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Um dos seus
livros mais aclamados foi Razões para Viver, editado pela Porto Editora, um relato
introspetivo sobre a sua experiência com a depressão e de como tirar o máximo
partido da vida enquanto cá estamos. Vendeu mais de um milhão de livros no
Reino Unido e o seu trabalho está traduzido em mais de 40 línguas.
O mundo à beira de um ataque de nervos
Matt Haig
Título original:
Notes On A Nervous Planet
Copyright © Matt Haig, 2018
Published by arrangement with Canongate Books, Ldt, 14 High Street,
Edinburgh EH1 1TE
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67787-7
Para a Andrea
Toto, acho que já não estamos no Kansas!
Dorothy em O Feiticeiro de Oz
1.
INSTAGRAM: PIOR APLICAÇÃO DAS REDES SOCIAIS PARA A SAÚDE MENTAL DOS
JOVENS (CNN)
* Suicídio. Apesar de ter passado por uma fase suicida, durante a qual
quase me atirei de um penhasco quando era mais novo, a minha
obsessão com o suicídio, nestes últimos tempos, tornou-se mais uma
espécie de medo de que tal venha a acontecer, em vez de uma vontade
de me suicidar.
* Outras preocupações com a saúde. Tais como: paragem cardíaca
súbita e fatal devido a um ataque de pânico (uma hipótese
perfeitamente absurda); uma depressão tão aniquilante que me deixaria
prostrado, incapaz de me voltar a mexer, a minha face numa expressão
rígida como se tivesse acabado de ver a cabeça da Medusa; cancro;
doenças cardiovasculares (tenho colesterol alto, por razões de
hereditariedade); morrer demasiado jovem; morrer demasiado velho; a
morte, em geral.
4. Esta lista apenas tem quatro pontos. É só para confundir os robôs. Mas
cheguei a pedir a alguns amigos virtuais que me dissessem algumas
razões para preferirmos os seres humanos aos robôs. Obtive respostas
muito variadas: “A capacidade de nos rirmos de nós próprios”;
“amor”; “orgasmos e pele macia”; “capacidade de nos
maravilharmos”; “empatia”. Talvez um robô consiga, um dia,
desenvolver estas coisas. Contudo, por enquanto, estas são boas razões
para nos relembrarmos de que os seres humanos são muito especiais.
Onde termina a ansiedade e começam as notícias?
Todo este catastrofismo é irracional, mas isso não lhe tira o poder sobre
as nossas emoções. E não são apenas as pessoas com ansiedade que o
sabem.
Os publicitários sabem-no.
Os agentes de seguros sabem-no.
Os políticos sabem-no.
Os editores de jornais sabem-no.
Os agitadores políticos sabem-no.
Os terroristas sabem-no.
O sexo vende? Nem tanto. O medo é que vende.
E agora já nem precisamos de imaginar como serão as piores
catástrofes. Podemos, literalmente, vê-las. As câmaras dos telemóveis
transformaram-nos a todos em jornalistas televisivos. Quando acontece algo
de terrível – um tsunami, um incêndio florestal, um ataque terrorista –, está
lá sempre alguém a filmar.
Não faltam imagens para alimentar os nossos piores pesadelos. Já não
ficamos informados, como antigamente, pelos jornais ou noticiários de
referência. Vamos buscar informação aos sites de notícias e às redes sociais
e às listas de e-mails. Além disso, os canais noticiosos também já não são o
que eram. Há sempre uma notícia de última hora. E quanto mais aterradora
for, maior o nível de audiência.
Isto não significa que todos os jornalistas querem notícias más. Alguns
querem, se tivermos em conta o modo discutível como as apresentam. Mas
até os melhores canais noticiosos lutam pelas audiências e, ao longo dos
anos, começaram a perceber o que funciona melhor e o que não funciona,
competindo ferozmente pela atenção do espectador. É por isso que os
noticiários televisivos podem ser encarados como uma metáfora do que é
ter uma perturbação de ansiedade generalizada. A separação do ecrã em
janelas com vários rostos ou imagens e o rodapé a passar incessantemente
títulos de outras notícias funcionam como uma espécie de representação
visual do que se sente na ansiedade: um atropelo de conversas e ruídos de
fundo e dramas sensacionalistas. Mesmo num dia sem notícias bombásticas
é provável que surja um sentimento de ansiedade ao assistir aos noticiários.
Porque, na verdade, já não existe um dia sem notícias bombásticas.
E quando algo de realmente terrível acontece, não ajuda nada sermos
bombardeados com um fluxo contínuo de relatos de testemunhas, vídeos
captados por telemóveis ou meras especulações. Não há ali qualquer
informação; apenas sensacionalismo. Portanto, se achar que as notícias
acabam por alterar ou exacerbar o seu estado mental, há apenas uma coisa a
fazer: DESLIGAR. Não permita que o terror invada a sua cabeça. Não há
qualquer benefício em assistir, paralisado, às intermináveis catadupas de
notícias que apenas servem para aumentar a nossa sensação de impotência.
Os canais informativos, sem terem consciência disso, mimetizam a
forma como o medo funciona: foco nas coisas más, postura catastrofista,
fluxo repetido e continuado de informações sobre o mesmo tópico de
preocupação. Desta forma, atualmente, tornou-se complicado perceber qual
é a fronteira entre a nossa perturbação de ansiedade e as verdadeiras
notícias. Onde acaba uma e começam as outras?
Por isso, não devemos esquecer o seguinte:
Não há qualquer vergonha em não assistir aos noticiários.
Não há qualquer vergonha em não ir às redes sociais.
Não há qualquer vergonha em nos desligarmos.
2.
O plano geral
“Muitas vezes, não nos apercebemos, por exemplo, de que os nossos
pensamentos e emoções mais íntimos, na verdade, não são nossos. Isto
porque pensamos em termos de linguagens e imagens que não fomos nós a
inventar, mas sim que nos foram transmitidas pela sociedade em que
vivemos.”
Alan Watts, The Culture of Counter Culture: Edited Transcripts
A vida anda muito depressa
NA PERSPETIVA DO COSMOS, a história da Humanidade tem sido rápida.
Não andamos por cá há assim tanto tempo. O planeta Terra tem cerca de
4,6 mil milhões de anos, enquanto o Homo Sapiens, a nossa maravilhosa e
problemática espécie, só tem cerca de 200 mil anos. E foi apenas nos
últimos 50 mil anos que as coisas evoluíram mais rapidamente. A partir do
momento em que começámos a usar vestuário feito com peles de animais.
Quando criámos o ritual de enterrar os nossos mortos. Desde que
desenvolvemos métodos de caça mais eficazes.
A arte rupestre mais antiga que já se descobriu situa-se numa caverna da
Indonésia e data de há 40 mil anos, o que, em termos da idade do nosso
mundo, representa um pestanejar de olhos. Ainda assim, a arte é mais antiga
do que a agricultura. As quintas existem há cerca de 10 mil anos; ou seja, é
como se tivessem sido criadas ontem. E a escrita, bem, segundo o que se
sabe, deve ser coisa para ter uns meros 5 mil anos.
A civilização, que teve início na Mesopotâmia (numa área que, no mapa
político atual, equivale sensivelmente ao Iraque e à Síria), tem menos de 4
mil anos. Mas, assim que entrámos na era da civilização, as coisas
começaram realmente a acelerar. Foi por essa altura que a humanidade
começou a apertar o cinto de segurança coletivo. Dinheiro. O primeiro
alfabeto. O primeiro sistema de notação musical. As pirâmides. Budismo,
Hinduísmo, Cristianismo, Islamismo, Sikhismo. Filosofia socrática. O
conceito de democracia. Vidro. Espadas. Navios de guerra. Canais.
Estradas. Pontes. Escolas. Papel higiénico. Relógios. Bússolas. Bombas.
Óculos. Minas. Armas. Armas mais poderosas. Jornais. Telescópios. O
primeiro piano. Máquinas de costura. Morfina. Frigoríficos. Cabos de
telégrafo submarinos. Baterias recarregáveis. Telefones. Carros. Aviões.
Esferográficas. Jazz. Concursos de conhecimentos gerais. Coca-Cola.
Poliéster. Armas nucleares. Foguetões rumo à Lua. Computadores pessoais.
Videojogos. O raio do correio eletrónico. A Internet. Nanotecnologia.
Vruuuum.
Estas mudanças, mesmo se encaradas no lapso de quatro milénios, não
têm acontecido de uma forma progressiva e constante; aconteceram numa
curva ascendente tão íngreme que seria capaz de assustar o skater mais
experimentado. A mudança até pode ser uma variável constante; mas a
velocidade da mudança, essa, não é nada fixa.
2. É algo que acontece. Não podemos fazer grande coisa para evitar o
envelhecimento. Podemos ter uma alimentação saudável, fazer
exercício e ter um estilo de vida mais sensato, mas não deixaremos de
envelhecer. A data do nosso 80.º aniversário continuará a ser a mesma.
É evidente que podemos ter um contributo válido para tentarmos
chegar aos 80 anos, mas isso não significa que o tempo pare para nós.
E a certeza disto tudo, na verdade, até é reconfortante. Quando não há
nada que se possa fazer sobre determinada coisa, qual é a vantagem de
nos preocuparmos com isso? “Toda a gente morre”, escreveu Nora
Ephron. “Quer comamos ou não comamos seis amêndoas por dia, não
há nada que possamos fazer quanto a isso.”
3. Os problemas que geralmente associamos à velhice podem não ser os
problemas que iremos ter. Não somos o Nostradamus para conseguir
adivinhar. Não podemos saber o que iremos ser quando formos velhos.
Não sabemos, por exemplo, se a nossa mente entrará em declínio ou se
será ainda mais brilhante, como aconteceu com Matisse, que pintou
algumas das suas melhores obras de arte depois dos 80 anos.
Sobrecarga de vida
Um excesso de tudo
NO MUNDO ATUAL, há excesso de tudo.
Pensem num caso isolado qualquer.
Pensem, por exemplo, no que têm nas mãos: um livro.
Existem muitos livros. Por uma razão qualquer, escolheu ler este, facto
pelo qual estou extremamente grato. Mas enquanto lê este livro, também
pode estar a pensar, com algum sofrimento à mistura, que não está a ler
outros. E, embora eu não o queira deixar demasiado stressado, a verdade é
que há muitos outros livros. O sítio de Internet Mental Floss, baseando-se
quase exclusivamente nos dados do Google, calcula que devam existir 134
021 533 livros. Esta estimativa de mais de 134 milhões de livros, no
entanto, era relativamente conservadora. E era de meados de 2016.
Portanto, neste momento já existem mais uns quantos milhões. Seja como
for, podemos considerar que 134 021 533 são mesmo muitos livros.
Mas nem sempre foi assim.
Nem sempre existiram tantos livros, e havia uma razão óbvia para isso.
Antes da invenção da imprensa, os livros eram feitos à mão. Escreviam-se
em superfícies de barro, em papiro, em cera ou em pergaminho. Mesmo
após o aparecimento da prensa, não havia assim tanto que ler. Teria sido
difícil criar um clube de leitura na Inglaterra dos primórdios do século XVI,
uma vez que, segundo dados da Biblioteca Britânica, apenas se publicavam
cerca de 40 obras por ano. Face a estes números, qualquer leitor ávido
conseguiria manter-se facilmente a par de tudo o que era publicado.
“Então, o que vamos todos ler?”, perguntaria um membro do hipotético
clube de leitura.
“O que houver, Cédric”, seria a resposta.
Porém, esta situação de escassez alterou-se muito rapidamente. Por
volta de 1600, já se publicavam cerca de 400 títulos por ano, só em
Inglaterra. Dez vezes mais do que no século anterior.
Embora habitualmente se diga que o poeta Samuel Taylor Coleridge foi
a última pessoa a ler tudo aquilo que havia para ler, isso não passa de uma
impossibilidade técnica, uma vez que ele morreu em 1834, numa altura em
que já existiam milhões de livros. No entanto, o interessante é que as
pessoas daquela época podiam acreditar na possibilidade de alguém ler
tudo o que havia. Hoje em dia, ninguém acreditaria em tal coisa.
Mesmo que fôssemos os detentores do recorde mundial de leitura
rápida, temos a consciência de que o número de livros que iremos ler numa
vida nunca deixarão de constituir uma parcela ínfima dos livros existentes.
Estamos afogados em livros, tal como estamos afogados em programas
televisivos. No entanto, só conseguimos ler um livro de cada vez, tal como
só conseguimos ver um programa de cada vez. Conseguimos multiplicar
tudo e mais alguma coisa, mas continuamos seres individuais. Só existe um
de cada um nós. E somos todos mais pequenos do que a Internet. Para
desfrutar da vida, talvez seja melhor parar de pensar sobre tudo o que não
vamos conseguir ler, ou ver, ou dizer, ou fazer, e começarmos a pensar
numa forma de apreciar o mundo dentro das nossas limitações. Viver à
escala humana. Concentrarmo-nos nas poucas coisas que poderemos fazer,
em vez de nos milhões de coisas que nunca conseguiremos fazer. Não
desejarmos ter vidas paralelas. Descobrirmos uma equação mais simples.
Termos orgulho em ser um número primo indivisível. Termos orgulho em
sermos um só.
O mundo está a ter um ataque de pânico
O PÂNICO é uma espécie de sobrecarga.
Pelo menos, era assim que os meus ataques de pânico pareciam. Um
excesso de pensamentos e medo. Uma mente sobrecarregada que chega a
um ponto de rutura e se deixa invadir pelo pânico. Porque essa sobrecarga
faz-nos sentir encurralados. Psicologicamente aprisionados. É por isso que
os ataques de pânico acontecem frequentemente em ambientes cheios de
estímulos: supermercados, discotecas, recintos de espetáculos, carruagens
sobrelotadas.
Mas, o que acontece quando a sobrecarga se torna uma das principais
características da vida moderna? Há sobrecarga de consumo. Sobrecarga de
trabalho. Sobrecarga do ambiente. Sobrecarga de notícias. Sobrecarga de
informação.
O desafio dos nossos dias, portanto, não está tanto no facto de a vida ser
necessariamente pior do que aquilo que foi antes. Em vários aspetos,
atualmente temos o potencial para vivermos melhores vidas, mais saudáveis
e até mais felizes do que no passado. O problema é que as nossas vidas
também estão atulhadas. O desafio à nossa frente passa por descobrirmos
quem somos, no meio desta multidão.
Locais onde tive ataques de pânico
Em supermercados.
Num piso subterrâneo sem janelas de um armazém.
Num festival de música cheio de gente.
Numa discoteca.
Num avião.
No metro de Londres.
Num bar de tapas em Sevilha.
Num estúdio da BBC News.
Num comboio entre Londres e York (durou a maior parte da viagem).
Num cinema.
Numa sala de teatro.
Numa loja da esquina.
Num palco, sentindo-me fora do meu estado normal, perante a atenção
de um milhar de pessoas na plateia.
Ao passear por Covent Garden.
A ver televisão.
Em casa, noite dentro, após um dia atarefado, com uma luz alaranjada
ameaçadora do candeeiro de rua a perpassar o cortinado.
Numa sucursal de banco.
Em frente a um ecrã de computador.
Um planeta nervoso
IMAGINA QUE NÃO era o mundo a levar as pessoas à loucura – disse-me
recentemente um amigo, depois de eu lhe ter falado sobre o livro que
andava a tentar escrever. – Imagina que o próprio mundo está louco. Ou,
pelo menos, as partes do mundo que estão relacionadas connosco. Com os
humanos. Ou seja, e se o mundo estiver literalmente doido? Acho que é isso
que está a acontecer. Acho que as sociedades humanas estão a ter um
colapso.
– Pois. Como um doente à beira de um ataque de nervos.
– Isso. Bom, claro que o mundo não é uma pessoa. Mas, tal como dizes,
está cada vez mais ligado, como um sistema nervoso. Na verdade, já está
assim há algum tempo. No outro dia, estava a ler sobre um tipo do século
XIX que já dizia, nessa altura, que os cabos telegráficos eram como um
sistema nervoso.
Após alguma pesquisa, descobri que esse homem se chamava Charles
Tilston Bright e fora o responsável pela instalação do primeiro cabo de
telégrafo transatlântico. Ele referia-se à rede mundial de telegrafia como o
“sistema de nervos elétricos do mundo”.
Atualmente, já não enviamos telegramas, uma vez que revelaram fracas
capacidades para anexar vídeos de gatos ninja ou emojis. Mas o sistema
nervoso do mundo não desapareceu. Pelo contrário, evoluiu de tal forma em
termos de escala e de complexidade que, desde junho de 2017, chegámos a
um ponto em que mais de metade da população mundial está ligada à
Internet, segundo as estimativas da União Internacional de
Telecomunicações (uma agência das Nações Unidas que, por sinal, se
chamava União Internacional do Telégrafo).
O número de utilizadores da Internet tem crescido exponencialmente de
ano para ano. É quase de loucos pensar que, em 1995, quase ninguém
navegava na Internet: apenas 16 milhões de pessoas, o que representava uns
meros 0,4% da população mundial. Uma década depois, em 2005, o número
ascendia a mil milhões de pessoas, o que significava que 15% da população
mundial já estava online. E, em 2017, os dígitos subiram para a casa dos
51%.
