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Título: OS OTIMISTAS
Título original: THE GREAT BELIEVERS
Autor: Rebecca Makkai
Tradução: Elsa T. S. Vieira
Revisão: Rita Almeida Simões
Capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia da autora: Ryan Fowler
ISBN: 9789892346083
Então era esta a tia de que Fiona lhe falara na noite da véspera. A
coincidência deixou-o algo abalado: Fiona falar nisso meses depois de a
carta ter sido enviada e vê-la aterrar imediatamente na sua secretária. Iria
Teddy Naples aterrar-lhe também na secretária, conjurado pela mente
embriagada de Fiona?
Não sabia em que estado ia encontrar Charlie. Podia dar com ele meigo e
contrito, ou ainda zangado sem razão. Ou Charlie podia ter-se atirado ao
trabalho para evitar completamente a situação e ainda não ter chegado em
casa.
Porém, antes de abrir a porta, Yale ouviu vozes. Um alívio: muita gente
era bom. Charlie e dois dos seus funcionários, Gloria e Rafael, estavam
sentados à volta da mesinha da sala, a analisar números passados do jornal.
Charlie tinha o hábito de abusar da boa vontade dos empregados,
disfarçadamente, convidando-os para vir a casa dele à segunda-feira,
celebrar, depois de a edição dessa semana estar nas bancas. Dava-lhes
comida e punha-os outra vez a trabalhar, ali no meio da sala. Como editor,
Charlie podia não se envolver muito no jornal, mas participava em todas as
decisões, desde o apoio público dos vereadores à publicidade. Era
proprietário de uma agência de viagens com escritórios em Belmont e
canalizava todos os seus lucros para o Out Loud Chicago, desde que
fundara o jornal, três anos antes. Charlie nem sequer tinha particular
interesse em viajar ou em ajudar os outros a viajar; comprara a agência em
1978 a um amante mais velho com uma paixão assolapada por ele e pronto
a reformar-se. Hoje em dia, Charlie só lá ia uma vez por semana, para se
certificar de que a agência continuava de pé e para se reunir com os poucos
clientes que pediam especificamente a sua atenção. Não tinha qualquer
problema em dar autonomia total aos agentes, mas acreditava que os
redatores e escritores necessitavam de supervisão constante – o que dava
com eles em doidos.
Yale acenou-lhes, foi buscar uma cerveja e desapareceu no quarto, para
fazer a mala. Demorou alguns minutos a reparar na cama. Charlie escrevera
«DESCULPA» do lado de Yale, com M&Ms. Castanhos para o D, amarelos
para o E, e por aí fora. Sorriu e comeu três M&Ms cor de laranja da perna
do P. Os pedidos de desculpas de Charlie eram sempre tangíveis e
elaborados. O máximo que Yale conseguia fazer era deixar um bilhetinho
pouco inspirado.
Yale ponderava que camisola havia de levar quando Gloria o chamou à
sala. Gloria era uma lésbica pequenina, com as orelhas cobertas de brincos
até cima. Estendeu-lhe um exemplar antigo, aberto numa página com filas
de fotografias de homens musculados, cada qual a anunciar um bar ou um
vídeo ou um serviço de acompanhantes.
– Dá uma vista de olhos – disse ela. – Avisa-me quando vires uma
mulher. Ou alguém que não seja um tipo branco, já agora.
Yale não teve sorte na secção de classificados. Numa fotografia de uma
festa de Halloween em Berlim, encontrou duas drag queens.
– Não deve contar – disse.
– Ouve – interrompeu Charlie. Estava irritado. – Os classificados vão
sempre dominar a parte visual, e não podemos pedir a uma sauna que ponha
fotografias de... do quê, da mulher da limpeza?
Rafael disse:
– Sim, mas o Out and Out... – começou, mas fechou abruptamente a
boca.
O Out and Out era novo, fundado por três funcionárias que tinham
deixado o jornal de Charlie o ano anterior, ofendidas porque o Out Loud
Chicago continuava a relegar tudo o que tivesse especificamente a ver com
lésbicas para quatro páginas independentes, no fim. Yale era obrigado a
concordar – parecia regressivo, e os cabeçalhos eram cor-de-rosa –, mas as
lésbicas que tinham ficado com Charlie preferiam o controlo editorial que
ele lhes dava. O jornal novo era impresso em papel barato e não dispunha
de uma grande distribuição, mas, mesmo assim, Charlie resolvera não ficar
parado. A quantidade de fotografias de festas era a mesma, mas agora havia
mais ativismo, editoriais, críticas de cinema e teatro.
– O Out and Out não tem o mesmo problema porque não consegue
vender anúncios nenhuns – disse Charlie.
Yale tirou um punhado de pretzels do pacote aberto em cima da mesa e
Rafael acenou obedientemente. Fora nomeado editor-chefe depois de essas
três funcionárias saírem, mas ainda não aprendera a gritar mais alto do que
Charlie, e teria de o fazer. Era estranho, porque Rafael não era de modo
algum tímido. Era conhecido por ir direto a qualquer um e lhe saltar em
cima, se estivesse suficientemente bêbedo. Começara por fazer as críticas
da vida noturna – era jovem e bonito, com cabelo espetado, e trabalhara
como dançarino –, mas acabara por se revelar um excelente editor e, apesar
da deferência com que tratava Charlie, apesar da redução de pessoal, o
jornal estava melhor do que nunca. E mais moderno.
Yale disse, com a boca cheia:
– Gloria, nunca vejo muitas fotografias dos bares de fufas. Não podes
fazer mais reportagens?
– Não gostamos tanto de posar como vocês! – exclamou ela e, quando
Charlie ergueu as mãos, exasperado, riu-se de si própria.
– Fazemos o seguinte – disse Charlie. – Publicamos um anúncio de
quarto de página para a minha agência e colocamos duas mulheres na
fotografia. A caminharem lado a lado com uma mala na mão, ou algo do
género.
Gloria assentiu, apaziguada. Virou-se para Yale e disse:
– É difícil ficar zangada com ele, sabes?
– A quem o dizes.
– Quem é que quer café? – perguntou Yale. Olhou para Asher ao fazer a
pergunta, porque ela era na realidade sobre o envelope. Asher assentiu com
um aceno, levantou-se e foi tirá-lo do topo do frigorífico, mas ninguém se
dirigiu à cafeteira.
– Vamos tornar isto festivo – disse Asher. – Que tal uma pequena
cerimónia? – Tirou os papéis do envelope e pediu uma caneta a Charlie.
Terrence olhou para Fiona.
– Queres que me ajoelhe?
Yale olhou para Charlie, para ver se ele sabia o que se passava. Charlie
murmurou:
– Procuração.
Fazia sentido. Os pais de Nico tinham lidado de forma péssima com os
cuidados médicos de Nico – transferindo-o para um hospital que nem
sequer o queria lá – e, depois, tinham reivindicado também a organização
do funeral. Pelo que Yale sabia, Terrence não devia querer a família a tomar
decisões médicas por ele. Não via a mãe havia anos e não regressava à casa
onde crescera, em Morgan Park, South Side, desde que acabara o ensino
secundário. Mesmo assim, parecia um grande peso para colocar sobre os
ombros de Fiona. Era apenas uma miúda.
– Já preenchemos a parte das limitações, mas dá uma vista de olhos. E
tens de rubricar uma destas três – disse Asher, apontando. Tirou a tampa da
caneta e passou-a a Terrence.
– É a primeira que eu quero, certo? Não desejo medidas de
prolongamento de vida?
Asher pigarreou.
– Foi o que falámos. Mas lê bem.
Terrence demorou muito tempo a ler a folha.
– Oh! – exclamou Fiona. Parecia que tinha estado a tentar lembrar-se de
alguma coisa para dizer, algo para preencher o silêncio. – Tenho uma
história muito querida para vos contar! – Disse-lhes que uma das meninas
da família em casa de quem trabalhava como ama, a de três anos, conseguia
ouvir os leões e lobos do Lincoln Park Zoo à noite, pela janela do quarto, e
portanto partira do princípio, até há pouco tempo, de que as criaturas
vagueavam pela cidade depois de escurecer. Fiona pedira autorização à mãe
para a levar ao parque uma noite, depois da hora de deitar, para lhe mostrar
os animais presos nas suas jaulas.
– Eu costumava ir à procura de engates no jardim zoológico – disse
Charlie.
Terrence achou isto hilariante e pousou a caneta.
– É verdade! Lembras-te do Martin? Foi lá que o conheci. Bom, perto do
jardim zoológico.
Quando Yale o conhecera, Charlie andava com um tipo enorme, de barba,
chamado Martin, que tocava bateria numa banda de new wave péssima.
Yale nunca conseguira perceber como Charlie pudera passar de alguém
assim para um tipo como ele – pequeno e cauteloso. Nesse verão, quando
começou a estar mais tempo com eles, Yale percebeu facilmente que era
Martin que andava atrás de Charlie e não o contrário. Quando Yale
aparecia, ele pousava a mão no ombro de Charlie e deixava-a lá ficar o
máximo que podia. Quando Charlie convidou Yale para uma bebida pela
primeira vez, no balneário da piscina de Hull House, Yale já sabia que
Charlie estava disponível. Pelo menos emocionalmente.
Era engraçado: Yale gostava de ir nadar em Hull House precisamente
porque não havia lá uma cena gay; o único amigo que encontrava na piscina
era Asher, que provavelmente a escolhera pelo mesmo motivo. Era um sítio
frio e nada sexy. E depois Charlie começou a aparecer.
Nesse dia, Yale e Charlie estavam ambos molhados de nadar e Yale ficou
contente por poder justificar o rubor com o exercício. Soube mais tarde que
Charlie detestava nadar e andava a engolir cloro só para se cruzar com Yale.
Já eram amigos nessa altura, mas havia algo diferente – mesmo da forma
mais inocente – na intimidade dos balneários. (Mais tarde, quando as
pessoas lhes perguntavam como tinham começado a relação, odiavam
admiti-lo, relatar o que mais parecia o início de um filme porno.) Foram
beber um copo a casa de Charlie, e Martin rapidamente se tornou uma
memória distante, exceto nas primeiras vezes que se cruzara com Yale em
bares e saíra porta fora assim que o vira. Contudo, por causa do tamanho de
Martin, Yale sempre se sentira mais pequeno ao lado de Charlie do que
devia. Charlie era dez centímetros mais alto do que ele – dez centímetros,
cinco anos e dez pontos de QI, era a piada que Yale costumava fazer –, mas
mais parecia meio metro.
Asher perguntou a Terrence se tinha alguma dúvida e este finalmente
abanou a cabeça e rubricou os papéis. Assinou na última página com um
tremendo floreado, de cotovelo no ar.
Asher virou-se para Fiona.
– Precisamos de saber que tens a certeza.
– Tenho!
– Se alguma coisa correr mal – continuou ele –, se alguém contestar a
procuração, serei eu a esclarecer as coisas. Está bem? Mas, ouve, tens de
pensar no que pode acontecer, se a família aparecer.
– Preocupamo-nos com isso na altura, se acontecer – disse ela.
– Certo. – Asher estava a falar lenta e cautelosamente. – Mas o «nós»
pode não incluir o Terrence, se ele estiver inconsciente.
Yale reabasteceu o copo de vinho de Terrence e desejou que Asher
parasse de falar. Yale sabia que aquilo que Terrence mais temia era a
variedade da doença que o tornaria um vegetal ou – pior ainda, para
Terrence – que o faria andar pela cidade em estado alheado. Toda a gente
sabia que um amigo de Julian, Dustin Gianopoulos, na parte final da
doença, entrara na livraria Unabridged Books em pleno dia, com a diarreia
a escorrer para fora dos calções, pernas abaixo, e tentara comprar um monte
de revistas, maníaco e completamente fora da realidade. Como isto
acontecera em 1982 e ainda ninguém vira tal coisa, tinham corrido rumores
de que estava drogado. Yale e Charlie, e todos os outros, tinham-se rido da
história, até lhes chegar a notícia, duas semanas depois, de que Dustin
morrera de pneumonia.
– Sou uma veterana, Asher – assegurou Fiona. Assinou ambas as cópias
do documento e levantou os papéis como se tencionasse beijá-los, deixar
uma marca de batom.
– Não faças isso – disse Asher.
– Estava a brincar! Credo! – Riu-se e enfiou a caneta atrás da orelha.
Asher perguntou se Yale e Charlie assinariam como testemunhas; sim,
claro que sim.
– Vocês os dois já pensaram nisso? – perguntou-lhes depois. Há anos que
andava a pressioná-los para assinarem documentos, mas eles nunca mais se
decidiam e, entretanto, a análise aparecera e tornara o assunto menos
urgente.
– Devíamos tratar disso – disse Yale. – Para a próxima, está bem?
Terrence estava agora muito calado. Fiona abriu outra garrafa de vinho e
Yale já tinha perdido a conta a quantas tinham esvaziado, mas estava certo
de que Fiona bebera mais do que qualquer um deles. A colher escorregou-
lhe da mão e caiu ruidosamente na taça. Ela riu-se e todos a acompanharam,
exceto Yale.
Perguntou-lhe como tencionava ir para casa e ela apontou-lhe o dedo e
semicerrou os olhos.
– Pó de fadas – disse.
Yale e Charlie há muito que tinham bilhetes para ver Julian a representar
Hamlet, no Victoria Gardens.
– Bem – dissera Julian quando os convidara –, não faz parte do calendário
regular, é nas noites de folga.
O espetáculo era apresentado pela Companhia Wilde Rumpus e era assim
que funcionavam – nos teatros de outras companhias, nas noites em que a
casa estaria às escuras.
Era o último espetáculo para o qual Nico desenhara os cenários. Tinha
acabado de concluir os esboços quando adoecera e a companhia executara-
os o mais fielmente possível. Fora Julian que apresentara Nico ao mundo do
teatro, que o trouxera para a companhia. A verdade era que Nico era o tipo
de pessoa que levava a que os outros quisessem fazer algo por ele. Tinha
sempre um sorriso tão franco, parecia tão chocado e encantado quando
alguém se mostrava disposto a fazer-lhe o mais pequeno favor.
Yale correu para casa e despiu as calças sujas de lama, apenas para
descobrir que, de súbito, Charlie não tinha vontade de sair. Estava deitado
na cama, a olhar para o teto.
– Viste o que escreveram no Reader? – perguntou. – Disseram que a peça
era «desconcertante».
– É o Hamlet – respondeu Yale. – Claro que tem de ser desconcertante.
– Sabes quanto tempo tem o raio da peça? Vamos ser velhos quando de lá
sairmos.
Yale descalçara os seus sapatos e estava a enfiar novamente os mocassins
de Nico. Já tinham alargado um pouco, a pele assumira a forma dos seus
pés.
– Ah, é verdade – disse Charlie. – O teu pai ligou, acho eu.
O pai de Yale telefonava-lhe sempre nos primeiros dias do mês – tão
regularmente que Yale estava convencido de que se tratava de algo
planeado, um item a riscar da sua lista de afazeres, como verificar as pilhas
dos detetores de fumo. Não era um insulto; era apenas a forma como
funcionava o cérebro de contabilista do seu pai. No entanto, se fosse
Charlie a atender, Leon Tishman não deixava recado, simplesmente
balbuciava que era engano e desligava. Há cinco anos, quando estava tão
apaixonado por Charlie que mal conseguia conter-se para não o gritar a
plenos pulmões de cima dos telhados, Yale tentara dizer ao pai que tinha
uma relação. O pai começara a dizer «bop bop bop bop bop bop» ou coisa
parecida, um efeito sonoro para abafar a sua voz, para o impedir de falar.
– Já estava a estranhar ele ainda não ter ligado – disse Yale.
– Sim, mas não disse nada. Foi um bocado estranho. Só ouvi a respiração
dele.
– Podia ser um admirador secreto – brincou Yale. – Era uma respiração
ofegante?
Mas Charlie não se riu.
– Tens ideia de quem mais poderia ser? Porque foi realmente esquisito.
Yale não estava a gostar do rumo da conversa. Podia ter respondido em
tom defensivo ou podia simplesmente ter tranquilizado Charlie, mas disse
apenas:
– Bem, o Nico prometeu que nos vinha assombrar.
Charlie virou-se e escondeu o rosto na almofada.
– Não me apetece mesmo sair esta noite – disse, com a voz abafada.
– Anda lá, levanta-te. Vemos só a primeira parte, para podermos dizer que
vimos os cenários.
– Gostava de ver os cenários. Só não quero ver a peça.
– De onde é que saiu isto? É por causa do Julian? Não percebo. Não
podemos deixar de ter amigos só porque tu estás a passar por uma fase de
paranoia.
– Não comeces com isso – disse Charlie, e Yale ia abrir a boca para dizer
que não tinha sido ele a começar, mas Charlie sentou-se na cama e abriu a
gaveta da cómoda, para mudar de meias.
Yale dirigiu-se ao gabinete de Bill, com as pernas ainda a tremer, mas Bill
saíra. Deixou um post-it colado à porta dele: Tenho boas e más notícias.
Regressou ao seu escritório e começou a escrever uma carta para Nora –
teria de esperar pela autorização de Bill para a enviar –, a elogiar
efusivamente as fotografias e a dizer que, quanto mais depressa
começassem a trabalhar juntos, mais depressa as peças receberiam a
aclamação pública que mereciam. Acrescentou que talvez fosse melhor
manterem toda a correspondência em privado, por enquanto; esperou que
ela compreendesse que isto significava que não devia falar com o filho.
Ligou para Fiona e deixou uma mensagem: «Fizeste-me ganhar o ano»,
disse. «Tu, a tua tia e os artistas com quem ela andou enrolada.» Não ligou
a Cecily. Tal como ela própria dissera, não era chefe dele. E quando Bill
voltou, quando o apanhou ali, a olhar para as fotografias, tão derretido
como se fossem gatinhos recém-nascidos, e lhe falou sobre Chuck
Donovan, as ameaças dele e os seus dois milhões de dólares e a placa que
desaparafusara do Steinway, Bill encheu as bochechas de ar sem tirar os
olhos das fotografias e disse:
– Isto vale muito mais do que dois milhões, Yale. E estou a ser muito
conservador na minha estimativa. Quer dizer, olhe para isto. Olhe para isto.
Tenho a certeza de que saberá lidar com a Cecily. Você é o meu fazedor de
milagres.
No caminho para casa, Yale comprou flores e uma tarte de maçã. Sorriu a
desconhecidos no comboio e nem sequer sentiu o frio.
2015
iona dormiu bem, desde que Serge a trouxe para casa até cerca das três
F da manhã. Depois de acordar, ficou deitada em silêncio muito tempo,
pois não queria fazer barulho e acordar Richard. Afinal de contas ele era um
velho, não era? Por fim, voltou a adormecer e sonhou que o seu
companheiro de voo estava a nadar com ela numa piscina. Tinha uma coisa
que pertencia a Claire, e será que Fiona se importava de lha entregar
quando a encontrasse? Tirou-o do bolso dos calções de banho, devagar,
como um mágico. O cachecol cor de laranja de Nico.
Quando Fiona finalmente entrou na cozinha, Richard estava sentado à
mesa do pequeno-almoço, com o sol da manhã a iluminar-lhe o
computador, as mãos. Escrevia rapidamente no teclado, movendo os lábios
à medida que escrevia as palavras.
– E-mails – disse ele. – Alguma vez imaginaste que estaríamos um dia tão
soterrados em montanhas destas porcarias?
Fiona cortou uma banana em rodelas e perguntou se Serge já estava
acordado. Richard riu-se.
– A pergunta devia ser se ele já chegou a casa. E já chegou. Caiu na cama
deviam ser umas quatro da manhã.
Serge tinha vários namorados, disse-lhe, nenhum deles sério.
– Italianos, na sua maioria. Tem muito bom gosto, há que admitir.
Fiona sabia que não devia perguntar a Richard se isso não o incomodava.
Ele parecia divertido com toda a situação, com a juventude e a energia de
Serge. Richard espreguiçou-se voluptuosamente, um leão de roupão, um
Rei-Sol no seu trono. Fechou o computador e disse:
– Já viste este tempo maravilhoso? Só para ti. Quem me dera que
pudesses apreciar Paris. Fica para a próxima visita. Não sei quando morri,
mas isto é o meu Valhala.
Disse-lhe que tinham bloqueado a Rue des Deux Ponts durante a noite,
para as filmagens. Ela espreitou pela janela. Ainda não havia multidões nem
estrelas de cinema, mas viu alguns camiões e ouviu o som de buzinas
irritadas, quando as pessoas descobriam que não podiam passar. Richard
disse-lhe que podia atravessar a ponte para apanhar um táxi, mas ela não
queria um táxi. Embora lhe doessem as pernas, queria caminhar novamente.
Mas só se Serge fosse com ela, insistiu Richard. Não queria que ela se
perdesse por aí. (Não queria que ela desmaiasse sozinha, mas não o disse.)
Serge levantou-se, apesar dos protestos de Fiona, vestiu o casaco e saiu
com ela, metade do tempo a arrastar-se mais atrás como um sonâmbulo, a
outra metade a acelerar à frente e a decidir para onde deviam ir. Fiona
habituou-se a ver a parte de trás da cabeça dele – o cabelo escuro e leve, o
pescoço comprido e avermelhado.
Na véspera, sentada atrás dele na motorizada depois de saírem do café,
Fiona insistira para que a levasse à Pont de l’Archevêché – larga e quase
vazia. Um casal de noivos a posar para a fotografia, mas nada de Claire.
Claro que aquela ponte, qualquer ponte, seria o último sítio onde a
encontrariam. A vida não funcionava dessa maneira.
Agora desciam para a beira do rio, onde Fiona mostrou a fotografia de
Claire a todos os artistas que viu – os que vendiam telas do tamanho de
postais, o homem que fazia caricaturas, até um palhaço completamente
maquilhado que estava sentado a comer uma sanduíche. Serge ficou para
trás a enviar mensagens no telemóvel, a acender um cigarro, embora a sua
tradução por vezes tivesse sido útil.
– Elle est artiste – dizia Fiona, mas gostava de poder desenvolver,
explicar que a filha não era uma adolescente grávida, não era uma pobre
fugitiva qualquer. Todos abanavam a cabeça, perplexos.
Serge levou-a à Shakespeare & Co, que Fiona sabia ser uma livraria mas
que, descobriu agora, também tinha camas no piso de cima, explicou Serge,
«para estrangeiros solitários». A explicação dava a entender que se tratava
de um prostíbulo, mas, quando subiram, viu várias camas de armar estreitas.
Eram para jovens que dormiam quatro horas por noite, que curavam as
ressacas com cafeína e se envolviam em aventuras apaixonadas. Não era
sítio onde uma mulher com um companheiro e uma criança ficasse. Se
estivesse mais bem-disposta, Fiona ter-se-ia apaixonado pela livraria, com
as tábuas do soalho a ranger e os túneis precários de livros, mas assim só
queria seguir caminho.
Com Serge a espreitar por cima do ombro, mostrou a fotografia de Claire
ao balcão, a um jovem com um bigode comprido de Brooklyn e sotaque
sulista. Ele chamou uma rapariga.
A fotografia era do primeiro ano de Claire em Macalaster, tirada no fim
de semana dos pais. Claire tinha a mão apoiada na cómoda coberta de
coisas, um meio sorriso no rosto, uma expressão irritada mas tolerante.
Fiona escolhera esta foto porque era onde Claire estava mais parecida com
a imagem do vídeo, de rosto redondo por causa do peso que ganhara nesse
outono. Lembrou-se, com uma vaga de náusea, do alívio que sentira nesse
ano, de cada vez que Claire regressava à escola. Não que a quisesse longe
de si, pelo contrário, mas imaginava que seria uma forma de se darem
melhor. Claire teria o seu espaço e, quando viesse a casa, podiam ir às
compras, comer, conversar, e dentro de algum tempo talvez até dividir uma
garrafa de vinho e falar como adultas. Seria assim até acabar a universidade
e, depois de Claire se mudar para outra cidade – Fiona sempre soubera que
isso aconteceria –, quando a viesse visitar duas vezes por ano. Porém, no
Natal, ela anunciara que ia passar o verão no Colorado. Esteve uma semana
em casa em junho e depois Fiona levou-a ao aeroporto e, quando abriu a
porta para sair do carro e se despedir da filha com um abraço, Claire disse:
– Vão começar a buzinar-te.
E deu um beijo rápido na face da mãe.
E pronto. Mais nada.
A rapariga abanou a cabeça.
– Quer dizer, é um bocadinho parecida com a Valeria.
O rapaz perguntou:
– Ela é checa?
Fiona disse que não e acrescentou que ela tinha uma menina pequena.
– Deixe-me ir chamar a Kate – disse ele. – Ela conhece toda a gente que
passa por aqui.
E agora aqui estava Kate, alta e britânica, a examinar a fotografia.
– Não tenho a certeza – disse Kate.
– Ela agora é mais velha – disse Fiona.
– Parece aquela atriz de Golpada Americana.
Estava um homem atrás deles, à espera para comprar um monte de livros
de bolso, por isso afastaram-se para o lado de dentro da loja. Serge tirou-lhe
a fotografia da mão e segurou-a com as pontas dos dedos.
– Ela deve ter saudades tuas.
Fiona não sabia como responder a isso.
– Ficas para a exposição do Richard, sim? Os amigos são tão importantes
para ele.
– Vou tentar.
– Não, não, promete! – Serge sorriu, um sorriso tão deslumbrante que
com certeza o ajudara a levar a sua avante a vida toda.
– Se calhar nessa altura já estarei a abusar da vossa hospitalidade.
– Se isso acontecer, pomos-te na rua e arranjamos-te um hotel! Promete!
– Está bem – cedeu Fiona. – Prometo. – Não tinha a certeza se cumpriria
ou não a promessa, mas não custava nada fazê-la. Nove dias longe da loja
era demasiado, mas daqui a nove dias ou já teria encontrado Claire ou
continuaria à procura dela e, de uma maneira ou de outra, como poderia
voltar para casa?
Antes de saírem, Fiona pegou num livro sobre a História de Paris em
inglês, só para não sair de mãos a abanar, sob os olhares piedosos dos
funcionários. O vendedor de bigode estava a discutir os leitores de DVD
americanos com um cliente. Qualquer coisa sobre frames por segundo.
– Os americanos nem querem saber! – exclamou. – Foi por isso que me
mudei para Paris! – Agitou as mãos no ar.
Fiona tentou não se rir. Não podia ser verdade, pois não? Que alguém
desenraizasse a sua vida com essa facilidade? Todas as pessoas que
conhecia e que tinham deixado a América haviam-no feito por razões
concretas: trabalho, romance, política. Para estudar, como Nora. No caso de
Claire e Kurt, para fugir do Coletivo Hossana – embora Fiona tivesse
considerado a possibilidade de Claire estar a fugir dela, de algum suposto
trauma de infância. Mas e se não passasse de uma brincadeira? Primeiro a
comuna, depois Paris, a seguir uma criação de ovelhas na Bulgária? E se
Fiona não tivesse simplesmente conseguido, distraída como estava naqueles
primeiros anos da vida de Claire, prender a filha ao mundo como devia ser?
O rapaz olhou para o preço. Três euros. Disse-lhe que era oferta da casa.
Quando os Sharp chegaram, aos gritinhos e a rir por causa do frio, Yale
sentiu-se imediatamente mais à vontade. Esmé abraçou-o e exclamou que
Charlie era igualzinho ao que ela imaginara. Yale tinha agora desculpa para
se levantar e caminhar pela sala. Os Sharp estavam apenas na casa dos
quarenta, mas Allen Sharp detinha a patente do sistema de corte utilizado
em todas as bombas de gasolina do mundo, e agora dividiam o seu tempo
entre o Maine, Aspen e uma pequena propriedade nas Marina Towers. Eram
doadores diferentes, muitíssimo interessados em ajudar a Brigg a aumentar
a sua coleção – Allen frequentara a Northwestern e Esmé estudara
Arquitetura –, apesar de eles próprios não possuírem quaisquer peças de
arte. Eram ambos atraentes, com cabelo castanho e narizes gregos.
– Eu sei que devíamos começar a colecionar – dissera-lhe Esmé uma vez
–, mas não vejo sentido em acumular coisas.
Yale só queria que os Sharp o adotassem e reservassem um quartinho para
ele e Charlie na sua pequena fatia da Marina Tower.
Bill espalhou as fotografias em cima da mesinha baixa e Yale contou a
história toda aos Sharp. Bill dera-lhe instruções para deixar de fora as peças
de Ranko Novak – e, como de qualquer modo não havia forma de as
autenticar, Yale não via mal nisso; não eram relevantes para a conversa.
Charlie e Dolly ouviram atentamente, também, e Yale apercebeu-se de que
ainda não tinha explicado a situação de forma tão pormenorizada a Charlie.
Bom, ele andava sempre tão ocupado.
– Incrível – disse Allen. – Tenho de admitir, com algum embaraço, que
nunca ouvi falar de Foujita.
E, como Bill não disse nada, Yale explicou:
– Era presença habitual em Paris nos anos vinte, uma celebridade.
Praticamente o único japonês em França. Houve um período menos feliz,
durante a guerra, em que regressou a casa e produziu propaganda política.
Mas já ninguém se importa com isso.
Allen riu-se.
– Não? Acho que o meu pai se importaria.
Yale inclinou-se para ele, como se fosse contar um segredo.
– Bom, um dos desenhos dele foi recentemente vendido em Paris por
quatrocentos mil dólares. Não me parece que o comprador se tenha
importado.
Charlie lançou um olhar de soslaio a Yale e este demorou um instante a
decifrá-lo: era um olhar impressionado, orgulhoso. Charlie raramente o via
em ação. Se Yale fosse casado com uma mulher, ela seria arrastada para
todos os jantares com doadores, para todos os eventos com antigos alunos.
Vestiria uma saia curta e lisonjearia os homens e depois faria pouco das
outras mulheres, no caminho para casa. Ou então não. Talvez, mesmo que
fosse heterossexual, tivesse casado com alguém como Charlie, uma mulher
demasiado ocupada com a sua própria vida para ter tempo para o jogo dos
sorrisos e das lisonjas.
A campainha da porta tocou e Bill e Dolly levantaram-se ambos para ir
abrir.
Yale imaginara que um homem chamado Roman teria a estatura de um
soldado, mas o jovem que entrou na sala, meio congelado, era pequeno e
loiro, com óculos à Morrissey a ampliar-lhe os olhos. Vestia uma camisola
preta de gola alta e calças da mesma cor.
– Peço desculpa pelo atraso – disse, e estendeu a Dolly uma pequena
estrela-de-natal que devia estar em saldos no Dominick’s. Na verdade,
parecia mais novo do que os seus vinte e seis anos. Yale rapidamente ficou
a saber que ele iniciara um mestrado em Pintura antes de mudar para
História de Arte. Roman recusou uma bebida e sentou-se numa ponta do
sofá, pouco à vontade, a conversar com os Sharp sobre o trabalho de
investigação que fizera em Paris no verão passado. Tinha uma voz suave e
não levantou as mãos dos joelhos.
– A minha mãe teve medo de que eu não quisesse voltar – disse.
Esmé riu-se e perguntou:
– E queria?
– Bom, quer dizer... os meus estudos e...
– Ela está a brincar – interrompeu Allan. – Céus, Esmé, traumatizaste o
rapaz!
Roman era adorável e Yale deduziu, em primeiro lugar, que ele era gay –
que outro motivo haveria para o estranho comportamento de Bill? –, mas
também que era o tipo de gay que ainda não sabia que o era. Yale podia ter
acabado como ele, se não tivesse, no segundo ano em Michigan, apanhado
Mark Breen como professor assistente de Macroeconomia – um homem
mais velho, belo, confiante, persuasivo. Cinco minutos no apartamento de
Mark e Yale esquecera-se completamente do seu passado e de tudo o que
alguma vez sentira.
Dolly perguntou a Roman se não tinha ido passar o Natal a casa.
– Sim, nós... Bom, tenho seis irmãos e irmãs. Por isso reunimo-nos todos
em casa. No Norte da Califórnia.
– Sete filhos! – exclamou Esmé.
A família, explicou Roman, era mórmon.
Yale sentiu que Charlie também estava a tirar as medidas a Roman. Não
era propriamente o tipo de Charlie, mas ele tinha um fraquinho por homens
de óculos. Antes desta recente fase de insegurança, costumavam jogar ao
«Com quem é que ias para a cama?» na praia, ou no aeroporto (um deles
identificava três homens, o outro tinha de escolher um com quem
hipoteticamente faria sexo, apenas um, e o outro tinha de adivinhar qual
fora o escolhido) e Charlie escolhia sempre os que tinham óculos. Yale
dizia-lhe, a brincar, que tinha um fetiche por Clark Kent.
Charlie perguntou a Roman:
– Então vai trabalhar na galeria?
– Na verdade – disse Bill –, ele vai trabalhar com o Yale.
Dolly convidou-os a ir para a mesa e, quando Charlie foi lavar as mãos,
Yale seguiu-o pelo corredor e tocou-lhe no braço à porta da casa de banho.
– O Bill apanhou-me de surpresa com esta coisa do estagiário –
murmurou.
Charlie sorriu friamente.
– Se calhar foi a Dolly que o obrigou a trocar – continuou Yale. Na sala
de jantar, estavam todos a sentar-se e ouviam-se exclamações sobre o cheiro
delicioso. – Não achas? Foi tão repentino.
Charlie respondeu, também num murmúrio:
– Está tudo bem. Achas que vou perder a cabeça?
Sim, achava.
– Não sou nenhum monstro, está bem? Não me vai saltar a tampa sempre
que tu tiveres de estar em contacto com alguém.
– Eu sei – respondeu Yale. – Não era isso que queria dizer.
Charlie não estava em casa quando Yale chegou, duas horas depois. Ficou
desapontado, tão desapontado que isso o surpreendeu. Queria conversar
sobre o assunto, deitar-se na cama com ele a olhar para as paredes, a
praguejar e a discutir todos os pormenores que sabiam. Mas havia mais: ao
abraçar Charlie, Yale podia começar a redimir-se de alguma vez ter pensado
em envolver-se com Julian. Quanto mais apertasse Charlie contra si, maior
a redenção.
Às nove, Yale dirigiu-se ao Masonic sozinho, com algumas revistas e um
chapéu de festa para Terrence. Ainda não tinha estado na nova unidade da
sida e apanhou o elevador errado e teve de atravessar a enfermaria de
doenças pulmonares, mas por fim lá chegou. Havia luzes de Natal e fitas
brilhantes no balcão das enfermeiras. Uma enfermeira que parecia Nell
Carter perguntou-lhe se queria sidra espumante. Claro, disse ele, e ela
serviu-a num pequeno copo descartável.
– Ele hoje tem um companheiro de quarto novo – disse ela. – Um tipo
muito revoltado, mas agora está a dormir. O Terrence está acordado.
Yale tentou olhar disfarçadamente para esse novo companheiro de quarto
ao entrar, para ver se era alguém que conhecesse – mas estava escuro do
outro lado da cortina e viu apenas um queixo, a barba por fazer e as lesões
arroxeadas num maxilar ossudo.
Terrence estava a comer um pudim de chocolate com uma colher de
plástico – tinha uma cânula no nariz para lhe fornecer oxigénio, um tubo
intravenoso preso ao pulso. Parecia ainda mais magro do que na angariação
de fundos, mas também melhor. Pelo menos, mais contente.
– Olá! – disse Terrence. – Queres comer isto por mim? – A sua voz era
rouca, áspera.
– Estou tentado – disse Yale, sentando-se –, mas esses corantes artificiais
são para a tua saúde e recuperação.
Yale perguntou-lhe se Charlie tinha aparecido. Terrence disse que não, só
Fiona.
– Porquê? O que se passa?
– Nada. Só nos desencontrámos. Ouve, não fales, está bem? – disse. – Eu
trato da conversa. Esta enfermaria é excelente. A sério, têm televisão e
tudo? Parece um hotel.
– Clube dos Mortos.
– Não, nada de falar. Fiz o teu chili vegetariano no Natal. Não ficou mau,
mas não sou nenhum especialista.
Terrence disse:
– Sabes qual é a coisa mais difícil de ter sida?
A piada rapidamente se tornara batida, mas Yale riu-se na mesma.
– Sim – disse –, é contar aos teus pais que és haitiano.
– Não. – Terrence abriu um grande sorriso. – Na verdade, é a parte de
morrer. – Desatou a rir e, depois, começou a tossir. Mas estava tudo bem,
tudo bem.
Yale lembrava-se tão nitidamente: Terrence com Fiona ao colo, a levá-la
pelo corredor do hospital suburbano para onde os pais de Nico tinham
insistido em transferi-lo, a levá-la ao colo como um bebé, enquanto ela
soluçava com o rosto escondido no seu pescoço. Obstinadamente, Fiona
recusara-se a entrar no quarto de Nico sem Terrence, e tudo o que o
assistente social conseguira negociar fora uma mudança da guarda de hora a
hora: o senhor e a senhora Marcus, com quem Fiona não falava nessa altura,
passariam uma hora à cabeceira de Nico, enquanto Fiona e Terrence
ficavam na sala de espera da UCI, e depois Terrence e Fiona tinham meia
hora enquanto os pais iam ao refeitório. Yale e Charlie e Julian e Teddy e
Asher e uma rotação de outros amigos de Nico preenchiam os espaços
vazios. Era Yale que lá estava com Fiona e Terrence – os três tinham
acabado de sair do elevador –, quando a enfermeira terrível de cabelo
espetado se dirigiu a eles e disse a Fiona que devia entrar no quarto já, que
tinha chegado a hora.
– Posso levar o Terrence? – perguntou ela, e a enfermeira, com ar
enfadado, disse que podia ir chamar o assistente social, que estava em
reunião, e Fiona insistiu: – Não entro sem ele.
Sentou-se no banco e Yale não sabia se havia de olhar para ela ou para
Terrence, que tremia, com as mãos no parapeito da janela, ou se devia
simplesmente ir-se embora – talvez fosse o momento em que o seu lugar já
não era ali. E, depois de trinta segundos, Fiona levantou-se, disse
«desculpa, Terrence» e correu para o quarto de Nico.
Yale dirigiu-se ao balcão das enfermeiras e disse:
– Sim, chamem o assistente social. Isto não está certo. Não está certo.
No entanto, enquanto esperavam, Fiona saiu do quarto e parecia ter ao
mesmo tempo doze anos e cem, mas não vinte e um. Os soluços sacudiam-
lhe o corpo, e chorava com tanta força que nem emitia som. Atrás dela, a
senhora Marcus começou a gritar. O médico saiu do quarto e dirigiu-se a
Terrence, e Yale preparou-se para o segurar se ele caísse. Mas Terrence,
depois de o médico confirmar aquilo que já sabiam, não caiu.
Disse ao médico, numa voz gelada e dura como pedra:
– Volto daqui a duas horas. Têm de o limpar, não é? Eles podem ter o seu
tempo. E eu volto daqui a duas horas. – O joelho ainda lhe doía, de quando
colidira com o carrinho das limpezas nessa manhã, mas pegou em Fiona,
como se ela não pesasse nada, e saiu do hospital. Yale ficou, para ligar a
Charlie e aos outros, do telefone das enfermeiras. Soube mais tarde que
Terrence tinha andado vinte minutos às voltas no exterior do hospital com
Fiona ao colo, até ela estar em condições de voltar para dentro e ligar para
pedir a alguém que a fosse buscar. Soube que alguém, preocupado ao ver
um homem negro com uma mulher branca ao colo, lavada em lágrimas, no
parque de estacionamento, ligara para a polícia, e um agente aparecera e
começara a segui-los lentamente, até Fiona lhe gritar que estava tudo bem,
que não era ilegal uma pessoa levar outra ao colo, pois não?
E agora era Terrence que estava deitado naquela cama, e pelo menos o
hospital era muito melhor, mas teria alguma importância, no fim? E em
breve seria Julian.
Terrence fechou os olhos e Yale ficou ali sentado muito tempo, a contar-
lhe os últimos mexericos. Cantou-lhe «Auld Lang Syne» em voz rouca e
desafinada, até Terrence lhe dar um safanão com as costas da mão livre,
para o fazer parar. E, durante todo esse tempo, pensou que Charlie podia
aparecer a qualquer momento. Mas não apareceu.
Terrence abriu os olhos.
– Já é meia-noite?
– São vinte para as onze. Mas podemos ver a bola a cair em Nova Iorque.
Consegues aguentar mais vinte minutos? – Ligou o pequeno televisor ao
canto do quarto e no ecrã apareceu uma Times Square que Terrence nunca
mais visitaria.
Terrence olhou para a bola e depois disse, baixinho:
– Consegui. Cheguei a 1986. – Fechou os olhos e adormeceu.
Yale sentiu que não devia ir ainda – ou talvez não quisesse – e ficou ali
sentado mais alguns minutos. A porta abriu-se e pensou que fosse Charlie,
mas era apenas uma enfermeira, a ver se estava tudo bem.
Yale apertou a mão magra de Terrence tanto quanto se atreveu e disse:
– Não podes morrer da merda de uma sinusite.
*
Charlie também não estava em casa.
Yale deixou uma longa mensagem no gravador de chamadas de Julian,
vergonhosamente aliviado por ele não ter atendido.
– Quero que nos digas o que podemos fazer – disse. – Há pessoas que...
quer dizer, o Nico e o Terrence tinham-se um ao outro, percebes? E se tu
não tiveres ninguém... não é isso que quero dizer... mas tens-nos a todos
nós.
Pensou em Teddy, em como ele estaria. Teddy e Julian envolviam-se de
vez em quando, há anos, e ele devia estar, além de arrasado, aterrorizado.
Contudo, Teddy, apesar de todo o tempo que passava nas saunas, de todo o
tempo que passava nas salas dos fundos dos clubes, a fazer coisas que Yale
se arrepiava só de imaginar, parecia perfeitamente saudável, por enquanto.
(Conseguia ouvir as vozes de Charlie e Asher a repreendê-lo por esse tipo
de pensamento. Charlie: O que conta não é a quantidade de vezes, mas sim
os preservativos. Asher: Se houvesse mais saunas, haveria menos doença.
Sabes porquê? Teríamos menos vergonha.)
Uma vez, bêbedo, Teddy sussurrara a Yale, como se fosse o melhor
segredo do mundo:
– Sabes porque é que eu não a apanhei? Quem fica sempre por cima não
apanha. – E Yale tentara dar-lhe dados, explicara-lhe que isso era como as
raparigas que achavam que não podiam engravidar no verão. Dissera-lhe
que não podiam aplicar regras a um vírus tão imprevisível.
– Ouve – dissera Yale –, nunca ficaste com sabão lá dentro, no banho? É
a mesma coisa.
Se Teddy não sabia já, no fundo, que estava contagiado, certamente que
agora não lhe restariam dúvidas. Eram todos dominós humanos. Como
podia Teddy não saber que era o próximo dominó a cair?
*
Charlie só chegou a casa às duas da manhã. Yale estava a dormir no sofá,
de calças de fato de treino, à luz da pequena árvore de Natal. Charlie tinha o
rosto contraído e movia-se como uma marioneta partida. Yale perguntou, o
mais gentilmente que conseguiu, onde é que ele estivera, e Charlie disse:
– A andar por aí.
Sentou-se no sofá e Yale levantou-se e encostou a cabeça ao ombro dele.
O corpo de Charlie emitia o frio, como um frigorífico aberto. Yale pegou no
cobertor e tapou também Charlie.
– Foi a última gota – disse Charlie. – Não que seja a última. O problema é
esse. Foi uma gota, e fez transbordar o meu copo, mas sei que haverá mais.
E Yale compreendia, porque fora assim que se sentira na noite da
angariação de fundos. Encostou a mão ao rosto de Charlie e este
estremeceu.
– Desculpa – disse Yale. – Não queria... Só quero saber se estás bem.
– Porquê, tu estás bem?
– Claro que não. Mas este caso parece estar a afetar-te mais do que a
maioria.
Charlie soltou uma risada amargurada.
– A maioria.
Era mais fácil falar com Charlie quando estavam ambos a olhar para a
árvore de Natal do que quando estavam a olhar um para o outro. Yale
respirou fundo e disse:
– Quero tranquilizar-te. Já disse isto antes, e não devia ter de o dizer, mas
sei que, por alguma razão, sempre foi uma preocupação para ti. E quero que
saibas que o Julian e eu nunca tocámos um no outro.
Charlie afastou-se bruscamente e virou-se para Yale, de olhos muito
abertos.
– Desculpa, pensei que talvez... pensei que podias estar preocupado com
isso.
Charlie levantou-se, atirando o cobertor para o chão como se estivesse
coberto de aranhas.
– Foda-se, Yale!
– Está bem, não devia ter falado nisso. Anda cá. Volta para o sofá.
Charlie voltou e chorou durante algum tempo com o rosto encostado aos
pelos do peito de Yale, e por fim adormeceu.
2015
rnaud pedira-lhe para não telefonar antes das dez da manhã, por isso
A Fiona telefonou às dez horas e um minuto. Como ele não atendeu,
tentou de novo, e depois foi tomar um duche para passar o tempo. Às 10:26
ele atendeu.
– Descansou um pouco? – perguntou-lhe.
– O que aconteceu? – respondeu ela.
– Tenho fotografias, se as quiser ver.
– Eram eles?
– Sim, sim.
– Havia alguma... eles tinham... eram só eles?
– Dois adultos. Oiça, posso estar aqui a descrevê-los, ou pode ver com os
seus próprios olhos.
Combinaram encontrar-se ao meio-dia num restaurante em Saint-Germain
chamado Sushi House – não era propriamente a ideia que Fiona fazia da
comida em Paris, mas pelo menos soube pronunciar o nome ao taxista que a
levou. E, quando se sentaram e ela fez um esforço por olhar para a ementa,
e se conteve para não saltar por cima da mesa e abrir o saco de Arnaud,
também compreendeu os pratos nela descritos: sake nigiri, ikura, miso.
Arnaud disse-lhe que tinha estado à espera no carro até às onze da noite,
até por fim Kurt e Claire passarem junto à sua janela, de mãos dadas.
Arnaud ergueu o telemóvel.
– Está preparada?
Ao princípio, Fiona não compreendeu. Estava à espera que ele lhe
apresentasse uma pilha de fotografias impressas. Mas as fotografias
estavam no telemóvel, claro.
A primeira era apenas Kurt, em grande plano.
– É ele – confirmou Fiona.
Esperava ficar dominada pela raiva ao ver aquele rosto, mas sentiu apenas
um frémito de reconhecimento, o clique de reencontrar um velho amigo;
afinal de contas, era isso que ele era. Fiona nunca conseguiria olhar para
Kurt sem ver também a criança que ele fora, o rapazinho inteligente e
nervoso que gostava de debitar factos sobre submarinos e aviões espiões
alemães.
O telemóvel ainda estava na mão de Arnaud e ela disse:
– Sim, estou pronta. Próxima.
Mas a fotografia seguinte mostrava Kurt e uma mulher alta de cabelo
preto. Iam de mãos dadas e a mulher tinha um saco de compras de plástico
na outra mão. Não era Claire.
Arrancou-lhe o telemóvel da mão e passou a fotografia seguinte, e a
seguinte. Tinham sido tiradas em rápida sucessão, pelo que parecia um
filme antigo, com as duas figuras a avançarem pelo passeio aos solavancos.
– Não! – exclamou. – Merda. – Estava zangada com Arnaud, o que não
fazia sentido nenhum. – Não. – Sentiu-se apertada na mesa reservada,
sufocada sob as luzes amarelas e a música suave.
– Não é ela?
– Nem sequer se parece minimamente com ela!
– Pode ter pintado o cabelo.
– E pintou também o nariz? Pintou-se para ficar mais alta?
– Está bem – disse ele –, tenha calma. É bom, não é? Significa que ela já
não está com ele.
Fiona bateu com o telemóvel na mesa, de ecrã para baixo, ao lado do
molho de soja, e pegou na mala.
