». O que
queria dizer «escusa de vir mesmo ao velório, mas já viu como somos
generosos?». No entanto, Terrence aparecera ontem à noite, acompanhado
de oito amigos, estes principalmente para apoiar Terrence e Fiona. Vieram a
saber depois que fora Fiona quem convencera os pais a fazer o convite
forçado; dissera-lhes que, se os amigos de Nico não fossem convidados, ela
se levantaria a meio da missa e o denunciaria, alto e bom som, para toda a
gente ouvir. Mesmo assim, muitos amigos tinham decidido não ir. Asher
Glass afirmara que o seu corpo se revoltaria caso pusesse os pés numa
igreja católica. («Ainda desatava a gritar sobre preservativos. Juro por
Deus.»)
Os oito ficaram sentados ombro a ombro na fila de trás, uma falange de
fatos à volta de Terrence. Teria sido bom se Terrence pudesse ter passado
despercebido no meio deles, mas ainda nem se tinham sentado quando Yale
ouviu uma mulher mais velha indicá-lo ao marido:
– Aquele. O cavalheiro negro de óculos.
Como se houvesse outro negro naquela igreja, um negro com visão
perfeita. Essa mulher não foi a única a virar-se de vez em quando para
observar, antropologicamente, se e quando este espécime negro e gay
começaria a chorar.
Yale apertara a mão de Charlie discretamente – não para fazer qualquer
tipo de afirmação, mas porque Charlie era alérgico a igrejas.
– Vejo genuflexórios e hinários – dizia ele – e caem-me em cima do
pescoço cinco toneladas de culpa anglicana.
Assim, abaixo da linha de visão das outras pessoas, Yale acariciara o
polegar ossudo de Charlie.
Vários familiares contaram histórias de quando Nico era criança, como se
ele tivesse morrido na adolescência. Havia uma boa, contada pelo pai,
pálido e estoico: Fiona, quando tinha sete anos, pedira vinte cêntimos para
comprar uma mão-cheia de rebuçados Swedish Fish do frasco que havia em
cima do balcão da mercearia. O pai recordou-lhe que ela já tinha gastado a
mesada toda. Fiona desatou a chorar. E Nico, que tinha onze anos, sentou-se
no chão, no meio de um corredor da loja, e, durante cinco minutos, puxou e
torceu um molar que ainda mal começara a abanar até o conseguir arrancar.
Sangrou muito – e o pai, que era dentista, ficou alarmado ao ver a raiz ainda
presa. Mas Nico enfiou o dente no bolso e disse:
– A Fada dos Dentes vai trazer-me vinte e cinco cêntimos esta noite, não
é? – Em frente de Fiona, o doutor Marcus não podia dizer que não. – Então,
posso pedir um empréstimo?
As pessoas presentes riram-se e o doutor Marcus quase nem precisou de
explicar que Nico dera imediatamente o dinheiro à irmã e que o dente
definitivo demorara um ano a crescer.
Yale procurou Terrence. Demorou um minuto a vê-lo, mas ali estava ele,
sentado a meio das escadas, demasiado rodeado de pessoas para que
conseguisse ir falar com ele. Em vez disso, tirou uma mini-quiche de um
tabuleiro e passou-lha por entre os balaústres.
– Pareces encurralado! – disse, e Terrence enfiou a quiche na boca,
estendeu a mão e disse:
– Podes ir buscar mais!
Fiona dissera que ia enganar os pais, trocar as cinzas de Nico por cinzas
da lareira e dar as verdadeiras a Terrence. Era difícil perceber se estava a
falar a sério ou não. Mas Terrence não ia ficar com as cinzas, não ia ficar
com nada a não ser o gato de Nico, que levara para sua casa assim que Nico
fora hospitalizado. A família deixara bem claro que no dia seguinte, quando
começassem a esvaziar o apartamento de Nico, Terrence seria excluído.
Nico não deixara testamento. A doença fora súbita e imediatamente
debilitante – primeiro uns dias de algo que parecia ser apenas herpes, e um
mês depois febres altíssimas e demência.
Terrence fora professor de Matemática do oitavo ano até este verão,
quando Nico começara a precisar dele noite e dia e Terrence descobrira que
ele próprio estava infetado. E como iria Terrence passar o outono, o
inverno, sem Nico, sem emprego? Não era só uma questão financeira. Ele
adorava ensinar, adorava os miúdos.
Terrence tinha alguns dos primeiros sintomas ligeiros, perdera algum
peso, mas nada muito grave, nada suficiente para poder meter baixa. Fizera
a análise depois de Nico adoecer – Yale não sabia se por mera solidariedade
ou apenas para saber. Não havia propriamente um comprimido mágico que
se pudesse tomar. Yale e Charlie tinham estado entre os primeiros a fazer a
análise nessa primavera, por uma questão de princípio. O jornal de Charlie
defendia a análise de despiste, a educação, o sexo seguro, e Charlie achava
que tinha de fazer aquilo que apregoava. Ainda por cima, Yale queria
simplesmente despachar o assunto. Na sua opinião, não saber também era
mau para a saúde. As clínicas ainda não faziam a análise de graça, mas o
Dr. Vincent sim. Yale e Charlie abriram uma garrafa de champanhe, ao
receber os resultados com a boa notícia. Foi uma celebração melancólica;
nem chegaram a acabar a garrafa.
Julian apareceu de novo junto ao ouvido de Yale.
– Vai buscar outra bebida, antes que comecem os slides.
– Há slides?
– Estamos a falar do Richard.
No bar, Yale encontrou Fiona a falar com alguém que ele não conhecia,
um tipo com ar hetero, de maxilar forte. Fiona enrolava os caracóis loiros
no dedo. Estava a beber demasiado depressa, a julgar pelo copo vazio na
sua mão. Fora buscá-lo depois de dar a Yale a sua meia bebida, e Fiona não
pesava mais do que cinquenta quilos. Tocou-lhe no braço e disse:
– Lembraste-te de comer?
Fiona riu-se, olhou para o tipo com quem estava a falar e riu-se outra
vez.
– Yale – disse. E beijou-o na face, um beijo firme que provavelmente
deixou marca de batom. Depois, virou-se para o amigo: – Tenho duzentos
irmãos mais velhos. – Parecia prestes a cair para o lado a qualquer
momento. – Mas, como podes ver, este é o mais betinho. E olha para as
mãos do Yale. Olha para elas.
Yale examinou a palma da mão; não tinha nada errado.
– Não – disse ela. – As costas! Não parecem patas de urso? São peludas!
– Passou o dedo entre os pelos escuros que cresciam do lado de fora da mão
dele e murmurou, mais alto do que julgava: – E os pés são iguais! – Depois,
olhou para Yale. – Ouve, falaste com a minha tia?
Yale perscrutou a sala. Havia poucas mulheres, e nenhuma com muito
mais de trinta anos.
– No velório?
– Não, ela não conduz. Mas deves ter falado, porque eu disse-lhe. Disse-
lhe, sei lá, há meses. E ela disse que sim.
– A tua tia?
– Não, a tia do meu pai. Ela adorava o Nico. Yale, tens de saber disso. Ela
adorava-o.
Yale olhou para o outro homem.
– Ela precisa de comer qualquer coisa. – O outro acenou afirmativamente.
Fiona deu uma palmadinha no peito de Yale e virou-se, como se ele é que
não estivesse a dizer coisa com coisa.
Pediu mais uma cuba-libre, praticamente rum sem mais nada, e procurou
Charlie. Seria aquela a barba dele, a sua gravata azul? Mas a cortina de
pessoas voltou a fechar-se e Yale não era suficientemente alto para ver por
cima das cabeças. E agora Richard estava a baixar as luzes e a levantar um
ecrã de projeção e Yale não via nada senão os ombros e costas que o
rodeavam.
Richard Campo era fotógrafo, se é que se podia dizer que tinha uma
profissão. Yale não fazia ideia de onde vinha o dinheiro de Richard, mas
chegava-lhe para comprar muitas máquinas fotográficas boas e dava-lhe
tempo para vaguear pela cidade a captar instantâneos, além de fotografar
um ou outro casamento. Pouco depois de se mudar para Chicago, Yale
costumava ir apanhar banhos de sol em Belmont Rocks, com Charlie e os
amigos de Charlie, embora isto tivesse sido antes de Yale e Charlie serem
um casal. Era o paraíso, apesar de Yale se esquecer sempre de trazer toalha,
apesar de apanhar sempre um escaldão. Homens a namorar em plena luz do
dia! Um espaço gay, escondido da cidade, mas aberto à vastidão do lago
Michigan. Um dos amigos de Charlie, um homem de cabelo ondulado
prematuramente grisalho e cueca de banho verde-lima, estava a tirar
fotografias com a sua Nikon, a mudar o rolo, a tirar mais fotografias. Yale
perguntara:
– Quem é aquele tarado? – e Charlie dissera:
– É bem capaz de ser um génio.
Era Richard. Claro que Charlie via génio em toda a gente, espicaçava e
sondava até descobrir as paixões de cada um e depois encorajava-as, mas
Richard era realmente talentoso. Yale e Richard nunca tinham sido
chegados – nunca tinha posto os pés em sua casa, até hoje –, mas
acostumara-se à presença dele. Richard estava sempre na periferia, a assistir
e a fotografar. Era uns bons quinze anos mais velho do que todos os outros
elementos do círculo social: paternal, dedicado, sempre disposto a pagar
uma rodada. Financiara o jornal de Charlie nos primeiros tempos. E aquilo
que começara por ser uma excentricidade tornara-se, nos últimos meses,
algo essencial. Yale ouvia a câmara a disparar e pensava: «Pelo menos ele
registou isto.» O que queria dizer: aconteça o que acontecer – daqui a três
anos, a vinte –, este momento ficará.
Alguém mexeu no gira-discos e, quando o primeiro slide apareceu no
ecrã (Nico e Terrence no ano anterior, a fazerem um brinde no vigésimo
aniversário de Fiona), a música começou: a introdução acústica de
«America», a versão de Simon e Garfunkel no concerto em Central Park.
Era a canção preferida de Nico, que ele considerava um hino de desafio,
mais do que uma cançoneta sobre uma viagem de carro. Na noite em que
Reagan vencera a reeleição o ano passado, Nico, furioso, tocara-a na
jukebox no Little Jim uma e outra vez, até todo o bar se pôr a cantar, num
coro embriagado, sobre preços baixos e contar carros e procurar a América.
Tal como toda a gente cantava agora.
Yale não conseguiu juntar-se ao coro e, embora não fosse certamente o
único a chorar, não lhe parecia que conseguisse sequer estar ali. Afastou-se
da multidão e subiu alguns degraus das escadas, de onde observou as
cabeças de ângulo mais elevado. Todos olhavam para os slides, fascinados.
Exceto outra pessoa que também estava a afastar-se. Viu Teddy Naples
junto à porta da rua, a vestir o casaco, a rodar lentamente a maçaneta.
Geralmente, Teddy era uma bolinha de energia cinética, sempre a saltitar
nas pontas dos pés, a tamborilar com os dedos ao ritmo de música que mais
ninguém ouvia. Mas, agora, movia-se como um fantasma. Talvez tivesse
razão. Se Yale não se encontrasse preso deste lado da multidão, talvez
fizesse o mesmo. Não ir-se embora, mas sair para apanhar ar.
Os slides: Nico de calções de corrida, com um número preso ao peito.
Nico e Terrence encostados a uma árvore, ambos com o dedo do meio
levantado. Nico de perfil, com o cachecol laranja e o casaco preto, um
cigarro entre os lábios. De súbito, Yale viu-se a si próprio, com o braço de
Charlie à sua volta, Nico do outro lado: a festa de final de ano do jornal de
Charlie, em dezembro. Nico fora designer gráfico do Out Loud Chicago,
onde publicava uma tira de banda desenhada, e começara havia pouco
tempo a criar também cenários para teatro. Totalmente autodidata. Este
devia ter sido o prólogo da sua vida. Novo slide: Nico a rir-se de Julian e
Teddy, no Halloween em que se tinham mascarado de Sonny e Cher. Nico a
abrir um presente. Nico com uma taça de gelado de chocolate. Nico em
grande plano, com os dentes a brilhar. A última vez que Yale o vira, Nico
estava inconsciente, com espuma – uma espécie qualquer horrível de
espuma branca – a sair-lhe da boca e das narinas. Terrence saíra a correr do
quarto, a gritar pelas enfermeiras, tropeçara num carrinho de limpeza e
magoara-se no joelho, e as estúpidas das enfermeiras estavam mais
preocupadas em perceber se Terrence sangrara ou não do que com o que se
passava com Nico. E aqui, neste slide, estava o rosto belo e inteiro de Nico
e era demais. Yale subiu a correr o resto das escadas.
Temia encontrar os quartos cheios de tipos sob o efeito dos poppers, mas
o primeiro onde entrou, pelo menos, estava vazio. Fechou a porta e sentou-
se na cama. Escurecera, e as luzes dispersas dos postes de iluminação lá
fora mal iluminavam as paredes e o chão. Richard devia ter redecorado pelo
menos este quarto, depois de a misteriosa esposa o deixar. Duas poltronas
de cabedal preto ladeavam a cama larga. Havia uma pequena prateleira com
livros sobre arte. Yale pousou o copo no chão e deitou-se, a olhar para o teto
e a experimentar o truque de abrandar a respiração que Charlie lhe
ensinara.
Passara o outono a memorizar a lista de doadores regulares da galeria.
Tentou ignorar o som vindo do piso de baixo e fez o que costumava fazer
em casa, quando não conseguia dormir: recitou os nomes dos doadores
começados por A, depois os que começavam por B. Um bom número deles
era comum à lista de doadores do Instituto de Arte onde trabalhara nos
últimos três anos, mas havia centenas de nomes novos – antigos alunos da
Northwestern, tipos de North Shore – que precisava de reconhecer
imediatamente.
Havia pouco tempo, começara a sentir-se incomodado com a lista –
invadido por uma espécie de inquietação entorpecida quando pensava nela.
Lembrava-se de ter oito anos e de perguntar ao pai se havia outros judeus
no bairro («Os Rothman são judeus? E os Andersen?») e de o pai esfregar o
queixo e responder:
– Não faças isso, rapaz. Historicamente, costumam acontecer coisas más
quando fazemos listas de judeus.
Só anos mais tarde Yale se apercebera de que esse era um complexo
exclusivo do pai, do seu tipo específico de sentimento de culpa. Mas Yale
era jovem e impressionável e talvez fosse por isso que lhe custava tanto
recitar nomes.
Ou então não, e era antes isto: ultimamente, tinha sempre duas listas
mentais em atualização – a lista de doadores e a lista de doentes. As pessoas
que podiam doar peças de arte ou dinheiro à galeria, e os amigos que
podiam estar doentes; os grandes doadores, aqueles cujos nomes eram
impossíveis de esquecer, e os amigos que já perdera. No entanto, até hoje,
nunca perdera amigos muito chegados. Meros conhecidos, amigos de
amigos, como o antigo colega de quarto de Nico, Jonathan, um ou dois
proprietários de galerias, um empregado de bar, o tipo da livraria. Seriam
uns... quantos? Seis? Seis pessoas que ele conhecia, pessoas a quem dizia
olá no bar, mas pessoas cujos segundos nomes nunca soubera, se calhar
nem mesmo os apelidos. Estivera em três velórios. E, agora, uma lista nova:
um amigo chegado.
Yale e Charlie tinham estado numa sessão informativa o ano passado,
com um orador de São Francisco.
– Conheço tipos que não perderam ninguém – dissera ele. – Grupos que
ficaram intactos. Mas também conheço pessoas que perderam vinte amigos.
Prédios inteiros completamente aniquilados.
E Yale, estúpida e desesperadamente, julgara que talvez pudesse
enquadrar-se na primeira categoria. Não ajudava nada que, através de
Charlie, conhecesse praticamente toda a gente em Boystown1. Não ajudava
nada que os seus amigos fossem pessoas que excediam as expectativas em
todos os aspetos – e que pareciam andar a exceder as expectativas também
nesta área nova e terrível.
A sorte de Yale e de Charlie fora terem-se conhecido na altura certa e
terem-se apaixonado tão depressa. Estavam juntos desde fevereiro de 1981
e – para divertimento e espanto de quase toda a gente – mantinham uma
relação de exclusividade desde o outono do mesmo ano. Mil novecentos e
oitenta e um não era demasiado cedo para ser infetado, de modo algum, mas
isto não era São Francisco, não era Nova Iorque. Graças a Deus, as coisas
aqui progrediam mais devagar.
Como é que Yale se esquecera de que detestava rum? Deixava-o sempre
maldisposto, desidratado, com calor. Com o estômago às voltas.
Encontrou uma casa de banho minúscula no quarto e sentou-se na sanita
fresca, com a cabeça entre os joelhos.
Na sua lista de pessoas que talvez adoecessem, que não tinham tanto
cuidado como deviam, que podiam até já estar doentes: bom, Julian, claro.
Richard. Asher Glass. Teddy – por amor de Deus, Teddy Naples gabava-se
de, uma vez, ter passado cinquenta e duas horas na sauna Man’s World, com
algumas sestas (apesar dos sons de sexo e da música alta), nos quartos
privados que vários homens mais velhos arrendavam para as suas aventuras,
alimentando-se apenas de chocolates Snickers tirados da máquina de venda
automática.
Teddy opunha-se a fazer a análise, temia que os nomes pudessem ser
relacionados com os resultados e utilizados pelo governo, utilizados como
as tais listas de judeus. Pelo menos era o que dizia. Talvez estivesse apenas
aterrorizado, como toda a gente. Teddy andava a fazer o doutoramento em
Filosofia na Universidade de Loyola e costumava arranjar desculpas
filosóficas elaboradas para sentimentos terrivelmente banais. Volta e meia,
Teddy e Julian tinham uma «cena», mas na maior parte do tempo Teddy
flutuava entre Kierkegaard e os bares e discotecas. Yale sempre desconfiara
de que Teddy tinha pelo menos sete grupos de amigos e que este grupo não
estava muito alto na hierarquia. Prova disso: o facto de ter saído da festa.
Talvez não tivesse conseguido aguentar os slides, como Yale; talvez tivesse
saído apenas para dar uma volta ao quarteirão, mas Yale duvidava. Teddy
tinha outros sítios onde estar, festas melhores para ir.
E depois havia a lista de conhecidos que já estavam doentes, que
escondiam as lesões nos braços mas não nos rostos, com tosses horríveis,
cada vez mais magros, à espera de piorar – ou já internados no hospital, ou
no avião a caminho de casa para morrerem junto dos pais, com o obituário
no jornal local a descrever a causa da morte como pneumonia. Ainda eram
poucos, mas havia muito espaço nessa lista. Demasiado espaço.
Quando finalmente se levantou da sanita, foi para molhar a cara com água
fria no lavatório. O seu reflexo no espelho era assustador: olheiras fundas,
pálido. Sentia o coração um bocadinho estranho, mas era habitual sentir o
coração estranho.
Os slides já deviam ter acabado e, se conseguisse olhar de cima para a
multidão, talvez encontrasse Charlie. Podiam escapulir-se. Podiam apanhar
um táxi, até, e ele podia abrir a janela para apanhar ar. Quando chegassem a
casa, Charlie far-lhe-ia uma massagem no pescoço, insistiria em preparar
um chá. Ficaria tudo bem.
Abriu a porta para o corredor e ouviu um silêncio coletivo, como se todos
estivessem de respiração suspensa, a ouvir algum discurso. Só que não
conseguia ouvir discurso nenhum. Olhou para baixo, mas não havia
ninguém na sala. Tinham ido para outro lado qualquer.
Desceu as escadas lentamente, pois não queria sobressaltar-se. Um
barulho súbito seria suficiente para o fazer vomitar.
Mas lá em baixo, na sala, havia apenas o zumbido do disco, a girar depois
da última canção, o braço da agulha recolhido no seu apoio. As mesas e os
braços dos sofás estavam cobertos de garrafas de cerveja e copos de cuba-
libre, alguns ainda meio cheios. As bandejas de canapés estavam
abandonadas em cima da mesa de jantar. Yale pensou numa rusga, algum
tipo de rusga policial, mas era uma residência particular e eram todos
adultos e não acontecera nada de muito ilegal. Provavelmente alguém teria
erva, mas por amor de Deus.
Quanto tempo estivera lá em cima? Vinte minutos, talvez. Trinta, no
máximo. Teria adormecido na cama? Seriam duas da manhã? Não, a menos
que o seu relógio de pulso tivesse parado. Eram 17:45.
Estava a ser ridículo e encontraria com certeza todos lá fora, no quintal.
Casas como esta tinham quintais. Atravessou a cozinha vazia, passando por
um vestíbulo com as paredes forradas de livros. Ali estava a porta, mas
tinha o ferrolho corrido. Encostou o rosto ao vidro, com a mão em concha
ao lado dos olhos: um toldo às riscas, um monte de folhas secas, a Lua.
Ninguém.
Yale virou-se e começou a gritar:
– Olá? Richard? Pessoal? Olá?
Dirigiu-se à porta da frente – que, estranhamente, também tinha o
ferrolho corrido – e abriu-a com alguma atrapalhação. Não havia ninguém
na rua escura.
Passou-lhe pela cabeça a ideia vaga e ridícula de que o mundo tinha
acabado, de que algum apocalipse varrera a cidade e se esquecera apenas
dele. Riu-se de si próprio, mas ao mesmo tempo... não havia movimento
atrás das janelas iluminadas dos vizinhos. Viu luzes acesas nas casas da
frente, mas isso não queria dizer nada; as luzes aqui também estavam
acesas. Ao fundo do quarteirão, o semáforo mudou de verde para amarelo e
de amarelo para vermelho. Ouviu o som distante de carros, mas também
podia ser o vento, não podia? Ou até o lago. Yale esperou por uma sirene,
uma buzina, um cão, um avião a passar no céu escuro. Nada.
Entrou novamente e fechou a porta. Gritou mais uma vez:
– Pessoal?
Parecia-lhe agora que devia ser uma partida, que a qualquer momento
saltariam todos dos seus esconderijos, a rir. Mas era uma vigília fúnebre,
não era? Não estava no décimo ano. As outras pessoas não andavam sempre
à procura de formas de o magoar.
Viu o seu próprio reflexo no televisor de Richard. Ainda aqui estava,
ainda era visível.
Nas costas de uma cadeira, viu um corta-vento azul que reconheceu:
pertencia a Asher Glass. Os bolsos estavam vazios.
Devia ir-se embora. Mas para onde?
Os cinzeiros estavam cheios de beatas. Nenhuma meio fumada, nenhuma
apagada à pressa. Em cima das mesas de apoio e do bar, Richard colocara
cópias de algumas das tiras de banda desenhada de Nico, mas agora elas
estavam espalhadas – provavelmente mais um resultado da festa do que do
fim da mesma – e Yale apanhou uma do chão. Uma drag queen chamada
Martina Luther Kink. Uma piada idiota sobre ter um sonho.
Percorreu todas as divisões no rés do chão, abriu todas as portas –
despensa, roupeiro, armário do aspirador –, até encontrar uma rajada de ar
frio e degraus de cimento. Acendeu o interruptor e desceu. Máquinas de
roupa, caixotes, duas bicicletas enferrujadas.
Voltou a subir e, desta vez, foi ao segundo piso – um escritório, uma
pequena sala com pesos e equipamento de exercício, uma arrumação – e,
depois, desceu para o primeiro outra vez e abriu tudo. Cómodas de mogno
trabalhadas, camas de dossel. Um quarto principal, todo em verde e branco.
Se era trabalho da ex-mulher, não era nada mau. Uma gravura de Diane
Arbus na parede, aquela do rapaz com a granada.
Ao lado da cama de Richard havia um telefone e Yale pegou-lhe com
alívio. Ouviu o sinal de linha – reconfortante – e, devagar, marcou o seu
próprio número. Ninguém atendeu.
Precisava de ouvir uma voz, qualquer voz humana, por isso quando ouviu
de novo o sinal ligou para as Informações.
– Nome e cidade, por favor – disse a mulher.
– Estou? – Queria ter a certeza de que não era uma gravação.
– Fala das Informações. Sabe o nome da pessoa que pretende contactar?
– Sim, é... Marcus. Nico Marcus, em North Clark Street, Chicago. –
Soletrou os nomes.
– Tenho um N. Marcus em North Clark Street. Deseja que estabeleça
ligação?
– Não... não, obrigado.
– Aguarde para ouvir o número.
Yale desligou.
Deu novamente uma volta à casa e, por fim, dirigiu-se à porta e gritou,
para ninguém:
– Vou-me embora! Adeus!
E saiu para a escuridão da rua.
1 A área de Chicago conhecida como Boystown (à letra, «cidade dos
rapazes») foi a primeira «aldeia» gay oficialmente reconhecida nos
Estados Unidos. (N. da T.)
2015
inham começado a sobrevoar o Atlântico quando o tipo sentado à janela
T acordou, sobressaltado. Vinha a dormir desde o Aeroporto de O’Hare e
Fiona tentara distrair-se a admirá-lo com luxúria. Tinha a revista da
companhia aérea aberta no colo há uma hora, mas tudo o que fizera fora
enrolar e desenrolar o cantinho da página das palavras cruzadas. O homem
tinha o corpo de um alpinista e roupas, cabelo e barba (desleixadas as três
coisas, o cabelo encaracolado e comprido, os calções manchados de tinta
azul) a condizer. Dormia com a testa encostada ao encosto do assento da
frente e quando se endireitou e olhou em volta, aturdido, Fiona apercebeu-
se de que ainda não lhe tinha visto a cara. Inventara uma cara para ele,
portanto esta – embora atraente e rude – parecia errada. Já tinha percebido,
pelos músculos das pernas nuas, pela grossura dos braços, que era
demasiado novo para ela. Trinta e poucos anos.
O homem pegou na mochila que tinha entre os pés e remexeu no
conteúdo. Estava sentado à janela, Fiona na coxia. Ele palpou os bolsos, o
banco à sua volta. Revirou de novo a mochila, tirando coisas para fora:
meias enroladas, um saco de plástico com pasta de dentes e elixir, um
pequeno caderno. Virou-se para Fiona e disse:
– Olá. Paguei uma bebida?
Fiona não sabia se tinha percebido bem. Ele podia estar a oferecer-se para
lhe pagar um cocktail, mas o seu tom de voz era urgente, não sedutor.
– Desculpe?
– Comprei alguma bebida? Neste voo? – As palavras saíram-lhe
ligeiramente arrastadas.
– Oh. Não, tem vindo sempre a dormir.
– Foda-se – disse ele, e inclinou tanto a cabeça para trás que a maçã de
Adão ficou a apontar para o teto.
– Passa-se alguma coisa?
– Deixei a carteira no bar. – Disse-o num murmúrio, como se falar em
voz alta conferisse realidade às palavras. – No aeroporto.
– A carteira toda?
– Uma carteira grande, de cabedal. Não a viu, pois não? – Espreitou,
subitamente inspirado, para a bolsa nas costas do assento à sua frente,
depois para a do assento em frente de Fiona. – Merda. Pelo menos tenho o
passaporte, mas merda.
Fiona estava horrorizada por ele. Era o tipo de coisa que ela própria
poderia ter feito, nos seus tempos de loucura. Deixar a mala numa discoteca
qualquer, dar por si no lado errado da cidade sem forma de voltar para casa.
– Quer que chame a hospedeira?
– Não, ela não pode fazer nada. – Abanou a cabeça, desconcertado, com
os caracóis a baterem na barba. Soltou uma risada amarga. – Merda de
alcoolismo. Foda-se. Merda.
Fiona não percebeu se ele estava a brincar. Que alcoólico falava sobre o
problema com tamanha naturalidade? Por outro lado, porque havia de o
dizer, se não fosse verdade?
– Tem amigos em Paris que o possam ajudar? – perguntou.
– Ia ficar em casa de uma pessoa durante o fim de semana. Não me
parece que ela esteja disposta a aturar-me muito mais do que isso.
E, de súbito, Fiona compreendeu: era um golpe. Era a história triste de
um burlão. Queria que ela olhasse para ele com preocupação maternal, que
lhe desse cem dólares e dissesse «talvez isto possa ajudar». Se ela fosse
mais nova, ainda a tentaria também seduzir.
– Que pesadelo – disse, com expressão compreensiva, e virou a página da
revista. Podia ter dito: Tenho problemas maiores do que tu, amigo. Podia ter
dito: Há coisas piores de se perderem.
Quando as luzes da cabina se apagaram, Fiona virou-se para a coxia e
encostou a cabeça à almofada fina.
Seria incapaz de dormir, mas sabia bem pôr-se confortável. Tinha um
milhão de decisões para tomar em Paris e aquela última semana fora um
frenesim de planeamento e pânico, mas durante as próximas oito horas,
misericordiosamente, não podia fazer absolutamente nada. Estar num avião,
mesmo em classe turística, era o máximo que um adulto conseguia
aproximar-se da esplêndida impotência da infância. Fiona sempre sentira
uns ciúmes irracionais quando Claire adoecia. Levava-lhe livros e lenços de
papel e gelatinas e contava-lhe histórias, com vontade de trocar de lugar
com ela. Em parte, para poupar a filha ao sofrimento da doença, mas
também para sentir alguém a cuidar de si. Eram as únicas ocasiões em que
Claire aceitava os cuidados de Fiona, as únicas alturas em que se enroscava
ao colo dela para dormir – o corpo a emanar o calor da febre, o cabelo
macio em volta da testa e do pescoço colado pelo suor em caracóis
achatados. Fiona acariciava-lhe a orelhinha quente, a perna a escaldar.
Depois de crescer, já não era o mesmo – queria ficar sozinha com o livro ou
o computador –, mas ainda deixava Fiona trazer-lhe sopa, deixava-a sentar-
se na beira da cama por um minuto. E isso já era qualquer coisa.

Dormitou um pouco, mas, com a mudança horária e as luzes da cabina


apagadas e o facto de estarem a voar contra o Sol, não sabia se tinha
passado meia hora ou cinco horas. O seu vizinho ressonava, com a cabeça
caída sobre o ombro.
O avião deu um solavanco e a hospedeira percorreu a coxia e tocou nos
compartimentos de bagagem com as pontas dos dedos. Tudo bem fechado.
Fiona queria viver no avião para sempre.
O vizinho só acordou quando começaram a servir o pequeno-almoço.
Pediu um café, com ar infeliz.
– O que eu quero – disse a Fiona – é um uísque.
Ela não se ofereceu para lhe pagar um. Ele subiu a cortina da janela.
Ainda estava escuro.
– Não gosto destes aviões – disse ele. – Os 767.
Fiona decidiu morder o isco.
– Porquê?
– Bom, noutra vida, cheguei a pilotá-los. Uma das minhas muitas vidas.
Não gosto do ângulo do trem de aterragem.
Seria outra parte do golpe? O princípio da história de azar, de como
perdera o emprego e, se calhar, a mulher também? Não parecia velho o
suficiente para ter vidas anteriores, pelo menos uma vida anterior
suficientemente longa para ser piloto de aviões desta dimensão. Não eram
precisos anos de experiência?
– Não é seguro? – perguntou.
– Sabe, é tudo perfeitamente seguro e perfeitamente inseguro. Estamos a
voar pelo ar, não é? O que é que espera?
Parecia sóbrio o bastante para não vomitar no colo dela e também para
não tentar pôr lá a mão. Apenas um pouco irritado. Apesar de saber que não
devia, continuou a falar com ele. Sempre era qualquer coisa para fazer. E
estava curiosa por ver o que ele diria a seguir, como é que o golpe se ia
desenrolar.
Ele contou-lhe que costumava pôr nome a todos os aviões que pilotava, e
ela disse-lhe que a filha costumava pôr nome a tudo – escovas de dentes,
bonecos de lego, as estalactites individuais do lado de fora da janela do
quarto.
– Que loucura – disse ele, o que parecia ser um comentário insuficiente.
Na pista, perguntou-lhe se já tinha estado em Paris.
– Só uma vez – respondeu ela. – Por altura do liceu.
Ele riu-se.
– Então desta vez vai ser diferente.
Fiona não se lembrava de muita coisa dessa outra viagem, exceto dos
restantes membros do Clube de Francês e do rapaz que tinha esperanças de
beijar e que, em vez disso, acabara por ser apanhado na cama com Susanna
Marx. Lembrava-se de fumar erva e de não comer mais nada a não ser
croissants. De enviar postais a Nico, que só chegariam depois de ela já estar
em casa. De esperar nas filas do Louvre e da Torre Eiffel, de sentir que
devia ter uma reação mais profunda. Só decidira aprender francês para se
rebelar contra a mãe, que achava que ela devia saber espanhol.
Fiona perguntou-lhe se ele já lá tinha estado e depois acrescentou:
– Bom, se era piloto... – Tinha-se esquecido disso porque não acreditava
nele.
– É a segunda melhor cidade do mundo – disse ele.
– Qual é a primeira?
– Chicago – respondeu, como se fosse óbvio. – Os Cubs não jogam em
Paris. Vai ficar na Margem Esquerda ou Direita?
– Oh... entre as duas, acho eu. O meu amigo tem casa na Île Saint-Louis.
– Agradava-lhe que isso fizesse a viagem parecer glamorosa e não
desesperada.
O homem assobiou.
– Rico amigo.
Talvez não devesse tê-lo dito, não devia dar a entender que tinha dinheiro,
que era um bom alvo de burla. Mas, como esta versão da história era tão
agradável e confortável, continuou.
– Na verdade, ele é... já ouviu falar do fotógrafo Richard Campo?
– Sim, claro. – Olhou para ela e ficou à espera do resto. – Espere, é ele o
seu amigo?
Ela assentiu.
– Conhecemo-nos há muitos anos.
– Bolas! – exclamou ele. – Está a falar a sério? Sou um grande fã de arte.
Estou sempre a confundi-lo com o Richard Avedon, mas foi o Campo que
tirou aquelas fotografias do leito de morte, não foi?
– Esse mesmo. Um trabalho mais cru que o do Avedon.
– Não sabia que ele ainda era vivo. Uau. Uau!
– Não lhe direi que fez esse comentário. – Na verdade, Fiona não fazia
ideia de como estaria Richard. Ainda trabalhava, com oitenta anos, e
quando passara por Chicago alguns anos antes, para a exposição no museu
de arte contemporânea, parecera-lhe curvado mas enérgico, e fartara-se de
falar sobre o assessor de imprensa francês de vinte e nove anos que, pelos
vistos, era o amor da sua vida.
Esperaram muito tempo para chegar à porta de desembarque. Ele
perguntou-lhe se tencionava visitar os museus com Richard Campo e Fiona
disse-lhe que vinha visitar a filha. Era verdade, no sentido mais otimista.
– E a filha dela – acrescentou. – A minha neta.
Ele riu-se e, depois, percebeu que era a sério.
– Oh, não parece nada...
– Obrigada – interrompeu ela.
Para seu alívio, a luz do cinto de segurança apagou-se. Não havia tempo
para perguntas para as quais não tinha respostas. (Que bairro? Quantos anos
tem a pequena? Como é que se chama?)
Esperou por ter espaço para se levantar.
– Talvez a sua carteira esteja na mala, não? – Apontou para os
compartimentos de bagagem.
– Só tenho uma mala de porão.
Entretanto, Fiona acreditava um pouco mais nele, mas não o suficiente
para lhe oferecer dinheiro.
– Posso partilhar um táxi consigo, se achar que isso ajuda.
Ele sorriu, e os seus dentes eram bonitos. Direitos e bonitos.
– Meio de transporte é a única coisa que tenho.
Finalmente havia espaço e Fiona levantou-se, com os joelhos a estalar.
– Boa sorte – disse. E, embora ele não imaginasse o quanto ela precisava
disso, desejou-lhe o mesmo:
– Para si também.
Tirou a mala de cabina do compartimento superior. Do outro lado das
janelas redondas, o Sol cor-de-rosa começava a erguer-se no céu.
1985
liviado, Yale viu passar um carro. Alguém destrancou a porta da casa do
A outro lado da rua.
Se andasse depressa, demoraria apenas meia hora a chegar a casa – mas
caminhou o mais devagar que conseguia. Não queria entrar num
apartamento vazio ou – pior ainda – encontrar Charlie já em casa, pronto
para lhe contar o acontecimento horrível que fizera toda a gente sair de casa
de Richard. Um telefonema urgente, outra morte. Talvez tivessem ligado o
televisor e visto notícias da Rússia, algo tão alarmante que os fizera correr
para casa para se prepararem.
Virou para Halsted Street: um caminho longo e reto até à sua própria
cama. Olhou para as montras, parou nos semáforos vermelhos mesmo
quando podia ter atravessado. Deixou passar as outras pessoas. Meio à
espera de que o grupo aparecesse atrás dele, que lhe dissessem que tinham
ido correr os bares e perguntassem onde é que se tinha metido.
Caminhou muito mais do que era preciso, para além da esquina do seu
prédio. Espreitou para todos os bares por onde passou – abrindo a porta
quando as janelas eram espelhadas ou estavam pintadas de preto – à procura
de Charlie, de Fiona, de alguém.
Numa entrada escura, viu um homem encostado a uma máquina de
tabaco, com a mão enfiada nas calças.
– Eh – chamou o tipo. Estava bêbedo, a voz entaramelada. – Olá, jeitoso.
Tenho aqui uma coisa para ti.
No bar seguinte, quase vazio, o televisor na parede estava, por algum
motivo, a dar o 60 Minutes em vez de pornografia ou vídeos musicais. Viu
o relógio gigante do genérico, com o ponteiro dos segundos a andar. Pelo
menos não havia nenhuma guerra nuclear, nenhuma notícia de última hora.
Yale tinha as pernas cansadas e era tarde. Quando chegou à esquadra da
polícia, parou e voltou para trás pelo outro lado da rua, novamente até à
esquina com a Briar Street. Virou e olhou para cima, à procura de luzes no
último andar do prédio. Tudo escuro.
Não entrou.
Percorreu lentamente um quarteirão e meio para leste, até à pequena casa
azul com portadas pretas nas janelas e a porta preta e reluzente. Quase todas
as casas nesta rua eram tão grandes como a antiga mansão estruturalmente
insegura onde ficava o apartamento de Yale e Charlie, mas Yale sempre
adorara esta casinha ensanduichada entre gigantes de pedra. Era compacta e
simples e era por isso que, desde que vira o cartaz de «vende-se» à frente,
não lhe saía da cabeça a possibilidade remota de ele e Charlie a poderem
comprar. Quem é que comprava casas, por amor de Deus? Mas talvez eles
conseguissem. Possuir um pedacinho da cidade, ter algo de seu, de onde
ninguém os poderia expulsar sob um pretexto qualquer – seria especial.
Talvez dessem início a uma tendência! Se Charlie o fizesse, outros tipos
com dinheiro para isso lhe seguiriam o exemplo.
Olhou para trás. Não havia sinais de Charlie nem do grupo de convivas
embriagados. Este era um sítio tão bom como outro qualquer para esperar
por ele. Melhor do que o apartamento vazio. Aproximou-se mais do cartaz,
para não parecer um tarado.
Podiam dar festas; as pessoas juntar-se-iam no alpendre a fumar e a
conversar, iriam à cozinha buscar mais cerveja, que trariam cá para fora, e
sentar-se-iam num grande baloiço de madeira.
De súbito, queria gritar por Charlie, gritar tão alto que todos o ouviriam
na cidade. Fez força com o pé no pavimento e respirou pelo nariz. Olhou
para a casa bonita.
Podia decorar o número de telefone do agente imobiliário – os últimos
três algarismos eram 2 – e ligar-lhe esta semana. E, assim, esta não seria
apenas a noite da vigília de Nico, a noite em que Yale se sentira tão
assustadoramente só; seria a noite em que encontrara o seu lar.
Estava a ficar com frio. Voltou a subir a Briar e foi para casa. Encontrou
tudo escuro e silencioso, mas, mesmo assim, espreitou para o quarto. A
cama estava vazia, o edredão azul ainda amarrotado do lado de Charlie.
Escreveu o número do agente imobiliário, antes que o esquecesse.
Eram sete da tarde, o que explicava o ronco no estômago. Devia-se ter
enchido de canapés, antes de sair.
E, de súbito, ocorreu-lhe outra teoria: intoxicação alimentar. Ele próprio
se sentira um pouco agoniado. Os outros podiam ter sido mais afetados, o
que os fizera sair à pressa para o hospital. Era a primeira história razoável
de que se lembrava. Deu graças por não ter aceitado um ovo verde quando
ele lhe fora oferecido.
Fez uma sanduíche dupla de queijo – três fatias de provolone e três de
cheddar, mostarda, alface, cebola, tomate, pão de centeio – e sentou-se no
sofá a comer. Era uma versão melhorada das sanduíches de que se
alimentava no Michigan, no bar da universidade, onde os
acompanhamentos dos hambúrgueres – incluindo o queijo – eram de graça.
Enfiava duas fatias de pão na mochila, de manhã, e recheava-as ao meio-
dia.
Ligou para a mãe de Charlie. Teresa era de Londres – o leve sotaque
britânico de Charlie, nela, era ampliado em algo magnífico – mas vivia
agora em San Diego, onde bebia chardonnay e namorava com surfistas
envelhecidos.
– Como estás? – disse ela, ao atender. Pelo tom ligeiro, pela surpresa na
voz, percebeu que Charlie não lhe tinha ligado esta noite do hospital nem de
uma cela de prisão.
– Bem, bem. O emprego novo é perfeito. – Não era invulgar Yale ligar
para Teresa, independentemente de Charlie. Ela era, e sabia-o bem, a única
mãe que ele tinha, em qualquer sentido da palavra. A sua mãe verdadeira
era uma ex-atriz infantil que tentara adaptar-se à vida numa cidadezinha no
Michigan, e que fugira de casa quando Yale tinha três anos para regressar às
luzes da ribalta. Ele crescera a vê-la às escondidas em telenovelas, primeiro
em The Guiding Light, depois em The Young and the Restless, na qual ainda
fazia raras participações. Ao que parecia, a personagem dela era agora
demasiado velha para fazer parte do enredo principal, mas o filho da
personagem, que na verdade era ligeiramente parecido com Yale, ainda era
uma das personagens mais importantes; assim, ela aparecia para chorar um
bocadinho, sempre que o filho era raptado ou tinha cancro.
Yale estivera com a mãe exatamente cinco vezes desde que ela saíra de
casa, sempre em ocasiões em que ela passava pela cidade com presentes
atrasados dos aniversários e festas a que faltara. Era muito parecida com as
suas personagens das telenovelas: distante e afetada. A última visita fora no
décimo quarto aniversário de Yale. Levara-o a almoçar e insistira para que
ele aceitasse um batido de gelado como sobremesa. Yale estava cheio, mas
ela foi tão veemente, que ele acabou por ceder e, depois, passou semanas a
pensar se a mãe o teria achado demasiado magro ou se seria realmente
importante para ela dar um doce ao filho, algo que o deixasse feliz. Não o
deixara feliz e Yale ainda não conseguia ver um batido de gelado sem ver
também as unhas pintadas de vermelho da mãe a tamborilarem
ansiosamente na mesa, a única parte do seu corpo que não estava totalmente
sob controlo.
– Vai ser tão interessante – dissera-lhe ela nesse dia – ver aquilo em que
te vais tornar.
Quando Yale fez vinte anos, ela mandou-lhe um cheque de três mil
dólares. Nada quando fez trinta. Teresa, por seu lado, apanhara um avião e
levara-o ao Le Français, um estabelecimento que estava bem acima das suas
posses. Teresa enviava-lhe recortes de revistas, artigos sobre arte ou natação
ou asma ou os Cubs ou qualquer outra coisa que a lembrasse de Yale.
– Conta-me tudo – pedia ela agora. – Andas a dar graxa aos ricos, não é?
– Em parte. Estamos a tentar aumentar a coleção.
– Sabes que tens um dom para o charme. Não estou a chamar-te melífluo,
atenção! És encantador como um cachorrinho.
Ele riu-se.
– Ó Yale, tens de aprender a aceitar um elogio.
Conseguiu mantê-la ao telefone durante vinte minutos com conversa
sobre a galeria, os doadores, a universidade. Ela contou-lhe que andavam
coelhos a comer-lhe as alfaces, ou alguém andava a comer-lhe as alfaces, e
parecia coisa de coelhos, não parecia? Yale passou o pano do pó sobre o
televisor, as molduras, o antigo espelho de barbear que tinha na estante, a
caixa de madeira onde Charlie guardava a sua coleção de berlindes da
infância.
– Este telefonema deve estar a custar-te uma fortuna! – disse ela, por fim.
– O Charlie está aí?
– Saiu – respondeu Yale, no tom mais alegre que conseguiu.
– Bom, diz-lhe que a velha mãe dele tinha dois filhos da última vez que
verificou e que há semanas que não fala com o que lhe saiu da barriga.
– Gostamos muito de si, Teresa – disse ele.

Era literalmente meio da noite. Yale percebeu-o sem precisar de se virar


para o relógio, quando ouviu a porta e depois o frigorífico, quando viu a luz
do corredor acender-se através das pálpebras fechadas.
– Charlie?
Não obteve resposta, por isso sentou-se e pôs os pés no chão. E ali estava
a silhueta de Charlie, encostado à ombreira da porta. Bêbedo.
Se estivesse mais acordado, Yale talvez tivesse gritado, mas mal
conseguia falar.
– Que raio aconteceu?
– Podia perguntar o mesmo.
– Não, não podias. Não podias nada. Eu... subi por cinco minutos. Que
horas são? – Pegou no despertador e virou os números vermelhos para si:
03:52. – O que é que te aconteceu?
– Saí, depois.
– Depois do quê?
– Do assalto.
– Do... a polícia apareceu? – Fora a primeira coisa que lhe passara pela
cabeça, mas pusera rapidamente de lado essa possibilidade.
– O quê? Não. Depois de irmos a casa do Nico.
Yale olhou em volta para se certificar de que estava acordado.
– Ouve – disse Charlie –, não sei quando é que desapareceste, mas,
quando decidimos ir à casa do Nico, já ninguém sabia de ti. Espero que te
tenhas divertido imenso. Espero que tenha sido esplêndido.
– Foram a casa do Nico – repetiu Yale, estupidamente.
– Assaltámos o apartamento dele.
– Oh!
– Fomos... Sabes que os pais dele não iam deixar o Terrence voltar a
entrar lá. Mas o Terrence tinha uma chave e estava... já tinhas saído, nessa
altura? – Charlie ainda não se mexera. Parecia fazer um grande esforço por
dizer cada frase, até por soletrar as consoantes. – Ele tinha a chave e
mostrou-a ao Richard e o Richard disse que devíamos lá ir imediatamente.
E fomos. E a Fiona vai arranjar maneira de nos encobrir. E trouxemos as
coisas dele. Olha. – Começou a desenrolar qualquer coisa do pescoço. Com
a luz por trás, Yale só conseguia ver que era algo comprido.
– É o cachecol do Nico? – Estava a tentar encaixar as peças. Aceitar que
toda a gente tinha abandonado as bebidas ao mesmo tempo e ido a pé até a
Clark Street para partilhar entre si as coisas de Nico. Que tinham pilhado,
no melhor dos sentidos. E ele não estivera lá.
Nico usava aquele cachecol cor de laranja às riscas para todo o lado. Era
como toda a gente o reconhecia no inverno, do outro lado da rua.
– E os empregados? Os rapazes da comida?
– Imagino que tenham ido para casa. Simplesmente mudámos a festa de
sítio. Mas tu já estavas a fazer sabe Deus o quê.
– Charlie, eu estava deitado. Deitei-me cinco minutos, lá em cima. –
Talvez tivesse sido meia hora, mas não era basicamente a mesma coisa?
– Eu sei onde estavas. Foi um grande tema de conversa.
– E ninguém me foi chamar?
– Não quisemos interromper. – Charlie parecia furioso, fora de si, quase a
perder o controlo.
– Interromper-me? Estava deitado, maldisposto.
– Toda a gente te viu subir com o Teddy.
– Com o Teddy? – Teve vontade de rir mas conteve-se. Pareceria uma
atitude defensiva. – O Teddy saiu. Saiu porta fora assim que começaram a
passar os slides.
Charlie não disse nada. Podia estar a processar a informação ou podia
estar a conter o vómito.
– Mesmo que ele tivesse ficado – continuou Yale –, que raio achas que eu
estaria a fazer com ele? Ouve. Fui lá para cima porque precisava de estar
sozinho.
– Eu vi-o – disse Charlie, em tom lento e inseguro. – Eu vi-o. Vi-o
enquanto passavam os slides.
– Estás a falar da fotografia? Do Teddy vestido de Cher? Charlie, senta-
te. – Ele não se sentou. – Escuta: estava um bocado maldisposto, deitei-me
e voltei para baixo cinco ou dez minutos depois. Quinze, no máximo. E
pensei... nem sei o que pensei. Tinham desaparecido todos e só lá estava eu.
Foi o momento mais estranho da minha vida. E ainda não percebo porque é
que estás a chegar a casa dez horas depois.
– Eu... fomos sair a seguir. – Estranhamente, Charlie parecia desapontado,
como se tivesse vindo a fermentar tanta raiva contra Yale por estar com
Teddy, que agora não sabia que lhe fazer. – A Fiona disse que estavas com o
Teddy.
– A Fiona é o «toda a gente» de quem estavas a falar?
– Basicamente.
– A Fiona estava podre de bêbeda. E, céus, tem andado de rastos.
– Tinham desaparecido os dois. Desapareceram os dois ao mesmo tempo.
– E ela viu-nos fazer o quê? Viu-me levá-lo ao colo para cima como se
fosse uma noiva?
– Não, ela só... perguntei onde tu estavas e ela disse que estavas lá em
cima. E eu disse «O que foi ele fazer lá acima?» e ela disse «Acho que o
Teddy também lá está». – Fez uma pausa, como se desse conta do ridículo
daquilo.
– Está bem.
– Mas disse-o várias vezes.
– Bom, estava bêbeda.
– Dorme – disse Charlie. – Eu já vou para a cama.

Yale não esperava voltar a adormecer, mas quando se virou novamente


eram seis da manhã e Charlie estava enroscado numa bola a seu lado. Na
mesa de cabeceira, tinha dois copos de água e um frasco de aspirina, ao
lado dos frascos habituais de vitamina B e ginseng; Charlie sabia que ia
acordar ressacado. Era uma cena que Yale dispensaria bem em qualquer
outro dia, mas especialmente hoje. Pelo menos Charlie tinha fechado o
jornal mais cedo nessa semana, para poderem ir todos à festa. Os
entregadores iam distribuí-lo hoje, enquanto os funcionários dormiam ou
estavam debruçados sobre a sanita.
Viu as costelas de Charlie subir e descer através da pele pálida. Tinha os
ombros, o rosto e os braços salpicados de sardas claras, mas o peito era
como mármore polido. Charlie era macio, como se a sua pele nunca tivesse
estado exposta ao ar e, quando se via um osso – um joelho, um cotovelo,
uma costela –, parecia um objeto estranho por trás de um pedaço de seda.
Yale tomou duche e vestiu-se tão silenciosamente quanto conseguiu. Não
queria pequeno-almoço.
O cachecol cor de laranja de Nico estava no chão, juntamente com as
roupas de Charlie. E em cima da bancada da cozinha, num saco de compras,
havia outras coisas: uma garrafa de vodca meio vazia, os Top-Siders azuis
de Nico, um postal de Vancouver sem nada escrito, botões de punho de
estanho numa caixa aveludada, o livro Folhas de Erva. Yale gostaria de ter
estado lá. Não propriamente para trazer alguma recordação, mas só para
tocar em tudo, para pensar em Nico, para descobrir coisas sobre ele que
desconhecia. Se ficasse a saber coisas novas sobre alguém que já cá não
estava, essa pessoa não desaparecia. Pelo contrário, tornava-se maior, mais
real. Os Top-Siders nunca serviriam nos pés enormes de Charlie; deviam ser
para Yale. Era típico de Charlie: mesmo furioso, mesmo pensando que Yale
estava enrolado com outro, trouxera-lhe um presente.
Yale descalçou-se e experimentou os mocassins de Nico. Ficavam justos,
os dedos dos seus pés empurravam os pontos e a pele à frente, mas
agradava-lhe assim, sentir os pés apertados por Nico. Não ficavam bem
com as calças de caqui, mas também não ficavam mal.
Apanhou o El2, de Belmont até Evanston, e encostou a cabeça à janela. O
que fora em tempos o centro de um redemoinho de cabelo estava a
transformar-se numa pequena zona calva – era injusto! Tinha apenas trinta e
um anos! –, felizmente disfarçada pelos caracóis à volta. Se encontrasse o
ângulo certo, o frio do vidro penetrava-lhe no couro cabeludo e refrescava-
lhe todo o corpo. Na véspera estivera calor demais para usar casaco; hoje
seria impossível andar sem ele. Mesmo assim, o ar fresco sabia-lhe bem, era
revigorante. E a caminhada ao frio, da estação à galeria, também foi
agradável. Pouco passava das sete da manhã e na rua só se viam pessoas a
fazer jogging.
A Brigg ocupava o piso térreo do que fora em tempos um pequeno
edifício de salas de aulas, com a galeria propriamente dita a funcionar num
corredor modificado. O aquecimento era temperamental e as vozes
passavam as paredes, mas as instalações tinham personalidade. De
momento, só tinham espaço para pequenas exposições, e a esperança era
que o local se tornasse demasiado pequeno nos próximos anos e que (era
aqui que entrava Yale) tivessem dinheiro para se expandir. Parte do seu
trabalho tinha a ver com angariação de fundos, e outra parte era dar graxa
ao presidente e ao conselho de administração da universidade.
O gabinete de Yale não era grande e as estantes escuras nas quatro
paredes ainda o tornavam mais pequeno, mas ele adorava-o. Tinha trazido
livros de casa, uma caixa de cada vez, mas a maioria das prateleiras
continuava vazia. Ou melhor, estavam cheias de pó e canecas velhas. Fora-
lhe prometido um aluno como estagiário no trimestre seguinte e imaginava-
se a pedir a esse jovem diligente que enchesse as prateleiras com catálogos
de leilões, que esquadrinhasse os alfarrabistas em busca de livros de arte
decentes.
O seu projeto secundário para esta semana era organizar o Rolodex, e foi
o que tentou começar a fazer: cartões rosa para colegas, azuis para antigos
doadores, verdes para potenciais doadores, amarelos para colecionadores,
brancos para outros contactos. Introduziu cuidadosamente cada cartão na
máquina de escrever e copiou as moradas. Porém, uma tarefa que julgara
mecânica acabou por se revelar complexa e frustrante. Os arquivos que
herdara quase não tinham datas, e nem sempre conseguia perceber qual de
duas moradas era a atual. Depois de escrever quatro números de telefone
num cartão, parou e ocorreu-lhe que devia simplesmente tentar ligar e
apresentar-se. Mas ainda era demasiado cedo, por isso pôs o cartão de lado.
Às nove, começou a ouvir passos e sentiu o cheiro de café. Às nove e
meia, Bill Lindsey bateu à porta de Yale com os nós dos dedos. Bill, o
diretor da galeria, tinha orelhas compridas e olhos húmidos e inquietos. Um
académico da velha guarda, com gravata de laço e reforços nos cotovelos.
Yale tinha bastante certeza de que ele estava no armário e nunca de lá
sairia.
– Deus ajuda... – disse Bill.
– Desculpe?
– Chegou cedo.
– Oh! Queria que o fim de semana acabasse.
– Conhece... – Bill entrou e baixou a voz. – Alguma vez falou com a
Cecily Pearce?
– Várias vezes.
Era uma pergunta ridícula. Cecily era a diretora de Doações Planeadas da
universidade – um cargo ao mesmo tempo paralelo e infinitamente mais
vasto do que o de Yale.
– Ligou na sexta-feira, já depois de você ter saído. Acho que vai passar
por cá. O meu conselho em relação à Cecily é este: se discordar dela, não
lho diga. Faça uma pergunta. Por exemplo: «Não tem receio de que isso
resulte em tal e tal?» Digo-lhe isto porque não sei o motivo da vinda dela.
Está sempre a ter ideias grandiosas.
– Obrigado pela dica.
Bill olhou em volta.
– Se fosse a si, não... hum. Não tem fotografias pessoais, pois não?
– O quê, do Charlie? Claro que não. – Que raio estaria Bill a imaginar,
um retrato de estúdio da Sears? Yale tentou mostrar um sorriso neutro.
– Ótimo. É só porque... ela é boa pessoa, não estou a tentar sugerir o
contrário. Mas nunca sei o que a aborrece. É dura de roer.

Ao meio-dia, precisamente quando Yale pensava em sair para almoçar,


Cecily Pearce apareceu à porta com Bill. Cecily tinha um penteado à
princesa Diana, suave e volumoso. Era bastante mais velha do que Diana,
certamente mais de quarenta anos – mas, com algumas pérolas e uma tiara,
seria uma sósia convincente. No entanto, havia de facto algo de
aterrorizador nela. Talvez tivesse a ver com a forma como inspecionava os
outros com olhar seco, como a diretora de uma escola à procura de
violações do código de indumentária.
– Senhor Tishman – disse, e avançou para a secretária dele de mão
estendida. – Espero que esteja livre amanhã. – O tom de voz era
extremamente seco.
– Devo estar. A que horas?
– O dia inteiro. Possivelmente a noite toda também. – Sem sinais de
embaraço aparentes. Ou não se apercebera do que tinha dito ou achava já
ter tirado as medidas a Yale. Atrás dela, à porta, Bill inclinou a cabeça,
divertido. – Eu trago carro – disse ela –, a menos que o senhor tenha carro.
Tem?
– Não, eu...
– Mas conduz?
– Tenho carta de condução.
– Saímos por volta das nove.
Yale não sabia se podia sequer perguntar onde iam.
– Alguma indicação de vestuário? – perguntou.
– Roupa quente, suponho. Ela está em Door County.
Yale conhecia Door County, o pedacinho do Wisconsin que penetrava
pelo lago Michigan. Tinha ideia de ser um sítio onde famílias em férias iam
apanhar fruta.
– Vamos visitar uma doadora? – perguntou.
– É uma situação urgente, caso contrário não lhe diria tão em cima da
hora. – Tirou uma pasta de baixo do braço e estendeu-lha. – Não faço ideia
se a arte é boa ou não. É evidente que ela tem dinheiro, pelo menos. Mas
pediu para falar consigo especificamente. Podemos discutir a estratégia de
abordagem amanhã. É uma viagem de quatro horas e meia.
Yale abriu a pasta depois de ela sair, depois de Bill Lindsey lhe lançar um
olhar de comiseração e a acompanhar à porta. A primeira folha era a
fotocópia de uma carta manuscrita, datada de setembro, escrita em
caligrafia inclinada e culta. «Caro senhor Tishman», começava. Então,
Cecily guardara durante dois meses uma carta pessoalmente dirigida a ele.
A data era posterior à data em que Yale fora contratado, mas anterior ao dia
em que começara efetivamente a trabalhar. Teria sido Bill que lha
entregara? E agora atirava-lhe com isto em cima, com um dia de
antecedência. Tinha de contar a Charlie quando chegasse a casa. Uma
indignação justificada era a forma ideal de quebrar o gelo entre eles. A carta
continuava:

O meu marido era o Dr. David Lerner, da classe de 1912 da


Northwestern. Faleceu em 1963, depois de prestar serviço militar,
tirar o curso de Medicina na Johns Hopkins e fazer carreira na área
da oncologia. Ele falava com afeto dos seus dias como membro dos
Wildcats e sempre disse que gostava de poder fazer algo pela escola.
Tive isso bem presente quando planeei a distribuição dos meus bens.
A minha sobrinha-neta, Fiona Marcus, encorajou-me a contactá-lo, e
espero que esta carta o encontre bem de saúde. Segundo sei, a galeria
Brigg está a criar uma coleção permanente.

Então era esta a tia de que Fiona lhe falara na noite da véspera. A
coincidência deixou-o algo abalado: Fiona falar nisso meses depois de a
carta ter sido enviada e vê-la aterrar imediatamente na sua secretária. Iria
Teddy Naples aterrar-lhe também na secretária, conjurado pela mente
embriagada de Fiona?

Sou proprietária de várias peças de arte moderna, na sua maioria


do início da década de 1920. Entre as pinturas, os esboços e os
desenhos incluem-se trabalhos de Modigliani, Soutine, Pascin e
Foujita. Nunca foram expostos e nunca pertenceram a qualquer outra
coleção a não ser a minha; foram obtidos diretamente dos artistas.
Infelizmente, não possuo qualquer documentação das peças, mas
posso atestar pessoalmente a sua autenticidade. No total, tenho cerca
de vinte peças que talvez possam interessar-lhe, bem como alguns
artefactos relacionados com elas.
Devido a problemas de saúde, não posso deslocar-me, mas gostaria
de me encontrar com alguém que possa falar-me sobre o destino que
estas peças teriam. É minha intenção encontrar-lhes um lar onde
sejam expostas, apreciadas e conservadas. Convido-o a visitar-me
aqui no Wisconsin, e espero que possamos acertar uma data para
esse encontro.

Com os melhores cumprimentos,


Nora Marcus Lerner
(Senhora David C. Lerner, Northwestern 1912)

Yale franziu a testa. «Obtidos diretamente dos artistas» era uma


afirmação algo suspeita. Os homens que Nora Lerner mencionava não
eram, na maioria dos casos, artistas que andassem a vender quadros nas
esquinas a turistas americanos. E podia ser um pesadelo logístico. Sem
documentação, sem menção em qualquer catálogo, a galeria podia levar
anos a provar a autenticidade de cada peça. Esta mulher teria de mandar
autenticar tudo antes que as peças pudessem ser avaliadas, para efeitos
fiscais, e tanto podiam vir a revelar-se lixo, como ela podia aperceber-se
melhor do valor daquilo que estava a dar e mudar de ideias. Nos últimos
meses de Yale no Instituto de Arte, um homem prometera doar um Jasper
Johns (uma série de números empilhados numa confusão gloriosa de cores
primárias), mas depois descobrira o valor atual da peça e a filha
convencera-o a deixar-lha em testamento. Yale era da área de
desenvolvimento e não da parte artística, ou pelo menos não devia ser da
parte artística, mas apaixonara-se por aquele quadro. Sabia que não podia
fazer isso. Os criadores de gado nunca davam nome aos seus animais. Por
outro lado, só aceitara aquele emprego pela oportunidade de construir algo
de raiz. Devia ficar entusiasmado.
Uma pequena parte dele, o seu lado mais cobarde, rezou para que
chegassem a Door County e descobrissem que as peças eram falsificações
tão óbvias que a Northwestern poderia recusar a oferta. Era melhor, de certa
forma, do que encontrar um van Gogh plausível, uma porta aberta para um
desgosto. De qualquer modo, tinha de adular a mulher, mesmo que as peças
tivessem sido copiadas de um livro de arte, para não ofender uma possível
doadora.
O resto dos papéis não ajudava em nada a esclarecer o assunto. Eram
cartas, muito mais enfadonhas, a discutir datas para o encontro, e alguém no
gabinete de Cecily compilara informações sobre os Lerner. David Lerner
fora relativamente bem-sucedido e doara várias quantias pouco dignas de
nota à Northwestern ainda em vida, mas nada sugeria que pudesse ter
milhões de dólares em obras de arte. No entanto, nunca se sabia onde as
pessoas arranjavam o dinheiro, ou onde o escondiam. Yale aprendera que o
melhor era não perguntar. E Fiona e Nico não tinham crescido em North
Shore? Era uma zona endinheirada, apesar de Nico e Fiona estarem sempre
nas lonas, apesar de Yale nunca os ter ouvido falar de nenhum parente
milionário.
Ao fundo de uma das páginas, uma nota escrita à mão. «Cecily», dizia,
«vamos envolver as pessoas da Brigg ou ainda não?» A nota tinha duas
semanas. Yale devia ficar indignado, mas compreendia a posição de Cecily.
Ele era novo, a galeria também era relativamente nova, e a senhora podia
ser uma doadora importante. Bom, pelo menos envolvera-o agora. Só que
parte de Yale desejava que não o tivesse feito. Provavelmente era apenas
cansaço, mas tudo o que sentia era aquele temor que se apoderava sempre
dele antes de uma visita ao dentista.

Não sabia em que estado ia encontrar Charlie. Podia dar com ele meigo e
contrito, ou ainda zangado sem razão. Ou Charlie podia ter-se atirado ao
trabalho para evitar completamente a situação e ainda não ter chegado em
casa.
Porém, antes de abrir a porta, Yale ouviu vozes. Um alívio: muita gente
era bom. Charlie e dois dos seus funcionários, Gloria e Rafael, estavam
sentados à volta da mesinha da sala, a analisar números passados do jornal.
Charlie tinha o hábito de abusar da boa vontade dos empregados,
disfarçadamente, convidando-os para vir a casa dele à segunda-feira,
celebrar, depois de a edição dessa semana estar nas bancas. Dava-lhes
comida e punha-os outra vez a trabalhar, ali no meio da sala. Como editor,
Charlie podia não se envolver muito no jornal, mas participava em todas as
decisões, desde o apoio público dos vereadores à publicidade. Era
proprietário de uma agência de viagens com escritórios em Belmont e
canalizava todos os seus lucros para o Out Loud Chicago, desde que
fundara o jornal, três anos antes. Charlie nem sequer tinha particular
interesse em viajar ou em ajudar os outros a viajar; comprara a agência em
1978 a um amante mais velho com uma paixão assolapada por ele e pronto
a reformar-se. Hoje em dia, Charlie só lá ia uma vez por semana, para se
certificar de que a agência continuava de pé e para se reunir com os poucos
clientes que pediam especificamente a sua atenção. Não tinha qualquer
problema em dar autonomia total aos agentes, mas acreditava que os
redatores e escritores necessitavam de supervisão constante – o que dava
com eles em doidos.
Yale acenou-lhes, foi buscar uma cerveja e desapareceu no quarto, para
fazer a mala. Demorou alguns minutos a reparar na cama. Charlie escrevera
«DESCULPA» do lado de Yale, com M&Ms. Castanhos para o D, amarelos
para o E, e por aí fora. Sorriu e comeu três M&Ms cor de laranja da perna
do P. Os pedidos de desculpas de Charlie eram sempre tangíveis e
elaborados. O máximo que Yale conseguia fazer era deixar um bilhetinho
pouco inspirado.
Yale ponderava que camisola havia de levar quando Gloria o chamou à
sala. Gloria era uma lésbica pequenina, com as orelhas cobertas de brincos
até cima. Estendeu-lhe um exemplar antigo, aberto numa página com filas
de fotografias de homens musculados, cada qual a anunciar um bar ou um
vídeo ou um serviço de acompanhantes.
– Dá uma vista de olhos – disse ela. – Avisa-me quando vires uma
mulher. Ou alguém que não seja um tipo branco, já agora.
Yale não teve sorte na secção de classificados. Numa fotografia de uma
festa de Halloween em Berlim, encontrou duas drag queens.
– Não deve contar – disse.
– Ouve – interrompeu Charlie. Estava irritado. – Os classificados vão
sempre dominar a parte visual, e não podemos pedir a uma sauna que ponha
fotografias de... do quê, da mulher da limpeza?
Rafael disse:
– Sim, mas o Out and Out... – começou, mas fechou abruptamente a
boca.
O Out and Out era novo, fundado por três funcionárias que tinham
deixado o jornal de Charlie o ano anterior, ofendidas porque o Out Loud
Chicago continuava a relegar tudo o que tivesse especificamente a ver com
lésbicas para quatro páginas independentes, no fim. Yale era obrigado a
concordar – parecia regressivo, e os cabeçalhos eram cor-de-rosa –, mas as
lésbicas que tinham ficado com Charlie preferiam o controlo editorial que
ele lhes dava. O jornal novo era impresso em papel barato e não dispunha
de uma grande distribuição, mas, mesmo assim, Charlie resolvera não ficar
parado. A quantidade de fotografias de festas era a mesma, mas agora havia
mais ativismo, editoriais, críticas de cinema e teatro.
– O Out and Out não tem o mesmo problema porque não consegue
vender anúncios nenhuns – disse Charlie.
Yale tirou um punhado de pretzels do pacote aberto em cima da mesa e
Rafael acenou obedientemente. Fora nomeado editor-chefe depois de essas
três funcionárias saírem, mas ainda não aprendera a gritar mais alto do que
Charlie, e teria de o fazer. Era estranho, porque Rafael não era de modo
algum tímido. Era conhecido por ir direto a qualquer um e lhe saltar em
cima, se estivesse suficientemente bêbedo. Começara por fazer as críticas
da vida noturna – era jovem e bonito, com cabelo espetado, e trabalhara
como dançarino –, mas acabara por se revelar um excelente editor e, apesar
da deferência com que tratava Charlie, apesar da redução de pessoal, o
jornal estava melhor do que nunca. E mais moderno.
Yale disse, com a boca cheia:
– Gloria, nunca vejo muitas fotografias dos bares de fufas. Não podes
fazer mais reportagens?
– Não gostamos tanto de posar como vocês! – exclamou ela e, quando
Charlie ergueu as mãos, exasperado, riu-se de si própria.
– Fazemos o seguinte – disse Charlie. – Publicamos um anúncio de
quarto de página para a minha agência e colocamos duas mulheres na
fotografia. A caminharem lado a lado com uma mala na mão, ou algo do
género.
Gloria assentiu, apaziguada. Virou-se para Yale e disse:
– É difícil ficar zangada com ele, sabes?
– A quem o dizes.

Yale conseguiu voltar para o quarto e acabar de fazer a mala. Decidiu


levar os Top-Siders azuis de Nico, para lhe dar sorte. Apanhou os M&Ms
todos e guardou-os no bolso do casaco, para o dia seguinte.
Sentou-se na cama e marcou o número de Fiona. Essencialmente, queria
ver como ela estava, se andava a alimentar-se, se chegara bem a casa.
Preocupava-se com ela. A pobre rapariga não tinha família nenhuma, na
prática. Era amiga de Terrence, mas quando Terrence morresse também...
Yale conseguia imaginar um milhão de desfechos horríveis para a história
dela, drogas e becos escusos e abortos mal feitos e homens violentos.
E queria perguntar-lhe sobre aquela tia-avó, agradecer-lhe por o ter
recomendado. A um nível mais egoísta, queria também levar a conversa
para o sucedido na noite anterior – tentar perceber por que motivo Fiona
dissera aquilo sobre ele e Teddy. No entanto, estava mesmo a ver o que
acontecera. Ela estava bêbada, confusa, arrasada. Não o fizera com malícia.
Ele perdoava-lhe. E, se ela tivesse atendido o telefone, era o que lhe teria
dito. Mas não atendeu.
Estava a fazer palavras cruzadas na cama quando Charlie entrou, a sala de
estar finalmente vazia. Charlie olhou para a mala e não disse nada. Esteve
muito tempo na casa de banho e, quando saiu, disse em tom abatido:
– Vais deixar-me.
Yale endireitou-se e pousou o lápis.
– Por amor de Deus, Charlie.
– O que queres que eu pense?
– Que vou estar uma noite fora. Em trabalho. Por que raio havia de te
deixar?
Charlie esfregou a cabeça e tocou com a ponta do pé na mala, de olhos
baixos.
– Porque eu fui horrível.
– Anda para a cama – disse Yale. Charlie assim fez, estendendo-se em
cima das cobertas. – Não costumavas assustar-te com tanta facilidade.
Quando começaram a andar juntos, a relação fora casual durante alguns
meses. Yale ainda era novo em Chicago e Charlie retirava um prazer
perverso de o chocar com as opções que tinha disponíveis na cidade, as
coisas que nunca vira em Ann Arbor. Levara-o ao The Unicorn – a primeira
vez que Yale estivera numa sauna. Divertira-se a troçar da suscetibilidade
de Yale, da forma como cruzava os braços sobre o estômago, das suas
perguntas sobre a legalidade do empreendimento. Tinham acabado por se
envolver apenas um com o outro a um canto, sob as luzes vermelhas e
fracas, antes de se retirarem para a privacidade da casa de Charlie. De outra
vez, Charlie levara-o ao Bistro e apontara-lhe os homens na pista de dança
que Yale devia um dia, sem dúvida, «conhecer melhor». Charlie costumava
exagerar as expressões e o sotaque britânico, porque sabia que Yale
adorava.
– Sinto-me como se estivesse nas notícias – dissera Yale, nessa noite. –
Sabes como todas as reportagens sobre, sei lá... Quem são os Gays?... têm
em fundo aquelas imagens sempre iguais de uma discoteca? Estamos no
meio das imagens gays dos noticiários.
E Charlie dissera:
– Bom, estás a estragar tudo, aí de pé, parado, com esse ar assustado.
Yale lembrava-se de a canção «Funkytown» chegar ao fim e de Charlie
dizer:
– Olha!
Os canhões de brilhantes aos cantos da pista dispararam e os homens em
tronco nu, que já antes pareciam modelos, ficaram de súbito cobertos de
brilhantes azuis, rosa e verdes, que se colavam ao seu suor e lhes
acentuavam os ombros.
– Aquele – dissera Charlie, apontando para um dançarino luminescente. –
Vai já dar o teu número de telefone àquele homem.
Embora Yale não quisesse mais nada, nesse momento, a não ser estar
sozinho com Charlie, o conceito do Bistro enchera-o de prazer. Em Ann
Arbor havia um bar gay, mas nada daquele género, não havia nenhuma
discoteca gay, nenhum espaço onde toda a gente fosse tão feliz. O bar em
Ann Arbor era imundo, com uma jukebox triste e montras cheias de
gerânios murchos destinados a obstruir a visão do exterior. O ambiente era
sempre dissimulado, havia no ar a sensação de que toda a felicidade fora, de
algum modo, furtada. Aqui, a música era alta e havia três bares e um par de
lábios de néon e múltiplas bolas de espelhos. O excesso do local era
exultante. Cinco anos antes, na Halsted Street ainda não havia muita coisa –
os bares começavam a aparecer, as pessoas a mudar-se para a zona, e
Boystown (ainda ninguém lhe chamava assim) mal começara a coalescer –
e por isso fora naquele lugar, junto ao rio, que Yale se apaixonara pela
cidade.
No Bistro, Yale sentia que tinha direito a sentir-se alegre. Mesmo que
estivesse apenas a ver, encostado à parede, com uma bebida na mão. Esta,
anunciava o Bistro, era uma cidade onde aconteceriam coisas boas. Chicago
desenrolaria perante ele o seu mapa, uma rua prometedora após outra, um
espaço embriagante de cada vez. Yale seria entretecido na sua trama e a
cidade encher-lhe-ia a boca de cerveja e os ouvidos de música. E ficaria
com ele.
A relação tornou-se séria nesse outono. Embriagado, Yale murmurara ao
ouvido de Charlie que estava apaixonado, e Charlie respondera, também
num murmúrio:
– Preciso muito que estejas a falar a sério.
As coisas progrediram a partir daí – e, durante cerca de um ano, Charlie
continuou a manifestar os seus receios de que Yale não vivera todas as
liberdades da cidade, não estivera com homens suficientes, e que um dia
acordaria e decidiria que queria aproveitar mais a vida. Charlie dizia-lhe:
– Um dia, vais olhar para trás e pensar que desperdiçaste a juventude.
Yale tinha vinte e seis anos na altura e Charlie imaginava que a diferença
de idade entre ambos era quase uma geração, apesar de ser apenas cinco
anos mais velho. Mas Charlie começara muito novo, em Londres. Yale
ainda estava a tentar perceber quem era no segundo ano na Universidade do
Michigan.
Por fim, as coisas acalmaram. Yale era um homem de relações estáveis,
de tal modo que Teddy achava muita graça chamar-lhe lésbica, perguntar-
lhe como ia a vida na comuna. Estivera um ano com cada um dos seus dois
primeiros amantes. Odiava dramas – odiava não só o fim das coisas, mas
também a insegurança do princípio, as dúvidas, o nervosismo. Estava farto
de conhecer homens em bares e preferia lamber o chão a procurar ação
nalgum parque de estacionamento junto à praia. Gostava de ter planos com
alguém. Gostava de ir ao cinema e de ver realmente o filme. Gostava de ir
ao supermercado. Durante dois anos, correu tudo bem.
E, então, depois de o vírus atingir Chicago – tsunamis em câmara lenta
provenientes de ambas as costas –, Charlie começara, de forma súbita e
inexplicável, a andar sempre preocupado, não com a sida propriamente dita,
mas com a ideia de Yale o deixar por outro. Em maio passado, antes de
perceber realmente a profundidade dessas inseguranças, Yale aceitara fazer
uma peregrinação de fim de semana com Julian e Teddy ao Hotel Madison
– uma viagem que Charlie não podia fazer, porque se recusava a deixar o
jornal, mesmo por três dias. Exploraram a cidade, dançaram nos bares do
hotel e Yale passou a maior parte da noite de sábado a ouvir o jogo dos
Cubs no rádio, mas, quando voltaram, Charlie interrogou-o durante horas
sobre onde cada um tinha dormido, e quanto tinham bebido, e sobre
absolutamente tudo o que Julian fizera – e depois mal trocara uma palavra
com Yale durante uma semana. Afirmava agora compreender que não
acontecera nada, mas a ideia de Yale estar com Julian, com Teddy ou com
ambos, apoderara-se da sua imaginação. Na verdade, era mais com Julian
que Charlie se preocupava. Julian era o mais sedutor, o que passava a vida a
oferecer um bocadinho de bolo à boca das pessoas. Os ciúmes de Teddy
eram um problema estranho e específico da noite passada.
Yale virou-se para Charlie e decidiu aplicar o conselho de Bill Lindsey
para falar com Cecily Pearce e formular a frase de forma interrogativa.
– Achas que é possível que esta doença e os funerais e tudo o mais... que
estejam a fazer com que nos sintamos menos seguros? Porque isto é
novidade em ti. E eu nunca te dei motivos para te preocupares.
Charlie falou com o rosto virado para a janela.
– Vou dizer uma coisa horrível, Yale. E não quero que me julgues. – E
depois não disse mais nada.
– Está bem.
– A verdade é que a parte mais egoísta de mim está contente com esta
doença. Porque sei que, enquanto não houver cura, tu não me deixarás.
– Isso é doentio, Charlie.
– Eu sei.
– Não, é mesmo doentio, Charlie. Não acredito que foste capaz de dizer
uma coisa dessas. – Sentiu uma veia a latejar na garganta. Apetecia-lhe
gritar na cara de Charlie.
Mas ele estava a tremer.
– Eu sei.
– Anda cá. – Rebolou Charlie para si como se fosse um tronco. – Não sei
o que se passa contigo, mas não ando à procura de mais ninguém. – Yale
beijou-lhe a testa e Charlie beijou-lhe os olhos e o queixo. – Estamos todos
sob grande stress.
– És muito generoso.
– Primeiro, temos medo de uma coisa e, de repente, estamos com medo
de tudo.
2 O El (abreviatura de elevated) é a designação comum do sistema de
transporte ferroviário urbano de Chicago, assim conhecido por, em boa
parte dos troços, funcionar numa linha elevada. (N. da T.)
2015
iona apercebeu-se, conforme o táxi se aproximava do centro da cidade,
F de que era demasiado cedo. Imaginara trânsito e demoras, mas aqui
estavam eles às 7:22 e tinha dito a Richard que chegaria às nove. Pediu ao
taxista que encostasse e lhe mostrasse, no seu mapa, onde estavam – não
queria gastar a bateria do telemóvel enquanto não tivesse a certeza de que o
carregador funcionava com o adaptador que comprara no Aeroporto de
O’Hare – e depois saiu e começou a caminhar com passo decidido pelo
passeio largo, embora não tivesse a certeza de estar a andar na direção
certa.
Na esquina, consultou novamente o mapa (a cara enfiada nele, a mala no
chão a seu lado, como a turista mais ingénua do mundo) e pareceu-lhe estar
mais ou menos a cinco quilómetros. A pé, podia ver as coisas de uma forma
que seria impossível no táxi. Era um melhor aproveitamento do seu tempo
do que estar sentada em casa de Richard a olhar para as paredes, enquanto
esperava pela hora de poder ligar ao investigador privado. (Um investigador
privado! Como é que a sua vida chegara a este ponto?) Marcara passagem
no primeiro voo que conseguira, e a urgência de fazer as malas e arranjar
alguém para cuidar dos cães fizera com que parecesse tudo uma corrida,
mas que diferença fazia mais uma hora? O vídeo tinha dois anos. Mesmo
assim, ir a pé parecia-lhe uma perda de tempo desnecessária. Devia
despachar-se e fazer alguma coisa.
Se visse o rio Sena, sentir-se-ia melhor. Só precisava de o seguir em
direção a oeste. Fiona lembrava-se de ambas as ilhas, da sua viagem do
tempo de escola; tinham passado pela Catedral de Notre Dame, na ilha
maior, onde um colega lera as estatísticas macabras de suicídios no seu guia
turístico.
Passou por um pai com o filho pequeno às cavalitas. O menino tinha um
boneco do Buzz Lightyear, que agitava em frente dos óculos do pai.
Era um golpe de sorte que a casa de Richard ficasse mesmo no meio do
rio, porque o vídeo mostrava Claire numa ponte, não era? Era impossível
perceber qual das pontes – as imagens eram pouco nítidas e não havia
qualquer ponto de referência – mas, depois de ver várias fotografias na
Internet, Fiona eliminara algumas. Era uma ponte coberta de cadeados, mas
pelos vistos, hoje em dia, isso aplicava-se a uma boa maioria.
Passou por bouquinistes a abrirem as suas bancas verdes, onde vendiam
livros de bolso e pornografia antiga. Parou em cada ponte, para ver se lhe
parecia a ponte de Claire, para ver se Claire teria ficado magicamente presa
ao local. Estava um dia maravilhoso e nem tinha dado por isso. E, meu
Deus, estava em Paris. Paris! Mas não conseguia sentir-se muito
deslumbrada. A filha podia ou não ainda estar envolvida com o Coletivo
Hossana, e provavelmente ainda se encontrava sob o domínio de Kurt
Pearce. A filha podia ou não ser a mãe da menina que aparecia no vídeo, a
menina de caracóis loiros como os de Fiona. Todas essas coisas lhe
pareciam mais estranhas do que o simples facto de estar em Paris. Paris era
apenas uma cidade. Qualquer pessoa podia ir ali parar. Mas quem é que
alguma vez imaginava que a filha se envolveria num culto? Quem diria que
seria esta a sua experiência em Paris – andar à procura de uma pessoa que
não queria ser encontrada?
Muito possivelmente, era uma demanda vã. Quando é que as suas
tentativas de chegar a Claire lhe tinham corrido bem?
Ultimamente, lembrava-se de vez em quando de uma altura, quando
Claire tinha sete anos e estavam todos na Florida, na praia – ela e Damian
ainda eram casados, embora por pouco –, e Fiona anunciara que estava na
hora de ir embora, que Claire já tivera tempo mais do que suficiente para
acabar o castelo de areia. Claire desatara a chorar e, em vez de a deixar em
paz, em vez de a deixar chorar à vontade, Fiona tentara abraçá-la. Claire
empurrara-a e correra para a água e atirara-se para a rebentação toda
vestida.
– Deixa-a chorar – dissera Damian, mas, vinte metros mais abaixo, Claire
levantara-se e estava a entrar no mar, e já tinha água pelas coxas, agora pela
cintura.
– Ela não vai parar – dissera Fiona, e Damian rira-se e respondera:
– Está armada em Virginia Woolf.
Mas estava mesmo, e Fiona desatou a correr, sem chamar por Claire, pois
sabia que não valia a pena, sabia que, se ouvisse a sua voz, Claire era bem
capaz de se atirar para as ondas. Quando chegou a ela e a agarrou por trás, a
água já lhe dava pelo peito; os pés de Claire há muito que não tocavam no
chão. Este era apenas um exemplo. Claire fizera coisas semelhantes e piores
muitas outras vezes. Mas este incidente, ultimamente, assumira um
significado especial: a primeira vez que Claire tentara atirar-se do
continente.
Atravessou para a Île Saint-Louis e passou por uma geladaria, onde o
cheiro dos cones de baunilha lhe recordou que estava cheia de fome, e por
lojas que vendiam malas de verniz, vinho e máscaras venezianas.
Finalmente, aqui estava o prédio de Richard, três pisos de pedra por cima de
uma sapataria. «Campo/Thibault», dizia ao lado de uma das cinco
campainhas pretas. Eram nove menos um quarto – uma hora aceitável, mais
do que aceitável. Tocou e, um minuto depois, não foi Richard que desceu
mas sim um rapaz magro com blusão de motociclista.
– Chegaste! – disse ele. – Sou o Serge, o companheiro do Richard. –
Rixarrr. – Levo-te para cima, sim? Podes instalar-te. O Richard está a tomar
duche e já vem ter connosco.
Serge pegou na mala dela como se estivesse vazia e Fiona seguiu-o pelas
escadas sombrias.
O apartamento era chique e minimalista, mas os candeeiros e as janelas e
o corrimão de ferro forjado do outro lado das portadas pareciam
maravilhosamente antigos, e os detalhes nas paredes – os relevos de vinhas,
até as molduras dos interruptores – tinham sido suavizados por inúmeras
camadas de tinta. Fiona lembrou-se da casa de Richard em Lincoln Park, os
tons rosa e pêssego delicados. Isto era o oposto: quadros monocromáticos
por cima de mobílias cinzentas que pareciam saídas das páginas de uma
revista de arquitetura. Serge mostrou-lhe onde ia ficar – um quarto com as
paredes forradas de livros, uma cama branca e uma planta solitária – e
depois levou-a para a cozinha e serviu-lhe um sumo de laranja. Ouviu a
água do duche de Richard parar de correr e Serge gritou-lhe que Fiona já
tinha chegado. Richard respondeu qualquer coisa que ela não compreendeu
e demorou um instante a perceber que ele falara em francês.
Um minuto depois, ali estava ele, a interromper a explicação de Serge
sobre a paisagem que se via da janela. Tinha penteado o cabelo que lhe
restava sobre o couro cabeludo e vestia uma camisa engomada que lhe
ficava demasiado grande, como se ele tivesse encolhido recentemente.
– Fiona Marcus, em carne e osso! – gritou, e agarrou-lhe nos braços para
a beijar de fugida em ambas as faces, e, embora Fiona não usasse esse
apelido há décadas, não o corrigiu. Era uma dádiva, este nome da sua
juventude, devolvido por alguém que associava a uma época em que fora
otimista e livre. Sim, também o associava aos anos seguintes, os anos
depois de Nico partir, aos amigos de Nico – que se tinham tornado também
os seus únicos amigos – a morrerem um a um e dois a dois e, se uma pessoa
se distraísse um bocadinho, em grupos numerosos e aterradores. Mesmo
assim, mesmo assim, era uma época de que ela tinha saudades, um sítio
para onde regressaria num piscar de olhos, se pudesse.
– O truque, minha querida, é manteres-te acordada o resto do dia. Não
podes dormir nem um bocadinho. Cafeína, mas só se estiveres habituada. E
nada de vinho, nem uma gota, até estares novamente hidratada.
– Ele é especialista – disse Serge. – Antes de conhecer o Richard, eu
nunca tinha atravessado o Atlântico.
– E agora quantas vezes? – perguntou Richard. – Vinte?
– Alors, beaucoup de temps – disse Fiona em francês, sem saber bem
porquê, e depois achou que tinha dito apenas «grande tempo». Sentia-se
tonta e estúpida e com muita vontade de se deitar, apesar dos conselhos de
Richard. – Falaste em café? – perguntou.
Pouco depois, estavam instalados nas mobílias cinzentas de Richard. Ela
queria abrir a embalagem de plástico do adaptador e carregar o telemóvel,
ligar para o detetive, apesar de ainda faltarem sete minutos para a hora
marcada, mas forçou-se a ficar sentada e a dizer-lhes como agradecia por a
deixarem ficar ali, por a terem recebido tão bem. Na verdade, era ótimo
descansar um instante, voltar a ser Fiona Marcus, ter outra vez vinte anos,
ser mimada por Richard Campo. Era uma sensação de plenitude.
Serge fez-lhe um latte, ali mesmo na cozinha, com uma máquina com
tantos botões como os comandos de um avião, e Fiona saboreou a espuma
espessa.
– Contas-me tudo sobre este homem quando era novo, sim? Preciso de
escândalos!
Ao ouvir isto, Richard dirigiu-se a uma prateleira baixa ao pé das janelas
e tirou um álbum de fotografias que, pelos vistos, arrastara consigo para
Paris, para este século. Sentou-se entre Fiona e Serge no sofá comprido e
começou a folheá-lo. Que estranho ver o trabalho de Richard Campo em
forma de instantâneos, polaroides amarelecidas e impressões Kodak. Na
altura, ele já fazia trabalhos mais sérios, mas essas fotos não estavam
preservadas atrás de celofane barato.
– O Nico está aqui, algures – disse Richard. Encontrou uma fotografia e
passou o álbum a Serge, apontando para a página. – Oh, eu estava tão
apaixonado por ele.
– Estavas apaixonado por toda a gente – disse Fiona.
– É verdade. Todos aqueles rapazes. Eram mais novos, e tão abertos,
muito diferentes da minha geração. Invejava-os. Saíam do armário com
dezoito, vinte anos. Não desperdiçavam a vida.
– Não se pode dizer que tenhas desperdiçado a tua – comentou Fiona.
Ele passou-lhe o álbum aberto.
– Estava sempre a tentar compensar o tempo perdido.
E eis Nico, com o cabelo castanho encaracolado e os dentes grandes, o
rosto bronzeado e sardento, a olhar para além da câmara e a rir. Uma piada
qualquer, cristalizada para sempre. Fiona tinha uma cópia daquela
fotografia, mas ampliada e cortada. Esta versão ostentava a data em
caracteres cor de laranja: 06/06/82. Três anos antes de ele adoecer. E esta
versão mostrava não apenas Nico, mas também os dois homens de ambos
os lados. Um era Julian Ames. O bonito Julian Ames. O outro ela não
conhecia ou não se lembrava, mas, ao estudar o rosto dele, viu uma pequena
mancha arroxeada por cima da sobrancelha esquerda do homem.
– Céus! – exclamou, mas Richard estava ocupado a explicar a Serge
como era Chicago no princípio dos anos oitenta, a pequenez de Boystown e
como, na altura, ainda balançava entre gueto gay e paraíso gay. Como não
havia outro lugar igual, nem em São Francisco, nem em Nova Iorque. Fiona
tentou limpar a pequena mancha, para o caso de ser um defeito do celofane,
mas ela não se mexeu. Olhou para aqueles homens doentes que não sabiam
que estavam doentes, para a mancha que, nesse verão, ainda era apenas uma
irritação na pele. Devolveu o álbum e Richard continuou com a sua
narração. Fiona fingiu olhar para o álbum enquanto ele virava as páginas,
mas na verdade deixou que o jet lag lhe obscurecesse a visão e desfocasse
as imagens. Era demasiado.
– Este era o Asher Glass – disse Richard. – Um grande ativista, um
autêntico dínamo! Tinha uma voz maravilhosa, uma voz forte de advogado.
E os ombros dele! Forte como um touro, era o que costumávamos dizer.
Não tem tradução direta em francês. Não faço ideia quem é este. Mas era
bem giro. Este é o Hiram qualquer coisa, que tinha uma loja de discos em
Belmont. Belmont seria como... não sei. Qual é o equivalente?
Serge riu-se.
– Paris inteira?
– Não, querido, como uma rua no Marais. Não éramos assim tão
provincianos. Este era o Dustin Gianopoulos. O Teddy Naples. Uma
fadinha de bolso, como podes ver. Nunca estava sossegado. Este... também
não me lembro. Parece um manatim.
– Não conheço essa palavra – disse Serge.
– Uma morsa gorda – explicou Fiona, sem olhar para a fotografia.
– Este era o Terrence, o namorado do Nico. O Yale Tishman e o Charlie
Keene. Essa é que foi uma saga. Vê como eram queridos. Este é o Rafael
Peña. Lembras-te dele? – A pergunta era dirigida a Fiona, claro, e ela
regressou ao momento e assentiu com um aceno.
Depois disse, como se falasse para Serge mas na realidade dirigindo-se a
Richard, num tom duro que ela própria não esperava:
– Estão todos mortos.
– Não é verdade! – negou Richard. – Todos não. Metade, talvez. O
exagero nunca trouxe nada de bom.
– É o hábito americano – disse Serge a Richard. – São exagerados.
– Não lhe dês ouvidos. Não estão todos mortos.
– Preciso de uma faca afiada – disse Fiona. Só se apercebeu do mau
sentido de oportunidade do pedido quando os dois homens se desataram a
rir, e lembrou-se de que não tinha dito nada sobre o adaptador, a embalagem
de plástico duro. Explicou o que se passava e Serge saiu da sala e voltou
com uma tesoura grande. Cortou rapidamente a embalagem e, pouco
depois, o telemóvel dela carregava alegremente.
– Duas coisas que ainda não te disse – começou Richard. – Uma é apenas
um pequeno inconveniente, e a outra não é nada.
– É alguma coisa! – protestou Serge. – É uma coisa importante.
– Mas não deve afetar-te. Não te disse, quando escreveste, que as
próximas semanas vão ser um bocado caóticas para mim. Tenho uma
exposição quase a abrir.
– No Centre Pompidou – acrescentou Serge. – Mesmo muito importante.
– Mas está despachado, o meu trabalho, até à inauguração. Tenho é umas
entrevistas, e alguns dos entrevistadores vêm cá a casa. Portanto, ignora,
ignora, ignora.
– Mas tens de ir à vernissage! Se ainda cá estiveres – disse Serge.
– A antestreia – explicou Richard. – Para a imprensa e para os VIPs.
Queriam fazer duas noites, tive de lhes explicar que sou velho.
– No dia dezasseis – disse Serge. Ainda faltava mais de uma semana.
Fiona não pensara tão longe. – E uma grande festa daqui a duas noites!
– Eu... sim, claro – disse, em tom que esperava que fosse suficientemente
vago.
– A outra coisa é o inconveniente. Andam a fazer um filme qualquer aqui
na rua. Um filme americano, uma comédia romântica, parece-me. Pelo
menos prometeram que não havia explosões nem perseguições de
automóveis. É neste quarteirão e nos dois a seguir. Nem sequer sei quando
começam, mas é para breve. Infelizmente, parece que vieste enfiar-te num
zoo.
– Pode ser interessante – disse Fiona. Estava a pensar que Claire dizia que
queria ser realizadora, que costumava recitar de cor cenas completas de
Annie Hall ou Clue – O Jogo do Crime. Talvez as coisas tivessem mudado,
mas a velha Claire havia de querer ver as filmagens, de estar por trás das
barricadas a assistir à ação.
– O que nos leva à terceira coisa – disse Serge.
– Há uma terceira coisa?
– Oh, isso é surpresa, chiu! Confia em mim – disse Richard, apesar de
Fiona ter quase a certeza de que não deixara transparecer o seu ceticismo –,
é uma coisa boa. Uma surpresa muito boa. Ouve, querida, estou contente
por teres vindo. Sei que as circunstâncias não são as melhores, mas é
mesmo bom ver-te.
– Também estou contente por te ver. – Na verdade, ela nunca vira esta
versão de Richard, esta versão nitidamente velha. Toda a gente parecia
atingir a velhice em momentos diferentes e Richard atingira-a a dada altura
desde que o vira pela última vez.
Eram 9:07. Sentou-se no chão ao lado da ficha onde o telemóvel estava a
carregar e marcou o número do investigador. Atendeu uma mulher, a falar
francês rapidamente, e Fiona entrou em pânico.
– Estou? – disse, e a mulher repetiu-se, ainda mais depressa. Fiona passou
o telemóvel a Serge, como se fosse uma batata quente.
– Allô? – disse Serge, e explicou que estava a ligar em nome de Fiona
Marcus («Blanchard», corrigiu ela) e que ela já se encontrava em Paris e
estava pronta para uma reunião. Pelo menos foi o que Fiona presumiu que
ele estivesse a dizer. – Bien – disse ele, e depois tapou o microfone e
murmurou: – A que horas? – Fiona encolheu os ombros e Serge disse mais
algumas coisas que ela não compreendeu e desligou. – Daqui a meia hora,
no Café Bonaparte.
– Oh! – Era uma boa notícia, uma excelente notícia, mas Fiona não se
sentia preparada, não mudara de roupa, não olhara sequer para o espelho,
não esperava encontrar-se com o homem antes da parte da tarde, não fazia
ideia onde era o café.
– Não te preocupes. Eu levo-te na minha mota.
1985
ecily e o seu Mazda dourado já estavam à porta da galeria quando Yale
C chegou, ofegante. Chuviscava e ele não tinha guarda-chuva.
– Trouxe café – disse ela.
Yale sentou-se no banco do passageiro com o copo quente de café do
McDonald’s nas mãos, tentando aquecer-se a partir das palmas conforme
ela começava a conduzir para norte.
– A primeira coisa que precisa de saber – disse Cecily – é que a neta da
Nora quer estar envolvida no assunto, como quer o advogado dela. Mas não
há gestores financeiros, o que pode ser uma dádiva dos céus ou muito mau
sinal.
Yale tentou perceber o papel de Fiona em tudo isto. Presumia que esta
neta fosse prima dela. Não, prima em segundo grau, não era?
– Tenho música no porta-luvas.
Yale encontrou algumas cassetes de música clássica e outras de música
variada, bem como os dois volumes dos Greatest Hits de Billy Joel. Optou
pelo primeiro desses dois. A cassete começou a tocar a meio de «She’s
Always a Woman».
– Então, tudo isto pode ser em vão – disse ele.
– Bom. Tudo pode ser em vão. Há pessoas com as quais perdemos anos,
nas quais gastamos muito dinheiro, francamente, e no fim dão tudo a uma
instituição qualquer de esterilização de gatos.
– Muito bem, mas posso dizer que... os artistas que ela menciona na
carta... são muito improváveis. Principalmente o Modigliani. É um daqueles
artistas que fazem logo soar alarmes num caso destes. Toda a gente acha
que tem um Modigliani, mas ninguém tem.
– Hum. – Tirou uma mão do volante para rodar o brinco.
– Mas as boas falsificações custam muito dinheiro. Os falsificadores
procuram sempre pessoas com dinheiro de sobra. – Não queria que Cecily
fosse aborrecida a viagem toda. E, apercebeu-se, não queria que ela fizesse
inversão de marcha e voltasse para trás. O sexo de reconciliação com
Charlie fora bom, apesar de não compensar a discussão, mas não queria
estar em casa neste momento. Queria chegar amanhã à tarde, exausto, com
histórias para contar, e queria que Charlie também estivesse exausto e
dissesse «vamos mandar vir qualquer coisa para comer» e depois Yale podia
dizer «leste-me os pensamentos» e sentar-se-iam no sofá a comer comida
chinesa com pauzinhos descartáveis e a ver televisão. Se voltasse para casa
hoje, isso não aconteceria.
Cruzaram a fronteira do Wisconsin e passaram pelo Mars Cheese Castle
e, depois, por um letreiro castanho a indicar a Área Recreativa Bong.
– Aposto que os estudantes universitários roubam constantemente aquele
sinal – disse Yale.
– Como assim? – Certamente que o lera; estava mesmo à sua frente.
– Para porem na cave. Costumam roubar sinais de «Stop», Imagino que
queiram um sinal a dizer Bong3.
– Não percebo.
– Oh, é só uma palavra engraçada.
– Hum.
Compraram Yoplaits e Pringles numa estação de serviço e Yale substituiu
Cecily atrás do volante. Não conduzia muito desde que se mudara para a
cidade, mas aprendera quando andava na escola secundária e chegara a
trabalhar dois verões como entregador de pizas com o carro do pai – assim
que percebeu as manhas das mudanças, o resto veio-lhe automaticamente à
memória. Cecily abriu uma pasta no colo e disse:
– O que esperamos é um legado direto. Ela não dá nada ao fundo anual
desde 1970, e antes disso foram só pequenos montantes. O que, se
quisermos ser otimistas, pode significar apenas que é avarenta. Às vezes
essas pessoas são as que acabam por fazer os maiores legados, por razões
óbvias. Se ela não estiver em cima das suas finanças, podemos tentar uma
percentagem, em vez de um montante em dinheiro. Estas pessoas costumam
avaliar por baixo aquilo que têm. Pensa que tem cinco milhões, deixa-nos
um milhão, e na realidade tem sete milhões e meio e vinte por cento seria
muito mais.
– Mas ela só falou... – Yale parou quando se lembrou de que devia fazer
uma pergunta. – Porque é que acha que ela, na carta, falou só das obras de
arte?
– Pode ser apenas o que está mais presente na memória dela. Talvez tenha
prometido o dinheiro à família, mas não queira dispersar a coleção.
Cecily parecia ver isto como um mero inconveniente. Devia ter muita
prática em convencer as pessoas a cortarem a parcela dos herdeiros.
Ocorreu-lhe que talvez Fiona fosse mencionada no testamento desta mulher.
Não lhe dissera que Nora gostava particularmente de Nico? Não seria
lógico que gostasse também de Fiona?
Durante a viagem, Yale ficou a saber que Cecily tinha um filho de onze
anos e um ex-marido, um pequeno apartamento em Davis Street e um curso
tirado em Skidmore. No entanto, ela não fez uma única pergunta sobre ele.
Quando chegaram a Sturgeon Bay, na parte de baixo do espigão de Door
County, Cecily desdobrou um grande mapa do Wisconsin e apontou com a
unha pintada de verniz transparente para as duas estradas que subiam por
ambos os lados da península.
– Parece que se encontram em Sister Bay, que é para onde vamos, de
qualquer maneira.
– O que é que há por estes lados? – quis saber Yale. – Qual é a grande
atração?
– Faróis, acho eu. Casais em lua de mel.
– É muito bonito, de facto.
Ela levantou abruptamente a cabeça e olhou para lá de Yale, pela janela
do lado oposto, como se só agora tivesse percebido onde estava.
– Sim. Muito.
– Então, será a Cecily a liderar o assalto?
– Se não se importar.
Yale importava-se, por uma questão de princípio. A carta vinha dirigida a
ele. No entanto, ela tinha estatuto superior. E, se as peças se viessem a
revelar falsificações, até podia ser bom para ele que não entrassem a pensar
apenas na arte.
Escolhera o caminho do lado ocidental e Cecily deu-lhe indicações para a
Estrada Regional ZZ.
– Será que dizem «duplo Z»? – perguntou ela. – Ou se calhar apenas
«Z».
– Ou «Zi-Zi» – disse Yale. – Como em ZZ Top.
Cecily soltou uma risada, um pequeno milagre. Mas depois, quando se
virou para a janela do seu lado, Yale viu que ela tinha os ombros tensos e
expressão abatida. Estas casas não eram mansões. Tinham passado por
algumas grandes propriedades pelo caminho, mas agora viam-se apenas
casas de quinta modestas, pequenas estruturas no meio de campos de
cultivo. Uma paisagem deslumbrante, de facto, mas não propriamente terra
de milionários.
Estacionaram em frente de uma casa branca, com um alpendre fechado à
frente e uma única janela de empena no piso superior. Cestos de flores
pendurados, degraus de cimento até à porta do alpendre. Dois velhos
Volkswagens em frente de uma garagem em mau estado.
Cecily olhou para o retrovisor e ajeitou o cabelo.
– Uma viagem perdida – disse.
– Talvez ela esteja senil – sugeriu Yale. – Terá ilusões de grandeza?
Antes de chegarem à porta, uma mulher ainda jovem saiu para os degraus
e acenou, com ar pouco satisfeito.
Cecily e a mulher apertaram as mãos. Tratava-se de Debra, a neta, e pediu
desculpa porque, embora Nora estivesse vestida e pronta, o advogado ainda
não tinha chegado. Debra não era nada parecida com Fiona nem com Nico.
Cabelo preto e olheiras escuras, tez que parecia, ao mesmo tempo,
bronzeada e macilenta. Talvez fosse a maquilhagem, a tonalidade errada de
base.
Seguiram-na pelo alpendre, até uma sala de estar que fez lembrar a Yale a
casa onde tinha aulas de piano quando era pequeno. Tal como a sua antiga
professora de piano, Nora tinha coberto cada centímetro de cada prateleira e
parapeito de janela com objets cuidadosamente escolhidos – estatuetas de
vidro, conchas, plantas, fotografias emolduradas. Os livros pareciam bem
lidos, e ao lado da lareira havia um estojo de discos cheio. As costas do sofá
estavam esgaçadas. Podia ser a casa de um professor universitário ou de um
psiquiatra reformado, alguém relativamente abastado que não dava
importância a decorações pretensiosas. Mas não era, de modo algum, a casa
de um importante colecionador de arte.
Nora – só podia ser ela, se bem que o rosto desta mulher não parecesse ter
mais de setenta e cinco anos e o dossier dissesse que ela tinha noventa –
apareceu na porta do lado oposto, com o auxílio de um andarilho. Demorou
muito tempo a começar a falar; os lábios moveram-se silenciosamente antes
de o som sair.
– Ainda bem que puderam vir – disse, por fim. A sua voz,
surpreendentemente, era segura e rápida e, à medida que ela falava, Yale
percebeu que não fora a mente nem a boca que a tinham feito hesitar, mas
outra coisa qualquer. – A Debra vai trazer-nos um chá – disse –, e o Stanley,
que é o meu advogado, o Stanley deve estar mesmo a chegar. E podemos ir-
nos conhecendo! – Sentou-se, com a ajuda de Debra, numa poltrona de
cabedal que ainda era castanha nas pregas mas que o sol descorara onde lhe
tocara. Olhou diretamente para Yale, e apenas para Yale, enquanto falava, e
ele começou a achar que tinha sido ele a fazê-la parar à porta, o motivo da
sua hesitação. Talvez Fiona lhe tivesse explicado como Yale encaixava no
mundo de Nico. De súbito, ficou preocupado com a possibilidade de ela
reconhecer os sapatos que calçara.
Yale e Cecily sentaram-se num sofá azul baixo, cuja gravidade os puxava
a ambos para o centro. Yale teve de se esforçar por não deslizar nessa
direção até colidir com Cecily, que estava agarrada ao braço do sofá para
evitar o mesmo. Ainda não dissera nada e Yale sentia a fúria a emanar dela.
– Tenho todo o gosto em ir buscar o chá, mas agradecia que não falassem
de negócios na minha ausência – pediu Debra.
Yale tranquilizou-a e Nora, pelas costas da neta, fez uma careta – um
revirar de olhos típico de uma criança nas costas do professor.
Nora vestia um fato de treino de veludo cor-de-rosa e calçava mocassins
com as costuras meio esgaçadas. Yale pensou que talvez fosse o corte de
cabelo que a fazia parecer mais nova do que era. Em vez de caracóis curtos,
o corte clássico de todas as senhoras idosas, o cabelo branco de Nora estava
cortado a direito, à altura do queixo, com uma franja lisa. Tinha a
constituição de Fiona, baixa e magra. Havia pessoas de idade que era
impossível imaginar em jovens, e outras cujo rosto ainda se agarrava ao que
teriam sido com vinte e cinco anos. Nora era de outra espécie, aquelas que
pareciam ter regressado ao rosto da infância. Yale olhou para Nora e viu a
criança de cinco anos que ela fora, maliciosa e precoce, com os olhos azuis
a brilhar. Talvez tivesse algo a ver também com o sorriso, com a forma
como tocava com os dedos no rosto.
Cecily continuava muda, por isso Yale tentou quebrar o silêncio.
– É tia-avó da Fiona – disse.
Nora abriu um sorriso radiante.
– Ela não é amorosa? O meu irmão Hugh é que era avô dela. Dela e do
Nico – disse. – O Nico e eu éramos os artistas da família. Todos os outros
são desprovidos de imaginação, do primeiro ao último. Bom, vamos ver o
que acontece com a Fiona. Ainda é cedo para dizer. Não se preocupa um
bocadinho com ela? Mas o Nico era um verdadeiro artista.
– Éramos muito amigos – disse Yale. Não queria emocionar-se. O que
pensaria Cecily se começasse a chorar ali, no sofá? A velha senhora não era
muito parecida com Nico mas era maravilhosa, e Nico também fora
maravilhoso; não era suficiente?
Nora veio em seu socorro.
– Fale-me sobre a galeria. – Tossiu para o lenço de papel amarrotado que
tinha na mão desde que entrara.
Yale virou-se para Cecily, que encolheu os ombros. E, embora já não
tivesse qualquer ilusão séria sobre a coleção de arte de Nora – as únicas
coisas emolduradas na sala eram instantâneos e retratos de família –, Yale
começou a falar.
– Abrimos há cinco anos. Neste momento, só fazemos exposições
temporárias, tanto nossas como de instituições parceiras, mas começámos a
construir uma coleção permanente. É esse o meu trabalho.
– Oh! – Nora parecia agitada, impaciente. Abanou rapidamente a cabeça.
– Não me tinha apercebido de que eram uma Kunsthalle.
Yale ficou surpreendido com a palavra, e Cecily parecia confusa e
irritada.
– Significa apenas galeria de exposições temporárias – explicou ele a
Cecily, e depois arrependeu-se porque a fizera parecer inculta. Virou-se para
Nora. – Mas estamos a construir uma coleção permanente. Temos por trás
de nós o poder de uma universidade de classe mundial, e um grande
potencial de doadores entre uma base de antigos alunos muito bem-
sucedidos e uma das cidades mais importantes para a arte a nível mundial. –
Falava como um robô numa angariação de fundos, não como alguém que
dançara agarrado ao sobrinho-neto desta mulher na última passagem de ano,
alguém que estivera ao lado da cama de Nico no hospital e lhe dissera que,
acontecesse o que acontecesse, ele e Charlie olhariam por Fiona. Nora
pestanejou, à espera de mais. – Já temos uma coleção bastante boa de
gravuras e desenhos. Pelo que sei, algumas das suas peças são esboços.
Parou, porque aqui estava Debra com um tabuleiro e um serviço de chá
muito antiquado: chávenas finas e lascadas com pequenas flores, um bule
fumegante.
Nora olhou para Cecily e perguntou:
– E a senhora é a assistente dele?
Yale ficou tão ofendido por Cecily, que quase respondeu, ele próprio, à
pergunta – o que só teria piorado as coisas. Assim, serviu o chá a todos,
enquanto Cecily explicava o seu papel e dizia:
– Pensei que podia oferecer uma perspetiva sobre doações planeadas num
sentido mais lato.
– Debra – disse Nora –, importas-te de ir lá fora ver se vês o Stanley,
minha querida? Ele passa sempre demasiado depressa e depois tem de
voltar para trás.
Debra vestiu um casaco por cima da camisola larga. Era quase chique, de
uma forma descuidada, e demasiado jovem para ter um ar tão cansado.
Provavelmente, não era mais velha do que Yale, trinta e poucos, mas tinha
todo o charme de uma adolescente amuada.
Assim que Debra saiu, Nora inclinou-se para a frente.
– Devo dizer-vos que a minha neta não gosta disto. Está convencida de
que, se vendêssemos as peças, nunca mais teria de trabalhar na vida. Não
sei como raio ficou tão mimada. O meu filho... o pai dela... tem uma mulher
nova, mais jovem do que a Debra, e já têm dois filhos pequenos, ainda mais
mimados. Custa-me dizer que o problema está no meu filho, mas ele é o
fator comum, não é? – A sua voz era ligeiramente sibilante, como se
empurrasse as palavras por um corredor estreito.
Yale tinha um milhão de perguntas – sobre família, finanças, as peças de
arte, a sua proveniência e a sanidade mental de Nora –, mas não estava ali
para a interrogar.
– Trouxe algumas brochuras da galeria – disse. Abriu uma em cima da
mesa baixa.
– Oh, meu querido – disse Nora. – Não tenho os meus óculos, pois não?
Porque não me explica? Os estudantes costumam lá ir? É um sítio que
frequentem regularmente?
– Claro – disse Yale – e, além disso, os nossos estudantes de mestrado e
doutoramento têm oportunidade de...
Ouviram-se nesse momento vozes no alpendre. Yale e Cecily levantaram-
se para cumprimentar o advogado. Stanley era um homem alto e grisalho,
com rosto de apresentador de noticiário e sobrancelhas extraordinariamente
rebeldes.
– A minha senhora preferida! – disse a Nora. A voz ribombante
combinava com ele. Seria excelente a informar as pessoas de que a Bolsa
estava a cair e quinze pessoas tinham morrido hoje na península do Sinai.
Yale adivinhou o que ele ia dizer quando foram apresentados, e acertou.
Stanley deu-lhe uma palmada nas costas e exclamou:
– Não me diga! E andou lá? Isso é que seria engraçado: o Yale de Yale.
Ou é um homem de Harvard? O Yale anda em Harvard!
– Universidade do Michigan – disse Yale.
– Os seus pais devem ter ficado desapontados!
– É um nome de família.
Na verdade, Yale recebera este nome em homenagem à sua tia Yael, um
pormenor que aprendera, aos seis anos de idade, a nunca partilhar com
ninguém.
Stanley virou-se então para Cecily e mirou-a ostensivamente de alto a
baixo. Cecily falou em tom firme antes que ele tivesse oportunidade de a
elogiar.
– Cecily Pearce, Diretora de Doações Planeadas na Universidade de
Northwestern. Muito obrigada por ter vindo.
Stanley, ficaram então a saber, vivia em Sturgeon Bay e era amigo da
família há anos. Pegou numa chávena de chá, que parecia um dedal na sua
mão enorme. Era advogado sucessório, algo que Cecily pareceu contrariada
em ouvir. Yale sabia que a pequena parte dela que ainda tinha alguma
esperança estava a rezar por um advogado de divórcios ou de
indemnizações civis.
E depois, quando voltaram todos a sentar-se, Stanley pregou o último
prego no caixão de Cecily, embora não necessariamente no de Yale.
– Aqui a menina Nora – disse – põe o bono em pro bono.
– Stanley! – Nora corou.
Yale sentiu o sofá ondular quando Cecily desistiu e largou o braço.
– Gostaria muito de falar sobre as peças – disse Yale.
Debra antecipou-se à avó.
– Em primeiro lugar, nenhuma delas está aqui. Estão todas num cofre no
banco.
– Ainda bem. Muito sensato.
– E ela recusa-se a mandar avaliá-las. – Parecia furiosa. Bom, claro. Uma
avó que fazia o advogado trabalhar pro bono, não devia ter muito para lhe
deixar exceto as bugigangas à volta deles, e talvez a casinha propriamente
dita. E, aparentemente, uma fortuna em arte à qual Debra não podia deitar a
mão.
– Está bem. E também nunca foram autenticadas?
– Não preciso de as mandar autenticar! – protestou Nora. – Adquiri-as
diretamente aos artistas. Vivi em Paris duas vezes, não sei se o mencionei
na minha carta, de 1912 a 1914... não passava de uma adolescente... e
novamente depois da guerra, até 1925. Escapei-me aos combates. – Soltou
uma pequena gargalhada. – E, acredite ou não, eu era estudante de Arte, e
bem bonita, e não era muito difícil conhecer estes artistas. Comecei a
trabalhar para eles como modelo depois da guerra... os meus pais teriam
ficado escandalizados se soubessem, era um trabalho tão mal visto como a
prostituição... e a maior parte das peças foram pagamento pelo meu
trabalho. Há mais algumas que não mencionei na carta, coisas que podem
não valer um cêntimo. E muita coisa que dei ao longo dos anos. Morria
alguém e eu mandava um esboço para a viúva, coisas desse género. – Parou
para recuperar o fôlego. – Não eram todos génios, e eu não escolhia para
quem trabalhava. Mas alguns já eram nomes importantes, mesmo na altura.
Oh, eu andava deslumbrada. Estão assinados, quase todos. Era a minha
condição. E eles nem sempre queriam assinar, principalmente se se tratava
de um esboço rápido. Mas era esse o meu preço.
Yale estava, no mínimo, intrigado. Nora podia ser o rosto de um circuito
de falsificadores inteligentes (já tinham acontecido coisas mais estranhas)
ou estar completamente iludida, mas não acreditava que ela tivesse sido
vítima de falsificadores. Em muitos destes casos, era o que acontecia – e ele
tinha de assistir à desilusão de um milionário qualquer ao descobrir que o
de Chirico de que se vangloriava há anos era falso.
– As peças estão seguradas? – perguntou.
Debra interveio:
– Por uma ninharia. – Ouvia a conversa de costas direitas, chávena na
mão, a olhar furiosa para a mesa.
– Mas não podem ser vocês a autenticá-las? – perguntou Nora. – No
museu? – De súbito, exclamou: – Valha-me Deus, olhem para isto! – Lá
fora, começara a chover a cântaros.
Yale respondeu em tom gentil.
– Se os museus pudessem autenticar as suas próprias obras, toda a gente
teria cem Picassos. Mas oiça, se tivermos razão para acreditar que as peças
são aquilo que diz serem, podemos ajudar em termos financeiros com a
autenticação. Não podemos pagá-la diretamente, mas talvez consigamos
encontrar outro doador que o faça. – Não sabia se isso seria praticável, mas
valia a pena manter a hipótese em aberto, por enquanto.
Nora lançou-lhe um olhar estranho.
– Se as peças forem aquilo que eu digo que são?
– Não duvido de si. – Olhou para Debra e Stanley. Estavam sérios, não
parecia que fizessem apenas a vontade a uma velhota. – Estou a tentar
conter o entusiasmo, porque seria uma descoberta espantosa, não só para a
universidade, mas para o mundo da arte... e não quero ficar de coração
partido. – Era a mais pura das verdades.
Cecily disse qualquer coisa nesse momento, mas Yale estava distraído a
pensar se seria este o fator regulador da sua vida: o medo de ficar de
coração partido. Ou melhor, a necessidade de proteger os fragmentos que
restavam do seu coração, os que iam ficando cada vez mais pequenos a
cada separação, a cada fracasso, a cada funeral, a cada dia na Terra. Talvez
um psicólogo dissesse que era por esse motivo que, de todos os homens em
Chicago, ele estava com Charlie. Yale podia partir o coração de Charlie –
fazia-o quase todos os dias –, mas Charlie, apesar de toda a sua
possessividade, nunca partiria o de Yale.
A chuva estava a tentar desfazer a casa.
Stanley disse:
– Vamos presumir que tudo bate certo. Pode garantir que as peças serão
exibidas com destaque? Não iriam simplesmente vendê-las, assim que
virássemos costas?
Yale garantiu-lhe que as peças estariam em rotação regular e que, se o
espaço se expandisse, podiam até fazer parte de uma exposição
permanente.
– Oiça bem – disse Nora, e inclinou-se para fitar Yale como se o que ia
dizer a seguir fosse a coisa mais importante de todas. – Não quero que haja
favoritos. Quero a coleção toda em exposição.
– Isso não depende de...
– Há lá um ou dois artistas que são desconhecidos, em particular um,
Ranko Novak. Guardei o trabalho dele por razões sentimentais. É bom, não
pense que é alguma coisa horrível, mas não é um nome conhecido. Não
quero que o Soutine seja exposto e o Ranko fique escondido num armário. –
Apontou-lhe o dedo. – Conhece o Foujita?
Yale podia dizer que sim com honestidade. Sabia realmente muito mais
sobre arte do que qualquer organizador financeiro do seu calibre, o que era
extremamente vantajoso para ele. Hoje em dia, tinha uma piada, uma frase
ensaiada, sobre como podia ter dito ao pai que era gay ou que ia licenciar-se
em Arte, e o pai teria preferido que ele fosse gay, por parecer menos
problemático. Na realidade, durante toda a viagem de regresso a casa, nas
férias de inverno do seu segundo ano da universidade, Yale ensaiara
silenciosamente a melhor maneira de anunciar que ia mudar do curso de
Finanças para História de Arte – e depois, nessa noite, o seu namorado
telefonara e confundira a voz do pai com a dele («Tenho saudades tuas,
amor», dissera, e o pai de Yale respondera «Desculpe?» e Marc, como era
típico dele, tentara explicar-se), pelo que o resto das férias tinha sido
dedicado a essa bomba e ao esforço de se evitarem um ao outro, às
refeições silenciosas. Yale tencionara falar ao pai no professor com quem
podia estagiar no semestre seguinte – explicar-lhe que não gostava de
finanças da mesma maneira, que com este curso podia dar aulas, ou
escrever livros, ou restaurar quadros, ou até trabalhar numa leiloeira.
Tencionava explicar-lhe que fora o quadro São Jerónimo, de Caravaggio,
que o arrepiara e o fizera esquecer o resto do mundo – curiosamente, a luz
de Caravaggio, e não as suas famosas sombras. Mas o telefonema de Marc
estragou tudo; seria demasiado humilhante para Yale dizer tudo isso agora.
Não bastava ser gay, ainda por cima um gay a estudar Arte. Voltou para a
escola em janeiro e mentiu à sua conselheira, disse-lhe que tinha mudado de
ideias. No entanto, entre as aulas de Finanças, assistiu a todas as cadeiras de
Arte que podia, sentado ao fundo dos anfiteatros iluminados apenas por
slides de Manet ou Goya ou Joaquin Sorolla.
Nora disse:
– Ainda bem que o conhece, porque o Stanley e a Debra não fazem ideia
de quem é. Assim que a Fiona me falou em si, soube que era o destino. Eu
costumava visitar o Nico, sabe? Vi aquele bairro, aqueles rapazes, e nem
imagina como me fazia lembrar... todos os meus amigos em Paris, éramos
estrangeiros. Inadaptados.
Yale perguntou-se se Cecily teria compreendido. Permaneceu imóvel,
sem olhar para ela.
– Não estou a dizer que o sítio onde o Nico morava era como Paris, não
sei se percebeu, mas aqueles rapazes todos que ali iam parar, vindos de todo
o lado, era a mesma coisa! Quando eu era jovem, não sabíamos que era um
movimento, mas agora falam dessa época como a École de Paris, e na
verdade referem-se a toda a gente que lá foi parar ao mesmo tempo. Todos
nascidos num shtetl perdido qualquer, e de repente ali estavam eles, no
paraíso.
Yale aproveitou o fim da frase para tentar mudar de assunto.
– Adorava ver as peças – disse.
– Oh... – Nora soltou um suspiro teatral. – Bom, a culpa é da Debra, não
é? Estávamos a pensar ir ao banco e tirar umas fotos com a Polaroid dela,
mas faltava-lhe qualquer coisa.
– É o que acontece quando as lojas fecham todas no inverno – justificou-
se Debra. – Tinha película mas não tinha flash.
– Podia ter-lhe arranjado um em Sturgeon Bay – disse Stanley, e Debra
não pareceu satisfeita com a ajuda.
– Vamos fazer o seguinte – declarou Nora. – Eu mando-lhe algumas
fotografias por correio. Sei que não pode dizer grande coisa a partir de uma
foto, mas já ficará com uma ideia.
Uma vez que ninguém sugerira a possibilidade de irem todos ao banco no
meio desta chuva, Yale também não disse nada. Não queria que Debra e
Stanley o considerassem demasiado agressivo, não queria que virassem
Nora contra ele. O seu trabalho era conquistar a confiança dela, não mexer
nas obras de arte.
– Em troca – disse Yale –, mando-lhe fotografias da galeria. E deixe-me
dar-lhe novamente a minha morada, para que a encomenda chegue
diretamente às minhas mãos. – Olhou de lado para Cecily, mas ela há muito
que perdera o interesse na conversa. Entregou um cartão a Nora e outro a
Stanley. – O meu número direto também está aí.
Deixaram Stanley com as minutas habituais para doações em género e
legados em geral e saíram, sem chapéu de chuva. Cecily segurou a pasta de
cartão sobre a cabeça enquanto corriam para o carro; não pareceu
preocupar-se com o facto de ele ficar encharcado. Debra, que os
acompanhara à porta, ficou a vê-los partir sem acenar.
– Não há dúvidas de que ela gostou de si – disse Cecily, enquanto tentava
perceber como ligar os limpa-para-brisas.
– Pode ser que seja benéfico. – Não queria ter de lhe explicar quem era
Nico e que a simpatia de Nora por ele não tinha nada a ver com a galeria.
– Que fiasco. – Os limpa-para-brisas começaram a trabalhar, projetando
cascatas de água para ambos os lados.
– Foi?
– Diga-me que estava apenas a ser simpático com a velhota.
– Não tenho a certeza.
– O que é que viu, naquela casa e naquela mulher, que o faça pensar que o
Modigliani dela é verdadeiro?
– Bom, quer dizer... Na verdade, sim, mudei de ideias. Parece-me que há
boas hipóteses de que seja.
– Ha! Boa sorte. Se conseguir passar por cima da neta. E do filho, é
preciso não esquecer. Quando os velhos fazem o testamento em idade tão
avançada, é sempre contestado. «Oh, ela estava senil! O advogado
aproveitou-se!» Mas desejo-lhe boa sorte.
Cecily, percebeu Yale enquanto ela acelerava pela Estrada Regional ZZ,
tinha mau perder. Provavelmente, era isso que a tornava tão boa no seu
trabalho – era consumida pela ambição, mais ou menos como Charlie. E ele
admirava esse traço de personalidade numa pessoa. Fora Nico que o
apresentara a Charlie e, quando Charlie se afastou um instante para
cumprimentar alguém que acabara de chegar ao bar, Nico murmurou:
– Vai ser o primeiro presidente de câmara gay. Dou-lhe vinte anos.
E, se Charlie era tão bom a organizar pessoas, a incentivá-las, a fazer
crescer os leitores do jornal, era-o por lidar muito mal com o fracasso. A
sua forma de o absorver era ficar a pé até às cinco da manhã, a fazer
telefonemas e a escrevinhar em blocos até ter definido um novo plano de
ação. Era complicado viver com uma pessoa assim, mas Yale já não
conseguia imaginar a vida sem o turbilhão de Charlie no meio dela.
– Só me apetecia pegar numa tesoura e aparar as sobrancelhas daquele
homem. O advogado – disse Cecily.
Conduzia demasiado depressa para o estado do tempo. Em vez de lhe
pedir para abrandar, Yale disse:
– Estou faminto. – Era verdade; eram três da tarde e não tinham comido
nada senão o lanchinho na estação de serviço logo de manhã.
Pararam num restaurante que anunciava peixe frito às sextas-feiras e
quartos no piso de cima. Lá dentro, encontraram toalhas de mesa
desirmanadas e um balcão de madeira comprido.
Cecily perguntou:
– Vamos voltar ao caminho depois de comer, ou prefere beber para afogar
as mágoas?
Yale nem precisou de pensar.
– Com certeza que deve haver quartos vagos. – Podiam fazer o resto da
viagem com bom tempo na manhã seguinte.
Cecily sentou-se ao balcão e pediu um martíni; Yale pediu uma cerveja e
licença para se ausentar uns minutos. Não havia nenhuma cabina telefónica
à vista, mas o proprietário deixou-o usar o telefone da casa.
Charlie atendeu depois de dez toques.
– Sempre vamos passar aqui a noite – disse Yale, e Charlie perguntou:
– Onde é que estás, mesmo?
– Wisconsin. A parte da península.
– E estás com quem?
– Céus, Charlie. Com uma mulher que parece a irmã mais velha da
princesa Diana.
– Está bem – disse Charlie. – Tenho saudades tuas. Ultimamente andas a
desaparecer demasiado.
– Isso é muito irónico.
– Ouve, hoje à noite vou sair com o Niles. – Yale já se perdera, no meio
de todos os protestos em que Charlie andava envolvido, mas achava que
este era sobre um bar que estava constantemente a ser alvo de rusgas
policiais. Yale deixara bem claro desde o início da relação que nunca
participaria nessas coisas; o seu sistema nervoso já era frágil o suficiente,
sem a ameaça de cassetetes e gás lacrimogéneo.
– Tem cuidado – disse-lhe.
– Oh, mas eu ficaria fantástico com o nariz partido. Admite.
Quando voltou ao restaurante, o empregado do bar estava a contar a
Cecily que Al Capone costumava ficar ali instalado, que os homens dele
traziam camiões de bebidas alcoólicas do Canadá através do lago gelado.
Cecily esvaziou o copo e o empregado riu-se.
– Os meus martínis são muito bons – disse. – Também faço um com
cereja, chamo-lhe o Especial de Door County. Quer experimentar?
Sim, ela queria.
Enquanto bebiam, a sala foi-se enchendo lentamente. Famílias e
agricultores e os últimos turistas da estação. Cecily embebedou-se e mal
tocou na empada que pedira, dizendo que estava demasiado gordurosa. Yale
ofereceu-lhe um pouco do seu peixe com batatas fritas, mas ela recusou.
Quando a ouviu pedir um terceiro martíni, Yale fez questão de mandar vir
mais pão.
– Não preciso de pão – disse ela. – O que eu queria era um abacate e
queijo fresco. Comida de dieta. Já provou abacate?
– Sim.
– Claro que já provou. Quer dizer, não quero estar a insinuar nada.
– Não imagino o que pudesse estar a insinuar. – Olhou em volta, mas
ninguém estava a ouvir.
– Sabe o que quero dizer. Vocês são mais urbanos. Espere, urbanos
existe? Existe. Mas oiça. – Pousou dois dedos na coxa dele, perto da prega
que as calças faziam antes das virilhas. – O que quero saber é: você nunca
se diverte?
Yale estava confuso. O empregado do bar passou e piscou-lhe o olho.
Talvez parecessem realmente um casal, embora ela fosse alguns anos mais
velha. Uma executiva de carreira, agressiva, com o seu jovem namorado
judeu. Falou num murmúrio, na esperança de que ela lhe seguisse o
exemplo:
– Está a falar de mim pessoalmente, ou de todos os homens gays?
– Viu? É mesmo gay! – Não falou demasiado alto, graças a Deus. Não
retirou a mão; talvez não fosse um gesto sexual, afinal.
– Sim.
– Mas o que eu estava a dizer era... estava a dizer que os homens gays...
quer dizer, peço desculpa por tirar conclusões precipitadas, mas foi o que
fiz e pelos vistos acertei... os homens gays se divertiam mais do que
ninguém. Eu tinha tanta inveja. E agora estão a ficar todos sérios e a enfiar-
se em casa, por causa daquela doença estúpida. Uma vez, levaram-me ao
espetáculo no Baton. Conhece o Baton Club? Claro que sim. E foi
fantástico.
Ainda ninguém estava a dar-lhes atenção. Uma criança pequena fez uma
birra junto à janela e atirou a tosta de queijo para o chão.
– Eu diria que houve uns bons dez anos em que nos divertimos imenso. E,
se conhece pessoas que estão a acalmar, ainda bem. Nem toda a gente anda
a fazer o mesmo – disse Yale.
Cecily fez pressão com os dedos e inclinou-se para ele. Yale temeu que
ela caísse do banco.
– Mas não sente falta de se divertir?
Cuidadosamente, pegou na mão de Cecily e transferiu-a para o colo dela.
– Acho que temos ideias diferentes de diversão.
Ela fez um ar magoado, mas recuperou rapidamente. Murmurou:
– O que estou a dizer é que tenho um bocadinho de C-O-C-A na mala. –
Apontou para a mala amarela por baixo do banco.
– Tem o quê? – Com certeza que não ouvira bem. Ela nem tinha
percebido a piada da área recreativa com nome de cachimbo.
– C-O-C-A-Í-N-A. Quando formos para cima, podemos fazer uma festa.
Yale teve vários pensamentos em simultâneo, entre os quais se destacava
o de saber que Cecily ia ficar horrorizada de manhã, quando se lembrasse
disto. Estava tão embaraçado por ela, que só queria dizer que sim e cheirar
a coca ali mesmo em cima do bar. Mas, ultimamente, o seu coração não
aguentava mais de um café por dia. Há um ano que não fumava sequer um
charro.
Com a expressão mais amável que conseguiu, disse-lhe:
– Vamos pedir-lhe um grande copo de água e, depois, vai comer um
bocadinho de pão. Pode dormir até às horas que lhe apetecer, e quando
estiver pronta, eu levo o carro o resto da viagem.
– Oh, acha que eu estou bêbeda!
– Sim.
– Na verdade, estou muito bem.
Empurrou o pão e a água na direção dela.
Cecily podia vingar-se dele, tentar prejudicá-lo em futuros legados para a
Brigg – mas não, na verdade ele tinha agora algo sobre ela. Não faria
chantagem, nada disso, mas talvez este conhecimento os deixasse num
patamar mais equilibrado.
– Quando acordar, não se preocupe com isto – disse. – A viagem foi boa,
não foi?
– Claro – disse ela. – Para si.
De manhã, Yale pediu panquecas e café. Escrevera um bilhete a Cecily na
noite anterior, para o caso de ela não se lembrar do plano, e deixara-o em
cima da cómoda quando a fora acompanhar ao quarto: Quando estiver
despachada, eu estou lá em baixo.
Leu o Door County Advocate e o Tribune, e neste último encontrou dois
artigos para discutir com Charlie: um sobre a proposta de legislação contra
a happy hour, e um editorial sobre os gastos miseráveis do Congresso com
a sida. Era um milagre que as pessoas começassem a falar no assunto, que o
Tribune lhe desse espaço. Charlie tinha razão; sempre dissera que aquilo de
que precisavam era da morte de uma celebridade importante. E, puf, lá se
fora Rock Hudson, sem a coragem de sair do armário mesmo no leito de
morte, e finalmente, quatro anos depois do início da crise, havia uma
centelha de esperança. Mas ainda não era suficiente. Charlie jurara uma vez
que, se Reagan alguma vez se dignasse fazer um discurso sobre a sida,
doaria cinco dólares aos republicanos. («E no impresso», dissera Charlie,
«vou escrever: Lambi o envelope com a minha grande língua gay.») Mas
agora, pelo menos, Yale já ouvia falar do assunto no comboio. Ouvira dois
adolescentes a brincar sobre aquilo no átrio de um hotel quando fora buscar
um doador. («Como é que se transforma uma frutinha num vegetal?»)
Ouvira uma mulher perguntar a outra se devia continuar a ir ao seu
cabeleireiro gay. Era ridículo, mas melhor do que sentir que vivia num
universo paralelo onde ninguém conseguia ouvir os seus gritos de socorro.
Agora, era como se as pessoas ouvissem e não se importassem. Mas já era
um progresso, não era?
Cecily apareceu finalmente, às dez e meia, muito elegante, de calças e
camisola de malha, maquilhada e de cabelo arranjado.
– O tempo hoje está muito melhor! – disse ela.
– Sente-se bem?
– Estou fantástica! Tenho de lhe dizer, nem sequer estou ressacada. Não
estava embriagada, na verdade. Mas obrigada por se preocupar.
Yale conduziu e Cecily encostou a cabeça à janela do lado do passageiro.
Tentou evitar buracos na estrada e fazer as curvas devagar. Não falaram
muito, exceto para discutir a estratégia, se as peças de arte acabassem
mesmo por ser verdadeiras. Yale lidaria com Nora e com a família desta até
chegar a altura do legado propriamente dito e, nessa altura, Cecily podia
interferir, se fosse necessário.
Yale olhou de soslaio para a mala amarela de Cecily, no chão aos seus
pés, que sabia agora conter um saquinho de cocaína – a menos que ela a
tivesse consumido naquela manhã, mas não lhe parecia. Se a polícia os
mandasse parar por algum motivo e decidissem revistar o carro, seriam
ambos presos. Conduziu ainda mais devagar.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou os M&Ms. Ofereceu-os a Cecily,
que tirou apenas um.
– Você conhecia o sobrinho dela – disse Cecily.
– Sobrinho-neto. Foi o meu primeiro amigo a sério na cidade.
– Espero que isso não afete o seu discernimento.
3 Bong pode significar cachimbo para fumar droga. (N. da T.)
2015
iona só se apercebeu de que criara determinadas expectativas em relação
F ao detetive quando estava cara a cara com ele, ao lado de Serge, sentados
a uma mesa redonda no Café Bonaparte. O que imaginara, percebia agora,
ao olhar para este homem de fraca estatura e reservado, fora um tipo
trapalhão, de gabardina, um ex-polícia suado que acabaria por se revelar um
génio. Mas Arnaud («Pode chamar-me Arnold» disse, num inglês britânico
perfeito, como se ela não conseguisse lidar com um som tão simples)
lembrava um lápis acabado de afiar; o nariz afilado era o que mais se
destacava no rosto pequeno e moreno. Não que ela precisasse de um
detetive de cinema. Isto não era um caso de cinema. Se Claire estivesse
mesmo em Paris, não devia ser difícil de descobrir. Convencê-la a
encontrar-se com ela já seria outra história.
Arnaud aceitou o cheque que ela lhe deu, dobrou-o e guardou-o no bolso
da camisa. Debruçou-se sobre a salada de fruta e fez perguntas rapidamente,
enquanto comia.
– Que tal é o francês dela? Da sua filha?
Fiona olhou para a omelete de queijo; estava com tanta fome ao chegar,
mas agora nem conseguia pensar em dar a primeira garfada.
– Estudou francês na escola secundária.
– No lycée – esclareceu Serge. Serge, depois de levar Fiona ao café (ela
viera o caminho todo agarrada à cintura dele, de olhos fechados), deixara-se
ficar, pedira um café espresso e agora parecia sentir necessidade de
justificar a sua presença.
Quando Claire andava no sexto ano, Fiona tentara com ela a mesma
abordagem que a mãe tentara consigo anos antes:
– Tens sangue cubano, sabes. Não achas que o espanhol?...
Claire respondera:
– Também tenho sangue francês. E partilho noventa e nove por cento do
meu ADN com um rato. Achas que tenho de aprender a guinchar?
Agora, Fiona continuou:
– Mas não sei há quanto tempo ela está cá. Três anos, talvez.
– Foi há três anos que deixou o culto?
– Sim – respondeu Fiona –, mas... – Não sabia como terminar a frase.
Queria dizer que nunca ninguém deixava verdadeiramente um culto. Que
havia o culto propriamente dito, e depois o culto pessoal de Claire, a sua
devoção a Kurt Pearce. Um líder e uma seguidora.
– E agora acha que ela está em Paris.
– Bem... – E, de súbito, não conseguia lembrar-se do que a fizera ficar tão
convencida de que o vídeo fora filmado em Paris. Via-se a Torre Eiffel ao
fundo? Não, mas... era um vídeo sobre Paris. Estava tão cansada. Quando
virou a cabeça, a visão demorou um segundo a acompanhar o movimento. –
Viu o vídeo? – perguntou. Enviara-lhe o link num dos primeiros contactos,
no início da semana.
Ele assentiu, tirou um computador portátil da mala a seus pés e, com um
movimento fluido, abriu-o e clicou para iniciar o vídeo. Parecia errado, de
alguma forma, que um café francês tivesse wi-fi. Na mente dela, em Paris
era sempre 1920. Era sempre a Paris da tia Nora, a cidade dos amores
trágicos e artistas tuberculosos.
– Aos três minutos – disse.
Fora há dez dias que a colega de quarto de Claire da universidade, Lina,
lhe enviara o link para o vídeo do YouTube com uma mensagem cautelosa:
«Mandaram-me isto», escreveu, «porque acharam que era a Claire, aos três
minutos. Não tenho a certeza... o que acha?» E o estúpido computador de
Fiona não conseguia acelerar, pelo que tivera de assistir a três minutos de
«dicas de viagem para famílias» destinadas a turistas de classe média-alta
que quisessem arrastar os filhos para França. Carrosséis, chocolate quente
na Angelina, barquinhos no lago do Jardin du Luxembourg. E depois a
apresentadora, uma jovem de cabelo curto, a andar para trás numa ponte
enquanto falava sobre os artistas que «captam a cena, para que você possa
levá-la para casa». E ali, atrás dela – e novamente aqui, no ecrã de Arnaud –
uma mulher num banquinho desdobrável, a olhar para uma tela com a testa
franzida, em concentração, e a manejar o pincel como se tivesse sido
instruída a fazê-lo. Parecia Claire? Sim. Mas um pouco mais forte, com um
lenço elegante a prender o cabelo. «Quem sabe?» disse a apresentadora.
«Talvez eles também tenham trazido os seus enfants!» Referia-se à menina,
quase uma bebé, na verdade, que brincava com um brinquedo vermelho aos
pés da artista.
– É ela? – perguntou Arnaud, tocando no rosto de Claire no ecrã.
– Sim. – Não adiantava dizer que tinha quase a certeza, que os seus
pesadelos estavam cheios de mulheres em pontes que se viravam e
revelavam rostos apodrecidos, rostos de animais, rostos que não eram o de
Claire. Se o detetive ia procurar Claire, Fiona queria que ele acreditasse que
a encontraria.
– O lenço não parece religioso.
– Não, mas no culto não usavam lenços, de qualquer maneira.
– Conheço esta ponte – disse ele.
– É a Pont des Arts?
– O quê? Não, não. É a Pont de l’Archevêché. Mesmo ao pé da Notre
Dame. Está a ver os carros a passar? Não passam carros na Pont des Arts.
Devia estar estampado no rosto dela que queria saltar da cadeira, roubar a
motorizada de Serge e voar para lá.
– Não é comum haver artistas nesta ponte. Desconfio... – olhou para
Serge como se procurasse confirmação – ...que ela foi lá colocada só para o
vídeo.
– Mas pode estar nas imediações – disse Fiona. – Ou talvez seja
conhecida das pessoas que fizeram o vídeo!
Arnaud acenou com ar grave.
– Uma pequena companhia de produção americana, com sede em Seattle.
Será possível que ela esteja a viver lá? Talvez fizesse parte da equipa de
filmagens e lhe pedissem para posar na ponte.
E, embora fosse uma possibilidade – Claire adorava cinema –, Fiona não
podia lidar com ela para já. Assim, disse:
– É muito mais provável que ela seja pintora do que empregada numa
companhia de filmagens. O culto... eram antitecnologia. Não sei.
– Mas ela deixou o culto. – Arnaud fechou o computador e pegou no
garfo. Fiona percebeu que ele queria ouvir agora a história completa, a
história que ela apenas abordara por alto nos e-mails.
– Na verdade, fui eu que a apresentei ao tipo – começou. – O Kurt. É
mais velho, um amigo da família, de certa forma. Deve ter quarenta e um
anos agora.
– Tenho as fotografias – disse Arnaud, com os lábios tingidos de
morango.
– Eu não queria que eles se envolvessem. Ela simplesmente foi passar o
verão ao Colorado, trabalhava como empregada de mesa e andava a
explorar a região, e ele vivia lá. Isto foi em 2011, logo a seguir ao primeiro
ano dela na universidade. De repente, disse-me que estava apaixonada,
depois começou a dizer que não ia voltar às aulas no outono, que ia ficar em
Boulder, a trabalhar num rancho qualquer. E, depois, deixei de ter notícias
dela e nunca mais soube nada, não havia telefone, não havia Internet, só
correio, e finalmente escrevi-lhe e disse-lhe que ia fazer-lhe uma visita e ela
disse-me que não podia. Foi aí que entrei em pânico.
Não era propriamente a primeira vez que Claire afastava a mãe. Na escola
secundária, durante um semestre inteiro, não dirigira a palavra ao pai nem à
mãe. E um dia, quando Fiona e Damian se tinham acabado de separar –
Claire tinha nove anos –, fugira para a igreja ao fundo da rua. Até essa
altura, Claire nunca tinha entrado numa igreja, exceto num casamento, mas
Fiona sempre lhe dissera que se alguma vez precisasse de ajuda, numa
emergência, podia ir pedir auxílio a uma igreja. No entanto, quando Claire
desapareceu, Fiona já nem se lembrava de lhe ter dito isso.
Quando a secretária da igreja episcopal finalmente lhe ligou, Claire estava
desaparecida há cinco horas e Fiona e Damian andavam a passar as ruas a
pente fino num carro da polícia. Fora uma semana depois do 11 de setembro
e as pessoas ainda olhavam para os carros da polícia com preocupação.
Estranhamente, isso até a reconfortara, de certa forma – saber que a sua
crise fazia parte do trauma geral. Encontraram Claire no escritório da igreja,
a beber leite com chocolate, acompanhada de duas mulheres que
positivamente fulminaram Fiona e Damian com o olhar. Fiona nunca
chegou a saber o que Claire dissera àquelas mulheres sobre eles, sobre o
divórcio. Deu-lhes uma nota de vinte, pegou no braço de Claire e arrastou-a
consigo, enquanto o polícia e Damian ficavam para trás a fazer perguntas.
Só depois de Claire estar na cama, nessa noite, é que Fiona olhou para
Damian, sentado no sofá que já fora seu, e disse:
– Porque é que achas que ela fugiu?
Manteve um tom de voz amável, mas na realidade já sabia a resposta.
Ele riu-se e disse:
– Se calhar é genético. Porque é que tu e o teu irmão fugiram?
– Eu saí de casa – disse ela –, aos dezoito anos. E o Nico foi expulso, e
não te atrevas a voltar a mencionar o nome dele.
Damian levantou as mãos num gesto de rendição, mas não de
arrependimento.
– E os meus pais – continuou ela –, a minha mãe mostrou o caderno de
esboços do meu irmão ao padre. Foi... Não, não vou falar contigo sobre
isto. Achas que é possível, Damian, que ela tenha ouvido o que tu disseste?
E Damian olhou para a carpete em vez de olhar para ela, porque claro que
fora isso que acontecera. Na noite anterior, depois de deixar Claire em casa,
ele ficara para falar com Fiona – para discutir, na verdade – e Claire ainda
não estava a dormir quando ele gritara com Fiona, coisa que raramente
fazia. O motivo da discussão era o homem divorciado com quem Fiona
andava, ou, mais especificamente, o facto de esse homem ter dois filhos e
de Fiona ter passado um fim de semana com eles no Michigan, nesse verão.
Já era mau ter traído o marido, acusou ele, mas agora estava a tentar
substituir a família toda.
– Eu falo com ela – disse Damian.
E, estupidamente, Fiona deixara-o entrar sozinho no quarto de Claire.
Talvez porque ele era o único que podia retirar o que dissera, já que fora ele
a dizê-lo. Devia ter ido também.
Fiona não contou tudo isto a Arnaud, mas falou-lhe sobre a sua viagem a
Boulder, em 2011. Era inverno, tantas semanas depois da data em que a
filha devia ter regressado à escola que, em retrospetiva, era indesculpável
que Fiona tivesse esperado tanto tempo para lá ir. Na altura, contudo,
parecera a atitude certa – dar algum espaço a Claire. Damian vivia em
Portland, nessa época, e ela só falava com ele quando havia alguma crise
com Claire. Falaram finalmente no início de janeiro e chegaram à conclusão
de que nenhum deles sabia nada da filha. Fiona soube que Claire levantara
o cheque que Damian e a nova mulher lhe tinham enviado no Natal, mas
não escrevera a agradecer. Enquanto se preocupava sozinha, Fiona
conseguira dizer a si própria que Claire era mesmo assim, que precisava de
tempo, precisava de perceber por si própria que tinha saudades da escola.
Contudo, ao ouvir Damian, que nunca entrava em pânico, dizer que não
gostava nada disto, que havia alguma coisa errada, rapidamente se tornou
evidente que havia mesmo algo errado. Na semana seguinte, Fiona apanhou
o avião. Alugou um carro em Denver e seguiu o GPS para além de
Boulder.
Obviamente a morada não podia estar certa. Isto não era um rancho. Uma
estrada estreita e acidentada serpenteava entre o bosque, até uma espécie de
parque de campismo barato – caravanas e barracas em volta de uma casa
amarela decrépita, sem um lago ou qualquer outra atração natural que
explicasse a sua convergência no local.
Fiona queria dar meia-volta, estudar melhor um mapa a sério, perceber
onde era realmente o rancho, mas não podia ir-se embora sem bater à porta,
sem se certificar de que a filha não estava a ser feita prisioneira naquela
casa amarela. Ligou a Damian, só para haver uma testemunha, se
acontecesse alguma coisa terrível, e – com o ex-marido em linha, o
telemóvel encostado ao peito – aproximou-se da porta.
– O homem que abriu – contou agora a Arnaud – estava vestido como
eles se vestem. Na altura, não percebi. Barba, cabelo comprido, tamancos.
Parecem-se muito com hippies, principalmente os homens.
E os homens estavam melhor do que as pobres mulheres, que usavam
vestidos até aos tornozelos, mangas compridas, sem maquilhagem.
– Assim, mesmo quando soube que a Claire estava lá, quando a foram
chamar, foi o que pensei... que era uma comuna hippie. Suponho que já nem
devem existir.
Contou-lhe que, primeiro, Claire recuou ao vê-la, e que depois a abraçou
como se abraçasse um ex-namorado que encontrara quando estavam ambos
acompanhados de outras pessoas. Damian continuava em linha, mas Fiona
não podia parar para lhe contar o que estava a acontecer. Claire pegou num
casaco e saiu para conversarem no exterior, e pouco depois Kurt apareceu e
posicionou-se ao lado dela, como um guarda-costas.
– Ele parecia tão possessivo – disse –, sempre com a mão nas costas dela.
– Fiona esquecera-se de como ele era alto. Ficara impressionada quando o
vira pela primeira vez em adulto, muito mais alto do que a mãe. Devia ter
quase dois metros, e agora estava também barrigudo. Tinha o rosto curtido
pelo sol e pelo vento, e o cabelo loiro a tocar nos ombros.
– Não mentiram quanto ao que aquilo era, exatamente. Disseram que era
uma comunidade planeada e chamaram-lhe Coletivo Hossana, que... bom,
vê-se logo que não se trata apenas de uma quinta biológica, não é?
Fiona não se lembrava dos detalhes da conversa. Era tudo muito confuso
e ela estava aflita, e, embora tivesse feito algumas perguntas sobre as
pessoas com quem eles viviam, estava mais preocupada com a atitude de
Claire, os seus olhos baços e o pé a tremer, do que com as respostas.
Lembrava-se de dizer, como uma idiota:
– Também há igrejas que podes explorar em Chicago.
E Kurt abanara a cabeça.
– A igreja cristã moderna é a Meretriz da Babilónia.
Claire recusara-se a sair, nem sequer aceitara ir jantar com ela à cidade
mais próxima, não quis falar ao telefone com o pai, não arredou pé de junto
de Kurt Pearce.
– Isto é uma intrusão, na verdade – disse Kurt. Calmamente, como se
fosse ele a voz da razão nesta situação.
E Claire disse:
– Mãe, está tudo bem. Nunca te preocupaste comigo quando andava na
universidade, e eu era tão infeliz na universidade. Sou muito mais feliz
aqui.
– Claro que me preocupava contigo quando andavas na universidade. Mas
pelo menos sabia o que se passava.
– Não. – Fiona não sabia se Claire estava a refutar a sua preocupação ou o
seu conhecimento do que se passava. No alpendre da casa grande, três
adultos e uma criança olhavam para eles, à espera.
Fiona percebeu que não valia a pena insistir, tentar entrar à força.
– Volto amanhã de manhã. Trago donuts.
– Não venhas, por favor.
No dia seguinte, quando Fiona voltou, havia uma barricada de madeira a
bloquear o início da estrada de acesso. Um homem com um rabo-de-cavalo
até à cintura estava encostado à barreira e, quando Fiona se aproximou, fez-
lhe sinal com o dedo para voltar para trás. E foi o que ela fez, porque
Damian já vinha no avião e, de qualquer modo, seria melhor voltar com
ele.
Durante uma semana de noites em branco, através da Internet e de
perguntas aos habitantes de Boulder, os dois descobriram as coisas que
Fiona estava agora a contar a Arnaud: o Coletivo Hossana era uma
ramificação mais pequena e restrita de um culto já de si muito restritivo,
originário de Denver. Afirmava-se judaico-cristão, mas era também
astrológico, vegetariano, antitecnologia e patriarcal. Acreditavam que a
Igreja precisava de regressar ao estado de pureza descrito em certos
capítulos do Livro dos Atos, e que tudo a partir de Paulo era corrupto.
Chamavam «Yeshua» a Jesus e não celebravam festividade nenhuma a não
ser a Páscoa. Não tinham dinheiro próprio e a vida comunitária funcionava
à base do trabalho quase constante das mulheres e crianças. Os homens
vendiam mel e molho para saladas nos mercados locais e, de vez em
quando, faziam trabalhos de construção na cidade, e todo o dinheiro revertia
para o grupo.
Fiona e Damian foram à polícia, mas não se passava nada de ilegal.
Damian recordou-lhe aquilo que ela já sabia: quanto mais corressem atrás
de Claire, mais ela se isolaria. Tentaram novamente em pessoa, desta vez
aproximando-se do complexo no carro-patrulha de um polícia
compreensivo – Fiona tinha tanta certeza de que Damian estava também a
lembrar-se daquela busca desesperada em Chicago, nove anos antes,
também num carro da polícia, que nem precisou de falar nisso –, mas o
homem que estava de guarda à barricada aproximou-se e despejou uma
torrente impressionante de linguagem jurídica na cara do polícia. E não,
eles não tinham um mandado.
Fiona e Damian sentaram-se num bar no aeroporto de Denver, com
olheiras fundas; choravam, paravam, recomeçavam a chorar. Aos olhos dos
outros viajantes, deviam parecer amantes que se iam separar para sempre.
Ele com aliança de casado, ela não.
– Devíamos ficar – disse Fiona.
Mas havia formas mais produtivas de gastarem tempo e dinheiro. Damian
disse que ia falar com advogados. Fiona ficou de contactar os colegas de
Claire da escola e da universidade, podia até oferecer-se para lhes pagar as
passagens para virem falar com ela. Procuraria Cecily Pearce e pedir-lhe-ia
para tentar incutir algum juízo na cabeça do filho.
Arnaud acenou com a cabeça enquanto a ouvia, mas não escreveu nada.
Fiona estava com medo de que ele lhe perguntasse porque não se recusara a
sair de Boulder, porque não derrubara a porta. Não o fizera porque nunca
acreditara que Claire ficasse realmente muito tempo com aquelas pessoas. E
porque, de certa forma, queria que a filha aprendesse qualquer coisa a duras
penas, e que fosse outra pessoa que não a mãe a dar-lhe essa lição. Para
variar, queria que Claire voltasse para casa magoada e cabisbaixa, em vez
de fugir de Fiona e de a acusar de a ter magoado. Pelo menos, era a
conclusão a que chegara depois, no seu trabalho com a terapeuta. Mas
talvez fosse mais complicado do que isso. Talvez tivesse a ver com o facto
de estar cansada de travar batalhas impossíveis de vencer, depois do banho
de sangue vivido na casa dos vinte, depois de todos aqueles que amava
terem morrido ou partido. Depois de o seu amor se ter tornado venenoso.
Fiona escreveu cartas quase todos os dias, disse a Claire que podia vir
para casa quando quisesse, que nunca a julgaria. Após algumas semanas, as
cartas começaram a vir devolvidas, por abrir.
E depois, ao fim de quase um ano – um ano a falar com polícia e com
advogados e com algumas pessoas de grupos de apoio a quem deixava
cultos –, voltaram lá juntos, Damian e Fiona. Levaram um guarda-costas
contratado em Boulder, mas foram sem polícia, sem carro-patrulha. Não
tencionavam raptá-la, apenas insistir para terem uma conversa. Mas Claire e
Kurt, segundo os informou a mulher coberta de eczema que lhes abriu a
porta, tinham partido um mês antes. Não, não sabia para onde poderiam ter
ido; ninguém fazia a mínima ideia.
Damian foi ao mercado de Boulder, onde alguns dos homens do Coletivo
Hossana tinham uma banca, e disse-lhes em tom casual que da última vez
tinha feito negócio com um tipo chamado Kurt. O Kurt não estaria por ali
hoje?
– O irmão Kurt já não está connosco – disse um deles. O outro revirou os
olhos.
E Fiona pensou: Bom, pelo menos libertaram-se disto. Mesmo que ela
ainda esteja com ele. Teve esperança de que talvez Claire a contactasse em
breve. Não o fez. Contrataram um investigador privado em Chicago, que
aceitou alegremente o seu dinheiro mas não descobriu nada. Pensaram em
dar queixa do desaparecimento dela à polícia, mas uma adulta que
simplesmente não queria falar com os pais não era considerada uma pessoa
desaparecida.
Em vez de perguntar a Fiona porque não fizera mais, Arnaud perguntou:
– Isto era normal na sua filha? Agarrar-se a religiões diferentes?
– Não – disse Fiona. – Isso é o mais estranho. Ela sempre foi uma
rebelde. Desistiu dos escoteiros, da orquestra, nunca teve um namorado que
durasse mais de um mês ou dois. Até conhecer o Kurt.
– E ela tem alguma razão para querer evitá-la?
Fiona espetou o garfo na omelete e levantou-o, ficando a ver o queijo
escorrer dos quatro orifícios.
– Tivemos os nossos problemas, mas nunca houve uma grande discussão.
– Podia ter entrado em mais pormenores sobre os seus confrontos, ter
explicado que Claire sempre fora mais chegada ao pai e, depois do divórcio,
não era chegada a ninguém, podia falar sobre o sentimento de culpa e as
dúvidas com que tinha de viver todos os dias, mas isso só seria uma
distração do principal. – Há pessoas que já nascem complicadas. Custa-me
muito dizer isto.
Não se sentia muito bem. Tinha sede, mas a água que lhe tinham trazido
era gaseificada, e detestava água com gás. Bebeu um pequeno gole, mas era
pior do que ter sede.
– O namorado bate-lhe? – perguntou Serge e, embora fosse uma pergunta
legítima, Fiona ficou aborrecida por ele estar a interferir na linha de
raciocínio de Arnaud.
– Acho que não. Algumas das histórias que encontrámos online sobre o
culto... pareceu-nos que batiam às crianças. Para as disciplinar. E tenho a
certeza de que ia além disso. Mas conheço o Kurt há muito tempo. Desde
que era pequeno. Ele é bom com animais, sabe? Não me parece que um
homem que bate nas mulheres tivesse tanto jeito com animais. Os animais
sentiriam.
Arnaud acenou lentamente com a cabeça.
– Vamos partir do princípio de que ela deixou o culto quando descobriu
que estava grávida.
Fiona ficou impressionada. Ela e Damian tinham chegado a conclusão
semelhante, mas só vários dias depois de terem descoberto o vídeo, depois
de várias noites passadas ao telefone, cada um na sua cidade, a beber vinho,
a planear e a discutir teorias ao telefone. Nunca se tinham dado tão bem em
quinze anos, mas quem é que se importava com isso agora? De vez em
quando, Fiona ouvia a voz da mulher de Damian por trás e Damian dizia a
Karen acha que devíamos fazer tal e tal, mas nunca era nada útil.
Karen acabara de saber que tinha cancro da mama, um tipo de cancro que
respondia bem aos tratamentos, e ia começar a fazer radioterapia na semana
seguinte; isso, a par do calendário escolar, era o motivo de Damian não
estar com ela em Paris.
– E a família do namorado? – quis saber Arnaud. – Tiveram notícias
dele?
– Só conheço a mãe – disse Fiona. – Ela não... Na verdade, ela não quer
saber nada dele.
Tinha o peito apertado e a cabeça a encher-se de estática. Sentiu a mão de
Serge no braço e percebeu que estava mais perto da omelete do que devia.
Tinha tombado para a frente.
– Ela chegou esta manhã – estava Serge a dizer.
– Não comeu nada – disse Arnaud.
– Eu levo-a para casa.
– Estou a ouvir-vos – disse Fiona. – Não me fui embora.
– Vou buscar a mota.
– Não! – protestou ela. – Ainda não acabámos!
Arnaud dobrou o guardanapo num triângulo muito direito e prendeu-o
debaixo do prato.
– Já acabámos, sim. Agora o que tenho a fazer é procurar.
1985
as semanas a seguir ao enterro de Nico, ninguém queria fazer grande
N coisa. Ligavam uns para os outros mas havia sempre alguém ocupado,
porque ia levar comida a Terrence, ou porque estava doente – doenças
normais, com tosses causadas pela descida de temperatura. Os que tinham
famílias iam passar o Dia de Ação de Graças a casa, fingir-se
heterossexuais em frente a sobrinhas e sobrinhos, garantir aos avós que
tinham namorada, não, nada sério, apenas uma rapariga simpática.
Assegurar aos pais, quando estes os apanhavam sozinhos em garagens e
corredores, que não, não iam apanhar aquela doença nova. Charlie e a mãe,
como eram britânicos, não ligavam ao feriado, apesar dos protestos de Yale
de que era um dia para imigrantes. Imigrantes britânicos, especialmente!
Yale acabou por cozinhar frango para si e para Charlie, e Asher Glass,
Terrence e Fiona juntaram-se-lhes. Teddy e Julian viriam para a sobremesa.
Asher foi o primeiro a chegar e, depois de dar a Yale o pão que fizera
(ainda quente, enrolado num pano), estendeu-lhe um envelope de papel
pardo.
– Não me deixes pegar nisto até ao fim da noite – pediu. – Esconde-o. Só
mo dás quando estivermos com o café na mão, está bem?
Yale não compreendeu mas pôs o envelope em cima do frigorífico e foi
buscar uma faca de serrilha para o pão. Asher tinha sotaque de Nova Iorque
e a forma como pronunciava certas palavras – café, por exemplo – dava
sempre vontade a Yale de as repetir baixinho.
Charlie serviu um gim tónico a Asher, sem lhe perguntar se queria.
– Então, saíste mesmo – disse. – Não vais voltar atrás?
A clínica Howard Brown, de cuja direção ambos faziam parte, decidira
finalmente, após muito debate, começar a oferecer o teste HTLV-III a partir
do mês seguinte, o mesmo teste que os médicos já faziam desde abril. Asher
demitira-se, de forma dramática. Segundo Charlie, batera com uma
esferográfica na mesa com tanta força que ela rebentara e ele saíra da sala
de reuniões com as mãos azuis.
Há vários anos que Yale tinha uma paixoneta por Asher, às vezes bastante
forte. Era uma paixoneta muito específica: intensificava-se principalmente
quando Asher se zangava com alguma coisa e ficava com voz de estentor.
(O mais ridículo dos primeiros amores de Yale era Clarence Darrow, a
personagem da peça O Vento Será a Tua Herança, que lera no décimo ano.
Durante duas semanas evitara participar na aula, convencido de que ficaria
vermelho como um tomate se começasse a falar sobre a peça.) Era curioso,
porque, quando Charlie se enervava, Yale só queria enfiar bolas de algodão
nos ouvidos. E a atração por Asher aumentava também quando o seu cabelo
escuro estava revolto, como era o caso agora, e lhe fazia lembrar um
Marlon Brando jovem e rude. Mais corpulento e mais desastrado, mas
mesmo assim...
Asher exercia a profissão de advogado a partir do seu apartamento, em
Aldine, e aquilo que começara por ser trabalho de ativismo pelo acesso à
habitação rapidamente se transformara em batalhas de testamentos e
heranças. Era um amigo diurno, não um daqueles com quem se percorriam
os bares à noite. Na verdade, a vida amorosa dele era um mistério e Yale
nunca conseguira perceber se Asher lidaria com o sexo com a mesma
intensidade com que lidava com o trabalho ou se, depois de esgotar a
paixão nas batalhas durante o dia, preferia ligar para um acompanhante
pago uma vez por semana. Ultimamente, Asher falava muito sobre a
diferença entre ativismo e defesa, e Yale não se lembrava qual das duas ele
apoiava ou se queria que toda a gente fizesse ambas as coisas. Tinha
ombros fortes e pestanas compridas e escuras, e Yale tinha de fazer um
grande esforço para não lhe olhar para os lábios enquanto ele falava.
A voz de Asher já começava a ribombar, tão portentosa que Yale achou
que Terrence o ouviria, se alguém lhe tivesse aberto a porta do prédio e ele
viesse a subir as escadas.
– Ouve, todos enfrentamos uma sentença de morte, certo? Tu e eu não
sabemos quando é. Pode ser um dia, cinquenta anos. Queres encurtar essa
incerteza? Queres viver com medo? Porque isso é tudo o que a análise te dá.
Quer dizer, mostra-me onde está a cura milagrosa e eu faço a porcaria da
análise, obrigo toda a gente a fazê-la. Mas, enquanto isso não acontecer, de
que adianta? Queres ir parar a uma base de dados do governo?
Charlie disse:
– Sabes qual é a minha posição.
– Eu sei, e ouve. – As mãos de Asher agitavam-se enquanto falava, com o
gim a escorrer pelos lados do copo. Yale encostou-se ao lava-loiça e
observou aquelas mãos como se fossem um espetáculo de fogo de artifício.
– Se a tua prioridade é o sexo seguro, a análise não serve de nada. Metade
dos tipos que a fazem adquire uma falsa sensação de segurança e a outra
metade descobre que está a morrer. Ficam deprimidos, embebedam-se, e o
que achas que vão fazer? Não vão a correr para a loja de preservativos,
podes ter a certeza.
Charlie ainda se estava a rir da «loja de preservativos», a fazer piadas
sobre Trojans R Us, quando Terrence e Fiona tocaram à campainha lá em
baixo. No tempo que demoraram a subir as escadas, Asher pigarreou e
mudou rapidamente o tema da discussão, opinando que não havia comida
chinesa decente em Chicago. Yale contrapôs que bastava irem a Chinatown
e estarem dispostos a comer patas de galinha.
Terrence e Fiona entraram, de braço dado.
Terrence deu uma garrafa de vinho a Charlie e disse, na sua voz mais
branca:
– A minha esposa e eu ficámos presos num engarrafamento terrível à
saída de Sheboygan. Graças a Deus que estamos a renovar as
infraestruturas, com a economia de redistribuição e etc., Deus proteja os
Estados Unidos.
Pareciam bem, os dois enlutados de Nico, mas uma pessoa só via o
exterior. Os caracóis loiros de Fiona conferiam-lhe sempre um certo ar
vibrante, alerta, que compensava qualquer sinal de fadiga. E Terrence...
estava magro, mas, se não tivesse feito a análise, ninguém diria que estava
doente. E de que adiantara fazer a análise, na verdade? Talvez bebesse um
bocadinho menos. Talvez dormisse um bocadinho mais. Já era qualquer
coisa.
– O envelope – murmurou Asher a Yale. – Só depois do café.
Yale passou a noite toda ansioso, incapaz de se concentrar. Em parte, por
estarem em finais de novembro – ficava sempre agitado quando o sol se
aproximava da sua hibernação – e, talvez, em parte também devido à
presença de Asher, embora essa fosse, regra geral, uma ansiedade
agradável. Talvez por saber que Teddy ia aparecer mais tarde e era a
primeira vez que o via desde a vigília de Nico, quando o seu fantasma
desaparecera com o fantasma de Teddy no primeiro piso da casa de
Richard.
E, além de tudo isso, havia o facto de ainda estar à espera das fotografias
de Nora. Mal começara a ficar entusiasmado com o projeto e ele parecia ter
estagnado. Enviara-lhe um bilhete simpático, com cópia para o advogado.
Depois, separadamente, conforme prometera, mandara algumas fotografias
do espaço da galeria, sem obter qualquer resposta. Fizera asneira; partira do
princípio de que tinha o número dela em arquivo, e agora Cecily dizia-lhe
que nunca o tinham tido, que toda a comunicação fora feita por correio. Nas
Informações também não o tinham. Escreveu ao advogado de Nora, a
perguntar se sabia notícias dela e a sugerir que gostaria muito de ter o seu
número de telefone. Stanley respondeu que aprendera com o tempo que o
melhor era sempre não incomodar Nora, mas que ela certamente diria
qualquer coisa. Sem lhe mandar qualquer número de contacto. Yale ligou a
Stanley, cujo número estava no cabeçalho da folha, mas a secretária disse-
lhe que, uma vez que ele estava semirreformado, só ia ao escritório alguns
dias por semana e não, não sabia dizer-lhe que dias, mas ficaria com uma
mensagem. Voltou a ligar dias mais tarde e ela disse que transmitiria
novamente o recado. Yale não queria parecer demasiado insistente, não
queria que o advogado fosse dizer a Nora que tinha uma má impressão
daqueles tipos da Northwestern.
Assim, durante o prato principal, enquanto todos debatiam o Live Aid,
em relação ao qual Asher tinha uma qualquer embirração obscura, Yale
abordou a situação de Nora com Fiona.
– Não a achaste incrível? – disse Fiona. – Quero ser igual a ela quando
crescer. Teve aventuras com tantos artistas! A sério!
– Podias sair daqui e fazer sexo com artistas agora mesmo.
– Oh, sabes bem o que quero dizer. Ela teve uma vida, sabes? Foi a única
da família que nunca afastou o Nico. Mandava-lhe um cheque de cinquenta
dólares todos os meses.
Nico nem sequer precisara de lhe dizer que era gay, contou Fiona; Nora
sempre soubera. Mas não, Fiona não tinha o número dela. Vira-a num
casamento de família em agosto, no Wisconsin, e fora durante uma
conversa sobre arte e sobre Paris que Fiona lhe falara no trabalho de Yale e
lhe dissera que devia entrar em contacto com ele. Mas Nora telefonara-lhe,
para dizer que tinha gostado muito de Yale, contou Fiona.
– E deve ter-te adorado – continuou –, porque foi a única vez que me
telefonou na vida. – Talvez o pai dela tivesse o número. Prometeu que ia
tentar arranjá-lo. Yale conhecia-a demasiado bem para acreditar que ela não
se esqueceria.
Ao fundo da mesa, Terrence falava sobre a sua nova prática de meditação,
os seus cristais, as suas cassetes de alívio de stress, e Asher ria-se e abanava
a cabeça.
– Ouve – disse Terrence –, tu continua a tentar descobrir como podes
salvar o mundo. Eu ando a ver se consigo ganhar mais uns meses de vida.
Se for preciso comer os cristais, podes ter a certeza de que o faço.
Asher disse:
– Posso sugerir outro sítio para pores os cristais.
Fiona deu-lhe um murro no braço, com tanta força que Asher fez uma
careta e lhe disse para se portar bem.
Foi Fiona que ajudou Yale a levantar a mesa, ou pelo menos que segurou
a porta que separava a cozinha minúscula da sala de jantar. Os outros
retiraram-se para a sala de estar, para Terrence poder ver a segunda parte do
jogo dos Cowboys.
Depois de abrir a torneira, Yale baixou a voz.
– Ouve lá, disseste ao Charlie que eu tinha ido lá para cima com o Teddy?
Na casa do Richard?
– Oh! Oh, meu Deus, Yale, tenho andado para te pedir desculpa. –
Encostou-se à bancada, içou-se e sentou-se em cima dela, com os pés a
baloiçar. – Sabes como ficamos muito certos das coisas quando estamos
bêbedos? Eu estava bêbeda, e o Charlie não te encontrava e eu tinha-te visto
subir, e depois alguém disse que tinha visto o Teddy subir também e eu
comecei a dizer «o Yale está lá em cima com o Teddy», porque achei que
estava a ajudar. Parece que não.
– Bem me parecia – disse Yale. – Foi o que eu pensei. O Teddy nem
sequer lá estava. Saiu assim que começaram a passar os slides.
– Ai, Yale, não queria causar problemas. Mais tarde ouvi dizer que o
Charlie ficou... oh, céus.
– Não faz mal – disse ele. – É a coisa menos importante no que toca
àquela noite.
Yale esvaziou os pratos enquanto Fiona se juntava aos outros na sala. Se
não tratasse disto já, enquanto Charlie estava ocupado a receber os amigos e
a fingir que percebia de futebol americano, Charlie insistiria em lavar a
loiça toda sozinho mais tarde.
Quando finalmente entrou na sala, a conversa cessou abruptamente.
– O que foi? – quis saber.
– Explico-te mais logo – disse Charlie.
– Não, o que foi?
– Os Cowboys estão a ganhar – disse Terrence.
Asher tentou beber um gole da sua bebida, mas tinha o copo vazio.
– Oh, digam-lhe lá – pediu Fiona.
Charlie deu uma palmada no sofá, mordeu o lábio e olhou para o
televisor.
– Pareceu-me ver a tua mãe.
– Oh...
– Quer dizer, vi-a mesmo. A fazer de enfermeira num... num anúncio a
paracetamol. Disse meia dúzia de coisas. Nada de especial.
– Não sabíamos que a tua mãe era uma estrela de cinema – disse Asher.
Yale sentiu-se tonto.
– E não é.
Há uns dois anos que isto não acontecia, esta espécie de emboscada.
Houvera uma vez um anúncio de café Folgers Crystals em que ela fazia de
empregada de mesa. E aparecera como rececionista num episódio de Simon
& Simon. Yale odiava – e Charlie devia ter-lhes dito isso, caso contrário não
estariam a olhar para ele assim –, odiava, de forma visceral, a humilhação
de só ter direito aos mesmos dois segundos da mãe a que o resto do país
tinha acesso. Odiava a necessidade que sentia de a ver, o facto de não
conseguir virar o rosto com indiferença. Odiava não a ter visto agora,
odiava que todos a tivessem visto menos ele, odiava que estivessem com
pena dele, odiava o facto de odiar tão intensamente tudo isto.
Quando Yale tinha sete anos, o pai levara-o a ver Boneca de Luxo no
cinema – e Yale, como sabia que a mãe era atriz e que as atrizes se
disfarçavam para representar os seus papéis, convencera-se de que era ela
que fazia o papel de Holly Golighty. Queria que fosse ela a cantar «Moon
River», que lhe parecia exatamente o tipo de canção que a mãe cantaria se
ainda estivesse com ele. Rapidamente pôs de lado essa fantasia, mas
durante anos, quando tinha dificuldade em adormecer, imaginava Audrey
Hepburn a cantar para ele.
– É bom saber que está viva – disse.
Pegou no bloco que tinha na prateleira de baixo da mesinha baixa. Nessa
manhã começara a escrever o esboço de uma carta para o Fundo Anual.
Pegou numa caneta e pôs-se a contornar coisas que não precisavam de ser
contornadas.
– Estás bem? – perguntou Fiona.
Ele acenou com a cabeça, o jogo recomeçou e Charlie enrolou um dos
caracóis de Yale no dedo. Asher pegou na TV Guia e folheou-a como se
estivessem a pensar mudar de canal.
E depois a campainha tocou, graças a Deus.