Nesse mesmo ano, o número de utilizadores ativos do Facebook
(pessoas que usam o Facebook pelo menos uma vez por mês) chegou aos
2,07 mil milhões. Se voltarmos atrás, até ao início da década, em 2010 nem
sequer havia tanta gente ligada à Internet. Estamos perante uma mudança
extremamente rápida e que só aconteceu graças à “modernização” de
grande parte do mundo em que vivemos: todas as infraestruturas foram
aceleradamente substituídas para garantir o acesso à Internet de banda larga.
Outro fator que contribuiu para isto foi o crescimento do número de
smartphones, que também facilitou o acesso à Internet.
E não é só o número de pessoas que usam a Internet que está a crescer;
o número de horas que passamos online também está a aumentar.
Os seres humanos estão agora mais ligados do que nunca pela
tecnologia, e esta mudança radical ocorreu em pouco mais de uma década.
O resultado disto, no mínimo, é que se passou a discutir muito mais na
Internet. Lembremos, para o caso, o que Tolstói escreveu, em 1894, no livro
O Reino de Deus Está em Vós:
Ansiedades da Internet
“A Internet é a primeira coisa construída pela humanidade que a
humanidade não consegue compreender; é a maior experiência anárquica
que já tivemos.”
Eric Schmidt, ex-CEO da Google
6. Não siga pessoas de quem não gosta. Fiz esta promessa a mim mesmo
na passagem de ano de 2018 e, até agora, tem funcionado. Seguir as
pessoas que odiamos, ao contrário do que se possa pensar, não é o
escape mais acertado para a nossa raiva. Pelo contrário, só vai
alimentar a nossa raiva. De certa forma, também acaba por reforçar o
eco da nossa própria voz, ao fazer-nos sentir que só os outros têm
opiniões extremadas. O melhor mesmo é não ir à procura de coisas que
nos deixem infelizes. Não devemos avaliar o nosso próprio valor
comparando-nos com outras pessoas. Não devemos tentar definir quem
somos através do contra, mas sim daquilo de que somos a favor.
Naveguemos na Internet de acordo com esse princípio.
8. Não gaste tempo da sua vida preocupado com aquilo que pode estar a
perder. Não quero soar muito budista sobre isto – bem, se calhar vou
mesmo soar um pouco budista –, mas a vida não é ficarmos satisfeitos
com o que estamos a fazer, mas sim estarmos satisfeitos com o que
estamos a ser.
Miss R! @Fabteachertips
Quando me sinto realmente em baixo, facilmente me deixo ficar sozinha
na cama, a navegar nas redes sociais durante várias horas. Na verdade, não
sei por que razão o faço, quando há tantas outras coisas mais produtivas que
poderia estar a fazer. Mas não me faz sentir melhor, disso tenho a certeza!
James @james____s
Cito algo que ouvi recentemente: “O Facebook é o sítio onde toda a
gente mente aos amigos. O Twitter é o sítio onde dizem a verdade a
estranhos.”
6. Lembrem-se: assistir a notícias sobre coisas más não significa que não
estejam a acontecer coisas boas. Há notícias boas a acontecer em todo
o lado. Estão a acontecer neste preciso momento. Em todo o mundo.
Nos hospitais, em casamentos, nas escolas e escritórios, nas
maternidades, nos portões de chegadas de aeroportos, em quartos, nas
caixas de entrada de e-mail, nas ruas, no sorriso amável de um
estranho. Há milhões e milhões de maravilhas da vida quotidiana que
nós não vemos.
Um elogio ao pensamento positivo
O MEU VELHO EU, ainda antes de adoecer, era bastante cínico quanto ao
pensamento positivo, ou aos pores-do-sol, ou às músicas cor-de-rosa, ou às
expressões de esperança e otimismo. Mas, depois de ficar doente, quando
estava mesmo no meio da doença, a minha vida dependia de eu conseguir
afastar o meu lado pessimista. O cinismo era um luxo reservado a quem não
tinha pensamentos suicidas. Eu precisava de descobrir a esperança. Aquela
coisa com asas. A minha vida dependia disso.
Pode parecer um pouco rebuscado associar uma cura psicológica a uma
cura social e política, mas, se o lado pessoal também for político, então o
psicológico também o será. Atualmente, vivemos, aparentemente, um
ambiente político baseado numa separação dos lados; uma divisão, em
parte, alimentada pela Internet.
Precisamos de redescobrir os nossos elos comuns, enquanto seres
humanos. Como o conseguir? Bem, uma invasão por extraterrestres daria
conta do recado, mas é melhor não ficarmos à espera disso.
O problema da política é um problema de tribos. “Quando nos
separamos por crença, por nacionalidade, por tradições, isso gera
violência”, ensinou-nos o filósofo Jiddu Krishnamurti.
Uma das coisas que aprendi com a doença mental é que a capacidade de
avançar consiste numa questão de aceitação. Só ao aceitarmos uma
determinada situação é que a poderemos vir a mudar. Temos de aprender a
não ficar em estado de choque por causa do choque. Temos de aprender a
não cair num estado de pânico por causa do pânico. Temos de aprender a
mudar aquilo que conseguimos mudar e a não ficarmos frustrados com o
que não conseguimos mudar.
Não existe nenhuma panaceia ou utopia; existe apenas amor e bondade,
e a tentativa de, no meio do caos, melhorarmos as coisas em tudo aquilo
que nos for possível. E mantermos as nossas mentes abertas, muito abertas
mesmo, num mundo que, tantas vezes, tenta mantê-las fechadas.
8.
Prioridades
Uma viagem a um centro de acolhimento para
sem-abrigo
Mesmo quando o mundo não nos aterroriza às claras, a velocidade, o
ritmo e as distrações da vida moderna podem constituir uma espécie de
assalto mental que não é fácil de identificar. Por vezes, a vida parece tornar-
se demasiado complicada, demasiado desumana, e acabamos por perder de
vista aquilo que realmente interessa.
Há alguns meses, desloquei-me a um centro de acolhimento para sem-
abrigo. Ficava em Kinsgton, junto ao Tamisa, um abastado subúrbio de
Londres onde muitos julgariam impossível que existisse o problema de
pessoas a viverem na rua.
Fui convidado para ir lá falar sobre literatura e saúde mental. O local
chama-se Joel Centre e já recebeu prémios pelo seu trabalho, baseado na
ideia de dar às pessoas algo mais do que apenas uma cama para passar a
noite. Ali, trabalha-se sob o lema “Ajudar as Pessoas a Acreditarem em Si
Mesmas”. Um voluntário do centro disse-me que a ideia passa por ter a
noção de que as pessoas que recorrem à instituição não sentem apenas falta
de uma cama: sentem falta de pertença. “Tentamos dar-lhes isso. O
problema é a falta de um lar, não a falta de uma casa. Não ter um lar é
muito mais do que não ter um quarto para dormir.” O voluntário
acrescentou que o facto de trabalhar no centro o fez compreender aquilo de
que as pessoas “realmente precisam na vida, sem ser toda a porcaria do
costume”.
Por isso, as pessoas que recorrem ao centro, além de terem uma cama,
um armário com chave e acesso a um balneário e à máquina de lavar roupa,
também se podem sentar todos os dias à volta de uma mesa, juntamente
com outros hóspedes, para comerem refeições saudáveis. Muitas vezes, são
os próprios hóspedes que tratam de ajudar na cozinha, tal como também
desempenham tarefas na limpeza do centro, no arranjo do jardim e no
auxílio à comunidade local.
O centro é deles. Eles fazem parte do abrigo.
Depois de ter falado sobre a minha experiência com problemas de saúde
mental, acebei por ficar a conversar com o homem sentado ao meu lado.
Devia ser mais ou menos da minha idade. Tinha ar de quem passara por
muita coisa, quer em termos mentais quer físicos, ainda assim estava
sorridente. Disse-me que se tornara um sem-abrigo após o final do seu
relacionamento; entrou em depressão, mas, numa tentativa de negação,
começou a beber. Tornou-se alcoólico e, segundo me contou, o centro
salvou-lhe a vida. Depois, apontou vagamente para a porta e disse-me que,
“lá fora”, a vida não fazia muito sentido. Ele tinha ficado perdido nessa
vida.
Para ele, o mundo era desumano. Porém, no centro, eram as pequenas
coisas que contavam. “Conversar com pessoas, sentarmo-nos à volta da
mesa com outras pessoas, trabalhar para resultados que se possam ver.”
Era essa a sensação que aquele lugar me dava. Como se ali houvesse
uma filtragem das coisas de que as pessoas precisam na vida. E tudo o que
fazia mal aos hóspedes ficava de fora, pois o centro era bastante rigoroso
relativamente à proibição de bebidas alcoólicas, drogas e outras coisas do
género. Os responsáveis da instituição tinham pensado seriamente sobre o
que deixariam entrar e o que, literalmente, ficaria à porta.
Apesar de a maior parte das pessoas ter uma vida melhor do que os
hóspedes do Joel Centre, o lema do abrigo não deixa de ser aplicável. É,
inclusive, de uma simplicidade extrema. Realçar as coisas que nos fazem
sentir bem, cortar as coisas que nos fazem mal e permitir que as pessoas se
sintam verdadeiramente ligadas ao mundo em redor.
Penso que este será o maior paradoxo do mundo moderno. Estamos
todos ligados uns aos outros, mas sentimo-nos frequentemente do lado de
fora. A crescente sobrecarga e complexidade da vida moderna pode
provocar o isolamento.
Juntemos a isto o facto de que nem sempre sabemos exatamente o que é
que nos faz sentir solitários ou isolados. Pode ser difícil distinguir quais são
realmente os problemas em causa. É como abrir um iPhone para o tentar
arranjar com os nossos próprios meios. Por vezes, parece que a sociedade
funciona como a Apple, evitando a todo o custo que consigamos
escarafunchar dentro de nós, na tentativa de encontrarmos o que possa estar
errado connosco. E é isso que temos de fazer. Porque, frequentemente,
identificar um problema e ficar plenamente consciente dele pode tornar-se a
própria solução.
Multidões solitárias
EIS O PARADOXO da vida moderna: nunca estivemos tão ligados e nunca
estivemos tão sozinhos. O automóvel substituiu o autocarro. Trabalhar a
partir de casa (ou estar desempregado) substituiu a fábrica e, cada vez mais,
o escritório da empresa. A televisão substituiu a sala de espetáculos. O
Netflix está a converter-se na nova sala de cinema. As redes sociais são o
novo “conhecer pessoas no café da esquina ou no bar”. O Twitter substituiu
a pausa para café. E a individualidade substituiu o coletivismo e a
comunidade. Cada vez temos menos encontros cara a cara; cada vez temos
mais interações com avatares.
Os seres humanos são criaturas sociais. Nas palavras de George
Monbiot, somos “a abelha mamífera”. Mas as nossas colmeias mudaram de
forma drástica.
Tenho vindo a notar que, à medida que os anos passam, enquanto o
número de amigos virtuais cresce, a quantidade de amigos que vejo na vida
real vai diminuindo.
Decidi, então, alterar este estado de coisas. Ando a fazer um esforço
para sair pelo menos uma vez por semana para estar com os meus amigos. E
tenho-me sentido melhor por causa disso.
Não sinto qualquer nostalgia relativamente aos discos de vinil ou aos
CD, mas sinto saudades do contacto cara a cara. Não é contacto pelo
Facebook. Não é contacto pelo Skype. É falar mesmo com outra pessoa,
faça chuva ou faça sol, sem nada a interpor-se entre nós, para além do ar.
Quando estou em casa, tento fechar o meu portátil e conversar com os meus
filhos, para que eles não cresçam a pensar que são menos importantes do
que um MacBook Pro. E estou a tentar não cancelar encontros com amigos
só porque não estou para me dar a esse trabalho.
Isto exige, de facto, um esforço. É mesmo muito difícil. Há dias em que
penso que seria mais fácil convencer a Coreia do Norte a desistir do
programa de armas nucleares do que impedir-me de verificar as redes
sociais 17 vezes antes do pequeno-almoço.
A socialização online é fácil e à prova de água. Não implica chamar um
táxi ou ter uma camisa lavada e passada. E, por vezes, é maravilhosa. Aliás,
é muitas vezes maravilhosa.
Mas, bem lá nas profundezas do meu ser, consigo perceber que esse
ambiente digitalizado, livre de cheiros, com luz artificial, causador de
divisões, detido por empresas, não consegue preencher todas as minhas
necessidades, tal como uma refeição pronta a levar não substitui o enorme
prazer de comer num restaurante. E eu, sendo alguém cuja ansiedade, certa
vez, resvalou até à agorafobia, forço-me a passar cada vez mais tempo
nessa coisa confusa e ventosa à qual, idilicamente, ainda chamamos de
mundo real.
Como ser solitário
JÁ OUVIU ALGUM pai a resmungar sobre a necessidade que o filho tem de
estar sempre entretido? Algo do estilo: “Quando eu era jovem, conseguia
estar sentado no banco traseiro do carro e ficar só a olhar para as nuvens e
para a relva durante 17 horas, sem nunca me aborrecer. Agora, a nossa
Misha nem consegue estar cinco segundos dentro do carro, sem estar a ver
o Alvin e os Esquilos 17, ou a jogar qualquer coisa, ou a tirar selfies dela
com unicórnios…”
Bem, há uma razão óbvia para este tipo de desabafos. Quanto mais
somos estimulados, mais fácil é sentirmo-nos aborrecidos.
Eis mais um paradoxo.
Em teoria, nunca foi tão fácil não nos sentirmos sozinhos. Há sempre
alguém online com quem podemos falar. Se estamos distantes de quem
amamos, podemos contactá-los via Skype. Mas a solidão, tal como outra
coisa qualquer, é uma emoção. Nas alturas em que sofri de depressão, tive a
enorme felicidade de estar rodeado por pessoas que me amavam. Mas
nunca me senti tão sozinho.
Julgo que a escritora norte-americana Edith Wharton foi a pessoa mais
sábia de sempre relativamente ao tema da solidão. Ela acreditava que a cura
não passava por estar sempre acompanhado, mas antes em descobrir uma
forma de sermos felizes quando estamos na nossa companhia. Não é
tornarmo-nos antissociais; é não termos receio de estarmos sozinhos. Para
Wharton, a cura para a tristeza significava “decorar tão ricamente a nossa
casa interior, de forma a ficarmos contentes quando lá estivermos, a
ficarmos contentes por receber quem queira entrar e ficar um pouco, mas
igualmente felizes nas alturas em que, inevitavelmente, ficarmos sozinhos”.
10.
Medos telefónicos
Uma sessão de terapia no ano 2049
ROBÔ-TERAPEUTA: Então, de que se queixa?
O MEU FILHO: Bem, acho que tudo remonta aos meus pais.
ROBÔ-TERAPEUTA: A sério?
O MEU FILHO: Mais especificamente, ao meu pai.
ROBÔ-TERAPEUTA: Qual era o problema com ele?
O MEU FILHO: Estava sempre ao telemóvel. Eu sentia que ele gostava
mais do telemóvel do que de mim.
ROBÔ-TERAPEUTA: Tenho a certeza de que isso não é verdade. Muitas
“porque é que eu não sou tão interessante para ele como o feed do Twitter?
Porque é que ele prefere olhar para o ecrã do telemóvel dele em vez de
olhar para mim? Porque é que sinto que só consigo chamar-lhe a atenção
quando o incomodo?” Claro que isto foi nos tempos anteriores à revolução
de 2030.
ROBÔ-TERAPEUTA: Pois. Por onde anda agora o seu pai?
O MEU FILHO: Oh, ele morreu em 2027. Foi atropelado por um carro sem
condutor, enquanto procurava um gif engraçado para enviar.
ROBÔ-TERAPEUTA: Isso é muito triste. Desde essa altura, o que tem feito?
3. Passe alturas do dia sem ter o telemóvel ao lado. OK, reconheço que
não sou lá muito bom neste ponto. Mas estou a melhorar. Ninguém
precisa sempre do telemóvel. Não precisamos dele junto à cama. Não
precisamos dele à hora das refeições, em casa. Não precisamos dele
quando saímos para correr. Agora, faço o seguinte: saio de casa para
dar um passeio sem levar o telemóvel. Eu sei que parece um pouco
ridículo dizer isto como se fosse um feito extraordinário, mas, para
mim, foi. É como fazer exercício físico. Requer esforço.
6. Não chame nomes feios ao telemóvel. Não lhe faça súplicas. Não
negoceie com ele. Não o atire pelos ares. O telemóvel é absolutamente
indiferente relativamente às suas emoções. Se ficar sem rede ou sem
bateria não é por vingança; é, simplesmente, por se tratar de um objeto
inanimado. Em resumo: não passa de um telemóvel.
O detetive do desespero
“Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas”
T. S. Eliot, A Terra Devastada
Tomada de consciência
AOS 24 ANOS, quando fiquei doente pela primeira vez – quando “avariei”
–, o mundo tornou-se mais acutilante. Era uma acutilância quase dolorosa.
Subitamente, as sombras ganharam espessura, o cinzento das nuvens estava
mais carregado, a música era mais barulhenta. Despertei para tudo o que
antes me passara despercebido. Passei a notar as coisas do mundo moderno
que me faziam sentir pior. Coisas que, provavelmente, fazem com que nos
sintamos pior. Sentia a desgastante pressão da publicidade, a loucura
frenética das hordas de transeuntes e do trânsito automóvel, a natureza
sufocante das expectativas sociais.