– Onde vai? Peça qualquer coisa para comer, está bem? Temos mais
passos para dar. Precisamos de os planear. Tome, beba um pouco de água.
Em vez de beber, encostou o copo à testa e, quando a empregada se
aproximou, Arnaud pediu por Fiona.
– Mostre-me outra vez – pediu, e Arnaud desbloqueou o telemóvel e
passou-lho novamente para a mão.
Kurt tinha o cabelo preso num carrapito na nuca, o rosto barbeado.
Parecia talvez apenas meio Hossana. Em relação à mulher, era difícil dizer.
Cabelo comprido com risco ao meio. Com as luzes da rua a incidir-lhe no
rosto, Fiona não conseguia ver se ela estava maquilhada ou não. Vestia um
casaco, mas a câmara de Arnaud cortara-lhe as pernas. Fiona estudou
novamente cada uma das imagens, como se pudesse haver pistas escondidas
em segundo plano.
– O grupo não defende a... poligamia, é a palavra certa? – quis saber
Arnaud. Pronunciou-a com sotaque francês.
– Sim. Quer dizer, sim, a palavra é essa. Mas não, na verdade. Graças a
Deus. – Estaria realmente grata? Isso significava que Claire não vivia
naquele apartamento. Podia nem sequer estar em Paris. Mas não, havia o
vídeo. O vídeo era em Paris, e Kurt estava em Paris. Portanto Claire
estivera em Paris, pelo menos. – Se a Claire o deixou – disse –,
provavelmente também saiu de França. Ela... como é que funciona a
imigração? As pessoas não podem ficar onde querem se não forem cidadãs,
pois não?
Arnaud encolheu os ombros.
– Há muitas pessoas que ficam ilegalmente.
E se, no preciso dia em que Fiona ali chegara, Claire tivesse decidido ir
bater-lhe à porta em Chicago? E se tivesse batido, desistido, voltado mais
tarde e chegado, por fim, à conclusão de que Fiona já não morava ali? E se
tivesse passado pela loja, feito algumas perguntas, e lhe tivessem dito que
Fiona estava no estrangeiro? Tinha de ligar para a vizinha. Devia ter
deixado um bilhete para Claire, muito bem identificado e colado à porta da
rua. Mas não, estava a ser ridícula. Porque havia Claire de escolher esse
exato momento para voltar para casa? Há um mês que Fiona não sentia esta
urgência; a única coisa que fazia com que agora parecesse tudo tão imediato
era o vídeo. Não saíra da cidade desde o desaparecimento de Claire, mas
passara o dia fora de casa muitas vezes, e algumas noites também, quando
ficava em casa de algum homem, ou, uma vez, num hotel na Baixa, depois
de um casamento. E o mundo não ficara pior do que antes.
A comida chegou e Arnaud gesticulou com os pauzinhos.
– Posso... por um pouco mais de dinheiro... posso entrar no apartamento.
Tentar encontrar mais informações.
– O quê, arrombar a fechadura? – Tinha uma peça de sushi com abacate à
sua frente e estava tão esfomeada que lhe pegou com os dedos.
Ele riu-se.
– Não, subornar o senhorio.
– Porque não abordar diretamente o Kurt?
– Porque se ele não cooperar... acabou-se. Mas se dermos uma vista de
olhos primeiro, saberemos mais e podemos falar com ele na mesma depois.
Naquele bairro, tenho a certeza de que algum dinheiro na mão certa nos
abrirá a porta. Não é muito ético, percebe? Daí o dinheiro extra. Não estou a
tentar explorá-la, mas para uma coisa destas levo um bocadinho mais.
Apenas cem euros.
– Compreendo.
– Mais o valor do suborno. Cento e cinquenta no total.
– Posso ir consigo?
Com ar exasperado, Arnaud enfiou uma peça de sushi de atum na boca.
– Desculpe – disse ela. – Eu sei, eu sei, mas você nem saberia o que
procurar. Se eu lá estiver e vir alguma coisa que era da Claire... reconheço-
a. E você não.
Arnaud expirou lentamente, como se soprasse o fumo do cachimbo que
devia ter na mão. Ou pelo menos um cigarro. E uma gabardina. Hoje vestia
calças de ganga e uma t-shirt amarela com decote em V.
– Posso não ter mais de dez minutos para entrar e sair.
– O senhorio não estaria até mais disposto a deixá-lo entrar se eu também
fosse? Se explicássemos que a minha filha está desaparecida?
– Não – respondeu ele. – Mas oiça, está bem, se conseguir entrar, levo-a
comigo. Não quando falar com o senhorio, mas pode entrar no apartamento.
Está bem?
Ela prometeu que teria o telemóvel ligado e estaria pronta para ir ao
encontro dele a qualquer momento. Mas ainda não, ainda não. Primeiro,
Arnaud tinha de estudar as rotinas de Kurt, descobrir quem era o senhorio,
etc., etc. Mais dois ou três dias.
1986
ale tinha os escritórios todos para si. Bill Lindsey e o arquivista da
Y galeria estavam ambos doentes; o negociante de arte e o contabilista só
trabalhavam em part-time. Pôs a tocar New Order bem alto, comeu uma
sanduíche de peru à secretária e trabalhou. Marcou jantares e pesquisou
subsídios e deu seguimento ao combinado com os Sharp. Ligou novamente
para o advogado de Nora e ouviu uma mensagem a dizer que o escritório
estava fechado durante as festas. Santo Deus, já era dia 7 de janeiro.
Preparou-se para deixar uma mensagem, mas a gravação terminou num
apito agudo que nunca mais acabava. Escreveu a Nora e ao advogado, a
dizer que passariam por lá na semana seguinte, a menos que houvesse
alguma resposta em contrário. E dedicou-se a reinventar a brochura oficial
da galeria.
Quando chegou, no dia seguinte, e viu que continuava sozinho, decidiu
ligar a alguns amigos e convidá-los para virem ver a galeria. Ajudá-lo-ia a
não pensar em Julian e em como estivera perto de tocar à campainha dele
naquela noite. Teddy e Asher eram os únicos que estavam disponíveis e
apareceram da parte da tarde. Yale ficou contente por Asher não vir
sozinho; não saberia como agir. E, por motivos totalmente diferentes,
motivos relacionados com Charlie, também ficou contente por não ver
Teddy sozinho. Yale mostrou-lhes a exposição atual – doze retratos de Ed
Paschke que o deixavam tonto de cada vez que passava por eles – e depois
sentaram-se no gabinete de Yale, e Teddy usou a sua caneca do MoMA
como cinzeiro. Fumava assustadoramente depressa, apenas um ou dois
segundos entre baforadas.
Falaram sobre Julian, o que pelo menos era melhor do que pensar em
Julian.
– Tem saído todas as noites – disse Asher.
– Para fazer o quê?
– Beber – disse Teddy. – Procurar outros tipos infetados para foder.
– Foi ele que te disse isso?
– Fez uma piada sobre roleta russa.
Seria de pensar que Teddy pareceria mais preocupado – afinal de contas,
estava a falar de um amante ocasional –, mas a verdade era que o amor de
Teddy por mexericos geralmente se sobrepunha a tudo o resto.
– A Fiona disse-te que o encontrou no sofá dela a semana passada, sem
sapatos nem casaco? Trocou-os por cinco drunfos e um charro.
– E estamos a falar da casa onde ela trabalha como ama – acrescentou
Asher. Estava a brincar com a caneta de quatro cores de Yale, a carregar em
cada uma das cores rotativamente.
Yale sentiu-se desatualizado. Como é que acontecera tudo isto numa
semana? Bom, tinha estado frio e ele não saíra muito de casa. Charlie
andava a trabalhar mais do que nunca no jornal desde o Ano Novo, como se
artigos sobre leis de habitação e espetáculos de travesti pudessem fazer
aparecer magicamente uma vacina. Quando não estava no escritório ou em
reuniões, estava a trabalhar em casa, com o Macintosh a zumbir baixinho,
como uma máquina de suporte de vida. Juntara-se a Asher na tentativa de
trazer novamente a votos o Regulamento de Direitos Humanos, algo que
antes pensara em adiar. Sabiam que não passaria, sabiam que o conselho
municipal não tinha interesse nenhum nos direitos deles, mas era um ponto
de partida; seria falado no Trib e nos noticiários da noite. De um momento
para o outro, Charlie começara a falar sobre o assunto com o zelo de um
religioso recém-convertido.
E andava demasiado cansado para sexo, ou demasiado stressado para
sexo, ou demasiado rabugento para sexo. No domingo à noite, tinham ido
ver A Cor Púrpura e, no regresso a casa, Charlie protestou o caminho todo,
por Spielberg ter reduzido o enredo lésbico da história a um único beijo.
– Tenho mais contacto com o meu dentista – disse.
Yale desabotoara-lhe a camisa, tentara puxá-lo para o quarto, mas Charlie
abotoara-a novamente, empurrara Yale contra a parede, roçara-lhe os lábios
na clavícula e depois ajoelhara-se e fizera-lhe um broche eficaz, que teria
sido desagradavelmente mecânico, se não tivesse sido também tão bom.
Teddy acendeu outro cigarro. Disse que Julian planeava recusar
antibióticos, vitaminas, até as enzimas de papaia de que Terrence andava
sempre a falar.
– Há aquela combinação de dois medicamentos do México, sabes?
Conheço um tipo que os traz de lá, mas o Julian não quer.
– Pensava que ele acreditava que estavam quase a descobrir a cura – disse
Yale, e Asher retorquiu:
– A crença é uma coisa muito frágil.
Asher não parava de inclinar a cadeira para trás e Yale teve medo que ele
caísse.
– Tu estás com bom aspeto – disse Yale a Teddy. – A tua cara. Já não se
nota nada.
Teddy levou os dedos da mão esquerda à cana do nariz.
– Eu queria que ele processasse a escola – disse Asher. – Mas não me dá
ouvidos.
– Bom, porque não faz sentido! Toda a gente quer que eu esteja mais
zangado do que estou. O Charlie quer que eu escreva uma coisa, um
testemunho pessoal. Mas eu... não me parece uma coisa assim tão
importante.
– Teddy – disse Asher –, foste atacado. Não é nada em comparação com a
morte de tantas pessoas, mas é alguma coisa. E está relacionado. Não podes
dizer que não está relacionado.
Teddy riu-se e disse:
– Lembras-te do Charlie a gritar com o Nico? Em frente ao Paradise?
Fora antes de Nico adoecer. Nico dissera:
– Se calhar agora, pelo menos, não teremos de nos preocupar tanto em ser
atacados, não acham? As pessoas têm medo do sangue. Quer dizer, podem
atirar qualquer coisa, mas ninguém nos vai dar um soco na boca quando
sairmos dos bares, pois não?
E Charlie dissera:
– Estás a brincar? Os ataques triplicaram. Devias tentar ler o jornal onde
publicas os teus bonecos. Triplicaram, Nico.
Tinham passado o resto da noite a imitá-lo. Triplicaram! Triplicarei
agora o meu consumo de cerveja, cavalheiros!
Nesse momento, bateram à porta de Yale e este deu um salto. Era Cecily;
ele deixara a porta da galeria destrancada.
Yale rezou para que ela tomasse Teddy e Asher por doadores ou talvez
artistas, mas era possível que os reconhecesse da angariação de fundos e
Teddy, pelo menos, com as botas Doc presas com fita adesiva e a t-shirt
branca suja, de cigarro ao canto da boca, parecia acabado de sair de uma
festa depois de um concerto dos Depeche Mode. Obviamente, ela não
estava nada preocupada em interromper, porque entrou sem pedir licença e
disse:
– Espero que as festas tenham sido boas.
– Muito boas, obrigado. E as suas?
– Vim só confirmar que continua tudo a correr bem.
Asher ergueu as sobrancelhas e apontou para a porta. Yale abanou a
cabeça e disse, cautelosamente:
– Diga-me você. O Chuck Donovan voltou a queixar-se?
– Nada, recentemente.
Uma vez que era tecnicamente verdade, Yale disse:
– Também não há nada do Wisconsin, recentemente. – Conseguia manter
um tom de voz tranquilo quando dizia uma mentira técnica, algo que não
acontecia com outro tipo de mentiras. Era uma coisa que sempre o fizera
achar a paranoia de Charlie tão bizarra: Yale era um péssimo mentiroso.
– Ainda bem – disse ela. – Ótimo.
Foram jantar – «para festejar!», disse Bill, embora Yale achasse que dizer
uma coisa dessas só podia trazer azar – e acabaram por despejar três
garrafas de vinho. Eram as únicas pessoas no restaurante, até entrar um
grupo de convidados de um casamento. Não era o copo-d’água, vinham
apenas comer qualquer coisa depois do copo-d’água – que não passara de
bolo, como Roman ficou a saber depois de se aproximar, cambaleante, para
dar os parabéns aos noivos. Os dois grupos ficaram até tão tarde que, ao
final da noite, os empregados já estavam a limpar as mesmas mesas uma e
outra vez, enquanto pigarreavam sonoramente. Bill contou a Yale e a
Roman uma história sobre o pai de Dolly, um pianista de concerto que em
tempos fizera a corte a uma das filhas de Rachmaninoff. Estava sempre a
encher o copo de Roman, assim que este ficava abaixo de meio. Bill estava
de tal forma embriagado, que não tardou a ser o único a falar, e de qualquer
modo a conversa dele era toda dirigida a Roman, pelo que Yale pôde
recostar-se na cadeira. Estava relativamente sóbrio; fora ele que trouxera o
carro.
As obras, recordou a si próprio, ainda podem vir a revelar-se
falsificações. Mesmo que tudo batesse certo, havia ainda a possibilidade,
embora remota, de que as dificuldades de hoje em obter acesso à casa e
todos aqueles protestos fossem parte de alguma burla complicada
organizada por Frank. Mas que teriam a ganhar com isso? Não havia
dinheiro envolvido.
Yale nunca fora capaz de aceitar a sorte pura. O medo de ser enganado
remontava pelo menos ao sexto ano, ao dia em que a seleção de convocados
da equipa de basquetebol fora afixada e um colega adicionara o nome de
Yale à lista numa imitação quase perfeita da caligrafia do treinador. Yale
apareceu para o treino, sem saber que não estava convocado, e o treinador
olhou para ele e, sem qualquer vestígio de maldade, disse:
– Senhor Tishman, o que está aqui a fazer?
Por trás dele, os jogadores riram-se, gritaram e deram palmadas nas
costas uns dos outros. Enquanto eles corriam à volta do campo, como
castigo, o treinador perguntou a Yale se gostaria de ficar responsável pelo
equipamento. Não ficou surpreendido quando Yale disse que não.
A isto seguira-se uma centena de pequenas crueldades ao longo dos sete
anos de escola seguintes, uma centena de armadilhas e partidas. E, enquanto
isso, Yale tentava, desesperadamente, enganar todos os que o rodeavam
quanto à coisa mais importante de todas, na esperança vã de que
acreditassem na sua paixoneta fingida por Helen Appelbaum, nos olhares
lascivos que lançava às raparigas da equipa de voleibol. Mas nunca
acreditaram, e Yale compreendeu que seria sempre ele o enganado, nunca o
enganador. Fora por isso que parte dele, na noite da vigília de Nico,
presumira que estava a ser vítima de alguma partida coordenada. E talvez
fosse por razões semelhantes que Charlie presumira coisas ainda piores
nessa mesma noite. Charlie passara por bem pior na infância e adolescência,
sendo as escolas inglesas aquilo que são.
Mas Yale era um homem adulto e, mesmo que o mundo nem sempre
fosse um sítio bom, pensou que agora já podia confiar na sua própria
perceção. Na maioria das vezes as coisas eram exatamente aquilo que
pareciam ser. Como Bill Lindsey, todo debruçado na mesa na direção de
Roman, a falar sobre o professor de artes «que realmente me abriu, se é que
me entende». Como a neve do outro lado da janela, a cair de forma tão
deliberada. Como o empregado de mesa, a olhar para o relógio.
2015
essa tarde, Fiona esquadrinhou as ruas até não poder mais. Mesmo que
N Claire já não estivesse ali, talvez alguém a tivesse visto enquanto
estava. Perguntou em lojas de material de artes, estúdios de ioga, a todas as
pessoas que lhe parecessem minimamente acessíveis nas ruas.
Encolheres de ombros, sorrisos, confusão. Duas pessoas tiraram
fotografias da fotografia com os telemóveis e tomaram nota do número
dela.
Devia voltar para os Estados Unidos, onde era mais provável que Claire
se encontrasse. Mas depois de vasculharem o apartamento podia encurralar
Kurt, com ou sem a ajuda de Arnaud. Kurt podia ser grande, mas Fiona
tencionava sentar-se em cima dele até ele falar, se fosse preciso.
Deu por si novamente na Pont de l’Archevêché. Praticamente vazia, outra
vez. Algumas partes ainda estavam cobertas de cadeados, como no vídeo,
mas outros painéis de rede tinham sido limpos e tapados com
contraplacado. No passeio havia um grande autocolante de um coração,
com uma mensagem em inglês, as letras brancas sobre o vermelho: «As
nossas pontes não conseguem suportar mais os vossos gestos de amor.» No
ventrículo superior do coração, um cadeado com um traço por cima.
Do outro lado da ponte, um homem debruçou-se para ver o barco turístico
que passava por baixo.
Fiona encostou-se ao corrimão, virada não para a água, não para a Notre
Dame, mas para a extensão da ponte. Estava um dia frio, enevoado e
húmido. Quanto tempo poderia ficar ali, à espera, a olhar, antes que alguém
pensasse que ela se queria suicidar?
Quando a ponte ficou vazia de peões, virou-se para o rio e chamou o
nome de Claire. Porque não adiantaria nada, e era agradável, para variar,
fazer algo que sabia que não adiantaria nada. Estava outra vez cansada e
com fome e tinha de voltar ao apartamento e ligar a Damian, antes que
fosse muito tarde nos Estados Unidos. Precisava também de ligar para a
loja, para ver se Susan andava a tratar de tudo sem problemas.
Gritou o nome de Claire dez vezes. Pareceu-lhe um número de sorte.
Quando andava no quinto ano, Fiona começara a apanhar o comboio
sozinha, quase todos os domingos, para ir visitar Nico enquanto os pais
pensavam que ela estava nos escoteiros. As chefes não queriam saber se ela
aparecia ou não, e Fiona comparecia apenas o mínimo de vezes
indispensável (o primeiro encontro do ano, o último, as excursões) para se
manter na lista de membros. Mas, na maior parte dos domingos, apanhava o
metro até Evanston e depois o El até Belmont.
Levava uma mochila cheia de coisas surripiadas dos armários e do
frigorífico da casa em Highland Park. Meia embalagem de queijo creme,
uma caixa de manteiga, restos de chili, um pacote de bolachas de água e sal.
Colheres, uma vez, depois de saber que Nico não tinha colheres suficientes.
Coisas do quarto dele, aos poucos, para os pais não darem por isso: meias,
fotografias, cassetes. Gostava de poder levar-lhe os seus discos, mas não
cabiam na mochila – e, além disso, os colegas de apartamento dele
pareciam ter muitos. Anos mais tarde, percebeu que eles não precisavam
realmente das coisas que ela levava. Podiam roubar colheres num
restaurante. Entre todos, tinham dinheiro suficiente para comida.
Eram cinco, às vezes seis ou sete, a viver num quarto por cima de um bar
na Broadway Avenue. Quase todos adolescentes. Só anos depois, quando
Nico estava a morrer, é que Fiona soube que alguns trabalhavam como
prostitutos. Nico tinha um emprego a ensacar compras num supermercado
e, com o dinheiro que a tia Nora lhe mandava e os poucos dólares que Fiona
conseguia levar-lhe (passava a semana toda a roubar trocos para os bilhetes
de comboio e dava-lhe o que sobrava), conseguia manter-se fora dessa vida.
Pelo menos assim afirmara, até ao fim. No entanto, Fiona calculava que ele
não lhe diria, mesmo que o tivesse feito, porque ela sentir-se-ia responsável,
pensaria que não tinha feito o suficiente, quando na verdade era apenas uma
criança e fazia tudo o que podia.
Quando ela batia à porta, Nico abria, exclamava «Fi, a roubar para si!» e
puxava-a para dentro. Era sempre como o Natal, vê-lo abrir a mochila e
tirar as coisas uma a uma. Os amigos reuniam-se à volta dele e faziam uma
grande festa por coisas tão simples como colheres. Uma vez, conseguiu
levar-lhes uma garrafa de vinho. Eles nem queriam acreditar. Um deles –
seria Jonathan Bird? – compusera uma canção sobre ela. Como gostava de a
conseguir recordar.
Quando Fiona se mudou para a cidade, depois de terminar a escola
secundária, Nico já tinha o seu próprio apartamento, mas muitos desses
rapazes ainda apareciam, ainda lhe cantarolavam «Fi, a roubar para si»,
adoravam contar essas histórias à frente dela.
– Esta miúda era como o Robin dos Bosques! – diziam.
James, Rodney, Jonathan Bird. Talvez não se lembrasse de Jonathan Bird,
se ele não tivesse sido o primeiro a morrer. Tão cedo que não morreu de
sida, porque o acrónimo ainda não existia; morreu de GRID. O G era de
gay, e Fiona não se lembrava do resto. Jonathan estava perfeitamente
saudável um dia, no seguinte apareceu-lhe uma tosse, uma semana depois
estava no hospital e no dia a seguir morreu.
Nunca ocorrera a Fiona, até este preciso momento, com as mãos a apertar
o corrimão frio da ponte, que a mãe talvez soubesse onde ela ia todos os
fins de semana, ao longo de todos aqueles anos. Conforme foi crescendo e
os escoteiros deixaram de ser uma desculpa plausível, inventava histórias
sobre festas em ringues de patinagem, trabalhos de grupo. Talvez a mãe
deixasse a carteira à mão de semear de propósito. Enquanto chamava o
nome de Claire uma última vez para o vento e a cidade lhe devolvia a sua
própria voz no ar húmido, Fiona lembrou-se da mãe a chamar por Nico no
quintal, quando eram pequenos. Alguma vez teria deixado de chamar por
ele? Alguma vez deixara de espalhar moedas pela casa, na esperança de que
elas chegassem às mãos do seu menino?
Depois de Nico morrer, a mãe passara vinte anos a beber. Fiona sabia que
ela estava arrasada, mas não conseguia perdoar-lhe. Eles, a mãe e o pai, é
que tinham feito aquilo a Nico. A mãe assistira, a chorar, de braços
cruzados, na noite em que o pai expulsara Nico de casa, não fizera nada
para o impedir. Nem sequer dera dinheiro ao filho. Limitara-se a ir buscar a
mochila dele à cave, como se fosse um grande favor.
Ao longo dos anos, as visitas de Fiona aos pais foram-se tornando cada
vez mais espaçadas. E afastou-os de Claire.
Se calhar teria sido melhor para Claire ter avós, uma rede de segurança,
uma família alargada.
As nossas pontes já não conseguem suportar os vossos gestos de amor.
Ora, merda.
Descolou os dedos do corrimão.
Regressou a casa e seguiu o cheiro de alho a fritar até ao apartamento de
Richard.
1986
e manhã comeram tarte de cereja, enjoativa de tão doce, Bill lamentou-
D se da ressaca e viram a neve cair.
– Ele não vai conseguir chegar a tempo, pois não? – perguntou Roman. –
O advogado?
– Estou mais preocupado que os outros não apareçam – disse Yale. – Vão
dizer que é melhor adiar por causa da neve, obrigam-nos a ficar aqui mais
três dias e acaba por ir tudo por água abaixo.
Um único dia a mais podia significar mais interferência de Frank, uma
intervenção de Cecily, um telegrama do presidente da universidade.
– Santo Deus! – exclamou Bill. – Quem é que mandou vir a brigada da
desgraça?
Roman gaguejou um pedido de desculpa. Tinha o cabelo ainda molhado,
colado em madeixas. Uma das madeixas deixara-lhe salpicos de água nos
óculos.
– Bom, ainda ninguém disse nada, pois não? – respondeu. – Isso é bom. É
bom sinal.
Yale, Bill e Roman foram aos vivas e a cantar o caminho todo de regresso
a Egg Harbor.
Na pousada, Yale ligou a Charlie.
– Que bom – disse Charlie. – Fico mesmo contente por ti.
– Ficas mesmo contente por mim? Vá lá, isto é extraordinário! Isso é o
que se diz quando se encontra o ex-namorado na rua, Oh, tens um
namorado novo, estás mais magro, fico mesmo contente por ti. Isto é
enorme! As obras de arte estão literalmente no quarto do Bill. Vou levar-te
a jantar fora. Amanhã, porque temos de ficar aqui mais uma noite.
Precisamos de tirar umas fotocópias e as estradas estão perigosas. Onde é
que queres ir? Jantar?
– Vou pensar nisso. – Depois de uma pausa, Charlie disse: – Estou mesmo
muito contente por ti. É só o cansaço.
Yale quase disse qualquer coisa sobre a casa, havia uma casa que queria
que Charlie visitasse, estava à venda, e era a altura certa – mas isso podia
esperar. Falaria no assunto no dia seguinte, depois de terem bebido um copo
de vinho.
A seguir, ligou a Fiona e ela guinchou de alegria, de forma muito mais
satisfatória. Disse-lhe que tinha uma coisa para ela e pediu-lhe que passasse
pela galeria para ver as peças.
– Oh, Yale, isto estava destinado a acontecer, não achas?
A meio do caminho para casa, ocorreu a Yale que, se não estivesse a doar
tudo à galeria, Nora podia muito bem ter deixado uma das peças a Fiona,
em testamento. Um único esboço seria suficiente para lhe pagar os estudos.
E com certeza que Fiona sabia disso. No entanto, nunca dissera uma
palavra.
2015
uando entrou em casa de Richard, Fiona encontrou Jake Austen sentado
Q no sofá, a falar com Serge. Queria ficar zangada com a invasão e não
tentou evitar esse sentimento, mas talvez estivesse também um pouco
aliviada. Assim, ninguém lhe perguntaria como tinha corrido o dia. Apesar
de tudo, nunca imaginara que o tipo se ia inserir daquela maneira. Jake
tinha os olhos vermelhos, a camisa desabotoada no colarinho, um botão a
mais do que seria necessário.
Pousou a mala na bancada e descalçou-se. Ambos os homens lhe
acenaram e Jake apontou dramaticamente para o telemóvel, em cima da
mesinha baixa. Estava a gravar. Fiona fez um chá, o mais silenciosamente
que conseguiu.
Serge estava a dizer:
– Ele encontra o espaço entre a ação e o repouso. Não quer a foto da ação
e não quer a foto do repouso, percebe? Sim? Procura o momento intercalar.
Fiona não sabia se Serge ainda trabalhava como assessor de imprensa de
mais alguém ou se dar entrevistas sobre Richard se tornara a sua vida.
Jake tocou no ecrã do telemóvel e os dois homens relaxaram.
– Como correu? – perguntou Jake. – Eles, hum... puseram-me a par da
situação. Espero que não te importes. Está tudo bem?
– Céus – disse ela. – Não sei. – Bom, lá se ia a sua fantasiazinha de
parecer uma pessoa normal numa viagem normal. Puf!
Fiona ainda não tinha jantado e queria ir diretamente para a cama. Mas
devia ligar a Damian e não se esquecer de perguntar por Karen com um tom
de preocupação credível. Também devia ligar a Cecily e dizer-lhe que sim,
Kurt estava realmente em Paris, mesmo que Cecily não o quisesse ouvir. Ou
talvez isso pudesse esperar. Teria sequer a responsabilidade de lhe dizer?
Nunca fora muito boa a julgar quem estava sob a sua jurisdição e quem não
estava. Cecily sabia o motivo da vinda dela a Paris e desejara-lhe boa sorte,
mas Fiona não lhe falara sobre a criança no vídeo. Porque o faria, quando
nada era certo?
– Acho que estou despachada, por hoje – disse.
– Isso é perfeito! – exclamou Serge. – Assim podes vir à festa! Já
convenci o Jake a juntar-se a nós.
– Festa?
– Na casa da Corinne, lembras-te? Apanhamos o métro para Vincennes às
sete, está bem? Não te preocupes, trazemos-te cedo para casa!
– Oh... eu...
– Muitos artistas importantes. E tens de conhecer o marido da Corinne.
Tens de ver a barba dele.
– A barba dele?
Serge riu-se.
– Acredita em mim. Acredita.
Fiona desejou que Jake não estivesse com eles, que não estivesse ali em
pé, a segurar-se ao suporte no métro com dois dedos e a olhar para ela.
Richard e Serge estavam sentados atrás de Fiona a conversar num francês
rápido, e Fiona não tinha ninguém com quem falar a não ser Jake, e não
tinha como falar com ele sem uma sugestão de flirt na voz. O único vestido
que trouxera, um vestido traçado azul-claro, era bastante decotado – e,
embora tivesse posto um casaco leve, os botões estavam partidos e não o
conseguia fechar. Jake pusera-se a olhar diretamente para dentro do decote
dela.
Saíram em Vincennes e, enquanto percorriam as ruas escuras e
silenciosas, passando por lojas e restaurantes e depois por casas estreitas e
maravilhosas, Jake aproximou-se do ouvido dela e disse:
– Então esta é a Evanston de Paris? – e ela não conseguiu evitar uma
gargalhada. No entanto, conteve-se, para ele não pensar que o merecera.
Jake cheirava a gim e Fiona perguntou a si própria se teria estado a beber
em casa de Richard ou antes.
Olhou para o telemóvel, apesar de o ter feito dois minutos antes e de ter o
som no máximo. E não havia motivo para que Arnaud lhe ligasse tão
depressa. Mas não conseguia parar de abrir o e-mail, de clicar na caixa de
mensagens vazia.
Ocorreu-lhe que podia ir para a cama com Jake, para se ver livre dele.
Seria divertido, tiraria a ideia da cabeça e depois ele faria o inevitável e
desapareceria graciosamente. Se não desaparecesse, se voltasse no dia
seguinte, ela podia sempre fingir que estava apaixonada e perguntar-lhe
quando se voltariam a ver em Chicago. «Sabes», podia dizer, se a situação
se tornasse desesperada, «há a possibilidade de eu ainda ser fértil.»
Claro que era duvidoso que ele conseguisse sequer fazê-lo, bêbedo como
Fiona presumia que estivesse. Prolongava excessivamente todas as sílabas
(«Já viste a Luaaaa?»), demorava o olhar nela um pouco demais, mexia os
pés demasiado devagar. Não o suficiente para que Richard e Serge
reparassem, pelos vistos, mas o suficiente para irritar Fiona. Porque é que
ele podia passar pela vida sempre embriagado? Porque é que podia ter uma
carteira boomerang?
E depois deu por si encurralada na maldita festa com ele. Ao princípio,
ambos ficaram junto de Richard e Serge à entrada, onde Corinne (numa
túnica amarela, com um colar feito de contas de madeira enormes) os
recebeu calorosamente, se certificou de que tinham bebidas e chamou o
marido, que estava na sala do lado. A barba de Fernand Leclercq era, como
Serge prometera, prodigiosa: até ao peito, branca e ondulada como a barba
de um Pai Natal de animação. A importância irradiava dele numa vibração
que enchia o vestíbulo.
– Estejam à vontade para ver o que quiserem – disse, e Fiona não
percebeu por que raio quereria ou precisaria de um convite destes, até ver
que a casa estava repleta de obras de arte incríveis e que havia convidados a
enfiar a cabeça em todos os cantinhos e divisões, mesmo no piso de cima,
para admirar as aquisições de Fernand e Corinne. Do lado de fora da casa
de banho, havia um Basquiat; um retrato de Julian Schnabel dominava a
sala de jantar.
Ao princípio, as pessoas fizeram um esforço por falar inglês com ela –
Corinne, Serge, o escritor alemão a quem foi apresentada –, mas pouco
tempo depois estava perdida num turbilhão de francês e limitada a ter de
falar com Jake. Foram parar a uma sala ao fundo da casa, que se enchia e
esvaziava de poucos em poucos minutos, conforme os convidados entravam
para verificar se não lhes tinham passado despercebidas alguma bandeja de
comida, alguma garrafa de champanhe, alguma obra cubista seminal.
– Tenho andado a estudar na Internet a obra dele – disse Jake. – Do
Richard. É estranho como há tantas fotografias que eu nem sabia que eram
dele. Fotografias famosas, quero eu dizer. Aquele tríptico, já o admirava há
muito tempo. Não fazia ideia de que era um Campo. E vi uma fotografia
tua, acho eu. Não é? – Apesar do copo que tinha na mão, parecia mais
sóbrio do que lhe parecera no métro. Fiona queria que ele desaparecesse.
– Tenho um vestido florido?
– Não, estás ao lado de um tipo... enroscada ao lado de alguém numa
cama de hospital.
Fiona tentou beber o resto do champanhe de uma vez, embora o gás lhe
magoasse o nariz quando engoliu.
– Estás a fazer perguntas sobre coisas privadas – disse. – É arte, mas eu
estava lá. Eram os meus amigos.
– Eu... bom, na verdade não perguntei nada. Acho que não fiz nenhuma
pergunta.
– Está bem.
– O que tinhas medo que eu perguntasse?
Ela pensou um pouco.
– Que me perguntasses quem era a pessoa na cama.
– Não queres sentar-te?
– Não. – Olhou para o grupo de pessoas à entrada da sala, mas estavam a
falar francês e ninguém olhou para ela.
– Posso... ouve, tenho só uma pergunta, mas não é sobre essa fotografia, é
sobre o tríptico.
– Santo Deus. O quê?
– Desculpa! Desculpa. Vamos procurar comida.
Ela estava ansiosa por motivos que não tinham nada a ver com Jake
Austen e a sua invasão, mas ele era um saco de pancada conveniente.
Assim, aproximou-se dele mais do que devia e falou mais alto do que
devia.
– É o Julian Ames. No tríptico. Era uma pessoa maravilhosa, ator, e o
Richard tirou a primeira fotografia quando estava tudo bem, a segunda
quando o Julian entrou em pânico porque tinha ficado a saber que estava
doente, e depois tirou a terceira quando ele pesava para aí quarenta quilos.
– Desculpa, a sério, eu...
– O meu irmão morreu num hospital horrível onde os meus pais o
enfiaram, um sítio onde toda a gente tinha medo dele e ninguém sabia que
raio estava a fazer, e o Julian foi visitá-lo todos os dias. Não era o tipo mais
inteligente do mundo, mas era leal e sentia as coisas mais do que as outras
pessoas. Tu usas o álcool para te entorpeceres, não é? Mas algumas pessoas
sentem mesmo as coisas. E havia uma enfermeira que distribuía as ementas,
mas nunca entrava no quarto dele. Não que ele conseguisse comer alguma
coisa, seja como for.
– Isso é horrível.
– Cala-te. Metade do tempo não tinha importância, porque o Nico estava
inconsciente. O que percebemos, já no fim, é que ele tinha um linfoma do
sistema nervoso central e os idiotas dos médicos não o identificaram e
deram-lhe esteroides, que era a pior coisa que lhe podiam dar. Mas ao
princípio reduziu o inchaço no cérebro e durante uns dois dias ele teve
alguns períodos de lucidez. Vinha ao de cima durante dez minutos e depois
desaparecia outra vez. Um dia, num desses períodos de lucidez, a
enfermeira entrou e parou à porta, tinha uma expressão muito arrogante,
aquela enfermeira... e começou a ler a ementa da porta. O Julian estava lá
comigo e o Nico estava consciente, e a enfermeira começou a recitar:
«Esparguete com almôndegas.» E o Julian pôs-se aos pés da cama do Nico
e repetiu com a sua voz do teatro, como se estivesse a representar um rei de
Shakespeare, e depois fez uma... uma coisa entre uma pantomima e uma
dança interpretativa. Tudo sobre esparguete, como se estivesse a enrolá-lo
no garfo, a sorver a massa. E a enfermeira olhou para ele com uma
expressão no rosto que dizia: É por isso que estão todos doentes, olhem
para este comportamento apaneleirado. O Julian aproximou-se, espreitou
para a ementa por cima do ombro dela e anunciou o prato seguinte, que era
salada de frango, e fez a dança da galinha. E recitou assim a ementa toda,
com a enfermeira ali a olhar.
– Isso é fantástico!
– Não. Foi triste e horrível. Foi a última vez que o meu irmão esteve
acordado.
– Posso perguntar o que lhe aconteceu? Ao Julian?
– Que merda achas que lhe aconteceu?
– Fiona...
– Era ator, sem família e sem seguro de saúde, e pelo menos se tivesse
ficado em Chicago podia ter tido algum apoio decente, se tivesse aguentado
até os medicamentos começarem a surgir, mas, em vez disso, desapareceu e
morreu sozinho e nem sequer sei onde.
– Estás a sangrar.
– O quê?
– A tua mão.
Ela olhou para baixo. O copo de champanhe vazio que estava a apertar
estalara. Uma gota de sangue escorria-lhe pelo interior do pulso e outra pelo
exterior do copo. Quando abriu a mão, o copo desfez-se em cacos no chão.
A sala perdeu a nitidez e as vozes ficaram distantes. Corinne estava ali, a
segurar uma toalha debaixo da mão dela, a conduzi-la até uma pequena casa
de banho com papel de parede e torneiras douradas, a sentá-la na tampa da
sanita.
Agora o marido de Corinne estava ajoelhado em frente de Fiona com uma
pinça na mão, a retirar lentamente os estilhaços de vidro cravados na sua
palma.
– Estou tão envergonhada – disse, quando a sua visão ficou novamente
nítida, depois de Corinne sair para limpar a confusão que ela fizera.
– Isso não é permitido. – A voz dele era rouca e grave. Havia algo de
régio na sua cabeça inclinada, no cabelo branco penteado com gel.
Fernand, o crítico importante. Aqui, não reconhecia nada que fizesse parte
da sua vida normal. Este homem, esta divisão, este sangue.
Ele massajou-lhe suavemente a palma da mão e fitou-a através dos
óculos.
– Obrigada – disse ela. – Já tinha feito isto antes?
– É só procurar os pedacinhos de luz.
Fiona imaginou a palma da sua mão salpicada por mil centelhas de luz
refletida em vidro, que levaria consigo para sempre. Todo o seu corpo devia
ser assim. A sua pele devia cortar as pessoas em quem tocava.
Queria dizer-lhe coisas simpáticas, mas não queria estar constantemente a
repetir o mesmo agradecimento.
– Também pinta? Além do trabalho como crítico? Tem as mãos tão
firmes.
– Estudei pintura. – Ergueu os olhos e sorriu e Fiona sentiu que podia
ficar ali para sempre, naquela casa de banho, com alguém a cuidar dela. –
Uma ideia terrível. Os críticos não deviam saber pintar.
Jake apareceu à porta. Ela não tinha energia para o mandar embora.
Fernand aplicou mais antissético na pele dela com um disco de algodão e
disse:
– Andei na Académie des Beaux-Arts. Muito, hã... antiquado.
Fiona animou-se.
– Ainda lá está? Dá aulas?
– Não. – Ele riu-se. – Não é para mim.
– É só porque... – fez uma pausa enquanto ele enfiava o bico da pinça na
base do seu dedo do meio – ...a minha família sempre quis localizar um
artista que frequentou essa escola. Foi namorado da minha tia-avó e morreu
muito novo.
– Em que ano?
– Oh, muito antes do seu tempo! Não pensei que o conhecesse, só... nem
sei porque falei nisso. Estou um bocadinho tonta. Ele venceu o Prix de
Rome, mas morreu pouco depois da Primeira Guerra Mundial.
– Ah, sim, isso foi antes do meu tempo!
– Chamava-se Ranko Novak. Sempre tivemos curiosidade em saber
mais.
– O que quer encontrar? Registos? Uma fotografia? – Virou-se para Jake,
que continuava à porta. – O seu telemóvel tem luz?
Jake acendeu a lanterna do telemóvel e, com uma careta, apontou-a para a
mão de Fiona.
– Fazemos assim – disse Fernand. – Tenho lá um amigo. Escreva o nome
antes de se ir embora e eu pergunto-lhe.
– É muito amável!
– Bom, ia ficando sem dedos em minha casa. É só para não me pedir uma
indemnização!
Fiona segurou um copo de água gelada na mão ligada porque o frio lhe
sabia bem, apesar de a condensação estar a humedecer a gaze. Encontrara
Richard na sala de jantar, rodeado de pessoas, como um rei, ao lado das
travessas de salmão fumado.
Mal conseguia seguir a conversa, e apenas graças às poucas coisas que
Richard ia traduzindo. («A Marie é a mulher dele.» «Foi na retrospetiva do
Gehry o ano passado.» «Ela está a falar do trabalho da filha.») Fiona queria
codeína. Queria encontrar uma farmácia. E depois? Talvez vaguear pelo
Marais até de manhã.
Richard disse-lhe:
– Aqui o Paul estava a perguntar como é que a fama me mudou. Estou a
explicar-lhe que só fui famoso no último quarto da minha vida! Tão pouco
tempo! – E depois falou em francês com Paul, que tinha pescoço de girafa e
dentes muito pequeninos. Olhou de novo para Fiona: – Estava a dizer-lhe
que o meu primeiro patrono foi uma colecionadora chamada Esmé Sharp,
lembras-te dela? E que ainda a semana passada ela me enviou um e-mail a
pedir para dar uma vista de olhos a algumas coisas, antes da Art Basel desta
primavera. Nada muda! Continuo a produzir trabalhos para o mesmo
público.
Jake desaparecera mas estava de volta, um pouco afastado do círculo.
Tinha arregaçado as mangas; os seus braços eram todos músculos e veias.
No cotovelo esquerdo, via-se a parte inferior de uma tatuagem.
Fiona lembrava-se vagamente desse nome. Esmé Sharp. Alguém que
andava em torno de Richard quando a carreira dele disparou, alguém que
talvez tivesse conhecido quando vinha de Madison a Chicago aos fins de
semana, grávida ou com Claire recém-nascida. Ou talvez a tivesse
conhecido depois de voltarem para a cidade em 1993, quando Damian dava
aulas na Universidade de Chicago e Fiona estava a dar em doida, a morrer
de tédio no sítio que em tempos lhe parecera tão vibrante. O princípio dos
anos noventa era uma neblina desfocada; Claire nascera no verão de 1992 e
Fiona andava esmagada por aquilo que, hoje em dia, toda a gente veria que
se tratava de uma depressão pós-parto, a juntar à perturbação de stress pós-
traumático que já trazia consigo dos anos oitenta. Mentira ao médico,
garantira-lhe que estava tudo esplêndido, e ele não insistira mais. Tentara
frequentar aulas de pós-graduação na Universidade DePaul, mas não tinha
energia para entregar um único trabalho. Via os programas da manhã na
televisão, entrevistas com celebridades cujos nomes desconhecia. Sentava-
se em bancos enquanto Claire brincava em parques infantis e enfiava os
dedinhos gordos na areia fria e ficava presa no alto de escorregas. Só depois
de Claire ir para o jardim de infância e de Fiona começar a trabalhar na loja
de artigos em segunda mão – mais ou menos na altura em que Richard
partira para Paris – é que tudo ganhou de novo claridade. Foi como se, por
volta de 1995, alguém lhe tivesse dado uns óculos novos, carregado nas
cores, devolvido o som à cidade. Mesmo a tempo de Fiona perceber como
era infeliz com Damian, com os seus sermões, o seu hábito de lamber os
dentes. Começou a dormir com um tipo que conhecera no ioga, por amor de
Deus, e, ao mesmo tempo que isso desgastou lentamente o seu casamento,
ajudou-a a acordar. Mas, nessa altura, Richard já tinha partido. Esmé devia
ser desse período perdido, um barco num cais enevoado.
– Et qu’est-ce que vous faites, dans la vie? – perguntou uma mulher a
Fiona.
– Je... – gaguejou ela – ...j’ai une boutique. En Chicago.
Céus, queria tanto ir-se embora. Richard salvou-a, a falar rapidamente;
Fiona presumiu que estava a esclarecer aos outros convidados que ela não
vendia sapatos caros. Ouviu «le sida», que soava muito melhor em francês.
Bom, tudo o que tinha a ver com a sida sempre fora melhor em França, em
Londres, até no Canadá. Menos vergonha, mais informação, mais fundos,
mais investigação. Menos pessoas a gritar sobre o inferno enquanto os
doentes morriam.
Aproximou-se de Jake e murmurou:
– Ajuda-me a encontrar mais gaze.
– Queres que peça aos donos da casa?
– Não. Anda comigo.
Se podia andar de pendura numa motorizada pela cidade, como uma
adolescente, podia portar-se como uma adolescente também noutras coisas.
Ele seguiu-a até ao vestíbulo vazio.
– Por acaso não tens nenhum comprimido bom para as dores?
– Quem me dera.
– Tens um cigarro?
– Não, mas já fumava.
– Tens um preservativo?
– Um quê?
– Ouve. – Olhou para o telemóvel; nada. Procurou o casaco por baixo dos
outros no cabide. – Estás bêbedo, certo?
– Nem por isso. – Seguiu-a quando ela saiu da casa; as ruas estavam
desertas.
– Achas que estás suficientemente sóbrio para encontrar o métro? – Virou
para a esquerda, embora sem a certeza de que fosse a direção certa.
– Já disse que não estou bêbedo. Estava um bocadinho pedrado quando
chegámos, mas já passou.
– És mesmo um alcoólico inveterado. Nem sequer ficas bêbedo.
Caminhou a passo rápido e ele teve de acelerar para a acompanhar.
– Quem é que disse que sou alcoólico?
– Um tipo que conheci no avião.
Pararam num cruzamento e esperaram pelo verde para os peões, apesar de
as estradas estarem vazias.
– Tens... quê? Trinta anos? – perguntou ela.
– Trinta e cinco. Porquê?
– Não quero ir para a cama com um bebé. Trinta e cinco não é mau.
Pela expressão dele, era evidente que não percebia se ela estava a brincar,
e era também evidente que queria que não estivesse.
Fiona bebera a quantidade de vinho errada para uma autoanálise. Um
copo a mais e talvez estivesse sentada no passeio, a despejar todos os
segredos da sua vida, a questionar em voz alta os motivos da sua tendência
de usar o sexo como arma. Um copo a menos e ainda estaria ao lado de
Richard, a acenar com a cabeça em resposta a uma conversa qualquer em
francês. Assim, bebera apenas o suficiente para estar consciente de que
escapara por pouco a ambas essas possibilidades, e também o suficiente
para isso não a incomodar. Estava suficientemente bêbeda para querer um
homem em cima dela, mas não tanto que adormecesse assim que se
encontrasse na horizontal. Depois de atravessarem a estrada, pôs a mão no
traseiro de Jake e enfiou os dedos no bolso de trás das calças dele.
Jake virou-se para ela e lançou-lhe um olhar, uma combinação de
vulnerável e predador, e depois segurou-lhe na nuca, puxou a boca dela para
a sua e a língua dela para a sua e a pélvis dela para a sua. Percorreram mais
um quarteirão e ele fez o mesmo, mais um quarteirão, o mesmo.
Ele cheirava a carne fumada, algo que não incomodava Fiona. Entraram
numa farmácia para comprar preservativos e ibuprofeno e depois
regressaram a casa de Richard, onde, na cama do quarto de visitas, fizeram
sexo. Fiona lembrou-se apenas uma vez, quando estava sentada em cima
dele, que muito provavelmente era avó de alguém. Na maior parte do
tempo, não se sentiu minimamente embaraçada; Jake era tão bonito que era
fácil perder-se, com a pele dos braços esticada sobre os músculos. Passou a
mão esquerda nos pelos do peito dele, tão densos como a barba, e manteve
a mão ferida apertada sobre o espaldar da cama. De manhã ia doer-lhe, mas
não queria saber. Jake terminou com um longo grunhido involuntário e
primitivo e depois deitou-se ao lado dela e enfiou-lhe os dedos entre as
pernas, o que ela não achou que fosse resultar, até que resultou.