Teddy estava sozinho.


– O Julian teve um ensaio de urgência, o que quer que isso signifique –
disse. – Manda dizer que lamenta. Oh, meu Deus, cheira tão bem. – Teddy
falava sempre como se tivesse metido speed, mas era só a sua maneira de
ser.
– Então não vem mesmo? – perguntou Charlie. – O que é que ele disse,
exatamente?
– Espero que esse «ensaio de urgência» seja um tipo giro – disse
Terrence.
Teddy agiu como era habitual: atirou o casaco para cima do sofá, abraçou
toda a gente. Bom, claro. Ele não sabia o que acontecera na noite da vigília
de Nico. Era como ter um sonho sexual com alguém e depois ver a pessoa
no dia seguinte. Parece-nos que ela tem de saber; esteve ali mesmo, no
sonho, e as coisas entre nós nunca mais poderão ser as mesmas. Mas claro
que eram.
Teddy tinha cabelo loiro ondulado, curto. O facto de a sua pele estar
sempre bronzeada, mesmo em pleno inverno, fazia-o parecer uma estátua
de bronze, ou uma gravura de Hermes retirada de um livro infantil sobre
mitologia. Tinha uma cicatriz a meio do lábio inferior, resultado do lábio
leporino reconstruído na infância, uma linha quase invisível que podia
desfigurar-lhe o rosto mas, em vez disso, o tornava irresistível para
qualquer pessoa que andasse à procura de um rapazinho delicado. Não era o
caso de Yale, nem nunca fora. Teddy parecia um adolescente e não tinha
mais de um metro e sessenta de altura.
Charlie estava atarefado a servir a sobremesa, sem olhar para Teddy nem
para Yale. Parecia distraído; contou mal as taças e depois deixou a colher de
servir na cozinha. Yale queria pará-lo, massajar-lhe o pescoço, reconfortá-
lo, mas não queria chamar a atenção para o desconforto de Charlie. Nem
sequer queria que Charlie se lembrasse do assunto, agora que ele jurava
compreender, a cem por cento, que não acontecera nada em casa de
Richard.
O doce de camadas era uma das únicas receitas que Charlie fazia, e
orgulhava-se de o ensopar de xerez. Yale já aprendera a contar cada dose
como se fosse uma bebida.
– Fi – disse Teddy a Fiona enquanto comiam –, já tens idade para isto?
Ela arvorou um ar ofendido.
– Tenho vinte e um anos feitos – protestou. – Desde dia três de setembro.
– Não me convidaste para a festa!
– A festa foi só para pessoas simpáticas.
Yale calculou que ela não devia sequer ter festejado, no meio daquele
verão horrível. O seu vigésimo aniversário fora uma festa de dança em casa
de Nico, com luzes strobe. Este aniversário teria sido provavelmente
passado na sala de espera do hospital.
– Só posso ficar dez minutos – disse Teddy. – Tenho um jantar em casa do
meu conselheiro de tese.
– Isto é o teu aperitivo? – perguntou Asher.
Teddy enfiou a colher na boca, virada para baixo, e retirou-a
dramaticamente, à laia de resposta.
– É o meu limpa-palato! Já jantei em casa da minha mãe. Então, o que
pensam todos desta coisa da Howard Brown? – E depois, perante o silêncio
embaraçado, esclareceu: – Vão começar a fazer a análise.
– Calculo que toda a gente saiba – disse Terrence.
– Quer dizer, sabem que eu continuo a ser contra, mas talvez estas
análises possam ser mesmo anónimas. Claro que, se eu quiser verdadeiro
anonimato, vou fazer a análise a Cleveland ou coisa que o valha.
– Teddy – disse Fiona –, é Dia de Ação de Graças. Não devíamos...
Asher interrompeu:
– Claro, vão dar anonimamente uma falsa noção de segurança a toda a
gente.
Terrence estava a olhar para a sobremesa e a alisar as natas com a colher.
– O Asher prefere que andemos todos por aí a morrer de úlceras – disse
Charlie. – Quer que as pessoas se matem com a bebida por causa do stress.
– Yale deu-lhe um pontapé por baixo da mesa, mas Charlie continuou a
falar. – Isso quer dizer que vais fazer a análise?
– Nem pensar! Nem sei se as análises funcionam. Como sabemos que não
é tudo parte da mesma conspiração governamental que criou o vírus? Só
estou a dizer que...
– Chega! – disse Fiona, batendo com o copo na mesa.
Teddy abriu a boca mas pensou melhor.
Terrence disse:
– Olhem... como é que se chama um preto que estuda rochas?
Fiona foi a única que reagiu, com uma risadinha espantada.
– Não sei – disse. – Como?
– Geólogo, seus racistas.
Depois dos risos, a conversa, felizmente, dividiu-se em três direções
frívolas.
Yale levantou-se para pôr um disco.
Teddy despediu-se, pegou no casaco e saiu.

– Quem é que quer café? – perguntou Yale. Olhou para Asher ao fazer a
pergunta, porque ela era na realidade sobre o envelope. Asher assentiu com
um aceno, levantou-se e foi tirá-lo do topo do frigorífico, mas ninguém se
dirigiu à cafeteira.
– Vamos tornar isto festivo – disse Asher. – Que tal uma pequena
cerimónia? – Tirou os papéis do envelope e pediu uma caneta a Charlie.
Terrence olhou para Fiona.
– Queres que me ajoelhe?
Yale olhou para Charlie, para ver se ele sabia o que se passava. Charlie
murmurou:
– Procuração.
Fazia sentido. Os pais de Nico tinham lidado de forma péssima com os
cuidados médicos de Nico – transferindo-o para um hospital que nem
sequer o queria lá – e, depois, tinham reivindicado também a organização
do funeral. Pelo que Yale sabia, Terrence não devia querer a família a tomar
decisões médicas por ele. Não via a mãe havia anos e não regressava à casa
onde crescera, em Morgan Park, South Side, desde que acabara o ensino
secundário. Mesmo assim, parecia um grande peso para colocar sobre os
ombros de Fiona. Era apenas uma miúda.
– Já preenchemos a parte das limitações, mas dá uma vista de olhos. E
tens de rubricar uma destas três – disse Asher, apontando. Tirou a tampa da
caneta e passou-a a Terrence.
– É a primeira que eu quero, certo? Não desejo medidas de
prolongamento de vida?
Asher pigarreou.
– Foi o que falámos. Mas lê bem.
Terrence demorou muito tempo a ler a folha.
– Oh! – exclamou Fiona. Parecia que tinha estado a tentar lembrar-se de
alguma coisa para dizer, algo para preencher o silêncio. – Tenho uma
história muito querida para vos contar! – Disse-lhes que uma das meninas
da família em casa de quem trabalhava como ama, a de três anos, conseguia
ouvir os leões e lobos do Lincoln Park Zoo à noite, pela janela do quarto, e
portanto partira do princípio, até há pouco tempo, de que as criaturas
vagueavam pela cidade depois de escurecer. Fiona pedira autorização à mãe
para a levar ao parque uma noite, depois da hora de deitar, para lhe mostrar
os animais presos nas suas jaulas.
– Eu costumava ir à procura de engates no jardim zoológico – disse
Charlie.
Terrence achou isto hilariante e pousou a caneta.
– É verdade! Lembras-te do Martin? Foi lá que o conheci. Bom, perto do
jardim zoológico.
Quando Yale o conhecera, Charlie andava com um tipo enorme, de barba,
chamado Martin, que tocava bateria numa banda de new wave péssima.
Yale nunca conseguira perceber como Charlie pudera passar de alguém
assim para um tipo como ele – pequeno e cauteloso. Nesse verão, quando
começou a estar mais tempo com eles, Yale percebeu facilmente que era
Martin que andava atrás de Charlie e não o contrário. Quando Yale
aparecia, ele pousava a mão no ombro de Charlie e deixava-a lá ficar o
máximo que podia. Quando Charlie convidou Yale para uma bebida pela
primeira vez, no balneário da piscina de Hull House, Yale já sabia que
Charlie estava disponível. Pelo menos emocionalmente.
Era engraçado: Yale gostava de ir nadar em Hull House precisamente
porque não havia lá uma cena gay; o único amigo que encontrava na piscina
era Asher, que provavelmente a escolhera pelo mesmo motivo. Era um sítio
frio e nada sexy. E depois Charlie começou a aparecer.
Nesse dia, Yale e Charlie estavam ambos molhados de nadar e Yale ficou
contente por poder justificar o rubor com o exercício. Soube mais tarde que
Charlie detestava nadar e andava a engolir cloro só para se cruzar com Yale.
Já eram amigos nessa altura, mas havia algo diferente – mesmo da forma
mais inocente – na intimidade dos balneários. (Mais tarde, quando as
pessoas lhes perguntavam como tinham começado a relação, odiavam
admiti-lo, relatar o que mais parecia o início de um filme porno.) Foram
beber um copo a casa de Charlie, e Martin rapidamente se tornou uma
memória distante, exceto nas primeiras vezes que se cruzara com Yale em
bares e saíra porta fora assim que o vira. Contudo, por causa do tamanho de
Martin, Yale sempre se sentira mais pequeno ao lado de Charlie do que
devia. Charlie era dez centímetros mais alto do que ele – dez centímetros,
cinco anos e dez pontos de QI, era a piada que Yale costumava fazer –, mas
mais parecia meio metro.
Asher perguntou a Terrence se tinha alguma dúvida e este finalmente
abanou a cabeça e rubricou os papéis. Assinou na última página com um
tremendo floreado, de cotovelo no ar.
Asher virou-se para Fiona.
– Precisamos de saber que tens a certeza.
– Tenho!
– Se alguma coisa correr mal – continuou ele –, se alguém contestar a
procuração, serei eu a esclarecer as coisas. Está bem? Mas, ouve, tens de
pensar no que pode acontecer, se a família aparecer.
– Preocupamo-nos com isso na altura, se acontecer – disse ela.
– Certo. – Asher estava a falar lenta e cautelosamente. – Mas o «nós»
pode não incluir o Terrence, se ele estiver inconsciente.
Yale reabasteceu o copo de vinho de Terrence e desejou que Asher
parasse de falar. Yale sabia que aquilo que Terrence mais temia era a
variedade da doença que o tornaria um vegetal ou – pior ainda, para
Terrence – que o faria andar pela cidade em estado alheado. Toda a gente
sabia que um amigo de Julian, Dustin Gianopoulos, na parte final da
doença, entrara na livraria Unabridged Books em pleno dia, com a diarreia
a escorrer para fora dos calções, pernas abaixo, e tentara comprar um monte
de revistas, maníaco e completamente fora da realidade. Como isto
acontecera em 1982 e ainda ninguém vira tal coisa, tinham corrido rumores
de que estava drogado. Yale e Charlie, e todos os outros, tinham-se rido da
história, até lhes chegar a notícia, duas semanas depois, de que Dustin
morrera de pneumonia.
– Sou uma veterana, Asher – assegurou Fiona. Assinou ambas as cópias
do documento e levantou os papéis como se tencionasse beijá-los, deixar
uma marca de batom.
– Não faças isso – disse Asher.
– Estava a brincar! Credo! – Riu-se e enfiou a caneta atrás da orelha.
Asher perguntou se Yale e Charlie assinariam como testemunhas; sim,
claro que sim.
– Vocês os dois já pensaram nisso? – perguntou-lhes depois. Há anos que
andava a pressioná-los para assinarem documentos, mas eles nunca mais se
decidiam e, entretanto, a análise aparecera e tornara o assunto menos
urgente.
– Devíamos tratar disso – disse Yale. – Para a próxima, está bem?
Terrence estava agora muito calado. Fiona abriu outra garrafa de vinho e
Yale já tinha perdido a conta a quantas tinham esvaziado, mas estava certo
de que Fiona bebera mais do que qualquer um deles. A colher escorregou-
lhe da mão e caiu ruidosamente na taça. Ela riu-se e todos a acompanharam,
exceto Yale.
Perguntou-lhe como tencionava ir para casa e ela apontou-lhe o dedo e
semicerrou os olhos.
– Pó de fadas – disse.

Em dezembro, Charlie andava mais ocupado do que nunca e a beber mais


café do que Yale considerava saudável. Deixara-se envolver no comité de
planeamento da angariação de fundos pré-natalícia a favor da nova linha de
apoio à sida na Howard Brown e andava a tratar de toda a publicidade. Iam
organizar um leilão silencioso e uma quermesse no primeiro piso do
restaurante Ann Sather, em Belmont, uma melhoria assinalável em relação
às palestras no apartamento de alguém em que passavam um cestinho de
doações. Yale estava ansioso pelo evento, na verdade. Gostava muito do
Natal, que só começara a celebrar depois de se juntar com Charlie, e mal
podia esperar por reencontrar toda a gente.
Uma noite, Yale e Charlie estavam num restaurante vietnamita em
Uptown, enrolados em casacos, ao fundo da sala, e Yale disse:
– Porque não pedes ao Richard que faça um ensaio fotográfico da festa?
Para o jornal? Assim uma coisa artística e jornalística, não fotos de festa
normais. Uma mão com um copo em grande plano, esse tipo de coisas.
Charlie pousou os pauzinhos na tigela de noodles e ergueu os olhos para
Yale.
– Oh, meu Deus – disse. – Sim! – Yale sentiu-se aliviado, como se tivesse
empatado o jogo, compensado Charlie de alguma coisa. Charlie mordeu o
lábio, o que era código para: Espera até chegarmos a casa.
No entanto, quando chegaram a casa, Charlie estava cansado e queria
dormir. Tivera febre antes do Dia de Ação de Graças, uma febre alta, ao
princípio, que parecia nunca mais passar, embora agora fosse baixa. Um
ano antes, ambos estariam preocupados com a possibilidade de isso
significar o fim. O facto de uma febre poder ser apenas uma febre, uma
tosse ser apenas uma tosse, uma irritação na pele apenas uma irritação na
pele – essa era uma das dádivas que a análise lhes trouxera. Era neste aspeto
que Asher estava enganado: o conhecimento, em alguns casos, era uma
bênção. Yale levou-lhe um chá à cama e disse-lhe que devia ficar em casa
no dia seguinte.
– Nem pensar – recusou Charlie. – Se alguma vez os deixar fazer um
jornal inteiro sem mim, ainda ficam com ideias.
*
Na tarde seguinte, Cecily Pearce ligou para pedir a Yale que se
encontrasse com ela para tomar um café no Clarke’s, um sítio repleto de
néon que deixava sempre Yale com dores de cabeça. O seu tom de voz era
tão agitado que, pelo caminho, Yale desenvolveu uma teoria paranoica:
Cecily esquecera-se de parte da noite que tinham passado em Door County
há um mês e só esta manhã se lembrara de ter oferecido cocaína a Yale, de
lhe ter pousado a mão na perna. Ou talvez se lembrasse disso mas não do
resto, não da confirmação da orientação sexual de Yale e de que ele a
deixara no quarto e saíra.
Quando chegou, cinco minutos adiantado, Cecily já estava à espera e já
tinha pedido um café para ele, num copo para levar.
– Não estou com disposição para me sentar – disse.
Yale não queria voltar para o frio, mas ela já estava a abotoar o casaco e a
dirigir-se à porta. Seguiu-a para o passeio e conseguiu conduzi-la
novamente para a universidade, antes que Cecily se lembrasse de caminhar
na direção do gelo do lago. Ela não se queixou. As suas luvas condiziam
com o chapéu e o cachecol: tudo de um tom creme suave que a fazia
parecer frágil.
– Temos um problemazinho – disse ela. – Teve mais notícias da nossa
amiga Nora?
– Nem uma palavra.
– Hum. Ainda bem. Francamente, estou com esperança de que toda esta
situação desapareça. – Parou e olhou distraidamente para uns manequins
sem cabeça na montra de uma loja. – Há um doador, um membro da
direção, na verdade, chamado Chuck Donovan. Da turma de 1952. É um
indivíduo que dá dez mil dólares por ano para o fundo anual, mas tem um
legado preparado de dois milhões. Não é o maior doador de todos os
tempos, mas precisamos dele. Não podemos deitar fora esse tipo de
dinheiro.
– Claro que não. – Yale tinha a sensação de estar a ser repreendido, mas
não imaginava porquê.
– Tenho de lhe explicar de quem estamos a falar – continuou ela. – Trata-
se de um homem, e não estou a inventar, que uma vez doou um piano
Steinway à escola de música e que, depois de um desentendimento qualquer
com o reitor, entrou pessoalmente no edifício e removeu a placa com o seu
nome do piano. Com uma pequena chave de fendas.
Yale desatou a rir – não conseguiu evitar – e Cecily juntou-se a ele. Não
devia ter sido muito engraçado na altura, quando se vira obrigada a lidar
com os telefonemas todos.
Recomeçou a andar e Yale desviou-se de alguns estudantes para a
acompanhar.
– Bom. Ontem, recebi um telefonema do Chuck Donovan, que andou a
falar com o Frank Lerner. O Frank é o filho da Nora. É ele o proprietário da
casa.
– O pai da Debra – disse Yale.
– Exato. Trabalham ambos na área do equipamento médico e imagino que
sejam parceiros de golfe, ou coisa parecida.
– Então o Frank está zangado connosco e foi fazer queixinhas? –
perguntou Yale. O café estava demasiado quente e escaldou-lhe a língua.
Não ia conseguir saborear o jantar.
– Ha! Sim. Mais do que isso. O Chuck fez um pequeno discurso. Disse-
me: «Podem ficar com as peças de arte daquela mulher, ou com o meu
legado, mas não com ambas as coisas.» Ao que parece, prometeu ao
Frank... qualquer coisa sobre uma «promessa de cavalheiros»... que ia pôr
fim a isto. Talvez acabe por não ser problema, se não tivermos mais notícias
dela. E, mesmo que as peças sejam genuínas, nunca valeriam dois milhões,
pois não?
Era uma pergunta retórica, mas Yale inspirou uma golfada de ar gelado.
– Quer dizer, depende do que ela tiver. Mas com os Modiglianis, o
Soutine... há uma boa probabilidade de que, se forem verdadeiros, e se
forem mesmo pinturas e estiver tudo em boas condições, valham mais de
dois milhões.
Cecily estava um passo à frente, pelo que ele não conseguia ver-lhe o
rosto, mas ouviu o som que ela fez.
– Não era isso que eu queria ouvir – lamentou-se.
– Não posso mentir.
– O problema é este, Yale: já não se trata apenas de corrermos um risco
com as peças, talvez envolver outro doador para as autenticar. Agora
estaríamos a pagar dois milhões por aquelas peças. Basicamente,
estaríamos a comprá-las por dois milhões de dólares. Quando nem sequer é
uma aposta garantida.
– Certo – disse ele. – Certo. E ele está mesmo a falar a sério, esse Chuck?
Não acha que poderá ser bluff ? Não compreendo. Ele não tem qualquer
investimento pessoal no assunto, pois não? Quer apenas parecer
importante?
– Toda a sua vida foi passada a alimentar o ego – disse ela. – É o doador
mais complicado com quem já lidei.
Cuidadosamente, Yale disse:
– Mas não será possível que ele esteja tão ansioso por ajudar o filho da
Nora precisamente por saber que as peças são genuínas? Se fossem falsas,
ou meros esboços, não ia dar-se a tanto trabalho para ajudar um
companheiro de golfe.
– O Chuck Donovan não é nenhum especialista em arte – disse Cecily. –
E duvido que o filho da Nora seja. E... uma coisa era estarmos a falar de um
Rembrandt autenticado. Mas tenho de dar justificações a pessoas acima de
mim, como deve compreender.
– Claro. – O Sol já se pusera e Yale desejou ter trazido um gorro.
– Se forem verdadeiras – disse ela –, sem ofensa, mas por que raio havia
ela de querer que as obras ficassem para nós?
– Boa pergunta. – Era mesmo. Porque não deixar tudo à família? Ou ao
Instituto de Arte? – Mas imagine que damos uma olhadela às obras e elas
nos parecem verdadeiramente prometedoras. Coisa para valer muito mais
de dois milhões... e lembre-se que, quando estamos a falar de arte, o valor
tem mais tendência para subir do que o contrário... nesse caso, valeria a
pena, certo?
Cecily não estava nada contente com o rumo da conversa e começou a
andar mais depressa, de olhos baixos.
– Não podemos esperar até estar tudo autenticado? – perguntou.
– Isso pode demorar anos. Se esperarmos, a Nora acabará por morrer, o
filho pode fazer sabe Deus o quê e vai tudo por água abaixo.
– Não sou sua chefe, Yale. Tecnicamente, não posso dizer-lhe o que fazer.
Mas o Chuck Donovan consegue dificultar a vida a muita gente, e pode
bem dificultar a sua.
Uma mulher com um golden retriever passou entre eles, e o cão cheirou a
perna de Yale e conseguiu limpar a boca às suas calças de caqui, deixando
uma mancha de baba enlameada. A dona pediu desculpa e Yale olhou para
o relógio. Ele e Charlie tinham bilhetes para o teatro e, agora, seria
obrigado a mudar de roupa quando chegasse a casa. Já eram 17:05.
– Compreendo o que está a dizer – respondeu Yale. – E talvez esta seja
uma conversa para ter também com o Bill.
– Oh, o Bill – disse ela. – O Bill limita-se a fazer perguntas. Sinto sempre
que está a fazer um frete em falar comigo. Quis falar consigo porque isto
tem a ver com dinheiro. E quero pedir-lhe para não me causar problemas.
Está bem? Tenho um filho para sustentar e o meu emprego está sempre
inseguro. Este ano ainda mais, por motivos que nem vou mencionar.
Algo mudara na voz dela e, embora pudesse ser intencional, uma
manipulação estudada, Yale sentiu que ela se abria um pouco. Que estava
desesperada, na verdade.
– Sim, eu compreendo – disse. – Bom, eu também tenho um chefe, e é o
Bill. Vou pô-lo a par da situação. Se tivermos sorte, o material será
claramente falso. Ponto final. Caso contrário... voltaremos a conversar.
– Vou deixá-lo aqui e passar pelo supermercado. – E, em vez de lhe
apertar a mão, apertou-lhe o bíceps.
Yale regressou à galeria com o vento gelado a soprar-lhe na cara. Baixou
a cabeça e caminhou como um touro prestes a investir. Não sabia bem o que
prometera, se é que prometera alguma coisa. Na realidade, nada mais do
que uma conversa futura. Como era ridículo ser repreendido e avisado em
relação ao que, bem vistas as coisas, não passava de uma fantasia. Tinha
pena dela, a sério que tinha, mas sentiu um azedume a queimar-lhe a
garganta. O vento cortou-lhe a pele.

Yale e Charlie há muito que tinham bilhetes para ver Julian a representar
Hamlet, no Victoria Gardens.
– Bem – dissera Julian quando os convidara –, não faz parte do calendário
regular, é nas noites de folga.
O espetáculo era apresentado pela Companhia Wilde Rumpus e era assim
que funcionavam – nos teatros de outras companhias, nas noites em que a
casa estaria às escuras.
Era o último espetáculo para o qual Nico desenhara os cenários. Tinha
acabado de concluir os esboços quando adoecera e a companhia executara-
os o mais fielmente possível. Fora Julian que apresentara Nico ao mundo do
teatro, que o trouxera para a companhia. A verdade era que Nico era o tipo
de pessoa que levava a que os outros quisessem fazer algo por ele. Tinha
sempre um sorriso tão franco, parecia tão chocado e encantado quando
alguém se mostrava disposto a fazer-lhe o mais pequeno favor.
Yale correu para casa e despiu as calças sujas de lama, apenas para
descobrir que, de súbito, Charlie não tinha vontade de sair. Estava deitado
na cama, a olhar para o teto.
– Viste o que escreveram no Reader? – perguntou. – Disseram que a peça
era «desconcertante».
– É o Hamlet – respondeu Yale. – Claro que tem de ser desconcertante.
– Sabes quanto tempo tem o raio da peça? Vamos ser velhos quando de lá
sairmos.
Yale descalçara os seus sapatos e estava a enfiar novamente os mocassins
de Nico. Já tinham alargado um pouco, a pele assumira a forma dos seus
pés.
– Ah, é verdade – disse Charlie. – O teu pai ligou, acho eu.
O pai de Yale telefonava-lhe sempre nos primeiros dias do mês – tão
regularmente que Yale estava convencido de que se tratava de algo
planeado, um item a riscar da sua lista de afazeres, como verificar as pilhas
dos detetores de fumo. Não era um insulto; era apenas a forma como
funcionava o cérebro de contabilista do seu pai. No entanto, se fosse
Charlie a atender, Leon Tishman não deixava recado, simplesmente
balbuciava que era engano e desligava. Há cinco anos, quando estava tão
apaixonado por Charlie que mal conseguia conter-se para não o gritar a
plenos pulmões de cima dos telhados, Yale tentara dizer ao pai que tinha
uma relação. O pai começara a dizer «bop bop bop bop bop bop» ou coisa
parecida, um efeito sonoro para abafar a sua voz, para o impedir de falar.
– Já estava a estranhar ele ainda não ter ligado – disse Yale.
– Sim, mas não disse nada. Foi um bocado estranho. Só ouvi a respiração
dele.
– Podia ser um admirador secreto – brincou Yale. – Era uma respiração
ofegante?
Mas Charlie não se riu.
– Tens ideia de quem mais poderia ser? Porque foi realmente esquisito.
Yale não estava a gostar do rumo da conversa. Podia ter respondido em
tom defensivo ou podia simplesmente ter tranquilizado Charlie, mas disse
apenas:
– Bem, o Nico prometeu que nos vinha assombrar.
Charlie virou-se e escondeu o rosto na almofada.
– Não me apetece mesmo sair esta noite – disse, com a voz abafada.
– Anda lá, levanta-te. Vemos só a primeira parte, para podermos dizer que
vimos os cenários.
– Gostava de ver os cenários. Só não quero ver a peça.
– De onde é que saiu isto? É por causa do Julian? Não percebo. Não
podemos deixar de ter amigos só porque tu estás a passar por uma fase de
paranoia.
– Não comeces com isso – disse Charlie, e Yale ia abrir a boca para dizer
que não tinha sido ele a começar, mas Charlie sentou-se na cama e abriu a
gaveta da cómoda, para mudar de meias.

Era uma produção exclusivamente masculina, com dois homens


mascarados de mulher nos papéis de Ofélia e Gertrudes, Guildenstern e
Rosencrantz (representado por Julian) obviamente retratados como casal, e
Hamlet e Horácio também representados com essa intenção. Yale achou
tudo estranhamente hilariante, com frases como «Que obra-prima, o
homem!» a assumirem subitamente toda uma nova conotação, mas Charlie
não se riu e passou o tempo a dobrar e desdobrar o programa.
Os cenários de Nico eram desoladores e pós-apocalípticos. Hamlet não
vivia num castelo, pelos vistos, mas num beco – rodeado de escadas de
incêndio e contentores de lixo. Era estranhamente belo, embora talvez mais
adequado a West Side Story. Se Nico tivesse estado aqui para supervisionar
a construção, Yale calculava que ele teria adicionado mais cor, grafitti, luz.
Julian, como sempre, parecia nascido para o palco. O seu cabelo escuro
reluzia como tinta fresca.
Na escola secundária, Yale desejara ter o bichinho da representação. Não
queria as repercussões sociais, mas queria desesperadamente ter algo de que
falar com os tipos que subiam ao palco e que, sem qualquer embaraço
evidente, cantavam e dançavam em produções de Eles e Elas, de Camelot.
Mas a ideia de subir a um palco aterrorizava-o, muito mais do que o
estigma associado. Nunca conseguiria abrir a boca em frente de tanta
gente.
Fizera um comentário nesse sentido, de passagem, ao psiquiatra que
consultara na Universidade do Michigan, um tipo que sugeria, de vez em
quando, que Yale, mais do que homossexual, era um indivíduo solitário.
– Talvez esse desejo esteja relacionado com a sua mãe – dissera ele. – Um
desejo de se ligar a ela através do teatro?
E Yale pusera a ideia de lado e dissera que não tinha nada a ver. Porém,
desde então, perguntara várias vezes a si próprio se não seria algo até mais
simples do que isso – se não possuiria um gene do teatro latente que nunca
viera ao de cima mas que sentia, de longe a longe, a puxar por si.
O primeiro ato ainda não ia a meio quando Yale viu Asher Glass duas
filas à frente. As luzes do palco brilharam através das orelhas dele,
tornando-as translúcidas, e Yale conseguiu ver as veias finas que as
cruzavam.
No intervalo, encontraram Asher no átrio, a olhar para as prateleiras de
livros e t-shirts que a companhia trouxera para vender.
– Não é má, pois não? – perguntou Yale.
– Céus, sei lá. Nem sei porque estou aqui. Não me consigo concentrar, e
vocês?
– Acho que não é grave se te distraíste um bocadinho.
Asher fitou-o com ar confuso.
– Não, estou a falar do Teddy. Não consigo parar de pensar nele.
Charlie perguntou, num fio de voz:
– O que foi? Está doente?
Asher soltou uma gargalhada seca.
– Partiram-lhe o nariz. Ontem à noite.
– O quê?
– Bateram-lhe com a cabeça no passeio. Na Loyola. Ele dá lá uma aula
qualquer, não é? Vinha a sair e alguém... – Agarrou no cabelo da própria
nuca e fingiu empurrar a cabeça para a frente. – No passeio. Nem sequer foi
um assalto.
– E ele?...
– Está bem. Tem uma ligadura na cara, levou dois pontos e ficou com um
olho negro. Está em casa, se quiserem... mas está bem. É mais o facto de ter
acontecido. Não fazem ideia de quem terá sido. Nem se foi uma pessoa ou
cinco. Estudantes, gatunos ou algum imbecil que ia a passar pela
universidade.
– Já o viste? – perguntou Charlie.
– Sim. Sim, fui ajudá-lo a lidar com a polícia. Já sabem como eles são.
Mesmo que apanhem alguém, vão dizer que foi culpa do Teddy, que ele
enfiou a mão nas calças dos tipos ou coisa parecida. Vais falar disso no
jornal, certo?
– Na violência em geral? – perguntou Charlie.
– Não, nisto. Vais escrever sobre o que aconteceu ao Teddy?
Charlie puxou o lábio inferior.
– Isso depende do Teddy. E do meu editor.
– Tens de falar no assunto. Eu ligo-te amanhã.
E depois estava na altura de voltarem a entrar.
Yale tentou prestar atenção à peça mas só conseguia ver o rosto de Teddy
a bater no passeio, uma e outra vez, e, como havia tantas formas diferentes
de o imaginar, sentiu-se obrigado a dar oportunidade a todas: estudantes que
o tinham seguido depois da aula; adolescentes de bicicleta a agir num
impulso súbito. Teddy era tão pequeno. Fechou os olhos com força, para
expulsar a imagem.
Olhou de relance para Charlie algumas vezes e tentou ler as feições dele.
Charlie estava a tamborilar com os dedos no braço da cadeira, mas também
o fizera durante o primeiro ato. A seguir, Yale quis juntar-se às pessoas que
esperavam para dar os parabéns a Julian (Asher, os tipos da loja de
sanduíches onde Julian trabalhava e o contabilista rechonchudo com quem
Julian costumava andar), mas Charlie tinha de ir trabalhar.
– Podes ficar tu, se quiseres – disse, mas Yale não era parvo.

Essa sexta-feira era a véspera do início do Hanukkah e, assim, quando


chegou ao trabalho e Bill Lindsey sorriu e lhe disse que tinha algo à sua
espera na secretária, Yale temeu que fosse uma menorá. Bill nutria um
interesse desproporcional pelo judaísmo, ou então servia-se desse interesse
fingido para um flirt desajeitado. No entanto, o que encontrou foi um
grande envelope com remetente de Sturgeon Bay, Wisconsin. Sentiu a
adrenalina percorrer-lhe as coxas, como se a situação pudesse exigir que
desatasse a correr.
Bill não viera atrás dele, e podia muito bem tê-lo feito. Também podia ter
aberto o envelope. Yale tinha de lhe dar crédito por isso: o homem sabia
como deixar cada um ter os seus momentos.
Yale não falara a Bill sobre a conversa com Cecily. Estava com esperança
de que ignorar o problema o fizesse desaparecer. Bill sabia dos pormenores
básicos da viagem e que Yale estava intrigado em relação às peças. Fora a
palavra que Yale escolhera cuidadosamente, intrigado, em vez de
entusiasmado. Em parte porque o seu trabalho não era ficar entusiasmado
com a arte nem avaliar o seu valor.
Rasgou o envelope e espalhou as polaroides – mais de uma dúzia delas –
na secretária. Uma mancha de cor, traços e reflexos. Havia também uma
carta, mas isso podia esperar. Sentou-se, fechou os olhos e pegou numa das
fotografias ao acaso, para a analisar à luz da janela. Era um Foujita, ou pelo
menos pretendia ser um Foujita, recordou a si próprio, e na verdade era
instantaneamente possível identificá-lo como tal. E não era uma obra com a
qual estivesse familiarizado, não se tratava de uma cópia de algo famoso.
Uma jovem de perfil, um desenho simples feito a tinta, com pequenas
partes – do cabelo, do vestido verde – preenchidas a aguarela.
Encantadoramente incompleto e, ao mesmo tempo, completamente
acabado. Assinado, ao canto, em caracteres tanto japoneses como romanos.
– Muito bem – disse. – Muito bem.
Ia ser uma daquelas ocasiões em que falava sozinho. Esta tarde entregaria
as fotos a Bill, mas, por enquanto, eram suas. Apoiou as palmas das mãos
abertas na secretária. Não queria nenhuma repercussão de dois milhões de
dólares, não queria enfrentar a batalha legal que podia vir da família de
Nora, não queria ter de fazer o telefonema para Cecily, não queria pôr o
emprego em risco por causa disto, não queria, sequer, começar a
hiperventilar de excitação neste momento. No entanto, se estas obras se
viessem a revelar verdadeiras, seria a descoberta da sua carreira. Esta era a
versão de sonho do seu trabalho. O que Indiana Jones era para um normal
professor de Arqueologia, Yale era agora para um normal diretor de
desenvolvimento numa galeria modesta.
Os esboços de Modigliani foram os que lhe chamaram a atenção a seguir.
Bom, esboços não era a palavra certa. Eram desenhos simples, talvez
estudos para algo mais, talvez – como Nora sugerira – peças feitas em
pagamento a um modelo. Pareciam todos feitos a lápis azul. Três dos quatro
estavam assinados. Todos eram nus. Se fossem verdadeiros, se pudessem
ser autenticados, valeriam muito mais do que os esboços a lápis que Yale
imaginara.
Examinou mais três desenhos de Foujita – uma mulher de roupão, uma
mulher com uma rosa na mão em frente dos seios nus, uma pilha de fruta –
e ainda a pintura de um quarto vazio e o estudo a lápis de um homem de
casaco, nenhum dos quais parecia pertencer aos artistas que Nora
mencionara. Foi quando pegou na fotografia de um Soutine
maravilhosamente esborratado – céus, era uma pintura completa,
vertiginosa e louca – que se levantou da cadeira e voltou imediatamente a
sentar-se, sem força nas pernas. Esta obra retratava de forma muito clara a
mesma mulher dos desenhos de Foujita: loira, orelhas pequenas, seios
pequenos, uma malícia no sorriso. Seria Nora, em princípio. Se inclinasse a
cabeça, até lhe fazia lembrar Fiona. Estaria louco? Parecia mesmo Fiona.
Os Modiglianis eram demasiado abstratos para conseguir identificar Nora,
apenas traços e ovais pontiagudas.
Uma das fotografias mostrava uma caixa de sapatos cheia de papéis e,
depois de ter examinado e organizado cada uma das polaroides, Yale leu a
carta, datilografada em papel do escritório de advogados, para ver se
encontrava alguma explicação.

Caro senhor Tishman,


Primeiro que tudo, desejo-lhe umas boas festas! Encontrará junto
com esta carta dezanove (19) fotografias a documentar a coleção de
Nora Marcus Lerner. A senhora Lerner pede-me que lhe recorde que
as peças são obras dos artistas Chaim Soutine, Amedeo Modigliani,
Jeanne Hébuterne, Tsuguharu Foujita, Jules Pascin, Jean Metzinger,
Sergey Mukhankin e Ranko Novak, concluídas entre os anos de 1910
e 1925. Adicionalmente, encontrará ainda uma (1) fotografia que
mostra a coleção de correspondência, fotografias pessoais e outras
recordações que a senhora Lerner reuniu durante a sua estada em
Paris.
A senhora Lerner e eu estamos encantados com o interesse da
Galeria Brigg na coleção, e aguardamos ansiosamente notícias
vossas.
Melhores cumprimentos,
Stanley Toynbee, Adv.

Yale dirigiu-se ao gabinete de Bill, com as pernas ainda a tremer, mas Bill
saíra. Deixou um post-it colado à porta dele: Tenho boas e más notícias.
Regressou ao seu escritório e começou a escrever uma carta para Nora –
teria de esperar pela autorização de Bill para a enviar –, a elogiar
efusivamente as fotografias e a dizer que, quanto mais depressa
começassem a trabalhar juntos, mais depressa as peças receberiam a
aclamação pública que mereciam. Acrescentou que talvez fosse melhor
manterem toda a correspondência em privado, por enquanto; esperou que
ela compreendesse que isto significava que não devia falar com o filho.
Ligou para Fiona e deixou uma mensagem: «Fizeste-me ganhar o ano»,
disse. «Tu, a tua tia e os artistas com quem ela andou enrolada.» Não ligou
a Cecily. Tal como ela própria dissera, não era chefe dele. E quando Bill
voltou, quando o apanhou ali, a olhar para as fotografias, tão derretido
como se fossem gatinhos recém-nascidos, e lhe falou sobre Chuck
Donovan, as ameaças dele e os seus dois milhões de dólares e a placa que
desaparafusara do Steinway, Bill encheu as bochechas de ar sem tirar os
olhos das fotografias e disse:
– Isto vale muito mais do que dois milhões, Yale. E estou a ser muito
conservador na minha estimativa. Quer dizer, olhe para isto. Olhe para isto.
Tenho a certeza de que saberá lidar com a Cecily. Você é o meu fazedor de
milagres.
No caminho para casa, Yale comprou flores e uma tarte de maçã. Sorriu a
desconhecidos no comboio e nem sequer sentiu o frio.
2015
iona dormiu bem, desde que Serge a trouxe para casa até cerca das três
F da manhã. Depois de acordar, ficou deitada em silêncio muito tempo,
pois não queria fazer barulho e acordar Richard. Afinal de contas ele era um
velho, não era? Por fim, voltou a adormecer e sonhou que o seu
companheiro de voo estava a nadar com ela numa piscina. Tinha uma coisa
que pertencia a Claire, e será que Fiona se importava de lha entregar
quando a encontrasse? Tirou-o do bolso dos calções de banho, devagar,
como um mágico. O cachecol cor de laranja de Nico.
Quando Fiona finalmente entrou na cozinha, Richard estava sentado à
mesa do pequeno-almoço, com o sol da manhã a iluminar-lhe o
computador, as mãos. Escrevia rapidamente no teclado, movendo os lábios
à medida que escrevia as palavras.
– E-mails – disse ele. – Alguma vez imaginaste que estaríamos um dia tão
soterrados em montanhas destas porcarias?
Fiona cortou uma banana em rodelas e perguntou se Serge já estava
acordado. Richard riu-se.
– A pergunta devia ser se ele já chegou a casa. E já chegou. Caiu na cama
deviam ser umas quatro da manhã.
Serge tinha vários namorados, disse-lhe, nenhum deles sério.
– Italianos, na sua maioria. Tem muito bom gosto, há que admitir.
Fiona sabia que não devia perguntar a Richard se isso não o incomodava.
Ele parecia divertido com toda a situação, com a juventude e a energia de
Serge. Richard espreguiçou-se voluptuosamente, um leão de roupão, um
Rei-Sol no seu trono. Fechou o computador e disse:
– Já viste este tempo maravilhoso? Só para ti. Quem me dera que
pudesses apreciar Paris. Fica para a próxima visita. Não sei quando morri,
mas isto é o meu Valhala.
Disse-lhe que tinham bloqueado a Rue des Deux Ponts durante a noite,
para as filmagens. Ela espreitou pela janela. Ainda não havia multidões nem
estrelas de cinema, mas viu alguns camiões e ouviu o som de buzinas
irritadas, quando as pessoas descobriam que não podiam passar. Richard
disse-lhe que podia atravessar a ponte para apanhar um táxi, mas ela não
queria um táxi. Embora lhe doessem as pernas, queria caminhar novamente.
Mas só se Serge fosse com ela, insistiu Richard. Não queria que ela se
perdesse por aí. (Não queria que ela desmaiasse sozinha, mas não o disse.)
Serge levantou-se, apesar dos protestos de Fiona, vestiu o casaco e saiu
com ela, metade do tempo a arrastar-se mais atrás como um sonâmbulo, a
outra metade a acelerar à frente e a decidir para onde deviam ir. Fiona
habituou-se a ver a parte de trás da cabeça dele – o cabelo escuro e leve, o
pescoço comprido e avermelhado.
Na véspera, sentada atrás dele na motorizada depois de saírem do café,
Fiona insistira para que a levasse à Pont de l’Archevêché – larga e quase
vazia. Um casal de noivos a posar para a fotografia, mas nada de Claire.
Claro que aquela ponte, qualquer ponte, seria o último sítio onde a
encontrariam. A vida não funcionava dessa maneira.
Agora desciam para a beira do rio, onde Fiona mostrou a fotografia de
Claire a todos os artistas que viu – os que vendiam telas do tamanho de
postais, o homem que fazia caricaturas, até um palhaço completamente
maquilhado que estava sentado a comer uma sanduíche. Serge ficou para
trás a enviar mensagens no telemóvel, a acender um cigarro, embora a sua
tradução por vezes tivesse sido útil.
– Elle est artiste – dizia Fiona, mas gostava de poder desenvolver,
explicar que a filha não era uma adolescente grávida, não era uma pobre
fugitiva qualquer. Todos abanavam a cabeça, perplexos.
Serge levou-a à Shakespeare & Co, que Fiona sabia ser uma livraria mas
que, descobriu agora, também tinha camas no piso de cima, explicou Serge,
«para estrangeiros solitários». A explicação dava a entender que se tratava
de um prostíbulo, mas, quando subiram, viu várias camas de armar estreitas.
Eram para jovens que dormiam quatro horas por noite, que curavam as
ressacas com cafeína e se envolviam em aventuras apaixonadas. Não era
sítio onde uma mulher com um companheiro e uma criança ficasse. Se
estivesse mais bem-disposta, Fiona ter-se-ia apaixonado pela livraria, com
as tábuas do soalho a ranger e os túneis precários de livros, mas assim só
queria seguir caminho.
Com Serge a espreitar por cima do ombro, mostrou a fotografia de Claire
ao balcão, a um jovem com um bigode comprido de Brooklyn e sotaque
sulista. Ele chamou uma rapariga.
A fotografia era do primeiro ano de Claire em Macalaster, tirada no fim
de semana dos pais. Claire tinha a mão apoiada na cómoda coberta de
coisas, um meio sorriso no rosto, uma expressão irritada mas tolerante.
Fiona escolhera esta foto porque era onde Claire estava mais parecida com
a imagem do vídeo, de rosto redondo por causa do peso que ganhara nesse
outono. Lembrou-se, com uma vaga de náusea, do alívio que sentira nesse
ano, de cada vez que Claire regressava à escola. Não que a quisesse longe
de si, pelo contrário, mas imaginava que seria uma forma de se darem
melhor. Claire teria o seu espaço e, quando viesse a casa, podiam ir às
compras, comer, conversar, e dentro de algum tempo talvez até dividir uma
garrafa de vinho e falar como adultas. Seria assim até acabar a universidade
e, depois de Claire se mudar para outra cidade – Fiona sempre soubera que
isso aconteceria –, quando a viesse visitar duas vezes por ano. Porém, no
Natal, ela anunciara que ia passar o verão no Colorado. Esteve uma semana
em casa em junho e depois Fiona levou-a ao aeroporto e, quando abriu a
porta para sair do carro e se despedir da filha com um abraço, Claire disse:
– Vão começar a buzinar-te.
E deu um beijo rápido na face da mãe.
E pronto. Mais nada.
A rapariga abanou a cabeça.
– Quer dizer, é um bocadinho parecida com a Valeria.
O rapaz perguntou:
– Ela é checa?
Fiona disse que não e acrescentou que ela tinha uma menina pequena.
– Deixe-me ir chamar a Kate – disse ele. – Ela conhece toda a gente que
passa por aqui.
E agora aqui estava Kate, alta e britânica, a examinar a fotografia.
– Não tenho a certeza – disse Kate.
– Ela agora é mais velha – disse Fiona.
– Parece aquela atriz de Golpada Americana.
Estava um homem atrás deles, à espera para comprar um monte de livros
de bolso, por isso afastaram-se para o lado de dentro da loja. Serge tirou-lhe
a fotografia da mão e segurou-a com as pontas dos dedos.
– Ela deve ter saudades tuas.
Fiona não sabia como responder a isso.
– Ficas para a exposição do Richard, sim? Os amigos são tão importantes
para ele.
– Vou tentar.
– Não, não, promete! – Serge sorriu, um sorriso tão deslumbrante que
com certeza o ajudara a levar a sua avante a vida toda.
– Se calhar nessa altura já estarei a abusar da vossa hospitalidade.
– Se isso acontecer, pomos-te na rua e arranjamos-te um hotel! Promete!
– Está bem – cedeu Fiona. – Prometo. – Não tinha a certeza se cumpriria
ou não a promessa, mas não custava nada fazê-la. Nove dias longe da loja
era demasiado, mas daqui a nove dias ou já teria encontrado Claire ou
continuaria à procura dela e, de uma maneira ou de outra, como poderia
voltar para casa?
Antes de saírem, Fiona pegou num livro sobre a História de Paris em
inglês, só para não sair de mãos a abanar, sob os olhares piedosos dos
funcionários. O vendedor de bigode estava a discutir os leitores de DVD
americanos com um cliente. Qualquer coisa sobre frames por segundo.
– Os americanos nem querem saber! – exclamou. – Foi por isso que me
mudei para Paris! – Agitou as mãos no ar.
Fiona tentou não se rir. Não podia ser verdade, pois não? Que alguém
desenraizasse a sua vida com essa facilidade? Todas as pessoas que
conhecia e que tinham deixado a América haviam-no feito por razões
concretas: trabalho, romance, política. Para estudar, como Nora. No caso de
Claire e Kurt, para fugir do Coletivo Hossana – embora Fiona tivesse
considerado a possibilidade de Claire estar a fugir dela, de algum suposto
trauma de infância. Mas e se não passasse de uma brincadeira? Primeiro a
comuna, depois Paris, a seguir uma criação de ovelhas na Bulgária? E se
Fiona não tivesse simplesmente conseguido, distraída como estava naqueles
primeiros anos da vida de Claire, prender a filha ao mundo como devia ser?
O rapaz olhou para o preço. Três euros. Disse-lhe que era oferta da casa.

Quando regressaram a casa de Richard, ao princípio da tarde, as


filmagens já tinham começado.
Era difícil ver o que se passava; as pessoas tinham-se acumulado como se
assistissem a um desfile. Ao fundo da rua, erguia-se um guindaste e havia
holofotes fortes em cima de tripés.
Fiona deixou Serge para trás e enfiou-se entre a multidão – uma das
vantagens de ser pequena era que nunca ninguém achava que ela usurpasse
a paisagem – e pouco depois estava na fila da frente, com as mãos apoiadas
na barreira de madeira.
A ação tinha lugar um quarteirão mais abaixo, numa esquina perto da
montra de um restaurante, mas os espectadores não podiam aproximar-se.
Fiona distinguiu uma confusão de cadeiras e escadotes e pessoas – e, à
frente do restaurante, uma mulher a falar com um homem. Ele abraçou-a e
ela afastou-se. Poucos metros à frente, parou, voltou para trás e repetiram a
cena. De cada uma das vezes, dois homens corriam à frente dela com ecrãs
refletores brancos nas mãos. Uma câmara sobre rodas seguia-os.
– Eu conheço aquele tipo – murmurou uma mulher perto de Fiona, em
inglês –, como é que ele se chama? Dermott McDermott ou lá o que é. Mas
nunca ouvi falar dela.
O homem com quem ela estava soltou uma gargalhada.
– Dermott McDermott. Adorei.
Um segurança passou por eles.
– Vamos arranjar problemas – murmurou a mulher. Na verdade, havia um
murmúrio constante no ar, mas com certeza que conseguiriam eliminá-lo
mais tarde, mesmo que os microfones o apanhassem.
Fiona estudou as pessoas que assistiam do outro lado da rua. Ninguém
que se parecesse com Claire. Ninguém com uma menina pequena. Ninguém
como Kurt. Mas a multidão mudava constantemente.
Claire tinha falado em se especializar em cinema, antes de desistir da
universidade. Na escola secundária, costumava ir ao Music Box aos
sábados e via três filmes de seguida. No final do último ano, tinha um
namorado que queria ser guionista e Claire realizaria os filmes. Fiona não
gostava nada desse rapaz – tinha unhas grandes e nunca estabelecia
contacto visual –, mas com certeza que ele melhorara com o tempo! Bem
vistas as coisas, teria sido muito melhor do que Kurt Pearce.
Fiona não tinha qualquer contacto com Kurt ou Cecily há alguns anos,
quando, um dia, ele entrara na loja dela e lhe dissera que estava envolvido
numa ação de ativismo contra a fome na cidade, que talvez pudessem passar
algum tempo juntos. Depois disso, convidara-a para um ou outro evento,
embora ela raramente aparecesse. E, durante todo esse tempo, Fiona não
fazia ideia de que ele se debatia com a toxicodependência, que roubava
Cecily, que roubava, na verdade, as organizações contra a fome para as
quais trabalhava tão incansavelmente. Não imaginava que Cecily dera uma
última oportunidade ao filho, e depois mais uma, antes de cortar
completamente o contacto com ele. Todas essas informações só tinham
chegado mais tarde, depois de Fiona já o ter apresentado à filha, depois de
ele ter arruinado também a vida dela.
Quando um avião passou, fizeram uma pausa nas filmagens. Fiona
lembrou-se de Julian Ames dizer uma vez que preferia fazer teatro para o
resto da vida e morrer à fome a ganhar um milhão de dólares com filmes. O
trabalho no cinema, dizia ele, era embrutecedor. Para conseguir pagar a
renda, Julian trabalhava naquela loja de sanduíches de paredes azuis na
Broadway Avenue, a loja onde Terrence se sentara com ela e lhe dissera que
Nico estava doente. Julian não estava lá nesse dia, de certeza – Fiona
achava que se lembraria de o ver quando começara a chorar e fora buscar
guardanapos ao balcão –, mas, na sua mente, era ele que estava na caixa. A
sua mão para sempre no frasco das gorjetas. Aquela madeixa de cabelo
escuro para sempre nos seus olhos.
A atriz repetiu a cena e Fiona repetiu a inspeção à multidão.
Devia voltar para junto de Serge, para ele saber que ela estava bem e não
se preocupar. E estava precisamente a fazer isso, a libertar-se da multidão,
quando sentiu um toque na nuca. Girou sobre si própria e viu um homem
sorrir-lhe. Um rosto que lhe parecia que devia reconhecer mas que não
estava a conseguir localizar.
– Eu sabia que te encontraria – murmurou ele, de forma teatral. Perante a
sua expressão confusa, acrescentou: – Sou o Jake. Do avião?
– Oh! – Recuou um passo. – Prazer em ver-te, Jake.
Ele parecia sóbrio, mas a barba e o cabelo e o cheiro das roupas ainda
sugeriam alguém que tinha passado a noite a dormir no bosque.
Na verdade, Fiona estava zangada. Se as leis das probabilidades lhe iam
conceder um encontro aleatório nas ruas de Paris, por que raio tinha de ser
com o tipo que viera sentado ao seu lado no avião? Era como um
relâmpago, que não cai duas vezes no mesmo sítio.
– Tenho andado a passear. A minha cena é só logo à noite.
– A tua cena. – Ter-lhe-ia explicado o que era no avião?
Este encontro não era aleatório, apercebeu-se. Fiona dissera-lhe onde ia
ficar e a ilha era muito pequena. Procurou Serge com o olhar, mas ele tinha
desaparecido. Fez sinal com a mão a Jake para a seguir e enfiaram-se numa
rua lateral – suficientemente afastados para poderem falar num tom de voz
normal, mas não tanto que ninguém a ouvisse gritar.
– Está tudo bem? – perguntou.
– O quê? Oh, sim. Sim, encontraram a minha carteira no Aeroporto de
O’Hare. Vão enviá-la.
– A sério?
Ele encolheu os ombros.
– Tenho uma carteira boomerang. Já a perdi para aí uma dúzia de vezes, e
aparece sempre alguém a entregá-la.
– Isso é... inacreditável.
– Nem por isso. É um teste moral tão óbvio para as pessoas. Veem uma
carteira e pensam: Sou boa pessoa ou má pessoa? E toda a gente quer
acreditar que é boa pessoa. Algumas roubariam no trabalho sem pensar
duas vezes, estás a ver? Mas devolvem uma carteira e sentem-se bem com a
sua alma.
Ele tinha razão. Mas como se atrevia? Como se atrevia a espalhar as suas
coisas pelo mundo com confiança de que elas regressariam?
– Este filme é demais! – disse ele.
– Vieste assistir às filmagens, Jake? – perguntou Fiona, sem tentar
disfarçar o sarcasmo.
– Não – admitiu ele. – Vim à tua procura. Não para... não com intenções
sinistras. Desculpa. Queria pedir-te uma coisa. – Se ele não fosse tão
atraente, ela já teria fugido a sete pés. Ter-se-ia agarrado ao homem mais
próximo e gritado «Aqui está o meu marido!». No entanto, ficou onde
estava, ergueu os olhos para o rosto dele e esperou.
– Fiquei furioso comigo próprio, depois de sairmos do avião, por não ter
feito mais perguntas sobre o Richard Campo. Tipo... não quero parecer um
maluquinho, mas eu podia mesmo fazer alguma coisa com ele. Não me
custaria nada vender isso.
Fiona ergueu a mão para o impedir de continuar.
– Parece que me falta aqui alguma informação importante.
– Desculpa. Não me lembro de tudo o que te disse. Escrevo artigos
culturais, basicamente para revistas de viagens. Costumas ler a National
Geographic? Saiu um artigo meu o verão passado, sobre um festival de
danças maias na Guatemala.
– Está bem.
Fazia sentido. Um ex-piloto que fora despedido por beber demais, talvez?
Ou que decidira que não era talhado para essa vida, que havia formas
melhores de ver o mundo?
– Ele está farto de dar entrevistas. Não sei se isso tornará mais fácil ou
mais difícil convencê-lo a falar contigo.
– Não seria mesmo sobre arte, a questão é essa. Mais sobre a vida aqui, a
cidade vista pelos olhos de um artista estrangeiro. Ou pode ser sobre a arte.
Não sei, o que ele quiser.
Porque estava sequer a pensar em ajudá-lo? Talvez se aplicasse aqui o
mesmo princípio da carteira: queria sentir-se bem consigo própria. Ou
talvez fosse por ele ter uns olhos tão bonitos. Talvez fosse uma distração
bem-vinda. Tirou o telemóvel da mala e disse:
– Vou dar-te o número do assessor de imprensa dele. – Ou seja, de Serge.
Jake ajeitou a mochila às costas e coçou a barba.
– Isso seria fantástico.
Ela ainda tinha o telefone na mão, estava a dar-lhe o último algarismo do
número de Serge, quando o aparelho começou a vibrar.
– Oh, merda – disse. – Tenho de atender. – Virou-lhe costas e começou a
andar depressa, por nenhuma razão em especial.
Estática no ouvido. Arnaud pigarreou e disse:
– Bom, foram fáceis de encontrar. Senhor e senhora Kurt Pearce. Tenho
uma morada.
Fiona enfiou a mão esquerda no bolso das calças de ganga para a impedir
de tremer.
– Tem a certeza de que são eles? – Senhor e senhora!
– Ah, sim, ele foi fácil de encontrar, porque foi detido o ano passado. Não
ficou preso, não se preocupe.
– Céus, detido porquê?
– Pequeno furto – disse ele, antes que a mente dela pudesse saltar
imediatamente para homicídio, infanticídio, terrorismo. – Foi... pela multa
que pagou, provavelmente roubou qualquer coisa numa loja.
– Espere – disse ela –, não pode ser. Teria sido deportado, não?
– Hum... – respondeu Arnaud. – Bom, não, na realidade não, porque
parece que ele é cidadão da União Europeia.
– Desde quando?
Arnaud não sabia. Mas Fiona parecia recordar-se de que o pai de Kurt era
irlandês, ou coisa parecida, não era? Talvez sempre tivesse tido dupla
nacionalidade. Talvez isso ajudasse a explicar a mudança para França.
Serge estava a acenar-lhe do outro lado da estrada. Atravessou a correr e
ficou ao pé dela a ouvir a conversa.
– Não falou com ele, pois não?
– O que tenho aqui é uma morada no 4.º Bairro, nos arredores do Marais.
Uma rua acessível, para a zona, mas não é um bairro perigoso, nem nada.
Conhece o Marais?
Fiona lembrou-se de Richard sugerir que era um bairro gay, embora
também lhe parecesse ter ouvido que era onde viviam os árabes, ou se
calhar os judeus ortodoxos. Com certeza que não estariam os três grupos no
mesmo bairro; isso nunca daria bom resultado, pois não?
– Não muito bem – disse em voz alta.
– Vou fazer-lhes uma espera. Como nos filmes, está bem? Só vigilância.
– Posso ir também?
Ele riu-se.
– Não é boa ideia.
– Então quando? Esta noite? Vai fazer isso esta noite?
– A menos que surja outra coisa. Eu tiro fotografias.
– O que posso eu fazer entretanto?
– Divirta-se em Paris. O seu amigo da mota pode levá-la a sair, sim? Vá
ver as vistas.
Ver as vistas. Céus.
– Prometa que descansa. Ontem quase desmaiou em cima da omeleta.
Poupe as forças para quando precisar delas, sim? E, agora, esperamos. Beba
vinho, descanse, relaxe.
Descansar não parecia má ideia. E ela estava tão, tão cansada.
1985
Hanukkah passou e as orlas do lago congelaram e ficaram brancas. A
O mãe de Charlie não podia vir passar o Natal com eles, porque o
namorado novo ia levá-la à ópera. Viria depois, disse, e Yale ficou um
pouco aliviado. Adorava Teresa, mas Charlie não precisava de mais stress
neste momento.
Yale encontrou Teddy no banco. Entretanto, o olho negro estava roxo,
mas ainda tinha o penso no nariz, uma faixa de gaze branca. Teddy afirmou
que fora uma experiência libertadora, perceber que conseguia sobreviver a
um ataque. Yale não acreditou nele nem por um segundo.
– Sabes que vi mesmo faíscas? – disse Teddy. – Sempre pensei que só
acontecesse nos desenhos animados.
– Sim – disse Yale. – Também já levei um soco.
Cruzou-se com Fiona na rua e ela disse-lhe que a família finalmente
acabara de esvaziar o apartamento de Nico e não dera por falta de nada.
– Principalmente porque não sabiam o que ele tinha. Os meus primos
ficaram com tudo o que era eletrónica – disse. – Não quiseram saber de
mais nada. A minha mãe levou o quadro de desenho dele, mas enfiou-o
numa caixa e não sei o que tenciona fazer com ele. O meu pai estava de
luvas. Calçou mesmo umas luvas de borracha.
Yale abraçou-a com tanta força que ela levantou os pés do chão.
Encontrou Julian numa loja de roupa em segunda mão onde Julian estava
a experimentar umas calças de bombazina amarelas e, quando viu que lhe
ficavam curtas, obrigou Yale a experimentá-las também.
– Fazem o teu rabo parecer dois pãezinhos de hambúrguer – disse. – No
bom sentido. – Recuou e mirou Yale de alto a baixo. – Mas não te
favorecem muito à frente. E já ouvi falar da tua frente. – Yale sentiu-se
corar até à raiz dos cabelos. – O que foi? – disse Julian. – Achas mesmo que
o Charlie é capaz de guardar um segredo?
Julian acabou por comprar um blusão de cabedal branco com franjas,
horrível. Disse a Yale que ele e um dos seus amigos atores estavam a usar
as técnicas de maquilhagem de palco para ensinar homens com sarcoma de
Kaposi a disfarçar as lesões.
– Ficam com bom aspeto – disse ele –, à distância.
Num dia cinzento e chuvoso, Yale foi com a agente imobiliária ver a casa
ao fundo da Briar. Encontrou-se com ela no passeio e a mulher bateu
palmas como se estivesse prestes a começar um espetáculo maravilhoso.
O preço pedido era três vezes o salário anual de Yale. Melhor do que ele
esperava. Apertado, mesmo assim, mas possível, se mantivesse este
emprego, se o seu salário fosse crescendo a par da Brigg, como era suposto.
Era mais ou menos o mesmo que Charlie pagara o ano passado para
comprar uma máquina de fototipografia para o jornal. Um montante
exorbitante por um equipamento do tamanho de um frigorífico, mas
bastante razoável por uma casa. A compra deixara Charlie sem um tostão,
mas significava que os funcionários do jornal já não tinham de ir à Baixa
usar a máquina da tipografia, a meio da noite, e sair de lá às seis da manhã
como zombies. Em teoria, o jornal pagar-lhe-ia o empréstimo ao longo dos
anos, com o lucro dos anúncios de bares; mas ele mais depressa aumentaria
o salário miserável dos funcionários do que reabasteceria os próprios
bolsos. Charlie nunca comprava nada para si, nem mesmo comida. Se não
fosse Yale, viveria de chá e massas chinesas.
Yale ainda não falara na casa a Charlie. Ele podia ficar assustado com o
preço, ou não gostar do facto de ser Yale a pagar a maior parte, mas talvez
ajudasse Charlie a sentir-se mais seguro. Tinha de se sentir, se comprassem
uma casa juntos. Podiam ter um cão, e Charlie sempre quisera um cão.
Durante a visita guiada, Yale apaixonou-se pela sala, os soalhos de
madeira, as estantes embutidas de ambos os lados da lareira, a janela
saliente. A cozinha não era grande coisa, mas podiam investir nisso mais
tarde. Yale sempre quisera aprender a assentar azulejo. O primeiro piso
estava banhado pela luz da tarde e só de estar ali no quarto vazio, a olhar
para o pequeno quintal, Yale sentiu-se a flutuar. Uma casa! Já conseguia
imaginar as piadas – Teddy chamar-lhes-ia separatistas lésbicas –, mas que
importância tinha, porque vejam o vidro grosso das janelas, os soalhos tão
sólidos!
O mundo tinha o mesmo som que no seu apartamento – o zumbido do
tráfego, a porta de um carro a bater, uma aparelhagem a tocar algures – mas,
de certa forma, parecia tudo novo. Como se fosse não apenas uma casa
nova, mas uma cidade nova. Era a mesma excitação que sentira quando se
mudara para ali, quando passara dias a explorar os bairros, a estudar mapas,
a fazer apontamentos no seu bloco de notas de coisas como «Dizer aos
taxistas para irem pela Ashland e não pela Clark» e listas de restaurantes
(«BELDEN DELI», escrevera na primeira semana, como se tivesse sido a
primeira pessoa no mundo a descobrir o estabelecimento) e coisas de que
ouvira falar mas que não tencionava verificar, como o facto de a casa de
banho no quinto andar nos armazéns Marshall Field’s ser uma casa de chá.
Só queria saber onde eram esses sítios, queria sentir-se sempre exatamente
como se sentira num táxi a acelerar por Lake Shore Drive. E, por algum
motivo, neste quarto de paredes brancas, nesta pequena casa, a cidade
pulsava novamente à sua volta.
– Quanto tempo acha que tenho? – perguntou à agente imobiliária. –
Francamente.
– Céus, não sei – disse ela. – Imagino que não demore muito tempo a
vender-se.
Se corresse tudo bem com a doação de Nora – e quando é que teria
certeza disso? Dentro de um mês? Um ano? –, sentir-se-ia, pelo menos,
seguro no trabalho. Estaria pronto. E, se a casa ainda estivesse para venda
nessa altura, seria um sinal.
Acompanhou a agente até Halsted Street e perguntou-lhe se sabia que o
teatro na esquina fora, em tempos, um estábulo de cavalos. Sim, sabia.
Pararam lado a lado a admirar a arcada, agora tapada, que devia ter sido
construída para deixar passar as carruagens.
– Imagine só – disse a agente imobiliária.

A noite da angariação de fundos da Howard Brown estava tão ventosa e


fria que Yale e Charlie disseram, a brincar, que deviam apanhar um táxi
para fazer os quatrocentos metros até ao Ann Sather. O facto de ser um
restaurante sueco, de o jantar ser almôndegas e puré de batata, parecera
disparatado no início do planeamento, em agosto, mas agora era perfeito.
Yale bebera um uísque em casa, para aquecer para o caminho, e o álcool
percorreu-lhe as mãos e os pés com um calor agradável.
Ultimamente, andava agitado, à espera de notícias de Nora, e dava um
salto sempre que o telefone tocava no escritório, com medo de que fosse
Cecily. E agora, na rua com Charlie, sem nada que o preocupasse até
segunda-feira, essa energia nervosa transformara-se em puro júbilo. Estava
encantado por poder caminhar ao lado de um homem tão atraente, com o
seu casaco formal de lã preta, por poder dar um dólar a um miúdo vadio
deitado num cobertor no passeio.
Todos os dias dessa semana Bill Lindsey entrara no gabinete de Yale com
mais notícias de algum especialista em Pascin ou Metzinger que lhe dissera,
oficiosamente, quanto poderiam valer as obras que Bill descrevia.
– Não é que eu me importe com o dinheiro – dizia Bill –, mas quanto
mais acima dos dois milhões esta estimativa chegar, melhor eu me sinto.
Bill era um homem que gostava «de papel e lápis» – dizia-o da mesma
forma que o tio de Yale costumava dizer que era um homem que gostava
«de mamas e rabo» – e estava mais entusiasmado com os desenhos do que
Yale, mas também se sentia particularmente atraído pela pintura do quarto,
supostamente uma obra de Jeanne Hébuterne. Hébuterne, a companheira de
Modigliani, também fora artista, embora, após a sua morte prematura, a
família nunca tivesse autorizado a exposição do seu trabalho. A
autenticação seria particularmente difícil nesse caso, mas talvez a existência
do quadro pudesse reforçar a autenticidade dos Modiglianis. Yale também
adorava aquele quarto, as paredes tortas e as sombras.
Ranko Novak e Sergey Mukhankin eram desconhecidos, mas após
alguma pesquisa Yale descobriu que um desenho de Mukhankin bastante
parecido com o que estava na posse de Nora – ambos eram nus a carvão –
fora vendido por uma quantia razoável num leilão da Sotheby’s em 1979.
De qualquer modo, Bill estava apaixonado por essa peça.
Os trabalhos de Novak, aqueles que Nora fazia tanta questão de que
fossem expostos, eram as únicas desilusões. Cinco das peças – duas
pinturas pequenas e grosseiras e três esboços – eram dele. Curiosos, mas
não valiosos. Yale não detestava a pintura de um homem num colete de
losangos, a forma como as linhas dos losangos se prolongavam para além
dos limites da roupa, as profundezas sombrias dos seus olhos, mas Bill
odiava-o, e odiava também a outra pintura, de uma menina triste, e odiava
os esboços, que eram todos de vacas.
– Não lhe prometa que vamos pôr esta porcaria na parede – avisou. Yale
fez uma careta e Bill disse: – Bom, talvez ela... hum... faleça primeiro.
Nunca saberá. Mas oiça, tirando estas vacas, a coleção é sólida. Sou um
homem feliz. Há equilíbrio, há contraste, há uma história e tem o tamanho
ideal. Sabe, é uma exposição. Alguém está a dar-nos uma exposição
completa. – Deu uma palmada nas costas de Yale, como se tivesse sido ele
o autor das obras.
Assim, embora o ar frio lhe estivesse a entrar por todos os poros do
corpo, Yale sentia-se flutuar.
O restaurante, que em geral já era festivamente sueco, com as paredes
decoradas de arte popular, era hoje um paraíso escandinavo, enfeitado com
luzes de Natal e plantas. Subiram as escadas, elegantemente atrasados –
Charlie, apesar da sua participação no planeamento, não tinha nada a ver
com a organização – e mal tinham tirado os casacos quando uma dúzia de
pessoas correu para os ver. Ou melhor, para ver Charlie. Não que não
quisessem ver Yale, que este não fosse também seu amigo. Mas toda a gente
tinha coisas urgentes e hilariantes para dizer a Charlie. Katsu Tatami, um
amigo de Teddy que era conselheiro na Howard Brown, saltitou através da
sala como uma gazela. Katsu, apesar de ser japonês, nascera com olhos
esverdeados.
– Temos umas duzentas pessoas cá em cima! – disse. – Vamos esgotar as
rifas!
Katsu foi buscar cerveja para ambos, porque Charlie não conseguiria
chegar ao bar sem ser travado vinte vezes pelo caminho.
Tratava-se maioritariamente do grupinho habitual, o que era reconfortante
mas também um pouco desapontante: seria agradável, um dia, ver pessoas
que não tinham estado na última angariação de fundos, e na outra antes
dessa. Ver um vereador, um médico heterossexual ou dois.
As mesas com os artigos do leilão silencioso estavam encostadas às
paredes – cestos de vinho e bilhetes para concertos e uma noite num hotel
da Baixa, oferecida pela agência de viagens de Charlie –, mas a sala estava
tão apinhada que Yale nem conseguia circular para ver.
Viu Fiona e Julian imersos em debate, Fiona a falar com as mãos. Mãos
de pássaro, dissera-lhe ele uma vez, e ela agitara os dedos e encostara-os ao
rosto dele, como asas a bater. Pensou que talvez devesse ir salvá-la; Fiona,
embora fosse, ela própria, muito intensa, achava Julian cansativo.
– É como uma boca cheia de Peta Zetas – dissera ela uma vez. – E eu
gosto de Peta Zetas! A sério! São doces, e ele é doce. Não estou a ser má.
Mas ninguém quer encher a boca de Peta Zetas.
Richard tirou fotografias, como Yale sugerira: instantâneos de pessoas a
comer e a rir e a falar. A sua câmara era um apêndice tão permanente que
ninguém reparava nele – e isso, dizia Richard, era o truque para conseguir
boas fotografias.
Teddy veio dar os parabéns a Charlie pelo evento e, depois, virou-se para
Yale e perguntou se tinha feito mais frio em Evanston do que na cidade,
hoje.
– Estás tão perto do lago! – disse, a girar o copo de cerveja entre as mãos.
O seu rosto parecia bem, o nariz estava normal. Uma pequena cicatriz na
cana do nariz, a condizer com a do lábio superior. Depois disse: – Viram o
Terrence? – Na verdade, perguntou-o num murmúrio.
Yale perscrutou a sala à procura da silhueta desajeitada de Terrence, dos
seus óculos com armações metálicas.
– Não está nada bem – disse Teddy.
E depois Yale viu-o, e Charlie devia tê-lo visto também porque soltou
uma exclamação abafada e virou imediatamente costas. Yale estava à espera
de ver Terrence com ar macilento, talvez um pouco mais magro do que
quando o tinham visto no Dia de Ação de Graças. Quando fora isso, há duas
semanas? Mas Terrence estava encostado à parede como um espantalho, a
cabeça completamente rapada, as faces chupadas. Se não fossem os óculos,
Yale talvez nem o tivesse reconhecido. A sua pele, antes de um tom quente
e intenso, estava da cor de uma casca de noz. Mal parecia capaz de segurar
a cabeça.
– Raios – sussurrou Charlie.
– Quer dizer, ele está doente – disse Teddy. – Já estava doente, mas agora
está doente. As células T dele estão nas últimas. Cruzou o Rubicão. Devia
estar no hospital. Nem sei o que está a fazer aqui.
– Mas estava bem! – exclamou Charlie. – Ainda há duas semanas estava
bem!
– Há duas semanas parecia bem – corrigiu Yale.
– E agora parece o Gandhi – disse Charlie. – Oh, meu Deus. Oh, meu
Deus. – Yale achou que Charlie iria falar com ele, mas não foi. Dirigiu-se
ao bar com o copo vazio na mão.
A cerveja era boa. Tinha de se lembrar de comer. Precisava de falar com
Terrence, precisava de ver como Terrence estava, mas ainda não se sentia
preparado para atravessar a sala até à cadeira encostada à parede onde
Terrence se sentara entretanto, ladeado por Julian e um tipo mais velho. Não
sabia se conseguiria controlar a expressão no rosto, não sabia como não se
mostrar horrorizado. Assim, dirigiu-se ao bar, onde colidiu com uma
mulher de vestido roxo. Ela virou-se e exclamou:
– Yale!
Yale engasgou-se com a cerveja. Era Cecily Pearce. Dois centímetros
mais alta do que ele, graças aos saltos altos, os olhos pintados com uma
sombra azul que nunca usaria no trabalho.
– Ainda bem que o encontro! Devia ter calculado que o veria por aqui!
Ele não sabia bem o que ela queria dizer com isso, portanto respondeu:
– O meu companheiro faz parte do comité de planeamento.
– Oh, ele está cá? Vim com uns amigos, mas estão enrolados um com o
outro no bengaleiro e não conheço mais ninguém.
Uma vez que já conhecera a Cecily sóbria e a Cecily bêbeda, Yale estava
bastante certo de que esta era a segunda versão. Ou pelo menos a versão
tocada. Talvez houvesse um meio-termo ideal, uma Cecily Pearce perfeita
que não o ameaçaria por causa dos legados dos doadores nem tentaria
molestá-lo.
Charlie estava do outro lado da sala, a falar com umas pessoas que Yale
não conhecia. Porém, nesse momento, Julian aproximou-se, passou-lhe o
braço à volta da cintura e apoiou o queixo no seu ombro.
Cecily disse, em tom demasiado alegre:
– Olá! Sou a Cecily, da Northwestern! Muito gosto em conhecê-lo,
finalmente! – Apertou a mão a Julian e disse: – Deve estar tão orgulhoso! –
Yale não percebeu se ela queria dizer orgulhoso de Yale ou orgulhoso da
festa.
Yale sentiu o queixo de Julian pressionar-lhe o ombro quando respondeu,
a sua barba roçar-lhe no pescoço.
– Estou muito orgulhoso – disse Julian. – Sim. É verdade. Orgulhoso.
E, como Yale já estava a adivinhar a reviravolta terrível que isto podia dar
– já imaginava Cecily, à saída da festa, a dizer-lhes que faziam um casal
muito bonito ao alcance dos ouvidos de Charlie –, disse:
– O Julian é só um amigo que gosta muito de se encostar. O meu
companheiro é o Charlie Keene. Está por aqui, algures. Tem barba.
– Detesto a barba dele, já lho disse – comentou Julian. – Porque há de
esconder uma cara tão bonita?
Cecily achou isto hilariante, ou pelo menos fingiu achar. Riu-se com o ar
desesperado de alguém que não queria que a conversa se tornasse
desinteressante, para que não a deixassem sozinha sem ninguém com quem
falar. Yale viu Gloria, a repórter de Charlie com as orelhas cheias de
brincos, e chamou-a com um aceno.
– A Gloria andou na Northwestern – disse. As duas mulheres começaram
a conversar e, um minuto depois, Yale e Julian escaparam-se.
– Casa de banho – murmurou Julian ao ouvido de Yale, e não parecia má
ideia. Tinha a bexiga cheia de cerveja.
A casa de banho estava vazia. Julian, em vez de entrar num dos dois
compartimentos, molhou a cara e ficou ali parado, como se quisesse
conversar. Torceu a madeixa da testa. Um dia, quando ficasse careca, Julian
teria de encontrar outra coisa qualquer para ocupar as mãos.
– Aquela mulher não é exatamente minha chefe, mas também não deixa
de ser – explicou Yale.
– Não me pareceu má de todo. – Parte da beleza de Julian era a forma
como olhava para a outra pessoa. Se o seu interlocutor olhasse para o chão,
ele inclinava-se e procurava-lhe os olhos por baixo, como se quisesse puxá-
lo de novo para cima. Esfregava a orelha com os dedos e corava e isso
também era estranhamente belo.
Yale entrou num dos cubículos. Aqui não havia urinóis, felizmente.
A voz de Julian:
– Alguma vez viste alguém dançar com cobras?
– Um encantador? Com cesto?
– Não. Geralmente são mulheres, como as bailarinas do ventre, mas com
uma pitão a rastejar por cima delas enquanto dançam. Bom, as saunas Club
Baths vão trazer um tipo, um culturista qualquer, que dança com cobras.
Yale riu-se enquanto fechava a braguilha.
– Não vejo como poderá correr mal.
– Não és nada divertido!
– Desculpa. Para dizer a verdade, provavelmente será a coisa mais segura
a acontecer por lá. – Yale saiu e lavou as mãos. Julian olhou para o espelho.
– Tu não te importavas nada se as saunas fechassem todas.
– Francamente, Julian... sim, acho que seria pelo melhor. Durante algum
tempo. Não as culpo por tudo, como algumas pessoas, mas de certeza que
não ajudaram nada. E não é por vergonha ou regressão ou nada desse
género. É só porque... bom, se houvesse um surto de salmonela num
restaurante não continuavas a comer lá, pois não?
Julian abanou a cabeça. Não parecia com vontade de sair da casa de
banho.
– Nem sequer sabes do que falas. Nunca ouvi tanta propaganda a
preservativos em lado nenhum como lá. Estás só a papaguear o que o
Charlie diz.
– O Charlie tem razão em algumas coisas.
– Mas, Yale... Depois de descobrirem a cura para isto, não haverá sítio
nenhum para irmos.
Yale, nesse momento, sentiu-se cem anos mais velho do que Julian –
Julian, que estava, na verdade, a examinar os poros da testa ao espelho –,
mas, em vez de dizer o que pensava, ou seja, que nunca descobririam a
cura, disse:
– Quando descobrirem a cura, abrimos outros sítios. E serão ainda
melhores, não achas?
Julian virou-se e lançou-lhe um sorriso belo e triste.
– Já imaginaste a festa que vai ser? Quando descobrirem a cura?
– Sim.
E Julian não desviou o olhar. Era uma casa de banho pequena e estavam
separados apenas por meio metro, e quanto mais tempo ali passavam, mais
Yale se sentia como se ele e Julian estivessem a ter contacto físico, peito
com peito, coxa com coxa. O facto de não se terem tocado, de o ar cheirar a
urina, era irrelevante. Muito provavelmente, era apenas um sentimento de
culpa parvo, por causa de toda aquela questão inexistente com Teddy, mas a
verdade era que nenhum deles se movia há muito tempo, e havia mesmo
mais qualquer coisa. Era um convite da parte de Julian. Já fizera convites
casuais no passado – quem é que Julian não convidava? –, mas havia algo
assustadoramente sincero na linha direta entre os olhos de ambos. Era o
olhar, apercebeu-se Yale com um sobressalto, de alguém perdidamente
apaixonado.
– Yale – disse Julian.
Yale olhou de soslaio para a porta, certo de que Charlie entraria a
qualquer segundo e o salvaria de ter de pensar. Mas não apareceu ninguém
e, quando olhou novamente para a frente, Julian avançara um passo e
reduzira a metade a pequena distância que os separava. Os olhos de Julian
estavam húmidos, os seus lábios, entreabertos.
– Temos de voltar lá para fora – disse Yale.
Enquanto regressava à festa, seguido por Julian, Yale pensou que talvez
Charlie tivesse alguma razão, afinal de contas. E Charlie nunca diria «o
Julian está apaixonado por ti», porque isso só tornaria as coisas ainda
piores. Que mortal não ficaria lisonjeado com uma coisa dessas, um
bocadinho que fosse? Saber que alguém nos deseja é o afrodisíaco mais
potente do mundo. Assim, Charlie transferira a responsabilidade para Yale,
fingira não confiar nele. Havia muita coisa que, de repente, fazia sentido.
Nos seis metros entre a casa de banho e o bar, o mundo de Yale girou no seu
eixo.
Teve tempo apenas para reabastecer o copo e se colocar ao lado de
Charlie, antes de os discursos começarem. Cecily apareceu junto dele, o que
era perfeito. Podia passar tempo com ela, bater palmas com ela, brindar
com ela, sem ter de falar, sem correr o risco de mais uma conversa sobre o
filho de Nora e o doador zangado. Alguém falou sobre a história da Howard
Brown e depois outra pessoa veio falar da linha de apoio. Yale tentou não
bocejar. Procurou Terrence, para ver como ele se estava a aguentar, mas já
não o viu na cadeira junto à parede. Nico devia tê-lo levado para casa.
Não.
Não, Nico não o levara para casa.
E foi assim que naquele momento, no meio de uma palestra enfadonha
sobre os objetivos da angariação de fundos, Yale, embriagado, desatou
súbita e finalmente a chorar.
Não fora por isto que se escapulira para o quarto na noite da vigília? Para
não chorar?
Teria sido melhor se tivesse deitado tudo cá para fora nessa noite. Não se
veria neste estado agora, nunca teria assustado Charlie daquela maneira,
não teriam discutido e ele podia ter ido também a casa de Nico escolher uns
discos antigos ou qualquer coisa.
Charlie não reparou que ele estava a chorar e Yale tentou afastar-se antes
que o visse, antes que a noite ficasse arruinada. Mas Cecily viu-o quando
ele se virou, e Fiona também, e quando chegou ao cimo das escadas
estavam ambas com ele, uma de cada lado, agarradas aos seus braços.
– Vamos lá para fora – disse Fiona. – Vamos lá para fora.
No passeio, Cecily deu-lhe o guardanapo com que segurava no copo. Ele
usou-o para limpar o nariz, que escorria de forma ainda mais embaraçosa do
que os olhos.
– Vão ficar congeladas – disse.
– Eu cresci em Buffalo – respondeu Cecily.
Fiona sentou-se no passeio e puxou Yale para si. Segurou-lhe nas mãos e
disse:
– Vamos respirar.
Ele obedeceu, inspirando e expirando ao mesmo tempo que ela. Fiona
trazia umas argolas enormes nas orelhas, quase a tocar nos ombros. Nico
estava sempre a dizer-lhe que, um dia, ficaria com os brincos presos em
qualquer lado, um sinal de «Stop» ou um homem de negócios com quem se
cruzasse. Yale queria recordar-lhe isto, mas essa memória só o deixou ainda
mais descontrolado. Nico era um irmão mais velho maravilhoso; a sua voz
mudava sempre quando estava junto de Fiona, ficava mais profunda, mais
segura. Yale escondeu o rosto no ombro dela. Tentou sorver o ranho e as
lágrimas, mas estava a deixá-la ensopada.
– Aqui tem – disse Cecily, e estendeu-lhe um copo de água com cubos de
gelo.
Yale bebeu um gole e disse:
– Desculpem. Tenho andado a engolir isto.
– Não faz mal – disse Cecily. E Fiona disse:
– Não faz mal.
E, como Yale estava um bocadinho embriagado e a despejar em todas as
direções, disse a Fiona:
– Não fui com vocês ao apartamento dele. Não fui... foram-se todos
embora.
– E a culpa foi minha – lamentou-se Fiona. – Não consigo deixar de
pensar nisso. Desculpa, Yale.
– É por isso que está transtornado? – perguntou Cecily.
– Não, Cecily, estou transtornado porque tenho trinta e um anos e os meus
amigos estão todos a morrer.
Arrependeu-se de o ter dito, assim que o disse, mas, por outro lado, não
era pior do que chorar como uma criança, e não era pior do que ter cocaína
na mala durante uma viagem de trabalho, pois não?
Fiona passou os dedos pelos caracóis de Yale e não disse nada. Cecily
também não disse mais nada e Yale recompôs-se e levantou-se.
– Queres ir andar um bocadinho? – sugeriu Fiona.
– Não, está um gelo. – E Charlie ficaria preocupado se não o visse.
Dirigiram-se à porta e Fiona entrou primeiro. Yale tocou no braço de
Cecily e disse:
– Não tive intenção de lhe causar problemas. Não tive mesmo.
Céus, estava bêbedo. Suficientemente sóbrio para ouvir as palavras,
suficientemente sóbrio até para se lembrar delas de manhã, mas bêbedo o
bastante para dizer coisas que não tencionava dizer. Mandou uma
mensagem para o seu futuro eu, o seu eu matinal: Não lhe falaste sobre a
arte. Não disseste nada de grave.
Nas escadas, ela disse:
– Oiça, Yale, gosto de si. A sério. Quero ser sua amiga.
Yale não conseguia imaginar-se amigo de Cecily, a sair com ela à noite ou
o que quer que ela estivesse a imaginar, mas mesmo assim ficou lisonjeado.
Quase tanto como ficara com Julian na casa de banho, para ser franco. Há
quanto tempo é que ninguém fazia amizade com ele, e não com ele-e-
Charlie?
– Você é boa pessoa, Cecily – disse. Credo, o álcool deixava-o mesmo
lamechas. Porque é que algumas pessoas ficavam más quando bebiam? Ele
só queria amar toda a gente.
Lá em cima, os discursos tinham chegado ao fim e Charlie dissertava no
meio de um grupo de ouvintes atentos, a gesticular energicamente. Yale
disse a Cecily:
– Aquele ali é que é o meu companheiro.
– Oh, o inglês! Já falei com ele há pouco!
– Não me admira.
– Que casal perfeito! – exclamou ela, embora não fizesse sentido; ainda
nem sequer os vira lado a lado.
E claro que não eram um casal perfeito. Não existia tal coisa. Na verdade
– e Yale sabia que este era um pensamento embriagado –, Charlie tinha
razão acerca do que os mantinha juntos. Pelo menos, em certa medida. Se
não fosse aquele monstro que andava por aí, a caçar os tipos no engate, Yale
e Charlie não se teriam já separado? Algumas das suas discussões teriam
sido suficientes para isso. E o stress dos últimos meses. Mas não, não. Ter-
se-iam reconciliado. Era o que faziam sempre. Charlie esconderia o rosto
nas mãos e perguntaria o que podia fazer para mudar, com olhar
desesperado, e Yale ficaria com vontade de o abraçar, de o proteger de tudo
o que pudesse magoá-lo.
Charlie estava a dizer:
– A razão pela qual não sabemos todos os nomes das cento e trinta e duas
pessoas que morreram em Chicago, é que, oiçam, metade eram tipos
casados dos subúrbios, enfiados no armário. Tipos que apanharam a doença,
sei lá, nas casas de banho das estações de comboio. Gays dos transportes. E
convenceram o seu médico em Winnetka a dizer à mulher que era cancro.
Muito bem, não os conhecemos, e a mim, pessoalmente, não me incomoda.
São uns hipócritas, não são? Votam contra os seus próprios interesses. Mas
morrem na mesma. Sofrimento é sofrimento. E continuam a espalhar o
vírus.
Materializara-se outra cerveja na mão de Yale; a última coisa de que
precisava.
As pessoas à volta de Charlie pareciam marionetas: a acenar, a acenar
com a cabeça. Se alguém puxasse o fio certo, bateriam palmas com as suas
pequenas mãos.
Durante o resto da festa, Yale esteve silenciosamente furioso com Charlie,
sem motivo palpável. Por não ter percebido magicamente que ele estava lá
fora a chorar. Ou talvez estivesse irritado porque Charlie tinha razão acerca
de Julian. Ou talvez estivesse zangado com ele há muito tempo, uma raiva
que só vinha ao de cima quando estava bêbedo e choroso, como as
minhocas que saíam depois da chuva.
Quando a festa acabou e começaram a caminhar em direção a casa, ainda
estava amuado.
– Acho que foi um sucesso, não te pareceu? – disse Charlie.
– Sem dúvida.
– Mas foi mesmo.
– Foi o que eu disse.
Em casa, Charlie atirou-se para cima da cama e disse:
– Devia ir tratar das vendas de anúncios.
– Não devias nada – disse Yale. – Estás bêbedo. – Enfiou as calças de
ganga. – Não comi nada de jeito. Se calhar vou ver se ainda há alguma
coisa aberta.
Estava meio à espera de que Charlie o interrogasse, para se certificar de
que ele não ia ter com Teddy ou Julian ou ambos ou todo o Coro Gay da
Cidade Ventosa. Mas Charlie simplesmente gemeu, com a cara na
almofada.
E, agora que pensava nisso, o que o impedia de ir a casa de Julian? Yale
subiu a Halsted até estar apenas a um quarteirão da casa de Julian, em
Roscoe Street. Aquela atração, o saber que alguém o desejava, era algo
poderoso. Podia entrar no Sidetrack – conseguia ouvir a música cá fora –,
mas não precisava de se embebedar mais. Virou para a Roscoe e ali estava o
prédio de Julian, à direita. Podia ir à cabina telefónica da esquina, ligar-lhe.
Ouve, estou cá em baixo, ainda estás acordado? Tinha quase a certeza de
que sabia o número de Julian de cor. Ou podia simplesmente tocar à
campainha. Mas depois o que aconteceria?
Bom, ocorriam-lhe algumas possibilidades.
Sabia que não o faria. Estava apenas a equilibrar-se à beira do abismo,
para ver qual era a sensação. Lembrava-se de, na escola secundária, estar
sentado numa aula e ficar convencido de que, a qualquer momento, podia
levantar-se e gritar. Não porque quisesse, apenas porque era a única coisa
que não devia fazer. Mas não o fizera. E isto era a mesma coisa, não era?
Estava apenas a deixar-se seduzir por um pensamento perigoso.
Continuou a andar.
Comprou um hambúrguer de queijo e voltou para trás, pela Roscoe,
enquanto comia. Passou novamente à porta de Julian e pensou que afinal ia
mesmo fazê-lo, e depois soube que não o faria.
2015
iona estava nervosa e queria ir novamente para a rua, passar o Marais a
F pente fino, mas sabia que seria uma péssima ideia. Disse a Richard:
– Não me deixes sair do apartamento. Ainda estrago tudo.
– Vamos trancar-te em casa – disse ele – e alimentar-te à força.
Serge estava a cozinhar para a jornalista que vinha jantar com eles, uma
repórter do Libération. Fiona ofereceu-se para cortar qualquer coisa e Serge
deu-lhe uma tábua, uma faca e seis cebolas pequenas.
– As mulheres gostam sempre de homens que não prestam. Porquê?
– Se calhar não há homens que prestem – disse Fiona. Depois
acrescentou: – Não acredito mesmo nisso, desculpa.
Serge perguntou-lhe se estava surpreendida por Kurt ter sido preso. Sim,
de certa forma.
– Mas, na verdade, estou contente. Não é estranho? É... gratificante,
talvez. Saber que ele esteve metido em sarilhos. – Não se preocupava nada
que Kurt não fosse feliz, mas queria que Claire visse que se tinha juntado ao
adulto errado.
Richard retirou-se para dormir uma sesta e Serge pôs a tocar Neil
Diamond e serviu a Fiona um copo de vinho tinto que ela não pedira.
Fiona orgulhava-se de nunca chorar a cortar cebolas. Uma habilidade da
família Marcus, segundo o pai, e na verdade Claire também se revelara
imune. Era talvez a única coisa que a família toda tinha em comum. Nora
sempre afirmara que havia duas estirpes genéticas distintas na família – a
artística e a analítica – e que cada pessoa recebia um conjunto de genes ou o
outro. Era verdade que o pai de Fiona, que provavelmente sonhava em
passar um dia aos filhos a clínica dentária, nunca soubera como lidar com
Nico, mesmo antes de a questão da sexualidade dele vir à baila. Lloyd
Marcus tentou fazer do filho jogador de xadrez, tentou ensiná-lo a calcular
as pontuações em jogos de basebol. Tudo o que Nico queria era copiar as
bandas desenhadas do jornal de domingo, desenhar naves espaciais e
animais. Fora a mãe que tentara, à sua maneira pouco eficaz, recordar a
Lloyd que a tia Nora era artista, afinal de contas, e não havia também um
poeta no ramo cubano da árvore genealógica? Mas era sempre Nora que
enviava a Nico uma máquina fotográfica no Natal, um conjunto de canetas
de artista de ponta fina, um livro de fotografias de André Kertész. Era Nora
que analisava os trabalhos dele e lhe fazia críticas construtivas.
Fiona não tinha qualquer habilidade artística – o seu forte eram as
milhentas necessidades logísticas do funcionamento da loja – mas, quando
Claire nasceu, quando ela começou a desenhar cavalos realistas com cinco
anos, quando, aos nove, se sentou e desenhou o horizonte urbano da cidade
de memória, Fiona percebeu que ela era um desses Marcus. O problema era
que Nora e Nico já cá não estavam e o alegado poeta há muito ficara
esquecido. Não havia ninguém para onde a pudesse mandar um fim de
semana para ter aulas de desenho. Fiona fez o seu melhor, comprava-lhe
lápis de carvão e borrachas, levava-a a museus. Mas não podia dar-lhe
aquilo que Nico recebera de Nora. Se Richard tivesse ficado em Chicago,
talvez pudesse ter preenchido esse vazio.
– O Richard está tão contente por estares aqui – disse Serge. – Acha que
vais dar sorte à exposição.
Fiona raspou as cebolas picadas para a tigela ao lado do fogão.
– Tu é que lhe dás sorte, Serge. Ele parece feliz.
– Ha! Nunca está feliz. Pergunta-lhe pelo trabalho e vais ver. Nunca está
feliz.
– Talvez – disse Fiona –, mas parece satisfeito.
Não tinha a certeza se Serge compreenderia a diferença, mas ele acenou.
Estava agora a fazer uma pilha de pratos, uma pilha de talheres.
– Podes tirar cinco individuais? – pediu, e apontou para a gaveta ao lado
de Fiona.
– Cinco?
– O Richard convidou outro jornalista, um que ligou hoje. Faz sempre
isto depois de eu já ter comprado os ingredientes. Um americano qualquer,
não sei.
– Merda – disse Fiona, porque desconfiava que sabia.