Há muita coisa que podemos aprender quando estamos doentes para
vivermos melhor quando estamos saudáveis.
Mas, quando estou bem, esqueço-me destas coisas. O truque é
agarrarmo-nos a este conhecimento. Transformar a recuperação em
prevenção. Viver como vivo quando estou doente, mas sem estar doente.
Esperança
HÁ ALGUNS FATORES que afetam a nossa saúde mental que são genéticos,
acabando, assim, por estar associados aos circuitos químicos do cérebro de
cada indivíduo. Não há grande coisa que se possa fazer quanto ao que
herdamos no nosso código genético. Por isso, é mais interessante
centrarmos as nossas atenções naquilo em que podemos intervir: os aspetos
transitórios, ou seja, os gatilhos que desencadeiam determinados efeitos e
que se vão alterando com a passagem do tempo e as mudanças nas
sociedades.
Outras épocas da história também tiveram, obviamente, as suas próprias
crises de saúde mental. Mas o facto de os nossos antepassados terem tido os
seus próprios problemas não deve implicar complacência relativamente à
cultura da nossa época.
E o melhor – e mais libertador – deste ponto é que se a nossa ansiedade
for, em parte, resultado da nossa cultura, então isso significa que também
pode ser algo que conseguimos mudar, alterando o modo como reagimos a
essa cultura. Na verdade, nem sequer precisamos de mudar nada de modo
deliberado. A mudança pode acontecer apenas pelo facto de tomarmos essa
consciência.
Muitas vezes, ao ficarmos conscientes de qualquer coisa, estamos já a
encontrar a solução de que precisamos.
O detetive do desespero
CREIO QUE O MUNDO vai ser sempre caótico. E que eu vou ser sempre
caótico. Talvez o leitor também seja caótico. Mas, e esta parte é muito
importante para mim, eu acredito que é possível ser-se caoticamente feliz.
Ou, pelo menos, ser-se um caos ligeiramente menos infeliz. Sermos um
caos com que possamos lidar. “Em todo o caos há um cosmos, em toda a
desordem uma ordem secreta”, disse Carl Jung.
O caos não é assim tão problemático. Como já devem ter reparado,
estou a tentar falar do estado caótico do mundo e do estado caótico das
nossas mentes num livro deliberadamente caótico. Ou, pelo menos, é essa a
minha desculpa para apresentar estes fragmentos de forma que, uma vez
unidos, possam fazer sentido como um todo. Espero que isto faça algum
sentido. Ou então, se não fizer sentido, que essa falta de sentido possa levar-
vos a pensar em algumas coisas.
O problema não reside no estado caótico do mundo, mas na esperança
de que o mundo seja diferente do que é. Passam-nos a ideia de que
controlamos tudo. De que podemos ser qualquer coisa e ir a qualquer lugar.
Dizem-nos que, por vivermos num mundo com livre-arbítrio, devíamos ser
capazes de escolher os sítios a que vamos online, ou escolher aquilo a que
assistimos na televisão, ou decidir qual das milhentas receitas disponíveis
vamos experimentar. Mais do que isso, dizem-nos que devíamos ser
capazes de escolher o modo como nos sentimos. Por isso, quando não
sentimos o que queremos sentir, ou aquilo que esperam que nós sintamos,
essa discrepância torna-se confusa e desanimadora. Porque não
conseguimos ser felizes perante a hipótese de podermos escolher tanta
coisa? E porque me sinto triste e preocupado quando, na verdade, não tenho
qualquer razão para me sentir triste e preocupado?
Mas a realidade é ligeiramente diferente desta linearidade. Quando
adoeci pela primeira vez, mesmo logo no início, nem sequer sabia o que
tinha, quanto mais saber o que provocava aquilo. Não compreendia
minimamente o inferno a que tentava escapar; apenas sabia que queria sair
dali. Se tivermos a perna a arder, não sabemos qual é a temperatura das
chamas. Só sabemos que está a doer muito.
Mais tarde, os médicos colocam rótulos nas coisas. “Ataque de pânico”,
“perturbação da ansiedade generalizada” e “depressão”. Estes rótulos,
embora assustadores, foram também importantes, pois deram-me uma base
com a qual podia trabalhar. Deixei de me sentir um extraterrestre. Era um
ser humano com doenças próprias dos humanos, doenças que milhões de
seres humanos já tiveram, doenças que a maior parte das pessoas conseguiu
superar, ou, então, com as quais tiveram de aprender a lidar.
Mesmo depois de saber os nomes das minhas doenças, continuei a
acreditar que todas tinham germinado do meu interior. Estavam ali, dentro
de mim, da mesma forma que o Grand Canyon também estava gravado na
minha memória geográfica; eram algo fixo, sobre o qual não podia fazer
nada.
Nunca mais poderia apreciar música. Ou comida. Ou livros. Ou
conversas. Ou a luz do sol. Ou cinema. Ou férias. Ou fosse o que fosse. Eu
estava podre, podre até ao âmago, podre como um, como uma, como… –
nunca haverá uma metáfora adequada para a depressão – uma árvore
doente. Uma árvore doente a quem a namorada e os pais estavam sempre a
repetir “tu vais ficar bem, vamos descobrir uma forma de ficares bem”.
E, claro, apareceram várias soluções. Experimentei os comprimidos
(diazepam) prescritos por um médico. Experimentei as várias infusões
receitadas por um homeopata. Experimentei os conselhos dados por amigos
e família. Experimentei erva-de-São-João e óleo essencial de lavanda.
Experimentei comprimidos para dormir. Experimentei falar com linhas de
apoio telefónico. Depois, parei de experimentar. Passei por uma fase em
que o diazepam me provocava pesadelos e acabou por ser um pesadelo
ainda maior tentar livrar-me daqueles comprimidos. Provavelmente devia
ter tentado outro tipo de medicação, mas não o fiz. Pensem o que quiserem,
mas não era dono do meu raciocínio. Para complicar a situação, estava
assustado, ou melhor, estava profundamente aterrorizado com a ideia de
tomar mais comprimidos ou de procurar outras ajudas, após tanta coisa ter
falhado.
Quando falei desta fase no livro Razões para Viver, algumas pessoas
acharam que me estava a manifestar contra os comprimidos, pelo que, desta
vez, quero deixar uma coisa bem clara: não sou contra os medicamentos.
Embora ainda subsistam uma série de pontos de interrogação a que as
empresas farmacêuticas e os investigadores científicos estão a tentar
responder (o que é algo inerente à pesquisa científica), tenho consciência de
que os medicamentos já salvaram muitas vidas. Conheço pessoas que me
dizem que não sobreviveriam sem comprimidos. E até acredito que,
provavelmente, haveria outra medicação que me poderia ter ajudado, eu é
que não a descobri. No entanto, não acredito que os comprimidos sejam a
solução completa. E também acredito que alguns medicamentos mal
receitados podem levar as pessoas a sentirem-se pior, embora isso possa
acontecer com quase tudo. Podem muito bem receitar-nos comprimidos
errados para a nossa artrite ou para a nossa doença de coração. Por isso,
parece-me até algo do senso comum defender que os medicamentos não são
a única solução. Raramente são. Se sofrermos de inflamações articulares, o
ioga, a natação e a exposição solar podem ser benéficos, tal como os
medicamentos também podem ser úteis. Não se trata de uma questão de um
ou outro. Temos de descobrir o que funciona connosco. No meu caso, temos
de acrescentar o facto de eu estar traumatizado e de nem sequer conseguir
pensar devidamente.
Nessa altura, experimentar coisas que não funcionavam só piorava a
minha vida. Como disse, até podia existir o tratamento adequado para o
meu caso – fosse terapia ou medicação –, mas eu não tive a sorte de o
encontrar. Não tive a coragem de ir à procura da solução. A dor era tão
grande que eu praticamente só tinha forças para tentar manter-me vivo. Na
minha cabeça, não podia arriscar a sair um milímetro ou um grama daquilo
que já conhecia. Cada dia parecia um teste: viver ou morrer? Sei que isto,
assim descrito, parece um pouco ridículo, mas era essa a realidade em que
eu vivia. Todas as tentativas de combate ao turbilhão instalado no interior
da minha cabeça tinham falhado. E, verdade seja dita, os médicos que
consultei acabaram por não se mostrar lá muito compreensivos. Porém,
quero crer que, desde o início deste século, as coisas, em muitos aspetos, já
terão evoluído.
De qualquer forma, ali estava eu, no fundo do poço, sem vislumbrar um
caminho ou escapatória, a tentar descobrir como poderia fugir dali.
Tal como muitas outras pessoas em situações semelhantes, acabei por
me transformar numa espécie de detetive que precisava de resolver um caso
de homicídio. A princípio, não existiam pistas, pelo menos evidentes a olho
nu. Cada dia no fundo do poço era um inferno. Mesmo durante as primeiras
semanas e meses, cada dia incluía momentos de uma dor emocional tão
intensa que bastava isso para matar qualquer esperança de que me poderia
livrar daquele inferno. Mas, depois, comecei a perceber que a dor, embora
estivesse dentro de mim, era muitas vezes provocada por estímulos
externos. E esse pensamento deixava-me melhor, melhor do que alguma vez
me sentira com todas as outras soluções que experimentara. Mais tarde,
percebi que certas coisas podiam fazer com que me sentisse pior: bebidas
alcoólicas, cigarros, música alta, multidões. O mundo entra em nós. Seja o
que for que estivermos a fazer, ele entra em nós. Só que eu não dera conta
disso, até ter ficado doente.
Nota para mim
MANTÉM A CALMA. Não fiques parado. Mantém-te humano. Continua a
insistir. Continua a ter desejos. Continua a aperfeiçoar-te. Continua a olhar
pela janela. Mantém o foco. Mantém-te livre. Continua a ignorar os trolls.
Continua a ignorar os anúncios pop-up e os pensamentos que te surgem
espontaneamente na cabeça. Não tenhas medo de cair no ridículo. Mantém-
te curioso. Mantém-te detentor da tua verdade. Continua a amar. Continua a
permitir-te essa prerrogativa humana de cometer erros. Constrói um muro
em redor do teu espaço. Continua a ler. Continua a escrever. Mantém o teu
telemóvel à distância de um braço. Não percas a cabeça, quando anda toda a
gente a perdê-la. Continua a espantar-te. Continua a respirar a própria vida.
Continua a lembrar-te do que o stress te pode fazer.
(Continua a lembrar-te daquele dia no centro comercial.)
O medo e as compras
ESTAVA NUM CENTRO COMERCIAL. A chorar.
Aos 24 anos, rodeado por uma multidão e lojas e sinais luminosos,
senti-me incapaz de lidar com o que me estava a acontecer.
– Não… Não consigo fazer isto – sussurrei, entre a respiração
descompassada.
– Matt?
Aquilo era um teste. Ir com a Andrea, então minha namorada, até à
cidade mais próxima do local onde os pais dela moravam (Newcastle, no
norte de Inglaterra), apenas para fazer algumas compras. Nem fazia ideia do
que era suposto irmos comprar. Estava exclusivamente concentrado em não
ter um ataque de pânico enquanto íamos às compras. Estava concentrado
em ser igual às pessoas normais.
– Desculpa, não consigo, eu…
Ali estava eu, e tudo aquilo era tão patético. Eu, um jovem adulto, num
mundo que sempre me mostrara – desde a televisão ao campo de jogos –
que um homem era forte e duro que aguentava a dor sem chorar; num
mundo que mostrava que sermos jovens consistia em sermos alegres e
divertirmo-nos muito nessa resplandecente terra da juventude. E ali estava
eu, supostamente na melhor altura da minha vida, a choramingar por coisa
nenhuma no meio de um centro comercial. Pois bem, não era chorar por
nada. As minhas lágrimas deviam-se à dor que eu sentia. E ao terror que
estava a sentir. Uma dor e um terror que ficara a conhecer um mês antes,
ainda a trabalhar em Espanha, quando tive um ataque de pânico que nunca
chegou propriamente a terminar, fundindo-se com um sentimento
indescritivelmente forte de desespero, pavor e mal-estar que parecia
corroer-me até aos ossos.
O desespero tornou-se tão forte que quase me custou a vida. Parecia não
haver fuga possível. E, mesmo que a morte fosse assustadora, aquele terror
vivo parecia ainda pior. Toda a gente tem o seu limite: aquele ponto em que
já não aguenta mais. E, de repente, quase inesperadamente, eu atingi o meu.
– Está tudo bem – dizia-me a Andrea, a segurar a minha mão, naquele
momento mais uma mãe ou uma enfermeira do que a minha namorada.
– Não, não está. Desculpa. Desculpa.
– Tomaste o comprimido esta manhã?
– Sim, mas não está a funcionar.
– Vai ficar tudo bem. Isso é só pânico.
Só pânico.
O olhar preocupado dela apenas piorava a situação. Já a fizera passar
por tanto… Eu só precisava de dar um passo e caminhar. Caminhar e falar e
respirar como uma pessoa normal. Não era assim tão difícil. Não era como
lançar um foguetão com destino à Lua. Mas parecia.
– Não consigo.
O rosto da Andrea assumiu uma expressão mais áspera. Via-se pela
rigidez do queixo e da boca que até ela tinha limites. Estava zangada
comigo, para o meu bem.
– Tu consegues.
– Não, Andi, não consigo mesmo. Porra, tu não compreendes.
As pessoas que passavam em todas as direções, carregadas com os sacos
de compras, olhavam de soslaio para nós.
– Respira com calma, vá. Respira profundamente.
Tentei inspirar profundamente, mas parecia-me que o ar nem chegava
aos pulmões.
– Eu… eu… eu… Falta-me o ar.
Nesse mesmo dia, mais cedo, não estive assim tão mal. Sentia apenas
um ligeiro desespero que nunca desaparecia. Mas, durante o trajeto de
autocarro até à cidade, o medo entranhou-se em mim, como se me
estivessem lentamente a enrolar num cobertor cheio de ácaros.
No centro comercial, era como se o terror se tivesse apoderado do meu
corpo.
Estava paralisado junto à porta de uma loja, rodeado de pessoas; ainda
assim, sentia-me sozinho. Comecei a engolir em seco, à procura de me
reorientar. O engolir de saliva compulsivo era um dos pequenos sinais da
perturbação obsessiva-compulsiva que eu acabei por desenvolver. Mas,
naquele momento, até desejava que esse sintoma me pudesse distrair,
mantendo-me afastado de algo ainda pior. Mas não resultou.
Não havia esperança. Não havia fuga possível. A vida era para os
outros.
Tinha conseguido segurar o mundo, mas naquele instante ele estava
novamente a desabar sobre mim. E a voz da Andrea, a última réstia de
esperança, a voz que tentava chegar até à pessoa que eu já não era, parecia-
me cada vez mais distante.
Só temos uma mente
SEMPRE QUE PENSO naquele episódio do centro comercial, um de muitos
semelhantes em que o meu cérebro se torna numa espécie de cenário de
guerra, procuro dissecá-lo. Vasculho o meu passado de forma a aceitá-lo e a
aprender com ele. Não apenas aprender o modo de evitar os ataques de
pânico, mas a forma como a minha mente interage com o mundo e
descobrir como posso andar menos stressado.
O primeiro problema foi que aquele evento específico aconteceu numa
fase inicial da minha experiência com a ansiedade e a depressão. Quando se
tem um primeiro surto de doença mental, pensa-se que, dali em diante, a
nossa vida vai passar a ser sempre assim. Vamos ficar com uma depressão,
pontuada por ataques de pânico, e as coisas nunca hão de mudar. Era
aterrador imaginar que seria esse o meu futuro. Era uma sensação
claustrofóbica, da qual, aparentemente, não havia escapatória possível.
O segundo problema estava relacionado com o facto de eu ainda
desconhecer a maneira de tentar lidar com os ataques de pânico. Uma lição
que, diga-se, levaria anos a aprender.
O terceiro problema era eu não perceber as ligações existentes entre o
lado externo e o lado interno. Desconhecia o relacionamento próximo entre
o “aquilo que sentimos” e o “onde nós estamos”. Desconhecia que o
universo das lojas e das vendas e do marketing nem sempre é positivo para
as nossas mentes. Nos anos mais recentes, têm sido realizados muitos
estudos sobre o efeito dos ambientes externos na nossa saúde. Por exemplo,
em 2013, uma pesquisa efetuada pela Universidade de Essex, por
encomenda da Mind, uma organização sem fins lucrativos ligada à saúde
mental, comparou a experiência de andar num centro comercial com a
experiência de um “passeio na natureza” pelo parque Belhus Woods,
precisamente em Essex. Apesar de se saber que uma caminhada, seja em
ambientes fechados ou exteriores, faz bem à mente, cerca de 44% dos
inquiridos disseram ter sentido um decréscimo na sua autoestima ao
caminharem pelo centro comercial. Pelo contrário, quase 90% das pessoas
que caminharam na floresta afirmaram que sentiram um aumento da
autoestima. Como mais tarde irei mencionar, há cada vez mais estudos deste
tipo, ou seja, a apontarem os benefícios da natureza na nossa mente. Mas,
naquela altura, eu não conhecia qualquer pesquisa neste âmbito. Na
verdade, quase não havia estudos sobre o assunto.