Calculara que Jake adormeceria a seguir, mas ele soergueu-se num
cotovelo e falou-lhe sobre a sua primeira namorada na universidade, uma
mulher que o amarrara à cama e o deixara ali uma hora, algo de que se
lembrava muitas vezes e que o fizera odiá-la, mas que era também o motivo
pelo qual nunca a esquecera completamente. Conversas íntimas, santo
Deus. Fiona queria correr com ele, mas eram só dez horas e não acreditava
que Richard e Serge chegassem em breve. Precisava que ele saísse antes
disso; não que Richard a fosse julgar, mas também não deixaria passar a
oportunidade de se meter com ela. E ela tinha cinquenta e um anos e não
estava completamente convencida de que Jake tivesse mesmo trinta e cinco,
e não suportava que a diferença de idades fosse um tópico de interesse
lascivo.
– Conta-me como foi a tua primeira vez – pediu Jake.
– O que é isto? – disse ela. – Estamos a partilhar intimidade?
Ele riu-se, nada magoado.
– Esta é uma das melhores partes. Há os preliminares e os pós-liminares.
Ela virou-se para ele. Que mal fazia?
– Perdi a virgindade com o professor de Ciências da minha prima. Já
tinha acabado o ensino secundário, mas há muito pouco tempo. Noutra
escola.
– Raios.
– Não sei, todos os meus amigos eram muito mais velhos. Eram amigos
do meu irmão, e depois ficaram meus amigos. Era difícil entusiasmar-me
por um rapazinho com acne.
– Alguma vez foste para a cama com os amigos do teu irmão?
A gargalhada que lhe escapou pareceu embaraçosamente um ronco. A
ideia da jovem Fiona na cama com Charlie Keene ou Asher Glass! Estava
perdidamente apaixonada por Yale, mas isso era diferente. Sem quaisquer
expectativas ou esperanças, apenas uma paixoneta que podia permanecer
pura e platónica. Nunca fora sexual, nunca fora egoísta. Ela costumava
procurar desculpas para lhe tocar, para falar com ele, para apoiar a cabeça
no seu ombro.
– Nem por isso? – disse Jake.
– Nem por isso.
– O que não compreendo naquele tríptico, em relação ao tipo do tríptico,
é que...
– Oh, meu Deus, cala-te. Anda cá. – Tentou beijá-lo, só para o impedir de
dizer outra palavra, mas ele afastou-se. – Não me fizeste já cortar a mão
com estas conversas? Estás a ser um bocadinho... vampiresco.
– Desculpa – disse ele. – Desculpa. Estou a ser jornalista. Mas também...
não é uma coisa de que devias falar? Para processar?
– Há trinta anos que ando a processar – disse ela. – Ando a processar
desde que tu vias desenhos animados ao domingo de manhã em pijama.
Tenho uma psicóloga para estas coisas. Não preciso de um jornalista.
– Mas não vais para a cama com a psicóloga. Quer dizer, acho eu. Porque,
a sério, quando conversamos depois do sexo é diferente. Acho que era por
isso que o Freud mandava toda a gente deitar-se.
– O Freud ia para a cama com as pacientes?
– Acho que sim.
Ela revirou os olhos.
– Está bem. Céus. O Julian morreu... santo Deus, nem sei há quanto
tempo. Sabes, conforme o grau de proximidade que tínhamos com alguém...
Havia alguns que se abriam mais, que se apoiavam nos amigos, com quem
acabávamos por passar mais tempo naqueles últimos meses do que até
então. E outros que se isolavam de todas as pessoas que não pertencessem
ao seu círculo mais íntimo. Não por maldade, simplesmente não precisavam
das pessoas. Seríamos uma interrupção, percebes? E eu não pertencia ao
círculo mais íntimo do Julian. De qualquer modo, no fim, ele isolou-se de
toda a gente.
Jake não parecia compreender.
– Está bem – disse.
– Havia uma espécie de sofrimento competitivo que podia acontecer. As
pessoas invadiam o hospital e ali ficavam dias a fio, quase como que para se
exibirem. Parece horrível, mas é verdade. Não tinham más intenções, só
que... queremos sempre acreditar que somos importantes na vida de alguém.
E às vezes, no fim, descobrimos que não somos.
Jake passou a língua pela orelha dela, pelo seu pescoço.
– Mais uma vez – disse.
Fiona não gostava da forma como ele olhava profundamente para os
olhos dela, como se quisesse sincronizar a dilatação das pupilas de ambos.
O objetivo nunca fora que ele se sentisse ligado a ela, principalmente com
tudo o que se estava a passar.
Ouviram ruídos no apartamento.
– Merda – disse ela. – Se for só o Richard, ele deita-se cedo. Podes sair
depois, sem fazer barulho, está bem?
– Está bem – disse ele, e fechou os olhos. – Não sou alcoólico. Era uma
piada.
– Que graça é que isso tem?
– Sei lá. Estava bêbedo.
Fiona devia ter adormecido, porque estava no autocarro para Chicago
com Richard, à procura da casa de Corinne. Tinha a mão em chamas.
Quando se virou, a meio da noite, Jake já lá não estava, felizmente.
1986
ill decretara que tinham todos a tarde de folga. Yale arrastou a mala até
B ao El, depois até Briar Street, e pelas escadas acima até ao segundo
andar. Estivera fora tempo suficiente para ter aquela sensação maravilhosa
de regressar a casa depois de uma longa viagem, desencadeada pelos
cheiros do seu prédio, as dimensões do seu vestíbulo, que de alguma forma
pareciam ter-se reajustado num cenário de fantasia, alteradas em alguns
centímetros vertiginosos em todas as direções. Estava com fome, atrasado
para o almoço. Pensou em fazer uma tosta de queijo e tentou lembrar-se se
teriam sopa de tomate na despensa.
Quando abriu a porta, deu de caras com a mãe de Charlie, descalça, com
um vestido cinzento. Pensava que ela só vinha na semana seguinte. Yale
largou a mala, exclamou «Teresa!» e dirigiu-se a ela para a abraçar. Ouviu a
porta do quarto fechar-se e presumiu que Charlie vinha também recebê-lo e
que fechara a porta para a mãe não ver a cama por fazer. Mas Charlie não
apareceu. Tinha entrado no quarto, não o contrário.
E, quando se afastou de Teresa, ela tinha uma expressão muito estranha
no rosto. Sorriu, mas apenas com a boca, e disse:
– Yale, temos de... vamos dar um passeio?
Sentiu que a casa podia começar a andar à roda, ou que já estava a fazê-
lo.
– Que aconteceu?
Charlie estava com um esgotamento. Julian morrera. O jornal fechara.
Reagan tinha...
Teresa segurou-lhe nos braços. Ele ainda tinha o casaco vestido, o seu
casaco elegante.
– Yale, devíamos ir dar um passeio.
– Por que raio havia de querer voltar a sair? Teresa, o que se passa?
Os olhos dela começaram a encher-se de lágrimas e Yale percebeu que
Teresa já tinha estado a chorar, que tinha o rosto inchado, o cabelo
despenteado.
Enfiou as mãos nos bolsos do casaco. O colar de Fiona estava lá,
transferido do bolso das calças, e as arestas feriram-lhe a palma da mão. Era
um broche com pássaros dos dois lados, a segurarem uma moldura. Asas de
metal afiadas. Passava-se qualquer coisa de muito grave.
Teresa respirou fundo e disse baixinho:
– Yale, vou acompanhar-te à clínica e vais fazer a análise.
Yale abriu a boca para dizer: não acredito que ele está outra vez com esta
conversa, não acredito que está a dar-lhe ouvidos, não acredito que ele
pense que eu lhe faria uma coisa dessas, ainda na primavera fizemos os dois
a análise.
Mas sentou-se no chão e colocou a cabeça entre os joelhos.
Ela estava a tentar dizer-lhe outra coisa, qualquer coisa sobre Charlie, e
Yale não conseguia juntar as peças. Mas sim, meu Deus, compreendia.
Sentiu agulhas trespassarem-lhe os braços e as pernas, prendendo-o ao
momento. Como um inseto morto num quadrado de esponja.
Ouviu Charlie no quarto, a andar de um lado para o outro. A mexer nas
coisas. Yale apertou as orelhas com os joelhos. Teresa agachou-se em frente
dele e pousou a mão no seu sapato. O sapato de Nico.
– Yale, estás a ouvir? – perguntou.
Yale ficou chocado ao perceber que não estava a chorar, embora Teresa
estivesse. Porque é que não estava a chorar? Murmurou:
– Teresa, o que é que ele fez?
– Não sei. – Ela abanou a cabeça. – Não me quer dizer. Ouve, Yale,
mesmo que ele tenha estes... estes anticorpos, isso só significa que foi
exposto. Não significa que tenha o vírus.
– Não é verdade. Ele sabe muito bem que isso não é verdade. Foi ele que
lhe disse isso? – O instinto de falar num murmúrio talvez viesse do hábito
de não discutir a doença de ninguém quando a pessoa pudesse ouvir. Ou
talvez quisesse negar a Charlie o conhecimento da sua reação. Podia ter
gritado, não podia? Podia ter arrombado a porta do quarto e abraçado
Charlie, ou esmurrado Charlie, em vez de ficar ali sentado a pensar no seu
próprio corpo, na sua própria saúde, no seu próprio coração.
Talvez vomitasse. Queria vomitar.
Se Charlie estivesse ali fora, a dizer-lhe pessoalmente todas estas coisas,
conseguiria pensar em Charlie, no que isto significava para ele. Mas tudo o
que tinha era uma porta fechada e esta mensagem, esta mensageira.
Que raio acontecera? Olhou para o teto, que estava parado,
improvavelmente, apenas um teto branco normal.
– Quando é que ele lhe ligou? – quis saber. – Quando é que veio?
– Ele recebeu os resultados ontem. Apanhei o avião hoje de manhã.
Hoje era dia 16. Então Charlie devia ter feito a análise quando, no início
do mês? Mesmo no fim de dezembro?
E Yale levantou-se, correu para o quarto.
– Charlie, foste para a cama com o Julian? Foda-se, com o Julian? Que
raio é que fizeste, Charlie? Merda, o que é que te passou pela cabeça?
Deu um pontapé na porta, e outro.
Magoou o pé, mas não o suficiente.
Estes eram os dominós que tinham caído: Julian, e depois Charlie. E
talvez Yale.
Charlie a empalidecer ao almoço. Charlie na cabina telefónica. Charlie a
andar pela cidade na noite de Ano Novo enquanto Yale ia ao hospital
sozinho.
Quando abusava da bomba para a asma, Yale sentia as mãos a vibrar e
com um formigueiro. Era assim que estavam agora, e quentes.
Teresa puxou-o pela cintura e Yale ouviu soluços do outro lado da porta
fechada.
– Temos de te tirar daqui, Yale. Não precisas de ir fazer a análise já.
Podemos só ir a... a um pub. A casa de algum amigo.
Julian a não aparecer no Dia de Ação de Graças. Charlie a não querer ir
ver Hamlet. Charlie a interrogar Yale (O que é que o Julian disse? O que é
que o Julian fez?) de cada vez que mencionava tê-lo visto.
Girou sobre si próprio e olhou para ela.
– Não me adiantaria absolutamente nada fazer a análise agora.
Compreende? – Estava aos gritos, para Charlie ouvir. – É preciso esperar
três meses para ter a certeza. São precisos três meses desde a última vez em
que estivemos expostos.
– Mas talvez isso te faça sentir melhor – balbuciou ela.
Quando fora a última vez que tinham feito sexo? Sexo oral no sábado,
mas quando fora a última vez que Charlie despira sequer as calças, deixara
Yale desafivelar o cinto? Céus, no Ano Novo. Tinha de lhe dar crédito por
isso. Ele afastara-o, uma e outra vez. Mas antes disso, sim. No Natal, etc. E
sabe Deus quando é que ele estivera com Julian, quantas vezes, ao longo de
quantas semanas ou anos.
Gritou, com a boca tão perto da porta que sentiu o seu próprio ar rechaçar
e atingi-lo no rosto.
– Quanto tempo andaste a fazer isto, Charlie? Era por isso que estavas tão
paranoico? Porque te vias ao raio do espelho?
– Querido, para – pediu Teresa. Não devia estar a dizer nada destas coisas
em frente dela, mas não queria saber.
– Pelo menos podias ter deixado que fosse o Teddy a foder-te! – berrou
Yale. – Ele não está doente!
Algo bateu contra a porta.
– Yale, chega! – disse Teresa. E ele tinha de lhe dar ouvidos. O filho dela
estava a morrer. Charlie estava a morrer. Deixou-se cair de novo no chão e
baixou a cabeça entre os joelhos. Pensou em levantar-se e dar pontapés à
mobília, mas não, ia ficar ali e respirar.
Isto não tinha a ver com Yale, pelo menos por enquanto.
Na altura em que fizeram a análise juntos, na primavera, Yale imaginara
que, se estivessem infetados, se abraçariam um ao outro a chorar e depois
iriam comer uma bela refeição e fariam piadas sobre ter de engordar, e
pediriam a garrafa de vinho mais cara e seria uma noite terrível, mas pelo
menos enfrentariam o futuro juntos. O Dr. Vincent falara com eles antes da
análise.
– Vamos discutir o que um diagnóstico positivo pode significar para
vocês – dissera, e explicara que estas coisas eram melhores se a pessoa
refletisse antecipadamente e com tranquilidade sobre a sua reação, as suas
opções. – Onde procurariam apoio?
Eles tinham apontado um para o outro. Charlie dissera:
– E temos um círculo de amigos chegados. E a minha mãe.
Yale sentiu agora todas essas pessoas a dispersarem-se como poeira. Se
não tivesse Charlie, não teria Teresa. E não tinha os amigos, que já eram
todos amigos de Charlie primeiro. E estava bastante certo de que não tinha
Charlie. Pelos vistos, Charlie preferira Julian. E sabe-se lá com quem mais é
que Charlie andara metido.
Pegou na mala por desfazer e enfiou nela uma garrafa de uísque que tirou
do armário. Deu um beijo a Teresa – falhou a face e beijou-a de raspão na
orelha – e disse:
– Desculpe. Não fui eu que lhe fiz isto.
– Eu sei – disse ela.
E depois viu-se na rua, sem saber para que lado havia de se virar.
Vagueou até ao Little Jim’s e sentou-se a olhar para as garrafas atrás do
balcão e bebeu vodca com tónica porque era o que estava em promoção.
Talvez tivesse emborcado copo atrás de copo, se lhe apetecesse mexer os
braços, mas não lhe apetecia. Apesar do coração acelerado, apesar dos
sinais primitivos inúteis que lhe diziam para trepar a uma árvore e se pôr
em segurança. Estava a passar pornografia no grande ecrã de televisão: um
tipo assistia, meio escondido, de trás da divisória do chuveiro, enquanto
outros dois faziam sexo. A câmara focava constantemente o rosto do
voyeur. Nunca se juntaria aos outros dois. Não era esse tipo de filme. Yale
não sentiu nada. Ou melhor, nada para além do que já sentia: náusea,
paralisia. Desfizera uma pequena palhinha de plástico em pedacinhos.
Ninguém o incomodou. Com certeza percebiam que se passava alguma
coisa.
Não era a traição que mais o incomodava. Articulou este pensamento, em
silêncio, de olhos postos no copo, como se o dirigisse aos cubos de gelo
meio derretidos. E não era apenas a doença, a exposição, embora isso fosse
o principal. O que lhe trespassava o coração neste momento era o facto de
se ter deixado acobardar pelas exigências de Charlie. Andava com pezinhos
de lã por causa dele e entretanto Charlie, pelas costas de Yale, fazia isto.
Mais do que qualquer outra coisa, sentia-se estúpido.
Quando saiu do bar era tarde, já passava da hora de jantar, mas a clínica
ainda devia estar aberta. No entanto, pensou, porque havia de fazer isso a si
próprio agora? Devia esperar três meses. Não, três meses menos... hoje era
dia 16. Três meses a contar da passagem de ano. Portanto, finais de março?
Não conseguia ter a certeza das contas. Os anticorpos podiam aparecer mais
cedo, mas isso não era propriamente tranquilizador. O resultado só podia ser
um negativo incerto e mais semanas de purgatório, ou uma sentença de
morte. Pensou em ir para a galeria e dormir no chão do escritório. Mas o
segurança acharia estranho. Pensou em Terrence, que já tivera alta do
hospital. Alguém devia ficar com Terrence, de qualquer maneira. Ele podia
ser a pessoa que fazia companhia a Terrence, a pessoa que cuidava de
Terrence.
Caminhou até Melrose e tocou à campainha. Depois sentiu-se mal, ao
pensar que Terrence teria de se levantar para abrir. Nem sequer eram
propriamente grandes amigos. Yale sempre fora mais chegado a Nico. Não
tinha o direito de esgotar as reservas de energia de Terrence. Estava prestes
a virar costas quando ouviu a voz de Terrence no intercomunicador.
– Podes subir, Yale – disse ele –, mas vou ser franco: cheira mal que
tresanda.
Tinha razão. O rosto de Terrence estava encovado, a sua pele reluzente e
esticada, mas deixara crescer uma barba rala no hospital e ainda não a
fizera. Como é que o seu corpo encontrava energia para fazer crescer pelos?
Porque é que estava a produzir barba em vez de células T?
Roscoe, o velho gato cinzento de Nico, roçou-se na perna de Yale.
– Ele precisa de comida? – perguntou Yale.
– Não – disse Terrence –, mas se quiseres limpar-lhe a caixa da areia,
agradecia. – Não estava a brincar. – Não posso fazê-lo sem luvas de
borracha, e acabaram-se. Nem sequer o devia ter aqui, na verdade. – A
caixa de areia, na cozinha, estava nojenta. Yale ajoelhou-se no chão da
cozinha e deitou mãos ao trabalho, com Roscoe a dar-lhe marradinhas na
coxa. Fazer isto parecia-lhe certo. Podia passar o resto da noite a tirar
excrementos e ilhas de urina seca e sentir-se exatamente no sítio certo.
– Sabes que o médico não queria que estivesses aqui – murmurou a
Roscoe. – E ainda por cima ele é alérgico a gatos.
Depois de estar sentado no sofá de Terrence, com um copo de uísque na
mão, percebeu que não podia dizer-lhe nada que fosse verdade. Não podia
dizer «o Charlie está doente», e não podia dizer «o Charlie traiu-me». Era
humilhante e a primeira parte não era uma notícia que lhe coubesse a ele
dar. Não podia começar a espalhar que Charlie, que defendera o sexo
seguro no jornal antes de qualquer outra pessoa falar nisso, era um
hipócrita. Não que a maioria das pessoas pensasse dessa forma; o mais
provável era que ficassem do lado de Charlie e interpretassem tudo o que
Yale dissesse como uma acusação, como vingança.
Terrence estava na sua grande poltrona verde, com a bengala ao lado.
– Yale, está tudo bem? – perguntou.
Yale não se sentia doente, não tinha reparado em nada estranho. Sabia que
esta noite, antes de dormir, se examinaria ao espelho à procura de manchas,
que palparia os gânglios, espreitaria para a garganta para ver se tinha aftas.
Era um ritual compulsivo diário antes de as análises terem aparecido, do
qual estava livre há menos de um ano. E agora voltaria. Mas Terrence não
lhe estava a perguntar se estava doente, apenas se estava prestes a desatar a
chorar, o que na verdade parecia muito possível.
– O Charlie pôs-me na rua – disse. – Acho que está tudo acabado entre
nós.
Terrence suspirou, mas não pareceu surpreendido. Prendeu a manta
coçada à volta das pernas.
– Espera – disse Yale. – Terrence, sabes alguma coisa?
– Sobre o quê? – Terrence não tinha jeito para mentir, ou talvez não
tivesse simplesmente energia.
Não o devia ter dito, mas disse.
– Sobre... o Charlie e o Julian.
Terrence fez uma careta e acenou afirmativamente, devagar.
– Não me digas que toda a gente sabe!
– Não, não. É só que depois... bom, depois da vigília do Nico?
– Oh, foda-se.
– A seguir, quando fomos a casa do Nico, ele não te encontrava e estava
irritado com alguma coisa e embebedou-se. Embebedou-se a sério. O Julian
estava na casa de banho com ele, a ajudá-lo. Pensei que estivesse a vomitar.
Mas demoraram-se muito tempo e fui ver o que se passava e eles estavam...
bom, tu sabes. E, pouco depois, saíram juntos. Mais ninguém notou. No dia
a seguir liguei ao Julian e ele sentia-se péssimo. A sério, foi só aquela vez.
O Julian não queria magoar-te. Nem o Charlie. Eu sei disso. Tu também
sabes.
– Não pode ter sido só uma vez – disse Yale. – Nem pensar. As coisas não
funcionam assim. – Isso era o enredo de um vídeo educativo, não a vida
real. Basta uma vez. Nem sequer deem as mãos ou podem apanhar sífilis.
Mas poderia ser verdade? Seria o universo assim tão horrivelmente
vingativo? Tão cirúrgico?
De súbito, Yale regressou à noite da angariação de fundos da Howard
Brown. Deus do céu, era isso que Julian estava a querer transmitir-lhe, ali
parado junto aos lavatórios a olhar para os olhos dele. Julian não estava
apaixonado por ele. Estava arrependido. Talvez pensasse que Yale sabia, ou
calculasse que ele descobriria em breve, ou talvez tentasse apenas aliviar a
própria consciência. E Yale, como um idiota, sentira-se lisonjeado.
E, imediatamente na peugada desses pensamentos, Yale começou a
culpar-se a si próprio por ter desaparecido em casa de Richard, depois do
velório. Se não o tivesse feito, se não tivesse assustado Charlie, talvez nada
disto tivesse acontecido. Se fora realmente uma coisa isolada, então ele, no
instante em que subira aquelas escadas, matara Charlie. E talvez a si próprio
também.
Yale estremeceu, soltou um soluço estrangulado e disse:
– Ele tem o vírus, Terrence. Mas não podes dizer a ninguém.
– Merda. Oh, Yale. – Terrence parecia querer levantar-se da poltrona, se
tivesse energia para tanto, e vir sentar-se ao lado de Yale para que este não
se sentisse tão sozinho no sofá grande. – Eu sabia do Julian, mas não sabia
do Charlie. Eu... não sei porquê, mas nem sequer me ocorreu. Não sei.
Talvez por causa das conversas todas do Charlie sobre camisinhas, sobre
segurança. Yale, se me tivesse lembrado disso, tens de acreditar que eu...
– Está bem – interrompeu Yale. – Está bem.
– Céus.
– Ouve, ninguém sabe e não podes dizer nada. Foi a porcaria da análise.
Se não fosse a análise, nem sequer saberíamos e estaríamos a jantar fora
neste momento.
– Foda-se. Está bem, mas precisamos da análise, não é? Podes nem
sequer ficar doente. Por causa da análise.
– Só saberei daqui a três meses.
– Ouve, tens a Gripe do Sexo? Tens andado doente? Agoniado, com
febre, como se tivesses sido atropelado por um camião mas o camião
estivesse cheio de lobos e os lobos fossem feitos de salmonela?
– Nem toda a gente tem isso. E quer dizer... acho que estive doente no
verão. Só que não me lembro. Se calhar estive doente na primavera.
Charlie andara adoentado em dezembro. Portanto, talvez fosse mesmo
verdade; talvez tivesse sido um lapso único. Ou talvez a relação com Julian
tivesse começado nessa noite mas ainda continuasse. Yale sentiu a cabeça
andar à roda.
– É como o pior puzzle lógico do mundo – disse.
– Lamento muito, Yale.
– Para! Não te autorizo a teres pena de mim.
– Mas acho que tenho.
Yale serviu-se de mais uísque. Ainda não jantara, mas não ia pedir
comida a Terrence. Roscoe saltou para o sofá, enroscou-se ao lado dele e
adormeceu imediatamente.
– Podes ficar aqui esta noite, se quiseres – ofereceu Terrence –, mas,
acredita, não queres ficar mais tempo do que isso. Vou acordar-te com os
meus enjoos matinais. – Esfregou a barriga côncava e disse: – Este bebé
deve ser uma menina. É tão dramática.
– Até por volta da uma da tarde, este estava a ser o melhor dia da minha
vida – disse Yale.
E embora Terrence talvez quisesse dar a entender que estava na hora de ir
para a cama, não conseguiu conter-se. Contou-lhe tudo sobre as obras de
arte de Nora, pelo menos os detalhes principais. Modigliani, etc. Agora,
parecia-lhe uma vitória tremendamente vazia. Perdera o amante e
possivelmente a saúde, a vida, mas trouxera uns desenhos velhos do
Wisconsin para o Illinois. Pedaços de papel.
– O tempo todo, enquanto lá estávamos, só conseguia pensar: Isto é bom
demais para ser verdade. Está a escapar-me alguma coisa. Estou a ser
enganado. Talvez fosse o meu subconsciente, sabes? Eu sabia, cá dentro,
que alguma coisa não estava bem, que havia algo errado. Sinais de alarme.
Só que percebi tudo mal.
Terrence ficou calado um momento e depois disse:
– Isto pode parecer uma pergunta estranha, mas esses não são os sapatos
do Nico?
Yale esquecera-se.
– Oh, meu Deus! Sim. Desculpa. Importas-te?
– Não, claro que não. Quer dizer, na verdade, podias deixá-los ao pé da
porta? Só não quero que tragas germes para dentro.
Yale descalçou-se, pôs os sapatos no tapete do lado de fora da porta e
depois lavou as mãos, apesar de já o ter feito quando mudara a areia de
Roscoe.
– Amanhã, antes de me ir embora, vou à rua buscar o que precisares, está
bem?
– Sim.
Nessa noite, Yale deitou-se no sofá, a ouvir Terrence às voltas na cama, a
gemer com os suores noturnos. Fechou os olhos e viu-se a si próprio, na
noite da vigília, como se pairasse junto à claraboia da casa de Richard. Viu-
se a falar com Fiona, a falar com Julian, a beberricar a sua cuba-libre.
Uma e outra vez viu-se a assistir aos primeiros slides, depois a dar meia-
volta e a apoiar o pé no primeiro degrau. Viu-se a si próprio subir as
escadas.
2015
iona acordou tarde, não de ressaca, mas com uma dor de garganta que já
F estava a espalhar-se ao peito e à cabeça. A mão latejava de dor a cada
batimento do seu coração.
Serge levou-a ao médico de táxi, sem ser preciso marcação prévia (nem
seguro de saúde), e o médico desinfetou-lhe a mão e envolveu-a habilmente
em ligaduras, deu-lhe comprimidos para as dores e passou uma receita de
antibiótico. A conta foi vinte e três euros, que Serge insistiu em pagar.
– Hoje descansas – disse ele. – Promete, está bem? Se te apetecer sair,
podes ir ao estúdio do Richard e ele faz-te a visita guiada. Pode mostrar-te
os vídeos no computador, para os veres antes da abertura!
Mas Fiona não conseguia fazer isso, ainda não. Ver aquelas filmagens
seria algo fantástico para fazer amanhã, mas hoje não. Nunca hoje. No
entanto, podia tirar algumas horas da sua busca, por mais deprimente que a
perspetiva fosse. Podia esperar que Arnaud lhe ligasse, ver se os
comprimidos lhe davam sono. Se Claire nem sequer estivesse em Paris,
faria mais sentido procurar na Internet «Kurt Pearce + detenção + Paris»
(uma busca infrutífera) e «cidadão americano como viver em Paris» (semi-
informativa) e «Coletivo Hossana Paris» (também infrutífera) do que
vaguear pelas ruas.
Quando Serge saiu para o estúdio, disse-lhe que estava demasiado
cansada. Fazia frio na rua, mas abriu as portas da varanda, arrastou uma
cadeira para lá e ficou a ouvir os sons das filmagens. Se se posicionasse da
maneira certa, conseguia ver a multidão, as luzes, o guindaste. Tinha de
descobrir o nome do filme antes de se ir embora, para poder ver as cenas
quando ele saísse.
Mas não fazia ideia de quanto tempo ficaria, nem de qual seria o seu
passo seguinte.
Tinha no colo o livro da História de Paris que comprara. Estava
demasiado distraída para ler, mas as fotografias eram encantadoras,
evocativas: mulheres com estolas de peles, homens a saltar de cadeira em
cadeira para atravessar uma rua alagada pelas cheias, a entrada de um clube
noturno, decorada para parecer uma boca monstruosa.
Lembrou-se de Nora lhe ter dito uma vez:
– Para nós, Paris nem sequer era Paris. Era uma projeção. Era aquilo que
cada um de nós precisava que fosse.
Esta conversa tivera lugar no casamento em que ela dissera a Nora para
contactar Yale, onde escrevera o nome Yale Tishman, Northwestern, Brigg
num guardanapo de papel. O casamento da sua prima Melanie, a norte de
Milwaukee, e Melanie convidara especificamente Nico e Fiona mas não os
pais deles. Não incluíra Terrence – seria levar as coisas longe demais,
talvez, para o Wisconsin em 1985 – mas era leal à sua geração. Fiona e o
irmão tinham entrado juntos, como namorados.
Nico já tinha perdido peso nessa altura, mas Fiona não dera importância
ao assunto. Ele dançara com Fiona, dançara com a noiva, e com a horrível
prima Debra, e depois sentara-se ao pé de Nora, a fazer-lhe companhia. No
carro, no regresso a casa, levantara o lado da camisa para lhe mostrar uma
faixa de altos vermelhos com ar inflamado, que fizeram os olhos de Fiona
encherem-se de lágrimas.
– Herpes – disse. E, quando ela começou a entrar em pânico, explicou: –
Dá uma comichão horrível, mas é a mesma coisa que varicela. Qualquer
pessoa que já teve varicela pode apanhar isto. O vírus fica vivo, debaixo da
nossa pele, para sempre.
Fiona soube mais tarde que ele não fora ao seu médico, apenas às
Urgências, onde lhe tinham dado loção de calamina e um folheto.
Um mês depois, ele e Terrence andavam às compras e Terrence
perguntara-lhe quanto dinheiro tinha e Nico passara um longo minuto a
olhar para a nota de dez dólares numa mão e a nota de cinco dólares na
outra, incapaz de fazer a soma. E, seis semanas depois, estava morto.
Olhou para o pombo que pousara no corrimão da varanda. Não estava
preparada para ver os vídeos de Richard, mas talvez pudesse começar a
preparar-se com os seus álbuns de fotografias. Fechou as portas da varanda,
serviu-se de um copo de leite, respirou fundo algumas vezes.
Havia talvez vinte álbuns de fotografias na prateleira, facto que Fiona
registara no primeiro dia. Lombadas de cabedal preto, castanho, de lona
colorida. Caixas cheias de slides, também, mas era melhor não mexer
nisso.
Contudo, quando tirou da prateleira um grosso álbum vermelho, um papel
deslizou e caiu para o chão. Fiona tentou apertar o álbum contra o peito
antes que caísse mais alguma coisa, mas acabou por deixar cair tudo, e
agora havia papéis por todo o lado. Folhas de papel amarelecido dobradas
ao meio, pequenos cartões, uma folha lilás com a fotografia pouco nítida de
um homem. Eram boletins de funeral e cartões de orações. Ajoelhou-se e
começou a juntá-los. Este não era um álbum de fotografias, percebeu
quando o abriu e viu um recorte antigo do Out Loud Chicago, com o
obituário de alguém que dançava no Alvin Ailey Theater.
Santo Deus.
Abriu o álbum no princípio e tentou enfiar os papéis nos espaços vazios.
Um homem chamado Oscar, ninguém que ela recordasse, morrera em 1984.
Um recorte sobre Katsu Tatami, de 1986. Aqui estava o boletim de Terrence
Robinson, o Terrence de Nico. Que estranho – ela própria devia ter redigido
este boletim, mas não se lembrava. Jonathan Bird. Dwight Summer. Eram
tantos, impossivelmente tantos.
Na sua vida atual, acontecia pelo menos uma vez por semana alguém
entrar na loja e, ao ser informado sobre a missão, dizer algo como «Oh, eu
lembro-me dessa época!». Fiona aprendera a controlar-se, a fazer força com
os dedos dos pés no chão, para o seu rosto não se alterar. «O primo de uma
amiga minha tinha sida!», continuavam as pessoas. «Já viu o filme
Filadélfia?» E abanavam a cabeça, consternadas.
E como podia ela responder? As intenções das pessoas eram boas. Como
podia explicar-lhes que aquela cidade era um cemitério? Que todos os dias
passavam por ruas onde tivera lugar um holocausto, um homicídio em
massa por negligência e antipatia, como podia perguntar-lhes se quando
passavam por uma bolsa de ar frio não percebiam que era um fantasma, um
rapaz que o mundo cuspira?
Aqui, na sua mão, uma pilha de fantasmas.
Leu o boletim de Terrence. Tinham lido um salmo, aparentemente,
embora o livro e o versículo não lhe dissessem nada agora. Asher Glass
cantara. Disso, lembrava-se.
Asher falava nas reuniões da organização ACT UP com a voz de um
político num filme a preto e branco. Irrompia pela câmara municipal com o
seu cartaz com o desenho de uma mão ensanguentada. Ele e um amigo
tinham-se acorrentado à cerca da casa do governador Thompson, um verão,
sendo presos pela milionésima vez. Asher ainda era vivo, Fiona sabia que
ele vivia em Nova Iorque. Vira-o há algum tempo num documentário,
qualquer coisa sobre «três décadas da sida». Parecia muito saudável, tão
musculado que ninguém diria que era portador do mesmo vírus que ela vira
reduzir homens a esqueletos. O seu cabelo estava grisalho, tinha queixo
duplo, e com certeza estaria a debater-se com osteoporose ou uma das
outras consequências do VIH depois dos cinquenta anos, mas nesse filme
parecia pronto a saltar do ecrã para a sala de estar de Fiona e ajudá-la a
carregar caixas.
Não era verdade, o que ela dissera. Não estavam todos mortos. Nem
todos.
No dia 13 de outubro, Fiona assinalara a data sozinha, em casa, por Nico.
Velas e música e demasiado vinho. Trinta anos. Como era possível que
tivesse sido há trinta anos? Mas esse fora apenas o princípio da fase pior,
quando toda a cidade que ela conhecia estava a transformar-se em lesões e
tosses cavernosas e fósseis escanzelados. E, embora não fizesse qualquer
sentido, ela nunca conseguira libertar-se completamente da sensação
ridícula e narcisista de que toda a epidemia era, de alguma forma, culpa sua.
Se não tivesse tomado conta de Nico (queixara-se recentemente disto à
terapeuta), se não o tivesse ajudado naqueles primeiros anos, se não se
tivesse enfiado no comboio para lhe ir levar o medicamento das alergias,
para lhe mostrar que ela estava bem – não teria ele voltado para casa, mais
cedo ou mais tarde? Não teria prometido namorar com raparigas? Seria
infeliz, mas não por muito tempo. Mais alguns anos desagradáveis em casa,
como todos os outros homens gays do planeta. E talvez nunca tivesse sido
exposto. Não teria morrido.
Sentia tanta culpa em relação a tantos deles – aqueles que gostaria de ter
convencido a fazerem a análise mais cedo, aqueles que, voltando atrás no
tempo, gostaria de impedir de sair numa noite específica («Vamos
concordar que ambas sabemos que isso não é lógico», dissera a terapeuta),
aqueles por quem talvez pudesse ter feito mais, depois de adoecerem. A
noite em que, sem qualquer motivo, dissera a Charlie Keene que Yale
estava com Teddy. Por que diabo fizera isso? Fora um erro inocente, estava
embriagada, mas toda a gente sabia o que Freud dizia sobre os erros.
Às vezes, sentia-se como um qualquer deus hindu horrível, a transformar
em cinzas tudo em que tocava.
Os comprimidos para as dores estavam a deixá-la tonta.
Podia ficar aqui, com este cemitério de papel. E quem sabia que outros
perigos existiriam na prateleira de Richard?
Ou.
Neste momento, talvez a dez minutos de distância dali, havia filmagens
de Nico que ela podia ver. Nico vivo. Estava aterrorizada; seria muito mais
estranho do que uma fotografia estática. Haveria som? Quando é que ouvira
a voz de Nico pela última vez? Quando ele estava vivo, provavelmente. Se
alguém o gravara, alguma vez – bom, só podia ter sido Richard. E seriam
aquelas gravações.
Tinha de o fazer.
Serge dissera-lhe em que esquina ficava o estúdio, mas ela não prestara
atenção ao número da rua – e claro que Richard não tinha um letreiro na
porta. Fiona espreitou para portas, para as montras, como se conseguisse
adivinhar, se semicerrasse os olhos. Nada lhe parecia certo.
Estaria contente? Deu por si pelo menos parcialmente aliviada.
E depois viu a motorizada de Serge estacionada no passeio largo,
encostada à parede de um prédio.
Endireitou as costas e disse:
– Vamos lá.
Sentiu o telemóvel vibrar antes de o ouvir tocar.
– Estou? – Estava aos gritos, mas não queria saber. Tapou o outro ouvido
com o dedo.
– Calma! – disse Arnaud.
– Estou calma. O que é?
– Pode vir ao Marais? Acho que temos uma hora ou duas.
Fiona girou sobre si própria, à procura de um táxi. No mínimo, o
momento em que isto acontecera era um sinal, não era? Não queria o
destino que ela entrasse no estúdio para remexer no passado. Viera a Paris
por Claire, não por Nico. Deixou o estúdio de Richard para trás como se ele
estivesse a arder.
1986
ale quase se esqueceu de ir trabalhar no dia seguinte. Por algum motivo,
Y estava convencido de que era sábado e que, depois de ir ao
supermercado e à clínica buscar as coisas de que Terrence precisava, depois
de arrumar a mala e sair pé ante pé do apartamento, tudo o que tinha na sua
agenda era encontrar um sítio para dormir nessa noite, talvez comprar uma
camisa lavada. Mas às dez horas, enquanto descia Halsted Street com uma
dor de cabeça, viu um tipo de gravata e percebeu que era sexta-feira.
Pelo menos isso significava que tinha onde estar. Já tinha consigo a mala
de viagem, portanto entrou no comboio, com as roupas amarrotadas da
noite passada no sofá de Terrence. Quando as portas se fecharam, alguém
correu para elas, como se conseguisse entrar pela fresta de dois centímetros.
Um homem magro de cabelo escuro. Ficou a olhar, desolado, enquanto o
comboio arrancava. Por um momento, Yale pensou que era Julian – mas
não parecia o queixo dele, e Julian nunca estaria a pé às dez da manhã.
Tentou perceber o que faria, se e quando se cruzasse com Julian. Um soco
no rosto ou um abraço? Por algum motivo, não estava zangado com Julian.
Apenas com Charlie. A meio caminho de Evanston, decidiu que, se visse
Julian, provavelmente só choraria no ombro dele.
Roman já estava no gabinete de Yale, a organizar as fotocópias que tirara
na biblioteca em Door County. O conteúdo da caixa de sapatos.
Yale tinha duas mensagens de Bill Lindsey em cima da secretária: uma a
informar que os Sharp vinham ver as peças depois de almoço, a outra a
dizer: «O Campo disse que sim – obrigado!» Yale demorou alguns
segundos a lembrar-se de que dera o número de Richard Campo a Bill, no
carro, na manhã da véspera, sugerindo que ele podia fazer as fotografias de
20 por 25 centímetros de que precisavam para enviar para Nova Iorque e
que talvez não levasse muito dinheiro.
Foi à casa de banho fazer a barba e lavar os dentes. Não tratara disso em
casa de Terrence porque, quando se levantou, Terrence estava enrolado no
chão da casa de banho, e outra vez, ou ainda, quando voltara das compras.
Terrence prometera que ficava bem, que Asher ia passar por lá mais tarde.
Agora, na casa de banho, Yale salpicou água na camisa, para tentar alisar os
vincos à mão.
Talvez o resultado da análise estivesse errado. Não era possível que
tivessem trocado os papéis? Nenhuma das análises tinha nome, apenas – o
quê, números? Códigos? Portanto, o código podia estar enganado. O que
ainda deixava o facto de Charlie ser um verme e ele um idiota, mas tudo
isso não teria importância nenhuma se os resultados pudessem ser desfeitos,
de alguma forma. E a análise era tão recente. Teddy estava sempre a dizer
que não acreditava que todos os portadores do vírus acabassem por ficar
realmente doentes. Fazia tudo parte de alguma conspiração mais vasta cujos
detalhes Yale não conseguia recordar. Qualquer coisa sobre não haver
estudos longitudinais. Céus, estaria na fase da negociação? Mas ainda nem
sequer tinha ultrapassado a raiva! Olhou para o seu rosto no espelho,
franzido como o de uma criança. O retrato de um imbecil.
Depois de se sentar à secretária, olhou para papéis que não conseguia ler.
Não comia nada desde o pequeno-almoço da véspera, em Sturgeon Bay,
sem contar com o jantar líquido da noite anterior. Devia ter comprado uma
banana quando fora ao supermercado buscar as coisas de Terrence. Se
estivesse infetado, o melhor que podia fazer era empanturrar-se, engordar
enquanto podia. Comer seis hambúrgueres esta noite. Talvez, à hora de
jantar, o seu apetite tivesse regressado magicamente.
Mas onde é que iria jantar? Nalgum restaurante miserável. E depois? Não
podia ir incomodar Terrence outra vez. E não podia ir a lado nenhum onde
lhe fizessem perguntas. Lembrou-se da casa de Richard, daquele grande
quarto de hóspedes, mas pensar nessa casa deixava-lhe o estômago às
voltas. Em tempos, teria ficado em casa de Nico. Talvez o apartamento dele
ainda estivesse vazio, sem inquilino, mas onde parava a chave? Tinha
alguns velhos amigos do Instituto de Arte, alguns que nem sequer sabiam
da existência de Charlie, mas ninguém que se sentisse à vontade para
incomodar.
Achava-se doente. Febril, dorido, com dores nas articulações. De manhã,
ao acordar, prevenira-se de que provavelmente tentaria convencer-se de que
estava doente. Mas sabê-lo não ajudava muito.
Ao meio-dia, marcou lentamente o seu próprio número de telefone.
Imaginava que Charlie tivesse ido trabalhar – Charlie trabalharia mesmo
durante um tornado –, mas talvez Teresa atendesse e pudesse dar-lhe mais
respostas.
Na verdade, não, não era isso. Queria chorar com ela, queria que ela lhe
dissesse que ia ficar tudo bem. Se Teresa atendesse, mandaria Roman sair
do gabinete. Mas ela não atendeu. E não tinham gravador de chamadas,
porque Charlie estava convencido de que, assim que tivessem um, andaria
constantemente entupido de mensagens de pânico dos funcionários do
jornal.
Ligou para o Out Loud Chicago e, numa voz que esperava que não
parecesse a sua mas sem ser tão estranha que atraísse a atenção de Roman
do outro lado da sala, perguntou se o editor estava.
– Não – disse uma voz jovem que Yale não conseguiu identificar. – O
senhor Keene hoje foi tratar de assuntos pessoais.
Tentou também na agência de viagens, onde lhe disseram que Charlie só
lá estaria na terça-feira.
Foi um alívio tremendo quando o relógio bateu a uma hora. Agora tinha
algo para fazer, um guião a declamar. Quando entrou no gabinete de Bill, os
Sharp ainda não tinham chegado mas Richard já lá estava. Yale nem o
ouvira entrar. Teria adormecido? Sentia-se como se tivesse estado a dormir.
Richard vestia todo de preto, exceto o pulôver amarelo aos ombros, e
movia-se pela sala como um gato, a agachar-se para ajustar as luzes que
trouxera consigo. Em cima da mesa de Bill estava a aguarela do vestido
verde de Foujita.
– O homem de quem se fala! – exclamou Richard, e soprou um beijo a
Yale antes de regressar às luzes.
Yale conseguiu dizer:
– Obrigado por fazeres isto.
Tentou lembrar-se se já tinha visto Richard desde a noite da vigília de
Nico. Sim, várias vezes. Na angariação de fundos, por exemplo. Mesmo
assim, Richard parecia diretamente saído dos seus pesadelos. O pobre
homem não fizera nada de mal. Organizara uma festa fantástica. Preparara
um espetáculo de slides maravilhoso.
Richard não falava enquanto trabalhava e Yale não precisou de fazer
conversa de circunstância. Pouco depois, os Sharp apareceram à porta, a
sorrir como pais prestes a conhecer um filho adotivo.
Bill fez as apresentações – Esmé, Allen, Richard Campo, Allen, Esmé – e
fechou a porta.
– Tenho de vos dizer – começou – que esta é a descoberta mais
extraordinária da minha carreira, e posso afirmar desde já que me vou
reformar feliz. A minha esperança é que possamos abrir a exposição no
outono. Bom, talvez isso seja demasiado otimista. Mas será uma exposição
espetacular.
Bill mostrou-lhes o Foujita, que ainda estava em cima da mesa.
– É ela – disse Yale. – É a Nora.
– Que bonita! – Esmé debruçou-se sobre o papel, fascinada.
Bill abriu a capa do portefólio gigante para onde transferira as peças mais
pequenas e Esmé segurou no braço do marido. Richard olhou também, atrás
deles. Yale disse-lhe, em voz baixa:
– É a tia-avó do Nico e da Fiona.
O portefólio estava aberto num dos Modiglianis a lápis azul, que não se
parecia propriamente com ninguém.
Richard riu-se, encantado.
– Aquela família tem uns genes espetaculares.
Talvez, afinal de contas, pudesse pedir a Richard que lhe cedesse uma
cama naquela noite. Uma cama diferente. Seria assim tão terrível?
Allen disse:
– Não quero acordar e descobrir que investi dinheiro para restaurar
falsificações.
– Bom – disse Yale –, podemos esperar até a autenticação estar concluída.
– A sua voz soou-lhe demasiado aguda. – Mas temos forte corroboração de
proveniência e gostávamos muito de poder começar o restauro para
prevenir mais danos.
Um quadro era uma coisa em que se podiam prevenir mais danos. Era
possível restaurá-lo, protegê-lo, pendurá-lo na parede.
Bill olhou para Yale com ar expectante. Havia mais alguma coisa que ele
devia dizer, mas não se lembrava do que era. Bill pigarreou e disse:
– Uma opção possível é esperar pela primeira autenticação. Digamos que
os especialistas do Pascin confirmam o trabalho dele, por exemplo. – Abriu
o portefólio no nu de Pascin. – Isso não nos deixaria mais tranquilos em
relação ao resto?
Allen inclinou a cabeça para o lado, sem se comprometer.
– Bom, vá chamar o Roman! Vá buscar as cópias! – disse Bill.
E Yale assim fez. Enquanto Richard continuava a trabalhar na secretária
de Bill, os restantes reuniram-se em volta da cadeira onde Roman
depositara o monte de papéis. Yale ouviu distraidamente Roman a ler em
voz alta uma carta que Nora escrevera para a família, na qual falava sobre
Soutine e as suas péssimas maneiras à mesa.
Bill, entretanto, aproximara-se de Richard, que calçava umas luvas
brancas e se preparava para tirar uma das peças de Ranko Novak do
portefólio.
– Esses não – murmurou Bill.
Não havia propriamente um especialista em Ranko Novak a quem
pudessem enviar as fotografias.
– O artista não transbordava talento – disse Bill.
Os esboços das vacas não eram maus, mas eram os três quase idênticos e
havia neles qualquer coisa de demasiado limpo e simples, como imagens de
um livro de «como desenhar animais» para crianças. Mesmo assim, Yale
não compreendia totalmente o desdém de Bill. Bom, ninguém chegava a
diretor de uma galeria por via do igualitarismo.
Richard encolheu os ombros e passou cuidadosamente para o primeiro
esboço de Metzinger.
Allen parecia agitado e coçou a orelha.
– Oiça – disse –, o que estou a pensar é... estou a lembrar-me daquelas
cabeças falsas que encontraram no rio.