A campainha tocou duas horas depois – o prato que Serge estava a


cozinhar era um guisado marroquino que, aparentemente, demorava anos a
fazer – e sim, bolas, era mesmo Jake, que entregou a Fiona uma garrafa de
vinho com um sorriso presumido, como se tivesse ido pessoalmente à caça
do vinho na selva. Fiona queria dizer que não era ela a anfitriã, que isto não
fora ideia sua, que não era o que pretendia quando lhe dera o número de
Serge, mas, quando deu por si, viu-se mesmo a cumprir os deveres de
anfitriã, porque Serge tinha de mexer o tacho e Richard ainda estava a
vestir-se e a outra jornalista ia chegar atrasada.
Pôs o telemóvel na cadeira, por baixo da perna, para sentir se ele vibrasse.
Arnaud não prometera ligar ainda naquela noite, aliás, dera a entender que
só entraria em contacto na manhã seguinte, mas com certeza que ligaria se
visse alguma coisa muito boa ou muito má, não?
Jake – «Jake Austen, como a escritora, mas com k, claro. A minha mãe
era professora de inglês» – aceitou um cocktail oferecido por Serge, e Fiona
sentou-se o mais afastada possível dele no sofá, a beberricar afetadamente
um copo de água. Não ia namoriscar com Jake Austen, quanto mais não
fosse por uma questão de princípio. Não queria que ele pensasse que podia
aparecer desta maneira e que ela ficaria encantada por o ver, derretida pela
forma como ele lhe elogiava o colar.
– São pássaros? – perguntou ele. – De lado?
– Oh, é profundamente simbólico. Por falar em aulas de inglês. Bom, não.
É para dar sorte.
– Não usa mais joias nenhumas – observou ele.
Então, tinha estado a olhar para as orelhas dela, para as suas mãos. Podia
estar a referir-se à ausência de aliança.
Se estivesse em Paris por outro motivo qualquer, se tivesse tempo e nada
com que o ocupar, talvez Fiona considerasse a hipótese de uma pequena
aventura amorosa. Que importava que ele fosse um bêbedo, um burlão, se
pretendesse apenas usá-lo? E, pela forma como não lhe tirava os olhos das
pernas, Jake não parecia incomodado pela diferença de idades.
Depois do divórcio, Fiona namorara tanto que os amigos começaram a
dizer-lhe que devia arranjar um reality show. Mas isso fora há muito tempo.
Entretanto, ocupara-se com a loja, com outras coisas. E, depois de Claire
desaparecer, ela e Damian passavam muito tempo ao telefone. Não era nada
romântico, mas satisfazia-lhe uma certa necessidade. Um ombro para
chorar, embora a três mil quilómetros de distância. Ainda saía com um
homem ou outro de vez em quando, mas já era tudo rotina, incluindo o
sexo.
Tinha de admitir que era agradável estar ali sentada com Jake, ouvi-lo
dizer que precisava de comprar umas botas novas. Era agradável que ele
pensasse que ela estava de férias. E quando Serge saiu da cozinha e lhe
arrancou quase à força o copo de água da mão para o substituir pelo copo de
vinho que ela deixara em cima da bancada, quando olhou pela janela para
as paredes de uma rua parisiense à luz do crepúsculo, quase conseguiu
acreditar que era verdade.
Eram sete da tarde. Havia boas hipóteses de que Arnaud já tivesse dado
início à vigilância. Fiona tirou o relógio do pulso e enfiou-o no bolso, para
não passar a noite a olhar para ele.
– Conte-me a história da sua vida – pediu Jake.
– Da minha vida? – repetiu ela, e riu-se. Nunca tivera jeito para isso. A
sua vida fora tumultuosa, mas o resumo básico parecia sempre enfadonho.
Disse-lhe que estudara Psicologia, que começara o mestrado com vinte e
quatro anos, que casara com um professor e depois se divorciara, que tinha
uma loja de artigos em segunda mão. Não mencionou que os lucros eram
para ajudar instituições que forneciam alojamento a pessoas com sida; isto
não fazia parte da versão romântica e descontraída da história, e não queria
mesmo ter de ouvir as perguntas que se seguiriam.
– O curso de Psicologia ajuda-a a gerir a loja? – quis ele saber.
Fiona pensou ter sentido o telemóvel a vibrar mas, quando olhou para o
ecrã, estava apagado. Uma vibração-fantasma, a vibração dos seus próprios
nervos.
– A minha filha nasceu quando eu ainda estava a estudar – disse. – Por
isso acabei o curso, mas depois as coisas seguiram outro rumo.
– Estou a ver – disse ele. – Estou a ver. – Embora não pudesse estar.
Quando a campainha tocou novamente, Richard apareceu e foi abrir a
porta.
A jornalista – Corinne – trouxera um ramo de dálias e uma tarte de maçã.
Tinha cabelo prateado e uma pulseira de contas verdes e lisas. O tipo de
mulher que parecia completamente feita de lenços e cachecóis. Já conhecia
Serge e Richard e cumprimentou-os com um beijo na face. Tinha um
gravador digital mas, não fosse esse pormenor, esta podia ser apenas uma
ocasião social.
– Vamos falar em inglês – disse-lhe Richard. – Em parte por causa da
Fiona e do... hum, do Jacob, mas principalmente porque... bom, se vais
publicar citações minhas, quero parecer inteligente. E ainda sou mais
loquaz na minha língua materna. – Piscou o olho a Fiona.
Corinne riu-se e disse:
– Sim, mas o que acontece depois, quando eu te traduzir para francês?
Ficarás à minha mercê!
– Há coisas piores do que estar à mercê de uma mulher bela, não há?
– Já viram como ele é? – disse Serge. – Arma-se em sedutor para ficar
bem na entrevista!
Enquanto se sentavam à mesa e Serge ia buscar um cesto de pão, Richard
explicou que o marido de Corinne era um importante crítico de arte e que o
artigo dela para o Libération era abertamente pessoal, além de jornalístico.
– Só porque gosto muito de ti! – disse Corinne.
Jake, felizmente, estava calado. Fiona ter-se-ia sentido pessoalmente
responsável se ele fizesse figuras tristes. Aliviada, reparou que ele ainda
não terminara o primeiro cocktail.
Fiona trouxe o telemóvel consigo e colocou-o novamente debaixo da
perna. Eram quase oito horas. Do outro lado da sala, a porta da varanda
estava entreaberta. O dia aquecera e agora soprava uma brisa agradável.
Corinne perguntou a Richard pelos seus últimos trabalhos, as fotografias
em grande escala que, ao que parecia, formavam metade da sua exposição.
Havia a fotografia de uma boca, percebeu Fiona, que ocuparia uma parede
inteira. Ficou surpreendida; presumira que se tratava de uma retrospetiva.
O guisado marroquino de Serge tinha borrego e alperces e o picante só se
sentia depois de se engolir a comida.
Jake, que trouxera um bloco de notas mas o deixara no sofá, participou
com algumas perguntas – inteligentes – sobre a idade de Richard, embora
não de forma direta. Como o seu trabalho mudara, as limitações físicas, o
alcance da sua carreira.
– Tem graça – disse Richard. – Quando era da sua idade, julgava que
seria sempre a descer depois dos cinquenta. Bom. O preconceito contra a
idade é o único que se corrige a si próprio, não é?
Por baixo da mesa, Fiona olhou para o telemóvel e abriu o e-mail. Uma
mensagem de Damian, a perguntar se havia alguma notícia nas últimas
quatro horas. Outra da pessoa que ficara a tomar conta do cão dela.
Jake ficou novamente em silêncio a ouvir Richard falar sobre os
preparativos, a escutar com ar reverente enquanto Richard e Corinne
recordavam o passado. Jake era a única pessoa na sala para quem este era
Richard Campo, o homem do documentário, o talento por trás da foto
emblemática da menina em cima do muro de Berlim, a presença
escandalosa por trás da série Desonrar Reagan. Era tão diferente quando se
conhecera a pessoa antes de tudo isso.
Fiona pensou no que diria Damian se a visse ali sentada, relaxada – se
ficaria aborrecido por ela não andar na rua à procura da filha, ou contente
por ver que estava a cuidar de si própria e a deixar o detetive fazer o seu
trabalho. Havia progressos a ser feitos neste preciso momento, apesar de
não ser ela a fazê-los.
Voltou novamente a atenção para a conversa, quando Richard disse a
Jake, em tom de brincadeira:
– Quer ser meu assistente? Ando sempre à procura de novos assistentes.
– Porque é impossível trabalhar com ele – explicou Corinne.
– E garanto-lhe que o salário é péssimo! Ainda pior do que o de
jornalista!
Serge explicou a Fiona que Corinne – ou melhor, o marido dela – ia dar
uma festa para Richard na noite seguinte, na sua casa em Vincennes.
– Tens de ir também – disse Richard a Fiona. Ela fez que sim com a
cabeça, mas não tinha intenção de ir.
– Podes falar-me – pediu Corinne a Richard – das instalações de vídeo?
Quero escrever sobre isso. O mundo não conhece o teu trabalho em vídeo.
– A culpa é do mundo – disse Serge.
– Bem – começou Richard, e olhou diretamente para Fiona, como se
tivesse sido ela a fazer a pergunta. – A ironia é que o material original é
bastante antigo. São vídeos que gravei em VHS nos anos oitenta. Em
Chicago. Era um pesadelo trabalhar com VHS, sabes?
Fiona percebeu finalmente o que ele queria dizer e inclinou a cabeça. Os
anos oitenta em Chicago. Vídeo.
Richard continuou a falar com Corinne.
– São vídeos otimistas, creio eu. Cheios de vida. Editei-os com uma visão
contemporânea, mas o tema é aquela época, há vinte e cinco, trinta anos.
O... – Hesitou e Fiona lembrou-se, estranhamente, de Christopher Plummer
em Música no Coração, no palco em frente dos nazis, com um nó na
garganta ao tentar cantar sobre a sua pátria. Richard continuou: – Devias
entrevistar a Fiona enquanto ela cá está. A mim, podes entrevistar-me em
qualquer altura. Mas o irmão dela e os outros rapazes, eles... – Parou e
pestanejou rapidamente, agitando a mão à frente da cara. Levantou-se, foi à
cozinha e perguntou de trás da bancada: – Quem quer tarte de maçã?
– Ele queria dizer-te – explicou Serge a Fiona.
– Mas são o quê, filmagens? – perguntou ela. – Há filmagens?
– Não, não são filmagens, é arte.
– Está bem. – Mas Fiona sentiu a pulsação a latejar no rosto. Viera à
procura de Claire, mas um minuto recuperado com Nico, com Nico e
Terrence, com... Já era qualquer coisa. Não seria também um salvamento,
de certa forma? – Quero ver – disse.
Corinne riu-se.
– Você e o resto do mundo! Mas ainda temos de esperar todos mais de
uma semana.
Eram quase dez horas e Fiona resignou-se ao facto de que Arnaud
realmente só a contactaria de manhã.
Richard serviu a tarte com gelado de baunilha e os cinco levaram os
pratinhos de sobremesa para a varanda e comeram em pé, a olhar para a rua
cortada.
1985, 1986
universidade e a galeria estariam fechadas no Ano Novo, mas tanto Yale
A como Bill Lindsey estavam ansiosos por aproveitar o facto de os Sharp
terem vindo passar a época festiva na cidade. Allen Sharp pertencia ao
conselho consultivo da galeria e, a seguir aos Brigg propriamente ditos,
Allen e a mulher, Esmé, eram os maiores doadores da galeria. Pessoas
encantadoras e simples, que preferiam jantar em casa de Bill a serem
adulados no Le Perroquet. Yale conhecia-os desde os seus dias no Instituto
de Arte, onde eles estavam sempre dispostos a patrocinar uma festa ou um
evento educativo, e desconfiava que eles o tinham recomendado quando se
candidatara à Galeria Brigg. Esta noite, tinham insistido para que Charlie
estivesse presente, e assim, no dia 30 de dezembro, com a temperatura em
valores negativos, Yale e Charlie chegaram à porta da casa de Bill em
Evanston, com uma garrafa de merlot, dez minutos antes da hora. Tinham
vindo a pé desde o comboio. Charlie disse:
– Vamos dar mais uma volta ao quarteirão para fazer tempo.
Mas Charlie tinha um casaco mais quente e luvas grossas. Yale recusou-
se a passar mais um minuto ao frio e tocaram à campainha.
Dolly Lindsey – Yale só estivera com ela uma vez, por breves instantes –
abriu a porta como se tivesse estado a arrumar tudo à pressa antes de abrir,
mas a casa atrás dela estava impecável e havia no ar um agradável aroma a
molho de tomate. Era evidente que estava pronta há horas. Dolly era baixa e
roliça, com caracóis apertados. Se Yale estivesse certo quanto à sua suspeita
de que Bill era um gay escondido, não havia dúvida de que escolhera a
mulher mais previsível: simples mas com boa aparência, e suficientemente
doce para perdoar muita coisa. Yale não mencionara as suas suspeitas a
Charlie. A última coisa que queria era que Charlie se preocupasse com a
possibilidade de ele ter um caso no trabalho.
– Entrem, saiam do frio! – exclamou Dolly. E depois, como se
declamasse uma deixa na peça da escola, acrescentou: – E este deve ser o
seu amigo Charlie. Muito prazer.
Charlie não estava muito contente por ali ter ido – sentia que era
negligenciar o trabalho e preocupava-o o estado de Terrence, que fora
internado no Masonic com uma sinusite infeciosa –, mas ninguém diria.
– Será melhor tirarmos os sapatos? – disse. – Os seus soalhos são tão
bonitos, não quero sujá-los de lama.
– Oh, eles já viram bem pior – disse Dolly. Sorriu e corou. Charlie já a
conquistara, com apenas duas frases. Também ajudava muito que o seu
sotaque trouxesse cartola e monóculo.
Yale deu por si sentado no sofá, ao lado de Charlie, com um copo de
vinho na mão, a ver Bill selecionar discos. Ainda estava tudo decorado para
o Natal, com velas e anjos e raminhos de azevinho.
– Espero que gostem de vitela à parmegiana – disse Dolly. Charlie não
comia mamíferos, e tanto ele como Yale não eram grandes apreciadores de
vitela, mas ambos acenaram e disseram que parecia delicioso.
– Se souber tão bem como cheira – disse Charlie –, nunca mais saio de
sua casa.
Isto fez Dolly corar de novo e soltar uma risadinha aguda que seria
irritante, se não fosse tão genuína. Virou-se para Yale.
– Ouvi dizer que é uma altura empolgante na galeria!
– Pelo menos andamos a divertir-nos.
Antes das festas a situação continuava estagnada: não havia notícias de
Nora nem telefonemas irados de Cecily. E quanto mais certo Yale ficava da
autenticidade das obras – quanto mais ele e Bill olhavam para as
fotografias, quanto mais vezes Bill entrava no gabinete de Yale depois de
mais uma investigação, com evidências de que, sim, Foujita usava aquele
tom de verde exato, olhe para isto! –, mais ciente se tornava de que teria de
enfrentar não só Cecily e o seu doador egocêntrico, mas também a família
de Nora, uma família que podia facilmente travar a transação, trancar Nora
em casa ou intercetar-lhe a correspondência.
– Bom, parece maravilhoso.
Bill pusera a tocar um álbum de Miles Davis e abanou desajeitadamente a
cabeça ao ritmo da música, sentado na sua grande cadeira amarela em frente
a Yale.
– O Roman deve estar a chegar – disse. Roman era um dos dois
candidatos a doutoramento que começariam o seu trabalho como estagiários
remunerados depois do Ano Novo, graças aos subsídios da Fundação
Mellon. Yale ainda não o conhecia, mas Bill fora orientador da dissertação
de mestrado de Roman havia alguns anos, quando ainda tinha um cargo
académico. Roman trabalharia com Bill novamente no trimestre seguinte,
como vice-curador; o outro estagiário, uma mulher chamada Sarah,
trabalharia com Yale. – Telefonou a dizer que estava sem água em casa e
tinha de passar pelo ginásio para tomar um duche. Vida de estudante, não é?
Não tenho saudades. Charlie, também fez a sua dissertação?
– Nem pensar – disse Charlie, mas não acrescentou que tinha desistido da
universidade. Tanto quanto Yale conseguira deduzir, Charlie deixara de ir às
aulas mas ficara mais três anos em King’s College, a galvanizar as pessoas
e a liderar protestos e a ser, de uma maneira geral, o príncipe eleito dos
estudantes gays. Claro que Charlie não ia explicar tudo isto a Bill, e Yale
ficou aliviado quando ele pediu licença para ir ajudar Dolly na cozinha.
Charlie não sabia cozinhar, mas era fantástico a esfregar tachos.
– Parece-me que vamos ter de ir novamente a Door County – disse Yale.
– Nós os dois, desta vez. Você pode falar com ela e eu falo com o
advogado. – Segurou melhor no copo demasiado cheio; quase entornara
vinho tinto no braço do sofá creme. – Já sabemos que ela estará em casa, de
certeza, e não deve pôr-se a dar nenhuma festa.
– Aparecer sem avisar?
– Ela tem noventa anos. Não temos tempo a perder.
Bill suspirou e olhou em volta, como se pudesse haver alguém escondido
a ouvir a conversa.
– Quero ter a certeza de que você compreende onde está a meter-se –
disse.
– Compreendo. O pior dos cenários é muito mau. – Era um cenário que
envolvia não conseguirem ficar com as obras, ou (menos provável, mas
ainda possível) adquiri-las e depois descobrir que eram falsificações. Em
qualquer dos casos, a Northwestern perderia o dinheiro de Chuck Donovan
para nada.
Bill disse:
– Se a Cecily souber o que andamos a fazer, ou se as coisas correrem mal
para o nosso lado, ela vai levar o assunto às instâncias superiores, só para se
proteger. São apenas dois milhões, mas ela... as coisas não lhe têm corrido
muito bem, ultimamente. – Aproximou a cadeira de Yale e as pernas de trás
ficaram presas no tapete oriental e repuxaram-no. – Estou disposto a tentar
assumir as culpas se as coisas correrem mal, porque tenho a certeza de que
não serei despedido por causa disto. Para já, estou efetivo. Mas não posso
garantir nada. É possível que eles queiram mesmo despedir alguém, só para
provar alguma coisa, e essa pessoa seria você. – Yale não sabia bem quem
eram eles, mas acenou com a cabeça. – Duvido que prejudiquem a galeria,
mas...
Charlie enfiou a cabeça na porta.
– Tenho instruções para verificar o nível de vinho nos vossos copos! –
Yale levantou o seu para mostrar que estava cheio e bebeu um gole; Bill
levantou o polegar. Devia ser óbvio que estavam a falar de trabalho, porque
Charlie desapareceu silenciosamente.
– A Dolly já anda a pressionar-me para me reformar – disse Bill. –
Calculo que não devo ficar mais de dois anos, no máximo. E, oiça, eu
aposto a reta final da minha carreira nisto, de boa vontade. Mas você é
novo, Yale. Está a começar. E estamos a correr um grande risco.
Um ano antes, Yale teria deixado que os nervos o dominassem e nunca se
envolveria em algo assim, mas agora sentia-se preparado. Nestas últimas
semanas, andava cheio de uma energia que não conseguia explicar. Talvez
tivesse a ver com a forma como Julian olhara para ele na angariação de
fundos, e fossem os resíduos de se sentir escolhido – ou podia ter a ver com
o facto de estar cercado de evidências de que a vida era curta e não valia a
pena apostar no futuro e esquecer o presente.
– Eu quero avançar com isto – afirmou.
– A propósito – disse Bill, e levantou o dedo –, vamos falar sobre os
estagiários. Tenha um bocadinho de paciência, porque está relacionado.
Portanto, temos a Sarah e o Roman. São ambos excelentes. Você ia ficar
com a Sarah, mas tenho estado a pensar e acho que vamos trocar. Quero que
fique antes com o Roman.
Yale estava confuso.
– Mas ele é de História de Arte, não é? Com certeza que não quer
trabalhar em desenvolvimento.
– Oh, claro que quer. Já discutimos o assunto. Ele está interessado em
administração de museus. Talvez seja o próximo curso dele, quem sabe? É
um daqueles eternos estudantes.
– Está bem, eu...
– A tese dele é sobre o Balthus, por isso... bom, não é exatamente o
período da Nora, mas quase. E ele é inocente. Um jovem encantador. Quero
mesmo que fique com ele.
Dolly entrara na sala com uma taça de frutos secos e disse:
– O Roman é maravilhoso!
– Obrigado – disse Yale a Bill. Não sabia bem o que acabara de acontecer,
mas parecia que se impunha um agradecimento.
– E eu fico com a Sarah.
Dolly parecia absolutamente deliciada. A reação oposta à que a maioria
das mulheres teria, se soubesse que o marido ia ter uma jovem estagiária a
seu lado todos os dias.
Ela desapareceu na cozinha e Bill disse:
– E, se achar que pode ser útil, podemos levar o Roman connosco quando
formos ao Wisconsin.

Quando os Sharp chegaram, aos gritinhos e a rir por causa do frio, Yale
sentiu-se imediatamente mais à vontade. Esmé abraçou-o e exclamou que
Charlie era igualzinho ao que ela imaginara. Yale tinha agora desculpa para
se levantar e caminhar pela sala. Os Sharp estavam apenas na casa dos
quarenta, mas Allen Sharp detinha a patente do sistema de corte utilizado
em todas as bombas de gasolina do mundo, e agora dividiam o seu tempo
entre o Maine, Aspen e uma pequena propriedade nas Marina Towers. Eram
doadores diferentes, muitíssimo interessados em ajudar a Brigg a aumentar
a sua coleção – Allen frequentara a Northwestern e Esmé estudara
Arquitetura –, apesar de eles próprios não possuírem quaisquer peças de
arte. Eram ambos atraentes, com cabelo castanho e narizes gregos.
– Eu sei que devíamos começar a colecionar – dissera-lhe Esmé uma vez
–, mas não vejo sentido em acumular coisas.
Yale só queria que os Sharp o adotassem e reservassem um quartinho para
ele e Charlie na sua pequena fatia da Marina Tower.
Bill espalhou as fotografias em cima da mesinha baixa e Yale contou a
história toda aos Sharp. Bill dera-lhe instruções para deixar de fora as peças
de Ranko Novak – e, como de qualquer modo não havia forma de as
autenticar, Yale não via mal nisso; não eram relevantes para a conversa.
Charlie e Dolly ouviram atentamente, também, e Yale apercebeu-se de que
ainda não tinha explicado a situação de forma tão pormenorizada a Charlie.
Bom, ele andava sempre tão ocupado.
– Incrível – disse Allen. – Tenho de admitir, com algum embaraço, que
nunca ouvi falar de Foujita.
E, como Bill não disse nada, Yale explicou:
– Era presença habitual em Paris nos anos vinte, uma celebridade.
Praticamente o único japonês em França. Houve um período menos feliz,
durante a guerra, em que regressou a casa e produziu propaganda política.
Mas já ninguém se importa com isso.
Allen riu-se.
– Não? Acho que o meu pai se importaria.
Yale inclinou-se para ele, como se fosse contar um segredo.
– Bom, um dos desenhos dele foi recentemente vendido em Paris por
quatrocentos mil dólares. Não me parece que o comprador se tenha
importado.
Charlie lançou um olhar de soslaio a Yale e este demorou um instante a
decifrá-lo: era um olhar impressionado, orgulhoso. Charlie raramente o via
em ação. Se Yale fosse casado com uma mulher, ela seria arrastada para
todos os jantares com doadores, para todos os eventos com antigos alunos.
Vestiria uma saia curta e lisonjearia os homens e depois faria pouco das
outras mulheres, no caminho para casa. Ou então não. Talvez, mesmo que
fosse heterossexual, tivesse casado com alguém como Charlie, uma mulher
demasiado ocupada com a sua própria vida para ter tempo para o jogo dos
sorrisos e das lisonjas.
A campainha da porta tocou e Bill e Dolly levantaram-se ambos para ir
abrir.
Yale imaginara que um homem chamado Roman teria a estatura de um
soldado, mas o jovem que entrou na sala, meio congelado, era pequeno e
loiro, com óculos à Morrissey a ampliar-lhe os olhos. Vestia uma camisola
preta de gola alta e calças da mesma cor.
– Peço desculpa pelo atraso – disse, e estendeu a Dolly uma pequena
estrela-de-natal que devia estar em saldos no Dominick’s. Na verdade,
parecia mais novo do que os seus vinte e seis anos. Yale rapidamente ficou
a saber que ele iniciara um mestrado em Pintura antes de mudar para
História de Arte. Roman recusou uma bebida e sentou-se numa ponta do
sofá, pouco à vontade, a conversar com os Sharp sobre o trabalho de
investigação que fizera em Paris no verão passado. Tinha uma voz suave e
não levantou as mãos dos joelhos.
– A minha mãe teve medo de que eu não quisesse voltar – disse.
Esmé riu-se e perguntou:
– E queria?
– Bom, quer dizer... os meus estudos e...
– Ela está a brincar – interrompeu Allan. – Céus, Esmé, traumatizaste o
rapaz!
Roman era adorável e Yale deduziu, em primeiro lugar, que ele era gay –
que outro motivo haveria para o estranho comportamento de Bill? –, mas
também que era o tipo de gay que ainda não sabia que o era. Yale podia ter
acabado como ele, se não tivesse, no segundo ano em Michigan, apanhado
Mark Breen como professor assistente de Macroeconomia – um homem
mais velho, belo, confiante, persuasivo. Cinco minutos no apartamento de
Mark e Yale esquecera-se completamente do seu passado e de tudo o que
alguma vez sentira.
Dolly perguntou a Roman se não tinha ido passar o Natal a casa.
– Sim, nós... Bom, tenho seis irmãos e irmãs. Por isso reunimo-nos todos
em casa. No Norte da Califórnia.
– Sete filhos! – exclamou Esmé.
A família, explicou Roman, era mórmon.
Yale sentiu que Charlie também estava a tirar as medidas a Roman. Não
era propriamente o tipo de Charlie, mas ele tinha um fraquinho por homens
de óculos. Antes desta recente fase de insegurança, costumavam jogar ao
«Com quem é que ias para a cama?» na praia, ou no aeroporto (um deles
identificava três homens, o outro tinha de escolher um com quem
hipoteticamente faria sexo, apenas um, e o outro tinha de adivinhar qual
fora o escolhido) e Charlie escolhia sempre os que tinham óculos. Yale
dizia-lhe, a brincar, que tinha um fetiche por Clark Kent.
Charlie perguntou a Roman:
– Então vai trabalhar na galeria?
– Na verdade – disse Bill –, ele vai trabalhar com o Yale.
Dolly convidou-os a ir para a mesa e, quando Charlie foi lavar as mãos,
Yale seguiu-o pelo corredor e tocou-lhe no braço à porta da casa de banho.
– O Bill apanhou-me de surpresa com esta coisa do estagiário –
murmurou.
Charlie sorriu friamente.
– Se calhar foi a Dolly que o obrigou a trocar – continuou Yale. Na sala
de jantar, estavam todos a sentar-se e ouviam-se exclamações sobre o cheiro
delicioso. – Não achas? Foi tão repentino.
Charlie respondeu, também num murmúrio:
– Está tudo bem. Achas que vou perder a cabeça?
Sim, achava.
– Não sou nenhum monstro, está bem? Não me vai saltar a tampa sempre
que tu tiveres de estar em contacto com alguém.
– Eu sei – respondeu Yale. – Não era isso que queria dizer.

À mesa, depois de os Sharp terem bebido ambos uma boa quantidade de


vinho, depois de interrogarem Charlie sobre o jornal e de lhe pedirem
recomendações para viagens e de elogiarem profusamente os cozinhados de
Dolly, Yale esperou pelo seu momento. Conduziu novamente a conversa
para a doação e para os planos de voltar a visitar Nora (deixando de fora o
pormenor de ela não os ter convidado, e toda a situação com a família de
Nora e Chuck Donovan e o gabinete de desenvolvimento) e disse:
– Quero deixar no ar uma sugestão que talvez pareça pouco ortodoxa.
– Adoro coisas pouco ortodoxas! – exclamou Esmé.
– Esta doadora não tem quaisquer bens de valor além da coleção. Não
pode pagar pela autenticação e não pode deixar dinheiro para a manutenção
das peças. Por vezes, há subsídios para restauro, mas não para autenticação.
Porque...
Esmé acenou afirmativamente.
– Porque é um risco.
Allen pousou o garfo no prato.
– Atenção, não faço ideia se isto seria aceitável para ela ou não –
continuou Yale –, mas não me pareceu uma pessoa egocêntrica. Pensei que,
se houvesse alguém que quisesse patrocinar essas coisas, podíamos atribuir
dois nomes à coleção. Não como um pagamento em si, mas, enfim, uma
coisa do género em honra da sua generosidade.
– Por exemplo, a Coleção Lerner-Sharp – disse Bill.
Esmé e Allen entreolharam-se.
– Estamos intrigados – disse Esmé.
– Eu sei que é pôr a carroça à frente dos bois – admitiu Yale.
Esmé ergueu o copo.
– Bom, brindemos a carroças. Que os bois as consigam apanhar.

No caminho para o comboio, Charlie disse:


– Já que tens mesmo de ter um estagiário giro, pelo menos que seja
mórmon e virgem.
Yale riu-se.
– Não, espera – disse Charlie. – Virgem, não. Tem namorada, uma
namoradinha loira que vive, de forma muito conveniente, a três horas de
caminho. Usa camisolas de malha com casaquinho a combinar e colares de
pérolas. Veem-se fim de semana sim, fim de semana não.
– E ela não percebe porque é que ele nunca mais a pede em casamento –
disse Yale.
– São republicanos. Pelo menos ela. E os pais dela. Ele finge ser. Na
verdade, nem sequer vota.
– Mas a tese dele é sobre o Balthus! – recordou Yale. – Sabes quem é? O
que pintou todas aquelas raparigas nuas. Muito controverso.
– Exatamente.
– Exatamente o quê?
– O que tens em mãos é uma criaturinha muito confusa.
Como a rua estava completamente deserta, Yale puxou Charlie para si e
beijou-o.

Charlie tinha combinado oferecer um almoço de Ano Novo aos


funcionários do jornal, no dia seguinte, antes de cada um sair para as suas
respetivas celebrações. Charlie e Yale tencionavam ir visitar Terrence ao
hospital, em vez de festejar. Ele telefonara na véspera a dizer que estava
pronto para receber visitas. Ao que parecia, as datas festivas eram sempre
celebradas na nova unidade da sida, mas Terrence não esperava que
fizessem grande aparato para dar as boas-vindas a um ano que poucos deles
veriam chegar ao fim. No entanto, o Ano Novo era a sua ocasião preferida e
ele queria festejar. Pelo menos, o melhor que podia. Fiona ia passar por lá
antes, mas depois tinha de ir trabalhar, para que os pais das crianças de
quem tomava conta pudessem sair.
– Também preciso de vocês – dissera Terrence. – Não é preciso ser à
meia-noite. Só quero a minha festa.
Yale precisava de uma festa a sério, de sair e aliviar o stress – mas
supunha que o almoço com o pessoal do jornal também contava. Gostava
daquele grupinho. Festejariam agora e, à noite, Yale e Charlie ficariam
sóbrios e caminhariam juntos até ao hospital Masonic e, no regresso a casa,
evitariam as poças de vomitado.
Ao meio-dia, os doze funcionários e Yale reuniram-se à volta de algumas
mesas encostadas umas às outras no Melrose. Passaram de mão em mão o
jornal da véspera, que incluía o ensaio fotográfico de Richard. A
reportagem sobre a angariação de fundos saíra na segunda-feira, mas
Richard precisara de mais tempo. Isto era arte, não informação. À medida
que o jornal se aproximava do banco onde estava ensanduichado, Yale
começou a sentir-se irracionalmente nervoso, como se Richard tivesse
conseguido tirar uma fotografia dele e de Julian a olharem um para o outro
na casa de banho. Mas não. Em vez disso, ali estava uma fotografia de Yale
e Charlie a ouvirem os discursos, tirada de baixo para cima, Yale com uma
expressão emocionada. Devia ter sido tirada mesmo antes de ele desatar a
chorar. Havia também uma foto de Cecily a rir com dois homens –
provavelmente os amigos com quem viera.
– Qual é a cena dela? – perguntou Gloria, apontando para a foto. – Achei-
a engraçada.
– Hetero – disse Yale. – E confusa. Uma vez, atirou-se a mim.
Todos acharam isto hilariante. Charlie disse:
– As mulheres fartavam-se de se atirar a mim. Antes de eu começar a
ficar careca. – E, como bons empregados, todos protestaram que ele não era
careca.
Yale conhecia-os a todos bastante bem, apesar de ter havido algumas
saídas da equipa. Nico, por exemplo. E agora havia mais dois membros da
equipa original que estavam doentes.
– Achas muito terrível que eu queira substituí-los a todos por mulheres? –
perguntara Charlie, no outono. – É uma questão de segurança. As fufas não
vão morrer e deixar-me atrapalhado. Nem sequer tiram licença de
maternidade. – Yale respondera que sim, era terrível. – Abençoadas sejam
as fufas – dissera Charlie –, pois herdarão as nossas merdas todas.
Yale mencionou a Dwight, o revisor, que em breve iria novamente a Door
County, e Dwight, que costumava passar lá as férias na juventude, deu-lhe
uma série de conselhos, na sua maioria inadequados à estação do ano.
Dwight era uma pessoa enfadonha mas Yale não encontrara uma única
gralha no Out Loud o ano inteiro. Dwight falou-lhe também sobre os
prisioneiros de guerra alemães que tinham sido enviados para a península,
durante a Segunda Guerra Mundial, para apanhar cerejas, e disse-lhe que
muitos deles tinham ficado e casado com raparigas locais. Yale arquivou
esta informação, para fazer conversa durante a viagem.
Na ponta da mesa onde Charlie estava, contudo, passava-se alguma coisa.
Charlie tinha a cabeça apoiada nas mãos, empalidecera e estava a dizer:
– Foda-se, foda-se, foda-se.
– Desculpa – disse Rafael. – Pensei que tu saberias primeiro que eu.
– O que foi? – perguntou Yale, e Charlie abanou a cabeça com urgência.
Algo que deviam guardar para falar em casa.
Entretanto, do lado de Yale ninguém parecia ter ouvido o que se passava
e, com algum esforço, criaram conversas para preencher o silêncio
desconfortável. Dwight pediu para provar a sopa de tomate de Gloria. Mas
depois Charlie levantou-se da mesa, saiu do restaurante e dirigiu-se à cabina
telefónica, sem casaco. Pela montra, Yale viu-o marcar um número, esperar,
desligar, retirar a moeda, marcar de novo. Quatro vezes.
Quando voltou, não se sentou. Esticou o braço por cima da mesa, deu a
Yale o seu cartão de crédito e murmurou:
– Trata de tudo, está bem? – E depois deu meia-volta e saiu.
As pessoas que estavam sentadas ao pé de Charlie não pareceriam
chocadas, apenas aborrecidas, como se tivessem cometido um erro terrível.
Yale levantou-se e foi ocupar a cadeira vazia de Charlie.
– O que é que aconteceu? – perguntou, baixinho.
Os dois homens de ambos os lados – Rafael e um tipo novo – começaram
a falar ao mesmo tempo e calaram-se. Por fim, Rafael disse:
– É o Julian Ames.
– Oh, foda-se. – Yale sentiu a cabeça a andar à roda e o rosto a ficar tão
pálido como o de Charlie. – Não. Merda.
E eles não estavam a contradizê-lo, não estavam a dizer: «Não, não, só
partiu uma perna. Só foi atacado na rua.» Olhou para eles e eles olharam
para os pratos.
Yale não conseguia respirar.
E o pior era que metade do seu horror era egoísta. Teria mesmo pensado
em subir ao apartamento de Julian? Não chegara a fazê-lo, pois não? Não
podia ter subido e bloqueado o sucedido e agora estar em negação, pois
não? Não, não tinha subido. Sonhara várias vezes com isso desde aquela
noite, mas não o fizera.
Porém, o mais importante: Julian, o belo Julian. Julian, que estava sempre
a falar sobre a cura. Yale pensou se não teria sido isto que Julian quisera
dizer-lhe naquela noite na casa de banho. Uma confissão de doença,
confundida com uma confissão de amor. Virou-se para Rafael.
– Soubeste disso em primeira mão?
– Ele, hum... Foi o seu presente de aniversário para si próprio, fazer a
análise. É tudo o que sei, na verdade. Não foi o Julian que me disse, foi o
Teddy Naples.
Julian fazia anos a 2 de dezembro. A angariação de fundos da Howard
Brown fora... ainda era Hannukah, não era? Dia treze. Portanto não, ele
ainda não teria os resultados nessa altura. A menos que já não se sentisse
bem. A menos que tivesse sido essa a razão pela qual fizera finalmente a
análise.
O tipo novo disse:
– Quer dizer, se for apenas o vírus, ainda pode ter muito tempo! Anos!
Rafael disse:
– O que ouvi dizer foi que lhe ligaram na véspera de Natal. Ele acordou
porque o telefone estava a tocar e pensou que fosse a mãe a ligar para lhe
desejar feliz Natal. E era a enfermeira, a dizer-lhe para ir saber os
resultados.
Todos os convivas à mesa estavam agora a ouvir, a satisfazer a sua
própria curiosidade. Ninguém parecia pessoalmente afetado, apenas
preocupados por Yale. Ou não conheciam bem Julian, ou Yale e Charlie
eram os últimos a saber.
Yale pegou no copo de água de Charlie e viu que tinha a mão a tremer.
Devia ligar a Julian, mas obviamente que fora isso que Charlie tentara fazer.
Devia ir atrás de Charlie, tentar perceber onde ele fora – mas era Yale que
tinha o cartão de crédito e as pessoas ainda tinham comida nos pratos.
Rafael disse:
– Vamos mudar a festa para o bar. Estás a precisar de uma cerveja.

Charlie não estava em casa quando Yale chegou, duas horas depois. Ficou
desapontado, tão desapontado que isso o surpreendeu. Queria conversar
sobre o assunto, deitar-se na cama com ele a olhar para as paredes, a
praguejar e a discutir todos os pormenores que sabiam. Mas havia mais: ao
abraçar Charlie, Yale podia começar a redimir-se de alguma vez ter pensado
em envolver-se com Julian. Quanto mais apertasse Charlie contra si, maior
a redenção.
Às nove, Yale dirigiu-se ao Masonic sozinho, com algumas revistas e um
chapéu de festa para Terrence. Ainda não tinha estado na nova unidade da
sida e apanhou o elevador errado e teve de atravessar a enfermaria de
doenças pulmonares, mas por fim lá chegou. Havia luzes de Natal e fitas
brilhantes no balcão das enfermeiras. Uma enfermeira que parecia Nell
Carter perguntou-lhe se queria sidra espumante. Claro, disse ele, e ela
serviu-a num pequeno copo descartável.
– Ele hoje tem um companheiro de quarto novo – disse ela. – Um tipo
muito revoltado, mas agora está a dormir. O Terrence está acordado.
Yale tentou olhar disfarçadamente para esse novo companheiro de quarto
ao entrar, para ver se era alguém que conhecesse – mas estava escuro do
outro lado da cortina e viu apenas um queixo, a barba por fazer e as lesões
arroxeadas num maxilar ossudo.
Terrence estava a comer um pudim de chocolate com uma colher de
plástico – tinha uma cânula no nariz para lhe fornecer oxigénio, um tubo
intravenoso preso ao pulso. Parecia ainda mais magro do que na angariação
de fundos, mas também melhor. Pelo menos, mais contente.
– Olá! – disse Terrence. – Queres comer isto por mim? – A sua voz era
rouca, áspera.
– Estou tentado – disse Yale, sentando-se –, mas esses corantes artificiais
são para a tua saúde e recuperação.
Yale perguntou-lhe se Charlie tinha aparecido. Terrence disse que não, só
Fiona.
– Porquê? O que se passa?
– Nada. Só nos desencontrámos. Ouve, não fales, está bem? – disse. – Eu
trato da conversa. Esta enfermaria é excelente. A sério, têm televisão e
tudo? Parece um hotel.
– Clube dos Mortos.
– Não, nada de falar. Fiz o teu chili vegetariano no Natal. Não ficou mau,
mas não sou nenhum especialista.
Terrence disse:
– Sabes qual é a coisa mais difícil de ter sida?
A piada rapidamente se tornara batida, mas Yale riu-se na mesma.
– Sim – disse –, é contar aos teus pais que és haitiano.
– Não. – Terrence abriu um grande sorriso. – Na verdade, é a parte de
morrer. – Desatou a rir e, depois, começou a tossir. Mas estava tudo bem,
tudo bem.
Yale lembrava-se tão nitidamente: Terrence com Fiona ao colo, a levá-la
pelo corredor do hospital suburbano para onde os pais de Nico tinham
insistido em transferi-lo, a levá-la ao colo como um bebé, enquanto ela
soluçava com o rosto escondido no seu pescoço. Obstinadamente, Fiona
recusara-se a entrar no quarto de Nico sem Terrence, e tudo o que o
assistente social conseguira negociar fora uma mudança da guarda de hora a
hora: o senhor e a senhora Marcus, com quem Fiona não falava nessa altura,
passariam uma hora à cabeceira de Nico, enquanto Fiona e Terrence
ficavam na sala de espera da UCI, e depois Terrence e Fiona tinham meia
hora enquanto os pais iam ao refeitório. Yale e Charlie e Julian e Teddy e
Asher e uma rotação de outros amigos de Nico preenchiam os espaços
vazios. Era Yale que lá estava com Fiona e Terrence – os três tinham
acabado de sair do elevador –, quando a enfermeira terrível de cabelo
espetado se dirigiu a eles e disse a Fiona que devia entrar no quarto já, que
tinha chegado a hora.
– Posso levar o Terrence? – perguntou ela, e a enfermeira, com ar
enfadado, disse que podia ir chamar o assistente social, que estava em
reunião, e Fiona insistiu: – Não entro sem ele.
Sentou-se no banco e Yale não sabia se havia de olhar para ela ou para
Terrence, que tremia, com as mãos no parapeito da janela, ou se devia
simplesmente ir-se embora – talvez fosse o momento em que o seu lugar já
não era ali. E, depois de trinta segundos, Fiona levantou-se, disse
«desculpa, Terrence» e correu para o quarto de Nico.
Yale dirigiu-se ao balcão das enfermeiras e disse:
– Sim, chamem o assistente social. Isto não está certo. Não está certo.
No entanto, enquanto esperavam, Fiona saiu do quarto e parecia ter ao
mesmo tempo doze anos e cem, mas não vinte e um. Os soluços sacudiam-
lhe o corpo, e chorava com tanta força que nem emitia som. Atrás dela, a
senhora Marcus começou a gritar. O médico saiu do quarto e dirigiu-se a
Terrence, e Yale preparou-se para o segurar se ele caísse. Mas Terrence,
depois de o médico confirmar aquilo que já sabiam, não caiu.
Disse ao médico, numa voz gelada e dura como pedra:
– Volto daqui a duas horas. Têm de o limpar, não é? Eles podem ter o seu
tempo. E eu volto daqui a duas horas. – O joelho ainda lhe doía, de quando
colidira com o carrinho das limpezas nessa manhã, mas pegou em Fiona,
como se ela não pesasse nada, e saiu do hospital. Yale ficou, para ligar a
Charlie e aos outros, do telefone das enfermeiras. Soube mais tarde que
Terrence tinha andado vinte minutos às voltas no exterior do hospital com
Fiona ao colo, até ela estar em condições de voltar para dentro e ligar para
pedir a alguém que a fosse buscar. Soube que alguém, preocupado ao ver
um homem negro com uma mulher branca ao colo, lavada em lágrimas, no
parque de estacionamento, ligara para a polícia, e um agente aparecera e
começara a segui-los lentamente, até Fiona lhe gritar que estava tudo bem,
que não era ilegal uma pessoa levar outra ao colo, pois não?
E agora era Terrence que estava deitado naquela cama, e pelo menos o
hospital era muito melhor, mas teria alguma importância, no fim? E em
breve seria Julian.
Terrence fechou os olhos e Yale ficou ali sentado muito tempo, a contar-
lhe os últimos mexericos. Cantou-lhe «Auld Lang Syne» em voz rouca e
desafinada, até Terrence lhe dar um safanão com as costas da mão livre,
para o fazer parar. E, durante todo esse tempo, pensou que Charlie podia
aparecer a qualquer momento. Mas não apareceu.
Terrence abriu os olhos.
– Já é meia-noite?
– São vinte para as onze. Mas podemos ver a bola a cair em Nova Iorque.
Consegues aguentar mais vinte minutos? – Ligou o pequeno televisor ao
canto do quarto e no ecrã apareceu uma Times Square que Terrence nunca
mais visitaria.
Terrence olhou para a bola e depois disse, baixinho:
– Consegui. Cheguei a 1986. – Fechou os olhos e adormeceu.
Yale sentiu que não devia ir ainda – ou talvez não quisesse – e ficou ali
sentado mais alguns minutos. A porta abriu-se e pensou que fosse Charlie,
mas era apenas uma enfermeira, a ver se estava tudo bem.
Yale apertou a mão magra de Terrence tanto quanto se atreveu e disse:
– Não podes morrer da merda de uma sinusite.
*
Charlie também não estava em casa.
Yale deixou uma longa mensagem no gravador de chamadas de Julian,
vergonhosamente aliviado por ele não ter atendido.
– Quero que nos digas o que podemos fazer – disse. – Há pessoas que...
quer dizer, o Nico e o Terrence tinham-se um ao outro, percebes? E se tu
não tiveres ninguém... não é isso que quero dizer... mas tens-nos a todos
nós.
Pensou em Teddy, em como ele estaria. Teddy e Julian envolviam-se de
vez em quando, há anos, e ele devia estar, além de arrasado, aterrorizado.
Contudo, Teddy, apesar de todo o tempo que passava nas saunas, de todo o
tempo que passava nas salas dos fundos dos clubes, a fazer coisas que Yale
se arrepiava só de imaginar, parecia perfeitamente saudável, por enquanto.
(Conseguia ouvir as vozes de Charlie e Asher a repreendê-lo por esse tipo
de pensamento. Charlie: O que conta não é a quantidade de vezes, mas sim
os preservativos. Asher: Se houvesse mais saunas, haveria menos doença.
Sabes porquê? Teríamos menos vergonha.)
Uma vez, bêbedo, Teddy sussurrara a Yale, como se fosse o melhor
segredo do mundo:
– Sabes porque é que eu não a apanhei? Quem fica sempre por cima não
apanha. – E Yale tentara dar-lhe dados, explicara-lhe que isso era como as
raparigas que achavam que não podiam engravidar no verão. Dissera-lhe
que não podiam aplicar regras a um vírus tão imprevisível.
– Ouve – dissera Yale –, nunca ficaste com sabão lá dentro, no banho? É
a mesma coisa.
Se Teddy não sabia já, no fundo, que estava contagiado, certamente que
agora não lhe restariam dúvidas. Eram todos dominós humanos. Como
podia Teddy não saber que era o próximo dominó a cair?
*
Charlie só chegou a casa às duas da manhã. Yale estava a dormir no sofá,
de calças de fato de treino, à luz da pequena árvore de Natal. Charlie tinha o
rosto contraído e movia-se como uma marioneta partida. Yale perguntou, o
mais gentilmente que conseguiu, onde é que ele estivera, e Charlie disse:
– A andar por aí.
Sentou-se no sofá e Yale levantou-se e encostou a cabeça ao ombro dele.
O corpo de Charlie emitia o frio, como um frigorífico aberto. Yale pegou no
cobertor e tapou também Charlie.
– Foi a última gota – disse Charlie. – Não que seja a última. O problema é
esse. Foi uma gota, e fez transbordar o meu copo, mas sei que haverá mais.
E Yale compreendia, porque fora assim que se sentira na noite da
angariação de fundos. Encostou a mão ao rosto de Charlie e este
estremeceu.
– Desculpa – disse Yale. – Não queria... Só quero saber se estás bem.
– Porquê, tu estás bem?
– Claro que não. Mas este caso parece estar a afetar-te mais do que a
maioria.
Charlie soltou uma risada amargurada.
– A maioria.
Era mais fácil falar com Charlie quando estavam ambos a olhar para a
árvore de Natal do que quando estavam a olhar um para o outro. Yale
respirou fundo e disse:
– Quero tranquilizar-te. Já disse isto antes, e não devia ter de o dizer, mas
sei que, por alguma razão, sempre foi uma preocupação para ti. E quero que
saibas que o Julian e eu nunca tocámos um no outro.
Charlie afastou-se bruscamente e virou-se para Yale, de olhos muito
abertos.
– Desculpa, pensei que talvez... pensei que podias estar preocupado com
isso.
Charlie levantou-se, atirando o cobertor para o chão como se estivesse
coberto de aranhas.
– Foda-se, Yale!
– Está bem, não devia ter falado nisso. Anda cá. Volta para o sofá.
Charlie voltou e chorou durante algum tempo com o rosto encostado aos
pelos do peito de Yale, e por fim adormeceu.
2015
rnaud pedira-lhe para não telefonar antes das dez da manhã, por isso
A Fiona telefonou às dez horas e um minuto. Como ele não atendeu,
tentou de novo, e depois foi tomar um duche para passar o tempo. Às 10:26
ele atendeu.
– Descansou um pouco? – perguntou-lhe.
– O que aconteceu? – respondeu ela.
– Tenho fotografias, se as quiser ver.
– Eram eles?
– Sim, sim.
– Havia alguma... eles tinham... eram só eles?
– Dois adultos. Oiça, posso estar aqui a descrevê-los, ou pode ver com os
seus próprios olhos.
Combinaram encontrar-se ao meio-dia num restaurante em Saint-Germain
chamado Sushi House – não era propriamente a ideia que Fiona fazia da
comida em Paris, mas pelo menos soube pronunciar o nome ao taxista que a
levou. E, quando se sentaram e ela fez um esforço por olhar para a ementa,
e se conteve para não saltar por cima da mesa e abrir o saco de Arnaud,
também compreendeu os pratos nela descritos: sake nigiri, ikura, miso.
Arnaud disse-lhe que tinha estado à espera no carro até às onze da noite,
até por fim Kurt e Claire passarem junto à sua janela, de mãos dadas.
Arnaud ergueu o telemóvel.
– Está preparada?
Ao princípio, Fiona não compreendeu. Estava à espera que ele lhe
apresentasse uma pilha de fotografias impressas. Mas as fotografias
estavam no telemóvel, claro.
A primeira era apenas Kurt, em grande plano.
– É ele – confirmou Fiona.
Esperava ficar dominada pela raiva ao ver aquele rosto, mas sentiu apenas
um frémito de reconhecimento, o clique de reencontrar um velho amigo;
afinal de contas, era isso que ele era. Fiona nunca conseguiria olhar para
Kurt sem ver também a criança que ele fora, o rapazinho inteligente e
nervoso que gostava de debitar factos sobre submarinos e aviões espiões
alemães.
O telemóvel ainda estava na mão de Arnaud e ela disse:
– Sim, estou pronta. Próxima.
Mas a fotografia seguinte mostrava Kurt e uma mulher alta de cabelo
preto. Iam de mãos dadas e a mulher tinha um saco de compras de plástico
na outra mão. Não era Claire.
Arrancou-lhe o telemóvel da mão e passou a fotografia seguinte, e a
seguinte. Tinham sido tiradas em rápida sucessão, pelo que parecia um
filme antigo, com as duas figuras a avançarem pelo passeio aos solavancos.
– Não! – exclamou. – Merda. – Estava zangada com Arnaud, o que não
fazia sentido nenhum. – Não. – Sentiu-se apertada na mesa reservada,
sufocada sob as luzes amarelas e a música suave.
– Não é ela?
– Nem sequer se parece minimamente com ela!
– Pode ter pintado o cabelo.
– E pintou também o nariz? Pintou-se para ficar mais alta?
– Está bem – disse ele –, tenha calma. É bom, não é? Significa que ela já
não está com ele.
Fiona bateu com o telemóvel na mesa, de ecrã para baixo, ao lado do
molho de soja, e pegou na mala.
– Onde vai? Peça qualquer coisa para comer, está bem? Temos mais
passos para dar. Precisamos de os planear. Tome, beba um pouco de água.
Em vez de beber, encostou o copo à testa e, quando a empregada se
aproximou, Arnaud pediu por Fiona.
– Mostre-me outra vez – pediu, e Arnaud desbloqueou o telemóvel e
passou-lho novamente para a mão.
Kurt tinha o cabelo preso num carrapito na nuca, o rosto barbeado.
Parecia talvez apenas meio Hossana. Em relação à mulher, era difícil dizer.
Cabelo comprido com risco ao meio. Com as luzes da rua a incidir-lhe no
rosto, Fiona não conseguia ver se ela estava maquilhada ou não. Vestia um
casaco, mas a câmara de Arnaud cortara-lhe as pernas. Fiona estudou
novamente cada uma das imagens, como se pudesse haver pistas escondidas
em segundo plano.
– O grupo não defende a... poligamia, é a palavra certa? – quis saber
Arnaud. Pronunciou-a com sotaque francês.
– Sim. Quer dizer, sim, a palavra é essa. Mas não, na verdade. Graças a
Deus. – Estaria realmente grata? Isso significava que Claire não vivia
naquele apartamento. Podia nem sequer estar em Paris. Mas não, havia o
vídeo. O vídeo era em Paris, e Kurt estava em Paris. Portanto Claire
estivera em Paris, pelo menos. – Se a Claire o deixou – disse –,
provavelmente também saiu de França. Ela... como é que funciona a
imigração? As pessoas não podem ficar onde querem se não forem cidadãs,
pois não?
Arnaud encolheu os ombros.
– Há muitas pessoas que ficam ilegalmente.
E se, no preciso dia em que Fiona ali chegara, Claire tivesse decidido ir
bater-lhe à porta em Chicago? E se tivesse batido, desistido, voltado mais
tarde e chegado, por fim, à conclusão de que Fiona já não morava ali? E se
tivesse passado pela loja, feito algumas perguntas, e lhe tivessem dito que
Fiona estava no estrangeiro? Tinha de ligar para a vizinha. Devia ter
deixado um bilhete para Claire, muito bem identificado e colado à porta da
rua. Mas não, estava a ser ridícula. Porque havia Claire de escolher esse
exato momento para voltar para casa? Há um mês que Fiona não sentia esta
urgência; a única coisa que fazia com que agora parecesse tudo tão imediato
era o vídeo. Não saíra da cidade desde o desaparecimento de Claire, mas
passara o dia fora de casa muitas vezes, e algumas noites também, quando
ficava em casa de algum homem, ou, uma vez, num hotel na Baixa, depois
de um casamento. E o mundo não ficara pior do que antes.
A comida chegou e Arnaud gesticulou com os pauzinhos.
– Posso... por um pouco mais de dinheiro... posso entrar no apartamento.
Tentar encontrar mais informações.
– O quê, arrombar a fechadura? – Tinha uma peça de sushi com abacate à
sua frente e estava tão esfomeada que lhe pegou com os dedos.
Ele riu-se.
– Não, subornar o senhorio.
– Porque não abordar diretamente o Kurt?
– Porque se ele não cooperar... acabou-se. Mas se dermos uma vista de
olhos primeiro, saberemos mais e podemos falar com ele na mesma depois.
Naquele bairro, tenho a certeza de que algum dinheiro na mão certa nos
abrirá a porta. Não é muito ético, percebe? Daí o dinheiro extra. Não estou a
tentar explorá-la, mas para uma coisa destas levo um bocadinho mais.
Apenas cem euros.
– Compreendo.
– Mais o valor do suborno. Cento e cinquenta no total.
– Posso ir consigo?
Com ar exasperado, Arnaud enfiou uma peça de sushi de atum na boca.
– Desculpe – disse ela. – Eu sei, eu sei, mas você nem saberia o que
procurar. Se eu lá estiver e vir alguma coisa que era da Claire... reconheço-
a. E você não.
Arnaud expirou lentamente, como se soprasse o fumo do cachimbo que
devia ter na mão. Ou pelo menos um cigarro. E uma gabardina. Hoje vestia
calças de ganga e uma t-shirt amarela com decote em V.
– Posso não ter mais de dez minutos para entrar e sair.
– O senhorio não estaria até mais disposto a deixá-lo entrar se eu também
fosse? Se explicássemos que a minha filha está desaparecida?
– Não – respondeu ele. – Mas oiça, está bem, se conseguir entrar, levo-a
comigo. Não quando falar com o senhorio, mas pode entrar no apartamento.
Está bem?
Ela prometeu que teria o telemóvel ligado e estaria pronta para ir ao
encontro dele a qualquer momento. Mas ainda não, ainda não. Primeiro,
Arnaud tinha de estudar as rotinas de Kurt, descobrir quem era o senhorio,
etc., etc. Mais dois ou três dias.
1986
ale tinha os escritórios todos para si. Bill Lindsey e o arquivista da
Y galeria estavam ambos doentes; o negociante de arte e o contabilista só
trabalhavam em part-time. Pôs a tocar New Order bem alto, comeu uma
sanduíche de peru à secretária e trabalhou. Marcou jantares e pesquisou
subsídios e deu seguimento ao combinado com os Sharp. Ligou novamente
para o advogado de Nora e ouviu uma mensagem a dizer que o escritório
estava fechado durante as festas. Santo Deus, já era dia 7 de janeiro.
Preparou-se para deixar uma mensagem, mas a gravação terminou num
apito agudo que nunca mais acabava. Escreveu a Nora e ao advogado, a
dizer que passariam por lá na semana seguinte, a menos que houvesse
alguma resposta em contrário. E dedicou-se a reinventar a brochura oficial
da galeria.
Quando chegou, no dia seguinte, e viu que continuava sozinho, decidiu
ligar a alguns amigos e convidá-los para virem ver a galeria. Ajudá-lo-ia a
não pensar em Julian e em como estivera perto de tocar à campainha dele
naquela noite. Teddy e Asher eram os únicos que estavam disponíveis e
apareceram da parte da tarde. Yale ficou contente por Asher não vir
sozinho; não saberia como agir. E, por motivos totalmente diferentes,
motivos relacionados com Charlie, também ficou contente por não ver
Teddy sozinho. Yale mostrou-lhes a exposição atual – doze retratos de Ed
Paschke que o deixavam tonto de cada vez que passava por eles – e depois
sentaram-se no gabinete de Yale, e Teddy usou a sua caneca do MoMA
como cinzeiro. Fumava assustadoramente depressa, apenas um ou dois
segundos entre baforadas.
Falaram sobre Julian, o que pelo menos era melhor do que pensar em
Julian.
– Tem saído todas as noites – disse Asher.
– Para fazer o quê?
– Beber – disse Teddy. – Procurar outros tipos infetados para foder.
– Foi ele que te disse isso?
– Fez uma piada sobre roleta russa.
Seria de pensar que Teddy pareceria mais preocupado – afinal de contas,
estava a falar de um amante ocasional –, mas a verdade era que o amor de
Teddy por mexericos geralmente se sobrepunha a tudo o resto.
– A Fiona disse-te que o encontrou no sofá dela a semana passada, sem
sapatos nem casaco? Trocou-os por cinco drunfos e um charro.
– E estamos a falar da casa onde ela trabalha como ama – acrescentou
Asher. Estava a brincar com a caneta de quatro cores de Yale, a carregar em
cada uma das cores rotativamente.
Yale sentiu-se desatualizado. Como é que acontecera tudo isto numa
semana? Bom, tinha estado frio e ele não saíra muito de casa. Charlie
andava a trabalhar mais do que nunca no jornal desde o Ano Novo, como se
artigos sobre leis de habitação e espetáculos de travesti pudessem fazer
aparecer magicamente uma vacina. Quando não estava no escritório ou em
reuniões, estava a trabalhar em casa, com o Macintosh a zumbir baixinho,
como uma máquina de suporte de vida. Juntara-se a Asher na tentativa de
trazer novamente a votos o Regulamento de Direitos Humanos, algo que
antes pensara em adiar. Sabiam que não passaria, sabiam que o conselho
municipal não tinha interesse nenhum nos direitos deles, mas era um ponto
de partida; seria falado no Trib e nos noticiários da noite. De um momento
para o outro, Charlie começara a falar sobre o assunto com o zelo de um
religioso recém-convertido.
E andava demasiado cansado para sexo, ou demasiado stressado para
sexo, ou demasiado rabugento para sexo. No domingo à noite, tinham ido
ver A Cor Púrpura e, no regresso a casa, Charlie protestou o caminho todo,
por Spielberg ter reduzido o enredo lésbico da história a um único beijo.
– Tenho mais contacto com o meu dentista – disse.
Yale desabotoara-lhe a camisa, tentara puxá-lo para o quarto, mas Charlie
abotoara-a novamente, empurrara Yale contra a parede, roçara-lhe os lábios
na clavícula e depois ajoelhara-se e fizera-lhe um broche eficaz, que teria
sido desagradavelmente mecânico, se não tivesse sido também tão bom.
Teddy acendeu outro cigarro. Disse que Julian planeava recusar
antibióticos, vitaminas, até as enzimas de papaia de que Terrence andava
sempre a falar.
– Há aquela combinação de dois medicamentos do México, sabes?
Conheço um tipo que os traz de lá, mas o Julian não quer.
– Pensava que ele acreditava que estavam quase a descobrir a cura – disse
Yale, e Asher retorquiu:
– A crença é uma coisa muito frágil.
Asher não parava de inclinar a cadeira para trás e Yale teve medo que ele
caísse.
– Tu estás com bom aspeto – disse Yale a Teddy. – A tua cara. Já não se
nota nada.
Teddy levou os dedos da mão esquerda à cana do nariz.
– Eu queria que ele processasse a escola – disse Asher. – Mas não me dá
ouvidos.
– Bom, porque não faz sentido! Toda a gente quer que eu esteja mais
zangado do que estou. O Charlie quer que eu escreva uma coisa, um
testemunho pessoal. Mas eu... não me parece uma coisa assim tão
importante.
– Teddy – disse Asher –, foste atacado. Não é nada em comparação com a
morte de tantas pessoas, mas é alguma coisa. E está relacionado. Não podes
dizer que não está relacionado.
Teddy riu-se e disse:
– Lembras-te do Charlie a gritar com o Nico? Em frente ao Paradise?
Fora antes de Nico adoecer. Nico dissera:
– Se calhar agora, pelo menos, não teremos de nos preocupar tanto em ser
atacados, não acham? As pessoas têm medo do sangue. Quer dizer, podem
atirar qualquer coisa, mas ninguém nos vai dar um soco na boca quando
sairmos dos bares, pois não?
E Charlie dissera:
– Estás a brincar? Os ataques triplicaram. Devias tentar ler o jornal onde
publicas os teus bonecos. Triplicaram, Nico.
Tinham passado o resto da noite a imitá-lo. Triplicaram! Triplicarei
agora o meu consumo de cerveja, cavalheiros!
Nesse momento, bateram à porta de Yale e este deu um salto. Era Cecily;
ele deixara a porta da galeria destrancada.
Yale rezou para que ela tomasse Teddy e Asher por doadores ou talvez
artistas, mas era possível que os reconhecesse da angariação de fundos e
Teddy, pelo menos, com as botas Doc presas com fita adesiva e a t-shirt
branca suja, de cigarro ao canto da boca, parecia acabado de sair de uma
festa depois de um concerto dos Depeche Mode. Obviamente, ela não
estava nada preocupada em interromper, porque entrou sem pedir licença e
disse:
– Espero que as festas tenham sido boas.
– Muito boas, obrigado. E as suas?
– Vim só confirmar que continua tudo a correr bem.
Asher ergueu as sobrancelhas e apontou para a porta. Yale abanou a
cabeça e disse, cautelosamente:
– Diga-me você. O Chuck Donovan voltou a queixar-se?
– Nada, recentemente.
Uma vez que era tecnicamente verdade, Yale disse:
– Também não há nada do Wisconsin, recentemente. – Conseguia manter
um tom de voz tranquilo quando dizia uma mentira técnica, algo que não
acontecia com outro tipo de mentiras. Era uma coisa que sempre o fizera
achar a paranoia de Charlie tão bizarra: Yale era um péssimo mentiroso.
– Ainda bem – disse ela. – Ótimo.

Asher precisou de ir à casa de banho antes de sair. Ia dar boleia a Teddy


no seu Chevette, um carro tão barulhento que os passageiros tinham de
gritar para se fazerem ouvir. Yale e Teddy esperaram por ele no átrio.
Teddy disse:
– Soubeste que vão dar alta ao Terrence?
Yale não sabia.
– Será boa ideia? – perguntou, e Teddy encolheu os ombros. – Ouve,
Teddy, não vais fazer a análise? Quer dizer, sei o que pensas disso, mas se
houver alguma coisa que possa ajudar... não queres aproveitar? Algum
ensaio clínico? Não tomarias os comprimidos que vêm do México?
– Já fiz a análise – disse Teddy, baixinho. – Fomos juntos. Era o
combinado... no aniversário dele, o Julian queria que fôssemos os dois fazer
a análise. Foi o meu presente para ele. A minha deu negativa. Quer dizer, já
te tinha dito. Eu sempre disse.
– Credo, Teddy – disse Yale. – Fico feliz por ti, mas credo.

No dia seguinte, Bill finalmente regressou ao trabalho, com um


bronzeado suspeito, e pelo menos havia mais barulho no escritório. Na tarde
seguinte, Roman, o estagiário, começou a trabalhar. Sentou-se na cadeira
com o brasão da Northwestern em frente a Yale e apertou a mochila preta
que tinha no colo, com o pé a abanar.
Yale disse:
– Sei que provavelmente pensou que ia fazer mais trabalho de curador.
Espero que não esteja desapontado.
– Não, quer dizer... estou aberto a tudo. Não tenho experiência de falar
com pessoas sobre dinheiro, mas suponho que é uma capacidade útil, não?
Estava fora de questão que Roman falasse com os doadores – quando
muito, ouviria –, mas Yale não lhe disse isso. De qualquer maneira, ia com
eles ao Wisconsin na semana seguinte.
– Oiça, eu próprio sou apaixonado por arte. Não sou um tipo de finanças
que caiu no mundo dos museus. Sou um tipo de artes que tem jeito para
números.
Roman iluminou-se.
– Fez o doutoramento?
– Deixe-me explicar melhor: sou um apaixonado por arte que se licenciou
em Finanças.
– Entendido. – Roman acenou. – Bom, nunca é tarde.
Yale não conteve uma gargalhada.
– Entretanto já aprendi umas coisas.
– Ótimo – disse Roman. – Ótimo. – Tirou os óculos e limpou-os na
camisola.
Yale pô-lo a trabalhar no Rolodex, que ainda estava uma confusão. Havia
uma mesa extra ao canto do gabinete, que serviria de secretária, desde que
ninguém abrisse a porta. E, se Yale quisesse ser honesto, era uma grande
melhoria da paisagem. Quando lhe apetecesse ver alguma coisa bonita,
tinha a janela atrás de si ou Roman a trabalhar à sua frente. Noutra vida,
Yale talvez cedesse a fantasias de ser um mentor de outro género para
Roman, ensinando-lhe coisas na cama e fora dela. Mas, neste momento,
essa perspetiva era quase repugnante.

Antes de partir para o Wiscosin, Yale comprou um grande saco de coisas


na charcutaria – salada de ovo, salada de massa, carnes frias – e deixou tudo
arrumado bem à vista no frigorífico, para Charlie. Obrigou-o a prometer
que dormiria o suficiente.
– Não te mereço – disse Charlie. Estava a olhar para o frigorífico como se
este contivesse os tesouros de Tutankhamon.
– Lembra-te disso da próxima vez que eu deixar a janela aberta e começar
a chover – disse Yale.
Ao longo de toda a viagem para norte, Bill contou histórias sobre antigos
estagiários, na Brigg e em outros lados – estagiários prometedores e tímidos
e um que tivera um esgotamento mental. Yale ficou com a nítida impressão
de que muitos desses jovens tinham sido mais do que estagiários para Bill
Lindsey, e que Bill queria que Roman se apercebesse disso. Bill não era o
tipo de homem mais velho que Yale imaginava para Roman. Para já, tinha
sessenta anos. E um homossexual reprimido não era bom modelo para um
rapaz tão novo e nervoso.
– Então – disse Roman. Ia no banco de trás, como se fosse o filho de Yale
e Bill. – Vamos simplesmente chegar lá e bater à porta?
– A ideia é essa.
Independentemente dos possíveis motivos ocultos de Bill para trazer
Roman com eles, a ideia era boa, no geral: Roman podia falar sobre a
perspetiva dos estudantes, os benefícios para a escola. O facto de ele
parecer mais novo podia fazer lembrar a Nora a época que o marido passara
na Northwestern. E, pelo caminho, Roman provou ser um bom navegador.
Até se ofereceu para meter gasolina.
– A única coisa que vou pedir é que não se fale em dinheiro – avisou
Yale. – Nem mesmo se estivermos sozinhos com a Nora. Nem sequer
palavras como valor ou preço, está bem?
– Não digo isto no mau sentido, mas... porque é que ela está a fazer a
doação? – perguntou Roman. – Quer dizer, porquê nós?
– Suponho que o marido gostou muito do seu tempo na Northwestern –
disse Yale. – E eu conheço a sobrinha-neta dela. – Sentiu-se culpado por
não mencionar Nico.
Pararam primeiro em Egg Harbor, para dar entrada na pousada e deixar as
malas. Yale escolhera estrategicamente o quarto do meio, como se achasse
que tinha de proteger Roman da possibilidade de um ataque a meio da noite
por parte de Bill Lindsey. Encontraram-se novamente no átrio e o casal que
geria a pousada – o tema geral do estabelecimento parecia ser cerejas, com
quadros de cerejas e cerejeiras e a promessa de tarte de cereja ao pequeno-
almoço – os cobria de conselhos sobre o que deviam ver, «se lhes sobrasse
um tempinho».
Yale estava agoniado quando pararam em frente da casa de Nora. Embora
a visita tivesse sido ideia sua, detestava profundamente apanhar as pessoas
de surpresa. Muitas vezes dissera a Charlie que nunca lhe prepararia uma
festa-surpresa, porque o seu coração não aguentaria a pressão.
Desta vez, ao lado dos dois Volkswagen estava estacionada uma carrinha
amarela. E, antes que eles pudessem sair do carro, um rapazinho apareceu a
correr na esquina da casa, olhou para eles e voltou para trás.
– Merda – disse Yale.
– Até pode ser bom – disse Bill. – Pode ser melhor.
Yale não estava a ver como. Passou-lhe pela cabeça que talvez Nora
tivesse morrido e aquelas pessoas estivessem ali por esse motivo. Se calhar
vinham cinco dias atrasados.
Algumas zonas ainda cobertas de neve no relvado refletiam o sol. Iam a
meio do caminho de acesso quando uma mulher jovem que não era Debra –
ruiva, enrolada numa parka azul – contornou a casa com o rapazinho pela
mão e disse:
– Posso ajudar?
– Somos da Universidade de Northwestern – disse Yale.
Estava prestes a explicar e a perguntar se Nora se encontrava em casa,
mas a mulher pediu-lhes que esperassem um minuto no alpendre fechado.
Ela e o menino desapareceram dentro de casa e, segundos depois, apareceu
um homem careca e corpulento. Saiu de casa sem vestir o casaco por cima
do polo, e deixou um dedo na fresta, para não deixar a porta fechar-se.
– Não é boa altura – disse.
Yale estendeu a mão.
– Yale Tishman – apresentou-se. – É o filho da Nora? Frank? – Na melhor
das hipóteses, talvez conseguisse conquistá-lo e pedir-lhe que retirasse as
ameaças.
– Não podem aparecer aqui assim, para a pressionar.
– Peço desculpa. Não tínhamos nenhum contacto telefónico e eu sabia
que ela queria conhecer o diretor da galeria. Este é Bill Lindsey – Bill
cumprimentou-o com um aceno – e trouxemos também um dos nossos
alunos de doutoramento. – Yale estava a falar demasiado depressa. O
homem mirou-os de cima a baixo e Yale nem conseguia imaginar como ele
os veria: três maricas de idades variadas, a tremer de frio nos seus casacos
elegantes e cachecóis finos.
Dentro de casa, Nora estava a falar. Yale ouviu-a dizer:
– Então porque é que não ouvi a campainha?
Pensou em chamá-la, em passar por baixo do braço de Frank e entrar na
casa.
Frank estava um degrau acima e baixou os olhos para eles, com a testa
franzida.
– Estão a invadir propriedade privada. Esta casa pertence-me a mim, não
à minha mãe. Se já cá não estiverem quando a polícia chegar, talvez não
apresente queixa. – E, com estas palavras, fechou a porta.
Bill desatou a rir, um riso agudo e desesperado. Regressaram ao carro.
O ar em volta de Yale adquirira uma densidade de enxaqueca, uma
neblina opressiva e avermelhada. Com certeza que Frank já estaria ao
telefone com o seu amigo doador, que ligaria para os advogados e para
Cecily e para o presidente da universidade.
Entraram no primeiro café que encontraram em Egg Harbor, para se
reorganizarem.
– Lamento muito – disse Yale a Bill. – Parece que isto foi uma fenomenal
perda de tempo.
No entanto, Bill não parecia completamente de acordo, a julgar pela
forma como chamava a atenção de Roman para a paisagem, à laia de guia
turístico, mesmo enquanto fugiam do local do confronto. Bill estava agora a
pedir café e a tentar perceber se tinha fome suficiente para comer uma
sanduíche. Ele avisara Yale: pessoalmente, não tinha nada a perder. E, com
Roman aqui, Bill nem parecia reparar na palidez que invadira certamente o
rosto de Yale à medida o fim da sua carreira que se aproximava
velozmente.
– E se... – começou Yale. – E se formos falar com o advogado? Caso ele
já tenha regressado das suas longas férias, claro. Podemos pedir-lhe que
ligue à Nora. Ou que nos dê o número. Não podemos simplesmente ir
embora. – Era demasiado tarde para desistir; agora, acontecesse o que
acontecesse, teriam de enfrentar as consequências.
Roman sorveu o café e disse:
– A caixa de correio estava ao pé da estrada, não estava?
– Sim. Com o número da casa.
– Quer dizer... são duas da tarde, talvez já tenham ido buscar a
correspondência de hoje, talvez não. Provavelmente a ruiva tratou disso
enquanto estava cá fora com os filhos. Mas que acham de deixarmos um
bilhete para a Nora? Podemos disfarçá-lo, como se tivesse chegado com o
resto do correio. Um remetente falso, qualquer coisa, desde que o Frank não
nos veja. Podíamos pedir-lhe que entrasse em contacto connosco para a
pousada. Enfim, não sei. Tenho visto demasiados filmes de espiões, se
calhar, mas acho que talvez resultasse.
– Ele é fantástico, não é? – disse Bill. – O estagiário do ano.
Yale olhou para a mão com que mexia o café.
– Não é má ideia – admitiu. – E, entretanto, podemos tentar falar com o
advogado.
Encontraram uma lojinha de recordações que vendia postais e, dentro de
um postal com borboletas a dizer «Estou a pensar em ti!», escreveram uma
carta a Nora: pediam desculpa por ter aparecido sem avisar mas não tinha
sido possível contactá-la, e esta era a melhor altura para conhecer o diretor
da galeria. No envelope escreveram a morada dela e até compraram um selo
e borraram-no ligeiramente com tinta, para parecer carimbado. Conduziram
lentamente pela Estrada Regional ZZ e, quando se aproximaram da caixa do
correio de Nora, Yale abriu a janela do lado do passageiro e enfiou-a lá
dentro, no meio das revistas e outros envelopes que de facto ainda lá
estavam. Afastaram-se a toda a velocidade, a rir como crianças que
tivessem acabado de tocar à campainha e fugir.
Bill e Yale deixaram Roman na pousada, onde o encarregaram de esperar
pelo telefonema, caso Nora ligasse, e dirigiram-se aos escritórios de
Toynbee, Ball e O’Dell, num edifício vitoriano convertido na Baixa de
Sturgeon Bay, o tipo de casa que podia igualmente ter sido aproveitada para
um consultório de ortopedia. Estavam abertos, e Stanley pareceu contente
por os ver. Trabalhava de calças de caqui e uma camisola de malha azul, e
não parecia ter nenhum compromisso urgente.
– Provavelmente fizeram bem em vir – disse. – Preocupo-me muito com
ela, por causa daquela família. Não a têm fechada em casa, nada disso, mas
metade das vezes que telefono recusam-se a passar-lhe o telefone. E ela é
inteligente. Sabe muito bem o que se passa.
– Mas ela vive sozinha, não é? – perguntou Yale. – Pensei que os outros
estavam apenas de visita.
Havia um relógio enorme na parede atrás de Stanley, que devia servir
para recordar a maioria dos clientes de que estavam a pagar à hora, mas que
apenas fez Yale pensar na contagem decrescente até que a rede telefónica de
Frank Lerner chegasse a Cecily.
– Acho que a Debra não sai lá de casa há meses. Deixem-me falar-vos
sobre o pai dela, o filho da Nora, o Frank. – Recostou-se numa cadeira para
a qual era demasiado alto. – Ela teve-o com trinta e dois anos, o que, na
altura, era muito tarde para um primeiro filho. Único filho, na verdade. A
Nora está convencida de que a culpa de ele ser um fanfarrão agressivo é
toda sua. O Frank tem bastante dinheiro e considera-se um conhecedor de
vinhos. Um enófilo. Conhecem a palavra? Acabo de a aprender. A minha
filha deu-me um daqueles calendários com uma palavra nova por dia, no
Natal. – Tocou no pequeno bloco de papel preso a um suporte de plástico
em cima da secretária e virou-o para eles. A palavra do dia era avuncular. –
Sim, é um grande enófilo. – Riu-se. – Parece uma coisa obscena, não é? O
que quero dizer é que ele não passaria fome se a mãe doasse aquelas peças
de arte. Nem sequer sabia que existiam, até há coisa de cinco ou seis anos.
– Foi a mulher dele que vimos hoje? – perguntou Yale. – Com as
crianças?
– Essa, um dia, vai acordar e perceber que está casada com um velho.
Não deve ter mais de metade da idade dele. Mas é muito bonita. Chama-se
Phoebe. Instrutora de aeróbica. – Agitou as sobrancelhas.
– Quais são as probabilidades de ele contestar o testamento? – quis saber
Bill.
– Bastante grandes. Mas ganhar é outra história. E eu estou do vosso lado,
nesta questão. O que eu quero é o que a Nora quer, e a Nora quer trabalhar
convosco.
– Se ela pudesse doar em vida – disse Yale –, não estaríamos preocupados
com testamentos.
– Não se pode contestar a doação de uma pessoa viva, pois não? –
perguntou Bill.
– Bem – respondeu Stanley –, já houve quem o fizesse. Imaginem, uma
velhota com demência anuncia de repente que vai dar toda a sua fortuna à
enfermeira que cuida dela. Mas têm razão, neste caso tornaria as coisas
muito mais fáceis. Seja como for, o meu conselho é que tenham
representação legal presente. Se estiver lá eu e o vosso advogado, há pouca
margem de manobra.
– E a Nora estará disposta a fazer a doação agora?
Stanley abriu um meio sorriso e abanou lentamente a cabeça.
Yale teve uma visão ridícula de eles os três a entrarem pelas portas da
Brigg no dia seguinte com os braços cheios de obras de arte, imaginou
Cecily a ver aqueles Modiglianis – e o cheque de dois milhões de dólares de
Chuck Donovan, as suas doaçõezinhas de pianos, a desaparecerem como
mosquitos insignificantes.
A secretária que os anunciara bateu à porta entreaberta e disse:
– Temos um telefonema para os seus visitantes.
Era a voz de Roman, extática, ofegante:
– Ela ligou. Quer falar connosco. Diz para levarmos o advogado.

Assim, cerca de uma hora depois, estavam os oito sentados à volta da


mesa de jantar de Nora, como uma reunião de direção desconfortável. Nora
estava à cabeceira, sentada numa cadeira de rodas – «Não é a primeira vez
que tenho de a usar, mas nunca por muito tempo», disse –, com o Sol a pôr-
se atrás da sua cabeça. Yale sentou-se entre Frank e a filha Debra, para que
Bill, Roman e a mulher de Frank ficassem intercalados do outro lado da
mesa. Era menos antagónico desta maneira. Stanley estava na cabeceira
oposta, de frente para Nora. Os filhos de Frank – um menino e uma menina
que provavelmente deviam estar na escola, mas talvez ainda não tivessem
acabado as férias de Natal – tinham sido despachados para ver televisão na
cave. Yale ligara para o advogado da Northwestern, que prometera juntar-se
a eles assim que conseguisse sair do escritório. Dificilmente chegaria antes
das oito da noite, mas, mesmo que fosse tarde para Nora, podiam tratar de
tudo de manhã.
Yale sentiu que devia ser ele a dar início à conversa, a quebrar a tensão
que pusera Debra de braços cruzados sobre o peito liso e Roman a abanar a
perna com tanta força que fazia estremecer o chão, mas Nora pigarreou e
disse em tom agradável:
– Estou muito contente por cá estares, Frank, mas não quero ouvir uma
palavra da tua parte. É bom que fiques a par dos meus planos, mas não
estou à procura de conselhos.
Frank soltou uma fungadela mal-humorada e recostou-se na cadeira.
Estava perto dos sessenta anos e o cabelo que lhe restava era grisalho, mas
qualquer coisa nos seus olhos escuros e húmidos fazia com que parecesse
uma criança grande.
– As fotografias são extraordinárias – disse Bill Lindsey. – E as outras
peças que tenha, conforme o que forem, fotografias de Paris, cartas, etc.,
também podem fazer parte da exposição.
Nora pareceu surpreendida, mas depois disse:
– Não me parece que haja lá nada de muito privado. Tenho de dar uma
vista de olhos.
– Espere, avó – interrompeu Debra. – Vai dar também os papéis? Nós
sabíamos disso?
– Bom, os papéis acompanham a arte, minha querida.
Frank revirou os olhos com um resmungo.
– Então, gostaram de tudo? – quis saber Nora. – As obras do Novak
também? Porque quero que elas sejam apreciadas.
Antes que Bill pudesse dizer alguma coisa pouco entusiástica, Yale
interveio:
– Gostei particularmente do homem de colete de losangos.
Nora riu-se e fechou os olhos, como se tivesse o quadro no interior das
pálpebras.
Debra murmurou, mas suficientemente alto para todos ouvirem:
– O Ranko era o namorado dela.
– Ah! – exclamou Bill. – Faz sentido. – E olhou de soslaio para Yale.
A única coisa que Sarah, a estagiária de Bill, tinha conseguido descobrir
sobre Novak era que se tratava de um de três estudantes que tinham
partilhado o prestigiado Prix de Rome em 1914 – pormenor complementado
pelo facto de a eclosão da guerra os ter impedido de viajar até Roma nesse
ano e, portanto, a entrega do prémio ter sido adiada. Esse, contudo, parecia
o fim do seu rasto histórico.
Bill falou sobre a visão que tinha para a exposição.
– Podíamos sempre aceitar as peças como empréstimo e montar algo
temporário – disse –, mas, nesse caso, não conseguiríamos angariar os
fundos necessários para a autenticação e o restauro.
Estava a falar antes de tempo; Yale não tencionava abordar a
possibilidade de empréstimo e tentou, em vão, captar-lhe a atenção.
– Mas gostaríamos de poder prometer que cuidaremos destas obras para
sempre – interveio.
Nora virou-se para o filho.
– Compreendes, não compreendes, Frank? É dispendioso. Nenhuma das
peças está emoldurada e todas implicam despesas de conservação. – Tossiu
com a mão em frente da boca.
– Já posso falar? – disse Frank. – Ouve, conheço um tipo que trabalhou
no mundo da arte, numa galeria em Toronto. Ele trataria da parte de
autenticação, de graça. Um favor pessoal.
Yale abanou a cabeça.
– Deve estar a pensar em avaliação e não em autenticação, mas mesmo
assim...
Viu que Frank se sentia agora insultado.
– Oiça – disse ele –, não queria estar a falar nisso, mas tenho um bom
amigo que é, digamos, muito importante na Northwestern, e...
– O senhor Donovan já entrou em contacto com o gabinete de
desenvolvimento – interrompeu Yale. – Neste momento, não estamos
preocupados com essa questão.
Frank abriu a boca como se fosse gritar com Yale, mas virou-se para a
mãe.
– Mãe, sou eu que estou a pagar esta casa. Já pensaste nisso? Estás a
privar-me, a mim e aos meus filhos, deste dinheiro, enquanto vives numa
casa da qual eu sou proprietário.
– Tencionas despejar-me? – perguntou Nora, calmamente.
Antes que Frank pudesse responder, a mulher dele pousou-lhe a mão no
braço.
– Frank – disse –, porque não vais apanhar um bocadinho de ar?
Frank levantou-se, em princípio para seguir o conselho dela, mas nesse
instante ouviram um grito e choros vindos da cave e Frank e Phoebe
correram para ver o que tinha acontecido. Depois, Roman perguntou onde
era a casa de banho e rapidamente todos se dispersaram pela casa. Yale não
ficou nada preocupado com isso. Seguiu Nora até à sala de estar, onde ela o
convidou a sentar-se no mesmo sofá onde ele se sentara com Cecily. Desta
vez, Yale escolheu o lugar do meio, menos incómodo mas também menos
confortável. As costuras na união das duas almofadas cravaram-se-lhe no
cóccix. Bill – quando Yale lhe indicou com um aceno que isto era bom, que
uma conversa a sós com Nora talvez ajudasse – foi fumar para o alpendre e
Roman, quando saiu da casa de banho, juntou-se a ele. Stanley ficou na sala
de jantar, a ouvir à distância.
– Preciso de lhe dizer que estou a morrer – começou Nora. – Tenho uma
insuficiência cardíaca. O meu coração é fraco e não sou boa candidata para
cirurgia, como pode imaginar. Não me dão mais de um ano, mas ninguém
tem a certeza. Seria de pensar que os médicos saberiam mais do que isso. O
mais engraçado é que não estou em esforço, mas pelos vistos o meu coração
acha que sim. O mais certo é morrer no sono. Não é mau de todo, pois não?
Sempre imaginei que morreria de cancro do pulmão, e afinal apareceu-me
isto. Não fuma, pois não? O Nico estava sempre a fumar. Eu detestava, mas,
afinal de contas, parece que não fez qualquer diferença. Deixei de fumar
aos quarenta anos e veja de que me adiantou. O Frank e a Debra sabem do
meu problema mas detestam que eu fale nisso.
Yale não sabia o que dizer. Tinha prática recente deste tipo de coisas –
alguém olhar para ele e dizer que estava doente – mas em todos os casos
fora um amigo que podia abraçar, com quem podia chorar, a quem podia
dizer «foda-se, que merda». Nada disso seria adequado neste caso. Acenou
com a cabeça e disse apenas:
– Lamento muito. Mas está com um ar fantástico.
Ela riu-se.
– Não sei se podemos dizer fantástico. Devia ter-me visto com vinte e
cinco anos. Na verdade, viu-me com vinte e cinco anos! Não era fabulosa?
– Sem dúvida.
– Muito bem, nós os dois temos trabalho a fazer, porque eu não quero só
que fique com as peças, sei que precisa de determinar a proveniência delas,
e a minha memória ainda é perfeita. Posso dizer-lhe quando e onde cada
uma daquelas peças foi criada.
– Isso teria um valor incalculável. – Ouviu Frank e Phoebe gritarem com
os filhos na cave. Debra estava a lavar a loiça com movimentos furiosos.
Yale falou a Nora sobre os Sharp e a sua disponibilidade em ajudar. – Se
pusermos isto em andamento – disse –, as obras podiam estar expostas na
galeria a tempo de a Nora ainda as conseguir ver.
– Gostaria muito. O que precisamos de fazer para que isso aconteça?
Passos pesados subiram as escadas da cave. Yale disse-lhe, rapidamente,
que precisariam de fotografias profissionais das peças, para autenticação, e
explicou que havia especialistas distintos para cada artista.
– A dada altura, teriam de as ver ao vivo. Se estiver disposta a colocar as
peças nas nossas mãos – disse –, eles viriam ter connosco. Trataríamos de
tudo.
Frank estava à porta da sala. Nora disse:
– Parece ser o rumo mais inteligente, não parece?
Yale desejou que Bill e Roman voltassem para dentro, mas ao mesmo
tempo não queria que nada quebrasse aquele feitiço. O ambiente na sala
fazia lembrar um soufflé que acabara de crescer e cujo mais ligeiro tremor
destruiria.
Frank apoiou ambas as mãos na ombreira da porta e disse:
– Estás a dar milhões de dólares a desconhecidos. – A sua voz era um
ciclone numa garrafa. – Os teus netos não poderão frequentar a
Northwestern se fizeres isto.
– Stanley, importa-se de chegar aqui? – chamou Nora.
– Parece-me que isto pode ser considerado abuso de influência – disse
Frank. – É esse o termo jurídico, Stanley? Abuso de influência?
Stanley tinha entrado na sala e lançou um olhar cauteloso a Yale.
– É nesta altura que deviam ter o vosso próprio advogado presente. Só
para não terem de lidar com isto daqui a um, dois anos.
Yale olhou para o relógio. Eram apenas quatro da tarde.
– Nesse caso eu também quero o meu advogado presente – declarou
Frank.
– Está no seu direito – disse Yale.
Roman voltou e informou que tinha começado a nevar.
– Você traz sempre mau tempo, senhor Tishman! – brincou Nora.
Yale olhou pela janela. Estaria aquele nevão previsto? Não tinham ligado
o rádio do carro durante a viagem. Nevava bastante. Era uma bênção e, ao
mesmo tempo, não era: Frank podia não conseguir trazer o seu advogado de
Green Bay, mas a neve atrasaria bastante o advogado da Northwestern. O
advogado da Northwestern que se chamava, por amor de Deus, Herbert
Snow. Uma piada cósmica.
– Posso usar a sua casa de banho? – pediu Yale, e Roman, que já sabia
onde era, apontou na direção da sala de jantar.
Yale passou pela mesa envernizada, pelos armários de bugigangas, e
entrou na cozinha – o tipo de cozinha que todas as avós deviam ter. Ervas
aromáticas no parapeito da janela, livros de culinária em prateleiras. Uma
toalha de oleado na mesa pequena, com um padrão de cestos de
piquenique.
Uma mão forte e fria fechou-se sobre o ombro de Yale, e Frank disse:
– Espere aí.
– Compreendo a sua perturbação – disse Yale. – A família é sempre...
– Os meus filhos usam essa casa de banho.
Yale tentou acompanhar a mudança súbita de assunto.
– Sei muito bem quem você é – disse Frank. – Sei de onde vem. Não
pense que vai baixar as calças na minha casa.
A mão ainda estava no seu ombro e Yale dobrou os joelhos para sair de
debaixo dela. Era uns bons dez centímetros mais baixo do que o outro
homem, mas tinha uma postura melhor. O seu queixo era mais marcado, e
apontou-o ao pescoço de Frank.
– Venho de Midland, Michigan.
– Pode voltar para lá quando quiser.
Yale podia ter dito coisas terríveis. Imaginou que Terrence, na mesma
situação, teria garantido a Frank que já tinha usado as toalhas das visitas
para se limpar depois de se masturbar. Imaginou Asher ou Charlie a caírem-
lhe em cima, a chamarem-lhe cobarde e intolerante e muito pior. Mas ele
era ele, e não podia dar-se ao luxo de enfurecer ainda mais este tipo,
portanto disse:
– Eu sou saudável. Se é isso que... não estou doente. – Mas a voz falhou-
lhe na última palavra, o que não ajudou nada.
Frank parecia repugnado, como se as próprias palavras estivessem
contaminadas, e disse:
– Há crianças nesta casa.
E você é uma delas, pensou Yale, mas não o disse.
– Talvez fosse melhor se nos encontrássemos com a Nora no banco, de
manhã, para concluir este assunto. No cofre onde estão as obras.
Debra apareceu atrás de Frank.
– Está tudo bem, pai?
– O rapazinho da galeria está de saída – disse Frank.
Yale, Roman e Bill vestiram os casacos na sala de estar e Yale tirou um
lápis do bolso para copiar o número da etiqueta colada no telefone de Nora.
Debra levá-la-ia ao banco às dez da manhã. Stanley prometeu que estaria
lá também.
– E eu também – garantiu Frank, e a mulher coçou-lhe o pescoço de
forma tranquilizadora com as unhas cor-de-rosa.
*
Às seis e meia da tarde, Herbert Snow ligou-lhes para a pousada. Chegara
a Waukegan e dera meia-volta. Voltaria a tentar de manhã.
– Consegue estar aqui às dez? – perguntou Yale. Por que diabo tinha
voltado para trás? Porque não ficara onde estava, poupando uma hora de
caminho para o dia seguinte? – O problema é que tem de sair daí às cinco e
meia.
– Farei os possíveis – prometeu ele.

Foram jantar – «para festejar!», disse Bill, embora Yale achasse que dizer
uma coisa dessas só podia trazer azar – e acabaram por despejar três
garrafas de vinho. Eram as únicas pessoas no restaurante, até entrar um
grupo de convidados de um casamento. Não era o copo-d’água, vinham
apenas comer qualquer coisa depois do copo-d’água – que não passara de
bolo, como Roman ficou a saber depois de se aproximar, cambaleante, para
dar os parabéns aos noivos. Os dois grupos ficaram até tão tarde que, ao
final da noite, os empregados já estavam a limpar as mesmas mesas uma e
outra vez, enquanto pigarreavam sonoramente. Bill contou a Yale e a
Roman uma história sobre o pai de Dolly, um pianista de concerto que em
tempos fizera a corte a uma das filhas de Rachmaninoff. Estava sempre a
encher o copo de Roman, assim que este ficava abaixo de meio. Bill estava
de tal forma embriagado, que não tardou a ser o único a falar, e de qualquer
modo a conversa dele era toda dirigida a Roman, pelo que Yale pôde
recostar-se na cadeira. Estava relativamente sóbrio; fora ele que trouxera o
carro.
As obras, recordou a si próprio, ainda podem vir a revelar-se
falsificações. Mesmo que tudo batesse certo, havia ainda a possibilidade,
embora remota, de que as dificuldades de hoje em obter acesso à casa e
todos aqueles protestos fossem parte de alguma burla complicada
organizada por Frank. Mas que teriam a ganhar com isso? Não havia
dinheiro envolvido.
Yale nunca fora capaz de aceitar a sorte pura. O medo de ser enganado
remontava pelo menos ao sexto ano, ao dia em que a seleção de convocados
da equipa de basquetebol fora afixada e um colega adicionara o nome de
Yale à lista numa imitação quase perfeita da caligrafia do treinador. Yale
apareceu para o treino, sem saber que não estava convocado, e o treinador
olhou para ele e, sem qualquer vestígio de maldade, disse:
– Senhor Tishman, o que está aqui a fazer?
Por trás dele, os jogadores riram-se, gritaram e deram palmadas nas
costas uns dos outros. Enquanto eles corriam à volta do campo, como
castigo, o treinador perguntou a Yale se gostaria de ficar responsável pelo
equipamento. Não ficou surpreendido quando Yale disse que não.
A isto seguira-se uma centena de pequenas crueldades ao longo dos sete
anos de escola seguintes, uma centena de armadilhas e partidas. E, enquanto
isso, Yale tentava, desesperadamente, enganar todos os que o rodeavam
quanto à coisa mais importante de todas, na esperança vã de que
acreditassem na sua paixoneta fingida por Helen Appelbaum, nos olhares
lascivos que lançava às raparigas da equipa de voleibol. Mas nunca
acreditaram, e Yale compreendeu que seria sempre ele o enganado, nunca o
enganador. Fora por isso que parte dele, na noite da vigília de Nico,
presumira que estava a ser vítima de alguma partida coordenada. E talvez
fosse por razões semelhantes que Charlie presumira coisas ainda piores
nessa mesma noite. Charlie passara por bem pior na infância e adolescência,
sendo as escolas inglesas aquilo que são.
Mas Yale era um homem adulto e, mesmo que o mundo nem sempre
fosse um sítio bom, pensou que agora já podia confiar na sua própria
perceção. Na maioria das vezes as coisas eram exatamente aquilo que
pareciam ser. Como Bill Lindsey, todo debruçado na mesa na direção de
Roman, a falar sobre o professor de artes «que realmente me abriu, se é que
me entende». Como a neve do outro lado da janela, a cair de forma tão
deliberada. Como o empregado de mesa, a olhar para o relógio.
2015
essa tarde, Fiona esquadrinhou as ruas até não poder mais. Mesmo que
N Claire já não estivesse ali, talvez alguém a tivesse visto enquanto
estava. Perguntou em lojas de material de artes, estúdios de ioga, a todas as
pessoas que lhe parecessem minimamente acessíveis nas ruas.
Encolheres de ombros, sorrisos, confusão. Duas pessoas tiraram
fotografias da fotografia com os telemóveis e tomaram nota do número
dela.
Devia voltar para os Estados Unidos, onde era mais provável que Claire
se encontrasse. Mas depois de vasculharem o apartamento podia encurralar
Kurt, com ou sem a ajuda de Arnaud. Kurt podia ser grande, mas Fiona
tencionava sentar-se em cima dele até ele falar, se fosse preciso.
Deu por si novamente na Pont de l’Archevêché. Praticamente vazia, outra
vez. Algumas partes ainda estavam cobertas de cadeados, como no vídeo,
mas outros painéis de rede tinham sido limpos e tapados com
contraplacado. No passeio havia um grande autocolante de um coração,
com uma mensagem em inglês, as letras brancas sobre o vermelho: «As
nossas pontes não conseguem suportar mais os vossos gestos de amor.» No
ventrículo superior do coração, um cadeado com um traço por cima.
Do outro lado da ponte, um homem debruçou-se para ver o barco turístico
que passava por baixo.
Fiona encostou-se ao corrimão, virada não para a água, não para a Notre
Dame, mas para a extensão da ponte. Estava um dia frio, enevoado e
húmido. Quanto tempo poderia ficar ali, à espera, a olhar, antes que alguém
pensasse que ela se queria suicidar?
Quando a ponte ficou vazia de peões, virou-se para o rio e chamou o
nome de Claire. Porque não adiantaria nada, e era agradável, para variar,
fazer algo que sabia que não adiantaria nada. Estava outra vez cansada e
com fome e tinha de voltar ao apartamento e ligar a Damian, antes que
fosse muito tarde nos Estados Unidos. Precisava também de ligar para a
loja, para ver se Susan andava a tratar de tudo sem problemas.
Gritou o nome de Claire dez vezes. Pareceu-lhe um número de sorte.
Quando andava no quinto ano, Fiona começara a apanhar o comboio
sozinha, quase todos os domingos, para ir visitar Nico enquanto os pais
pensavam que ela estava nos escoteiros. As chefes não queriam saber se ela
aparecia ou não, e Fiona comparecia apenas o mínimo de vezes
indispensável (o primeiro encontro do ano, o último, as excursões) para se
manter na lista de membros. Mas, na maior parte dos domingos, apanhava o
metro até Evanston e depois o El até Belmont.
Levava uma mochila cheia de coisas surripiadas dos armários e do
frigorífico da casa em Highland Park. Meia embalagem de queijo creme,
uma caixa de manteiga, restos de chili, um pacote de bolachas de água e sal.
Colheres, uma vez, depois de saber que Nico não tinha colheres suficientes.
Coisas do quarto dele, aos poucos, para os pais não darem por isso: meias,
fotografias, cassetes. Gostava de poder levar-lhe os seus discos, mas não
cabiam na mochila – e, além disso, os colegas de apartamento dele
pareciam ter muitos. Anos mais tarde, percebeu que eles não precisavam
realmente das coisas que ela levava. Podiam roubar colheres num
restaurante. Entre todos, tinham dinheiro suficiente para comida.
Eram cinco, às vezes seis ou sete, a viver num quarto por cima de um bar
na Broadway Avenue. Quase todos adolescentes. Só anos depois, quando
Nico estava a morrer, é que Fiona soube que alguns trabalhavam como
prostitutos. Nico tinha um emprego a ensacar compras num supermercado
e, com o dinheiro que a tia Nora lhe mandava e os poucos dólares que Fiona
conseguia levar-lhe (passava a semana toda a roubar trocos para os bilhetes
de comboio e dava-lhe o que sobrava), conseguia manter-se fora dessa vida.
Pelo menos assim afirmara, até ao fim. No entanto, Fiona calculava que ele
não lhe diria, mesmo que o tivesse feito, porque ela sentir-se-ia responsável,
pensaria que não tinha feito o suficiente, quando na verdade era apenas uma
criança e fazia tudo o que podia.
Quando ela batia à porta, Nico abria, exclamava «Fi, a roubar para si!» e
puxava-a para dentro. Era sempre como o Natal, vê-lo abrir a mochila e
tirar as coisas uma a uma. Os amigos reuniam-se à volta dele e faziam uma
grande festa por coisas tão simples como colheres. Uma vez, conseguiu
levar-lhes uma garrafa de vinho. Eles nem queriam acreditar. Um deles –
seria Jonathan Bird? – compusera uma canção sobre ela. Como gostava de a
conseguir recordar.
Quando Fiona se mudou para a cidade, depois de terminar a escola
secundária, Nico já tinha o seu próprio apartamento, mas muitos desses
rapazes ainda apareciam, ainda lhe cantarolavam «Fi, a roubar para si»,
adoravam contar essas histórias à frente dela.
– Esta miúda era como o Robin dos Bosques! – diziam.
James, Rodney, Jonathan Bird. Talvez não se lembrasse de Jonathan Bird,
se ele não tivesse sido o primeiro a morrer. Tão cedo que não morreu de
sida, porque o acrónimo ainda não existia; morreu de GRID. O G era de
gay, e Fiona não se lembrava do resto. Jonathan estava perfeitamente
saudável um dia, no seguinte apareceu-lhe uma tosse, uma semana depois
estava no hospital e no dia a seguir morreu.
Nunca ocorrera a Fiona, até este preciso momento, com as mãos a apertar
o corrimão frio da ponte, que a mãe talvez soubesse onde ela ia todos os
fins de semana, ao longo de todos aqueles anos. Conforme foi crescendo e
os escoteiros deixaram de ser uma desculpa plausível, inventava histórias
sobre festas em ringues de patinagem, trabalhos de grupo. Talvez a mãe
deixasse a carteira à mão de semear de propósito. Enquanto chamava o
nome de Claire uma última vez para o vento e a cidade lhe devolvia a sua
própria voz no ar húmido, Fiona lembrou-se da mãe a chamar por Nico no
quintal, quando eram pequenos. Alguma vez teria deixado de chamar por
ele? Alguma vez deixara de espalhar moedas pela casa, na esperança de que
elas chegassem às mãos do seu menino?
Depois de Nico morrer, a mãe passara vinte anos a beber. Fiona sabia que
ela estava arrasada, mas não conseguia perdoar-lhe. Eles, a mãe e o pai, é
que tinham feito aquilo a Nico. A mãe assistira, a chorar, de braços
cruzados, na noite em que o pai expulsara Nico de casa, não fizera nada
para o impedir. Nem sequer dera dinheiro ao filho. Limitara-se a ir buscar a
mochila dele à cave, como se fosse um grande favor.
Ao longo dos anos, as visitas de Fiona aos pais foram-se tornando cada
vez mais espaçadas. E afastou-os de Claire.
Se calhar teria sido melhor para Claire ter avós, uma rede de segurança,
uma família alargada.
As nossas pontes já não conseguem suportar os vossos gestos de amor.
Ora, merda.
Descolou os dedos do corrimão.
Regressou a casa e seguiu o cheiro de alho a fritar até ao apartamento de
Richard.
1986
e manhã comeram tarte de cereja, enjoativa de tão doce, Bill lamentou-
D se da ressaca e viram a neve cair.
– Ele não vai conseguir chegar a tempo, pois não? – perguntou Roman. –
O advogado?
– Estou mais preocupado que os outros não apareçam – disse Yale. – Vão
dizer que é melhor adiar por causa da neve, obrigam-nos a ficar aqui mais
três dias e acaba por ir tudo por água abaixo.
Um único dia a mais podia significar mais interferência de Frank, uma
intervenção de Cecily, um telegrama do presidente da universidade.
– Santo Deus! – exclamou Bill. – Quem é que mandou vir a brigada da
desgraça?
Roman gaguejou um pedido de desculpa. Tinha o cabelo ainda molhado,
colado em madeixas. Uma das madeixas deixara-lhe salpicos de água nos
óculos.
– Bom, ainda ninguém disse nada, pois não? – respondeu. – Isso é bom. É
bom sinal.

Às dez para as dez, estavam os três à porta do banco, dentro do carro, à


espera de que as portas abrissem. Às dez, entraram para o átrio e tentaram
aquecer-se. Yale amaldiçoou-se por ter trazido os sapatos de Nico, que
tinham ficado molhados na neve e deixavam passar a humidade para as
meias. Mas achava que lhe tinham dado sorte da última vez, e era
supersticioso. Porque não tinha reivindicado antes o cachecol cor de
laranja? Talvez até ainda cheirasse a Nico, aquele cheiro a Brut e cigarros.
A piada preferida de Nico era tentar convencer as pessoas de que a canção
de Carly Simon era sobre ele, sobre o seu cachecol cor de alperce.
– E eu sou mesmo vaidoso! – dizia sempre. – Por isso sabem que é
verdade!
(«Esse cachecol não é cor de alperce», respondia sempre Charlie. «É
cinzento e cor de laranja.» Nico retorquia que toda a gente sabia que os
homens britânicos eram daltónicos.)
Yale tentou não olhar para o relógio por cima do balcão. Apesar da neve,
apesar das obstruções da família de Nora, se isto não acontecesse hoje o
fracasso seria dele, a vergonha seria dele. Era uma versão ampliada do que
sentia quando era a sua vez de escolher o filme entre os vários que estavam
em exibição. Embora não conseguisse controlar a ação no ecrã, tinha sido
ele que a colocara em movimento, e se alguém não se divertisse seria por
causa dele. Em vez de se limitar a ver o filme, via-o através dos olhos de
Charlie, lançando-lhe olhares de soslaio para avaliar a sua reação, à espera
das gargalhadas dele. E, neste momento, queria ver Bill Lindsey
deslumbrado. Queria dar a Roman a experiência mais empolgante da sua
vida. Queria que estes funcionários curiosos continuassem a olhar para eles,
fascinados, enquanto se escrevia uma página na história da arte.
A neve continuava a cair em flocos grandes e fofos.
– Temo que as estradas estejam a ficar piores – disse Roman.
Nesse momento, Debra entrou, embrulhada até aos olhos num casaco
azul, com um cachecol da mesma cor.
– Um de vocês tem de ir ajudar o Stanley a abrir a cadeira de rodas –
pediu.
Yale sentiu algo soltar-se no maxilar, um músculo que nem se apercebera
de ter contraído.
Bill saiu enquanto Debra falava com uma das funcionárias, e quando
Stanley e Bill voltaram a entrar, com Nora na sua cadeira, estava tudo em
ordem. O grupo – Frank ainda não tinha chegado, felizmente – seguiu a
funcionária até à sala dos cofres.
– O nosso advogado vem a caminho – disse Yale a Stanley. Podiam
prosseguir sem ele, se fosse preciso. Mas depois... mas, mas.
Começaram a amontoar os casacos na mesa comprida no centro da sala,
mas Bill precisava dela vazia, para inspecionar as obras. Distribuiu as luvas
brancas que, num impulso otimista, trouxera consigo do museu. Debra
recusou as dela.
Nora manobrou a cadeira de rodas para junto da mesa e disse:
– Isto é perfeito, não é? Bom, tenho de vos dizer que subornei
descaradamente a Debra.
Debra não respondeu e girou o porta-chaves entre os dedos com gestos
nervosos. Tinha as mãos vermelhas do frio.
Nora continuou:
– Há mais coisas aqui além da arte, e decidimos que está na altura de eu
começar a distribuir algumas delas. Joias, mais precisamente.
Yale não percebia como é que este pagamento compensaria fosse o que
fosse, uma vez que Debra podia facilmente esperar que Nora morresse, para
ter acesso às joias. Talvez porque teria de passar tudo por Frank primeiro, e
Debra temesse a possibilidade de Frank oferecer os colares à mulher, antes
de poderem chegar-lhe às mãos.
Embora estivesse com medo de falar nisso, Yale tinha de perguntar:
– Onde está o seu pai?
– Matámo-lo – disse Debra. – Sufoquei-o com uma almofada.
Nora desatou a rir.
– Bom, isso resolveria tudo, não era? Não os assustes, minha querida,
ainda vão pensar que é verdade. Não, o que a Debra fez por nós foi
prometer ao pai que não assinaremos documentos nenhuns antes da parte da
tarde. Uma mentirinha, mas inofensiva.
– Eu prometi-lhe o mesmo – disse Stanley.
– Ele ficou a dormir – disse Debra.
Mas eram dez e um quarto e Yale calculou que, quando Frank acordasse,
visse a casa vazia e se apercebesse de que estavam todos no banco sem ele,
acabaria por aparecer. Ou, pior ainda: deixara-os ir andando porque estava à
espera do advogado que mandara vir de Green Bay. Ou a limpar a
caçadeira.
Debra tinha as mãos a tremer quando tentou enfiar a chave na fechadura.
Mais do que aborrecida, parecia aterrorizada. Como alguém que jogou pelo
seguro e vendeu o pai, um pai bastante vingativo, em troca da última fatia
de bolo. Yale ainda estava a pensar no que havia de dizer, quando Roman
tocou no cotovelo de Debra.
– Foi a atitude certa – disse.
Debra abriu o cofre e disse:
– Muito bem, há duas caixas, mas nunca me lembro de qual é o quê.
A funcionária ajudou-a a retirar a primeira caixa grande e a levá-la para a
mesa. Nesta, encontrava-se a caixa de sapatos – Yale levantou
cuidadosamente a tampa e viu envelopes e folhas de papel dobrado e
fotografias com orla branca –, algumas caixas de joias e um envelope
grande que, quando Debra o abriu, parecia conter certidões de nascimento e
velhas escrituras. Yale pousou novamente a tampa da caixa, resistindo à
tentação de remexer no conteúdo.
Sustiveram a respiração enquanto a segunda caixa era transportada para a
mesa e, quando Debra a abriu e enfiou nela a mão nua, Bill soltou um ruído
aflito, como um passarinho assustado, e disse:
– Por favor, permita-me.
Nora, com os olhos ao nível da mesa, ainda não podia ter visto o interior
da caixa. Estava imóvel, com as mãos cruzadas no colo, a pestanejar
pacientemente. Yale perguntou-se há quanto tempo ela não veria as peças
pessoalmente. Stanley estava de pé ao lado dela, atento.
Os desenhos e esboços encontravam-se – santo Deus – dentro de dois
envelopes de papel pardo meio desfeitos. Por baixo, sem qualquer tipo de
proteção, estava a aguarela de Foujita, a representação de Nora com o
vestido verde. Yale estudou rapidamente a qualidade do papel, procurou
estragos, rasgões. Não era especialista, mas tudo parecia adequadamente
antigo e em estado razoável. As pinturas a óleo, alegadamente de Hébuterne
e Soutine e as duas de Ranko Novak, estavam enroladas e presas com
elásticos. Bill retirou lentamente os elásticos, com muita calma, de uma
forma que fez lembrar a Yale um homem a colocar cuidadosamente um
preservativo. Chamou Roman para o ajudar e, juntos, as suas mãos
enluvadas desenrolaram a tela a um ritmo penosamente lento e seguraram-
na pelos cantos, aberta em cima da mesa. Era a Hébuterne, a pintura do
quarto.
– Meu Deus, é como estar a ser aberta ao meio, não é? – disse Nora. –
Que sensação tão estranha. – Inclinou-se para ver a obra. Yale ouvia a sua
respiração ofegante e acelerada.
Yale não conseguia ler ainda a reação de Bill, não queria dizer a coisa
errada – e se Bill estivesse a reparar que a tinta era acrílica e não de óleo,
logo a obra não podia ser verdadeira? –, mas precisava de dizer alguma
coisa.
– Nora – conseguiu balbuciar –, estamos-lhe muito gratos.
Bill chamou Yale, com um gesto para que o substituísse, para ser as mãos
que seguravam dois dos cantos, enquanto ele recuava para admirar à
distância. E depois suspirou – um suspiro pós-sexo, um suspiro de
extraordinária satisfação.
– Bom, esse som agrada-me – disse Nora.
– São fenomenais – disse Bill.
– Sim, e agora já acredita em mim, não é? O seu ceticismo não me passou
despercebido! – Estava a dirigir-se a Yale.
– Não temos palavras para lhe agradecer – repetiu ele.
A arte estava ali, mas onde parava o advogado? Eram 10:35. Yale decidiu
que, se Herbert Snow não chegasse até ao meio-dia, avançaria com a
papelada mesmo sem ele. Ou se calhar devia despachar isso mais cedo. E se
Frank aparecesse de repente?
Bill passou rapidamente pelos quadros de Novak – o homem com o colete
de losangos era mais pequeno do que Yale imaginara, do tamanho de uma
folha de caderno, enquanto a menina triste era enorme – e demorou-se no
retrato de Soutine.
– Esse – disse Nora –, fique sabendo que lho roubei, e é por isso que não
está assinado. Ele ia queimá-lo juntamente com uma série de outros. E é um
retrato meu! Não podia permitir que ele me queimasse! Era um homem tão
estranho.
Depois das pinturas, Bill já não precisava de ninguém para segurar nos
cantos; tudo o resto estava direito. Trabalhou com a delicadeza de um
cirurgião, removendo os esboços dos envelopes. Yale afastou-se mas não
descalçou as luvas. Como se fosse o Rato Mickey, ou um mordomo. Bill
perguntou a Nora as datas dos que não estavam assinados.
– Tenho de pensar bem – disse ela. – Os trabalhos do Ranko são os mais
antigos. São os únicos anteriores à guerra. Talvez 1913. Menos o retrato do
colete, claro! Ninguém usava esse padrão antes da guerra! – Riu-se como se
isso fosse óbvio.
Bill acenou com a cabeça, divertido.
Yale aproximou-se de Debra, que estava encostada à parede, e disse
baixinho:
– Agradecemos muito a sua ajuda. Acredite que compreendo o seu ponto
de vista.
– Duvido muito. – Debra nunca mexia muito a boca quando falava.
– Pelo menos sei que, se estivesse no seu lugar, não estaria contente.
Junto da mesa, todos soltavam exclamações sobre o que estava escrito na
parte de trás de um dos esboços, que viraram e seguraram alguns
centímetros acima da mesa. Debra murmurou:
– Ela teve uma vida fabulosa. Eu ando a morrer de tédio e prescindi da
minha liberdade para cuidar dela, quando ela teve estes anos de loucura em
Paris, na companhia de pessoas como Monet, sabe? E podia ter-me dado um
bocadinho disso. Mas não deu.
Yale tinha de lhe dar algum crédito – pensara que se tratava apenas de
dinheiro, e talvez, afinal, não fosse bem assim.
– Se isso a faz sentir-se melhor, não há ali nenhum Monet.
– Oiça, diga-me uma coisa. Quanto é que acha que valem estas peças
todas? – Fechou os olhos, à espera do golpe.
– Oh – disse Yale. – Céus, eu... não sei, não é bem assim que as coisas
funcionam. O mercado da arte é muito estranho. Não é como um diamante,
em que sabemos que determinado peso e...
– Sim, mas quanto é que acha?
Yale não podia dizer-lhe. Em parte, porque só agravaria a situação,
precisamente agora, que tinham angariado a ajuda dela. E, em parte, porque
não queria que esta pobre mulher ficasse o resto da vida a lamentar a
oportunidade perdida.
– A maioria das peças são apenas esboços, percebe? Um quadro de
Modigliani seria uma coisa, mas... aquilo que é valioso para nós pode não
valer necessariamente muito dinheiro.
– Está bem. – O seu rosto relaxou. Alívio, mas talvez alguma desilusão
também. Yale queria abraçá-la, pedir-lhe perdão.
– Debra – chamou Nora –, quando quiseres podes dar uma vista de olhos
às joias.
Yale ajudou-a a espalhar as joias na ponta vazia da mesa. Ficou quase tão
fascinado por aqueles colares e brincos como pelas obras de arte. Não
estavam carregados de pedras preciosas, mas era tudo déco e chique e
brilhante, como que saído de uma gravura de Erté. Yale viu Debra escolher
coisas que nunca a imaginaria usar. Uma travessa de cabelo em leque,
brincos-candelabro, um broche com um escaravelho egípcio. Havia um
colar com uma esmeralda aparentemente verdadeira; Yale não era
especialista, mas empurrou-o na direção dela.
– É capaz de valer alguma coisa – disse.
Depois de arrumarem as joias restantes e de as obras de arte estarem
novamente enroladas e enfiadas nos envelopes de papel pardo (Bill
esquecera-se de trazer qualquer coisa melhor para as guardar), eram onze e
vinte e o advogado ainda não chegara. Debra estava novamente a rodar o
porta-chaves.
– Querem que ligue a alguém na Northwestern? – ofereceu-se Roman.
Disseram-lhe para ligar para a pousada e ver se havia algum recado. Ele
saiu e regressou a abanar a cabeça.
Entretanto, Nora abrira a caixa de sapatos e estava a separar os papéis em
montes.
– Há mais coisas do que eu me lembrava.
– Quanto mais, melhor – disse Bill.
– Sim, mas eu queria inspecionar tudo o que aqui está consigo... tenho
mesmo de o fazer... e não vejo como conseguiremos tratar disso.
Stanley inclinou-se e tirou alguns papéis da caixa com as mãos nuas e
Bill susteve a respiração.
– Sentem-se – disse Nora, e Yale, Bill e Roman obedeceram, sentando-se
nas cadeiras de armar de metal frio. Yale ficou do seu lado esquerdo. Debra
começou a andar de um lado para o outro. – Esta – começou Nora –, como
veem, está assinada «Fou-Fou», com certeza que devem calcular que se
trata do Foujita, mas vejam. – Mostrou-lhes um pequeno esboço de um
cachorrinho desgrenhado ao lado da assinatura. – Ninguém percebe que isto
está aqui porque ele me chamava «Nora Inu». Em japonês, «Nora» significa
«vadio» e ele achava isso maravilhoso, que eu fosse uma vadia que
atravessara o oceano. «Nora Inu» é «cão vadio». Suponho que possa
parecer um insulto, mas não era.
– Espantoso – disse Yale, e lançou um olhar rápido ao rosto exuberante de
Bill. – Isso... esse tipo de pormenores, penso eu, ajudarão muito a
autenticação. Talvez pudéssemos gravá-la, aquilo que está a dizer...
– Bom, sim, alguém devia estar a tirar apontamentos. Não é para isso que
você aqui está? – perguntou ela a Roman.
– Tenho um bloco no carro – disse ele, aflito. E, quando viu que estavam
todos a olhar para ele, saiu a correr para o ir buscar.
– Bom – disse Nora –, o que queria dizer era que vão precisar destas
histórias. E não vejo como podemos fazer isso, se levarem tudo para
Chicago. E também quero organizar as coisas. Já vi que não estão por
ordem. Não podem ficar por aqui mais uns dias, uma semana?
Não podiam, pelo menos de imediato. Tinham reuniões, a galeria para
gerir – e, assim que os papéis estivessem assinados, queriam levar as peças
para longe das mãos de Frank. Tiveram a ideia de Roman levar a caixa de
sapatos à biblioteca pública nessa tarde, com um punhado de moedas, e
fotocopiar tudo. Os originais podiam ficar no Wisconsin, por enquanto.
– Mas não na sua casa – disse Yale. – Não estariam tão seguros lá.
– Sim, sim – disse Nora. Não era preciso explicar-lhe melhor.
Deixariam as coisas no banco e, na semana seguinte, Yale e Roman
voltariam e ajudá-la-iam a organizar tudo.
Quando Roman entrou novamente, sem fôlego, Yale sentiu um toque de
nós dos dedos no joelho. Percebeu que não devia dar nas vistas nem
perguntar em voz alta o que Nora queria. Baixou os olhos o mais
discretamente que conseguiu para o punho fechado dela. Quando Nora o
ergueu ligeiramente, colocou a sua mão aberta por baixo. Estava a passar-
lhe alguma coisa. Deixou-a cair na sua mão e Yale fechou os dedos sobre
um objeto complicado, metálico e pontiagudo. Sentiu uma corrente fina.
Um colar.
Sem compreender, enfiou-o no bolso das calças e mudou de posição, para
que a parte pontiaguda ficasse no fundo.
Depois, Nora disse:
– Oiçam, hoje sinto-me muito bem, mas para a semana não sei como vou
estar, e quero que pelo menos o que vou dizer fique anotado. – Apontou
para Roman. – Tudo o que li sobre o Modigliani dizia que ele se matou a
beber. É mentira. Morreu de tuberculose. A bebida foi apenas para disfarçar
a doença, porque, na altura, era um estigma. Se ele estivesse numa festa e
começasse a tossir, fingia estar a cair de bêbedo e saía. Bom, é verdade que
bebia muito, por isso é que o disfarce resultava. Tentou conservar a sua
dignidade, tem piada, não tem? Acho que não imaginava que, décadas mais
tarde, as pessoas ainda diriam que ele era um bêbedo que se matou com o
álcool. Isso deixa-me terrivelmente zangada. Escreveu tudo?
Roman leu do seu bloco de notas:
– Modigliani morreu de tuberculose, não por causa do álcool.
– Ha! Bom, falta aí uma parte. Para a próxima, traga um gravador. Agora
preciso de vos falar sobre o Ranko, porque não encontrarão nada sobre ele
num livro.
Mas a funcionária estava à porta e disse:
– Está aqui um senhor que pede autorização para se juntar ao grupo.
Yale levantou-se. As suas glândulas suprarrenais fizeram coisas estranhas
e indesejadas.
Porém, o homem que entrou não era Frank. Era alguém que Yale nunca
vira – um homem mais velho, alto e negro, a sacudir a neve da gabardina e
com ar extremamente aborrecido.
– Herbert! – disse Bill, e levantou-se para lhe apertar a mão, um grande
aperto de mão muito masculino.
E, enquanto estavam todos virados para esse lado, Nora deu um toque no
braço de Yale.
– Para a Fiona – disse. – O colar.
Yale assentiu com um aceno e levantou-se, para cumprimentar Herbert
Snow.
– Este é o nosso advogado – disse a todos, a si próprio, ao universo.