Faz sentido que os centros comerciais não sejam locais agradáveis para
se estar. É um ambiente propositadamente cheio de estímulos, um edifício
projetado não para acalmar nem para gerar conforto, mas simplesmente
para nos levar a gastar dinheiro. Provavelmente, uma vez que a ansiedade,
muitas vezes, acaba por desencadear o consumo, não seria do interesse dos
centros comerciais que as pessoas se sentissem serenas e satisfeitas. Para os
interesses de um centro comercial, a serenidade e a satisfação devem ser um
objetivo que se alcança após a compra de algo, em vez de algo a que se
acede simplesmente por estar lá.
O quarto problema relacionava-se com o sentimento de culpa. Eu sentia-
me culpado devido aos sintomas que, na realidade, não encarava como
sintomas de uma doença. Via-os como sintomas do meu estado caótico.
Outra das lições que continuo a tentar aprender – e escrever este livro
está a ajudar-me nesse sentido – é que as distrações não funcionavam (e não
funcionam). Os centros comerciais, por um lado, são ambientes criados com
o propósito de nos distraírem; só que não me distraíam de mim próprio.
Aquela multidão de pessoas não me ajudava a ligar-me aos outros seres
humanos. Sentia-me mais solitário entre aquela gente toda do que quando
estava apenas com outra pessoa ou mesmo sozinho.
Já estava bastante familiarizado com essa tática: tentar encontrar um
tormento qualquer que me distraísse do que me estava a atormentar naquele
momento. Muitos anos antes de existir o Twitter ou a compulsão de ir
espreitar as redes sociais para anestesiar a mente, já eu sentia uma
necessidade desesperada de me distrair com qualquer coisa. Mas não servia
de nada. Os nossos sintomas aprofundam-se, caso tentemos lutar contra
eles, em vez de os acolhermos. A distração é uma tentativa de fuga que
raramente tem sucesso. Não se consegue apagar um incêndio só por
ignorarmos que ele existe; temos de reconhecer a existência do fogo para
depois o apagar. Não é a engolir saliva, ou a enviar tweets, ou a beber álcool
de forma compulsiva que vamos conseguir eliminar a dor. Chega uma altura
em que temos de a enfrentar. Temos de nos enfrentar a nós próprios. Mesmo
num mundo sujeito a um milhão de distrações, continuamos a ter apenas
uma mente.
Os manequins malévolos
QUANDO PENSO AGORA naquele ataque de pânico específico, penso no
modo como o mundo me afetou.. Na altura, ainda que não fosse de forma
totalmente consciente, eu tinha uma noção instintiva dos estímulos em meu
redor. Até os manequins na montra das lojas eram estímulos.
Ali estava eu, naquele espaço comercial fechado, artificial e
movimentado. Muito para lá de um ponto de segurança. Estava em
confronto com a minha individualidade e, ao olhar para a Andrea, percebi
que estava a entrar num processo já bem conhecido: estava prestes a
estragar o nosso dia.
Fechei os olhos, na tentativa de escapar aos estímulos do centro
comercial, mas só via monstros e demónios, num repositório mental de
imagens mais horrendas do que qualquer hidra ou ciclope. Um piscar de
olhos era suficiente para mergulhar imediatamente no meu submundo de
criaturas abomináveis.
– Vá lá, tu consegues. Respira profundamente.
Tentei fazer o que a Andrea me dizia: respirar profundamente. Só que o
ar não parecia ar. Era como se não sentisse o ar. Como se não conseguisse
sentir-me a mim mesmo.
Passei a mão pelos olhos para limpar as lágrimas.
Do lado oposto do corredor, havia uma loja de roupas. Não me recordo
da marca, mas lembro-me perfeitamente, pois ficou gravado na minha
memória como um acontecimento traumático, dos manequins na montra a
envergarem vestidos de mulher. Eram daqueles manequins com cabeça
cinzenta, sem cabelos, com linhas no rosto que sugeriam olhos e nariz meio
abstratos. Manequins sem boca, estáticos, em poses pouco naturais.
O ar deles parecia-me profundamente malévolo. Como se fossem seres
sencientes que não só sabiam da minha dor, como também eram parte dessa
dor. Como se fossem parcialmente responsáveis pela minha dor.
De facto, durante os meses e anos que se seguiram, a sensação de que
certas partes do mundo continham uma qualquer maldade secreta capaz de
nos impor uma enorme dor e desespero, tornou-se um aspeto fundamental
da minha ansiedade e da minha depressão. Podia encontrar essa maldade
num rosto sorridente de revista. Ou nas luzes traseiras dos carros, que
naquele vermelho arrastado se assemelhavam a olhos diabólicos. Ou na
intensa luminosidade azulada de um ecrã de computador.
E, claro, podia encontrar essa maldade no eco sinistro de humanidade
que emanava dos manequins das montras.
Certo dia, quando me sentisse preparado para enfrentar a minha dor,
esta sensibilidade extrema poderia vir a ser útil. Poderia ajudar-me a
entender que, se as coisas externas eram capazes de ter um impacto
negativo em mim, então, outras coisas externas poderiam ter um impacto
positivo. Mas, naquela altura, só estava preocupado com a possibilidade de
estar a perder a minha sanidade.
Estava convencido de que não tinha sido feito para viver na realidade do
nosso mundo. E, de certa maneira, tinha razão. Não tinha sido criado para o
nosso mundo. Fui criado, tal como as restantes pessoas, pelo mundo. Fui
criado pelos meus pais, pela cultura, pela televisão, pelos livros, pela
política, pela escola e talvez até pelos centros comerciais.
Portanto, das duas, uma: ou precisava de um novo eu, ou precisava de
um novo planeta. Mas não sabia como poderia encontrar qualquer um deles,
o que motivou tendências suicidas.
– Tenho de sair daqui – disse, a esfregar os olhos como uma criança
perdida no supermercado.
O termo usado era tão abrangente que tanto podia significar sair da
minha cabeça como sair deste planeta. Mas, claro, naquele momento
significava apenas que eu queria sair do centro comercial.
– Está bem, está bem – concordou a Andrea. Ela estava mesmo ao meu
lado, mas, ao mesmo tempo, parecia estar a milhares de quilómetros de
distância. Depois, olhou em redor, à procura da saída mais próxima. – Por
aqui.
Saímos para o exterior, fomos inundados pela luz natural e regressámos
a casa dos pais da Andrea; fui logo deitar-me na cama que fora da Andrea e
disse aos pais dela que me doía a cabeça, pois uma dor de cabeça era mais
fácil de entender do que o ciclone invisível que rodopiava dentro de mim.
Pois bem, durante semanas e meses, continuei a sofrer, umas vezes
mais, outras menos, até que comecei a melhorar. E, ainda mais importante,
a perceber.
Um desejo
GOSTAVA MUITO de conseguir explicar uma coisa ao meu eu mais novo.
Gostava de lhe poder dizer que aquilo não era só eu. Quem me dera poder
dizer-lhe que havia coisas que eu podia fazer. Porque a minha ansiedade, a
minha depressão, não se limitavam a estar ali. Muitas vezes, a doença, tal
como uma ferida, tem um contexto.
Frequentemente, quando caio num estado de desespero ou nervosismo
mental e a minha cabeça fica cheia de pensamentos indesejáveis que não
consigo refrear, isso resulta de uma sequência de coisas. Quando faço
demasiado, penso demasiado, absorvo demasiado, como demasiado mal,
durmo pouco, trabalho demasiado ou fico demasiado extenuado pela vida,
então o resultado é certo.
Repetidas lesões de esforço mental.
Como viver no século XXI sem ter um ataque de
pânico
1. Vigie-se. Seja seu amigo. Seja seu progenitor. Seja afetuoso consigo.
Analise o que anda a fazer. Será que precisa mesmo de ver o último
episódio da série quando já passa da meia-noite? Será que precisa
mesmo do terceiro ou quarto copo de vinho? Será que isso vai
realmente ao encontro do que é bom para si?
O corpo pensante
Quatro humores
HÁ MUITO TEMPO, na Grécia Antiga, os médicos referiam-se ao corpo
humano como possuindo “quatro humores”. Cada problema de saúde podia
ser atribuído ao excesso ou à falta de um de quatro fluídos corporais:
sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra.
Na era do Império Romano, estes quatro humores passaram a
corresponder a quatro temperamentos. Por exemplo, quem tivesse acessos
de raiva seria diagnosticado como tendo demasiada bílis amarela, que
correspondia ao humor do fogo. Se dissermos a alguém para lavar a cara
com água fria, estamos a dar um conselho de saúde vindo da Roma Antiga.
Se alguém se sentisse deprimido ou melancólico isso devia-se a uma
sobredosagem de bílis negra. Na verdade, a palavra “melancolia” deriva,
pelo latim, das palavras gregas melas (negro) e kholé (bílis).
Este sistema de divisão não parece nada científico. Mas, de certa forma,
era bastante avançado para a época, principalmente por não fazer uma
distinção entre saúde mental e saúde física.
Devemos essa divisão especialmente ao filósofo René Descartes, que
acreditava na separação do corpo e da mente enquanto entidades distintas.
Por volta de 1640, Descartes defendeu que o corpo funcionava como uma
máquina irracional e que a mente, pelo contrário, tinha uma natureza
imaterial.
As pessoas adoraram a ideia. Foi um sucesso. Um sucesso que ainda
hoje tem influência na nossa sociedade.
Mas esta separação não faz muito sentido.
A saúde mental está intrinsecamente ligada ao corpo todo. E o corpo
todo está intrinsecamente ligado à saúde mental. Não podemos traçar uma
linha entre corpo e mente, tal como não podemos traçar uma linha entre
dois oceanos. Ambos estão interligados.
Sabemos que o exercício físico tem um impacto positivo em todos os
tipos de questões mentais, desde a depressão à perturbação de
hiperatividade e défice de atenção. Tal como se sabe que as doenças físicas
têm efeitos a nível mental. A gripe pode causar alucinações. Um
diagnóstico de cancro pode levar à depressão. A asma pode causar um
ataque de pânico. Um ataque cardíaco pode ser mentalmente traumático. Se
o stress provocar dores nas costas – ou um zumbido nos ouvidos, ou dores
no peito, ou um sistema imunitário enfraquecido, ou dores de estômago –,
isso será um problema físico ou mental?
Creio que temos de deixar de encarar a saúde física e a saúde mental
como uma questão de uma ou outra. Não existe diferença entre elas; é uma
e outra. Somos seres mentais e físicos; não podemos ser divididos em
secções independentes. Não somos um grande armazém existencial. Somos
tudo ao mesmo tempo.
Entranhas
O CÉREBRO TEM FORMA FÍSICA.
O fim da realidade
“… este choque entre a imagem que temos de nós e o que realmente
somos é, como sempre, muito dolorosa e há duas coisas que podemos fazer
sobre isso: dar um passo adiante e enfrentar o choque, tentando tornarmo-
nos no que realmente somos, ou dar um passo atrás e tentar permanecer
naquilo que pensávamos que éramos, o que não passa de uma fantasia à
qual, seguramente, acabaremos por sucumbir.
James Baldwin, Nobody Knows my Name
Eu sou o que sou o que sou
POR VEZES, precisamos de dar um passo atrás para depois darmos dois
passos à frente. Precisamos de enfrentar a dor. A dor mais profunda. Só
recentemente me senti preparado para isso.
Preciso de voltar atrás.
Ao tempo antes do centro comercial.
A um quarto de brancura hospitalar.
– Quem sou eu? – perguntei, no centro de saúde espanhol, durante a fase
inicial do meu primeiro colapso mental.
Quando me sinto bem e sereno, a pergunta não é assim tão assustadora.
Quem sou eu? Não existe este eu. Não existe um tu. Ou melhor, existem
milhões de eus. “I” (eu) é a palavra mais longa da língua inglesa.
Atrás de cada eu há outro eu, e mais um eu, e ainda mais um eu, como
se fôssemos uma matrioska. Terei um eu de base? Terás um tu de base? Ou
será que as nossas identidades não são bonecas russas, mas sim espirais
intermináveis? Será a nossa identidade um universo que nunca tem fim,
mas que nos pode levar ao ponto de partida?
Num estado relativamente estável, agrada-me filosofar sobre estas
questões. Suponho que talvez exista um eu bem definido que possa
formular estas perguntas. Mas, quando estava doente, estas preocupações
não eram meras abstrações. Eram mistérios angustiantes à espera de
resolução, como se a minha própria vida dependesse disso. E a minha vida
dependia mesmo disso. A sensação de autoconsciência desaparecera –
abafada pela multidão – e eu sentia que poderia ficar aprisionado num eu
infinito, a flutuar silenciosamente no pânico, sem nenhum sítio onde
pudesse pousar.
Realidade versus supermercados
É FREQUENTE os ataques de pânico acontecerem nos supermercados.
Conheço uma pessoa que só teve um ataque de pânico na vida.
Aconteceu num supermercado.
Quando vasculhava os grupos de mensagens do início do século XXI à
procura de dicas para lidar com a ansiedade, a ligação do ataque de pânico a
supermercados aparecia em praticamente todos. Neste momento, estou a ver
um grupo que começa assim: “PORQUE TEMOS ATAQUES DE PÂNICO QUANDO
ESTAMOS A FAZER COMPRAS NUM SUPERMERCADO?”
O pânico existe para nos auxiliar. Tal como noutros animais, o pânico é
a forma de a nossa mente e de o nosso corpo nos dizerem que temos de
fazer alguma coisa. Fugir ou lutar. Escapar do predador ou enfrentá-lo. Mas
um supermercado não é um urso ou um lobo ou um inimigo humano do
tempo das cavernas. Não se luta com um supermercado. Podemos fugir
dele, mas isso só aumentará a possibilidade de termos um ataque de pânico
da próxima vez que tivermos de lá voltar. E pode até nem ser àquele
supermercado específico. Se entramos no jogo de evitar um sítio, qualquer
supermercado pode tornar-se uma ameaça. E, depois, todas as lojas. E,
depois, todo o mundo lá fora.
As pessoas que nunca tiveram a experiência de viver um período com
perturbações de ansiedade e pânico não conseguem entender que é possível
perder a sensação de sermos reais. Isso é algo que as pessoas nem notam.
Não nos levantamos de manhã e, enquanto barramos manteiga de
amendoim na nossa torrada, pomo-nos a pensar: “Ah, muito bem, mantém-
se intacta a consciência de que eu sou eu e de que o mundo continua a ser
algo real, por isso posso ir à minha vida.” É algo que já está lá. Até deixar
de estar. Até darmos por nós no corredor dos cereais, imersos num terror
inexplicável.
É fácil descrever os sintomas mais óbvios que ocorrem durante um
ataque de pânico: pensamento acelerado, palpitações, rigidez do peito, falta
de ar, náuseas, sensação de formigueiro no interior da cabeça ou nos braços
e pernas. Mas há outro sintoma mais complicado que eu costumava ter. Um
que, vim a constatar, acaba por estar no cerne dos meus ataques de pânico, e
que tem um nome bem apropriado: a desrealização.
Mesmo dentro da sensação de desrealização, eu continuava a saber que
eu era eu. Só não sentia que eu fosse eu. Era uma sensação de estar
desintegrado. Como uma escultura de areia a esboroar-se.
Esta sensação reveste-se de um paradoxo: sentimos uma intensidade
extremada do nosso eu e, simultaneamente, um esvaziamento do nosso eu.
Há uma sensação de ponto sem retorno, como se, subitamente, tivéssemos
perdido alguma coisa, algo que nem sequer fazíamos ideia de que era
preciso cuidar. E essa coisa a necessitar do nosso cuidado éramos nós.
Ao pensar nas razões que levam os supermercados a serem um gatilho
tão poderoso para o despertar de ataques de pânico, surge-me a ideia de que
talvez seja por serem espaços, já em si, um tanto fora da realidade. Os
supermercados, tal como os centros comerciais, são locais inteiramente
artificiais. Nesta era das compras online, até podem parecer espaços
antiquados, quase exóticos, ainda assim são bastante mais modernos do que
a nossa natureza biológica.
Num supermercado não há luz natural. O zumbido ameaçador das arcas
frigoríficas parece a banda sonora de um filme de terror. As opções ao
nosso dispor superam as nossas capacidades naturais de escolha. A
multidão e as prateleiras são hiperestimulantes. Muitos dos produtos não
são naturais. Não apenas porque grande parte deles têm aditivos químicos,
embora isso também conte, mas porque foram adulterados. As latas de
atum, os sacos de salada, as caixas de arroz tufado com adoçantes, os
panados de frango, as carnes processadas, os comprimidos de vitaminas, os
frascos de alho já picado, os pacotes de batatas fritas com sabor a chili…
nada disto é natural. E, neste ambiente artificial, também nos podemos
sentir artificiais, caso a nossa ansiedade não esteja suficientemente
controlada. Podemos sentirmo-nos tão distantes de nós próprios como um
rolo de papel higiénico está distante de uma árvore. Durante os meus
ataques de pânico nos supermercados, os objetos nas prateleiras ganhavam
uma faceta que eu achava sinistra. Pareciam extraterrestres. E, de certo
modo, eles eram e são alienígenas. Tinham sido retirados do lugar a que
pertenciam, algo com o qual eu conseguia identificar-me. Talvez isso seja a
raiz de tudo. Eu sentia que não pertencia ali. Era-me impossível encontrar
paz num local tão sobrecarregado de tudo, num local tão artificial. O medo
era a única coisa que, nesses momentos, conhecia de mim próprio. E toda
aquela parafernália de objetos duplicados no supermercado só me fazia
sentir pior. “Os objetos não deviam impressionar o tato, visto que não
vivem”, escreveu Sartre, em A Náusea, numa altura em que, seguramente,
estava a ter uma semana má. “(…) E, a mim, os objetos tocam-me; é
insuportável. Tenho medo de entrar em contacto com eles, como se fossem
animais vivos.”