Dois anos antes, no verão, alguém dragara um canal em Itália, na
esperança de encontrar as cabeças esculpidas que, supostamente,
Modigliani para lá atirara na juventude, depois das críticas negativas de uns
amigos. Encontraram três cabeças que se apressaram a exibir, mas, poucas
semanas depois, uns estudantes universitários vieram a público dizer que
tinham sido eles a esculpir as peças e a atirá-las ao rio, para pregar uma
partida.
Bill pegou na carta que Roman estava a ler, pousou-a no monte de papéis
e deixou lá ficar a mão.
– É verdade que estamos todos ansiosos. Não pode haver dúvida alguma,
em especial quanto ao Modigliani. Mas, oiça, estamos muitíssimo
confiantes. A questão é que a autenticação pode demorar imenso tempo. E
porque não pôr as coisas já em andamento?
Do nada, Yale ficou paralisado pela memória de Charlie e Julian a irem
juntos a um protesto em Springfield nesse verão. Charlie dissera que iam
mais pessoas no carro de Julian, mas Yale não as vira. Afirmavam ter ficado
em casa de umas pessoas da National Gay Task Force. Contaram-lhe que
não tinham sido detidos na manifestação mas que Julian apanhara uma
multa por excesso de velocidade.
Yale olhou para Esmé, que estava a ver Richard trabalhar, afastada para
não fazer sombra na peça. Pelo rosto dela, pela forma como se inclinava
para os esboços de Metzinger como se quisesse mergulhar neles, percebeu
que estava completamente convencida de tudo: da história, da coleção, da
exposição.
Esmé quis saber:
– Como é que ela passou de estudante de arte a modelo? Só pergunto
porque... bom, as modelos não costumavam ser, sabe... mulheres da noite?
– Vamos regressar ao Wisconsin brevemente para registarmos toda a
história.
E sim, era para onde ele iria, não esta noite, mas em breve. Podia ficar lá
algum tempo. Arrastar as coisas. Podia deixar a cidade, conduzir para norte,
colocar uma grande e vasta extensão gelada entre si e Charlie.
– Que vos parece? – perguntou Bill. – Esta é a Coleção Lerner-Sharp.
Allen respirou fundo e disse:
– Confiamos nos vossos instintos.
Yale duvidava que alguém o devesse seguir para onde quer que fosse,
uma vez que ele era o maior idiota do mundo. Mas assentiu com um aceno.
– Não se arrependerão – prometeu.
O Sol estava a pôr-se e Bill saíra. Yale pegou na garrafa de uísque e nas
Páginas Amarelas. Havia vários hotéis ao pé da universidade. Tinha cerca
de oitocentos dólares na conta bancária. Um hotel acabaria rapidamente
com essas poupanças, mas neste momento não podia pensar nisso.
Alguém lhe bateu à porta e Yale lembrou-se de que Cecily certamente
apareceria hoje para manifestar o seu desagrado. Tinha o hábito de o deixar
sempre para o final do dia. Há dois dias, este confronto era aquilo que ele
mais temia. Agora, não era nada.
– Entre – disse. Tirou duas canecas de café da estante e, sem sequer olhar
para ela, serviu uísque em ambas.
Cecily olhou durante muito tempo para a caneca que ele lhe oferecia e,
por fim, aceitou-a e sentou-se. Parecia mais esgotada do que furiosa e Yale
sentiu-se subitamente cheio de pena dela. Tencionara ligar-lhe de manhã, ou
melhor ainda, enviar-lhe um memorando com um pedido de desculpas ou
um aviso ou ambas as coisas, mas todos os planos traçados ontem eram
hoje poeira debaixo de um comboio desgovernado. Cecily vestia um fato de
calças e casaco amarelo que a fazia parecer deslavada e tinha o cabelo
acachapado.
– Calculo que saiba o que estive a fazer o dia inteiro.
– Como está o Chuck?
– Furioso. Yale, não é por causa do dinheiro. Talvez as suas peças de arte
valham mesmo dois milhões de dólares, mas a questão é que isto vai ter
consequências para mim. O Chuck é amigo do novo presidente e está a
fazer uma lista de todos os administradores a quem se vai queixar. Ninguém
vai cancelar os legados planeados, claro, mas torna as coisas muito
complicadas para mim, para o meu trabalho.
– Lamento sinceramente que tenha de ser assim.
– Pensei que éramos amigos.
Yale ficou sem saber o que dizer, por isso ergueu a caneca para brindar
com ela. Presumia que o seu rosto estaria suficientemente abatido para que
ela não confundisse isto com uma celebração. Cecily bebeu um gole de
uísque e recostou-se.
– Além disso – continuou ela –, lamento muito, mas a maior parte dos
administradores está-se borrifando para a arte. Não podem construir um
novo centro desportivo com arte. Não podem atribuir bolsas com arte.
– A comunicação social vai estar em cima disto – recordou-lhe Yale. –
Diga-lhes que a galeria nunca mais terá problemas. Daqui a cinco anos vão
ficar contentes.
Sentiu-se tonto e deu graças por estar sentado. Comida. Esquecera-se
outra vez de comer.
– Estou correta no meu entendimento de que ainda nem sequer sabem se
as peças são autênticas? – Cecily parecia agora mais assertiva e confiante.
Yale encostou a testa à secretária, suavemente, porque era o único sítio
onde podia pôr a testa, e disse:
– Se não forem autênticas, eu é que serei despedido. Não você, não o Bill.
Se eles estão assim tão zangados, diga-lhes para me despedirem. Ponha as
culpas em mim.
– Está a ser passivo-agressivo? O que é isto?
– Eu demito-me se tiver de ser, está bem? Assino o que quiserem. Eu
digo-lhes.
– Não me parece estar muito bem, Yale – disse ela.
– Estou quase a perder os sentidos, Cecily. E já não quero saber do meu
emprego. Quero dormir. Importa-se de sair?
Depois de uma longa pausa, ela disse:
– Não.
Mais tarde, Yale não se lembraria bem de terem saído do escritório, mas
devia ter explicado a Cecily que sim, tencionava dormir no gabinete e não,
não podia ir para casa. Lembrava-se de descer Down Street, apoiado nela.
Cecily falava sobre o sofá – que se abria, mas talvez fosse mais confortável
fechado.
O ar frio já o tinha reanimado o suficiente por essa altura para conseguir
pensar que talvez isto fosse uma ideia terrível, se ela se lembrasse de lhe
voltar a oferecer cocaína ou esfregar a perna. Mas ela dizia qualquer coisa
sobre o filho, que já devia estar em casa. O comportamento em Door
County devia ter sido o de uma mãe solteira stressada, perante uma rara
oportunidade de se portar mal. E se Cecily não percebera que ele era
realmente gay quando estava sentado na rua, durante a festa da Howard
Brown, a chorar no ombro de Fiona, então algo se passava com ela.
– Deve ter os pés gelados – disse ela. – Não tem umas botas?
– Estes eram os meus sapatos da sorte de Door County. E funcionaram, ao
princípio, mas a minha sorte acabou-se.
Felizmente, Cecily não lhe fez mais perguntas. Talvez tivesse ficado com
a ideia de que ele chorava facilmente e não o quisesse ver a perder
novamente o controlo.
– Gosta de comida chinesa? – perguntou-lhe.
O estômago de Yale respondeu antes que a cabeça tivesse oportunidade,
com uma vaga gigantesca de fome.
– Eu pago o jantar – disse. – Para a compensar do incómodo.
Cecily vivia no primeiro andar, num apartamento de dois quartos com
uma sala com metade do tamanho do gabinete de Yale. O filho, Kurt («é um
miúdo habituado a estar sozinho em casa», dissera ela pelo caminho),
estava deitado no sofá quando eles chegaram, com os trabalhos de casa em
cima da mesinha baixa. Ignorou completamente Yale – talvez Cecily
trouxesse muitos homens para casa – e disse:
– Mãe, já fiz os trabalhos de casa de matemática do fim de semana, posso
ver o Miami Vice?
– Este é o Yale – apresentou ela. – Um colega de trabalho.
– Mas posso? Prometo que me deito às nove.
– Temos um convidado – disse ela.
– Não me importo – disse Yale. – Gosto dessa série.
Assim, depois de comerem – Yale devorou prato após prato de mu shu e
lo mein, contente por ter sido ele a pagar – e depois de Yale ter feito
algumas perguntas genéricas a Kurt sobre a escola e o desporto e os amigos,
sentaram-se a ver Don Johnson, com a sua barba por fazer, a perseguir um
traficante à volta de uma piscina estranhamente azul. Kurt apoiou-o
animadamente, como se assistisse a um jogo de futebol ao vivo. Era assim
que Yale precisava de ocupar os seus dias, se queria que os três meses
seguintes passassem com alguma rapidez. Tinha de ver televisão e de ir ao
cinema, entretenimentos ligeiros e sem interrupção. Até não lhe restarem
neurónios para odiar Charlie, para sentir falta de Charlie, para se preocupar
obsessivamente com a sua própria saúde.
Depois de Kurt ir para a cama, Yale tirou novamente a garrafa de uísque
do saco e Cecily foi buscar copos à cozinha, copos pequenos e vermelhos
com silhuetas brancas de atletas gregos à volta. Yale contou-lhe, com todos
os pormenores, o que se passava. Porque precisava de contar a alguém e
porque ela não pertencia ao círculo de Charlie, ou talvez por ser uma
espécie de oferenda de paz. Já que arruinara a vida de Cecily, o mínimo que
podia fazer era expor a sua própria vida arruinada na mesinha baixa em
frente dela.
Cecily ouviu e acenou com a cabeça, agradavelmente horrorizada nas
partes piores. Era boa pessoa. Não mostrou qualquer sinal de ainda estar a
pensar no emprego, na sua raiva, no dia terrível que tivera. Yale começou a
desenvolver uma teoria em relação a Cecily: a dureza do seu invólucro
exterior servia apenas para proteger um interior muito mole.
– Posso ir-me embora, se quiser – disse, por fim.
– Porque havia de querer?
– Quer dizer, tem um filho e tudo. Se eu estive exposto... Enfim.
Cecily pareceu ultrajada.
– Não me parece que vá fazer sexo com o meu filho! – E depois
acrescentou, rapidamente: – Era uma piada.
– Eu sei.
– Não vejo de que outra forma poderia ser um problema. Estou
relativamente bem informada. Não estou preocupada em partilhar o sumo
de laranja consigo.
– Obrigado – disse Yale. – Não sei porque está a ser tão simpática
comigo.
– Oiça, eu sei a impressão que dou, por vezes. Para ser bem-sucedida no
trabalho, como mulher, tenho de agir de determinada forma. Mas gosto
genuinamente de si.
Reabasteceu-lhe o copo de uísque e ele ficou contente.
– Há muito tempo que não tinha um destes dias que nos separam a vida
em duas. Por exemplo, este espigão na unha do polegar, já aqui estava
ontem. É o mesmo, mas eu sou uma pessoa completamente diferente.
O uísque ajudava-o a falar. Não sabia bem por que razão confiava em
Cecily, mas confiava. Estavam fartos de passar vergonhas em frente um do
outro. Bom, não era isso que as repúblicas faziam, para os estudantes
estabelecerem elos entre si? Se vomitassem bastante cerveja em cima uns
dos outros, estariam unidos para toda a vida.
– Já tive dias assim – disse Cecily. – Nada tão mau como isto, mas dias de
antes-e-depois. – Yale não sabia como correra o divórcio de Cecily, mas
calculou que fosse verdade. – Uma mudança de cenário provavelmente é
boa ideia. Não estar rodeado de tudo o que lhe faz lembrar a situação.
Imagine se fosse ele a sair de casa, por exemplo...
– Pois.
– Ficaria rodeado por todas as coisas dele.
Assim, era Charlie que estava rodeado pelas coisas de Yale. Charlie
estava sentado na cama que tinham partilhado, e ao seu lado estava a
almofada de Yale, e no armário as roupas de Yale. Mas Yale não sentiu
pena, apenas gratificação. Ele que ficasse infeliz. Ele que se odiasse a si
próprio enquanto publicava artigos hipócritas sobre distribuição de
preservativos. Yale ainda não conseguia pensar ele que fique doente. Claro
que não queria isso. Talvez quisesse apenas que Charlie sofresse até os
médicos lhe virem dizer que se tratava de um falso positivo. Queria que ele
se preocupasse durante seis meses, até os investigadores finalmente
encontrarem a cura.
– Esta doença ampliou todos os nossos erros – disse a Cecily. – Uma
estupidez que fizemos aos dezanove anos, aquela vez em que não tivemos
cuidado. E depois esse vem a revelar-se o dia mais importante da nossa
vida. Como agora... se fosse apenas uma traição, eu e o Charlie
conseguiríamos ultrapassar isto. Se calhar eu nem chegaria a saber. Ou
discutíamos e fazíamos as pazes. Mas, em vez disso, rebentou uma bomba
atómica. Não há como voltar atrás.
– Ele não precisa de si? – perguntou Cecily docemente. – Quer dizer,
quando ele adoecer, não acha que isso pode alterar as coisas?
– Até posso ser eu a adoecer primeiro. Esta coisa não segue um
calendário previsível. E, se assim for, não sei se é ele que quero ter a
segurar-me na mão.
– Compreendo.
Era algo de que Yale não tinha a certeza antes de o dizer em voz alta.
– Pode ficar aqui o tempo que precisar – ofereceu Cecily. – Uns dias,
umas semanas. Não faz mal nenhum ao Kurt ter uma figura masculina por
perto. Deus sabe que o pai dele não tem esse papel.
Antes de se deitar, telefonou para casa. Das primeiras cinco vezes não
teve resposta. À sexta, Teresa atendeu.
– Estou certa de que tens muita coisa para dizer, Yale – disse ela –, mas, a
menos que estejas a ligar para falar com calma, não é o dia indicado.
– Por acaso, acho que é. – Mas estava a entaramelar a voz.
– Foi um dia muito complicado e ele está a dormir.
Yale receava que, se esperasse, a fúria se dissipasse. Precisava de gritar
com Charlie agora, não depois de se acalmar, de ter tempo para pensar. Só
que não estava a acalmar-se. De poucos em poucos minutos, a realidade
atingia-o de novo. De poucos em poucos minutos, a sua tensão arterial
subia.
No dia seguinte, sábado, Yale foi ao cinema. Viu Espiões como Nós e
África Minha, mas os filmes não o distraíram tanto como esperava. Estava
mais absorvido pelas pessoas à sua volta, os casais e adolescentes e
cinéfilos solitários, todos a viver um dia perfeitamente normal. Ele próprio
tivera milhares de dias perfeitamente normais. Parecia-lhe agora um
conceito tão estranho, ter um dia normal. Vaguear pela vida
inconscientemente, apenas a participar no mundo. Parecia pouco razoável
que qualquer pessoa pudesse ter um dia normal.
Nessa noite, jogou batalha naval com Kurt e insistiu em lavar a loiça.
Enquanto esfregava os pratos, Cecily disse:
– Quer que ligue ao meu amigo Andrew? Era ele e o namorado que
estavam comigo naquela angariação de fundos. Ele perdeu um amante e
agora é terapeuta.
– Obrigado, mas ainda não estou preparado para isso. – Yale conhecia
dois Andrews e perguntou-se se aquele seria algum deles. O Andrew Parr
não tinha perdido alguém? A população de gays assumidos em Chicago
sempre fora pequena, e agora já tinham perdido mais de cem homens. E
quem sabe quantos mais perderiam este ano. Dentro em pouco, só haveria
um Andrew gay em toda a cidade. Deixariam de ser precisos apelidos.
Mesmo agora, as probabilidades de o amigo de Cecily conhecer Charlie
eram bastante elevadas.
– Não consigo pensar como deve ser – disse Yale. – Sinto-me como se
tivesse a cabeça cheia de azeite e vinagre e alguém a tivesse sacudido.
Kurt, que estava a pintar um modelo de avião à mesa, disse:
– A tua cabeça é tempero de salada.
– Sim.
– Cabeça de salada.
2015
iona encontrou-se com Arnaud à saída do metro de Saint-Paul. Já tinha
F na mão a chave do prédio e neste momento, esperava ele, a senhoria
devia estar a destrancar a porta do apartamento de Kurt. Ligaria quando isso
estivesse tratado.
Olhou para o telemóvel.
– Nada, ainda, mas de qualquer maneira temos de andar um bocado.
Fiona imaginara-os a entrar na casa de Kurt a meio da noite, ou pelo
menos quando fizesse escuro, mas claro que isso não fazia sentido. Tinham
de o fazer enquanto ele e a mulher estivessem no trabalho. E presumira que
a senhoria insistiria em estar presente, para se certificar de que eles não
roubavam nada, mas não – era mais importante que ficasse noutro sítio,
para não poder ser implicada.
Fiona olhou para todos os rostos com que se cruzaram e, desta vez, não à
procura de Claire, mas sim de Kurt, preparada para se esconder atrás de
Arnaud e tapar a cara com o cabelo, se por acaso o visse.
– Tem de se acalmar – disse Arnaud.
– Boa piada. Sim, vou tentar.
O bairro, ao princípio, era relativamente elegante, mas aos poucos, à
medida que andavam, as ruas – que estavam realmente cheias de
restaurantes de falafel e de bandeiras arco-íris – foram ficando mais
duvidosas. Esta transversal em particular tinha o que parecia ser um clube
de sexo ou espetáculos para mirones. Não conseguia decifrar
completamente os cartazes, mas não devia estar muito longe da verdade.
Arnaud parou num quiosque e comprou o Le Monde.
– É ao virar da esquina – disse. – Enquanto esperamos, vou pagar-lhe um
uísque.
– Ainda nem são duas da tarde!
– Está a precisar de um uísque para se acalmar.
– É uma e cinquenta e quatro! – insistiu ela, mas seguiu-o. O efeito do
analgésico estava a passar, sentia-se a ficar engripada, e afinal o uísque não
era basicamente um remédio? Encontraram um café que era, na realidade,
mais um bar do que outra coisa.
Arnaud sentou Fiona em frente a um uísque, a uma mesa redonda
minúscula no canto. Ele leu o jornal e bebeu uma cerveja, com a espuma a
ficar colada ao lábio.
Não era uma ideia terrível, na verdade. Agora, haveria menos
probabilidades de ela dar um salto ao menor rangido do soalho, de guinchar
se visse uma aranha. Segurou o copo com a mão esquerda e manteve a
direita no colo. Ainda não conseguia mexer os dedos sem enviar pontadas
de dor lancinante pelo braço acima.
Estava virada para a montra e não tirou os olhos do passeio lá fora.
Na única outra mesa ocupada, um casal discutia baixinho, em francês, por
cima das chávenas de café espresso. O homem parecia muito mais velho do
que a mulher, embora todas as francesas entre os quinze e os cinquenta
parecessem ter vinte e seis anos. Devia ter sido assim que ela e Damian
pareciam aos olhos do mundo, ao princípio: a jovem estudante e o seu
professor, com a diferença de idade de quinze anos suficientemente
reduzida apenas para que não os tomassem por pai e filha. Não que isso
fosse possível, da maneira que estava sempre agarrada a ele. Uma vez,
tinham ido almoçar a um restaurante no último piso do Hotel Edgewater,
em Madison, com vista para o lago Mendota. Barquinhos a baloiçar nas
docas e gaivotas furiosas. Quando Damian se levantou para ir à casa de
banho, um homem de cabelo branco aproximou-se da mesa e com um
sotaque carregado e libidinoso disse:
– Você é a amante, não é?
Fiona teve a presença de espírito necessária para não lhe responder, nem
mesmo para negar. Fez sinal ao empregado, que veio imediatamente, e o
homem afastou-se. Mas ela e Damian tinham-se rido do sucedido durante
semanas. Quando ela atendia o telefone, ele dizia: «Você é a amante, não
é?» Não era. Damian nunca fora casado, nem sequer tencionava casar antes
de, no outono seguinte, Fiona engravidar inesperadamente. Estava no início
do quarto ano da universidade e tinha vinte e sete anos de idade.
Virou-se agora para Arnaud.
– Não pode telefonar à senhoria?
– Fazemos assim, se ela não disser nada entretanto, daqui a dez minutos
ligo. Mas estou certo de que não será preciso.
Fiona admirava a confiança dele, tanto quanto ela a irritava.
O casal na outra mesa, percebeu de súbito, estava agora a falar inglês. O
que era estranho, porque não falavam muito bem.
– Eu pago o apartamento – disse o homem. – Eu pago, e tu fazes isto!
Olhou de soslaio para Fiona, que fingiu estar a ler a parte de trás do jornal
de Arnaud, a meros centímetros do seu rosto. Imaginou que o homem
presumira que eles eram franceses – o Le Monde provavelmente ajudava – e
achara que o inglês seria a língua mais segura para transmitir a sua raiva.
A mulher disse:
– Como queres que passe o dia? Lá sentada? – Parecia frustrada, mas
também desafiadora. Seria uma concubina? Ou pior?
– Sim – disse ele. – Sentada, lê um livro. Quero lá saber. Vê um filme.
As sobrancelhas dele eram hirsutas e grossas. Estava furioso.
Arnaud estava agora em silêncio, e afastou o jornal para ver melhor.
Fiona quis escrever um bilhete à mulher («deixe-o já!»), mas seria
impossível entregar-lho sem o homem dar por isso. Era possível que alguém
tivesse visto Claire e Kurt numa situação semelhante, em Boulder, sem
fazer nada. Talvez alguém tivesse visto Claire e as outras mulheres do
Hossana numa das suas raras visitas à cidade, de braços tapados, cabeças
baixas, sem que ninguém lhes perguntasse se estavam bem, se precisavam
de uma boleia para o aeroporto e de trezentos dólares.
A mulher estava a chorar e Fiona conseguiu estabelecer contacto visual
com Arnaud, que encolheu os ombros. O homem pegou no copo meio vazio
e despejou o resto da água no copo da mulher. Olhou para ver se o
empregado estava de costas e, depois, limpou o copo com o guardanapo e
enfiou-o na mala dela.
A mulher murmurou qualquer coisa em francês, um protesto, e ele
respondeu no mesmo tom. Seria assim que estavam a equipar o
apartamento, uma peça surripiada de cada vez? A mulher levantou-se com
ar infeliz e pegou na mala. Saíram rapidamente.
– Uau – disse Fiona. O seu uísque desaparecera.
Arnaud dobrou o jornal e abanou a cabeça.
– Há mulheres muito estúpidas.
– Desculpe?
– Porquê, achou que ela era um génio?
– Você não sabe como é estar com uma pessoa manipuladora. – Na
verdade, ela também não sabia. Damian era mais velho, sim, e muitas vezes
assumia um ar de professor e dava-lhe sermões em tom grave, mas nunca a
tentara manipular.
Damian apoiara a sua vontade de concluir os estudos naquele ano depois
de a bebé nascer, e, antes de ir para as aulas, Fiona deixava Claire com um
biberão no gabinete dele, onde era a princesinha do Departamento de
Sociologia. Quando voltava, duas horas depois, encontrava a sala cheia de
estudantes todos derretidos com Claire, a abanarem a roca para a entreter.
Damian nunca fora outra coisa senão solícito; o fracasso do casamento era
inteiramente culpa dela. Uma vez, dissera-lhe que, se uma das suas novas
namoradas lhe ligasse, teria todo o gosto em dar boas referências dele, em
explicar que era ela que tinha problemas em se comprometer. Que o seu
coração estava demasiado maltratado para ser capaz de amar a sério.
Quando ele se juntara com Karen, Fiona reiterara a oferta.
– Não é preciso – disse ele. – Ela sabe.
Arnaud continuou a falar.
– Vejo este tipo de coisa constantemente. O que acha que eu investigo
mais? Metade dos casos envolvem mulheres, bom... não-geniais metidas
em problemas com um homem. Todas as semanas recuso trabalhos de tipos
como aquele, que querem mandar seguir as mulheres.
Fiona disse a si própria para não gritar com Arnaud, cuja ajuda não queria
perder.
– Também já conheci homens nessa situação. Homens manipulados por
mulheres. Ou por outros homens.
Arnaud olhou para o telemóvel.
– Ela mandou uma mensagem.
– Oh! – exclamou Fiona. – Está bem. – E, de repente, estava outra vez
com os nervos em franja. Fez a cadeira tombar para trás ao levantar-se, teve
de se segurar à mesa e quase a derrubou também.
Noutras circunstâncias, podia ter sido uma aventura. Ver se não havia
vizinhos por perto, entrar sorrateiramente. Mas foi aterrorizador,
agonizante. No pior dos casos, podiam encontrar algo horrível. Fiona não
acreditava que Kurt fizesse mal a Claire, mas quem é que podia ter a certeza
de uma coisa dessas? Lembrou-se de algo que a mãe lhe dissera numa das
últimas vezes em que tinham realmente falado, pouco antes de Nico morrer.
Fiona estava a acusá-la de não ter enfrentado o marido, de o ter deixado
expulsar Nico de casa. Estavam na cantina do hospital. A mãe dissera:
– Nunca saberás como funciona nenhum casamento a não ser o teu. E,
mesmo nesse caso, és apenas uma das metades.
O apartamento era sombrio e miserável. Um cheiro a ratos mortos na
parede, adocicado e enjoativo. Uma grande divisão com uma cama por
fazer de um dos lados, um sofá azul coçado do outro. Uma pequena área de
cozinha, duas tigelas vazias no lava-loiça.
Arnaud obrigara-a a prometer não tocar em nada, e assim ficou parada no
meio da casa, impotente, a girar sobre si própria para acompanhar as
explorações dele.
– No outro armário há só casacos – anunciou Arnaud –, mas neste há
vestidos. – Estava ao pé de uma porta aberta, junto da cama. – Reconhece
algum?
Para que isso acontecesse, os vestidos teriam de ser do primeiro ano de
Claire na universidade ou mais antigos ainda. Já abandonara completamente
a ideia de que Claire vivia aqui com Kurt, mas não podiam excluir essa
possibilidade. Talvez a mulher de cabelo escuro fosse apenas alguém com
quem Kurt a andava a trair! Aproximou-se de Arnaud e espreitou. Cores
pastel, que Claire detestava. Nada familiar. Mas eram vestidos de verão sem
mangas e vestidos de sair. Não roupas do Hossana.
Arnaud puxou um dos vestidos para fora sem o tirar do cabide, como se
andasse às compras.
– Demasiado comprido para ser da Claire – disse ela. – Ficar-lhe-ia a
arrastar pelo chão. – E não havia brinquedos à vista, nem uma cama de
bebé.
Em cima da mesinha junto ao sofá havia algumas contas em nome de
Kurt Pearce, e um envelope vazio endereçado a Marie Pearce.
– Marie. Pode ser francesa – disse Fiona.
– Claro. Também pode ser da Nova Zelândia, tanto quanto sabemos.
Fiona espreitou para a casa de banho. Um armário de remédios só com
uma porta. Nada de estranho lá dentro. Não viu medicação antipsicótica.
Apenas vitaminas, pomadas. Uma embalagem de pílulas anticoncecionais.
O Hossana era contra elas.
À direita do lavatório viu a fotografia de uma menina, presa à parede,
dentro de uma proteção de plástico transparente.
Céus. Com uns três anos. Só podia ser a menina do vídeo. Tinha de ser.
Fiona teve algo parecido com uma reação alérgica – um aperto na
garganta e no peito – ao mesmo tempo que queria cantar, pegar em Arnaud
e dançar com ele pelo apartamento. Caracóis dourados, olhos – olhos iguais
aos de Nico. Não muito parecida com Claire, que mesmo em pequena
sempre fora a cara de Damian: pálida, séria, lábios finos e apertados.
Quando Damian era seu professor de Sociologia, Fiona imaginara que o
rosto dele sugeria uma alma, uma vida de sabedoria duramente conquistada.
Nunca imaginara que podia dever-se aos genes. Mas esta menina! Esta
menina era uma Marcus. O cabelo de Nico começara por ser loiro e só
escurecera com a idade, no ano em que ele deu um salto em altura e mudou
de voz. Nesse ano, Fiona deu por si subitamente envergonhada ao pé dele,
sem saber como se relacionar com aquele rapaz estranho e gigante. E na
verdade nunca mais voltou a aprender a ser irmã dele, porque um ou dois
anos depois se transformou em sua cúmplice, sua ladra, sua mãe ocasional.
Esta criança: se lhe cortassem o cabelo, se a vestissem com roupas de
rapaz dos anos sessenta, era Nico.
Com a mão esquerda, Fiona tirou a fotografia da proteção. Não tinha nada
escrito atrás. Queria levá-la consigo. Mas não podia fazer isso.
– Veja – disse a Arnaud.
Ele segurou-lhe pela orla e disse:
– Cuidado! Não deixe impressões digitais!
Bom, o que é que ele estava a fazer, a mexer em todo o lado? Arnaud
pousou a fotografia na cama e tirou uma fotografia dela.
– É impossível não ficar com o clarão do flash.
– Manda-me uma cópia?
– Claro – disse ele. – Claro.
*
Não encontraram muito mais.
– Há dez anos – disse Arnaud –, estaríamos à procura de uma agenda de
números de telefone e moradas. Agora, já não é tão fácil.
Abriu o armário por cima do fogão e remexeu nas latas e caixas.
– O que acha disto? – Mostrou-lhe uma caixa de cereais castanha, na qual
o desenho de um cão se debruçava sobre uma tigela de flocos de chocolate.
Chocapic, era a marca. A caixa declarava: C’est fort en chocolate! – Talvez
para a menina?
– Bem... – disse Fiona. Não queria ficar demasiado entusiasmada. Um
homem que vivia num apartamento destes, pensou, podia muito bem comer
cereais daqueles ao jantar. Mas depois lembrou-se de que Kurt sempre fora
fanático pela saúde e que o Coletivo Hossana acreditava apenas nos cereais
bíblicos. Podia ter deixado o culto, mas seria estranho redescobrir os cereais
de chocolate aos quarenta anos de idade. Abriu o frigorífico e, embora não
houvesse muita coisa, o que havia era comida saudável: iogurte natural,
garrafas de uma bebida verde, uma aparente versão francesa de fiambre de
tofu.
– Expira na próxima primavera – disse Arnaud, ainda a olhar para a caixa.
– Não pode estar aqui há muito tempo. Isso é bom, não é?
Os cereais reacenderam uma pequena centelha de esperança, mas Fiona
recusava-se a admiti-lo.
Arnaud tirou mais fotografias. Fiona pressentiu que era só para mostrar
que estava a fazer alguma coisa. De que lhe serviria uma fotografia do lava-
loiça?
Ao saírem, teve de resistir ao impulso de deixar alguma coisa
deliberadamente fora do sítio, de derrubar um candeeiro ou escrevinhar um
ponto de interrogação na parede.
– Nunca aqui estivemos – disse Arnaud, ao fechar a porta atrás deles. –
Adeus, apartamento do Kurt Pearce.
*
Fiona vagueou pelo Marais durante muito tempo, sentindo-se
embaraçosamente americana ali, onde não havia tantos turistas. Com
otimismo ligeiramente renovado, mostrou a fotografia de Claire a
empregados de mesa e lojistas.
Mostrou-a a um homem de cabelo desgrenhado encostado a uma esquina,
com uma caixa comprida e estreita ao seu lado. Descobriu que ele era
britânico e teve quase a certeza de que estava pedrado.
Ele olhou muito tempo para a fotografia e finalmente disse:
– Nem toda a gente quer ser encontrada.
Fiona afastou-se, insultada, sem vontade de falar com mais ninguém.
Os seus passos levaram-na de novo para demasiado perto do apartamento
de Kurt. Ali estava o bar onde bebera o uísque; entrou para usar a casa de
banho, com a sensação de que tinha mais direito a fazê-lo aqui do que em
qualquer outro lado.
Quando saiu, teve esperança de ver o casal zangado na rua. Na verdade,
esperava encontrar apenas a mulher, sozinha, encostada a uma janela a
chorar. Fiona dar-lhe-ia um abraço e levá-la-ia consigo para casa de
Richard. Podia salvar uma mulher, mesmo que fosse a mulher errada.
Mas a rua estava – como ela sabia que estaria – vazia.
1986
omingo era o dia. Charlie estaria a trabalhar, mesmo que tivesse tirado a
D sexta-feira; o Out Loud saía às segundas, o que significava que o jornal
tinha de ficar concluído no domingo à noite.
Na manhã de domingo, bem cedo, o pai de Kurt veio buscá-lo para o
levar aos treinos de hóquei. Cumprimentou Yale secamente e murmurou
qualquer coisa a Cecily. O ex-marido era um homem grande, tanto em
músculos como em gordura, e possuidor de um sotaque irlandês
surpreendentemente pouco charmoso. Yale via as feições dele no nariz
arrebitado de Kurt, na sua boca larga. Nesta situação, não teve a certeza se
seria melhor mostrar-se gay (ou seja, não envolvido com Cecily) ou
heterossexual (não fosse o homem ter ideias alucinadas sobre o interesse de
Yale no rapaz de onze anos). Tentou agir de forma natural, o que
provavelmente tendia mais para o gay.
Lavou a roupa na lavandaria na cave do prédio e, depois, apanhou o El
para a cidade. Cecily tinha razão, os seus pés estavam a morrer lentamente
naqueles sapatos, mesmo com meias. Havia lama em todos os passeios e
rapidamente ficou com os pés encharcados.
Era uma da tarde. Desceu Belmont Avenue com a determinação
entorpecida que imaginava que os assassinos sentiriam, entrou pela porta ao
lado do restaurante de tacos e subiu o lanço de escadas que levava ao
patamar onde havia um dentista, uma agência de seguros e os escritórios do
Out Loud. Dwight, que trabalhava na receção, levantou os olhos e acenou-
lhe. Nada de invulgar.
Charlie estava no seu gabinete a falar com Gloria. Yale entrou, como
fizera centenas de vezes antes, e sentou-se na cadeira junto à porta. Gloria
acenou-lhe com a mão e continuou a falar, aparentemente sem reparar que
Charlie ficara tenso. Yale sentia-se um fantasma, visível apenas para uma
pessoa. Só Charlie via o seu espetro à porta. Só Charlie sentia o arrepio
gelado da sua presença.
– Queres que volte mais tarde? – perguntou Gloria.
– Não, continua! – disse Yale. – Não me importo de esperar. – Como se
tivesse vindo apenas trazer o almoço a Charlie.
Não via a cara de Charlie desde que saíra de casa para a viagem a Door
County. A última vez que olhara para ele, fizera-o com absoluta confiança.
Charlie apressou Gloria e disse-lhe que deviam reunir-se depois de o
layout estar pronto. Acompanhou-a à porta e fechou-a depois de ela sair.
Por fim disse, baixinho:
– Céus, Yale. – Olhava para todo o lado menos para os olhos dele.
Yale sabia que o seu próprio silêncio era uma espécie de poder. Ficou
sentado na cadeira, de braços cruzados. Havia pelo menos cinco coisas que
planeava dizer e várias respostas que tencionava exigir, mas ainda não.
Charlie sentou-se atrás da sua secretária; por um momento, pareceu que ia
desfazer-se em lágrimas. De certa forma, teria sido a única coisa apropriada.
Porém, em vez disso, apertou os lábios e as suas narinas estremeceram.
– Não sabia como entrar em contacto contigo – disse.
– Podias ter-me ligado para o escritório.
– Quero dizer ontem ou hoje.
– O que querias dizer-me?
Charlie apoiou o cotovelo na secretária e a testa na mão.
– Precisava de te dizer que o Terrence morreu.
Yale só parou de respirar por um instante, porque não era verdade. Que
raio é que Charlie estava a tentar fazer?
– Não morreu nada.
– Na verdade, morreu.
Estaria a tentar provar que, se isso tivesse acontecido, Yale nem saberia?
– Desculpa, mas estive com ele anteontem. Dormi em casa dele. Na
quinta-feira à noite. Ele está bem.
O tom de voz de Charlie era subitamente paciente.
– Pode ser verdade o que estás a dizer, mas levaram-no para o hospital ao
final da manhã de sexta-feira. Morreu ainda nesse dia.
Yale não acreditava. Mas, então, porque deu por si a chorar? As lágrimas
eram quentes e grossas e deslizaram-lhe silenciosamente pelas faces até à
boca.
– Ainda bem que estiveste com ele – disse Charlie.
No Ano Novo, Terrence estava com tão mau aspeto que parecia às portas
da morte. Mas na quinta-feira, não. Nem na sexta-feira de manhã. Estava no
chão da casa de banho, mas isso era normal. E Yale deixara-o assim. Yale
obrigara-o a deitar-se tarde na noite anterior, a ficar a conversar com ele.
Yale levara germes para dentro de casa. Apetecia-lhe esfarrapar o ar à sua
volta. Não conseguia pensar.
– Onde está o Roscoe? – perguntou.
– Quem diabo é o Roscoe?
– O gato. O gato do Nico. Era o Terrence que o tinha.
– É com isso que estás preocupado? Com certeza que a Fiona o levou.
– Estive com ele no hospital na noite de Ano Novo – disse Yale.
– Ainda bem. Fico contente.
– Onde é que tu estavas na noite de Ano Novo?
– Yale, não comeces. O funeral é às três.
– Hoje? – Quantos dias tinham passado? Dois? Isto parecia ainda menos
plausível, ainda mais uma piada macabra do que a morte propriamente dita.
– Espera. Então ele chamou a ambulância na sexta-feira? Ou foi alguém que
o encontrou? A que horas?
– Não sei esses pormenores, Yale.
– Como é que isto vai acontecer hoje?
Estava a fazer as perguntas erradas. Na produção de Hamlet de Julian, a
reação de Laertes à morte de Ofélia tocara-o. «Oh, onde?» dissera ele, ao
saber da notícia. Mas sim, vejam, era verdade: era aos detalhes que uma
pessoa queria agarrar-se.
– Foi a Fiona que organizou tudo. – Claro, isso fazia parte dos poderes
concedidos pela procuração, lidar com o corpo. – Será estranho se não
estivermos lá juntos – disse Charlie.
– Não me digas.
– Só quero dizer que não devíamos sobrecarregar a Fiona com mais isto,
neste momento. Podes sentar-te ao meu lado. Não morres.
Yale nunca tinha batido a ninguém na vida, batido a sério, mas foi o que
quis fazer nesse momento. Quis agarrar em todas as publicações semanais
gays do país inteiro que Charlie tinha pendurado naqueles suportes
pretensiosos atrás da secretária e amachucá-las, uma a uma, na cara dele.
Mas Charlie parecia tão cansado. Tinha meias luas azuis por baixo dos
olhos.
Embora soubesse que era ridículo, Yale perguntou:
– Onde é que foste fazer a merda da análise?
– Yale. Deu positivo. Estive exposto e a análise deu positivo. Um mais
um é igual a dois. Estou morto. – Arremessou a última palavra como uma
granada de mão.
E, se Charlie se tivesse descontrolado naquele instante, se o seu rosto se
franzisse e os soluços o sacudissem, Yale talvez se tivesse acalmado, talvez
se tivesse aproximado e o tivesse abraçado, mesmo que olhasse para a
janela, enquanto se debatia com emoções contraditórias. Mas o rosto de
Charlie não se alterou.
Yale viera com intenção de gritar, e o facto de não estar a gritar já era
cedência suficiente.
– Podes, por favor, sentar-te ao meu lado no raio da missa, para não
termos de estar a explicar isto a toda a gente? – pediu Charlie.
E a verdade era que Yale também não estava preparado para explicações.
– Preciso de um fato. Merda. A Teresa está lá em casa?
– Posso telefonar e pedir-lhe que saia por um bocado.
– Sim, por favor.
– É na Igreja Unitária. Tens, não sei... para aí duas horas.
Era a mesma igreja onde tinham sido as cerimónias de Brian, o amigo de
Asher. Uma igreja amiga dos gays perto da Broadway Avenue e, por isso,
promovida – recentemente – a Central de Funerais.
– Nem sequer compreendo. Não percebo como... – Parou de falar e
limpou a cara com a manga.
– Lamento ver-te tão desgostoso por causa do Terrence.
– Está bem, Charlie. – Em vez de gritar, saiu do escritório. Fechou a
porta, realmente convencido de que Charlie o chamaria, correria atrás dele.
Teria mesmo esta sido a sua primeira e única conversa desde que Yale lhe
telefonara, jubilante, do Wisconsin? Tinha falado com Charlie tantas vezes
na sua cabeça, que não tinha a certeza.
E agora saíra sem obrigar Charlie a pedir desculpa, a implorar perdão, a
explicar-se.
À medida que andava, ia ficando mais furioso. No gabinete sentira-se
derrotado, mas o ar frio, o sol, cada passo que se afastava de Charlie
enchiam-no novamente de indignação. Charlie não manifestara qualquer
preocupação por Yale, pela sua saúde, nem por um instante.
Por outro lado, Yale também não dissera sequer «lamento muito que
estejas infetado», pois não? Talvez fossem ambos pessoas terríveis e
orgulhosas. Talvez se merecessem um ao outro.
Tentou imaginar o tipo de homem que, perante a notícia de que o seu
amante ciumento estava, na realidade, a fazer dele um idiota e o expusera
despreocupadamente a uma doença fatal, diria que não fazia mal,
permaneceria calmo e compreensivo e se sujeitaria a meses, anos, de
cuidados ao parceiro doente, de devastação. Quem faria isso? Um santo,
talvez. Um anjinho. Yale demorara anos a aprender a defender-se – depois
de aqueles rapazes da equipa de basquetebol o terem enganado, não se
sentara docilmente com eles ao almoço no dia seguinte? – mas, pelos vistos,
pelo caminho, aprendera-o.
Primeiro bateu à porta, para se certificar de que Teresa não estava e,
depois, rodou lentamente a chave na fechadura. Odiava a versão de si
próprio que ali estivera alguns dias antes, preparado para partilhar os
detalhes de uma viagem fantástica, inconsciente da emboscada que o
esperava. Odiava pensar que, se o Yale de há três dias pudesse ver o Yale de
hoje, provavelmente não veria a realidade do que se passava e pensaria que
estava apenas a voltar para casa depois de almoçar algures, um pouco mal-
arranjado mas feliz, normal.
Estava tudo ligeiramente fora do sítio. A caixa de comprimidos de Teresa
em cima da mesa, ao lado de uma New Yorker que ele ainda não tinha visto.
Uma pilha de cassetes equilibrada no braço do sofá, como se Charlie tivesse
estado a organizá-las ou à procura de letras de canções. Yale encontrou a
sua correspondência muito bem arrumada ao lado do telefone. Uma carta do
grupo de antigos alunos da universidade, um postal da prima em Boston.
Não havia contas, felizmente, porque senão tê-las-ia rasgado em
pedacinhos, espalhado os fragmentos pelo chão. Geralmente era Yale que
pagava a renda, mas o apartamento estava em nome de Charlie, que já lá
vivia quando se tinham conhecido.
Yale vestiu o fato e depois encontrou uma caixa de tamanho razoável em
cima do frigorífico – Charlie comprara uma caixa de toranjas logo a seguir
ao Ano Novo, para uma angariação qualquer – e usou-a para guardar o
passaporte, o relógio do avô, duas camisas, um par de calças. O livro de
cheques e uma caneca com fichas dos transportes. Pôs também os sapatos
de Nico, mas enfiou as roupas que despira no cesto da roupa suja, para
Charlie ou Teresa lavarem. Guardou os sapatos formais na caixa, para
calçar mais tarde, e tirou as botas de neve do armário no vestíbulo. Acabou
de encher a caixa com peúgas e roupa interior e cobriu tudo com um
pulôver. Uma mala de viagem daria mais jeito, mas a única mala grande que
havia em casa era de Charlie.
No frigorífico estavam as carnes frias que comprara antes da viagem.
Deviam ter-se estragado há muito, visto que pareciam pertencer a uma
década diferente, mas ainda estavam boas. Fez uma sanduíche de peru e
queijo Muenster e encostou-se à bancada a comer.
Parecia tudo demasiado normal – como se Charlie estivesse ao fundo do
corredor, a preparar-se para sair do duche, com uma toalha enrolada à
cintura, tudo bem. Podia pousar a mão no peito de Charlie e sentir-lhe o
coração através da pele quente e molhada. A verdade era que o seu corpo
sentia falta de Charlie, ou do corpo de Charlie. Apenas da sua presença.
Não sexualmente, ainda não, embora estivesse certo de que essa parte se
tornaria mais intensa nas noites em que estivesse deitado na cama, acordado
e sozinho. Os músculos tensos das coxas de Charlie, a forma como lhe
mordia as orelhas, o seu sabor, a pele impossivelmente macia por baixo do
prepúcio. Bom, ali estava, então: saudades, anseio. O tipo mais inútil de
amor.
Estava a lavar o prato quando a porta se abriu.
– Pensei que já tinhas saído – disse Teresa.
– Vou sair agora. Tenho de ir.
Ela pousou a mala na bancada da cozinha e dirigiu-se a ele como se
tencionasse abraçá-lo, mas não o fez. Estava com péssimo ar, o rosto seco e
enrugado. Um duplo queixo que não existia antes, a pele das faces flácida e
sem vida. As pálpebras inchadas.
– Yale, estás bem? Já fizeste a análise?
– Não serviria de nada.
– Ficarias a sentir-te melhor. O Charlie ficaria a sentir-se melhor.
– Os sentimentos do Charlie não me preocupam neste momento.
Ela parecia angustiada.
– Não percebo por que razão têm de estar zangados. Vocês amam-se. –
Yale não tinha a certeza se isso ainda era verdade. Teresa pegou-lhe na mão
e acariciou-a. – Se viesses para casa, eu podia cuidar dos dois. Tenho
cozinhado, sabes? E não é só comida britânica desenxabida! Disse-te que
tive uma aula de cozinha italiana no outono? Agora sei fazer umas
almôndegas maravilhosas, mas o Charlie não come carne de vaca.
– Estou bem – disse Yale. – Vou ficar bem.
– Ele cometeu um erro. Foi a primeira coisa que me disse quando me
ligou. Que tinha cometido um erro e não podia corrigi-lo.
– Isso é verdade. Não há nada a fazer.
– Yale, estou com medo de que ele adoeça mais depressa se andar
stressado. A aflição vai dar cabo dele.
Yale admirou esta inversão de lógica, como se fosse ele agora o causador
da doença de Charlie. Podia sentar-se e explicar coisas sobre a sida que
deixariam Teresa com a cabeça a andar à roda, ou podia dizer-lhe que
Charlie nem sequer tentara pedir desculpa, mas de que adiantaria? Disse-lhe
que ia encontrar-se com Charlie no funeral, o que pareceu acalmá-la um
pouco.
– Não sejas mau para ele, está bem?
Para não ser visto a andar em Halsted Street com a caixa na mão, Yale
virou para leste e foi pelo caminho mais longo – um caminho que o
obrigava a passar pela casa que visitara. Devia ter continuado a andar, mas
parou para olhar. Um gesto masoquista. Porque, mesmo que não estivesse
doente, mesmo que recebesse um grande aumento e pudesse pagar a casa
sozinho, nunca compraria uma casa tão perto de Charlie. Mesmo que
Charlie já cá não estivesse, nunca conseguiria viver tão perto do sítio onde
tinham sido felizes juntos, não poderia passar pelo antigo apartamento a
caminho do comboio.
Mas acreditaria realmente que Charlie alguma vez morreria? Na sua
mente, isso ainda era um futuro hipotético, como um tornado atingir a
cidade. Acreditaria, tão insensatamente como Julian acreditara, que alguém
estava prestes a anunciar a cura? Não lhe parecia que fosse por isso.
Simplesmente era uma pedra que ainda não se afundara, que ainda estava a
saltitar sobre a superfície do lago.
O cartaz de «vende-se» continuava lá, com o número de telefone a brilhar
sob o sol da tarde, caracteres rúnicos que já não possuíam qualquer
significado. Na janela da casa contígua, um gato dormia. Alguém tocava
piano.
Era demasiado cedo para ligar a Damian, que estava em Portland, mas
não para ligar a Cecily.