Yale, Bill e Roman foram aos vivas e a cantar o caminho todo de regresso
a Egg Harbor.
Na pousada, Yale ligou a Charlie.
– Que bom – disse Charlie. – Fico mesmo contente por ti.
– Ficas mesmo contente por mim? Vá lá, isto é extraordinário! Isso é o
que se diz quando se encontra o ex-namorado na rua, Oh, tens um
namorado novo, estás mais magro, fico mesmo contente por ti. Isto é
enorme! As obras de arte estão literalmente no quarto do Bill. Vou levar-te
a jantar fora. Amanhã, porque temos de ficar aqui mais uma noite.
Precisamos de tirar umas fotocópias e as estradas estão perigosas. Onde é
que queres ir? Jantar?
– Vou pensar nisso. – Depois de uma pausa, Charlie disse: – Estou mesmo
muito contente por ti. É só o cansaço.
Yale quase disse qualquer coisa sobre a casa, havia uma casa que queria
que Charlie visitasse, estava à venda, e era a altura certa – mas isso podia
esperar. Falaria no assunto no dia seguinte, depois de terem bebido um copo
de vinho.
A seguir, ligou a Fiona e ela guinchou de alegria, de forma muito mais
satisfatória. Disse-lhe que tinha uma coisa para ela e pediu-lhe que passasse
pela galeria para ver as peças.
– Oh, Yale, isto estava destinado a acontecer, não achas?

Na viagem de regresso, na manhã seguinte – com a arte embalada e


protegida no porta-bagagens, as folhas fotocopiadas no banco de trás, os
documentos assinados e datados e testemunhados –, os três não se
conseguiam calar um instante.
– Sinto-me um bocadinho mal pela família – confessou Yale. – Não
somos pessoas horríveis, pois não?
– Aquele homem levaria as peças aos restauradores errados, aos
avaliadores errados, seria enganado e nunca conseguiria autenticar nada,
muito menos adicionar alguma coisa aos catálogos – disse Bill. – Muitas
das maiores obras de arte do mundo perderam-se graças a pessoas
exatamente como o Frank.
– E isto vai fazer a galeria – disse Yale. – Quer dizer... desculpe, sei que a
galeria já está a crescer de forma espantosa, mas...
Bill riu-se para o tranquilizar.
– Mas ainda não tínhamos quatro Modiglianis.
No meio do banco de trás, Roman disse:
– Mas que primeira semana de trabalho inesquecível!
*

A meio do caminho para casa, ocorreu a Yale que, se não estivesse a doar
tudo à galeria, Nora podia muito bem ter deixado uma das peças a Fiona,
em testamento. Um único esboço seria suficiente para lhe pagar os estudos.
E com certeza que Fiona sabia disso. No entanto, nunca dissera uma
palavra.
2015
uando entrou em casa de Richard, Fiona encontrou Jake Austen sentado
Q no sofá, a falar com Serge. Queria ficar zangada com a invasão e não
tentou evitar esse sentimento, mas talvez estivesse também um pouco
aliviada. Assim, ninguém lhe perguntaria como tinha corrido o dia. Apesar
de tudo, nunca imaginara que o tipo se ia inserir daquela maneira. Jake
tinha os olhos vermelhos, a camisa desabotoada no colarinho, um botão a
mais do que seria necessário.
Pousou a mala na bancada e descalçou-se. Ambos os homens lhe
acenaram e Jake apontou dramaticamente para o telemóvel, em cima da
mesinha baixa. Estava a gravar. Fiona fez um chá, o mais silenciosamente
que conseguiu.
Serge estava a dizer:
– Ele encontra o espaço entre a ação e o repouso. Não quer a foto da ação
e não quer a foto do repouso, percebe? Sim? Procura o momento intercalar.
Fiona não sabia se Serge ainda trabalhava como assessor de imprensa de
mais alguém ou se dar entrevistas sobre Richard se tornara a sua vida.
Jake tocou no ecrã do telemóvel e os dois homens relaxaram.
– Como correu? – perguntou Jake. – Eles, hum... puseram-me a par da
situação. Espero que não te importes. Está tudo bem?
– Céus – disse ela. – Não sei. – Bom, lá se ia a sua fantasiazinha de
parecer uma pessoa normal numa viagem normal. Puf!
Fiona ainda não tinha jantado e queria ir diretamente para a cama. Mas
devia ligar a Damian e não se esquecer de perguntar por Karen com um tom
de preocupação credível. Também devia ligar a Cecily e dizer-lhe que sim,
Kurt estava realmente em Paris, mesmo que Cecily não o quisesse ouvir. Ou
talvez isso pudesse esperar. Teria sequer a responsabilidade de lhe dizer?
Nunca fora muito boa a julgar quem estava sob a sua jurisdição e quem não
estava. Cecily sabia o motivo da vinda dela a Paris e desejara-lhe boa sorte,
mas Fiona não lhe falara sobre a criança no vídeo. Porque o faria, quando
nada era certo?
– Acho que estou despachada, por hoje – disse.
– Isso é perfeito! – exclamou Serge. – Assim podes vir à festa! Já
convenci o Jake a juntar-se a nós.
– Festa?
– Na casa da Corinne, lembras-te? Apanhamos o métro para Vincennes às
sete, está bem? Não te preocupes, trazemos-te cedo para casa!
– Oh... eu...
– Muitos artistas importantes. E tens de conhecer o marido da Corinne.
Tens de ver a barba dele.
– A barba dele?
Serge riu-se.
– Acredita em mim. Acredita.

Fiona telefonou a Damian do quarto e ele obrigou-a a repetir todos os


detalhes três vezes. A situação parecia menos desesperada quando a
relatava a outra pessoa, mais como um progresso.
– Isso é ótimo! – disse ele. – É um grande passo!
Por ele, Fiona fingiu que concordava.
Os tratamentos de radioterapia de Karen começavam na segunda-feira; se
não fosse isso, ele já estaria num avião, esperava que ela soubesse.
– Não vou a Paris desde aquela conferência em 1994 – disse.
– E deixaste-me em casa com uma bebé. Nunca te perdoei. – Mas sabia
que ele conseguia ouvir o sorriso na sua voz. – Não sei o que hei de fazer. –
Contou-lhe sobre a festa.
– Vai! – disse ele. – Podes conviver com artistas em Paris! Vai e diverte-
te.
– Não é exatamente conviver com artistas – protestou ela. – Não estamos
a fazer esboços numa esplanada.
– Ouve – disse ele –, tenta refazer os passos da tua tia-avó enquanto aí
estás. Não foi uma coisa que sempre quiseste fazer? E o namorado dela, o
que morreu?
– O Ranko Novak?
– Tenta localizá-lo.
– O quê, a sepultura dele?
– Não sei. Sim.
– És um querido, Damian.
– Vai à festa. – E depois: – Ciao – que era algo que Fiona costumava
achar engraçado, quando Damian era seu professor e ela sabia pouco da
vida.
Bom, preparar-se para a festa era uma boa desculpa para não ligar a
Cecily. E não estava mesmo com coragem para ligar a Cecily.

Fiona desejou que Jake não estivesse com eles, que não estivesse ali em
pé, a segurar-se ao suporte no métro com dois dedos e a olhar para ela.
Richard e Serge estavam sentados atrás de Fiona a conversar num francês
rápido, e Fiona não tinha ninguém com quem falar a não ser Jake, e não
tinha como falar com ele sem uma sugestão de flirt na voz. O único vestido
que trouxera, um vestido traçado azul-claro, era bastante decotado – e,
embora tivesse posto um casaco leve, os botões estavam partidos e não o
conseguia fechar. Jake pusera-se a olhar diretamente para dentro do decote
dela.
Saíram em Vincennes e, enquanto percorriam as ruas escuras e
silenciosas, passando por lojas e restaurantes e depois por casas estreitas e
maravilhosas, Jake aproximou-se do ouvido dela e disse:
– Então esta é a Evanston de Paris? – e ela não conseguiu evitar uma
gargalhada. No entanto, conteve-se, para ele não pensar que o merecera.
Jake cheirava a gim e Fiona perguntou a si própria se teria estado a beber
em casa de Richard ou antes.
Olhou para o telemóvel, apesar de o ter feito dois minutos antes e de ter o
som no máximo. E não havia motivo para que Arnaud lhe ligasse tão
depressa. Mas não conseguia parar de abrir o e-mail, de clicar na caixa de
mensagens vazia.
Ocorreu-lhe que podia ir para a cama com Jake, para se ver livre dele.
Seria divertido, tiraria a ideia da cabeça e depois ele faria o inevitável e
desapareceria graciosamente. Se não desaparecesse, se voltasse no dia
seguinte, ela podia sempre fingir que estava apaixonada e perguntar-lhe
quando se voltariam a ver em Chicago. «Sabes», podia dizer, se a situação
se tornasse desesperada, «há a possibilidade de eu ainda ser fértil.»
Claro que era duvidoso que ele conseguisse sequer fazê-lo, bêbedo como
Fiona presumia que estivesse. Prolongava excessivamente todas as sílabas
(«Já viste a Luaaaa?»), demorava o olhar nela um pouco demais, mexia os
pés demasiado devagar. Não o suficiente para que Richard e Serge
reparassem, pelos vistos, mas o suficiente para irritar Fiona. Porque é que
ele podia passar pela vida sempre embriagado? Porque é que podia ter uma
carteira boomerang?
E depois deu por si encurralada na maldita festa com ele. Ao princípio,
ambos ficaram junto de Richard e Serge à entrada, onde Corinne (numa
túnica amarela, com um colar feito de contas de madeira enormes) os
recebeu calorosamente, se certificou de que tinham bebidas e chamou o
marido, que estava na sala do lado. A barba de Fernand Leclercq era, como
Serge prometera, prodigiosa: até ao peito, branca e ondulada como a barba
de um Pai Natal de animação. A importância irradiava dele numa vibração
que enchia o vestíbulo.
– Estejam à vontade para ver o que quiserem – disse, e Fiona não
percebeu por que raio quereria ou precisaria de um convite destes, até ver
que a casa estava repleta de obras de arte incríveis e que havia convidados a
enfiar a cabeça em todos os cantinhos e divisões, mesmo no piso de cima,
para admirar as aquisições de Fernand e Corinne. Do lado de fora da casa
de banho, havia um Basquiat; um retrato de Julian Schnabel dominava a
sala de jantar.
Ao princípio, as pessoas fizeram um esforço por falar inglês com ela –
Corinne, Serge, o escritor alemão a quem foi apresentada –, mas pouco
tempo depois estava perdida num turbilhão de francês e limitada a ter de
falar com Jake. Foram parar a uma sala ao fundo da casa, que se enchia e
esvaziava de poucos em poucos minutos, conforme os convidados entravam
para verificar se não lhes tinham passado despercebidas alguma bandeja de
comida, alguma garrafa de champanhe, alguma obra cubista seminal.
– Tenho andado a estudar na Internet a obra dele – disse Jake. – Do
Richard. É estranho como há tantas fotografias que eu nem sabia que eram
dele. Fotografias famosas, quero eu dizer. Aquele tríptico, já o admirava há
muito tempo. Não fazia ideia de que era um Campo. E vi uma fotografia
tua, acho eu. Não é? – Apesar do copo que tinha na mão, parecia mais
sóbrio do que lhe parecera no métro. Fiona queria que ele desaparecesse.
– Tenho um vestido florido?
– Não, estás ao lado de um tipo... enroscada ao lado de alguém numa
cama de hospital.
Fiona tentou beber o resto do champanhe de uma vez, embora o gás lhe
magoasse o nariz quando engoliu.
– Estás a fazer perguntas sobre coisas privadas – disse. – É arte, mas eu
estava lá. Eram os meus amigos.
– Eu... bom, na verdade não perguntei nada. Acho que não fiz nenhuma
pergunta.
– Está bem.
– O que tinhas medo que eu perguntasse?
Ela pensou um pouco.
– Que me perguntasses quem era a pessoa na cama.
– Não queres sentar-te?
– Não. – Olhou para o grupo de pessoas à entrada da sala, mas estavam a
falar francês e ninguém olhou para ela.
– Posso... ouve, tenho só uma pergunta, mas não é sobre essa fotografia, é
sobre o tríptico.
– Santo Deus. O quê?
– Desculpa! Desculpa. Vamos procurar comida.
Ela estava ansiosa por motivos que não tinham nada a ver com Jake
Austen e a sua invasão, mas ele era um saco de pancada conveniente.
Assim, aproximou-se dele mais do que devia e falou mais alto do que
devia.
– É o Julian Ames. No tríptico. Era uma pessoa maravilhosa, ator, e o
Richard tirou a primeira fotografia quando estava tudo bem, a segunda
quando o Julian entrou em pânico porque tinha ficado a saber que estava
doente, e depois tirou a terceira quando ele pesava para aí quarenta quilos.
– Desculpa, a sério, eu...
– O meu irmão morreu num hospital horrível onde os meus pais o
enfiaram, um sítio onde toda a gente tinha medo dele e ninguém sabia que
raio estava a fazer, e o Julian foi visitá-lo todos os dias. Não era o tipo mais
inteligente do mundo, mas era leal e sentia as coisas mais do que as outras
pessoas. Tu usas o álcool para te entorpeceres, não é? Mas algumas pessoas
sentem mesmo as coisas. E havia uma enfermeira que distribuía as ementas,
mas nunca entrava no quarto dele. Não que ele conseguisse comer alguma
coisa, seja como for.
– Isso é horrível.
– Cala-te. Metade do tempo não tinha importância, porque o Nico estava
inconsciente. O que percebemos, já no fim, é que ele tinha um linfoma do
sistema nervoso central e os idiotas dos médicos não o identificaram e
deram-lhe esteroides, que era a pior coisa que lhe podiam dar. Mas ao
princípio reduziu o inchaço no cérebro e durante uns dois dias ele teve
alguns períodos de lucidez. Vinha ao de cima durante dez minutos e depois
desaparecia outra vez. Um dia, num desses períodos de lucidez, a
enfermeira entrou e parou à porta, tinha uma expressão muito arrogante,
aquela enfermeira... e começou a ler a ementa da porta. O Julian estava lá
comigo e o Nico estava consciente, e a enfermeira começou a recitar:
«Esparguete com almôndegas.» E o Julian pôs-se aos pés da cama do Nico
e repetiu com a sua voz do teatro, como se estivesse a representar um rei de
Shakespeare, e depois fez uma... uma coisa entre uma pantomima e uma
dança interpretativa. Tudo sobre esparguete, como se estivesse a enrolá-lo
no garfo, a sorver a massa. E a enfermeira olhou para ele com uma
expressão no rosto que dizia: É por isso que estão todos doentes, olhem
para este comportamento apaneleirado. O Julian aproximou-se, espreitou
para a ementa por cima do ombro dela e anunciou o prato seguinte, que era
salada de frango, e fez a dança da galinha. E recitou assim a ementa toda,
com a enfermeira ali a olhar.
– Isso é fantástico!
– Não. Foi triste e horrível. Foi a última vez que o meu irmão esteve
acordado.
– Posso perguntar o que lhe aconteceu? Ao Julian?
– Que merda achas que lhe aconteceu?
– Fiona...
– Era ator, sem família e sem seguro de saúde, e pelo menos se tivesse
ficado em Chicago podia ter tido algum apoio decente, se tivesse aguentado
até os medicamentos começarem a surgir, mas, em vez disso, desapareceu e
morreu sozinho e nem sequer sei onde.
– Estás a sangrar.
– O quê?
– A tua mão.
Ela olhou para baixo. O copo de champanhe vazio que estava a apertar
estalara. Uma gota de sangue escorria-lhe pelo interior do pulso e outra pelo
exterior do copo. Quando abriu a mão, o copo desfez-se em cacos no chão.
A sala perdeu a nitidez e as vozes ficaram distantes. Corinne estava ali, a
segurar uma toalha debaixo da mão dela, a conduzi-la até uma pequena casa
de banho com papel de parede e torneiras douradas, a sentá-la na tampa da
sanita.
Agora o marido de Corinne estava ajoelhado em frente de Fiona com uma
pinça na mão, a retirar lentamente os estilhaços de vidro cravados na sua
palma.
– Estou tão envergonhada – disse, quando a sua visão ficou novamente
nítida, depois de Corinne sair para limpar a confusão que ela fizera.
– Isso não é permitido. – A voz dele era rouca e grave. Havia algo de
régio na sua cabeça inclinada, no cabelo branco penteado com gel.
Fernand, o crítico importante. Aqui, não reconhecia nada que fizesse parte
da sua vida normal. Este homem, esta divisão, este sangue.
Ele massajou-lhe suavemente a palma da mão e fitou-a através dos
óculos.
– Obrigada – disse ela. – Já tinha feito isto antes?
– É só procurar os pedacinhos de luz.
Fiona imaginou a palma da sua mão salpicada por mil centelhas de luz
refletida em vidro, que levaria consigo para sempre. Todo o seu corpo devia
ser assim. A sua pele devia cortar as pessoas em quem tocava.
Queria dizer-lhe coisas simpáticas, mas não queria estar constantemente a
repetir o mesmo agradecimento.
– Também pinta? Além do trabalho como crítico? Tem as mãos tão
firmes.
– Estudei pintura. – Ergueu os olhos e sorriu e Fiona sentiu que podia
ficar ali para sempre, naquela casa de banho, com alguém a cuidar dela. –
Uma ideia terrível. Os críticos não deviam saber pintar.
Jake apareceu à porta. Ela não tinha energia para o mandar embora.
Fernand aplicou mais antissético na pele dela com um disco de algodão e
disse:
– Andei na Académie des Beaux-Arts. Muito, hã... antiquado.
Fiona animou-se.
– Ainda lá está? Dá aulas?
– Não. – Ele riu-se. – Não é para mim.
– É só porque... – fez uma pausa enquanto ele enfiava o bico da pinça na
base do seu dedo do meio – ...a minha família sempre quis localizar um
artista que frequentou essa escola. Foi namorado da minha tia-avó e morreu
muito novo.
– Em que ano?
– Oh, muito antes do seu tempo! Não pensei que o conhecesse, só... nem
sei porque falei nisso. Estou um bocadinho tonta. Ele venceu o Prix de
Rome, mas morreu pouco depois da Primeira Guerra Mundial.
– Ah, sim, isso foi antes do meu tempo!
– Chamava-se Ranko Novak. Sempre tivemos curiosidade em saber
mais.
– O que quer encontrar? Registos? Uma fotografia? – Virou-se para Jake,
que continuava à porta. – O seu telemóvel tem luz?
Jake acendeu a lanterna do telemóvel e, com uma careta, apontou-a para a
mão de Fiona.
– Fazemos assim – disse Fernand. – Tenho lá um amigo. Escreva o nome
antes de se ir embora e eu pergunto-lhe.
– É muito amável!
– Bom, ia ficando sem dedos em minha casa. É só para não me pedir uma
indemnização!

Fiona segurou um copo de água gelada na mão ligada porque o frio lhe
sabia bem, apesar de a condensação estar a humedecer a gaze. Encontrara
Richard na sala de jantar, rodeado de pessoas, como um rei, ao lado das
travessas de salmão fumado.
Mal conseguia seguir a conversa, e apenas graças às poucas coisas que
Richard ia traduzindo. («A Marie é a mulher dele.» «Foi na retrospetiva do
Gehry o ano passado.» «Ela está a falar do trabalho da filha.») Fiona queria
codeína. Queria encontrar uma farmácia. E depois? Talvez vaguear pelo
Marais até de manhã.
Richard disse-lhe:
– Aqui o Paul estava a perguntar como é que a fama me mudou. Estou a
explicar-lhe que só fui famoso no último quarto da minha vida! Tão pouco
tempo! – E depois falou em francês com Paul, que tinha pescoço de girafa e
dentes muito pequeninos. Olhou de novo para Fiona: – Estava a dizer-lhe
que o meu primeiro patrono foi uma colecionadora chamada Esmé Sharp,
lembras-te dela? E que ainda a semana passada ela me enviou um e-mail a
pedir para dar uma vista de olhos a algumas coisas, antes da Art Basel desta
primavera. Nada muda! Continuo a produzir trabalhos para o mesmo
público.
Jake desaparecera mas estava de volta, um pouco afastado do círculo.
Tinha arregaçado as mangas; os seus braços eram todos músculos e veias.
No cotovelo esquerdo, via-se a parte inferior de uma tatuagem.
Fiona lembrava-se vagamente desse nome. Esmé Sharp. Alguém que
andava em torno de Richard quando a carreira dele disparou, alguém que
talvez tivesse conhecido quando vinha de Madison a Chicago aos fins de
semana, grávida ou com Claire recém-nascida. Ou talvez a tivesse
conhecido depois de voltarem para a cidade em 1993, quando Damian dava
aulas na Universidade de Chicago e Fiona estava a dar em doida, a morrer
de tédio no sítio que em tempos lhe parecera tão vibrante. O princípio dos
anos noventa era uma neblina desfocada; Claire nascera no verão de 1992 e
Fiona andava esmagada por aquilo que, hoje em dia, toda a gente veria que
se tratava de uma depressão pós-parto, a juntar à perturbação de stress pós-
traumático que já trazia consigo dos anos oitenta. Mentira ao médico,
garantira-lhe que estava tudo esplêndido, e ele não insistira mais. Tentara
frequentar aulas de pós-graduação na Universidade DePaul, mas não tinha
energia para entregar um único trabalho. Via os programas da manhã na
televisão, entrevistas com celebridades cujos nomes desconhecia. Sentava-
se em bancos enquanto Claire brincava em parques infantis e enfiava os
dedinhos gordos na areia fria e ficava presa no alto de escorregas. Só depois
de Claire ir para o jardim de infância e de Fiona começar a trabalhar na loja
de artigos em segunda mão – mais ou menos na altura em que Richard
partira para Paris – é que tudo ganhou de novo claridade. Foi como se, por
volta de 1995, alguém lhe tivesse dado uns óculos novos, carregado nas
cores, devolvido o som à cidade. Mesmo a tempo de Fiona perceber como
era infeliz com Damian, com os seus sermões, o seu hábito de lamber os
dentes. Começou a dormir com um tipo que conhecera no ioga, por amor de
Deus, e, ao mesmo tempo que isso desgastou lentamente o seu casamento,
ajudou-a a acordar. Mas, nessa altura, Richard já tinha partido. Esmé devia
ser desse período perdido, um barco num cais enevoado.
– Et qu’est-ce que vous faites, dans la vie? – perguntou uma mulher a
Fiona.
– Je... – gaguejou ela – ...j’ai une boutique. En Chicago.
Céus, queria tanto ir-se embora. Richard salvou-a, a falar rapidamente;
Fiona presumiu que estava a esclarecer aos outros convidados que ela não
vendia sapatos caros. Ouviu «le sida», que soava muito melhor em francês.
Bom, tudo o que tinha a ver com a sida sempre fora melhor em França, em
Londres, até no Canadá. Menos vergonha, mais informação, mais fundos,
mais investigação. Menos pessoas a gritar sobre o inferno enquanto os
doentes morriam.
Aproximou-se de Jake e murmurou:
– Ajuda-me a encontrar mais gaze.
– Queres que peça aos donos da casa?
– Não. Anda comigo.
Se podia andar de pendura numa motorizada pela cidade, como uma
adolescente, podia portar-se como uma adolescente também noutras coisas.
Ele seguiu-a até ao vestíbulo vazio.
– Por acaso não tens nenhum comprimido bom para as dores?
– Quem me dera.
– Tens um cigarro?
– Não, mas já fumava.
– Tens um preservativo?
– Um quê?
– Ouve. – Olhou para o telemóvel; nada. Procurou o casaco por baixo dos
outros no cabide. – Estás bêbedo, certo?
– Nem por isso. – Seguiu-a quando ela saiu da casa; as ruas estavam
desertas.
– Achas que estás suficientemente sóbrio para encontrar o métro? – Virou
para a esquerda, embora sem a certeza de que fosse a direção certa.
– Já disse que não estou bêbedo. Estava um bocadinho pedrado quando
chegámos, mas já passou.
– És mesmo um alcoólico inveterado. Nem sequer ficas bêbedo.
Caminhou a passo rápido e ele teve de acelerar para a acompanhar.
– Quem é que disse que sou alcoólico?
– Um tipo que conheci no avião.
Pararam num cruzamento e esperaram pelo verde para os peões, apesar de
as estradas estarem vazias.
– Tens... quê? Trinta anos? – perguntou ela.
– Trinta e cinco. Porquê?
– Não quero ir para a cama com um bebé. Trinta e cinco não é mau.
Pela expressão dele, era evidente que não percebia se ela estava a brincar,
e era também evidente que queria que não estivesse.
Fiona bebera a quantidade de vinho errada para uma autoanálise. Um
copo a mais e talvez estivesse sentada no passeio, a despejar todos os
segredos da sua vida, a questionar em voz alta os motivos da sua tendência
de usar o sexo como arma. Um copo a menos e ainda estaria ao lado de
Richard, a acenar com a cabeça em resposta a uma conversa qualquer em
francês. Assim, bebera apenas o suficiente para estar consciente de que
escapara por pouco a ambas essas possibilidades, e também o suficiente
para isso não a incomodar. Estava suficientemente bêbeda para querer um
homem em cima dela, mas não tanto que adormecesse assim que se
encontrasse na horizontal. Depois de atravessarem a estrada, pôs a mão no
traseiro de Jake e enfiou os dedos no bolso de trás das calças dele.
Jake virou-se para ela e lançou-lhe um olhar, uma combinação de
vulnerável e predador, e depois segurou-lhe na nuca, puxou a boca dela para
a sua e a língua dela para a sua e a pélvis dela para a sua. Percorreram mais
um quarteirão e ele fez o mesmo, mais um quarteirão, o mesmo.
Ele cheirava a carne fumada, algo que não incomodava Fiona. Entraram
numa farmácia para comprar preservativos e ibuprofeno e depois
regressaram a casa de Richard, onde, na cama do quarto de visitas, fizeram
sexo. Fiona lembrou-se apenas uma vez, quando estava sentada em cima
dele, que muito provavelmente era avó de alguém. Na maior parte do
tempo, não se sentiu minimamente embaraçada; Jake era tão bonito que era
fácil perder-se, com a pele dos braços esticada sobre os músculos. Passou a
mão esquerda nos pelos do peito dele, tão densos como a barba, e manteve
a mão ferida apertada sobre o espaldar da cama. De manhã ia doer-lhe, mas
não queria saber. Jake terminou com um longo grunhido involuntário e
primitivo e depois deitou-se ao lado dela e enfiou-lhe os dedos entre as
pernas, o que ela não achou que fosse resultar, até que resultou.
Calculara que Jake adormeceria a seguir, mas ele soergueu-se num
cotovelo e falou-lhe sobre a sua primeira namorada na universidade, uma
mulher que o amarrara à cama e o deixara ali uma hora, algo de que se
lembrava muitas vezes e que o fizera odiá-la, mas que era também o motivo
pelo qual nunca a esquecera completamente. Conversas íntimas, santo
Deus. Fiona queria correr com ele, mas eram só dez horas e não acreditava
que Richard e Serge chegassem em breve. Precisava que ele saísse antes
disso; não que Richard a fosse julgar, mas também não deixaria passar a
oportunidade de se meter com ela. E ela tinha cinquenta e um anos e não
estava completamente convencida de que Jake tivesse mesmo trinta e cinco,
e não suportava que a diferença de idades fosse um tópico de interesse
lascivo.
– Conta-me como foi a tua primeira vez – pediu Jake.
– O que é isto? – disse ela. – Estamos a partilhar intimidade?
Ele riu-se, nada magoado.
– Esta é uma das melhores partes. Há os preliminares e os pós-liminares.
Ela virou-se para ele. Que mal fazia?
– Perdi a virgindade com o professor de Ciências da minha prima. Já
tinha acabado o ensino secundário, mas há muito pouco tempo. Noutra
escola.
– Raios.
– Não sei, todos os meus amigos eram muito mais velhos. Eram amigos
do meu irmão, e depois ficaram meus amigos. Era difícil entusiasmar-me
por um rapazinho com acne.
– Alguma vez foste para a cama com os amigos do teu irmão?
A gargalhada que lhe escapou pareceu embaraçosamente um ronco. A
ideia da jovem Fiona na cama com Charlie Keene ou Asher Glass! Estava
perdidamente apaixonada por Yale, mas isso era diferente. Sem quaisquer
expectativas ou esperanças, apenas uma paixoneta que podia permanecer
pura e platónica. Nunca fora sexual, nunca fora egoísta. Ela costumava
procurar desculpas para lhe tocar, para falar com ele, para apoiar a cabeça
no seu ombro.
– Nem por isso? – disse Jake.
– Nem por isso.
– O que não compreendo naquele tríptico, em relação ao tipo do tríptico,
é que...
– Oh, meu Deus, cala-te. Anda cá. – Tentou beijá-lo, só para o impedir de
dizer outra palavra, mas ele afastou-se. – Não me fizeste já cortar a mão
com estas conversas? Estás a ser um bocadinho... vampiresco.
– Desculpa – disse ele. – Desculpa. Estou a ser jornalista. Mas também...
não é uma coisa de que devias falar? Para processar?
– Há trinta anos que ando a processar – disse ela. – Ando a processar
desde que tu vias desenhos animados ao domingo de manhã em pijama.
Tenho uma psicóloga para estas coisas. Não preciso de um jornalista.
– Mas não vais para a cama com a psicóloga. Quer dizer, acho eu. Porque,
a sério, quando conversamos depois do sexo é diferente. Acho que era por
isso que o Freud mandava toda a gente deitar-se.
– O Freud ia para a cama com as pacientes?
– Acho que sim.
Ela revirou os olhos.
– Está bem. Céus. O Julian morreu... santo Deus, nem sei há quanto
tempo. Sabes, conforme o grau de proximidade que tínhamos com alguém...
Havia alguns que se abriam mais, que se apoiavam nos amigos, com quem
acabávamos por passar mais tempo naqueles últimos meses do que até
então. E outros que se isolavam de todas as pessoas que não pertencessem
ao seu círculo mais íntimo. Não por maldade, simplesmente não precisavam
das pessoas. Seríamos uma interrupção, percebes? E eu não pertencia ao
círculo mais íntimo do Julian. De qualquer modo, no fim, ele isolou-se de
toda a gente.
Jake não parecia compreender.
– Está bem – disse.
– Havia uma espécie de sofrimento competitivo que podia acontecer. As
pessoas invadiam o hospital e ali ficavam dias a fio, quase como que para se
exibirem. Parece horrível, mas é verdade. Não tinham más intenções, só
que... queremos sempre acreditar que somos importantes na vida de alguém.
E às vezes, no fim, descobrimos que não somos.
Jake passou a língua pela orelha dela, pelo seu pescoço.
– Mais uma vez – disse.
Fiona não gostava da forma como ele olhava profundamente para os
olhos dela, como se quisesse sincronizar a dilatação das pupilas de ambos.
O objetivo nunca fora que ele se sentisse ligado a ela, principalmente com
tudo o que se estava a passar.
Ouviram ruídos no apartamento.
– Merda – disse ela. – Se for só o Richard, ele deita-se cedo. Podes sair
depois, sem fazer barulho, está bem?
– Está bem – disse ele, e fechou os olhos. – Não sou alcoólico. Era uma
piada.
– Que graça é que isso tem?
– Sei lá. Estava bêbedo.
Fiona devia ter adormecido, porque estava no autocarro para Chicago
com Richard, à procura da casa de Corinne. Tinha a mão em chamas.
Quando se virou, a meio da noite, Jake já lá não estava, felizmente.
1986
ill decretara que tinham todos a tarde de folga. Yale arrastou a mala até
B ao El, depois até Briar Street, e pelas escadas acima até ao segundo
andar. Estivera fora tempo suficiente para ter aquela sensação maravilhosa
de regressar a casa depois de uma longa viagem, desencadeada pelos
cheiros do seu prédio, as dimensões do seu vestíbulo, que de alguma forma
pareciam ter-se reajustado num cenário de fantasia, alteradas em alguns
centímetros vertiginosos em todas as direções. Estava com fome, atrasado
para o almoço. Pensou em fazer uma tosta de queijo e tentou lembrar-se se
teriam sopa de tomate na despensa.
Quando abriu a porta, deu de caras com a mãe de Charlie, descalça, com
um vestido cinzento. Pensava que ela só vinha na semana seguinte. Yale
largou a mala, exclamou «Teresa!» e dirigiu-se a ela para a abraçar. Ouviu a
porta do quarto fechar-se e presumiu que Charlie vinha também recebê-lo e
que fechara a porta para a mãe não ver a cama por fazer. Mas Charlie não
apareceu. Tinha entrado no quarto, não o contrário.
E, quando se afastou de Teresa, ela tinha uma expressão muito estranha
no rosto. Sorriu, mas apenas com a boca, e disse:
– Yale, temos de... vamos dar um passeio?
Sentiu que a casa podia começar a andar à roda, ou que já estava a fazê-
lo.
– Que aconteceu?
Charlie estava com um esgotamento. Julian morrera. O jornal fechara.
Reagan tinha...
Teresa segurou-lhe nos braços. Ele ainda tinha o casaco vestido, o seu
casaco elegante.
– Yale, devíamos ir dar um passeio.
– Por que raio havia de querer voltar a sair? Teresa, o que se passa?
Os olhos dela começaram a encher-se de lágrimas e Yale percebeu que
Teresa já tinha estado a chorar, que tinha o rosto inchado, o cabelo
despenteado.
Enfiou as mãos nos bolsos do casaco. O colar de Fiona estava lá,
transferido do bolso das calças, e as arestas feriram-lhe a palma da mão. Era
um broche com pássaros dos dois lados, a segurarem uma moldura. Asas de
metal afiadas. Passava-se qualquer coisa de muito grave.
Teresa respirou fundo e disse baixinho:
– Yale, vou acompanhar-te à clínica e vais fazer a análise.
Yale abriu a boca para dizer: não acredito que ele está outra vez com esta
conversa, não acredito que está a dar-lhe ouvidos, não acredito que ele
pense que eu lhe faria uma coisa dessas, ainda na primavera fizemos os dois
a análise.
Mas sentou-se no chão e colocou a cabeça entre os joelhos.
Ela estava a tentar dizer-lhe outra coisa, qualquer coisa sobre Charlie, e
Yale não conseguia juntar as peças. Mas sim, meu Deus, compreendia.
Sentiu agulhas trespassarem-lhe os braços e as pernas, prendendo-o ao
momento. Como um inseto morto num quadrado de esponja.
Ouviu Charlie no quarto, a andar de um lado para o outro. A mexer nas
coisas. Yale apertou as orelhas com os joelhos. Teresa agachou-se em frente
dele e pousou a mão no seu sapato. O sapato de Nico.
– Yale, estás a ouvir? – perguntou.
Yale ficou chocado ao perceber que não estava a chorar, embora Teresa
estivesse. Porque é que não estava a chorar? Murmurou:
– Teresa, o que é que ele fez?
– Não sei. – Ela abanou a cabeça. – Não me quer dizer. Ouve, Yale,
mesmo que ele tenha estes... estes anticorpos, isso só significa que foi
exposto. Não significa que tenha o vírus.
– Não é verdade. Ele sabe muito bem que isso não é verdade. Foi ele que
lhe disse isso? – O instinto de falar num murmúrio talvez viesse do hábito
de não discutir a doença de ninguém quando a pessoa pudesse ouvir. Ou
talvez quisesse negar a Charlie o conhecimento da sua reação. Podia ter
gritado, não podia? Podia ter arrombado a porta do quarto e abraçado
Charlie, ou esmurrado Charlie, em vez de ficar ali sentado a pensar no seu
próprio corpo, na sua própria saúde, no seu próprio coração.
Talvez vomitasse. Queria vomitar.
Se Charlie estivesse ali fora, a dizer-lhe pessoalmente todas estas coisas,
conseguiria pensar em Charlie, no que isto significava para ele. Mas tudo o
que tinha era uma porta fechada e esta mensagem, esta mensageira.
Que raio acontecera? Olhou para o teto, que estava parado,
improvavelmente, apenas um teto branco normal.
– Quando é que ele lhe ligou? – quis saber. – Quando é que veio?
– Ele recebeu os resultados ontem. Apanhei o avião hoje de manhã.
Hoje era dia 16. Então Charlie devia ter feito a análise quando, no início
do mês? Mesmo no fim de dezembro?
E Yale levantou-se, correu para o quarto.
– Charlie, foste para a cama com o Julian? Foda-se, com o Julian? Que
raio é que fizeste, Charlie? Merda, o que é que te passou pela cabeça?
Deu um pontapé na porta, e outro.
Magoou o pé, mas não o suficiente.
Estes eram os dominós que tinham caído: Julian, e depois Charlie. E
talvez Yale.
Charlie a empalidecer ao almoço. Charlie na cabina telefónica. Charlie a
andar pela cidade na noite de Ano Novo enquanto Yale ia ao hospital
sozinho.
Quando abusava da bomba para a asma, Yale sentia as mãos a vibrar e
com um formigueiro. Era assim que estavam agora, e quentes.
Teresa puxou-o pela cintura e Yale ouviu soluços do outro lado da porta
fechada.
– Temos de te tirar daqui, Yale. Não precisas de ir fazer a análise já.
Podemos só ir a... a um pub. A casa de algum amigo.
Julian a não aparecer no Dia de Ação de Graças. Charlie a não querer ir
ver Hamlet. Charlie a interrogar Yale (O que é que o Julian disse? O que é
que o Julian fez?) de cada vez que mencionava tê-lo visto.
Girou sobre si próprio e olhou para ela.
– Não me adiantaria absolutamente nada fazer a análise agora.
Compreende? – Estava aos gritos, para Charlie ouvir. – É preciso esperar
três meses para ter a certeza. São precisos três meses desde a última vez em
que estivemos expostos.
– Mas talvez isso te faça sentir melhor – balbuciou ela.
Quando fora a última vez que tinham feito sexo? Sexo oral no sábado,
mas quando fora a última vez que Charlie despira sequer as calças, deixara
Yale desafivelar o cinto? Céus, no Ano Novo. Tinha de lhe dar crédito por
isso. Ele afastara-o, uma e outra vez. Mas antes disso, sim. No Natal, etc. E
sabe Deus quando é que ele estivera com Julian, quantas vezes, ao longo de
quantas semanas ou anos.
Gritou, com a boca tão perto da porta que sentiu o seu próprio ar rechaçar
e atingi-lo no rosto.
– Quanto tempo andaste a fazer isto, Charlie? Era por isso que estavas tão
paranoico? Porque te vias ao raio do espelho?
– Querido, para – pediu Teresa. Não devia estar a dizer nada destas coisas
em frente dela, mas não queria saber.
– Pelo menos podias ter deixado que fosse o Teddy a foder-te! – berrou
Yale. – Ele não está doente!
Algo bateu contra a porta.
– Yale, chega! – disse Teresa. E ele tinha de lhe dar ouvidos. O filho dela
estava a morrer. Charlie estava a morrer. Deixou-se cair de novo no chão e
baixou a cabeça entre os joelhos. Pensou em levantar-se e dar pontapés à
mobília, mas não, ia ficar ali e respirar.
Isto não tinha a ver com Yale, pelo menos por enquanto.
Na altura em que fizeram a análise juntos, na primavera, Yale imaginara
que, se estivessem infetados, se abraçariam um ao outro a chorar e depois
iriam comer uma bela refeição e fariam piadas sobre ter de engordar, e
pediriam a garrafa de vinho mais cara e seria uma noite terrível, mas pelo
menos enfrentariam o futuro juntos. O Dr. Vincent falara com eles antes da
análise.
– Vamos discutir o que um diagnóstico positivo pode significar para
vocês – dissera, e explicara que estas coisas eram melhores se a pessoa
refletisse antecipadamente e com tranquilidade sobre a sua reação, as suas
opções. – Onde procurariam apoio?
Eles tinham apontado um para o outro. Charlie dissera:
– E temos um círculo de amigos chegados. E a minha mãe.
Yale sentiu agora todas essas pessoas a dispersarem-se como poeira. Se
não tivesse Charlie, não teria Teresa. E não tinha os amigos, que já eram
todos amigos de Charlie primeiro. E estava bastante certo de que não tinha
Charlie. Pelos vistos, Charlie preferira Julian. E sabe-se lá com quem mais é
que Charlie andara metido.
Pegou na mala por desfazer e enfiou nela uma garrafa de uísque que tirou
do armário. Deu um beijo a Teresa – falhou a face e beijou-a de raspão na
orelha – e disse:
– Desculpe. Não fui eu que lhe fiz isto.
– Eu sei – disse ela.

E depois viu-se na rua, sem saber para que lado havia de se virar.
Vagueou até ao Little Jim’s e sentou-se a olhar para as garrafas atrás do
balcão e bebeu vodca com tónica porque era o que estava em promoção.
Talvez tivesse emborcado copo atrás de copo, se lhe apetecesse mexer os
braços, mas não lhe apetecia. Apesar do coração acelerado, apesar dos
sinais primitivos inúteis que lhe diziam para trepar a uma árvore e se pôr
em segurança. Estava a passar pornografia no grande ecrã de televisão: um
tipo assistia, meio escondido, de trás da divisória do chuveiro, enquanto
outros dois faziam sexo. A câmara focava constantemente o rosto do
voyeur. Nunca se juntaria aos outros dois. Não era esse tipo de filme. Yale
não sentiu nada. Ou melhor, nada para além do que já sentia: náusea,
paralisia. Desfizera uma pequena palhinha de plástico em pedacinhos.
Ninguém o incomodou. Com certeza percebiam que se passava alguma
coisa.
Não era a traição que mais o incomodava. Articulou este pensamento, em
silêncio, de olhos postos no copo, como se o dirigisse aos cubos de gelo
meio derretidos. E não era apenas a doença, a exposição, embora isso fosse
o principal. O que lhe trespassava o coração neste momento era o facto de
se ter deixado acobardar pelas exigências de Charlie. Andava com pezinhos
de lã por causa dele e entretanto Charlie, pelas costas de Yale, fazia isto.
Mais do que qualquer outra coisa, sentia-se estúpido.
Quando saiu do bar era tarde, já passava da hora de jantar, mas a clínica
ainda devia estar aberta. No entanto, pensou, porque havia de fazer isso a si
próprio agora? Devia esperar três meses. Não, três meses menos... hoje era
dia 16. Três meses a contar da passagem de ano. Portanto, finais de março?
Não conseguia ter a certeza das contas. Os anticorpos podiam aparecer mais
cedo, mas isso não era propriamente tranquilizador. O resultado só podia ser
um negativo incerto e mais semanas de purgatório, ou uma sentença de
morte. Pensou em ir para a galeria e dormir no chão do escritório. Mas o
segurança acharia estranho. Pensou em Terrence, que já tivera alta do
hospital. Alguém devia ficar com Terrence, de qualquer maneira. Ele podia
ser a pessoa que fazia companhia a Terrence, a pessoa que cuidava de
Terrence.
Caminhou até Melrose e tocou à campainha. Depois sentiu-se mal, ao
pensar que Terrence teria de se levantar para abrir. Nem sequer eram
propriamente grandes amigos. Yale sempre fora mais chegado a Nico. Não
tinha o direito de esgotar as reservas de energia de Terrence. Estava prestes
a virar costas quando ouviu a voz de Terrence no intercomunicador.
– Podes subir, Yale – disse ele –, mas vou ser franco: cheira mal que
tresanda.
Tinha razão. O rosto de Terrence estava encovado, a sua pele reluzente e
esticada, mas deixara crescer uma barba rala no hospital e ainda não a
fizera. Como é que o seu corpo encontrava energia para fazer crescer pelos?
Porque é que estava a produzir barba em vez de células T?
Roscoe, o velho gato cinzento de Nico, roçou-se na perna de Yale.
– Ele precisa de comida? – perguntou Yale.
– Não – disse Terrence –, mas se quiseres limpar-lhe a caixa da areia,
agradecia. – Não estava a brincar. – Não posso fazê-lo sem luvas de
borracha, e acabaram-se. Nem sequer o devia ter aqui, na verdade. – A
caixa de areia, na cozinha, estava nojenta. Yale ajoelhou-se no chão da
cozinha e deitou mãos ao trabalho, com Roscoe a dar-lhe marradinhas na
coxa. Fazer isto parecia-lhe certo. Podia passar o resto da noite a tirar
excrementos e ilhas de urina seca e sentir-se exatamente no sítio certo.
– Sabes que o médico não queria que estivesses aqui – murmurou a
Roscoe. – E ainda por cima ele é alérgico a gatos.
Depois de estar sentado no sofá de Terrence, com um copo de uísque na
mão, percebeu que não podia dizer-lhe nada que fosse verdade. Não podia
dizer «o Charlie está doente», e não podia dizer «o Charlie traiu-me». Era
humilhante e a primeira parte não era uma notícia que lhe coubesse a ele
dar. Não podia começar a espalhar que Charlie, que defendera o sexo
seguro no jornal antes de qualquer outra pessoa falar nisso, era um
hipócrita. Não que a maioria das pessoas pensasse dessa forma; o mais
provável era que ficassem do lado de Charlie e interpretassem tudo o que
Yale dissesse como uma acusação, como vingança.
Terrence estava na sua grande poltrona verde, com a bengala ao lado.
– Yale, está tudo bem? – perguntou.
Yale não se sentia doente, não tinha reparado em nada estranho. Sabia que
esta noite, antes de dormir, se examinaria ao espelho à procura de manchas,
que palparia os gânglios, espreitaria para a garganta para ver se tinha aftas.
Era um ritual compulsivo diário antes de as análises terem aparecido, do
qual estava livre há menos de um ano. E agora voltaria. Mas Terrence não
lhe estava a perguntar se estava doente, apenas se estava prestes a desatar a
chorar, o que na verdade parecia muito possível.
– O Charlie pôs-me na rua – disse. – Acho que está tudo acabado entre
nós.
Terrence suspirou, mas não pareceu surpreendido. Prendeu a manta
coçada à volta das pernas.
– Espera – disse Yale. – Terrence, sabes alguma coisa?
– Sobre o quê? – Terrence não tinha jeito para mentir, ou talvez não
tivesse simplesmente energia.
Não o devia ter dito, mas disse.
– Sobre... o Charlie e o Julian.
Terrence fez uma careta e acenou afirmativamente, devagar.
– Não me digas que toda a gente sabe!
– Não, não. É só que depois... bom, depois da vigília do Nico?
– Oh, foda-se.
– A seguir, quando fomos a casa do Nico, ele não te encontrava e estava
irritado com alguma coisa e embebedou-se. Embebedou-se a sério. O Julian
estava na casa de banho com ele, a ajudá-lo. Pensei que estivesse a vomitar.
Mas demoraram-se muito tempo e fui ver o que se passava e eles estavam...
bom, tu sabes. E, pouco depois, saíram juntos. Mais ninguém notou. No dia
a seguir liguei ao Julian e ele sentia-se péssimo. A sério, foi só aquela vez.
O Julian não queria magoar-te. Nem o Charlie. Eu sei disso. Tu também
sabes.
– Não pode ter sido só uma vez – disse Yale. – Nem pensar. As coisas não
funcionam assim. – Isso era o enredo de um vídeo educativo, não a vida
real. Basta uma vez. Nem sequer deem as mãos ou podem apanhar sífilis.
Mas poderia ser verdade? Seria o universo assim tão horrivelmente
vingativo? Tão cirúrgico?
De súbito, Yale regressou à noite da angariação de fundos da Howard
Brown. Deus do céu, era isso que Julian estava a querer transmitir-lhe, ali
parado junto aos lavatórios a olhar para os olhos dele. Julian não estava
apaixonado por ele. Estava arrependido. Talvez pensasse que Yale sabia, ou
calculasse que ele descobriria em breve, ou talvez tentasse apenas aliviar a
própria consciência. E Yale, como um idiota, sentira-se lisonjeado.
E, imediatamente na peugada desses pensamentos, Yale começou a
culpar-se a si próprio por ter desaparecido em casa de Richard, depois do
velório. Se não o tivesse feito, se não tivesse assustado Charlie, talvez nada
disto tivesse acontecido. Se fora realmente uma coisa isolada, então ele, no
instante em que subira aquelas escadas, matara Charlie. E talvez a si próprio
também.
Yale estremeceu, soltou um soluço estrangulado e disse:
– Ele tem o vírus, Terrence. Mas não podes dizer a ninguém.
– Merda. Oh, Yale. – Terrence parecia querer levantar-se da poltrona, se
tivesse energia para tanto, e vir sentar-se ao lado de Yale para que este não
se sentisse tão sozinho no sofá grande. – Eu sabia do Julian, mas não sabia
do Charlie. Eu... não sei porquê, mas nem sequer me ocorreu. Não sei.
Talvez por causa das conversas todas do Charlie sobre camisinhas, sobre
segurança. Yale, se me tivesse lembrado disso, tens de acreditar que eu...
– Está bem – interrompeu Yale. – Está bem.
– Céus.
– Ouve, ninguém sabe e não podes dizer nada. Foi a porcaria da análise.
Se não fosse a análise, nem sequer saberíamos e estaríamos a jantar fora
neste momento.
– Foda-se. Está bem, mas precisamos da análise, não é? Podes nem
sequer ficar doente. Por causa da análise.
– Só saberei daqui a três meses.
– Ouve, tens a Gripe do Sexo? Tens andado doente? Agoniado, com
febre, como se tivesses sido atropelado por um camião mas o camião
estivesse cheio de lobos e os lobos fossem feitos de salmonela?
– Nem toda a gente tem isso. E quer dizer... acho que estive doente no
verão. Só que não me lembro. Se calhar estive doente na primavera.
Charlie andara adoentado em dezembro. Portanto, talvez fosse mesmo
verdade; talvez tivesse sido um lapso único. Ou talvez a relação com Julian
tivesse começado nessa noite mas ainda continuasse. Yale sentiu a cabeça
andar à roda.
– É como o pior puzzle lógico do mundo – disse.
– Lamento muito, Yale.
– Para! Não te autorizo a teres pena de mim.
– Mas acho que tenho.
Yale serviu-se de mais uísque. Ainda não jantara, mas não ia pedir
comida a Terrence. Roscoe saltou para o sofá, enroscou-se ao lado dele e
adormeceu imediatamente.
– Podes ficar aqui esta noite, se quiseres – ofereceu Terrence –, mas,
acredita, não queres ficar mais tempo do que isso. Vou acordar-te com os
meus enjoos matinais. – Esfregou a barriga côncava e disse: – Este bebé
deve ser uma menina. É tão dramática.
– Até por volta da uma da tarde, este estava a ser o melhor dia da minha
vida – disse Yale.
E embora Terrence talvez quisesse dar a entender que estava na hora de ir
para a cama, não conseguiu conter-se. Contou-lhe tudo sobre as obras de
arte de Nora, pelo menos os detalhes principais. Modigliani, etc. Agora,
parecia-lhe uma vitória tremendamente vazia. Perdera o amante e
possivelmente a saúde, a vida, mas trouxera uns desenhos velhos do
Wisconsin para o Illinois. Pedaços de papel.
– O tempo todo, enquanto lá estávamos, só conseguia pensar: Isto é bom
demais para ser verdade. Está a escapar-me alguma coisa. Estou a ser
enganado. Talvez fosse o meu subconsciente, sabes? Eu sabia, cá dentro,
que alguma coisa não estava bem, que havia algo errado. Sinais de alarme.
Só que percebi tudo mal.
Terrence ficou calado um momento e depois disse:
– Isto pode parecer uma pergunta estranha, mas esses não são os sapatos
do Nico?
Yale esquecera-se.
– Oh, meu Deus! Sim. Desculpa. Importas-te?
– Não, claro que não. Quer dizer, na verdade, podias deixá-los ao pé da
porta? Só não quero que tragas germes para dentro.
Yale descalçou-se, pôs os sapatos no tapete do lado de fora da porta e
depois lavou as mãos, apesar de já o ter feito quando mudara a areia de
Roscoe.
– Amanhã, antes de me ir embora, vou à rua buscar o que precisares, está
bem?
– Sim.
Nessa noite, Yale deitou-se no sofá, a ouvir Terrence às voltas na cama, a
gemer com os suores noturnos. Fechou os olhos e viu-se a si próprio, na
noite da vigília, como se pairasse junto à claraboia da casa de Richard. Viu-
se a falar com Fiona, a falar com Julian, a beberricar a sua cuba-libre.
Uma e outra vez viu-se a assistir aos primeiros slides, depois a dar meia-
volta e a apoiar o pé no primeiro degrau. Viu-se a si próprio subir as
escadas.
2015
iona acordou tarde, não de ressaca, mas com uma dor de garganta que já
F estava a espalhar-se ao peito e à cabeça. A mão latejava de dor a cada
batimento do seu coração.
Serge levou-a ao médico de táxi, sem ser preciso marcação prévia (nem
seguro de saúde), e o médico desinfetou-lhe a mão e envolveu-a habilmente
em ligaduras, deu-lhe comprimidos para as dores e passou uma receita de
antibiótico. A conta foi vinte e três euros, que Serge insistiu em pagar.
– Hoje descansas – disse ele. – Promete, está bem? Se te apetecer sair,
podes ir ao estúdio do Richard e ele faz-te a visita guiada. Pode mostrar-te
os vídeos no computador, para os veres antes da abertura!
Mas Fiona não conseguia fazer isso, ainda não. Ver aquelas filmagens
seria algo fantástico para fazer amanhã, mas hoje não. Nunca hoje. No
entanto, podia tirar algumas horas da sua busca, por mais deprimente que a
perspetiva fosse. Podia esperar que Arnaud lhe ligasse, ver se os
comprimidos lhe davam sono. Se Claire nem sequer estivesse em Paris,
faria mais sentido procurar na Internet «Kurt Pearce + detenção + Paris»
(uma busca infrutífera) e «cidadão americano como viver em Paris» (semi-
informativa) e «Coletivo Hossana Paris» (também infrutífera) do que
vaguear pelas ruas.
Quando Serge saiu para o estúdio, disse-lhe que estava demasiado
cansada. Fazia frio na rua, mas abriu as portas da varanda, arrastou uma
cadeira para lá e ficou a ouvir os sons das filmagens. Se se posicionasse da
maneira certa, conseguia ver a multidão, as luzes, o guindaste. Tinha de
descobrir o nome do filme antes de se ir embora, para poder ver as cenas
quando ele saísse.
Mas não fazia ideia de quanto tempo ficaria, nem de qual seria o seu
passo seguinte.
Tinha no colo o livro da História de Paris que comprara. Estava
demasiado distraída para ler, mas as fotografias eram encantadoras,
evocativas: mulheres com estolas de peles, homens a saltar de cadeira em
cadeira para atravessar uma rua alagada pelas cheias, a entrada de um clube
noturno, decorada para parecer uma boca monstruosa.
Lembrou-se de Nora lhe ter dito uma vez:
– Para nós, Paris nem sequer era Paris. Era uma projeção. Era aquilo que
cada um de nós precisava que fosse.
Esta conversa tivera lugar no casamento em que ela dissera a Nora para
contactar Yale, onde escrevera o nome Yale Tishman, Northwestern, Brigg
num guardanapo de papel. O casamento da sua prima Melanie, a norte de
Milwaukee, e Melanie convidara especificamente Nico e Fiona mas não os
pais deles. Não incluíra Terrence – seria levar as coisas longe demais,
talvez, para o Wisconsin em 1985 – mas era leal à sua geração. Fiona e o
irmão tinham entrado juntos, como namorados.
Nico já tinha perdido peso nessa altura, mas Fiona não dera importância
ao assunto. Ele dançara com Fiona, dançara com a noiva, e com a horrível
prima Debra, e depois sentara-se ao pé de Nora, a fazer-lhe companhia. No
carro, no regresso a casa, levantara o lado da camisa para lhe mostrar uma
faixa de altos vermelhos com ar inflamado, que fizeram os olhos de Fiona
encherem-se de lágrimas.
– Herpes – disse. E, quando ela começou a entrar em pânico, explicou: –
Dá uma comichão horrível, mas é a mesma coisa que varicela. Qualquer
pessoa que já teve varicela pode apanhar isto. O vírus fica vivo, debaixo da
nossa pele, para sempre.
Fiona soube mais tarde que ele não fora ao seu médico, apenas às
Urgências, onde lhe tinham dado loção de calamina e um folheto.
Um mês depois, ele e Terrence andavam às compras e Terrence
perguntara-lhe quanto dinheiro tinha e Nico passara um longo minuto a
olhar para a nota de dez dólares numa mão e a nota de cinco dólares na
outra, incapaz de fazer a soma. E, seis semanas depois, estava morto.
Olhou para o pombo que pousara no corrimão da varanda. Não estava
preparada para ver os vídeos de Richard, mas talvez pudesse começar a
preparar-se com os seus álbuns de fotografias. Fechou as portas da varanda,
serviu-se de um copo de leite, respirou fundo algumas vezes.
Havia talvez vinte álbuns de fotografias na prateleira, facto que Fiona
registara no primeiro dia. Lombadas de cabedal preto, castanho, de lona
colorida. Caixas cheias de slides, também, mas era melhor não mexer
nisso.
Contudo, quando tirou da prateleira um grosso álbum vermelho, um papel
deslizou e caiu para o chão. Fiona tentou apertar o álbum contra o peito
antes que caísse mais alguma coisa, mas acabou por deixar cair tudo, e
agora havia papéis por todo o lado. Folhas de papel amarelecido dobradas
ao meio, pequenos cartões, uma folha lilás com a fotografia pouco nítida de
um homem. Eram boletins de funeral e cartões de orações. Ajoelhou-se e
começou a juntá-los. Este não era um álbum de fotografias, percebeu
quando o abriu e viu um recorte antigo do Out Loud Chicago, com o
obituário de alguém que dançava no Alvin Ailey Theater.
Santo Deus.
Abriu o álbum no princípio e tentou enfiar os papéis nos espaços vazios.
Um homem chamado Oscar, ninguém que ela recordasse, morrera em 1984.
Um recorte sobre Katsu Tatami, de 1986. Aqui estava o boletim de Terrence
Robinson, o Terrence de Nico. Que estranho – ela própria devia ter redigido
este boletim, mas não se lembrava. Jonathan Bird. Dwight Summer. Eram
tantos, impossivelmente tantos.
Na sua vida atual, acontecia pelo menos uma vez por semana alguém
entrar na loja e, ao ser informado sobre a missão, dizer algo como «Oh, eu
lembro-me dessa época!». Fiona aprendera a controlar-se, a fazer força com
os dedos dos pés no chão, para o seu rosto não se alterar. «O primo de uma
amiga minha tinha sida!», continuavam as pessoas. «Já viu o filme
Filadélfia?» E abanavam a cabeça, consternadas.
E como podia ela responder? As intenções das pessoas eram boas. Como
podia explicar-lhes que aquela cidade era um cemitério? Que todos os dias
passavam por ruas onde tivera lugar um holocausto, um homicídio em
massa por negligência e antipatia, como podia perguntar-lhes se quando
passavam por uma bolsa de ar frio não percebiam que era um fantasma, um
rapaz que o mundo cuspira?
Aqui, na sua mão, uma pilha de fantasmas.
Leu o boletim de Terrence. Tinham lido um salmo, aparentemente,
embora o livro e o versículo não lhe dissessem nada agora. Asher Glass
cantara. Disso, lembrava-se.
Asher falava nas reuniões da organização ACT UP com a voz de um
político num filme a preto e branco. Irrompia pela câmara municipal com o
seu cartaz com o desenho de uma mão ensanguentada. Ele e um amigo
tinham-se acorrentado à cerca da casa do governador Thompson, um verão,
sendo presos pela milionésima vez. Asher ainda era vivo, Fiona sabia que
ele vivia em Nova Iorque. Vira-o há algum tempo num documentário,
qualquer coisa sobre «três décadas da sida». Parecia muito saudável, tão
musculado que ninguém diria que era portador do mesmo vírus que ela vira
reduzir homens a esqueletos. O seu cabelo estava grisalho, tinha queixo
duplo, e com certeza estaria a debater-se com osteoporose ou uma das
outras consequências do VIH depois dos cinquenta anos, mas nesse filme
parecia pronto a saltar do ecrã para a sala de estar de Fiona e ajudá-la a
carregar caixas.
Não era verdade, o que ela dissera. Não estavam todos mortos. Nem
todos.
No dia 13 de outubro, Fiona assinalara a data sozinha, em casa, por Nico.
Velas e música e demasiado vinho. Trinta anos. Como era possível que
tivesse sido há trinta anos? Mas esse fora apenas o princípio da fase pior,
quando toda a cidade que ela conhecia estava a transformar-se em lesões e
tosses cavernosas e fósseis escanzelados. E, embora não fizesse qualquer
sentido, ela nunca conseguira libertar-se completamente da sensação
ridícula e narcisista de que toda a epidemia era, de alguma forma, culpa sua.
Se não tivesse tomado conta de Nico (queixara-se recentemente disto à
terapeuta), se não o tivesse ajudado naqueles primeiros anos, se não se
tivesse enfiado no comboio para lhe ir levar o medicamento das alergias,
para lhe mostrar que ela estava bem – não teria ele voltado para casa, mais
cedo ou mais tarde? Não teria prometido namorar com raparigas? Seria
infeliz, mas não por muito tempo. Mais alguns anos desagradáveis em casa,
como todos os outros homens gays do planeta. E talvez nunca tivesse sido
exposto. Não teria morrido.
Sentia tanta culpa em relação a tantos deles – aqueles que gostaria de ter
convencido a fazerem a análise mais cedo, aqueles que, voltando atrás no
tempo, gostaria de impedir de sair numa noite específica («Vamos
concordar que ambas sabemos que isso não é lógico», dissera a terapeuta),
aqueles por quem talvez pudesse ter feito mais, depois de adoecerem. A
noite em que, sem qualquer motivo, dissera a Charlie Keene que Yale
estava com Teddy. Por que diabo fizera isso? Fora um erro inocente, estava
embriagada, mas toda a gente sabia o que Freud dizia sobre os erros.
Às vezes, sentia-se como um qualquer deus hindu horrível, a transformar
em cinzas tudo em que tocava.
Os comprimidos para as dores estavam a deixá-la tonta.
Podia ficar aqui, com este cemitério de papel. E quem sabia que outros
perigos existiriam na prateleira de Richard?
Ou.
Neste momento, talvez a dez minutos de distância dali, havia filmagens
de Nico que ela podia ver. Nico vivo. Estava aterrorizada; seria muito mais
estranho do que uma fotografia estática. Haveria som? Quando é que ouvira
a voz de Nico pela última vez? Quando ele estava vivo, provavelmente. Se
alguém o gravara, alguma vez – bom, só podia ter sido Richard. E seriam
aquelas gravações.
Tinha de o fazer.

Serge dissera-lhe em que esquina ficava o estúdio, mas ela não prestara
atenção ao número da rua – e claro que Richard não tinha um letreiro na
porta. Fiona espreitou para portas, para as montras, como se conseguisse
adivinhar, se semicerrasse os olhos. Nada lhe parecia certo.
Estaria contente? Deu por si pelo menos parcialmente aliviada.
E depois viu a motorizada de Serge estacionada no passeio largo,
encostada à parede de um prédio.
Endireitou as costas e disse:
– Vamos lá.
Sentiu o telemóvel vibrar antes de o ouvir tocar.
– Estou? – Estava aos gritos, mas não queria saber. Tapou o outro ouvido
com o dedo.
– Calma! – disse Arnaud.
– Estou calma. O que é?
– Pode vir ao Marais? Acho que temos uma hora ou duas.
Fiona girou sobre si própria, à procura de um táxi. No mínimo, o
momento em que isto acontecera era um sinal, não era? Não queria o
destino que ela entrasse no estúdio para remexer no passado. Viera a Paris
por Claire, não por Nico. Deixou o estúdio de Richard para trás como se ele
estivesse a arder.
1986
ale quase se esqueceu de ir trabalhar no dia seguinte. Por algum motivo,
Y estava convencido de que era sábado e que, depois de ir ao
supermercado e à clínica buscar as coisas de que Terrence precisava, depois
de arrumar a mala e sair pé ante pé do apartamento, tudo o que tinha na sua
agenda era encontrar um sítio para dormir nessa noite, talvez comprar uma
camisa lavada. Mas às dez horas, enquanto descia Halsted Street com uma
dor de cabeça, viu um tipo de gravata e percebeu que era sexta-feira.
Pelo menos isso significava que tinha onde estar. Já tinha consigo a mala
de viagem, portanto entrou no comboio, com as roupas amarrotadas da
noite passada no sofá de Terrence. Quando as portas se fecharam, alguém
correu para elas, como se conseguisse entrar pela fresta de dois centímetros.
Um homem magro de cabelo escuro. Ficou a olhar, desolado, enquanto o
comboio arrancava. Por um momento, Yale pensou que era Julian – mas
não parecia o queixo dele, e Julian nunca estaria a pé às dez da manhã.
Tentou perceber o que faria, se e quando se cruzasse com Julian. Um soco
no rosto ou um abraço? Por algum motivo, não estava zangado com Julian.
Apenas com Charlie. A meio caminho de Evanston, decidiu que, se visse
Julian, provavelmente só choraria no ombro dele.
Roman já estava no gabinete de Yale, a organizar as fotocópias que tirara
na biblioteca em Door County. O conteúdo da caixa de sapatos.
Yale tinha duas mensagens de Bill Lindsey em cima da secretária: uma a
informar que os Sharp vinham ver as peças depois de almoço, a outra a
dizer: «O Campo disse que sim – obrigado!» Yale demorou alguns
segundos a lembrar-se de que dera o número de Richard Campo a Bill, no
carro, na manhã da véspera, sugerindo que ele podia fazer as fotografias de
20 por 25 centímetros de que precisavam para enviar para Nova Iorque e
que talvez não levasse muito dinheiro.
Foi à casa de banho fazer a barba e lavar os dentes. Não tratara disso em
casa de Terrence porque, quando se levantou, Terrence estava enrolado no
chão da casa de banho, e outra vez, ou ainda, quando voltara das compras.
Terrence prometera que ficava bem, que Asher ia passar por lá mais tarde.
Agora, na casa de banho, Yale salpicou água na camisa, para tentar alisar os
vincos à mão.
Talvez o resultado da análise estivesse errado. Não era possível que
tivessem trocado os papéis? Nenhuma das análises tinha nome, apenas – o
quê, números? Códigos? Portanto, o código podia estar enganado. O que
ainda deixava o facto de Charlie ser um verme e ele um idiota, mas tudo
isso não teria importância nenhuma se os resultados pudessem ser desfeitos,
de alguma forma. E a análise era tão recente. Teddy estava sempre a dizer
que não acreditava que todos os portadores do vírus acabassem por ficar
realmente doentes. Fazia tudo parte de alguma conspiração mais vasta cujos
detalhes Yale não conseguia recordar. Qualquer coisa sobre não haver
estudos longitudinais. Céus, estaria na fase da negociação? Mas ainda nem
sequer tinha ultrapassado a raiva! Olhou para o seu rosto no espelho,
franzido como o de uma criança. O retrato de um imbecil.
Depois de se sentar à secretária, olhou para papéis que não conseguia ler.
Não comia nada desde o pequeno-almoço da véspera, em Sturgeon Bay,
sem contar com o jantar líquido da noite anterior. Devia ter comprado uma
banana quando fora ao supermercado buscar as coisas de Terrence. Se
estivesse infetado, o melhor que podia fazer era empanturrar-se, engordar
enquanto podia. Comer seis hambúrgueres esta noite. Talvez, à hora de
jantar, o seu apetite tivesse regressado magicamente.
Mas onde é que iria jantar? Nalgum restaurante miserável. E depois? Não
podia ir incomodar Terrence outra vez. E não podia ir a lado nenhum onde
lhe fizessem perguntas. Lembrou-se da casa de Richard, daquele grande
quarto de hóspedes, mas pensar nessa casa deixava-lhe o estômago às
voltas. Em tempos, teria ficado em casa de Nico. Talvez o apartamento dele
ainda estivesse vazio, sem inquilino, mas onde parava a chave? Tinha
alguns velhos amigos do Instituto de Arte, alguns que nem sequer sabiam
da existência de Charlie, mas ninguém que se sentisse à vontade para
incomodar.
Achava-se doente. Febril, dorido, com dores nas articulações. De manhã,
ao acordar, prevenira-se de que provavelmente tentaria convencer-se de que
estava doente. Mas sabê-lo não ajudava muito.
Ao meio-dia, marcou lentamente o seu próprio número de telefone.
Imaginava que Charlie tivesse ido trabalhar – Charlie trabalharia mesmo
durante um tornado –, mas talvez Teresa atendesse e pudesse dar-lhe mais
respostas.
Na verdade, não, não era isso. Queria chorar com ela, queria que ela lhe
dissesse que ia ficar tudo bem. Se Teresa atendesse, mandaria Roman sair
do gabinete. Mas ela não atendeu. E não tinham gravador de chamadas,
porque Charlie estava convencido de que, assim que tivessem um, andaria
constantemente entupido de mensagens de pânico dos funcionários do
jornal.
Ligou para o Out Loud Chicago e, numa voz que esperava que não
parecesse a sua mas sem ser tão estranha que atraísse a atenção de Roman
do outro lado da sala, perguntou se o editor estava.
– Não – disse uma voz jovem que Yale não conseguiu identificar. – O
senhor Keene hoje foi tratar de assuntos pessoais.
Tentou também na agência de viagens, onde lhe disseram que Charlie só
lá estaria na terça-feira.
Foi um alívio tremendo quando o relógio bateu a uma hora. Agora tinha
algo para fazer, um guião a declamar. Quando entrou no gabinete de Bill, os
Sharp ainda não tinham chegado mas Richard já lá estava. Yale nem o
ouvira entrar. Teria adormecido? Sentia-se como se tivesse estado a dormir.
Richard vestia todo de preto, exceto o pulôver amarelo aos ombros, e
movia-se pela sala como um gato, a agachar-se para ajustar as luzes que
trouxera consigo. Em cima da mesa de Bill estava a aguarela do vestido
verde de Foujita.
– O homem de quem se fala! – exclamou Richard, e soprou um beijo a
Yale antes de regressar às luzes.
Yale conseguiu dizer:
– Obrigado por fazeres isto.
Tentou lembrar-se se já tinha visto Richard desde a noite da vigília de
Nico. Sim, várias vezes. Na angariação de fundos, por exemplo. Mesmo
assim, Richard parecia diretamente saído dos seus pesadelos. O pobre
homem não fizera nada de mal. Organizara uma festa fantástica. Preparara
um espetáculo de slides maravilhoso.
Richard não falava enquanto trabalhava e Yale não precisou de fazer
conversa de circunstância. Pouco depois, os Sharp apareceram à porta, a
sorrir como pais prestes a conhecer um filho adotivo.
Bill fez as apresentações – Esmé, Allen, Richard Campo, Allen, Esmé – e
fechou a porta.
– Tenho de vos dizer – começou – que esta é a descoberta mais
extraordinária da minha carreira, e posso afirmar desde já que me vou
reformar feliz. A minha esperança é que possamos abrir a exposição no
outono. Bom, talvez isso seja demasiado otimista. Mas será uma exposição
espetacular.
Bill mostrou-lhes o Foujita, que ainda estava em cima da mesa.
– É ela – disse Yale. – É a Nora.
– Que bonita! – Esmé debruçou-se sobre o papel, fascinada.
Bill abriu a capa do portefólio gigante para onde transferira as peças mais
pequenas e Esmé segurou no braço do marido. Richard olhou também, atrás
deles. Yale disse-lhe, em voz baixa:
– É a tia-avó do Nico e da Fiona.
O portefólio estava aberto num dos Modiglianis a lápis azul, que não se
parecia propriamente com ninguém.
Richard riu-se, encantado.
– Aquela família tem uns genes espetaculares.
Talvez, afinal de contas, pudesse pedir a Richard que lhe cedesse uma
cama naquela noite. Uma cama diferente. Seria assim tão terrível?
Allen disse:
– Não quero acordar e descobrir que investi dinheiro para restaurar
falsificações.
– Bom – disse Yale –, podemos esperar até a autenticação estar concluída.
– A sua voz soou-lhe demasiado aguda. – Mas temos forte corroboração de
proveniência e gostávamos muito de poder começar o restauro para
prevenir mais danos.
Um quadro era uma coisa em que se podiam prevenir mais danos. Era
possível restaurá-lo, protegê-lo, pendurá-lo na parede.
Bill olhou para Yale com ar expectante. Havia mais alguma coisa que ele
devia dizer, mas não se lembrava do que era. Bill pigarreou e disse:
– Uma opção possível é esperar pela primeira autenticação. Digamos que
os especialistas do Pascin confirmam o trabalho dele, por exemplo. – Abriu
o portefólio no nu de Pascin. – Isso não nos deixaria mais tranquilos em
relação ao resto?
Allen inclinou a cabeça para o lado, sem se comprometer.
– Bom, vá chamar o Roman! Vá buscar as cópias! – disse Bill.
E Yale assim fez. Enquanto Richard continuava a trabalhar na secretária
de Bill, os restantes reuniram-se em volta da cadeira onde Roman
depositara o monte de papéis. Yale ouviu distraidamente Roman a ler em
voz alta uma carta que Nora escrevera para a família, na qual falava sobre
Soutine e as suas péssimas maneiras à mesa.
Bill, entretanto, aproximara-se de Richard, que calçava umas luvas
brancas e se preparava para tirar uma das peças de Ranko Novak do
portefólio.
– Esses não – murmurou Bill.
Não havia propriamente um especialista em Ranko Novak a quem
pudessem enviar as fotografias.
– O artista não transbordava talento – disse Bill.
Os esboços das vacas não eram maus, mas eram os três quase idênticos e
havia neles qualquer coisa de demasiado limpo e simples, como imagens de
um livro de «como desenhar animais» para crianças. Mesmo assim, Yale
não compreendia totalmente o desdém de Bill. Bom, ninguém chegava a
diretor de uma galeria por via do igualitarismo.
Richard encolheu os ombros e passou cuidadosamente para o primeiro
esboço de Metzinger.
Allen parecia agitado e coçou a orelha.
– Oiça – disse –, o que estou a pensar é... estou a lembrar-me daquelas
cabeças falsas que encontraram no rio.
Dois anos antes, no verão, alguém dragara um canal em Itália, na
esperança de encontrar as cabeças esculpidas que, supostamente,
Modigliani para lá atirara na juventude, depois das críticas negativas de uns
amigos. Encontraram três cabeças que se apressaram a exibir, mas, poucas
semanas depois, uns estudantes universitários vieram a público dizer que
tinham sido eles a esculpir as peças e a atirá-las ao rio, para pregar uma
partida.
Bill pegou na carta que Roman estava a ler, pousou-a no monte de papéis
e deixou lá ficar a mão.
– É verdade que estamos todos ansiosos. Não pode haver dúvida alguma,
em especial quanto ao Modigliani. Mas, oiça, estamos muitíssimo
confiantes. A questão é que a autenticação pode demorar imenso tempo. E
porque não pôr as coisas já em andamento?
Do nada, Yale ficou paralisado pela memória de Charlie e Julian a irem
juntos a um protesto em Springfield nesse verão. Charlie dissera que iam
mais pessoas no carro de Julian, mas Yale não as vira. Afirmavam ter ficado
em casa de umas pessoas da National Gay Task Force. Contaram-lhe que
não tinham sido detidos na manifestação mas que Julian apanhara uma
multa por excesso de velocidade.
Yale olhou para Esmé, que estava a ver Richard trabalhar, afastada para
não fazer sombra na peça. Pelo rosto dela, pela forma como se inclinava
para os esboços de Metzinger como se quisesse mergulhar neles, percebeu
que estava completamente convencida de tudo: da história, da coleção, da
exposição.
Esmé quis saber:
– Como é que ela passou de estudante de arte a modelo? Só pergunto
porque... bom, as modelos não costumavam ser, sabe... mulheres da noite?
– Vamos regressar ao Wisconsin brevemente para registarmos toda a
história.
E sim, era para onde ele iria, não esta noite, mas em breve. Podia ficar lá
algum tempo. Arrastar as coisas. Podia deixar a cidade, conduzir para norte,
colocar uma grande e vasta extensão gelada entre si e Charlie.
– Que vos parece? – perguntou Bill. – Esta é a Coleção Lerner-Sharp.
Allen respirou fundo e disse:
– Confiamos nos vossos instintos.
Yale duvidava que alguém o devesse seguir para onde quer que fosse,
uma vez que ele era o maior idiota do mundo. Mas assentiu com um aceno.
– Não se arrependerão – prometeu.

Depois de voltarem ao gabinete de Yale, Roman fitou-o com ar


expectante, como um border collie à espera de ordens.
– Foi uma longa semana – disse Yale. – Vemo-nos na segunda-feira.
Pensou, enquanto Roman saía com a mochila ao ombro, em chamá-lo e
perguntar-lhe se tinha um divã vago. Mas isso era simplesmente triste. Não
aguentava ver o estagiário olhar para ele com pena.
Tentou ligar para casa mais duas vezes e ninguém atendeu. Talvez Teresa
tivesse levado Charlie ao médico, ou talvez ele estivesse deitado na cama a
ouvir o telefone tocar.
O tempo correu de forma estranha. Cinco minutos passados a olhar para
as suas estantes vazias demoravam cerca de cinco anos em tempo psíquico,
enquanto os vinte minutos que passou a falar com Donna, a docente, na
galeria, voaram demasiado depressa e ali estava ele outra vez sentado à
secretária, a olhar para o infinito.
Depois de acabar o seu trabalho, Richard enfiou a cabeça na porta. Sorriu
e murmurou:
– Ele não se lembra de mim.
– Quem?
– Aquele maricas velho. O teu patrão. Costumava parar no Snake Pit, há
uns oito ou dez anos. Sentava-se ao bar só a olhar para as pessoas.
– Estás a falar a sério? – Yale estava ao mesmo tempo divertido com a
história e consciente de que era uma distração pela qual dava graças. O que
queria dizer que não estava completamente distraído. – Porque havia ele de
se lembrar de ti?
Richard encolheu um ombro e pestanejou.
– Há dez anos, eu era a rainha do baile!
Yale mandou-o entrar com um gesto e murmurou:
– Ouve, achas que há problema se eu ficar em tua casa esta noite? A mãe
do Charlie está cá e ressona como uma locomotiva.
– Ora, claro que não. Vamos fazer muito mais barulho do que a mãe do
Charlie.
Yale riu-se, como se tudo não passasse de uma piada.
– Está tudo bem? – perguntou Richard. – Estás com péssimo ar.
Tentou fazer uma careta bem-humorada.
– A mulher ressona mesmo alto.

O Sol estava a pôr-se e Bill saíra. Yale pegou na garrafa de uísque e nas
Páginas Amarelas. Havia vários hotéis ao pé da universidade. Tinha cerca
de oitocentos dólares na conta bancária. Um hotel acabaria rapidamente
com essas poupanças, mas neste momento não podia pensar nisso.
Alguém lhe bateu à porta e Yale lembrou-se de que Cecily certamente
apareceria hoje para manifestar o seu desagrado. Tinha o hábito de o deixar
sempre para o final do dia. Há dois dias, este confronto era aquilo que ele
mais temia. Agora, não era nada.
– Entre – disse. Tirou duas canecas de café da estante e, sem sequer olhar
para ela, serviu uísque em ambas.
Cecily olhou durante muito tempo para a caneca que ele lhe oferecia e,
por fim, aceitou-a e sentou-se. Parecia mais esgotada do que furiosa e Yale
sentiu-se subitamente cheio de pena dela. Tencionara ligar-lhe de manhã, ou
melhor ainda, enviar-lhe um memorando com um pedido de desculpas ou
um aviso ou ambas as coisas, mas todos os planos traçados ontem eram
hoje poeira debaixo de um comboio desgovernado. Cecily vestia um fato de
calças e casaco amarelo que a fazia parecer deslavada e tinha o cabelo
acachapado.
– Calculo que saiba o que estive a fazer o dia inteiro.
– Como está o Chuck?
– Furioso. Yale, não é por causa do dinheiro. Talvez as suas peças de arte
valham mesmo dois milhões de dólares, mas a questão é que isto vai ter
consequências para mim. O Chuck é amigo do novo presidente e está a
fazer uma lista de todos os administradores a quem se vai queixar. Ninguém
vai cancelar os legados planeados, claro, mas torna as coisas muito
complicadas para mim, para o meu trabalho.
– Lamento sinceramente que tenha de ser assim.
– Pensei que éramos amigos.
Yale ficou sem saber o que dizer, por isso ergueu a caneca para brindar
com ela. Presumia que o seu rosto estaria suficientemente abatido para que
ela não confundisse isto com uma celebração. Cecily bebeu um gole de
uísque e recostou-se.
– Além disso – continuou ela –, lamento muito, mas a maior parte dos
administradores está-se borrifando para a arte. Não podem construir um
novo centro desportivo com arte. Não podem atribuir bolsas com arte.
– A comunicação social vai estar em cima disto – recordou-lhe Yale. –
Diga-lhes que a galeria nunca mais terá problemas. Daqui a cinco anos vão
ficar contentes.
Sentiu-se tonto e deu graças por estar sentado. Comida. Esquecera-se
outra vez de comer.
– Estou correta no meu entendimento de que ainda nem sequer sabem se
as peças são autênticas? – Cecily parecia agora mais assertiva e confiante.
Yale encostou a testa à secretária, suavemente, porque era o único sítio
onde podia pôr a testa, e disse:
– Se não forem autênticas, eu é que serei despedido. Não você, não o Bill.
Se eles estão assim tão zangados, diga-lhes para me despedirem. Ponha as
culpas em mim.
– Está a ser passivo-agressivo? O que é isto?
– Eu demito-me se tiver de ser, está bem? Assino o que quiserem. Eu
digo-lhes.
– Não me parece estar muito bem, Yale – disse ela.
– Estou quase a perder os sentidos, Cecily. E já não quero saber do meu
emprego. Quero dormir. Importa-se de sair?
Depois de uma longa pausa, ela disse:
– Não.
Mais tarde, Yale não se lembraria bem de terem saído do escritório, mas
devia ter explicado a Cecily que sim, tencionava dormir no gabinete e não,
não podia ir para casa. Lembrava-se de descer Down Street, apoiado nela.
Cecily falava sobre o sofá – que se abria, mas talvez fosse mais confortável
fechado.
O ar frio já o tinha reanimado o suficiente por essa altura para conseguir
pensar que talvez isto fosse uma ideia terrível, se ela se lembrasse de lhe
voltar a oferecer cocaína ou esfregar a perna. Mas ela dizia qualquer coisa
sobre o filho, que já devia estar em casa. O comportamento em Door
County devia ter sido o de uma mãe solteira stressada, perante uma rara
oportunidade de se portar mal. E se Cecily não percebera que ele era
realmente gay quando estava sentado na rua, durante a festa da Howard
Brown, a chorar no ombro de Fiona, então algo se passava com ela.
– Deve ter os pés gelados – disse ela. – Não tem umas botas?
– Estes eram os meus sapatos da sorte de Door County. E funcionaram, ao
princípio, mas a minha sorte acabou-se.
Felizmente, Cecily não lhe fez mais perguntas. Talvez tivesse ficado com
a ideia de que ele chorava facilmente e não o quisesse ver a perder
novamente o controlo.
– Gosta de comida chinesa? – perguntou-lhe.
O estômago de Yale respondeu antes que a cabeça tivesse oportunidade,
com uma vaga gigantesca de fome.
– Eu pago o jantar – disse. – Para a compensar do incómodo.
Cecily vivia no primeiro andar, num apartamento de dois quartos com
uma sala com metade do tamanho do gabinete de Yale. O filho, Kurt («é um
miúdo habituado a estar sozinho em casa», dissera ela pelo caminho),
estava deitado no sofá quando eles chegaram, com os trabalhos de casa em
cima da mesinha baixa. Ignorou completamente Yale – talvez Cecily
trouxesse muitos homens para casa – e disse:
– Mãe, já fiz os trabalhos de casa de matemática do fim de semana, posso
ver o Miami Vice?
– Este é o Yale – apresentou ela. – Um colega de trabalho.
– Mas posso? Prometo que me deito às nove.
– Temos um convidado – disse ela.
– Não me importo – disse Yale. – Gosto dessa série.
Assim, depois de comerem – Yale devorou prato após prato de mu shu e
lo mein, contente por ter sido ele a pagar – e depois de Yale ter feito
algumas perguntas genéricas a Kurt sobre a escola e o desporto e os amigos,
sentaram-se a ver Don Johnson, com a sua barba por fazer, a perseguir um
traficante à volta de uma piscina estranhamente azul. Kurt apoiou-o
animadamente, como se assistisse a um jogo de futebol ao vivo. Era assim
que Yale precisava de ocupar os seus dias, se queria que os três meses
seguintes passassem com alguma rapidez. Tinha de ver televisão e de ir ao
cinema, entretenimentos ligeiros e sem interrupção. Até não lhe restarem
neurónios para odiar Charlie, para sentir falta de Charlie, para se preocupar
obsessivamente com a sua própria saúde.
Depois de Kurt ir para a cama, Yale tirou novamente a garrafa de uísque
do saco e Cecily foi buscar copos à cozinha, copos pequenos e vermelhos
com silhuetas brancas de atletas gregos à volta. Yale contou-lhe, com todos
os pormenores, o que se passava. Porque precisava de contar a alguém e
porque ela não pertencia ao círculo de Charlie, ou talvez por ser uma
espécie de oferenda de paz. Já que arruinara a vida de Cecily, o mínimo que
podia fazer era expor a sua própria vida arruinada na mesinha baixa em
frente dela.
Cecily ouviu e acenou com a cabeça, agradavelmente horrorizada nas
partes piores. Era boa pessoa. Não mostrou qualquer sinal de ainda estar a
pensar no emprego, na sua raiva, no dia terrível que tivera. Yale começou a
desenvolver uma teoria em relação a Cecily: a dureza do seu invólucro
exterior servia apenas para proteger um interior muito mole.
– Posso ir-me embora, se quiser – disse, por fim.
– Porque havia de querer?
– Quer dizer, tem um filho e tudo. Se eu estive exposto... Enfim.
Cecily pareceu ultrajada.
– Não me parece que vá fazer sexo com o meu filho! – E depois
acrescentou, rapidamente: – Era uma piada.
– Eu sei.
– Não vejo de que outra forma poderia ser um problema. Estou
relativamente bem informada. Não estou preocupada em partilhar o sumo
de laranja consigo.
– Obrigado – disse Yale. – Não sei porque está a ser tão simpática
comigo.
– Oiça, eu sei a impressão que dou, por vezes. Para ser bem-sucedida no
trabalho, como mulher, tenho de agir de determinada forma. Mas gosto
genuinamente de si.
Reabasteceu-lhe o copo de uísque e ele ficou contente.
– Há muito tempo que não tinha um destes dias que nos separam a vida
em duas. Por exemplo, este espigão na unha do polegar, já aqui estava
ontem. É o mesmo, mas eu sou uma pessoa completamente diferente.
O uísque ajudava-o a falar. Não sabia bem por que razão confiava em
Cecily, mas confiava. Estavam fartos de passar vergonhas em frente um do
outro. Bom, não era isso que as repúblicas faziam, para os estudantes
estabelecerem elos entre si? Se vomitassem bastante cerveja em cima uns
dos outros, estariam unidos para toda a vida.
– Já tive dias assim – disse Cecily. – Nada tão mau como isto, mas dias de
antes-e-depois. – Yale não sabia como correra o divórcio de Cecily, mas
calculou que fosse verdade. – Uma mudança de cenário provavelmente é
boa ideia. Não estar rodeado de tudo o que lhe faz lembrar a situação.
Imagine se fosse ele a sair de casa, por exemplo...
– Pois.
– Ficaria rodeado por todas as coisas dele.
Assim, era Charlie que estava rodeado pelas coisas de Yale. Charlie
estava sentado na cama que tinham partilhado, e ao seu lado estava a
almofada de Yale, e no armário as roupas de Yale. Mas Yale não sentiu
pena, apenas gratificação. Ele que ficasse infeliz. Ele que se odiasse a si
próprio enquanto publicava artigos hipócritas sobre distribuição de
preservativos. Yale ainda não conseguia pensar ele que fique doente. Claro
que não queria isso. Talvez quisesse apenas que Charlie sofresse até os
médicos lhe virem dizer que se tratava de um falso positivo. Queria que ele
se preocupasse durante seis meses, até os investigadores finalmente
encontrarem a cura.
– Esta doença ampliou todos os nossos erros – disse a Cecily. – Uma
estupidez que fizemos aos dezanove anos, aquela vez em que não tivemos
cuidado. E depois esse vem a revelar-se o dia mais importante da nossa
vida. Como agora... se fosse apenas uma traição, eu e o Charlie
conseguiríamos ultrapassar isto. Se calhar eu nem chegaria a saber. Ou
discutíamos e fazíamos as pazes. Mas, em vez disso, rebentou uma bomba
atómica. Não há como voltar atrás.
– Ele não precisa de si? – perguntou Cecily docemente. – Quer dizer,
quando ele adoecer, não acha que isso pode alterar as coisas?
– Até posso ser eu a adoecer primeiro. Esta coisa não segue um
calendário previsível. E, se assim for, não sei se é ele que quero ter a
segurar-me na mão.
– Compreendo.
Era algo de que Yale não tinha a certeza antes de o dizer em voz alta.
– Pode ficar aqui o tempo que precisar – ofereceu Cecily. – Uns dias,
umas semanas. Não faz mal nenhum ao Kurt ter uma figura masculina por
perto. Deus sabe que o pai dele não tem esse papel.

Antes de se deitar, telefonou para casa. Das primeiras cinco vezes não
teve resposta. À sexta, Teresa atendeu.
– Estou certa de que tens muita coisa para dizer, Yale – disse ela –, mas, a
menos que estejas a ligar para falar com calma, não é o dia indicado.
– Por acaso, acho que é. – Mas estava a entaramelar a voz.
– Foi um dia muito complicado e ele está a dormir.
Yale receava que, se esperasse, a fúria se dissipasse. Precisava de gritar
com Charlie agora, não depois de se acalmar, de ter tempo para pensar. Só
que não estava a acalmar-se. De poucos em poucos minutos, a realidade
atingia-o de novo. De poucos em poucos minutos, a sua tensão arterial
subia.

No dia seguinte, sábado, Yale foi ao cinema. Viu Espiões como Nós e
África Minha, mas os filmes não o distraíram tanto como esperava. Estava
mais absorvido pelas pessoas à sua volta, os casais e adolescentes e
cinéfilos solitários, todos a viver um dia perfeitamente normal. Ele próprio
tivera milhares de dias perfeitamente normais. Parecia-lhe agora um
conceito tão estranho, ter um dia normal. Vaguear pela vida
inconscientemente, apenas a participar no mundo. Parecia pouco razoável
que qualquer pessoa pudesse ter um dia normal.
Nessa noite, jogou batalha naval com Kurt e insistiu em lavar a loiça.
Enquanto esfregava os pratos, Cecily disse:
– Quer que ligue ao meu amigo Andrew? Era ele e o namorado que
estavam comigo naquela angariação de fundos. Ele perdeu um amante e
agora é terapeuta.
– Obrigado, mas ainda não estou preparado para isso. – Yale conhecia
dois Andrews e perguntou-se se aquele seria algum deles. O Andrew Parr
não tinha perdido alguém? A população de gays assumidos em Chicago
sempre fora pequena, e agora já tinham perdido mais de cem homens. E
quem sabe quantos mais perderiam este ano. Dentro em pouco, só haveria
um Andrew gay em toda a cidade. Deixariam de ser precisos apelidos.
Mesmo agora, as probabilidades de o amigo de Cecily conhecer Charlie
eram bastante elevadas.
– Não consigo pensar como deve ser – disse Yale. – Sinto-me como se
tivesse a cabeça cheia de azeite e vinagre e alguém a tivesse sacudido.
Kurt, que estava a pintar um modelo de avião à mesa, disse:
– A tua cabeça é tempero de salada.
– Sim.
– Cabeça de salada.
2015
iona encontrou-se com Arnaud à saída do metro de Saint-Paul. Já tinha
F na mão a chave do prédio e neste momento, esperava ele, a senhoria
devia estar a destrancar a porta do apartamento de Kurt. Ligaria quando isso
estivesse tratado.
Olhou para o telemóvel.
– Nada, ainda, mas de qualquer maneira temos de andar um bocado.
Fiona imaginara-os a entrar na casa de Kurt a meio da noite, ou pelo
menos quando fizesse escuro, mas claro que isso não fazia sentido. Tinham
de o fazer enquanto ele e a mulher estivessem no trabalho. E presumira que
a senhoria insistiria em estar presente, para se certificar de que eles não
roubavam nada, mas não – era mais importante que ficasse noutro sítio,
para não poder ser implicada.
Fiona olhou para todos os rostos com que se cruzaram e, desta vez, não à
procura de Claire, mas sim de Kurt, preparada para se esconder atrás de
Arnaud e tapar a cara com o cabelo, se por acaso o visse.
– Tem de se acalmar – disse Arnaud.
– Boa piada. Sim, vou tentar.
O bairro, ao princípio, era relativamente elegante, mas aos poucos, à
medida que andavam, as ruas – que estavam realmente cheias de
restaurantes de falafel e de bandeiras arco-íris – foram ficando mais
duvidosas. Esta transversal em particular tinha o que parecia ser um clube
de sexo ou espetáculos para mirones. Não conseguia decifrar
completamente os cartazes, mas não devia estar muito longe da verdade.
Arnaud parou num quiosque e comprou o Le Monde.
– É ao virar da esquina – disse. – Enquanto esperamos, vou pagar-lhe um
uísque.
– Ainda nem são duas da tarde!
– Está a precisar de um uísque para se acalmar.
– É uma e cinquenta e quatro! – insistiu ela, mas seguiu-o. O efeito do
analgésico estava a passar, sentia-se a ficar engripada, e afinal o uísque não
era basicamente um remédio? Encontraram um café que era, na realidade,
mais um bar do que outra coisa.
Arnaud sentou Fiona em frente a um uísque, a uma mesa redonda
minúscula no canto. Ele leu o jornal e bebeu uma cerveja, com a espuma a
ficar colada ao lábio.
Não era uma ideia terrível, na verdade. Agora, haveria menos
probabilidades de ela dar um salto ao menor rangido do soalho, de guinchar
se visse uma aranha. Segurou o copo com a mão esquerda e manteve a
direita no colo. Ainda não conseguia mexer os dedos sem enviar pontadas
de dor lancinante pelo braço acima.
Estava virada para a montra e não tirou os olhos do passeio lá fora.
Na única outra mesa ocupada, um casal discutia baixinho, em francês, por
cima das chávenas de café espresso. O homem parecia muito mais velho do
que a mulher, embora todas as francesas entre os quinze e os cinquenta
parecessem ter vinte e seis anos. Devia ter sido assim que ela e Damian
pareciam aos olhos do mundo, ao princípio: a jovem estudante e o seu
professor, com a diferença de idade de quinze anos suficientemente
reduzida apenas para que não os tomassem por pai e filha. Não que isso
fosse possível, da maneira que estava sempre agarrada a ele. Uma vez,
tinham ido almoçar a um restaurante no último piso do Hotel Edgewater,
em Madison, com vista para o lago Mendota. Barquinhos a baloiçar nas
docas e gaivotas furiosas. Quando Damian se levantou para ir à casa de
banho, um homem de cabelo branco aproximou-se da mesa e com um
sotaque carregado e libidinoso disse:
– Você é a amante, não é?
Fiona teve a presença de espírito necessária para não lhe responder, nem
mesmo para negar. Fez sinal ao empregado, que veio imediatamente, e o
homem afastou-se. Mas ela e Damian tinham-se rido do sucedido durante
semanas. Quando ela atendia o telefone, ele dizia: «Você é a amante, não
é?» Não era. Damian nunca fora casado, nem sequer tencionava casar antes
de, no outono seguinte, Fiona engravidar inesperadamente. Estava no início
do quarto ano da universidade e tinha vinte e sete anos de idade.
Virou-se agora para Arnaud.
– Não pode telefonar à senhoria?
– Fazemos assim, se ela não disser nada entretanto, daqui a dez minutos
ligo. Mas estou certo de que não será preciso.
Fiona admirava a confiança dele, tanto quanto ela a irritava.
O casal na outra mesa, percebeu de súbito, estava agora a falar inglês. O
que era estranho, porque não falavam muito bem.
– Eu pago o apartamento – disse o homem. – Eu pago, e tu fazes isto!
Olhou de soslaio para Fiona, que fingiu estar a ler a parte de trás do jornal
de Arnaud, a meros centímetros do seu rosto. Imaginou que o homem
presumira que eles eram franceses – o Le Monde provavelmente ajudava – e
achara que o inglês seria a língua mais segura para transmitir a sua raiva.
A mulher disse:
– Como queres que passe o dia? Lá sentada? – Parecia frustrada, mas
também desafiadora. Seria uma concubina? Ou pior?
– Sim – disse ele. – Sentada, lê um livro. Quero lá saber. Vê um filme.
As sobrancelhas dele eram hirsutas e grossas. Estava furioso.
Arnaud estava agora em silêncio, e afastou o jornal para ver melhor.
Fiona quis escrever um bilhete à mulher («deixe-o já!»), mas seria
impossível entregar-lho sem o homem dar por isso. Era possível que alguém
tivesse visto Claire e Kurt numa situação semelhante, em Boulder, sem
fazer nada. Talvez alguém tivesse visto Claire e as outras mulheres do
Hossana numa das suas raras visitas à cidade, de braços tapados, cabeças
baixas, sem que ninguém lhes perguntasse se estavam bem, se precisavam
de uma boleia para o aeroporto e de trezentos dólares.
A mulher estava a chorar e Fiona conseguiu estabelecer contacto visual
com Arnaud, que encolheu os ombros. O homem pegou no copo meio vazio
e despejou o resto da água no copo da mulher. Olhou para ver se o
empregado estava de costas e, depois, limpou o copo com o guardanapo e
enfiou-o na mala dela.
A mulher murmurou qualquer coisa em francês, um protesto, e ele
respondeu no mesmo tom. Seria assim que estavam a equipar o
apartamento, uma peça surripiada de cada vez? A mulher levantou-se com
ar infeliz e pegou na mala. Saíram rapidamente.
– Uau – disse Fiona. O seu uísque desaparecera.
Arnaud dobrou o jornal e abanou a cabeça.
– Há mulheres muito estúpidas.
– Desculpe?
– Porquê, achou que ela era um génio?
– Você não sabe como é estar com uma pessoa manipuladora. – Na
verdade, ela também não sabia. Damian era mais velho, sim, e muitas vezes
assumia um ar de professor e dava-lhe sermões em tom grave, mas nunca a
tentara manipular.
Damian apoiara a sua vontade de concluir os estudos naquele ano depois
de a bebé nascer, e, antes de ir para as aulas, Fiona deixava Claire com um
biberão no gabinete dele, onde era a princesinha do Departamento de
Sociologia. Quando voltava, duas horas depois, encontrava a sala cheia de
estudantes todos derretidos com Claire, a abanarem a roca para a entreter.
Damian nunca fora outra coisa senão solícito; o fracasso do casamento era
inteiramente culpa dela. Uma vez, dissera-lhe que, se uma das suas novas
namoradas lhe ligasse, teria todo o gosto em dar boas referências dele, em
explicar que era ela que tinha problemas em se comprometer. Que o seu
coração estava demasiado maltratado para ser capaz de amar a sério.
Quando ele se juntara com Karen, Fiona reiterara a oferta.
– Não é preciso – disse ele. – Ela sabe.
Arnaud continuou a falar.
– Vejo este tipo de coisa constantemente. O que acha que eu investigo
mais? Metade dos casos envolvem mulheres, bom... não-geniais metidas
em problemas com um homem. Todas as semanas recuso trabalhos de tipos
como aquele, que querem mandar seguir as mulheres.
Fiona disse a si própria para não gritar com Arnaud, cuja ajuda não queria
perder.
– Também já conheci homens nessa situação. Homens manipulados por
mulheres. Ou por outros homens.
Arnaud olhou para o telemóvel.
– Ela mandou uma mensagem.
– Oh! – exclamou Fiona. – Está bem. – E, de repente, estava outra vez
com os nervos em franja. Fez a cadeira tombar para trás ao levantar-se, teve
de se segurar à mesa e quase a derrubou também.

Noutras circunstâncias, podia ter sido uma aventura. Ver se não havia
vizinhos por perto, entrar sorrateiramente. Mas foi aterrorizador,
agonizante. No pior dos casos, podiam encontrar algo horrível. Fiona não
acreditava que Kurt fizesse mal a Claire, mas quem é que podia ter a certeza
de uma coisa dessas? Lembrou-se de algo que a mãe lhe dissera numa das
últimas vezes em que tinham realmente falado, pouco antes de Nico morrer.
Fiona estava a acusá-la de não ter enfrentado o marido, de o ter deixado
expulsar Nico de casa. Estavam na cantina do hospital. A mãe dissera:
– Nunca saberás como funciona nenhum casamento a não ser o teu. E,
mesmo nesse caso, és apenas uma das metades.
O apartamento era sombrio e miserável. Um cheiro a ratos mortos na
parede, adocicado e enjoativo. Uma grande divisão com uma cama por
fazer de um dos lados, um sofá azul coçado do outro. Uma pequena área de
cozinha, duas tigelas vazias no lava-loiça.
Arnaud obrigara-a a prometer não tocar em nada, e assim ficou parada no
meio da casa, impotente, a girar sobre si própria para acompanhar as
explorações dele.
– No outro armário há só casacos – anunciou Arnaud –, mas neste há
vestidos. – Estava ao pé de uma porta aberta, junto da cama. – Reconhece
algum?
Para que isso acontecesse, os vestidos teriam de ser do primeiro ano de
Claire na universidade ou mais antigos ainda. Já abandonara completamente
a ideia de que Claire vivia aqui com Kurt, mas não podiam excluir essa
possibilidade. Talvez a mulher de cabelo escuro fosse apenas alguém com
quem Kurt a andava a trair! Aproximou-se de Arnaud e espreitou. Cores
pastel, que Claire detestava. Nada familiar. Mas eram vestidos de verão sem
mangas e vestidos de sair. Não roupas do Hossana.
Arnaud puxou um dos vestidos para fora sem o tirar do cabide, como se
andasse às compras.
– Demasiado comprido para ser da Claire – disse ela. – Ficar-lhe-ia a
arrastar pelo chão. – E não havia brinquedos à vista, nem uma cama de
bebé.
Em cima da mesinha junto ao sofá havia algumas contas em nome de
Kurt Pearce, e um envelope vazio endereçado a Marie Pearce.
– Marie. Pode ser francesa – disse Fiona.
– Claro. Também pode ser da Nova Zelândia, tanto quanto sabemos.
Fiona espreitou para a casa de banho. Um armário de remédios só com
uma porta. Nada de estranho lá dentro. Não viu medicação antipsicótica.
Apenas vitaminas, pomadas. Uma embalagem de pílulas anticoncecionais.
O Hossana era contra elas.
À direita do lavatório viu a fotografia de uma menina, presa à parede,
dentro de uma proteção de plástico transparente.
Céus. Com uns três anos. Só podia ser a menina do vídeo. Tinha de ser.
Fiona teve algo parecido com uma reação alérgica – um aperto na
garganta e no peito – ao mesmo tempo que queria cantar, pegar em Arnaud
e dançar com ele pelo apartamento. Caracóis dourados, olhos – olhos iguais
aos de Nico. Não muito parecida com Claire, que mesmo em pequena
sempre fora a cara de Damian: pálida, séria, lábios finos e apertados.
Quando Damian era seu professor de Sociologia, Fiona imaginara que o
rosto dele sugeria uma alma, uma vida de sabedoria duramente conquistada.
Nunca imaginara que podia dever-se aos genes. Mas esta menina! Esta
menina era uma Marcus. O cabelo de Nico começara por ser loiro e só
escurecera com a idade, no ano em que ele deu um salto em altura e mudou
de voz. Nesse ano, Fiona deu por si subitamente envergonhada ao pé dele,
sem saber como se relacionar com aquele rapaz estranho e gigante. E na
verdade nunca mais voltou a aprender a ser irmã dele, porque um ou dois
anos depois se transformou em sua cúmplice, sua ladra, sua mãe ocasional.
Esta criança: se lhe cortassem o cabelo, se a vestissem com roupas de
rapaz dos anos sessenta, era Nico.
Com a mão esquerda, Fiona tirou a fotografia da proteção. Não tinha nada
escrito atrás. Queria levá-la consigo. Mas não podia fazer isso.
– Veja – disse a Arnaud.
Ele segurou-lhe pela orla e disse:
– Cuidado! Não deixe impressões digitais!
Bom, o que é que ele estava a fazer, a mexer em todo o lado? Arnaud
pousou a fotografia na cama e tirou uma fotografia dela.
– É impossível não ficar com o clarão do flash.
– Manda-me uma cópia?
– Claro – disse ele. – Claro.
*
Não encontraram muito mais.
– Há dez anos – disse Arnaud –, estaríamos à procura de uma agenda de
números de telefone e moradas. Agora, já não é tão fácil.
Abriu o armário por cima do fogão e remexeu nas latas e caixas.
– O que acha disto? – Mostrou-lhe uma caixa de cereais castanha, na qual
o desenho de um cão se debruçava sobre uma tigela de flocos de chocolate.
Chocapic, era a marca. A caixa declarava: C’est fort en chocolate! – Talvez
para a menina?
– Bem... – disse Fiona. Não queria ficar demasiado entusiasmada. Um
homem que vivia num apartamento destes, pensou, podia muito bem comer
cereais daqueles ao jantar. Mas depois lembrou-se de que Kurt sempre fora
fanático pela saúde e que o Coletivo Hossana acreditava apenas nos cereais
bíblicos. Podia ter deixado o culto, mas seria estranho redescobrir os cereais
de chocolate aos quarenta anos de idade. Abriu o frigorífico e, embora não
houvesse muita coisa, o que havia era comida saudável: iogurte natural,
garrafas de uma bebida verde, uma aparente versão francesa de fiambre de
tofu.
– Expira na próxima primavera – disse Arnaud, ainda a olhar para a caixa.
– Não pode estar aqui há muito tempo. Isso é bom, não é?
Os cereais reacenderam uma pequena centelha de esperança, mas Fiona
recusava-se a admiti-lo.
Arnaud tirou mais fotografias. Fiona pressentiu que era só para mostrar
que estava a fazer alguma coisa. De que lhe serviria uma fotografia do lava-
loiça?
Ao saírem, teve de resistir ao impulso de deixar alguma coisa
deliberadamente fora do sítio, de derrubar um candeeiro ou escrevinhar um
ponto de interrogação na parede.
– Nunca aqui estivemos – disse Arnaud, ao fechar a porta atrás deles. –
Adeus, apartamento do Kurt Pearce.
*
Fiona vagueou pelo Marais durante muito tempo, sentindo-se
embaraçosamente americana ali, onde não havia tantos turistas. Com
otimismo ligeiramente renovado, mostrou a fotografia de Claire a
empregados de mesa e lojistas.
Mostrou-a a um homem de cabelo desgrenhado encostado a uma esquina,
com uma caixa comprida e estreita ao seu lado. Descobriu que ele era
britânico e teve quase a certeza de que estava pedrado.
Ele olhou muito tempo para a fotografia e finalmente disse:
– Nem toda a gente quer ser encontrada.
Fiona afastou-se, insultada, sem vontade de falar com mais ninguém.
Os seus passos levaram-na de novo para demasiado perto do apartamento
de Kurt. Ali estava o bar onde bebera o uísque; entrou para usar a casa de
banho, com a sensação de que tinha mais direito a fazê-lo aqui do que em
qualquer outro lado.
Quando saiu, teve esperança de ver o casal zangado na rua. Na verdade,
esperava encontrar apenas a mulher, sozinha, encostada a uma janela a
chorar. Fiona dar-lhe-ia um abraço e levá-la-ia consigo para casa de
Richard. Podia salvar uma mulher, mesmo que fosse a mulher errada.
Mas a rua estava – como ela sabia que estaria – vazia.
1986
omingo era o dia. Charlie estaria a trabalhar, mesmo que tivesse tirado a
D sexta-feira; o Out Loud saía às segundas, o que significava que o jornal
tinha de ficar concluído no domingo à noite.
Na manhã de domingo, bem cedo, o pai de Kurt veio buscá-lo para o
levar aos treinos de hóquei. Cumprimentou Yale secamente e murmurou
qualquer coisa a Cecily. O ex-marido era um homem grande, tanto em
músculos como em gordura, e possuidor de um sotaque irlandês
surpreendentemente pouco charmoso. Yale via as feições dele no nariz
arrebitado de Kurt, na sua boca larga. Nesta situação, não teve a certeza se
seria melhor mostrar-se gay (ou seja, não envolvido com Cecily) ou
heterossexual (não fosse o homem ter ideias alucinadas sobre o interesse de
Yale no rapaz de onze anos). Tentou agir de forma natural, o que
provavelmente tendia mais para o gay.
Lavou a roupa na lavandaria na cave do prédio e, depois, apanhou o El
para a cidade. Cecily tinha razão, os seus pés estavam a morrer lentamente
naqueles sapatos, mesmo com meias. Havia lama em todos os passeios e
rapidamente ficou com os pés encharcados.
Era uma da tarde. Desceu Belmont Avenue com a determinação
entorpecida que imaginava que os assassinos sentiriam, entrou pela porta ao
lado do restaurante de tacos e subiu o lanço de escadas que levava ao
patamar onde havia um dentista, uma agência de seguros e os escritórios do
Out Loud. Dwight, que trabalhava na receção, levantou os olhos e acenou-
lhe. Nada de invulgar.
Charlie estava no seu gabinete a falar com Gloria. Yale entrou, como
fizera centenas de vezes antes, e sentou-se na cadeira junto à porta. Gloria
acenou-lhe com a mão e continuou a falar, aparentemente sem reparar que
Charlie ficara tenso. Yale sentia-se um fantasma, visível apenas para uma
pessoa. Só Charlie via o seu espetro à porta. Só Charlie sentia o arrepio
gelado da sua presença.
– Queres que volte mais tarde? – perguntou Gloria.
– Não, continua! – disse Yale. – Não me importo de esperar. – Como se
tivesse vindo apenas trazer o almoço a Charlie.
Não via a cara de Charlie desde que saíra de casa para a viagem a Door
County. A última vez que olhara para ele, fizera-o com absoluta confiança.
Charlie apressou Gloria e disse-lhe que deviam reunir-se depois de o
layout estar pronto. Acompanhou-a à porta e fechou-a depois de ela sair.
Por fim disse, baixinho:
– Céus, Yale. – Olhava para todo o lado menos para os olhos dele.
Yale sabia que o seu próprio silêncio era uma espécie de poder. Ficou
sentado na cadeira, de braços cruzados. Havia pelo menos cinco coisas que
planeava dizer e várias respostas que tencionava exigir, mas ainda não.
Charlie sentou-se atrás da sua secretária; por um momento, pareceu que ia
desfazer-se em lágrimas. De certa forma, teria sido a única coisa apropriada.
Porém, em vez disso, apertou os lábios e as suas narinas estremeceram.
– Não sabia como entrar em contacto contigo – disse.
– Podias ter-me ligado para o escritório.
– Quero dizer ontem ou hoje.
– O que querias dizer-me?
Charlie apoiou o cotovelo na secretária e a testa na mão.
– Precisava de te dizer que o Terrence morreu.
Yale só parou de respirar por um instante, porque não era verdade. Que
raio é que Charlie estava a tentar fazer?
– Não morreu nada.
– Na verdade, morreu.
Estaria a tentar provar que, se isso tivesse acontecido, Yale nem saberia?
– Desculpa, mas estive com ele anteontem. Dormi em casa dele. Na
quinta-feira à noite. Ele está bem.
O tom de voz de Charlie era subitamente paciente.
– Pode ser verdade o que estás a dizer, mas levaram-no para o hospital ao
final da manhã de sexta-feira. Morreu ainda nesse dia.
Yale não acreditava. Mas, então, porque deu por si a chorar? As lágrimas
eram quentes e grossas e deslizaram-lhe silenciosamente pelas faces até à
boca.
– Ainda bem que estiveste com ele – disse Charlie.
No Ano Novo, Terrence estava com tão mau aspeto que parecia às portas
da morte. Mas na quinta-feira, não. Nem na sexta-feira de manhã. Estava no
chão da casa de banho, mas isso era normal. E Yale deixara-o assim. Yale
obrigara-o a deitar-se tarde na noite anterior, a ficar a conversar com ele.
Yale levara germes para dentro de casa. Apetecia-lhe esfarrapar o ar à sua
volta. Não conseguia pensar.
– Onde está o Roscoe? – perguntou.
– Quem diabo é o Roscoe?
– O gato. O gato do Nico. Era o Terrence que o tinha.
– É com isso que estás preocupado? Com certeza que a Fiona o levou.
– Estive com ele no hospital na noite de Ano Novo – disse Yale.
– Ainda bem. Fico contente.
– Onde é que tu estavas na noite de Ano Novo?
– Yale, não comeces. O funeral é às três.
– Hoje? – Quantos dias tinham passado? Dois? Isto parecia ainda menos
plausível, ainda mais uma piada macabra do que a morte propriamente dita.
– Espera. Então ele chamou a ambulância na sexta-feira? Ou foi alguém que
o encontrou? A que horas?
– Não sei esses pormenores, Yale.
– Como é que isto vai acontecer hoje?
Estava a fazer as perguntas erradas. Na produção de Hamlet de Julian, a
reação de Laertes à morte de Ofélia tocara-o. «Oh, onde?» dissera ele, ao
saber da notícia. Mas sim, vejam, era verdade: era aos detalhes que uma
pessoa queria agarrar-se.
– Foi a Fiona que organizou tudo. – Claro, isso fazia parte dos poderes
concedidos pela procuração, lidar com o corpo. – Será estranho se não
estivermos lá juntos – disse Charlie.
– Não me digas.
– Só quero dizer que não devíamos sobrecarregar a Fiona com mais isto,
neste momento. Podes sentar-te ao meu lado. Não morres.
Yale nunca tinha batido a ninguém na vida, batido a sério, mas foi o que
quis fazer nesse momento. Quis agarrar em todas as publicações semanais
gays do país inteiro que Charlie tinha pendurado naqueles suportes
pretensiosos atrás da secretária e amachucá-las, uma a uma, na cara dele.
Mas Charlie parecia tão cansado. Tinha meias luas azuis por baixo dos
olhos.
Embora soubesse que era ridículo, Yale perguntou:
– Onde é que foste fazer a merda da análise?
– Yale. Deu positivo. Estive exposto e a análise deu positivo. Um mais
um é igual a dois. Estou morto. – Arremessou a última palavra como uma
granada de mão.
E, se Charlie se tivesse descontrolado naquele instante, se o seu rosto se
franzisse e os soluços o sacudissem, Yale talvez se tivesse acalmado, talvez
se tivesse aproximado e o tivesse abraçado, mesmo que olhasse para a
janela, enquanto se debatia com emoções contraditórias. Mas o rosto de
Charlie não se alterou.
Yale viera com intenção de gritar, e o facto de não estar a gritar já era
cedência suficiente.
– Podes, por favor, sentar-te ao meu lado no raio da missa, para não
termos de estar a explicar isto a toda a gente? – pediu Charlie.
E a verdade era que Yale também não estava preparado para explicações.
– Preciso de um fato. Merda. A Teresa está lá em casa?
– Posso telefonar e pedir-lhe que saia por um bocado.
– Sim, por favor.
– É na Igreja Unitária. Tens, não sei... para aí duas horas.
Era a mesma igreja onde tinham sido as cerimónias de Brian, o amigo de
Asher. Uma igreja amiga dos gays perto da Broadway Avenue e, por isso,
promovida – recentemente – a Central de Funerais.
– Nem sequer compreendo. Não percebo como... – Parou de falar e
limpou a cara com a manga.
– Lamento ver-te tão desgostoso por causa do Terrence.
– Está bem, Charlie. – Em vez de gritar, saiu do escritório. Fechou a
porta, realmente convencido de que Charlie o chamaria, correria atrás dele.
Teria mesmo esta sido a sua primeira e única conversa desde que Yale lhe
telefonara, jubilante, do Wisconsin? Tinha falado com Charlie tantas vezes
na sua cabeça, que não tinha a certeza.
E agora saíra sem obrigar Charlie a pedir desculpa, a implorar perdão, a
explicar-se.
À medida que andava, ia ficando mais furioso. No gabinete sentira-se
derrotado, mas o ar frio, o sol, cada passo que se afastava de Charlie
enchiam-no novamente de indignação. Charlie não manifestara qualquer
preocupação por Yale, pela sua saúde, nem por um instante.
Por outro lado, Yale também não dissera sequer «lamento muito que
estejas infetado», pois não? Talvez fossem ambos pessoas terríveis e
orgulhosas. Talvez se merecessem um ao outro.
Tentou imaginar o tipo de homem que, perante a notícia de que o seu
amante ciumento estava, na realidade, a fazer dele um idiota e o expusera
despreocupadamente a uma doença fatal, diria que não fazia mal,
permaneceria calmo e compreensivo e se sujeitaria a meses, anos, de
cuidados ao parceiro doente, de devastação. Quem faria isso? Um santo,
talvez. Um anjinho. Yale demorara anos a aprender a defender-se – depois
de aqueles rapazes da equipa de basquetebol o terem enganado, não se
sentara docilmente com eles ao almoço no dia seguinte? – mas, pelos vistos,
pelo caminho, aprendera-o.
Primeiro bateu à porta, para se certificar de que Teresa não estava e,
depois, rodou lentamente a chave na fechadura. Odiava a versão de si
próprio que ali estivera alguns dias antes, preparado para partilhar os
detalhes de uma viagem fantástica, inconsciente da emboscada que o
esperava. Odiava pensar que, se o Yale de há três dias pudesse ver o Yale de
hoje, provavelmente não veria a realidade do que se passava e pensaria que
estava apenas a voltar para casa depois de almoçar algures, um pouco mal-
arranjado mas feliz, normal.
Estava tudo ligeiramente fora do sítio. A caixa de comprimidos de Teresa
em cima da mesa, ao lado de uma New Yorker que ele ainda não tinha visto.
Uma pilha de cassetes equilibrada no braço do sofá, como se Charlie tivesse
estado a organizá-las ou à procura de letras de canções. Yale encontrou a
sua correspondência muito bem arrumada ao lado do telefone. Uma carta do
grupo de antigos alunos da universidade, um postal da prima em Boston.
Não havia contas, felizmente, porque senão tê-las-ia rasgado em
pedacinhos, espalhado os fragmentos pelo chão. Geralmente era Yale que
pagava a renda, mas o apartamento estava em nome de Charlie, que já lá
vivia quando se tinham conhecido.
Yale vestiu o fato e depois encontrou uma caixa de tamanho razoável em
cima do frigorífico – Charlie comprara uma caixa de toranjas logo a seguir
ao Ano Novo, para uma angariação qualquer – e usou-a para guardar o
passaporte, o relógio do avô, duas camisas, um par de calças. O livro de
cheques e uma caneca com fichas dos transportes. Pôs também os sapatos
de Nico, mas enfiou as roupas que despira no cesto da roupa suja, para
Charlie ou Teresa lavarem. Guardou os sapatos formais na caixa, para
calçar mais tarde, e tirou as botas de neve do armário no vestíbulo. Acabou
de encher a caixa com peúgas e roupa interior e cobriu tudo com um
pulôver. Uma mala de viagem daria mais jeito, mas a única mala grande que
havia em casa era de Charlie.
No frigorífico estavam as carnes frias que comprara antes da viagem.
Deviam ter-se estragado há muito, visto que pareciam pertencer a uma
década diferente, mas ainda estavam boas. Fez uma sanduíche de peru e
queijo Muenster e encostou-se à bancada a comer.
Parecia tudo demasiado normal – como se Charlie estivesse ao fundo do
corredor, a preparar-se para sair do duche, com uma toalha enrolada à
cintura, tudo bem. Podia pousar a mão no peito de Charlie e sentir-lhe o
coração através da pele quente e molhada. A verdade era que o seu corpo
sentia falta de Charlie, ou do corpo de Charlie. Apenas da sua presença.
Não sexualmente, ainda não, embora estivesse certo de que essa parte se
tornaria mais intensa nas noites em que estivesse deitado na cama, acordado
e sozinho. Os músculos tensos das coxas de Charlie, a forma como lhe
mordia as orelhas, o seu sabor, a pele impossivelmente macia por baixo do
prepúcio. Bom, ali estava, então: saudades, anseio. O tipo mais inútil de
amor.
Estava a lavar o prato quando a porta se abriu.
– Pensei que já tinhas saído – disse Teresa.
– Vou sair agora. Tenho de ir.
Ela pousou a mala na bancada da cozinha e dirigiu-se a ele como se
tencionasse abraçá-lo, mas não o fez. Estava com péssimo ar, o rosto seco e
enrugado. Um duplo queixo que não existia antes, a pele das faces flácida e
sem vida. As pálpebras inchadas.
– Yale, estás bem? Já fizeste a análise?
– Não serviria de nada.
– Ficarias a sentir-te melhor. O Charlie ficaria a sentir-se melhor.
– Os sentimentos do Charlie não me preocupam neste momento.
Ela parecia angustiada.
– Não percebo por que razão têm de estar zangados. Vocês amam-se. –
Yale não tinha a certeza se isso ainda era verdade. Teresa pegou-lhe na mão
e acariciou-a. – Se viesses para casa, eu podia cuidar dos dois. Tenho
cozinhado, sabes? E não é só comida britânica desenxabida! Disse-te que
tive uma aula de cozinha italiana no outono? Agora sei fazer umas
almôndegas maravilhosas, mas o Charlie não come carne de vaca.
– Estou bem – disse Yale. – Vou ficar bem.
– Ele cometeu um erro. Foi a primeira coisa que me disse quando me
ligou. Que tinha cometido um erro e não podia corrigi-lo.
– Isso é verdade. Não há nada a fazer.
– Yale, estou com medo de que ele adoeça mais depressa se andar
stressado. A aflição vai dar cabo dele.
Yale admirou esta inversão de lógica, como se fosse ele agora o causador
da doença de Charlie. Podia sentar-se e explicar coisas sobre a sida que
deixariam Teresa com a cabeça a andar à roda, ou podia dizer-lhe que
Charlie nem sequer tentara pedir desculpa, mas de que adiantaria? Disse-lhe
que ia encontrar-se com Charlie no funeral, o que pareceu acalmá-la um
pouco.
– Não sejas mau para ele, está bem?
Para não ser visto a andar em Halsted Street com a caixa na mão, Yale
virou para leste e foi pelo caminho mais longo – um caminho que o
obrigava a passar pela casa que visitara. Devia ter continuado a andar, mas
parou para olhar. Um gesto masoquista. Porque, mesmo que não estivesse
doente, mesmo que recebesse um grande aumento e pudesse pagar a casa
sozinho, nunca compraria uma casa tão perto de Charlie. Mesmo que
Charlie já cá não estivesse, nunca conseguiria viver tão perto do sítio onde
tinham sido felizes juntos, não poderia passar pelo antigo apartamento a
caminho do comboio.
Mas acreditaria realmente que Charlie alguma vez morreria? Na sua
mente, isso ainda era um futuro hipotético, como um tornado atingir a
cidade. Acreditaria, tão insensatamente como Julian acreditara, que alguém
estava prestes a anunciar a cura? Não lhe parecia que fosse por isso.
Simplesmente era uma pedra que ainda não se afundara, que ainda estava a
saltitar sobre a superfície do lago.
O cartaz de «vende-se» continuava lá, com o número de telefone a brilhar
sob o sol da tarde, caracteres rúnicos que já não possuíam qualquer
significado. Na janela da casa contígua, um gato dormia. Alguém tocava
piano.