Os objetos dos supermercados também não são como os outros objetos.
São objetos a quem impuseram marcas. Enquanto os produtos se limitam a
existir no espaço físico, as marcas tentam chegar ao nosso espaço mental.
Querem entrar nas nossas cabeças. Em muitos casos, as companhias têm
psicólogos de marketing para fazerem isso mesmo. Para brincarem com as
nossas mentes. Para nos manipularem, levando-nos a comprar objetos.
Homem das cavernas
IMAGINEM QUE UMA mulher do tempo das cavernas tinha ficado
congelada há 50 mil anos.
Vamos chamar-lhe Su.
Agora imaginem que o bloco de gelo em que ela estava congelada
começava a derreter em frente ao supermercado do vosso bairro.
Su, a mulher das cavernas, entra no supermercado. As portas
automáticas fecham-se atrás dela, como que por artes mágicas. A luz, as
cores e o aglomerado de pessoas assustam-na. Os carrinhos de compras
parecem-lhe estranhos animais metálicos que os humanos conseguiram
domesticar, empurrando-os em várias direções. Su espanta-se com as
prateleiras resplandecentes, repletas de mercadorias em pacotes de plástico.
Os terminais de pagamento automático são desconcertantes. Os sacos que
as pessoas carregam parecem feitos de uma estranha pele branca.
– Artigo desconhecido no terminal de pagamento automático – diz uma
voz robótica. – Artigo desconhecido no terminal de pagamento
automático… Artigo desconhecido no terminal de pagamento automático…
Su começa a entrar em pânico. Corre em direção à janela, bate contra o
vidro e entra num pranto incompreensível.
– Owagh! Agh! Ug-aggh!
Seguem-se outros urros.
Eis-nos chegados ao volte-face final desta história.
(Rufar de tambores.)
A Son, com efeito, somos Nós.
(Um abrir de boca irónico.)
A Su somos todos nós. A única diferença é que nós estamos um pouco
mais habituados aos supermercados.
Em termos biológicos, não mudámos ao longo destes 50 mil anos. Mas
a sociedade mudou. E muito. Espera-se, até, que fiquemos gratos por esta
mudança. Afinal de contas, se Su não tivesse ficado congelada,
provavelmente teria morrido aos 22 anos debaixo de uma cavalgada de
javalis, ou aos 16 anos, sacrificada num ritual qualquer. E nós somos
sortudos. Não pode haver melhor sorte do que sermos um humano que vive
no século XXI, em vez de um ser morto da época neolítica.
Mas, justamente devido a essa sorte, temos de estimar a vida que nos foi
concedida. Que razão haveria para não o fazer, se, para além de nos
sentirmos sortudos, também nos pudéssemos sentir outras coisas, como
serenos, felizes, saudáveis? Não deveríamos, por isso, querer saber o que o
mundo nos pode fazer? Porque esse conhecimento pode ajudar-nos.
A mim, atualmente, essa noção ajuda-me quando estou num
supermercado. Nos centros comerciais. No IKEA. Ao computador. Numa
rua cheia de gente. Quando estou sozinho num quarto de hotel. Ajuda-me
seja em que lugar for. Ajuda-me saber que sou apenas um homem das
cavernas num mundo que evoluiu mais depressa do que os nossos corpos e
mentes.
Borrão
HÁ DOIS DIAS, vacilei. Senti novamente a estranha dor psicológica do céu
cinzento. Ao ir buscar a minha filha à aula de dança, senti que me estava a
afundar no passeio. Ao reconhecer a velha sensação de agorafobia, comecei
a engolir saliva compulsivamente.
Só que, agora, comparando com o passado, já estou ligeiramente mais
consciente do que se passa. Sabia que não andava a dormir bem. Que
andava a trabalhar demasiado. Que andava demasiado preocupado com este
livro. Que andava preocupado com um milhão de pequenas coisas
estúpidas. Por isso, parei de pensar em e-mails, afastei-me deste documento
de Word, assisti a um vídeo de “ioga para dormir”, alimentei-me com
comida saudável e tentei desligar. Resolvi ir passear o cão à beira-mar.
Então, percebi: não tem importância nenhuma. Deixa de ser neurótico.
Nada das coisas que me preocupavam mudariam o estado da minha
vida. Eu continuaria a poder ir passear o cão. Continuaria a poder ver o mar.
Continuaria a poder passar tempo com as pessoas que amo.
E a ansiedade bateu em retirada, como se fosse uma criminosa, a ser
interrogada sob um foco de luz.
14.
Desejos
“Talvez, quando nos encontremos a querer tudo, seja por estarmos
perigosamente a não querer nada.”
Sylvia Plath
Poço dos desejos
Ao escrever este livro, digitei “como posso ser” no Google. Eis as cinco
sugestões de autopreenchimento que me apareceram:
– Rico
– Famoso
– Modelo
– Piloto
– Ator
Transcendência
ANDAM A VENDER-NOS infelicidade porque é na infelicidade que se ganha
dinheiro.
A maior parte doq eu nos é vendido baseia-se na ideia de que
poderíamos ficar melhor do que estamos se tentássemos ser outra coisa.
Pensem no caso das revistas de moda.
Durante 25 anos, Lucinda Chambers foi diretora de moda da Vogue
britânica. Logo após ter deixado o cargo, disse o que pensava sobre a
indústria em que trabalhara tanto tempo. Chambers declarou que, apesar de
todo o discurso em redor de dar confiança e poder às pessoas, poucas são as
revistas que contribuem, de facto, para que as pessoas se sintam mais
confiantes. “A maior parte delas deixa-nos com níveis de ansiedade
elevados, seja por não darmos o jantar festivo mais adequado, por não
pormos a mesa da forma correta ou por não andarmos a conhecer as pessoas
certas”, disse a ex-diretora à revista Vestoj, numa entrevista que
rapidamente se tornou viral. Além disso, o modo como as revistas de moda
se centram em roupas de preços inacessíveis (para a maior parte dos
leitores) serve apenas para exacerbar a infelicidade, ao levar as pessoas a
pensarem que são pobres.
“Na moda, estamos sempre a tentar que as pessoas comprem algo de
que não precisam”, continuou Chambers. “Não precisamos de mais malas,
camisas ou sapatos. Por isso, persuadimos, encorajamos ou coagimos as
pessoas para que elas continuem a comprar coisas.”
As revistas, os sítios de Internet e as páginas de redes sociais ligadas à
moda acabam por vender uma espécie de transcendência. Vendem uma
saída. Uma escapatória. Mas, muitas vezes, isto tem um efeito pouco
saudável, pois, para que as pessoas se transcendam, primeiro temos de as
deixar infelizes com aquilo que são.
As pessoas acabam por comprar um livro de dietas para ficar com o
corpo da modelo que está na capa ou adquirem um perfume na tentativa de
se aproximarem da imagem da celebridade que tem o nome gravado no
frasco, mas isso tem um custo que vai para lá do mero aspeto financeiro.
Sim, as pessoas até podem sentir-se melhor no momento da compra, mas, a
longo prazo, estão apenas a alimentar a vontade de ser outra coisa qualquer:
mais glamorosa, mais atraente, mais famosa. Somos encorajados a sairmos
de nós e a querermos outras vidas. E essas vidas alternativas são tão reais
como o tal pote de ouro no fim do arco-íris.
Talvez o segredo de beleza que nenhuma revista de moda nos quer
contar esteja no facto de, para ficarmos felizes com a nossa aparência,
termos de aceitar o que já somos. Vivemos na era do Photoshop e da
cirurgia estética e, em breve, estaremos na era dos robôs criados por
designers. Provavelmente, esta será a altura ideal para aceitarmos as nossas
idiossincrasias humanas, em vez de procurarmos atingir a perfeição insípida
de um androide.
Podemos pensar: ah, preciso de ter um determinado aspeto para atrair as
outras pessoas. Ou podemos pensar: vendo bem, ser como sou é a melhor
forma de filtrar as pessoas que não vão ser boas para mim.
A infelicidade com a nossa aparência não está relacionada com o nosso
aspeto; as modelos, obviamente, não têm perturbações do comportamento
alimentar por terem peso a mais ou serem feias.
Vários indicadores mundiais assinalam o aumento das perturbações do
comportamento alimentar. Em 2017, a organização sem fins lucrativos
Eating Disorder Hope, depois de analisar várias pesquisas a nível
internacional, reportou que as perturbações do comportamento alimentar, a
nível mundial, mostravam uma tendência de subida semelhante à dos países
ocidentais e dos países industrializados. Na Ásia, por exemplo, sítios como
Japão, Hong Kong ou Singapura têm taxas bastante mais elevadas do que
Filipinas, Malásia ou Vietname, embora estes últimos países apresentem
taxas de crescimento semelhantes às dos países “avançados” e
“ocidentalizados”.
As Fiji são outro caso paradigmático. Segundo as pesquisas efetuadas, a
taxa de perturbações do comportamento alimentar começou a aumentar em
meados da década de 90 do século XX, na altura em que a televisão chegou
pela primeira vez àquelas ilhas do Pacífico Sul. Em 1999, o The New York
Times publicava um artigo em que referia a quase inexistência de
perturbações do comportamento alimentar nas Fiji, isto antes de a televisão
ter apresentado outro tipo de modelos, bastante mais magros, em séries de
sucesso mundial como Melrose Place e Beverly Hills 90210. Nas Fiji, antes
desta invasão televisiva que mostrava novos ideais de corpos às raparigas e
aos rapazes locais, quando se dizia a alguém “engordaste” isso era
considerado um elogio.
No Reino Unido, os números do Serviço Nacional de Saúde (NHS
Digital) para 2018 revelaram que as admissões hospitalares relativas a
perturbações do comportamento alimentar praticamente duplicaram em
menos de uma década, sendo as raparigas de 20 e poucos anos a faixa de
maior risco. Na altura em que vieram a público estes números, Caroline
Price, da Beat, a principal organização não governamental ligada às
perturbações do comportamento alimentar, disse ao The Guardian que,
apesar de as perturbações do comportamento alimentar serem “complexas”
e se deverem a “muitos fatores”, também terão muito que ver com a cultura
dos nossos tempos. “As perturbações do comportamento alimentar estão a
aumentar, em parte, devido aos desafios impostos pela sociedade dos nossos
dias, onde se incluem a pressão das redes sociais e a pressão dos exames.”
Embora estes fatores não sejam a única causa do problema, tal como é
reconhecido por especialistas como Caroline Price, podem ser agravantes
para as personalidades mais predispostas a terem perturbações deste tipo.
De acordo com a organização britânica Centro Nacional para as
Perturbações do Comportamento Alimentar (NCED), os fatores causais
incluem fatores genéticos, pais com distúrbios alimentares, ser maltratado
por ser gordo, negligência ou abuso da criança, traumas infantis, relações
familiares, ter um amigo com alguma perturbação do comportamento
alimentar e, por último, mas não menos importante, a “cultura”. E, neste
âmbito, torna-se particularmente problemática uma cultura na qual parece
existir sempre uma nova dieta para experimentar e em que, de acordo com o
sítio da NCED, “um indivíduo vulnerável interioriza as imagens que vê na
televisão ou nas revistas, comparando-se sempre desfavoravelmente com
essas imagens de um ideal impossível de alcançar».
O sítio de Internet acrescenta ainda que “as pessoas que conseguem
admirar uma modelo bonita, mas dizem ‘eu nunca conseguiria ser como ela,
mas isso não me incomoda lá muito’ são as que têm menores
probabilidades de serem vítimas de problemas com a alimentação”. Talvez
este corte entre as imagens que vemos e aquilo que somos possa ser uma
lição para todos nós. Precisamos de construir uma espécie de sistema
imunitário da nossa mente, para podermos absorver o mundo à nossa volta,
sem que ele acabe por nos infetar.
Como sermos mais bondosos connosco sobre nós
próprios
1. Pensem nas pessoas de quem gostaram. Nas relações mais profundas
que já tiveram. Na alegria que sentiam quando viam essas pessoas. Em
como essa alegria não tinha nada a ver com a aparência delas, exceto o
facto de se parecerem com elas próprias e de estarmos contentes por as
ver. Seja seu amigo. Fique feliz por reconhecer a pessoa por detrás do
seu rosto.
10. Faça alguma coisa durante o dia que não seja trabalho, ou tarefas
domésticas, ou estar na Internet. Dance. Dê uns pontapés numa bola.
Faça crepes. Toque música. Jogue Pac-Man. Faça festas a um cão.
Aprenda a tocar um instrumento. Telefone a um amigo. Brinque no
chão com uma criança. Saia de casa. Vá dar um passeio. Sinta o
vento na cara. Ou então deite-se no chão, encoste os pés à parede e
respire apenas.
Um apontamento sobre querermos coisas
NÃO HÁ PROBLEMA em desejarmos coisas – seja fama, uma aparência
jovem, 10 mil gostos, abdominais musculados, donuts –, mas tenham em
conta que querer também significa que algo pode estar em falta. É isso que
implica “querer”: o momento em que passamos a querer algo é também o
momento em que nos tornamos insatisfeitos. Por isso, há que ter cuidado
com o que queremos, para não criamos demasiados buracos dentro de nós,
buracos por onde a felicidade possa escapar, como se fôssemos um balde
furado. Quanto mais coisas quisermos, mais nos perderemos a nós, gota a
gota.
Se já fosse suficientemente bom, em que gastaria o
seu dinheiro?
A FELICIDADE NÃO É amiga da economia.
Somos constantemente encorajados a sentirmo-nos, pelo menos, um
pouco insatisfeitos connosco. Dizem-nos que os nossos corpos são
demasiado gordos, ou demasiado magros, ou demasiado flácidos.
Espera-se que a nossa pele tenha a dose adequada de bronzeado ou o
tom certo de luminosidade. E, o que é deprimente, a indústria de
branqueamento da pele já vale milhares de milhões de dólares, e tem
crescido de ano para ano. Trata-se de um exemplo particularmente
perturbador, mas esta ideia de não nos sentirmos suficientemente bem tem
sido explorada por empresas de praticamente todas as áreas de negócio. De
facto, por vezes parece que a única intenção do marketing é fazer com que
as pessoas se sintam mal na sua pele.
Neste âmbito, vejamos o que diz Robert Rosenthal, autor de
Optimarketing: Marketing Optimization to Electrify Your Business. Em
2014, Rosenthal escreveu na revista Fast Company que, para se ser um
marketeer de sucesso, é necessário pensar em termos dos benefícios do
produto, em vez de pensar nas características do mesmo. O que até parece
inócuo, certo?
Mas, depois, Rosenthal acrescentava que os benefícios têm
frequentemente uma componente psicológica. “O medo, a incerteza e a
dúvida, ou MID, costumam ser usados de forma legítima pelas empresas e
organizações para obrigarem os consumidores a parar, pensar e mudarem o
seu comportamento. O MID é tão poderoso que tem a capacidade de arrasar
com a concorrência.”
Para os gurus do marketing, o sucesso da campanha é a única coisa que
interessa. Os fins justificam os meios. E quase nem apetece pensar nas
consequências mais amplas de se deixarem milhões de pessoas mais
ansiosas do que aquilo que precisariam de estar.
Mesmo quando uma campanha publicitária não está, de forma muito
clara, a invocar o medo, ainda assim, pode continuar a ter efeitos nocivos a
nível psicológico. Se nos vendem a ideia de sermos porreiros graças a umas
calças, inconscientemente, passamos a sentir a pressão de obtermos e
mantermos esse estatuto de porreiros. Também acontece com frequência,
depois de gastarmos muito dinheiro num objeto desejado, ficarmos com a
sensação de que nos estamos a afundar. O nosso anseio por algo raramente
se traduz em satisfação quando a obtemos. Por isso, passamos a desejar
outra coisa qualquer, num círculo vicioso. Somos encorajados a querer o
que nos leva a querer outra coisa.
Em resumo, encorajam-nos a sermos viciados.
Nunca chega
NADA É SUFICIENTE.
“Quero dizer, muito a sério, que muitos males estão a ser causados ao
mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e que o caminho para a
felicidade e prosperidade reside numa diminuição organizada do trabalho.”
Bertrand Russel, In Praise of Idleness (1932)
O trabalho é tóxico
1. Historicamente, distanciámo-nos do modo como costumávamos
trabalhar. Enquanto seres individuais, raramente consumimos o que
produzimos. Muitas vezes, as pessoas não conseguem trabalhos de
acordo com as suas qualificações. Aos poucos, o trabalho humano
começa a ser substituído pelas máquinas. Terminais de pagamento
automático. Linhas de montagem robotizadas. Atendimento telefónico
automatizado.