Cecily devia ter agora pelo menos setenta anos, mas na mente de Fiona
seria sempre como a conhecera em meados dos anos oitenta. Enchumaços
nos ombros e gel no cabelo, o rosto fresco e sem rugas. Só vira Cecily uma
vez, desde que Kurt e Claire se tinham juntado ao Coletivo Hossana. Cecily
estava a esvaziar a casa de Evanston, a preparar-se para se mudar para a
Upper Peninsula, e sentara-se com Fiona à mesa da cozinha vazia.
Manifestara alguma preocupação por Claire, por Fiona, mas confessara há
muito ter desistido de Kurt.
– Eu podia ter-te dito – dissera ela. – E teria dito, se soubesse que os ias
apresentar um ao outro. Ele é o pai, da cabeça aos pés. Bom, não, é mais
esperto do que o pai, mas isso não ajuda nada. Pensa demais e age
impulsivamente. É um ciclo, o pensar demais e a compulsão. Eu tentei,
Fiona, eu tentei. Ele é um homem adulto, e eu cometi os meus erros e não
posso apagá-los.
Foi nesta altura que Fiona ficou a saber que Kurt tinha roubado mais de
vinte mil dólares à mãe, que mentira o tempo todo que estivera em
desintoxicação, que mentira a todos os terapeutas que ela pagara.
Ouviu o telefone de Cecily tocar e, quando a chamada foi para o
gravador, tentou de novo. Serge apareceu com um tabuleiro: torradas, uvas,
umas fatias de queijo macio. Um copo de água alto e fino.
Por fim, Cecily atendeu com voz seca e cansada.
– Bom, tenho novidades – disse Fiona.
– E são novidades que eu queira ouvir? – perguntou Cecily.
– Sim.
Serge pousou o tabuleiro na pequena mesa de cabeceira e sentou-se aos
pés da cama, a ouvir. Fiona não se importou – dava-lhe alguém para quem
olhar enquanto falava.
– O Kurt está bem. Falei com ele pessoalmente. Pareceu-me limpo.
Sóbrio, quero eu dizer. E saudável, e tudo. – Contou-lhe que ele vivia com
alguém, uma mulher que não era Claire, mas não lhe disse que ele era
casado. Não disse que tinha sido preso. E depois disse: – Encontrámos a
Claire. Vou vê-la amanhã. Isto pode ser um bocado prematuro, mas se
calhar devias pensar em vir até cá.
Cecily suspirou, um suspiro longo e cansado. Fiona imaginou-a de
roupão.
– Compreendo porque tens de estar aí – disse ela. – Gosto muito do Kurt,
mas ele é um homem feito e já não me considero mãe, pelo menos da
mesma forma. Houve uma época para isso, e essa época passou.
– Sim – disse Fiona. – Mas preciso da tua ajuda. – Cravou as unhas no
joelho. – E agora temos uma neta – acrescentou.
1986
oi um alívio partir para o Wisconsin na segunda-feira de manhã, com as
F suas coisas todas no porta-bagagens, Roman no lugar do passageiro. As
estradas estavam molhadas, as árvores negras contra o céu esbranquiçado.
Num Nissan alugado que cheirava a pinheiro artificial, dirigiam-se à Paris
dos anos vinte. Yale tentou imaginar que cada hora de viagem os fazia
recuar quinze anos no tempo. Chegariam a Sturgeon Bay a tempo do
Hindenburg. Quando estacionassem, não seria em frente da casa de Nora,
mas sim de um café iluminado por candeeiros a gás.
Yale contornara a data 26 de janeiro na sua agenda de bolso – não se
lembrava de o fazer, o que significava que provavelmente estaria bêbedo – e
recalculara essa data várias vezes nas últimas semanas. E hoje era dia 27.
Tinham passado doze semanas e um dia desde o dia da vigília de Nico. Se
essa fora realmente a noite em que Charlie ficara infetado, então Yale podia
ter sido infetado pouco depois. Podia esperar até ao final de março, quando
completaria três meses desde a última vez que fizera sexo com Charlie, ou
podia puxar o gatilho já. Porque, mesmo que só tivesse sido infetado nessa
última vez, havia uma probabilidade de oitenta por cento de quaisquer
anticorpos terem já aparecido nesta altura, segundo as duas pessoas
diferentes que tinham atendido a linha de apoio da Howard Brown em duas
noites diferentes. E alguns médicos acreditavam que as taxas de transmissão
eram mais elevadas logo após a infeção – sabia disto graças a vários artigos
muito úteis no jornal do filho da mãe que provavelmente o condenara à
morte.
Yale tentou meter conversa com Roman e perguntou-lhe como tinha sido
a sua infância.
– Muito diferente daquilo que as pessoas imaginam quando pensam na
Califórnia – disse Roman. – A região de Truckee foi onde o Grupo Donner
ficou encurralado.
– Na Califórnia? – Parecia-lhe absurdo.
– Canibais e esqui – confirmou Roman. – É o que temos na minha terra.
Yale perguntou-lhe se ele ainda se considerava mórmon e Roman fez uma
careta e hesitou.
– Eles dificultam muito a vida a quem quer sair. É como tentar desistir
das subscrições de cassetes da Columbia House.
– Ha! Mandam-lhe folhas de autocolantes?
– Sim – disse Roman. – Onze anos de sentimento de culpa pela mera
quantia de um dólar.
Yale perguntou-lhe porque é que ele se sentira inclinado a deixar a igreja,
mas Roman encolheu os ombros.
– Tenho problemas com algumas coisas – respondeu apenas, e Yale
decidiu não insistir mais.
Lembrava-se da sensação de desconfiar que alguém sabia a verdade sobre
ele, numa época em que ainda nem sequer tinha admitido muita coisa a si
próprio, e não queria sujeitar Roman a isso. Quando era adolescente, uma
senhora de idade que trabalhava como caixa no supermercado costumava
olhar para ele como se fosse a coisa mais triste à face da Terra. Yale chegara
a pôr em dúvida as suas compras – será que comprar pastilha elástica o
fazia parecer gay? – e, ao fim de algum tempo, começou a arranjar
desculpas para conduzir dez quilómetros e ir ao supermercado mais
distante. E havia o senhor Irving, seu conselheiro de orientação na escola,
que cautelosamente, de testa franzida, perguntara a Yale se tencionava
procurar uma universidade com um «ambiente mais cosmopolita». A
avaliação destas duas pessoas causara-lhe mais impacto do que o
julgamento dos seus pares, que simplesmente lhe chamavam «maricas» ou
enfiavam tampões no seu cacifo. Porque isso também acontecia a outros
miúdos. Qualquer pessoa podia ver a sua roupa interior atirada à piscina,
qualquer pessoa podia ter de estudar, noite após noite, por um manual de
Química que já tinha estado ensopado em urina. Mas só os verdadeiros
maricas eram encarados com comiseração pelos adultos. E assim, embora
Roman não fosse propriamente um adolescente – na verdade, era poucos
anos mais novo do que ele –, Yale deixou o assunto de lado.
– A nossa prioridade – disse, quando pararam para meter gasolina em
Fish Creek –, além de estabelecer a ligação com alguns quadros existentes,
é obter datas. Se pudermos pelo menos ajudá-la a determinar o ano das
peças que não estão datadas... Sei que o que ela quer é contar-nos histórias,
mas o Bill vai ficar chateado se voltarmos sem uma cronologia.
Muitas das peças estavam assinadas, mas poucas estavam datadas. Os
Modiglianis, para sua grande frustração, pertenciam a este grupo.
– Eu tenho de voltar na sexta-feira o mais tardar – disse Roman.
Mas ainda era apenas segunda-feira e, embora Yale quisesse poder ficar
no Wisconsin para sempre, longe de Chicago, longe de Charlie, disse:
– Não estou a contar que demore mais de dois dias. Tem grandes planos
para o fim de semana?
– Ela está mesmo a morrer? – Roman limpou o para-brisas enquanto Yale
metia gasolina. Vestia um casaco preto e calças de ganga pretas. Yale nunca
o vira vestido de outra cor que não preto e, fora do contexto urbano, parecia
velho, deprimido.
– Ao que parece, a insuficiência cardíaca congestiva é uma bomba-
relógio. Temos de partir do princípio de que cada visita pode ser a última.
Portanto, primeiro o panorama geral, e os pormenores mais coloridos
depois.
No carro, Roman disse:
– Gostava de saber como conseguiu que ela confiasse em si tão depressa.
Yale pensou em fingir ignorância, mas decidiu não o fazer.
– Creio que lhe faço lembrar o sobrinho-neto. Éramos bons amigos. Ele
morreu em outubro.
– Oh!
– Tinha sida.
Roman olhou para a janela.
– Lamento muito a sua perda.
Jantaram em Egg Harbor e ficaram na estalagem. Nora dissera-lhes que
as manhãs eram a melhor altura para ela e, assim – sem a influência de Bill
Lindsey e das suas infindáveis garrafas de vinho –, deitaram-se cedo.
Através da parede da casa de banho, Yale conseguia ouvir Roman a escovar
os dentes e a cuspir a água. Os lavatórios dos dois quartos deviam estar
encostados à mesma parede. Podia dizer «boa noite» e ele ouviria, mas
porquê tornar as coisas mais estranhas?
No dia seguinte, encontraram Nora sentada em frente da lareira, com uma
garrafa pulverizadora de plástico na mão, sem cadeira de rodas à vista.
– Posso oferecer-vos um café? – perguntou ela, o que fez Debra dirigir-se
à cozinha com má cara, como uma empregada de mesa mal paga. – Roman
– disse, pronunciando «Ro-máne», como se ele fosse espanhol –, importa-se
de me dar uma ajuda com isto? – Referia-se à garrafa pulverizadora. – A
Debra não acha que sirva para nada. É água de hortelã, para os ratos. – Yale
e Roman olharam ambos em volta. Não havia roedor algum à vista. – É
para os manter à distância. Importa-se de pulverizar junto aos rodapés? E
nos parapeitos das janelas também.
– Eu... claro. – Roman levantou-se, deixando o bloco de notas e a caneta
no sofá ao lado de Yale.
Yale queria iniciar a conversa devagar e seguir uma progressão lógica.
Tinha pensado em várias maneiras de enquadrar a conversa, mas nenhuma
delas tinha a ver com roedores e spray de hortelã. Procurou a lista de obras
na pasta, mas Nora já estava a falar.
– Tenho andado muito aborrecida – disse ela, e depois parou e olhou para
Yale como se este soubesse exatamente porquê. – Aqueles papéis que
assinámos... Devia ter pedido ao Stanley que me explicasse melhor.
– Oh! Há alguma coisa que...
– Aquilo que falámos, sobre garantir que as obras são todas expostas com
igual destaque, não consta dos documentos.
Roman estava de pé junto à lareira, a rodar o bocal da garrafa para tentar
acertar na posição de pulverizar. Yale ouviu, na cozinha, a máquina de café
a trabalhar e Debra a bater com as coisas.
– Certo. Certo. É mesmo assim. Por vezes, há quem faça um acordo de
doação mais específico, com detalhes, mas isso dá muito trabalho. Garanto-
lhe que não me esqueci dos seus desejos.
– Oiça – disse ela. – Não sou nenhuma idiota. Sei que o trabalho do
Ranko não é algo que vocês tenham vontade de pôr em exposição, em
circunstâncias normais. Mas também não é mau.
– Eu adoro as duas pinturas! – disse Roman. Estava a pulverizar ao lado
da estante dos discos. – A perspetiva é muito invulgar, não é? Quase como
se fosse hesitante e fortuita ao mesmo tempo. Mas no bom sentido, como se
ele estivesse prestes a descobrir alguma coisa. – Roman nunca dissera isto,
e Yale não sabia se ele estava a mentir ou se decidira calar-se na galeria, por
conhecer a opinião desfavorável de Bill.
– Gosto do seu estagiário – disse Nora. – Já em relação ao seu patrão, não
posso dizer o mesmo.
– Eu serei o seu representante nesta questão – disse Yale, e preparava-se
para dizer mais, quando Nora o interrompeu.
– Vou falar-lhe sobre o Ranko. Sei que tem a sua própria agenda, mas, se
quiser saber mais sobre o Soutine, pode ir à biblioteca. Os historiadores de
arte podem dizer-lhe mais do que eu em relação à maior parte das obras.
Contudo, não encontrará muito sobre o Ranko, e tenho de o fazer enquanto
posso. – E, depois, quase como um aparte: – E sobre o Sergey Mukhankin
também.
– Podemos falar sobre as peças por ordem cronológica, e quando
chegarmos ao Ranko dá-nos esses pormenores. Tenho uns catálogos no
carro que...
– Não. – Nora abanou a cabeça como uma menina obstinada que, por
acaso, era quem mandava ali. – Vou contar-lhe as histórias mais importantes
primeiro, depois as seguintes, e por aí fora. E a primeira é sobre a época
antes da guerra, quando o Ranko foi sequestrado para o Prix de Rome.
– Como assim?
– Não afaste as mobílias – disse Nora a Roman –, se pulverizar debaixo
do sofá deve ser suficiente.
Yale levantou os pés enquanto Roman o fazia.
– Ele era sérvio – disse Nora. – Mas nascido em Paris, criado lá.
Roman é que devia tirar apontamentos mas, uma vez que estava ocupado,
Yale pegou no bloco. Havia agora no ar um cheiro a hortelã agradavelmente
antissético.
– Frequentávamos escolas diferentes. O meu pai era francês – continuou
ela – e, quando eu decidi estudar Artes, ele levou-me a sério e achou que
não fazia sentido estudar em Filadélfia. – Falava depressa mas com pausas
entre as frases, como uma nadadora a vir à superfície respirar. – A escola
mais importante em Paris, como imagino que saiba, era a École des Beaux-
Arts, mas não aceitavam mulheres e, mesmo que aceitassem, eram muito
retrógrados. Escrevi a duas escolas e uma delas era a Académie Colarossi.
E – riu-se – vou dizer-lhe o que me impressionou mais: lá, podia desenhar
nus masculinos com modelos ao vivo. Era a desculpa que usavam naquele
tempo para manter a maioria das mulheres fora das escolas, percebe? Não
podemos ter alunos do sexo feminino, há homens nus! Portanto, decidi-me
pela Colarossi – soletrou o nome da escola para Yale, que já o conhecia mas
ainda estava duas frases atrasado – e o meu pai foi-me levar. Estávamos em
1912 e eu tinha dezassete anos.
Roman agachou-se para pulverizar a ombreira da porta da casa de jantar e
as costas da t-shirt preta subiram e deixaram ver um pouco de pele.
– O combinado era eu ficar em casa da tia do meu pai, a tante Alice. Ela
estava senil e nunca saía da cama. A ideia era que a enfermeira que cuidava
dela me mantivesse na linha, mas a pobre mulher não sabia como. Fazia-me
torradas de manhã e, basicamente, resumia-se a isso a sua supervisão. Nesse
outono, havia uma aula de Anatomia na Colarossi que era aberta ao público.
Sabe, para estudar o funcionamento interno do joelho, esse tipo de coisas. A
Beaux-Arts tinha aulas semelhantes, mas esta era especial, ia ser dada por
um professor convidado, pelo que alguns dos alunos das outras escolas
também apareceram.
Roman estava de volta e, como um corredor de estafetas, tirou a caneta da
mão de Yale, que olhou para a sua lista, para os espaços vazios ao lado do
nome de cada peça à espera de uma data, e percebeu que ainda não podia
acrescentar nada a não ser 1912 – chegada a Paris.
– E, ao meu lado, estava um homem de cabelo escuro e encaracolado...
parecido com o seu, Yale, só que ele tinha o rosto mais comprido... e,
enquanto ali estava, fez uma coroa de clipes de papel. Uniu-os uns aos
outros até formar um círculo e depois colocou-a na cabeça. E ali ficou,
sentado, como se fosse absolutamente normal, com o sol a refletir-se no
metal dos clipes. Quis pintá-lo, foi o meu primeiro pensamento, mas no
minuto seguinte estava apaixonada. Nunca tinha compreendido como os
artistas se apaixonam pelas suas musas. Pensei que era só uma desculpa de
uma data de homens que não conseguiam ter as calças vestidas. Mas aquela
necessidade de o pintar e de o possuir... eram o mesmo impulso. Não sei se
faz sentido, mas foi assim.
Yale tentou dizer uma coisa, mas não sabia como começar. Tinha a ver
com um passeio que dera uma vez com Nico e Richard à volta do lago em
Lincoln Park, com Nico e Richard a partilharem a máquina Leica de
Richard. Nesse dia, Yale apercebera-se de que ambos tinham uma forma de
interagir com o mundo que era simultaneamente egoísta e generosa –
apoderavam-se da beleza e refletiam-na de volta. Os bancos e bocas de
incêndio e tampas de esgoto que Nico e Richard paravam para fotografar
tornavam-se mais belos quando os dois homens reparavam neles. E ficavam
mais belos depois de eles se afastarem. Ao final do dia, Yale deu por si a
ver as coisas rodeadas de molduras, a admirar a forma como a luz incidia
nos postes da cerca, com vontade de devorar as ondulações do sol na
montra de uma loja de discos.
– Compreendo o que quer dizer, a sério – disse.
Roman, entretanto, suava, tinha o rosto brilhante. Yale não sabia se era a
conversa sobre amor que estava a deixá-lo nervoso ou se estaria a ficar
doente. A forma como se agitou no sofá, inquieto, fê-lo suspeitar de que
seria a primeira hipótese. Bom, a última coisa de que Yale precisava neste
momento era de uma história de amor.
– No dia seguinte, o Ranko tinha organizado um piquenique e convidou-
me para ir também. E pronto, perdi-me. Ele tinha o cheiro certo, como um
armário escuro. Uma grande parte do sexo está no nariz. Acredito piamente
nisso. E ele também estava apaixonado por mim.
Parou, com um dedo no ar, e pareceu concentrar-se na respiração durante
alguns instantes. Yale sentiu-se tentado a fazer uma pergunta, só para
preencher o silêncio, mas aqui estava Debra, com grandes canecas brancas
de café para Yale e Roman. Sem açúcar, sem natas: apenas um café tão
diluído que se conseguia ver o fundo da caneca. Roman pegou na caneca e
pousou-a imediatamente na mesa. Debra encostou-se à ombreira da porta,
de braços cruzados, uma estátua de impaciência entediada.
– Ainda estamos a falar do Ranko?
Yale assentiu com um aceno. Roman disse:
– Estávamos a falar dos clipes.
– Foi só por causa dele que ela vos deu as obras de arte. Sabem disso,
certo?
– Não o nego – disse Nora, antes que Yale decidisse o que havia de
responder.
Roman perguntou-lhe o que queria dizer e Debra riu-se alto.
– Setenta anos é muito tempo para estar obcecada por alguém – disse. –
Não acham? Quer dizer, acredito que ele fosse um tipo fantástico, mas
morreu há séculos e, mesmo assim, ela ainda o põe acima da família.
– Não vejo o que isso tem a ver com o facto de ter doado a arte à Brigg...
– começou Roman.
– Debra – disse Yale. E depois percebeu que não fazia ideia do que havia
de dizer. Estava apenas desesperado por quebrar a tensão, por mudar de
assunto. – Posso pedir-lhe um pouco de açúcar?
E, quando ela saiu intempestivamente em direção à cozinha, Yale
levantou-se para a seguir e fez sinal a Roman para continuar a escrever.
Debra abriu o frigorífico e olhou para o interior; com certeza não era aqui
que guardavam o açúcar, mas Yale na realidade não queria açúcar. Estava
apenas com esperança de que Debra não o odiasse tanto como ao princípio.
Ela seria um recurso precioso, depois de Nora morrer.
– Deve ser muito esgotante, ter de tomar conta dela – disse.
Debra não respondeu.
– Tanto a nível emocional como financeiro. Oiça, se quiser mandar
avaliar as joias, tenho todo o gosto em lhe apresentar as pessoas indicadas.
Não acho boa ideia levá-las a uma loja qualquer. Se estiver interessada no
valor monetário... bom, talvez tenha uma surpresa. Até conheço uma pessoa
em Chicago que estaria disposta a vir aqui para o fazer. Se eu lhe pedisse
esse favor.
Debra virou-se. Por alguma razão, tinha na mão um frasco de mostarda.
Os seus olhos ainda estavam húmidos.
– É muito amável – disse, inexpressiva.
– Não dá trabalho nenhum.
– Nunca estive zangada consigo pessoalmente, sabe? Seria mais fácil
odiá-lo se você fosse um imbecil. É assim que consegue o que quer das
pessoas, não é? Com simpatia. E nem sequer é uma simpatia falsa.
Yale sempre se considerara boa pessoa, mas Charlie talvez tivesse outra
opinião. E Teddy também. Encolheu os ombros e disse:
– Não, não é falsa.
Para sua estupefação, Debra sorriu-lhe.
Quando voltaram, Nora estava a contar a Roman que se mudara para casa
de uma colega da Académie divorciada.
– Era um pequeno apartamento por cima de um sapateiro na Rue de la
Grande Chaumière. Oh, céus – disse a Roman –, por acaso fala francês?
– Na verdade, sim. Eu... a minha tese é sobre Balthus e...
– Ha! Esse tarado! Bom, ótimo, então sabe escrever as palavras. O marido
ainda a sustentava, mandava-lhe dinheiro todos os meses. Eu subornei a
bonne da minha tia com meia dúzia de francos e a pobre velhota estava
demasiado demente para reparar que eu já lá não estava.
Yale sentou-se e tentou ver o que Roman tinha escrito, mas ele não
adiantara grande coisa. Debra puxou uma cadeira da sala de jantar e sentou-
se.
– Portanto, esses foram os meus anos de estudante. Desenhar, pintar, estar
com o Ranko. Os esboços da vaca são dessa época, de uma viagem que
fizemos pela Normandia. Março de 1913, penso eu.
Yale apontou a data ao lado dos espaços vazios em frente dos três esboços
de Ranko Novak. Os mais insignificantes dos detalhes que tinha recebido
instruções de descobrir. Se voltasse apenas com as datas dos esboços das
vacas, Bill pensaria que era uma partida.
– Queríamos casar mas tivemos de esperar, porque em abril o Ranko
candidatou-se ao Prix de Rome. Não era apenas um prémio, era um
concurso para estudantes que tinha lugar ao longo de um ano e em que os
candidatos iam sendo eliminados um a um. Como a Miss América, quando
a cada ronda mandam sair aquelas pobres raparigas lavadas em lágrimas.
E... adivinhem?... só se podiam candidatar homens solteiros. E tinham de
ser franceses. Claro que houve outro estudante qualquer que levantou
problemas, a insinuar que o Ranko não era verdadeiramente francês... por
causa do nome, suponho, por não se chamar Renée... mas permitiram-lhe
que continuasse, ainda assim. No entanto, isso abalou-o.
«Ele era bastante frágil. E estranho! Ele é que nunca devia ter entrado
para as Beaux-Arts. Era a escola do poder instituído, percebe, e queriam
domá-lo. Naquela época de boémia, a última coisa que alguém queria era
uma palmadinha nas costas e a aprovação dos velhos porta-estandartes. Por
causa deles, o Ranko estava sempre a controlar a sua originalidade.
Infelizmente, acabou por funcionar. Ele poliu o seu trabalho até eles o
adorarem.
– Aquelas duas pinturas não parecem polidas – disse Roman.
– Pois, exatamente. Os professores nunca lhes puseram a vista em cima.
A pintura da menina... foi feita mais ou menos na mesma altura, à pressa.
Supostamente seria eu; ele pintou-me como imaginava que eu teria sido em
criança. Muito longe da verdade, infelizmente, mas mesmo assim essa obra
tinha alma. O trabalho que fez para eles, por outro lado, era polido e
unidimensional e religioso. E ele era ateu!
«Foi progredindo no concurso e, no fim daquela provação toda, os artistas
eram sequestrados num estúdio no Château de Compiègne durante setenta e
dois dias. Setenta e dois! Imaginem! E davam-lhes um tema para pintar.
Primeiro tinham doze horas para o esboço, e depois dez semanas para
pintar, e não podiam afastar-se do esboço. Quem é que decidiu que um
artista não pode mudar de ideias? Assim, ele esteve fechado durante setenta
e dois dias e eu fiquei à espera, cheia de saudades.
– Ele não podia escrever-lhe? – quis saber Roman.
– Não! Foi a pior época da minha vida. Bom, digo isto mas na realidade
estava mais apaixonada a cada dia. Há coisa mais romântica do que esperar
por um amante que está fechado num château? Perdi dez quilos.
«Não me lembro do tema que lhe deram, mas o que ele produziu foi uma
pietà rígida. Parecia saída de uma procissão de Páscoa, foi o que eu achei. E
venceu. Venceram três estudantes, na realidade, o que foi um escândalo.
Não tinham entregado o prémio no ano anterior e, antes disso, o vencedor
fora obrigado a devolver o prémio por um motivo disparatado qualquer,
portanto havia três vagas na Villa Medici em Roma, que era para onde
seriam enviados os vencedores do concurso. Para ser honesta, noutro ano
qualquer o Ranko não teria vencido. Toda a gente sabia que o trabalho dele
ficara na realidade em terceiro lugar, e ele também o sabia.
«Portanto, já estão a imaginar: o amor da minha vida isola-se do mundo
durante meses, e o seu prémio são três a cinco anos em Roma. E não
podemos casar agora, porque não há lá lugar para uma mulher. Ele ficou
extasiado e eu fiquei arrasada.
– Aí está – interrompeu Debra. – Compreendo que se dedique a vida à
memória de alguém que valha a pena, mas ele era um idiota.
Silenciosamente, Yale teve de concordar. Talvez Ranko não fosse má
pessoa – o prémio parecia ser a oportunidade de uma vida – mas, se a
jovem Nora tivesse pedido conselhos amorosos a Yale, ele ter-lhe-ia dito
para não perder mais tempo e seguir com a sua vida sem ele.
– Depois, nesse verão, aconteceram duas coisas. Uma, vocês já sabem:
aquele homem horrível teve de matar o arquiduque e começar uma guerra, e
eu tive vontade de o matar a ele. Mas a outra foi que o meu pai também
morreu, de repente. Assim, num minuto a viagem do Ranko para Roma foi
adiada, e no minuto seguinte eu fui chamada para regressar a casa.
Roman fez um ruído solidário e sublinhou a palavra morreu nos seus
apontamentos.
– Estava tudo num caos, como podem imaginar. Eu não tencionava partir,
tencionava ficar com o Ranko. Quase fiquei contente com a guerra, de uma
forma horrivelmente egoísta. Mas Paris estava a tornar-se perigosa e a
morte do meu pai significava que eu não tinha dinheiro para continuar a
estudar... e depois, em agosto, o Ranko disse-me que ia ser mobilizado. Eu
nem sequer sabia que essa possibilidade existia.
«Chorei dois dias seguidos e decidi que voltaria para casa. Foi
extremamente difícil sair de lá, com toda a gente a querer marcar passagens
ao mesmo tempo. Regressei a Filadélfia, onde estava a minha mãe, e
comecei a dar aulas de Desenho a umas criancinhas insuportáveis.
– Mas voltou a Paris mais tarde – disse Roman. – Todas as outras peças
são posteriores a essa época, certo?
– Sim – confirmou ela, e depois sucumbiu a um ataque de tosse profunda
que lhe sacudiu todo o corpo. Debra levantou-se de um salto e desapareceu
na cozinha, e Yale levantou-se, sem saber o que fazer. Estava muito
habituado à tosse da pneumonia pneumocística, uma espécie de latido seco
que ouvia nas ruas e nos bares, uma tosse que lhe fazia lembrar uma peste
de tipo mais medieval. Lembrou-se de Jonathan Bird, o antigo companheiro
de casa de Nico, dizer:
– Com esta tosse toda, só gostava de conseguir cuspir qualquer coisa.
A tosse de Nora, por outro lado, era tão húmida que ela parecia estar a
afogar-se. Debra voltou, com um pedaço de papel de cozinha e um copo de
água.
Yale saiu por um momento para a sala de jantar e fez sinal a Roman para
se juntar a ele. Pelo menos podiam dar algum espaço a Nora.
Roman murmurou:
– Ele morreu na guerra, não foi? O Ranko Novak?
Yale encolheu os ombros.
– Quer dizer, não me parece que esta história tenha um final feliz.
– É tão bonito – disse Roman. – Um amor condenado.
Yale riu-se.
– Acha? – E depois não conseguiu parar de rir. O que era terrível, porque
Nora continuava a tossir e Roman parecia magoado. Mas a expressão
sonhadora no rosto de Roman, o seu tom de voz, tinham espicaçado o lado
mais negro do sentido de humor de Yale. Que bonito, o amor condenado!
Que maravilhoso e idílico, as formas como nos abandonamos uns aos
outros! As guerras encantadoras em que morremos, a poesia da doença!
Teve vontade de ligar a Terrence e dizer-lhe: «Vocês eram como o Romeu e
a Julieta! O Romeu e a Julieta também morreram a vomitar as entranhas. O
Tristão e a Isolda morreram com quarenta quilos e sem cabelo. É tão bonito,
Terrence. Tão bonito!»
– Sente-se bem? – perguntou Roman.
A tosse de Nora estava finalmente a passar.
– Se calhar devíamos parar por hoje – disse Roman.
E depois Debra apareceu à porta, a sugerir o mesmo.
– Já ultrapassámos em muito o que eu a devia ter deixado fazer – disse
ela. – E se continuassem amanhã?
Parecia maravilhoso: a garantia de mais uma noite ali, longe da cidade,
longe de todas as pessoas que conhecia. Se pelo menos conseguisse esticar
isto uma semana e, depois, um mês. Ali não havia cartazes a incentivá-lo a
fazer a análise. Podia ficar em casa de Nora e mandar Debra viver a sua
vida.
Roman olhou para a janela o caminho todo até casa de Nora. Yale pensou
em pedir desculpa, mas isso plantaria a semente de que se aproveitara da
sua posição. E, pior ainda, reforçaria quaisquer ideias que Roman tivesse de
que o sexo implicava vergonha, pedidos de desculpa. Podia fazê-lo
retroceder uns cinco anos.
Teriam sido a inexperiência e o sentimento de culpa de Roman a atrair
Yale? Ou teria ele sucumbido a qualquer pessoa naquele momento? Não lhe
parecia. Nunca se sentiria atraído por alguém que pudesse magoá-lo.
Tinha graça: Charlie achara que Roman não representava qualquer perigo
precisamente por ser tão virginal. Se calhar Charlie não o conhecia tão bem
como julgava.
– Hoje não podem fazê-la falar demasiado – avisou Debra. Yale garantiu-
lhe que tudo o que queriam era os detalhes em falta. Debra sentou-se no
patamar das escadas com o seu tricô, visível através da porta. Yale desejou
ter comido menos ao pequeno-almoço. Ou talvez mais, para absorver o
resto do vinho de morango que ainda lhe chocalhava no estômago.
Nora parecia realmente cansada. A sua pele, sempre pálida, tinha uma
sombra azulada, e os olhos estavam vermelhos. Quando Yale lhe disse que
tinham mesmo de determinar a moldura temporal das outras obras, ela não
levantou objeções.
– É tudo anterior a 1925, acho eu – disse. – Para o fim, eu já não fazia
muitos trabalhos de modelo. Em 1925, já estava noiva do David.
Roman sentou-se no sofá com Yale, mas o mais distante possível. Tinha a
pasta com as fotocópias que passara a semana anterior a organizar, rotular,
pôr em ordem cronológica, identificar num índice. Nora sugeriu que
organizassem as cartas por remetente.
– Será mais fácil para as datar.
Assim, enquanto Roman folheava a pasta, à procura das cartas de
Modigliani para colocar em primeiro lugar, Yale pegou no bloco e na caneta
e perguntou a Nora se se lembrava da data exata do seu regresso a Paris.
– Eu diria a meio da primavera de 1919. Tinha vinte e quatro anos e
sentia-me terrivelmente adulta. Em Filadélfia, já era considerada uma velha
solteirona.
– O que aconteceu ao Ranko? – perguntou Roman, e Yale teve vontade de
lhe apertar o pescoço. Na verdade, ele também queria saber, mas só depois
de ter a restante informação. De súbito, lembrou-se de que sonhara com
Ranko essa noite, com Ranko trancado no seu castelo. Yale estava a tentar
telefonar-lhe, a tentar convencê-lo a sair e a falar com Nora antes que ela
queimasse os quadros dele. O número que marcava, percebeu agora, era o
número do escritório do Out Loud.
– Bem – disse Nora –, era essa a minha dúvida. Não tinha tido notícias
dele entretanto, nem uma única carta. Por vezes, desejava que ele tivesse
morrido, porque isso significava que não me tinha rejeitado, e depois
desejava que ele me odiasse, porque isso podia querer dizer que ainda
estava vivo. Não pensem que estive esse tempo todo a definhar de amor por
ele. Tive alguns cavalheiros mais íntimos em Filadélfia, embora não fosse
ninguém com quem quisesse casar. Os rapazes com quem eu tinha crescido
estavam na guerra, pelo que me via limitada a... meu Deus, um deles era
vendedor de sapatos. Depois de todos aqueles jovens artistas excêntricos. Ia
morrendo de tédio.
Yale abriu a boca para perguntar como é que ela tinha começado a
trabalhar como modelo, mas não foi suficientemente rápido – o nevoeiro
mental não ajudava – e ela já estava lançada na sua história.
– Têm de perceber que não sabíamos quem estava vivo e quem estava
morto. Os meus amigos da Colarossi, até os professores. E, para além da
guerra, havia a gripe! De vez em quando chegava uma carta a dizer fulano
de tal morreu em combate. E mais tarde vínhamos a saber que ele tinha
morrido no hospital de campanha, e ninguém sabia se morrera dos
ferimentos ou da gripe. Mas, na maior parte dos casos, não havia notícia
nenhuma. Não vai encontrar muita coisa do Modi aí, meu querido – disse a
Roman. Mas ele continuou à procura. Yale pensou que ele podia estar a
esconder-se atrás da pasta para evitar o contacto visual.
– Regressei a Paris e Paris desaparecera. Não a cidade propriamente dita,
mas a... não sei se consigo explicar. Os rapazes tinham morrido, os nossos
colegas, ou tinham um braço ou uma perna a menos. Houve um estudante
de Arquitetura que regressou intacto, mas perdeu a voz por causa do gás
mostarda e nunca mais disse uma palavra. Nessa primavera, toda a gente
queria saber mais. Se encontrássemos um conhecido num café, mesmo que
fosse alguém que conhecíamos mal, corríamos para ele, dávamos-lhe um
beijo, trocávamos notícias sobre quem tinha morrido. Não é comparável
com mais nada. É impossível comparar com outra coisa.
Yale não estava a perceber.
– Comparar o quê?
– Bom, vocês! Os vossos amigos! Não se pode comparar com outra coisa
senão com a guerra!
Roman estacou – Yale viu, pelo canto do olho, os seus dedos pararem de
folhear as páginas – e Yale quis tranquilizá-lo, dizer-lhe que não podia ter
apanhado nada da mão de Yale. Ou talvez Roman estivesse apenas
preocupado que o «vocês» de Nora o incluísse.
– Foi por isso que o escolhi a si, foi por isso que quis que ficasse com isto
tudo! Assim que a Fiona me falou sobre si, tive a certeza. Sei que é o
senhor Lindsey que está à frente da operação, mas é você que vai certificar-
se de que as coisas são feitas como deve ser.
Não era verdade, em termos oficiais, mas Yale assentiu com um aceno.
– Claro que sim – assegurou-lhe.
– Porque sei que vai compreender isto: Paris era uma cidade-fantasma.
Alguns daqueles rapazes eram queridos amigos. Eu tinha estudado ao lado
deles durante dois anos. Tínhamos passado tempo juntos, a fazer todas
aquelas coisas ridículas que fazemos quando somos jovens. Podia dizer-lhe
os nomes deles, mas não significariam nada para si. Se eu lhe dissesse que
Picasso tinha morrido na guerra, compreenderia. Puf, lá se foi o Guernica.
Mas, se lhe disser que o Jacques Weiss morreu na Somme, não se sabe o
que teremos perdido. Isto... sabe que mais, tudo isto me preparou para ser
velha. Todos os meus amigos estão mortos ou às portas da morte, mas na
verdade já passei por isto.
Yale nunca tinha pensado que Nora pudesse ter amigos atuais. Não sabia
porquê, mas sempre pensara nos amigos como pessoas que conhecemos
cedo e às quais ficamos ligados para sempre. Talvez por isso a solidão o
estivesse a afetar tanto. Não conseguia imaginar-se a selecionar um novo
grupo de amigos. Era inimaginável que Nora tivesse vivido mais sete
décadas, que tivesse conhecido o mundo durante tanto tempo, sem os seus
primeiros amigos adultos, os seus compatriotas.
– Desde essa altura, até hoje, sempre que entro numa galeria penso nas
obras que lá não estão – disse Nora. – Quadros-sombra, percebe, que mais
ninguém consegue ver senão eu. Estou rodeada de jovens alegres e percebo
que não, eles não lamentam essa perda. Não veem os espaços vazios.
Yale desejou que Roman não estivesse na sala, que ele e Nora pudessem
chorar juntos. Ela virou para ele os olhos húmidos, fitou-o nos olhos como
se estivesse a espremê-los.
– E o Ranko não estava lá? – indagou Roman.
Nora pestanejou.
– Bom, ninguém sabia onde é que ele estava. Alguns dos meus amigos
ainda andavam na Colarossi, mas eu não tinha dinheiro para voltar a
estudar; poupara apenas o suficiente para a viagem. Estava a viver com uma
rapariga russa que fora minha colega, uma péssima influência.
«À noite, havia aulas pagas abertas ao público, e alguns dos professores
deixavam-nos entrar à socapa. Eu tinha pensado em andar pela cidade a
pintar, mas estava tão desorientada. Queria pintar os rapazes que tinham
perdido braços, mas não conseguia. Assim, no meio de todo aquele caos, ali
estava eu, a pintar tigelas de fruta. Os mesmos exercícios monótonos que
costumava passar às crianças em Filadélfia.
– E foi então que conheceu estes artistas? – quis saber Yale. – Nesse ano,
ou mais tarde?
– Nesse verão e outono.
Roman tirou o bloco das mãos de Yale e folheou-o.
– O Modigliani regressou a Paris na primavera de 1919 – disse. Traçara
uma cronologia numa das últimas folhas, com linhas de diferentes cores. –
Com a Jeanne Hébuterne e a filha de ambos.
Yale sentia o cheiro do suor de Roman de onde estava – não era um
cheiro mau, mas tinha estado muito perto dele na véspera e agora atacava-o
com a sua familiaridade.
– Fantástico. Bom, ele morreu em janeiro do ano seguinte. Isso deve dar-
lhe uma moldura temporal, não? – Parecia satisfeita consigo própria. – O
Modigliani estudou na Colarossi e costumava passear-se por lá. Fazia
lembrar um vilão de ópera, e já era bastante famoso. Um hálito horrível, uns
dentes péssimos, mas sempre que o via eu ficava deslumbrada. Uma vez,
ele estava num dos corredores, com o nosso professor, e eu inventei uma
desculpa qualquer para ir lá fazer uma pergunta. Foi o primeiro a convidar-
me para trabalho de modelo.
«A questão é que eu queria ser uma musa. Tinha a ver com a minha
própria arte, com a forma como não estava a conseguir usá-la para
expressar as minhas perdas. E, se não conseguia pintá-las eu, talvez outra
pessoa conseguisse captar a minha alma. Foi uma tentativa de alcançar a
imortalidade, claro.
Yale tinha um milhão de perguntas, uma das quais era se o papel de musa
envolvia sexo, mas o que perguntou foi:
– E isso foi na primavera? No verão?
Tentou imaginar alguém, daqui a sessenta anos, a interrogá-lo sobre os
mais ínfimos detalhes da sua vida: O que aconteceu primeiro, a análise ou
o interlúdio com o Roman? Quem morreu primeiro, o Nico ou o Terrence?
Onde é que o Jonathan Bird vivia quando adoeceu? Quando é que o
Charlie morreu, exatamente? Onde estava você quando soube? Quando é
que o Julian morreu? E o Teddy? E o Richard Campo? E você, quando é
que começou a sentir-se doente? Ele seria o homem mais afortunado do
mundo por ainda ali estar, depois de tudo, por ser o único que restava, a
tentar lembrar-se. E também o mais azarado.
Foi nessa altura que Roman gritou. Um grito agudo, entrecortado, uma
espécie de guincho como fogo de metralhadora, que não parava. Yale
percebeu o que se passava assim que Roman levantou os pés do chão e se
ajoelhou no sofá. Debra devia ter compreendido também, porque desceu as
escadas já de vassoura em punho.
– Para onde é que foi? – perguntou, e Roman agitou o braço na direção
geral da parede, da estante, da sala de jantar.
– Desculpem – disse –, mas detesto ratos.
Yale também detestava ratos, mas, como Roman reagira de forma tão
exagerada, conseguiu controlar-se e perguntar calmamente se podia ajudar.
Enquanto Debra olhava em volta e batia com o cabo da vassoura na estante
para ver se saía alguma coisa, Roman disse:
– Não sei o que me deu. Não dormi nada esta noite.
– Deixa o pobre ratinho em paz, querida – disse Nora a Debra.
Mas, agora que Roman dissera que tinha quase a certeza de o ter visto a
esconder-se atrás do louceiro na sala de jantar, Debra requisitou a ajuda de
Yale para afastar o móvel da parede.
Quando se levantou do sofá, sentiu-se tonto, ainda nas garras da ressaca.
Só queria ir para casa dormir. Bom, para algum lado dormir.
– Agarre por esse rebordo – disse Debra. O louceiro era alto e
extraordinariamente pesado e Yale não conseguia pegar-lhe bem.
Lera numa revista que as ressacas exacerbavam os sentimentos de
vergonha – que as pessoas se sentiam pior em relação ao que tinham feito
na noite anterior quando ainda estavam ressacadas. Esperava que fosse
verdade, porque a perspetiva de regressar à estalagem essa noite, de dormir
no mesmo edifício que Roman, acometeu-o de uma onda de náusea. Ou
talvez fosse por causa do esforço. Afastaram o louceiro alguns centímetros
da parede. Havia muita poeira lá atrás, mas nem sinais do rato ou do seu
ninho. Na sala, Roman acalmara-se; ele e Nora conversavam em vozes que
pareciam normais.
– Deixe estar assim – disse Debra. – Já agora, aspiro lá atrás. – Refez o
rabo-de-cavalo, que se tinha soltado. – Ainda bem que as peças nunca
estiveram aqui. Esta casa é um chiqueiro.
Yale precisava de um copo de água. Precisava de ir à casa de banho.
– Ha-ha. Sim, as bolas de cotão não fariam mal, mas ninguém quer ratos
perto de dois milhões de dólares em obras de arte.
As mãos de Debra pararam a meio do que estava a fazer.
– Desculpe?
Ele estava tão desconcentrado, tão distraído, que pensou que a tivesse
ofendido por falar no rato.
– Disse dois milhões de dólares? – perguntou ela.
– Oh, é só... – Tentou dizer que era apenas o montante que Chuck
Donovan ameaçara retirar, mas não conseguiu pensar suficientemente
depressa para formar uma frase coerente e, além disso, não tinha desculpa
para lhe mentir. – Sim, mais ou menos – admitiu, por fim.
Debra ficou tão vermelha, com o rosto tão franzido, que Yale julgou que
ela lhe fosse cuspir na cara. Depois, ela murmurou, o que era ainda pior do
que se tivesse gritado:
– Eu estava do seu lado. Por um instante, conseguiu pôr-me do seu lado.
– E estamos do mesmo lado – asseverou Yale, de forma ridícula.
– Eu defendi-o junto do meu pai. Ela sabe? A minha avó sabe quanto é
que vos deu? Pensei que estivéssemos a falar de umas centenas de milhares.
E já era mau. Você mentiu-me.
Yale tinha uma certa lábia que às vezes vinha ao de cima, por magia,
involuntariamente, em momentos profissionais complicados como este, e
esperou que ela se manifestasse agora, que lhe saísse dos lábios alguma
palavra conciliadora.
– Têm de sair daqui já – ordenou ela. – Esta casa pertence ao meu pai.
Estava disposta a esconder esta visita, mas agora quero-os fora daqui. –
Cruzou os braços sobre o estômago, um X cinzento.
– Com certeza – disse Yale, em voz quase inaudível.
Nora e Roman, aparentemente, não tinham ouvido nada.
– Estávamos a falar daqueles pobres astronautas – disse Nora, quando
Yale apareceu à porta.
– Eles vão sair agora – disse Debra – e deixá-la descansar.
– Oh! Mas voltam amanhã?
– Amanhã tem a sua consulta. – Debra já estava a estender-lhes os
casacos. – Eles vão voltar para Chicago.
Yale não olhou para Debra. Queria praguejar, gritar consigo próprio, bater
com a cabeça na parede.
– Voltaremos assim que pudermos – disse.
Não lhe parecia que fosse verdade, mas haviam de arranjar outra solução,
nem que fosse apenas conversas telefónicas.
Nora levantou-se e acompanhou-os à porta com passo lento.
– Receio não ter conseguido transmitir tudo o que queria. Se tivéssemos
uma máquina do tempo, podia levá-los numa viagem maravilhosa!
Enquanto abotoava o casaco, atrapalhado, Yale disse:
– Estava a pensar em viagens no tempo no caminho para cá, por acaso.
Ela riu-se.
– Viajar no tempo é tão fácil! É devastadoramente fácil! Tudo o que
temos de fazer é viver o suficiente!
Roman parou, com o braço meio enfiado na manga.
– Oiçam – explicou ela. – Quando eu nasci, as ruas não eram
pavimentadas.
Yale ainda estava a pensar nisso quando Roman disse:
– Mas... o Ranko. Não chegámos a ouvir o fim da história.
Debra abriu a porta, deixando entrar o ar gelado.
– Ele reapareceu, mas a mão já não funcionava como deve ser e suicidou-
se – disse. – Fim da história.
Yale e Roman exclamaram «oh!» em uníssono, Roman uma oitava mais
acima.
– Mesmo à minha frente, infelizmente – disse Nora.
Debra abriu a boca e, antes que ela pudesse agravar a situação, antes que
pudesse anunciar o erro terrível que Yale cometera, ele saiu, seguido por
Roman.
Fiona ligou para o escritório de Yale na quarta-feira, para lhe dizer que
Roscoe já estava suficientemente bom para ter alta do veterinário. Yale não
perguntou quanto era a conta e Fiona também não disse nada; Yale pagou os
360 dólares sem uma palavra e trouxe Roscoe para casa na caixa de
transporte de cartão que lhe facultaram no veterinário.
Yale não contara a Julian o episódio do gato – porque era angustiante e
porque não sabia se conseguia contar essa história sem dizer também que
tinha feito a análise no mesmo dia – por isso, quando abriu a caixa e Roscoe
deu um passo hesitante na sala, Julian, sentado no sofá, olhou estupefacto
para o gato.
– Lembras-te dele? – perguntou Yale.
Após um segundo de confusão e incompreensão, Julian saltou para o chão
e abraçou Roscoe como se fosse uma mantinha preferida há muito perdida.
– De onde é que ele apareceu? – perguntou, mas felizmente não deu
tempo a Yale de responder. – Já viste, agora vives num palácio! Ele vai ficar
aqui? Pode ficar?
– Se não tiver outros compromissos que eu desconheça.
Ao ver a forma como Julian apertava o gato, temeu que, agora, Julian
nunca mais se fosse embora. Mas o bilhete de avião estava comprado e ele
parecia mais nervoso a cada dia que passava. Yale saiu novamente e foi
comprar uma caixa de areia, comida, uma tigela e uma cama de gato. Já à
porta da loja, voltou atrás e comprou-lhe também um brinquedo, uma bola
roxa com uma cauda de penas.
Yale ficou até mais tarde no escritório, para não ter de passar muito tempo
com Julian. Não suportaria fitá-lo nos olhos sabendo que Julian estava
doente e ele estava saudável. Já o fizera antes... não tivera qualquer
problema com Nico ou Terrence, pois não? Mas desta vez era diferente.