Yale evitou as pessoas reunidas no átrio da igreja e escapuliu-se por um


corredor, à procura de um sítio onde deixar a caixa com as suas coisas.
Escondeu-a atrás de um pufe numa divisão que devia pertencer a um grupo
de jovens, um espaço onde os miúdos tinham pintado malmequeres e rãs e
fragmentos de letras dos Beatles nas paredes.
Depois, endireitou o fato, humedeceu o cabelo na casa de banho,
procurou Fiona e ajudou-a com as flores que ela trazia nos braços. Deu-lhe
o colar de Nora, avisou-a de que nunca o usasse ao pé da prima Debra, e
Fiona levantou o cabelo encaracolado para que Yale o fechasse na sua nuca.
Atrapalhado com o fecho, ele disse:
– Nunca fiz isto – e Fiona, por algum motivo, achou isso hilariante.
Ajudou-a a alinhar as cadeiras no santuário. Yale gostou de ver que eram
cadeiras: menos desagradáveis para o traseiro do que os bancos corridos,
menos probabilidades de desenterrar memórias de infância negativas.
Quando Charlie chegou, a igreja estava a encher-se. Charlie vinha
acompanhado de alguns funcionários do jornal – Gloria, Dwight, Rafael,
Ingrid. Deviam ter mudado de roupa no escritório para virem juntos. E
regressariam também juntos depois da cerimónia, enquanto Yale sairia
sozinho. Charlie viu-o e, um minuto depois, estava a seu lado, a cheirar a
aftershave.
O sacerdote falou sobre comunidade e amizade e «a família que
escolhemos», perfeitamente consciente de quem era a sua congregação,
obviamente experiente neste tipo de coisas. Quantos destes funerais teria
supervisionado pessoalmente? Fiona levantou-se e contou uma história
sobre o dia em que Nico a apresentara a Terrence.
– Ele avisou-me de que o Terrence tinha sentido de humor – disse. – E eu
fiquei aterrorizada. Estava à espera que, a qualquer momento, me pusesse
uma almofada de peidos na cadeira, ou coisa do género. Mas ele não fez
uma única piada. No final do almoço, virou-se para mim e disse: «Tomaste
conta do teu irmão a tua vida toda e...» – A sua voz embateu contra um
muro. Tentou novamente, mas não saiu nada. Por fim, continuou: – Teria
sido mais fácil se ele tivesse dito alguma coisa engraçada.
Todos se riram, só para juntar as suas vozes ao espaço, para a ajudar a
chegar ao fim.
– Ele disse: «Tomaste conta do teu irmão a tua vida toda, e quero que
saibas que, daqui para a frente, eu trato disso.» E foi o que fez. Não sabia o
que o esperava, mas esteve com o Nico até ao último instante. E agora está
novamente a tomar conta dele. – Mal conseguiu acabar de falar. Uma amiga
ajudou-a a descer do púlpito e acariciou-lhe as costas.
Um dos colegas professores de Terrence leu um poema em que Yale não
conseguiu concentrar-se. O sacerdote conduziu-os em meditação. Asher,
que era um barítono com formação clássica, cantou o «Pie Jesu» do novo
requiem de Webber – uma canção que Yale só ouvira gravada por uma
soprano, mas que resultava igualmente bem com Asher, com o violoncelo
que Yale sempre imaginara que vivia na garganta de Asher. Yale, que tal
como Asher não era católico, ficou comovido com o som daquelas vogais
litúrgicas puras em latim, os Qs e Cs carregados. A canção não era apenas
um lamento; era lancinante. Yale sentiu-se um trapo molhado, como se
alguém o estivesse a espremer por cima do lavatório até não restar nada.
Não olhou para Charlie. Conseguia ouvi-lo respirar a assoar-se. Na vigília
de Nico, tinham dado as mãos.
Olhou, contudo, para as filas atrás de si. Viu sete adolescentes sentados
juntos, sem pais. Imaginou que deviam ser alunos que tinham tomado
conhecimento da morte de Terrence. Atrás, estavam Teddy e Richard.
Teddy tamborilava com a mão nas costas da cadeira à sua frente. Mais ao
fundo, alguns familiares de Terrence. Ou, pelo menos, presumiu que fossem
familiares. Um rapaz alto, extraordinariamente parecido com Terrence, três
mulheres negras, jovens. Ninguém que parecesse ter a idade certa para ser
pai ou mãe dele, mas uma mulher suficientemente velha para ser sua avó.
Quando a cerimónia acabou, Yale e Charlie saíram juntos e ambos
abraçaram Fiona.
Yale avistou Julian do outro lado do átrio da igreja. Não o vira no interior,
mas aqui estava ele agora junto ao bengaleiro, com os olhos vidrados.
Emagrecera muito. Yale não acreditava que fosse por causa do vírus; as
probabilidades de Julian adoecer exatamente assim que sabia que estava
infetado eram baixas.
Apercebeu-se de que Charlie também estava a olhar e, por um instante,
Yale e Charlie estiveram novamente no mesmo comprimento de onda, a
comunicar telepaticamente.
– Disseste-lhe? – murmurou Yale a Charlie.
– Não.
E depois estavam outra vez afastados, a pensar coisas completamente
diferentes, e Yale sabia que Charlie estava a lembrar-se do que fizera com
Julian, memórias que estavam para sempre – felizmente – vedadas a Yale.
Dirigiu-se à sala do grupo de jovens para ir buscar a sua caixa.
Porém, quando lhe pegou e se virou, Charlie estava parado à porta, a
olhar para ele.
– Só para que saibas – disse Yale –, lamento muito que estejas doente.
Mas, tirando isso, não tenho grande simpatia por ti neste momento.
As luzes estavam apagadas. Só os candeeiros de rua iluminavam a sala,
através das janelas.
– Acho que já percebi porque o fiz – disse Charlie.
– Oh, explica-me lá, por favor. – Yale segurou a caixa à frente do corpo,
como uma barreira.
– Talvez não faça sentido, mas acho que o fiz porque estava cansado de
ter medo.
– Estavas com medo da doença portanto resolveste apanhá-la?
– Não. Não. Tinha medo de que tu me deixasses, de que me traísses com
um tipo mais novo, mais bonito, mais inteligente. Sei que é horrível, mas
acho que parte da minha mente pensou que, se eu fizesse a pior coisa
possível, sempre que te visse a flirtar com outro quase podia querer que me
traísses, para ficarmos quites.
– Pensaste bem nisto.
– Na altura não. Estava podre de bêbedo, Yale. E o Julian tinha aqueles
poppers que roubou da casa do Richard.
– O efeito dos poppers dura dez segundos.
– Não é isso que quero dizer, quero dizer que aquilo que fizemos na
cama, eu não teria...
– Céus, Charlie.
– Não o teria deixado fazê-lo.
– Acho que a tua introspeção está um bocado afastada da realidade. Acho
que tentaste decididamente adoecer. – Yale estava aos gritos, mas não quis
saber. – A questão é porquê, mas isso cabe-te a ti perceber. Talvez te odeies
a ti próprio. Talvez me odeies a mim. Talvez precises de atenção. Não há
nenhuma boa razão, pois não? Quando sabes os riscos. Não és ingénuo. És
a merda do czar dos preservativos da cidade de Chicago.
Charlie estava a abanar a cabeça. Charlie nunca parecia chorar lágrimas
reais, ficava apenas com os olhos vermelhos e inchados. Não chegara a
entrar na sala, continuava à porta, como se pudesse fugir a qualquer
momento.
– Usámos camisinha. A sério. Primeiro estávamos no apartamento do
Nico, sabes, quando... e estávamos na casa de banho, e estava escuro, e
antes de sairmos eu perguntei ao Julian se tinha preservativos e ele disse:
«Aposto que deve haver aqui algum.» E palpou dentro do armário dos
medicamentos e enfiou dois preservativos no bolso. E depois fomos para
casa dele. Mas mais tarde, antes de me vir embora, vi a embalagem vazia e
era de pele de cordeiro.
– Por amor de Deus, Charlie. E provavelmente também era velho.
– Provavelmente.
– Nem sequer acredito em ti. A sério. Usaram preservativo, mas estava
escuro e... ups! Era um preservativo de pele de cordeiro? Por que raio é que
o Nico havia de ter preservativos desses? Para quê? Para prevenir uma
gravidez indesejada? De certeza que consegues pensar numa história
melhor. Quantas vezes é que ele te fodeu, a sério? Eu estava disposto a
acreditar em ti. Estava quase preparado para acreditar. E depois sais-te com
os preservativos de pele de cordeiro.
– Foi só uma vez.
– Só uma grande foda pós-funeral. Porque não duas? Ele estava lá fora
ainda agora. Força.
– Yale...
– O Teddy fode com metade da cidade e não apanha nada, mas tu, a única
vez que me trais, e com preservativo, ficas magicamente doente. Devias ir
contar a tua história aos programas da manhã. Ou podias dar palestras nas
escolas, para os assustar. Liga aos republicanos! Vão adorar!
– Yale, chega. – Charlie também gritava, entretanto. – Sabes muito bem
que não é assim. Sabes que isto é aleatório.
– Tens a noção de que nem sequer me pediste desculpa? Isso passou-te
sequer pela cabeça? Estás a arranjar desculpas e a inventar histórias sobre
preservativos naturais, a criar teorias sobre a tua motivação, e não me
perguntaste uma única vez se eu estou bem. Nem por uma vez admitiste que
deste cabo da minha vida.
Charlie abriu a boca mas Yale não o deixou falar.
– Passaste cinco anos a defender esta treta da monogamia, a pôr-me uma
trela e, entretanto, fazes o que bem te apetece. Sabes que mais? Puro
egoísmo. A nossa relação sempre foi sobre ti, e tudo o que fizeste foi a
pensar em ti, e a tua recusa em pensar seja no que for a não ser nos teus
sentimentos neste momento, é decididamente por ti.
Charlie levou a mão à cabeça.
– Talvez seja verdade, mas neste momento não consigo lidar com as tuas
necessidades emocionais. A minha mãe está a esgotar-me.
Yale passou por ele com a caixa nos braços, empurrando-o com o canto
dela.
– Pelo menos tu tens a tua mãe. Eu não tenho ninguém.
Percorreu o corredor, passou por uma mulher que não conhecia e depois
por Teddy e Asher, que estavam suficientemente perto para ter ouvido a
gritaria.

Quando chegou a casa de Cecily, as luzes estavam todas apagadas. Ela


dera-lhe uma chave, e abriu a porta com cuidado, com a caixa equilibrada
numa anca. Um miúdo habituado a estar sozinho em casa, como Kurt.
Mudou de roupa na única casa de banho do apartamento. De um dos
lados do lavatório estavam os cremes, a maquilhagem e o ferro de enrolar
de Cecily; do outro, apenas a escova de dentes de Kurt e um temporizador
em forma de ovo. Yale despiu a camisa e inspecionou o peito, as costas, a
pele macia e pálida no interior dos braços. Claro que havia mil outras
formas de o vírus se manifestar, claro que podia esperar, invisível, durante
anos. Ao saber que estava infetado, Terrence dissera:
– É como pôr uma moeda na máquina de brinquedos do supermercado.
Sabemos as possibilidades, mas não fazemos ideia do que nos vai sair. Será
pneumonia, ou Kaposi, ou herpes, ou o quê? – Fingiu abrir uma das bolas
de plástico. – Oh, vejam, toxoplasmose!
Quantas vezes tinham ele e Charlie feito sexo entre o funeral de Nico e o
Ano Novo? Apenas um pouco menos frequentemente do que o habitual.
Umas dez vezes, talvez. Talvez Charlie tivesse confiado naquele
preservativo de pele de cordeiro, se é que existira mesmo. Ou confiado que
Julian não estava doente. Julian parecia tão saudável. Mesmo assim, podia
ter inventado desculpas, podia ter dito que lhe doíam as costas. Podia ter
feito a análise, mas talvez estivesse à espera dos três meses após o contacto,
como Yale estava agora. Mas depois soubera que Julian estava doente e fora
imediatamente fazê-la. E, surpresa, os primeiros anticorpos.
Yale vestiu a t-shirt e, quando saiu da casa de banho, encontrou Cecily na
cozinha, a tirar um saquinho de chá da caneca. Ela estava de roupão e
chinelos e parecia (Yale descobrira isto na sua primeira noite ali) uma
pessoa completamente diferente sem maquilhagem.
Ela perguntou-lhe como estava e depois disse:
– Parece que temos um problema.
– Oh?
– É o meu ex-marido. Suponho que... bom, na outra noite, mencionei o
meu amigo Andrew em frente ao Kurt. Ele é tão esperto, às vezes esqueço-
me de que é muito mais observador do que eu penso. Mas percebeu mal e
julgou que era você que estava doente. Não que ele se importe. Conhece o
Andrew e...
– Mas foi dizer ao seu ex que eu tenho sida.
– Já lhe expliquei que não. Basicamente, disse a verdade, contei-lhe que
você tinha sido exposto ao vírus. Mas o Bruce perdeu a cabeça e diz que
não acredita que eu o tenha aqui em casa, a comer connosco, a viver
connosco. É ridículo, mas ele é assim.
– Não adiantaria de nada eu falar com ele, pois não?
– O problema é que tivemos alguns desacordos quanto aos pormenores da
custódia, e ele acha que pode aproveitar-se disto para usar em tribunal
contra mim. – Mordeu o lábio de cima.
De súbito, Yale sentiu-se exausto.
– Já percebi. Para ser franco, provavelmente podia fazê-lo. Bastava
apanhar o juiz certo. – Olhou para as calças de fato de treino, para os pés
descalços. – Acha que há problema se eu ficar só mais uma noite? – Sentia-
se horrível por estar a pedir isto. Pusera em risco a carreira de Cecily e
agora estava a causar-lhe dificuldades familiares. Esta mulher estava cheia
de problemas e ele viera instalar o caos na vida dela.
– Claro que sim! Mas depois...
– Saio de manhã.
– Lamento muito, Yale. E o Kurt sente-se tão mal. Sabe que fez asneira.
O mais engraçado é que o Kurt não estava nada preocupado, simplesmente
achou interessante. Tem ouvido falar disso nas notícias.
– Ele não fez asneira. Diga-lhe isso, está bem?
– Sei que era a última coisa de que precisava, Yale.
– Significa mais para mim que a Cecily me tenha acolhido do que
significa que outra pessoa não me queira aqui – disse, e estava a ser
sincero.
– O Kurt está preocupado consigo. Já lhe expliquei que não está doente,
mas ele tem medo que as pessoas sejam más para si.
– Bom, é possível que eu fique doente.
Ela acenou com a cabeça, muito séria.
– Estou convencida de que vai correr tudo bem consigo.
– E consigo? – perguntou Yale. – O seu trabalho?
Ela hesitou.
– Desde que as peças sejam verdadeiras, acho que vai acabar tudo bem. –
Tinha o rosto franzido e Yale não ficou convencido de que ela lhe estivesse
a contar tudo. – Mesmo que isso não aconteça, é só um emprego, Yale.
Toda esta situação recordou-me disso, percebe? Há coisas mais graves.
De manhã, Yale vestiu-se, fez a barba e saiu com as suas coisas, antes de
os despertadores de Cecily e Kurt tocarem.
2015
ão tinha autorização de Arnaud para fazer isto, mas por que raio havia
N de se preocupar com Arnaud? Arnaud queria prolongar a situação.
Arnaud estava a ser pago para isso.
Além do mais, quando Jake apareceu no apartamento de Richard na tarde
do dia seguinte, Fiona quis tirá-lo de lá. Se viera para incomodar Richard,
tinha de sair e, se viera para a incomodar a ela, podia fazê-lo noutro sítio.
Assim, antes que Serge tivesse sequer oportunidade de o convidar a sentar-
se, de lhe oferecer uma bebida, Fiona pegou-lhe no braço e disse:
– Preciso que me ajudes com uma coisa – e arrastou-o para a rua. – Já sei
onde ele mora – explicou. – O tipo, o que meteu a Claire no culto. Vamos lá
voltar.
– Vamos?
– És maior do que eu. Não és tão grande como ele, tenho de te avisar.
Mas ele não é nenhum atleta.
– Oh, ótimo.
Mas seguiu-a, entrou com ela no táxi.
– Então não és mesmo alcoólico? – perguntou ela.
– Não sei. Já fiz alguns daqueles testes online. A verdade é esta: na
América, sou considerado uma pessoa que bebe muito. Em França, sou
completamente normal.
Ela riu-se e apalpou o bolso, para verificar se não deixara o telemóvel em
casa de Richard.
– Se eu te largasse nos anos oitenta, no meu grupo de amigos da altura,
serias um autêntico monge.
– Muitas festas?
– Tínhamos todos problemas com o álcool. Absolutamente todos, exceto
os que tinham problemas com drogas.
– E sobreviveste! – exclamou ele. – Ainda aqui estás!
Céus, como o odiava neste momento.
– Ouve, quando lá chegarmos não digas nada – instruiu. – Serás mais
assustador se estiveres calado.
– Claro – assentiu ele. – Sou o guarda-costas.
Ela sacudiu-lhe a mão antes que ele lhe tocasse no joelho.
Bateram à porta e Fiona rezou, enquanto o seu estômago dava
cambalhotas dolorosas, para que fosse a mulher a abrir. Que os convidasse a
entrar e que Kurt regressasse do trabalho e desse com eles sentados no sofá,
a beber chá. Mas foi Kurt que abriu e olhou para eles sem expressão de
reconhecimento. Olhou mais para Jake do que para Fiona, até que, por fim,
se virou para ela, arregalou os olhos e levou a mão ao rabo-de-cavalo.
– Oooooh – disse. – Olá. Eu... Oh, uau! Olá, Fiona.
– Vamos entrar – informou Fiona, e passou por baixo do braço dele para
entrar num apartamento que, com os sacos de compras em cima da bancada
e um computador portátil aberto no sofá, parecia bastante mais cheio e
acolhedor do que na véspera.
Fiona perdera uma quantidade desmesurada de tempo na sua vida adulta
com duas fantasias diferentes. Uma, mais recente, tinha lugar quando
percorria as ruas de Chicago e tentava trazer de volta a cidade como era em
1984, 1985. Começava por imaginar carros castanhos na estrada. Carros
castanhos estacionados em fila, com os escapes a cair. Em vez da Gap, a
loja Woolworth com o restaurante. A Wax Trax! Records, onde era agora o
consultório de um cirurgião oral. E se conseguisse ver tudo isto, conseguia
então ver os seus rapazes no passeio, com os blusões de aviador, a
chamarem uns pelos outros, a correrem para atravessar a estrada antes de o
semáforo ficar vermelho. Conseguia ver Nico à distância, a caminhar em
direção a ela.
A outra fantasia era uma em que Nico estava ao lado dela e a
acompanhava a todo o lado, estupefacto e confuso com as coisas modernas.
Ele era Rip Van Winkle e ela tinha de lhe explicar o mundo moderno.
Fizera-o no aeroporto, antes de vir. Apesar de estar concentrada em Claire,
em chegar a Paris, de súbito Nico estava ao seu lado na passadeira rolante, a
olhar para um cartaz que anunciava «uma firewall para a sua cloud». Como
raio podia ela explicar-lhe porque é que uma nuvem precisava de uma
parede de fogo? E, depois de se instalar na cabeça dela, Nico seguira-a por
todo o terminal – a pedir comida com ela através do iPad no balcão da
pizaria, a assustar-se com o autoclismo automático da sanita, a ler os
rodapés em movimento ao fundo do ecrã da CNN e a perguntar o que eram
bitcoins. A perguntar-lhe porque é que toda a gente estava a olhar para as
calculadoras.
– Estás a viver no futuro – murmurara ele. – Fi, isto é o futuro.
E, quando via algo que ele compreenderia facilmente – um bebé a chorar
por ter deixado cair a chucha, um McDonald’s, uma parede (ainda seria
possível?) coberta de cabinas telefónicas –, Fiona sentia que o mundo
estava novamente certo.
E havia também alturas em que simplesmente narrava para si própria o
que acontecia à sua volta, coisas que pareciam ter vindo de outra época.
Neste momento, por exemplo, disse a si própria que estava ali sentada com
Kurt Pearce, que ela e Kurt Pearce estavam a ter uma conversa. Que
Richard se encontrava no seu estúdio, e que ela tinha de telefonar a Cecily
mais tarde. Uma descrição que teria feito todo o sentido, em 1988.
Só que Kurt seria um adolescente nessa altura, não este homem enorme
sentado em frente a ela, com as pernas esticadas a ocuparem quase metade
do comprimento da sala. Jake não estaria de pé, encostado à parede, de
braços cruzados sobre o peito, a tentar parecer um guarda-costas.
Kurt parecia sóbrio, lúcido. Falou calmamente, com uma voz
impossivelmente grave.
– Não sei o que posso contar-te. Não sei se vais tentar alguma coisa.
– Tentar alguma coisa?! – exclamou Fiona, mas depois conteve-se. Não
devia mostrar-se emocional.
– Sempre achei que ela era demasiado dura contigo. Fizeste o melhor que
podias. E estás a tentar. Eu compreendo.
Ele parecia tão jovem. Este tempo todo, Fiona odiara-o por estar mais
perto da sua idade do que da idade de Claire, quando, na verdade, ele não
passava de um miúdo, um hippie palerma.
– Ouve – continuou ele –, gostava que as coisas tivessem sido diferentes.
Também andei um bocado perdido durante algum tempo. Mas está toda a
gente bem. Estamos todos bem. O que aconteceu à tua mão?
– Elas estão aqui em Paris?
– Posso dizer-te que estamos todos bem e de boa saúde. Mas, além
disso... não me cabe a mim dizer mais. Tenho sorte por estar novamente na
vida dela. Tenho sorte por a Claire me permitir isso.
Era tudo o que Fiona desejava para si – permissão para voltar à vida da
filha. Não fizera tantas asneiras como Kurt – pelo menos, nunca fora presa
– mas talvez tivesse andado perdida durante mais tempo. E talvez fosse
mais difícil perdoar à mãe do que a um homem. Sempre pensara que os seus
defeitos e falhas fariam mais sentido para Claire à medida que ela crescesse
– julgara que uma adulta compreenderia uma aventura extraconjugal (que
erro tão banal!) de forma que seria impossível a uma criança. Nesta altura,
Claire não devia já compreender a confusão que era o coração humano?
Tinha demasiadas perguntas para Kurt, mas nenhum bom ponto de
partida. E não podia descair-se e deixar escapar que o espiara, que estivera
ontem mesmo naquele apartamento.
– Sei que casaste.
Ele olhou de Fiona para Jake e novamente para Fiona e respondeu:
– Sim, damo-nos muito bem. É uma relação saudável.
– Bom, fico feliz por ti. Sempre quis o melhor para ti e só gostava que... –
Não conseguia expressar o afeto que sempre sentira por ele, ou pelo menos
pela memória dele, ao mesmo tempo que o odiava com todas as fibras do
seu ser, por lhe ter roubado a filha. – Já te afastaste do... do grupo, certo?
Daquela gente do Hossana?
Kurt riu-se.
– Podes chamar-lhes um culto. É o que são. Sim, foi com muita alegria
que coloquei um oceano entre nós.
– Então mudaste de ideias em relação a eles.
– Queres uma cerveja? – Fiona abanou a cabeça. – E o teu amigo?
Jake, graças a Deus, recusou. Não pareceria nem de longe tão eficaz com
uma garrafa de cerveja na mão. Kurt levantou-se, foi buscar uma para si e
voltou a sentar-se.
– Ela é que mudou de ideias. Eu nunca estive muito convencido em
relação àquela gente, mas estava apaixonado.
– Como é que estar apaixonado faz com que te juntes a um culto?
– Era o que ela queria! A Claire... ao princípio, gostava mais deles do que
de mim, isso era óbvio. Se a tivesse obrigado a escolher, sabia bem quem
ela escolheria, e não era eu.
Fiona olhou rapidamente para Jake, que continuava encostado à parede
sem dizer nada. Isto não fazia sentido.
– Mas eras tu que vivias em Boulder – disse Fiona. – Foste tu que... que
fundaste o culto.
– Não. Não, não, não. Ela conheceu um tipo na cozinha do restaurante
onde trabalhava... pelo menos nunca pensei que fosse uma relação
romântica, porque ele tinha uma pele horrível e macilenta, mas convidou-a
para uma festa no complexo e ela levou-me. Eu achei aquilo tudo ridículo.
Pandeiretas e tambores, sabes? Havia uma rapariga chamada Peixe, juro por
Deus, que se colou à Claire como uma lapa e falou com ela a noite toda.
Deram-me um chá que tinha uma droga qualquer. Não gostavam de álcool,
mas havia muito chá desse. E acabámos por passar lá a noite, dormimos no
chão. Parecia tudo muito relaxado, até cravarem as garras numa pessoa. E a
Claire quis voltar, noite após noite. Ia ficar sem o apartamento no final do
mês e eu tinha-a convidado para morar comigo, mas depois disseram-lhe
que havia lá um quarto onde podíamos ficar os dois. Era mesmo... quer
dizer, eles também me apanharam, ao fim de algum tempo, não posso dizer
que não, têm muita habilidade, mas foi a Claire que me puxou para o
labirinto com ela. Não estou a dizer isto só para não ficar mal visto,
acredita.
Fiona percebeu que acreditava em Kurt, mas, mesmo assim, queria gritar-
lhe que estava a mentir, que a sua filha nunca cairia num esquema desses,
porque as pessoas que eram enganadas pelos cultos eram pessoas que nunca
tinham tido família, pessoas que, noutras circunstâncias, poderiam ter-se
juntado a um gangue. Pelo menos era isso que alguém dizia para justificar
as coisas más que aconteciam aos filhos dos outros mas não aos seus. No
entanto, se fosse uma mulher maltratada também seria compreensível. Uma
mulher tão subjugada a um homem dominador que não tinha alternativa
senão fazer o que ele queria. Embora nunca tivesse desejado tal coisa a
Claire, era a única história que ilibava Fiona de qualquer responsabilidade,
não era?
– E deste-lhes as tuas poupanças todas? – perguntou.
– Não tinha grandes poupanças. Na verdade, eles ajudaram-me a liquidar
os cartões de crédito. Só devia uns dois mil dólares, mas eles pagaram tudo
para eu poder cancelá-los. E, na altura, claro... disse logo muito obrigado.
A conta do MasterCard de Claire continuava a aparecer no e-mail de
Fiona e ela nunca deixara de pagar a taxa anual, este tempo todo, na
esperança de que, mais cedo ou mais tarde, Claire o usasse em qualquer
lado e lhe desse uma pista de onde se encontrava. Nunca tinha acontecido.
Agora Fiona estava pronta para fazer a pergunta.
– Porque é que a escolheram? Como é que sabiam que ia resultar com
ela? Porque, em cem pessoas, noventa e nove não cairiam num esquema
desses.
Kurt encolheu os ombros.
– Suponho que têm prática. Ouve, se quisermos ver isto de uma
perspetiva psicológica, ela sempre se sentiu atraída por homens mais
velhos, não foi? Andava à procura de figuras paternas.
Fiona queria que ele o dissesse em voz alta para poder odiá-lo.
– O Damian sempre esteve muito presente na vida dela. Ouve, tu também
és filho de pais divorciados, e no teu tempo isso ainda era menos vulgar.
Não significa que tenhas ficado traumatizado.
Kurt levantou-se, espreguiçou-se e encostou a palma da mão ao teto.
– Não tenho o direito de julgar ninguém, mas uma das primeiras coisas
que ela me disse, em Boulder, foi que o dia em que ela nasceu tinha sido o
pior dia da tua vida. Disse-me que foste tu que lhe disseste isso.
– Não é verdade.
Seria possível que fosse esta a pedra no sapato de Claire? Que não tivesse
nada a ver com o caso extraconjugal de Fiona, com o divórcio? Sentiu a
mão latejar, como se estivesse a sugar toda a dor que devia ter na cabeça, no
ventre.
– Ela cresceu consciente de que tinha dado cabo da tua vida – disse Kurt.
– O que te parece que isso faz a uma pessoa?
Fiona levantou-se também e Jake avançou um passo, como se estivesse a
preparar-se para se interpor entre eles.
– Em primeiro lugar, eu nunca lhe disse uma coisa dessas. Foi algo que o
Damian lhe disse, no meio do divórcio, para a envenenar contra mim. Em
segundo lugar, sim, esse foi um dos piores dias da minha vida, embora
tenha tido muitos dias maus, mas não teve nada a ver com a Claire. Não é
segredo nenhum. Foi um dia terrível, um dia de merda. Não quer dizer que
eu não a quisesse, e não mudou em nada a forma como a criei.
– Ouve, não estou a dizer... Eu também me lembro desse dia. Estava...
– Não te parece que é um bocado problemático lembrares-te do dia em
que a tua namorada nasceu?
– Ela não é minha namorada. – Levantou as mãos, um buda inatacável. –
Estou a tentar ajudar-te, Fiona. Se queres resolver as coisas com ela, este é
o pântano onde tens de chafurdar, está bem? A Claire... ela não é uma
pessoa feliz. Acho que nunca foi feliz, independentemente do que tu
fizesses. É como se tivesse má astrologia, ou coisa do género. É um ser
humano fundamentalmente zangado. Tu não foste uma má mãe.
Mas, se era verdade, porque é que lhe doía tanto?
– Ouve, tenho de te pedir para saíres daqui, antes de a minha mulher
chegar a casa. Ela não é fã do drama da Claire.
– Ela conhece-a? – quis saber Fiona.
Kurt abriu a boca mas depois fechou-a, apercebendo-se da rasteira.
– Podes pelo menos dar-lhe um recado meu?
Ele abanou lentamente a cabeça. Fiona ficou chocada, pois estava
convencida de que ele diria que sim.
– A minha relação com ela é muito, muito frágil. Se for falar-lhe nisto, é
bem possível que se vingue em mim. Se ela souber que eu falei contigo, que
te deixei entrar...
– E um endereço de e-mail? – interrompeu Jake. Fiona não ficou
aborrecida por ele ter falado; estava na altura de entrar em ação o trabalho
de equipa.
Kurt dirigiu-se à porta e abriu-a, mas Fiona não se mexeu.
– O que posso dizer-te é isto: estamos todos bem, todos em segurança.
Queres deixar-me o teu número? Posso prometer que te telefono se
acontecer alguma coisa má.
– Avisas-me se ela morrer? Que simpático.
– Não era isso que eu...
– Ouve, e a menina? É tua?
Kurt pousou a mão enorme, não no ombro de Fiona, mas no de Jake, e
empurrou-o sem grande esforço para a porta. Como se empurrasse um
barco de brincar. Fiona tirou rapidamente da mala uma caneta e o cartão de
embarque da viagem e escreveu o seu número.
Antes de sair, disse:
– Também és pai. Pensa em como eu me sinto. Usa a imaginação. Sei que
costumavas ter boa imaginação.

Na rua, Jake envolveu Fiona num abraço e encostou a barba e os lábios à


testa dela.
– Vejo perfeitamente que és uma boa mãe – disse.
Fiona receou que ele lhe perguntasse onde ia, que quisesse ir com ela, e
disse-lhe que precisava de estar sozinha – tinha muita experiência a livrar-
se de homens. Entrou num táxi e pediu ao motorista que a levasse a
Montparnasse. Não queria voltar para casa de Richard, disso tinha a certeza,
embora a mão lhe doesse como se estivesse a tocar em fios elétricos e se
tivesse esquecido dos analgésicos. «Prometa que vai pensar em si», dissera-
lhe a psicóloga antes de ela partir, e não lhe parecia que Elena estivesse a
falar de ir para a cama com ex-pilotos vagabundos. Podia comer um belo
jantar; era uma coisa que podia fazer.
Foi parar ao La Rotonde, o sítio de que a tia Nora costumava falar, o sítio,
se bem se lembrava, onde Ranko Novak enlouquecera. Ou teria sido
Modigliani? Fosse quem fosse, Fiona sentou-se no interior do restaurante,
onde estava quente, pediu soupe à l’oignon gratinée e desejou não estar
rodeada por tanta gente a falar inglês. Não havia artistas desmazelados e
embriagados, nem modelos a beber absinto, nem grandes poetas
expatriados.
Bom, como é que podia ter a certeza disso? Talvez a mesa do canto
estivesse cheia deles.
Uma vez, perguntara a Nora se tinha conhecido Hemingway e ela
respondera:
– Se o conheci, não me deixou uma impressão memorável.
Calculou que, nas décadas desde então, a avant-garde podia ter mudado
de sítio.
Se fora realmente aqui que Ranko Novak perdera a cabeça, parecia um
sítio estranho. Era tudo quente e vermelho e mágico, e a sopa era ótima.
Bom, quem era infeliz podia ser infeliz em qualquer lado. Há anos que
sabia disso: como uma pessoa podia morrer de fome num banquete, como
podia desfazer-se em pranto durante a comédia mais engraçada do mundo.
O empregado perguntou-lhe se queria sobremesa. Em vez disso, pediu
outra sopa, exatamente igual à primeira.
1986
epois de a galeria fechar, Yale lavou os dentes na casa de banho. Fez
D outra vez a barba, para estar razoavelmente barbeado de manhã, e
mudou de camisa. Deixou as suas coisas debaixo da secretária.
Evanston não era uma cidade onde houvesse sítios abertos a noite toda, e
achava que teria mais hipóteses no centro, por isso voltou a apanhar o
comboio. O seu plano era manter-se mais para sul, em Clark Street, onde
havia menos probabilidades de encontrar Charlie. Começou pelo Inner
Circle, que estava vazio, e depois subiu em direção ao Cheeks, para ver se o
empregado de bar careca e giro estava a trabalhar. A um quarteirão do seu
destino, viu, à sua frente no passeio, as costas de Bill Lindsey, o seu passo
largo característico. Yale estacou e pensou em voltar para trás, mas Bill
olhou por cima do ombro, parou e chamou Yale com um aceno gigante que
era impossível fingir que não tinha visto.
Quando Yale o apanhou, Bill disse:
– Vive aqui perto, não é? É uma zona que conheço mal.
– Um bocadinho mais a norte.
– Bom, o momento não podia ser melhor! Tenho uma coisa no carro que
me esqueci de levar para o escritório hoje. Vai adorar!
E assim Yale deu por si a seguir Bill até ao Buick dele, o mesmo carro no
qual tinham regressado triunfalmente do Wisconsin. Bill estava estacionado
mesmo em frente ao Cheeks. Não parecia minimamente embaraçado,
tirando o facto de estar a falar um pouco mais depressa do que o habitual.
– Veja! – disse Bill, e estendeu-lhe um livro enorme. Yale pousou-o no
capô do carro.
Pascin: Catalogue raisonné: Peintures, aquarelles, pastels, dessins. O
segundo volume.
– Página sessenta – indicou Bill. – Diga-me o que vê.
– Oh!
Era uma mulher sentada numa cadeira, com o cabelo loiro ondulado
penteado para um lado, uma camisa de dormir a deslizar-lhe do ombro, o
tecido amontoado no colo. A pose era exatamente a mesma do estudo que
Nora afirmava ser de Pascin. O rosto era o mesmo. A única diferença era
que, aqui, ela estava vestida.
– Que notícia fantástica! – exclamou Yale. – Posso levar o livro quando lá
for, se quiser.
– O que quero que faça... antes de gravar as histórias dela, e sei que é isso
que ela quer... é que veja se ela se lembra de que quadros podem ter
resultado dos esboços. Porque este, por exemplo... Yale, este está no Musée
d’Orsay! Talvez eles tenham interesse no esboço, não acha? Para o exibirem
ao lado do original. Não estou a pensar vendê-lo – apressou-se a dizer, ao
ver a expressão de Yale. – Mas como empréstimo, ou numa permuta.
Quando voltar ao Wisconsin, pode levar os catálogos. Claro que não existe
nenhum catálogo da Hébuterne nem do Sergey Não-Sei-Quê. E não há
catálogo do Ranko Novak, ahahah. Mas vamos encher-lhe o porta-bagagens
de livros.
– E tem a certeza de que não quer vir também?
– Tenho muito que fazer com as polaroides. – A exposição da Polaroid só
abria em agosto, mas Bill estava a lidar com peças emprestadas de Ansel
Adams e Walker Evans, e sempre que falava sobre a exposição era com
gestos de frustração. – Quero que volte lá o mais cedo possível. Você e o
Roman. Ele é um belo espécime, não é?
Yale não sabia como responder.
– Parece aprender depressa – disse, sem se comprometer.
Antes de entrar no carro, Bill piscou-lhe o olho.

Yale sentou-se num banco ao balcão, no canto mais escuro do Cheeks,


descolou os pés do chão peganhento e pediu um Manhattan. Era um sítio
seguro para passar algum tempo e só fechava às quatro da manhã. De vez
em quando via um rosto que conhecia vagamente. O rececionista do
dentista na Broadway Avenue que atendia gays, o ex de Katsu Tatami, o
canadiano alto por quem Nico estivera em tempos obcecado. Este último
tinha uma grande lesão arroxeada na face esquerda. Um ex-empregado do
jornal de Charlie veio cumprimentá-lo, como fez um dos amigos de Julian
do teatro, o que representava Fortinbras em Hamlet. O bar estava
estranhamente movimentado para uma segunda-feira; parecia que alguém
tinha enviado uma convocatória geral. O empregado giro não estava, mas o
que estava a trabalhar era generoso com as bebidas. Um tipo moreno, de t-
shirt rasgada, deixou cair uma carteira de fósforos no colo de Yale e,
quando a abriu, encontrou um número de telefone. Ocorreu-lhe que era
basicamente solteiro, agora, que podia ir para casa com alguém, aproveitar
a cama quente e o chuveiro, a distração. O problema era que não sabia se se
lembrava dos jogos de sedução. Há muito tempo que não fazia essa vida. E,
além disso, só conseguia pensar em germes e fluidos corporais. Todo o bar
parecia uma incubadora.
Apesar da quantidade de pessoas, todos pareciam abatidos, reunidos em
pequenos grupos a abanar distraidamente a cabeça ao som dos Bronski
Beat. Talvez por estar tanto frio lá fora, que o ar gelado entrava sempre que
alguém abria a porta. Toda aquela cena de andar à procura de engates em
tronco nu resultava muito melhor em Los Angeles.
Sentiu um aperto no ombro e, quando ergueu os olhos, viu Richard, com
as suas ondas de cabelo prateado a refletir a luz. Richard aproximou-se do
ouvido de Yale e falou em voz alta:
– Mas que visão rara! O Yale aqui nas profundezas do Sul, a descer ao
nível de miseráveis como eu!
– Precisava de ir a algum lado.
Richard acenou como se compreendesse e disse:
– Os museus deviam ficar abertos a noite toda, precisamente por esse
motivo. Podíamos vaguear pelo Museu Field. Ninguém ousaria atacar-nos
em frente de um sarcófago.
– Devíamos mudar os museus todos para Boystown.
Richard riu-se.
– Se mudássemos os museus para Boystown, transformar-se-iam em
bares. É por isso que eu não me mudo para lá.
– Tens medo de te transformares num bar?
– Não, num alcoólico inveterado.
Yale contou a Richard que tinha encontrado Bill Lindsey à entrada.
– Se começares a estar atento, aposto que o verás encolhido a um canto de
cada vez que saíres. – Estava a estudar a sala. – Quero fazer uma filmagem
qualquer aqui – disse. – É tão visceralmente reles.
– Estás a brincar? – disse Yale. – Serias banido para o resto da vida.
– Oh, só tu para te preocupares com esses pormenores técnicos.
– É o meu trabalho. Sugar a alma da arte.
– Precisas de mais álcool ou de menos álcool – disse Richard. – Se calhar
optamos por mais, não?
A porta abriu-se novamente e mais uma rajada de ar gelado invadiu o bar.
Entraram alguns homens, a falar alto, já embriagados. Julian vinha no meio
deles. Claro que sim.
Rezou para que Julian não o visse, mas Richard já estava a chamá-lo –
Richard sempre tivera um fraquinho por Julian, estava sempre a pedir-lhe
para posar para as fotografias – e aí vinha Julian direito a eles. Pôs ambos
os braços à volta do pescoço de Richard e ali ficou, como um colar gigante
e embriagado. Tinha chapéu e uma camisola de malha, mas estava sem
casaco. Com a voz entaramelada, disse algo que pareceu a Yale «Richard,
posso viver na tua casa». Talvez fosse outra coisa. Soava como um velho
que tivesse perdido a dentadura.
– Julian, o que é que meteste? – perguntou Richard.
Julian quase caiu entre Richard e Yale e segurou-se ao balcão.
– Coisas de miúdos. Estivemos no Paradise! Vamos voltar ao Paradise!
Eu não queria vir-me embora. Oh, Yale. – Levantou a mão e tocou no
queixo de Yale. – Yale, tenho de te dizer uma coisa.
– Não tens nada. – Yale queria odiá-lo, mas não conseguia. Ele era tão
patético. Como podia odiar um tipo tão patético?
Julian tirou o chapéu e Yale tossiu, surpreendido, e tentou recompor-se.
Julian tinha a cabeça completamente rapada, um trabalho mal feito. O seu
belo cabelo preto – com a madeixa de unicórnio – substituído por cortes e
pelos curtos.
Richard passou os dedos pelo couro cabeludo de Julian, horrorizado.
– Porque é que fizeste isso? – perguntou Yale.
Julian tossiu debilmente, o som de um animal doente.
– Ui – disse Richard. – Ouve, temos de te levar para casa.
– Perdi a chave.
– Yale, não podes levá-lo para tua casa?
Yale soltou a respiração e quase disse «já te expliquei que a mãe dele
ressona», mas em vez disso confessou:
– O Charlie e eu estamos separados.
Porque teria de o dizer, mais cedo ou mais tarde. Charlie não podia
obrigá-lo a sentar-se ao lado dele em cada evento, a fingir que ainda eram
um casal.
Julian, para horror de Yale, começou a chorar. Encostou o rosto ao peito
de Yale e não o molhou, mas ficou ali a soluçar em seco, com o corpo todo
a tremer.
– Não sabia, Yale – disse Richard. – Lamento muito. Ele pode... Julian,
não chores. Julian, podes ficar em minha casa, está bem? – E Julian fez que
sim com a cabeça, sem afastar o rosto do peito de Yale. – E tu, Yale, onde é
que vais dormir? Estás bem?
– Não faço ideia. Quer dizer, estou bem. Estava a pensar ficar por aqui até
às quatro.
– Oh, Yale. Vem connosco, então. Foi por isso que me pediste para ficar lá
em casa no outro dia? Sou tão estúpido.
– Não és nada – disse Yale. – E não devia ir com vocês. Não posso. –
Pelo menos se Julian também fosse. Não podia acordar sóbrio de manhã e
tomar o pequeno-almoço com Julian. Não podia pôr-se a tomar conta de
Julian enquanto ele vomitava durante a noite.
Richard disse:
– Um amigo meu tem um hotelzinho em Belmont. Fica num edifício
antigo maravilhoso. Fazemos-te companhia até lá, que tal?
Parecia uma opção tão boa como outra qualquer.

Richard abraçou o proprietário do hotel, um indivíduo mais velho, com


uma gravata fina e óculos de aviador, deu-lhe uma nota de cinquenta
dólares e pediu-lhe para tratar bem de Yale. Enquanto o dono explicava a
Yale o sistema elaborado de chaves (uma para a porta da rua, uma para o
corredor do piso de cima, uma para o quarto), Richard e Julian saíram.
De manhã, havia café e donuts com açúcar em pó. Havia um cãozinho
que vivia no rés do chão – uma coisinha branca e peluda chamada Miss
Marple – e um televisor que dava dois canais. Yale regressou na noite
seguinte com a sua mala e a sua caixa e reservou o quarto para o resto da
semana. Ficaria sem dinheiro nenhum na conta à ordem, mas, se precisasse
de recorrer às poupanças, assim faria. Para que raio estava a poupar, afinal?

Na sexta-feira, Yale foi à lavandaria automática e lá estava Teddy, a tirar a


roupa da máquina de secar e a descolar as camisas unidas pela estática.
Teddy cumprimentou-o – com frieza, pareceu a Yale – e continuou a dobrar
a roupa. Porém, quando Yale pôs a máquina a trabalhar, Teddy aproximou-
se e ficou ali parado, com os braços cheios de roupas. Claro que Teddy não
podia simplesmente segurar na roupa; tinha de a baloiçar nos braços como
se fosse um bebé.
– Ouve – disse ele. – Tenho de te dizer uma coisa.
– Está bem.
– Depois de te ires embora da igreja no domingo, o Asher e eu
encontrámos o Charlie em muito mau estado. Portanto deixa-me começar
por dizer que sei o que se passa, sei que ele está doente.
– Está bem. – Teddy não disse mais nada, por isso Yale olhou em volta,
viu que não estava ninguém a ouvir e murmurou: – Bom, não, ele não está
doente, só tem o vírus. Sabes como é que ele apanhou o vírus?
– Não sei nem quero saber. É aí que entram as acusações e os julgamentos
e não quero ter nada a ver com isso. Quer dizer, o que havemos de fazer?
Uma árvore de infetados? Um gráfico? Vá lá. Toda a gente o apanhou de
alguém. Todos o apanhámos do Reagan, não é? Se temos de pôr as culpas
em alguém, vamos ser produtivos e culpar a ignorância e a negligência do
filho da puta do Ronald Reagan. Vamos acusar o Jesse Helms. E que tal o
papa? O que eu sei é isto: sei que o tipo com quem tens uma relação há...
nem sei, cinco anos?... está morto de medo, e que tu decidiste que a reação
adequada era virar costas e deixá-lo sozinho com a mãe, que também está
aterrorizada, e depois gritar com ele na merda do funeral de um amigo.
– Espera, espera – disse Yale. – Ele é que me pôs na rua. – Mas não era
exatamente verdade, pois não? Como é que acontecera, afinal?
– Sim, ele vai andar a agir de forma irracional durante uns tempos. Vá lá,
Yale.
Queria perguntar se Asher também estava zangado com ele, se todos os
homens gays em Chicago já tinham ouvido o lado da história de Charlie, se
o nome de Yale era mencionado pela cidade na mesma frase que Helms e o
papa.
– Teddy, ele não me quer lá. E ele é que devia estar a rastejar aos meus
pés.
– Não são os doentes que rastejam.
– Isso é algum princípio filosófico? – Yale tentou baixar a voz; a mulher
ao balcão estava a olhar para eles.
– Claro.
– Então tu andas por aí a cuidar dos doentes? A percorrer as ruas e a
distribuir injeções de morfina? Estás à frente do programa de troca de
agulhas?
– Por acaso... – Oh, céus, Yale enfiara-se na boca do lobo. – Por acaso, o
Julian acabou de se mudar para minha casa. Ando a cuidar do Julian.
Teddy e Julian não eram um casal, um casal a sério, há um ou dois anos,
mas essa possibilidade existira sempre, como uma ponta solta.
– Quando?
– Há dois dias. O Richard ligou-me na quarta-feira de manhã. Disse que
vocês andavam os dois à procura de engate quando o encontraram.
– Céus, eu não andava à procura de engate. Não tinha onde dormir.
– Bom, seja como for, ele agora está em minha casa e uma das coisas que
estou a perceber é que o amo muito e que sempre o amei. Quando sabemos
que vamos perder alguém, isso coloca as coisas em perspetiva.
– Estão novamente juntos?
– Bom, não fisicamente. Ainda não, mas pode ser que aconteça. A
questão é que temos de cuidar das pessoas que amamos.
Yale pensou em dizer que fora Julian que infetara Charlie, mas de que
adiantaria? A notícia ia espalhar-se e só magoaria mais pessoas. E, se Teddy
estava tão feliz por poder cuidar de Julian, porquê estragar tudo?
– Deves ser uma pessoa melhor do que eu, Teddy – disse Yale. – Desejo-
te as maiores felicidades.
2015
iona ainda mal tinha entreaberto a porta do apartamento de Richard,
F quando Serge a escancarou pelo lado de dentro. Pegou-lhe no braço e
puxou-a.
– Estou à tua procura há uma hora! O teu telemóvel está, hum... a dormir.
Fiona tirou-o da mala. Como é que o deixara desligar-se?
– Ele está aqui! – exclamou Serge.
– Quem?
– O teu detetive. Está muito, hum... excitado? Sim?
Richard apareceu atrás dele e disse:
– O Serge andou à tua procura por todo o lado! O teu homem encontrou-
nos. Quer dizer, só pode ser um detetive decente, para dar connosco aqui.
Fiona olhou de um para o outro. «Excitado», vindo de Serge, podia querer
dizer apenas agitado. Podia querer dizer alarmado ou assustado. Ou feliz.
– Ele foi à casa de banho! – disse Serge. – Um segundo! – E desapareceu
no corredor.
Fiona virou-se para Richard.
– O que é? Diz-me!
– Bom, vou meter os pés pelas mãos, minha querida. Tem paciência.
E aqui vinha Arnaud, a enfiar a camisa nas calças de ganga.
– Ah, muito bem, olá! – disse ele. – Sim! O seu telefone esteve morto o
dia todo! Mas tenho boas notícias a dobrar. Ela está pronta para se encontrar
consigo.
– Ela está... o quê? Quem, a Claire?
– Ha! Sou bom, não sou? Rápido. Ela está aqui na cidade. Bom, mora em
Saint-Denis, um subúrbio que não é muito bom. Mas trabalha num bar-
tabac no 18.º Bairro.
Fiona encostou-se à parede.
Como foi a primeira pergunta que lhe ocorreu, disse:
– Como é que conseguiu?
– Cortei o nó górdio! Perguntei à mulher. Passei a manhã a andar para
cima e para baixo na rua dele e, quando ela saiu, perguntei: Você é a Claire
Blanchard? Quando ela disse que não, disse-lhe que a Claire tinha uma
multa de estacionamento para pagar, e se sabia onde ela trabalhava. E ela
indicou-me onde era.
– Oh, meu Deus – disse Fiona. – Esteve lá? Viu-a? – Estava vagamente
consciente dos sorrisos radiantes nos rostos de Serge e Richard. Kurt não
devia ter falado à mulher na visita que lhe fizera, caso contrário ela estaria
de sobreaviso.
– Sim – disse Arnaud. – Há umas horas. Ela está boa. Um bocadinho
magra, mas de resto bem. Não parecia... hum, fazer parte de um culto. Um
bocadinho de batom, sabe? Nada de mal.
– E a menina?
– Não, quer dizer, não vi a criança. Mas sim, é filha dela. Confirmei. É
filha dela e do Kurt Pearce. Ela é que tem a menina.
– Tem?
– Nicolette. Não a vi, mas ela disse-me.
Fiona sentiu o rosto a arder.
– Como é que ela se chama?
– Nicolette – repetiu ele, devagar. – Quer que soletre?
– Nós... – Não conseguia falar. Não conseguia olhar para Richard. Por
fim, conseguiu murmurar: – O que é que devo fazer agora?
– Bom. Tem de me pagar. Ha-ha. E vou dar-lhe a morada. Depois disso, é
consigo. Mas a Claire não quer que vá lá ainda hoje. Disse que precisa de
um tempo, percebe? Para se preparar. Ficou um pouco chocada.
– E não acha que ela vai desaparecer? – perguntou Fiona. – E se ela
foge?
– Bom, não faço ideia. Mas não fiquei com essa sensação.
Fiona queria ir imediatamente à morada que Arnaud lhe acabara de dar,
mas porquê? Só causaria problemas.
Arnaud disse que tinha de ir; este não era o seu único caso e passara o dia
inteiro à procura dela. Serge tirou o telemóvel desligado da mão de Fiona
para o pôr a carregar e disse que lhe levaria qualquer coisa para comer ao
quarto. Ela estava abalada, e devia notar-se.

Era demasiado cedo para ligar a Damian, que estava em Portland, mas
não para ligar a Cecily.
Cecily devia ter agora pelo menos setenta anos, mas na mente de Fiona
seria sempre como a conhecera em meados dos anos oitenta. Enchumaços
nos ombros e gel no cabelo, o rosto fresco e sem rugas. Só vira Cecily uma
vez, desde que Kurt e Claire se tinham juntado ao Coletivo Hossana. Cecily
estava a esvaziar a casa de Evanston, a preparar-se para se mudar para a
Upper Peninsula, e sentara-se com Fiona à mesa da cozinha vazia.
Manifestara alguma preocupação por Claire, por Fiona, mas confessara há
muito ter desistido de Kurt.
– Eu podia ter-te dito – dissera ela. – E teria dito, se soubesse que os ias
apresentar um ao outro. Ele é o pai, da cabeça aos pés. Bom, não, é mais
esperto do que o pai, mas isso não ajuda nada. Pensa demais e age
impulsivamente. É um ciclo, o pensar demais e a compulsão. Eu tentei,
Fiona, eu tentei. Ele é um homem adulto, e eu cometi os meus erros e não
posso apagá-los.
Foi nesta altura que Fiona ficou a saber que Kurt tinha roubado mais de
vinte mil dólares à mãe, que mentira o tempo todo que estivera em
desintoxicação, que mentira a todos os terapeutas que ela pagara.
Ouviu o telefone de Cecily tocar e, quando a chamada foi para o
gravador, tentou de novo. Serge apareceu com um tabuleiro: torradas, uvas,
umas fatias de queijo macio. Um copo de água alto e fino.
Por fim, Cecily atendeu com voz seca e cansada.
– Bom, tenho novidades – disse Fiona.
– E são novidades que eu queira ouvir? – perguntou Cecily.
– Sim.
Serge pousou o tabuleiro na pequena mesa de cabeceira e sentou-se aos
pés da cama, a ouvir. Fiona não se importou – dava-lhe alguém para quem
olhar enquanto falava.
– O Kurt está bem. Falei com ele pessoalmente. Pareceu-me limpo.
Sóbrio, quero eu dizer. E saudável, e tudo. – Contou-lhe que ele vivia com
alguém, uma mulher que não era Claire, mas não lhe disse que ele era
casado. Não disse que tinha sido preso. E depois disse: – Encontrámos a
Claire. Vou vê-la amanhã. Isto pode ser um bocado prematuro, mas se
calhar devias pensar em vir até cá.
Cecily suspirou, um suspiro longo e cansado. Fiona imaginou-a de
roupão.
– Compreendo porque tens de estar aí – disse ela. – Gosto muito do Kurt,
mas ele é um homem feito e já não me considero mãe, pelo menos da
mesma forma. Houve uma época para isso, e essa época passou.
– Sim – disse Fiona. – Mas preciso da tua ajuda. – Cravou as unhas no
joelho. – E agora temos uma neta – acrescentou.
1986
oi um alívio partir para o Wisconsin na segunda-feira de manhã, com as
F suas coisas todas no porta-bagagens, Roman no lugar do passageiro. As
estradas estavam molhadas, as árvores negras contra o céu esbranquiçado.
Num Nissan alugado que cheirava a pinheiro artificial, dirigiam-se à Paris
dos anos vinte. Yale tentou imaginar que cada hora de viagem os fazia
recuar quinze anos no tempo. Chegariam a Sturgeon Bay a tempo do
Hindenburg. Quando estacionassem, não seria em frente da casa de Nora,
mas sim de um café iluminado por candeeiros a gás.
Yale contornara a data 26 de janeiro na sua agenda de bolso – não se
lembrava de o fazer, o que significava que provavelmente estaria bêbedo – e
recalculara essa data várias vezes nas últimas semanas. E hoje era dia 27.
Tinham passado doze semanas e um dia desde o dia da vigília de Nico. Se
essa fora realmente a noite em que Charlie ficara infetado, então Yale podia
ter sido infetado pouco depois. Podia esperar até ao final de março, quando
completaria três meses desde a última vez que fizera sexo com Charlie, ou
podia puxar o gatilho já. Porque, mesmo que só tivesse sido infetado nessa
última vez, havia uma probabilidade de oitenta por cento de quaisquer
anticorpos terem já aparecido nesta altura, segundo as duas pessoas
diferentes que tinham atendido a linha de apoio da Howard Brown em duas
noites diferentes. E alguns médicos acreditavam que as taxas de transmissão
eram mais elevadas logo após a infeção – sabia disto graças a vários artigos
muito úteis no jornal do filho da mãe que provavelmente o condenara à
morte.
Yale tentou meter conversa com Roman e perguntou-lhe como tinha sido
a sua infância.
– Muito diferente daquilo que as pessoas imaginam quando pensam na
Califórnia – disse Roman. – A região de Truckee foi onde o Grupo Donner
ficou encurralado.
– Na Califórnia? – Parecia-lhe absurdo.
– Canibais e esqui – confirmou Roman. – É o que temos na minha terra.
Yale perguntou-lhe se ele ainda se considerava mórmon e Roman fez uma
careta e hesitou.
– Eles dificultam muito a vida a quem quer sair. É como tentar desistir
das subscrições de cassetes da Columbia House.
– Ha! Mandam-lhe folhas de autocolantes?
– Sim – disse Roman. – Onze anos de sentimento de culpa pela mera
quantia de um dólar.
Yale perguntou-lhe porque é que ele se sentira inclinado a deixar a igreja,
mas Roman encolheu os ombros.
– Tenho problemas com algumas coisas – respondeu apenas, e Yale
decidiu não insistir mais.
Lembrava-se da sensação de desconfiar que alguém sabia a verdade sobre
ele, numa época em que ainda nem sequer tinha admitido muita coisa a si
próprio, e não queria sujeitar Roman a isso. Quando era adolescente, uma
senhora de idade que trabalhava como caixa no supermercado costumava
olhar para ele como se fosse a coisa mais triste à face da Terra. Yale chegara
a pôr em dúvida as suas compras – será que comprar pastilha elástica o
fazia parecer gay? – e, ao fim de algum tempo, começou a arranjar
desculpas para conduzir dez quilómetros e ir ao supermercado mais
distante. E havia o senhor Irving, seu conselheiro de orientação na escola,
que cautelosamente, de testa franzida, perguntara a Yale se tencionava
procurar uma universidade com um «ambiente mais cosmopolita». A
avaliação destas duas pessoas causara-lhe mais impacto do que o
julgamento dos seus pares, que simplesmente lhe chamavam «maricas» ou
enfiavam tampões no seu cacifo. Porque isso também acontecia a outros
miúdos. Qualquer pessoa podia ver a sua roupa interior atirada à piscina,
qualquer pessoa podia ter de estudar, noite após noite, por um manual de
Química que já tinha estado ensopado em urina. Mas só os verdadeiros
maricas eram encarados com comiseração pelos adultos. E assim, embora
Roman não fosse propriamente um adolescente – na verdade, era poucos
anos mais novo do que ele –, Yale deixou o assunto de lado.
– A nossa prioridade – disse, quando pararam para meter gasolina em
Fish Creek –, além de estabelecer a ligação com alguns quadros existentes,
é obter datas. Se pudermos pelo menos ajudá-la a determinar o ano das
peças que não estão datadas... Sei que o que ela quer é contar-nos histórias,
mas o Bill vai ficar chateado se voltarmos sem uma cronologia.
Muitas das peças estavam assinadas, mas poucas estavam datadas. Os
Modiglianis, para sua grande frustração, pertenciam a este grupo.
– Eu tenho de voltar na sexta-feira o mais tardar – disse Roman.
Mas ainda era apenas segunda-feira e, embora Yale quisesse poder ficar
no Wisconsin para sempre, longe de Chicago, longe de Charlie, disse:
– Não estou a contar que demore mais de dois dias. Tem grandes planos
para o fim de semana?
– Ela está mesmo a morrer? – Roman limpou o para-brisas enquanto Yale
metia gasolina. Vestia um casaco preto e calças de ganga pretas. Yale nunca
o vira vestido de outra cor que não preto e, fora do contexto urbano, parecia
velho, deprimido.
– Ao que parece, a insuficiência cardíaca congestiva é uma bomba-
relógio. Temos de partir do princípio de que cada visita pode ser a última.
Portanto, primeiro o panorama geral, e os pormenores mais coloridos
depois.
No carro, Roman disse:
– Gostava de saber como conseguiu que ela confiasse em si tão depressa.
Yale pensou em fingir ignorância, mas decidiu não o fazer.
– Creio que lhe faço lembrar o sobrinho-neto. Éramos bons amigos. Ele
morreu em outubro.
– Oh!
– Tinha sida.
Roman olhou para a janela.
– Lamento muito a sua perda.
Jantaram em Egg Harbor e ficaram na estalagem. Nora dissera-lhes que
as manhãs eram a melhor altura para ela e, assim – sem a influência de Bill
Lindsey e das suas infindáveis garrafas de vinho –, deitaram-se cedo.
Através da parede da casa de banho, Yale conseguia ouvir Roman a escovar
os dentes e a cuspir a água. Os lavatórios dos dois quartos deviam estar
encostados à mesma parede. Podia dizer «boa noite» e ele ouviria, mas
porquê tornar as coisas mais estranhas?
No dia seguinte, encontraram Nora sentada em frente da lareira, com uma
garrafa pulverizadora de plástico na mão, sem cadeira de rodas à vista.
– Posso oferecer-vos um café? – perguntou ela, o que fez Debra dirigir-se
à cozinha com má cara, como uma empregada de mesa mal paga. – Roman
– disse, pronunciando «Ro-máne», como se ele fosse espanhol –, importa-se
de me dar uma ajuda com isto? – Referia-se à garrafa pulverizadora. – A
Debra não acha que sirva para nada. É água de hortelã, para os ratos. – Yale
e Roman olharam ambos em volta. Não havia roedor algum à vista. – É
para os manter à distância. Importa-se de pulverizar junto aos rodapés? E
nos parapeitos das janelas também.
– Eu... claro. – Roman levantou-se, deixando o bloco de notas e a caneta
no sofá ao lado de Yale.
Yale queria iniciar a conversa devagar e seguir uma progressão lógica.
Tinha pensado em várias maneiras de enquadrar a conversa, mas nenhuma
delas tinha a ver com roedores e spray de hortelã. Procurou a lista de obras
na pasta, mas Nora já estava a falar.
– Tenho andado muito aborrecida – disse ela, e depois parou e olhou para
Yale como se este soubesse exatamente porquê. – Aqueles papéis que
assinámos... Devia ter pedido ao Stanley que me explicasse melhor.
– Oh! Há alguma coisa que...
– Aquilo que falámos, sobre garantir que as obras são todas expostas com
igual destaque, não consta dos documentos.
Roman estava de pé junto à lareira, a rodar o bocal da garrafa para tentar
acertar na posição de pulverizar. Yale ouviu, na cozinha, a máquina de café
a trabalhar e Debra a bater com as coisas.
– Certo. Certo. É mesmo assim. Por vezes, há quem faça um acordo de
doação mais específico, com detalhes, mas isso dá muito trabalho. Garanto-
lhe que não me esqueci dos seus desejos.
– Oiça – disse ela. – Não sou nenhuma idiota. Sei que o trabalho do
Ranko não é algo que vocês tenham vontade de pôr em exposição, em
circunstâncias normais. Mas também não é mau.
– Eu adoro as duas pinturas! – disse Roman. Estava a pulverizar ao lado
da estante dos discos. – A perspetiva é muito invulgar, não é? Quase como
se fosse hesitante e fortuita ao mesmo tempo. Mas no bom sentido, como se
ele estivesse prestes a descobrir alguma coisa. – Roman nunca dissera isto,
e Yale não sabia se ele estava a mentir ou se decidira calar-se na galeria, por
conhecer a opinião desfavorável de Bill.
– Gosto do seu estagiário – disse Nora. – Já em relação ao seu patrão, não
posso dizer o mesmo.
– Eu serei o seu representante nesta questão – disse Yale, e preparava-se
para dizer mais, quando Nora o interrompeu.
– Vou falar-lhe sobre o Ranko. Sei que tem a sua própria agenda, mas, se
quiser saber mais sobre o Soutine, pode ir à biblioteca. Os historiadores de
arte podem dizer-lhe mais do que eu em relação à maior parte das obras.
Contudo, não encontrará muito sobre o Ranko, e tenho de o fazer enquanto
posso. – E, depois, quase como um aparte: – E sobre o Sergey Mukhankin
também.
– Podemos falar sobre as peças por ordem cronológica, e quando
chegarmos ao Ranko dá-nos esses pormenores. Tenho uns catálogos no
carro que...
– Não. – Nora abanou a cabeça como uma menina obstinada que, por
acaso, era quem mandava ali. – Vou contar-lhe as histórias mais importantes
primeiro, depois as seguintes, e por aí fora. E a primeira é sobre a época
antes da guerra, quando o Ranko foi sequestrado para o Prix de Rome.
– Como assim?
– Não afaste as mobílias – disse Nora a Roman –, se pulverizar debaixo
do sofá deve ser suficiente.
Yale levantou os pés enquanto Roman o fazia.
– Ele era sérvio – disse Nora. – Mas nascido em Paris, criado lá.
Roman é que devia tirar apontamentos mas, uma vez que estava ocupado,
Yale pegou no bloco. Havia agora no ar um cheiro a hortelã agradavelmente
antissético.
– Frequentávamos escolas diferentes. O meu pai era francês – continuou
ela – e, quando eu decidi estudar Artes, ele levou-me a sério e achou que
não fazia sentido estudar em Filadélfia. – Falava depressa mas com pausas
entre as frases, como uma nadadora a vir à superfície respirar. – A escola
mais importante em Paris, como imagino que saiba, era a École des Beaux-
Arts, mas não aceitavam mulheres e, mesmo que aceitassem, eram muito
retrógrados. Escrevi a duas escolas e uma delas era a Académie Colarossi.
E – riu-se – vou dizer-lhe o que me impressionou mais: lá, podia desenhar
nus masculinos com modelos ao vivo. Era a desculpa que usavam naquele
tempo para manter a maioria das mulheres fora das escolas, percebe? Não
podemos ter alunos do sexo feminino, há homens nus! Portanto, decidi-me
pela Colarossi – soletrou o nome da escola para Yale, que já o conhecia mas
ainda estava duas frases atrasado – e o meu pai foi-me levar. Estávamos em
1912 e eu tinha dezassete anos.
Roman agachou-se para pulverizar a ombreira da porta da casa de jantar e
as costas da t-shirt preta subiram e deixaram ver um pouco de pele.
– O combinado era eu ficar em casa da tia do meu pai, a tante Alice. Ela
estava senil e nunca saía da cama. A ideia era que a enfermeira que cuidava
dela me mantivesse na linha, mas a pobre mulher não sabia como. Fazia-me
torradas de manhã e, basicamente, resumia-se a isso a sua supervisão. Nesse
outono, havia uma aula de Anatomia na Colarossi que era aberta ao público.
Sabe, para estudar o funcionamento interno do joelho, esse tipo de coisas. A
Beaux-Arts tinha aulas semelhantes, mas esta era especial, ia ser dada por
um professor convidado, pelo que alguns dos alunos das outras escolas
também apareceram.
Roman estava de volta e, como um corredor de estafetas, tirou a caneta da
mão de Yale, que olhou para a sua lista, para os espaços vazios ao lado do
nome de cada peça à espera de uma data, e percebeu que ainda não podia
acrescentar nada a não ser 1912 – chegada a Paris.
– E, ao meu lado, estava um homem de cabelo escuro e encaracolado...
parecido com o seu, Yale, só que ele tinha o rosto mais comprido... e,
enquanto ali estava, fez uma coroa de clipes de papel. Uniu-os uns aos
outros até formar um círculo e depois colocou-a na cabeça. E ali ficou,
sentado, como se fosse absolutamente normal, com o sol a refletir-se no
metal dos clipes. Quis pintá-lo, foi o meu primeiro pensamento, mas no
minuto seguinte estava apaixonada. Nunca tinha compreendido como os
artistas se apaixonam pelas suas musas. Pensei que era só uma desculpa de
uma data de homens que não conseguiam ter as calças vestidas. Mas aquela
necessidade de o pintar e de o possuir... eram o mesmo impulso. Não sei se
faz sentido, mas foi assim.
Yale tentou dizer uma coisa, mas não sabia como começar. Tinha a ver
com um passeio que dera uma vez com Nico e Richard à volta do lago em
Lincoln Park, com Nico e Richard a partilharem a máquina Leica de
Richard. Nesse dia, Yale apercebera-se de que ambos tinham uma forma de
interagir com o mundo que era simultaneamente egoísta e generosa –
apoderavam-se da beleza e refletiam-na de volta. Os bancos e bocas de
incêndio e tampas de esgoto que Nico e Richard paravam para fotografar
tornavam-se mais belos quando os dois homens reparavam neles. E ficavam
mais belos depois de eles se afastarem. Ao final do dia, Yale deu por si a
ver as coisas rodeadas de molduras, a admirar a forma como a luz incidia
nos postes da cerca, com vontade de devorar as ondulações do sol na
montra de uma loja de discos.
– Compreendo o que quer dizer, a sério – disse.
Roman, entretanto, suava, tinha o rosto brilhante. Yale não sabia se era a
conversa sobre amor que estava a deixá-lo nervoso ou se estaria a ficar
doente. A forma como se agitou no sofá, inquieto, fê-lo suspeitar de que
seria a primeira hipótese. Bom, a última coisa de que Yale precisava neste
momento era de uma história de amor.
– No dia seguinte, o Ranko tinha organizado um piquenique e convidou-
me para ir também. E pronto, perdi-me. Ele tinha o cheiro certo, como um
armário escuro. Uma grande parte do sexo está no nariz. Acredito piamente
nisso. E ele também estava apaixonado por mim.
Parou, com um dedo no ar, e pareceu concentrar-se na respiração durante
alguns instantes. Yale sentiu-se tentado a fazer uma pergunta, só para
preencher o silêncio, mas aqui estava Debra, com grandes canecas brancas
de café para Yale e Roman. Sem açúcar, sem natas: apenas um café tão
diluído que se conseguia ver o fundo da caneca. Roman pegou na caneca e
pousou-a imediatamente na mesa. Debra encostou-se à ombreira da porta,
de braços cruzados, uma estátua de impaciência entediada.
– Ainda estamos a falar do Ranko?
Yale assentiu com um aceno. Roman disse:
– Estávamos a falar dos clipes.
– Foi só por causa dele que ela vos deu as obras de arte. Sabem disso,
certo?
– Não o nego – disse Nora, antes que Yale decidisse o que havia de
responder.
Roman perguntou-lhe o que queria dizer e Debra riu-se alto.
– Setenta anos é muito tempo para estar obcecada por alguém – disse. –
Não acham? Quer dizer, acredito que ele fosse um tipo fantástico, mas
morreu há séculos e, mesmo assim, ela ainda o põe acima da família.
– Não vejo o que isso tem a ver com o facto de ter doado a arte à Brigg...
– começou Roman.
– Debra – disse Yale. E depois percebeu que não fazia ideia do que havia
de dizer. Estava apenas desesperado por quebrar a tensão, por mudar de
assunto. – Posso pedir-lhe um pouco de açúcar?
E, quando ela saiu intempestivamente em direção à cozinha, Yale
levantou-se para a seguir e fez sinal a Roman para continuar a escrever.
Debra abriu o frigorífico e olhou para o interior; com certeza não era aqui
que guardavam o açúcar, mas Yale na realidade não queria açúcar. Estava
apenas com esperança de que Debra não o odiasse tanto como ao princípio.
Ela seria um recurso precioso, depois de Nora morrer.
– Deve ser muito esgotante, ter de tomar conta dela – disse.
Debra não respondeu.
– Tanto a nível emocional como financeiro. Oiça, se quiser mandar
avaliar as joias, tenho todo o gosto em lhe apresentar as pessoas indicadas.
Não acho boa ideia levá-las a uma loja qualquer. Se estiver interessada no
valor monetário... bom, talvez tenha uma surpresa. Até conheço uma pessoa
em Chicago que estaria disposta a vir aqui para o fazer. Se eu lhe pedisse
esse favor.
Debra virou-se. Por alguma razão, tinha na mão um frasco de mostarda.
Os seus olhos ainda estavam húmidos.
– É muito amável – disse, inexpressiva.
– Não dá trabalho nenhum.
– Nunca estive zangada consigo pessoalmente, sabe? Seria mais fácil
odiá-lo se você fosse um imbecil. É assim que consegue o que quer das
pessoas, não é? Com simpatia. E nem sequer é uma simpatia falsa.
Yale sempre se considerara boa pessoa, mas Charlie talvez tivesse outra
opinião. E Teddy também. Encolheu os ombros e disse:
– Não, não é falsa.
Para sua estupefação, Debra sorriu-lhe.
Quando voltaram, Nora estava a contar a Roman que se mudara para casa
de uma colega da Académie divorciada.
– Era um pequeno apartamento por cima de um sapateiro na Rue de la
Grande Chaumière. Oh, céus – disse a Roman –, por acaso fala francês?
– Na verdade, sim. Eu... a minha tese é sobre Balthus e...
– Ha! Esse tarado! Bom, ótimo, então sabe escrever as palavras. O marido
ainda a sustentava, mandava-lhe dinheiro todos os meses. Eu subornei a
bonne da minha tia com meia dúzia de francos e a pobre velhota estava
demasiado demente para reparar que eu já lá não estava.
Yale sentou-se e tentou ver o que Roman tinha escrito, mas ele não
adiantara grande coisa. Debra puxou uma cadeira da sala de jantar e sentou-
se.
– Portanto, esses foram os meus anos de estudante. Desenhar, pintar, estar
com o Ranko. Os esboços da vaca são dessa época, de uma viagem que
fizemos pela Normandia. Março de 1913, penso eu.
Yale apontou a data ao lado dos espaços vazios em frente dos três esboços
de Ranko Novak. Os mais insignificantes dos detalhes que tinha recebido
instruções de descobrir. Se voltasse apenas com as datas dos esboços das
vacas, Bill pensaria que era uma partida.
– Queríamos casar mas tivemos de esperar, porque em abril o Ranko
candidatou-se ao Prix de Rome. Não era apenas um prémio, era um
concurso para estudantes que tinha lugar ao longo de um ano e em que os
candidatos iam sendo eliminados um a um. Como a Miss América, quando
a cada ronda mandam sair aquelas pobres raparigas lavadas em lágrimas.
E... adivinhem?... só se podiam candidatar homens solteiros. E tinham de
ser franceses. Claro que houve outro estudante qualquer que levantou
problemas, a insinuar que o Ranko não era verdadeiramente francês... por
causa do nome, suponho, por não se chamar Renée... mas permitiram-lhe
que continuasse, ainda assim. No entanto, isso abalou-o.
«Ele era bastante frágil. E estranho! Ele é que nunca devia ter entrado
para as Beaux-Arts. Era a escola do poder instituído, percebe, e queriam
domá-lo. Naquela época de boémia, a última coisa que alguém queria era
uma palmadinha nas costas e a aprovação dos velhos porta-estandartes. Por
causa deles, o Ranko estava sempre a controlar a sua originalidade.
Infelizmente, acabou por funcionar. Ele poliu o seu trabalho até eles o
adorarem.
– Aquelas duas pinturas não parecem polidas – disse Roman.
– Pois, exatamente. Os professores nunca lhes puseram a vista em cima.
A pintura da menina... foi feita mais ou menos na mesma altura, à pressa.
Supostamente seria eu; ele pintou-me como imaginava que eu teria sido em
criança. Muito longe da verdade, infelizmente, mas mesmo assim essa obra
tinha alma. O trabalho que fez para eles, por outro lado, era polido e
unidimensional e religioso. E ele era ateu!
«Foi progredindo no concurso e, no fim daquela provação toda, os artistas
eram sequestrados num estúdio no Château de Compiègne durante setenta e
dois dias. Setenta e dois! Imaginem! E davam-lhes um tema para pintar.
Primeiro tinham doze horas para o esboço, e depois dez semanas para
pintar, e não podiam afastar-se do esboço. Quem é que decidiu que um
artista não pode mudar de ideias? Assim, ele esteve fechado durante setenta
e dois dias e eu fiquei à espera, cheia de saudades.
– Ele não podia escrever-lhe? – quis saber Roman.
– Não! Foi a pior época da minha vida. Bom, digo isto mas na realidade
estava mais apaixonada a cada dia. Há coisa mais romântica do que esperar
por um amante que está fechado num château? Perdi dez quilos.
«Não me lembro do tema que lhe deram, mas o que ele produziu foi uma
pietà rígida. Parecia saída de uma procissão de Páscoa, foi o que eu achei. E
venceu. Venceram três estudantes, na realidade, o que foi um escândalo.
Não tinham entregado o prémio no ano anterior e, antes disso, o vencedor
fora obrigado a devolver o prémio por um motivo disparatado qualquer,
portanto havia três vagas na Villa Medici em Roma, que era para onde
seriam enviados os vencedores do concurso. Para ser honesta, noutro ano
qualquer o Ranko não teria vencido. Toda a gente sabia que o trabalho dele
ficara na realidade em terceiro lugar, e ele também o sabia.
«Portanto, já estão a imaginar: o amor da minha vida isola-se do mundo
durante meses, e o seu prémio são três a cinco anos em Roma. E não
podemos casar agora, porque não há lá lugar para uma mulher. Ele ficou
extasiado e eu fiquei arrasada.
– Aí está – interrompeu Debra. – Compreendo que se dedique a vida à
memória de alguém que valha a pena, mas ele era um idiota.
Silenciosamente, Yale teve de concordar. Talvez Ranko não fosse má
pessoa – o prémio parecia ser a oportunidade de uma vida – mas, se a
jovem Nora tivesse pedido conselhos amorosos a Yale, ele ter-lhe-ia dito
para não perder mais tempo e seguir com a sua vida sem ele.
– Depois, nesse verão, aconteceram duas coisas. Uma, vocês já sabem:
aquele homem horrível teve de matar o arquiduque e começar uma guerra, e
eu tive vontade de o matar a ele. Mas a outra foi que o meu pai também
morreu, de repente. Assim, num minuto a viagem do Ranko para Roma foi
adiada, e no minuto seguinte eu fui chamada para regressar a casa.
Roman fez um ruído solidário e sublinhou a palavra morreu nos seus
apontamentos.
– Estava tudo num caos, como podem imaginar. Eu não tencionava partir,
tencionava ficar com o Ranko. Quase fiquei contente com a guerra, de uma
forma horrivelmente egoísta. Mas Paris estava a tornar-se perigosa e a
morte do meu pai significava que eu não tinha dinheiro para continuar a
estudar... e depois, em agosto, o Ranko disse-me que ia ser mobilizado. Eu
nem sequer sabia que essa possibilidade existia.
«Chorei dois dias seguidos e decidi que voltaria para casa. Foi
extremamente difícil sair de lá, com toda a gente a querer marcar passagens
ao mesmo tempo. Regressei a Filadélfia, onde estava a minha mãe, e
comecei a dar aulas de Desenho a umas criancinhas insuportáveis.
– Mas voltou a Paris mais tarde – disse Roman. – Todas as outras peças
são posteriores a essa época, certo?
– Sim – confirmou ela, e depois sucumbiu a um ataque de tosse profunda
que lhe sacudiu todo o corpo. Debra levantou-se de um salto e desapareceu
na cozinha, e Yale levantou-se, sem saber o que fazer. Estava muito
habituado à tosse da pneumonia pneumocística, uma espécie de latido seco
que ouvia nas ruas e nos bares, uma tosse que lhe fazia lembrar uma peste
de tipo mais medieval. Lembrou-se de Jonathan Bird, o antigo companheiro
de casa de Nico, dizer:
– Com esta tosse toda, só gostava de conseguir cuspir qualquer coisa.
A tosse de Nora, por outro lado, era tão húmida que ela parecia estar a
afogar-se. Debra voltou, com um pedaço de papel de cozinha e um copo de
água.
Yale saiu por um momento para a sala de jantar e fez sinal a Roman para
se juntar a ele. Pelo menos podiam dar algum espaço a Nora.
Roman murmurou:
– Ele morreu na guerra, não foi? O Ranko Novak?
Yale encolheu os ombros.
– Quer dizer, não me parece que esta história tenha um final feliz.
– É tão bonito – disse Roman. – Um amor condenado.
Yale riu-se.
– Acha? – E depois não conseguiu parar de rir. O que era terrível, porque
Nora continuava a tossir e Roman parecia magoado. Mas a expressão
sonhadora no rosto de Roman, o seu tom de voz, tinham espicaçado o lado
mais negro do sentido de humor de Yale. Que bonito, o amor condenado!
Que maravilhoso e idílico, as formas como nos abandonamos uns aos
outros! As guerras encantadoras em que morremos, a poesia da doença!
Teve vontade de ligar a Terrence e dizer-lhe: «Vocês eram como o Romeu e
a Julieta! O Romeu e a Julieta também morreram a vomitar as entranhas. O
Tristão e a Isolda morreram com quarenta quilos e sem cabelo. É tão bonito,
Terrence. Tão bonito!»
– Sente-se bem? – perguntou Roman.
A tosse de Nora estava finalmente a passar.
– Se calhar devíamos parar por hoje – disse Roman.
E depois Debra apareceu à porta, a sugerir o mesmo.
– Já ultrapassámos em muito o que eu a devia ter deixado fazer – disse
ela. – E se continuassem amanhã?
Parecia maravilhoso: a garantia de mais uma noite ali, longe da cidade,
longe de todas as pessoas que conhecia. Se pelo menos conseguisse esticar
isto uma semana e, depois, um mês. Ali não havia cartazes a incentivá-lo a
fazer a análise. Podia ficar em casa de Nora e mandar Debra viver a sua
vida.

No carro, Yale disse:


– Se ela morrer durante o sono esta noite, dê-me um tiro, está bem?
– Agora que o disse, não vai acontecer.
Os bancos do carro estavam gelados e o volante lançou vagas de frio
através das luvas de Yale.
– Não sei se tenho esse tipo de poder sobre o universo.
– Quando pensamos que uma coisa má específica vai acontecer, nunca
acontece. Não quero dizer que se pensarmos que não vai chover, não chove,
mas, se pensarmos que o avião vai cair, nunca cai.
Yale abanou a cabeça.
– Quem me dera viver no seu mundo. A desgraça é bonita e consegue
controlar o seu destino. – Embora, provavelmente, fosse uma fé de que
Roman precisasse desesperadamente. Porquê querer tirar-lha? Não havia
nada que Yale pudesse dizer-lhe que o mundo não acabasse por lhe ensinar
um dia.
Pararam para um almoço tardio no mesmo sítio onde tinham jantado na
véspera e Yale comeu os mesmos filetes de peixe e bebeu duas cervejas.
Quando chegaram à estalagem, a senhora Cereja correu para eles, a agitar
as mãos.
– Oh, é terrível, não é? Os vossos quartos têm a NBC e a CBS, mas a
ABC não tem muito boa receção. Também devem apanhar a PBS, acho eu,
mas nunca se sabe se eles dão as notícias. Se fosse a vocês, tentava a CBS.
Yale estava a abrir a boca para lhe perguntar do que estava a falar, para
dizer que não tinham estado perto de um televisor o dia todo, mas Roman já
estava a perguntar em que canal era a CBS e a acenar em concordância
enquanto a senhora Cereja dizia outra vez como era terrível. No entanto,
não parecia lá muito aflita – não podia ser o fim do mundo.
– Deixem-me perguntar-vos uma coisa – disse ela –: os senhores bebem
vinho? Um casal de jovens saiu esta manhã e deixou uma garrafa cheia no
chão. Esperem aí, que vou buscá-la.
Tiveram tempo apenas para se entreolhar, confusos, antes de ela voltar
com uma garrafa de vinho de morango local, vermelho como xarope para a
tosse, a garrafa já meio peganhenta quando a colocou nas mãos de Yale.
– Ou, se quiserem, levem-na para a família – sugeriu ela, e Yale
agradeceu, garantiu-lhe que eles gostavam de facto de vinho e que lhe
dariam bom uso.
Yale ia dirigir-se ao seu quarto, mas Roman chamou-o da porta do dele.
– Não quer saber o que está a dar na CBS?
Yale queria e, além disso, não queria descobrir sozinho se fosse qualquer
coisa como uma declaração de guerra da Rússia. Levou o vinho e entrou no
quarto de Roman.
– O que será pior, as notícias ou o vinho? – disse.
Em cima da cómoda havia um cesto com um saca-rolhas, guardanapos e
copos de plástico. Yale serviu um copo a cada um – com copos deste
formato, era difícil avaliar a quantidade de vinho – e fizeram um brinde.
Yale esperava sentir a boca cheia de xarope, mas o vinho tinha uma acidez
natural por trás da doçura, de tal forma que era ao mesmo tempo demasiado
doce e demasiado ácido.
Sentou-se na beira da cama de Roman. Da mala dele, aberta no chão,
derramavam-se roupas pretas, como lava.
Roman tinha ido acender o televisor – estava muito perto da cama, em
cima da cómoda – e agora estava a bloquear a imagem. Yale só conseguia
ver as costas e o traseiro dele.
– Oh! – exclamou Roman. – Oh, céus.
– O que foi?
– O, hã... o vaivém espacial. Explodiu.
– Merda. Saia da frente.
Roman sentou-se ao lado dele, de pernas cruzadas. Tirou os óculos e
voltou a pô-los.
Dan Rather estava a explicar, no estúdio, que alguma coisa correra mal,
um minuto e doze segundos depois de o vaivém descolar. Ao vivo em cabo
Canaveral, um homem sentado atrás de uma secretária ao ar livre tentou
explicar o que acontecera e falou sobre os grandes pedaços da nave que
tinham caído no oceano. Mostraram o vaivém a descolar nessa manhã, e
parecia estar tudo a correr tão bem durante tanto tempo, que Yale quase
acreditou que, afinal de contas, não aconteceria nada. E depois explodiu
numa bola de fumo, com duas colunas descendentes.
– Meu Deus, era nesta viagem que ia aquela professora – disse Yale.
– O quê?
– Sabe, houve um concurso para levar um professor ao espaço. Aquela
mulher. Oh, céus.
– Sim? – disse Roman. – Bom, não costumo ver as notícias.
Yale também não estaria dentro do assunto, se Kurt Pearce não tivesse
falado nisso no outro dia – que agora andávamos sempre para a frente e
para trás no espaço, e que Kurt planeava viver na Lua quando tivesse vinte
anos.
O joelho esquerdo de Roman estava a tocar no joelho direito de Yale, ou
pelo menos o tecido das suas calças pretas a roçar nas calças de caqui de
Yale. Este pensou se seria intencional, se Roman ficaria com os sentimentos
feridos caso ele se afastasse.
– Bom, era uma coisa muito importante. Merda – disse Yale.
– Não têm mais vaivéns espaciais? – perguntou Roman.
– Como assim?
– Quer dizer, têm uma frota deles, ou era só este?
– Há... – Parecia uma pergunta fácil, mas Yale descobriu que não tinha a
certeza da resposta. – É um de cada vez. Este era o atual.
Deu por si a emborcar o vinho. Ainda era dia, mas parecia muito mais
tarde. As cortinas do quarto de Roman estavam corridas, as persianas
fechadas por trás delas.
Roman deixou-se cair para trás em cima da cama, ainda de pernas
cruzadas, o joelho ainda encostado ao de Yale, e equilibrou o vinho em
cima da barriga com a ajuda de um dedo enfiado no copo.
Yale teve tempo para pensar o pensamento completo, com todas as
palavras: não podia ir para a cama com Roman. Nem agora, nem nunca.
Nem agora, porque podia estar infetado. Nem nunca, porque era
supostamente o mentor de Roman. Não tinha a certeza das regras que
existiam quanto a relações entre professores e alunos de doutoramento na
Northwestern, mas calculava que existissem, e imaginou que se aplicariam
igualmente a ele. Nem nunca, porque não estava interessado em ajudar um
virgem confuso qualquer a perceber a sua sexualidade. Nem nunca, porque
Roman, apesar do doutoramento iminente, não era lá muito inteligente e
esse tipo de coisas era importante para Yale.
– É arrogância – disse Roman. – É o que é. Por exemplo, quando
ouvimos a história da vida da Nora... é tão recente. Mas ela tinha de
apanhar um transatlântico para chegar à Europa, percebe? E agora achamos
que podemos mandar autocarros espaciais para lá e para cá.
Yale queria perguntar-lhe se os astronautas podiam ter evitado o desastre
se receassem que ele ia acontecer, mas isso teria sido desagradável. Era
terrivelmente triste. Era tudo terrivelmente triste.
– Sabe o que é pior do que acontecer uma coisa má? É quando uma coisa
devia ser mesmo boa, e toda a gente esperava que fosse maravilhosa, e
depois em vez disso corre mal. Porque será que isso é muito pior?
O apresentador estava a dizer que Reagan cancelara o discurso do Estado
da União que tinha programado para aquela noite, mas que certamente
falaria do desastre. De súbito, Yale sentiu umas saudades desesperadas de
Charlie. Queria Charlie ali consigo, a gritar para o televisor que aquilo de
que Reagan «certamente falaria» nem sempre seguia a lógica normal. Meia
dúzia de astronautas mortos e Reagan chorava com a nação. Treze mil
homens gays mortos e Reagan estava demasiado ocupado.
Quando as notícias deram lugar à publicidade, Yale aproveitou a
oportunidade para se levantar da cama, baixar um pouco o volume,
reabastecer o copo e voltar a sentar-se, mais afastado de Roman.
Depois, o televisor mostrou as crianças que se tinham reunido na escola
para assistir ao lançamento. Mostrou a equipa de terra a dar uma maçã à
professora. Era difícil não olhar, e mais difícil ainda continuar a olhar. O
vinho estava a afetá-lo mais do que esperava. Bom, a cerveja e o vinho. E a
penumbra do quarto, e as horríveis colunas de fumo no ecrã.
– Quando penso na morte – disse Roman –, começo a questionar tudo.
Yale não queria falar sobre morte.
– Às vezes questionar as coisas pode ser bom.
– Não consigo deixar de pensar no Ranko. Que romântico. Quer dizer, ele
estava literalmente preso num castelo. E ela cá fora, à espera dele.
– Para ser franco, pareceu-me horrível.
– Mas não inveja o que a Nora teve? Houve muita desgraça, mas foi
como se ela pertencesse a algo, percebe?
Yale foi cuidadoso.
– Quer dizer... também pode encontrar isso em Chicago. Essa sensação de
pertença.
– Talvez seja esse o meu problema. Estou preso em Evanston, a olhar
para quadros.
– Eu só vim para a cidade aos vinte e seis anos – disse Yale.
De súbito, ocorreu-lhe que devia juntar Roman com Teddy. Afinal de
contas, Teddy estava saudável e consideraria Roman um projeto divertido.
Um cachorrinho para treinar.
– Oiça, tem de vir mais vezes a Lakeview. Verá que tem muito mais em
comum com as pessoas de lá do que com as de Evanston. Bons bares, gente
divertida. Um ambiente mais descontraído.
– Este teto é esquisito – disse Roman e, sem que tivesse dado ao corpo
uma ordem consciente para o fazer, Yale deitou-se ao lado de Roman, com
as pernas ainda penduradas sobre a beira do colchão. Não havia nada
particularmente esquisito no teto. Era apenas estuque. Roman tinha acabado
de beber e atirou o copo de plástico para o chão.
– Sou demasiado complicado – disse.
– Não é nada. – Yale virou a cabeça para ele e desejou que Roman
conseguisse ver a sinceridade no seu olhar.
Roman estendeu a mão e, com as pontas dos dedos, tocou no pescoço de
Yale, na sua camisola verde. Yale susteve a respiração e ficou a olhar para o
rosto de Roman, que tremeluzia sob a luz azul e amarela do televisor. Devia
dizer-lhe para parar. Mas talvez fosse a primeira vez que Roman fazia algo
tão ousado. Talvez, se o rejeitasse neste momento, ele não voltasse a correr
aquele risco. E enquanto pensava estas coisas, paralisado, Roman deslizou
os dedos pelo braço de Yale, até à costura exterior das suas calças. Yale
sentiu-se preso à cama pelo açúcar do vinho, pelo álcool, pela languidez
vespertina. Por, para ser honesto, uma ereção que lhe esticava agora os
boxers e pressionava a coxa esquerda.
Roman parecia aterrorizado, e tão jovem, e Yale tirou a mão dele da sua
perna mas, em vez de a largar, segurou-a e entrelaçou os dedos nos dedos
compridos e pálidos de Roman. Olharam um para o outro e Yale apercebeu-
se de que ninguém lhe tocava, realmente, desde que a sua vida se
desmoronara. Teresa abraçara-o quando ele chegara a casa, do Wisconsin,
naquele dia. Fiona abraçara-o no funeral de Terrence. E mais nada. E ser
tocado era a fraqueza de Yale, sempre fora. Por vezes, as pessoas diziam, a
brincar, que não tinham tido carinho suficiente em crianças, mas no caso de
Yale isso era terrivelmente literal, como um défice de vitaminas.
Roman murmurou:
– Não sei o que quero.
Estava a tremer, ou pelo menos a sua mão estava. Os óculos, empurrados
pela almofada, emolduravam-lhe o rosto de forma assimétrica.
Menos de quinze minutos antes, Yale pensara em várias razões pelas
quais não podia acontecer nada, mas agora não se lembrava delas. Bom,
podia estar infetado. Essa era uma. Mas isso não excluía tudo, pois não?
Queria o televisor apagado. Disso tinha a certeza. Isto requeria
movimento, e foi o que fez: largou a mão de Roman, levantou-se da cama e
pressionou o botão com o polegar suado.
Sentia os pés instáveis na carpete. Lembrou-se daquela noite em
dezembro, em que passara uma e outra vez em frente do apartamento de
Julian, sem entrar. Era possível que isso lhe tivesse salvado a vida.
E contudo, agora, queria fazer o oposto de tudo o que alguma vez fizera.
Olhou para a porta, à espera de se ver a caminhar na direção dela – mas na
verdade estava sentado de lado na beira da cama, com uma perna para cima
e outra para baixo. Roman sentou-se e encostou-se a ele, as costas contra o
seu peito, a nuca encaixada por baixo do queixo de Yale. Yale enfiou a mão
dentro da camisa de Roman, encontrou a braguilha, abriu-a. Só com a mão,
a mão direita, puxou-o para fora das cuecas, e depois pousou a mão
esquerda no peito de Roman para que ele ficasse onde estava e sentiu o
coração dele estremecer. Esfregou lentamente, até Roman começar a
movimentar-se ao ritmo dos seus gestos, e depois acelerou, apertou mais.
Quando fora a última vez em que masturbara alguém até ao fim? Charlie
não era grande fã disso, embora tivesse sido com certeza com ele a última
vez, mas já devia ter sido há um, dois anos. No ângulo em que estavam –
Roman encostado a ele, ofegante, quase a sufocar, com os ombros de um e
outro alinhados, as ancas também – não era uma técnica muito diferente do
que se estivesse a masturbar-se a si próprio.
– Relaxa – murmurou, e Roman apoiou-se mais nele.
A ereção de Yale estava a pressionar o fundo das costas de Roman, mas
na realidade não era isso que interessava. O que interessava era que Roman
parecia precisar disto – Yale não sabia até que ponto, mas imaginava – e
Yale também precisava.
Roman apoiou as mãos nos joelhos de Yale e, com um gemido, veio-se
para a frente da cómoda, para as gavetas estreitas com puxadores de metal,
logo por baixo do televisor.
E depois, antes que qualquer um deles conseguisse sequer respirar fundo,
Roman levantou-se de um salto, apanhou uma t-shirt preta do chão e
começou a limpar a cómoda como se tivesse medo de que alguém entrasse
de repente.
– Senta-te – disse Yale. Tirou a t-shirt da mão de Roman e limpou o resto.
Quando acabou e enrolou a t-shirt numa bola que enfiou ao canto da mala,
Roman estava deitado de barriga para baixo na cama, com os braços abertos
como se estivesse crucificado.
– Queres que eu fique ou que saia? – perguntou Yale.
Não fazia ideia do que teria escolhido se fosse ele, mas Roman disse, sem
levantar o rosto da cama:
– Acho que quero ficar sozinho.
Yale regressou ao seu quarto, abriu a torneira do chuveiro e pensou,
vagamente, em se masturbar, mas, quando a água aqueceu, já não lhe
apetecia. Palpou os nódulos linfáticos nas virilhas para ver se estavam
inchados, decidiu que estava demasiado tonto para se enfiar no chuveiro,
deitou-se na cama e pensou em procurar um canal de televisão que não
estivesse prestes a mostrar a cabeça gigante de Reagan. Adormeceu sem
jantar.

Yale estava sentado a uma mesa pequena e redonda na sala do pequeno-


almoço – ressacado, com as têmporas a latejar, um sabor desagradável na
boca –, quando a senhora Cereja cumprimentou Roman à porta e o
conduziu à cadeira em frente a Yale. Roman olhou para o chão e depois
pegou no Door County Advocate e escondeu-se atrás dele.
Yale passara a manhã a perguntar a si próprio que raio lhe passara pela
cabeça, que ideia fora a sua, mas decidiu que devia agir de forma normal,
dar a entender que estava tudo bem, que homens gays saudáveis não tinham
de acordar na manhã seguinte consumidos pelo sentimento de culpa.
– Hoje temos mesmo de arrancar mais detalhes à Nora – disse. – Por mais
fascinante que seja a história do Ranko.
Talvez devesse ter dito outra coisa qualquer, algo mais simpático. Talvez
Roman achasse que Yale também estava a evitar o assunto. Mas começava
agora a ter a noção de que o resto da visita e a viagem de regresso seriam
longas, de que esta próxima semana seria terrivelmente embaraçosa. Na
noite anterior estava tão distraído com a questão da infeção, e tão satisfeito
com a forma como respondera às suas próprias dúvidas, que se esquecera
das questões mais mundanas: remorsos, sentimentos, expectativas,
vergonha.
A senhora Cereja trouxe-lhes torradas e disse:
– Não foi tão bonito o que o presidente disse ontem à noite? Autêntica
poesia.
– Calculo que sim – disse Yale.
– Não o viu?
– Eu vi – disse Roman. – Tem toda a razão. Poesia.

Roman olhou para a janela o caminho todo até casa de Nora. Yale pensou
em pedir desculpa, mas isso plantaria a semente de que se aproveitara da
sua posição. E, pior ainda, reforçaria quaisquer ideias que Roman tivesse de
que o sexo implicava vergonha, pedidos de desculpa. Podia fazê-lo
retroceder uns cinco anos.
Teriam sido a inexperiência e o sentimento de culpa de Roman a atrair
Yale? Ou teria ele sucumbido a qualquer pessoa naquele momento? Não lhe
parecia. Nunca se sentiria atraído por alguém que pudesse magoá-lo.
Tinha graça: Charlie achara que Roman não representava qualquer perigo
precisamente por ser tão virginal. Se calhar Charlie não o conhecia tão bem
como julgava.

– Hoje não podem fazê-la falar demasiado – avisou Debra. Yale garantiu-
lhe que tudo o que queriam era os detalhes em falta. Debra sentou-se no
patamar das escadas com o seu tricô, visível através da porta. Yale desejou
ter comido menos ao pequeno-almoço. Ou talvez mais, para absorver o
resto do vinho de morango que ainda lhe chocalhava no estômago.
Nora parecia realmente cansada. A sua pele, sempre pálida, tinha uma
sombra azulada, e os olhos estavam vermelhos. Quando Yale lhe disse que
tinham mesmo de determinar a moldura temporal das outras obras, ela não
levantou objeções.
– É tudo anterior a 1925, acho eu – disse. – Para o fim, eu já não fazia
muitos trabalhos de modelo. Em 1925, já estava noiva do David.
Roman sentou-se no sofá com Yale, mas o mais distante possível. Tinha a
pasta com as fotocópias que passara a semana anterior a organizar, rotular,
pôr em ordem cronológica, identificar num índice. Nora sugeriu que
organizassem as cartas por remetente.
– Será mais fácil para as datar.
Assim, enquanto Roman folheava a pasta, à procura das cartas de
Modigliani para colocar em primeiro lugar, Yale pegou no bloco e na caneta
e perguntou a Nora se se lembrava da data exata do seu regresso a Paris.
– Eu diria a meio da primavera de 1919. Tinha vinte e quatro anos e
sentia-me terrivelmente adulta. Em Filadélfia, já era considerada uma velha
solteirona.
– O que aconteceu ao Ranko? – perguntou Roman, e Yale teve vontade de
lhe apertar o pescoço. Na verdade, ele também queria saber, mas só depois
de ter a restante informação. De súbito, lembrou-se de que sonhara com
Ranko essa noite, com Ranko trancado no seu castelo. Yale estava a tentar
telefonar-lhe, a tentar convencê-lo a sair e a falar com Nora antes que ela
queimasse os quadros dele. O número que marcava, percebeu agora, era o
número do escritório do Out Loud.
– Bem – disse Nora –, era essa a minha dúvida. Não tinha tido notícias
dele entretanto, nem uma única carta. Por vezes, desejava que ele tivesse
morrido, porque isso significava que não me tinha rejeitado, e depois
desejava que ele me odiasse, porque isso podia querer dizer que ainda
estava vivo. Não pensem que estive esse tempo todo a definhar de amor por
ele. Tive alguns cavalheiros mais íntimos em Filadélfia, embora não fosse
ninguém com quem quisesse casar. Os rapazes com quem eu tinha crescido
estavam na guerra, pelo que me via limitada a... meu Deus, um deles era
vendedor de sapatos. Depois de todos aqueles jovens artistas excêntricos. Ia
morrendo de tédio.
Yale abriu a boca para perguntar como é que ela tinha começado a
trabalhar como modelo, mas não foi suficientemente rápido – o nevoeiro
mental não ajudava – e ela já estava lançada na sua história.
– Têm de perceber que não sabíamos quem estava vivo e quem estava
morto. Os meus amigos da Colarossi, até os professores. E, para além da
guerra, havia a gripe! De vez em quando chegava uma carta a dizer fulano
de tal morreu em combate. E mais tarde vínhamos a saber que ele tinha
morrido no hospital de campanha, e ninguém sabia se morrera dos
ferimentos ou da gripe. Mas, na maior parte dos casos, não havia notícia
nenhuma. Não vai encontrar muita coisa do Modi aí, meu querido – disse a
Roman. Mas ele continuou à procura. Yale pensou que ele podia estar a
esconder-se atrás da pasta para evitar o contacto visual.
– Regressei a Paris e Paris desaparecera. Não a cidade propriamente dita,
mas a... não sei se consigo explicar. Os rapazes tinham morrido, os nossos
colegas, ou tinham um braço ou uma perna a menos. Houve um estudante
de Arquitetura que regressou intacto, mas perdeu a voz por causa do gás
mostarda e nunca mais disse uma palavra. Nessa primavera, toda a gente
queria saber mais. Se encontrássemos um conhecido num café, mesmo que
fosse alguém que conhecíamos mal, corríamos para ele, dávamos-lhe um
beijo, trocávamos notícias sobre quem tinha morrido. Não é comparável
com mais nada. É impossível comparar com outra coisa.
Yale não estava a perceber.
– Comparar o quê?
– Bom, vocês! Os vossos amigos! Não se pode comparar com outra coisa
senão com a guerra!
Roman estacou – Yale viu, pelo canto do olho, os seus dedos pararem de
folhear as páginas – e Yale quis tranquilizá-lo, dizer-lhe que não podia ter
apanhado nada da mão de Yale. Ou talvez Roman estivesse apenas
preocupado que o «vocês» de Nora o incluísse.
– Foi por isso que o escolhi a si, foi por isso que quis que ficasse com isto
tudo! Assim que a Fiona me falou sobre si, tive a certeza. Sei que é o
senhor Lindsey que está à frente da operação, mas é você que vai certificar-
se de que as coisas são feitas como deve ser.
Não era verdade, em termos oficiais, mas Yale assentiu com um aceno.
– Claro que sim – assegurou-lhe.
– Porque sei que vai compreender isto: Paris era uma cidade-fantasma.
Alguns daqueles rapazes eram queridos amigos. Eu tinha estudado ao lado
deles durante dois anos. Tínhamos passado tempo juntos, a fazer todas
aquelas coisas ridículas que fazemos quando somos jovens. Podia dizer-lhe
os nomes deles, mas não significariam nada para si. Se eu lhe dissesse que
Picasso tinha morrido na guerra, compreenderia. Puf, lá se foi o Guernica.
Mas, se lhe disser que o Jacques Weiss morreu na Somme, não se sabe o
que teremos perdido. Isto... sabe que mais, tudo isto me preparou para ser
velha. Todos os meus amigos estão mortos ou às portas da morte, mas na
verdade já passei por isto.
Yale nunca tinha pensado que Nora pudesse ter amigos atuais. Não sabia
porquê, mas sempre pensara nos amigos como pessoas que conhecemos
cedo e às quais ficamos ligados para sempre. Talvez por isso a solidão o
estivesse a afetar tanto. Não conseguia imaginar-se a selecionar um novo
grupo de amigos. Era inimaginável que Nora tivesse vivido mais sete
décadas, que tivesse conhecido o mundo durante tanto tempo, sem os seus
primeiros amigos adultos, os seus compatriotas.
– Desde essa altura, até hoje, sempre que entro numa galeria penso nas
obras que lá não estão – disse Nora. – Quadros-sombra, percebe, que mais
ninguém consegue ver senão eu. Estou rodeada de jovens alegres e percebo
que não, eles não lamentam essa perda. Não veem os espaços vazios.
Yale desejou que Roman não estivesse na sala, que ele e Nora pudessem
chorar juntos. Ela virou para ele os olhos húmidos, fitou-o nos olhos como
se estivesse a espremê-los.
– E o Ranko não estava lá? – indagou Roman.
Nora pestanejou.
– Bom, ninguém sabia onde é que ele estava. Alguns dos meus amigos
ainda andavam na Colarossi, mas eu não tinha dinheiro para voltar a
estudar; poupara apenas o suficiente para a viagem. Estava a viver com uma
rapariga russa que fora minha colega, uma péssima influência.
«À noite, havia aulas pagas abertas ao público, e alguns dos professores
deixavam-nos entrar à socapa. Eu tinha pensado em andar pela cidade a
pintar, mas estava tão desorientada. Queria pintar os rapazes que tinham
perdido braços, mas não conseguia. Assim, no meio de todo aquele caos, ali
estava eu, a pintar tigelas de fruta. Os mesmos exercícios monótonos que
costumava passar às crianças em Filadélfia.
– E foi então que conheceu estes artistas? – quis saber Yale. – Nesse ano,
ou mais tarde?
– Nesse verão e outono.
Roman tirou o bloco das mãos de Yale e folheou-o.
– O Modigliani regressou a Paris na primavera de 1919 – disse. Traçara
uma cronologia numa das últimas folhas, com linhas de diferentes cores. –
Com a Jeanne Hébuterne e a filha de ambos.
Yale sentia o cheiro do suor de Roman de onde estava – não era um
cheiro mau, mas tinha estado muito perto dele na véspera e agora atacava-o
com a sua familiaridade.
– Fantástico. Bom, ele morreu em janeiro do ano seguinte. Isso deve dar-
lhe uma moldura temporal, não? – Parecia satisfeita consigo própria. – O
Modigliani estudou na Colarossi e costumava passear-se por lá. Fazia
lembrar um vilão de ópera, e já era bastante famoso. Um hálito horrível, uns
dentes péssimos, mas sempre que o via eu ficava deslumbrada. Uma vez,
ele estava num dos corredores, com o nosso professor, e eu inventei uma
desculpa qualquer para ir lá fazer uma pergunta. Foi o primeiro a convidar-
me para trabalho de modelo.
«A questão é que eu queria ser uma musa. Tinha a ver com a minha
própria arte, com a forma como não estava a conseguir usá-la para
expressar as minhas perdas. E, se não conseguia pintá-las eu, talvez outra
pessoa conseguisse captar a minha alma. Foi uma tentativa de alcançar a
imortalidade, claro.
Yale tinha um milhão de perguntas, uma das quais era se o papel de musa
envolvia sexo, mas o que perguntou foi:
– E isso foi na primavera? No verão?
Tentou imaginar alguém, daqui a sessenta anos, a interrogá-lo sobre os
mais ínfimos detalhes da sua vida: O que aconteceu primeiro, a análise ou
o interlúdio com o Roman? Quem morreu primeiro, o Nico ou o Terrence?
Onde é que o Jonathan Bird vivia quando adoeceu? Quando é que o
Charlie morreu, exatamente? Onde estava você quando soube? Quando é
que o Julian morreu? E o Teddy? E o Richard Campo? E você, quando é
que começou a sentir-se doente? Ele seria o homem mais afortunado do
mundo por ainda ali estar, depois de tudo, por ser o único que restava, a
tentar lembrar-se. E também o mais azarado.
Foi nessa altura que Roman gritou. Um grito agudo, entrecortado, uma
espécie de guincho como fogo de metralhadora, que não parava. Yale
percebeu o que se passava assim que Roman levantou os pés do chão e se
ajoelhou no sofá. Debra devia ter compreendido também, porque desceu as
escadas já de vassoura em punho.
– Para onde é que foi? – perguntou, e Roman agitou o braço na direção
geral da parede, da estante, da sala de jantar.
– Desculpem – disse –, mas detesto ratos.
Yale também detestava ratos, mas, como Roman reagira de forma tão
exagerada, conseguiu controlar-se e perguntar calmamente se podia ajudar.
Enquanto Debra olhava em volta e batia com o cabo da vassoura na estante
para ver se saía alguma coisa, Roman disse:
– Não sei o que me deu. Não dormi nada esta noite.
– Deixa o pobre ratinho em paz, querida – disse Nora a Debra.
Mas, agora que Roman dissera que tinha quase a certeza de o ter visto a
esconder-se atrás do louceiro na sala de jantar, Debra requisitou a ajuda de
Yale para afastar o móvel da parede.
Quando se levantou do sofá, sentiu-se tonto, ainda nas garras da ressaca.
Só queria ir para casa dormir. Bom, para algum lado dormir.
– Agarre por esse rebordo – disse Debra. O louceiro era alto e
extraordinariamente pesado e Yale não conseguia pegar-lhe bem.
Lera numa revista que as ressacas exacerbavam os sentimentos de
vergonha – que as pessoas se sentiam pior em relação ao que tinham feito
na noite anterior quando ainda estavam ressacadas. Esperava que fosse
verdade, porque a perspetiva de regressar à estalagem essa noite, de dormir
no mesmo edifício que Roman, acometeu-o de uma onda de náusea. Ou
talvez fosse por causa do esforço. Afastaram o louceiro alguns centímetros
da parede. Havia muita poeira lá atrás, mas nem sinais do rato ou do seu
ninho. Na sala, Roman acalmara-se; ele e Nora conversavam em vozes que
pareciam normais.
– Deixe estar assim – disse Debra. – Já agora, aspiro lá atrás. – Refez o
rabo-de-cavalo, que se tinha soltado. – Ainda bem que as peças nunca
estiveram aqui. Esta casa é um chiqueiro.
Yale precisava de um copo de água. Precisava de ir à casa de banho.
– Ha-ha. Sim, as bolas de cotão não fariam mal, mas ninguém quer ratos
perto de dois milhões de dólares em obras de arte.
As mãos de Debra pararam a meio do que estava a fazer.
– Desculpe?
Ele estava tão desconcentrado, tão distraído, que pensou que a tivesse
ofendido por falar no rato.
– Disse dois milhões de dólares? – perguntou ela.
– Oh, é só... – Tentou dizer que era apenas o montante que Chuck
Donovan ameaçara retirar, mas não conseguiu pensar suficientemente
depressa para formar uma frase coerente e, além disso, não tinha desculpa
para lhe mentir. – Sim, mais ou menos – admitiu, por fim.
Debra ficou tão vermelha, com o rosto tão franzido, que Yale julgou que
ela lhe fosse cuspir na cara. Depois, ela murmurou, o que era ainda pior do
que se tivesse gritado:
– Eu estava do seu lado. Por um instante, conseguiu pôr-me do seu lado.
– E estamos do mesmo lado – asseverou Yale, de forma ridícula.
– Eu defendi-o junto do meu pai. Ela sabe? A minha avó sabe quanto é
que vos deu? Pensei que estivéssemos a falar de umas centenas de milhares.
E já era mau. Você mentiu-me.
Yale tinha uma certa lábia que às vezes vinha ao de cima, por magia,
involuntariamente, em momentos profissionais complicados como este, e
esperou que ela se manifestasse agora, que lhe saísse dos lábios alguma
palavra conciliadora.
– Têm de sair daqui já – ordenou ela. – Esta casa pertence ao meu pai.
Estava disposta a esconder esta visita, mas agora quero-os fora daqui. –
Cruzou os braços sobre o estômago, um X cinzento.
– Com certeza – disse Yale, em voz quase inaudível.
Nora e Roman, aparentemente, não tinham ouvido nada.
– Estávamos a falar daqueles pobres astronautas – disse Nora, quando
Yale apareceu à porta.
– Eles vão sair agora – disse Debra – e deixá-la descansar.
– Oh! Mas voltam amanhã?
– Amanhã tem a sua consulta. – Debra já estava a estender-lhes os
casacos. – Eles vão voltar para Chicago.
Yale não olhou para Debra. Queria praguejar, gritar consigo próprio, bater
com a cabeça na parede.
– Voltaremos assim que pudermos – disse.
Não lhe parecia que fosse verdade, mas haviam de arranjar outra solução,
nem que fosse apenas conversas telefónicas.
Nora levantou-se e acompanhou-os à porta com passo lento.
– Receio não ter conseguido transmitir tudo o que queria. Se tivéssemos
uma máquina do tempo, podia levá-los numa viagem maravilhosa!
Enquanto abotoava o casaco, atrapalhado, Yale disse:
– Estava a pensar em viagens no tempo no caminho para cá, por acaso.
Ela riu-se.
– Viajar no tempo é tão fácil! É devastadoramente fácil! Tudo o que
temos de fazer é viver o suficiente!
Roman parou, com o braço meio enfiado na manga.
– Oiçam – explicou ela. – Quando eu nasci, as ruas não eram
pavimentadas.
Yale ainda estava a pensar nisso quando Roman disse:
– Mas... o Ranko. Não chegámos a ouvir o fim da história.
Debra abriu a porta, deixando entrar o ar gelado.
– Ele reapareceu, mas a mão já não funcionava como deve ser e suicidou-
se – disse. – Fim da história.
Yale e Roman exclamaram «oh!» em uníssono, Roman uma oitava mais
acima.
– Mesmo à minha frente, infelizmente – disse Nora.
Debra abriu a boca e, antes que ela pudesse agravar a situação, antes que
pudesse anunciar o erro terrível que Yale cometera, ele saiu, seguido por
Roman.