4. Em casos mais graves, o stress no local de trabalho pode ser fatal. Por
exemplo, entre 2008 e 2009, bem como em 2014, a companhia de
telecomunicações francesa Orange reportou vagas de suicídios de
funcionários. Após a primeira vaga, quando 35 funcionários se
mataram num espaço de meses, o patrão da companhia desvalorizou o
sucedido, ao qual se referiu como “uma moda”, embora um relatório
oficial, citado no The Guardian, apontasse o dedo ao clima de “assédio
por parte da gestão” que tinha “fragilizado psicologicamente os
trabalhadores, pondo em causa a sua saúde física e mental”.
9. As pessoas trabalham cada vez mais tempo, mas essas horas extra não
garantem, por si só, uma maior produtividade. Quando a Suécia fez um
estudo experimental para testar horários de trabalho de seis horas
diárias para as enfermeiras de Gotemburgo, os resultados mostraram
que as enfermeiras se sentiam mais felizes e enérgicas do que quando
trabalhavam oito horas por dia. E isso refletiu-se no menor número de
faltas por doença, na redução das queixas físicas (como dores de costas
ou dores no pescoço) e num aumento da produtividade por hora de
trabalho.
8. Não pense que o seu trabalho é mais importante do que aquilo que é.
“Um sintoma de que está perto de um esgotamento é pensar que o seu
trabalho é tremendamente importante”, disse Bertrand Russell.
Moldar o futuro
Progresso
SE DISSESSE QUE o progresso tecnológico é, no seu todo, uma coisa má,
isso seria entendido como uma afirmação tresloucada, conservadora e
reacionária.
Quase ninguém trocaria o mundo tecnológico em que vivemos pelo
mundo de há 100 anos. Quem é que gostaria de prescindir dos automóveis,
do GPS, dos smartphones, dos computadores portáteis, das máquinas de
lavar, do Skype, das redes sociais, dos videojogos, do Spotify, dos raios-X,
dos pacemakers, das caixas multibanco, das compras online? Eu,
certamente, não.
Ao escrever este livro, tentei debruçar-me sobre o custo para os
humanos, em termos psicológicos, de viver neste mundo, através da única
forma como o poderia fazer: a minha própria mente. Já escrevi que nós,
enquanto seres individuais, podemos tentar mantermo-nos sãos dentro de
um mundo capaz de enlouquecer qualquer um. O facto de eu ter tido uma
doença mental, apesar de ter sido um verdadeiro pesadelo, acabou por me
ensinar algumas coisas sobre os tormentos do mundo moderno e os vários
aspetos que desencadeiam a ansiedade.
Porém, aquilo com que realmente me debato é sobre o que podemos
fazer enquanto sociedade. Não podemos voltar atrás no tempo. Não
podemos, subitamente, varrer a tecnologia; aliás, nem o quereríamos. Por
isso, como é que nós, como um todo, podemos contribuir para criar um
mundo melhor para todos?
Uma das pessoas que melhor respondeu a esta pergunta foi Yuval Noah
Harari, professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, cujos
livros inovadores Sapiens e Homo Deus nos questionam sobre os traços que
nos tornam seres humanos e o modo como a tecnologia está a alterar o
nosso mundo e, mais do que isso, sobre o a forma como está a transformar a
própria humanidade. Harari descreve um cenário terrível para o futuro, com
um mundo onde os humanos podem vir a ser ultrapassados pelas máquinas
que eles próprios criaram. “O Homo Sapiens, tal como o conhecemos,
desaparecerá sensivelmente no espaço de um século”, conclui o professor
universitário, de modo deprimente.
Depois de ler as obras de Harari, interroguei-me sobre as razões que
levam a humanidade a querer apressar, de forma voluntária, um futuro que,
aos poucos, a tornará redundante. Isso fez-me lembrar outro livro que me
inspirou, quando era mais jovem – Straw Dogs, escrito pelo filósofo John
Gray – que explorava de forma brutal a ideia de que o progresso da
sociedade humana, afinal, não passa de um perigoso mito. À luz daquilo
que sabemos, somos os únicos animais obcecados com a ideia do progresso.
Se por acaso existirem tartarugas historiadoras a agradecer às gerações
passadas por terem ajudado a criar uma sociedade de tartarugas mais
esclarecida, bem, então isso está a passar-nos ao lado.
Num artigo para o The Observer, perguntei a Harari se deveríamos
tentar resistir à ideia de futuro como um cenário de inevitável progresso
tecnológico. Deveríamos tentar criar um tipo de futurismo diferente?
“Não podemos simplesmente parar o progresso tecnológico”,
respondeu Harari. “Mesmo se um país suspender a sua pesquisa no campo
da inteligência artificial, outros países vão continuar a fazê-la. A grande
questão é o que fazer com a tecnologia. A mesma tecnologia pode ser usada
para fins sociais e políticos muito diferentes.”
Nos nossos dias, a Internet parece ser o caso mais óbvio. Mas, aquilo a
que antigamente chamávamos world wide web também é o exemplo de algo
que começou como um ideal utópico e que rapidamente descambou numa
distopia.
“Se olharmos para o século XX, podemos constatar que era possível criar
uma ditadura comunista ou uma democracia liberal a partir da mesma
tecnologia da eletricidade e dos comboios”, prosseguiu Harari. “Passa-se o
mesmo com a inteligência artificial e a bioengenharia. Por isso, penso que
as pessoas não se deviam concentrar em formas de evitar o progresso
tecnológico, pois isso é uma impossibilidade. Em vez disso, o foco devia
estar no tipo de utilização que vamos dar às novas tecnologias. E, neste
ponto, ainda temos bastante poder para influenciar o rumo que a tecnologia
está a tomar.”
Portanto, tal como tantas outras coisas, a resposta para a resolução do
problema passa, antes de mais, por estarmos cientes do problema. Dito de
outra forma: a solução para tornar as nossas mentes e o nosso planeta mais
saudáveis e felizes é, no fundo, a mesma. Quando Harari referiu que
podemos usar a mesma tecnologia para fins muito diferentes, isso tanto se
aplica a nível micro como macro; tanto ao indivíduo como à sociedade.
Termos consciência da forma como a nossa utilização da tecnologia nos
afeta é também, de forma indireta, estarmos conscientes de como a
tecnologia afeta o planeta. Não é o planeta que nos molda; nós moldamos o
planeta através das nossas escolhas de vida.
Por vezes, quando nós – e as nossas sociedades – caminhamos na
direção de algo pouco saudável, temos de tomar a atitude mais corajosa e
mais difícil de todas: temos de mudar.
Essa mudança pode assumir muitas formas diferentes. Pode significar o
uso da tecnologia como um auxiliar da nossa mente, através de uma
aplicação que limite a nossa utilização das redes sociais, ou instalar um
regulador de luminosidade, ou fazer mais caminhadas, ou ser mais amável
para com as pessoas quando estamos online, ou escolher um carro menos
poluente. Em última análise, sermos gentis connosco é a mesma coisa que
sermos gentis com o planeta.
“Progresso significa estarmos mais perto do lugar a que queremos
chegar”, escreveu C. S. Lewis. “Mas, se estivermos no caminho errado,
seguir em frente não nos vai deixar mais próximos desse lugar.”
Eis uma forma fantástica de encararmos esta questão. Um avanço, seja a
nível individual ou global, não é algo intrinsecamente positivo. Por vezes,
empurramos a nossa vida na direção errada. Por vezes, as sociedades
caminham na direção errada. Se sentirmos que isso nos está a deixar
infelizes, progredir pode significar dar meia-volta e caminhar para trás até
encontrar a estrada certa. Mas nunca devemos sentir, seja a nível pessoal ou
de uma cultura comum, que apenas existe uma versão do futuro, e que esta
é inevitável.
Cabe-nos moldar esse futuro.
Espaço
OS ESPAÇOS SÃO essenciais para moldar o nosso próprio futuro.
Precisamos de nos assegurar da existência de espaços onde possamos ser
livres. Espaços físicos e espaços mentais onde seja possível sermos nós
próprios.
Cada vez mais, as nossas cidades e vilas são espaços que nos querem lá
como consumidores, não tanto enquanto pessoas. O que só torna ainda mais
premente a valorização dos tais espaços, presentemente sob ameaça, onde
ainda podemos existir como um indivíduo economicamente irrelevante.
Espaços como florestas, parques, museus públicos, galerias de arte,
bibliotecas.
As bibliotecas, por exemplo, são espaços maravilhosos que, atualmente,
correm perigo de vida. Muitas pessoas com responsabilidades políticas
pensam que as bibliotecas são obsoletas nesta era da Internet. O que está
longe de ser verdade. Muitas estão a usar a Internet de forma inovadora,
quer no acesso aos livros quer no acesso à própria Internet. Além disso, as
bibliotecas não têm que ver só com os livros. Representam um dos poucos
espaços públicos que não preferem a carteira ao dono da carteira.
Mas existem outros espaços que estão igualmente sob ameaça.
Espaços que não são físicos. Espaços de tempo. Espaços digitais.
Algumas empresas de serviços de Internet procuram ver-nos cada vez
menos como seres individuais, cada vez menos como seres humanos, para
nos encararem como um organismo cheio de dados que podem recolher
para posteriormente venderem.
E há espaços do dia e da semana que estão a ser constantemente
engolidos em função do trabalho e de outras responsabilidades.
E há até espaços mentais que estão sob ameaça. Parece ser cada vez
mais difícil encontrar tempo para pensar livremente ou, pelo menos, pensar
calmamente. O que poderá explicar o aumento das perturbações da
ansiedade, como também o aumento de práticas que procuram contrariar
essa tendência, como o ioga e a meditação.
Além dos espaços físicos, as pessoas estão desejosas de espaços mentais
nos quais podem ser livres. Um espaço à margem das coisas que, neste
mundo já de si agitado, nos distraem o pensamento, sem nós o pedirmos,
enchendo-nos a cabeça como se fossem uma série de anúncios pop-up para
a mente. Esse espaço livre ainda existe, à espera de ser descoberto por cada
um de nós. Acontece que não podemos ficar à espera que ele venha ter
connosco. Temos de ser nós a procurá-lo. Talvez seja necessário estabelecer
um horário para a leitura, ou fazer ioga, ou tomar um longo banho de
imersão, ou cozinhar um dos nossos pratos preferidos, ou fazer uma
caminhada. Talvez seja necessário desligar o telemóvel. Fechar o portátil.
Desconectarmo-nos, de forma a encontrarmos uma espécie de versão
acústica do nosso ser.
A ficção é liberdade
OS LIVROS, através das histórias e da ficção, podem ser uma forma de
recuperarmos algum espaço.
Quando eu tinha 11 anos, sem amigos e com dificuldades de integração
na escola, li Os Marginais, Tempos de Juventude e Tex, todos de S. E.
Hinton, e subitamente voltei a ter amigos. Os livros que a autora escrevera
eram meus amigos. As personagens que ela criara eram minhas amigas. E
eram amigos a sério, pois ajudaram-me, tal como, noutras alturas, fui
ajudado pelos meus amigos Ursinho Pooh, Scout Finch, Pip ou pela Cécile,
de Bonjour Tristesse. As histórias em que eles habitavam eram lugares onde
eu me podia esconder e sentir-me em segurança.
Os mundos da ficção são essenciais neste planeta que pode tornar-se
excessivo, neste planeta em que estamos a ficar sem espaço mental. Esses
mundos podem funcionar como um escape à realidade, sim, mas não como
escapatória à verdade. É precisamente o contrário. Eu costumava ter
dificuldades em integrar-me no mundo “real”. Os códigos que tínhamos de
seguir. As mentiras que tínhamos de dizer. Os risos que tínhamos de fingir.
Mas eu não sentia que a ficção fosse uma fuga a essas verdades; era uma
espécie de porta de entrada nessa realidade. Mesmo que a verdade do livro
estivesse repleta de monstros ou ursos falantes, o certo é que havia ali
sempre algum tipo de verdade. Uma verdade capaz de manter a nossa
sanidade ou, pelo menos, de nos manter na nossa pele.
No meu caso, ler nunca foi uma atividade antissocial. Bem pelo
contrário, era profundamente social. Ficar intimamente ligado à imaginação
de outro ser humano era o tipo de socialização mais profunda que podia
existir. Ler era uma forma de me ligar a algo, sem necessidade de passar
pelos inúmeros filtros que, geralmente, a sociedade impõe.
Muitas vezes, dá-se importância à leitura devido ao valor social. A
leitura está associada à educação, à economia, e por aí fora. Mas isso é
passar ao lado do verdadeiro sentido da leitura.
Ler não é importante por nos ajudar a arranjar um emprego. É
importante por nos dar um espaço em que podemos existir para lá da nossa
vida real. É a forma de os seres humanos se juntarem. De as mentes se
ligarem umas às outras. É a forma dos sonhos, da empatia, da compreensão,
do escape.
A leitura é amor em ação.
Não precisa de ser nos livros. Mas temos de encontrar esse espaço.
Somos frequentemente encorajados a querer as experiências mais
radicais e excitantes. A agir sob o impulso do momento. Just do it, como
nos incitava constantemente o slogan da Nike, como se fosse um personal
trainer. Como se o significado da vida estivesse numa medalha de ouro, ou
na escalada do Evereste, ou em ser cabeça de cartaz num festival, ou em ter
um orgasmo intenso ao saltar de paraquedas sobre as cataratas do Niágara.
Eu costumava sentir o mesmo. Queria perder-me nas experiências mais
intensas, como se a vida fosse apenas um copo de tequila bebido de um só
trago. Mas a maior parte das vidas não pode ser vivida desta forma. Para
termos alguma possibilidade de atingir uma felicidade duradoura,
precisamos de abrandar. Além de simplesmente fazermos, temos também de
simplesmente sermos.
Enchemos as nossas vidas de atividades, porque, no mundo ocidental,
sentimos frequentemente que a felicidade e a satisfação são alcançadas pela
aquisição, por “agarrar a vida pelos cornos”, por aproveitar cada dia ao
máximo. Por vezes, talvez fosse melhor substituir este conceito da vida, de
que algo se “agarra” ou se “alcança”, por alguma coisa que já tenhamos.
Vamos seguramente desfrutar mais da vida, caso limpemos o que anda a
atafulhar a nossa mente.
“Muitas pessoas pensam que a excitação é felicidade, mas não se está
em paz quando se está excitado. A verdadeira felicidade baseia-se na paz”,
escreveu o monge budista Thich Nhat Hanh, em A Arte do Poder.
Pessoalmente, não quereria uma vida completamente neutra, com base
numa completa paz interior. De vez em quando, quero ter algumas
experiências mais radicais, mais intensas, mais animadas. Isso faz parte de
mim. Mas, mais do que nunca, também anseio por aquele tipo de paz e
aceitação.
Precisamos de criar um espaço interior para nos conhecermos melhor,
para nos sentirmos mais confortáveis com o nosso eu; precisamos de um
espaço para nos descobrirmos, longe de um mundo que, tantas vezes, nos
encoraja a perdermo-nos de nós próprios.
Precisamos de criar um espaço de tempo para nós, seja através dos
livros, da meditação ou de olhar a paisagem através de uma janela. Um sítio
onde não estejamos a ansiar, a desejar, a trabalhar, a preocuparmo-nos, a
pensar em tudo e mais alguma coisa. Um sítio onde nem sequer esperemos
algo. Um lugar onde possamos ficar neutros, onde possamos simplesmente
respirar, onde possamos ser, imersos no simples e básico contentamento da
nossa existência, sem desejarmos mais nada para além daquilo que já
temos: a própria vida.
Objetivo
SENTIR CADA INSTANTE, não pensar no amanhã, aprender a desligar-se de
preocupações, arrependimentos e medos provocados pelo conceito de
tempo. Caminhar sem pensar em mais nada a não ser na caminhada. Ficar
deitado na cama, acordado, sem se preocupar com o sono. Deixe-se apenas
ficar, numa felicidade horizontal, sem qualquer preocupação com o passado
ou o futuro.
17.
A canção de si mesmo
Plátanos
ENQUANTO ESCREVIA ESTE LIVRO, a minha mãe foi submetida a uma
intervenção cirúrgica. Uma operação para substituir a válvula mitral. A
operação correu bem e a fase de recuperação também, mas a semana que
passou nos Cuidados Intensivos foi uma espécie de montanha-russa, com
médicos e enfermeiras a vigiarem de perto os níveis de oxigénio no sangue
dela. A coisa chegou a estar feia.
Viajei com a Andrea até ao norte. Ficámos num hotel perto do hospital.
Quando visitava a minha mãe, sentava-me ao lado da cama dela, juntamente
com o meu pai, a vê-la acordar e voltar a adormecer. Ajudei a dar-lhe a
comida do hospital à boca e saí muitas vezes à rua, para lhe ir comprar
batidos ou para levar um jornal ao meu pai. A preocupação com o estado da
minha mãe ofuscou tudo o resto. Sentia-me terrivelmente culpado por
praticamente a ter ignorado, quando ela me contou as suas primeiras idas ao
médico.
Naquele momento, não queria saber de e-mails urgentes que
continuavam sem resposta. Não sentia qualquer vontade de espreitar as
redes sociais. Ao ver-me ali sentado, numa Unidade de Cuidados
Intensivos, a ouvir os choros de agonia que chegavam de trás da fina cortina
do hospital, enquanto o doente da cama ao lado dava o último suspiro, o
próprio mundo parecia-me um cenário totalmente irrelevante.
As unidades de cuidados intensivos podem, por vezes, ser espaços
desoladores; mas aqueles quartos esterilizados, cheios de pessoas entre a
vida e a morte, também podem ser espaços de esperança. No meio de tudo
aquilo, as enfermeiras e os médicos eram uma inspiração.