Quando saiu do comboio nessa noite, em vez de se dirigir ao
apartamento, desceu Hubbard Street, onde havia um ou dois bares gays e
uma sauna clandestina. Não tinha a mínima intenção de entrar na sauna, e
também não tinha a certeza quanto aos bares, mas era simplesmente
agradável descer a rua. Saber que havia outros grupos de amigos noutras
partes da cidade a viver as suas próprias crises e traições e redenções. Estar
do lado de fora, a sentir-se saudável. Parou em frente ao Oasis, do outro
lado da rua, e observou as idas e vindas das pessoas. Como era agradável
não reconhecer ninguém. Como era bom não saber quais daqueles homens
estavam a morrer.
Na esquina com LaSalle Street, apareceu um grupo com todo o barulho e
agitação de quem está a ter uma noite animada e, por um segundo, Yale
desejou poder juntar-se a eles, infiltrar-se no grupo e segui-los – até que se
apercebeu de que, à frente dos outros, estava Charlie. Charlie, que
normalmente nunca vinha para estes lados. A falar alto, com gestos largos.
Com a sua camisola de «FRANKIE SAYS RELAX», de casaco aberto. Yale ficou
onde estava, parado como mais um poste de iluminação, quase sem
respirar.
Quando o grupo se dirigiu à porta, Yale viu outro tipo – ninguém que
reconhecesse, pelo menos a esta distância – murmurar qualquer coisa ao
ouvido de Charlie e, depois, virar-se e olhar diretamente para Yale. Charlie,
contudo, nem sequer virou a cabeça.
Yale ficou pregado ao chão algum tempo. As emoções que teria sentido
se isto tivesse acontecido ontem eram hoje mitigadas pelo facto de não estar
infetado. Ocorreu-lhe de repente que viveria mais do que Charlie, que seria
ele a olhar para trás, daqui a cinquenta anos, e a contar a história de Charlie
a alguém, tal como Nora lhe contara a de Ranko. Com menos melancolia,
claro. Não acreditava que um dia visse isto como o grande romance perdido
da sua vida. Queria ser invisível para entrar no bar atrás de Charlie, para ver
se ele se afogava em cerveja. Em vez disso, deu meia-volta e regressou a
casa, a caminhar contra o vento, e quando lá chegou tinha a pele
entorpecida pelo frio.
Nessa noite, Yale cortou um pedaço do fio dental de Julian, que deitou
fora, e depois outro pedaço para usar. Na noite seguinte, usou-o novamente.
Só fazia isto à noite; de manhã, usava o seu. Era uma forma de fazer com
que Julian durasse mais, mas também de refletir no seu próprio dia. Um dia
desde que Julian partira, dois dias desde que Julian partira, e o que é que
estava diferente? O que é que ele fizera?
Não que a ausência de Julian devesse deixar um grande vazio, mas, cerca
de uma hora depois de ele sair, enquanto ligava a elaborada máquina de
café dos Sharp, Yale apercebera-se de que era mais um amigo que saíra da
sua vida. Nico morrera, Terrence morrera, Charlie, no que lhe dizia respeito,
estava num planeta muito distante, Teddy estava zangado com ele, e agora
Julian partira, para se estender debaixo de uma palmeira e morrer. Asher
ainda cá estava, mas andava sempre muito ocupado. Fiona também ainda cá
estava. Havia algumas pessoas que conhecia mais ou menos e que não
pertenciam completamente ao círculo de Charlie – como Katsu, por
exemplo –, mas ultimamente toda a gente parecia agarrar-se aos seus
amigos mais antigos e chegados, não procurar novas amizades. Havia
Roman. Falava mais com Roman do que com qualquer outra pessoa, o que
não queria dizer muito. Roman fora ao concerto dos Alphaville e contara a
Yale que alguém lhe dera uma pisadela. Roman vestira uma t-shirt do signo
Peixes e falaram sobre astrologia. Yale tentava incluir nas conversas
pormenores que incentivassem a autoaceitação.
– Não vou ao México desde 1972; foi o ano em que saí do armário, pelo
menos para mim próprio.
Uma vez, quando estavam a falar de comida, disse:
– O meu ex-companheiro só sabia cozinhar três coisas, mas uma delas era
paella.
Roman nunca fazia mais perguntas.
Usou fio dental na noite em que encontrou uma nódoa negra arroxeada no
tornozelo e entrou novamente em pânico.
Usou fio dental na noite em que a nódoa negra começou a desaparecer, a
ficar amarelada nas orlas.
Na noite depois de Bill Lindsey lhe comunicar, empolgado, que os
especialistas em Soutine tinham dado o seu aval, Yale sopesou a caixinha de
fio dental e tentou calcular quanto restava. Com certeza que haveria um
conto de fadas assim: a história de um rei cujo reino acabaria quando o
novelo de fio mágico chegasse ao fim. Soava bem. Não ia começar a usar
apenas cinco centímetros de fio dental só para o fazer durar mais, mas
também não ia desperdiçá-lo como Charlie costumava fazer, um metro de
fio todas as noites.
No Dia de São Valentim, olhou para o espelho, passou o fio dental entre
os molares e disse a si próprio que sobrevivera a mais uma semana, pelo
menos. Sobrevivera à análise e a todo aquele embaraço com Roman, e não
cedera ao impulso de ligar a Charlie, e não saltara da varanda, e não fizera
sexo suicida num recanto qualquer, e não chorara. Fizera o seu trabalho.
Mantivera Roscoe vivo. Se conseguisse aguentar mais uma semana assim, e
mais uma – se conseguisse estar aqui no fim do mês a congratular-se
novamente por ter lá chegado incólume, então conseguiria continuar a fazê-
lo para sempre.
Nessa noite, meio entorpecido, Yale deu por si sentado no chão da casa de
Asher Glass, ao lado das restantes pessoas que não tinham lugar nas
cadeiras ou encostadas às paredes. Metade da sala de Asher funcionava
como escritório, com secretárias e telefones e armários de arquivo, e na
outra metade havia apenas um sofá coçado e um pequeno televisor. Com o
cóccix contra a madeira, Yale percebeu que ali em baixo conseguia ver cada
grão de poeira, e eram muitos.
Asher prometeu-lhes que vinha piza a caminho e, de pé em frente do
televisor, começou a falar sobre um fundo de alojamento comunitário,
dinheiro para pessoas que não conseguiam pagar a renda por estarem
doentes. Alguém perguntou a Asher se podia garantir que o dinheiro ficaria
na comunidade gay e Asher respondeu:
– Claro que não, estás a brincar? Não somos proprietários exclusivos
desta doença.
A esta afirmação seguiu-se um debate aceso. Sempre que Asher estava
exasperado, as linhas paralelas entre os seus olhos ficavam tão profundas
que pareciam esculpidas.
Yale estava agora livre para poder olhar para Asher com luxúria, para
poder fantasiar não só com um cenário de sonho mas com uma
possibilidade concreta. Podia ficar até mais tarde para o ajudar a arrumar,
pousar a mão no ombro de Asher... Mas Yale nunca fora bom a dar o
primeiro passo. Nunca, nem mesmo quando embriagado. E duvidava que
Asher reparasse sequer que ele estava interessado, a menos que lhe
agarrasse diretamente na pila.
Além disso, não precisava de mais dramas na sua vida neste momento.
Precisava de uma bela fase entediante, alguns meses em que, quando
alguém lhe perguntasse o que havia de novo, ele pudesse responder:
– Nada de especial, vamos andando.
Não podia sacrificar o emprego e correr o risco de ser rejeitado no mesmo
dia.
Mas não, estaria tudo bem na galeria amanhã de manhã. A transferência
de propriedade era irrefutável, segundo Herbert Snow lhe assegurara. Tinha
de estar tudo bem.
Rafael, o editor-chefe de Charlie, foi-se chegando mais para perto de
Yale, até estar sentado ao lado dele no chão.
– Que seca de festa – murmurou.
Yale perscrutara nervosamente o grupo ao entrar, apesar de Asher lhe ter
garantido, quando o convidara, que Charlie não estaria presente. Não ia ser
fácil evitar o gay mais ubíquo de Chicago, mas conseguiria fazê-lo até as
coisas arrefecerem e começarem a cicatrizar. Teddy estava encostado ao
parapeito da janela, ao lado do seu amigo Katsu. Yale não falara com Teddy
essa noite, e provavelmente não falaria. Teddy e Katsu eram exatamente do
mesmo tamanho e Yale semicerrou os olhos até lhe parecerem silhuetas
idênticas. Katsu levantou a mão e, quando Asher lhe deu a palavra, por
cima do ruído de vozes, disse:
– Para aqueles de nós que vivem com o vírus... – E Yale já mal ouviu a
pergunta, qualquer coisa sobre os direitos dos inquilinos. Tinha um palpite
de que ele estaria infetado, mas não a certeza.
Alguém fez uma pergunta sobre anonimato e Rafael murmurou:
– Ouvi dizer que andas a viver à grande! Quando é que vais convidar os
plebeus para uma festa?
Rafael trazia um lenço palestiniano ao pescoço e escondeu o queixo nele
como uma tartaruga.
– É temporário – disse Yale, embora se sentisse cada vez mais em casa
naquela pequena cápsula por cima da cidade, enquanto, cá em baixo, toda a
gente sofria e os dramas continuavam a desenrolar-se.
Um minuto depois, Rafael murmurou:
– O Charlie anda completamente descontrolado. Toda a gente no
escritório diz oh, meu Deus, alguém traga o Yale de volta. Ele sempre foi
assim tão doido? Eras tu que absorvias a loucura em vez de nós?
– Ele está a passar por muita coisa – disse Yale.
– A sério, está uma desgraça. Tinhas de o alimentar à força? Começámos
a deixar comida na secretária dele para ver se come.
Todas as cabeças na sala se viraram simultaneamente para a porta e,
quando Yale se voltou, estava perfeitamente convencido de que ia ver
Charlie. Um pesadelo, um alívio, um anjo vingador. Mas era Gloria, do Out
Loud, com um monte de caixas de piza, a dizer a todos para se acalmarem e
esperarem que ela fosse buscar os pratos descartáveis e os guardanapos.
Yale deixou os sons à sua volta confundirem-se num zumbido surdo. Viu
Asher falar, gesticular, bater com a mão na antena do televisor. Viu Katsu e
Teddy apoiarem-se um no outro.
– Ninguém está a ouvir nada – disse Rafael. – Está toda a gente tão farta
de ouvir conversas.
À hora de almoço, caminhou até ao lago e parou num dos montes de gelo
à beira da água. Era inverno há tanto tempo que o ar gelado já nem o
magoava.
A margem do lago parecia a superfície de outro planeta, ondulada e
fraturada e cinzenta. Yale não sentia os dedos, mas esperou até não
conseguir sentir também a cabeça.
Regressou e dirigiu-se ao gabinete de Bill. Pensou que precisava de ir à
casa de banho, mas eram apenas os nervos.
– Ligue ao Chuck Donovan e diga-lhe que vai despedir-me – disse. –
Pergunte-lhe se isso ajudaria, se ele conseguiria aplacar o Frank. Deixe bem
claro que seria um acordo de negócios, ele gosta desse tipo de coisas.
– Não vou despedi-lo! – protestou Bill.
– Eu despeço-me antes que possa fazê-lo.
Era como vomitar tudo o que havia de mau dentro do seu corpo, como se,
de alguma forma, isto pudesse salvar não só a galeria mas o universo.
– Mesmo que esta ação judicial seja ridícula, enquanto se arrastar não
conseguirá fundos para nada. Não pode pedir à direção...
– Yale... – interrompeu Bill. Mas já parecia mais animado.
– Ligue-lhe e veja se resultaria.
Bill olhou para o teto, de ombros abatidos, e tapou a boca com a mão.
– Sabe que, se chegarmos a esse ponto, lhe escreverei uma carta de
recomendação fantástica.
Embora tivesse sido Yale a pedir, a rapidez com que Bill aceitara a ideia
era como uma bala no estômago.
– Ligue-lhe já – disse. – Eu espero no meu gabinete.
Yale não tinha notícias de Roman desde essa noite e, entretanto, decidira
que se calhar ele próprio não ia ao desfile este ano. Comprou um bilhete
para o jogo dos Cubs contra os Mets, que só começava às três e meia mas,
pelo menos, lhe dava uma desculpa bastante sólida, que usou quando Asher
lhe ligou, na véspera do desfile, e perguntou se Yale podia dar uma
mãozinha com o carro da Fundação de Chicago para a Sida.
– Na verdade – disse Asher –, não é as tuas mãos que queremos, é a tua
cara bonita. Vamos estar vestidos, não há tangas envolvidas. A menos que
queiras, claro. Quem sou eu para te impedir? – Yale teria feito praticamente
qualquer outra coisa por Asher, mas não podia participar num desfile, não
podia pavonear-se rua abaixo em frente de todos os seus conhecidos, não
podia correr o risco de dar de caras com Charlie.
Ross – o ruivo que andava a meter-se com Yale no ginásio de Marina City
há um mês – disse a Yale que, se quisesse, ele e uns amigos iam assistir, de
umas escadas de incêndio na esquina de Wellington Avenue e Clark Street,
com mojitos. Yale não queria dar esperanças a Ross, mas a ideia agradava-
lhe. Quando se mudara para a cidade, as escadas de incêndio tinham sido
uma das primeiras coisas a apaixoná-lo. Estava sempre à espera de ver
aparecer Audrey Hepburn com a sua guitarra, o cabelo enrolado numa
toalha, a cantar-lhe «Moon River», a pegar-lhe na mão e a arrastá-lo pela
cidade.
Tinha uma lista mental de razões para não ir: queria ver Sandberg
enfrentar Gooden. Não queria ficar excitado pela companhia de homens em
tronco nu, para regressar a casa e se masturbar tristemente na casa de
banho. Não lhe apetecia preocupar-se com a aparência e estar sempre a
inspecionar a multidão à procura de amigos e ex-amigos. Não queria ver
passar o carro do Out Loud. Além disso, todos os anos temia que fosse o
ano em que alguém fazia rebentar uma bomba, ou abria fogo sobre a
multidão. Vira no noticiário da véspera que mil apoiantes do KKK tinham
ocupado um parque num bairro negro do Sudoeste da cidade. Ficaram-se
pelos insultos raciais, mas tinham anunciado planos de se manifestarem
novamente em Lincoln Park antes do desfile, na zona da liberdade de
expressão. Tinha tudo para não acabar bem.
O avião de Cecily aterrara pouco antes do início dos ataques e ela estava
à espera da bagagem quando recebeu a notícia. Conseguira contactar Fiona
à uma da manhã e, ao início da tarde, estava no apartamento de Richard, a
descalçar-se à porta. Fiona não a via há dez anos, não sabia quais das
mudanças se deviam a exaustão e quais se deviam à idade. Cecily parecia
realmente uma avó. Pessoas com setenta anos podiam ser avós. Pessoas
com cinquenta e um anos ainda deviam estar a dar aulas de spin e a fazer
noitadas, na opinião de Fiona.
– O que aconteceu à tua mão? – perguntou Cecily, e Fiona disse:
– Estigmas de Cristo.
Cecily não se riu. Bom, nunca tivera grande sentido de humor.
Fiona preparou-lhe um chá e contou-lhe o encontro com Claire, embora
sem transmitir completamente a humilhação.
Cecily sentou-se no sofá de Richard, com o corpo inclinado para a janela,
e disse:
– Nunca tinha estado em Paris. Que altura tão estranha para chegar.
– Odeio que tenhamos de viver no meio da história. Já causamos
confusão suficiente sem ajuda.
Cecily sorriu.
– Tinha saudades tuas.
– O Richard mandou dizer olá. Foi ao estúdio. Tem graça, eu também saí
de casa hoje, mas assusta-me saber que os outros andam na rua. O Richard
não pode propriamente correr se acontecer alguma coisa.
Cecily concordou e Fiona disse-lhe que não tinha como contactar Claire.
– É natural que estejas preocupada – disse Cecily –, mas com certeza que
ela está bem.
Até àquele momento, nem ocorrera a Fiona preocupar-se também com
Kurt. Era muito mais provável que Kurt saísse à noite. Não lhe parecia que
ele gostasse de heavy metal, mas mesmo assim...
Serge entrou nesse momento em casa, com o cabelo revolto e suado,
olheiras fundas. Cumprimentou-as com um aceno e enfiou-se no quarto.
– Sinto que estou a incomodar – disse Cecily, e Fiona assegurou-lhe que
não.
– Estamos todos em modo de crise – disse –, embora por motivos
diferentes. Ouve: o que acho que devíamos fazer era ir ao apartamento do
Kurt. Talvez ele nos dê o número da Claire, tendo em conta as
circunstâncias. Uma vez que eu já estive com ela.
Cecily examinou as unhas sem verniz.
– É melhor se eu for sozinha, não achas?
Provavelmente – além disso, com certeza que eles queriam privacidade.
Fiona não teria gostado de ter alguém consigo ao ver Claire pela primeira
vez ao fim de tanto tempo.
Assim, depois de almoço, depois de Fiona ter descido com ela para a
ajudar a apanhar um táxi, Cecily arrancou para o Marais. Prometeu ligar-lhe
assim que soubesse alguma coisa.
Quando voltou para cima, Serge estava na cozinha com o portátil.
– Gritei contigo ontem à noite – disse. Fiona compreendeu que era um
pedido de desculpa. – A tua filha não tem Facebook?
Quase soltou uma gargalhada. Como isso teria tornado tudo mais fácil.
Uma mensagem privada, em vez de aviões e detetives.
– Não – disse. – Eu também não tenho.
Damian tinha, e procurara-a obsessivamente nos últimos anos.
– Então, duas coisas. Uma, as pessoas podem marcar que estão em
segurança, assim. – Olhou por cima do ombro dele e viu uma lista de nomes
e rostos, amigos de Serge que tinham indicado que estavam vivos. – Mas,
aqui – continuou ele, e clicou noutro sítio –, é um fórum para perguntar por
pessoas. Escrevo uma mensagem, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça e ele começou a escrever.
– Claire quê?
Fiona pegou no bloco e caneta que estavam ao lado do fogão para a lista
de compras e escreveu: Claire Yael Blanchard.
– Também pode estar a usar o apelido Pearce. – E escreveu-o também.
– Muito bem – disse ele. – Publicado. E agora, esperamos.
Céus, fora exatamente o mesmo que Arnaud lhe dissera; parecia ter sido
há mil anos. E agora, esperamos.
*
Damian ligou e ela informou-o dos últimos desenvolvimentos.
– Achas que ela está assustada? – perguntou Damian.
– Espero que não. Quer dizer, não mais do que toda a gente. Já não é uma
criança.
– Mas é mãe.
– É verdade – disse Fiona. – É verdade.
– Talvez seja assim que a conseguiremos trazer para casa.
Fiona duvidava. O caos do mundo nunca a tinha ajudado. Parecia ridículo
que isso acontecesse agora.
– Não sejamos gananciosos – disse.
15 DE JULHO DE 1986
lago Michigan, impossivelmente azul, com a luz matinal a refletir-se na
O direção da cidade.
A sua canção preferida, ainda por compor. O seu filme preferido, ainda
por fazer.
*
A profundidade de uma pincelada com tinta de óleo. As janelas azuis de
Chagall. O homem azul de Picasso, com a sua guitarra.
O Dr. Cheng disse: «Vou escrever tudo o que lhe estou a dizer, para poder
ler com calma mais tarde.»
O Dr. Cheng disse: «Você é jovem e forte, e vai cuidar muito bem de si.»
*
Café turco, bom, forte. Descafeinado Sanka com demasiadas natas depois
de um longo jantar. Café de escritório, triste e fraco.
O Dr. Cheng disse: «Sei que a última coisa que quer neste momento é
tirar mais sangue, mas hoje vamos ver como está a contagem de células T.
Como sabemos que é uma infeção muito recente, calculo que a contagem
esteja muito boa. Assim, teremos algumas boas notícias para além das más.
Vamos fazer a recolha aqui mesmo.»
Ter uma casa. Pintar a porta, para poder dizer aos amigos que
procurassem a porta roxa.
Carvalhos.
Música.
Respirar.
Tenho razões concretas para achar que, se não o fez ainda, deve
pensar em efetuar a análise para o HTLV-III, o vírus que se sabe ser
o causador da sida. Espero que aconselhe a sua mulher a fazer
também a análise, mas esteja descansado: não a contactei, nem o
farei.
A sua visita ao County foi breve; Katsu estava sedado e Yale queria sair
dali o mais depressa possível. As camas estavam todas num quarto enorme,
separadas apenas por cortinas finas, pelo que os visitantes se viam cercados
pelos sons e cheiros de trinta fases diferentes da morte. Yale não imaginava
como é que alguém dormia ali, como é que alguém conseguia agarrar-se a
uma centelha de esperança.
Katsu disse-lhe, com voz arrastada:
– Doem-me os sovacos. Porque é que me doem tanto os sovacos?
Yale trouxera-lhe um batido e deixou-o no tabuleiro, para quando ele
quisesse. Teddy dissera-lhe que Katsu guardava o Walkman debaixo da
almofada para que não lho roubassem, mas ninguém roubaria um batido,
pois não? Pelo menos a enfermeira que evitara olhar para Katsu enquanto
lhe mudava o saco de soro de certeza que não lhe tocaria.
Yale queria chamar Asher para vir fazer barulho, mas de que adiantaria?
Ele próprio passara uma procuração a Asher o mês passado, confiante de
que ele, pelo menos, sabia como gritar com as pessoas certas.
– Podes pedir-lhes que apaguem as luzes? – pediu Katsu. Mas as luzes
eram enormes e fluorescentes e abrangiam toda a área, e Yale sabia que
nunca eram apagadas, nem mesmo à noite. Dobrou dois lenços de papel e
colocou-os sobre os olhos de Katsu, uma máscara improvisada.
Quando chegou a casa, deparou com uma coisa estranhíssima: uma carta
dirigida a ele com a caligrafia de Charlie. Reconheceu logo a forma
estranha como Charlie escrevia os E, como três degraus flutuantes sem
apoio vertical. Papel azul-claro, caneta azul-escura.
Já sabia da notícia, dizia ele. Dizia que Teddy, Asher e Fiona, os três, lhe
tinham garantido que não fora diretamente responsável, mas que queria
ouvi-lo da boca de Yale. Era terrível, escrevia Charlie, atribuir as culpas a
pessoas e não ao vírus propriamente dito, ou às estruturas de poder que o
deixavam medrar, mas não conseguia evitá-lo e queria saber. Apesar de ter
a noção de que era, pelo menos, indiretamente responsável. Queria a
absolvição, percebeu Yale. Mas não era algo que ele estivesse disposto a
conceder-lhe.
Não lhe respondeu, mas também não deitou fora a carta. Há seis meses,
talvez a tivesse queimado. Agora, endireitou-a e deixou-a debaixo da taça
de estanho em cima da cómoda, a taça onde colocava os trocos que tirava
dos bolsos.
Pegou em Roscoe, aproximou-se da janela e olhou para o rio lá em baixo,
para o barco turístico a deslizar na água, impossivelmente lento. Pouco
depois, tinha passado.
2015
melhor sítio para dançar era o Paradise – disse Richard. – Com
–O certeza que também já desapareceu há muito.
– Não imaginas – disse Fiona. – Nesse sítio, agora, há um supermercado
Walmart.
– Não! – Virou-se do lavatório do estúdio, com as mãos a pingar. Serge,
reclinado na cadeira ao canto, ouvia-os com ar divertido. Cecily estava
sentada com Fiona junto da grande mesa de madeira. Hoje vestia uma
camisola de gola alta bege que, na sua simplicidade sólida, a fazia parecer
protegida do caos da cidade, dos dardos venenosos da família.
– É como se quisessem ser simbólicos – disse Fiona. – Pelo menos não é
uma sede do Partido Republicano ou coisa parecida. Ouve, Richard, há um
Starbucks na esquina da Belmont e da Clark. Bem... não é tão estéril como
pode parecer. Mas não é o mesmo. Todos os anos, no inverno, fazem uma
caminhada da sopa. As pessoas vão de restaurante em restaurante e comem
sopa. Toda a gente sai à rua: gays, casais heterossexuais, com bebés nos
carrinhos. É lindo. Não queríamos que fosse o mesmo. Porque o ambiente,
antes, era de estranheza, diferença, e havia... havia um ar de desespero
generalizado. Mesmo antes da sida.
– Então cresceu – disse Richard.
– Já não há Boystown! – riu-se Serge. – Agora é a cidade dos homens! –
Mais ninguém achou graça.
– Nunca te passa pela cabeça que pode ser só um interregno fugaz? –
perguntou Richard.
Não, pensou Fiona. Nem por isso. Era difícil imaginar um retrocesso,
perder terreno.
– Porque eu penso nisso – continuou Richard. – Com certeza que eu havia
de revirar os olhos à gentrificação, mas ouve, querida, sou velho e já vi
muita merda, e digo-te: o melhor é aproveitarmos enquanto podemos.
Porque isto não é o Mamã Dá Licença. Não estamos sempre a avançar. Sei
que neste momento parece que sim, mas é tudo muito frágil. Daqui a
cinquenta anos, podes muito bem olhar para trás e pensar foi a última época
boa.
Fiona puxou as mangas para cima das mãos. Era tão tentador pensar nos
fogos dos seus vinte anos como a grande luta histórica da sua vida, tudo no
passado. Mesmo o seu trabalho na loja, as angariações de fundos e a
causa... pareciam-lhe sempre um rescaldo. Ainda havia pessoas a morrer,
mas mais lentamente, com um bocadinho mais de dignidade. Bom, pelo
menos em Chicago. Considerava que uma das suas maiores falhas morais
era que, no fundo, a crise atual da sida em África não a afetava da mesma
forma visceral. Não deixava de dar dinheiro para essas instituições, mas
incomodava-a saber que não o sentia tão profundamente, não chorava à
noite por causa disso. No ano passado, tinham morrido de sida um milhão
de pessoas no mundo e ela não chorara por causa disso nem uma vez. Um
milhão de pessoas! Passava muito tempo a tentar perceber se era uma
atitude racista, ou se teria a ver com a vastidão do oceano Atlântico. Ou
talvez porque não estava a acontecer principalmente na comunidade gay
perto de si, não estava a matar apenas jovens bonitos que lhe faziam
lembrar Nico e os amigos. Claro que todo o altruísmo era, de alguma forma,
egoísta. E talvez também só tivesse espaço no coração, nesta vida, para uma
grande causa, para o arco de uma catástrofe. Claire, ao que parecia, crescera
com essa sensação – de que o grande amor da mãe estava sempre
concentrado em algo para lá do horizonte do passado.
– É essa a diferença entre otimismo e ingenuidade – disse Cecily. –
Nenhum de nós é ingénuo. As pessoas ingénuas ainda não passaram por
verdadeiras provações, por isso podem pensar que tal nunca lhes
acontecerá. Nós, otimistas, já passámos por isso e continuamos a levantar-
nos da cama todos os dias, porque acreditamos que podemos impedir que
volte a acontecer. Ou fingimos acreditar nisso.
– Toda a crença é fingimento – disse Richard.
– Em França, ninguém é otimista – declarou Serge.
O estúdio de Richard era uma divisão em forma de L, com ecrãs e
câmaras e luzes de um lado, secretárias e computadores e desarrumação do
outro, e no meio – onde estavam nesse momento – uma área com cadeiras,
uma kitchenette. A mudança para o museu deixara atrás de si o caos, e o
chão estava coberto de pedaços de esferovite e cabos soltos. Fiona não viera
para ver os vídeos. Deixara-o bem claro – não era a altura certa.
Eram duas da tarde de domingo. A vernissage de Richard seria no dia
seguinte, mas ainda estava tudo no ar. A caça ao homem, de um dos
suspeitos do ataque terrorista, prosseguia perto da fronteira com a Bélgica.
Tinham-se apressado a trancar a porta, assim que entraram no estúdio. O
rádio em cima da bancada estava sintonizado no noticiário da BBC, mas
demasiado baixo para o conseguirem ouvir, e Serge ia-lhes dando
atualizações obtidas pelo Twitter, mas não havia muito a relatar. Richard
aguardava um telefonema do Pompidou com a decisão final, para saber se a
exposição sempre abria, se valia a pena prosseguir com as festividades.
Mesmo que tivesse luz verde, a festa não seria muito animada. O Pompidou
não ficava longe da sala de concertos Bataclan, que ainda era «um cenário
de carnificina», segundo os noticiários, embora as únicas fotos que Fiona se
atrevera a ver mostrassem apenas montes de ramos de flores, ursinhos de
peluche. Alguns dos convidados mais importantes viriam de fora, e
ninguém sabia o que aconteceria aos seus voos, aos seus comboios.
A noite passada Damian ligara, para dizer que Claire lhe enviara um e-
mail para o endereço da universidade. Apenas cinco frases, a dizer que
estava bem e para ele não se preocupar. Soletrou-lhe o endereço de e-mail
de Claire – um endereço que ela não devia usar, claro – e leu-lhe a
mensagem duas vezes, palavra por palavra. Não incluía um pedido de
desculpas, mas o tom também não era de raiva, de secura. Muito diferente
das conversas tensas que tivera com Fiona.
Bom, a maioria dos problemas de Claire eram com ela, não com Damian.
A psicóloga infantil explicara-o há anos: as crianças viram-se contra o
progenitor com quem vivem, aquele que é garantido. E, durante a terapia,
perceberam que Claire compreendia muito mais sobre o caso extraconjugal
de Fiona do que ela julgava.
– Ela está convencida – dissera-lhe a psicóloga – de que a mãe andava à
procura de outra família, de uma família melhor.
Fiona guardou o papel com o endereço de e-mail de Claire na gaveta da
mesa de cabeceira. Já o tinha memorizado.
Não foi visitar Charlie nessa noite, embora tenha sido o dia em que teve a
certeza de que o faria. No entanto, não viu Charlie durante um ano e meio,
até outubro de 1989, quando Charlie já estava cego, embora não tivesse
nada a ver com a pálpebra infetada de um ano e meio antes.
Teresa veio recebê-lo ao elevador. Tinha envelhecido mil anos.
Yale estivera várias vezes no Hospital Masonic para fazer exames, mas
não subia à unidade 371 desde que fora visitar Terrence, anos antes. Os
conhecidos que lá tinham ido parar, como o revisor de Charlie, Dwight, não
eram amigos suficientemente chegados para os visitar no hospital.
O espaço parecia agora mais usado, no bom sentido. Havia cartazes nas
paredes e decorações de Halloween. Um homem de bata estava encostado
ao balcão das enfermeiras, a conversar, com os pés enfiados em chinelos
amarelos felpudos, os braços cobertos de lesões. Havia um quadro com
polaroides de todo o pessoal e voluntários, com os nomes escritos na parte
branca. A maior diferença, desta vez, era que Yale sabia que, a menos que o
seu seguro falhasse e tivesse de ir parar ao County, estava a olhar para a
unidade onde ele próprio morreria. Aquela seria a sua última casa e os
rostos daquelas duas enfermeiras seriam, com o tempo, os rostos mais
familiares do mundo para ele. Conheceria de cor cada detalhe daquele
linóleo, de cada candeeiro.
Abraçou Teresa e perguntou como estavam as coisas.
– Mudaram-no para um quarto individual – disse ela –, e não me parece
que seja bom sinal, não achas? Só quero dormir. Ele... ouve, ele tem estado
muito sedado ultimamente, e esta manhã tiveram de o sedar novamente,
para fazer uma broncoscopia, por isso ainda está meio desorientado. Não
tenho a certeza se perceberá que estás aqui. Devia ter-te ligado para te
avisar, mas tive esperança de que, entretanto, ele recuperasse mais a
consciência. O problema é que... mesmo quando não está sedado, não está
completamente presente. Devia ter-te avisado.
– Não faz mal – disse ele. – Não faz mal.
Seguiu-a e, quando entrou no quarto, fechou os olhos com força. Depois,
abriu-os lentamente e viu um homem que não era Charlie. Quis dizer a
Teresa que se tinha enganado no quarto, que aquele feto mirrado na cama
não era ninguém que ele conhecesse. Mas Teresa estava a acariciar a cabeça
daquele homem e, quando ele abriu a boca, Yale viu os dentes de Charlie.
Era um alienígena, um esqueleto de Auschwitz, um passarinho caído do
ninho. A mente de Yale procurou desesperadamente metáforas, porque o
simples facto de aquele ser Charlie era quase insuportável.
Não havia muito espaço entre a porta e a cama, mas Yale atravessou-o o
mais lentamente que conseguiu. Agarrou-se ao varão da cama, olhou para
os postais colados às paredes.
Teresa estava cansada e Yale ofereceu-se para ficar um bocado, disse-lhe
para ir para casa descansar. Ela abraçou-o e saiu.
Não sabia se devia falar. Podia explicar que estava ali, procurar uma
reação no rosto de Charlie. Mas, com o efeito do sedativo e a cegueira de
Charlie, Yale dispunha neste momento de uma almofada de anonimato – na
qual se sentia em segurança, pelo menos por hoje.
Mais tarde, se Charlie estivesse lúcido, podia dizer-lhe tudo o que queria
dizer-lhe. As partes boas, pelo menos. Podia dizer, pelo menos uma vez,
que lhe perdoava. E, mesmo que Charlie nunca recuperasse completamente
a consciência – bom, podia dizê-lo na mesma. Talvez contasse.
Sentou-se na cadeira ao lado da cama.
A enfermeira entrou e mostrou a Yale uma pequena esponja cor-de-rosa
na ponta de um pau, ensinou-o a encostá-la aos lábios de Charlie para lhe
dar água.
Fez o que ela lhe pedira durante algum tempo, e depois passou o dedo
pelo pulso de Charlie e ouviu as paredes a latejarem.
Deu-lhe água, gota a gota.
Conseguia senti-lo, à sua volta: que naquele corredor, e noutros
corredores de outros hospitais em Chicago e noutras cidades esquecidas do
planeta, mil outros homens faziam o mesmo.
4 No original, DAGMAR (Dykes and Gay Men Against Racism and
Repression). (N. da T.)
2015
ão fazia sentido. Ou talvez fizesse. Tinha de fazer. Fiona estava
N acordada, era 2015 e aqui estava um homem, bem vivo, cujos olhos e
gestos e voz eram os de Julian.
Fiona sentou-se no chão de cimento do estúdio, com a cabeça encostada a
um armário. Julian estava a explicar aos restantes o que Fiona balbuciara à
porta do prédio:
– Como é aquela expressão sobre os rumores da minha morte? Richard,
devia sentir-me insultado por nunca falares sobre mim!
Serge estava a achar tudo hilariante; chamou zombie a Julian, riu-se da
expressão de Fiona. Cecily não conhecia Julian; foi buscar um pedaço de
papel de cozinha húmido para a testa de Fiona.
– Fiona – disse Richard –, eu também só o encontrei há dois anos.
Sabíamos que não sabias onde ele estava. A surpresa era essa. Mas se me
tivesse ocorrido que tu pensavas que ele estava... ouve, nunca te teria posto
nesta situação.
Na verdade, Fiona não tinha falado muito com Richard nos últimos dois
anos, pois não? Enviara-lhe um e-mail a perguntar se podia ficar em casa
dele. Antes disso... bom, parecia que tinham falado, mas isso era apenas o
resultado de ver o nome dele aparecer tão frequentemente pelo mundo fora,
e de serem amigos há tanto tempo.
Julian estava de pé em frente dela, sem saber o que fazer, a passar o
polegar pelo queixo. Olhou para o rosto dele, para a forma como mudara.
Além das transformações normais da idade, reconheceu nele algum
definhamento causado pelo AZT e – estava certa disso – implantes nas
bochechas, para disfarçar a perda de volume. E implantes de má qualidade.
Dois dos seus voluntários na loja tinham bochechas parecidas. E o rosto
dele estava mais largo – efeito dos esteroides, presumivelmente – pelo que
parecia mais quadrado, mais em bruto. Ainda atraente, mas muito diferente.
Como se tivesse sido reconstruído a partir de um esboço policial.
– Trabalho em contabilidade, na Universal – disse ele. – Estamos a filmar
na rua da casa do Richard. Embora eu não possa estar nas filmagens. Só me
mandaram vir há três dias, e estou num gabinetezinho pequeno e triste.
– Onde... normalmente... – gaguejou ela, mas não tinha palavras para o
que devia ser uma pergunta bastante simples.
– Vivo em Los Angeles. Procurei-te no Facebook, sabes? Uma data de
vezes!
– Oh...
– Fiona, desculpa.
Não sabia bem por que razão ele estava a pedir desculpa, mas temeu que
lhe conseguisse ler a mente: porquê, estava ela a pensar, porque havia de ser
Julian Ames, de todas as pessoas, a aparecer-lhe à porta como um
fantasma? Porque não Nico ou Terrence ou Yale? Porque não Teddy Naples,
que escapara ao vírus apenas para morrer em 1999, de ataque cardíaco, no
meio de uma aula, em frente aos seus alunos? Porque não Charlie Keene, já
agora, que era um imbecil mas que fizera tanto bem? Ela gostava de Julian.
A sério. Mas porquê ele?
Forçou um sorriso, porque ainda não tinha sorrido.
– Tentei mesmo encontrar-te – disse ele. – Devia ter perguntado ao
Richard.
A sua voz era a mesma. A voz de Julian.
– E perguntaste, lembras-te? O ano passado, em Los Angeles. E eu disse
que te daria o endereço de e-mail dela e esqueci-me, claro.
– Não faz mal – disse Fiona.
– Sinto-me tão estúpido – disse Richard.
Decidiram que o que todos precisavam era de sanduíches e Serge foi
despachado para as adquirir. Quando voltou, com cinco baguetes de
presunto e queijo embrulhadas em plástico, estavam todos sentados à volta
da mesa e Richard dissipara habilmente o embaraço com uma história sobre
a altura em que Yale Tishman organizara uma festa de aniversário para o
seu companheiro de quarto no Masonic, um homem que acabara de
conhecer e que não tinha ninguém na cidade que o visitasse. Yale pedira a
todos que levassem pequenas lembranças e Fiona, para ser engraçada,
comprara uma revista Playgirl pelo caminho e, ao chegar, descobrira que o
tipo era heterossexual. Um toxicodependente carrancudo.
– Ele não achou graça nenhuma – disse Richard.
Fiona ainda se sentia desligada, desorientada, confusa. Estava
constantemente a olhar para as mãos. Se estas eram as suas mãos, as mãos
que tinha desde sempre, então não era impossível que Julian Ames estivesse
ali sentado à sua frente, a abrir a sanduíche, a perguntar a Richard se tinha
guardanapos.
Havia acontecimentos de que ela julgara, durante anos, ser a única
guardiã – quando afinal aquelas festas, aquelas conversas, aquelas piadas,
tinham permanecido vivas também nele.
– Ter deixado Chicago é um dos maiores arrependimentos da minha vida,
Fiona – disse Julian. – Pensei que estava a fugir para poupar toda a gente,
mas, na realidade, o que fiz foi abandoná-los. Nunca me passou pela cabeça
que pudessem morrer antes de mim. Nunca, mesmo. E sei, pelo Richard...
sei que cuidaste do Yale, em particular. Devia ter sido eu. Devia ter estado
ao lado dele.
– A Cecily também lá estava. – Fiona tinha a voz rouca, como se não
falasse há uma semana. – Era eu e a Cecily, no hospital. Fazíamos turnos.
– Eras quase sempre tu – disse Cecily.
– Mas ele morreu sozinho. – Era a coisa mais cruel que Fiona podia ter
dito, não só a Julian, mas também a Richard e Cecily. E a si própria. –
Morreu completamente sozinho.
Julian pousou a sanduíche e fixou-a, até ela devolver o olhar.
– O Richard contou-me – disse. – Eu sei, e sei que a culpa não foi tua.
Qualquer pessoa podia ter morrido sozinha. Sabes, a meio da noite, se...
– Não foi a meio da noite.
Cecily pousou a mão nas costas de Fiona.
Serge sussurrou qualquer coisa a Richard e este respondeu, também num
murmúrio:
– Nova Iorque.
Serge devia ter-lhe perguntado onde é que ele estava quando Yale morreu.
A carreira de Richard estava a descolar, nessa altura.
Fiona, para mudar de assunto, conseguiu pedir a Julian que lhe contasse o
que tinha feito nas últimas três décadas.
– Se estás a perguntar como é que ainda estou vivo – disse Julian –, não
faço a mínima ideia.
Mas fazia, na verdade. Fora para Porto Rico em 1986, onde ficara um
ano, a viver à conta de um velho amigo, a vender t-shirts na praia e a
consumir drogas.
– Tinha tanta certeza de que estava pronto para morrer – disse. – E
depois, quando ouvi falar no AZT, foi como se... como se estivesse a tentar
afogar-me mas alguém me atirasse uma corda e não fosse capaz de não a
apanhar.
O problema era que Julian não tinha seguro e o medicamento custava
mais de metade do que ele ganhava num ano em Chicago. Assim, regressou
a casa, a Valdosta, na Georgia, onde a mãe, que julgara que nunca mais o
voltaria a ver, ficou contente por o ter a viver novamente no seu quarto de
infância e nem hesitou em gastar o seguro de vida do pai e em fazer uma
segunda hipoteca sobre a casa, para ajudar o filho mais novo.
– Era uma santa – disse ele. – Uma dama sulista. Foi criada para a igreja e
chás das cinco, mas afinal também tinha arcaboiço para lidar com uma
crise.
Durante algum tempo, ela obrigou-o a continuar a trabalhar – Julian
conseguiu emprego numa companhia de produção cinematográfica local –,
porque estava confiante de que ele sobreviveria e dizia-lhe que, quando
estivesse curado, não ia ser bom ter uma grande lacuna no currículo. (Fiona
lembrava-se do otimismo comovente de Julian antes do diagnóstico, de
como sempre estivera convencido de que encontrariam uma cura para a
doença, de que estava prestes a ser famoso. Afinal, devia ter herdado esse
lado da mãe.) Contudo, apesar dos cuidados dela, foi ficando cada vez mais
doente e ganhou resistência ao AZT.
– Não devia ter mais de meia célula T – disse. – Pesava quarenta e oito
quilos.
– E foi nessa altura que te encontrei – disse Richard.
Fiona sabia que Richard se tinha cruzado com Julian em Nova Iorque, no
princípio dos anos noventa, que Julian tinha ido à cidade com um amigo,
para ver um ou dois espetáculos bons antes de morrer. Estava numa cadeira
de rodas. Foi quando Richard tirou aquela última fotografia dele, a terceira
do tríptico. Richard ligara depois a Fiona, e ela ligara a Teddy, todos
estupefactos por Julian ter durado tanto tempo.
– Exato. E, depois disso, estive no hospital um ano inteiro. Essa viagem a
Nova Iorque foi má ideia, em retrospetiva.
– E depois? – inquiriu Serge. Era o único que tinha comido a sanduíche
toda.
– Depois, estávamos em 1996! De repente, apareceram os medicamentos
bons! Há meses de que nem sequer me lembro, estava completamente fora,
e quando o nevoeiro se dissipou dei por mim novamente em casa.
Conseguia levantar os braços e comer. Pouco tempo depois, estava a fazer
jogging. Bom, não foi logo, mas pareceu-me tudo muito rápido.
«Durante muito tempo... vais achar graça a isto, Fiona... durante muito
tempo, perguntei a mim próprio se seria um fantasma. Um fantasma,
literalmente. Pensei que devia ter morrido e que aquilo era uma espécie de
purgatório, ou o Céu. Porque... como era possível? Mas, depois, pensei: se
isto é o Céu, onde é que estão os meus amigos? Não podia ser o Céu, se o
Yale e o Nico não estavam lá. Portanto, cheguei à conclusão de que era a
boa e velha Terra. E ainda cá estou.
Serge pediu licença para ir atender o telefone. Passara o dia a enviar
mensagens e, embora parecesse que todos os seus conhecidos e amigos
estavam a salvo, nem todos os conhecidos deles tinham respondido, e ainda
havia coisas urgentes e preocupantes a discutir.
– O meu marido teve praticamente a mesma experiência que eu –
continuou Julian. – Diz que esta é a sua segunda vida. Essa conversa para
mim é demasiado religiosa, mas ele não cresceu no Sul. Mas, tem razão, é o
que parece.
Julian tinha uma aliança de ouro na mão esquerda.
Como era estranho que Julian pudesse ter uma segunda vida, toda uma
outra vida, quando Fiona passara os últimos trinta anos a viver num eco
ensurdecedor. A cuidar sozinha do cemitério, indiferente ao facto de que o
mundo avançara, de que uma das sepulturas estivera vazia esse tempo todo.
– Por falar em mães – disse Julian – e por falar no Yale Tishman. Richard,
cheguei a contar-te que conheci a mãe do Yale? Há uns doze anos, talvez. –
Fiona pousou as mãos abertas na mesa, para se apoiar. Se Julian era
realmente um fantasma, viera para a atormentar. Ele virou-se para Fiona e
Cecily. – Estava a trabalhar nas gravações do episódio-piloto de uma
comédia chamada Follywood. Nunca ouviram falar nela porque não foi para
a frente, graças a Deus. E ela fazia o papel de médica. Não a teria
reconhecido pela cara, mas reconheci o nome. Jane Greenspan. Lembram-
se?
Fiona lembrava-se do nariz dela, igual ao de Yale, e da sua boca grande.
Vira-a no ecrã uma centena de vezes, e na vida real apenas uma,
brevemente. Aquele anúncio de paracetamol passara na televisão durante
anos e Fiona acabara por memorizar o rosto dela, conhecia-o
suficientemente bem para o identificar sempre que ela aparecia noutros
anúncios ao longo dos anos. Porquê?, lamentara-se ela a quem a quisesse
ouvir, exceto a Yale. Porque é que tinha de ter sido aquela a mãe que
abandonara o filho? De todos os progenitores de todos os homens gays que
conhecia? Uma mãe atriz teria compreendido um filho gay, não? Parecia
excessivo, perverso, que Yale estivesse afastado da mãe por motivos que
não tinham nada a ver com a sua sexualidade.
Richard perguntou a Julian se tinha falado com ela.
– Não falámos sobre o Yale. Pareceu-me cruel. Não sei. Quer dizer, como
é que havia sequer de começar a conversa? Era muito amigo do filho que
você abandonou? E depois pensei: e se ela não soubesse que ele tinha
morrido?
– Sabia – disse Fiona, e a sua voz era como vidro partido.
Não conseguia respirar. Embora não quisesse ir para a rua, quase disse
que precisava de ir apanhar ar. Mas Serge tinha ido à porta e estava agora de
volta, com Jake Austen.
E depois ficou encurralada, porque foi preciso explicar tudo outra vez,
contar novamente a história: o mal-entendido, o estranho reencontro, a
mortificação de Richard, a vida inteira de Julian.
Jake sorriu, como se fosse a coisa mais fantástica de sempre.
– Bom – disse –, devo dizer que me sinto um bocadinho vingado. Era por
isto que queria falar contigo sobre o tríptico, Fiona. Porque vi a atualização.
Mas tu parecias tão segura, que pensei ter percebido mal.
Fiona não entendeu e Richard explicou que no ano passado, quando
Julian passara por Paris, voltara a fotografá-lo. Uma das peças da exposição
era um grupo atualizado de quatro fotografias.
– Um quadríptico – disse. – Não é lá muito fácil de dizer.
– Imagina! – exclamou Julian. – Depois deste tempo todo, sou outra vez
modelo!
E a forma como o disse era tão exatamente típica de Julian Ames, tão
idêntica a como o teria dito com vinte e cinco anos, que Fiona se aproximou
dele e o beijou na testa.
– Estou tão feliz por estares aqui – disse ela. – Tão, tão, tão feliz.