Depois de se afastarem, Roman apagou o rádio e disse:


– Ainda bem que ele se suicidou.
– Isso é sarcasmo?
– A história é melhor assim! E, quanto melhor for a história, maiores as
probabilidades de o Bill incluir os trabalhos dele. Se for apenas um tipo
qualquer, não passam de esboços de vacas. Mas se for o amor da vida dela,
que se suicidou, então é a história principal da coleção. Quando voltarmos,
temos de tentar saber mais pormenores! Será que ele se matou com um tiro?
Deve ter sido, não?
Yale tinha o estômago às voltas e precisava de se deitar e dormir. Não
queria dar a notícia a Roman de que provavelmente nunca saberia mais
nada sobre a história de Ranko Novak, pelo menos na primeira pessoa.
– Sabia que, quando o Jules Pascin cortou os pulsos, deixou uma
mensagem para a amante escrita com o seu próprio sangue?
– Que romântico.
Um minuto depois, Roman disse em voz mais baixa:
– Sabe que não é... o que aconteceu ontem à noite... não é o tipo de coisa
que eu costumo fazer.
– Está bem. – Yale não tirou os olhos da estrada e tentou agir com
naturalidade.
– Meu Deus, sou uma desgraça.
– Não pense assim. – Tentou lembrar-se porque deixara que acontecesse,
quem iniciara tudo. O calor pesado do quarto ainda estava com ele, mas,
além disso, já nada fazia sentido.
Roman virou completamente a cara. Em que poderia ele ajudar este rapaz,
de qualquer maneira? Era dia 29 de janeiro, três dias depois da data
assinalada na sua agenda, e estava de regresso à cidade, à vida real, com
tudo aquilo que possuía no mundo enfiado no porta-bagagens de um carro
alugado que tinha de entregar antes de jantar. Conseguira algumas datas que
Bill queria, mas nenhuma informação sobre qualquer artista além de Ranko
Novak. E era bem possível que tivesse destruído a sua única ponte de
acesso a Nora. Não fazia ideia onde ia passar a noite. Roman talvez
precisasse de alguém a quem admirar, mas de certeza absoluta que não
devia ser Yale.
– Se não se importa – disse –, vou ligar o rádio.
2015
esde os oito anos que Claire ia ajudar a mãe na loja, aos sábados. Fiona
D acabara de ser promovida a gerente e ainda precisava de passar o dobro
do tempo que viria a ser necessário em anos posteriores a tratar de balanços,
folhas de ordenado, a lidar com o computador antigo e temperamental. Ia
buscar Claire ao ballet e regressava ao trabalho quando a loja estava quase a
fechar. Claire vagueava pelo espaço, limpava o pó, arrumava. Avisava
Fiona se havia alguma lâmpada fundida, e Fiona dava-lhe um bloco e dizia-
lhe para escrever qual era.
Às vezes, Claire trazia uma amiga, outra menina entusiasmada com a
perspetiva de deambular por uma loja vazia enquanto as luzes dos
candeeiros de rua se acendiam lá fora e elas fingiam estar presas numa
mansão antiga.
A loja era chique e ampla e bem organizada, dois pisos de salas de estar,
salas de jantar e armários artisticamente decorados. Por vezes, Fiona pedia a
Claire que arrumasse os sapatos de senhora e, quando saía do escritório uma
hora depois, via os sapatos de salto alto organizados por cores, na ordem do
arco-íris. Eram também muitas as vezes em que encontrava Claire sentada
num dos sofás, a fitar a distância, sem ter feito nada do que Fiona lhe
pedira. Não era importante – na realidade, as tarefas eram inventadas só
para a manter ocupada –, mas os professores de Claire diziam que ela
também era assim na escola: umas vezes trabalhava e outras ignorava-os e
ficava sentada em silêncio a desenhar árvores, indiferente às ameaças de
ficar sem intervalo.
Uma vez, nesse ano, durante uma grande tempestade de neve, a amiga
que tinham trazido com elas para a loja depois do ballet, Sophie, ficou com
medo de não conseguir ir para casa. Ou, pelo menos, ela e Claire estavam a
gostar de se fingir preocupadas.
– Podes dormir na cama das riscas lá em cima – disse Claire –, e eu
durmo no sofálássidó.
Sofálássidó era o nome que ela dera a um sofá de pele que estava na loja
há mais de um ano.
– Mas de manhã precisamos de mudar de roupa – disse Sophie. – Temos
de escolher novos conjuntos.
No entanto, Sophie morava apenas a seis quarteirões e, às sete horas,
Fiona telefonou à senhora Nguyen e ofereceu-se para a acompanhar até
casa. Quando disse às meninas que estava na hora de se irem embora,
Sophie lamentou-se um bocadinho mas Claire não disse nada. Só depois de
deixarem Sophie à porta de casa e voltarem para trás é que Claire se atirou
para o chão, no passeio coberto de neve, e gritou:
– Odeio-te!
Não estava a chorar, apenas furiosa, toda encolhida, de rosto vermelho.
O envolvimento de Fiona com Dan, da aula de ioga, estava no ponto mais
confuso nessa altura. Dan enviava-lhe um e-mail todos os dias, à hora de
almoço, e nos dias em que não o fazia – como era o caso desse –, Fiona
imaginava todo o tipo de cenários em que ele se reconciliara subitamente
com a mulher de quem estava a divorciar-se, ou se fartara repentinamente
de Fiona a meio da manhã. Estava convencida de que o amava, de que
nunca amara ninguém assim, mas depois quando se encontrava com ele,
quando ele conseguia escapulir-se da casa que ainda partilhava com a ex-
mulher e os filhos, para se encontrar com ela num hotel ou na loja – onde,
de luzes apagadas, faziam amor em cima de uma manta no mesmo sofá que
Claire adorava –, lembrava-se de que ele não era assim tão especial. Um
tipo de cabelo castanho e olhos simpáticos, inteligência média. Parecia um
ator no anúncio de uma seguradora. Contudo, nesse inverno, Fiona vivia
numa confusão permanente por causa dele e, quando Claire se deixou cair
no passeio, ficou a olhar para ela sem saber o que fazer.
Se estivessem em casa, talvez tivesse ralhado com Claire por falar com
ela daquela maneira. Mas aqui, Claire, na sua fúria, podia decidir correr
para o meio da rua, em frente de um autocarro. Fiona ficou muito tempo ali
parada, entre Claire e a estrada. As poucas pessoas que passavam por elas
sorriam-lhe com ar compreensivo. O vento soprava-lhes a neve para a cara.
Por fim, pousou a mão nas costas de Claire e ela gritou. Como é que o
sentira, através do casaco grosso?
– Deixa-me em paz para sempre! – gritou ela.
Alguém tinha parado atrás delas, uma mulher que se inclinou e perguntou
a Claire, com sotaque jamaicano, se aquela era a mamã dela.
Claire, apanhada de surpresa, disse que sim.
A mulher endireitou-se e disse:
– Pegue-lhe e leve-a ao colo. Enquanto a menina ainda tem tamanho para
isso.
E, embora Fiona estivesse à espera de que Claire se debatesse com
pontapés e dentadas, baixou-se e apanhou-a do chão, uma massa compacta.
Claire apertou as pernas contra o peito mas não fez nada para se tentar
libertar. Um quarteirão mais à frente, estava a soluçar no peito de Fiona e,
quando chegaram a casa, tremia tanto que Claire temeu que fosse uma
convulsão.
Porque não lhe ocorrera pegar-lhe antes? Porque fora preciso uma
desconhecida dizer-lhe para o fazer?
Pousou Claire na cama, despiu o casaco dela e o seu e aninhou-se ao lado
dela. Claire não a empurrou, não agiu, para variar, como se Fiona lhe
tocasse com mãos de gelo.
No hospital, depois de Claire nascer, Fiona estava tão assoberbada pelas
hormonas, o pânico, a dor, o medo, o sentimento de culpa e a revolta que,
quando Damian lhe trouxe a bebé, impossivelmente pequena e estranha,
com o corpinho de um rosa vivo, Fiona lhe disse para a levar dali, para a
manter em segurança longe dela. Teve uma visão horrível e febril de uma
fêmea de animal a sufocar a cria, a comê-la. Na verdade, Fiona estava com
febre, veio a saber depois, e quando emergiu desse nevoeiro tinham passado
cinco horas e as enfermeiras já tinham dado um biberão à bebé. Fiona ficou
furiosa – todos os livros diziam para não o fazer –, mas, quando lhe
trouxeram Claire para a primeira tentativa de amamentação supervisionada,
nada correu como devia, de qualquer maneira. A bebé não conseguia
agarrar o peito e Fiona ainda não tinha leite. A enfermeira assegurou-lhe
que era assim que se produzia o leite, deixando o bebé tentar. Fiona estava a
chorar tanto, a transpirar tanto, que não conseguia imaginar que o seu corpo
alguma vez produziria outra coisa senão soro salgado.
– Tens tanta coisa na cabeça – disse Damian. – Tenho a certeza de que,
em parte, é psicológico.
Disse-o com intenção de a reconfortar, mas para Fiona foi uma acusação:
a culpa era dela, não apenas um fracasso do corpo.
E de facto a amamentação nunca correu bem, apesar de todos os esforços
de três conselheiras especializadas. Claire não ganhava peso, Fiona
sangrava e apanhou uma infeção no peito, e por fim decidiu-se que era
melhor para todos que ela parasse de tentar.
E não devia ter importância! Gerações inteiras de crianças tinham bebido
leite artificial e estavam ótimas. Fiona nunca ficara convencida com toda
aquela conversa da La Leche sobre o estabelecimento de elos através da
amamentação. Porém, deitada na cama com a filha de oito anos, o que
recordava mais claramente era a sua resignação perante a ideia de que esta
bebé nunca conseguiria encontrar conforto nela – que Fiona já não tinha
nada seu, desde aquele primeiro dia, para lhe dar.
E o que recordava agora, a olhar pela janela do apartamento de Richard
para o sol da tarde, era a sensação absurda que sentira então, quando Claire
tinha oito anos, de que já tinham perdido o barco, para sempre. Que os
danos tinham sido feitos no passado, não no presente, e que estavam a viver
agora as consequências. Que só lhes restava a esperança de que as feridas
cicatrizassem bem.
1986
ale não contou a Bill que tinha falado demais com Debra. Disse-lhe que
Y Nora lhe dera algumas datas aproximadas, algum contexto, mas que não
era muito boa com pormenores específicos.
– O Roman vai datilografar tudo para lhe dar – disse. – Incluindo muitas
histórias sobre o Ranko Novak!
Sentiu-se culpado pelo tom trocista; começava a gostar de Ranko.
Tinha uma mensagem de Esmé Sharp à sua espera em cima da secretária
e, quando lhe telefonou, acabou por confessar que não tinha para onde ir.
Por insistência dela, aceitou a oferta de passar a noite nas Marina Towers,
no apartamento no quinquagésimo oitavo andar que Esmé e Allen deixavam
às moscas o inverno inteiro, enquanto estavam em Aspen.
– Fique o tempo que quiser! – disse ela. – Pode regar a planta de jade.
Era suficientemente longe de Boystown para não correr o risco de se
cruzar com Charlie. Queria ver Charlie em breve, queria gritar-lhe todas as
coisas que ainda não lhe gritara, mas só quando estivesse preparado. Não
queria encontrá-lo por acaso numa máquina de levantamento automático.
Esmé insistiu que ele ficasse no quarto principal, mas Yale instalou-se no
quarto de hóspedes mais pequeno, que tinha uma varanda e uma prateleira
cheia de livros de arquitetura. Na cozinha havia uma garrafeira com vinho
que Esmé disse esperar «que esteja todo bebido quando eu voltar». Na sala
tinham a melhor aparelhagem de som que Yale alguma vez vira, e uma
prateleira com CDs de música clássica, ópera, musicais da Broadway e
Sinatra. Por ele, estaria a ouvir apenas The Smiths, o que não ajudaria nada;
e, se só lhe restassem realmente poucos anos de vida, não devia ouvir antes
Beethoven? Da janela via-se o rio e a Sears Tower. À noite, a cidade lá em
baixo transformava-se em constelações de amarelo e vermelho.
Quando Charlie o levara pela primeira vez ao Bistro, ali perto, Yale ficara
fascinado ao ver as duas torres de Marina City de perto, ao perceber que
cada projeção em forma de pétala era, na realidade, uma varanda curva. E
agora, do lado de dentro, aterrorizava-o ver como eram baixos os muros das
varandas, como seria fácil uma pessoa desequilibrar-se e cair, como seria
fácil saltar por cima deles e atirar-se.
Nunca o faria, nem mesmo se a análise fosse positiva. Porque a análise
não queria dizer que a pessoa ficaria doente nesse ano, ou no próximo. Se
chegasse a ficar cego, pensou, talvez então pusesse fim à vida. Ou se não
conseguisse passar um dia sem borrar as calças. Ele e Charlie tinham
conhecido um tipo nesse verão, num bar, que lhes contara que o amante
jurara que se mataria quando já não conseguisse dançar. E depois, quando
deixou de conseguir dançar, mudou de ideias e disse que se mataria quando
não conseguisse comer. E quando deixou de conseguir comer mudou para
«quando não conseguir falar».
– Nunca se matou – contou-lhes o tipo nessa noite. – Lutou até ao último
fôlego. E o que é que isso diz sobre nós? O que é que isso diz sobre nós?
Yale e Charlie não sabiam a resposta, e ele também não.
*
Os dias foram passando, e as hipóteses de os resultados da análise ao
sangue serem fiáveis aumentavam. Uma notícia boa ainda não seria
definitiva, mas as más notícias já podiam fazer uma apresentação prévia. E,
pelo menos, ficaria a saber. Era o tipo de decisão que gostaria muito de
poder discutir com um amigo, se os amigos que sabiam do que se passava
com Charlie não o odiassem, e se pudesse falar sobre isto com aqueles que
não sabiam o que se passava com Charlie. Na verdade, não via ninguém
desde que se cruzara com Teddy na lavandaria. Uma noite, Yale estava a
sair do dentista na Broadway Avenue – uma consulta que marcara na sua
vida anterior – e Rafael, do Out Loud, passou por ele com um amigo.
Rafael, que estava bêbedo, beijou Yale numa face e mordeu-o na outra, mas
não tiveram uma conversa propriamente dita.
Roman mantinha o seu horário normal e trabalhava às quartas e sextas da
parte da tarde. Felizmente, da primeira vez que entrou no gabinete de Yale
depois de regressarem do Wisconsin, Janice, a empregada da limpeza,
estava lá a aspirar, impossibilitando qualquer tipo de cumprimento além de
um aceno silencioso. Roman trabalhou normalmente, embora com algum
nervosismo. Mais ou menos de meia em meia hora apoiava a testa na
secretária, mas Yale não teve coragem de lhe perguntar se era por causa de
algum problema na transcrição das cartas de Nora ou com as candidaturas a
subsídios com que Roman o estava a ajudar, ou se era por causa de alguma
crise mais existencial, relacionada com o próprio Yale ou com a alma de
Roman. De qualquer modo, Roman era a última pessoa à face da Terra a
quem Yale podia confidenciar o seu medo de estar infetado.
No domingo à noite, Yale encontrou Julian no Treasure Island. Podia ter
ido ao Jewel, que ficava mais perto de Marina City, mas detestava entrar
numa loja nova onde não sabia os sítios das coisas. E talvez quisesse
realmente encontrar alguém conhecido, afinal. Julian estava a comprar uma
sanduíche de carne assada embrulhada em plástico. Parecia melhor do que
quando o vira duas semanas antes, ou pelo menos tinha mais cor no rosto.
Estacou ao ver Yale e ficou paralisado, como se tivesse levado um soco no
estômago, e só quando Yale se aproximou e lhe apertou o ombro é que
relaxou e o cumprimentou.
– O Teddy tem andado a alimentar-te – disse Yale. – Estás com bom
aspeto.
Julian olhou para trás por cima do ombro e murmurou:
– O Teddy anda a sufocar-me. Já reparaste que ele nunca está quieto?
Nunca. E sempre colado a mim, a sério, quando abro os olhos de manhã ali
está ele colado à minha cara. Ouve, não digas nada enquanto não for certo,
mas vou pirar-me daqui. Vou sair do país.
Yale não sabia se acreditava nele – Julian tinha tendência para exageros –,
mas fingiu que sim.
– Para onde?
– Fiz o passaporte há dois anos e nunca o usei. A sério, não vou voltar
para aquela casa. Tenho aqui as minhas coisas. – Virou-se para mostrar a
Yale a mochila. – Nem sequer sei para onde vou. Entreguei o apartamento
ao senhorio.
– Não vais para a Tailândia ou coisa parecida, pois não? Vais ter
cuidado?
– Ouve – disse Julian. – Ouvi um rumor de que arranjaste casa. E se... só
preciso de três noites, por aí, só para me organizar antes de partir. Se ficar
em casa do Teddy, ele vai dar-me um sedativo e amarrar-me à cama, juro.
Sei que me odeias, neste momento. Eu sei. Tens todos os motivos para isso.
Eu odeio-me a mim próprio. Devias... devias deixar-me ficar contigo e
depois atirar-me pela janela. Tens todo o direito de dizer que não. Não
posso ficar outra vez em casa do Richard, é demasiado estranho. Posso
pagar-te.
Foi humilhante perceber a rapidez com que lhe disse que sim. Julian era
quase a última pessoa com quem queria estar, mas era alguém, e pelo menos
não passaria as noites seguintes a olhar para o televisor sozinho. Ocorreu-
lhe brevemente que acabaria a tomar conta dele, que não sabia que tipo de
drogas Julian tinha na mochila – mas parecia-lhe um triunfo que ele lhe
tivesse feito este pedido. Um ano antes, teria pensado nos germes, mas já
ultrapassara esse medo.
– Precisas de ir buscar mais alguma coisa?
– Não posso lá voltar. Nem por um segundo. E não podes dizer a ninguém
onde estou, está bem?
Assim, Julian ajudou Yale com os sacos de compras e apanharam o
comboio até River North, onde saíram e subiram no elevador super-rápido
até ao apartamento.
Comeram piza e beberam cerveja sentados à mesa da sala de jantar, e
apagaram as luzes para poderem admirar a cidade pela janela. Julian disse:
– Parece que estamos nos desenhos animados d’Os Jetsons. Como se um
carro voador pudesse vir apanhar-nos junto da janela.
Já tinham passado quase duas semanas desde que Julian rapara a cabeça
e, pelo menos, já não se via o couro cabeludo. Mesmo assim, não parecia
ele. Tinha as orelhas espetadas, a testa alta e pálida.
– Quero que saibas que não estou zangado contigo – disse Yale. – Estou
zangado com o Charlie, estou zangado com o mundo, estou zangado com o
governo, mas é difícil estar zangado contigo.
– É porque sou patético. Não, a sério, é mesmo. Descobri-o recentemente.
Quando somos um monte de merda miserável, ninguém sente nada por nós
a não ser pena.
– Não acho que sejas patético – disse Yale.
– Espera até eu pesar trinta e cinco quilos. Quer dizer, não chegarás a ver
isso porque já cá não estarei. É isso que quero dizer. Detesto que tenham
pena de mim. Preferia que estivesses zangado comigo. Preferia que me
desses um pontapé na cabeça. Ninguém consegue estar zangado comigo a
não ser Deus.
– Céus – disse Yale. – Podes ficar aqui, mas não tragas o Jerry Falwell,
está bem?
– Não consigo afastar a sensação de que Deus me seguiu até aqui, desde a
Georgia. Tentei ter uma vida perfeita, quando vim para cá era tudo tão
bonito, tudo tão bom... devia ter calculado. Devia estar à espera disto.
– Eu compreendo, mas isso... estás só a interiorizar uma data de tretas.
– Já te contei a história do Disney World? Não de quando trabalhei lá,
mas da primeira vez que lá fui.
Yale disse que não e foi buscar mais cerveja.
– Eles fazem uma coisa chamada Noite de Finalistas, que é quando
deixam o parque aberto a noite toda para os miúdos que estão a acabar o
liceu. E Valdosta fica logo a seguir à fronteira estadual, por isso a
Associação de Pais alugou autocarros e comprou bilhetes para todos.
Podíamos andar em todas as diversões, sem filas, e havia bandas a tocar. Só
tínhamos de estar acordados a noite toda. Toda a gente tinha uma garrafinha
de álcool no bolso.
«Ao princípio, andei com os meus amigos, com aquelas miúdas todas do
clube de teatro que pensavam que iam casar comigo, mas a dada altura
comecei a reparar em três tipos de outra escola. Tão bonitos. E tão gay,
como se escorressem gay. Não era uma coisa que eu estivesse habituado a
ver na Georgia. Estávamos atrás deles, à espera para andar na Space
Mountain, e um deles, um rapaz de brinco, meteu conversa comigo e disse
que a seguir iam comer qualquer coisa e perguntou-me se eu não queria ir.
Assim, quando saímos da diversão, fui com eles comer um gelado e perdi-
me dos meus amigos. E o tipo do brinco queria que fôssemos andar no
PeopleMover. Nem sequer é bem uma diversão, sabes, enfiamo-nos num
carrinho que percorre um trilho elevado, mas devagar. Os amigos dele
entraram num dos carros e eu e ele ficámos no de trás, apesar de cabermos
todos no mesmo. E nesta fase da minha vida, só o facto de estar no mesmo
espaço que aquele rapaz era a coisa mais excitante que eu alguma vez
fizera. Estava aterrorizado.
«O carro passa por entre uns edifícios e, a dada altura, ficou tudo escuro.
Devia ser apenas por uns segundos, mas encravou e ficámos ali parados, às
escuras. Ouviam-se as outras pessoas a rir e aos gritos.
Yale não sabia se a história se ia tornar pornográfica, romântica ou
horrível, por isso disse apenas «Meu Deus», que cobria as três
possibilidades.
– O que é que fizeste?
– Nada. O outro rapaz ajoelhou-se, abriu-me a braguilha e fez-me um
broche. Foram os dois minutos mais fantásticos da minha vida. Quer dizer,
estava morto de medo de que acendessem as luzes, mas na verdade não
conseguia pensar muito nisso. O carro recomeçou a andar para aí meio
segundo depois de eu ter fechado a braguilha.
– Bolas...
– Pois. E o que eu retirei de todo o episódio, para além da certeza de que
era mesmo gay, foi que havia sítios bons e sítios maus no mundo. O Disney
World era um sítio bom e Valdosta era um sítio mau, e eu tinha de voltar à
Disney o mais depressa que pudesse. E foi o que fiz. E um ou dois anos
depois o objetivo passou a ser mudar-me para uma cidade a sério, por isso
experimentei Atlanta, e depois era sair do Sul, para uma cidade maior, com
uma vida teatral mais ativa. Quantos mais passos me afastasse de Valdosta,
mais seguro me sentia, percebes? Era uma escada sempre a subir que, na
minha cabeça, culminaria numa mansão em São Francisco. E olha para
mim. Sinto-me tão estúpido por alguma vez ter pensado que podia mesmo
ter uma vida boa.
– Terás uma vida melhor se ficares aqui do que se te fores embora – disse
Yale. – Precisas de estar com as pessoas que gostam de ti. Não estarás a cair
novamente na mesma armadilha? A pensar que há sempre um sítio melhor?
– Bom, há sítios mais quentes. Isso te garanto. Se vou morrer, quero
morrer com o sol na cara.
– É compreensível, sim.
Yale verificou se Julian tinha toalhas na casa de banho. Imaginou os
Sharp a chegarem a casa no próximo mês e a encontrarem no
quinquagésimo oitavo andar um campo de refugiados cheio de gays
recentemente diagnosticados. Sacos-cama e camas de armar, vitaminas e
batidos de proteínas.
*
Na segunda-feira de manhã, o aquecimento no escritório estava avariado.
Yale voltou imediatamente para o comboio, aliviado, porque não teria de
ver Roman, mas aterrado pela perspetiva de um dia vazio, um dia em que
não teria qualquer desculpa para não ir fazer a análise de uma vez por todas.
Porém, quando saiu do comboio, ficou parado ao lado da cabina telefónica,
sem sequer saber bem onde ir.
Pensou em ligar para o Dr. Vincent, mas era como se Charlie tivesse
herdado o médico na separação, tal como herdara a maioria dos amigos.
Não conseguia imaginar-se a entrar no consultório e a tentar perceber,
discretamente, o que é que o Dr. Vincent já sabia. E talvez o Dr. Vincent
soubesse há meses, há anos, que Charlie o traía. Talvez o tivesse já tratado
de uma gonorreia, talvez estivesse farto de o aconselhar a ter cuidado. Yale
não conseguia enfrentar os seus olhos bondosos e brilhantes. Pensou em
ligar a Cecily, mas já lhe causara problemas suficientes e não queria que
ninguém ligado à universidade suspeitasse de que ele podia estar doente.
Pensou em regressar às Marina Towers, mas ver Julian podia trazer
novamente ao de cima o medo da análise. Afinal, o que é que a análise
fizera por Julian, a não ser dar-lhe cabo da vida? Pensou em ligar para a
linha de apoio da Howard Brown, mas a ideia de ouvir uma lésbica amável
a explicar-lhe as suas opções – a ler-lhe um impresso, a escolher
cuidadosamente as palavras – agoniava-o. Pior ainda, podia ser Katsu, a
amiga de Teddy, a atender, e era possível que reconhecesse a voz de Yale.
Além disso, a linha só funcionava à noite, e ainda nem eram dez da manhã.
Assim, embora soubesse que não devia fazê-lo, embora soubesse que ela
era a última pessoa que precisava de passar por uma coisa destas neste
momento, ligou a Fiona Marcus.
Depois de três toques, começou a ter esperança de que ela não estivesse
em casa, mas estava. Preparava-se para agasalhar as meninas de quem
tomava conta, para as levar ao jardim zoológico. Perguntou-lhe se queria ir
ter com elas e ele disse que sim.
Encontraram-se junto ao recinto dos grandes felinos, Fiona com uma
parka azul que a fazia parecer mais corpulenta do que na realidade era. As
duas meninas andavam à volta dela, a girar, aos gritos. Fiona recordou-lhe
que a mais pequena, de gorro cor-de-rosa, era Ashley e a de cinco anos era
Brooke. O pai delas era um tipo importante na United Airlines e a mãe,
segundo as histórias que Fiona contava, basicamente não fazia mais nada
senão bronzear-se. Brooke anunciou que queria ir ver os pinguins e os
ursos-polares.
– Porque são animais de inverno – explicou.
– Espera aí – disse Yale a Ashley. – Primeiro, deixa-me endireitar as tuas
orelhas. – Puxou suavemente uma para cima e a outra para baixo. – Muito
melhor – disse, e as meninas riram-se, encantadas. Era o seu único truque
com crianças, mas resultava sempre.
– Como estás? – perguntou-lhe Fiona, e depois, enquanto andavam,
acrescentou: – Ouvi rumores contraditórios. Quer dizer, sei o que se passa
com o Charlie... Mas decidi que não acreditaria em mais nada enquanto não
o ouvisse da tua boca.
– Obrigado – disse Yale. – É reconfortante ouvir isso.
– Vá, conta-me tudo.
O jardim zoológico estava praticamente vazio, tirando algumas pessoas
bem agasalhadas a empurrar carrinhos de bebé e um homem solitário a
fazer jogging.
Yale contou-lhe a história toda, mais até do que contara a Cecily, em parte
porque tinha agora mais para contar. Falou-lhe sobre a discussão no funeral
de Terrence, contou-lhe o que acontecera com Roman e falou da data
assinalada na agenda, que já ficara para trás havia uma semana e meia.
Deixou de fora a parte sobre a casa de Richard. Porque havia de a
sobrecarregar com o sentimento de culpa, quando Charlie talvez estivesse a
mentir?
– Agora a tua prima Debra odeia-me – disse, mas não mencionou
concretamente o montante envolvido.
Disse-lhe que Julian estava com ele no apartamento emprestado.
– Meu Deus, que deprimente – disse Fiona, mas não se referia aos
problemas de Yale. Estavam em frente do recinto dos pinguins e mal se
conseguia ver alguma coisa através do vidro sujo. – Nem sei se está lá
dentro algum pinguim.
– Olha, olha, olha! – Ashley apontou para uma pequena ave enfezada
mesmo aos pés deles. Se o vidro não estivesse lá, Yale podia ter passado por
ele sem o ver. As meninas correram de um lado para o outro, tentando
convencer o animal a segui-las.
– Então esse estagiário – disse Fiona –, gostas dele?
Yale sabia que ela estava a começar pela parte menos penosa de tudo o
que lhe contara, mas pensar em Roman deixava-o tão nervoso como tudo o
resto.
– Oh, não, nem por isso. É tão novinho. Não literalmente, já é um adulto,
é simplesmente jovem. Eu diria que foi apenas sexo, mas nem sequer se
pode dizer que tenha sido sexo. E mesmo que fosse... bom, o sexo nunca
mais vai ser apenas sexo.
Fiona riu-se.
– Bem-vindo ao clube.
– Não estou a falar da parte emocional.
– Por amor de Deus, Yale, eu também não. Isso é aquilo com que as
mulheres vivem desde a alvorada dos tempos. Um bebé pode matar-nos, ou
arruinar a nossa vida. E, nas mulheres, há uma data de merdas que podem
causar cancro. Se fores homem e estiveres com comichões nas partes, dão-
te um pozinho e pronto. Se fores mulher, é cancro. Ou outra doença
qualquer que faz com que nunca possas ter filhos, ou se conseguires
engravidar o bebé pode nascer cego porque um imbecil qualquer te passou
qualquer coisa no baile de finalistas. E também podemos apanhar sida. Não
penses que não é um problema para nós. Bolas, Yale. Desculpa.
Yale apercebeu-se de que tinha uma expressão horrível no rosto.
– Não, é só que... estava a pensar que...
– Ouve, desculpa. Não sou estúpida, está bem? Não sou uma idiota
qualquer que não compreende.
Ele sabia que isso era verdade.
As meninas estavam prontas a seguir caminho e Fiona parou para apertar
melhor as botas de Ashley.
– Os ursos-polares estão bastante longe daqui – avisou Fiona. – Têm a
certeza?
– Anda lá, Fiona! – disse Brooke, e puxou-a pela mão como se ela fosse
um cão desobediente.
– Corram até àqueles caixotes de lixo e esperem lá por nós – disse Fiona.
Nunca tirou os olhos das crianças, mesmo enquanto falava com Yale.
Devia ser esgotante, toda aquela vigilância.
– Desculpa – disse, de novo.
– Aqui há uns meses, alguém me disse que nós costumávamos ser
divertidos. – Enfiou as mãos nos bolsos. – E é verdade, houve um período
ínfimo em que estávamos mais seguros, estávamos felizes. Julguei que era o
princípio de alguma coisa. Mas, na realidade, era o fim. O Julian tinha a
mesma ideia... eu achava-o tão ingénuo. E agora percebo que somos iguais.
– Tu és muito mais inteligente do que o Julian – disse ela.
– Não, ele só finge ser parvo. Não sei. Estou sempre a pensar que talvez
eles possam recomeçar do zero, sabes? A próxima geração de bebés gays,
quando nós já cá não estivermos. Mas talvez não, porque saberão o que nos
aconteceu e o Pat Robertson vai convencê-los de que a culpa foi nossa. Eu
vivi na época de ouro, Fiona, e não sabia. Há seis anos, vivia a minha vida,
fartava-me de trabalhar, e não sabia que estava na época dourada.
– O que terias feito, se soubesses?
Yale não fazia ideia. Não teria aproveitado para fazer mais sexo. Em
1980, tinha toda a liberdade para o fazer, mas nunca se sentira muito atraído
pela promiscuidade. Riu-se.
– Teria composto uma canção sobre isso, ou coisa do género.
Caminharam lentamente atrás das meninas, e, sempre que as apanhavam,
Fiona mandava-as correr mais alguns metros e esperar por eles junto de um
banco ou de uma árvore.
– Vais ser uma excelente mãe – disse Yale.
– Ha! Claro. Talvez seja esse o meu próximo passo.
O seu tom de voz era, por algum motivo, horrivelmente amargurado. Não
devia ter falado em família. A morte de Nico não a aproximara dos pais e,
agora, Terrence também partira. Tinha estas meninas, mas só até elas irem
para a escola. Um marido e um bebé eram a única forma de Fiona poder
voltar a ter família. Não que Yale estivesse muito melhor. Quem é que ele
tinha, afinal? Mas havia nela uma aura de solidão, aqui, com as mãos
enfiadas nas axilas, o vento a soprar-lhe o cabelo para a cara. Sentia-se
culpado por lhe ter ligado, por estar a apoiar-se nela, mas talvez fosse bom.
Talvez estivesse a fazer-lhe um favor.
Yale nunca tinha estado na parte norte do jardim zoológico, nunca vira os
ursos-polares. Era possível ver o recinto de cima, mas também se podia
descer, e foi o que eles os quatro fizeram, para espreitar através do vidro
para a água. Ali em baixo estava quente e escuro, sem vento, e Fiona tirou
os gorros da cabeça das duas meninas.
– Ali está o Thor! – gritou Brooke. – Aquele é o Thor!
– Como sabes? – perguntou Fiona. Havia outro urso deitado numa rocha
fora de água.
– É o mais simpático! O que está sempre a nadar!
O urso em questão passou rapidamente do outro lado do vidro, como um
torpedo peludo.
– Quero dizer uma coisa – declarou Fiona. Atrás das crianças, num ponto
mais elevado, sentiam-se como se pudessem ter uma conversa
completamente privada. – Nunca gostei do Charlie.
Yale desatou a rir perante o absurdo do comentário. Toda a gente adorava
Charlie. Toda a gente lhe dizia, constantemente, o quanto gostava de
Charlie.
Fiona continuou:
– Ele foi fantástico com o Nico, e faz um trabalho fabuloso, e é.. bom, é
importante. Acho que é uma daquelas pessoas que... estão tão presentes,
que os outros reagem bem a isso. Mas eu nunca senti que ele me ouvisse.
Está sempre apenas à espera da sua vez de falar.
Um mês antes, Yale ter-se-ia fingido profundamente magoado por isto,
apesar de reconhecer que era verdade. Mas agora conseguiu concordar com
um aceno.
– Como é que percebeste isso? Mais ninguém o vê.
– Talvez veja. Talvez toda a gente pense como eu. Ele faz-me lembrar
uma daquelas miúdas na escola secundária que são muito populares só
porque toda a gente tem medo delas.
– Estás a dizer que ele é uma miúda do oitavo ano, portanto.
– Estou a dizer que ele é um pequeno tirano. Quer dizer... desculpa, não
devia falar assim. Mas ouve, nunca gostei da forma como ele te tratava.
Estava sempre a fazer perguntas esquisitas, onde é que eu te tinha visto,
com quem estavas. Parecia-me um bocadinho controlador.
– É verdade.
– Pensei no assunto, e talvez tenha sido por isso que eu lhe disse que
estavas com o Teddy, naquela noite. Como se me apetecesse finalmente
atirar-lhe alguma coisa à cara. Mas não sei. Estava bêbeda. Não queria...
– Não faz mal. – Yale não queria ouvir mais. Não conseguia enfrentar a
perspetiva de estar zangado com ela.
– Odeio saber que ele anda com o cachecol do Nico. Vi-o com ele no
outro dia, na rua, e por um segundo...
– Viste o Nico.
– Sim. E se fosses tu, ou alguém que eu quisesse ver, era diferente. Mas,
assim, quero o cachecol de volta.
Thor nadou até ao vidro e encostou o focinho e uma pata enorme à
superfície lisa, a centímetros das caras de Brooke e Ashley. As meninas
guincharam, e Fiona impediu Ashley de bater no vidro com a mãozinha
fechada.
– É mesmo um exibicionista – disse Fiona. – Tens razão, Brooke, não há
dúvidas de que é o Thor.
– O outro é a mulher dele! – exclamou Brooke.
– Não sabia que os ursos-polares podiam casar – brincou Yale. – Na
verdade, é bom ouvir-te dizer isso sobre o Charlie. Estava a sentir-me a
única pessoa do mundo que conseguia ver quem ele realmente é.
– Yale. – Virou-se, segurou-o pelos bíceps e lançou-lhe um olhar
exageradamente sério que se calhar era mesmo tão sério como parecia. –
Mereces alguém que te adore. O Charlie só quer público.
– Mas – disse Yale. – Mas... E se ele foi o último namorado que alguma
vez terei?
– Nem penses nisso. Vais viver mais do que aqui o nosso Thor. Mais do
que os elefantes. Não dizem que os elefantes vivem para sempre? As
tartarugas! Vais viver mais do que as tartarugas.
– As catatuas vivem sessenta anos! – informou Brooke.
– Eh! – ralhou Fiona. – Estás a ouvir as conversas dos adultos? – Embora,
na verdade, não tivessem dito nada que uma criança conseguisse perceber.
– Não vou arranjar uma catatua, isso é certo – disse Yale.
– Vais sentir-te melhor depois de fazeres a análise. Ouve, quando
souberes o resultado, vamos sair os dois e eu compro-te um peixinho-
dourado. Um daqueles grandes, que vivem décadas e crescem tanto que
acabarás por ter de lhe arranjar uma piscina.
– Foste tu que ficaste com o Roscoe, não foste? – perguntou Yale.
Fiona não disse nada e olhou para Thor através do vidro. Parecia
estranhamente imobilizada.
– O gato do teu irmão. O Roscoe.
Ela virou-se para ele, com os lábios entreabertos.
– O que foi? – disse ele.
– Merda. Merda.
– Quer dizer, era o Terrence que o tinha, e depois...
– Merda.
– Mas a família dele não terá?...
– Não. Não puseram os pés lá em casa. Nunca chegaram a... Oh, meu
Deus! Yale!
– Mas o senhorio?... Com certeza que esvaziaram o apartamento.
– Ninguém entra a correr nas casas, numa situação destas, para tocar nas
coisas dos outros. Esperam, mandam, sei lá... mandam fumigar a casa. E
podem nem sequer saber que o Terrence morreu. Quem é que lhes diria? Eu
sei que não disse! Foi o Teddy que foi lá buscar o fato para o...
As meninas estavam agora a ignorar os ursos-polares e a olhar para eles.
Fiona desenrolou o cachecol, como se ele estivesse a estrangulá-la.
Era segunda-feira, dia três. Terrence morrera no dia 17 de janeiro. Havia
mais de duas semanas. Yale não se lembraria com tal exatidão se não
andasse a olhar tanto para o calendário ultimamente.
– Bom, vamos... merda, não podemos ir lá? Podemos ir agora mesmo.
Vamos.
Correram através do jardim zoológico, passando pelos animais, pelos
cartazes amarelos que informavam os seus nomes científicos, com as
meninas a chorar porque ainda nem sequer tinham visto os gorilas.
Fiona tinha a chave do apartamento de Terrence, mas deixara-a em casa.
De qualquer modo, tinha de levar as meninas a casa – a mãe estava lá e
sabia o que Fiona tinha passado ultimamente, não se importaria de a
dispensar uma ou duas horas. Yale esperou na rua enquanto Fiona entrava a
correr com as crianças. Quando ela voltou com a chave, ele já tinha
mandado parar um táxi.
– Eu entro primeiro – disse Yale, pelo caminho. – É melhor esperares cá
fora.
– Não. Não, não! Entramos juntos. – Pediu ao taxista para ir mais
depressa. Ele apontou para o semáforo vermelho e resmungou qualquer
coisa em polaco.
Quando saíram finalmente, enquanto subiam as escadas até ao segundo
andar, Yale admitiu a si mesmo que esta era uma distração bem-vinda. Há
muito tempo que não tinha um rumo claro traçado, uma decisão fácil com
uma resposta óbvia. Iam subir e encontrar o gato. Ou, melhor ainda, subir e
não encontrar o gato.
Fiona respirou fundo e enfiou a chave na fechadura de Terrence. De
súbito, parou e bateu, com o ouvido encostado à madeira. Yale susteve a
respiração, na esperança de ouvir os novos inquilinos, uma equipa de
limpeza, miados frenéticos. Mas ela abanou a cabeça e rodou a chave.
O cheiro na sala de estar era horrível. Yale não se lembrava se era o
mesmo cheiro horrível – a medicamentos, vomitado, areia de gato, suor – de
duas semanas antes, ou se era alguma coisa nova. As mobílias de Terrence
continuavam no mesmo sítio. O lençol muito bem dobrado que Yale deixara
em cima do sofá, duas semanas antes, estava onde ele o pusera.
– Roscoe! – chamou Fiona, baixinho, como se tivesse medo da resposta.
Yale entrou na cozinha e olhou para a caixa de areia, que fora realmente
usada, mas não tanto como seria de esperar. Roscoe tinha uma tigela de
plástico dupla – comida de um lado, água do outro – e ambas as partes
estavam vazias. Yale enchera-a na manhã em que saíra, e enchera
propositadamente o lado da comida até transbordar, uma montanha de
Meow Mix, suficiente para durar alguns dias. O problema maior era a água.
– Roscoe? – chamou. Abriu a torneira para ver se o som o atrairia.
Espreitou por trás dos caixotes do lixo, dentro dos armários, atrás do
frigorífico. Fiona ainda estava a chamar, a percorrer o apartamento.
– A sanita está aberta – disse ela, e Yale percebeu que isso significava que
o gato teria água para beber, se fosse suficientemente esperto e tivesse bom
equilíbrio.
Havia frascos de comprimidos no parapeito da janela da cozinha.
Analgésicos, vitaminas, mais vitaminas, antibióticos fora do prazo. Todos
meio vazios (abanou alguns), todos inúteis. Podia levá-los para Julian,
talvez. Ou para si. Uma planta murchava ao canto, num vaso azul, e Yale
abriu a torneira, pegou no vaso e molhou a terra. Porque não?
Olhou outra vez para trás do caixote do lixo. Para dentro do caixote. Para
as escadas de incêndio do outro lado da janela.
Fiona estava à porta, com o rosto vermelho e molhado.
Nos braços tinha o que parecia um boneco de peluche meio vazio. Uma
estola de pele. Um bicho atropelado.
– Ainda está a respirar – disse ela. – Acho eu.

Na sala de espera do veterinário, Yale folheou uma revista Life antiga,


com uma reportagem sobre a máfia. Fiona tinha uma bola de lenços de
papel amachucados no colo e, embora já tivesse parado de chorar, ainda
estava a soluçar e, de poucos em poucos minutos, soltava um suspiro
trémulo e levava os lenços de papel ao rosto. Roscoe estava a receber soro
por via intravenosa e o veterinário prometera vir dizer alguma coisa em
breve. Era perfeitamente evidente que pensava que Yale e Fiona eram um
casal. Dirigira todas as perguntas a ambos, mesmo depois de Fiona explicar
que Roscoe era o gato do irmão. Ela contou-lhe uma versão resumida da
história, disse que o irmão tinha morrido e que o gato ficara esquecido.
– Fizeram bem em trazê-lo – dissera ele a ambos.
À sua volta, na sala de espera, cães debatiam-se com as trelas e com os
azulejos escorregadios do chão. Um gato não parava de dar voltas dentro da
caixa de transporte.
– A semana passada – disse Fiona –, fui fazer uma massagem. E a
massagista perguntou-me: «Teve algum acidente de carro?» – Imitou o
sotaque russo da mulher. – E eu respondi que não, que estava só cheia de
stress. Cinco minutos depois, ela insiste: «Mas talvez há muito tempo?
Acidente de carro?» Apalpa aqui. – Pegou na mão de Yale e colocou-a na
parte de trás do pescoço. Yale pressionou o que já calculava que fosse um
músculo rijo como mármore.
– Isso não é bom – disse.
– E eu insisti que não, que nunca tinha tido nenhum acidente, nem sequer
um toque. E ela diz-me: «Sim, mas às vezes esquecemos.»
Algo na forma como ela contara a história, com o sotaque e a sabedoria
de baba russa, fez com que Yale se desmanchasse a rir. Ou talvez fosse o
facto de ele próprio se sentir assim há um mês, como se alguém lhe tivesse
injetado cimento nos deltoides e depois o trancasse numa arca congeladora.
Uma assistente veio dizer-lhes que Roscoe estava a reagir bem e eles
soltaram a respiração, aliviados, como se se tratasse de um filho.
Yale ficaria com o gato, se ele sobrevivesse. Obviamente. Como podia
pedir a Fiona, logo ela, para se preocupar com mais um problema? Disse-
lhe que resolveria o assunto e ela assentiu lentamente, já a pensar noutra
coisa, a cabeça emoldurada por um poster informativo sobre a leucemia
felina. A pele dela estava seca e esticada; parecia demasiado magra. Yale
abriu a boca para lhe perguntar se estava a cuidar de si, se pensava regressar
à escola no ano letivo seguinte, se não seria boa altura para tirar umas férias
– mas depois ela olhou para ele e disse:
– E se fosses ao Dr. Cheng?
O Dr. Cheng era o médico de Nico e, nas duas semanas no verão passado
em que o tinha deixado vir para casa, visitara-o todos os dias para ver como
ele estava. Numa dessas ocasiões, Charlie e Yale estavam lá, e o médico
mandara vir uma piza, que pagara do seu bolso – não para si, nem para
Nico, que não conseguia aguentar nada no estômago, mas para Yale e
Charlie, que tinham passado a tarde toda ali.
– Só para lhe pedir um conselho – continuou Fiona. – Seria melhor do
que ligar para uma linha de apoio. Posso telefonar-lhe. Ele adora-me, não
sei porquê. Tenho a certeza de que te recebia ainda hoje.
Yale quis instintivamente mandá-la parar, dizer-lhe que não tinha de
tomar conta também dele, que não podia fazer uma coisa dessas a si
própria. Se ela ligasse ao Dr. Cheng, não seria o princípio de alguma coisa?
Não acabaria por ser ela a pessoa que estaria a esvaziar a arrastadeira dele,
no fim? Mas, quando deu por si, estava a dizer que sim, porque a memória
do Dr. Cheng, da sua voz calma, era avassaladoramente reconfortante.

Fiona telefonou dali mesmo, da receção do veterinário, e quando saíram


uma hora depois – Roscoe tinha de ficar a receber soro pelo menos uma
noite – foi para se dirigirem imediatamente ao consultório do Dr. Cheng,
em George Street. Yale ralhou consigo próprio silenciosamente por ter
permitido que Fiona o acompanhasse, por a ter deixado envolver-se ainda
mais. Ela devia estar em casa, a dormir uma sesta. A comer qualquer coisa.
Mas hoje devia estar a sentir que falhara a Nico, a Terrence. Chorara com a
cara encostada ao pelo de Roscoe o caminho todo até ao veterinário. Seria
assim tão mau deixá-la fazer qualquer coisa por si?
O consultório do Dr. Cheng ficava numa antiga residência. Incenso na
sala de espera, uma enfermeira que saiu de trás da secretária para dar um
grande abraço a Fiona. Não havia mais ninguém, felizmente, nenhum
desconhecido com olheiras ali sentado, como o fantasma do futuro de Yale,
nenhum conhecido com quem tivesse de trocar palavras de circunstância.
– Hoje é o dia das salas de espera – comentou Yale.
– Aqui as revistas são melhores – disse Fiona. Na mesinha baixa estava
uma pilha de velhas Esquires. Mas Yale tinha de preencher os impressos:
historial de doenças, medicamentos, operações.
– Não precisas de ficar – disse a Fiona.
– Quero cumprimentar o Dr. Cheng. Se voltar para casa, tenho de tomar
conta das miúdas. Acredita, para mim isto são quase umas férias.
Devia estar a mentir. Provavelmente passara alguns dos piores momentos
da sua vida sentada naquela mesma cadeira de braços esgaçada onde se
sentava agora.
– Só te deixo ficar se me prometeres uma coisa – disse Yale.
A expressão de Fiona era ao mesmo tempo desconfiada e paciente.
– O que é que tens feito por ti ultimamente? Quais são os teus planos para
este ano? Tens vinte e um anos. És inteligente. Não achas que agora... não
queres ir para a universidade?
– Agora que o Nico já cá não está, queres tu dizer.
– Bom... sim. E o Terrence. O que eu não quero é que me adotes agora a
mim, e depois ao tipo que adoecer a seguir, e por aí fora, senão, quando
deres por isso, tens cinquenta anos e vives numa cidade-fantasma, rodeada
pelas nossas roupas e livros velhos.
– Não vou adotar mais ninguém. Só a ti. O Nico adorava-te e sempre
foste tão simpático comigo quando eu era miúda. Lembras-te de quando me
fizeste uma visita guiada no Instituto de Arte?
– Bom, lembro-me de que fizeste disparar o alarme.
– O que estou a dizer é que ambos precisamos de um amigo neste
momento.
– Somos amigos, Fiona, mas não quero que...
– Bom, então vamos ser os melhores amigos um do outro. Não te rias,
não quero dizer melhores amigos como se tivéssemos dez anos. Quero dizer
como família. Vamos pensar que somos família. Vamos ligar um ao outro
quando estivermos tristes. E eu dou-te um presente quando fizeres anos e
tudo.
– Está bem. – Não conseguia dizer-lhe que não. – Mas estávamos a falar
sobre a universidade.
– Oh, céus, Yale. Não estou mesmo a ver-me metida nesse ambiente de
festas. Sentada nas aulas no meio de miúdos de dezoito anos.
A distância entre dezoito e vinte e um parecia risivelmente pequena, mas
Yale não o disse. Além do mais, os vinte e um anos de Fiona podiam
equivaler a duzentos.
– Podias frequentar aulas aqui, na cidade. Não seria mesmo ir para a
universidade, viver lá, ter tipos bêbedos a tocarem-te serenatas à guitarra.
Pensa apenas nas aulas, no curso. Não queres ser ama para sempre, pois
não?
Arrependeu-se das palavras assim que as disse. Mas só tinha metade do
cérebro nesta conversa. Ao mesmo tempo, estava a pensar se deixaria o Dr.
Cheng convencê-lo a fazer alguma coisa hoje. Não queria. Não estava
preparado.
– Achas que os teus pais pagariam? – perguntou.
– Sim, mas eu não aceitaria um cêntimo daquela gente. Se me deixarem
alguma coisa quando morrerem, vou doar tudo para a investigação da sida.
Mas aceitaria dinheiro de Nora, pensou Yale. Teria aceitado um cheque,
se ela lho desse. Pelo menos era apenas uma questão de orgulho; pelo que
ela dizia, o dinheiro estava lá para a ajudar, se alguma vez realmente
precisasse. Mas Fiona era teimosa. Nunca voltaria, de cabeça baixa, a pedir
favores.
– Queres que ligue aos meus antigos professores a pedir recomendações?
Mal me viam nas aulas!
– Tenho a certeza de que se lembram de ti. Com certeza que não és a
única nessa situação. – A enfermeira levantou-se mas apenas para tirar
qualquer coisa de uma prateleira alta, e depois voltou a sentar-se. – Eu
também posso escrever uma carta. Além das outras. Trabalho numa
universidade, tecnicamente. Quer dizer, supervisiono estudantes.
Fiona desatou a rir, que era o que ele pretendia quando o dissera.
Depois, a enfermeira chamou-o.
O Dr. Cheng tinha uma fotografia emoldurada do monte Kilimanjaro na
parede, e o consultório cheirava mais a sopa do que a álcool. Olhava
diretamente para a pessoa, quando falava, e fazia uma pausa deliberada a
cada três frases, como se alguém lhe tivesse ensinado a fazê-lo na faculdade
de medicina. Reviu o historial médico de Yale e fez-lhe um breve exame
físico. Não o mandou despir e vestir a bata, pelo menos, mas, mesmo assim,
pareceu-lhe demasiado, como o início de algo oficial. Ocorreu a Yale,
enquanto o Dr. Cheng lhe auscultava os pulmões, que este podia ser o
homem que presidiria aos seus últimos dias de vida. Que, ao entrar por
aquela porta, podia muito bem ter escolhido um companheiro muito mais
permanente do que qualquer outro na sua vida. Até que a morte nos separe.
– Então, tem algumas preocupações, é isso? – quis saber o Dr. Cheng.
Yale despejou tudo tão depressa que receou que o médico pensasse que
ele estava a mentir.
O Dr. Cheng repetiu a história mais devagar, tomou notas, certificou-se de
que tinha as datas certas.
– Receia portanto ter sido infetado em finais de dezembro.
– Ou antes.
– Dezembro ou antes. No início de janeiro, sentiu alguma fadiga, febre,
falta de apetite?
Yale abanou a cabeça.
– Irritações na pele, dores de garganta, enxaquecas, dores musculares?
Uma constipação?
– Não.
– Reparou em algum inchaço nos gânglios?
– Não procurei, na altura. Mas agora, não.
– Quero ouvir as suas dúvidas e preocupações em relação à análise –
disse o Dr. Cheng, e cruzou as mãos no colo.
– Não tenho a certeza se quero fazê-la hoje – confessou Yale. – Não
quero ter um resultado que não signifique nada. – Tirou os pelos de gato da
camisola de malha, um a um.
– Sabe, se tiver contraído o vírus há um mês ou mais, eu diria que os
resultados neste momento seriam bastante fiáveis. Não impediria que eu
quisesse que repetisse a análise daqui a três meses. E precisava que me
prometesse que evitaria comportamentos que pudessem colocar outras
pessoas em risco.
Parou, inclinou-se para a frente e esperou que Yale começasse a falar.
– Não sei porquê, mas estou mais assustado desta vez. Da primeira vez, o
ano passado, tão depressa achávamos que tínhamos o vírus como nos
convencíamos de que estava tudo bem. Mas na maior parte do tempo, no
fundo, eu acreditava estar infetado, percebe? Todas as manhãs procurava
aftas na língua. Quando fomos fazer a análise, foi... um alívio, talvez. Mas
agora não sinto o mesmo.
– Sozinho é mais difícil.
– Claro. – Yale conseguiu responder sem deixar a voz tremer.
O Dr. Cheng aproximou-se mais dele.
– Oiça: esteve exposto, sim. Mas isso não é tão definitivo como pode
parecer. Já tratei tipos com quem eu fui para a cama, Yale. E isso foi antes
de haver a análise. Parti do princípio de que também estava infetado. E não
estou. Não vamos perder a cabeça por causa de algo que ainda não
aconteceu. Vai fazer a análise hoje. Penso que, entretanto, isso o fará sentir-
se melhor. E marcamos uma consulta para saber os resultados... – fez
deslizar a cadeira até junto da agenda em cima da secretária – ...daqui a
quinze dias, no dia dezassete.
– Mas a primeira análise não demora só alguns dias? Quero que me diga
se der positivo. Quero saber.
O Dr. Cheng abanou a cabeça.
– Não posso fazer isso. Qualquer resultado positivo é preliminar. Um
teste ELISA positivo é repetido, e depois enviado para reavaliação. Há
muitas explicações possíveis para um resultado positivo no ELISA. Sífilis,
por exemplo. Consumo de drogas. Gravidezes múltiplas.
Não teria sido engraçado se o Dr. Cheng não estivesse tão sério, mas Yale
deu por si a sorrir. Este homem não seria a pior pessoa para ter a seu lado
no leito de morte.
– Um ELISA negativo é negativo quase de certeza, mas também não
posso prometer que lhe ligo se for esse o resultado, porque se não receber o
telefonema na altura esperada... não é? Com certeza que compreende.
– Acha que eu me atiro da ponte.
O Dr. Cheng perguntou a Yale se gostaria de falar com um terapeuta –
não, ainda não – e disse que lhe dariam um papel com um número. Esse
mesmo número ficaria na ficha dele.
– Nem sequer escrevo na ficha que fizemos a análise – explicou. – Utilizo
um símbolo especial. Se me confiscassem os arquivos, veriam apenas
bonequinhos engraçados. Não por ser uma questão de vergonha, quero que
perceba isso. Por vezes, associamos o segredo à vergonha. Trata-se apenas
de proteger os doentes. Tem alguma pergunta relativamente a
confidencialidade?
Yale não precisava do sermão sobre vergonha, mas servira para ganhar
algum tempo. Tentou pensar noutra pergunta que exigisse uma explicação
longa, mas não lhe ocorreu nada.
– Vou ficar aqui, enquanto a Gretchen lhe tira sangue – disse o Dr. Cheng,
e assim fez. Yale olhou para o lado; sempre lhe fizera impressão ver o seu
próprio sangue encher o tubinho. – Temos uns brindes – disse o Dr. Cheng,
e entregou a Yale um saco de plástico opaco com preservativos. – Tem aí
cinco variedades. Vários de cada. Sabe como os usar?
Yale disse que sim. Pusera um numa banana, entre risos, numa das
reuniões que Charlie organizara no apartamento. Charlie apresentara-o ao
grupo como «o meu modelo para aplicação de profiláticos!». Mas nunca
usara um. Uma ou duas vezes um parceiro usara-o nele, antes de estar com
Charlie, e não gostara particularmente da sensação. Perguntou a si próprio
se alguma vez daria uso a estes ou se ficariam esquecidos numa gaveta
enquanto ele passava o resto da sua vida, curta ou longa, celibatário.
Gretchen estava despachada. Yale regressou à sala de espera, ainda de
manga arregaçada, e, quando viu Fiona – céus, como era bom vê-la –,
apontou para o penso na dobra do braço por cima de uma bolinha de
algodão.
Ela tinha os olhos vermelhos mas disse:
– Vou comprar-te um chupa-chupa, vou mesmo! Tem de haver algum
sítio aqui perto. Vou comprar-te um chupa-chupa.
2015
iona escolheu cuidadosamente a roupa: calças cinzentas, blusa azul,
F sapatos pretos de salto alto. Podia ter apanhado o metro, mas não queria
ter de se preocupar com as mudanças de linha, com a possibilidade de ficar
suja ou malcheirosa. Assim, atravessou a ponte junto do local de gravações
e apanhou um táxi para o 18.º Bairro, até uma morada que, descobriu,
ficava aos pés de Montmartre.
Cecily dissera-lhe:
– Lembra-te de que tens tempo. Não precisas de resolver tudo de uma
vez.
Mas Cecily não conhecia Claire – não sabia que um gesto errado podia
ser suficiente para a fazer desaparecer. E Cecily, apesar de ter escutado
avidamente os poucos detalhes que Fiona podia dar-lhe sobre a neta de
ambas, não estava disposta a vir a Paris.
– A minha presença só ia piorar as coisas – dissera. Desde quando é que
Cecily era especialista fosse no que fosse?
Fiona não sabia bem o que esperar de um bar-tabac, mas na realidade era
apenas um bar. Um estabelecimento acolhedor como os que encontraria
facilmente em Rogers Park. Cartazes de filmes, luzinhas de Natal a decorar
as prateleiras de garrafas. Faltava pouco para o meio-dia e havia apenas
alguns clientes, na sua maioria homens, quase todos sozinhos.
Fiona não conseguia sentir os pés.
Endireitou os ombros, aproximou-se da mulher atrás do balcão – que não
era decididamente Claire – e disse:
– Je cherche Claire Blanchard. Elle est ici?
A mulher olhou para Fiona, um olhar que dizia oh, então és tu a mãe, e
disse qualquer coisa demasiado depressa para Fiona compreender.
Desapareceu por uma porta ao fundo do bar.
E, depois, Claire. A afastar o cabelo do rosto. A respirar fundo, a
preparar-se.
Eram os olhos de Claire, as suas pestanas escuras. O castanho irisado dos
seus olhos.
A outra mulher, atrás dela, olhou para Fiona. Disse qualquer coisa a
Claire em voz baixa e ela acenou com a cabeça.
Parecia magra mas saudável – as faces rosadas, o cabelo preso num
carrapito largo – e sobressaltada, como se tivesse sido apanhada
desprevenida. O que não era possível, naturalmente.
Fiona imaginara mil conversas que podiam ter, cem formas como a
manhã podia acabar, mas não pensara bem o que fazer com aquela cara,
aquele corpo. Claire abriu um sorriso tenso, embaraçado.
O que Fiona acabou por dizer foi:
– Olá.
Claire contornou o balcão e deu-lhe um abraço rápido, o tipo de abraço
que se dá a uma tia afastada.
– É bom ver-te – disse.
Fiona sentiu-se, de todas as coisas que podia sentir-se, zangada e ridícula.
Por ter despendido tanto tempo e dinheiro e desespero para encontrar
alguém que a abraçava de forma tão casual, que não lhe caía nos braços,
não lhe implorava que a salvasse. Para encontrar esta estranha adulta de pé
à sua frente, tão calma. O cabelo dela escurecera um pouco e o seu rosto
mudara de formas que não tinham nada a ver com a magreza; os ossos
pareciam ter-se fixado no seu lugar, as órbitas estavam mais fundas. Não
parecia nada uma estudante universitária, nem a jovem desfocada e banhada
pelo sol que vira no vídeo.
– Podemos ir conversar para algum lado? – pediu Fiona.
– Achei que podíamos ficar aqui mesmo. – Disse-o com firmeza, como se
tivesse ensaiado. Como se a mulher atrás do balcão estivesse ali para se
certificar de que Claire não era raptada hoje.
Sentaram-se ao canto, por baixo de um televisor onde passava um jogo de
futebol. Os clientes dispersos olhavam nessa direção, mas para o jogo, não
para Fiona e Claire. Fiona desejou ter algo para comer ou beber, algo que as
ancorasse à mesa. Algo para conferir a este encontro a moldura temporal de
uma refeição, para garantir que duraria mais de um minuto.
– Preciso de saber que estás bem – disse Fiona. Queria tocar nas mãos de
Claire, sentir se eram agora ásperas ou se ainda eram macias. Queria
prender-lhe o cabelo atrás da orelha.
– Estamos bem – disse Claire.
– Tens uma menina.
Claire sorriu.
– Estou a ensinar-lhe inglês, não te preocupes.
– Não era essa a minha preocupação.
Claire tirou um telemóvel do bolso do avental que Fiona só então reparou
que ela usava por cima da roupa – um avental branco preso à cintura, por
cima de uma saia preta, com uma camisola também preta.
– Espera – disse, e mexeu no telemóvel por um instante, antes de o
colocar em cima da mesa, à frente de Fiona. Uma menina num triciclo, com
os caracóis a esvoaçarem contra o rosto.
Fiona queria pegar no telemóvel sem cerimónias e passar as fotografias
uma a uma, ver quantas havia para trás, quantas havia para a frente. No
entanto, disse apenas:
– É muito bonita.
– O Kurt casou-se. Toma conta da Nicolette de vez em quando, enquanto
eu trabalho.
Pronunciou o nome com sotaque francês e Fiona não conseguiu perguntar
se a criança fora batizada em homenagem a Nico, o tio que Claire nunca
conhecera mas em cuja sombra crescera. Temia de igual forma ambas as
respostas possíveis.
– Não está na escola?
– Tem só três anos.
– Estavas no Colorado quando a tiveste?
Claire levantou-se e foi buscar um guardanapo ao balcão, para se assoar.
Fiona temeu que ela não voltasse a sentar-se, mas voltou.
– Sim. Bom, foi o princípio do fim. Eles... foi um parto domiciliar e não
correu muito bem.
– Oh, meu Deus. Oh, minha querida...
– Eu estava a perder muito sangue, mesmo muito, e eles não me deixavam
chamar uma ambulância. Por isso, o Kurt roubou o carro... só havia um
carro... e levou-nos ao hospital. Quase morri. Estive internada uma semana.
Mas eles aceitaram-nos de volta. Acho que tinham medo de que os
processássemos.
A mãe é que devia estar lá quando uma filha tem um bebé, a mãe é que
devia gritar com os médicos e garantir que a deixavam descansar. Se Fiona
tivesse deixado a sua própria mãe entrar no hospital, as coisas teriam sido
diferentes? Teria a mãe insistido em pôr a bebé Claire no peito dela,
certificando-se de que mãe e filha estabeleciam um elo enquanto dormiam?
O pensamento atingiu-a com força, como um soco no estômago, bem como
a compreensão de que Claire fizera com ela exatamente o mesmo que ela
fizera com a sua mãe. Nem sequer lhe ocorrera ligar à mãe senão quando
Claire já tinha dois dias. Ela... oh, céus.
– Como é que pagaste a conta do hospital?
– Hum... não pagámos, na verdade. Saímos e desaparecemos, antes que
pudessem identificar-nos.
– Foi nessa altura que te vieste embora?
– Quando a Nicolette tinha um mês. Esperámos algum tempo enquanto
juntávamos algum dinheiro. Não era suposto que tivéssemos dinheiro
próprio, mas o Kurt trabalhava na caixa nas feiras, por isso... E ele escreveu
a uma amiga em Paris, que nos ajudou. E acabou por se casar com ela.
– Querida – disse Fiona. – Estou contente por teres saído. – Referia-se às
duas coisas: o culto e a relação.
– Trabalhei numa loja de artes durante algum tempo. – Sorriu. – Terias
gostado. Já existe há duzentos anos. O Monet comprava lá os pincéis.
– Qual é a loja?
Claire lançou-lhe um olhar de estranheza – por que raio saberia Fiona os
nomes das lojas de artes em Paris? – e, em vez de lhe explicar que a
procurara em todas, Fiona disse:
– Talvez a tia Nora também fizesse lá compras.
– Era um bom emprego – continuou Claire. – E, depois, o Kurt roubou
coisas da loja. Aparecia quando eu estava a fechar e tirava coisas, fez isso
várias vezes. Eu não sabia. Mesmo assim, fui despedida. Mas não fui presa.
Ele foi. E foi nessa altura que nos separámos.
– Ele anda metido em drogas?
– Agora está completamente limpo. Caso contrário, não o deixaria ficar
com a Nicolette.
Fiona olhou para ela de lado.
Claire disse:
– Mãeeeee. – A imitação de uma adolescente lamurienta. Seria mais
engraçado se ela não fosse uma adolescente da última vez que Fiona a vira.
– O que te traz a Paris? – perguntou, sem vestígios de ironia.
– Achei que seria divertido gastar três anos e alguns milhares de dólares à
procura da minha filha. Ah, e já agora aproveitar para ver a Torre Eiffel.
– Oh... – Claire parecia aborrecida, mas parecia também que tentava
esconder alguma satisfação. – Não precisavas de ter vindo.
– Claire, tens uma filha. Não percebes? Não farias o mesmo... se a tua
filha... – Fiona não conseguia dizer o nome da menina. Seria uma invasão,
um privilégio que ainda não fora convidada a partilhar.
– É diferente – disse Claire.
Uma acusação, talvez, mas em vez de morder o isco Fiona disse:
– O teu pai está bom.
– Eu sei.
– Como?
– Quer dizer, aqui também há Google. Vejo quando ele dá palestras. E a
tua loja parece estar bem, portanto presumi que também estavas.
Fiona queria perguntar-lhe se compreendia que negara aos pais o direito,
nos últimos três anos, de saber se ela estava viva ou morta. Queria, pelo
menos, saber porquê. Mas isso era algo a deixar mais para a frente. Nesta
conversa, uma pergunta dessas cairia como uma bomba.
– A Karen tem cancro da mama – disse. – Foi por isso que o teu pai não
veio. Ela está a começar a radioterapia.
Claire pareceu apenas ligeiramente preocupada.
– É grave?
– Bom, é cancro. Mas parece que é tratável.
– Ela vai envolver-se até aos olhos naquela coisa das fitas cor de rosa, não
vai? Vai participar em todas as marchas e estar sempre a falar sobre o
assunto.
Anos antes, Fiona tê-la-ia admoestado – sempre tivera o cuidado de falar
sobre Karen de forma respeitosa, de manter boas relações –, mas agora
cedeu ao riso e era uma sensação maravilhosa.
Fiona tirou um envelope da mala e escreveu o número de telefone de
Damian na parte de trás.
– Ele está a passar um mau bocado – disse –, e sei que se sentiria melhor
se ouvisse a tua voz.
Claire aceitou o envelope, sem se comprometer, e prendeu-o no avental.
– Estás aqui legalmente? – murmurou Fiona.
– É complicado. Não vou ser presa, está descansada. Deixei passar o
limite do meu visto. Mas não é nada que não se possa resolver.
– Porque não vens para casa? Para Chicago?
– Por favor não me digas que mantiveste o meu quarto tal como o deixei.
Não o fizera, felizmente, caso contrário o comentário teria magoado. O
quarto de Claire ainda lá estava, e ainda tinha a cómoda e os livros dela,
mas, pouco depois de a filha partir para o Colorado, Fiona colocara lá a
máquina de costura e as coisas foram-se espalhando.
– Vou ficar aqui mais uma ou duas semanas. Lembras-te do Richard
Campo? – Era uma pergunta parva. A fotografia que Richard tirara de
Claire, em bebé, a chorar nos braços de Damian, era uma das suas obras
mais conhecidas e admiradas. Ainda estava no Museu de Arte
Contemporânea do Massachusetts. Claire fizera o seu trabalho de
candidatura à universidade sobre essa imagem. – Ele vai estrear uma
exposição no Centre Pompidou na segunda-feira. Estou em casa dele.
Sentiu-se tentada a insinuar que fora esse o motivo principal da sua vinda,
que procurar Claire era secundário, mas porquê? Por orgulho? O orgulho
sempre fora o seu ponto fraco com Claire – fingir que não a amava tanto
como amava. Tentava proteger-se de um coração partido, como faria com
um namorado. (Da primeira vez que ela e Damian tinham feito terapia
conjugal, o terapeuta dissera-o, finalmente: «O que tem medo que aconteça
se se abrir completamente ao seu marido?» E Fiona, já a chorar, gritara:
«Que ele morra!» Obviamente não era o que ele esperava ouvir. Não era
muito bom terapeuta.)
– Fico pelo menos até lá, para ver a exposição. Gostava muito que
voltasses para casa comigo, mas... – Levantou a mão para travar o protesto
de Claire – ...se isso não for opção, então gostava de ficar mais algum
tempo. Talvez possa ajudar com a bebé. Podes dar-me o teu número de
telefone, pelo menos?
– Ela não é bebé. Tem três anos.
– Gostava tanto de poder ajudar-te, querida.
Claire não deu o seu número a Fiona, mas disse-lhe que podia voltar
dentro de dois dias, e depois se veria como corriam as coisas.
A mulher atrás do balcão chamou Claire, apontou para o relógio, e Fiona
perguntou a si própria se isto teria sido combinado previamente. Chama-me
ao fim de seis minutos, a menos que eu te faça sinal.
– Não me importo que estejas aqui, mas nós estamos bem.
– Eu sei que sim. Estou a ver que sim. Nunca tive dúvidas disso.
Em parte, estava realmente a ser sincera.
1986
ale queria que Julian saísse do apartamento, mas Julian não queria
Y correr o risco de ser visto. Tencionava esconder-se ali até domingo,
quando tinha voo marcado para Porto Rico. Um antigo colega de escola
vivia lá e oferecera-se para lhe dar alojamento – e, depois disso, não sabia
para onde iria, só tinha a certeza de que seria um sítio quente.
– Jamaica, talvez – disse, e Yale respondeu:
– Julian, na Jamaica matam pessoas como nós.
E Julian, numa reação bastante preocupante, limitou-se a encolher os
ombros.
Julian passava a maior parte do tempo fechado no quarto ou a exercitar-se
no ginásio de Marina City, com roupas que tirava do armário de Allen
Sharp. Tanto quanto Yale se apercebia, estava limpo e sóbrio – por outro
lado, não sabia o que se passava durante o dia. Todas as tardes, às seis e
meia, Julian aparecia na sala para ligar o televisor e ver a Roda da Sorte,
embora Yale não tivesse sequer a certeza de que ele gostava do programa;
nunca tentava adivinhar a resposta. Quando o vencedor ia às compras na
pequena montra de prémios, após cada ronda, Julian comentava em voz alta
se seria desta que alguém escolheria a estátua do dálmata. Era esse todo o
seu envolvimento.
*
Na terça-feira, após o trabalho, Yale viu Asher Glass na piscina de Hull
House. Asher já estava a secar-se quando Yale chegou. Yale saltou para a
água e conversou um pouco com ele de dentro de água. Sentia-se
escanzelado e pálido ao lado de Asher e a água oferecia-lhe uma certa
proteção. Asher ouvira dizer que Yale estava a viver em River North.
– Nas torres das maçarocas – disse Yale. – Estou farto de tentar arranjar
uma boa piada com maçarocas mas não me ocorre nada.
Asher não se riu e olhou para ele com ar preocupado.
– Se precisares de ajuda jurídica para tirares o que é teu do apartamento...
ou com qualquer questão financeira... bom, só estou a dizer que é isso que
eu faço e terei todo o gosto em ajudar.
As gotas de água nos ombros e peito de Asher eram esferas perfeitas.
– Fico muito agradecido por te ofereceres.
Não pensara muito nas coisas que deixara em casa de Charlie. Há já
vários dias que andava a vestir as camisolas de Allan Sharp e o roupão
muito macio de Allen Sharp, e, por enquanto, tinha todas as mobílias,
pratos e música de que precisava. Mas o facto de Asher estar disposto a
ajudá-lo a ele e não a Charlie aqueceu-o, mesmo dentro da água fria. Depois
de Asher se ir embora, mergulhou até ao fundo da piscina e olhou para
cima, para os raios de luz azul.

Fiona ligou para o escritório de Yale na quarta-feira, para lhe dizer que
Roscoe já estava suficientemente bom para ter alta do veterinário. Yale não
perguntou quanto era a conta e Fiona também não disse nada; Yale pagou os
360 dólares sem uma palavra e trouxe Roscoe para casa na caixa de
transporte de cartão que lhe facultaram no veterinário.
Yale não contara a Julian o episódio do gato – porque era angustiante e
porque não sabia se conseguia contar essa história sem dizer também que
tinha feito a análise no mesmo dia – por isso, quando abriu a caixa e Roscoe
deu um passo hesitante na sala, Julian, sentado no sofá, olhou estupefacto
para o gato.
– Lembras-te dele? – perguntou Yale.
Após um segundo de confusão e incompreensão, Julian saltou para o chão
e abraçou Roscoe como se fosse uma mantinha preferida há muito perdida.
– De onde é que ele apareceu? – perguntou, mas felizmente não deu
tempo a Yale de responder. – Já viste, agora vives num palácio! Ele vai ficar
aqui? Pode ficar?
– Se não tiver outros compromissos que eu desconheça.
Ao ver a forma como Julian apertava o gato, temeu que, agora, Julian
nunca mais se fosse embora. Mas o bilhete de avião estava comprado e ele
parecia mais nervoso a cada dia que passava. Yale saiu novamente e foi
comprar uma caixa de areia, comida, uma tigela e uma cama de gato. Já à
porta da loja, voltou atrás e comprou-lhe também um brinquedo, uma bola
roxa com uma cauda de penas.

Na quinta-feira receberam um especialista em Foujita – vindo


propositadamente de Paris – que vinha encontrar-se com Bill. Yale teve
vontade de ficar com o ouvido encostado à porta. Queria passar o resto da
vida a construir a Paris de Nora com cubos de açúcar, tijolo a tijolo. Queria
um bilhete só de ida para 1920. Pensou na teoria de Nora sobre as viagens
no tempo. Que forma de viajar horrível, esta, que só nos levava para a
frente, para um futuro assustador, cada vez para mais longe daquilo que em
tempos nos fez felizes. Mas talvez não fosse bem isso que ela queria dizer.
Talvez quisesse dizer que, quanto mais envelhecemos, mais décadas temos
ao nosso dispor para revisitar de olhos fechados. Não conseguia imaginar
que alguma vez quisesse revisitar aquele último ano. Bom, dentro de onze
dias saberia os resultados. E talvez então desejasse poder regressar a este
purgatório, ao tempo em que podia estar sentado à secretária, agarrado a
uma centelha de esperança.
*
Quando Yale chegou a casa nessa noite, Julian estava sentado à mesa a ler
a TV Guia, apesar de nem sequer estar perto do televisor. Era uma revista
antiga, comprada da última vez que os Sharp tinham estado em casa.
Roscoe estava no colo dele.
– Isto é engraçado – disse Julian. – Fingiram entrevistar o Cocas e a Miss
Piggy.
– Sim, eu vi.
– Ele insiste que não são casados e ela acha que são.
– Hilariante. Está tudo bem?
– Daqui a dois dias vês-te livre de mim.
Yale sentou-se. Se Julian ia mesmo deixá-lo, então podia perguntar-lhe.
Devia fazê-lo, antes de ele se ir embora.
– Quero voltar a dizer que te perdoo pelo que aconteceu com o Charlie.
Devia andar a envenenar-te o café, mas não estou zangado contigo, a sério.
Mas tens de me dizer uma coisa. Preciso de saber se foi mesmo só essa
vez.
Julian virou a revista e pousou-a na mesa, aberta, como se não quisesse
perder a página. Puxou Roscoe para o peito. Um escudo.
– Está bem. Sim... mais ou menos.
– Mais ou menos?
– Ele fez-me um broche, uma vez, para aí há um ano. Mas em termos de...
se é isso que estás a perguntar, então sim, foi só uma vez.
– Fez-te um broche há um ano. – Yale estava a tentar fazer cálculos
mentais, a tentar lembrar-se do que andava a acontecer nas suas vidas, no
inverno passado. O jornal de Charlie atravessava dificuldades. A análise
ainda não tinha ficado disponível. Não estava surpreendido, mas então
porque é que o seu coração batia com tanta força?
– Mas ouve, Yale... tens a certeza de queres saber estas coisas? – Yale
assentiu com um aceno. – Então sim, ele andava por aí.
Yale controlou a respiração.
– Preciso que sejas mais específico.
– O que acontecia era... ele andava sempre a engolir tudo. Sabes o que eu
penso da monogamia. O Charlie era uma espécie de pilar da comunidade,
sei lá, e depois de seis em seis meses rebentava. Não estou a dizer que era
constante, mas... sabes como é quando não comeste nada o dia inteiro, e o
teu corpo leva a melhor sobre a força de vontade e, quando dás por isso,
devoraste um bolo inteiro? Só sei que houve muito sexo em cantos escuros,
por assim dizer. Casas de banho de estações de comboio, na mata, esse tipo
de coisas. Ele usava preservativo. Pelo menos dizia que sim.
Roscoe ficou desfocado. O rosto de Julian ficou desfocado. Casas de
banho de estações de comboio era onde iam os tipos dos subúrbios, homens
furtivos com mulheres e filhos, os «gays dos transportes» em relação aos
quais Charlie se enfurecia constantemente. Pessoas com um sentimento de
culpa e uma falta de amor-próprio equivalentes aos dele. Yale não
acreditava nem por um segundo que Charlie usasse preservativos. O que
Charlie estava a fazer era suicídio. Com o resto do ar que lhe restava,
murmurou:
– Foda-se.
– Não sei se isso te importa, mas acho que ele se manteve afastado da
nossa comunidade. Não andava a engatar tipos no Paradise, nada do
género.
Estaria Charlie a proteger a sua própria reputação, os sentimentos de Yale
ou ambas as coisas? Com certeza que não achava que os tipos dos subúrbios
seriam mais seguros.
– Tens de perceber – disse Julian – que foi por isso que eu não me senti
assim tão mal. Quer dizer, senti-me mal, mas não como se tivesse partido
algo que estava intacto, percebes o que quero dizer? E não sabia se vocês os
dois tinham algum acordo mais liberal do que davam a entender. Pelos
vistos, não.
– Como é que sabes disso tudo? – Yale queria perguntar quem mais sabia,
mas não tinha a certeza de conseguir lidar com a resposta. Terrence
parecera realmente convencido de que se tratara de um incidente isolado.
Mas se Julian sabia, Teddy com certeza sabia também. E Asher, Richard, os
funcionários do jornal?
– Bom, ele sempre confiou em mim. Uma vez vi-o na praia de Montrose
Street, a bater à janela de um Audi estacionado. Depois disso, começou a
contar-me coisas. Não para se gabar, nem nada, apenas a desabafar. Não era
nada que o deixasse feliz. Porque é que as pessoas fazem esse tipo de
coisas? Ou é porque estão a divertir-se ou porque se odeiam a si próprias, e
não me parece que ele andasse a divertir-se.
Yale sentiu uma data de coisas encaixarem no seu lugar, peças que ele não
sabia que tinha espalhadas pelos recantos do cérebro.
– E nunca me disseste nada. Sabias e não me disseste.
Se Fiona tinha razão, se ninguém gostava realmente de Charlie, porque é
que o tinham protegido tanto tempo?
– Eu... não queria que as pessoas começassem a falar de todos os erros
que eu cometia. Isso é a polícia do sexo, sabes? Eu não sou da polícia do
sexo. Ouve, lamento muito, está bem? Lamento mesmo muito. Não estás...
não estás infetado, pois não?
Os olhos de Julian encheram-se de pânico, como se essa ideia só agora
lhe tivesse ocorrido.
– A análise deu negativo – disse Yale, porque era tecnicamente verdade.
Bom, a primeira análise dera negativo, e só Deus sabia há quanto tempo
Charlie andava a expor-se ao vírus. Levantou-se, puxou Julian para cima e
abraçou-o. Se Julian ia mesmo partir no domingo, não queria que a sua
amizade terminasse com uma discussão. Podia ficar zangado depois,
quando estivesse sozinho. Podia desenhar alvos na parede, colocar
fotografias de todas as pessoas que o tinham traído e atirar dardos às caras
delas. Mas também podia apertar Julian com força por um segundo. Sabia
bem.
– Polícia do sexo seria uma máscara de Halloween fantástica – disse.

Ficou acordado até às três. As probabilidades de Charlie ficar infetado


depois de se expor apenas uma vez, e de Yale ficar infetado depois de estar
algumas vezes com Charlie, seriam minúsculas. Mas agora esse conforto
estatístico desaparecera. Sabia que o vírus não queria saber de justiça, de
probabilidades – mas isso não o fazia sentir-se mais seguro.
Neste momento, Yale duvidava mesmo de que Charlie tivesse feito a
análise na primavera. Tinham falado juntos com o médico, mas o sangue
fora recolhido separadamente e tinham sido chamados separadamente para
saber os resultados. Agora, não havia nada que estivesse para além da
imaginação de Yale, não havia nível de falsidade que lhe parecesse
impossível. Charlie podia ter tido medo, ter-se convencido a si próprio de
que estava bem, até se ver confrontado com o facto inegável de que alguém
com quem tivera relações estava realmente infetado.

Quando chegou ao trabalho na sexta-feira, ainda meio a dormir, Yale


encontrou um recado para ligar a Alfred Cheng. Demorou um segundo a
perceber que se tratava do Dr. Cheng, o mesmo Dr. Cheng cujo contacto
não esperava senão daí a dez dias. Sentiu a garganta apertada. Queria ligar-
lhe imediatamente, ao mesmo tempo que queria esperar cem anos, mas não
podia ligar do escritório. E também não podia ligar do apartamento. Julian
tencionava ficar em casa o dia todo, a ver telenovelas e a brincar com
Roscoe. Provavelmente não era nada de grave – algum problema com a
conta, um pedido de esclarecimento. Era demasiado cedo para serem os
resultados, e que más notícias poderia haver senão os resultados? Talvez
tivesse aparecido outra coisa qualquer na análise. Colesterol. Cancro.
Ao final da manhã, Teddy ligou-lhe para saber se tinha visto Julian.
– Não – mentiu –, mas com certeza que ele está bem.
– Porque não havia de estar? – respondeu Teddy. – Só perguntei se o
tinhas visto.
Yale queria que Teddy percebesse que Julian preferia passar tempo
consigo a sufocar sob a vigilância de Teddy. Queria perguntar-lhe se sabia
que Charlie andava a foder pelas esquinas como um adolescente
toxicodependente.
Ao meio-dia em ponto, dirigiu-se à sala de concertos, sem sequer vestir o
casaco. Havia cabinas telefónicas no átrio. Tinha as mãos a tremer
demasiado para conseguir acertar com a ranhura das moedas, para folhear a
agenda que enfiara no bolso. Praguejou silenciosamente enquanto marcava,
amaldiçoando-se por ter esperado pela hora de almoço; o mais certo era que
não estivesse ninguém no consultório. Ouviu alguém a tocar trompete,
algures – uma música rápida e agitada que não ajudava nada o seu estado de
espírito.
Mas a rececionista atendeu e, um minuto depois, tinha o Dr. Cheng do
outro lado da linha.
– Bem – disse ele –, menti!
– Desculpe?
– Menti quando lhe disse que não podia ligar com os resultados do
ELISA. É negativo.
– Oh! – Yale sentiu-se flutuar entre o chão e o teto. – Muito ou pouco
negativo?
O Dr. Cheng riu-se.
– Muito negativo. Não existem falsos negativos. É um resultado
definitivo.
Estava capaz de morrer, ali mesmo, no átrio.
– Pareceu-me tão nervoso, que não quis dar-lhe mais uma semana de
ansiedade sem motivo. Agora oiça, não pode dizer a ninguém que eu fiz
isto, porque senão...
– Sim, sim, compreendo.
– E quando repetirmos a análise, daqui a três meses, não vou mesmo
ligar-lhe mais cedo. Estou a falar a sério. Isto foi uma vez sem exemplo.
Yale perguntou-se se seria verdade ou se a cena se repetiria, com mais
uma jura de que era a última vez.
– Bem, tenho de fazer um esclarecimento oficial. Isto significa que não
tem anticorpos agora. Disse-me que a última vez que teve relações com o
seu companheiro...
– Ex-companheiro. Em dezembro. Portanto não posso realmente respirar
fundo até março, não é? Posso voltar em março?
– Claro. Normalmente, eu diria para esperar três meses, mas pode ser em
março. E vou pedir-lhe que use proteção em todas as situações, até lá,
mesmo que seja com um parceiro monógamo que não esteja infetado.
Mas... as probabilidades de os anticorpos ainda virem a aparecer, passado
tanto tempo, são muito reduzidas. Se fosse a si, ficava descansado. Festeje,
está bem? De forma responsável.
– E tem a certeza? Quer dizer, com o sistema de codificação e tudo...
– Tenho a certeza. Escute, mesmo assim acho que seria boa ideia fazer
terapia. Pessoalmente, sei que tive de lidar com o sentimento de culpa
quando a minha análise deu negativa.
– Vou pensar nisso.
O que é que sentia, na verdade? Manteve a mão pousada no auscultador
depois de desligar, como se o telefone pudesse transmitir-lhe a emoção
adequada. Êxtase, sem dúvida – e uma sensação grave de ter, mais uma vez,
escapado à bala que continuava a atingir os amigos –, mas em que
proporção? Essencialmente, o que sentia era pura adrenalina.
Dois estudantes entraram no átrio com estojos de violino. Yale cravou
uma moeda a um deles e ligou a Fiona. Ela não estava em casa, mas tinha
atendedor de chamadas.
– Estou a ligar só porque estou num estado de espírito negativo – disse. –
Sinto-me mesmo, mesmo negativo. – Ela ouviria o sorriso na sua voz. –
Banhado em negatividade. Achei que gostarias de saber.

Quando regressou ao escritório, Roman estava a fazer força com a parte


superior toda do corpo num grande furador.
– Vamos pôr música – disse Yale. A sua cassete de New Order ainda
estava no leitor. Sentou-se à secretária, a bater o ritmo com a esferográfica.
Roman olhou para ele com expressão genuinamente alarmada, mas, quando
o refrão começou, juntou-se a ele e bateu na mesa como se esta fosse um
tambor. Quando o refrão começou pela terceira vez, ambos cantaram em
uníssono.

Yale ficou até mais tarde no escritório, para não ter de passar muito tempo
com Julian. Não suportaria fitá-lo nos olhos sabendo que Julian estava
doente e ele estava saudável. Já o fizera antes... não tivera qualquer
problema com Nico ou Terrence, pois não? Mas desta vez era diferente.
Quando saiu do comboio nessa noite, em vez de se dirigir ao
apartamento, desceu Hubbard Street, onde havia um ou dois bares gays e
uma sauna clandestina. Não tinha a mínima intenção de entrar na sauna, e
também não tinha a certeza quanto aos bares, mas era simplesmente
agradável descer a rua. Saber que havia outros grupos de amigos noutras
partes da cidade a viver as suas próprias crises e traições e redenções. Estar
do lado de fora, a sentir-se saudável. Parou em frente ao Oasis, do outro
lado da rua, e observou as idas e vindas das pessoas. Como era agradável
não reconhecer ninguém. Como era bom não saber quais daqueles homens
estavam a morrer.
Na esquina com LaSalle Street, apareceu um grupo com todo o barulho e
agitação de quem está a ter uma noite animada e, por um segundo, Yale
desejou poder juntar-se a eles, infiltrar-se no grupo e segui-los – até que se
apercebeu de que, à frente dos outros, estava Charlie. Charlie, que
normalmente nunca vinha para estes lados. A falar alto, com gestos largos.
Com a sua camisola de «FRANKIE SAYS RELAX», de casaco aberto. Yale ficou
onde estava, parado como mais um poste de iluminação, quase sem
respirar.
Quando o grupo se dirigiu à porta, Yale viu outro tipo – ninguém que
reconhecesse, pelo menos a esta distância – murmurar qualquer coisa ao
ouvido de Charlie e, depois, virar-se e olhar diretamente para Yale. Charlie,
contudo, nem sequer virou a cabeça.
Yale ficou pregado ao chão algum tempo. As emoções que teria sentido
se isto tivesse acontecido ontem eram hoje mitigadas pelo facto de não estar
infetado. Ocorreu-lhe de repente que viveria mais do que Charlie, que seria
ele a olhar para trás, daqui a cinquenta anos, e a contar a história de Charlie
a alguém, tal como Nora lhe contara a de Ranko. Com menos melancolia,
claro. Não acreditava que um dia visse isto como o grande romance perdido
da sua vida. Queria ser invisível para entrar no bar atrás de Charlie, para ver
se ele se afogava em cerveja. Em vez disso, deu meia-volta e regressou a
casa, a caminhar contra o vento, e quando lá chegou tinha a pele
entorpecida pelo frio.

Yale passou o sábado a sentir-se embaraçado junto de Julian, à procura de


desculpas para sair do apartamento. Dava por si a pensar em como fora
poupado – e, se ele fora poupado, isso fazia o quê de Julian? Escolhido?
Debateu-se com o sentimento de culpa e Julian perguntou-lhe o que se
passava e Yale respondeu que estava tudo bem. Depois percebeu como isso
era estúpido, quando na verdade estava tudo mal – embora menos mal do
que poderia estar.
Ainda era noite quando Yale acordou com o som do que parecia ser um
assalto, mas era apenas Julian a enfiar as suas coisas na mochila. Parou à
porta e viu Julian sob a luz do candeeiro de teto, dobrado pela cintura, com
uma faixa de pele pálida a ver-se por cima da cintura das calças de caqui.
Roscoe estava em cima da cama, a amassar o edredão com as patas.
– A que horas é o teu voo? – perguntou, e Julian deixou cair o saco no
chão, com o fecho para baixo.
– Merda, merda, merda – disse.
Yale pegou no frasco de gotas para os olhos que tinha rebolado até aos
seus pés e recolheu também algumas camisas e meias.
– Respira fundo, está bem?
Julian sentou-se no chão, com a mochila entre as pernas.
– Não vais perder o avião, descansa. A que horas é o voo?
– Preciso de sair daqui.
– Está bem. Meteste alguma coisa?
Julian não respondeu e Yale presumiu que sim. Passou as gotas a Julian,
que olhou para o frasco como se nunca o tivesse visto.
– Ouve, tens o bilhete? Só precisas do bilhete, identificação, dinheiro.
Mostra-me o bilhete. – Julian tirou-o da bolsa de fora da mochila. Um voo
da United, com partida às 09:14. Yale olhou para o relógio na mesa de
cabeceira. – Falta mais de uma hora para teres de sair de casa. Vamos...
olha, vamos lá organizar as tuas coisas.
Yale ajoelhou-se ao lado dele. Era como ajudar uma criança depois de
uma birra, demasiado desorientada para tomar decisões. Dobraram as três t-
shirts umas em cima das outras, arrumaram os artigos de higiene numa fila,
encontraram a carteira – presa com fita adesiva, cheia de cupões de
desconto e cartões de clubes de vídeo e de ginásios. Julian tirou-os um a um
e colocou-os em frente de Yale.
– Este vale uma dose de batatas fritas grátis. Dá-o ao Asher.
Yale sabia que um dos sinais de alarme de pensamentos suicidas era a
distribuição de bens, a doação meticulosa de objetos – mas por outro lado
havia o bilhete de avião, no chão, ao lado do joelho de Julian. Ele entraria
no avião. Chegaria pelo menos até aí.
Julian pegou numa caixinha branca de fio dental e segurou-a na palma da
mão aberta.
– Porque é que tenho isto?
– Para... quer dizer, é importante, não é? Por causa do tártaro? – Estava a
tentar fazer Julian sorrir.
– Não, Yale, a sério, porque é que guardaste isto? Nunca mais vou usar
fio dental.
– Claro que vais.
– Estou a dizer-te que decidi não o fazer mais. Decidi agora mesmo. Toda
a vida detestei fio dental, e o que achas que pode acontecer às minhas
gengivas nos próximos seis meses?
– Tens muito mais tempo do que isso.
– Achas que algum dentista me voltará a atender? Não tenho nenhum
dentista para ralhar comigo! Nunca mais vou fazer uma destartarização!
Podia comer chocolate ao jantar todos os dias e nunca mais lavar os dentes.
– Atirou o fio dental para o colo de Yale e agarrou-lhe nos ombros. – Se me
tivessem dito isto aos dez anos, teria adorado. – E desatou a rir, um riso
frenético ao qual Yale não conseguiu juntar-se.
– Sabes sequer quando é que ficaste infetado? – perguntou-lhe. – Ouve, e
se só apanhaste o vírus para aí um mês antes de fazeres a análise? Podes ter
anos antes de começares sequer a ter sintomas. E muito mais tempo depois
disso. Quando é que... não foste tu que sempre acreditaste que iam
encontrar a cura? É melhor lavares os dentes, Julian.
– Primeiro que tudo – Julian endireitou-se com ar sério e limpou a cara;
tinha chorado a rir. – Sei quando é que fiquei infetado. No verão de 1982.
Havia um encenador que eu seguia há meses, como um cachorrinho, e ele
finalmente cedeu e fodeu comigo por pena. Morreu para aí um ano depois,
de, sei lá, cancro nas orelhas ou coisa parecida. E eu fui ao funeral dele e
pensei: Uau, esta coisa da mortalidade, que tristeza, uma pessoa nunca
sabe. E já o tinha dentro de mim. Neguei-o a mim próprio durante tanto
tempo, Yale. Neguei-o até a enfermeira me olhar nos olhos e me dizer
diretamente que tinha o vírus. Teve de me dizer três vezes.
«Portanto, sim, vamos presumir que leva alguns anos. Esses anos já
passaram. Estou no cimo do escorrega. Espero que comece com herpes e
aftas ao mesmo tempo, para parecer um dragão de língua branca sempre
que abrir a boca. Como é que se chama aquela coisa em que sangramos das
gengivas? Também quero ter isso. Mas depois, por ti, Yale, quando abrir os
lábios gretados para mostrar as gengivas ensanguentadas e a camada de pus
na garganta, vou olhar para o espelho e, só por ti, vou usar o fio dental.
Porque não quero tártaro a complicar-me a vida.
Yale segurou a caixa de fio dental entre o polegar e o indicador e
perguntou:
– Dormiste alguma coisa?
– Posso dormir no avião.
– Quando partires, depois de deixar passar alguns dias, posso dizer às
pessoas para onde foste?
– Podes dizer que me viste, e que eu estava com bom ar e sexy como a
merda, e que mandei pedir desculpa. Podes dizer que fui para Porto Rico,
porque, quando o Teddy conseguir meter-se num avião para ir à minha
procura, já lá não estarei.
– E a tua família?
– Eu mando-lhes um postal.
Yale procurou uma caneta e escreveu o número de telefone do escritório e
o número do apartamento dos Sharp na parte de dentro da capa de Samitério
de Animais, o único livro que Julian guardara na mochila.
– Vou chamar-te um táxi.

Nessa noite, Yale cortou um pedaço do fio dental de Julian, que deitou
fora, e depois outro pedaço para usar. Na noite seguinte, usou-o novamente.
Só fazia isto à noite; de manhã, usava o seu. Era uma forma de fazer com
que Julian durasse mais, mas também de refletir no seu próprio dia. Um dia
desde que Julian partira, dois dias desde que Julian partira, e o que é que
estava diferente? O que é que ele fizera?
Não que a ausência de Julian devesse deixar um grande vazio, mas, cerca
de uma hora depois de ele sair, enquanto ligava a elaborada máquina de
café dos Sharp, Yale apercebera-se de que era mais um amigo que saíra da
sua vida. Nico morrera, Terrence morrera, Charlie, no que lhe dizia respeito,
estava num planeta muito distante, Teddy estava zangado com ele, e agora
Julian partira, para se estender debaixo de uma palmeira e morrer. Asher
ainda cá estava, mas andava sempre muito ocupado. Fiona também ainda cá
estava. Havia algumas pessoas que conhecia mais ou menos e que não
pertenciam completamente ao círculo de Charlie – como Katsu, por
exemplo –, mas ultimamente toda a gente parecia agarrar-se aos seus
amigos mais antigos e chegados, não procurar novas amizades. Havia
Roman. Falava mais com Roman do que com qualquer outra pessoa, o que
não queria dizer muito. Roman fora ao concerto dos Alphaville e contara a
Yale que alguém lhe dera uma pisadela. Roman vestira uma t-shirt do signo
Peixes e falaram sobre astrologia. Yale tentava incluir nas conversas
pormenores que incentivassem a autoaceitação.
– Não vou ao México desde 1972; foi o ano em que saí do armário, pelo
menos para mim próprio.
Uma vez, quando estavam a falar de comida, disse:
– O meu ex-companheiro só sabia cozinhar três coisas, mas uma delas era
paella.
Roman nunca fazia mais perguntas.
Usou fio dental na noite em que encontrou uma nódoa negra arroxeada no
tornozelo e entrou novamente em pânico.
Usou fio dental na noite em que a nódoa negra começou a desaparecer, a
ficar amarelada nas orlas.
Na noite depois de Bill Lindsey lhe comunicar, empolgado, que os
especialistas em Soutine tinham dado o seu aval, Yale sopesou a caixinha de
fio dental e tentou calcular quanto restava. Com certeza que haveria um
conto de fadas assim: a história de um rei cujo reino acabaria quando o
novelo de fio mágico chegasse ao fim. Soava bem. Não ia começar a usar
apenas cinco centímetros de fio dental só para o fazer durar mais, mas
também não ia desperdiçá-lo como Charlie costumava fazer, um metro de
fio todas as noites.
No Dia de São Valentim, olhou para o espelho, passou o fio dental entre
os molares e disse a si próprio que sobrevivera a mais uma semana, pelo
menos. Sobrevivera à análise e a todo aquele embaraço com Roman, e não
cedera ao impulso de ligar a Charlie, e não saltara da varanda, e não fizera
sexo suicida num recanto qualquer, e não chorara. Fizera o seu trabalho.
Mantivera Roscoe vivo. Se conseguisse aguentar mais uma semana assim, e
mais uma – se conseguisse estar aqui no fim do mês a congratular-se
novamente por ter lá chegado incólume, então conseguiria continuar a fazê-
lo para sempre.

Nessa segunda-feira, Roman entrou no escritório mais cedo do que o


habitual, com ar animado. Já só lhe faltavam quatro semanas para acabar o
estágio e Yale dissera-lhe que teria todo o gosto em lhe dar trabalho no
trimestre seguinte, mas Roman abanara a cabeça e dera uma desculpa vaga
sobre ter outros planos. Yale não podia censurá-lo.
Assim que entrou, Roman exclamou:
– Encontrei umas coisas sobre o Ranko Novak! – Tirou da mochila um
livro grosso da biblioteca, com uma daquelas capas ásperas em que Yale
não conseguia tocar. – Ele é uma nota de rodapé. Literalmente, uma nota de
rodapé.
Contornou a secretária de Yale – o máximo que se aproximava dele desde
o Wisconsin – e abriu o livro na folha que marcara com um papel. A nota de
rodapé ocupava metade da página e Yale teve de se inclinar para ler a parte
que Roman assinalara a lápis.
– Basicamente, é tudo o que ela nos contou sobre o prémio – disse
Roman, antes que Yale conseguisse acabar de ler. – E não é muito
lisonjeiro. Pelo que dizem, ele não devia mesmo ter ganhado nada. Não
deve ter sido horrível, saber que toda a gente achava que ele não o
merecia?
Yale viu as datas, os nomes dos vencedores, a informação sobre as três
vagas abertas nesse ano, o facto de o prémio ter sido adiado. Despujols e
Poughéon acabaram por ir para Roma depois da guerra, dizia o livro, mas
os ferimentos e posterior morte de Novak (em 1920) impediram-no de
chegar a aceitar o prémio.
– Mostra ao Bill – disse Yale. – Espera, mas não lhe digas que é uma nota
de rodapé. Podes tirar uma fotocópia só dessa parte, para parecer que é do
texto principal? – Cada vez estava mais preocupado com a inclusão de
Ranko na exposição. Parecia-lhe agora uma questão de princípio que o
pobre Ranko, enclausurado no castelo sem qualquer recompensa,
conseguisse finalmente mostrar o seu trabalho ao lado dos seus superiores.
Bill andava a falar em abrir a exposição no outono do próximo ano. Uma
espera tão longa e cruel. Yale desejou que pudessem apressar as coisas, para
que Nora morresse com a certeza de que tinha acontecido, mas, segundo
Bill, o outono de 1987 já era, mesmo assim, apertado. Seria a sua última
exposição – deixara isso bem claro – e conseguiria sair a tempo de passar o
inverno em Madrid.
Roman ficou ali, quase encostado a Yale, mais tempo do que seria
necessário. Yale deu por si a ceder à fantasia de mais tarde, quando o
estágio dele acabasse, ligar a Roman e convidá-lo para beber um copo. Não
o faria, sabia disso, mas nada o impedia de sonhar.
O telefone tocou e Roman deu um salto e afastou-se na direção da sua
secretária. Depois, lembrou-se do livro e saiu com ele para ir falar com
Bill.
A voz do outro lado da linha era impossivelmente alta.
– Senhor Yale Tishman! – Uma voz masculina; o tom parecia acusador.
Se Terrence ainda estivesse vivo, Yale quase diria que era ele a fazer uma
imitação qualquer, a pregar-lhe uma partida. – Fala Chuck Donovan, da
direção. Turma Wildcat de 1952. Estou a ligar do escritório da senhora
Pearce, do telefone dela. A senhora Pearce disse-me que o senhor foi o
responsável por tratar do legado da Nora Lerner.
Yale levantou-se e olhou em volta. Pobre Cecily – o tipo apoderara-se
mesmo do telefone dela. Imaginou-a sentada atrás da secretária, de olhos
fechados, as pontas dos dedos a massajar as têmporas.
– Exatamente – disse. – Tenho estado a coordenar...
– Porque me parece que houve aqui um problema de comunicação. Essas
peças, na verdade, pertencem a um amigo meu.
Yale pegou na base do telefone e tentou esticar o fio até ao corredor, mas
não conseguia sair mais do que alguns centímetros para além da porta. A
porta do escritório de Bill estava entreaberta.
– Posso pedir-lhe que aguarde um... – Donovan, contudo, ainda estava a
falar.
– Ora bem, a senhora Pearce e eu tínhamos um acordo muito específico, e
o que eu quero saber são duas coisas. Primeiro, quem é o responsável por
esta falha de comunicação, e segundo, como é que vamos resolver o
problema?
Yale descalçou o sapato esquerdo e atirou-o à porta do escritório de Bill.
Roman apareceu, seguido por Bill. Olharam para o sapato, para o chão e
para Yale, que os chamava com gestos frenéticos. Para que eles
percebessem o que se passava, disse:
– Senhor Donovan, está no gabinete da senhora Pearce neste momento?
Está aqui na universidade?
Bill deu uma palmada na testa.
– Gostaria muito de o convidar a vir falar connosco aqui na galeria –
disse Yale –, e vamos chamar também o nosso advogado.
– Ótimo – disse ele. – Ótimo. É isso que gosto de ouvir.
Eram cinco e meia da tarde, quando conseguiram reunir toda a gente.
Roman fora para casa, mas Bill, Yale, Cecily, Herbert Snow e Chuck
Donovan – Yale imaginara um tipo barrigudo e de rosto vermelho, e ficara
surpreendido ao ver um homem alto e magro, com um bigode branco muito
bem aparado – reuniram-se no escritório de Bill, para onde a estagiária lhes
levou café que Yale estava demasiado nervoso para conseguir beber.
Entretanto, contara a Bill que deixara escapar o valor das peças em frente a
Debra no Wisconsin, sem mencionar que estava ressacado ou qualquer uma
das outras coisas que o distraíam nessa manhã.
– Fico contente pela oportunidade de poder falar com todos – disse
Donovan.
Antes que ele pudesse começar o seu discurso, Yale disse:
– O legado está feito. Não há nada a fazer a esse respeito.
Herbert Snow acrescentou alguma linguagem jurídica e Yale conseguiu,
enquanto Snow falava, trocar um olhar com Cecily. Parecia uma mulher
prestes a enfrentar o esquadrão de fuzilamento. Yale passara pelo gabinete
dela depois de saber o resultado da análise, para lhe dar a boa notícia, e ela
abraçara-o e dera-lhe uma palmadinha afetuosa nas costas.
– Agora tem de se manter assim – dissera.
Donovan começou:
– Fui tratado como um idiota. Dei dinheiro a esta universidade e faço
parte da direção, sem qualquer demonstração de gratidão. Uma das únicas
recompensas que me foram prometidas, em troca de todo o meu tempo e
trabalho, é um pouco de influência. Ora bem, não sou pessoa de meter o
nariz onde não é chamada. Por exemplo, não vou queixar-me se exibirem
nus na vossa galeria. Mas, sendo um homem de palavra, devia poder fazer
uma promessa a um amigo com a certeza de que consigo cumpri-la, de que
os meus pedidos não serão ignorados. Neste momento, fiz figura de parvo
em frente do meu amigo e parceiro de negócios, e francamente, isso faz-me
pôr em causa toda a minha relação com a universidade.
Yale pensou que Cecily fosse dizer alguma coisa, mas ela parecia
esgotada. Imaginou que já teria dito tudo o que podia no seu escritório.
– Falei com a senhora Pearce e presumi que o assunto estaria tratado.
Depois, vim a saber através do meu amigo Frank que se fez um negócio,
mas ele, apesar de muito perturbado, disse-me: Já fez o que podia, acabou-
se, vamos esquecer o assunto. E depois... Depois! Este fim de semana
recebo um telefonema do Frank, que ficou a saber, através da filha, que
estão a avaliar as peças em milhões de dólares.
– Senhor Donovan – interveio Bill –, compreendo a sua preocupação.
Mas esses três milhões de dólares são agora propriedade da Northwestern.
Yale tossiu, tentando impedir com o olhar que Bill dissesse aquilo que já
tinha dito. Yale não ouvira falar nem uma vez em três milhões. Devia ter a
ver com os resultados da avaliação do especialista em Soutine.
Naturalmente, as sobrancelhas de Donovan subiram até onde o cabelo devia
estar a começar.
Virou rapidamente a cabeça para Cecily.
– Não partilhou este valor comigo.
– Desconhecia esse valor – disse ela.
– São três milhões de dólares que, por direito, pertencem ao meu amigo
Frank Lerner.
Yale interveio:
– Sei que os ânimos estão exaltados, mas a verdade é que estamos muito
entusiasmados com esta coleção. Tencionamos trazer a notícia a público nas
próximas semanas, e o senhor está a ser o primeiro a saber.
Donovan ignorou-o e dirigiu-se a Cecily.
– Se estas pessoas não estão em posição de fazer nada, não sei por que
raio me arrastou até aqui.
Teria realmente sido ideia de Cecily? Teria estendido o telefone a
Donovan e sugerido que ele ligasse a Yale?
– Isto não tem absolutamente nada a ver com ela – disse Yale. – Nora
Lerner entrou em contacto comigo, e fui eu que tratei da aquisição. Para ser
franco, a partir desse momento a senhora Pearce nem foi colocada a par dos
desenvolvimentos. Posso garantir-lhe que ela tem sido uma forte defensora
dos seus interesses desde o início.
Cecily levou as mãos às faces e olhou para ele, mas Yale não percebeu se
estaria a tentar avisá-lo de algo ou a agradecer-lhe. Yale esperou que Bill
dissesse qualquer coisa para o apoiar, mas Bill estava de olhos postos nos
joelhos. Herbert Snow escreveu qualquer coisa no seu bloco. Com um
calafrio, Yale percebeu que ele estava a tomar nota do que ele dissera sobre
passar por cima de Cecily.
– Uma vez que o senhor tem sido tão compreensivo – continuou Yale –,
talvez pudéssemos organizar uma mostra privada, para si e um grupo
selecionado de amigos. Podia ser em breve, ou depois de a exposição estar
completamente preparada. Champanhe e canapés na galeria. O que lhe
parece?
Donovan levantou-se.
– Vou fazer uma visita ao presidente. E penso que as pessoas vão ficar
muito interessadas nesta história. Na verdade, tenho alguns amigos
jornalistas.
Yale levantou-se também, um momento antes dos restantes. Enfiou a mão
no bolso e tirou um cartão de visita.
– Por favor compreenda que a aquisição foi obra minha e que agimos
contra as indicações da senhora Pearce.
– Tenho de me incluir também – disse Bill. – Se vai apresentar queixa de
alguém, por favor identifique-me pessoalmente. O Yale estava apenas a agir
em...
Yale levantou a mão para o silenciar.
– Este projeto é meu. Não fizemos nada de ilegal ou pouco ético, mas
qualquer insatisfação deve ser dirigida contra mim.
Seria desonesto deixar que Bill sofresse as consequências. Principalmente
quando fora Yale que metera os pés pelas mãos, demasiado distraído com a
sua vida para fazer um trabalho decente no Wisconsin.
Cecily ajeitou os enchumaços nos ombros e seguiu Donovan. Antes de
sair, virou-se e olhou para Yale, o olhar de alguém que se apoderou da
última boia e vê o outro afogar-se.

Nessa noite, meio entorpecido, Yale deu por si sentado no chão da casa de
Asher Glass, ao lado das restantes pessoas que não tinham lugar nas
cadeiras ou encostadas às paredes. Metade da sala de Asher funcionava
como escritório, com secretárias e telefones e armários de arquivo, e na
outra metade havia apenas um sofá coçado e um pequeno televisor. Com o
cóccix contra a madeira, Yale percebeu que ali em baixo conseguia ver cada
grão de poeira, e eram muitos.
Asher prometeu-lhes que vinha piza a caminho e, de pé em frente do
televisor, começou a falar sobre um fundo de alojamento comunitário,
dinheiro para pessoas que não conseguiam pagar a renda por estarem
doentes. Alguém perguntou a Asher se podia garantir que o dinheiro ficaria
na comunidade gay e Asher respondeu:
– Claro que não, estás a brincar? Não somos proprietários exclusivos
desta doença.
A esta afirmação seguiu-se um debate aceso. Sempre que Asher estava
exasperado, as linhas paralelas entre os seus olhos ficavam tão profundas
que pareciam esculpidas.
Yale estava agora livre para poder olhar para Asher com luxúria, para
poder fantasiar não só com um cenário de sonho mas com uma
possibilidade concreta. Podia ficar até mais tarde para o ajudar a arrumar,
pousar a mão no ombro de Asher... Mas Yale nunca fora bom a dar o
primeiro passo. Nunca, nem mesmo quando embriagado. E duvidava que
Asher reparasse sequer que ele estava interessado, a menos que lhe
agarrasse diretamente na pila.
Além disso, não precisava de mais dramas na sua vida neste momento.
Precisava de uma bela fase entediante, alguns meses em que, quando
alguém lhe perguntasse o que havia de novo, ele pudesse responder:
– Nada de especial, vamos andando.
Não podia sacrificar o emprego e correr o risco de ser rejeitado no mesmo
dia.
Mas não, estaria tudo bem na galeria amanhã de manhã. A transferência
de propriedade era irrefutável, segundo Herbert Snow lhe assegurara. Tinha
de estar tudo bem.
Rafael, o editor-chefe de Charlie, foi-se chegando mais para perto de
Yale, até estar sentado ao lado dele no chão.
– Que seca de festa – murmurou.
Yale perscrutara nervosamente o grupo ao entrar, apesar de Asher lhe ter
garantido, quando o convidara, que Charlie não estaria presente. Não ia ser
fácil evitar o gay mais ubíquo de Chicago, mas conseguiria fazê-lo até as
coisas arrefecerem e começarem a cicatrizar. Teddy estava encostado ao
parapeito da janela, ao lado do seu amigo Katsu. Yale não falara com Teddy
essa noite, e provavelmente não falaria. Teddy e Katsu eram exatamente do
mesmo tamanho e Yale semicerrou os olhos até lhe parecerem silhuetas
idênticas. Katsu levantou a mão e, quando Asher lhe deu a palavra, por
cima do ruído de vozes, disse:
– Para aqueles de nós que vivem com o vírus... – E Yale já mal ouviu a
pergunta, qualquer coisa sobre os direitos dos inquilinos. Tinha um palpite
de que ele estaria infetado, mas não a certeza.
Alguém fez uma pergunta sobre anonimato e Rafael murmurou:
– Ouvi dizer que andas a viver à grande! Quando é que vais convidar os
plebeus para uma festa?
Rafael trazia um lenço palestiniano ao pescoço e escondeu o queixo nele
como uma tartaruga.
– É temporário – disse Yale, embora se sentisse cada vez mais em casa
naquela pequena cápsula por cima da cidade, enquanto, cá em baixo, toda a
gente sofria e os dramas continuavam a desenrolar-se.
Um minuto depois, Rafael murmurou:
– O Charlie anda completamente descontrolado. Toda a gente no
escritório diz oh, meu Deus, alguém traga o Yale de volta. Ele sempre foi
assim tão doido? Eras tu que absorvias a loucura em vez de nós?
– Ele está a passar por muita coisa – disse Yale.
– A sério, está uma desgraça. Tinhas de o alimentar à força? Começámos
a deixar comida na secretária dele para ver se come.
Todas as cabeças na sala se viraram simultaneamente para a porta e,
quando Yale se voltou, estava perfeitamente convencido de que ia ver
Charlie. Um pesadelo, um alívio, um anjo vingador. Mas era Gloria, do Out
Loud, com um monte de caixas de piza, a dizer a todos para se acalmarem e
esperarem que ela fosse buscar os pratos descartáveis e os guardanapos.
Yale deixou os sons à sua volta confundirem-se num zumbido surdo. Viu
Asher falar, gesticular, bater com a mão na antena do televisor. Viu Katsu e
Teddy apoiarem-se um no outro.
– Ninguém está a ouvir nada – disse Rafael. – Está toda a gente tão farta
de ouvir conversas.

De manhã, tinha flores na secretária, um ramo de dálias amarelas enviado


por Cecily, com um bilhete a dizer nunca conseguirei agradecer o
suficiente.
Porém, antes mesmo de se sentar, Bill apareceu. Trazia um café para
Yale, apesar de ele já ter bebido um.
– Parece que o nosso amigo está a fazer valer o seu poder – disse. Fez
uma pausa, à espera que Yale lhe perguntasse o que queria dizer com isso,
mas Yale não estava com vontade de seguir o guião e, por fim, Bill
pigarreou e continuou: – Foi falar com o presidente, que... não sei como é
que isto vai acabar. Não sei mesmo. Ele anda a envenenar os outros
membros da direção. Não da nossa direção, mas da direção. E entretanto o
Frank, o filho da Nora, resolveu agir judicialmente. Não sei se está mesmo
a processar-nos, mas o Snow deixou uma mensagem para si.
– Não passa de uma grande perda de tempo para ele – disse Yale.
– Sim, sim. – Bill olhou para a janela atrás de Yale. – Mas não é nada
bom para a galeria. Você foi muito nobre, a dar-lhe o seu cartão, e tudo, mas
preferia que não o tivesse feito. Sabe que eu estava disposto a assumir a
responsabilidade.
– Eu é que fiz asneira.
Na verdade, passara a noite em claro, a tentar perceber por que raio se
sacrificara. Por Cecily, claro. Mas talvez fosse também uma espécie de
autoflagelação, uma forma de se castigar a si próprio, por... porquê? Bom,
por tudo. Por se envolver com Roman. Por ter privado Debra e talvez
também Fiona da sua quota-parte das obras de arte. Por ter virado costas a
Charlie. Por ter escapado à doença. Não era preciso ser um génio da
psicologia. Como se apressara a recusar a oferta do Dr. Cheng sobre terapia,
a pôr de lado os seus avisos para ter cuidado. E agora, aqui estava ele. Por
causa de outro tipo de comportamento imprudente.
– Acho que, se tem alguma coisa que queira finalizar com a Nora – disse
Bill –, quer dizer, pessoalmente, já que foi você que... se calhar as próximas
semanas serão a melhor altura para o fazer. Estou só a pensar no
enquadramento temporal em geral.
– Acha que eu devia concluir o que tenho a fazer com a Nora. – Yale
tentou ler-lhe a expressão.
– Bom, acho apenas que se calhar é melhor.
– Nas próximas semanas.
Bill levou o dedo ao queixo.
– Não tenho uma bola de cristal. Uma das possibilidades é que, se eu
puder dizer ao Donovan que você já não está envolvido no caso, por assim
dizer... que eu estou a tratar de tudo pessoalmente, percebe? Afastamo-lo da
Nora e logo se vê como correm as coisas. E, de qualquer modo, essa parte
do seu trabalho estava despachada! Mas teria de o retirar também de
qualquer outro aspeto relacionado com a exposição. Publicidade, e por aí
fora.
– Bill – disse Yale –, se acha que eu devia começar a rematar as pontas
soltas também noutras situações, era no seu interesse dizer-me.
– Oh! Não era isso que queria dizer! Yale, não podemos perdê-lo! Não
permitirei que isso aconteça!

No entanto, no final da semana, Bill teve uma reunião privada com


Herbert Snow e, quando saiu do gabinete deste, vinha com os olhos mais
vermelhos do que o habitual, o rosto mais pálido.
Allen Sharp telefonou.
– Há rumores a correr entre os membros da direção – disse, e Yale teve de
lhe explicar toda a situação. Allen pareceu ficar mais calmo, mas estava
preocupado em relação aos outros. – É o tipo de coisa de que toda a gente
vai querer distância – afirmou. – Tudo o que possa cheirar a falta de ética...
já vi como essas histórias podem explodir.
Yale conseguia imaginar claramente: o artigo na secção de Artes do
Times, os mexericos suculentos no mundo artístico. Algo de que Chuck
Donovan se certificaria pessoalmente, se pudesse. Chuck não queria saber
da arte; provavelmente nem sequer queria saber da sua relação de negócios
com Frank Lerner. A única coisa que lhe interessava era mostrar que tinha
influência.
Yale encostou a testa à barra de espaços da máquina de escrever.

À hora de almoço, caminhou até ao lago e parou num dos montes de gelo
à beira da água. Era inverno há tanto tempo que o ar gelado já nem o
magoava.
A margem do lago parecia a superfície de outro planeta, ondulada e
fraturada e cinzenta. Yale não sentia os dedos, mas esperou até não
conseguir sentir também a cabeça.
Regressou e dirigiu-se ao gabinete de Bill. Pensou que precisava de ir à
casa de banho, mas eram apenas os nervos.
– Ligue ao Chuck Donovan e diga-lhe que vai despedir-me – disse. –
Pergunte-lhe se isso ajudaria, se ele conseguiria aplacar o Frank. Deixe bem
claro que seria um acordo de negócios, ele gosta desse tipo de coisas.
– Não vou despedi-lo! – protestou Bill.
– Eu despeço-me antes que possa fazê-lo.
Era como vomitar tudo o que havia de mau dentro do seu corpo, como se,
de alguma forma, isto pudesse salvar não só a galeria mas o universo.
– Mesmo que esta ação judicial seja ridícula, enquanto se arrastar não
conseguirá fundos para nada. Não pode pedir à direção...
– Yale... – interrompeu Bill. Mas já parecia mais animado.
– Ligue-lhe e veja se resultaria.
Bill olhou para o teto, de ombros abatidos, e tapou a boca com a mão.
– Sabe que, se chegarmos a esse ponto, lhe escreverei uma carta de
recomendação fantástica.
Embora tivesse sido Yale a pedir, a rapidez com que Bill aceitara a ideia
era como uma bala no estômago.
– Ligue-lhe já – disse. – Eu espero no meu gabinete.

Yale abriu a gaveta de cima. Tinha pelo menos cinquenta esferográficas,


na sua maioria herdadas com a secretária. Tirou uma e fez um risco
ondulado no bloco. Ao princípio não funcionou, mas depois começou a
escrever. Arrumou-a na caneca vazia junto à mão esquerda e depois
esqueceu-se do que estava a fazer e ficou a olhar para o vazio. Depois
lembrou-se e pegou na esferográfica seguinte, experimentou-a, viu que não
escrevia e atirou-a para o cesto dos papéis, onde aterrou com demasiado
barulho. As duas canetas seguintes estavam secas, a outra rebentada, a outra
boa. Testou todas as canetas e encontrou doze boas. Duas com o logótipo da
Northwestern, algumas Bic simples, duas especiais que se podiam apagar,
algumas baratas a publicitar companhias de seguros. Pelo menos Yale
achava que era o que dizia de lado; não conseguia focar o olhar.
Quando Bill entrou, dez minutos depois, Yale soube logo, pelo seu rosto –
a expressão desolada e hesitante que não conseguia esconder
completamente o alívio – que resultara.
– Acho que é capaz de funcionar – disse ele. – A sua... a sua ideia. O que
eu lhe disse. Ele só está preocupado com o seu ego.
– Eu sei.
– Você é um génio, Yale. Sabia? E agora o problema é que eu vou perder
o meu génio. Que belo sarilho. Ele disse que se sentia ouvido e depois
começou a falar de qualquer coisa sobre a escola de música. Veremos como
corre. Talvez possamos... talvez ele se vire para outras coisas e consigamos
repor tudo como estava.
– Não. – Yale conseguia ouvir a sua voz com uma clareza admirável,
como se fosse uma gravação, uma mensagem gravada há anos. – Se
resultar, é melhor não levantarmos mais ondas.
– Mas primeiro quero que conclua os seus projetos. Não podemos ficar
com o escritório vazio. Yale, quero dizer-lhe que...
– Se puder passar sem mim na próxima semana, aproveito para ir ao
Wisconsin.
– Sim! Fantástico! E leve o Roman! – Bill disse-o como se Roman fosse
um prémio de consolação. Quando saiu, fez questão de fechar a porta
silenciosamente.
Yale ficou indeciso entre o Rolodex e o agrafador, mas acabou por se
decidir pelo primeiro. Pegou-lhe e arremessou-o contra a parede, com toda
a sua força.

Na terça-feira seguinte, Yale alugou o carro mais caro que encontrou, um


Saab 900 vermelho, e pagou também a comida para a viagem com o cartão
de crédito da universidade. Apanhou Roman em frente ao seu apartamento
em Hunman – deixara-o à vontade para recusar, mas Roman quisera ir – e, a
seguir, dirigiram-se a Lake Shore Drive para ir buscar Fiona.
Fiona ia para tentar apaziguar Debra. Não eram muito chegadas, mas fora
Fiona que ligara e contara a Debra que Yale tinha sido despedido,
certificando-se de que a fazia sentir-se tão culpada quanto possível por isso.
Dissera a Debra que Yale queria despedir-se de Nora e que ela também
queria ver a tia, e que Debra podia chamar o pai ou até a polícia, se
quisesse, mas que não os impediria de lá ir.
– A última parte provavelmente não era necessária – disse Fiona –, mas já
a tinha ensaiado, portanto disse-a na mesma.
Yale calculou que a presença de Fiona também tranquilizaria Roman;
seria um bom amortecedor entre ambos. E Fiona não via Nora desde o
casamento, quando lhe falara sobre Yale e a galeria. Yale não se sentiu
minimamente culpado por reservar um terceiro quarto de hotel em nome da
Northwestern; considerou-o uma dádiva pessoal de Chuck Donovan.
Yale passara a véspera a ligar para doadores, a começar a rematar as
pontas soltas. Em parte, porque era realmente o seu trabalho, mas em parte
também para reforçar relações. Se fosse parar a outro museu dali a três
meses, queria poder contactá-los novamente.
Nesse fim de semana, estivera a atualizar o currículo e a fazer alguns
telefonemas, a apalpar terreno junto de antigos colegas do Instituto de Arte.
Um deles estava agora no Museu de Arte Contemporânea. E havia mais
cidades além de Chicago. Pela primeira vez em muito tempo, era livre de ir
para onde quer que o trabalho o levasse. Nova Iorque, Montreal, Paris.
Roma. Tentou encarar as coisas dessa perspetiva, ver as dádivas que lhe
estavam a ser concedidas: a sua vida, a sua saúde, a liberdade de correr
mundo.
Na viagem, enquanto mastigava batatas fritas, Roman contou a Fiona
todos os pormenores da história de Ranko. Era o principal motivo desta
viagem, além de Yale querer dizer adeus a Nora. Se se tivesse despedido da
galeria por causa de uns desenhos de Modigliani, seria um idiota. Mas se se
tivesse despedido para salvar a coleção, e se a coleção permanecesse
completa como Nora desejava, então fizera uma coisa boa, muito boa, na
vida. E registar a história de Ranko, garantir que era contada – não fora por
isso que Nora quisera deixar a coleção à galeria? Não escolhera Yale
precisamente porque julgara que ele compreenderia?
Pararam numa estação de serviço nos arredores de Kenosha, rodeada de
bosque, e enquanto esperavam cá fora por Roman, Fiona disse:
– Devias ligar ao Asher. É a especialidade dele, despedimentos ilegais.
– Não foi um despedimento ilegal. Fiz asneira e despedi-me. E o Asher
tem coisas mais importantes com que se preocupar.
No entanto, a ideia era tentadora – um motivo para passar mais tempo
com Asher, uma razão tangível para chorar no ombro de alguém, um ombro
substancial onde chorar.
– Não percebo porque é que o fizeste – disse ela. – Não podes sacrificar a
tua carreira só por uma questão de nobreza!
Ele imitou o seu tom de voz.
– Tal como tu não podes sacrificar a tua educação só por uma questão de
nobreza!
Fiona decidiu que queria um refrigerante e entrou na estação de serviço
quando Roman vinha a sair. Roman parecia comicamente deslocado no
meio das famílias do Wisconsin dispersas nas imediações, todas com
casacos volumosos. Vestia um blusão de aviador preto por cima da t-shirt
preta e, claro, as calças de ganga e os sapatos e os óculos escuros eram
também pretos. Parecia um cangalheiro terrivelmente chique. Parou ao lado
de Yale, que fingiu ler um letreiro histórico sobre Marquette e Joliet. Ainda
estava a pensar em Bill, em Asher, e agora ali estava Roman, a ler também
o letreiro, suficientemente perto para Yale lhe ouvir a respiração. Os seus
braços, um minuto depois, estavam encostados. Os ombros, as ancas.
Roman moveu a mão atrás de Yale como se fosse tocar-lhe nas costas, mas
Yale não sentiu qualquer pressão. Parecia estar apenas com a mão no ar,
como que a desafiar-se a si próprio.
– Não sabia que o Marquette era padre – disse Roman.
– Não eram todos padres, naquele tempo?
– Bom...
O passeio explodiu debaixo deles.
Ou melhor, estilhaçou-se, com fragmentos de vidro por todo o lado,
embora o betão ainda ali estivesse e os seus sapatos e pés continuassem
onde estavam.
Yale virou-se e viu uma mulher corpulenta com cabelo armado e blusão
de ganga, a olhar para eles enquanto se dirigia à porta da estação de serviço.
Outra mulher caminhava rapidamente à frente dela, a rir. A amiga, talvez
embaraçada pela cena. Fora uma garrafa que se partira aos pés deles, uma
garrafa de refrigerante, com os restos da bebida a borbulhar entre os
estilhaços.
– Metem-me nojo! – gritou a mulher corpulenta, e depois correu para
apanhar a amiga. – Tarados, pedófilos de merda! – E desapareceram dentro
da estação.
Roman recuou um passo. Abriu a boca em O e soltou lentamente a
respiração.
– Parece que ela não é fã de letreiros históricos – disse Yale. Estava a
tremer, mas queria que ficasse tudo bem. Sentia-se responsável, como se, ao
masturbar Roman na viagem anterior, tivesse causado tudo isto, tivesse
tornado Roman notoriamente gay. Era ridículo, sabia disso.
Roman desceu do passeio e esfregou os sapatos na neve dura.
– Ela nem sequer conseguia ver a nossa cara. Só nos viu as costas.
– Estás bem? – quis saber Yale. – Desculpa. Foi...
– Não é nada que não tenha ouvido antes.
– Bom, estamos no Wisconsin.
– Não finjas que aconteceu por termos cruzado a fronteira do Wisconsin.
– Ouve, é melhor não dizermos nada à Fiona – disse Yale.
E aí vinha ela.

Encontraram Nora com melhor aspeto do que da última vez, com a


cadeira de rodas encostada à mesa da sala de jantar, onde tinha arrumado as
cartas da caixa de sapatos em vários montes. Levantou-se com alguma
dificuldade para abraçar Fiona, para dizer a Yale que parecia cansado.
Debra abrira-lhes a porta, dera um beijo seco na face de Fiona, ignorara
completamente Yale e saíra para ir às compras. Yale esperava que fosse
fazer mais do que isso, que tivesse ido visitar amigos, que andasse a
rebolar-se na neve, a empenhar as joias, qualquer coisa.
Yale disse a Nora que estavam a apontar para outubro do ano seguinte a
abertura da exposição, mas não lhe disse que ia ficar desempregado. Se
Debra lhe contara alguma coisa, ela não a mencionou.
– Vimos cá raptá-la quando for altura! – disse Fiona. – Obrigamos toda a
gente a sair da frente da sua cadeira de rodas.
Nora riu-se.
– As pessoas costumam realmente desviar-se de uma cadeira de rodas.
Yale explicou que se tratava de uma visita mais social do que as
anteriores.
– E, acredite ou não, não viemos interrogá-la sobre datas. Para começar,
queremos saber mais sobre o Ranko. Deixou-nos em suspenso da última
vez.
Nora ficou encantada por poder terminar a história, mas primeiro insistiu
que eles fizessem sanduíches e comessem qualquer coisa. Ela própria o
faria, se não fosse a cadeira. Yale, Roman e Fiona encontraram pão de
forma, queijo e creme de barrar. E uma alface meio murcha, também, em
que Yale se recusou a tocar. Roman pôs uma folha na sua sanduíche, com o
verde a ver-se de fora das fatias de pão.
Yale e Fiona regressaram à sala primeiro.
– Ele é mesmo giro – murmurou Fiona. – Podes dar-me um bom motivo
para não o seduzires outra vez?
Yale lembrava-se de um ou dois, mas já estavam junto de Nora e Roman
aproximava-se.
– Têm sorte por eu ainda estar boa da cabeça – disse Nora –, porque me
lembro do que já vos contei. Estávamos em 1919, não era?
Fiona sentou-se ao lado de Yale à mesa, pegou no bloco dele e escreveu
em letras maiúsculas: VAI-TE A ELE! Ele conteve uma risada, como um
miúdo de onze anos a tentar não se rir na sinagoga, enquanto ela desenhava
dois bonecos rudimentares numa posição obscena.
Roman ligou o gravador que trouxera e Nora começou a falar sobre
aquele verão, como o trabalho de modelo a levara a festas loucas e longos
jantares, à inclusão num círculo de verdadeiros artistas que não lhe estaria
acessível como estudante.
– Já tinham passado cinco anos – disse ela –, e eu estava realmente
convencida de que ele sobrevivera à guerra, porque vários amigos o tinham
visto, já perto do fim. Nunca se sabia, por causa da gripe, claro. De
qualquer maneira, já o tinha dado como perdido para mim. Toda a gente
sabia que ele não reclamara o prémio.
Falou-lhes sobre Paul Alexandre, nome que parecia familiar a Roman, um
patrono das artes que arrendara uma mansão quase em ruínas e deixava os
artistas usarem a casa para festas que duravam dias.
– Havia muita cocaína – disse ela, e Fiona desatou a rir. – Bom, minha
querida, tínhamos acabado de sobreviver a uma coisa horrenda e não
sabíamos o que fazer da vida. O Modi era o centro magnético, e levou-me.
Ele não passava do metro e sessenta, e tinha perdido uma data de dentes. E
tinha acessos de fúria, por causa da tuberculose. Outras vezes,
simplesmente chorava. Um dia, estava a desenhar-me e fez uma autêntica
birra sobre o Braque, que o Braque estava para lá do horizonte e ele estava
perdido num barco a remos. Sei que, da maneira que o descrevo, ele parece
horrível, mas na verdade era extraordinariamente sexy. Um dia, levou-me à
casa do Alexandre. Eu estava bastante embriagada e, quando ergui os
olhos... ali estava o Ranko, à porta, como um fantasma.
Roman soltou uma exclamação abafada, como se a história não
caminhasse para aquilo.
– Tinha a mão direita enfiada no bolso e, na altura, não percebi que o
fazia por ela estar arruinada, os nervos destruídos. Não foi uma bala, por
isso não sei o que causou os danos, talvez fosse psicológico. Conseguia
mexer o mindinho, mas os outros dedos não.
«Não me lembro do princípio da nossa conversa... mas sei que acabámos
os dois no relvado em frente à casa, o Ranko a gritar que sabia muito bem o
que significava ser modelo, para uma rapariga. Devo admitir que ele tinha
razão. Toda a razão. Nunca consegui fazê-lo compreender que o trabalho de
modelo era a única forma que me restava de ser artista. E vejam, não
funcionou? Tantos anos depois, vou ter a minha exposição! – Riu-se e deu
uma palmada na mesa.
– Mas podia ter sido artista na mesma – disse Fiona. – Não podia?
Mesmo não estando na escola?
– Oh, minha querida. Diz-me o nome de uma mulher artista cujo trabalho
conheças, anterior a 1950, tirando a Mary Cassart. Mas não era só isso.
Francamente, nunca fui muito boa. Podia ter sido, se continuasse a estudar.
Era o tipo de pessoa que precisava de instrução. O Ranko foi destruído
pelos professores, mas para mim teria sido útil.
– Berthe Morisot! – exclamou Fiona, mas Nora já tinha avançado.
– Assim que o vi, apaixonei-me instantaneamente, outra vez. É
estranhíssimo reencontrar alguém depois de muito tempo. O nosso cérebro
regressa automaticamente ao modo anterior.
Olhou intensamente para Yale, como se precisasse da concordância dele.
Yale não sabia durante quanto tempo conseguiria evitar Charlie, e o que
aconteceria se voltassem a encontrar-se daí a cinco anos. Se Yale fosse
viver para outra cidade, por exemplo, e regressasse a Chicago para um
funeral qualquer. O choque de ver Charlie do outro lado de uma sala
apinhada, magro e pálido. Mas não – daí a cinco anos, o mais certo era que
fosse o funeral de Charlie.
– Ele estava tão zangado comigo que foi para Nice e esteve lá um mês.
Eu não sabia o que ele esperava; era uma sorte que não estivesse casada e
com três filhos. Mas sempre imaginei que aquilo que realmente o enfureceu
foi ver-me rodeada de tantos artistas bem-sucedidos. Voltou e tivemos uma
discussão terrível, mas depois fizemos as pazes. Ele veio viver connosco,
para o apartamento que eu partilhava com a minha amiga Valentina. Mas
continuei a trabalhar como modelo e ele tinha ataques de ciúmes terríveis.
Tentou pôr-me a pintar por ele. Foi horrível; íamos para o estúdio de um
amigo, ele fazia um esboço com a mão esquerda, muito grosseiro, e depois
tentava manobrar-me como uma marioneta. Misturava as tintas e apontava,
tudo com a mão esquerda. Era uma autêntica tortura e, no fim, parecia obra
de uma criança. Teria ficado melhor se ele não estivesse constantemente aos
gritos por cima do meu ombro. O... não devia dizer-vos isto, mas parece que
já me descaí. A pintura...
– O homem do colete aos losangos – disse Yale. Sentia a cabeça a flutuar
para longe, como um balão. – Disse que era posterior à guerra.
– É uma obra dele, não minha! Ele queria um autorretrato, e nunca gostou
de nenhum dos que ele próprio fizera. Claro que eu estava disposta a ser as
mãos dele. E podem ver que o estilo é semelhante à pintura de mim como
criança!
Yale só queria enfiar-se debaixo da mesa e enrolar-se em posição fetal.
Tinha de pedir a Roman que apagasse aquela parte da gravação, depois. Se
isto chegasse aos ouvidos de Bill, as peças de Novak estariam excluídas
para sempre. Se chegasse aos ouvidos de alguém – céus, podia pôr em
causa todas as autenticações. Era uma... não propriamente uma peça
forjada, mas quase. Mal conseguia pensar.
– É ele? – perguntou Roman. – O Ranko era assim?
– Bom, não. Não ficou lá muito parecido com ele. Acho que acertei nos
olhos. Orgulho-me disso. Mas é difícil pintar com alguém a gritar-nos aos
ouvidos.
– Porque é que se sujeitou a isso? – indagou Fiona.
– Sentimento de culpa, suponho. Ele tinha passado por tanta coisa. E eu
estava loucamente apaixonada, e uma pessoa nunca é razoável quando está
apaixonada.
Fiona não parecia satisfeita com a resposta. Mas a verdade era que
também nunca compreendera porque é que Yale aguentara tanto tempo com
Charlie. Acabaria por perceber, mais cedo ou mais tarde, como é possível
uma pessoa mudar e ao mesmo tempo nunca abandonar o conceito inicial.
Como é possível que o homem que em tempos foi perfeito fique
encurralado dentro de um desconhecido.
Ao lado de Yale, Roman tinha levantado a fatia de pão da sanduíche e
estava a desmontá-la. Dobrou a fatia de queijo ao meio e enfiou-a na boca.
Nem ele nem Fiona pareciam muito perturbados pela confissão de Nora.
– Bom, toda a gente sabe como o Modi morreu. Em janeiro, a Jeanne
apareceu em Paris, grávida. Ouvi dizer que ela estava na cidade, portanto
afastei-me. Ele vivia na esquina perto do La Rotonde, e fico agoniada
quando penso que lá estive tantas vezes enquanto ele jazia, moribundo, a
menos de um quarteirão. O que aconteceu foi que um vizinho finalmente foi
ver como ele estava e os encontrou inconscientes, a ele e à Jeanne, meio
mortos de frio. Nem sequer tinham lenha para queimar. A Jeanne
recuperou, mas ele não. Morreu de tuberculose, mas foi o frio que desferiu
o golpe final.
Yale tinha lido essa informação na biblioteca.
Nora olhou para os três, de testa franzida.
– Não se impressionam facilmente, pois não?
– Claro que não – disse Fiona. Roman pareceu subitamente incomodado.
– Alguns amigos do Modi queriam fazer uma máscara fúnebre. Um deles
era o Kisling, o pintor, que se tornou amigo do Ranko na guerra. E o
Lipchitz, o escultor. Não faziam ideia nenhuma do que estavam a fazer. O
terceiro era um astrólogo. E convidaram o Ranko para assistir. Fiquei com
inveja, porque queria despedir-me do Modi e o Ranko, que o odiava, é que
acabaria por lá estar. O problema foi que o Lipchitz usou um tipo de gesso
pouco adequado, demasiado abrasivo, e, quando o tiraram – olhou para
cada um deles –, arrancou a pele da face e as pálpebras. Os homens
entraram em pânico e largaram o molde no meio do chão. Por fim,
acabaram por o colar e o Lipchitz esculpiu a cara. Está no museu em
Harvard, e não tenho vontade nenhuma de a ver.
Fiona parecia normal, mas Roman estava pálido. A imaginação que lhe
permitia visualizar Ranko de forma tão vívida provavelmente não era sua
amiga neste momento. O próprio Yale estava ligeiramente agoniado.
– Foi a gota de água para o Ranko – disse Nora. – Já estava desolado, mas
acho que ver alguém... e uma pessoa tão talentosa, ainda por cima... a
transformar-se num esqueleto perante os seus olhos... Bom, ele conseguiu
contar-me a história, mas foi praticamente a última coisa que alguma vez
me disse. Estou certa de que deve ter visto bem pior na guerra, mas aquilo
era diferente.
«Entretanto, a Jeanne matou-se por causa do Modi. Saltou da janela da
casa dos pais, com o bebé na barriga e tudo. Não sei se isso não terá
também afetado o Ranko. Sabem, quando nos chamam a Geração Perdida...
Foi o Hemingway que disse isso ou o Fitzgerald?
– Foi... desculpe... foi uma coisa que a Gertrude Stein disse ao
Hemingway – respondeu Roman. – Mas foi ele que o escreveu.
– Bom. Enfim. Não vejo uma forma melhor de o dizer. Passámos por
coisas que os nossos pais nunca viveram. A guerra tornou-nos mais velhos
do que os nossos pais. E, quando somos mais velhos do que os nossos pais,
o que havemos de fazer? Quem é que nos vai ensinar a viver?
Nora passou o dedo pela beira da caixa de sapatos.
– O funeral foi um autêntico circo, uma ironia das piores – disse. – Ele
morreu gelado e com fome, e ali estávamos nós numa cerimónia opulenta
no Père Lachaise. Agora... Yale, tem de me dizer quando quer que eu pare.
Vieram de tão longe e estou a dar cabo do vosso dia. Espero que saibam que
também houve muita alegria! Mas, quando tentamos resumir uma história,
o que fica são sempre as partes macabras. Todas as histórias acabam da
mesma maneira, não é?
Yale, na realidade, não sabia se aguentava ouvir falar mais em morte, mas
disse:
– Continue.
– Já sabem o facto básico: o Ranko suicidou-se. No mesmo dia do funeral
do Modi. A seguir ao funeral, um grupo de nós foi ao La Rotonde.
Estávamos a beber e a conversar e eu não estava a olhar para o Ranko. Mais
tarde, alguém me disse que o tinha visto levar a mão à boca. Tudo o que
vimos foi que ele começou a tremer violentamente e caiu da cadeira. Toda a
gente pensou que fosse uma convulsão. Mas, depois, deixou de respirar e
apareceram-lhe bolhas à volta dos lábios. Eu não conseguia parar de gritar.
Quando os médicos chegaram, estava morto. O que descobriram mais tarde,
pelos vestígios de pó na mão e no bolso dele, foi que engoliu cristais de
cianeto. Enfiou-os diretamente na boca. Passei a vida inteira a tentar
perceber porque é que escolheu aquele momento exato.
– Cianeto! – exclamou Roman. – Então ele... ele de certeza que o
planeou, certo? Uma pessoa não anda com cianeto no bolso sem motivo.
– Porque acha que ele o fez? – inquiriu Yale.
– Meu Deus... as pessoas levam as suas razões consigo, não é?
Debra estava de volta com as compras. Recusou ajuda para as trazer para
dentro, mas atravessou a sala com passos furiosos quatro vezes.
Roman saiu para fumar e, depois de ele sair, Nora disse:
– Com certeza consideram-me uma idiota por permanecer tão dedicada a
um homem tão complicado. – Nenhum dos dois o negou. – Não foi nada
que me impedisse de viver a minha vida. Se ele não tivesse morrido,
acabaríamos por seguir caminhos diferentes. Ele teria tido a sua vida neste
mundo, fora da minha mente. Mas quando alguém morre e sentimos que
somos o principal guardião da sua memória... esquecer seria uma espécie de
homicídio, não acham? Eu sentia tanto amor por ele, apesar de ser um amor
complicado... para onde havia de ir todo esse amor? Ele já cá não estava,
portanto o sentimento não podia mudar, não podia transformar-se em
indiferença. Fiquei com aquele amor todo, sem ter onde o pôr.
– É aqui que está a pô-lo – disse Yale. – Na coleção, na exposição.
Apercebeu-se de que Fiona estava a chorar silenciosamente e acariciou-
lhe as costas.
Antes de Roman voltar, Yale contou-lhes a história de como Nico, quando
servia à mesa no La Gondola, correra uma vez atrás de dois clientes que não
tinham pagado, debaixo de chuva, e prendera um homem com o dobro do
seu tamanho contra um poste até o cozinheiro o vir ajudar. Yale e Charlie
tinham assistido pelo vidro da montra.
– Parecia um miúdo – disse Yale. – A forma como correu e se atirou a ele.
Como se tivesse molas nas pernas.
Fiona já tinha ouvido a história, mas riu-se como se fosse a primeira vez.
– Esta deve ser a nossa última visita durante algum tempo – disse Yale a
Nora. – Mas pode telefonar-me, se se lembrar de mais alguma coisa. –
Escreveu o seu novo número. – E... quero que saiba que, à medida que a
galeria for crescendo no próximo ano, o meu papel vai sofrer alterações.
Nora abriu a boca e Yale temeu que fosse perguntar-lhe o que queria dizer
com isso, mas ela limitou-se a pousar a mão fria ao de leve sobre a dele.
– Isto estava destinado a acontecer – disse. – Acredita em reencarnação?
Yale olhou para Fiona em busca de ajuda, mas ela estava a olhar para ele,
divertida, à espera da sua resposta.
– Acho que gostaria que fosse verdade.
– Bem – disse Nora, com uma palmadinha na mão dele. – Se for possível,
espero que regressemos todos ao mesmo tempo. Vocês os dois, o Nico, o
Ranko, o Modi, todas as pessoas divertidas. Será uma festa, e não
permitiremos que uma guerra estúpida a interrompa.