É uma pena, parece-me, que sejam necessários acontecimentos tão
importantes nas nossas vidas, ou nas vidas daqueles que amamos, para
conseguirmos ter uma perspetiva diferente das coisas. Imaginem que
conseguíamos guardar essa nova perspetiva. Imaginem que conseguíamos
ter sempre a noção do que é prioritário, independentemente de estarmos
doentes ou saudáveis. Imaginem que conseguíamos pensar sempre naqueles
que amamos da maneira que pensamos quando eles têm uma doença
complicada. Imaginem que conseguíamos manter sempre à tona esse amor
(que está sempre lá). Imaginem que conseguíamos aplicar à própria vida a
nossa gentileza e o nosso sentimento de gratidão.
Agora, sempre que sinto a minha vida ficar atulhada de porcarias que
me provocam stress, procuro lembrar-me daquele quarto de hospital. Um
quarto em que os doentes agradeciam o simples facto de poderem olhar pela
janela. Em que agradeciam a possibilidade de verem uns raios de sol e uns
plátanos.
Um quarto onde a vida, em si mesma, era tudo.
Amor
Só o amor nos poderá salvar.
Menos psicogramas (coisas que nos fazem sentir
mais leves)
Imaginem se, na senda dos psicogramas, existissem coisas que
pudessem aliviar a vossa mente, torná-la mais leve. Nesse caso, uma
denominação possível poderia ser “psicogramas negativos” ou “menos pg”.
57 pg
O sol a aparecer inesperadamente por detrás de uma nuvem 320 pg
O “está tudo bem consigo” dito por um médico 638 pg
Estar de férias num sítio sem rede sem fios (após o pânico 125 pg
inicial) 487 pg
Passear o cão 732 pg
Uma sessão de ioga 398 pg
Ficarmos absorvidos por um bom livro 1291
Chegar a casa após uma viagem de comboio cansativa pg
Estar no meio da natureza 1350
Dançar pg
Um parente próximo que recupera bem de uma operação 3982
pg
E por aí fora.
Sri Lanka
Fui convidado para participar no festival literário da belíssima cidade
fortaleza de Galle, na costa sudoeste do Sri Lanka, no qual iria falar sobre
saúde mental. O evento acabou por se revelar bastante especial, já que falar
sobre doenças mentais ainda é uma espécie de tabu no Sri Lanka. A sessão
foi extremamente emotiva, pois pude ouvir relatos de pessoas que, ao
contrário do habitual, contavam publicamente as suas histórias com a
ansiedade, a depressão, a perturbação obsessiva-compulsiva, as tendências
suicidas, a perturbação bipolar ou a esquizofrenia. Era como se pudéssemos
sentir o estigma a evaporar-se diante dos nossos olhos.
Mas o dia seguinte à extraordinária sessão ficou ainda mais gravado na
minha memória. Na praia de Hikkiduwa, entre os habitantes locais e os
turistas de mochila às costas, pude alimentar tartarugas-gigantes. Dei-lhes
algas para comerem, com a minha própria mão. A Andrea e as crianças
estavam comigo. Aquele era o tipo de momento que eu, nos meus 20 e tal
anos, agoráfobo, convencido de que nem sequer chegaria aos 30, já tendo
afastado para longe todos os que gostavam de mim, acreditava que jamais
viesse a seria possível. E, afinal, já nos meus 40, ali estava eu, no
hemisfério sul, numa praia paradisíaca, rodeado pelas pessoas que amava,
em contacto com aqueles enormes e antiquíssimos répteis anfíbios. Na sua
longevidade, as tartarugas-gigantes pareciam muito serenas e sábias.
Desejei tanto que fosse possível a um humano fazer-lhes algumas
perguntas. Queria saber qual era o segredo daquela sabedoria que pareciam
evidenciar.
Portanto, quando sinto que a depressão começa a invadir-me, cerro os
olhos e acedo ao meu repositório de dias bons. Penso no sol, nos risos, nas
tartarugas. E tento recordar-me de como, por vezes, o que parece impossível
acaba por se concretizar.
Um modo anfíbio de ver a vida
– Olá, tartaruga.
– Oh, olá.
– Algum conselho em relação à vida?
– Perguntas-me a mim porquê?
– Porque és uma tartaruga.
– E?
– As tartarugas existem há uma eternidade. Andam por cá há cerca de
157 milhões de anos. Isso é mais de 700 vezes o tempo em que nós, o
Homo Sapiens, andamos por cá. Por isso, enquanto espécie, vocês devem
saber umas coisinhas.
– Estás a confundir longevidade com abrangência de conhecimento.
– É que, ao contrário das tartarugas, os humanos acabaram por fazer
deste mundo uma trapalhada.
– Eu sei. Estamos em perigo de extinção por vossa causa.
– Desculpa.
– A culpa é de todos, não é exclusivamente tua. Mas, sim, também é tua.
– Eu sei. Também sou humano. Tenho de partilhar essa culpa.
– Pois tens.
– Pois tenho.
– Bom, de qualquer maneira, se queres mesmo um conselho, eu diria
para parares com isso.
– Isso o quê?
– Isso. Correr atrás de coisa nenhuma. Os humanos parecem ter sempre
pressa em escapar-se de onde quer que estejam. Porquê? É por causa do ar
que respiram? Será que não vos sustém o suficiente? Talvez precisem de
passar mais tempo no mar. Mas eu diria: para com isso. E não é uma
questão de ritmo, é uma questão de sermos o nosso tempo. Tanto faz se te
moves de forma rápida ou lenta; o importante é teres a consciência de que
irás sempre contigo para toda a parte. Alegra-te por remares no oceano da
tua existência.
– Está bem.
– Olha para a minha cabeça. É minúscula. A minha proporção entre
cérebro e massa corporal é ridícula. Mas isso não é assim tão importante. Se
cuidares da tua vida, consegues concentrar-te em seres aquilo que precisas
de ser. Se quiseres, podes ver a vida de um modo anfíbio. Podes estar em
sintonia com os ritmos do planeta, seja no mar ou em terra. Podes ligar-te
aos sons do vento e da água. Podes sintonizar-te contigo próprio. Se queres
saber, é maravilhoso ser uma tartaruga.
– Acredito. Obrigado, tartaruga.
– Bom, e agora podes dar-me mais umas algas?
Inverter o círculo vicioso
A ANSIEDADE ALIMENTA-SE a si própria. Sofrer de ansiedade, em forma de
doença, torna-se um círculo vicioso de desespero. A única solução passa
por interromper o ciclo de metapreocupação; parar de nos preocuparmos
com o facto de nos preocuparmos, o que é praticamente impossível. Por
vezes, o truque passa por encontrar uma forma de inverter o círculo vicioso.
Eu faço-o através da aceitação de que estou num estado de não aceitação.
Tento sentir-me confortável com o facto de estar desconfortável. Tento
aceitar que não detenho o controlo.
Um estereótipo que é real: só podemos chegar ao lugar que queremos se
primeiro aceitarmos o lugar em que estamos. O mundo tenta dizer-nos que
não devemos aceitar o que somos. Incita-nos a querermos ser mais ricos,
mais bonitos, mais magros, mais felizes. Incita-nos a querermos mais.
Quando temos uma doença, este sentimento de fuga ao que somos fica
ainda mais forte; no entanto, é nessa condição que mais precisamos de nos
aceitar, de aceitar o momento doloroso, para nos podermos livrar dele.
Suavemente, deixando a dor voltar ao mundo de onde veio.
O céu será sempre o céu
Ainda agora olhei pela janela e senti-me imediatamente mais calmo. A
Lua está deslumbrante, meio escondida através de um véu de nuvens
arroxeadas. O céu é sensacional. Nenhuma fotografia consegue captar toda
a sua beleza.
Isto fez-me lembrar de outra coisa. Quando, há uma década, tive um
longo episódio de depressão (a pior depressão após o meu colapso dos 20 e
tal anos), olhar pela janela costumava ser uma das poucas atividades
capazes de me dar algum conforto. Vivíamos no Yorkshire, onde o céu
surgia vasto e límpido, por não haver muita iluminação artificial. À noite,
costumava levar o lixo até o caixote da rua e punha-me a observar o céu
imenso; à medida que me sentia cada vez mais pequenino, a minha dor
também diminuía. Ficava ali durante algum tempo, a respirar o ar puro, a
olhar para os planetas, as estrelas, as constelações. Inspirava
profundamente, como se o universo fosse algo que pudesse ser sorvido. Por
vezes, pousava a mão no estômago e começava a sentir a minha respiração
agitada a acalmar.
Perguntava-me muitas vezes, e ainda me pergunto, porque é que o céu,
especialmente o céu noturno, tinha aquele efeito em mim. Costumava achar
que talvez tivesse algo que ver com a escala. Quando olhamos para o
universo, não podemos deixar de nos sentirmos minúsculos. Sentimos a
nossa pequenez, tanto no espaço como no tempo, porque, ao olharmos para
o espaço, estamos também a olhar para a história. Vemos as estrelas como
elas eram, não como são. A luz não aparece instantaneamente; viaja no
tempo. A luz move-se a quase 300 mil quilómetros por segundo. O que
parece muito, mas, ao mesmo tempo, significa que a luz da estrela mais
próxima da Terra (sem ser o sol) demorou mais de quatro anos a chegar até
nós.
Algumas das estrelas visíveis a olho nu estão a mais de 15 mil anos-luz
de distância. Ou seja, a luz que vemos com os nossos olhos começou a sua
viagem por alturas do final da Idade do Gelo. Começou a viagem antes de a
humanidade ter aprendido a cultivar a terra. Contrariamente à ideia que
costumamos ouvir, a maior parte das estrelas que vemos não está morta. As
estrelas têm uma existência muito longa, ao invés do que acontece com os
humanos. Mas isso não estraga o efeito terapêutico do majestoso céu
noturno. Bem pelo contrário. O nosso breve papel no universo é uma das
coisas mais raras e belas das galáxias: somos um organismo vivo que
respira e tem consciência.
Quando olhamos para o céu, podemos tentar enquadrar no contexto
cósmico todas as nossas preocupações típicas do século XXI. O céu é maior
do que os e-mails, e os prazos, e hipotecas da casa, e trolls da Internet; é
maior do que a nossa mente e respetivas doenças; é maior do que nomes,
países, datas e relógios. Quando comparadas com o céu, todas as nossas
preocupações terrestres são bastante passageiras. Ao longo das nossas
vidas, ao longo de todos os capítulos da história da humanidade, o céu foi
sempre o céu.
E, claro, quando estamos a olhar para o céu, não estamos a olhar para
algo que esteja fora de nós. Na verdade, estamos a olhar para o sítio de onde
viemos. “O azoto no nosso DNA, o cálcio nos nossos dentes, o ferro no
nosso sangue, o carbono nas nossas tartes de maçã, foram feitos no interior
de estrelas em colapso. Nós somos feitos de material estelar”, escreveu o
astrofísico Carl Sagan, na sua obra-prima Cosmos.
O céu, tal como o mar, pode ancorar-nos. Parece falar connosco. “Olha,
está tudo bem; há algo maior do que a vida de que fazes parte e esse algo é,
literalmente, cósmico. É algo verdadeiramente maravilhoso. E tu tens de ser
como uma árvore ou como um pássaro para te sentires parte da ordem
maior da natureza, agora e sempre. Tu és incrível. És tudo e és nada. És um
único momento e és toda a eternidade. Fazes parte do universo em
movimento.
Bravo.
Natureza
JÁ TEM SIDO demonstrado que o céu serve mesmo para nos acalmar.
Em 2018, um estudo conduzido pelo King’s College de Londres
descobriu que a possibilidade de olharmos para o céu tem efeitos positivos
na nossa saúde mental. E não é apenas o céu; passa-se o mesmo com olhar
para as árvores, ouvir os pássaros, estar fora de casa, contactar com a
natureza.
Foi pedido aos participantes no estudo que registassem os seus estados
mentais em diferentes locais. O estudo tinha várias nuances, pois levava em
conta o risco individual de se desenvolver alguma perturbação mental, com
base em alguns testes prévios que avaliaram os comportamentos impulsivos
de cada participante.
A pesquisa, inteligentemente intitulada “Mente urbana: usar tecnologias
de smartphone para investigar em tempo real o impacto da natureza no
bem-estar mental”, revelou que, apesar de o contacto com a natureza ser
bom para todas as pessoas, é especialmente benéfico para quem for mais
vulnerável a problemas de saúde mental, como adição, perturbação de
hiperatividade e défice de atenção, perturbação da personalidade antissocial
e perturbação bipolar. Uma exposição curta à natureza tem um impacto
benéfico, e quantificável, no bem-estar mental”, concluiu o Dr. Andrea
Mechelli, que conduziu o estudo.
Surgem cada vez mais projetos de ecoterapia ou de atividades que
utilizam a natureza como processo ativo para a melhoria da saúde mental e
física. Nas cidades, estão a ser usados jardins e hortas comunitárias para
baixar os níveis de stress, ansiedade e depressão. Claro que isto quase se
poderia resumir a um velho conselho: “Vai apanhar ar fresco.” Em 1859,
nas suas Notas sobre Enfermagem, Florence Nightingale escreveu que
“além de um quarto fechado, o que mais magoa [os doentes] é um quarto
escuro”, deixando o conselho: “Não lhes basta luz, eles querem luz do sol
direta.” Os estudos científicos parecem, finalmente, chegar à mesma
conclusão.
O problema é que, atualmente, mais de metade da população mundial
vive em grandes cidades. Em 1950, mais de dois terços da população
mundial ainda vivia em cenários rurais. Agora, a maior parte das pessoas
reside nas áreas urbanas. E, à medida que as pessoas passam cada vez mais
tempo dentro de paredes, torna-se evidente que a nossa existência está
menos ligada às florestas ou ao céu azul.
Chegou a altura de ganharmos uma maior consciência de que os azuis e
os verdes da natureza nos podem ajudar. Tal como podem ajudar a vida das
crianças. Mais ar fresco, mais luz solar e, com sorte, mais passeios pelo
campo e pela floresta. Escorados nas pesquisas científicas, talvez seja
possível tornar mais verdes e agradáveis os espaços urbanos comuns em
que habitamos, para que todos, e não apenas um punhado de sortudos,
possam colher os benefícios da natureza.
O mundo cá dentro
SIM, É VERDADE que a beleza da natureza pode curar. Mas, em 1999, em
Ibiza, vi-me à beira de um penhasco, próximo da moradia onde vivia, no
aconchego de um dos cantos mais calmos da zona este da ilha, preparando-
me para saltar.
Não vislumbrava nem sentia qualquer hipótese de conseguir aguentar o
período de dor e confusão mental que atravessava; só queria que não
houvesse ninguém que gostasse de mim, para poder, simplesmente,
desaparecer sem causar dano.
Por vezes, penso naquele precipício. Penso nos arbustos sob os meus
pés, do mar a brilhar à minha frente, da costa de paredes calcárias a perder
de vista. Naquele momento, nada daquilo me servia de consolo. Está
provado que a natureza pode ser boa para nós; mas, num momento de crise,
nada parece ter o poder de nos ajudar. Naquele momento de dor extrema,
embora invisível, nenhuma paisagem do mundo poderia fazer-me sentir
melhor. No espaço de duas décadas, a vista daquele precipício não deve ter
mudado muito. Ainda assim, agora podia ficar lá de pé, a sentir a beleza em
redor, achando-me muito diferente do rapaz aterrorizado que lá estivera.
O mundo afeta-nos; mas não é bem a nós. Há um espaço no nosso
interior que se mantém independente do que vemos e de onde estamos. Isto
explica a razão por que podemos sentir dor, mesmo estando num cenário
exterior repleto de beleza e paz. Mas há outro lado da moeda: a
possibilidade de nos sentirmos calmos no meio de um mundo cheio de
medo. Podemos cultivar uma tranquilidade interior, capaz de subsistir e
crescer, ajudando-nos a seguir em frente.
Costuma dizer-se que um livro é diferente para cada leitor. Ou seja, cada
leitor lê o livro de uma forma específica. Se cinco pessoas se sentassem
para ler, por exemplo, A Mão Esquerda das Trevas, de Ursula K. Le Guin,
acabaríamos com cinco opiniões diferentes, e todas elas legítimas. A
questão não é tanto o que se lê, mas antes como se lê. Um escritor até pode
dar início a uma história, mas essa história só ganha vida com o leitor. E um
livro nunca vive duas vezes da mesma forma. A narrativa não tem só que
ver com as palavras que a compõem, mas também com quem lê essas
palavras. Essa é a equação variável. É aí que reside a magia. A única coisa
que um escritor pode fazer é oferecer um fósforo (e, de preferência, um
fósforo seco). Depois, é o leitor que tem de acender essa chama e dar vida
ao livro.
O mundo também é assim. Há tantos mundos quanto os seus habitantes.
O mundo existe em cada um de nós. A nossa experiência neste mundo não é
uma coisa única, objetiva e imutável chamada “O Mundo”. Nada disso. A
nossa experiência neste mundo é a interação que cada um de nós tem com o
mundo, a interpretação que cada um de nós faz do mundo. De certa forma,
todos criamos os nossos próprios mundos. Lemos o mundo à nossa maneira.