1990
mbora fossem apenas participar numa marcha, não acorrentar-se aos
E postes, nem nada parecido, Yale e Fiona tinham escrito o número de
telefone de Gloria nos braços com marcador, bem como o número do
gabinete de advocacia de Asher – apesar de Asher ter muito mais
probabilidades de ser detido do que eles. Gloria tinha um tornozelo torcido
e não podia ir, mas oferecera-se para os ir tirar da cadeia se fosse preciso;
no entanto, fizera a mesma promessa a pelo menos dez outros manifestantes
e Yale receava que ela ficasse sem dinheiro para as fianças, se acabassem
todos atrás das grades, e tivesse de o deixar definhar na prisão.
– A Gloria é a pessoa mais responsável que já conheci – tranquilizou-o
Fiona.
Era verdade; Charlie costumava dizer que ela era a única escritora do
mundo que nunca falhava um prazo. Gloria deixara o Out Loud e estava
agora no Trib, a escrever reportagens. Mas, pelo sim, pelo não, Yale
escreveu também o número de Cecily. Tanto ele como Fiona tinham lenços
ao pescoço, embora Yale duvidasse que fossem grande proteção contra o
gás lacrimogéneo. Sentia-se um cowboy palerma.
Apanharam o El até ao Loop e Yale tentou evitar que Fiona percebesse o
quanto estava aterrorizado. Fora à vigília das velas em frente ao Hospital de
Cook County no sábado à noite, até às duas da manhã, a comer sopa e a
partilhar uma manta com Asher e Fiona e um amigo de Asher de Nova
Iorque, mas isso parecera-lhe mais seguro. As velas faziam lembrar uma
cerimónia religiosa e, ao fim de algum tempo, toda a gente se tinha sentado.
Poucas centenas de pessoas, algumas guitarras. Um desfile de moda
disparatado, a dada altura. Uma marcha propriamente dita era diferente, e o
tipo demasiado cauteloso que lhe ligara na noite anterior, da rede telefónica
da ACT UP, recordara-lhe que devia avisar amigos e família de onde ia
estar. Sugerira-lhe também levar uma segunda mochila reforçada, à frente.
– Às vezes, eles entusiasmam-se com os bastões – dissera. – Podes enchê-
la com camisolas ou coisa do género.
Mas Yale só tinha uma mochila. Colocou lá dentro uma camisola, um
lenço extra e uma garrafa de água. Guardou a bomba da asma no bolso das
calças e um saquinho de plástico com comprimidos para três dias no outro,
na eventualidade de ser detido. Oitenta e cinco comprimidos, no valor de
setenta e tal dólares. Graças a Deus tinha seguro.
O comboio estava cheio com a multidão habitual de segunda-feira de
manhã, homens de fato, mulheres de blazer, alguns miúdos com uniformes
de escolas privadas. O protesto começara às oito no Prudential Building,
mas já eram 8:45 e provavelmente teriam de se encontrar com a
manifestação a subir a Michigan Avenue em direção à sede da Blue Cross.
Yale tinha no bolso uma fotocópia com o mapa do percurso. Descrevia um
círculo alongado enorme, que parecia implicar muito tempo a andar. A
Associação Médica Americana era a paragem seguinte, depois outra
companhia de seguros e, finalmente, regressavam a Daley Plaza, onde se
instalariam em frente do County Building, para protestar o encerramento de
metade das camas dedicadas à sida no Hospital de Cook County e o facto
de a enfermaria não aceitar mulheres.
Fiona conseguiu encontrar um lugar sentado e insistiu para que Yale
ficasse com ele. Yale sentia-se bem, na verdade, exceto que tinha a barriga
em mau estado há vários dias. Um mal-estar diferente do que era causado
pelos medicamentos – cãibras fortes, enjoos. Podia ser o princípio de tudo,
ou podia ser apenas dos nervos. Assim que ele se sentou, Fiona disse-lhe:
– Tenho um problema. Estou apaixonada pelo meu professor de
Sociologia.
Yale riu-se.
– Fi! Mas é um amor não correspondido ou andas a receber créditos
extra?
– Bom, ele telefona-me. Para casa. Mas ainda não fizemos... não é ilegal,
nem nada!
– Diz-me que ele não tem sessenta anos – pediu Yale. – Oh, meu Deus, é
casado?
– Não e não. É da tua idade, mais ou menos.
– Mas és aluna dele.
– Sim. Bom, era. Os exames são esta semana.
– Devias estar a estudar.
– Cala-te. Então faço o exame, e depois?
Fiona corou violentamente. Se queria manter uma expressão neutra, não
estava a conseguir. Era lindo de se ver: Fiona feliz, Fiona apaixonada.
– Talvez possas esperar até as notas serem publicadas – disse. – Por uma
questão de aparências. E depois... enfim.
– A sério? Pensei que serias a pessoa certa para me meter juízo na cabeça.
És o meu amigo mais sensato.
– Fi, estás a pedir conselhos a alguém que está cada vez mais consciente
de que a vida é muito curta. Espera até teres a tua nota, depois vai ao
gabinete dele e baixa-lhe as calças.
Estava a falar baixo, mas Fiona soltou um gritinho divertido:
– Yale! Isso é tão gay!
Ninguém olhou; quando muito, pensaram que ela estava a insultá-lo.
– Estou bastante convencido de que também resulta com homens hetero.
A sério. Quantas vidas tens? Quantas vezes vais ter vinte e cinco anos?
Fiona ergueu uma sobrancelha. Tinha as sobrancelhas mais escuras do
que o cabelo e Yale adorava a expressão permanentemente sardónica que
isso lhe dava.
– E tu? – disse ela. – Andas a seguir os teus próprios conselhos?
– Estou prestes a participar num motim, não estou? Parece-te uma coisa
que eu faria normalmente?
– De todo. Mas sei muito bem porque o vais fazer. Não é por a vida ser
curta. É porque estás apaixonado pelo Asher.
Yale abriu a boca para protestar, mas sentira um rubor espalhar-se-lhe
pelo rosto e orelhas assim que ouvira as palavras, e seria ainda mais
embaraçoso agora tentar negar. Afinal de contas, ela vira-o na vigília,
angustiado por não saber se Asher estava envolvido com o seu amigo de
Nova Iorque, a derreter-se com a forma como a luz da vela iluminava o
rosto de Asher.
– Bom, ele tinha bons argumentos – disse.
Não estava mais apaixonado por Asher do que sempre estivera, o que
queria dizer, se quisesse ser honesto consigo próprio, que sempre estivera
bastante apaixonado por ele; e, ultimamente, estava disposto a ser honesto
consigo próprio. Não passava mais tempo com ele do que o habitual, mas
tinha mais oportunidades de olhar para ele – quando Asher discursava em
angariações de fundos e presidia a reuniões comunitárias, quando apareceu
na televisão na altura em que a manta do Names Project esteve no porto da
Marinha, quando aparecia na televisão por ser preso – e, a essa distância,
Yale permitia-se finalmente olhar para algo que sempre soubera que lhe
queimaria os olhos.
Asher passara uma hora na vigília a persuadir Yale a marchar hoje.
– Envergonhar alguém no noticiário da noite... – dissera – não achas que
é muito mais eficaz do que escrever uma carta? Não há nada que possas
fazer que cause tanta diferença. E esta é a grande marcha. É agora. – O seu
sotaque de Nova Iorque viera ao de cima. Espetou o dedo no peito de Yale
com demasiada força e pediu desculpa.
A FEGCOR tinha-se fundido com a delegação de Chicago da ACT UP e
Asher andava a prestar aconselhamento jurídico, além de enfrentar
pessoalmente os sprays de pimenta. A maioria das manifestações trazia à
rua os mesmos vinte ou trinta resistentes, mas esta era nacional – havia
pessoas que vinham de todo o lado para protestar na sede da AMA contra a
sua oposição a um seguro nacional. E também contra o sistema hospitalar, e
as companhias de seguros, e só Deus sabia que mais. Era tudo muito
confuso para Yale, mas quanto maior, melhor, segundo Asher.
– Se não lutarmos pelas mulheres negras e pobres que precisam de camas
no County – dissera Asher –, somos tão maus como os filhos da puta dos
republicanos. Não podemos pensar só em nós. E Yale... – disse, e Yale ficou
ligeiramente surpreendido por Asher se lembrar da presença dele, por se
lembrar de que não estava apenas a fazer um discurso para o ar – ...acho
que tu serias ótimo nisto, a longo prazo. Talvez nos bastidores, mas
precisamos de ti. Vamos estar constantemente a precisar de novos líderes. O
problema deste movimento é que os líderes estão sempre a morrer.
Precisamos de suplentes.
Uma gota de cera deslizava pela vela de Asher, aproximando-se
perigosamente da mão dele. Yale esticou a mão e travou-a com a unha do
polegar. E provavelmente fora nessa altura que Fiona se apercebera, se não
soubesse já.
Ao meio-dia, ainda não tinha mais notícias de Claire mas soubera pela
televisão que tinham apanhado e matado o último suspeito. Não havia
relatos de civis mortos a cinco quarteirões de distância.
Lembrou-se de ver se o telemóvel guardara o número de Claire quando
esta ligara. «Número Particular», dizia.
Asher e Yale não disseram mais nada o resto do caminho até St. Joe.
Yale prometeu apanhar um táxi, mas não o fez. Foi a pé até ao El. Queria
estar perto de outras pessoas, numa carruagem apinhada. Queria ver a
cidade de cima, passar suficientemente perto das janelas para conseguir ver
as mesas da cozinha, as discussões.
O mundo era um sítio terrível e maravilhoso e, se não ia ficar nele muito
mais tempo, queria fazer o que quisesse, e o que mais queria fazer naquele
momento, além de correr atrás de Asher, era corrigir a exposição de Nora,
dar aos esboços e pinturas de Ranko Novak a oportunidade que mereciam.
Pensou em pessoas que o pudessem ajudar. Havia os Sharp, mas, depois
de tudo o que tinham feito por ele, não podia pedir-lhes outro favor. Já não
conhecia praticamente ninguém na Northwestern. Não podia de maneira
alguma arrastar Cecily de novo para isto. À sua frente, no comboio, ia uma
adolescente com uma fila de argolas na orelha. Fez-lhe lembrar Gloria.
Gloria estava no Trib. Gloria podia ajudar. Não fazia ideia como, mas ela
saberia.
Uma paragem antes da sua, um homem entrou no comboio, a coxear, e
por um momento pareceu prestes a saltar-lhe para o colo, mas depois abriu
um saco de lona.
– Boas meias para vender – disse, em voz entaramelada, a Yale e à
mulher sentada ao lado deste. – Um dólar o par. Dois dólares, três pares.
Tamanho único. – Tirou do saco uma embalagem de plástico com um par de
meias de desporto brancas, com riscas amarelas no cano. Pareciam
improvavelmente grossas e confortáveis. – Tem buracos nas meias? –
perguntou a Yale. – Vai sentir-se melhor com estas. Boas meias, vai sentir-
se melhor. Um dólar, muito melhor.
Yale procurou um dólar no bolso e deu-o ao homem, que sorriu,
desdentado, e lhe entregou as meias. Yale levantou-se para sair com o saco
na mão.
Uma dádiva da cidade, era o que lhe parecia. Qualquer coisa para pôr
entre si e a terra.
2015
iona e Cecily fizeram uma longa viagem de táxi até Montmartre, à praça
F onde Claire lhes dissera para esperarem. O tráfego estava terrível na
cidade inteira; toda a gente voltara à estrada, mas as estradas não tinham
voltado ao normal. Fiona não sabia se havia ainda carrinhas de televisão a
bloquear o trânsito ou se eram apenas as pessoas que conduziam
distraidamente, nervosas.
A Place Jehan-Rictus era uma extensão oblonga de passeio entre arbustos,
rodeada por uma cerca e muros baixos de tijolo. Os bancos verdes, se não
fossem os excrementos de pássaro, seriam encantadores para uma pessoa se
sentar com um livro numa tarde de verão.
Estava sol mas fazia frio, e Fiona já receava que Nicolette viesse mal
agasalhada, ao mesmo tempo que receava que Claire e Nicolette nem
sequer aparecessem.
Cecily olhou para o relógio e disse:
– Devia ter sido assim na sala de espera do hospital. Nós as duas à espera
do nascimento da bebé. Mais vale tarde do que nunca!
Percorreram o trilho, passando pelo pequeno parque infantil. Pararam
junto ao mural ao lado do parque, uma parede reluzente a imitar um quadro
negro, com letras brancas e riscos vermelhos.
– Deve dizer tudo «amo-te» – comentou Cecily.
Te amo num lado, uma mão a fazer o gesto de linguagem gestual para
amor do outro, a maior parte das palavras incompreensíveis para Fiona –
tailandês e braile e grego e o que talvez fosse cherokee. Por cima, a pintura
de uma mulher com um vestido de baile azul e as palavras num balão:
aimer c’est du dèsordre... alors aimons!
Fiona sentiu, como sentira na ponte, que Paris, ou os seus fantasmas mais
maliciosos, estavam a enviar mensagens diretamente para ela. Mas não era
verdade; esta era simplesmente uma cidade que falava de amor, que
reconhecia as invasões constantes do amor, as suas complicações. O que
aconteceria a Chicago, perguntou-se, se cobrissem a cidade de coisas como
esta? Se enchessem a ponte de Clark Street de cadeados pintados?
Cecily apertou-lhe o braço e virou-a: uma pequena menina loira, sentada
num carrinho, com as pernas a abanar. Por cima dela, Claire, a sorrir com
expressão insegura. Nicolette saltou do carrinho e passou por elas a correr,
na direção do parque infantil, com o casaco cor-de-rosa aberto, as galochas
largas a quererem cair-lhe dos pés.
Fiona e Claire abraçaram-se pouco à vontade e, depois, Claire e Cecily
apertaram as mãos com desconforto ainda maior. No meio de tudo o resto,
Fiona só agora se apercebera de que Cecily e Claire nem se conheciam. Era
possível que Fiona tivesse levado Claire ao colo em algumas das suas
visitas ao gato Roscoe, a casa de Cecily – mas essas visitas rapidamente
tinham começado a rarear. O elo que fora imposto a Fiona e Cecily no
quarto de hospital de Yale não tinha força para durar; o trauma nem sempre
era a melhor cola.
Fiona olhou para Nicolette, a trepar ao escorrega. Tinha-o todo para si e
era do tamanho perfeito para ela. Em pessoa, parecia-se menos com Nico
do que na fotografia e mais com Fiona, na verdade.
Claire chamou-a e ela correu para a mãe e escondeu o rosto nas pernas
dela.
– Podes dizer olá à Cecily e à Fiona?
Era estranho, mas talvez, se tudo corresse bem, pudessem em breve
escolher os seus nomes de avó. Avozinha, vovó, mimi. Mémère, até. Nem
se importaria de ser tratada por Fifi, um diminutivo que rejeitara a vida
inteira, mas que talvez soasse bem na boca de uma neta francesa. Queria
apertar Nicolette, acariciar-lhe as faces macias, mas não a queria assustar e
também não queria assustar Claire.
Claire deu-lhes um saco com o lanche de Nicolette, uma muda de roupa,
dois livros infantis. Disse-lhes que Kurt a viria buscar dentro de uma hora e
meia.
– E, se houver algum problema, podem ir ter comigo ao bar. – Ficava
apenas a dois quarteirões.
– Ela ainda usa fraldas? – perguntou Cecily, como se estivesse a lembrar-
se subitamente de um guião antigo.
– Claro que não. Mas não vai precisar de ir à casa de banho, é como um
camelo.
E deixou-as, depois de mais algumas indicações rápidas e de um abraço a
Nicolette – que olhou para as avós com interesse depois de a mãe partir,
mas que não parecia nada assustada. Devia estar habituada a baby-sitters.
Fiona sentou-se num dos bancos em frente ao parque infantil e tirou as
coisas do saco, para que Nicolette visse as bolachas, o copo de sumo, os
livros de Pénélope – uma pequena ratinha a jogar com as cores num dos
livros, a aprender sobre as estações no outro. Mas Nicolette, por enquanto,
queria apenas deslizar no escorrega, correr para as duas mulheres e sorrir
enquanto elas aplaudiam, voltar para o escorrega e repetir tudo de novo.
Tinham tempo para a chamar, para ver se ela se sentaria ao colo de uma ou
outra, se falaria com elas em inglês ou francês.
– É tão bonita – disse Cecily.
De certa forma, fazia algum sentido que Fiona tivesse escolhido esse
preciso momento para se inclinar para a frente a chorar, por mais absurdo
que fosse; era a primeira vez que Cecily mostrava alguma emoção
verdadeira e os canais lacrimais de Fiona pareciam ter visto isso como um
convite. Sentiu Cecily a olhar para ela com preocupação e, quando ergueu
os olhos, viu que Nicolette interrompera o seu circuito e estava parada à
frente dela, com a testa franzida.
– Caíste? – perguntou, num inglês tão perfeito, e claro que Fiona chorou
ainda mais.
– Está tudo bem, querida – disse Cecily. – Ela está só um bocadinho
triste.
– Porquê?
Que pergunta. Fiona conseguiu responder:
– Estou triste com o mundo.
Nicolette olhou em volta, como se houvesse algo errado com o pequeno
jardim.
– A minha amiga tem um globo! – exclamou.
– Não te preocupes, meu amor – disse Cecily. – Isto já lhe passa.
As palavras foram suficientemente convincentes para Nicolette, que
correu de novo para o escorrega, a imitar o barulho de um carro. Cecily
pousou a mão nas costas de Fiona.
– Mandei a mãe dele embora – balbuciou Fiona.
Era o que não tinha conseguido dizer a Julian no estúdio de Richard no
outro dia, o que tinha tentado afastar do pensamento, ao saber que Claire
tinha dado à luz sem a presença da mãe, o que zumbia baixinho por trás de
cada pensamento sobre Claire, desde que ela desaparecera, e antes, também.
O que só mencionara uma vez à psicóloga e mesmo assim resumindo a
história, minimizando-a, de tal forma que Elena mal dera por ela.
– Não compreendo.
– A mãe do Yale.
– O Yale? Fizeste o quê?
– Mandei-a... mesmo no fim. Eu estava lá, e tu tiveste de ir à Califórnia.
– Sim. Fiona, não podes...
– Não, ouve. Tu tinhas de estar na Califórnia, o que não foi culpa tua, e eu
estava grávida da Claire.
– Eu sei.
– Não sabes, não. Lembras-te que eu é que fiquei com a procuração? Isto
foi quando ele estava... quando teve aqueles problemas todos nos pulmões
ao mesmo tempo.
– Foi horrível – disse Cecily, mais como se estivesse a confirmar a
memória de Fiona do que a revivê-la pessoalmente. – Lembro-me que ele
mal conseguia dizer duas palavras. E a caligrafia indecifrável. Isso
incomodava-me; ele sempre tinha tido uma letra tão bonita. E escrevia
aqueles bilhetes e eu não conseguia...
– Teve alguns dias melhores. – Fiona sentia-se mal por a interromper, mas
precisava de dizer isto antes de perder a coragem. – No fim, e talvez tenha
sido na altura em que não estavas lá, parecia que os tratamentos estavam
finalmente a ajudar com os problemas dos pulmões e ele conseguia falar,
conseguia mesmo. Mas depois os rins falharam, por causa dos
medicamentos todos que lhe estavam a dar, e começou a acumular fluidos...
nem me lembro bem, mas a seguir foi o coração. Estava a afogar-se. Eu
disse isso aos médicos e eles responderam que não era bem assim, mas sei o
que vi. Ele estava a afogar-se.
– Lidaste tão bem com toda a situação – disse Cecily. – Nem imagino
como terá sido, mas foi a decisão certa, tirá-lo do ventilador. Era o que ele
queria.
Nicolette tinha-se fartado do escorrega e estava a fazer um montinho
muito arrumado de folhas secas. Fiona respirou fundo e tentou recomeçar.
– Para mim, ele esteve doente durante dois anos inteiros – disse.
Yale apanhara pneumonia pela primeira vez no verão de 1990, depois
daquela estúpida costela partida na manifestação. Conseguira recuperar,
mas não completamente; já tinha asma antes e a pneumonia enfraqueceu-o
mais do que seria de esperar. Depois, apareceu outra coisa, e outra, ao ponto
de ele dizer que o seu corpo era uma discoteca de infeções oportunistas e
que tinha batizado as células T que lhe restavam com os nomes dos
jogadores dos Cubs.
– E, depois, no fim... – Pousou as mãos nos joelhos, com os braços
esticados. – Quatro dias antes de o Yale morrer, a mãe dele apareceu no
hospital.
Cecily olhou para ela.
– Eu sabia quem era, por causa daquele anúncio do paracetamol, e sempre
que passava na televisão eu observava-lhe o rosto e tentava compreender.
Suponho que o pai dele... lembras-te que o pai dele apareceu umas poucas
vezes, mas não fazia nada senão estar ali sem dizer nada, era muito
desconfortável.
– Não me lembro disso.
– Bom, mas foi o que aconteceu. O Yale nunca pensou que o pai
mantivesse contacto com a mãe, mas pelos vistos eles falavam, ou o pai
conseguiu descobrir forma de a contactar e ela apareceu no hospital. Trazia
um vestido de verão amarelo e parecia tão nervosa. Era de noite. Ele estava
a dormir.
A expressão da mãe de Yale era tão parecida com a que ele fazia quando
estava ansioso – uma cara que fazia sempre lembrar um coelho a Fiona.
Isso podia ter feito com que amasse aquela mulher tanto como amava Yale,
mas, em vez disso, só intensificou a sua raiva – ver uma das suas coisas
preferidas em Yale no rosto da pessoa que o abandonara.
– E mandaste-a embora?
Fiona soltou um soluço que fez Nicolette erguer os olhos das folhas. O
cabelo da menina parecia translúcido à luz do Sol.
– Eu ainda não era mãe, na verdade. Eu... tudo o que pensei foi que ele
podia ficar transtornado por a ver. Mas também fui possessiva. Agora,
reconheço-o. Ele era meu, e aquela mulher apareceu e nem sequer pensei no
que ela estaria a passar. Ou no que lhe teria custado entrar naquele hospital.
Só pensei que ia matá-lo. Pensei que ele ficaria transtornado e imaginei-a a
interferir nos tratamentos, a tentar assumir o controlo, como os meus pais
tinham feito com o Nico. E odiava tanto a minha mãe. Acompanhei-a ao
elevador e carreguei no botão e disse-lhe que ele dissera especificamente
que não a queria ver.
– E era verdade?
– Sim. Por acaso, era. Foi uma das coisas que discutimos. Mas podia ter
falado com ele, quando estivesse acordado. Podia ter-lhe perguntado o que
queria fazer. E não disse nada. Tinha intenções de lhe dizer. Estava sempre
quase a dizer-lhe.
Depois, o que aconteceu foi que Fiona entrou em trabalho de parto e,
quando isso correu mal, teve de fazer uma cesariana de urgência e ficou
presa à cama pelos medicamentos por via intravenosa e pelas dores, uns
pisos acima dele, mas incapaz de percorrer o corredor até ao elevador. E
Cecily ainda não tinha voltado e Asher estava em Nova Iorque e não restava
realmente ninguém que pudesse sentar-se com ele. Pensou em ligar para
conhecidos e pedir-lhes que fossem ver como ele estava, mas Yale era mais
chegado às enfermeiras do que a antigos vizinhos, e as enfermeiras sabiam
o que estavam a fazer; já tinham segurado durante muitas horas a mão de
muitos homens que morriam sozinhos. Além disso, Fiona só precisava de
recuperar um pouco e depois podia voltar a descer ao terceiro andar, para
continuar a tomar conta dele.
Mas, entretanto, Yale mergulhou num estado de inconsciência profunda e
Fiona teve de tomar a decisão médica por telefone, com as enfermeiras da
maternidade a fitá-la, preocupadas. Mandava Damian lá abaixo uma e outra
vez com mensagens para Yale, apesar de ele já não ouvir nada, e quando
regressava obrigava-o a dizer-lhe como é que Yale estava.
– Tem tantos tubos ligados a ele – disse Damian. – Está com uma cor
estranha. Fiona, não sei. Estou tão cansado. Vou lá outra vez, se quiseres,
mas cada vez que lá estou penso que vou desmaiar.
A velha amiga de Yale, Gloria, e a namorada dela, faziam alguns turnos,
mas só à tarde. Quando Nico morrera, havia tantas pessoas que queriam
estar no quarto com ele, amigos que se debatiam por um lugar, que
competiam pelo papel de cuidador, para lhe pegarem na mão, para o
chorarem mais do que os outros. E agora não havia ninguém. Yale estivera
presente para Nico, e para Terrence, e até para o estúpido do Charlie, e não
restava ninguém ao lado dele, e isso dava cabo de Fiona.
Claire tinha trinta e seis horas de vida e a amamentação não estava a
correr bem, e Fiona, que se tinha preparado para um parto natural, mal
conseguia acreditar na dor lancinante que lhe percorria o corpo todo sempre
que tentava ajeitar o tronco, sempre que tentava sentar-se sozinha. Ao ponto
de ficar tonta e quase desfalecer. Nos cinco minutos que dedicara ao tema
das cesarianas, a instrutora de Lamaze nunca mencionara a dor, a
impotência. Fiona conseguiu ir à casa de banho agarrada a uma enfermeira
e quase desmaiou. Pediu se ela podia levá-la à unidade da sida numa
cadeira de rodas, e a primeira enfermeira disse que tinha de perguntar ao
médico, mas nunca mais apareceu. A segunda enfermeira disse que iriam de
manhã. Fiona podia ter insistido, mas as dores eram demasiado fortes e os
medicamentos estavam a dar-lhe sono e de manhã seria tudo mais fácil.
Claire ficou no berçário a noite toda, nessa noite, e Fiona dormiu até
tarde. Quando acordou, viu o rosto do Dr. Cheng. Ele fora lá acima
propositadamente. Quando se apercebeu da expressão no rosto dele, gritou,
um grito tão alto e primitivo que, se estivesse noutro sítio qualquer, toda a
gente viria a correr.
Foi esta madrugada, disse o Dr. Cheng. Debbie, a enfermeira de serviço,
estava com ele.
Mas não era suficiente.
Se Fiona não tivesse mandado a mãe dele embora, talvez ele tivesse
ouvido a voz dela, mesmo inconsciente. Talvez se tivesse sentido
reconfortado, a um nível profundo e infantil.
Nicolette aproximara-se e estava a abrir o pacotinho de bolachas. Cecily
deu uma palmadinha no banco e ela trepou e sentou-se com as pernas a
abanar.
Fiona tocou nos caracóis loiros, impossivelmente macios.
– Foi o maior erro da minha vida, Cecily – disse. – Acho que estou a ser
punida por isso até hoje. Afastei a minha mãe, mandei a mãe do Yale
embora, e tudo isso voltou anos depois para me cair em cima.
– Vives na América? – perguntou Nicolette.
Fiona limpou os olhos com a manga.
– Sim. Sabias que eu sou a mamã da tua mamã? E a Cecily é a mamã do
teu papá.
Nicolette olhou de uma para a outra como se estivessem a pregar-lhe uma
grande partida, como se lhe tivessem dito que uma era a Fada dos Dentes e
a outra, o Coelhinho da Páscoa.
– A tua mamã saiu da minha barriga, e o teu papá saiu da barriga da
Cecily.
– Mostra-me – pediu Nicolette, e Fiona levantou a camisola e apontou
para a leve cicatriz.
– Por aqui – disse, e Nicolette acenou com a cabeça.
– Mas não fez dói-dói?
– Nem um bocadinho.
Nicolette mastigou a bolacha e Cecily disse a Fiona:
– Não sei se isto ajuda, mas sempre que me sentia culpada por qualquer
coisa, quando era nova, a minha mãe dizia: «Como é que podes compensar?
O que é que podes fazer para te sentires melhor?» Sei que parece filosofia
barata, mas sempre me acalmou quando estava transtornada.
– Podia mudar-me para Paris – disse Fiona, e estava a brincar até ouvir as
palavras e perceber que não estava.
Nicolette queria os livros. Cecily sentou-a ao colo e contou-lhe a história
de Pénélope, do jogo que ela e os seus amigos animais estavam a jogar com
um baú cheio de roupas coloridas.
1991
iona esperava-os à porta da galeria e, assim que os viu, disse:
F – Salvem-me da minha família!
– Primeiro, ajuda-nos – pediu Cecily. Havia uma rampa, mas uma tira de
borracha mesmo na entrada estava a prender as rodas da cadeira de Yale, e
por isso Cecily teve de inclinar a cadeira de rodas para trás, enquanto Fiona
agarrava nos apoios dos braços e puxava para a frente, e Yale se segurava e
tentava encostar-se para não tombar quando o endireitassem.
A cadeira baixou com um baque que o abalou e fez o tanque de oxigénio
bater-lhe nas costas. Mas estavam lá dentro. Fiona ajudou-o a despir o
casaco.
– Temos exatamente uma hora – disse Cecily.
– Na realidade tenho duas horas de oxigénio – corrigiu Yale. – Ela está
apenas a ser cautelosa.
– E com razão! – exclamou Fiona. – E se houver um engarrafamento no
regresso? Nem acredito que te deixaram sair.
– Para que conste – disse Yale, enquanto elas o empurravam pelo
corredor em direção à galeria –, se alguma vez forem interrogadas perante
um juiz, eles não me deixaram sair, e o Dr. Cheng não me ajudou de
maneira alguma a roubar o oxigénio e a cadeira.
– Claro que não.
– Ele manda cumprimentos.
*
A galeria já se encontrava cheia. Yale estava vestido de forma demasiado
casual – todos os outros homens tinham gravata, e ele vestia uma camisola
velha que em tempos lhe ficara justa e agora parecia uma tenda –, mas de
qualquer modo ninguém reparava nas suas roupas.
Ali estava Warner Bates da ARTnews, a acenar e a apontá-lo a outra
pessoa qualquer. Warner viera entrevistá-lo no outono, logo a seguir ao
artigo inicial de Gloria no Trib. Trouxera um fotógrafo que fotografara Yale
sentado em casa, no sofá, a rir ao lado de Fiona. Yale ficava embaraçado
com tanta atenção, com a forma como estavam a dar importância ao papel
dele. A história de Gloria era sobre a coleção propriamente dita. «Setenta
anos depois», dizia o título, «um artista reclama o seu prémio.» Incluía
muitas citações úteis de Bill Lindsey, que nunca se apercebera de que o
tema do artigo era Ranko Novak. O artigo não era desonesto; nunca dizia
diretamente que as peças de Novak estariam na exposição. Contudo, ao
falar pormenorizadamente sobre as peças dele, sobre a sua vida e morte,
deixava no ar uma forte sugestão disso mesmo. «Ela queria que ele
recebesse o que merecia», dizia Yale, entrevistado para o artigo. «Queria
vê-lo ao lado de Modigliani.» O artigo, por si só, talvez não tivesse sido
suficiente para forçar Bill, mas a meia dúzia de outros artigos que se
seguiram em várias publicações de artes foram. De súbito, o nome de
Ranko ganhou lugar de destaque em todas as comunicações da galeria
referentes à exposição.
Yale viu Bill alguns metros mais à frente e Bill, ao vê-lo, ficou
aterrorizado. Virou-se novamente para a mulher de quem tinha acabado de
se despedir, perguntou-lhe qualquer coisa, conduziu-a rapidamente na
direção oposta. Bill não parecia doente. Cecily tinha-lhe dito isso,
atualizava-o de poucos em poucos meses em tom quase apologético, como
se Yale quisesse que Bill tivesse apanhado o vírus.
Por estar na cadeira de rodas, atrás das outras pessoas, Yale ainda não
conseguia ver nada. Reconheceu apenas um canto do quarto pintado por
Hébuterne.
Imaginara, em tempos, empurrar a cadeira de rodas de Nora até aqui, para
ela ver a exposição. Imaginara empurrá-la à frente das outras pessoas.
Ali estavam os Sharp, a dirigirem-se a ele. Esmé baixou-se para o abraçar
desajeitadamente com os braços magros. Esmé e Allen eram uns
verdadeiros santos, estavam sempre a ligar, para saber se ele precisava de
alguma coisa. Na sua primeira estada prolongada no hospital, Esmé levara-
lhe um monte de livros. Nunca seriam amigos íntimos, a trocar mexericos
num brunch, mas ambos se tinham oferecido para formar uma rede de
segurança por baixo dele.
– Vamos dar a volta? – perguntou Esmé.
Assim, enquanto Fiona era encurralada por um homem que queria
explicar-lhe detalhadamente como conhecera o marido de Nora, Cecily e os
Sharp guiaram-no pela exposição, pedindo licença às outras pessoas para
deixarem passar a cadeira de rodas.
A exposição estava montada num pequeno labirinto de paredes, com as
peças separadas por artista, mais ou menos em ordem cronológica, e Cecily
propôs que começassem pelo fim do circuito. Havia muitas explicações
escritas para cada conjunto. Na secção de Foujita, havia cartas e bilhetes
emoldurados. E ali, contra o campo de neve da parede da galeria, o seu
desenho a tinta de Nora com o vestido verde.
Nos anos desde que Yale vira as peças pela última vez, estas tinham
adquirido uma aura de obras de arte famosas. Era importante, porque já as
tinha visto e o seu cérebro guardava um espaço reservado para elas. Como
um velho amigo, reencontrado anos mais tarde numa esquina. Ou o manual
de História da escola secundária redescoberto e, graças à familiaridade
distante, consagrado a um pedestal.
Esmé empurrou a cadeira de rodas de Yale e passaram por um grupo de
pessoas que incluía os pais de Fiona, que nem olharam para ele, e Debra,
que olhou. No entanto, fitou-o com rosto completamente inexpressivo e
Yale pensou que ela não o reconhecera. Ela própria parecia diferente – mais
cheia, um pouco mais animada. Segundo Fiona, namorava com um
banqueiro de investimentos de Green Bay. Não era propriamente a vida de
aventuras loucas que Yale teria desejado para ela, mas já era qualquer
coisa.
Warner Bates da ARTnews apareceu subitamente à frente dele, a
bloquear-lhe a visão, e apresentou-o a um casal idoso que olhou para Yale
sem conseguir disfarçar o horror. Não lhes estendeu a mão; nunca lhes faria
tal coisa. Warner disse:
– É um triunfo, Yale! Espero que esteja muito feliz!
– E estou. Nem acredito que está finalmente a acontecer.
– Unicamente graças a si, sabe? – Warner virou-se para o casal. – Foi este
homem que possibilitou tudo isto.
Foram progredindo em direção ao início da exposição. E ali estava a
secção de Ranko, finalmente: as duas pinturas, os três esboços das vacas.
Fiona, que entretanto voltara a juntar-se a eles, apertou-lhe a mão, e Esmé
disse:
– Bom, aqui está.
Yale desejou que as peças fossem mais espetaculares, mas tinham sido
muito bem emolduradas e as placas informativas sobre Ranko eram uma
boa distração da simplicidade das vacas. A pintura de Nora como uma
menina triste tinha sido avivada pelo trabalho de restauro, e o seu vestido
era agora de um tom de azul muito mais interessante do que Yale
recordava.
E, finalmente, ali estava Ranko no colete de losangos. Yale não o via
desde que ficara a saber que era o retrato de Ranko e que fora Nora que
segurara no pincel. A etiqueta dizia «Autorretrato»; Yale transmitira essa
parte da informação, pelo menos. Parecia realmente pintado pela mão do
mesmo artista, pelo menos aos olhos de Yale, mas talvez, agora que
observava melhor, houvesse qualquer coisa mais hesitante nos traços; era o
trabalho de alguém desesperado por fazer uma coisa bem feita. Também
esta peça estava mais nítida depois do restauro. Não se tinha apercebido do
mau estado em que deviam estar as pinturas originais. Reparou numa
centelha prateada no meio dos caracóis escuros de Ranko. Aproximou mais
a cadeira de rodas, mas não ajudou a ter uma perspetiva melhor, portanto
afastou-a mais para trás.
Não estava doido: era um clipe. Não era a primeira coisa que se via ao
olhar para a obra, mas, agora que observava melhor, sim, e ali estava outro,
mais perto da testa. As formas eram distintas, e ela conseguira transmitir o
brilho da luz refletida neles. Teria sido ideia dela ou de Ranko? Teria ele
usado novamente a sua coroa no dia em que posara? Teria Nora
acrescentado os clipes depois de ele morrer? Que estranho, que
inexplicavelmente devastador: clipes de papel.
Queria rir, gritá-lo à galeria, explicar – mas só podia contar a Fiona.
Olhou para Esmé e disse apenas:
– Este é o meu preferido.
Um homem ao lado da cadeira de rodas de Yale disse à mulher:
– Ouvi dizer que tiveram de incluir tudo, que isso fazia parte do
testamento da senhora.
Mas aqui estava, e era um artefacto de amor. Bom – de um amor
impossível, condenado, egoísta e ridículo, mas alguma vez existira outro
tipo de amor?
Tinha passado uma hora e cinco minutos e Cecily saiu a correr, para ligar
o carro. Esmé empurrou a cadeira de Yale até à saída e ele teve uma última
oportunidade de olhar para a galeria. As pessoas com as suas belas roupas,
as orlas e os cantos de pinturas e esboços.
– Oh, bolas – disse Esmé –, esteve a nevar!
Havia um centímetro de neve no chão; os sapatos de Cecily tinham
deixado leves pegadas na direção do carro.
Yale despediu-se de Fiona com um abraço e disse-lhe para olhar com
atenção para o autorretrato de Ranko. Depois, disse a Allen Sharp:
– Se os pais se aproximarem dela, finja que está a ter um ataque, ou coisa
do género.
Allen correu à frente dele, a limpar a neve do caminho da cadeira de
rodas com os seus sapatos elegantes.
Allen e Esmé transferiram-no juntos para o banco do passageiro e
puseram a garrafa de oxigénio entre as suas pernas. Cecily disse:
– Já passa um quarto de hora, Yale. Não gosto nada disto.
Anoitecera. Cecily conduziu por Sheridan Road demasiado depressa, com
os flocos de neve iluminados a caírem à volta deles.
– Mais devagar – pediu Yale. – Não vale a pena termos um acidente.
– Se tivermos um acidente – disse ela –, levam-nos para onde queremos
ir, de qualquer maneira. E mais depressa.
– Está tudo bem – disse ele. – Valeu a pena.
– Sim? Estás contente? – Olhou para ele de soslaio. – Gostei das coisas
do Ranko. Gostei mesmo.
– Ela amava-o – disse Yale, em vez de a contradizer, em vez de dizer que
não fazia mal se não tivesse gostado. – Embora não devesse. Acho que foi
um daqueles casos em que não se consegue esquecer a primeira imagem
que se tem da pessoa.
– Nunca nos esquecemos disso – disse Cecily. – Quer dizer, mesmo para
os pais... os filhos nunca deixam de ser os nossos bebés, pois não?
– Tens razão.
À medida que estava mais doente, era cada vez com mais frequência que
pensava nas pessoas – em Charlie, claro, e em todos os outros ainda vivos
ou mortos – não como a soma de todas as desilusões, mas de todos os
princípios que tinham representado, todas as promessas.
– Acho que o teu relógio está adiantado – disse Yale, enquanto desciam
Lake Shore. 19:49. Faltavam onze minutos, mas ainda aguentaria algum
tempo se o oxigénio acabasse. Toda a gente estava a conduzir com cuidado;
Cecily não conseguia ultrapassar os outros carros.
– Esse relógio está atrasado – disse ela. – E tu nem sequer tens relógio de
pulso.
Yale fechou os olhos e reclinou um pouco o encosto.
Eram 19:56, segundo o relógio, quando pararam em frente ao Masonic.
O Dr. Cheng estava cá fora, no meio da neve, a congelar apenas com a
bata branca, à espera deles com uma garrafa de oxigénio cheia.
2015
a segunda-feira, dia 23 de novembro, exatamente uma semana depois da
N data prevista, a exposição de Richard, Strata, teve finalmente a sua
antestreia no Pompidou. Abriria ao público na quarta-feira, com uma
semana de atraso, apesar do gigantesco cartaz de lona colocado no exterior
do museu com as datas originais sobre a fotografia de Richard, bastante
mais jovem, com uma Kodak Brownie encostada ao olho. O nome
«CAMPO» estendia-se a toda a largura do cartaz.
Fiona convencera Claire a ir também. Adoraria poder acreditar que a
aquiescência de Claire tinha alguma coisa a ver com ela, com a
possibilidade de redenção e de passarem algum tempo juntas, mas, por
outro lado, Claire conhecia Richard desde pequena e também era uma
artista, ou queria ser. E tinha baby-sitter: Cecily insistira que preferia ficar
com Nicolette a calçar saltos altos e tentar falar francês.
Fiona, nervosa, chegou quarenta minutos adiantada. Tinha saído de casa
de Richard à hora de almoço, para lhe dar espaço para se preparar, e
instalara-se num café; agora vagueava pela loja de recordações do
Pompidou, onde combinara encontrar-se com Claire, a olhar para espátulas
de silicone coloridas e colares volumosos e livros de arte. Queria encontrar
qualquer coisa para Nicolette.
Estava a inspecionar uma garrafa de água às riscas, quando sentiu um
queixo no ombro. Julian. Há trinta anos que ele não lhe fazia isto, mas era a
barba por fazer dele, a forma como se aproximava por trás e aninhava a
cabeça no pescoço dela.
Virou-se para o abraçar e disse:
– Vejam bem quem é ele.
– Estás radiante! – exclamou Julian. Depois, murmurou: – O Serge
contou-me que arranjaste um amante aqui, mas, uau...
Fiona bateu-lhe ao de leve com a garrafa de água.
– Estou radiante por causa dos nervos.
Passara o fim de semana a procurar casas para arrendar em Paris onde
pudesse ficar um mês, dois, três. Conseguiria facilmente subarrendar o seu
apartamento em Chicago.
Na véspera, durante o pequeno-almoço, dissera a Cecily:
– E se nos mudássemos as duas para cá? Podíamos dividir um
apartamento. E se fôssemos... sei lá. Avozinhas em Paris. Parece um filme!
Podíamos fazê-lo, podíamos mesmo. Porque é que as possibilidades de
estudar no estrangeiro hão de ser desperdiçadas só com os jovens?
– Não – disse Cecily, e abanou convictamente a cabeça. – Estás mesmo a
pensar nisso?
– Quer dizer, até ela aceder a ir para casa comigo. Ou até... não sei. Mas,
ouve, quando éramos novas, mergulhávamos no futuro sem preocupações,
não era? Pelo menos era o que eu fazia. Não sei quando é que deixou de ser
assim.
– Não tens um cão?
– E um emprego. Quer dizer... hei de resolver o problema.
– Tens a certeza de que serás sequer bem-vinda?
– Não.
Explicou-lhe então as ideias que explorava enquanto tentava adormecer.
Podia trabalhar para Richard... ele não estava sempre a dizer que precisava
de uma assistente? Podia tomar conta de Nicolette, ajudar Claire em termos
financeiros ou a mudar-se para um bairro melhor. Na verdade, Claire podia
trabalhar para Richard!
Não explicou a Cecily as outras coisas em que estava a pensar: que seria
um recomeço, um recomeço muito adiado. Que praticamente nunca tinha
saído de Chicago. Madison não contava, pois estava sempre a regressar,
tinha tanta coisa a prendê-la à cidade. Que, trinta anos depois da morte de
Nico, chegara finalmente a altura de seguir em frente. Que talvez devesse
libertar o destino no mundo, tão facilmente como Jake largava a carteira
num bar, certo de que regressava sempre a ele.
Cecily suspirara e rira-se e batera com o garfo na beira do prato.
– Bom, eu venho visitar-te – disse.
Na noite passada, Fiona escrevera um longo e-mail a Claire, a explicar a
sua ideia. «Não respondas», começava por dizer. «Podemos falar amanhã.»
Portanto agora, além da ansiedade social inerente a esta antestreia, e além
da antecipação de ir ver as filmagens de Richard dos anos oitenta, estava ali
na loja de recordações à espera de ser rejeitada pela sua única filha.
Julian disse:
– Preciso desta almofada! O que é isto, Kandinsky?
Fiona não chegou a ver do que ele estava a falar, porque ali estava Claire,
com um vestido de algodão preto e botas pretas, o cabelo penteado em
ondas suaves. Parecia mais descontraída do que no bar ou no parque. Talvez
isto lhe parecesse menos uma invasão, ou talvez estivesse a habituar-se à
ideia de ver a mãe. Fosse o que fosse, ajeitou a alça da mala, deu um abraço
rápido a Fiona e inspecionou a secção de artigos para a casa, como se
estivesse à espera do que aconteceria a seguir.
– Quero apresentar-te o Julian Ames – disse Fiona.
Claire inclinou a cabeça e apertou-lhe a mão.
– O Julian era amigo do teu tio Nico – disse.
Que estranho era chamar-lhe isso, quando ele nunca fora tio de ninguém.
Mas tentara, durante a infância de Claire. Esta era a mesa de desenho do
teu tio Nico. O teu tio Nico também não gostava da gema do ovo. E agora,
por essa lógica, Nico era tio-avô. Santo Deus: o tio-avô Nico. Quem diabo
era esse? Um velho com óculos bifocais.
– A tua mamã tomava conta de nós todos – disse Julian.
Fiona viu Claire endireitar os ombros.
– Eu sei – disse. – Santa Fiona de Boystown.
Julian olhou de soslaio para Fiona. De súbito, ela pensou que talvez o
culto tivesse tornado Claire crítica da homossexualidade, lhe tivesse
ensinado que a sida era um castigo de Deus ou coisa do género. Não estava
a ver Claire deixar-se seduzir por esse tipo de conversa, mas na verdade não
sabia nada sobre esta desconhecida.
Claire pegou num conjunto de pratos de melamina com imagens de
Magritte, um deles com o cachimbo que não era um cachimbo num fundo
verde-vivo. Rodou-o e estudou-o atentamente.
Julian disse:
– Há anos que conto histórias sobre a tua mãe. Ela pensava que eu estava
morto e, o tempo todo, eu andava a falar sobre ela como se fosse sobre-
humana. E durante muito tempo não soube nem metade do que ela fez. Eu
deixei Chicago mas ela continuou.
Claire sorriu-lhe secamente.
– Bom, acabou por parar, por minha causa.
Fiona tentou perceber o que ela queria dizer.
– Eu nasci no dia em que o amigo dela morreu. Sabia?
Fiona murmurou, embora não fosse preciso murmurar:
– Ela está a falar do Yale. – E depois, em voz mais alta, disse: – Não, isso
não é verdade. Nasceste no dia antes de ele morrer. Claire, ouve, alguma
vez disseste ao Kurt que eu tinha dito que esse foi o pior dia da minha vida?
Porque eu nunca...
– Quase me matou – interrompeu Claire. Estava a falar apenas para
Julian, como se Fiona não estivesse ali. Julian, era preciso dizê-lo, não
parecia em pânico por se ver no meio daquilo. Talvez soubesse que era
apenas um vazio, uma câmara de ressonância, uma presença necessária. –
Sempre houve... quando eu era pequena, sempre houve uma parte de mim
que pensava que, se tivesse nascido depois de ele morrer, ela acreditaria que
eu era a reencarnação dele, ou coisa do género. Que até eu própria
conseguiria acreditar nisso. Desejei muitas vezes ter nascido nesse preciso
instante.
Embora Claire não estivesse a olhar para ela, apenas para Julian e para o
prato de Magritte, Fiona disse:
– Nunca foi uma competição, querida.
– Ha! – exclamou Claire, demasiado alto, mas não estava mais ninguém a
ouvir. – Hilariante.
Talvez isto fosse bom. Claire precisava de dizer as coisas mais cruéis que
conseguisse, para que estivessem cá fora e não dentro dela. Mesmo assim,
Fiona só queria desatar a chorar, o que não ajudaria em nada, portanto
conseguiu controlar-se. Julian aproximou-se mais dela e pousou-lhe a mão
nas costas.
Claire largou o prato e pegou noutro, este azul-céu, com o famoso chapéu
de coco. Uso externo, dizia a etiqueta do chapéu.
– Sei que ela fez o seu melhor – disse Julian.