Na estalagem, Yale e Fiona assistiram ao noticiário da noite no recanto do


televisor. Roman desapareceu no seu quarto.
– Ouviste alguma coisa sobre o Charlie? – perguntou Yale. Não tinha a
certeza se era saudável perguntar, mas queria saber como estava Teresa, e
como corriam as coisas no jornal, e se Charlie tinha saudades dele. Queria
saber se Charlie ainda andava a vaguear pela cidade, amuado. Queria um
diagrama a cores do coração de Charlie e de todos os seus defeitos.
– Não sei muito. O Asher anda a organizar aquela coisa contra o cardeal
Bernardin, e sei que o Charlie está envolvido. Não o vi, exceto... bom, na
festa de aniversário do Teddy.
– Ai, essa doeu.
– Não, quer dizer...
Yale riu-se de si próprio, mas a verdade era que se sentia mesmo
magoado. Uma mágoa pueril, primitiva.
– Quem é que lá estava?
– Foi uma coisa pequena. Não perdeste nada. Ninguém falou de outra
coisa senão do Julian. Estava lá o Asher, e o Katsu, e o Rafael com o
namorado novo, e o Richard. E os amigos do Teddy, da Loyola, que, para
ser franca, eram uns chatos de primeira. E o Charlie trouxe aquele tipo
grande com quem costumava andar, o da barba. O Martin.
– O Martin! – Este facto em particular entrou na mente de Yale mais
como um mexerico suculento do que como uma ofensa pessoal. Seria um
desenvolvimento novo ou Charlie mantivera algum tipo de relação com
Martin durante este tempo todo?
– Todos sentiram a tua falta. Eu senti a tua falta, e a tua ausência era
palpável.
– Suponho que isso devia deixar-me contente.
– Espera, o que é que vamos fazer no teu aniversário? Em maio, não é?
Queres uma festa? Ou um jantar? Podemos ir ao Yoshi!
Yale percebeu que era incapaz de imaginar como seria a sua vida dali a
três meses. Sorriu e disse:
– Parece-me perfeito.

Quando regressou ao quarto, Yale parou e bateu à porta de Roman.


Roman abriu com a camisola de fora das calças, o cabelo despenteado.
– Devíamos arrancar cedo. Às sete, está bem? – disse Yale.
– Claro. Ouve, esta viagem conta para acabar as minhas horas de estágio,
certo?
– Oh, sim. Acho que deve ser mais do que suficiente.
– Então, acabou-se a galeria para mim. Quer dizer, se não houver
problema, não penso voltar.
– Eu também estou praticamente de saída.
Roman tirou os óculos e esfregou as marcas na cana do nariz.
– Já não és meu supervisor – disse.
Não havia mais ninguém no corredor, mas Yale sentiu que devia
sussurrar.
– Pois não.
– Então, se calhar devias entrar. – Roman afastou-se e abriu espaço para
Yale passar.
O quarto estava escuro e Roman cheirava a mel e cigarros, e Yale entrou
como se mergulhasse num navio naufragado.
2015
o meio-dia do dia seguinte, Fiona abriu um e-mail no computador
A portátil de Serge. Não se lembrava de ter dado o seu endereço a
Fernand, o crítico de arte, mas ou o fizera (tonta por causa do vinho e da
perda de sangue) ou Fernand o pedira a Richard.
«Isto foi o que o meu amigo despachado conseguiu encontrar», escrevia
ele, «mas com um mínimo de pesquisa. Diz que é de 1911. O Ranko Novak
está na terceira fila, o segundo a contar da esquerda. Se precisar de mais
alguma coisa, mande-me pormenores! Tenho todo o gosto em ajudar uma
amiga do Richard. Cumprimentos à sua mão ferida.»
Fiona abriu a imagem anexa. Um grupo triangular – dez à frente, sete na
fila seguinte, e por aí fora – de homens de bigode, a olharem uns para os
outros e não para a câmara. Um esqueleto deitado ao colo dos homens da
primeira fila. Num tapete à frente de todos, uma mulher nua, com o traseiro
generoso virado para a câmara. Uma fotografia encenada, a versão da belle
époque de um instantâneo de grupo divertido.
Seguiu com o dedo no ecrã a terceira fila, até ao segundo homem. Cabelo
escuro encaracolado, uma boca larga. Risco ao meio. Uma gravata de laço
fininha e mole.
O que teria ele de tão especial? Fiona não sabia o que esperava, mas
esperava algo mais do que isto. Ranko Novak merecera setenta anos de
devoção. Ranko Novak era insubstituível, um vazio no centro do universo
de Nora. E era só isto? Um rosto, dois olhos, duas orelhas.
Bom, não valia a pena dizer isso a quem estava apaixonado.
Aumentou a imagem mas ele não ficou mais nítido, apenas maior.
A sua relação com Dan começara com uma conversa depois da aula de
ioga, uma visita ao bar de sumos da esquina, onde ele lhe perguntara o que
pensava do que a professora dissera nesse dia sobre libertarem-se daquilo
que os prendia.
– O dinheiro é uma coisa – dissera ele. – Se eu quisesse ser monge, podia
prescindir do meu carro e só me custaria durante uma semana. Mas as
pessoas... isso é que é difícil.
Tinham ficado muito tempo ali sentados, a conversar. Fiona disse:
– Sempre achei os gansos tão engraçados.
Dan desatou a rir e ela explicou:
– Não, o que quero dizer é que os gansos acasalam para a vida toda,
certo? Mas são todos exatamente iguais. São mesmo iguaizinhos! Como é
que se distingue um ganso de outro? Se calhar têm gostos diferentes em
termos de música, não? No entanto, um ganso reconhece o seu companheiro
a quilómetros.
– E nós achamo-nos tão especiais – disse Dan. Ele percebia, e fora nesse
momento que ela começara a apaixonar-se por ele. – Amor verdadeiro e
tudo isso. Achas que somos tão vulgares como os gansos?
– A tragédia – disse ela – é que saber isso não altera nada.
E, há cento e tal anos, ali estava Ranko Novak. Um rosto entre rostos, um
ganso igual aos outros gansos. Estava morto, e Nora estava morta, e o que
acontecera à paixão que os consumira a ambos? Se Fiona conseguisse
convencer-se de que ela continuava a flutuar pelo mundo – incorpórea,
sobras de paixão –, não seria algo maravilhoso em que acreditar?
*
Às duas da tarde, Cecily ligou-lhe e disse que tinha mudado de ideias:
estava a embarcar no voo de ligação no Aeroporto de O’Hare e estaria em
Paris essa noite. Não precisava de hotel. Tinha uma velha amiga da
universidade a viver no Quartier Latin.
– Não te vou atrapalhar – disse. – Vou trabalhar mais no lado do Kurt. E
depois... achas que devo levar presentes? Para a menina?

Às cinco da tarde, Fiona desenrolou a ligadura para aplicar a pomada que


o médico lhe dera. A mão já não doía tanto. Era espantosa a rapidez com
que uma pessoa se esquecia da dor física, em quão pouco tempo nem sequer
conseguia recordar o seu eco.
Às oito, Jake ligou. Serge dera-lhe o número. Convidou-a para sair e
comer qualquer coisa. Estava cansada, disse ela, e conseguiu despachá-lo.
Tinha de ter uma conversinha com Serge.
Às nove e quarenta e cinco, deitada na cama, começou a ouvir sirenes.
Demasiadas sirenes, durante demasiado tempo. Às nove e cinquenta, o seu
telemóvel começou a tocar. Primeiro, Damian e, depois, Jake – frenéticos,
com perguntas enigmáticas sobre onde é que ela estava. Não saias de casa,
disseram. Richard bateu-lhe à porta do quarto. Saiu para ver as notícias na
sala com eles, de camisa de noite, os pés frios. Serge andava de um lado
para o outro, a praguejar. Richard estava deitado no sofá.
Fiona fez um esforço consciente por continuar a respirar.
Os ataques eram a alguma distância dali e tentou imaginar que estava em
casa, a ouvir as notícias sobre algo que acontecia do outro lado do mundo.
Era impossível que Claire estivesse no que parecia ter sido um concerto de
heavy metal qualquer; os gostos de uma pessoa nunca mudariam assim
tanto. Podia estar naquele restaurante, ou a caminhar naquele passeio, mas
as probabilidades eram reduzidas. O estádio de futebol ficava em Saint-
Denis, onde Claire vivia; isso preocupou-a mais. Mas Claire tinha uma filha
pequena e era tarde. Pelo menos Claire tinha o número dela – mas porque é
que não a obrigara a dar-lhe o seu? Também não tinha o contacto de Kurt.
Andar a correr pela cidade à procura dela estava fora de questão. Devia ir
buscar um casaco, mas não queria mexer-se.
Não havia nada a fazer, senão manter a calma. Cecily estava no ar e, em
princípio, deixariam o avião dela aterrar. Quais eram as probabilidades de
Claire ir trabalhar na manhã seguinte? Quais eram as probabilidades de a
cidade mergulhar num caos tal, que Fiona nunca mais a conseguiria
encontrar?
Ficou surpreendida pelo entorpecimento que se apoderou de si, pelo
menos em relação à carnificina na televisão, às pessoas ensanguentadas e
em pranto pelas ruas. Seria por não ser a cidade dela, ou por os rituais de
ultraje e dor e medo parecerem agora demasiado familiares, demasiado
praticados? Ou talvez fosse dos analgésicos que tomara depois de jantar
para as dores na mão.
Ocorreu-lhe o pensamento egoísta de que isto não era justo para ela. De
que estava no meio de uma história diferente, uma história que não tinha
nada a ver com isto. Era uma pessoa que vinha à procura da filha, que
queria resolver a sua relação com a filha, e não havia espaço nessa história
para a estupidez de extremismos religiosos, para a violência de homens que
nunca conhecera. Tal como estava no meio de uma história de divórcio
quando as torres tinham caído em Nova Iorque, deitando por terra os planos
cuidadosamente delineados de toda a gente. Tal como estava no meio da
história em que cuidava do próprio irmão, em que crescia com o irmão,
sozinhos na cidade, a tentar sobreviver neste mundo, quando o vírus e a
indiferença de homens gananciosos os atropelara a todos. Pensou em Nora,
cuja arte e amor tinham sido interrompidos por assassínios, uma guerra.
Homens estúpidos com a sua violência estúpida, a destruir todo o bem
alguma vez construído. Porque é que uma pessoa nunca podia viver a sua
vida sem tropeçar no egocentrismo de um idiota qualquer?
A exposição de Richard: ninguém sabia se a antestreia podia ter lugar na
segunda-feira, como estava previsto. O assessor de imprensa ligou-lhe e o
agente também.
– Têm de se acalmar – disse Richard. – Deviam ter coisas mais
importantes com que se preocupar.
– Estamos perdidos – disse Serge. – O mundo inteiro está perdido.
Há uma hora e meia que não parava de andar de um lado para o outro.
– Não quero parecer insensível – disse Fiona –, mas passámos por isto
nos Estados Unidos. E não é...
– Não – disse Serge. – Cem pessoas mortas, ou lá o que é, não quero
saber. Podia ter sido um acidente de autocarro. O que me preocupa é que,
agora, vão começar a eleger partidos de direita na Europa. E depois, sim: tu,
eu, todos nós estaremos perdidos. Toda a gente vai agir movida por medo
durante o próximo ano, dois anos. O que achas que vai acontecer a pessoas
como nós?
Fiona sentiu-se a afundar.
– Pode ser que as coisas pareçam diferentes de manhã.
Serge virou-se para ela.
– Quando as pessoas têm medo, aparecem os talibãs cristãos. Temos isso
aqui, vocês têm lá, e acabamos todos presos. Acabamos todos presos.
Richard estava silencioso há tanto tempo, que Fiona pensava que ele tinha
adormecido. Por fim, ele esticou os braços acima da cabeça e disse:
– Serge, já chega.
– Vou sair. – Serge pegou no capacete, que estava em cima da bancada. –
O Hollande e o seu recolher obrigatório que se fodam.
Fiona esperava que Richard tentasse detê-lo, esperava que Serge se
detivesse a si próprio, mas quando deu por isso ele já tinha saído. O
telefone de Richard tocou novamente mas ele ignorou-o.
– Não queria ofendê-lo – disse Fiona. – Não sou ingénua, tu conheces-
me.
– É sempre uma questão de esperar que o mundo se desmorone, não é?
Quando as coisas se aguentam em pé, é sempre temporário.
1986
oman tinha a cicatriz da vacina da varicela no braço esquerdo: um
R círculo mais fundo composto por mil pontinhos. Yale podia pôr lá o
polegar. Podia pôr lá a língua.

Roman aparecia quando estava bêbedo. Parecia precisar de algum álcool


para conseguir libertar-se de toda a bagagem de vinte e sete anos de
mormonismo. Roman ligava às oito da noite de sábado e dizia que «vinha
já» e depois só aparecia à meia-noite. E, durante esse tempo, Yale ouvia
música, começava também a beber. Porque não queria sair e desencontrar-
se de Roman, mas era patético ficar ali sentado no sofá a ver televisão, à
espera.

Roman tinha chumbos prateados nos molares e assoava-se sempre depois


de se vir.

Roman aparecia como a chuva, uma vez de duas em duas semanas, e


ficava até às quatro da manhã, saindo antes de a cidade acordar. E enquanto
se calçava dizia sempre:
– Não sei o que estou a fazer.
E Yale pensava, mas não dizia, que estavam ambos perdidos no bosque.
Só que Roman julgava que Yale sabia o caminho.

Roman gostava de o fazer com ambos deitados de lado, encaixados um no


outro, o peito dele contra as costas de Yale. Encharcava-os a ambos em
suor. Gemia, a tremer, com a boca no cabelo de Yale. Das primeiras vezes
fora demasiado rápido, demasiado espasmódico. Depois relaxou, aprendeu
a abrandar, pareceu começar a gostar realmente, e o sexo deixou de ser uma
coisa a despachar rapidamente, consumido pela vergonha. Agora, até se
deixava ficar depois, na conversa.
Roman disse:
– Sem ofensa, e... quer dizer, é uma coisa boa, mas a tua pila é do
tamanho de um moinho de pimenta. Quer dizer, nunca vi... bom, na
verdade...
E Yale disse:
– Não te preocupes. Não vou tentar foder-te.
Yale perguntou a Roman se já tinha pensado se ia ao desfile do Orgulho
Gay, que era daí a dez dias. Estavam a ficar sóbrios; eram três da manhã.
– Nem que seja para fazer número, já conta – disse, e percebeu que
parecia Charlie a falar. – O ano passado, éramos trinta e cinco mil.
Roman virou-se para Yale e sorriu, os olhos pequeninos sem os óculos.
– Estás a dizer que o tamanho é importante.
– Estou a dizer que queremos ultrapassar esse número.
Roman riu-se e passou o dedo pela virilha de Yale.
– Seria bom para ti – insistiu Yale. – Depois de vermos uma drag queen a
dançar no varão em cima de um camião, no meio da rua, é mais fácil ir
trabalhar no dia seguinte sem preocupações de ser maricas. – Não que Yale
fosse trabalhar para algum lado. – Além disso... – Mas Roman cravou os
dentes na orelha de Yale e passou-lhe a mão pelo peito. – Além disso, é
educativo.
– Tu é que és educativo.

Yale não tinha notícias de Roman desde essa noite e, entretanto, decidira
que se calhar ele próprio não ia ao desfile este ano. Comprou um bilhete
para o jogo dos Cubs contra os Mets, que só começava às três e meia mas,
pelo menos, lhe dava uma desculpa bastante sólida, que usou quando Asher
lhe ligou, na véspera do desfile, e perguntou se Yale podia dar uma
mãozinha com o carro da Fundação de Chicago para a Sida.
– Na verdade – disse Asher –, não é as tuas mãos que queremos, é a tua
cara bonita. Vamos estar vestidos, não há tangas envolvidas. A menos que
queiras, claro. Quem sou eu para te impedir? – Yale teria feito praticamente
qualquer outra coisa por Asher, mas não podia participar num desfile, não
podia pavonear-se rua abaixo em frente de todos os seus conhecidos, não
podia correr o risco de dar de caras com Charlie.
Ross – o ruivo que andava a meter-se com Yale no ginásio de Marina City
há um mês – disse a Yale que, se quisesse, ele e uns amigos iam assistir, de
umas escadas de incêndio na esquina de Wellington Avenue e Clark Street,
com mojitos. Yale não queria dar esperanças a Ross, mas a ideia agradava-
lhe. Quando se mudara para a cidade, as escadas de incêndio tinham sido
uma das primeiras coisas a apaixoná-lo. Estava sempre à espera de ver
aparecer Audrey Hepburn com a sua guitarra, o cabelo enrolado numa
toalha, a cantar-lhe «Moon River», a pegar-lhe na mão e a arrastá-lo pela
cidade.
Tinha uma lista mental de razões para não ir: queria ver Sandberg
enfrentar Gooden. Não queria ficar excitado pela companhia de homens em
tronco nu, para regressar a casa e se masturbar tristemente na casa de
banho. Não lhe apetecia preocupar-se com a aparência e estar sempre a
inspecionar a multidão à procura de amigos e ex-amigos. Não queria ver
passar o carro do Out Loud. Além disso, todos os anos temia que fosse o
ano em que alguém fazia rebentar uma bomba, ou abria fogo sobre a
multidão. Vira no noticiário da véspera que mil apoiantes do KKK tinham
ocupado um parque num bairro negro do Sudoeste da cidade. Ficaram-se
pelos insultos raciais, mas tinham anunciado planos de se manifestarem
novamente em Lincoln Park antes do desfile, na zona da liberdade de
expressão. Tinha tudo para não acabar bem.

Nos últimos quatro meses, contactara todos os sítios de que se conseguia


lembrar, até o aquário e o planetário, pequenos locais no Michigan, galerias
de universidades remotas onde não tinha qualquer contacto. O seu currículo
era bom, mas ninguém parecia estar a contratar ninguém. Fora substituído
na Brigg, de onde saíra definitivamente no início de abril.
Cecily mantivera o emprego. A galeria estava bem. A ação judicial fora
retirada e Chuck Donovan passara a outras batalhas pelo seu ego. Yale
ligara a Bill uma vez, para saber como estavam as coisas, e ele dissera-lhe
que o restauro das peças de Modigliani e da pintura de Hébuterne iam
demorar muito mais do que se pensara. Bill começava a ter dúvidas de que
a exposição pudesse avançar no ano seguinte. Yale apagara pessoalmente a
parte da gravação onde Nora contava ter pintado em nome de Ranko.
– Um pequeno passo – dissera a Roman –, na minha viagem para me
transformar no Richard Nixon.
Os Sharp tinham estado uma semana na cidade em abril e Yale fizera os
possíveis por não os incomodar. Escondera Roscoe em casa de Asher, onde
o gato engordara de forma notável. Allen, por causa da única vez que
contactara Yale em relação aos rumores, sentia-se pessoalmente responsável
pelo facto de ele estar sem trabalho, apesar de tudo o que Yale lhes contara.
Continuavam a insistir para que ele ficasse no apartamento. De qualquer
modo, iam passar o verão em Barcelona.
*
Na manhã do desfile, tentou ligar a Roman, com a desculpa de o
convencer a ir. Quando Roman não atendeu, deu por si excessivamente
desapontado, de forma desproporcional ao afeto que na realidade sentia por
ele, que era apenas tépido. Roman era divertido e talvez funcionasse como
terapia, mas não era de modo algum o único homem à face da Terra.
O que era mais uma razão para ir ao desfile.
Às onze, o telefone tocou e Yale atendeu com «Residência Sharp», como
fazia sempre, apesar de nunca receber telefonemas para os Sharp.
Era a voz grave e arrastada do pai, a perguntar-lhe como iam as coisas.
Como faria uma enfermeira mal paga, com a cabeça enfiada no quarto para
saber se era preciso mudar a arrastadeira.
– Está tudo bem – disse Yale.
– Eu estou a fazer as palavras cruzadas.
– Está bem.
– Eu, hum... ficava agradecido se me soubesses dizer uma palavra de oito
letras para «alegre». Estive uma data de tempo a pensar que dizia «alargue»,
mas não, é «alegre».
Ninguém falava mais devagar do que o pai, uma característica que dava
com Yale em doido quando era adolescente.
– Não faço ideia.
– O que é que tens feito?
Não tinha como responder a essa pergunta. Yale não falara ao pai sobre a
separação, dissera-lhe apenas que se mudara. Nunca lhe chegara sequer a
dizer que deixara o Instituto de Arte no verão passado; o Instituto era um
sítio de que o pai já ouvira falar, algo de que podia orgulhar-se
minimamente, e, embora certamente já tivesse ouvido falar também na
Northwestern, Yale decidira na altura que não valia a pena agitar as águas.
Podia ter falado sobre o jogo dos Cubs, mas resolveu dizer antes:
– Vou sair daqui a pouco, para o desfile.
Porque, agora que a voz do pai lhe penetrava no cérebro através do
ouvido direito, agora que ir a um jogo de basebol pareceria uma experiência
maculada pela aprovação do pai, percebeu que era verdade: ia ao desfile.
– Que tipo de desfile?
– Um desfile mesmo gay, pai. Um grande desfile gay.
Yale entendeu o silêncio do pai como uma forma de sarcasmo. Ouve bem
o que estás para aí a dizer, dizia o silêncio. Tens noção de como estás a ser
ridículo?
– Por isso, tenho de me despachar – disse.
Pensou que o pai ia desligar, contente por poder pôr fim à conversa, mas
ouviu-o dizer:
– Ouve lá, andas a acompanhar as notícias sobre aquela doença?
Yale deu por si a esticar o fio do telefone até à janela, só para poder trocar
um olhar incrédulo com o seu próprio reflexo.
– Não, pai, nem por isso. Qual doença?
– É a... estás a ser irónico? Nunca percebo se estás a ser irónico ou não.
– Sabes que mais? O desfile está a começar. Tenho mesmo de ir.
– Está bem.

Quando chegou à Clark, a estrada estava apinhada e os primeiros carros já


tinham passado. Caminhou atrás da multidão, à procura de alguém que
conhecesse. Em Wellington Avenue, procurou Ross e os amigos na escada
de incêndio, mas não se esforçou muito. Dois quarteirões à frente, avistou
Katsu Tatami do outro lado da rua e, quando algumas pessoas atravessaram
a correr atrás do carro alegórico das cervejas Anheuser-Busch, aproveitou
para fazer o mesmo. Não conhecia os tipos que estavam com Katsu, mas
Katsu recebia-o sempre com um abraço e um cumprimento entusiástico.
Teve de gritar ao ouvido de Yale para se fazer ouvir:
– Até aqui, tudo a correr bem! Queres o meu refrigerante?
Estendeu-lhe um copo do McDonald’s e um pensamento fugaz sobre
germes passou pela mente de Yale, mas ignorou-o deliberadamente. Bebeu
um gole e desejou não o ter feito: era apenas água açucarada, tépida e sem
gás.
Passaram algumas Harleys, seguidas por um dojo lésbico – mulheres
vestidas de branco aos pontapés e golpes de karaté. A Miss Gay Wisconsin;
algumas mulheres de meia-idade com cartazes da PFLAG; uma cama de
ferro enorme, puxada por um descapotável e ocupada por dois homens que
se beijavam com tremendo entusiasmo, tapados por um lençol branco que
só deixava ver os troncos nus.
Yale perguntou a Katsu como estava e ele disse:
– Ando a tornar-me um especialista em leis.
Explicou, meio aos gritos, que tinha adquirido um seguro novo, dois anos
antes. Em janeiro, começara a sentir-se mal e foi finalmente fazer a análise
– e estava infetado, não sabia se Yale sabia. Sim, maldito vírus, ainda nem
sequer contara à mãe – e o raio da companhia de seguros andava a dizer que
o vírus era uma condição preexistente e que, por isso, os tratamentos não
estavam cobertos.
– Apesar de eu ter feito o seguro antes de existir sequer a merda da
análise! Mas dizem que eu devia saber porque, há três anos, tive aftas. Uma
vez. E, pelos vistos, é o suficiente para me rejeitarem agora. – Precisava de
tratamentos de gentamicina, e ia necessitar de cuidados hospitalares num
hospital que não fosse a merda do County, onde estivera uma ou duas vezes,
e por acaso Yale imaginava o cheiro naquele hospital? Por algum motivo
era de graça! Portanto, Asher andava a ajudá-lo a pedir o subsídio da
Segurança Social que tinha de receber, antes de poder candidatar-se ao
seguro da Medicaid, porque, pelos vistos, era assim que as coisas
funcionavam neste país. – E sabes o que é que temos de provar? Não vais
acreditar. Temos de provar que eu tenho uma incapacidade. O que agora é
verdade, não conseguiria trabalhar mais do que talvez quatro dias por
semana porque, no quinto dia, tenho uma diarreia tão má que não consigo
sair da casa de banho.
A situação era compatível com o seu trabalho em part-time na Howard
Brown, mas não com o emprego de assistente administrativo com o qual
costumava pagar as contas, incluindo o seguro inútil.
– Mas diarreia não é uma categoria de incapacidade, percebes? Por isso, o
Asher arranjou-me um advogado de contencioso que tem de provar numa
audiência... ouve bem isto. Tem de mostrar que eu não posso fazer nenhum
trabalho sedentário não especializado na economia nacional. No país
inteiro. E a merda de exemplos que eles usam! Queres ouvir os exemplos?
Yale estava exausto só de ouvir Katsu, mas sim, queria ouvir. Passou por
eles uma drag queen em andas, com um fato elaborado de Estátua da
Liberdade, todo em lantejoulas verdes e gaze.
– Não estou a brincar. Selecionador de nozes. Não é um eufemismo.
Polidor de bolas de bólingue. Também não é um eufemismo! Embalador de
talheres. É estar sentado a embrulhar talheres em guardanapos. Porque toda
a gente quer um tipo com sida e diarreia a tratar-lhe dos talheres, claro.
Cobridor de panquecas. Nem sequer sei o que isso quer dizer. O último... e
estou a falar a sério... é inspetor de anzóis no Alasca. Não querem saber que
eu não possa ir para o Alasca e que nunca conseguiria esse emprego, de
qualquer maneira. O que interessa é que é um emprego na economia
nacional. Portanto, sim, a minha sobrevivência depende agora de conseguir
provar que não posso cobrir panquecas.
Aí vinha um grupo de tipos vestidos de cabedal, com um cartaz a dizer
«Orgulhosamente amarrados!», seguido de um clube de jardinagem ou
coisa parecida.
– Mas, entretanto, vou participar em todos os ensaios clínicos que
conseguir.
– E o Asher está a ajudar – disse Yale.
– Sim. O Asher. Ele podia polir as minhas bolas de bólingue quando
quisesse, não é?
Yale sentiu o rosto a arder.
– Oh, vá lá, de certeza que o deixavas polir-te as bolas de bólingue!
Yale tentou soltar uma risada neutra.
E ali, ridiculamente, antes que ele conseguisse recuperar, estava o carro
alegórico da associação AFC de Asher. E lá estava Asher, a acenar como
um político. Yale acenou-lhe, mas Asher não o viu.
Seguiram-se três tipos em monociclos, com calções e coletes de ganga.
Uma série de vereadores e senadores estaduais em descapotáveis, a
maioria deles com ar muito contrariado.
O carro do Out Loud. Uma carrinha vermelha de caixa aberta. Yale
recuou um passo para que Katsu não lhe visse o rosto, para não ter de se
preocupar em controlar a expressão dos olhos e da boca.
Cartazes por todo o lado: «Gritamos por Sexo Seguro!» e «O Out Loud
diz:/Protejam-se!»
Seis bonitos homens em tronco nu – Yale só reconheceu Dwight, o
revisor –, com pepinos à altura das virilhas, a cobri-los lentamente com
preservativos. A tirá-los e a repetir. A abrir embalagens novas com os
dentes, a provocar os vivas e gritos da multidão.
Da parte lateral da carrinha, Gloria e Rafael atiravam preservativos para a
multidão, de um balde cheio deles.
Não estava a ver Charlie. E depois, subitamente, viu-o. Tinha rapado a
barba. Era o que estava a segurar no gravador que tocava bem alto «You
Spin Me Round».
Yale tentou absorver a ironia de toda a situação, mas o seu corpo estava
ocupado a reagir com uma estranha combinação de tensão arterial alta e
baixa.
Um Trojan acertou no peito de Katsu, que o apanhou, a rir, e o deu a
Yale.
– Eu prefiro os LifeStyles. Queres?
E embora Yale não estivesse a ver uma ocasião em que quisesse usar um
preservativo que viera, indiretamente, de Charlie, enfiou-o no bolso dos
calções. Teria de se habituar a eles. Antes de ter voltado a fazer a análise em
março, antes de o Dr. Cheng lhe dizer que o ELISA estava novamente
negativo – embora, desta vez, tivesse feito Yale esperar mesmo duas
semanas, conforme prometera –, Yale mal conseguia ejacular na mesma
divisão que Roman. Ultimamente, desde o segundo resultado negativo, já
deixava Roman fazer-lhe sexo oral – embora «ultimamente» fosse relativo,
uma vez que era muitíssimo esporádico.
Yale desejou que o carro do Out Loud desaparecesse, mas ele continuava
a avançar lentamente pela rua, com os Trojans a voar.
Alguém lhe fez cócegas entre as omoplatas e, quando se virou, viu Teddy
com um grande sorriso, aos saltinhos no mesmo sítio.
– Vejam só quem saiu da toca! – exclamou Teddy.
Yale devia ter adivinhado que Teddy faria parte do grupo de Katsu – e,
francamente, era bom vê-lo. Era especialmente bom que Teddy estivesse a
falar com ele como se não o considerasse um monstro.
Teddy pô-los a par da atividade do Ku Klux Klan, no parque.
– Já se foram embora. Não queriam ver nada disto, percebes?
Desapareceram antes de o desfile começar.
Katsu disse:
– Aposto que alguns se deixaram ficar, discretamente. Aposto que estão a
bater punhetas por baixo dos lençóis.
– Por acaso, só um tipo é que vinha com o lençol. Fiquei desiludido! Os
outros estavam com equipamento de combate, sabes, com uns escudos
pequeninos e estranhos.
– O que é que eles querem, afinal? – perguntou Yale. – Além de atenção?
– Hã... segundo a faixa enorme que traziam, querem quarentena para os
maricas. Muito original. De qualquer maneira, gritámos contra eles durante
muito tempo, e umas lésbicas beijaram-se mesmo à frente deles. Por fim,
arrumaram as tralhas e foram-se embora. Eu ainda fiquei a falar com um
repórter. Alguém quer um cachorro-quente? Estou a morrer de fome.
Não valia a pena tentarem mexer-se até o desfile acabar, e, quando
finalmente acabou, seguiram a multidão até ao parque, para a manifestação.
Katsu foi-se embora e Yale deu por si sozinho com Teddy numa fila
interminável para comprar comida.
– Espero que ainda sejamos amigos – disse Yale.
– Fiquei zangado contigo, mas foi temporário. Estava a julgar-te por
estares a julgar o Charlie. Irónico, não é?
– Sei que, para ti, o principal foi o facto de o Charlie estar infetado, mas
para mim foi o facto de ele me ter traído. Talvez toda a gente soubesse, mas
eu não sabia. E as coisas não estavam bem entre nós há muito tempo. Na
verdade... ele acusou-me de ter ido para a cama contigo na noite do funeral
do Nico.
Teddy assobiou entre dentes.
– Pois, não me lembro de te ter fodido. – Riu-se. – Não deve ter sido lá
muito bom.
A fila avançou um pouco e Yale olhou para trás, para se certificar de que
não havia ninguém conhecido que os pudesse ouvir.
– Parece que estamos todos presos num ciclo de julgamento. Passámos a
vida inteira a tentar mudar essa mentalidade, e agora isto.
– O problema – disse Teddy – é que a própria doença parece um
julgamento. Todos temos um pequeno Jesse Helms a falar-nos ao ouvido,
não é? Se apanhamos o vírus por ter ido para a cama com mil tipos, é um
julgamento da nossa promiscuidade. Se o apanhamos por ir para a cama
com um tipo só, uma única vez, ainda é pior, quase como se fosse um
julgamento a todos nós, como se o problema fosse o ato em si mesmo e não
o número de vezes que é praticado. Se o apanhamos porque pensávamos
que nunca o apanharíamos, é um julgamento da nossa arrogância. E se o
apanhamos porque sabíamos que era possível e não quisemos saber, é um
julgamento do quanto nos odiamos a nós próprios. Não é por isso que o
mundo gosta tanto do Ryan White? Porque é que Deus havia de fazer sofrer
um pobre rapaz com uma doença de sangue? Mesmo assim, há pessoas que
são horríveis e o julgam por estar doente, independentemente da forma
como apanhou o vírus.
Normalmente, Yale achava Teddy esgotante, mas desta vez ele tinha
razão.
No coreto, Washington, o presidente da câmara, começara o seu discurso.
– Na qualidade de homem negro que foi vítima de discriminação – estava
ele a dizer –, como membro de uma raça de pessoas que sofreram...
– Este é dos bons, não é? – disse Teddy. – Tivemos sorte.
– Já estará a recandidatar-se quando conseguirmos sair desta fila.
– Olha ali o elenco da Família Adams – disse Teddy.
Yale olhou, mas não viu nada.
– Ali, atrás do tipo com o pássaro.
Primeiro, Yale viu um homem de cabelo escuro com uma arara azul e
verde no ombro. Estava a rir-se com alguém e, por um segundo, foi difícil
olhar para outra coisa além daquele homem maravilhoso com a sua ave
maravilhosa. Mas depois, atrás dele, Yale viu um grupo de jovens
terrivelmente chiques, todos vestidos de preto. Um deles era Roman. Yale ia
acenar-lhe, mas parou.
Nunca tinha visto os amigos de Roman e não fora isto que imaginara:
dois homens altos, pálidos e atraentes, que podiam ser gays ou não mas que,
tendo em conta o ambiente, provavelmente eram, e uma rapariga de cabelo
loiro, pela cintura, com um anel de prata no nariz. O que teria ele
imaginado? Nunca pensara muito nisso, a questão era essa. Em geral,
quanto mais pensava em Roman, mais confuso ficava. Roman era melhor
no papel de sombra que aparecia de noite, um ecrã vazio no qual podia
projetar o que quisesse. Roman não era, na sua mente, o tipo de pessoa que
aparecesse no Orgulho Gay com uns amigos fabulosos de quem Yale nunca
ouvira falar. Roman ficava em casa a trabalhar na sua tese.
– Conheço o dos óculos – disse Teddy.
– O dos óculos?
As engrenagens no cérebro de Yale giraram lentamente, como se
estivessem enferrujadas. Roman nem sequer devia estar ali. Aquele não era
Roman. Tentou procurar um ângulo melhor. Os óculos de Roman, os
ombros ossudos de Roman.
– É um grande maluco – disse Teddy.
– De onde é que o conheces?
– Oh... – Teddy encolheu os ombros e riu-se.
– Não, a sério.
Quantas noites é que Roman aparecera? Até que ponto estava Yale
embriagado? O que acontecera, exatamente, em que cama e quando? Tivera
cuidado consigo, para proteger Roman. Mas não tinham tido cuidado ao
contrário. Porque Roman era virgem. Porque Roman era virgem.
– Diz-me – pediu Yale.
– Tem calma, ele não é assim tão giro. Conheci-o o ano passado, na
palestra do meu amigo Michael no Centro Cultural. Ele tem aquele ar de
artista torturado, como se estivesse sempre prestes a sair da sala por precisar
de ficar sozinho.
– Oh! – Yale relaxou. – Pensei que o tinhas conhecido numa sauna ou
coisa parecida.
– Céus, Yale. Também frequento outros sítios. Quer dizer... – riu-se e
inclinou-se mais para Yale – montei-o como se fosse um cavalo bravo, mas
conhecemo-nos no Centro Cultural.
Yale deixou Teddy passar-lhe à frente na fila. O parque era agora mais
som do que cor, mais vibração do que realidade. Se abrisse os olhos, ver-se-
ia na cama ao lado de Charlie e seria o verão passado. Disse a Teddy que já
vinha e dirigiu-se ao grupo de Roman, que ainda estava um pouco afastado.
Precisava de ver que não era Roman. O presidente da câmara continuava a
falar e o ar ainda cheirava a cachorros-quentes, e sim, era mesmo Roman
que ali estava, com ar enfadado, ao lado dos seus amigos enfadados e
belos.
Yale teve vontade de correr para casa e de se esconder debaixo das
mantas, mas, em vez disso, passou por um bando de lésbicas vestidas de
cabedal, pelo tipo da arara, e dirigiu-se a Roman. Roman tentou virar a cara,
como um adolescente que não queria que os amigos soubessem que esta
pessoa embaraçosa era o seu pai.
– Podemos falar rapidamente? – disse Yale.
Um dos rapazes de preto soltou um gritinho e o outro disse:
– Quem é esta?
Roman abriu a boca como se quisesse dar-lhe uma desculpa para não
poder falar, mas depois limpou a testa com o braço e afastou-se com Yale.
Yale não queria saber que Teddy olhasse e os visse juntos. Estava para além
desse tipo de preocupações.
– Vamos ser rápidos – disse. – Enganaste-me?
– Desculpa?
– Eu devia ter sido... devia ter feito mais perguntas. Devia ter-te obrigado
a fazer um teste escrito. É isso que costumas fazer? O papel de mórmon
confuso? É uma representação?
– Do que é que estás a falar? – perguntou Roman. Os amigos puseram-se
a observar, entre risinhos, mas demasiado longe para conseguirem ouvir. –
Sou mesmo mórmon. Não é mentira.
– Mas és um mórmon que vai para a cama com muitos homens. Que o faz
há muito tempo.
– Bom, não. Com muitos não. Quer dizer, no passado, sim. Agora estava
a tentar ser monógamo.
Por um segundo, Yale pensou que Roman queria dizer monógamo com
ele, que os seus encontros embriagados durante a noite eram uma espécie de
relação estável, mas isso não fazia sentido. E Roman continuou a falar.
– Tipo, estava a ser monógamo, e depois ele... bom acho que se sentiu
sufocado. Começou a tentar ver-se livre de mim, ou foi o que me pareceu.
Ele queria que eu me envolvesse contigo, e eu nem sequer queria. Não é
que não me sinta atraído por ti, mas... não sei. Mas depois daquela primeira
vez, no Wisconsin, assim que ele soube ficou cheio de ciúmes. E quis que
eu parasse.
Yale tentou perceber quem era esse namorado que conhecia Yale, que
sabia do Wisconsin, e depois percebeu, percebeu tudo.
– Se estás zangado porque ele te despediu – continuou Roman –, eu
também estou, mas não foi por causa de nós. Quer dizer, na verdade foste tu
que te despediste, não foste? Ele gosta de ti! Ficou mesmo aborrecido
quando te vieste embora. Ouve, foi ele que te disse para o fazeres?
– Desculpa?
– Já que estamos a falar, sempre fiquei na dúvida, e podes estar
descansado que eu não levo a mal. Foi ele que te disse para te atirares a
mim, daquela primeira vez? É tão estranho, primeiro quis afastar-me e
depois, desde que aconteceu, tornou-se possessivo como o raio. E ainda é...
não sei. Achas que devia deixá-lo?
Yale tinha demasiado em que pensar e o sol estava demasiado quente, o
seu estômago demasiado vazio, e o que precisava agora era de ir para casa e
procurar a merda da agenda e voltar a fazer os malditos cálculos infernais.
E desta vez devia ser mais fácil, devia sentir-se mais forte, por saber que já
escapara uma vez a esta bala, mas não seria mais fácil porque agora não
parecia uma bala de pistola mas sim uma bala de canhão.
Roman continuava a olhar para ele, sinceramente à espera do seu
conselho. Fora perfeitamente honesto, isso era verdade. Yale era o único
responsável por tudo o que projetara nele.
– Sim, devias deixá-lo – disse. – Por amor de Deus. Ele é casado com
uma mulher e cheira a bolas de naftalina. Preciso de saber se já fizeste a
análise.
– O quê, a... oh! Isso. Não sei, estou farto de ouvir dizer que não é fiável.
Além disso, não faço esse tipo de coisas.
– Desculpa, que tipo de coisas?
– Sabes, seringas e becos e taradices.
– Seringas e becos e taradices?
– Sabes o que quero dizer.
Yale virou-lhe costas sem dizer adeus e também não regressou para junto
de Teddy. Atravessou o parque em direção a sul, embora soubesse que devia
ir imediatamente ao consultório do Dr. Cheng. Bom, se calhar não: era
domingo, e dia do Orgulho Gay, e não estaria lá ninguém.
Caminhou ao longo do porto e depois da lagoa, subiu através do jardim
zoológico e acabou na estufa. Há anos que não entrava nela; uma bolha de
vidro de plantas tropicais, em que o único som era o das cascatas, a única
luz a do sol filtrado.
Dirigiu-se à terceira sala, a mais silenciosa, a mais vazia, e sentou-se no
meio do chão.
2015
iona não pregou olho, mas esperou até ser manhã. Quando Richard
F estava no duche e não podia impedi-la, saiu para as ruas estranhamente
silenciosas. A produção do filme fora interrompida; as carrinhas
continuavam no sítio, as barreiras encostadas aos edifícios. Em quase todas
as esquinas havia militares com boinas vermelhas e metralhadoras, como se
uma criança tivesse espalhado uma caixa de soldadinhos de brincar pela
cidade de Paris. Ficou surpreendida por conseguir encontrar um táxi. O
condutor era, talvez, somali ou etíope. Não disse nada. Levou-a à morada
que ela lhe dera, do bar de Claire, e quando Fiona viu a grade fechada sobre
a porta, o cartaz escrito à mão, pediu-lhe para voltar para trás e a deixar
onde a tinha apanhado.

O avião de Cecily aterrara pouco antes do início dos ataques e ela estava
à espera da bagagem quando recebeu a notícia. Conseguira contactar Fiona
à uma da manhã e, ao início da tarde, estava no apartamento de Richard, a
descalçar-se à porta. Fiona não a via há dez anos, não sabia quais das
mudanças se deviam a exaustão e quais se deviam à idade. Cecily parecia
realmente uma avó. Pessoas com setenta anos podiam ser avós. Pessoas
com cinquenta e um anos ainda deviam estar a dar aulas de spin e a fazer
noitadas, na opinião de Fiona.
– O que aconteceu à tua mão? – perguntou Cecily, e Fiona disse:
– Estigmas de Cristo.
Cecily não se riu. Bom, nunca tivera grande sentido de humor.
Fiona preparou-lhe um chá e contou-lhe o encontro com Claire, embora
sem transmitir completamente a humilhação.
Cecily sentou-se no sofá de Richard, com o corpo inclinado para a janela,
e disse:
– Nunca tinha estado em Paris. Que altura tão estranha para chegar.
– Odeio que tenhamos de viver no meio da história. Já causamos
confusão suficiente sem ajuda.
Cecily sorriu.
– Tinha saudades tuas.
– O Richard mandou dizer olá. Foi ao estúdio. Tem graça, eu também saí
de casa hoje, mas assusta-me saber que os outros andam na rua. O Richard
não pode propriamente correr se acontecer alguma coisa.
Cecily concordou e Fiona disse-lhe que não tinha como contactar Claire.
– É natural que estejas preocupada – disse Cecily –, mas com certeza que
ela está bem.
Até àquele momento, nem ocorrera a Fiona preocupar-se também com
Kurt. Era muito mais provável que Kurt saísse à noite. Não lhe parecia que
ele gostasse de heavy metal, mas mesmo assim...
Serge entrou nesse momento em casa, com o cabelo revolto e suado,
olheiras fundas. Cumprimentou-as com um aceno e enfiou-se no quarto.
– Sinto que estou a incomodar – disse Cecily, e Fiona assegurou-lhe que
não.
– Estamos todos em modo de crise – disse –, embora por motivos
diferentes. Ouve: o que acho que devíamos fazer era ir ao apartamento do
Kurt. Talvez ele nos dê o número da Claire, tendo em conta as
circunstâncias. Uma vez que eu já estive com ela.
Cecily examinou as unhas sem verniz.
– É melhor se eu for sozinha, não achas?
Provavelmente – além disso, com certeza que eles queriam privacidade.
Fiona não teria gostado de ter alguém consigo ao ver Claire pela primeira
vez ao fim de tanto tempo.
Assim, depois de almoço, depois de Fiona ter descido com ela para a
ajudar a apanhar um táxi, Cecily arrancou para o Marais. Prometeu ligar-lhe
assim que soubesse alguma coisa.
Quando voltou para cima, Serge estava na cozinha com o portátil.
– Gritei contigo ontem à noite – disse. Fiona compreendeu que era um
pedido de desculpa. – A tua filha não tem Facebook?
Quase soltou uma gargalhada. Como isso teria tornado tudo mais fácil.
Uma mensagem privada, em vez de aviões e detetives.
– Não – disse. – Eu também não tenho.
Damian tinha, e procurara-a obsessivamente nos últimos anos.
– Então, duas coisas. Uma, as pessoas podem marcar que estão em
segurança, assim. – Olhou por cima do ombro dele e viu uma lista de nomes
e rostos, amigos de Serge que tinham indicado que estavam vivos. – Mas,
aqui – continuou ele, e clicou noutro sítio –, é um fórum para perguntar por
pessoas. Escrevo uma mensagem, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça e ele começou a escrever.
– Claire quê?
Fiona pegou no bloco e caneta que estavam ao lado do fogão para a lista
de compras e escreveu: Claire Yael Blanchard.
– Também pode estar a usar o apelido Pearce. – E escreveu-o também.
– Muito bem – disse ele. – Publicado. E agora, esperamos.
Céus, fora exatamente o mesmo que Arnaud lhe dissera; parecia ter sido
há mil anos. E agora, esperamos.
*
Damian ligou e ela informou-o dos últimos desenvolvimentos.
– Achas que ela está assustada? – perguntou Damian.
– Espero que não. Quer dizer, não mais do que toda a gente. Já não é uma
criança.
– Mas é mãe.
– É verdade – disse Fiona. – É verdade.
– Talvez seja assim que a conseguiremos trazer para casa.
Fiona duvidava. O caos do mundo nunca a tinha ajudado. Parecia ridículo
que isso acontecesse agora.
– Não sejamos gananciosos – disse.
15 DE JULHO DE 1986
lago Michigan, impossivelmente azul, com a luz matinal a refletir-se na
O direção da cidade.

O lago Michigan, congelado em placas sobre as quais poderia mas não se


atrevia a andar.

O lago Michigan, cinzento visto da janela de um arranha-céus,


indistinguível do céu.

Pão quente, acabado de sair do forno. Ou mesmo pão duro no cesto do


restaurante, resgatado pela manteiga salgada.

Os Cubs a ganharem o título, um dia. Os Cubs a serem campeões. Os


Cubs a continuarem a perder.

A sua canção preferida, ainda por compor. O seu filme preferido, ainda
por fazer.
*
A profundidade de uma pincelada com tinta de óleo. As janelas azuis de
Chagall. O homem azul de Picasso, com a sua guitarra.

O Dr. Cheng disse: «Vou escrever tudo o que lhe estou a dizer, para poder
ler com calma mais tarde.»

O som de uma porta velha a abrir-se com um rangido. O som de alho a


fritar. O som de uma máquina de escrever. O som dos anúncios no televisor
da sala, quando ia à cozinha buscar uma bebida. O som de outra pessoa a
acabar de tomar duche.
Todos eles a envelhecerem juntos no Iate para Maricas Velhos sobre o
qual Asher estava sempre a fazer piadas. Ao largo de Belmont Rocks, dizia
ele, com binóculos para toda a gente.

Candeeiros de rua art nouveau. Elevadores com grades.

Fiona a ter filhos. Ser tio emprestado, comprar-lhes camisolas e pastilha


elástica e livros. Levá-los ao museu. Dizer: «O vosso tio Nico era um bom
artista, e talvez vocês também venham a ser.» Se fosse uma menina, deixá-
la pintar as unhas. Se fosse um rapaz, levá-lo à bola. Se fosse uma menina,
também podia levá-la à bola.

O Dr. Cheng disse: «Você é jovem e forte, e vai cuidar muito bem de si.»
*
Café turco, bom, forte. Descafeinado Sanka com demasiadas natas depois
de um longo jantar. Café de escritório, triste e fraco.

O ano 2000. A última festa de 1999.

Vinho tinto. Cerveja. Vodca com tónica num dia de verão.

O Natal, que só agora ele começara a adorar.

Ir à Austrália, um dia. À Suécia. Ao Japão.

O Dr. Cheng disse: «Sei que a última coisa que quer neste momento é
tirar mais sangue, mas hoje vamos ver como está a contagem de células T.
Como sabemos que é uma infeção muito recente, calculo que a contagem
esteja muito boa. Assim, teremos algumas boas notícias para além das más.
Vamos fazer a recolha aqui mesmo.»

Artrite. Cabelo grisalho. Sobrancelhas hirsutas, como as do pai. Próteses


dentárias, bengalas, problemas na próstata.

O encontro dos vinte e cinco anos da escola secundária. Talvez acabasse


mesmo por ter ido, apesar de tudo.

Um cão para passear junto ao lago.


*
O Dr. Cheng disse: «Ao princípio é natural que não lhe apeteça falar,
mas vou escrever a informação do grupo de apoio da Rede de
Consciencialização da Análise Positiva. Vai aqui, ao fundo da página.»

O vento brutal na plataforma do El. Cinquenta pessoas encolhidas


debaixo da lâmpada de aquecimento. Pombos de roda dos pés deles.

Ter uma casa. Pintar a porta, para poder dizer aos amigos que
procurassem a porta roxa.

As comidas que ainda não tinham chegado à América. As coisas que


nunca provara e pelas quais toda a gente andaria doida dali a dez anos.

Chicago vista da janela de um avião, vindo de leste. A única altura em


que era realmente possível ver o rosto da cidade.
O Dr. Cheng disse: «Não fazemos ideia dos avanços que serão feitos no
futuro próximo. Na minha opinião, é uma questão de tempo. Porque existem
por aí medicamentos melhores. Uma flor qualquer na Amazónia, quem
sabe? Pode ser amanhã, pode ser para o ano. Não há motivo para não
acreditar que, em breve, haverá sobreviventes.»
*
A praia de cimento em Bryn Mawr, a pegada psicadélica que alguém
pintara lá.

O próximo Harvey Milk. O primeiro senador gay, o primeiro governador


gay, a primeira mulher presidente, o último congressista preconceituoso.

Dançar até o chão ser um local de aterragem opcional. Dançar de


cotovelos para fora, dançar de braços no ar, dançar numa poça de suor.

Todos os livros que não começara a ler.

O homem da Wax Trax! Records com as pestanas bonitas. O homem que


se sentava todos os sábados no Nookies, a ler o Economist e a comer ovos,
com as orelhas estranhamente vermelhas. As formas como a sua vida se
poderia ter cruzado com a deles, se houvesse tempo, se houvesse energia, se
houvesse um universo melhor.

O amor da sua vida. Não devia ter um amor da sua vida?

O Dr. Cheng disse: «O nosso terapeuta está cá hoje, e vou pedir à


Gretchen que o acompanhe à sala e espere consigo até ele estar
disponível.»
O seu corpo, o seu próprio corpo estúpido, lento, peludo, os seus desejos
ridículos, as suas aversões, os seus medos. A forma como o joelho esquerdo
estalava quando fazia frio.

O Sol, a Lua, o céu, as estrelas.

O fim de todas as histórias.

Carvalhos.

Música.

Respirar.

O Dr. Cheng disse: «Então, calma, vamos lá deitar. Deite-se aqui um


bocadinho.»
2015
erge disse-lhe que as redes de telemóvel estavam sobrecarregadas em
S toda a cidade. O que talvez explicasse por que motivo Fiona não tivera
notícias de Claire, e provavelmente porque não tivera também notícias de
Cecily, que passara a tarde toda fora.
Ao longo do dia, o pânico de Fiona tinha aumentado e, ao mesmo tempo,
diminuído. Diminuído porque iam sendo divulgados muitos dos nomes dos
mortos e os de Claire e Nicolette não se encontravam entre eles. Aumentado
porque ainda não sabia nada delas. Diminuído, mais uma vez, quando se
apercebera do problema com os telefones. Aumentado de cada vez que
parava para pensar no assunto.
Às seis da tarde, Cecily tocou finalmente à campainha do prédio.
– Ele está comigo – avisou.
Era difícil perceber até que ponto Cecily e Kurt se tinham reconciliado
nessas últimas horas. O facto de ele a ter acompanhado com certeza
significava alguma coisa. Mas estavam ambos com expressões preocupadas
e a sensação que Fiona teve foi mais de duas pessoas a ajudarem-se
mutuamente em tempos de crise do que de um reencontro emocionante
entre mãe e filho. Cecily e Kurt sentaram-se no sofá, a alguma distância um
do outro. Fiona sabia que isso devia ser penoso para Cecily – mas, como
mãe, não conseguia imaginar ser ela a cortar todos os contactos, a desistir.
Bom, não, não podia confundir esta situação com o que os seus pais tinham
feito a Nico. Cecily estava apenas a proteger-se a si própria depois de Kurt
a ter roubado e lhe ter mentido, uma e outra vez. Não tinha propriamente
rejeitado um adolescente indefeso. Mesmo assim...
– Deixei-lhe três mensagens – disse Kurt. A mulher cujo apartamento
partilhava a cozinha com o de Claire, disse ele, teria arranjado forma de lhe
fazer chegar notícias se tivesse acontecido alguma coisa má, se Claire não
tivesse aparecido em casa. – Estou preocupado, mas não tenho razão para
estar preocupado. E tenho a certeza de que ela não andava na rua àquelas
horas.
Fiona não queria gritar, mas a voz saiu-lhe demasiado alta.
– Não podes simplesmente ir lá?
– Não é esse o nosso... temos um acordo. Nada judicial, mas, se eu
alguma vez aparecer quando não for o meu dia, ela desaparece. Deixou isso
perfeitamente claro.
– Mas numa situação de emergência... – começou Cecily.
– Não – interrompeu Kurt.
Uma sirene soou mesmo por baixo da janela. Foi um som curto – a
polícia a avisar alguém para sair da frente, talvez. Mesmo assim, os três
deram um salto e o coração de Fiona começou a bater mais depressa.
– Dá-me a morada – pediu. – Eu digo-lhe que foi alguém do bar que ma
deu e, se isso não resultar, digo que te enganei. Que entrei no teu
apartamento quando não estavas lá e a vi num envelope. – Não estaria
muito longe da verdade. – Não, espera, digo-lhe que o detetive a encontrou.
Cecily pousou a mão no joelho de Kurt.
– Não achas que era melhor? – perguntou. – Também ficarias a saber que
elas estão bem.
Ele pareceu relaxar sob o toque de Cecily, não ficar incomodado.
Mesmo que Fiona não levasse nada de bom daquela viagem, pelo menos
talvez pudesse dizer que fora responsável pela reconciliação da família
Pearce. Talvez Cecily lhe mandasse atualizações semanais sobre Nicolette
enquanto a via crescer, enquanto Fiona estava sozinha em Chicago.
Fiona estendeu o telemóvel a Kurt.
– Introduz a morada no meu GPS – disse. – Tanto quanto ela sabe, eu não
te vejo há anos.
Kurt suspirou e pegou no telemóvel.
Assim que o devolveu, Fiona pegou na mala e disse:
– Podem esperar aqui, se quiserem.
Kurt apertou o ombro de Fiona com a sua mão gigante.
Saint-Denis era um labirinto de ruas cortadas. O taxista teve de perguntar
três vezes se ela tinha mesmo a certeza de que queria lá ir.
– Eu espero até a ver entrar no prédio – disse ele. – Vai demorar muito
tempo? Posso esperar para a trazer de volta.
Ela disse-lhe que não demoraria mais de três minutos. A sua esperança
era poder vir dizer-lhe que se ia demorar mais tempo e dar-lhe uma gorjeta.
Um homem estava a entrar no prédio quando ela se aproximou e, em vez
de tentar decifrar a confusão de campainhas e nomes, entrou atrás dele para
o corredor estreito. O edifício parecia um labirinto, mas finalmente
encontrou o número oito. Do lado de fora da porta estava um balde
encarnado de plástico e uma pá verde de plástico.
Bateu com a mão boa, a esquerda, embora isso lhe parecesse errado,
como um mau agoiro.
Quando abriu a porta, Claire não tirou a corrente.
– Mas que raio?... – disse.
– Querida, ouve...
– Não, isto não é admissível.
– Não tinha outra forma de falar contigo.
– Não é admissível.
Tinha o cabelo preso descuidadamente no alto da cabeça e cara de quem
não dormira nada.
– Estás bem?
– Obviamente.
– Eu também, caso estivesses preocupada.
– Ouve, é a hora da sesta dela. – A voz de Claire tornou-se um pouco
menos seca. – É só que... não posso estar a lidar com isto neste momento.
– Compreendo.
– Não sei se compreendes.
– Podes dar-me o teu número, pelo menos? Para eu não ter de te
incomodar no trabalho?
– Eu tenho o teu número.
– Ouve, qual é o mal?
– O mal é isto.
– Está bem. – Fiona ergueu as mãos num gesto de rendição. – Estás viva,
a tua filha está viva, era só o que eu queria saber. Vou-me embora.
Claire soltou um suspiro irritado que Fiona não tinha como decifrar.
Queria virar-lhe costas e afastar-se com maus modos, mas o objetivo da
sua vinda a Paris – ela e a terapeuta, juntas, tinham sido bem claras neste
ponto – era aceitar a sua própria vulnerabilidade. Manter os braços abertos,
mesmo que Claire fechasse os dela. Ser a mãe e não a filha.
– Liga quando quiseres. Amo-te, querida – disse.
Claire fechou a porta sem dizer nada, sem sequer um aceno.
1986
m setembro, Katsu Tatami caiu por terra no meio da rua. Alguém o
E levou às Urgências no Hospital Masonic, onde foi enviado para a
unidade da sida. Teddy contou-lhes que ele dizia a quem o quisesse ouvir
que esperava morrer antes de estar suficientemente estável para o poderem
despachar para o County. Mas estabilizou, e acabou por ir lá parar. O
County deu-lhe alta quase imediatamente e no dia seguinte, quando voltou
com falta de ar, disseram-lhe que já não tinham camas disponíveis. Ele
esperou duas semanas, durante as quais o seu estado não se agravou ao
ponto de ter de voltar às Urgências do Masonic, até que finalmente,
demasiado tarde para servir de alguma coisa, o County o readmitiu.
Yale sabia que tinha de o ir visitar, mais cedo ou mais tarde. Em parte
porque era a atitude certa e em parte porque, na pior das hipóteses, ele
próprio acabaria no County e precisava de o ver, precisava de despachar
esse assunto.
Uma noite, puxou a ponta do fio dental de Julian e ficou com o resto do
fio na mão, apenas o suficiente para mais uma utilização. Tentou não pensar
nisso como um mau sinal, mas era o que parecia. Decidiu visitar Katsu na
manhã seguinte, antes que fosse tarde demais.
*
Era um dos candidatos finalistas a um emprego na Universidade de Saint
Louis e ainda estava na corrida para um cargo de desenvolvimento na
DePaul, ali na cidade, mas continuava desempregado. O Dr. Cheng dissera-
lhe para aceitar o primeiro emprego que lhe oferecesse um seguro de
saúde.
– Quanto maior for a empresa, melhor – dissera o Dr. Cheng –, para que
possa perder-se no meio da papelada.
Neste momento, estava no seguro COBRA, que rapidamente lhe acabaria
com as poupanças. Só tinha dinheiro para o pagar até janeiro, com esforço,
e depois teria de optar entre o seguro e a comida.
Entretanto, o Dr. Cheng não ia pôr a análise nos registos de Yale. Se
alguém perguntasse, Yale procurara-o apenas por causa de uma dor de
garganta. Quando se candidatasse a um seguro novo, só lhe perguntariam se
tinha antecedentes de sida – não sobre o vírus.
– Não estará a mentir quando disser que não – explicou o Dr. Cheng. – E,
um mês depois de ser aprovado, volta cá para repetir a análise. Esta sim,
oficial.
No entanto, era arriscado e, se alguma vez viesse a ser descoberto – se o
governo confiscasse os resultados das análises, apesar de anónimas, como o
Dr. Cheng afirmava que eram; ou se Yale tivesse algum acidente e lhe
tirassem sangue no hospital, etc. –, podia ficar impedido de fazer qualquer
seguro para o resto da vida. Acabaria como Katsu, a rezar para que
houvesse uma cama disponível no County, quando precisasse dela.
Yale ligou a Asher, com esperança de que ele pudesse tranquilizá-lo de
alguma forma, mas tudo o que Asher disse foi:
– Arranja emprego depressa.
Para complicar as coisas, já não podia contar com uma carta de
recomendação de Bill Lindsey. E não ficava muito bem no currículo só ter
trabalhado na Northwestern menos de um ano.
Pouco depois de receber o resultado positivo da sua análise, Yale
escrevera a Roman através do correio da universidade e endereçara também
uma carta a Bill, para o escritório:

Tenho razões concretas para achar que, se não o fez ainda, deve
pensar em efetuar a análise para o HTLV-III, o vírus que se sabe ser
o causador da sida. Espero que aconselhe a sua mulher a fazer
também a análise, mas esteja descansado: não a contactei, nem o
farei.

Pensara durante dias em Dolly Lindsey e em formas de a contactar.


Debatera o assunto com Asher, com Teddy, com Fiona. Todos o tinham
surpreendido ao abanar a cabeça com o mesmo ar cético.
– Acho que não podes fazer nada.
Teddy citara-lhe Kant e apresentara argumentos particularmente
convincentes. Em agosto soube, através de Cecily, que Dolly tinha deixado
Bill.
– Tenho-a visto por aí – disse Cecily. – Às compras, essas coisas. Na
verdade, Yale, acho que eles nem deviam dormir juntos, pois não?
Yale nunca mais teve notícias de Bill, à exceção de um bilhete escrito na
sua caligrafia grande, que lhe chegou juntamente com algumas cartas
semipessoais que a galeria lhe reenviara: Fico muito contente por saber que
está tudo bem consigo! Yale nunca lhe dera a entender tal coisa. Ouviu
dizer, através de Donna, que Bill não voltara a falar na reforma.

A sua visita ao County foi breve; Katsu estava sedado e Yale queria sair
dali o mais depressa possível. As camas estavam todas num quarto enorme,
separadas apenas por cortinas finas, pelo que os visitantes se viam cercados
pelos sons e cheiros de trinta fases diferentes da morte. Yale não imaginava
como é que alguém dormia ali, como é que alguém conseguia agarrar-se a
uma centelha de esperança.
Katsu disse-lhe, com voz arrastada:
– Doem-me os sovacos. Porque é que me doem tanto os sovacos?
Yale trouxera-lhe um batido e deixou-o no tabuleiro, para quando ele
quisesse. Teddy dissera-lhe que Katsu guardava o Walkman debaixo da
almofada para que não lho roubassem, mas ninguém roubaria um batido,
pois não? Pelo menos a enfermeira que evitara olhar para Katsu enquanto
lhe mudava o saco de soro de certeza que não lhe tocaria.
Yale queria chamar Asher para vir fazer barulho, mas de que adiantaria?
Ele próprio passara uma procuração a Asher o mês passado, confiante de
que ele, pelo menos, sabia como gritar com as pessoas certas.
– Podes pedir-lhes que apaguem as luzes? – pediu Katsu. Mas as luzes
eram enormes e fluorescentes e abrangiam toda a área, e Yale sabia que
nunca eram apagadas, nem mesmo à noite. Dobrou dois lenços de papel e
colocou-os sobre os olhos de Katsu, uma máscara improvisada.

Quando chegou a casa, deparou com uma coisa estranhíssima: uma carta
dirigida a ele com a caligrafia de Charlie. Reconheceu logo a forma
estranha como Charlie escrevia os E, como três degraus flutuantes sem
apoio vertical. Papel azul-claro, caneta azul-escura.
Já sabia da notícia, dizia ele. Dizia que Teddy, Asher e Fiona, os três, lhe
tinham garantido que não fora diretamente responsável, mas que queria
ouvi-lo da boca de Yale. Era terrível, escrevia Charlie, atribuir as culpas a
pessoas e não ao vírus propriamente dito, ou às estruturas de poder que o
deixavam medrar, mas não conseguia evitá-lo e queria saber. Apesar de ter
a noção de que era, pelo menos, indiretamente responsável. Queria a
absolvição, percebeu Yale. Mas não era algo que ele estivesse disposto a
conceder-lhe.
Não lhe respondeu, mas também não deitou fora a carta. Há seis meses,
talvez a tivesse queimado. Agora, endireitou-a e deixou-a debaixo da taça
de estanho em cima da cómoda, a taça onde colocava os trocos que tirava
dos bolsos.
Pegou em Roscoe, aproximou-se da janela e olhou para o rio lá em baixo,
para o barco turístico a deslizar na água, impossivelmente lento. Pouco
depois, tinha passado.
2015
melhor sítio para dançar era o Paradise – disse Richard. – Com
–O certeza que também já desapareceu há muito.
– Não imaginas – disse Fiona. – Nesse sítio, agora, há um supermercado
Walmart.
– Não! – Virou-se do lavatório do estúdio, com as mãos a pingar. Serge,
reclinado na cadeira ao canto, ouvia-os com ar divertido. Cecily estava
sentada com Fiona junto da grande mesa de madeira. Hoje vestia uma
camisola de gola alta bege que, na sua simplicidade sólida, a fazia parecer
protegida do caos da cidade, dos dardos venenosos da família.
– É como se quisessem ser simbólicos – disse Fiona. – Pelo menos não é
uma sede do Partido Republicano ou coisa parecida. Ouve, Richard, há um
Starbucks na esquina da Belmont e da Clark. Bem... não é tão estéril como
pode parecer. Mas não é o mesmo. Todos os anos, no inverno, fazem uma
caminhada da sopa. As pessoas vão de restaurante em restaurante e comem
sopa. Toda a gente sai à rua: gays, casais heterossexuais, com bebés nos
carrinhos. É lindo. Não queríamos que fosse o mesmo. Porque o ambiente,
antes, era de estranheza, diferença, e havia... havia um ar de desespero
generalizado. Mesmo antes da sida.
– Então cresceu – disse Richard.
– Já não há Boystown! – riu-se Serge. – Agora é a cidade dos homens! –
Mais ninguém achou graça.
– Nunca te passa pela cabeça que pode ser só um interregno fugaz? –
perguntou Richard.
Não, pensou Fiona. Nem por isso. Era difícil imaginar um retrocesso,
perder terreno.
– Porque eu penso nisso – continuou Richard. – Com certeza que eu havia
de revirar os olhos à gentrificação, mas ouve, querida, sou velho e já vi
muita merda, e digo-te: o melhor é aproveitarmos enquanto podemos.
Porque isto não é o Mamã Dá Licença. Não estamos sempre a avançar. Sei
que neste momento parece que sim, mas é tudo muito frágil. Daqui a
cinquenta anos, podes muito bem olhar para trás e pensar foi a última época
boa.
Fiona puxou as mangas para cima das mãos. Era tão tentador pensar nos
fogos dos seus vinte anos como a grande luta histórica da sua vida, tudo no
passado. Mesmo o seu trabalho na loja, as angariações de fundos e a
causa... pareciam-lhe sempre um rescaldo. Ainda havia pessoas a morrer,
mas mais lentamente, com um bocadinho mais de dignidade. Bom, pelo
menos em Chicago. Considerava que uma das suas maiores falhas morais
era que, no fundo, a crise atual da sida em África não a afetava da mesma
forma visceral. Não deixava de dar dinheiro para essas instituições, mas
incomodava-a saber que não o sentia tão profundamente, não chorava à
noite por causa disso. No ano passado, tinham morrido de sida um milhão
de pessoas no mundo e ela não chorara por causa disso nem uma vez. Um
milhão de pessoas! Passava muito tempo a tentar perceber se era uma
atitude racista, ou se teria a ver com a vastidão do oceano Atlântico. Ou
talvez porque não estava a acontecer principalmente na comunidade gay
perto de si, não estava a matar apenas jovens bonitos que lhe faziam
lembrar Nico e os amigos. Claro que todo o altruísmo era, de alguma forma,
egoísta. E talvez também só tivesse espaço no coração, nesta vida, para uma
grande causa, para o arco de uma catástrofe. Claire, ao que parecia, crescera
com essa sensação – de que o grande amor da mãe estava sempre
concentrado em algo para lá do horizonte do passado.
– É essa a diferença entre otimismo e ingenuidade – disse Cecily. –
Nenhum de nós é ingénuo. As pessoas ingénuas ainda não passaram por
verdadeiras provações, por isso podem pensar que tal nunca lhes
acontecerá. Nós, otimistas, já passámos por isso e continuamos a levantar-
nos da cama todos os dias, porque acreditamos que podemos impedir que
volte a acontecer. Ou fingimos acreditar nisso.
– Toda a crença é fingimento – disse Richard.
– Em França, ninguém é otimista – declarou Serge.
O estúdio de Richard era uma divisão em forma de L, com ecrãs e
câmaras e luzes de um lado, secretárias e computadores e desarrumação do
outro, e no meio – onde estavam nesse momento – uma área com cadeiras,
uma kitchenette. A mudança para o museu deixara atrás de si o caos, e o
chão estava coberto de pedaços de esferovite e cabos soltos. Fiona não viera
para ver os vídeos. Deixara-o bem claro – não era a altura certa.
Eram duas da tarde de domingo. A vernissage de Richard seria no dia
seguinte, mas ainda estava tudo no ar. A caça ao homem, de um dos
suspeitos do ataque terrorista, prosseguia perto da fronteira com a Bélgica.
Tinham-se apressado a trancar a porta, assim que entraram no estúdio. O
rádio em cima da bancada estava sintonizado no noticiário da BBC, mas
demasiado baixo para o conseguirem ouvir, e Serge ia-lhes dando
atualizações obtidas pelo Twitter, mas não havia muito a relatar. Richard
aguardava um telefonema do Pompidou com a decisão final, para saber se a
exposição sempre abria, se valia a pena prosseguir com as festividades.
Mesmo que tivesse luz verde, a festa não seria muito animada. O Pompidou
não ficava longe da sala de concertos Bataclan, que ainda era «um cenário
de carnificina», segundo os noticiários, embora as únicas fotos que Fiona se
atrevera a ver mostrassem apenas montes de ramos de flores, ursinhos de
peluche. Alguns dos convidados mais importantes viriam de fora, e
ninguém sabia o que aconteceria aos seus voos, aos seus comboios.
A noite passada Damian ligara, para dizer que Claire lhe enviara um e-
mail para o endereço da universidade. Apenas cinco frases, a dizer que
estava bem e para ele não se preocupar. Soletrou-lhe o endereço de e-mail
de Claire – um endereço que ela não devia usar, claro – e leu-lhe a
mensagem duas vezes, palavra por palavra. Não incluía um pedido de
desculpas, mas o tom também não era de raiva, de secura. Muito diferente
das conversas tensas que tivera com Fiona.
Bom, a maioria dos problemas de Claire eram com ela, não com Damian.
A psicóloga infantil explicara-o há anos: as crianças viram-se contra o
progenitor com quem vivem, aquele que é garantido. E, durante a terapia,
perceberam que Claire compreendia muito mais sobre o caso extraconjugal
de Fiona do que ela julgava.
– Ela está convencida – dissera-lhe a psicóloga – de que a mãe andava à
procura de outra família, de uma família melhor.
Fiona guardou o papel com o endereço de e-mail de Claire na gaveta da
mesa de cabeceira. Já o tinha memorizado.

O telefone de Richard finalmente tocou e ele retirou-se para junto da


secretária para falar, enquanto andava de um lado para o outro. Quando
voltou, abanou a cabeça.
– Não era o Pompidou – disse. – Mas, nesta altura, se me ligarem, vou
dizer que não. Quero esperar uma semana. Fica para a próxima segunda-
feira, não acham? Eles podem abrir as portas ao público quando quiserem,
mas se vamos fazer a vernissage, vamos fazê-la como deve ser. Mas ouve,
Fiona, boas notícias. Eu disse-te que tinha uma surpresa para ti. Era para ser
amanhã à noite, mas... enfim.
Fiona preparou-se. Richard, por vezes, tinha ideias estranhas sobre o que
as outras pessoas gostariam, e se tencionava mostrar-lhe um vídeo de Nico
ela não aguentaria.
– O telefonema era por causa disso – continuou ele. – Vai esperar ao pé
da porta, está bem? Dois minutos. Já vais ver.
– Só eu?
– Só tu.
Lançou-lhe um olhar cético mas saiu para o vestíbulo e esperou junto à
porta de vidro, de onde conseguia ver a rua. Tinha o estômago às voltas.
Viu passar um homem de cabelo escuro e casaco azul, a fitar o telemóvel,
que depois recuou, se virou para a porta e olhou para ela com um grande
sorriso.
Era mais ou menos da idade de Fiona, com maçãs do rosto estranhas, um
rosto que parecia de alguma forma errado, distorcido, baralhado.
Depois, as feições organizaram-se, e organizaram-se outra vez, e, em vez
de abrir a porta para o deixar entrar, Fiona recuou um passo, porque estava
a olhar para um fantasma.
Este homem não podia ser, mas era, Julian Ames.
E, como ele continuava a sorrir-lhe – e porque não sabia que mais havia
de fazer –, finalmente avançou, com passos inseguros, atrapalhou-se com o
trinco, empurrou a porta antes de perceber que devia puxar, e teve de se
encostar toda à parede para o deixar passar.
Ele agarrou-lhe nos braços, aproximou o rosto do dela e disse:
– Olhem bem para ti!
1988, 1989
harlie tinha uma pálpebra infetada. Foi o que Asher lhe disse, e depois
C continuou:
– Não vou estar a informar-te de todos os pormenorezinhos, mas achei
que podia dizer-te isto e perguntar com que frequência queres relatórios.
Basicamente, os médicos dizem que isto já conta como uma progressão
rápida.
Desciam Lake Shore Drive no Chevette de Asher e ambos tinham de
gritar para se fazerem ouvir por cima do barulho do motor. Yale tornara-se
paranoico em relação aos transportes públicos, aos germes nos varões, aos
salpicos da tosse das pessoas. Ainda os usava de vez em quando, mas hoje
estava cansado e o AZT deixava-lhe as pernas fracas, por isso não se sentira
mal por aproveitar a boleia de Asher depois da reunião com o grupo de
apoio. Além disso, era o primeiro dia nesta primavera em que podiam
conduzir com as janelas abertas, e o lago parecia um penhasco de vidro,
como se fosse possível saltar da beira do mundo, se caminhassem até ao
horizonte.
– O que as pessoas fazem questão de me contar é sobre as drogas. Como
se esperassem que eu retirasse algum prazer perverso disso.
Asher ligou o rádio, mas estava a dar publicidade.
– Só me apetece esganá-lo. Podia estar a fazer tanta coisa boa com aquele
dinheiro.
Cerca de um ano antes, graças à súbita proliferação de linhas de valor
acrescentado e de empresas dispostas a gastar muito dinheiro para as
publicitar, o jornal de Charlie tornara-se, pela primeira vez, bastante
lucrativo – mais lucrativo do que Yale alguma vez pensara que um jornal
gay poderia ser. Ainda por cima, Charlie vendera a agência de viagens, com
intenção de passar o resto dos seus dias num ambiente de luxo, mesmo que
não pudesse ter grande conforto. E depois, ao que parecia, gastara o
dinheiro todo em cocaína. Yale ficara surpreendido, pelo menos no sentido
em que, antes, Charlie fora um consumidor de drogas bastante seletivo – e,
ao mesmo tempo, isso não o surpreendera nada. Entretanto, o jornal estava
a desaparecer, ou pelo menos os funcionários estavam. Rafael desertara
para o Out and Out, Dwight morrera, Gloria ainda lá estava, mas não falava
com Charlie. Havia pessoas novas mas, segundo Yale ouvira dizer, todas
odiavam Charlie, Charlie odiava-as a elas e era, no geral, um filme de
terror.
Um dos resultados mais estranhos do novo vício de Charlie em cocaína
era que, após uma longa pausa depois daquela primeira carta, começara a
escrever a Yale missivas maníacas de oito e mais páginas, pelo menos uma
vez por mês. Yale desconfiava que não era o único a receber essas cartas,
mas presumia ser o único para quem Charlie fazia listas obsessivas com
títulos como «Sonhos que tive contigo» e «Livros que cá deixaste».
Algumas eram mesmo engraçadas, com um certo humor macabro.
«Maneiras de me suicidar se os republicanos ganharem estas eleições»
incluía uma entrada sobre deixar sanguessugas sugarem-lhe o sangue todo e
depois mandar alguém servir essas sanguessugas no jantar do baile da
cerimónia inaugural da presidência.
Charlie nunca sugeriu que se encontrassem. Depois daquela primeira
carta, nunca mais lhe pedira absolutamente nada. Yale tornara-se apenas
uma figura num exercício de escrita, uma memória estática em quem
Charlie podia despejar os seus sentimentos. Também nunca lhe pediu
desculpa, diretamente. Eram apenas as listas e depois, numa caligrafia
irregular que quase rasgava o papel, relatos meticulosos dos seus dias: o que
comia, quanto pesava, os problemas digestivos, o enredo dos filmes que
vira. Estava a fazer uma alimentação rigorosamente vegetariana e o Dr.
Vincent implorava-lhe que ingerisse mais proteínas. Teresa arranjara um
apartamento não muito longe do dele, e Martin parecia agora um apêndice
permanente, embora Charlie poupasse a Yale os pormenores da sua vida
sexual, incluindo se tinham ou não uma vida sexual ativa. Por vezes, as
cartas nem sequer eram sobre Charlie. Uma vez, sem motivo aparente,
escreveu cinco páginas sobre Wanda Lust, uma drag queen que morrera
antes de Yale se ter sequer mudado para a cidade.
Yale costumava esperar alguns dias antes de abrir aquelas cartas. Por fim,
sentava-se à mesa ao sábado de manhã, com um café, sopesava o envelope
e abria-o. Nunca lhes respondia. Não por rancor ou teimosia, mas apenas
porque na verdade não conseguia sequer imaginar por onde havia de
começar.
As cartas tinham atenuado os seus sentimentos por Charlie, pelo menos
um pouco. Faziam dele menos vilão e mais o idiota patético que Yale
sempre soubera que ele era na realidade.
Nos últimos dois anos, vira Charlie à distância várias vezes. Imaginava
que Charlie também o vira a ele, em dias em que Yale estava demasiado
distraído para reparar. Imaginava que Charlie sustinha a respiração, virava a
cara, inventava uma desculpa qualquer para sair da festa, do bar, da reunião
– tal como Yale fazia sempre.
Tentou agora imaginar como seria uma pálpebra infetada. Inchada,
presumiu. Vermelha. Sentiu os olhos a arder só de pensar nisso.
Saíram da estrada principal e, pelo menos, o motor era agora mais
silencioso.
– Acho que ele está assustado – disse Asher. – Eu... bom, tenho de o
dizer. Ele quer ver-te.
– Duvido muito.
– Não, foi ele que me disse. Várias vezes. Pediu-me para te dizer que quer
ver-te.
Yale ia encostar a testa ao vidro, mas esqueceu-se de que a janela estava
aberta e a sua cabeça tombou para a corrente de ar do lado de fora do carro.
– Pensa nisso. Estou só a plantar a semente.
– Se ele quer pedir desculpa, é uma coisa. Eu... seria capaz de o ouvir,
para lhe dar alguma paz. Mas ele que não pense que vou a correr para lhe
segurar na mão, agora, que as coisas estão más.
– Eu sei.
Asher tinha um daqueles carimbos a dizer «$ GAY» e uma almofada de
tinta vermelha no cinzeiro do carro, e Yale pensou se ele continuaria a
carimbar todas as notas que lhe passavam pelas mãos. Pegou no carimbo e
delineou as letras com o polegar. Só Asher é que andaria com uma coisa
destas no carro, para poder fazer o seu protesto civil assim que recebesse o
troco no drive through do McDonald’s.
Pelo menos Yale teria do que falar com Charlie, informações para
preencher o vazio. O facto de nunca lhe ter respondido às cartas significava
que existia um poço sem fundo de combustível. Charlie talvez ainda não
soubesse que Fiona entrara na universidade; ela própria só soubera a
semana passada. Com certeza que as pessoas lhe teriam dito que Yale estava
a trabalhar em angariação de fundos na Universidade DePaul, mas talvez
não lhe tivessem conseguido transmitir o tédio do trabalho, a forma como o
dinheiro era a única coisa que importava; ninguém queria saber de arte, de
beleza. Durante a entrevista para o seguro, a transpirar em bica, respondera
negativamente à pergunta sobre a sida. O Dr. Cheng apresentara o primeiro
pedido para comparticipação do AZT há cinco meses, e ainda estava a ser
analisado. A companhia de seguros queria os nomes de todos os médicos
que o tinham tratado nos últimos dez anos, e Yale estava com medo de que
lhe fizessem o mesmo que tinham feito a Katsu – encontrar um problema de
saúde menor de há vários anos, ou um dermatologista que ele se esquecera
de mencionar, e depois alegar fraude. A companhia tinha um ano para as
suas investigações e, enquanto isso, Yale tinha de pagar milhares de dólares
do próprio bolso, na esperança de vir um dia a ser reembolsado. Mas, pelo
menos, tinha o emprego, uma secretária a que se agarrar.
Podia contar a Charlie que Bill adiara a exposição de Nora até ao outono
de 1990, na melhor das hipóteses, e que embora Yale estivesse em excelente
forma, obrigado por perguntares, tinha medo de não a chegar a ver. Podia
dizer-lhe que Nora morrera no inverno passado; como queria ter-lhe
conseguido enviar pelo menos as fotografias da exposição, mesmo que não
pudessem empurrá-la pela Brigg na sua cadeira de rodas, como tinham
sonhado. Claro que Charlie podia nem sequer se lembrar de quem era
Nora.
Podia dizer-lhe que os seus gânglios tinham inchado no verão passado
mas estavam outra vez normais, e que a sua contagem de células T era
fantástica, e que andava a beber batidos vitamínicos e a praticar
visualização. Podia dizer-lhe que Roscoe fora viver com Cecily e o filho,
pouco depois de o Dr. Cheng lhe ter dito que não podia, em circunstância
alguma, manter o gato e a sua caixa de areia no apartamento. Podia dizer-
lhe que deixara finalmente as Marina Towers e vivia agora num
apartamento subarrendado em Lincoln Park, com a tinta a descascar nas
paredes, mas que tinha a sua própria máquina de lavar roupa.
Asher disse:
– Queres boleia para a reunião da FEGCOR4 no fim de semana?
Yale nunca percebera bem qual era a missão da FEGCOR, em parte
porque o significado do R estava sempre a mudar – Fufas e Gays Contra o
Reagan, ou Contra os Republicanos, ou Contra a Repressão. De cada vez
que perguntava, era algo diferente.
– É contra os ruibarbos agora, não é?
Pressionou o carimbo de Asher na palma da mão esquerda, deixando uma
leve impressão de tinta vermelha.
– Vais sentir-te melhor – disse Asher. – Todas as pessoas que conheço que
não se querem meter em política só pensam assim porque ainda não
aceitaram a sua própria raiva. Assim que o fizeres, vai parecer-te tudo muito
certo. Ouve, a ação direta... a ação direta é a terceira melhor coisa do
mundo.
– Qual é a segunda?
– Despir um fato de banho molhado.
– Hum!
Na verdade, Yale queria dizer que sim, mas a forma como se sentia
quando estava perto de Asher era insustentável. Não lhe fazia bem ao
sistema nervoso. Além do mais, aquilo que vira dos protestos de ação direta
envolvia deitar-se no meio da rua, spray de pimenta, ser algemado e enfiado
em carrinhas da polícia – onde, no verão, eles fechavam as portas e ligavam
o aquecimento. Yale nunca fora sequer capaz de enfrentar os outros rapazes
nos balneários da escola quando andava no sétimo ano. Como havia agora
de manter a dignidade, em frente de Asher Glass, contra polícias de terceira
geração de Chicago? Disse que pensaria nisso. Andava atrapalhado com o
trabalho, disse.
O único sítio onde via Asher regularmente era no grupo de apoio. Asher
chegava quase sempre meia hora atrasado, a desapertar a gravata. Se Yale
conseguisse guardar-lhe um lugar ao pé de si – geralmente deixando o
casaco na cadeira durante algum tempo, e depois retirando-o como se já não
se lembrasse de que ali estava –, Asher sentava-se e apertava ao de leve a
nuca de Yale quando o fazia. Caso contrário, ficava de pé, de fora do
círculo, e recusava a oferta do terapeuta de lhe ir buscar uma das cadeiras
ainda fechadas e encostadas à parede. Quando Asher falava, era para fazer
um discurso – nunca para partilhar alguma coisa sobre si, sobre o seu
diagnóstico ou as consequências deste. Nunca quisera fazer a análise mas,
no ano passado, começara a perder peso de repente, andava agoniado e o
médico insistira em ver como estavam as suas células T. Descobriu que
estavam abaixo de cem. Pelo menos uma vez em cada reunião, insurgia-se
contra o preço do AZT. Como se fossem eles os responsáveis, como se
pudessem fazer alguma coisa a esse respeito. Gritava que se tratava do
medicamento mais caro da História.
– Acham que isso é coincidência? Acham que é outra coisa senão ódio
puro? Dez mil dólares por ano! Dez mil dólares, foda-se!
Nunca se desmanchava a chorar, nunca derramava uma lágrima pelos
amigos perdidos, pela taxa de mortalidade, pela culpa de sobrevivente.
Depois das reuniões, Asher dizia a Yale que devia arranjar alguém entre
os membros do grupo. Depois de um breve caso com Ross, o ruivo das
Marina Towers – que basicamente se resumira a jantares, porque Ross, que
fazia a análise no primeiro dia útil do mês, de três em três meses, morria de
medo de qualquer coisa mais do que beijos –, Yale mantivera-se
completamente celibatário.
– Aquele Jeremy, o do queixo – disse-lhe Asher uma vez, enquanto
tomavam café depois da reunião. – Não tem um passado complicado, é da
tua idade, tem uns braços fantásticos. Bom, nunca lhe vi mais do que os
antebraços, mas estou a extrapolar. Vocês têm ambos análise positiva, ele
vive a um quarteirão de ti e é financeiramente independente. Não estou a
dizer para irem viver juntos, mas sim que podem trocar fluidos corporais
sem se sentirem mal por isso.
Fluidos corporais eram a última coisa em que Yale queria pensar.
– E se forem estirpes diferentes? – retorquiu. – Há quem pense que se
pode apanhar...
– Isso é um perfeito disparate. Querem policiar a nossa sexualidade, e
depois, mesmo quando já é tarde demais para isso, querem continuar a
policiá-la. Não há razão nenhuma para deixares de fazer sexo.
Simplesmente o grupo de potenciais candidatos é diferente.
Agora, no carro, Yale pensou que talvez Asher o estivesse a convidar para
a reunião do FEGCOR só para lhe fazer o arranjinho com alguém de lá.
Queria perguntar, e queria perguntar se devia ficar ofendido ou lisonjeado
por Asher estar sempre tão interessado na sua vida sexual, sem que, no
entanto, alguma vez se tivesse oferecido para fazer parte dela. Não que Yale
o tivesse sugerido. Nem conseguiria fazê-lo.
– Ficas a dever-me um favor em troca desta boleia – disse Asher. – Ou
vens à reunião ou vais visitar o Charlie.
Tirou os olhos da estrada por instantes, para olhar para Yale, que não
conseguiu controlar a expressão do rosto. Tentou sorrir com naturalidade.
– Talvez possa ligar à mãe dele.
– Será que vai para algum lado?
– O quê?
– O amor. Será que desaparece?
Yale olhou para a mão, pousada no tablier, para se apoiar em caso de uma
travagem brusca.
– Bom, nós não queremos que desapareça. Mas é o que acaba por
acontecer, não é?
– Para mim, é a coisa mais triste do mundo – disse Asher. – O fracasso do
amor. Não o ódio, mas o fracasso do amor.

Não foi visitar Charlie nessa noite, embora tenha sido o dia em que teve a
certeza de que o faria. No entanto, não viu Charlie durante um ano e meio,
até outubro de 1989, quando Charlie já estava cego, embora não tivesse
nada a ver com a pálpebra infetada de um ano e meio antes.
Teresa veio recebê-lo ao elevador. Tinha envelhecido mil anos.
Yale estivera várias vezes no Hospital Masonic para fazer exames, mas
não subia à unidade 371 desde que fora visitar Terrence, anos antes. Os
conhecidos que lá tinham ido parar, como o revisor de Charlie, Dwight, não
eram amigos suficientemente chegados para os visitar no hospital.
O espaço parecia agora mais usado, no bom sentido. Havia cartazes nas
paredes e decorações de Halloween. Um homem de bata estava encostado
ao balcão das enfermeiras, a conversar, com os pés enfiados em chinelos
amarelos felpudos, os braços cobertos de lesões. Havia um quadro com
polaroides de todo o pessoal e voluntários, com os nomes escritos na parte
branca. A maior diferença, desta vez, era que Yale sabia que, a menos que o
seu seguro falhasse e tivesse de ir parar ao County, estava a olhar para a
unidade onde ele próprio morreria. Aquela seria a sua última casa e os
rostos daquelas duas enfermeiras seriam, com o tempo, os rostos mais
familiares do mundo para ele. Conheceria de cor cada detalhe daquele
linóleo, de cada candeeiro.
Abraçou Teresa e perguntou como estavam as coisas.
– Mudaram-no para um quarto individual – disse ela –, e não me parece
que seja bom sinal, não achas? Só quero dormir. Ele... ouve, ele tem estado
muito sedado ultimamente, e esta manhã tiveram de o sedar novamente,
para fazer uma broncoscopia, por isso ainda está meio desorientado. Não
tenho a certeza se perceberá que estás aqui. Devia ter-te ligado para te
avisar, mas tive esperança de que, entretanto, ele recuperasse mais a
consciência. O problema é que... mesmo quando não está sedado, não está
completamente presente. Devia ter-te avisado.
– Não faz mal – disse ele. – Não faz mal.
Seguiu-a e, quando entrou no quarto, fechou os olhos com força. Depois,
abriu-os lentamente e viu um homem que não era Charlie. Quis dizer a
Teresa que se tinha enganado no quarto, que aquele feto mirrado na cama
não era ninguém que ele conhecesse. Mas Teresa estava a acariciar a cabeça
daquele homem e, quando ele abriu a boca, Yale viu os dentes de Charlie.
Era um alienígena, um esqueleto de Auschwitz, um passarinho caído do
ninho. A mente de Yale procurou desesperadamente metáforas, porque o
simples facto de aquele ser Charlie era quase insuportável.
Não havia muito espaço entre a porta e a cama, mas Yale atravessou-o o
mais lentamente que conseguiu. Agarrou-se ao varão da cama, olhou para
os postais colados às paredes.
Teresa estava cansada e Yale ofereceu-se para ficar um bocado, disse-lhe
para ir para casa descansar. Ela abraçou-o e saiu.
Não sabia se devia falar. Podia explicar que estava ali, procurar uma
reação no rosto de Charlie. Mas, com o efeito do sedativo e a cegueira de
Charlie, Yale dispunha neste momento de uma almofada de anonimato – na
qual se sentia em segurança, pelo menos por hoje.
Mais tarde, se Charlie estivesse lúcido, podia dizer-lhe tudo o que queria
dizer-lhe. As partes boas, pelo menos. Podia dizer, pelo menos uma vez,
que lhe perdoava. E, mesmo que Charlie nunca recuperasse completamente
a consciência – bom, podia dizê-lo na mesma. Talvez contasse.
Sentou-se na cadeira ao lado da cama.
A enfermeira entrou e mostrou a Yale uma pequena esponja cor-de-rosa
na ponta de um pau, ensinou-o a encostá-la aos lábios de Charlie para lhe
dar água.
Fez o que ela lhe pedira durante algum tempo, e depois passou o dedo
pelo pulso de Charlie e ouviu as paredes a latejarem.
Deu-lhe água, gota a gota.
Conseguia senti-lo, à sua volta: que naquele corredor, e noutros
corredores de outros hospitais em Chicago e noutras cidades esquecidas do
planeta, mil outros homens faziam o mesmo.
4 No original, DAGMAR (Dykes and Gay Men Against Racism and
Repression). (N. da T.)
2015
ão fazia sentido. Ou talvez fizesse. Tinha de fazer. Fiona estava
N acordada, era 2015 e aqui estava um homem, bem vivo, cujos olhos e
gestos e voz eram os de Julian.
Fiona sentou-se no chão de cimento do estúdio, com a cabeça encostada a
um armário. Julian estava a explicar aos restantes o que Fiona balbuciara à
porta do prédio:
– Como é aquela expressão sobre os rumores da minha morte? Richard,
devia sentir-me insultado por nunca falares sobre mim!
Serge estava a achar tudo hilariante; chamou zombie a Julian, riu-se da
expressão de Fiona. Cecily não conhecia Julian; foi buscar um pedaço de
papel de cozinha húmido para a testa de Fiona.
– Fiona – disse Richard –, eu também só o encontrei há dois anos.
Sabíamos que não sabias onde ele estava. A surpresa era essa. Mas se me
tivesse ocorrido que tu pensavas que ele estava... ouve, nunca te teria posto
nesta situação.
Na verdade, Fiona não tinha falado muito com Richard nos últimos dois
anos, pois não? Enviara-lhe um e-mail a perguntar se podia ficar em casa
dele. Antes disso... bom, parecia que tinham falado, mas isso era apenas o
resultado de ver o nome dele aparecer tão frequentemente pelo mundo fora,
e de serem amigos há tanto tempo.
Julian estava de pé em frente dela, sem saber o que fazer, a passar o
polegar pelo queixo. Olhou para o rosto dele, para a forma como mudara.
Além das transformações normais da idade, reconheceu nele algum
definhamento causado pelo AZT e – estava certa disso – implantes nas
bochechas, para disfarçar a perda de volume. E implantes de má qualidade.
Dois dos seus voluntários na loja tinham bochechas parecidas. E o rosto
dele estava mais largo – efeito dos esteroides, presumivelmente – pelo que
parecia mais quadrado, mais em bruto. Ainda atraente, mas muito diferente.
Como se tivesse sido reconstruído a partir de um esboço policial.
– Trabalho em contabilidade, na Universal – disse ele. – Estamos a filmar
na rua da casa do Richard. Embora eu não possa estar nas filmagens. Só me
mandaram vir há três dias, e estou num gabinetezinho pequeno e triste.
– Onde... normalmente... – gaguejou ela, mas não tinha palavras para o
que devia ser uma pergunta bastante simples.
– Vivo em Los Angeles. Procurei-te no Facebook, sabes? Uma data de
vezes!
– Oh...
– Fiona, desculpa.
Não sabia bem por que razão ele estava a pedir desculpa, mas temeu que
lhe conseguisse ler a mente: porquê, estava ela a pensar, porque havia de ser
Julian Ames, de todas as pessoas, a aparecer-lhe à porta como um
fantasma? Porque não Nico ou Terrence ou Yale? Porque não Teddy Naples,
que escapara ao vírus apenas para morrer em 1999, de ataque cardíaco, no
meio de uma aula, em frente aos seus alunos? Porque não Charlie Keene, já
agora, que era um imbecil mas que fizera tanto bem? Ela gostava de Julian.
A sério. Mas porquê ele?
Forçou um sorriso, porque ainda não tinha sorrido.
– Tentei mesmo encontrar-te – disse ele. – Devia ter perguntado ao
Richard.
A sua voz era a mesma. A voz de Julian.
– E perguntaste, lembras-te? O ano passado, em Los Angeles. E eu disse
que te daria o endereço de e-mail dela e esqueci-me, claro.
– Não faz mal – disse Fiona.
– Sinto-me tão estúpido – disse Richard.
Decidiram que o que todos precisavam era de sanduíches e Serge foi
despachado para as adquirir. Quando voltou, com cinco baguetes de
presunto e queijo embrulhadas em plástico, estavam todos sentados à volta
da mesa e Richard dissipara habilmente o embaraço com uma história sobre
a altura em que Yale Tishman organizara uma festa de aniversário para o
seu companheiro de quarto no Masonic, um homem que acabara de
conhecer e que não tinha ninguém na cidade que o visitasse. Yale pedira a
todos que levassem pequenas lembranças e Fiona, para ser engraçada,
comprara uma revista Playgirl pelo caminho e, ao chegar, descobrira que o
tipo era heterossexual. Um toxicodependente carrancudo.
– Ele não achou graça nenhuma – disse Richard.
Fiona ainda se sentia desligada, desorientada, confusa. Estava
constantemente a olhar para as mãos. Se estas eram as suas mãos, as mãos
que tinha desde sempre, então não era impossível que Julian Ames estivesse
ali sentado à sua frente, a abrir a sanduíche, a perguntar a Richard se tinha
guardanapos.
Havia acontecimentos de que ela julgara, durante anos, ser a única
guardiã – quando afinal aquelas festas, aquelas conversas, aquelas piadas,
tinham permanecido vivas também nele.
– Ter deixado Chicago é um dos maiores arrependimentos da minha vida,
Fiona – disse Julian. – Pensei que estava a fugir para poupar toda a gente,
mas, na realidade, o que fiz foi abandoná-los. Nunca me passou pela cabeça
que pudessem morrer antes de mim. Nunca, mesmo. E sei, pelo Richard...
sei que cuidaste do Yale, em particular. Devia ter sido eu. Devia ter estado
ao lado dele.
– A Cecily também lá estava. – Fiona tinha a voz rouca, como se não
falasse há uma semana. – Era eu e a Cecily, no hospital. Fazíamos turnos.
– Eras quase sempre tu – disse Cecily.
– Mas ele morreu sozinho. – Era a coisa mais cruel que Fiona podia ter
dito, não só a Julian, mas também a Richard e Cecily. E a si própria. –
Morreu completamente sozinho.
Julian pousou a sanduíche e fixou-a, até ela devolver o olhar.
– O Richard contou-me – disse. – Eu sei, e sei que a culpa não foi tua.
Qualquer pessoa podia ter morrido sozinha. Sabes, a meio da noite, se...
– Não foi a meio da noite.
Cecily pousou a mão nas costas de Fiona.
Serge sussurrou qualquer coisa a Richard e este respondeu, também num
murmúrio:
– Nova Iorque.
Serge devia ter-lhe perguntado onde é que ele estava quando Yale morreu.
A carreira de Richard estava a descolar, nessa altura.
Fiona, para mudar de assunto, conseguiu pedir a Julian que lhe contasse o
que tinha feito nas últimas três décadas.
– Se estás a perguntar como é que ainda estou vivo – disse Julian –, não
faço a mínima ideia.
Mas fazia, na verdade. Fora para Porto Rico em 1986, onde ficara um
ano, a viver à conta de um velho amigo, a vender t-shirts na praia e a
consumir drogas.
– Tinha tanta certeza de que estava pronto para morrer – disse. – E
depois, quando ouvi falar no AZT, foi como se... como se estivesse a tentar
afogar-me mas alguém me atirasse uma corda e não fosse capaz de não a
apanhar.
O problema era que Julian não tinha seguro e o medicamento custava
mais de metade do que ele ganhava num ano em Chicago. Assim, regressou
a casa, a Valdosta, na Georgia, onde a mãe, que julgara que nunca mais o
voltaria a ver, ficou contente por o ter a viver novamente no seu quarto de
infância e nem hesitou em gastar o seguro de vida do pai e em fazer uma
segunda hipoteca sobre a casa, para ajudar o filho mais novo.
– Era uma santa – disse ele. – Uma dama sulista. Foi criada para a igreja e
chás das cinco, mas afinal também tinha arcaboiço para lidar com uma
crise.
Durante algum tempo, ela obrigou-o a continuar a trabalhar – Julian
conseguiu emprego numa companhia de produção cinematográfica local –,
porque estava confiante de que ele sobreviveria e dizia-lhe que, quando
estivesse curado, não ia ser bom ter uma grande lacuna no currículo. (Fiona
lembrava-se do otimismo comovente de Julian antes do diagnóstico, de
como sempre estivera convencido de que encontrariam uma cura para a
doença, de que estava prestes a ser famoso. Afinal, devia ter herdado esse
lado da mãe.) Contudo, apesar dos cuidados dela, foi ficando cada vez mais
doente e ganhou resistência ao AZT.
– Não devia ter mais de meia célula T – disse. – Pesava quarenta e oito
quilos.
– E foi nessa altura que te encontrei – disse Richard.
Fiona sabia que Richard se tinha cruzado com Julian em Nova Iorque, no
princípio dos anos noventa, que Julian tinha ido à cidade com um amigo,
para ver um ou dois espetáculos bons antes de morrer. Estava numa cadeira
de rodas. Foi quando Richard tirou aquela última fotografia dele, a terceira
do tríptico. Richard ligara depois a Fiona, e ela ligara a Teddy, todos
estupefactos por Julian ter durado tanto tempo.
– Exato. E, depois disso, estive no hospital um ano inteiro. Essa viagem a
Nova Iorque foi má ideia, em retrospetiva.
– E depois? – inquiriu Serge. Era o único que tinha comido a sanduíche
toda.
– Depois, estávamos em 1996! De repente, apareceram os medicamentos
bons! Há meses de que nem sequer me lembro, estava completamente fora,
e quando o nevoeiro se dissipou dei por mim novamente em casa.
Conseguia levantar os braços e comer. Pouco tempo depois, estava a fazer
jogging. Bom, não foi logo, mas pareceu-me tudo muito rápido.
«Durante muito tempo... vais achar graça a isto, Fiona... durante muito
tempo, perguntei a mim próprio se seria um fantasma. Um fantasma,
literalmente. Pensei que devia ter morrido e que aquilo era uma espécie de
purgatório, ou o Céu. Porque... como era possível? Mas, depois, pensei: se
isto é o Céu, onde é que estão os meus amigos? Não podia ser o Céu, se o
Yale e o Nico não estavam lá. Portanto, cheguei à conclusão de que era a
boa e velha Terra. E ainda cá estou.
Serge pediu licença para ir atender o telefone. Passara o dia a enviar
mensagens e, embora parecesse que todos os seus conhecidos e amigos
estavam a salvo, nem todos os conhecidos deles tinham respondido, e ainda
havia coisas urgentes e preocupantes a discutir.
– O meu marido teve praticamente a mesma experiência que eu –
continuou Julian. – Diz que esta é a sua segunda vida. Essa conversa para
mim é demasiado religiosa, mas ele não cresceu no Sul. Mas, tem razão, é o
que parece.
Julian tinha uma aliança de ouro na mão esquerda.
Como era estranho que Julian pudesse ter uma segunda vida, toda uma
outra vida, quando Fiona passara os últimos trinta anos a viver num eco
ensurdecedor. A cuidar sozinha do cemitério, indiferente ao facto de que o
mundo avançara, de que uma das sepulturas estivera vazia esse tempo todo.
– Por falar em mães – disse Julian – e por falar no Yale Tishman. Richard,
cheguei a contar-te que conheci a mãe do Yale? Há uns doze anos, talvez. –
Fiona pousou as mãos abertas na mesa, para se apoiar. Se Julian era
realmente um fantasma, viera para a atormentar. Ele virou-se para Fiona e
Cecily. – Estava a trabalhar nas gravações do episódio-piloto de uma
comédia chamada Follywood. Nunca ouviram falar nela porque não foi para
a frente, graças a Deus. E ela fazia o papel de médica. Não a teria
reconhecido pela cara, mas reconheci o nome. Jane Greenspan. Lembram-
se?
Fiona lembrava-se do nariz dela, igual ao de Yale, e da sua boca grande.
Vira-a no ecrã uma centena de vezes, e na vida real apenas uma,
brevemente. Aquele anúncio de paracetamol passara na televisão durante
anos e Fiona acabara por memorizar o rosto dela, conhecia-o
suficientemente bem para o identificar sempre que ela aparecia noutros
anúncios ao longo dos anos. Porquê?, lamentara-se ela a quem a quisesse
ouvir, exceto a Yale. Porque é que tinha de ter sido aquela a mãe que
abandonara o filho? De todos os progenitores de todos os homens gays que
conhecia? Uma mãe atriz teria compreendido um filho gay, não? Parecia
excessivo, perverso, que Yale estivesse afastado da mãe por motivos que
não tinham nada a ver com a sua sexualidade.
Richard perguntou a Julian se tinha falado com ela.
– Não falámos sobre o Yale. Pareceu-me cruel. Não sei. Quer dizer, como
é que havia sequer de começar a conversa? Era muito amigo do filho que
você abandonou? E depois pensei: e se ela não soubesse que ele tinha
morrido?
– Sabia – disse Fiona, e a sua voz era como vidro partido.
Não conseguia respirar. Embora não quisesse ir para a rua, quase disse
que precisava de ir apanhar ar. Mas Serge tinha ido à porta e estava agora de
volta, com Jake Austen.
E depois ficou encurralada, porque foi preciso explicar tudo outra vez,
contar novamente a história: o mal-entendido, o estranho reencontro, a
mortificação de Richard, a vida inteira de Julian.
Jake sorriu, como se fosse a coisa mais fantástica de sempre.
– Bom – disse –, devo dizer que me sinto um bocadinho vingado. Era por
isto que queria falar contigo sobre o tríptico, Fiona. Porque vi a atualização.
Mas tu parecias tão segura, que pensei ter percebido mal.
Fiona não entendeu e Richard explicou que no ano passado, quando
Julian passara por Paris, voltara a fotografá-lo. Uma das peças da exposição
era um grupo atualizado de quatro fotografias.
– Um quadríptico – disse. – Não é lá muito fácil de dizer.
– Imagina! – exclamou Julian. – Depois deste tempo todo, sou outra vez
modelo!
E a forma como o disse era tão exatamente típica de Julian Ames, tão
idêntica a como o teria dito com vinte e cinco anos, que Fiona se aproximou
dele e o beijou na testa.
– Estou tão feliz por estares aqui – disse ela. – Tão, tão, tão feliz.
1990
mbora fossem apenas participar numa marcha, não acorrentar-se aos
E postes, nem nada parecido, Yale e Fiona tinham escrito o número de
telefone de Gloria nos braços com marcador, bem como o número do
gabinete de advocacia de Asher – apesar de Asher ter muito mais
probabilidades de ser detido do que eles. Gloria tinha um tornozelo torcido
e não podia ir, mas oferecera-se para os ir tirar da cadeia se fosse preciso;
no entanto, fizera a mesma promessa a pelo menos dez outros manifestantes
e Yale receava que ela ficasse sem dinheiro para as fianças, se acabassem
todos atrás das grades, e tivesse de o deixar definhar na prisão.
– A Gloria é a pessoa mais responsável que já conheci – tranquilizou-o
Fiona.
Era verdade; Charlie costumava dizer que ela era a única escritora do
mundo que nunca falhava um prazo. Gloria deixara o Out Loud e estava
agora no Trib, a escrever reportagens. Mas, pelo sim, pelo não, Yale
escreveu também o número de Cecily. Tanto ele como Fiona tinham lenços
ao pescoço, embora Yale duvidasse que fossem grande proteção contra o
gás lacrimogéneo. Sentia-se um cowboy palerma.
Apanharam o El até ao Loop e Yale tentou evitar que Fiona percebesse o
quanto estava aterrorizado. Fora à vigília das velas em frente ao Hospital de
Cook County no sábado à noite, até às duas da manhã, a comer sopa e a
partilhar uma manta com Asher e Fiona e um amigo de Asher de Nova
Iorque, mas isso parecera-lhe mais seguro. As velas faziam lembrar uma
cerimónia religiosa e, ao fim de algum tempo, toda a gente se tinha sentado.
Poucas centenas de pessoas, algumas guitarras. Um desfile de moda
disparatado, a dada altura. Uma marcha propriamente dita era diferente, e o
tipo demasiado cauteloso que lhe ligara na noite anterior, da rede telefónica
da ACT UP, recordara-lhe que devia avisar amigos e família de onde ia
estar. Sugerira-lhe também levar uma segunda mochila reforçada, à frente.
– Às vezes, eles entusiasmam-se com os bastões – dissera. – Podes enchê-
la com camisolas ou coisa do género.
Mas Yale só tinha uma mochila. Colocou lá dentro uma camisola, um
lenço extra e uma garrafa de água. Guardou a bomba da asma no bolso das
calças e um saquinho de plástico com comprimidos para três dias no outro,
na eventualidade de ser detido. Oitenta e cinco comprimidos, no valor de
setenta e tal dólares. Graças a Deus tinha seguro.
O comboio estava cheio com a multidão habitual de segunda-feira de
manhã, homens de fato, mulheres de blazer, alguns miúdos com uniformes
de escolas privadas. O protesto começara às oito no Prudential Building,
mas já eram 8:45 e provavelmente teriam de se encontrar com a
manifestação a subir a Michigan Avenue em direção à sede da Blue Cross.
Yale tinha no bolso uma fotocópia com o mapa do percurso. Descrevia um
círculo alongado enorme, que parecia implicar muito tempo a andar. A
Associação Médica Americana era a paragem seguinte, depois outra
companhia de seguros e, finalmente, regressavam a Daley Plaza, onde se
instalariam em frente do County Building, para protestar o encerramento de
metade das camas dedicadas à sida no Hospital de Cook County e o facto
de a enfermaria não aceitar mulheres.
Fiona conseguiu encontrar um lugar sentado e insistiu para que Yale
ficasse com ele. Yale sentia-se bem, na verdade, exceto que tinha a barriga
em mau estado há vários dias. Um mal-estar diferente do que era causado
pelos medicamentos – cãibras fortes, enjoos. Podia ser o princípio de tudo,
ou podia ser apenas dos nervos. Assim que ele se sentou, Fiona disse-lhe:
– Tenho um problema. Estou apaixonada pelo meu professor de
Sociologia.
Yale riu-se.
– Fi! Mas é um amor não correspondido ou andas a receber créditos
extra?
– Bom, ele telefona-me. Para casa. Mas ainda não fizemos... não é ilegal,
nem nada!
– Diz-me que ele não tem sessenta anos – pediu Yale. – Oh, meu Deus, é
casado?
– Não e não. É da tua idade, mais ou menos.
– Mas és aluna dele.
– Sim. Bom, era. Os exames são esta semana.
– Devias estar a estudar.
– Cala-te. Então faço o exame, e depois?
Fiona corou violentamente. Se queria manter uma expressão neutra, não
estava a conseguir. Era lindo de se ver: Fiona feliz, Fiona apaixonada.
– Talvez possas esperar até as notas serem publicadas – disse. – Por uma
questão de aparências. E depois... enfim.
– A sério? Pensei que serias a pessoa certa para me meter juízo na cabeça.
És o meu amigo mais sensato.
– Fi, estás a pedir conselhos a alguém que está cada vez mais consciente
de que a vida é muito curta. Espera até teres a tua nota, depois vai ao
gabinete dele e baixa-lhe as calças.
Estava a falar baixo, mas Fiona soltou um gritinho divertido:
– Yale! Isso é tão gay!
Ninguém olhou; quando muito, pensaram que ela estava a insultá-lo.
– Estou bastante convencido de que também resulta com homens hetero.
A sério. Quantas vidas tens? Quantas vezes vais ter vinte e cinco anos?
Fiona ergueu uma sobrancelha. Tinha as sobrancelhas mais escuras do
que o cabelo e Yale adorava a expressão permanentemente sardónica que
isso lhe dava.
– E tu? – disse ela. – Andas a seguir os teus próprios conselhos?
– Estou prestes a participar num motim, não estou? Parece-te uma coisa
que eu faria normalmente?
– De todo. Mas sei muito bem porque o vais fazer. Não é por a vida ser
curta. É porque estás apaixonado pelo Asher.
Yale abriu a boca para protestar, mas sentira um rubor espalhar-se-lhe
pelo rosto e orelhas assim que ouvira as palavras, e seria ainda mais
embaraçoso agora tentar negar. Afinal de contas, ela vira-o na vigília,
angustiado por não saber se Asher estava envolvido com o seu amigo de
Nova Iorque, a derreter-se com a forma como a luz da vela iluminava o
rosto de Asher.
– Bom, ele tinha bons argumentos – disse.
Não estava mais apaixonado por Asher do que sempre estivera, o que
queria dizer, se quisesse ser honesto consigo próprio, que sempre estivera
bastante apaixonado por ele; e, ultimamente, estava disposto a ser honesto
consigo próprio. Não passava mais tempo com ele do que o habitual, mas
tinha mais oportunidades de olhar para ele – quando Asher discursava em
angariações de fundos e presidia a reuniões comunitárias, quando apareceu
na televisão na altura em que a manta do Names Project esteve no porto da
Marinha, quando aparecia na televisão por ser preso – e, a essa distância,
Yale permitia-se finalmente olhar para algo que sempre soubera que lhe
queimaria os olhos.
Asher passara uma hora na vigília a persuadir Yale a marchar hoje.
– Envergonhar alguém no noticiário da noite... – dissera – não achas que
é muito mais eficaz do que escrever uma carta? Não há nada que possas
fazer que cause tanta diferença. E esta é a grande marcha. É agora. – O seu
sotaque de Nova Iorque viera ao de cima. Espetou o dedo no peito de Yale
com demasiada força e pediu desculpa.
A FEGCOR tinha-se fundido com a delegação de Chicago da ACT UP e
Asher andava a prestar aconselhamento jurídico, além de enfrentar
pessoalmente os sprays de pimenta. A maioria das manifestações trazia à
rua os mesmos vinte ou trinta resistentes, mas esta era nacional – havia
pessoas que vinham de todo o lado para protestar na sede da AMA contra a
sua oposição a um seguro nacional. E também contra o sistema hospitalar, e
as companhias de seguros, e só Deus sabia que mais. Era tudo muito
confuso para Yale, mas quanto maior, melhor, segundo Asher.
– Se não lutarmos pelas mulheres negras e pobres que precisam de camas
no County – dissera Asher –, somos tão maus como os filhos da puta dos
republicanos. Não podemos pensar só em nós. E Yale... – disse, e Yale ficou
ligeiramente surpreendido por Asher se lembrar da presença dele, por se
lembrar de que não estava apenas a fazer um discurso para o ar – ...acho
que tu serias ótimo nisto, a longo prazo. Talvez nos bastidores, mas
precisamos de ti. Vamos estar constantemente a precisar de novos líderes. O
problema deste movimento é que os líderes estão sempre a morrer.
Precisamos de suplentes.
Uma gota de cera deslizava pela vela de Asher, aproximando-se
perigosamente da mão dele. Yale esticou a mão e travou-a com a unha do
polegar. E provavelmente fora nessa altura que Fiona se apercebera, se não
soubesse já.

A multidão estava de facto em andamento, quando Yale e Fiona se


juntaram à marcha, a dirigir-se a norte pela ponte de Michigan Avenue.
Alguns manifestantes vestiam batas de médico, um toque inteligente, e a
maioria trazia cartazes – «Morte por Inação», «Dinheiro de Sangue», um
mais elaborado sobre George Bush ter um czar para as drogas mas não um
czar para a sida –, e Yale sentiu-se um ator secundário supérfluo. Ninguém
trazia uma mochila atrás e outra à frente, nem uma única pessoa; ficou
contente por não ter aparecido como miúdo demasiado bem preparado.
Fiona juntou-se entusiasticamente aos cânticos e, depois de o fazer
também, Yale descobriu que o ritmo dos seus pés no pavimento igualava o
ritmo do que estava a gritar, e em breve o seu coração começou a bater em
sintonia, como costumava acontecer quando ia dançar.
– Os doentes de sida – gritava uma mulher com um megafone – estão sob
ataque. O que é que fazemos?
E, juntos, respondiam:
– Agimos! Ripostamos!
Yale procurou pessoas conhecidas, mas seria precisa muita paciência;
havia milhares de manifestantes e, na verdade, era bom que aquelas caras
não lhe parecessem todas pertencer a alguém que via em Boystown há anos
mas de cujo nome não se lembrava. Era bom fazer parte de uma horda, de
uma vaga de seres humanos.
Um cântico dissipava-se e extinguia-se, como que cortado por um
maestro invisível, e outro cântico novo viajava até eles rua acima, primeiro
meio indistinto, e Yale ouvia-o claramente uma vez, antes de se lhe juntar.
Ao passarem pela Tribune Tower, com os turistas estupefactos a olharem,
os gritos eram: Cuidados! De saúde! São um direito! Cuidados de saúde
são um direito! Em frente ao edifício da Blue Cross, mesmo na Magnificent
Mile: Estamos aqui! Somos queer! Não andamos às compras! A descer
State Street, com a multidão agora mais compacta, mais ruidosa: Hei, Hei,
AMA! Quantas pessoas morreram hoje?
Três adolescentes risonhos caminharam algum tempo ao lado de Yale e
Fiona, a fazer uma dança trocista, de mãos a abanar, mas ninguém lhes
prestou atenção. Alguém atirou da janela de um carro um maço de cigarros
vazio que acertou no ombro de Fiona.
Yale viu Rafael, do Out Loud, a caminhar com a ajuda de uma bengala,
mas estava demasiado afastado para conseguir falar com ele. Havia polícias
por todo o lado, a soprarem os seus apitos, a gritarem coisas que Yale não
conseguia perceber, mas, até agora, parecia não haver ninguém detido.
Ninguém estava a ser arrastado à força.
Porém, antes de chegarem à AMA, Yale sentiu o estômago liquefazer-se.
Disse a Fiona que precisava de uma casa de banho e ela disse-lhe que
estava pálido.
Enfiaram-se num hotel onde, felizmente, ninguém os deteve, e Yale
conseguiu chegar a uma casa de banho elegante ao fundo do corredor atrás
da receção. Fiona ficou de guarda à porta. Yale gritou-lhe, lá de dentro, que
podia ir-se embora, e ela disse-lhe que não fosse palerma. Foi a correr à
procura de um Walgreens e regressou com Imodium e Gatorade, embora ele
já se sentisse melhor antes mesmo de ela voltar. Demorou o seu tempo,
esteve ali sentado quinze, vinte minutos, com receio de deparar com um
grupo de espectadores espantados ao sair. No entanto, só lá estava Fiona,
sentada de pernas cruzadas no chão, encostada à parede, e Yale fechou
rapidamente a porta da casa de banho atrás de si.
– Esta pode ser a minha defesa, se me prenderem – disse. – Posso borrar
as calças à frente deles. Serei como uma doninha ou um polvo.
– Lembras-te daquela banda desenhada do Nico, sobre o Hot Todd que
ficou com diarreia durante um encontro?
Yale lembrava-se. A tira acabava com Todd a correr para casa e o tipo
maravilhoso com quem ele saíra via-se sozinho no passeio, sem perceber o
que tinha feito mal.
Fiona sentou-se com ele num sofá na entrada do hotel. Yale queria juntar-
se novamente à manifestação, mas ainda não. Precisava de mais alguns
minutos, para ter a certeza.
Fiona sorriu, como se estivesse prestes a dar-lhe uma prenda, e disse:
– Sabes, ele também gosta de ti.
– Quem? – perguntou Yale, apesar de saber, pelo menos de ter esperança
de saber. Sentia-se gelado e esgotado quando se sentara, mas agora parecia
que o sangue e o ar o invadiam de novo.
– Ele disse ao Nico. E o Nico disse-me a mim.
– Oh, então foi há montes de tempo.
– Sim, mas as pessoas não se esquecem dessas coisas. E falei com ele
depois de te separares do Charlie. Disse-lhe que devia tentar a sua sorte.
Fiona estava a falar alto demais, apesar de Yale ter baixado a voz. O átrio
estava praticamente vazio e a família junto ao balcão parecia preocupada.
– E ele não fez nada.
– O problema é que ele não é defensor da monogamia e sabia que era isso
que tu querias.
– Céus. Quer dizer, já não acredito na monogamia. Por isso é que estou
doente.
Fiona inclinou a cabeça.
– Isso é precisamente o oposto daquilo que aconteceu.
– Não me parece.
Yale estava zangado e excitado e confuso, e nenhuma dessas emoções era
boa para a barriga. Queria, mais do que nunca, voltar a sair, mas nunca
tivera mais dúvidas sobre se conseguiria aguentar-se.
Quando se sentiu finalmente pronto e se levantou lentamente, foi
acometido por aquilo que julgou, ao princípio, ser um déjà vu – mas não,
era uma memória real: sair da casa de banho em casa de Richard, descer as
escadas e não ver ninguém. E se voltasse a acontecer? E se saíssem do hotel
e encontrassem apenas um dia normal numa cidade normal e os
manifestantes tivessem desaparecido no vazio?
– Vamos diretos ao County Building e esperamos por eles junto ao
Snoopy – disse Fiona.
– Ao quê?
– Ao Snoopy na picadora. Aquela estátua.
Yale demorou um segundo a perceber ao que ela se referia.
– Oh, meu Deus, Fiona, é uma obra de Jean Dubuffet. – Abstrata e
branca, com traços pretos. Uma escultura que convidava à escalada.
– Não sou a única que lhe chama assim, e não podemos ser todos
especialistas em arte.
Yale gostava da ideia de se enfiar dentro da estátua e ficar a ver os
manifestantes, a ver Asher, do interior de uma concha escultural.