Mas, também de certo modo, podemos escolher as leituras que queremos
fazer. Temos de descobrir que facetas do mundo nos fazem sentir tristes, ou
amedrontados, ou confusos, ou doentes, ou calmos, ou felizes.
Temos de descobrir, entre todos os milhares de milhões de mundos
pessoais, qual é o mundo em que queremos viver. O mundo que, se não
fosse imaginado por cada um de nós, jamais existiria.
Do mesmo modo, temos de perceber que o mundo não corresponde aos
nossos sentimentos, independentemente da forma como ele os influencie.
Podemos sentir-nos calmos num hospital ou submersos pela dor num
penhasco espanhol.
Podemos ser contraditórios em relação a nós próprios. Podemos
contradizer o mundo. Por vezes, podemos até fazer o impossível. Podemos
viver quando a morte parece inevitável. E, mesmo depois de percebermos
que ficámos sem esperança, podemos ter esperança.
Nós, desligados
A VIDA, POR VEZES, pode soar como uma canção com demasiada
produção: uma cacofonia de 100 instrumentos a tocarem todos em
simultâneo. Por vezes, quando uma canção está repleta de coisas, é difícil
perceber de que canção se trata. Por vezes, a mesma canção soa melhor se
for reduzida apenas a uma voz e a uma guitarra.
E, tal como essa canção com demasiadas coisas, nós também nos
podemos sentir um pouco perdidos.
A nossa constituição natural não sofreu alterações ao longo das últimas
dezenas de milhares de anos, e isso é algo de que nos deveríamos lembrar,
aquando da criação de uma nova aplicação, um novo smartphone, uma nova
rede social, uma nova arma nuclear. Devíamos ter sempre presente a canção
que afirma a nossa condição humana. Pensarmos no céu, quando nos
sentirmos submersos. Descobrirmos a calma no meio de uma era saturada
pelo marketing, e pelas notícias de última hora, e pelos milhões de picos
emocionais proporcionados diariamente pela Internet. Não termos receio de
termos medo. Não termos receio de sermos nós próprios – fantásticos,
verdadeiros, belos, frágeis, imperfeitos –, este extraordinário animal que vai
envelhecendo, preso no tempo e no espaço, mas que também tem a
capacidade de se libertar, caso escolha parar, a qualquer momento, para
descobrir alguma coisa – uma canção, um raio de sol, uma conversa, um
grafiti – que lhe faça sentir o assombro, tão puro e improvável, de estar
vivo.
18.
2. Mesmo que não esteja tudo bem, se for uma coisa que não podes
controlar, não a tentes controlar.
4. Aceita-te. Se não conseguires ser feliz como és, pelo menos tenta
aceitar aquilo que és agora. Não podes mudar nada em ti antes de te
conheceres.
5. Nunca sejas fixe. Nunca tentes ser fixe. Nunca te preocupes com o que
pensam as pessoas fixes. Aproxima-te das pessoas calorosas. A vida é
calor. Estarás frio quando morreres.
9. Desfruta da Internet. Não a uses quando ela não te der prazer. (Nada
foi tão fácil de dizer e tão difícil de fazer.)
10. Lembra-te de que muitas pessoas pensam o mesmo que tu. Até as
poderás encontrar online. Aliás, esse é um dos aspetos mais
terapêuticos da era das redes sociais: a possibilidade de encontrares
dores semelhantes à que sentes. Poderes encontrar alguém que irá
compreender-te.
11. Como disse Yoda, da Guerra das Estrelas, não podes tentar ser.
Tentar ser é precisamente o oposto de ser.
18. Pratica ioga. É mais difícil ficares stressado se o teu corpo e a tua
respiração estiverem calmos.
20. Não compares as piores partes da tua vida com as melhores partes da
vida das outras pessoas.
22. Não tentes ficar preso ao chão. Não tentes compreender o que és de
forma absoluta e definitiva. “Tentar definir-se é como tentar morder o
próprio dente”, disse o filósofo Alan Watts.
23. Vai dar uma caminhada. Vai dar uma corrida. Dança. Come uma tosta
com manteiga de amendoim.
24. Não tentes sentir nada que não sintas. Não tentes ser nada que não
podes ser. Essas tentativas vão deixar-te esgotado.
25. Estar ligado ao mundo não tem nada que ver com redes sem fios.
26. O futuro não existe. Fazer planos para o futuro é apenas fazer planos
para outro presente em que estaremos a fazer planos para o futuro.
27. Respira.
30. Põe-te à margem das forças de mercado. Não entres nesse jogo
competitivo. Resiste à culpa do não vou fazer. Descobre o espaço que
não está à venda dentro de ti. O espaço verdadeiro. O espaço humano.
O espaço que nunca pode ser avaliado através de números, dinheiro
ou produtividade. O espaço que a economia de mercado não
consegue distinguir.
32. Passa algum tempo com um animal que não seja humano.
33. Não te envergonhes de ser aborrecido. O aborrecimento pode ser
saudável. Quando a vida se torna dura, tenta centrar-te nessas
emoções de tonalidade bege.
35. O mundo pode ser um lugar triste. Mas lembra-te que, hoje mesmo,
houve um milhão de atos de bondade de que ninguém falou. Um
milhão de atos de amor. A bondade silenciosa dos seres humanos
continua bem viva.
36. Não te fustigues por seres uma grande trapalhada. Está tudo bem. O
próprio universo é uma enorme confusão. As galáxias andam à
deriva. Portanto, estás em sintonia com o cosmos.
* Já sabe aquilo que tem maior significado para si. As coisas que
realmente importam são, obviamente, as coisas de que sentiria uma
profunda falta caso ficasse sem elas. Quando tiver oportunidade, são
essas as coisas em que deve gastar o seu tempo. Pessoas, locais, livros,
comidas, experiências, tanto faz. E, por vezes, para desfrutar mais
destas coisas, vai ter de se livrar de outras. Precisa de se libertar.
As coisas importantes
HÁ UMA SEMANA, fui a uma loja solidária deixar uma série de coisas que
acumulara ao longo dos tempos. Senti-me bem. Não apenas por causa da
solidariedade, mas pela expurgação. A nossa casa ficou livre de muita da
minha tralha. Roupas e aftershaves que nunca usava, duas cadeiras em que
ninguém se sentava, DVD antigos de filmes que nunca vou voltar a ver e
até, hum, alguns livros que nunca irei ler.
– Tens a certeza de que te queres ver livre disto tudo? – perguntara-me a
Andrea, ao observar a quantidade de sacos de plástico no hall de entrada.
Até ela, uma pessoa com o dom de se desembaraçar das coisas que não são
necessárias, estava espantada.
– Sim. Acho que sim.
Na verdade, este processo de separar coisas para deitar fora fez com que
desse mais valor a certas coisas que já eram minhas. Por exemplo, ao pôr de
lado alguns DVD de filmes antigos, descobri um que não só queria manter,
como até queria rever. Do Céu Caiu uma Estrela era o título da capa. Dois
dias depois, revi o filme.
Não quero, de forma alguma, deixar-vos com a ideia de que estão a
perder algo importante; aliás, nem se trata de nada deste tempo. Mas se, por
acaso, ainda não viram Do Céu Caiu uma Estrela, filme a preto e branco de
1946, então tentem ver. Não é um filme lamechas. É sentimental e sério,
mas de uma forma honesta. É um filme muito cru e poderoso sobre a
importância das vidas ditas insignificantes. Um filme sobre a razão de
sermos importantes. Sobre a diferença que uma vida pode fazer. Sobre as
razões para nos mantermos vivos. Aquele filme nunca será uma perda de
tempo, pelo contrário, ajuda-nos a valorizar o tempo.
Isto serve de exemplo sobre como a atividade de pormos de lado a tralha
sem importância – que consume o nosso tempo e entope a nossa sala de
estar – ajuda a realçar as coisas que valem a pena. Da mesma forma, limitar
o nosso acesso às notícias ajuda-nos a dar prioridade aos assuntos
importantes, no tempo que acabarmos por dedicar às notícias. Trabalhar
menos horas ajuda a tornar essas horas mais produtivas. E por aí adiante.
Façam uma edição à vossa vida. Desentupam o vosso espaço.
Para vos dizer a verdade, a parte fácil foi separar as coisas. É fácil
dispensarmos metade da roupa do nosso armário. É fácil afinarmos o filtro
do e-mail e desligarmos as notificações. É fácil sermos mais amáveis para
com as pessoas quando estamos online. É relativamente fácil passarmos a
deitar-nos um pouco mais cedo. É relativamente fácil ficarmos mais
conscientes da nossa respiração e tentarmos arranjar meia hora por dia para
praticar ioga. É relativamente fácil deixarmos o telemóvel a carregar à
noite, fora do nosso quarto. (Bem, esta ainda é difícil, mas é assim que
estou a fazer.)
A parte realmente difícil é mudarmos a nossa atitude interior. Como
podemos editar isso?
São atitudes que a sociedade enraizou dentro de nós. Atitudes
relacionadas com o que temos de fazer e o que temos de ser para termos
algum valor. Com o modo como deveríamos trabalhar, ou ganhar dinheiro,
ou consumir, sobre o que deveríamos estar a ver, sobre como deveria ser a
nossa vida. Com o modo como devemos separar a nossa saúde mental da
nossa saúde física. Com as coisas de que, segundo os políticos e os
marketeers, devemos ter medo. Com as coisas que devemos querer e as
coisas de que é suposto sentirmos falta, de modo a darmos a nossa
contribuição para manter a ordem social e o crescimento económico.
Pois. Não é fácil. Mas a aceitação parece ser fundamental.
Aceitar o que somos. Aceitar a realidade da sociedade, mas também a
realidade do nosso eu, sem sentirmos que estamos incompletos. É essa
sensação de nos faltar algo que enche de tralha as nossas mentes e as nossas
casas. Temos de nos tentar manter inteiros. Seres humanos completos, sem
outra razão para andar por cá a não ser serem eles próprios. “Passa por
libertar o nosso eu”, escreveu Virginia Woolf, sentindo algumas
dificuldades em concretizá-lo. “Deixar que ele encontre as suas dimensões,
sem impedimentos.”
Por falar nisso, estaria a mentir se dissesse que já cheguei a este ponto.
Nem por sombras. Estou mais próximo, mas ainda muito distante. Até
duvido que chegue de forma total a essa mente tão límpida como uma
nascente de montanha. Duvido que possa atingir esse idílico estado de
nirvana, acima do nervosismo do mundo da tecnologia, da sociedade de
consumo, das múltiplas distrações. Não existe uma linha de chegada. Não
se trata de atingirmos a perfeição. Na verdade, punirmo-nos a nós mesmos
por não sermos perfeitos faz parte do problema. Por isso, aceitar o lugar em
que estou – com melhorias, mas imperfeito –, acaba por ser uma tarefa sem
fim, mas que, ainda assim, está repleta de recompensas.
É muito mais fácil protegermo-nos quando sabemos quais são as coisas
que nos fazem mal.
Passa-se o mesmo com a alimentação. Se soubermos que as barras de
chocolate e a Coca-Cola não são lá muito saudáveis, isso não significa que
jamais consumiremos esses produtos. Mas talvez possa significar um
consumo mais moderado, e, quem sabe, até um maior prazer sempre que
comermos uma barra de chocolate ou bebermos um refrigerante, por passar
a ser uma ocasião especial.
Portanto, em vez de ver cinco horas seguidas de televisão, agora tento
ver um só programa ou episódio. Em vez de gastar a tarde inteira nas redes
sociais, gasto dez minutos aqui e ali, vendo sempre as horas no computador
quando me ligo, para conseguir ficar com a noção do tempo que estou a
gastar. Sempre que posso, tento praticar boas ações. Nada de heroico,
apenas coisas banais: doar para uma causa solidária, conversar com sem-
abrigo, ajudar pessoas com perturbações mentais, oferecer o meu lugar no
comboio. Microdelicadezas. Não as faço apenas por uma questão altruísta,
mas também porque praticar boas ações é algo de muito reconfortante. Faz-
nos sentir bem. É uma espécie de limpeza psicológica. A bondade tem a
capacidade de renovar a alma. E talvez isso faça do nosso planeta ansioso
um planeta um pouco menos ansioso.
O processo nunca termina. Tento estar bem comigo. Tento sentir que
esta forma de me aceitar não passa por me forçar, ou me desgastar, ou
praticar muito. Tento pensar que, para ser um homem, não preciso de ser
forte e invulnerável. Tento pensar que não tenho de me preocupar com o
que as outras pessoas pensam de mim. E, mesmo quando me sinto frágil,
mesmo quando sou assoberbado por todos aqueles pensamentos e medos
indesejados, por todo aquele spam mental, tento manter a calma. Tento nem
sequer tentar nada e limitar-me a aceitar a minha forma de ser. Aceito o que
sinto. E, assim, posso compreender o que sinto e tentar mudar o meu modo
de interagir com o mundo.
O mundo está dentro de si
NÓS ATÉ podemos ser uma parte do planeta. Mas, do mesmo modo, o
planeta é uma parte de nós. E podemos escolher o modo como respondemos
ao planeta. Podemos mudar as partes que entram em nós. Em certo sentido,
é fácil concluir que o planeta mostra alguns sintomas semelhantes aos de
alguém que sofre de uma perturbação de ansiedade; só que não existe
apenas uma versão do mundo. Há sete mil milhões de versões do mundo. O
ideal é que encontremos a versão que melhor combina connosco.
E lembre-se: tudo o que os humanos têm de especial – a nossa
capacidade para amar, criar arte, fazer amizades, inventar histórias e tudo
isso – não resulta da vida moderna, mas antes do facto de sermos humanos.
Por isso, enquanto não for possível desembaraçar-nos do stress desvairado e
transitório da vida moderna, podemos encostar uma orelha ao nosso eu
humano (ou, se preferirem, à nossa alma) para escutarmos a quietude
silenciosa da existência. E compreender que não precisamos que nos
distraiam de nós próprios.
Tudo aquilo de que precisamos já está aqui. Tudo o que somos é
suficiente. Não precisamos de um barco maior para lidarmos com os
tubarões invisíveis que nadam ao nosso redor. Somos maiores do que o
barco. O cérebro, como disse Emily Dickinson, é maior do que o céu. Se
dermos conta de como a vida moderna nos faz sentir e se, ao
reconhecermos essa realidade, tivermos a abertura de espírito suficiente
para mudarmos – quando a mudança for benéfica para a nossa saúde –,
então poderemos envolver-nos neste mundo tão belo.
Começo
OLHO PARA O RELÓGIO do meu computador.
Agora costumo fazer isto para saber o tempo que passo a olhar para o
ecrã. O simples facto de ter essa noção faz com que passe menos tempo ao
computador. Acho que é este o segredo: estar consciente das coisas.
Eis algo mais de que tenho consciência: o meu cão, neste momento,
aninhado aos meus pés.
E também estou consciente da paisagem.
Através da janela, vejo o sol a brilhar. À distância, consigo ver o mar. E
um parque eólico flutuante, a pontuar o horizonte com pequenas linhas de
esperança. E um emaranhado de cabos telefónicos que cortam o cenário
como riscos de uma pintura abstrata. E telhados e chaminés que apontam
para esse céu a que raramente prestamos atenção.
Observo o mar e isso acalma-me. Estou a tentar ficar em sintonia com
aquilo que nos faz sentir bem neste mundo. É deste modo que podemos
viver no presente. É assim que cada momento se pode transformar num
começo. Por estarmos conscientes. Por afastar as coisas de que não
precisamos e descobrir aquilo de que o nosso ser realmente necessita. E, a
partir desse estado de consciência, poderemos encontrar uma forma de nos
mantermos sob controlo, sem sermos obrigados a prescindir do nosso amor
por este mundo. É essa a missão. É difícil, sim, difícil como o raio. Mas,
por outro lado, também é melhor do que o desespero. E, se nos
assegurarmos de que isto não será apenas mais uma coisa em que podemos
falhar, se aceitarmos as nossas falhas e fracassos como algo natural, então, a
nossa missão fica bastante mais facilitada.
Mais logo, vou a um centro comercial. Não gosto de andar em centros
comerciais, mas já não me provocam ataques de pânico. O segredo para
sobreviver aos centros comerciais, aos supermercados, aos comentários
negativos na Internet ou a qualquer outra coisa não passa por ignorá-los, ou
fugir deles, ou lutar contra eles; passa por deixá-los existirem. Aceitem que
não têm qualquer controlo sobre isso. Apenas podem ter controlo sobre
vocês mesmos.
“Afinal de contas, a melhor coisa que se pode fazer quando chove é
deixar que chova”, escreveu o poeta Henry Wodsworth Longfellow. Isso
mesmo. Deixem chover. Deixem o planeta ser o que é. Não há alternativa.
Mas, além disso, estejam conscientes dos vossos sentimentos, sejam bons
ou maus. Percebam o que funciona bem para vocês e aceitem o que
funciona mal. Quando se sabe que a chuva é apenas chuva, e não o fim do
mundo, tudo fica mais fácil.
Mas, neste preciso momento, não está a chover.
Por isso, assim que terminar esta página, vou gravar este documento,
fechar o portátil e vou até lá fora.
Vou sair para a luz do sol e para o ar puro.
Vou sair para a vida.
FIM
Pessoas a quem gostaria de agradecer
Z-Access
https://wikipedia.org/wiki/Z-Library
ffi
fi