– Estou a tentar fazer o meu melhor agora – respondeu Fiona. – Agora,
que és mãe, não consegues...
Mas Claire cortou-lhe a palavra.
– Ela só quer mudar-se para cá porque houve uma catástrofe. Quer apenas
estar perto do drama.
Julian parecia confuso.
– O que eu queria – disse Fiona – era estar perto da minha filha e da
minha neta. Gostava de compensar o facto de ter sido uma mãe horrível e
deprimida, e poder ser agora uma avó decente. Não estou a pedir nada em
troca.
Claire virou o prato como se quisesse ver o preço. Um silêncio pensativo
e resignado.
– Se calhar, não vão conseguir resolver isto tudo aqui na loja de
recordações – disse Julian.
– Não posso controlar onde vives – disse Claire. – Se queres mudar-te
para cá, não posso fazer nada.
Era tudo o que Fiona podia esperar dela, por enquanto.
– Posso dizer uma coisa – disse Julian –, enquanto nos dirigimos à escada
rolante? Porque se calhar está na hora de nos dirigirmos à escada rolante. –
Claire pestanejou e pousou o prato. Atravessaram o átrio. Julian continuou:
– Toda a gente sabe como a vida é curta. A Fiona e eu sabemo-lo
particularmente bem. Mas nunca ninguém fala sobre como a vida é longa. E
é... não sei se faz sentido. Todas as vidas são demasiado curtas, mesmo as
mais longas, mas também há pessoas que têm vidas longas demais. Quer
dizer... talvez só consigas compreender quando fores mais velha.
Subiu para a escada rolante e virou-se para olhar para elas.
– Se pudéssemos estar no mundo ao mesmo tempo e no mesmo sítio que
todas as pessoas que amamos, se pudéssemos nascer juntos e morrer juntos,
seria tão simples. E não é. Mas escutem: vocês as duas estão no planeta ao
mesmo tempo. Estão no mesmo sítio, agora. Isso é um milagre. Só queria
dizer isso.
Claire estava atrás dela e Fiona não conseguia ver-lhe o rosto, mas sentiu
a energia dela – tivera tanta prática nisso, e estava tudo a regressar-lhe à
memória – e, pelo menos, conseguia sentir que Claire não estava irritada,
não estava a revirar os olhos e a pensar quem seria este imbecil com os seus
discursos de motivação. Quanto a si, estava grata. Não se lembrava de
Julian ser tão inteligente, mas na altura ela também não o era. Muita coisa
podia acontecer em trinta anos.
Estavam quase no cimo da escada.
– Vira-te para a frente – disse Fiona –, antes que tropeces.
1992
ela primeira vez em três semanas, Yale conseguia respirar. Não muito
P bem, mas o suficiente para conseguir pronunciar várias palavras
seguidas, formular pensamentos e frases inteiras. Ainda ontem estivera tão
certo de que era o fim, de que cada inspiração só teria mais uma ou duas a
seguir. Parte dele pensava que devia guardar muito bem o ar, poupá-lo para
o dia seguinte, mas principalmente queria falar enquanto podia, dizer coisas
que não conseguiria dizer mais tarde.
Fiona estava sentada na cadeira ao lado da cama. Grávida de oito meses e
mesmo assim tão pequena – com uma camisola larga, ninguém diria.
Quando chegasse aos nove meses, prometera-lhe, deixaria de arriscar a
viagem de carro desde Madison. Porém, na última semana, tornara-se cada
vez mais claro que era bem possível que ela não regressasse a casa antes de
ele morrer.
A cânula do oxigénio fazia-lhe cócegas no nariz e conseguiu ajeitá-la sem
espirrar; espirrar doía. Era noite de piza – a pizaria Pat’s doava pizas todas
as semanas – e Fiona estava a comer uma fatia de pepperoni. Yale não
ingeria comida sólida há semanas, mas esta era a primeira vez que se sentia
um bocadinho invejoso por ver alguém comer – o que era bom sinal. Ou
seria bom sinal, se ele não soubesse perfeitamente que só se sentia melhor
porque lhe tinham alterado a medicação e estavam a enchê-lo de
pentamidina e anfotericina outra vez – reduzir esses remédios fora o que
deixara os pulmões chegarem àquele estado – mas que esses tratamentos
acabariam por lhe liquidar os rins e o fígado. O Dr. Cheng não dourara a
pílula. Um dos voluntários contara-lhe, há muito tempo, que, quando
alguém comia bem ao pequeno-almoço, era o fim – o doente não tinha mais
do que algumas horas de vida. Yale não ia tomar um bom pequeno-almoço,
mas estas inspirações fáceis pareciam-lhe tão nutritivas quanto sinistras. Os
barbeiros tinham passado pelo hospital hoje e até conseguira sentar-se para
isso, com a ajuda deles; tinham-lhe rapado a nuca e massajado as têmporas
com qualquer coisa que cheirava a menta.
– Os teus olhos parecem muito melhores – disse Fiona.
– Como é que estavam? – perguntou, mas na realidade não queria saber,
porque em breve estariam iguais, ou piores.
– Tinhas as pupilas tão dilatadas. Era como ver alguém preso dentro de
um tanque de água. Provavelmente era assim que te sentias. – Suspirou e
inclinou-se com algum esforço, para massajar os tornozelos inchados. –
Queres ver o canal de relaxamento?
Rafael entrou nesse momento e ficou com o andarilho entalado na porta.
Fiona teve de se levantar para o ajudar a soltar a roda.
– Venho fazer uma entrega – disse Rafael. – Envernizei-a para ficar
brilhante. – Estava a falar da pequena mandala feita de sementes que
segurava contra a pega do andarilho com o polegar, a mandala que Yale
fizera um mês antes, na sala de artesanato. O andarilho de Rafael não cabia
entre a cama e a parede, por isso deu-a a Fiona, para a dar a Yale. – A sala
de artesanato não é a mesma desde que não temos as músicas tristes e
terríveis das tuas bandas britânicas. Aquele tipo, o Calvin, apoderou-se da
aparelhagem e agora só se ouve a merda da música techno de que ele gosta.
Yale pegou na mandala, embora segurar em alguma coisa lhe fizesse doer
os braços. Não sabia o que faria com ela. Talvez a mandasse para Teresa, na
Califórnia. Ela ainda lhe escrevia uma carta todas as semanas.
– Hoje é a noite – disse Rafael. – Tenho alta e o Blake vem buscar-me
daqui a uma hora.
Fiona bateu palmas, entusiasmada, e Yale não sabia como ela ainda tinha
tanta energia.
– Estás pronto? – perguntou ela. – Tudo preparado?
– A malta da Open Hand já lá está a abastecer o frigorífico e ando a dar-
me muito bem sem o soro.
Yale ficou contente por Rafael não estar a falar em tom apologético. Fora
o companheiro de quarto perfeito. Antes de Rafael, Yale partilhara o quarto
com um homem alto, chamado Edward, que dizia constantemente que
nunca tinha sido tão feliz na vida, que a unidade 371 era o primeiro sítio
onde se sentia realmente integrado. Antes de Edward fora Mark, o
heterossexual desconfortável; antes de Mark, um homem chamado Roger,
cuja enorme família irlandesa e católica o cercara, enquanto a LMP lhe
roubava o controlo motor e a fala mas lhe deixava a função cerebral intacta,
pelo menos durante algum tempo. Num internamento anterior, Yale dividira
o quarto com um tipo que tinha dez frascos alinhados no parapeito da
janela, em cada um deles uma bolota plantada. Estava a tentar fazê-las
germinar antes de morrer, para poder deixar árvores a dez amigos.
E, depois de tudo isto, Yale estava deitado na cama, um dia, a recuperar
de uma punção lombar, quando ouviu porem alguém do outro lado da
cortina, acompanhado pelos sons habituais – enfermeiras a explicarem
como funcionava o soro, os botões de chamada, qualquer coisa sobre a sala
de fumo – e depois ouviu alguém dizer:
– Sabem o que eu quero no meu painel na colcha de retalhos do Names
Project? Um maço gigante de Camels, mais nada!
Mesmo antes de a enfermeira abrir a cortina, Yale já sabia que era Rafael.
Era a pessoa mais alegre a dar entrada na unidade 371. Rafael já tinha uma
rotina estabelecida, as suas enfermeiras preferidas. Sabia qual das
voluntárias deitava cartas do tarot se lhe pedissem. Desta vez, trouxera um
saco de cassetes VHS para a sala de convívio e um monte de fotografias
para enfeitar as paredes. Para ele, era como regressar a casa, ou pelo menos
fingia ser, e Yale teve a sensação de que, se Rafael não estivesse preso ao
soro, teria saltado da cama para lhe vir dar uma dentada na bochecha.
Nas poucas semanas que estiveram juntos, enquanto Yale ainda conseguia
respirar, tinham conversado todas as noites. Mexericos antigos, mexericos
novos, política, filmes. Quando os antigos funcionários do Out Loud
vinham visitar Rafael, fingiam estar ali também para visitar Yale. Mas
depois, uma manhã, Yale sonhou que estava a nadar no fundo da piscina de
Hull House, a olhar para cima mas sem conseguir vir à superfície – e,
quando acordou, deu por si a respirar aflito num quarto desprovido de ar.
– Vou ter saudades tuas – disse Yale.
Rafael encolheu os ombros e disse:
– Bom, não devo demorar muito a voltar.
Depois de ele sair, Yale sentiu-se cansado, mas nos últimos dias andava
com medo de adormecer. Não tinha medo de morrer durante o sono – nesta
altura, seria uma bênção –, mas sim de voltar a acordar debaixo de água.
Não tinha medo de fechar os olhos ao seu último dia, mas sim de os fechar
ao seu último dia bom. Assim, por enquanto, manteve-os abertos e fez
Fiona continuar a falar. Pediu-lhe para lhe cantar «Moon River» e ela disse:
– Ainda não sei a letra! – mas lá conseguiu cantá-la, com muitos risos
pelo meio.
Depois, Fiona disse:
– O Nico teria adorado isto. A sala de artesanato! Imagina! Suponho que
estou a imaginar uma versão dele que viveria um pouco mais. Quer dizer, se
ele adoecesse agora, e tivesse acesso aos medicamentos bons e tudo.
Naquela altura, as enfermeiras nem sequer lhe tocavam. E aqui estás tu, a
receber massagens.
– Bom, isso era antes de ter tubos por todo o lado. Mas sim, ele teria
gostado.
Ela parecia tão cansada. Tinha o cabelo sem vida e oleoso, o rosto
inchado. Devia estar em casa, a cuidar de si, a descansar antes da chegada
do bebé – e não a dormir numa tarimba desconfortável no quarto dele. A
maioria das pessoas não tinha sequer familiares que fizessem isso por elas.
Perguntou-lhe se estava bem.
– Doem-me as costas, mais nada – disse ela.
– Não precisas de dormir aqui.
– Mas eu quero.
– Fiona – disse ele –, odeio estar a fazer-te passar por tudo isto outra vez.
Preocupa-me o efeito que possa ter em ti.
Ela esfregou os olhos e tentou sorrir debilmente.
– Bom, é verdade que me traz más recordações. E parte-me o coração que
sejas tu. És a minha pessoa preferida. Mas eu sou forte.
– Mas é isso que quero dizer. Estou sempre a pensar nas histórias da Nora
sobre os tipos que ficaram traumatizados, depois da guerra. E isto é como
uma guerra, não é? É como se tivesses passado sete anos nas trincheiras. E
ninguém vai compreender isso. Ninguém te vai dar uma condecoração.
– Achas que estou traumatizada?
– Promete-me que vais cuidar de ti.
– Vou arranjar um psicólogo em Madison. Prometo. – Depois disse: – Há
alguém... alguém que gostavas que tivesse estado aqui e não esteve? Posso
ligar ao teu pai, se quiseres. Se tiveres algum familiar, algum velho amigo...
mesmo que seja desconfortável. Se eu tivesse uma varinha mágica, havia
alguém que quisesses ver?
– Não me apetece muito fazer conversa fiada com os meus primos.
Ela parecia perturbada.
– Se houver alguém no mundo que queiras ver, mesmo que aches que a
pessoa não te quer ver... Há alguém assim?
– Céus, Fiona, estás a fazer-me sentir um pobre coitado sem ninguém. A
menos que a tua varinha mágica possa trazer os mortos de volta à vida, não.
És pior que o capelão.
O capelão estava sempre a perguntar se Yale queria alguma coisa, se
queria conversar.
– Não – dizia sempre Yale, pelo menos quando tinha fôlego para falar –, e
sou judeu.
Uma vez, Yale vira-o a preparar-se antes de entrar no quarto, a compor
uma expressão o mais triste e piedosa que conseguia, a baixar os olhos para
a Bíblia que tinha nas mãos. Pouco tempo depois, viu o Dr. Cheng fazer
exatamente o oposto. Yale estava no corredor, à espera de que o viessem
buscar para fazer uma broncoscopia; o Dr. Cheng parou à porta de um
doente, a ler o processo dele, com ar abatido. Yale nunca o vira com essa
expressão. Ocorreu-lhe, pela primeira vez, que o Dr. Cheng era mais ou
menos da mesma idade que ele. E depois viu-o baixar os papéis, endireitar
as costas, respirar fundo, tão alto que Yale o ouviu a vários metros, e
transformar-se no Dr. Cheng que ele conhecia. Só depois bateu à porta.
Fiona desistiu das perguntas e aproximou a cadeira da cama, para poder
acariciar a pele entre as sobrancelhas de Yale. Ele já não suportava que lhe
tocassem em mais lado nenhum, mas naquele sítio ainda lhe sabia bem.
Yale fechou os olhos e disse:
– Quando eu era pequeno, costumava fechar os olhos no carro, quando
estávamos a dez minutos de casa. E depois tentava sentir, sentir aquela
última curva que era a entrada para o nosso caminho. Tentava não contar as
curvas, apenas sentir quando estava em casa. E geralmente conseguia.
– Eu fazia exatamente o mesmo – disse Fiona.
– E quando não conseguia respirar, fiz o mesmo mas com... sabes, com o
fim. E sei que vou fazê-lo outra vez. Vou estar aqui deitado, de olhos
fechados, a pensar: Pronto, é agora. Deve ser agora. Só que não é.
– Às vezes no carro também acontecia isso – disse Fiona. – Contigo não?
Parecia que tínhamos chegado e, quando abria os olhos, era só um semáforo
vermelho.
– Sim. É isso mesmo.
Ficou contente por ela não o acusar de estar a ser mórbido.
– Aquele brilho do semáforo vermelho – disse ela. – Lembras-te de como
era mágico o brilho da luz vermelha à noite? Quando éramos pequenos? Só
o facto de estarmos na rua depois de escurecer...
Ele lembrava-se.
Pensou que ia chorar, que o seu corpo seria sacudido por soluços secos,
mas Fiona parou de lhe acariciar a testa e, quando abriu os olhos, viu que
ela já estava a chorar e isso fez com que se contivesse.
– Eu estou bem – disse-lhe. – Não faz mal.
Mas ela estava a abanar rapidamente a cabeça e, quando se virou, Yale
viu a mão dela a apertar com força o varão da cama. Fiona estava pálida,
apesar de ter as faces coradas.
– Fiona, o que foi?
– Doem-me as costas.
– As costas?
– Acho que...
– Tem calma, tem calma.
Fiona inspirou uma golfada de ar, como se tivesse contido a respiração, e
talvez tivesse.
– O problema é que estou a sentir uns espasmos mais ou menos de dois
em dois minutos. Mas é nas costas.
– Parece que são contrações, Fi.
– Provavelmente são aquelas falsas, as Brixton não sei quê. Mas se calhar
devia... não, não faças isso! – Yale pressionara o botão de chamada. –
Porque é que fizeste isso?
– Se calhar é melhor não teres o teu bebé na enfermaria da sida.
– Não vou ter... ainda faltam quatro semanas.
– E eu só devia morrer aos oitenta.
Debbie já estava à porta.
– Desta vez não é por minha causa – disse Yale.
– Eu estou bem – garantiu Fiona.
– Não parece nada bem – respondeu Debbie.
– Vocês têm... há uma maternidade neste hospital, não há? Ou tenho de
entrar pelas Urgências?
– Oh! Bom, sim, é um serviço que prestamos. Todas as necessidades
cobertas no mesmo estabelecimento. Vamos lá buscar uma cadeira de
rodas.
– Nem sequer são muito más, as dores – disse Fiona. – Quer dizer, a
julgar pelo que se vê nos filmes, as mulheres a gritarem a plenos pulmões...
não são assim tão fortes. Só que são muito juntas.
– Vamos fazer o seguinte – disse Debbie. – Vou ligar para a maternidade,
vou arranjar alguém para a levar lá acima, não é preciso ir às Urgências, e o
Yale vai ficar aqui muito sossegado e eu fico com ele a noite toda. E a Fiona
pode voltar depois, mais magrinha ou com mais uns gramas. Combinado?
E Fiona, que parecia estar outra vez a suster a respiração, apertou a mão
de Yale e fez que sim com a cabeça.
– Mas eles... pode manter-me informada? Se vou ficar algum tempo lá em
cima, quero saber o que está a acontecer. Continuo a ter o poder de decisão,
certo? Mesmo que esteja lá em cima?
– Podemos ligar-lhe – disse Debbie –, e não imagina a rapidez com que
estes auxiliares correm.
Já estava a chamar alguém no corredor e a pegar no telefone de Yale para
ligar para o Bloco de Partos.
De manhã, estava tudo muito pior. Debbie saíra e fora substituída por
Bernard. Bernard mudou-lhe o saco do cateter e Yale tentou perguntar por
Fiona, mas só conseguiu dizer o nome dela.
– Ela tem ligado para o balcão de enfermagem de dez em dez minutos,
não estou a exagerar – disse Bernard. – Para saber se você já acordou.
Ainda não há bebé.
O Dr. Cheng veio vê-lo e disse:
– Está a ganhar peso, o que, para variar, não é muito bom. Há uma
acumulação de fluidos no seu abdómen. O que significa que os rins e o
fígado não estão a trabalhar bem.
Yale sentia os dedos das mãos dormentes, devido ao baixo nível de
oxigénio no sangue e não tinha a certeza de conseguir sentir os dedos dos
pés. O seu coração parecia escalar uma montanha a cada batimento.
Quando andava na escola primária, a professora Henry fora hospitalizada
com pneumonia e o substituto, um homem que praticamente não fazia
senão contar-lhes histórias sobre o tempo que passara no Corpo de Paz,
tentara explicar-lhes a doença dela.
– Respirem fundo, o mais fundo que conseguirem – dissera –, e não
soltem o ar.
Eles assim fizeram e depois ele disse:
– Agora respirem outra vez e não soltem também esse ar.
Eles tentaram. Alguns dos miúdos desistiram logo e soltaram o ar todo
ruidosamente, perdidos de riso, mas Yale, que fazia sempre o que lhe
mandavam, conseguiu continuar.
– Agora respirem uma terceira vez, em cima das outras duas. É essa a
sensação de ter pneumonia.
No meio disto tudo, reconfortava-o de certa forma saber que tinha sido
avisado tão cedo. Que, sentado naquela sala de aula, com o seu corpo de
criança forte e saudável, sentira, por um segundo dos seus sete anos de vida,
como as coisas iam acabar.
O Dr. Cheng disse:
– Fale apenas com acenos de cabeça, está bem? Se eu não o conseguir
compreender, falamos com a Fiona. Quero saber se tenho a sua autorização
para parar com a pentamina e a anfoterrível. Isso significa o início oficial
dos cuidados paliativos. E quero dar-lhe morfina.
Era uma das coisas que Yale mais apreciava no Dr. Cheng, que ele
dissesse anfoterrível com aquela cara séria.
Yale recorreu a toda a sua energia para ser o mais claro possível, quando
acenou afirmativamente com a cabeça.
Acordou ao fim de algum tempo, não sabia quanto, e viu um jovem muito
alto ao lado da cama. Não conseguia focar os olhos, pelo que o rosto era
apenas uma mancha indistinta. A morfina era um manto quente e
entorpecedor em cima dele, dentro dele.
– Olá, sou o Kurt – disse o homem. – O filho da Cecily.
Yale tentou inspirar para dizer alguma coisa, mas tossiu muito mais ar do
que aquele que inalara e cada tossidela era um soco amortecido pela
morfina contra as suas costelas.
Debbie estava ali. Devia ser outra vez noite. Agora que pensava nisso, já
sabia há algum tempo que era Debbie que estava com ele. Sentira-a ao lado
da cama, já há um bom bocado. Ela sabia qual era o sítio entre os olhos
onde podia tocar-lhe.
– Desculpe – disse Kurt. – Não é preciso falar. A minha mãe pediu-me
para o vir ver e... – Yale percebeu que Kurt estava a olhar para Debbie, a
pedir-lhe autorização. – Trouxe o Roscoe.
Uma mancha cinzenta. Sempre que ia jantar a casa de Cecily, Roscoe
saltava para o colo dele e aninhava-se, como se soubesse exatamente quem
era Yale.
– A minha mãe volta da Califórnia na sexta-feira – disse Kurt. Yale não
fazia ideia de quanto tempo faltava para sexta-feira.
Kurt aproximou-se da cama mas não pousou Roscoe em cima dela.
Certamente não estaria preparado para a quantidade de tubos, de máquinas.
Talvez tivesse imaginado que encontraria Yale recostado nas almofadas, a
ler um livro.
– Tenho a certeza que ele gostou de o ver – disse Debbie. – Deixe-me
aproximá-lo por um bocadinho.
Pegou em Roscoe, que não colocou objeções, levantou a mão de Yale e
pousou-a sobre o pelo denso. Yale sabia, enquanto tentava mexer os dedos o
melhor que conseguia, que esta era a última vez que tocaria no pelo de um
animal, a última vez, na verdade, que tocaria fosse no que fosse além da sua
cama e das mãos das outras pessoas.
– Tenho de ir andando – disse Kurt.
Pobre rapaz. Yale queria dizer-lhe que podia ir, que não levaria a mal se
ele fugisse a sete pés.
Depois de ele sair, Yale conseguiu produzir um F quase inaudível com os
lábios e Debbie compreendeu.
– Está em trabalho de parto – disse. – Vai ter um lindo bebé cheio de
saúde. Assim que tivermos a notícia, venho avisá-lo.
Sabia que estava a sonhar, mas era como um sonho que nunca teria fim.
Fiona, sozinha na rua. Só que às vezes ele era Fiona, a olhar para o
carrinho de bebé que ela empurrava, um carrinho que primeiro estava vazio
e depois tinha gémeos e depois estava vazio outra vez. Passado algum
tempo, o carrinho desapareceu. E às vezes estava a olhar para Fiona, a
segui-la, ou por cima dela, a esticar a mão para lhe tocar no cabelo.
Fiona sozinha na Broadway Avenue, a caminhar em direção a norte. Uma
noite quente e abafada de verão, as janelas iluminadas à volta dela, mas as
ruas vazias. As janelas estavam vazias, os parques de estacionamento
também. Broadway Avenue na esquina com a Roscoe Street. Broadway e
Aldine. Broadway e Melrose. Broadway e Belmont.
Aviões cruzavam os céus e, muito ao longe, ouvia-se o trânsito, mas aqui
não havia ninguém. Fiona a abrir caminho entre bolsas de ar frio. Sentiu o
vento no pescoço e disse:
– Estão a respirar para cima de mim. Estão à minha volta. – Apanhou um
vislumbre de um rapaz adolescente sentado numa paragem de autocarro, a
escrever num diário com uma caneta de tinta permanente azul. Virou-se e
ele tinha desaparecido e disse: – Oh, ele era mais um...
E Yale – porque agora estava ali, atrás dela – tentou dizer-lhe que não,
que estava enganada, que esse rapaz tinha morrido nos anos sessenta, tinha
morrido no Vietname, e que também aqui havia outros fantasmas mais
velhos. Mas não conseguia emitir qualquer som, porque não estava
realmente lá.
Fiona estava agora em School Street, uma rua que Yale na realidade não
conhecia mas de cujo nome sempre gostara. Ruas com as suas histórias:
sempre tivera um certo fascínio por elas. Ainda havia alguma escola em
School Street? Bom, claro que sim. Ali estava, abandonada e coberta de
musgo. Estendia-se ao longo de quarteirões e quarteirões, e Fiona olhou
para o carrinho, para o bebé Nico. Porque sim, era Nico, ela dera à luz o
irmão e agora ele tinha apenas de começar tudo de novo. Estava enrolado
no seu próprio cachecol cor de laranja. Tinha uma coroa de clipes de papel.
Fiona disse:
– Ele ainda não tem idade para ir à escola.
E depois disse:
– Tem de esperar até ao ano 2000.
Mas não estava quase? Tinham regressado à Broadway Avenue e o ano
2000 estava muito perto. Era por isso que ia acabar tudo. A noite de Ano
Novo era o fim do prazo. O último homem gay morreria nesse dia.
E o bebé Nico?
– Passamos com ele às escondidas – disse Fiona, para ninguém. – Como
o bebé Moisés. Mas terá de jogar basebol.
Broadway Avenue e Briar Street. Broadway Avenue e Gladys Avenue.
Pobre Gladys, perdido na parte errada da cidade. Uma estátua do presidente
Gladys.
Fiona arrancou os folhetos colados nos postes e enfiou-os no carrinho
vazio. Era o trabalho dela, limpar as ruas. Arrancou cartazes de montras,
letreiros de lojas, ementas da entrada de restaurantes. Entrou num bar vazio
e cheirou os copos de cerveja meio vazios em cima do balcão.
E, embora Fiona continuasse sozinha, Yale já conseguia falar com ela e
disse:
– O que é que eles vão fazer com isto tudo?
Quando Fiona olhou para ele, Yale viu que a verdadeira resposta era que
ela viveria aqui para sempre, sozinha, que passaria a eternidade a limpar as
ruas. Mas disse:
– Vão transformar tudo num jardim zoológico – e Yale soube que isso
também era verdade.
Ela sentou-se no meio da estrada deserta, porque nunca mais haveria
carros a passar por aqui, e disse:
– Que animal há de ficar com o teu apartamento? Podemos escolher.
E porque ele se sentia agora muito quente, tão quente, como se tivesse
sido enrolado em mil cobertores, e porque o calor estava a invadir-lhe os
pulmões apesar de algo dentro de si estar frio, a transformar-se em gelo, na
verdade, Yale escolheu os ursos-polares.
2015
oram recebidos à entrada da Galerie de Photographies por um homem
F com uma bandeja de copos de champanhe. Fiona pegou num como quem
arranca uma pétala de flor, mas Julian recusou. Sorriu a Fiona.
– Vinte e quatro anos e oito meses de sobriedade.
Tinham chegado cedo; havia apenas duas dúzias de pessoas e metade
delas carregavam câmaras e equipamento de iluminação e fotografavam
avidamente os primeiros convidados.
Serge posicionara-se perto da entrada e Fiona cumprimentou-o com dois
beijos, mas não viu Richard.
Susteve a respiração e seguiu Julian, depois de se certificar de que Claire
ainda se encontrava atrás dela. Claire, contudo, dirigiu-se imediatamente à
parede, à fotografia gigante de uma boca que fora tão falada. Era uma boca
de homem, com os pontinhos da barba por fazer debaixo do lábio inferior.
A preto e branco, os lábios ligeiramente entreabertos. Devia ser vulgar, uma
coisa que se poderia ver numa exposição de fotografia de escola secundária,
mas era uma das coisas mais cativantes e estranhamente sexuais que Fiona
alguma vez vira. Havia uma sensação de movimento, como se a boca
estivesse prestes a abrir-se mais, a dizer alguma coisa. Como era possível
saber que estava a abrir-se e não a fechar-se?
Há anos que não pensava nisso, mas então lembrou-se, de súbito e com
grande pormenor, da inauguração da exposição de Nora na Galeria Brigg, a
primeira inauguração a sério onde estivera. Costumava lembrar-se mais das
ocasiões em que levara Claire a ver a instalação permanente no, por essa
altura, já enorme Museu Brigg de fama mundial. Falava-lhe sobre Soutine e
Foujita; mostrava-lhe o trabalho de Ranko Novak e dizia:
– Ela amou-o a vida inteira. Tanto tempo.
E pensava que talvez só fosse possível amar alguém tanto tempo se a
pessoa já cá não estivesse. Seria possível amar tantos anos uma pessoa viva,
com os seus defeitos? Falava a Claire sobre Yale e como ele conseguira as
peças, criando a exposição, mantendo o trabalho de Ranko na coleção, e
dizia:
– É daí que vem o teu segundo nome! O Yale estava no andar de baixo
quando tu nasceste, a ajudar-te a vir ao mundo com o pensamento! E
quando chegaste, do Céu, deixaste a porta aberta para ele poder sair.
Não lhe parecera uma coisa horrível de dizer, mas percebia agora que
sim, que era possível que uma criança tivesse compreendido mal, ouvido o
sentimento de culpa na voz de Fiona e assumido esse fardo. O que lhe
passara pela cabeça para fazer essas conversas? Talvez não estivesse a
pensar em Claire, de todo; talvez fosse um conto de fadas que precisava de
contar a si própria.
Fiona viu Corinne e Fernand no centro da sala, rodeados de fotógrafos.
Claire ainda estava a olhar para a boca e Fiona decidiu dar-lhe espaço.
Estava cada vez mais certa de que Claire não ia fugir da galeria.
Este trabalho era muito mais pós-modernista, muito mais multimédia –
Fiona gostava de ter o vocabulário para o descrever – do que tudo o que já
vira de Richard. Uma grande fotografia mostrava uma polaroide em cima
de um monte de papéis. A polaroide, por sua vez, era de um homem sentado
numa cadeira, com o rosto escondido nas mãos. Parecia ter sido tirada nos
anos oitenta, ou princípio dos anos noventa – talvez por causa da t-shirt
branca, dos mocassins – mas Fiona não o reconheceu. Ao lado estava a
fotografia da fachada de um edifício, com um X vermelho pintado sobre
três das janelas. Segundo a informação ao lado, Richard tirara a fotografia
em 1982, mas só acrescentara os X este ano. Percebeu que o nome da
exposição, Strata, tinha a ver com esta justaposição do antigo e do novo.
Encontrou a série Julian atualizada – com o Julian de 2015 a sorrir
maliciosamente. Mas não havia rosto nenhum numa fotografia de Richard
Campo que mostrasse apenas uma emoção. Julian parecia também
embaraçado e, ao mesmo tempo, triunfante.
Quase colidiu com Jake Austen.
– Aqui está a minha miúda! – disse ele.
Ela deu-lhe uma palmadinha no peito.
– Não sou a tua miúda, Jake. Mas é bom ver-te.
E era, na verdade. Nos últimos dez minutos, apoderara-se de si a sensação
de não saber em que ano estava – o ano da exposição de Nora, o ano do
desaparecimento de Julian, o ano em que levara Claire à Brigg pela
primeira vez, o ano do nascimento de Claire – e aqui estava um lembrete
em carne e osso de que era 2015.
– Olha! – disse ele. – Do filme. – Apontou para o outro lado da galeria,
onde estava aquele ator a que alguém na rua chamara Dermott McDermott.
Mas ninguém olhava para ele; estavam todos a olhar para Richard, que
acabara de entrar. Calças cinzentas, uma camisa cor de coral desabotoada
no pescoço, as faces a reluzir com a atenção. O seu amigo famoso. A vida
era tão bizarra.
Quando Fiona contornou a parede, Jake estava a brindar com uns jovens
britânicos e espalhafatosos e Julian já dera a volta à exposição e aproximou-
se dela.
– Está tudo bem com a tua filha? – perguntou.
– Sabe Deus.
– Vai correr tudo bem. Tenho a certeza. Tenho um sexto sentido para estas
coisas. E, meu Deus, ela é igualzinha a ti.
Fiona riu-se.
– Não é nada parecida comigo. O problema é esse.
– Estás a brincar? Não te lembras de ti própria? Eras a coisinha mais
teimosa... eras praticamente uma fera! Lembras-te quando disseste aos teus
pais que te enfiavas no caixão, se eles não nos deixassem ir todos ao velório
do Nico?
– Não houve caixão. Disse-lhes que me levantaria e diria a toda a gente.
– Sim, mas percebes o que quero dizer.
– Era a única forma de poder sobreviver.
Julian sorriu.
– E não é nada mau ser assim. Ouve, vais mesmo mudar-te para Paris?
– Estou a pensar seriamente nisso, sim. Durante algum tempo. Nem
acredito que estou a dizer isto, mas sim.
– Bom, estou orgulhoso de ti. Ouve, já viste?
– O quê?
– Bom, duas coisas, na verdade. Três coisas! Já me viste a mim? Achas
que fiquei bem?
– Ficaste fabuloso, Julian.
– Obrigado. Mais duas coisas. Isto. – Pegou-lhe nos ombros e virou-a
para uma caixa de luz do tamanho de uma janela panorâmica, montada na
parede e completamente coberta por provas de contacto a preto e branco.
Algumas tiras de fotografias estavam na horizontal, outras na vertical.
Algumas cruzavam-se. A peça chamava-se 1983. De ambos os lados,
estavam penduradas lupas grandes – e ainda bem, porque Fiona não queria
ter de tirar os óculos de leitura da mala.
Começou arbitrariamente pelo canto superior esquerdo. Fotografias de
uma festa qualquer, com demasiados homens em cada uma para conseguir
identificar alguém. Uma tira com fotos de um rosto que lhe pareceu ser
Katsu Tatami. Quatro seguidas do que parecia ser o desfile do Orgulho Gay
desse ano, com homens a agitarem bandeiras. Ali estava aquele tipo muito
alto que vendia cigarros avulso em Halsted Street. Ali estava Teddy Naples.
Eles beijavam-se e dançavam e relaxavam em sofás e usavam roupas
ridículas e faziam panquecas e apanhavam banhos de sol.
Esperava ver Nico, mas não o viu.
Julian disse:
– Olha.
Ali estava ela, com um braço à volta de Terrence. Num restaurante, ao
que parecia. Não se lembrava de ter sido tão bonita, tão alegre. Claire era
apenas um óvulo num ovário, mais uma coisa que Fiona ainda não
arruinara. À esquerda da fotografia estava Yale, de boca aberta, a falar com
alguém fora do enquadramento. Um espelho atrás de todos eles, no qual se
via uma sala cheia de mesas, com pessoas a comer, e o próprio Richard,
com o flash da câmara no lugar da cabeça.
Quis trepar para dentro da fotografia e dizer: «Fiquem onde estão.»
Não fora isso que a câmara fizera, pelo menos? Congelara-os para
sempre.
Fiquem aí, pensou. Fiquem aí.
Julian deu-lhe um minuto e depois disse:
– Estava a pensar no Hamlet. Sabes que entrei na peça três vezes e nunca
fui o Hamlet? Na verdade, estava a pensar no Horácio. Também nunca fiz o
papel dele.
Nesse momento, Fiona encheu-se de um amor ridículo e irracional por
Julian, por o que quer que ele ia dizer, porque conseguia sentir Nico ao lado
dela, e Yale e Terrence e os outros todos, a revirarem os olhos por Julian
estar, mais uma vez, a colocar-se no centro do momento, a mencionar o seu
teatro, que era uma coisa tão típica de Julian, e todos gostavam dele na
mesma e ela também ainda gostava dele.
– Toda a peça é sobre o Hamlet a tentar vingar a morte do pai – continuou
ele –, a tentar dizer a verdade, certo? E, quando morre, passa essa
responsabilidade ao Horácio. Respira cansado mais um pouco neste mundo
tão duro, para a todos contares minha história. Vês? Eu teria sido um
Hamlet fantástico. Mas que fardo para o Horácio. Ser aquele que tem de
carregar a memória. E o que se espera que faça com ela? Que raio é que o
Horácio faz no Sexto Ato?
Fiona encostou a testa à de Julian. Ficaram assim um instante, testa com
testa, nariz com nariz. O calor da pele dele penetrou-lhe na pele e aqueceu-a
até aos pés.
Ainda tinha a lupa apertada na mão. Queria chamar Claire, mostrar-lhe
estas fotografias, dizer-lhe o que Julian acabara de dizer, tentar explicar-lhe,
ou tentar começar a explicar-lhe, como fora a sua vida. Como esta
exposição podia começar a transmitir tudo isso, o palimpsesto que era o seu
coração, a forma como se podia escrever por cima das coisas mas nunca
apagá-las. Ela nunca poderia ser uma folha em branco.
Mas faria isso daqui a pouco. Claire ainda ali estava e não se ia embora, e
Julian estava a puxá-la pela galeria. A lupa caiu-lhe da mão e ficou a
baloiçar na sua corrente fina.
– Esta é a terceira coisa – disse ele.
As instalações de vídeo. Dois ecrãs mesmo ao fundo da galeria, afastados
um do outro. Julian parou com ela em frente do da esquerda.
– O outro é só espetáculos de drag. Este é que queres ver. – Mostrava
uma multidão num passeio, imóvel. – O Bistro – disse Julian. – Lembras-te
do Bistro, ou eras demasiado nova?
– A discoteca, não era? Lembro-me de toda a gente falar dela como se
fosse a Atlântida perdida.
– Bom, sim. É que era um sítio tão alegre. Havia outros sítios, claro, mas
não sei se alguma vez voltámos a ser tão felizes. Isto foi no dia em que a
demoliram.
Ela aproximou-se um pouco. O filme tinha som, mas era preciso estar
mesmo em frente à coluna para o ouvir.
Um homem na multidão a dizer:
– Era o maior sítio, o melhor sítio.
Outro homem:
– Era o nosso Studio 54. Não, esperem. Era a nossa Lua. Era a nossa
Lua!
Outro:
– Ninguém lhe vai falar da Mulher de Barba? Alguém que explique quem
era a Mulher de Barba.
E ali, santo Deus, estavam Yale Tishman e Charlie Keene. Charlie com o
blusão de aviador aberto, coberto de crachás. Yale com uma camisa, sempre
muito aprumado. Tão novos, tão impossivelmente novos. Quem é que
alguma vez fora tão jovem? A moverem-se facilmente, com os membros
soltos, os rostos cheios. E ali, mesmo atrás deles, estava Nico. O cabelo
revolto pelo vento. Fiona susteve a respiração.
Yale estava a dizer:
– Estou sempre à espera de descobrir que é uma partida.
Charlie, para a câmara:
– Foi aqui que eu o trouxe quando ele chegou à cidade.
Yale:
– Nem queria acreditar que podia existir um sítio destes.
Charlie:
– Querem saber o estado desta cidade, querem saber quem é que controla
a câmara? Olhem para isto. Acham que isto não é político? Acham que isto
é um acaso?
Yale:
– Tinham uns canhões de brilhantes e... uma vez, os canhões dispararam
estrelas de espuma. Nem imagino como é que fizeram isso.
Nico:
– Ainda estou de ressaca da festa de encerramento, e já foi há quatro
dias.
A voz de Nico.
Percorreu o pescoço e os braços de Fiona.
O edifício, pequeno e indefeso.
Uma voz fora da imagem:
– São os chefes da máfia que estão a acabar com este lugar.
Outra:
– Bom, não sabemos.
Charlie:
– Vão construir a merda de um parque de estacionamento.
Yale:
– Olha.
Mas não aconteceu nada. Uma imagem do edifício, no mesmo sítio.
Estático.
Nico:
– Agora. Olha.
A bola de demolição a descer, a colidir. Não a destruição que seria de
esperar, como um arranha-céus a cair. Apenas uma nuvem de poeira a
obscurecer a imagem e, quando esta assentou, um buraco.
Depois outro.
Alguém gritou «uh-uh!», como que por obrigação.
Um minuto arrastado e incómodo da bola de demolição a trabalhar e das
reações nos rostos. O rosto de Yale. O rosto de Charlie.
Fiona sentiu Julian pegar-lhe na mão. Esquecera-se onde estava,
esquecera a galeria e o museu e toda a cidade de Paris.
O filme avançou; era algum tempo depois.
O edifício destruído. Tudo derrubado, a poeira a assentar. As pessoas a
afastarem-se.
O som do vento.
A voz de Charlie:
– Espero bem que seja um parque de estacionamento do caraças.
Yale:
– Oh, meu Deus, olha.
Yale de joelhos, com as mãos na sarjeta.
Yale rodeado pelos outros, a mostrar-lhes alguma coisa.
Yale a mostrar à câmara: um punhado de poeira.
– Tem brilhantes! – exclamou.
Um homem que Fiona não conhecia espreitou por cima do ombro de
Yale.
– Isso não são brilhantes. Onde?
Parecia apenas poeira. Yale virou-se e espalhou-a na camisa de Charlie.
Yale e Charlie e Nico a rirem histericamente. Charlie a sacudir a poeira, a
espalhá-la no passeio. Nico a esfregá-la na manga do casaco de Charlie.
Um homem a espalhá-la na cara, uma mulher a dizer:
– Tenho a certeza de que isso é amianto.
Charlie ainda a rir:
– Vamos levá-lo para casa connosco!
Uma imagem da sarjeta cheia de poeira. Viam-se de facto uns pontinhos
brilhantes, mas podiam ser fragmentos de fibra de vidro. Com certeza que
eram. Mas Fiona tentou acreditar que era mais do que isso.
A voz de Nico mais uma vez, de fora da imagem:
– Estou pronto para o meu grande plano, senhor Campo!
A sarjeta e um longo silêncio.
Fiona esperava que o filme acabasse aí, mas, enquanto os risos se
desvaneciam, a câmara demorou-se num homem a prender o cabelo
comprido e escuro num rabo-de-cavalo. Numa mãe a passar pelos últimos
resistentes, com o filho pequeno pela mão. Em Yale e Charlie a descerem
do passeio, tão obviamente um casal – a centímetros um do outro, mas sem
se tocarem. À volta deles, um silêncio tão grande como a cidade.
Depois, o filme regressou ao princípio e recomeçou. Ali estavam todos, o
Bistro ainda de pé. Rapazes de mãos nos bolsos, à espera que tudo
começasse.
NOTA DA AUTORA E AGRADECIMENTOS
Embora estas personagens e as suas vidas sejam fictícias, mantive-me tão
fiel quanto possível a locais e acontecimentos públicos, tomando algumas
liberdades apenas quando necessário. Algumas dessas liberdades: para
evitar escrever sobre pessoas reais, reimaginei a imprensa gay de Chicago;
nenhuma das publicações aqui mencionadas existiu mesmo. Embora a
Galeria Brigg, fictícia, partilhe algumas características com o Museu Block
da Universidade de Northwestern, não é o mesmo sítio. A Wilde Rumpus
não foi uma companhia de teatro verdadeira, mas havia realmente
companhias gays, como a Lionheart, a funcionar noutros teatros. Alguns
dos acontecimentos descritos na marcha de 1990 contra a AMA foram
comprimidos. E, embora o restaurante Ann Sather tenha sido uma fonte
constante de apoio para a comunidade gay de Chicago, palco de muitos
eventos de angariação de fundos, não houve, tanto quanto sei, uma
angariação de fundos para a Howard Brown em dezembro de 1985.
Sentir-me-ia mal, se não dissesse que o novo recinto dos pinguins no
Jardim Zoológico de Lincoln Park é espetacular e os pinguins parecem
felizes; hoje em dia, não há sujidade e não é nada deprimente.
Não existe tanta coisa em forma de livro ou filme sobre a crise da sida em
Chicago como eu esperava, quando comecei este projeto. Felizmente, posso
recomendar algumas fontes excelentes a quem quiser saber mais. MK
Czerwiec escreveu um romance gráfico maravilhoso, Taking Turns, sobre o
período em que foi enfermeira na Unidade 371 da sida no Hospital
Masonic. Foi também amiga deste livro e a sua leitura foi valiosa. O
documentário Short Fuse, sobre a vida do fundador da organização ACT
UP Chicago, Daniel Sotomayor, é difícil de encontrar, mas vale sem dúvida
a pena vê-lo. Dois escritores, Tracy Baim e Owen Keehnen, tiveram um
papel crucial no registo da História gay de Chicago. Achei o seu trabalho
jornalístico e os seus livros muito úteis, e estou grata a ambos por me terem
concedido o seu tempo. Owen também foi brilhante como um dos primeiros
leitores do livro; se estiverem na cidade, façam-lhe uma visita na
Unabridged Bookstore.
Os arquivos online e as histórias orais disponíveis através do Windy City
Times – arquivos pelos quais Tracy Baim é maioritariamente responsável –
são um tesouro. O Windy City Times começou a ser publicado em 1985 e
estou grata à Biblioteca Harold Washington, por conservar essas primeiras
edições. (Por falar em Harold Washington, um pormenor relacionado: as
palavras que ele diz neste livro, no desfile do Orgulho Gay de 1986, são
realmente suas.) A Biblioteca Gerber/Hart é um recurso maravilhoso para
assuntos e história LGBTQ e forneceu-me materiais e ajuda essenciais.
Existem vídeos disponíveis no YouTube da marcha de abril de 1990 contra
a AMA, e recomendo vivamente que os vejam. O melhor relato escrito que
encontrei da manifestação é «The Angriest Queer», de 16 de agosto de
1990, no Chicago Reader. A série Marginal Waters do fotógrafo Doug
Ischar documenta maravilhosamente a vida gay em Belmont Rocks nos
anos oitenta; embora eu imagine o trabalho fictício de Richard Campo
como muito diferente do de Ischar, estou-lhe muito grata, a ele e aos outros
fotógrafos, tanto artísticos como jornalísticos, que fizeram com que a época
ganhasse vida para mim.
Este projeto envolveu muita reflexão, conversas e preocupação sobre a
linha divisória entre apoio e apropriação – uma linha que pode ser diferente
para leitores diferentes. A minha esperança é que este livro leve os mais
curiosos a lerem relatos diretos e pessoais da crise da sida – e que os
pormenores onde eu possa ter errado inspirem as pessoas a contar as suas
próprias histórias.
Agradecimentos ao mundo literário: Kathryn Court e Victoria Savanh;
Nicole Aragi, Duvall Osteen e Grace Dietshe; Eric Wechter; Francesca
Drago. Três intrépidos estagiários de verão que me chegaram por cortesia
da Universidade DePaul: Felipe Cabrera, Megan Sanks e Natasha Khatami.
Gina Frangello, Thea Goodman, Dika Lam, Emily Grey Tedrowe, Zoe
Zolbrod e Jon Freeman foram essenciais como primeiros leitores. Partes
deste livro foram investigadas e escritas em residências em Yaddo, Ucross e
Ragdale. Este livro, como tantos outros, não teria sido possível sem o apoio
da National Endowment for the Arts.
Um grande agradecimento a Maureen O’Brien, Patty Gerstenblith, Adair
McGregor e Cassie Ritter Hunt, pela sua ajuda nos temas de arte, heranças e
galerias universitárias; e a Paul Weil, Steve Kleinedler, Todd Summar, J.
Andrew Goodman, Michael Anson, Amanda Roach, Amy Norton, Charles
Finch e Edward Hamlin, por conversas e apresentações demasiado variadas
para as conseguir enumerar.
Lydia e Heidi, obrigada por serem tão boas a entreter-se sozinhas,
enquanto eu escrevia e fazia revisões.
Acima de tudo, o meu eterno agradecimento pelo seu tempo, paciência e
encorajamento a todos os que viveram estes acontecimentos e que se
sentaram a beber café comigo, ou me receberam nas suas casas, ou me
enviaram e-mails sem fim, em muitos casos sobre coisas pessoais e
traumatizantes. Além dos escritores já mencionados, obrigada a Peggy
Shinner; a TB; a Justin Hayford, do Legal Council for Health Justice (um
recurso incansável e um primeiro leitor maravilhoso); ao Dr. David Moore,
ao Dr. David Blart e a Russell Leander, que fizeram da Unidade 371 um
sítio maravilhoso; a Bill McMillan, que esteve em cima daquele parapeito
com a faixa; à inimitável e indómita Lori Cannon; e às memórias dos
homens espantosos que todos vocês me transmitiram. Fiz o meu melhor.
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