Chegaram realmente primeiro que toda a gente, tirando alguns dos


organizadores que aguardavam com papéis nas mãos, megafones ao lado.
Um deles contou-lhes que tinha havido algumas detenções na AMA, uns
tipos que tinham bloqueado a entrada do edifício.
– Já mandaram chamar a polícia a cavalo – disse ele.
Sentaram-se encostados à estátua de Dubuffet.
– Chama-se Monumento com Besta Empinada – disse Yale. – Para
referência futura.
– Não, nem pensar. Nunca. Ouve, vens comigo à inauguração da
exposição da Nora, certo?
– Talvez possas levar o teu professor de Sociologia!
– Yale, os meus pais vão estar lá.
– Bem visto – disse ele. – Sem dúvida que é muito melhor apareceres
com um gay doente. Sei que o teu pai vai adorar.
Em fevereiro – daí a quase dez meses –, a coleção de Nora ia finalmente,
finalmente, ser exposta na Brigg. Após mil adiamentos e disparates
intermináveis. Bill metera os pés pelas mãos e prometera emprestar os
Foujitas ao Museu Ohara, no Japão, antes sequer que a Brigg tivesse
oportunidade de os expor. Yale ainda estava na lista de correspondência da
galeria e ficara alarmado ao reparar que, no anúncio da exposição, eram
mencionados todos os artistas exceto Ranko Novak. Até Sergey Mukhankin
lá estava. Ligara para a galeria, fingira ser repórter do Out Loud – porque
não? – e perguntara à mulher do outro lado da linha se haveria alguma obra
em exposição de um artista chamado Novak.
– Não vejo aqui nada – disse ela. E Yale inclinou a cabeça para trás e
ficou com o queixo e a maçã de Adão apontados para o teto até lhe doer o
pescoço.
Pelo menos Nora morrera convencida de que dera a Ranko a merecida
exposição, mas a pequena parte de Yale que acreditava num Além (pelo
menos, ultimamente, tentava acreditar) sentia que a desapontara de forma
monumental. Ela confiara nele, deixara o legado de Ranko nas suas mãos, e
ele falhara. E, ainda por cima, era também um trabalho dela, apesar de Nora
não ver as coisas dessa maneira. Yale queria, mais do que qualquer outra
coisa, ver o retrato de Ranko pintado por Nora na parede da galeria, ao lado
do retrato que Ranko pintara dela – um triunfo secreto que só duas ou três
pessoas compreenderiam. E agora estava tudo relegado para um armário
qualquer. Quando pensava nisso, sentia um aperto na garganta. Ainda não
contara nada a Fiona; dizer-lhe seria como dizer a Nora.
Yale e Fiona ficaram sentados junto à estátua mais meia hora, até
começarem a ouvir a multidão que descia a Clark Street, e depois ali
estavam todos, com os seus cartazes dobrados pelo vento, transpirados e
roucos. George Bush, não podes esconder-te! És acusado de genocídio!
Entretanto, havia equipas de reportagem a correr às arrecuas em frente da
massa humana. Yale viu Asher na fila da frente, e Teddy também. Teddy
andava a fazer o pós-doutoramento na UC Davis, mas regressara
propositadamente para ir à manifestação e Yale estivera com ele na vigília.
Teddy estava bronzeado e feliz e engordara uns quilinhos, mas ficava-lhe
bem.
Yale e Fiona juntaram-se aos cânticos: Cuidados! De saúde! São um
direito! Cuidados de saúde são um direito! O ânimo que perdera durante o
desvio pelo hotel regressou rapidamente.
Quando fora a última vez que gritara? Gritara nos jogos dos Cubs. Gritara
com Charlie durante a separação. Mas nunca gritara por causa da sida.
Nunca gritara contra o governo. Nunca gritara contra as forças que tinham
negado o seguro de saúde a Katsu Tatami, contra o sistema de hospitais
públicos que tinha forçado Katsu a esperar duas semanas por uma vaga,
quando mal conseguia respirar, e que depois o tinha deixado morrer numa
enfermaria que cheirava a mijo. Nunca gritara contra aquele novo
presidente da câmara com as suas palavras vazias. Nunca gritara com o
universo.
Fiona pegou-lhe na mão e conduziu-o para o meio da refrega, onde
abriram caminho até junto de Asher. Asher estava ocupado a gritar ao
megafone, mas piscou-lhes o olho e, quando baixou o megafone, disse:
– Está tudo bem?
– Sabes o que isto me parece? – respondeu Yale. – É como sair outra vez
do armário. Estou na Baixa, no meio da rua, a gritar que sou gay. A gritar
contra a sida. E é fantástico.
– Fica aqui ao pé de mim, está bem? Queres isto? – Asher enfiou a mão
no bolso e tirou um rolo de autocolantes que diziam «Silêncio=Morte». –
Espalha-os por todo o lado. O meu amigo colou um num cavalo da polícia!
Teddy apareceu e disse-lhes que na esquina atrás deles – Yale não
conseguia ver tão longe, mas ouviu um tumulto nessa direção, apitos e
gritos – algumas mulheres tinham atirado quinze colchões para o meio da
rua, para representar as camas vazias nos hospitais, por falta de pessoal.
Estavam deitadas neles, a improvisar uma enfermaria feminina.
Mas depois Fiona apontou para cima e de repente estava toda a gente a
apontar para cima: no County Building, cinco tipos saíram de uma janela
para o parapeito e afixaram rapidamente a sua faixa por baixo da bandeira
estadual: «EXIGIMOS IGUALDADE DE CUIDADOS DE SAÚDE JÁ!» Asher começou
aos saltos, a gritar os nomes deles, e disse a Yale:
– Mascararam-se de heterossexuais! De camisa e fato!
Agora, exibiam t-shirts da ACT UP.
Só cerca de um minuto depois é que a polícia apareceu atrás dos homens
e arrastou dois deles para dentro. Os outros três continuaram a agitar os
punhos ao som dos cânticos. O mundo está a ver! O mundo está a ver! E,
embora Yale não conseguisse acreditar que era verdade – teriam realmente
direito a mais de trinta segundos nos noticiários? –, sabia bem gritá-lo.
Quando os polícias voltaram, os três homens agarraram-se ao parapeito, ao
poste da bandeira, ao estandarte. Pareciam dispostos a escalar o edifício
todo, como o Homem-Aranha. Fiona escondeu o rosto na camisola de Yale.
Yale também queria desviar o olhar, mas obrigou-se a ver os polícias
arrastá-los pelas pernas. O último foi apanhado pelo pescoço.
Cá em baixo, a polícia montada começou a empurrar a multidão para trás.
Ao que parecia, estava na altura de se sentarem na estrada. Asher disse:
– Podes sair daqui agora. Queres ir-te embora? – Mas Yale não queria.
Fiona também não queria. – Tens uma pessoa de prevenção? – Yale fez que
sim com a cabeça, mas não mencionou que Gloria estava em casa, não aqui,
pronta a segui-lo para a esquadra.
Eles mandam-nos recuar!, estava a multidão a gritar. Nós vamos
ripostar!
Só esperava que a barriga se aguentasse. Tirou o frasco de Imodium da
mochila e bebeu um gole. Demasiado grande, mas podia lidar com as
consequências mais tarde. Sentaram-se, parte de uma linha de vinte pessoas
que atravessava a rua de uma ponta à outra: Asher de um dos lados de Yale,
Fiona do outro e Teddy ao lado de Fiona. Atrás deles, as pessoas em pé
continuaram a gritar e a filmar e a protestar com a polícia.
Os cavalos estavam demasiado perto e era difícil perceber o que se
passava, difícil ver e difícil ouvir. Um rumor percorreu a fila: alguém fora
atingido na cabeça pelo casco de um cavalo, uma das últimas sirenes era
uma ambulância. Os polícias estavam constantemente a virar os cavalos de
modo que as suas patas de trás ficassem a meio metro das caras das pessoas.
Estavam tão perto, que conseguiam cheirá-los. Quando os cascos batiam no
pavimento, Yale sentia-o estremecer.
Um organizador percorreu a fila.
– Se forem detidos, façam assim! – gritou, cruzando os pulsos. Yale
perguntou porquê, mas ninguém respondeu. – Não se ponham moles! –
disse o homem. – Senão eles deixam-nos cair de cabeça!
– Estás com medo? – gritou Yale ao ouvido de Fiona.
Ela abanou a cabeça, com os caracóis no rosto.
– Estou demasiado zangada para ter medo! Estou furiosa! E tu?
– Também! Mas eu vou morrer de qualquer maneira!
Alguém gritava repetidamente sem violência!, mas era apenas uma voz,
não um cântico.
Os polícias aproximaram-se. Pegaram numa mulher na ponta da fila e
levaram-na em braços para uma carrinha, sem que ela parasse de gritar.
Voltaram para pegar no homem ao lado dela, e depois o homem seguinte.
Tinham luvas de plástico azuis nas mãos. Um dos polícias trazia uma
máscara no rosto.
Ainda havia câmaras, mas as equipas de reportagem tinham-se afastado
para o lado; as pessoas que corriam entre as linhas da frente com câmaras
de vídeo eram manifestantes que queriam gravar tudo para a posteridade.
Um deles parou em frente de Teddy.
– Diz qualquer coisa! – pediu, e Teddy gritou:
– As luvas deles não combinam com os sapatos!
A multidão começou a gritar a frase, uma das preferidas de sempre: As
luvas não combinam com os sapatos! Vão ver nos noticiários!
A câmara avançou para Yale.
– Diz qualquer coisa! – pediu o homem. – Que estás a sentir?
Na verdade, ele nunca se sentira menos como Yale Tishman. Se tivesse o
resto da vida pela frente, talvez tivesse considerado este momento como o
princípio de algo novo, o momento em que finalmente se apercebera da
pessoa em que devia tornar-se. Mas, como não tinha esse luxo, reconhecia-o
por aquilo que era: um pico de bravura e adrenalina que provavelmente
nunca mais viria a sentir nos dias que lhe restavam neste mundo. Soltou o
braço de Fiona, virou-se para Asher, segurou-o pela nuca e beijou-o. Não
queria saber se Asher o fazia apenas por causa da câmara, mas ele retribuiu
o beijo, com os dedos no cabelo de Yale, a sua língua na dele. Yale sentiu o
sabor a sal nos lábios dele, a barba por fazer de Asher contra o seu queixo
mais macio, enquanto a cidade desaparecia à volta deles.
Quando finalmente se afastaram, percebeu que Fiona estava aos gritos de
alegria e Teddy batia palmas. Asher sorriu-lhe, de olhos postos nos dele,
mas nesse momento chegou a ordem de se deitarem.
Yale passou a mochila para a parte da frente do corpo, enfiou novamente
os braços nos de Asher e Fiona e encostou as costas e a cabeça ao asfalto
frio. Fechou os olhos e preparou-se. Não queria levantar-se e caminhar até à
carrinha da polícia. Queria ficar ali deitado, imóvel, um cadáver passivo
que teria de ser transportado, como as pessoas na outra ponta da fila tinham
feito. Leve como uma pena, duro como uma tábua.
Os gritos aproximaram-se, os apitos aproximaram-se.
Ouviu Fiona gritar quando Teddy foi levado, e um minuto depois sentiu o
braço dela ser arrancado do seu. Estendeu a mão, mas ela já lá não estava.
Manteve os olhos fechados.
Quando lhe pegaram, foi pelas roupas. Pela gola da camisola, pela
mochila, pelo cós das calças, pelos sapatos. Tentou não ficar mole, mas não
conseguiu.
Olhou para a escuridão por trás das suas próprias pálpebras. Pensou no
fim de semana seguinte: tinha prometido a Teresa que a ajudaria a esvaziar
o seu velho apartamento. Ela dissera-lhe para levar o que quisesse de
Charlie e qualquer coisa sua que lá tivesse ficado aqueles quatro anos. Esse
fim de semana faria isso, no próximo fim de semana faria aquilo.
Provavelmente, isto era mais fácil.
Como uma criança que adormecera no sofá e era levada ao colo para a
cama pela mãe.
Mas aterrou no chão, com força. Ficou sem fôlego e depois viraram-no de
barriga para baixo, com a face encostada ao asfalto, a mochila a magoar-lhe
as costelas, um joelho sobre as costas. Havia tantas vozes a gritar à sua
volta. Prenderam-lhe os braços atrás das costas e apertaram-lhe os pulsos
com qualquer coisa e percebeu que não se conseguia mover, não conseguia
respirar bem, mas continuavam a fazer força com o joelho em cima dele.
Ouviu a voz de Asher, mas não conseguia perceber se estava perto ou
longe.
– Porque é que lhe estão a fazer isso? Por favor, porque é que estão a
fazer isso?
– Ele resistiu.
– Ele não resistiu! Ele não resistiu!
Abriu os olhos e viu o casco de um cavalo e o pelo castanho por cima, tão
perto que, se tivesse deitado a língua de fora, conseguiria lambê-lo. Fechou
outra vez os olhos.
Sentiu um sapato na cabeça, a segurá-lo contra o chão. Sentiu o frasco de
Imodium na mochila, a cravar-se nas costelas do lado direito com
demasiada força. Sentiu algo estalar desse lado. Uma dor cortante, líquida.
– Por favor, isso é desnecessário! Ele não resistiu!
Queria que se despachassem. Queria estar na carrinha com Fiona. Queria
estar em casa com o saco de gelo. Queria saber que os intestinos iam
aguentar-se. Queria que Asher não parasse de gritar, queria continuar a
ouvir a voz dele.
Reviveu mentalmente aquele beijo. Podia viver muito tempo naquela
memória. Era quente e boa.
2015
o quarto, Fiona fez uma chamada por Skype para a terapeuta. A imagem
D de Elena ficava parada com frequência mas o som continuava, pelo que
parecia que havia frases inteiras a saírem dos seus lábios fechados, ou
perguntas sérias de uma boca aberta num sorriso divertido.
– Esperar é sempre difícil, seja pelo que for – disse Elena. – E são muitos
elementos causadores de stress.
Tinham passado três dias desde que batera à porta de Claire e ela nunca
mais lhe dissera nada.
– Sinto-me uma idiota por estar aqui à espera – disse Fiona. – E por ter
convencido a Cecily a vir também, quando podemos nem sequer vir a
conhecer a nossa neta.
– A Cecily já esteve novamente com o Kurt? – A imagem de Elena estava
paralisada, com a cabeça baixa, o ecrã cheio dos seus caracóis negros.
– Acho que não. Não lhe tenho feito muitas perguntas. Hoje foi passear
com a amiga em casa de quem ficou.
– E a Fiona também está a reencontrar velhos amigos.
– Estou a atrapalhar. E ainda tenho de ficar mais seis dias até à
inauguração da exposição do Richard. – Pelo menos, nessa altura, Julian
estaria de volta. Fora a Londres mas regressaria na segunda-feira. – Se a
Claire ainda não tiver dito nada nessa altura, tenciono ir-me embora logo a
seguir.
– Sem mais nem menos?
– Bom, podia... podia deixar-lhe uma carta debaixo da porta antes de ir.
Não seria uma violação assim tão grave, pois não?
– Parece-me um bom plano.
– Estraguei tudo quando fui a casa dela. Não parece justo. Fiz merda a
vida toda por não estar suficientemente presente, e agora fiz merda por
andar em cima dela.
Elena respirou fundo – Fiona ouviu-o mas não o viu, pois Elena estava
agora paralisada com os lábios franzidos – e disse:
– Tenho andado a pensar numa coisa. Discutimos muitas vezes que há
coisas pelas quais pode sentir-se culpada, mas a Claire também tem de
partilhar alguma culpa.
– Eu...
– E sei que isso tem sido difícil para si. Culpar a Claire. Mas talvez seja
altura de pôr de lado toda a ideia de culpa.
A frase fez Fiona regressar a uma centena de conversas que tivera muitos
anos antes. Asher Glass a protestar sobre «culpa e vergonha», as pragas
gémeas que surgiam no rasto do vírus.
– Já passei por isso – respondeu. – O problema é que, se deixarmos de
culpar as pessoas e as coisas continuarem más, a única coisa que resta para
pormos as culpas é o mundo. E quando culpamos o mundo inteiro, quando
parece que o planeta não nos quer, e que Deus, se existir, nos odeia... isso
ainda é pior do que nos odiarmos a nós próprios. É mesmo.
Esperava que Elena lhe dissesse que estava enganada, que o ódio por nós
próprios era o pior tipo de ódio, mas o silêncio carregado de Elena
prolongou-se demasiado para ser bom sinal.
– Elena? – chamou.
A mão de Elena estava paralisada junto ao rosto, mas ela já ali não
estava.
*
Ainda estava escuro, na quarta-feira de manhã, quando o telemóvel de
Fiona tocou, e ao princípio pensou que fosse alguém a ligar dos Estados
Unidos. Era Claire.
– É só para te dizer que estou bem. Parece que se passa qualquer coisa a
uns cinco quarteirões daqui, não sei o quê. Mas nós estamos bem.
– O que se passa? – Fiona saltou da cama.
– Qualquer coisa com a polícia, não é outro ataque. Mas ouviram-se
tiros.
– Oh! Espera, estás a... obrigada por ligares, querida. Obrigada. Estás em
casa?
– Sim, veio cá um polícia. Estamos basicamente em confinamento
forçado.
Claire parecia estranhamente calma. Fiona quase teria acreditado na
firmeza da sua voz, se não soubesse que Nicolette devia estar a dormir ao
lado dela – e que mãe conseguiria estar calma num momento destes? Só
queria voar através da cidade.
– Não estás ao pé da janela, pois não?
– Bom, a casa não é grande.
– Não podes pôr uma estante ou qualquer coisa em frente da janela?
Claire não disse nada e Fiona temeu tê-la ofendido.
– Sim, talvez.
– Trancaste a porta?
– Claro.
– E tens comida suficiente? Tens conta no Twitter? O namorado do
Richard estava a receber a maior parte das notícias pelo Twitter. – Porque
ainda não estava completamente acordada para se conseguir controlar,
disse: – Isto é um sinal, Claire. De que devias voltar para Chicago.
E teve imediatamente a certeza de que seria a gota de água, de que Claire
ia desligar.
Claire riu-se.
– Aqui toda a gente morre de medo de Chicago. Mal acreditam que eu
consegui sair de lá viva.
– Ou podíamos procurar um sítio mais seguro para ti em Paris. Num
bairro melhor. O teu pai e eu podíamos contribuir com alguma coisa.
Estava literalmente a tentar comprar o afeto da filha. Bom, primeiro a sua
segurança, depois o seu afeto. Às cinco da manhã, com um tiroteio em
fundo.
– Mãe – disse Claire –, vai dormir, está bem?
– Ligas-me mais tarde?
– Sim. Mas ouve... não entres em pânico se eu não disser nada, está bem?
– Vou entrar em pânico, querida. Mas podes enviar um e-mail ao teu pai,
se não quiseres ligar, e ele dá-me o recado. Ele gostou de ter notícias tuas.
Fiona ligou o televisor na sala – sem som, porque, de qualquer maneira,
não conseguia perceber o francês rápido – e abriu o computador de Richard
para ir ao site da CNN.

Ao meio-dia, ainda não tinha mais notícias de Claire mas soubera pela
televisão que tinham apanhado e matado o último suspeito. Não havia
relatos de civis mortos a cinco quarteirões de distância.
Lembrou-se de ver se o telemóvel guardara o número de Claire quando
esta ligara. «Número Particular», dizia.

Almoçou e, depois, ligou a Jake e perguntou se podiam encontrar-se. Ele


também decidira ficar pelo menos até à inauguração da exposição de
Richard; o seu artigo não estaria completo de outra forma, e a amiga não se
importava que ele ficasse mais algum tempo (contra o seu bom senso,
presumia Fiona). Ele perguntou a Fiona se queria dar um passeio e ela disse
que não, mas que gostaria muito de ir para a cama com ele outra vez, se ele
tivesse alguma ideia de onde isso podia acontecer.
Jake ligou-lhe algum tempo depois com uma morada, um pequeno prédio
de escritórios em Saint-Germain, e conduziu-a a um gabinete vazio com
uma janela, uma secretária, uma cadeira e algumas gravuras arquitetónicas
nas paredes.
– Desculpa – disse ele. – Pensei que tivesse um sofá, pelo menos.
Pertencia ao namorado da companheira de quarto da amiga dele, um tipo
que, pelos vistos, percebera imediatamente o problema e lhe passara a
chave para a mão. Talvez, em França, toda a gente compreendesse estas
coisas.
– É perfeito – disse ela. Sentou-o na cadeira, desabotoou-lhe a camisa,
sentou-se ao colo dele. Felizmente, era uma cadeira sem braços. Entalaram-
na entre a secretária e a parede para que não rolasse. Ela levantou o vestido,
afastou as cuecas e sentou-se nele. Jake gemeu, puxou-lhe o soutien para
baixo e pouco tempo depois, assustadoramente pouco, estavam ambos
despachados. Tudo não passara de um estremecimento, um espirro, um
tique rápido e involuntário do corpo. Ele enrolou o preservativo usado
numa folha de papel de impressora.
– Não deixes isso no lixo aqui – disse ela. – Leva-o quando sairmos.
Estava deitada no chão, a esticar as costas. Jake pôs o papel amachucado
na cadeira e deitou-se ao lado dela.
– Está tudo bem? – perguntou.
– Sim, tenho é maneiras estranhas de lidar com os nervos.
Ele passou-lhe o dedo pelo queixo, pelo pescoço.
– Porque é que achas que nos encontrámos?
– Porque estavas bêbedo no avião.
– Quero dizer a nível cósmico. As pessoas não entram na vida umas das
outras desta maneira sem motivo. Porque é que o universo nos juntou?
– Disseste a nível cósmico?
– Não finjas que não acreditas nessas coisas. Nada é aleatório, não pode
ser. As pessoas que conhecemos, as pessoas com quem colidimos.
– Não penses que vou, sei lá... acabar por ficar contigo. Isto não é o
destino.
– Não era isso que queria dizer. Estou a ser filosófico. Nunca pensas
nessas coisas? Tipo, para onde vamos quando morremos?
– Credo, Jake, são duas da tarde.
– Eu acho que é como dormir – continuou ele –, mas ajudamos a sonhar o
mundo. Assim, tudo o que acontece aqui na Terra, todas as coisas estranhas
que simplesmente acontecem, a erupção de um vulcão, seja o que for, é
causado pelos sonhos coletivos de todas as pessoas que já viveram.
– Então estes ataques... houve muita gente a sonhá-los.
– Sim.
– Hum... – Desatou a rir. – Não. Isso não pode estar certo.
– Não acredito mesmo que seja verdade. Mas gosto de pensar que sim. O
mundo é tão estranho, às vezes, que é a única coisa que faz sentido.
– Achas que somos controlados pelos mortos.
– Certo.
– Vou contar-te um segredo – disse, e Jake virou-se para ela. Fiona tinha
uma ligadura nova na mão, e puxou um fio da gaze. – Somos nós que
estamos encarregados deles. Por exemplo, o meu amigo Julian... Quando eu
pensava que ele estava morto, todas as coisas que alguma vez dissemos um
ao outro, todas as memórias que tinha dele, eram minhas. Uma das coisas
mais estranhas de o voltar a ver foi sentir que algo me tinha deixado. Uma
energia qualquer. Como o ar a sair de um balão.
– É um alívio ou estás triste? – quis saber Jake.
– Não estou triste, isso seria ridículo.
– Perdeste uma perda. Não deixa de ser uma perda.
– Obrigada, doutor Seuss! – Fiona sentou-se.
– O que foi, acertei no alvo? Eh, anda cá!
*
Depois de saírem, quando ligou o telemóvel, tinha uma mensagem de
Claire: estava tudo bem. E talvez amanhã, se Fiona e Cecily quisessem,
pudessem conhecer Nicolette e ficar com ela uma hora, enquanto Claire
estava a trabalhar, até Kurt conseguir vir buscá-la? A baby-sitter cancelara.
1990
costela partida não deixou Yale fazer tanto como gostaria no
A apartamento de Charlie. Teresa insistiu para que se sentasse no sofá
enquanto ela lhe trazia as caixas, uma após outra. As roupas de Charlie, que
Yale não queria. Os livros de Charlie, que também não queria. As coisas da
cozinha que tinham em tempos sido suas, mas que há muito substituíra. O
cachecol cor de laranja às riscas de Nico. Yale nem queria acreditar. Passou
os dedos entre a franja. Enrolou-o cuidadosamente num cilindro gordo.
Podia finalmente devolvê-lo a Fiona. Ali estava a sua camisola da
Universidade do Michigan, a cheirar a mofo como uma cripta. Tê-la-ia
Charlie guardado de propósito ou teria ficado enterrada debaixo de qualquer
coisa, sem que desse por ela? Ali estava o mapa de Chicago sobre o qual
Nico desenhara, ilustrando os sítios onde tinham estado todos juntos – um
Richard minúsculo com a sua máquina fotográfica em Belmont Rocks, um
Julian minúsculo, com um tabuleiro de comida na mão, junto à loja de
sanduíches onde trabalhara, Yale com uma boina de artista em frente ao
Instituto de Arte. Sim, guardaria isto.
Quando esticou a mão para lhe pegar, Teresa disse:
– Não te mexas tanto. Se não respirares até ao fundo, ainda acabas com
uma pneumonia.
Sabia bem ter uma mãe a tratar dele. E, agora que Charlie partira, não se
sentia culpado por aproveitar a pouca energia maternal que restava a Teresa.
Assim, ficou sentado no sofá que, tantos anos depois, ainda se moldava
suavemente à forma do seu corpo, e deixou que ela lhe trouxesse chá com
mel, e deixou-a encher duas caixas grandes com coisas que sabia que
provavelmente nunca chegaria a tirar delas.
O apartamento estava na mesma, de forma bizarra. Charlie não alterara
minimamente a decoração, não acrescentara nada às paredes. Os mesmos
ímanes no frigorífico, a mesma plantinha triste no parapeito da janela. Yale
ficou contente. Teria sido complicado, de alguma forma inexplicável e
injustificada, ver as provas físicas de como o mundo de Charlie continuara a
girar. Ou talvez quisesse apenas acreditar num mundo em que o seu
apartamento ainda existia, em que seria para sempre 1985, em que a porta
podia abrir-se a qualquer momento e ali estaria Julian com um convite para
uma festa, Terrence com cerveja, Nico com uma nova tira de banda
desenhada para Charlie.
– Não vais voltar ao trabalho, pois não? – perguntou Teresa. – Nem
sequer passes por lá! Já sabes como são as pessoas, vais só ver se está tudo
bem e, quando dás por ti, tens um monte de papéis na mão. Diz-me que vais
ficar em casa a descansar e mais nada.
Yale garantiu-lhe que ia tirar o tempo que fosse preciso. Uma das
melhores coisas da DePaul era o pouco investimento emocional que ele
tinha no trabalho. De momento, andavam a angariar fundos para um novo
parque de estacionamento coberto.
Não conseguiria levar as caixas para casa, mesmo de táxi, por isso
prometeu regressar na semana seguinte, quando Teresa viesse novamente a
Chicago. Ela andava entre a Califórnia e Chicago desde que Charlie
morrera, em dezembro, e Yale só queria que ela fosse passar um mês nas
Caraíbas, a apanhar banhos de sol e a dormir.
– O facto de aquela planta ainda estar viva – disse-lhe – significa que a
Teresa anda a fazer demasiado.
Ligou a Asher, que se oferecera para o ir buscar. Era a primeira vez que o
via depois da manifestação, depois do beijo. Yale fora o último a entrar na
carrinha da polícia, por isso, embora Asher tivesse sido detido minutos
depois, não chegou a vê-lo – em parte porque, graças aos gritos insistentes
de Fiona sobre advogados, Yale fora enviado para o hospital, em vez de ser
fechado numa cela com os outros.
Asher disse que demorava cinco minutos. Yale encostou a cabeça ao sofá,
cheirou o tecido. Teresa andava a aspirar.
– Tenho uma história sobre este mapa – disse Yale, referindo-se ao mapa
com os desenhos de Nico. Ela parou de limpar e sentou-se no chão em
frente dele, com as pernas dobradas e o queixo apoiado nos joelhos. – Está
a ver este carrinho que ele desenhou aqui? – Yale apontou. – Estávamos no
carro do nosso amigo Terrence, e éramos para ir pela autoestrada em
direção a sul, mas acabámos por nos desviar para oeste, pela Eisenhower. O
Terrence não tinha sentido de orientação nenhum. Estranho, para um
professor de Matemática, não é? Bom, saímos da autoestrada, perdemo-nos
e fomos parar a um bairro terrível. – Yale lembrava-se de estarem todos a
encolher-se nos bancos, como se isso os pudesse manter em segurança. –
Mas depois de uma grande volta lá encontrámos uma data de ruas com
nomes de presidentes, e achámos que era bom, porque estão por ordem e
vão dar à Baixa, à zona do lago. O Charlie estava sempre a queixar-se de
que nunca conseguia orientar-se na Baixa porque não se lembrava do nome
dos presidentes. Se as ruas tivessem nomes de membros da monarquia
britânica, seria mais fácil. Assim, estávamos às voltas pelas ruas dos
presidentes, Madison, Monroe, Adams, Jackson... e naquela parte da cidade,
antes do Van Buren, há uma ruazinha chamada Gladys Avenue. E o Charlie
disse: «Houve um presidente Gladys?» Estava a falar a sério. O Terrence
nunca o deixou esquecer-se disso, meu Deus. De vez em quando, punha-se
a inventar factos sobre o governo de Gladys.
Teresa soltou uma risada breve e forçada.
– Não estou a contar bem a história – disse Yale.
– Não, eu gostei. Gostei muito. Ele tinha amigos tão bons, não tinha?
Encontrou uma família, aqui.
E nessa altura soou a campainha, aquele som do seu passado distante.
Yale beijou Teresa no rosto e ela disse-lhe outra vez para andar com
cuidado, para respirar bem fundo.

Asher não tinha carro.


– Está um dia demasiado bonito para conduzir – disse.
Yale garantiu-lhe que podia andar – na verdade, só lhe doía quando se
dobrava ou virava – e Asher sugeriu que dessem um passeio até St. Joe,
onde tinha um compromisso às duas.
– Depois chamo-te um táxi de lá – disse.
Yale estava demasiado nervoso para conseguir falar normalmente. Deu
por si a tagarelar sobre nada e, depois, a mergulhar em longos silêncios.
Asher teve de fazer um desvio por Halsted Street, para levantar dinheiro.
Enquanto guardava as notas no bolso, disse:
– Já ouviste a notícia do County? – Não, Yale não ouvira nada. – O
Hospital de Cook County está agora oficialmente, rufar de tambores, por
favor, a tratar doentes de sida do sexo feminino.
– A sério? Tão depressa? Mas por causa da manifestação?
– Não acreditavas que resultaria, pois não? Ouve, Yale, não estou a
inventar. Esta merda resulta. Quero que continues envolvido.
– Vou pensar nisso.
– Tenho de te dizer uma coisa. – Viraram novamente para a Briar, embora
houvesse caminhos mais diretos para St. Joe. – Tenho estado a adiar dizer
às pessoas, e especialmente a ti. Mas vou mudar-me para Nova Iorque.
– Oh... – Sentiu uma pontada de dor na costela, apesar de não se ter
dobrado nem virado.
Estavam outra vez em frente do apartamento, em frente do mesmo sítio
onde lhe tinham partido o coração quatro anos antes, portanto porque não
parti-lo outra vez no mesmo sítio? Sentiu as faces a arder. Não os olhos,
mas as faces – que estranho. Asher parou e virou-se para ele.
– Há coisas que posso fazer com a ACT UP de lá, a nível nacional, que
causarão muito mais impacto do que aqui, em Chicago.
– Sim, quem é que precisa de Chicago?
– Yale...
– Desculpa. Não, eu sei que isso é bom. É muito bom.
– Ouve, a verdade é que eu nasci para lutar. Nasci zangado. Odiava o meu
pai, odiava o mundo, estou sempre a provocar discussões com
desconhecidos, não é? E olho para trás e tudo faz sentido, porque talvez eu
tenha nascido para isto. Talvez esteja a tornar-me religioso, não sei, mas
sinto que estou aqui por uma razão.
Yale olhou para tudo o que não fosse Asher e acenou com a cabeça.
– Sabes o que o Charlie disse sobre ti, uma vez? Disse que, se não te
tivéssemos, teríamos de te inventar.
Asher riu-se.
– Bom, mas têm-me. E tiveram-me. E ainda me tens, só que...
– Eu sei.
Recomeçaram a andar. Podia pedir-lhe que ficasse. Podia beijá-lo outra
vez e dizer-lhe que faria tudo, se ele ficasse em Chicago. Mas não
resultaria. Asher podia retribuir o beijo, mas não havia nenhuma versão do
futuro em que Asher preferisse o amor – o amor temporário, frágil,
sobrecarregado pela doença – à luta. (E quem é que queria enganar? Não
era amor. Era atração. Era uma semente que talvez pudesse ter crescido se
tivesse mais solo, mais luz.) Em todas as versões da história, Asher tinha
razão. Não devia ficar ali só para fazer Yale feliz durante um ano, três anos,
até estarem ambos demasiado doentes para fazer qualquer pessoa feliz.
Devia estar em Nova Iorque, aos murros às portas e a aparecer nas notícias.
De certa forma, Yale já lhe pedira durante a manifestação; e já recebera a
sua resposta.
Aqui estava a casa, a casa que Yale escolhera para si há mil anos, o
pedacinho de cidade que sonhara que fosse seu.
– Espera um segundo – disse.
– O que é?
Virou-se para a casa, fechou os olhos e pousou a mão na manga enrolada
da camisa de Asher. Queria mergulhar por cinco segundos no futuro que
podia ter sido, se não fosse tudo o resto. Teria terminado a relação com
Charlie, claro, e Charlie estaria agora num condomínio qualquer na Baixa, e
Yale teria esta casa e ele e Asher estariam juntos. Tinha a certeza. Asher
estaria a acender o grelhador no quintal. Fiona e Nico e Terrence vinham a
caminho, para jantar. Julian estava no alpendre com uma bebida na mão,
acabado de sair dos ensaios.
– Estás bem? – perguntou Asher.
Yale abriu os olhos e acenou afirmativamente.

Dirigiram-se a leste, até Belmont Harbor, e depois atravessaram o


parque.
Falaram sobre Richard, cuja exposição a solo seria no verão, numa galeria
no Loop.
– Quem diria que o Richard havia de fazer mesmo uma exposição? –
disse Asher. – Sempre achei que era tudo uma desculpa para conhecer
modelos.
Falaram sobre onde Asher viveria em Nova Iorque (Chelsea) e quando
tencionava partir (dentro de duas semanas) e com que frequência
regressaria a Chicago (de vez em quando, principalmente em trabalho).
Falaram sobre a costela partida de Yale, sobre o estúpido frasco de
Imodium que a partira, e como ele não se importava e faria tudo de novo.
Yale disse-lhe que Bill tinha deixado de fora o artista mais importante na
exposição da tia-avó de Nico, o homem que ela amara a vida toda.
– Era o objetivo – disse Yale. – Era o objetivo de tudo.
Asher disse-lhe que não devia ser ele a continuar com a procuração de
Yale.
– Precisas de alguém que possa estar no hospital de um momento para o
outro. Se eu estiver em Nova Iorque, não posso tomar decisões por ti.
Devias pedir à Fiona. Eu preparo os papéis.
Yale podia ter protestado, dito que demorava o mesmo tempo a chegar ao
hospital de carro desde Madison do que de avião desde Nova Iorque, e
podia ter dito que não suportava fazer uma coisa dessas a Fiona, mas Asher
tinha razão. E não havia mais ninguém, não restava ninguém em quem
confiasse da mesma maneira.
– Quando adoeceres, ela já terá terminado a universidade. Tens muito
tempo.
Yale disse:
– Antes, tinha medo que o Reagan carregasse no botão, sabes? E de
asteroides, essas coisas. Mas depois compreendi uma coisa. Se pudéssemos
escolher onde viver, na cronologia da Terra... não escolherias o fim? Assim,
não teríamos perdido nada. Se morresses em 1920, perderias o rock and
roll. Se morresses em 1600, perderias Mozart. Não é? Quer dizer, os
horrores acumulam-se também, mas ninguém quer morrer antes do fim da
História.
«E eu acreditava mesmo que seríamos a última geração. Quando pensava
nisso, quando me preocupava com a morte, pensava em toda a gente, no
planeta todo. E agora... não, és só tu, Yale. Tu é que vais perder o que aí
vem. E nem sequer estou a falar do fim do mundo... quer dizer, esperemos
que o planeta dure mais um bilião de anos, não é?... mas das coisas
normais.
Asher não respondeu, mas pegou na mão direita de Yale com a sua mão
esquerda, entrelaçou os dedos nos dele. Caminharam assim, com o coração
de Yale aos saltos por trás das costelas doridas.
Se Yale não fosse fisicamente incapaz de fazer sexo naquele momento, se
Asher não tivesse acabado de falar nas dores na perna e nas náuseas que os
comprimidos ainda lhe causavam, Yale talvez tivesse tido esperança de que
a tarde acabasse numa cama qualquer. Um momento único. Assim, as mãos
dadas eram um fim em si mesmo. Um reconhecimento, um mergulho no
mesmo universo paralelo que espreitara em frente da casa na Briar. E,
afinal, seria a amizade assim tão diferente do amor? Se removêssemos a
possibilidade de sexo, o momento era tudo o que importava, de qualquer
maneira. Estar aqui, agora, na vida de alguém. Arranjar espaço para alguém
na nossa vida.
– Olha para aqueles dois!
Uma voz masculina, atrás deles. Asher apertou mais a mão de Yale, antes
que este conseguisse sequer perceber o que se passava.
– Eh, Louise! Olha para aqueles dois!
– Não te vires – murmurou Asher.
Yale pensou que Asher fosse largar-lhe a mão, mas claro que não o fez.
Asher nem sequer acelerou o passo.
Uma voz de mulher, mais afastada:
– Bert, não sejas uma besta!
– Não sou eu que gosto de rabos! Ó meninas! Esperem aí um bocadinho,
está bem? Tenho algumas perguntas!
– Bert!
– Meninas, esperem aí.
Mas as vozes estavam mais distantes; talvez Louise tivesse apanhado
Bert.
Ao longe:
– Olha bem para aqueles dois!

Asher e Yale não disseram mais nada o resto do caminho até St. Joe.
Yale prometeu apanhar um táxi, mas não o fez. Foi a pé até ao El. Queria
estar perto de outras pessoas, numa carruagem apinhada. Queria ver a
cidade de cima, passar suficientemente perto das janelas para conseguir ver
as mesas da cozinha, as discussões.
O mundo era um sítio terrível e maravilhoso e, se não ia ficar nele muito
mais tempo, queria fazer o que quisesse, e o que mais queria fazer naquele
momento, além de correr atrás de Asher, era corrigir a exposição de Nora,
dar aos esboços e pinturas de Ranko Novak a oportunidade que mereciam.
Pensou em pessoas que o pudessem ajudar. Havia os Sharp, mas, depois
de tudo o que tinham feito por ele, não podia pedir-lhes outro favor. Já não
conhecia praticamente ninguém na Northwestern. Não podia de maneira
alguma arrastar Cecily de novo para isto. À sua frente, no comboio, ia uma
adolescente com uma fila de argolas na orelha. Fez-lhe lembrar Gloria.
Gloria estava no Trib. Gloria podia ajudar. Não fazia ideia como, mas ela
saberia.
Uma paragem antes da sua, um homem entrou no comboio, a coxear, e
por um momento pareceu prestes a saltar-lhe para o colo, mas depois abriu
um saco de lona.
– Boas meias para vender – disse, em voz entaramelada, a Yale e à
mulher sentada ao lado deste. – Um dólar o par. Dois dólares, três pares.
Tamanho único. – Tirou do saco uma embalagem de plástico com um par de
meias de desporto brancas, com riscas amarelas no cano. Pareciam
improvavelmente grossas e confortáveis. – Tem buracos nas meias? –
perguntou a Yale. – Vai sentir-se melhor com estas. Boas meias, vai sentir-
se melhor. Um dólar, muito melhor.
Yale procurou um dólar no bolso e deu-o ao homem, que sorriu,
desdentado, e lhe entregou as meias. Yale levantou-se para sair com o saco
na mão.
Uma dádiva da cidade, era o que lhe parecia. Qualquer coisa para pôr
entre si e a terra.
2015
iona e Cecily fizeram uma longa viagem de táxi até Montmartre, à praça
F onde Claire lhes dissera para esperarem. O tráfego estava terrível na
cidade inteira; toda a gente voltara à estrada, mas as estradas não tinham
voltado ao normal. Fiona não sabia se havia ainda carrinhas de televisão a
bloquear o trânsito ou se eram apenas as pessoas que conduziam
distraidamente, nervosas.
A Place Jehan-Rictus era uma extensão oblonga de passeio entre arbustos,
rodeada por uma cerca e muros baixos de tijolo. Os bancos verdes, se não
fossem os excrementos de pássaro, seriam encantadores para uma pessoa se
sentar com um livro numa tarde de verão.
Estava sol mas fazia frio, e Fiona já receava que Nicolette viesse mal
agasalhada, ao mesmo tempo que receava que Claire e Nicolette nem
sequer aparecessem.
Cecily olhou para o relógio e disse:
– Devia ter sido assim na sala de espera do hospital. Nós as duas à espera
do nascimento da bebé. Mais vale tarde do que nunca!
Percorreram o trilho, passando pelo pequeno parque infantil. Pararam
junto ao mural ao lado do parque, uma parede reluzente a imitar um quadro
negro, com letras brancas e riscos vermelhos.
– Deve dizer tudo «amo-te» – comentou Cecily.
Te amo num lado, uma mão a fazer o gesto de linguagem gestual para
amor do outro, a maior parte das palavras incompreensíveis para Fiona –
tailandês e braile e grego e o que talvez fosse cherokee. Por cima, a pintura
de uma mulher com um vestido de baile azul e as palavras num balão:
aimer c’est du dèsordre... alors aimons!
Fiona sentiu, como sentira na ponte, que Paris, ou os seus fantasmas mais
maliciosos, estavam a enviar mensagens diretamente para ela. Mas não era
verdade; esta era simplesmente uma cidade que falava de amor, que
reconhecia as invasões constantes do amor, as suas complicações. O que
aconteceria a Chicago, perguntou-se, se cobrissem a cidade de coisas como
esta? Se enchessem a ponte de Clark Street de cadeados pintados?
Cecily apertou-lhe o braço e virou-a: uma pequena menina loira, sentada
num carrinho, com as pernas a abanar. Por cima dela, Claire, a sorrir com
expressão insegura. Nicolette saltou do carrinho e passou por elas a correr,
na direção do parque infantil, com o casaco cor-de-rosa aberto, as galochas
largas a quererem cair-lhe dos pés.
Fiona e Claire abraçaram-se pouco à vontade e, depois, Claire e Cecily
apertaram as mãos com desconforto ainda maior. No meio de tudo o resto,
Fiona só agora se apercebera de que Cecily e Claire nem se conheciam. Era
possível que Fiona tivesse levado Claire ao colo em algumas das suas
visitas ao gato Roscoe, a casa de Cecily – mas essas visitas rapidamente
tinham começado a rarear. O elo que fora imposto a Fiona e Cecily no
quarto de hospital de Yale não tinha força para durar; o trauma nem sempre
era a melhor cola.
Fiona olhou para Nicolette, a trepar ao escorrega. Tinha-o todo para si e
era do tamanho perfeito para ela. Em pessoa, parecia-se menos com Nico
do que na fotografia e mais com Fiona, na verdade.
Claire chamou-a e ela correu para a mãe e escondeu o rosto nas pernas
dela.
– Podes dizer olá à Cecily e à Fiona?
Era estranho, mas talvez, se tudo corresse bem, pudessem em breve
escolher os seus nomes de avó. Avozinha, vovó, mimi. Mémère, até. Nem
se importaria de ser tratada por Fifi, um diminutivo que rejeitara a vida
inteira, mas que talvez soasse bem na boca de uma neta francesa. Queria
apertar Nicolette, acariciar-lhe as faces macias, mas não a queria assustar e
também não queria assustar Claire.
Claire deu-lhes um saco com o lanche de Nicolette, uma muda de roupa,
dois livros infantis. Disse-lhes que Kurt a viria buscar dentro de uma hora e
meia.
– E, se houver algum problema, podem ir ter comigo ao bar. – Ficava
apenas a dois quarteirões.
– Ela ainda usa fraldas? – perguntou Cecily, como se estivesse a lembrar-
se subitamente de um guião antigo.
– Claro que não. Mas não vai precisar de ir à casa de banho, é como um
camelo.
E deixou-as, depois de mais algumas indicações rápidas e de um abraço a
Nicolette – que olhou para as avós com interesse depois de a mãe partir,
mas que não parecia nada assustada. Devia estar habituada a baby-sitters.
Fiona sentou-se num dos bancos em frente ao parque infantil e tirou as
coisas do saco, para que Nicolette visse as bolachas, o copo de sumo, os
livros de Pénélope – uma pequena ratinha a jogar com as cores num dos
livros, a aprender sobre as estações no outro. Mas Nicolette, por enquanto,
queria apenas deslizar no escorrega, correr para as duas mulheres e sorrir
enquanto elas aplaudiam, voltar para o escorrega e repetir tudo de novo.
Tinham tempo para a chamar, para ver se ela se sentaria ao colo de uma ou
outra, se falaria com elas em inglês ou francês.
– É tão bonita – disse Cecily.
De certa forma, fazia algum sentido que Fiona tivesse escolhido esse
preciso momento para se inclinar para a frente a chorar, por mais absurdo
que fosse; era a primeira vez que Cecily mostrava alguma emoção
verdadeira e os canais lacrimais de Fiona pareciam ter visto isso como um
convite. Sentiu Cecily a olhar para ela com preocupação e, quando ergueu
os olhos, viu que Nicolette interrompera o seu circuito e estava parada à
frente dela, com a testa franzida.
– Caíste? – perguntou, num inglês tão perfeito, e claro que Fiona chorou
ainda mais.
– Está tudo bem, querida – disse Cecily. – Ela está só um bocadinho
triste.
– Porquê?
Que pergunta. Fiona conseguiu responder:
– Estou triste com o mundo.
Nicolette olhou em volta, como se houvesse algo errado com o pequeno
jardim.
– A minha amiga tem um globo! – exclamou.
– Não te preocupes, meu amor – disse Cecily. – Isto já lhe passa.
As palavras foram suficientemente convincentes para Nicolette, que
correu de novo para o escorrega, a imitar o barulho de um carro. Cecily
pousou a mão nas costas de Fiona.
– Mandei a mãe dele embora – balbuciou Fiona.
Era o que não tinha conseguido dizer a Julian no estúdio de Richard no
outro dia, o que tinha tentado afastar do pensamento, ao saber que Claire
tinha dado à luz sem a presença da mãe, o que zumbia baixinho por trás de
cada pensamento sobre Claire, desde que ela desaparecera, e antes, também.
O que só mencionara uma vez à psicóloga e mesmo assim resumindo a
história, minimizando-a, de tal forma que Elena mal dera por ela.
– Não compreendo.
– A mãe do Yale.
– O Yale? Fizeste o quê?
– Mandei-a... mesmo no fim. Eu estava lá, e tu tiveste de ir à Califórnia.
– Sim. Fiona, não podes...
– Não, ouve. Tu tinhas de estar na Califórnia, o que não foi culpa tua, e eu
estava grávida da Claire.
– Eu sei.
– Não sabes, não. Lembras-te que eu é que fiquei com a procuração? Isto
foi quando ele estava... quando teve aqueles problemas todos nos pulmões
ao mesmo tempo.
– Foi horrível – disse Cecily, mais como se estivesse a confirmar a
memória de Fiona do que a revivê-la pessoalmente. – Lembro-me que ele
mal conseguia dizer duas palavras. E a caligrafia indecifrável. Isso
incomodava-me; ele sempre tinha tido uma letra tão bonita. E escrevia
aqueles bilhetes e eu não conseguia...
– Teve alguns dias melhores. – Fiona sentia-se mal por a interromper, mas
precisava de dizer isto antes de perder a coragem. – No fim, e talvez tenha
sido na altura em que não estavas lá, parecia que os tratamentos estavam
finalmente a ajudar com os problemas dos pulmões e ele conseguia falar,
conseguia mesmo. Mas depois os rins falharam, por causa dos
medicamentos todos que lhe estavam a dar, e começou a acumular fluidos...
nem me lembro bem, mas a seguir foi o coração. Estava a afogar-se. Eu
disse isso aos médicos e eles responderam que não era bem assim, mas sei o
que vi. Ele estava a afogar-se.
– Lidaste tão bem com toda a situação – disse Cecily. – Nem imagino
como terá sido, mas foi a decisão certa, tirá-lo do ventilador. Era o que ele
queria.
Nicolette tinha-se fartado do escorrega e estava a fazer um montinho
muito arrumado de folhas secas. Fiona respirou fundo e tentou recomeçar.
– Para mim, ele esteve doente durante dois anos inteiros – disse.
Yale apanhara pneumonia pela primeira vez no verão de 1990, depois
daquela estúpida costela partida na manifestação. Conseguira recuperar,
mas não completamente; já tinha asma antes e a pneumonia enfraqueceu-o
mais do que seria de esperar. Depois, apareceu outra coisa, e outra, ao ponto
de ele dizer que o seu corpo era uma discoteca de infeções oportunistas e
que tinha batizado as células T que lhe restavam com os nomes dos
jogadores dos Cubs.
– E, depois, no fim... – Pousou as mãos nos joelhos, com os braços
esticados. – Quatro dias antes de o Yale morrer, a mãe dele apareceu no
hospital.
Cecily olhou para ela.
– Eu sabia quem era, por causa daquele anúncio do paracetamol, e sempre
que passava na televisão eu observava-lhe o rosto e tentava compreender.
Suponho que o pai dele... lembras-te que o pai dele apareceu umas poucas
vezes, mas não fazia nada senão estar ali sem dizer nada, era muito
desconfortável.
– Não me lembro disso.
– Bom, mas foi o que aconteceu. O Yale nunca pensou que o pai
mantivesse contacto com a mãe, mas pelos vistos eles falavam, ou o pai
conseguiu descobrir forma de a contactar e ela apareceu no hospital. Trazia
um vestido de verão amarelo e parecia tão nervosa. Era de noite. Ele estava
a dormir.
A expressão da mãe de Yale era tão parecida com a que ele fazia quando
estava ansioso – uma cara que fazia sempre lembrar um coelho a Fiona.
Isso podia ter feito com que amasse aquela mulher tanto como amava Yale,
mas, em vez disso, só intensificou a sua raiva – ver uma das suas coisas
preferidas em Yale no rosto da pessoa que o abandonara.
– E mandaste-a embora?
Fiona soltou um soluço que fez Nicolette erguer os olhos das folhas. O
cabelo da menina parecia translúcido à luz do Sol.
– Eu ainda não era mãe, na verdade. Eu... tudo o que pensei foi que ele
podia ficar transtornado por a ver. Mas também fui possessiva. Agora,
reconheço-o. Ele era meu, e aquela mulher apareceu e nem sequer pensei no
que ela estaria a passar. Ou no que lhe teria custado entrar naquele hospital.
Só pensei que ia matá-lo. Pensei que ele ficaria transtornado e imaginei-a a
interferir nos tratamentos, a tentar assumir o controlo, como os meus pais
tinham feito com o Nico. E odiava tanto a minha mãe. Acompanhei-a ao
elevador e carreguei no botão e disse-lhe que ele dissera especificamente
que não a queria ver.
– E era verdade?
– Sim. Por acaso, era. Foi uma das coisas que discutimos. Mas podia ter
falado com ele, quando estivesse acordado. Podia ter-lhe perguntado o que
queria fazer. E não disse nada. Tinha intenções de lhe dizer. Estava sempre
quase a dizer-lhe.
Depois, o que aconteceu foi que Fiona entrou em trabalho de parto e,
quando isso correu mal, teve de fazer uma cesariana de urgência e ficou
presa à cama pelos medicamentos por via intravenosa e pelas dores, uns
pisos acima dele, mas incapaz de percorrer o corredor até ao elevador. E
Cecily ainda não tinha voltado e Asher estava em Nova Iorque e não restava
realmente ninguém que pudesse sentar-se com ele. Pensou em ligar para
conhecidos e pedir-lhes que fossem ver como ele estava, mas Yale era mais
chegado às enfermeiras do que a antigos vizinhos, e as enfermeiras sabiam
o que estavam a fazer; já tinham segurado durante muitas horas a mão de
muitos homens que morriam sozinhos. Além disso, Fiona só precisava de
recuperar um pouco e depois podia voltar a descer ao terceiro andar, para
continuar a tomar conta dele.
Mas, entretanto, Yale mergulhou num estado de inconsciência profunda e
Fiona teve de tomar a decisão médica por telefone, com as enfermeiras da
maternidade a fitá-la, preocupadas. Mandava Damian lá abaixo uma e outra
vez com mensagens para Yale, apesar de ele já não ouvir nada, e quando
regressava obrigava-o a dizer-lhe como é que Yale estava.
– Tem tantos tubos ligados a ele – disse Damian. – Está com uma cor
estranha. Fiona, não sei. Estou tão cansado. Vou lá outra vez, se quiseres,
mas cada vez que lá estou penso que vou desmaiar.
A velha amiga de Yale, Gloria, e a namorada dela, faziam alguns turnos,
mas só à tarde. Quando Nico morrera, havia tantas pessoas que queriam
estar no quarto com ele, amigos que se debatiam por um lugar, que
competiam pelo papel de cuidador, para lhe pegarem na mão, para o
chorarem mais do que os outros. E agora não havia ninguém. Yale estivera
presente para Nico, e para Terrence, e até para o estúpido do Charlie, e não
restava ninguém ao lado dele, e isso dava cabo de Fiona.
Claire tinha trinta e seis horas de vida e a amamentação não estava a
correr bem, e Fiona, que se tinha preparado para um parto natural, mal
conseguia acreditar na dor lancinante que lhe percorria o corpo todo sempre
que tentava ajeitar o tronco, sempre que tentava sentar-se sozinha. Ao ponto
de ficar tonta e quase desfalecer. Nos cinco minutos que dedicara ao tema
das cesarianas, a instrutora de Lamaze nunca mencionara a dor, a
impotência. Fiona conseguiu ir à casa de banho agarrada a uma enfermeira
e quase desmaiou. Pediu se ela podia levá-la à unidade da sida numa
cadeira de rodas, e a primeira enfermeira disse que tinha de perguntar ao
médico, mas nunca mais apareceu. A segunda enfermeira disse que iriam de
manhã. Fiona podia ter insistido, mas as dores eram demasiado fortes e os
medicamentos estavam a dar-lhe sono e de manhã seria tudo mais fácil.
Claire ficou no berçário a noite toda, nessa noite, e Fiona dormiu até
tarde. Quando acordou, viu o rosto do Dr. Cheng. Ele fora lá acima
propositadamente. Quando se apercebeu da expressão no rosto dele, gritou,
um grito tão alto e primitivo que, se estivesse noutro sítio qualquer, toda a
gente viria a correr.
Foi esta madrugada, disse o Dr. Cheng. Debbie, a enfermeira de serviço,
estava com ele.
Mas não era suficiente.
Se Fiona não tivesse mandado a mãe dele embora, talvez ele tivesse
ouvido a voz dela, mesmo inconsciente. Talvez se tivesse sentido
reconfortado, a um nível profundo e infantil.
Nicolette aproximara-se e estava a abrir o pacotinho de bolachas. Cecily
deu uma palmadinha no banco e ela trepou e sentou-se com as pernas a
abanar.
Fiona tocou nos caracóis loiros, impossivelmente macios.
– Foi o maior erro da minha vida, Cecily – disse. – Acho que estou a ser
punida por isso até hoje. Afastei a minha mãe, mandei a mãe do Yale
embora, e tudo isso voltou anos depois para me cair em cima.
– Vives na América? – perguntou Nicolette.
Fiona limpou os olhos com a manga.
– Sim. Sabias que eu sou a mamã da tua mamã? E a Cecily é a mamã do
teu papá.
Nicolette olhou de uma para a outra como se estivessem a pregar-lhe uma
grande partida, como se lhe tivessem dito que uma era a Fada dos Dentes e
a outra, o Coelhinho da Páscoa.
– A tua mamã saiu da minha barriga, e o teu papá saiu da barriga da
Cecily.
– Mostra-me – pediu Nicolette, e Fiona levantou a camisola e apontou
para a leve cicatriz.
– Por aqui – disse, e Nicolette acenou com a cabeça.
– Mas não fez dói-dói?
– Nem um bocadinho.
Nicolette mastigou a bolacha e Cecily disse a Fiona:
– Não sei se isto ajuda, mas sempre que me sentia culpada por qualquer
coisa, quando era nova, a minha mãe dizia: «Como é que podes compensar?
O que é que podes fazer para te sentires melhor?» Sei que parece filosofia
barata, mas sempre me acalmou quando estava transtornada.
– Podia mudar-me para Paris – disse Fiona, e estava a brincar até ouvir as
palavras e perceber que não estava.
Nicolette queria os livros. Cecily sentou-a ao colo e contou-lhe a história
de Pénélope, do jogo que ela e os seus amigos animais estavam a jogar com
um baú cheio de roupas coloridas.
1991
iona esperava-os à porta da galeria e, assim que os viu, disse:
F – Salvem-me da minha família!
– Primeiro, ajuda-nos – pediu Cecily. Havia uma rampa, mas uma tira de
borracha mesmo na entrada estava a prender as rodas da cadeira de Yale, e
por isso Cecily teve de inclinar a cadeira de rodas para trás, enquanto Fiona
agarrava nos apoios dos braços e puxava para a frente, e Yale se segurava e
tentava encostar-se para não tombar quando o endireitassem.
A cadeira baixou com um baque que o abalou e fez o tanque de oxigénio
bater-lhe nas costas. Mas estavam lá dentro. Fiona ajudou-o a despir o
casaco.
– Temos exatamente uma hora – disse Cecily.
– Na realidade tenho duas horas de oxigénio – corrigiu Yale. – Ela está
apenas a ser cautelosa.
– E com razão! – exclamou Fiona. – E se houver um engarrafamento no
regresso? Nem acredito que te deixaram sair.
– Para que conste – disse Yale, enquanto elas o empurravam pelo
corredor em direção à galeria –, se alguma vez forem interrogadas perante
um juiz, eles não me deixaram sair, e o Dr. Cheng não me ajudou de
maneira alguma a roubar o oxigénio e a cadeira.
– Claro que não.
– Ele manda cumprimentos.
*
A galeria já se encontrava cheia. Yale estava vestido de forma demasiado
casual – todos os outros homens tinham gravata, e ele vestia uma camisola
velha que em tempos lhe ficara justa e agora parecia uma tenda –, mas de
qualquer modo ninguém reparava nas suas roupas.
Ali estava Warner Bates da ARTnews, a acenar e a apontá-lo a outra
pessoa qualquer. Warner viera entrevistá-lo no outono, logo a seguir ao
artigo inicial de Gloria no Trib. Trouxera um fotógrafo que fotografara Yale
sentado em casa, no sofá, a rir ao lado de Fiona. Yale ficava embaraçado
com tanta atenção, com a forma como estavam a dar importância ao papel
dele. A história de Gloria era sobre a coleção propriamente dita. «Setenta
anos depois», dizia o título, «um artista reclama o seu prémio.» Incluía
muitas citações úteis de Bill Lindsey, que nunca se apercebera de que o
tema do artigo era Ranko Novak. O artigo não era desonesto; nunca dizia
diretamente que as peças de Novak estariam na exposição. Contudo, ao
falar pormenorizadamente sobre as peças dele, sobre a sua vida e morte,
deixava no ar uma forte sugestão disso mesmo. «Ela queria que ele
recebesse o que merecia», dizia Yale, entrevistado para o artigo. «Queria
vê-lo ao lado de Modigliani.» O artigo, por si só, talvez não tivesse sido
suficiente para forçar Bill, mas a meia dúzia de outros artigos que se
seguiram em várias publicações de artes foram. De súbito, o nome de
Ranko ganhou lugar de destaque em todas as comunicações da galeria
referentes à exposição.
Yale viu Bill alguns metros mais à frente e Bill, ao vê-lo, ficou
aterrorizado. Virou-se novamente para a mulher de quem tinha acabado de
se despedir, perguntou-lhe qualquer coisa, conduziu-a rapidamente na
direção oposta. Bill não parecia doente. Cecily tinha-lhe dito isso,
atualizava-o de poucos em poucos meses em tom quase apologético, como
se Yale quisesse que Bill tivesse apanhado o vírus.
Por estar na cadeira de rodas, atrás das outras pessoas, Yale ainda não
conseguia ver nada. Reconheceu apenas um canto do quarto pintado por
Hébuterne.
Imaginara, em tempos, empurrar a cadeira de rodas de Nora até aqui, para
ela ver a exposição. Imaginara empurrá-la à frente das outras pessoas.
Ali estavam os Sharp, a dirigirem-se a ele. Esmé baixou-se para o abraçar
desajeitadamente com os braços magros. Esmé e Allen eram uns
verdadeiros santos, estavam sempre a ligar, para saber se ele precisava de
alguma coisa. Na sua primeira estada prolongada no hospital, Esmé levara-
lhe um monte de livros. Nunca seriam amigos íntimos, a trocar mexericos
num brunch, mas ambos se tinham oferecido para formar uma rede de
segurança por baixo dele.
– Vamos dar a volta? – perguntou Esmé.
Assim, enquanto Fiona era encurralada por um homem que queria
explicar-lhe detalhadamente como conhecera o marido de Nora, Cecily e os
Sharp guiaram-no pela exposição, pedindo licença às outras pessoas para
deixarem passar a cadeira de rodas.
A exposição estava montada num pequeno labirinto de paredes, com as
peças separadas por artista, mais ou menos em ordem cronológica, e Cecily
propôs que começassem pelo fim do circuito. Havia muitas explicações
escritas para cada conjunto. Na secção de Foujita, havia cartas e bilhetes
emoldurados. E ali, contra o campo de neve da parede da galeria, o seu
desenho a tinta de Nora com o vestido verde.
Nos anos desde que Yale vira as peças pela última vez, estas tinham
adquirido uma aura de obras de arte famosas. Era importante, porque já as
tinha visto e o seu cérebro guardava um espaço reservado para elas. Como
um velho amigo, reencontrado anos mais tarde numa esquina. Ou o manual
de História da escola secundária redescoberto e, graças à familiaridade
distante, consagrado a um pedestal.
Esmé empurrou a cadeira de rodas de Yale e passaram por um grupo de
pessoas que incluía os pais de Fiona, que nem olharam para ele, e Debra,
que olhou. No entanto, fitou-o com rosto completamente inexpressivo e
Yale pensou que ela não o reconhecera. Ela própria parecia diferente – mais
cheia, um pouco mais animada. Segundo Fiona, namorava com um
banqueiro de investimentos de Green Bay. Não era propriamente a vida de
aventuras loucas que Yale teria desejado para ela, mas já era qualquer
coisa.
Warner Bates da ARTnews apareceu subitamente à frente dele, a
bloquear-lhe a visão, e apresentou-o a um casal idoso que olhou para Yale
sem conseguir disfarçar o horror. Não lhes estendeu a mão; nunca lhes faria
tal coisa. Warner disse:
– É um triunfo, Yale! Espero que esteja muito feliz!
– E estou. Nem acredito que está finalmente a acontecer.
– Unicamente graças a si, sabe? – Warner virou-se para o casal. – Foi este
homem que possibilitou tudo isto.
Foram progredindo em direção ao início da exposição. E ali estava a
secção de Ranko, finalmente: as duas pinturas, os três esboços das vacas.
Fiona, que entretanto voltara a juntar-se a eles, apertou-lhe a mão, e Esmé
disse:
– Bom, aqui está.
Yale desejou que as peças fossem mais espetaculares, mas tinham sido
muito bem emolduradas e as placas informativas sobre Ranko eram uma
boa distração da simplicidade das vacas. A pintura de Nora como uma
menina triste tinha sido avivada pelo trabalho de restauro, e o seu vestido
era agora de um tom de azul muito mais interessante do que Yale
recordava.
E, finalmente, ali estava Ranko no colete de losangos. Yale não o via
desde que ficara a saber que era o retrato de Ranko e que fora Nora que
segurara no pincel. A etiqueta dizia «Autorretrato»; Yale transmitira essa
parte da informação, pelo menos. Parecia realmente pintado pela mão do
mesmo artista, pelo menos aos olhos de Yale, mas talvez, agora que
observava melhor, houvesse qualquer coisa mais hesitante nos traços; era o
trabalho de alguém desesperado por fazer uma coisa bem feita. Também
esta peça estava mais nítida depois do restauro. Não se tinha apercebido do
mau estado em que deviam estar as pinturas originais. Reparou numa
centelha prateada no meio dos caracóis escuros de Ranko. Aproximou mais
a cadeira de rodas, mas não ajudou a ter uma perspetiva melhor, portanto
afastou-a mais para trás.
Não estava doido: era um clipe. Não era a primeira coisa que se via ao
olhar para a obra, mas, agora que observava melhor, sim, e ali estava outro,
mais perto da testa. As formas eram distintas, e ela conseguira transmitir o
brilho da luz refletida neles. Teria sido ideia dela ou de Ranko? Teria ele
usado novamente a sua coroa no dia em que posara? Teria Nora
acrescentado os clipes depois de ele morrer? Que estranho, que
inexplicavelmente devastador: clipes de papel.
Queria rir, gritá-lo à galeria, explicar – mas só podia contar a Fiona.
Olhou para Esmé e disse apenas:
– Este é o meu preferido.
Um homem ao lado da cadeira de rodas de Yale disse à mulher:
– Ouvi dizer que tiveram de incluir tudo, que isso fazia parte do
testamento da senhora.
Mas aqui estava, e era um artefacto de amor. Bom – de um amor
impossível, condenado, egoísta e ridículo, mas alguma vez existira outro
tipo de amor?

Tinha passado uma hora e cinco minutos e Cecily saiu a correr, para ligar
o carro. Esmé empurrou a cadeira de Yale até à saída e ele teve uma última
oportunidade de olhar para a galeria. As pessoas com as suas belas roupas,
as orlas e os cantos de pinturas e esboços.
– Oh, bolas – disse Esmé –, esteve a nevar!
Havia um centímetro de neve no chão; os sapatos de Cecily tinham
deixado leves pegadas na direção do carro.
Yale despediu-se de Fiona com um abraço e disse-lhe para olhar com
atenção para o autorretrato de Ranko. Depois, disse a Allen Sharp:
– Se os pais se aproximarem dela, finja que está a ter um ataque, ou coisa
do género.
Allen correu à frente dele, a limpar a neve do caminho da cadeira de
rodas com os seus sapatos elegantes.
Allen e Esmé transferiram-no juntos para o banco do passageiro e
puseram a garrafa de oxigénio entre as suas pernas. Cecily disse:
– Já passa um quarto de hora, Yale. Não gosto nada disto.
Anoitecera. Cecily conduziu por Sheridan Road demasiado depressa, com
os flocos de neve iluminados a caírem à volta deles.
– Mais devagar – pediu Yale. – Não vale a pena termos um acidente.
– Se tivermos um acidente – disse ela –, levam-nos para onde queremos
ir, de qualquer maneira. E mais depressa.
– Está tudo bem – disse ele. – Valeu a pena.
– Sim? Estás contente? – Olhou para ele de soslaio. – Gostei das coisas
do Ranko. Gostei mesmo.
– Ela amava-o – disse Yale, em vez de a contradizer, em vez de dizer que
não fazia mal se não tivesse gostado. – Embora não devesse. Acho que foi
um daqueles casos em que não se consegue esquecer a primeira imagem
que se tem da pessoa.
– Nunca nos esquecemos disso – disse Cecily. – Quer dizer, mesmo para
os pais... os filhos nunca deixam de ser os nossos bebés, pois não?
– Tens razão.
À medida que estava mais doente, era cada vez com mais frequência que
pensava nas pessoas – em Charlie, claro, e em todos os outros ainda vivos
ou mortos – não como a soma de todas as desilusões, mas de todos os
princípios que tinham representado, todas as promessas.
– Acho que o teu relógio está adiantado – disse Yale, enquanto desciam
Lake Shore. 19:49. Faltavam onze minutos, mas ainda aguentaria algum
tempo se o oxigénio acabasse. Toda a gente estava a conduzir com cuidado;
Cecily não conseguia ultrapassar os outros carros.
– Esse relógio está atrasado – disse ela. – E tu nem sequer tens relógio de
pulso.
Yale fechou os olhos e reclinou um pouco o encosto.
Eram 19:56, segundo o relógio, quando pararam em frente ao Masonic.
O Dr. Cheng estava cá fora, no meio da neve, a congelar apenas com a
bata branca, à espera deles com uma garrafa de oxigénio cheia.
2015
a segunda-feira, dia 23 de novembro, exatamente uma semana depois da
N data prevista, a exposição de Richard, Strata, teve finalmente a sua
antestreia no Pompidou. Abriria ao público na quarta-feira, com uma
semana de atraso, apesar do gigantesco cartaz de lona colocado no exterior
do museu com as datas originais sobre a fotografia de Richard, bastante
mais jovem, com uma Kodak Brownie encostada ao olho. O nome
«CAMPO» estendia-se a toda a largura do cartaz.
Fiona convencera Claire a ir também. Adoraria poder acreditar que a
aquiescência de Claire tinha alguma coisa a ver com ela, com a
possibilidade de redenção e de passarem algum tempo juntas, mas, por
outro lado, Claire conhecia Richard desde pequena e também era uma
artista, ou queria ser. E tinha baby-sitter: Cecily insistira que preferia ficar
com Nicolette a calçar saltos altos e tentar falar francês.
Fiona, nervosa, chegou quarenta minutos adiantada. Tinha saído de casa
de Richard à hora de almoço, para lhe dar espaço para se preparar, e
instalara-se num café; agora vagueava pela loja de recordações do
Pompidou, onde combinara encontrar-se com Claire, a olhar para espátulas
de silicone coloridas e colares volumosos e livros de arte. Queria encontrar
qualquer coisa para Nicolette.
Estava a inspecionar uma garrafa de água às riscas, quando sentiu um
queixo no ombro. Julian. Há trinta anos que ele não lhe fazia isto, mas era a
barba por fazer dele, a forma como se aproximava por trás e aninhava a
cabeça no pescoço dela.
Virou-se para o abraçar e disse:
– Vejam bem quem é ele.
– Estás radiante! – exclamou Julian. Depois, murmurou: – O Serge
contou-me que arranjaste um amante aqui, mas, uau...
Fiona bateu-lhe ao de leve com a garrafa de água.
– Estou radiante por causa dos nervos.
Passara o fim de semana a procurar casas para arrendar em Paris onde
pudesse ficar um mês, dois, três. Conseguiria facilmente subarrendar o seu
apartamento em Chicago.
Na véspera, durante o pequeno-almoço, dissera a Cecily:
– E se nos mudássemos as duas para cá? Podíamos dividir um
apartamento. E se fôssemos... sei lá. Avozinhas em Paris. Parece um filme!
Podíamos fazê-lo, podíamos mesmo. Porque é que as possibilidades de
estudar no estrangeiro hão de ser desperdiçadas só com os jovens?
– Não – disse Cecily, e abanou convictamente a cabeça. – Estás mesmo a
pensar nisso?
– Quer dizer, até ela aceder a ir para casa comigo. Ou até... não sei. Mas,
ouve, quando éramos novas, mergulhávamos no futuro sem preocupações,
não era? Pelo menos era o que eu fazia. Não sei quando é que deixou de ser
assim.
– Não tens um cão?
– E um emprego. Quer dizer... hei de resolver o problema.
– Tens a certeza de que serás sequer bem-vinda?
– Não.
Explicou-lhe então as ideias que explorava enquanto tentava adormecer.
Podia trabalhar para Richard... ele não estava sempre a dizer que precisava
de uma assistente? Podia tomar conta de Nicolette, ajudar Claire em termos
financeiros ou a mudar-se para um bairro melhor. Na verdade, Claire podia
trabalhar para Richard!
Não explicou a Cecily as outras coisas em que estava a pensar: que seria
um recomeço, um recomeço muito adiado. Que praticamente nunca tinha
saído de Chicago. Madison não contava, pois estava sempre a regressar,
tinha tanta coisa a prendê-la à cidade. Que, trinta anos depois da morte de
Nico, chegara finalmente a altura de seguir em frente. Que talvez devesse
libertar o destino no mundo, tão facilmente como Jake largava a carteira
num bar, certo de que regressava sempre a ele.
Cecily suspirara e rira-se e batera com o garfo na beira do prato.
– Bom, eu venho visitar-te – disse.
Na noite passada, Fiona escrevera um longo e-mail a Claire, a explicar a
sua ideia. «Não respondas», começava por dizer. «Podemos falar amanhã.»
Portanto agora, além da ansiedade social inerente a esta antestreia, e além
da antecipação de ir ver as filmagens de Richard dos anos oitenta, estava ali
na loja de recordações à espera de ser rejeitada pela sua única filha.
Julian disse:
– Preciso desta almofada! O que é isto, Kandinsky?
Fiona não chegou a ver do que ele estava a falar, porque ali estava Claire,
com um vestido de algodão preto e botas pretas, o cabelo penteado em
ondas suaves. Parecia mais descontraída do que no bar ou no parque. Talvez
isto lhe parecesse menos uma invasão, ou talvez estivesse a habituar-se à
ideia de ver a mãe. Fosse o que fosse, ajeitou a alça da mala, deu um abraço
rápido a Fiona e inspecionou a secção de artigos para a casa, como se
estivesse à espera do que aconteceria a seguir.
– Quero apresentar-te o Julian Ames – disse Fiona.
Claire inclinou a cabeça e apertou-lhe a mão.
– O Julian era amigo do teu tio Nico – disse.
Que estranho era chamar-lhe isso, quando ele nunca fora tio de ninguém.
Mas tentara, durante a infância de Claire. Esta era a mesa de desenho do
teu tio Nico. O teu tio Nico também não gostava da gema do ovo. E agora,
por essa lógica, Nico era tio-avô. Santo Deus: o tio-avô Nico. Quem diabo
era esse? Um velho com óculos bifocais.
– A tua mamã tomava conta de nós todos – disse Julian.
Fiona viu Claire endireitar os ombros.
– Eu sei – disse. – Santa Fiona de Boystown.
Julian olhou de soslaio para Fiona. De súbito, ela pensou que talvez o
culto tivesse tornado Claire crítica da homossexualidade, lhe tivesse
ensinado que a sida era um castigo de Deus ou coisa do género. Não estava
a ver Claire deixar-se seduzir por esse tipo de conversa, mas na verdade não
sabia nada sobre esta desconhecida.
Claire pegou num conjunto de pratos de melamina com imagens de
Magritte, um deles com o cachimbo que não era um cachimbo num fundo
verde-vivo. Rodou-o e estudou-o atentamente.
Julian disse:
– Há anos que conto histórias sobre a tua mãe. Ela pensava que eu estava
morto e, o tempo todo, eu andava a falar sobre ela como se fosse sobre-
humana. E durante muito tempo não soube nem metade do que ela fez. Eu
deixei Chicago mas ela continuou.
Claire sorriu-lhe secamente.
– Bom, acabou por parar, por minha causa.
Fiona tentou perceber o que ela queria dizer.
– Eu nasci no dia em que o amigo dela morreu. Sabia?
Fiona murmurou, embora não fosse preciso murmurar:
– Ela está a falar do Yale. – E depois, em voz mais alta, disse: – Não, isso
não é verdade. Nasceste no dia antes de ele morrer. Claire, ouve, alguma
vez disseste ao Kurt que eu tinha dito que esse foi o pior dia da minha vida?
Porque eu nunca...
– Quase me matou – interrompeu Claire. Estava a falar apenas para
Julian, como se Fiona não estivesse ali. Julian, era preciso dizê-lo, não
parecia em pânico por se ver no meio daquilo. Talvez soubesse que era
apenas um vazio, uma câmara de ressonância, uma presença necessária. –
Sempre houve... quando eu era pequena, sempre houve uma parte de mim
que pensava que, se tivesse nascido depois de ele morrer, ela acreditaria que
eu era a reencarnação dele, ou coisa do género. Que até eu própria
conseguiria acreditar nisso. Desejei muitas vezes ter nascido nesse preciso
instante.
Embora Claire não estivesse a olhar para ela, apenas para Julian e para o
prato de Magritte, Fiona disse:
– Nunca foi uma competição, querida.
– Ha! – exclamou Claire, demasiado alto, mas não estava mais ninguém a
ouvir. – Hilariante.
Talvez isto fosse bom. Claire precisava de dizer as coisas mais cruéis que
conseguisse, para que estivessem cá fora e não dentro dela. Mesmo assim,
Fiona só queria desatar a chorar, o que não ajudaria em nada, portanto
conseguiu controlar-se. Julian aproximou-se mais dela e pousou-lhe a mão
nas costas.
Claire largou o prato e pegou noutro, este azul-céu, com o famoso chapéu
de coco. Uso externo, dizia a etiqueta do chapéu.
– Sei que ela fez o seu melhor – disse Julian.
– Estou a tentar fazer o meu melhor agora – respondeu Fiona. – Agora,
que és mãe, não consegues...
Mas Claire cortou-lhe a palavra.
– Ela só quer mudar-se para cá porque houve uma catástrofe. Quer apenas
estar perto do drama.
Julian parecia confuso.
– O que eu queria – disse Fiona – era estar perto da minha filha e da
minha neta. Gostava de compensar o facto de ter sido uma mãe horrível e
deprimida, e poder ser agora uma avó decente. Não estou a pedir nada em
troca.
Claire virou o prato como se quisesse ver o preço. Um silêncio pensativo
e resignado.
– Se calhar, não vão conseguir resolver isto tudo aqui na loja de
recordações – disse Julian.
– Não posso controlar onde vives – disse Claire. – Se queres mudar-te
para cá, não posso fazer nada.
Era tudo o que Fiona podia esperar dela, por enquanto.
– Posso dizer uma coisa – disse Julian –, enquanto nos dirigimos à escada
rolante? Porque se calhar está na hora de nos dirigirmos à escada rolante. –
Claire pestanejou e pousou o prato. Atravessaram o átrio. Julian continuou:
– Toda a gente sabe como a vida é curta. A Fiona e eu sabemo-lo
particularmente bem. Mas nunca ninguém fala sobre como a vida é longa. E
é... não sei se faz sentido. Todas as vidas são demasiado curtas, mesmo as
mais longas, mas também há pessoas que têm vidas longas demais. Quer
dizer... talvez só consigas compreender quando fores mais velha.
Subiu para a escada rolante e virou-se para olhar para elas.
– Se pudéssemos estar no mundo ao mesmo tempo e no mesmo sítio que
todas as pessoas que amamos, se pudéssemos nascer juntos e morrer juntos,
seria tão simples. E não é. Mas escutem: vocês as duas estão no planeta ao
mesmo tempo. Estão no mesmo sítio, agora. Isso é um milagre. Só queria
dizer isso.
Claire estava atrás dela e Fiona não conseguia ver-lhe o rosto, mas sentiu
a energia dela – tivera tanta prática nisso, e estava tudo a regressar-lhe à
memória – e, pelo menos, conseguia sentir que Claire não estava irritada,
não estava a revirar os olhos e a pensar quem seria este imbecil com os seus
discursos de motivação. Quanto a si, estava grata. Não se lembrava de
Julian ser tão inteligente, mas na altura ela também não o era. Muita coisa
podia acontecer em trinta anos.
Estavam quase no cimo da escada.
– Vira-te para a frente – disse Fiona –, antes que tropeces.
1992
ela primeira vez em três semanas, Yale conseguia respirar. Não muito
P bem, mas o suficiente para conseguir pronunciar várias palavras
seguidas, formular pensamentos e frases inteiras. Ainda ontem estivera tão
certo de que era o fim, de que cada inspiração só teria mais uma ou duas a
seguir. Parte dele pensava que devia guardar muito bem o ar, poupá-lo para
o dia seguinte, mas principalmente queria falar enquanto podia, dizer coisas
que não conseguiria dizer mais tarde.
Fiona estava sentada na cadeira ao lado da cama. Grávida de oito meses e
mesmo assim tão pequena – com uma camisola larga, ninguém diria.
Quando chegasse aos nove meses, prometera-lhe, deixaria de arriscar a
viagem de carro desde Madison. Porém, na última semana, tornara-se cada
vez mais claro que era bem possível que ela não regressasse a casa antes de
ele morrer.
A cânula do oxigénio fazia-lhe cócegas no nariz e conseguiu ajeitá-la sem
espirrar; espirrar doía. Era noite de piza – a pizaria Pat’s doava pizas todas
as semanas – e Fiona estava a comer uma fatia de pepperoni. Yale não
ingeria comida sólida há semanas, mas esta era a primeira vez que se sentia
um bocadinho invejoso por ver alguém comer – o que era bom sinal. Ou
seria bom sinal, se ele não soubesse perfeitamente que só se sentia melhor
porque lhe tinham alterado a medicação e estavam a enchê-lo de
pentamidina e anfotericina outra vez – reduzir esses remédios fora o que
deixara os pulmões chegarem àquele estado – mas que esses tratamentos
acabariam por lhe liquidar os rins e o fígado. O Dr. Cheng não dourara a
pílula. Um dos voluntários contara-lhe, há muito tempo, que, quando
alguém comia bem ao pequeno-almoço, era o fim – o doente não tinha mais
do que algumas horas de vida. Yale não ia tomar um bom pequeno-almoço,
mas estas inspirações fáceis pareciam-lhe tão nutritivas quanto sinistras. Os
barbeiros tinham passado pelo hospital hoje e até conseguira sentar-se para
isso, com a ajuda deles; tinham-lhe rapado a nuca e massajado as têmporas
com qualquer coisa que cheirava a menta.
– Os teus olhos parecem muito melhores – disse Fiona.
– Como é que estavam? – perguntou, mas na realidade não queria saber,
porque em breve estariam iguais, ou piores.
– Tinhas as pupilas tão dilatadas. Era como ver alguém preso dentro de
um tanque de água. Provavelmente era assim que te sentias. – Suspirou e
inclinou-se com algum esforço, para massajar os tornozelos inchados. –
Queres ver o canal de relaxamento?
Rafael entrou nesse momento e ficou com o andarilho entalado na porta.
Fiona teve de se levantar para o ajudar a soltar a roda.
– Venho fazer uma entrega – disse Rafael. – Envernizei-a para ficar
brilhante. – Estava a falar da pequena mandala feita de sementes que
segurava contra a pega do andarilho com o polegar, a mandala que Yale
fizera um mês antes, na sala de artesanato. O andarilho de Rafael não cabia
entre a cama e a parede, por isso deu-a a Fiona, para a dar a Yale. – A sala
de artesanato não é a mesma desde que não temos as músicas tristes e
terríveis das tuas bandas britânicas. Aquele tipo, o Calvin, apoderou-se da
aparelhagem e agora só se ouve a merda da música techno de que ele gosta.
Yale pegou na mandala, embora segurar em alguma coisa lhe fizesse doer
os braços. Não sabia o que faria com ela. Talvez a mandasse para Teresa, na
Califórnia. Ela ainda lhe escrevia uma carta todas as semanas.
– Hoje é a noite – disse Rafael. – Tenho alta e o Blake vem buscar-me
daqui a uma hora.
Fiona bateu palmas, entusiasmada, e Yale não sabia como ela ainda tinha
tanta energia.
– Estás pronto? – perguntou ela. – Tudo preparado?
– A malta da Open Hand já lá está a abastecer o frigorífico e ando a dar-
me muito bem sem o soro.
Yale ficou contente por Rafael não estar a falar em tom apologético. Fora
o companheiro de quarto perfeito. Antes de Rafael, Yale partilhara o quarto
com um homem alto, chamado Edward, que dizia constantemente que
nunca tinha sido tão feliz na vida, que a unidade 371 era o primeiro sítio
onde se sentia realmente integrado. Antes de Edward fora Mark, o
heterossexual desconfortável; antes de Mark, um homem chamado Roger,
cuja enorme família irlandesa e católica o cercara, enquanto a LMP lhe
roubava o controlo motor e a fala mas lhe deixava a função cerebral intacta,
pelo menos durante algum tempo. Num internamento anterior, Yale dividira
o quarto com um tipo que tinha dez frascos alinhados no parapeito da
janela, em cada um deles uma bolota plantada. Estava a tentar fazê-las
germinar antes de morrer, para poder deixar árvores a dez amigos.
E, depois de tudo isto, Yale estava deitado na cama, um dia, a recuperar
de uma punção lombar, quando ouviu porem alguém do outro lado da
cortina, acompanhado pelos sons habituais – enfermeiras a explicarem
como funcionava o soro, os botões de chamada, qualquer coisa sobre a sala
de fumo – e depois ouviu alguém dizer:
– Sabem o que eu quero no meu painel na colcha de retalhos do Names
Project? Um maço gigante de Camels, mais nada!
Mesmo antes de a enfermeira abrir a cortina, Yale já sabia que era Rafael.
Era a pessoa mais alegre a dar entrada na unidade 371. Rafael já tinha uma
rotina estabelecida, as suas enfermeiras preferidas. Sabia qual das
voluntárias deitava cartas do tarot se lhe pedissem. Desta vez, trouxera um
saco de cassetes VHS para a sala de convívio e um monte de fotografias
para enfeitar as paredes. Para ele, era como regressar a casa, ou pelo menos
fingia ser, e Yale teve a sensação de que, se Rafael não estivesse preso ao
soro, teria saltado da cama para lhe vir dar uma dentada na bochecha.
Nas poucas semanas que estiveram juntos, enquanto Yale ainda conseguia
respirar, tinham conversado todas as noites. Mexericos antigos, mexericos
novos, política, filmes. Quando os antigos funcionários do Out Loud
vinham visitar Rafael, fingiam estar ali também para visitar Yale. Mas
depois, uma manhã, Yale sonhou que estava a nadar no fundo da piscina de
Hull House, a olhar para cima mas sem conseguir vir à superfície – e,
quando acordou, deu por si a respirar aflito num quarto desprovido de ar.
– Vou ter saudades tuas – disse Yale.
Rafael encolheu os ombros e disse:
– Bom, não devo demorar muito a voltar.
Depois de ele sair, Yale sentiu-se cansado, mas nos últimos dias andava
com medo de adormecer. Não tinha medo de morrer durante o sono – nesta
altura, seria uma bênção –, mas sim de voltar a acordar debaixo de água.
Não tinha medo de fechar os olhos ao seu último dia, mas sim de os fechar
ao seu último dia bom. Assim, por enquanto, manteve-os abertos e fez
Fiona continuar a falar. Pediu-lhe para lhe cantar «Moon River» e ela disse:
– Ainda não sei a letra! – mas lá conseguiu cantá-la, com muitos risos
pelo meio.
Depois, Fiona disse:
– O Nico teria adorado isto. A sala de artesanato! Imagina! Suponho que
estou a imaginar uma versão dele que viveria um pouco mais. Quer dizer, se
ele adoecesse agora, e tivesse acesso aos medicamentos bons e tudo.
Naquela altura, as enfermeiras nem sequer lhe tocavam. E aqui estás tu, a
receber massagens.
– Bom, isso era antes de ter tubos por todo o lado. Mas sim, ele teria
gostado.
Ela parecia tão cansada. Tinha o cabelo sem vida e oleoso, o rosto
inchado. Devia estar em casa, a cuidar de si, a descansar antes da chegada
do bebé – e não a dormir numa tarimba desconfortável no quarto dele. A
maioria das pessoas não tinha sequer familiares que fizessem isso por elas.
Perguntou-lhe se estava bem.
– Doem-me as costas, mais nada – disse ela.
– Não precisas de dormir aqui.
– Mas eu quero.
– Fiona – disse ele –, odeio estar a fazer-te passar por tudo isto outra vez.
Preocupa-me o efeito que possa ter em ti.
Ela esfregou os olhos e tentou sorrir debilmente.
– Bom, é verdade que me traz más recordações. E parte-me o coração que
sejas tu. És a minha pessoa preferida. Mas eu sou forte.
– Mas é isso que quero dizer. Estou sempre a pensar nas histórias da Nora
sobre os tipos que ficaram traumatizados, depois da guerra. E isto é como
uma guerra, não é? É como se tivesses passado sete anos nas trincheiras. E
ninguém vai compreender isso. Ninguém te vai dar uma condecoração.
– Achas que estou traumatizada?
– Promete-me que vais cuidar de ti.
– Vou arranjar um psicólogo em Madison. Prometo. – Depois disse: – Há
alguém... alguém que gostavas que tivesse estado aqui e não esteve? Posso
ligar ao teu pai, se quiseres. Se tiveres algum familiar, algum velho amigo...
mesmo que seja desconfortável. Se eu tivesse uma varinha mágica, havia
alguém que quisesses ver?
– Não me apetece muito fazer conversa fiada com os meus primos.
Ela parecia perturbada.
– Se houver alguém no mundo que queiras ver, mesmo que aches que a
pessoa não te quer ver... Há alguém assim?
– Céus, Fiona, estás a fazer-me sentir um pobre coitado sem ninguém. A
menos que a tua varinha mágica possa trazer os mortos de volta à vida, não.
És pior que o capelão.
O capelão estava sempre a perguntar se Yale queria alguma coisa, se
queria conversar.
– Não – dizia sempre Yale, pelo menos quando tinha fôlego para falar –, e
sou judeu.
Uma vez, Yale vira-o a preparar-se antes de entrar no quarto, a compor
uma expressão o mais triste e piedosa que conseguia, a baixar os olhos para
a Bíblia que tinha nas mãos. Pouco tempo depois, viu o Dr. Cheng fazer
exatamente o oposto. Yale estava no corredor, à espera de que o viessem
buscar para fazer uma broncoscopia; o Dr. Cheng parou à porta de um
doente, a ler o processo dele, com ar abatido. Yale nunca o vira com essa
expressão. Ocorreu-lhe, pela primeira vez, que o Dr. Cheng era mais ou
menos da mesma idade que ele. E depois viu-o baixar os papéis, endireitar
as costas, respirar fundo, tão alto que Yale o ouviu a vários metros, e
transformar-se no Dr. Cheng que ele conhecia. Só depois bateu à porta.
Fiona desistiu das perguntas e aproximou a cadeira da cama, para poder
acariciar a pele entre as sobrancelhas de Yale. Ele já não suportava que lhe
tocassem em mais lado nenhum, mas naquele sítio ainda lhe sabia bem.
Yale fechou os olhos e disse:
– Quando eu era pequeno, costumava fechar os olhos no carro, quando
estávamos a dez minutos de casa. E depois tentava sentir, sentir aquela
última curva que era a entrada para o nosso caminho. Tentava não contar as
curvas, apenas sentir quando estava em casa. E geralmente conseguia.
– Eu fazia exatamente o mesmo – disse Fiona.
– E quando não conseguia respirar, fiz o mesmo mas com... sabes, com o
fim. E sei que vou fazê-lo outra vez. Vou estar aqui deitado, de olhos
fechados, a pensar: Pronto, é agora. Deve ser agora. Só que não é.
– Às vezes no carro também acontecia isso – disse Fiona. – Contigo não?
Parecia que tínhamos chegado e, quando abria os olhos, era só um semáforo
vermelho.
– Sim. É isso mesmo.
Ficou contente por ela não o acusar de estar a ser mórbido.
– Aquele brilho do semáforo vermelho – disse ela. – Lembras-te de como
era mágico o brilho da luz vermelha à noite? Quando éramos pequenos? Só
o facto de estarmos na rua depois de escurecer...
Ele lembrava-se.
Pensou que ia chorar, que o seu corpo seria sacudido por soluços secos,
mas Fiona parou de lhe acariciar a testa e, quando abriu os olhos, viu que
ela já estava a chorar e isso fez com que se contivesse.
– Eu estou bem – disse-lhe. – Não faz mal.
Mas ela estava a abanar rapidamente a cabeça e, quando se virou, Yale
viu a mão dela a apertar com força o varão da cama. Fiona estava pálida,
apesar de ter as faces coradas.
– Fiona, o que foi?
– Doem-me as costas.
– As costas?
– Acho que...
– Tem calma, tem calma.
Fiona inspirou uma golfada de ar, como se tivesse contido a respiração, e
talvez tivesse.
– O problema é que estou a sentir uns espasmos mais ou menos de dois
em dois minutos. Mas é nas costas.
– Parece que são contrações, Fi.
– Provavelmente são aquelas falsas, as Brixton não sei quê. Mas se calhar
devia... não, não faças isso! – Yale pressionara o botão de chamada. –
Porque é que fizeste isso?
– Se calhar é melhor não teres o teu bebé na enfermaria da sida.
– Não vou ter... ainda faltam quatro semanas.
– E eu só devia morrer aos oitenta.
Debbie já estava à porta.
– Desta vez não é por minha causa – disse Yale.
– Eu estou bem – garantiu Fiona.
– Não parece nada bem – respondeu Debbie.
– Vocês têm... há uma maternidade neste hospital, não há? Ou tenho de
entrar pelas Urgências?
– Oh! Bom, sim, é um serviço que prestamos. Todas as necessidades
cobertas no mesmo estabelecimento. Vamos lá buscar uma cadeira de
rodas.
– Nem sequer são muito más, as dores – disse Fiona. – Quer dizer, a
julgar pelo que se vê nos filmes, as mulheres a gritarem a plenos pulmões...
não são assim tão fortes. Só que são muito juntas.
– Vamos fazer o seguinte – disse Debbie. – Vou ligar para a maternidade,
vou arranjar alguém para a levar lá acima, não é preciso ir às Urgências, e o
Yale vai ficar aqui muito sossegado e eu fico com ele a noite toda. E a Fiona
pode voltar depois, mais magrinha ou com mais uns gramas. Combinado?
E Fiona, que parecia estar outra vez a suster a respiração, apertou a mão
de Yale e fez que sim com a cabeça.
– Mas eles... pode manter-me informada? Se vou ficar algum tempo lá em
cima, quero saber o que está a acontecer. Continuo a ter o poder de decisão,
certo? Mesmo que esteja lá em cima?
– Podemos ligar-lhe – disse Debbie –, e não imagina a rapidez com que
estes auxiliares correm.
Já estava a chamar alguém no corredor e a pegar no telefone de Yale para
ligar para o Bloco de Partos.

Quando Yale acordou a meio da noite, banhado em suor, Debbie ainda lá


se encontrava. Fiona estava a descansar, disse-lhe, e os médicos tentavam
atrasar o parto. O marido dela vinha a caminho, do Canadá, onde tinha ido a
uma conferência. Yale saberia assim que houvesse novidades. Entretanto, ia
mudar-lhe os lençóis.
Yale sentiu o coração estranho. Sentia-o a trabalhar com muita força,
como um punho a tentar abrir um buraco numa parede. E fora exatamente
isso que o Dr. Cheng dissera que ia acontecer.
– O problema de ter múltiplos patogénios em simultâneo – dissera ele – é
que vamos tratá-los a todos, mas os tratamentos podem não se dar bem uns
com os outros. E são muitos medicamentos, muitos fluidos. O risco é estar a
esforçar o coração, mais do que ele já está em esforço.
Em suma, o resultado quase inevitável era uma insuficiência cardíaca
congestiva – a mesma coisa que matara Nora. Como é que ela conseguia
parecer sempre tão serena?

De manhã, estava tudo muito pior. Debbie saíra e fora substituída por
Bernard. Bernard mudou-lhe o saco do cateter e Yale tentou perguntar por
Fiona, mas só conseguiu dizer o nome dela.
– Ela tem ligado para o balcão de enfermagem de dez em dez minutos,
não estou a exagerar – disse Bernard. – Para saber se você já acordou.
Ainda não há bebé.
O Dr. Cheng veio vê-lo e disse:
– Está a ganhar peso, o que, para variar, não é muito bom. Há uma
acumulação de fluidos no seu abdómen. O que significa que os rins e o
fígado não estão a trabalhar bem.
Yale sentia os dedos das mãos dormentes, devido ao baixo nível de
oxigénio no sangue e não tinha a certeza de conseguir sentir os dedos dos
pés. O seu coração parecia escalar uma montanha a cada batimento.
Quando andava na escola primária, a professora Henry fora hospitalizada
com pneumonia e o substituto, um homem que praticamente não fazia
senão contar-lhes histórias sobre o tempo que passara no Corpo de Paz,
tentara explicar-lhes a doença dela.
– Respirem fundo, o mais fundo que conseguirem – dissera –, e não
soltem o ar.
Eles assim fizeram e depois ele disse:
– Agora respirem outra vez e não soltem também esse ar.
Eles tentaram. Alguns dos miúdos desistiram logo e soltaram o ar todo
ruidosamente, perdidos de riso, mas Yale, que fazia sempre o que lhe
mandavam, conseguiu continuar.
– Agora respirem uma terceira vez, em cima das outras duas. É essa a
sensação de ter pneumonia.
No meio disto tudo, reconfortava-o de certa forma saber que tinha sido
avisado tão cedo. Que, sentado naquela sala de aula, com o seu corpo de
criança forte e saudável, sentira, por um segundo dos seus sete anos de vida,
como as coisas iam acabar.
O Dr. Cheng disse:
– Fale apenas com acenos de cabeça, está bem? Se eu não o conseguir
compreender, falamos com a Fiona. Quero saber se tenho a sua autorização
para parar com a pentamina e a anfoterrível. Isso significa o início oficial
dos cuidados paliativos. E quero dar-lhe morfina.
Era uma das coisas que Yale mais apreciava no Dr. Cheng, que ele
dissesse anfoterrível com aquela cara séria.
Yale recorreu a toda a sua energia para ser o mais claro possível, quando
acenou afirmativamente com a cabeça.

Acordou ao fim de algum tempo, não sabia quanto, e viu um jovem muito
alto ao lado da cama. Não conseguia focar os olhos, pelo que o rosto era
apenas uma mancha indistinta. A morfina era um manto quente e
entorpecedor em cima dele, dentro dele.
– Olá, sou o Kurt – disse o homem. – O filho da Cecily.
Yale tentou inspirar para dizer alguma coisa, mas tossiu muito mais ar do
que aquele que inalara e cada tossidela era um soco amortecido pela
morfina contra as suas costelas.
Debbie estava ali. Devia ser outra vez noite. Agora que pensava nisso, já
sabia há algum tempo que era Debbie que estava com ele. Sentira-a ao lado
da cama, já há um bom bocado. Ela sabia qual era o sítio entre os olhos
onde podia tocar-lhe.
– Desculpe – disse Kurt. – Não é preciso falar. A minha mãe pediu-me
para o vir ver e... – Yale percebeu que Kurt estava a olhar para Debbie, a
pedir-lhe autorização. – Trouxe o Roscoe.
Uma mancha cinzenta. Sempre que ia jantar a casa de Cecily, Roscoe
saltava para o colo dele e aninhava-se, como se soubesse exatamente quem
era Yale.
– A minha mãe volta da Califórnia na sexta-feira – disse Kurt. Yale não
fazia ideia de quanto tempo faltava para sexta-feira.
Kurt aproximou-se da cama mas não pousou Roscoe em cima dela.
Certamente não estaria preparado para a quantidade de tubos, de máquinas.
Talvez tivesse imaginado que encontraria Yale recostado nas almofadas, a
ler um livro.
– Tenho a certeza que ele gostou de o ver – disse Debbie. – Deixe-me
aproximá-lo por um bocadinho.
Pegou em Roscoe, que não colocou objeções, levantou a mão de Yale e
pousou-a sobre o pelo denso. Yale sabia, enquanto tentava mexer os dedos o
melhor que conseguia, que esta era a última vez que tocaria no pelo de um
animal, a última vez, na verdade, que tocaria fosse no que fosse além da sua
cama e das mãos das outras pessoas.
– Tenho de ir andando – disse Kurt.
Pobre rapaz. Yale queria dizer-lhe que podia ir, que não levaria a mal se
ele fugisse a sete pés.
Depois de ele sair, Yale conseguiu produzir um F quase inaudível com os
lábios e Debbie compreendeu.
– Está em trabalho de parto – disse. – Vai ter um lindo bebé cheio de
saúde. Assim que tivermos a notícia, venho avisá-lo.
Sabia que estava a sonhar, mas era como um sonho que nunca teria fim.
Fiona, sozinha na rua. Só que às vezes ele era Fiona, a olhar para o
carrinho de bebé que ela empurrava, um carrinho que primeiro estava vazio
e depois tinha gémeos e depois estava vazio outra vez. Passado algum
tempo, o carrinho desapareceu. E às vezes estava a olhar para Fiona, a
segui-la, ou por cima dela, a esticar a mão para lhe tocar no cabelo.
Fiona sozinha na Broadway Avenue, a caminhar em direção a norte. Uma
noite quente e abafada de verão, as janelas iluminadas à volta dela, mas as
ruas vazias. As janelas estavam vazias, os parques de estacionamento
também. Broadway Avenue na esquina com a Roscoe Street. Broadway e
Aldine. Broadway e Melrose. Broadway e Belmont.
Aviões cruzavam os céus e, muito ao longe, ouvia-se o trânsito, mas aqui
não havia ninguém. Fiona a abrir caminho entre bolsas de ar frio. Sentiu o
vento no pescoço e disse:
– Estão a respirar para cima de mim. Estão à minha volta. – Apanhou um
vislumbre de um rapaz adolescente sentado numa paragem de autocarro, a
escrever num diário com uma caneta de tinta permanente azul. Virou-se e
ele tinha desaparecido e disse: – Oh, ele era mais um...
E Yale – porque agora estava ali, atrás dela – tentou dizer-lhe que não,
que estava enganada, que esse rapaz tinha morrido nos anos sessenta, tinha
morrido no Vietname, e que também aqui havia outros fantasmas mais
velhos. Mas não conseguia emitir qualquer som, porque não estava
realmente lá.
Fiona estava agora em School Street, uma rua que Yale na realidade não
conhecia mas de cujo nome sempre gostara. Ruas com as suas histórias:
sempre tivera um certo fascínio por elas. Ainda havia alguma escola em
School Street? Bom, claro que sim. Ali estava, abandonada e coberta de
musgo. Estendia-se ao longo de quarteirões e quarteirões, e Fiona olhou
para o carrinho, para o bebé Nico. Porque sim, era Nico, ela dera à luz o
irmão e agora ele tinha apenas de começar tudo de novo. Estava enrolado
no seu próprio cachecol cor de laranja. Tinha uma coroa de clipes de papel.
Fiona disse:
– Ele ainda não tem idade para ir à escola.
E depois disse:
– Tem de esperar até ao ano 2000.
Mas não estava quase? Tinham regressado à Broadway Avenue e o ano
2000 estava muito perto. Era por isso que ia acabar tudo. A noite de Ano
Novo era o fim do prazo. O último homem gay morreria nesse dia.
E o bebé Nico?
– Passamos com ele às escondidas – disse Fiona, para ninguém. – Como
o bebé Moisés. Mas terá de jogar basebol.
Broadway Avenue e Briar Street. Broadway Avenue e Gladys Avenue.
Pobre Gladys, perdido na parte errada da cidade. Uma estátua do presidente
Gladys.
Fiona arrancou os folhetos colados nos postes e enfiou-os no carrinho
vazio. Era o trabalho dela, limpar as ruas. Arrancou cartazes de montras,
letreiros de lojas, ementas da entrada de restaurantes. Entrou num bar vazio
e cheirou os copos de cerveja meio vazios em cima do balcão.
E, embora Fiona continuasse sozinha, Yale já conseguia falar com ela e
disse:
– O que é que eles vão fazer com isto tudo?
Quando Fiona olhou para ele, Yale viu que a verdadeira resposta era que
ela viveria aqui para sempre, sozinha, que passaria a eternidade a limpar as
ruas. Mas disse:
– Vão transformar tudo num jardim zoológico – e Yale soube que isso
também era verdade.
Ela sentou-se no meio da estrada deserta, porque nunca mais haveria
carros a passar por aqui, e disse:
– Que animal há de ficar com o teu apartamento? Podemos escolher.
E porque ele se sentia agora muito quente, tão quente, como se tivesse
sido enrolado em mil cobertores, e porque o calor estava a invadir-lhe os
pulmões apesar de algo dentro de si estar frio, a transformar-se em gelo, na
verdade, Yale escolheu os ursos-polares.
2015
oram recebidos à entrada da Galerie de Photographies por um homem
F com uma bandeja de copos de champanhe. Fiona pegou num como quem
arranca uma pétala de flor, mas Julian recusou. Sorriu a Fiona.
– Vinte e quatro anos e oito meses de sobriedade.
Tinham chegado cedo; havia apenas duas dúzias de pessoas e metade
delas carregavam câmaras e equipamento de iluminação e fotografavam
avidamente os primeiros convidados.
Serge posicionara-se perto da entrada e Fiona cumprimentou-o com dois
beijos, mas não viu Richard.
Susteve a respiração e seguiu Julian, depois de se certificar de que Claire
ainda se encontrava atrás dela. Claire, contudo, dirigiu-se imediatamente à
parede, à fotografia gigante de uma boca que fora tão falada. Era uma boca
de homem, com os pontinhos da barba por fazer debaixo do lábio inferior.
A preto e branco, os lábios ligeiramente entreabertos. Devia ser vulgar, uma
coisa que se poderia ver numa exposição de fotografia de escola secundária,
mas era uma das coisas mais cativantes e estranhamente sexuais que Fiona
alguma vez vira. Havia uma sensação de movimento, como se a boca
estivesse prestes a abrir-se mais, a dizer alguma coisa. Como era possível
saber que estava a abrir-se e não a fechar-se?
Há anos que não pensava nisso, mas então lembrou-se, de súbito e com
grande pormenor, da inauguração da exposição de Nora na Galeria Brigg, a
primeira inauguração a sério onde estivera. Costumava lembrar-se mais das
ocasiões em que levara Claire a ver a instalação permanente no, por essa
altura, já enorme Museu Brigg de fama mundial. Falava-lhe sobre Soutine e
Foujita; mostrava-lhe o trabalho de Ranko Novak e dizia:
– Ela amou-o a vida inteira. Tanto tempo.
E pensava que talvez só fosse possível amar alguém tanto tempo se a
pessoa já cá não estivesse. Seria possível amar tantos anos uma pessoa viva,
com os seus defeitos? Falava a Claire sobre Yale e como ele conseguira as
peças, criando a exposição, mantendo o trabalho de Ranko na coleção, e
dizia:
– É daí que vem o teu segundo nome! O Yale estava no andar de baixo
quando tu nasceste, a ajudar-te a vir ao mundo com o pensamento! E
quando chegaste, do Céu, deixaste a porta aberta para ele poder sair.
Não lhe parecera uma coisa horrível de dizer, mas percebia agora que
sim, que era possível que uma criança tivesse compreendido mal, ouvido o
sentimento de culpa na voz de Fiona e assumido esse fardo. O que lhe
passara pela cabeça para fazer essas conversas? Talvez não estivesse a
pensar em Claire, de todo; talvez fosse um conto de fadas que precisava de
contar a si própria.
Fiona viu Corinne e Fernand no centro da sala, rodeados de fotógrafos.
Claire ainda estava a olhar para a boca e Fiona decidiu dar-lhe espaço.
Estava cada vez mais certa de que Claire não ia fugir da galeria.
Este trabalho era muito mais pós-modernista, muito mais multimédia –
Fiona gostava de ter o vocabulário para o descrever – do que tudo o que já
vira de Richard. Uma grande fotografia mostrava uma polaroide em cima
de um monte de papéis. A polaroide, por sua vez, era de um homem sentado
numa cadeira, com o rosto escondido nas mãos. Parecia ter sido tirada nos
anos oitenta, ou princípio dos anos noventa – talvez por causa da t-shirt
branca, dos mocassins – mas Fiona não o reconheceu. Ao lado estava a
fotografia da fachada de um edifício, com um X vermelho pintado sobre
três das janelas. Segundo a informação ao lado, Richard tirara a fotografia
em 1982, mas só acrescentara os X este ano. Percebeu que o nome da
exposição, Strata, tinha a ver com esta justaposição do antigo e do novo.
Encontrou a série Julian atualizada – com o Julian de 2015 a sorrir
maliciosamente. Mas não havia rosto nenhum numa fotografia de Richard
Campo que mostrasse apenas uma emoção. Julian parecia também
embaraçado e, ao mesmo tempo, triunfante.
Quase colidiu com Jake Austen.
– Aqui está a minha miúda! – disse ele.
Ela deu-lhe uma palmadinha no peito.
– Não sou a tua miúda, Jake. Mas é bom ver-te.
E era, na verdade. Nos últimos dez minutos, apoderara-se de si a sensação
de não saber em que ano estava – o ano da exposição de Nora, o ano do
desaparecimento de Julian, o ano em que levara Claire à Brigg pela
primeira vez, o ano do nascimento de Claire – e aqui estava um lembrete
em carne e osso de que era 2015.
– Olha! – disse ele. – Do filme. – Apontou para o outro lado da galeria,
onde estava aquele ator a que alguém na rua chamara Dermott McDermott.
Mas ninguém olhava para ele; estavam todos a olhar para Richard, que
acabara de entrar. Calças cinzentas, uma camisa cor de coral desabotoada
no pescoço, as faces a reluzir com a atenção. O seu amigo famoso. A vida
era tão bizarra.

Quando Fiona contornou a parede, Jake estava a brindar com uns jovens
britânicos e espalhafatosos e Julian já dera a volta à exposição e aproximou-
se dela.
– Está tudo bem com a tua filha? – perguntou.
– Sabe Deus.
– Vai correr tudo bem. Tenho a certeza. Tenho um sexto sentido para estas
coisas. E, meu Deus, ela é igualzinha a ti.
Fiona riu-se.
– Não é nada parecida comigo. O problema é esse.
– Estás a brincar? Não te lembras de ti própria? Eras a coisinha mais
teimosa... eras praticamente uma fera! Lembras-te quando disseste aos teus
pais que te enfiavas no caixão, se eles não nos deixassem ir todos ao velório
do Nico?
– Não houve caixão. Disse-lhes que me levantaria e diria a toda a gente.
– Sim, mas percebes o que quero dizer.
– Era a única forma de poder sobreviver.
Julian sorriu.
– E não é nada mau ser assim. Ouve, vais mesmo mudar-te para Paris?
– Estou a pensar seriamente nisso, sim. Durante algum tempo. Nem
acredito que estou a dizer isto, mas sim.
– Bom, estou orgulhoso de ti. Ouve, já viste?
– O quê?
– Bom, duas coisas, na verdade. Três coisas! Já me viste a mim? Achas
que fiquei bem?
– Ficaste fabuloso, Julian.
– Obrigado. Mais duas coisas. Isto. – Pegou-lhe nos ombros e virou-a
para uma caixa de luz do tamanho de uma janela panorâmica, montada na
parede e completamente coberta por provas de contacto a preto e branco.
Algumas tiras de fotografias estavam na horizontal, outras na vertical.
Algumas cruzavam-se. A peça chamava-se 1983. De ambos os lados,
estavam penduradas lupas grandes – e ainda bem, porque Fiona não queria
ter de tirar os óculos de leitura da mala.
Começou arbitrariamente pelo canto superior esquerdo. Fotografias de
uma festa qualquer, com demasiados homens em cada uma para conseguir
identificar alguém. Uma tira com fotos de um rosto que lhe pareceu ser
Katsu Tatami. Quatro seguidas do que parecia ser o desfile do Orgulho Gay
desse ano, com homens a agitarem bandeiras. Ali estava aquele tipo muito
alto que vendia cigarros avulso em Halsted Street. Ali estava Teddy Naples.
Eles beijavam-se e dançavam e relaxavam em sofás e usavam roupas
ridículas e faziam panquecas e apanhavam banhos de sol.
Esperava ver Nico, mas não o viu.
Julian disse:
– Olha.
Ali estava ela, com um braço à volta de Terrence. Num restaurante, ao
que parecia. Não se lembrava de ter sido tão bonita, tão alegre. Claire era
apenas um óvulo num ovário, mais uma coisa que Fiona ainda não
arruinara. À esquerda da fotografia estava Yale, de boca aberta, a falar com
alguém fora do enquadramento. Um espelho atrás de todos eles, no qual se
via uma sala cheia de mesas, com pessoas a comer, e o próprio Richard,
com o flash da câmara no lugar da cabeça.
Quis trepar para dentro da fotografia e dizer: «Fiquem onde estão.»
Não fora isso que a câmara fizera, pelo menos? Congelara-os para
sempre.
Fiquem aí, pensou. Fiquem aí.
Julian deu-lhe um minuto e depois disse:
– Estava a pensar no Hamlet. Sabes que entrei na peça três vezes e nunca
fui o Hamlet? Na verdade, estava a pensar no Horácio. Também nunca fiz o
papel dele.
Nesse momento, Fiona encheu-se de um amor ridículo e irracional por
Julian, por o que quer que ele ia dizer, porque conseguia sentir Nico ao lado
dela, e Yale e Terrence e os outros todos, a revirarem os olhos por Julian
estar, mais uma vez, a colocar-se no centro do momento, a mencionar o seu
teatro, que era uma coisa tão típica de Julian, e todos gostavam dele na
mesma e ela também ainda gostava dele.
– Toda a peça é sobre o Hamlet a tentar vingar a morte do pai – continuou
ele –, a tentar dizer a verdade, certo? E, quando morre, passa essa
responsabilidade ao Horácio. Respira cansado mais um pouco neste mundo
tão duro, para a todos contares minha história. Vês? Eu teria sido um
Hamlet fantástico. Mas que fardo para o Horácio. Ser aquele que tem de
carregar a memória. E o que se espera que faça com ela? Que raio é que o
Horácio faz no Sexto Ato?
Fiona encostou a testa à de Julian. Ficaram assim um instante, testa com
testa, nariz com nariz. O calor da pele dele penetrou-lhe na pele e aqueceu-a
até aos pés.
Ainda tinha a lupa apertada na mão. Queria chamar Claire, mostrar-lhe
estas fotografias, dizer-lhe o que Julian acabara de dizer, tentar explicar-lhe,
ou tentar começar a explicar-lhe, como fora a sua vida. Como esta
exposição podia começar a transmitir tudo isso, o palimpsesto que era o seu
coração, a forma como se podia escrever por cima das coisas mas nunca
apagá-las. Ela nunca poderia ser uma folha em branco.
Mas faria isso daqui a pouco. Claire ainda ali estava e não se ia embora, e
Julian estava a puxá-la pela galeria. A lupa caiu-lhe da mão e ficou a
baloiçar na sua corrente fina.
– Esta é a terceira coisa – disse ele.
As instalações de vídeo. Dois ecrãs mesmo ao fundo da galeria, afastados
um do outro. Julian parou com ela em frente do da esquerda.
– O outro é só espetáculos de drag. Este é que queres ver. – Mostrava
uma multidão num passeio, imóvel. – O Bistro – disse Julian. – Lembras-te
do Bistro, ou eras demasiado nova?
– A discoteca, não era? Lembro-me de toda a gente falar dela como se
fosse a Atlântida perdida.
– Bom, sim. É que era um sítio tão alegre. Havia outros sítios, claro, mas
não sei se alguma vez voltámos a ser tão felizes. Isto foi no dia em que a
demoliram.
Ela aproximou-se um pouco. O filme tinha som, mas era preciso estar
mesmo em frente à coluna para o ouvir.
Um homem na multidão a dizer:
– Era o maior sítio, o melhor sítio.
Outro homem:
– Era o nosso Studio 54. Não, esperem. Era a nossa Lua. Era a nossa
Lua!
Outro:
– Ninguém lhe vai falar da Mulher de Barba? Alguém que explique quem
era a Mulher de Barba.
E ali, santo Deus, estavam Yale Tishman e Charlie Keene. Charlie com o
blusão de aviador aberto, coberto de crachás. Yale com uma camisa, sempre
muito aprumado. Tão novos, tão impossivelmente novos. Quem é que
alguma vez fora tão jovem? A moverem-se facilmente, com os membros
soltos, os rostos cheios. E ali, mesmo atrás deles, estava Nico. O cabelo
revolto pelo vento. Fiona susteve a respiração.
Yale estava a dizer:
– Estou sempre à espera de descobrir que é uma partida.
Charlie, para a câmara:
– Foi aqui que eu o trouxe quando ele chegou à cidade.
Yale:
– Nem queria acreditar que podia existir um sítio destes.
Charlie:
– Querem saber o estado desta cidade, querem saber quem é que controla
a câmara? Olhem para isto. Acham que isto não é político? Acham que isto
é um acaso?
Yale:
– Tinham uns canhões de brilhantes e... uma vez, os canhões dispararam
estrelas de espuma. Nem imagino como é que fizeram isso.
Nico:
– Ainda estou de ressaca da festa de encerramento, e já foi há quatro
dias.
A voz de Nico.
Percorreu o pescoço e os braços de Fiona.
O edifício, pequeno e indefeso.
Uma voz fora da imagem:
– São os chefes da máfia que estão a acabar com este lugar.
Outra:
– Bom, não sabemos.
Charlie:
– Vão construir a merda de um parque de estacionamento.
Yale:
– Olha.
Mas não aconteceu nada. Uma imagem do edifício, no mesmo sítio.
Estático.
Nico:
– Agora. Olha.
A bola de demolição a descer, a colidir. Não a destruição que seria de
esperar, como um arranha-céus a cair. Apenas uma nuvem de poeira a
obscurecer a imagem e, quando esta assentou, um buraco.
Depois outro.
Alguém gritou «uh-uh!», como que por obrigação.
Um minuto arrastado e incómodo da bola de demolição a trabalhar e das
reações nos rostos. O rosto de Yale. O rosto de Charlie.
Fiona sentiu Julian pegar-lhe na mão. Esquecera-se onde estava,
esquecera a galeria e o museu e toda a cidade de Paris.
O filme avançou; era algum tempo depois.
O edifício destruído. Tudo derrubado, a poeira a assentar. As pessoas a
afastarem-se.
O som do vento.
A voz de Charlie:
– Espero bem que seja um parque de estacionamento do caraças.
Yale:
– Oh, meu Deus, olha.
Yale de joelhos, com as mãos na sarjeta.
Yale rodeado pelos outros, a mostrar-lhes alguma coisa.
Yale a mostrar à câmara: um punhado de poeira.
– Tem brilhantes! – exclamou.
Um homem que Fiona não conhecia espreitou por cima do ombro de
Yale.
– Isso não são brilhantes. Onde?
Parecia apenas poeira. Yale virou-se e espalhou-a na camisa de Charlie.
Yale e Charlie e Nico a rirem histericamente. Charlie a sacudir a poeira, a
espalhá-la no passeio. Nico a esfregá-la na manga do casaco de Charlie.
Um homem a espalhá-la na cara, uma mulher a dizer:
– Tenho a certeza de que isso é amianto.
Charlie ainda a rir:
– Vamos levá-lo para casa connosco!
Uma imagem da sarjeta cheia de poeira. Viam-se de facto uns pontinhos
brilhantes, mas podiam ser fragmentos de fibra de vidro. Com certeza que
eram. Mas Fiona tentou acreditar que era mais do que isso.
A voz de Nico mais uma vez, de fora da imagem:
– Estou pronto para o meu grande plano, senhor Campo!
A sarjeta e um longo silêncio.
Fiona esperava que o filme acabasse aí, mas, enquanto os risos se
desvaneciam, a câmara demorou-se num homem a prender o cabelo
comprido e escuro num rabo-de-cavalo. Numa mãe a passar pelos últimos
resistentes, com o filho pequeno pela mão. Em Yale e Charlie a descerem
do passeio, tão obviamente um casal – a centímetros um do outro, mas sem
se tocarem. À volta deles, um silêncio tão grande como a cidade.
Depois, o filme regressou ao princípio e recomeçou. Ali estavam todos, o
Bistro ainda de pé. Rapazes de mãos nos bolsos, à espera que tudo
começasse.
NOTA DA AUTORA E AGRADECIMENTOS
Embora estas personagens e as suas vidas sejam fictícias, mantive-me tão
fiel quanto possível a locais e acontecimentos públicos, tomando algumas
liberdades apenas quando necessário. Algumas dessas liberdades: para
evitar escrever sobre pessoas reais, reimaginei a imprensa gay de Chicago;
nenhuma das publicações aqui mencionadas existiu mesmo. Embora a
Galeria Brigg, fictícia, partilhe algumas características com o Museu Block
da Universidade de Northwestern, não é o mesmo sítio. A Wilde Rumpus
não foi uma companhia de teatro verdadeira, mas havia realmente
companhias gays, como a Lionheart, a funcionar noutros teatros. Alguns
dos acontecimentos descritos na marcha de 1990 contra a AMA foram
comprimidos. E, embora o restaurante Ann Sather tenha sido uma fonte
constante de apoio para a comunidade gay de Chicago, palco de muitos
eventos de angariação de fundos, não houve, tanto quanto sei, uma
angariação de fundos para a Howard Brown em dezembro de 1985.
Sentir-me-ia mal, se não dissesse que o novo recinto dos pinguins no
Jardim Zoológico de Lincoln Park é espetacular e os pinguins parecem
felizes; hoje em dia, não há sujidade e não é nada deprimente.
Não existe tanta coisa em forma de livro ou filme sobre a crise da sida em
Chicago como eu esperava, quando comecei este projeto. Felizmente, posso
recomendar algumas fontes excelentes a quem quiser saber mais. MK
Czerwiec escreveu um romance gráfico maravilhoso, Taking Turns, sobre o
período em que foi enfermeira na Unidade 371 da sida no Hospital
Masonic. Foi também amiga deste livro e a sua leitura foi valiosa. O
documentário Short Fuse, sobre a vida do fundador da organização ACT
UP Chicago, Daniel Sotomayor, é difícil de encontrar, mas vale sem dúvida
a pena vê-lo. Dois escritores, Tracy Baim e Owen Keehnen, tiveram um
papel crucial no registo da História gay de Chicago. Achei o seu trabalho
jornalístico e os seus livros muito úteis, e estou grata a ambos por me terem
concedido o seu tempo. Owen também foi brilhante como um dos primeiros
leitores do livro; se estiverem na cidade, façam-lhe uma visita na
Unabridged Bookstore.
Os arquivos online e as histórias orais disponíveis através do Windy City
Times – arquivos pelos quais Tracy Baim é maioritariamente responsável –
são um tesouro. O Windy City Times começou a ser publicado em 1985 e
estou grata à Biblioteca Harold Washington, por conservar essas primeiras
edições. (Por falar em Harold Washington, um pormenor relacionado: as
palavras que ele diz neste livro, no desfile do Orgulho Gay de 1986, são
realmente suas.) A Biblioteca Gerber/Hart é um recurso maravilhoso para
assuntos e história LGBTQ e forneceu-me materiais e ajuda essenciais.
Existem vídeos disponíveis no YouTube da marcha de abril de 1990 contra
a AMA, e recomendo vivamente que os vejam. O melhor relato escrito que
encontrei da manifestação é «The Angriest Queer», de 16 de agosto de
1990, no Chicago Reader. A série Marginal Waters do fotógrafo Doug
Ischar documenta maravilhosamente a vida gay em Belmont Rocks nos
anos oitenta; embora eu imagine o trabalho fictício de Richard Campo
como muito diferente do de Ischar, estou-lhe muito grata, a ele e aos outros
fotógrafos, tanto artísticos como jornalísticos, que fizeram com que a época
ganhasse vida para mim.
Este projeto envolveu muita reflexão, conversas e preocupação sobre a
linha divisória entre apoio e apropriação – uma linha que pode ser diferente
para leitores diferentes. A minha esperança é que este livro leve os mais
curiosos a lerem relatos diretos e pessoais da crise da sida – e que os
pormenores onde eu possa ter errado inspirem as pessoas a contar as suas
próprias histórias.
Agradecimentos ao mundo literário: Kathryn Court e Victoria Savanh;
Nicole Aragi, Duvall Osteen e Grace Dietshe; Eric Wechter; Francesca
Drago. Três intrépidos estagiários de verão que me chegaram por cortesia
da Universidade DePaul: Felipe Cabrera, Megan Sanks e Natasha Khatami.
Gina Frangello, Thea Goodman, Dika Lam, Emily Grey Tedrowe, Zoe
Zolbrod e Jon Freeman foram essenciais como primeiros leitores. Partes
deste livro foram investigadas e escritas em residências em Yaddo, Ucross e
Ragdale. Este livro, como tantos outros, não teria sido possível sem o apoio
da National Endowment for the Arts.
Um grande agradecimento a Maureen O’Brien, Patty Gerstenblith, Adair
McGregor e Cassie Ritter Hunt, pela sua ajuda nos temas de arte, heranças e
galerias universitárias; e a Paul Weil, Steve Kleinedler, Todd Summar, J.
Andrew Goodman, Michael Anson, Amanda Roach, Amy Norton, Charles
Finch e Edward Hamlin, por conversas e apresentações demasiado variadas
para as conseguir enumerar.
Lydia e Heidi, obrigada por serem tão boas a entreter-se sozinhas,
enquanto eu escrevia e fazia revisões.
Acima de tudo, o meu eterno agradecimento pelo seu tempo, paciência e
encorajamento a todos os que viveram estes acontecimentos e que se
sentaram a beber café comigo, ou me receberam nas suas casas, ou me
enviaram e-mails sem fim, em muitos casos sobre coisas pessoais e
traumatizantes. Além dos escritores já mencionados, obrigada a Peggy
Shinner; a TB; a Justin Hayford, do Legal Council for Health Justice (um
recurso incansável e um primeiro leitor maravilhoso); ao Dr. David Moore,
ao Dr. David Blart e a Russell Leander, que fizeram da Unidade 371 um
sítio maravilhoso; a Bill McMillan, que esteve em cima daquele parapeito
com a faixa; à inimitável e indómita Lori Cannon; e às memórias dos
homens espantosos que todos vocês me transmitiram. Fiz o meu melhor.
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