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MATT HAIG é o autor bestseller e premiado de vários romances.

Um dos seus
livros mais aclamados foi Razões para Viver, editado pela Porto Editora, um relato
introspetivo sobre a sua experiência com a depressão e de como tirar o máximo
partido da vida enquanto cá estamos. Vendeu mais de um milhão de livros no
Reino Unido e o seu trabalho está traduzido em mais de 40 línguas.
O mundo à beira de um ataque de nervos
Matt Haig

Publicado em Portugal por:


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Porto
Email: delporto@portoeditora.pt

Título original:
Notes On A Nervous Planet
Copyright © Matt Haig, 2018
Published by arrangement with Canongate Books, Ldt, 14 High Street,
Edinburgh EH1 1TE

Tradução: Paulo M. Morais

Design da capa original: Peter Adlington


Adaptação da capa para a versão portuguesa: NOR267

1.ª edição em papel: abril de 2019

Rua da Restauração, 365


4099­-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67787-7
Para a Andrea
Toto, acho que já não estamos no Kansas!
Dorothy em O Feiticeiro de Oz
1.

Uma mente stressada num mundo


stressado
Uma conversa, há cerca de um ano
ESTAVA TENSO.

Caminhava de um lado para o outro, enquanto me esforçava por ganhar


uma discussão nas redes sociais. Enquanto isso, a Andrea observava-me.
Ou, pelo menos, acho que ela me estava a observar. Era difícil ter a certeza,
pois não tirava os olhos do meu telemóvel.
– Matt? Matt?
– Hum? O que é?
– O que se passa? – perguntou-me ela, com aquela voz desesperada que
se vai desenvolvendo ao longo de um casamento. Ou melhor, ao longo de
um casamento comigo.
– Nada.
– Andas para aí às voltas, a dar encontrões aos móveis. Há mais de uma
hora que não tiras os olhos do telemóvel.
O meu coração batia muito depressa. Sentia uma rigidez no peito. Devia
continuar a lutar ou fugir? Sentia-me encurralado e ameaçado por um
desconhecido, alguém que vivia a mais de 10 mil quilómetros de distância,
alguém que eu jamais conheceria pessoalmente e que, ainda assim, estava a
conseguir estragar o meu fim de semana.
– Estou só a tentar responder a uma coisa.
– Matt, larga isso.
– Estou só…
Quando entramos num estado de agitação mental, muitas das coisas que
nos dão alguma satisfação a curto prazo acabam, a longo prazo, por nos
deixar a sentir mal. Distraímo-nos de nós próprios, quando o que realmente
precisamos é de nos conhecermos.
– Matt!
Uma hora depois, já no carro, a Andrea olhou para o lugar do pendura.
Eu já não estava ao telemóvel, mas continuava agarrado ao aparelho com
todas as minhas forças, tal como uma freira se agarra ao rosário.
– Estás bem, Matt?
– Estou. Porque perguntas?
– Pareces meio perdido. Parece que estás igual àquela altura…
Ela conseguiu interromper a frase a tempo. Mas eu sabia o que ela ia
dizer: “… em que estavas com uma depressão”. Na verdade, conseguia
sentir a ansiedade e a depressão a rondarem-me. Ainda não estava
propriamente nesse estado, mas perto. Lembrava-me de como era. Quase
podia vê-las, naquela subitamente abafada atmosfera do carro.
– Estou bem – menti. – Estou bem, estou bem…
Na semana seguinte, estava deitado no meu sofá, mergulhado na minha
décima primeira crise de ansiedade.
Editar uma vida
ESTAVA CHEIO DE MEDO. Tinha mesmo de estar. A ansiedade está
diretamente relacionada com um sentimento de medo.
Os surtos de ansiedade começaram a surgir cada vez menos espaçados.
Fiquei preocupado com o curso que estavam a tomar. Parecia-me que o
desespero era algo que podia crescer infinitamente.
Procurei distrair-me do que se estava a passar. Contudo, devido a
experiências anteriores sabia que não podia tocar em bebidas alcoólicas. Por
isso, voltei a fazer coisas que, no passado, me ajudaram a sair do buraco e
das quais me esquecera de integrar no meu quotidiano. Passei a ter cuidado
com a alimentação. Fiz ioga. Tentei meditar. Deitei-me no chão, pousei a
mão sobre a barriga, inspirei e expirei profundamente – para dentro, para
fora, para dentro, para fora – e dei-me conta do ritmo descompassado da
minha respiração.
Mas tudo isso me era custoso. Podia desatar a chorar com algo tão
simples como acordar e ter de decidir que roupa vestir nesse dia. Pouco
importava que já me tivesse sentido assim. Uma garganta inflamada não se
desinflama apenas por já sabermos o que é ter este problema.
Tentei ler, mas senti dificuldade em concentrar-me.
Ouvi podcasts.
Vi novas séries no Netflix.
Naveguei nas redes sociais.
Respondi a todos os e-mails atrasados, para tentar recuperar o controlo
sobre o meu trabalho.
Acordava e agarrava-me ao telemóvel, na expectativa de encontrar algo
que me fizesse esquecer de mim.
Pois bem, ficam já a saber: não resultou.
Comecei a sentir-me cada vez pior. Muitas dessas “distrações” não me
distraíam nada; serviam apenas para piorar o que sentia. “Distraídos da
distração pela distração”, como diz T. S. Eliot no poema Quatro Quartetos.
Ficava a olhar apavorado para um e-mail por responder, sem conseguir
dar-lhe seguimento. No Twitter – a minha distração preferida no mundo
digital –, percebi que a minha ansiedade parecia intensificar-se. O simples
ato de percorrer as minhas publicações ao longo do tempo era como raspar
a crosta de uma ferida.
Outra das distrações era ler notícias. Mas era demasiado para a minha
cabeça. Saber da existência de tanto sofrimento no mundo não ajudava a
relativizar a minha própria dor; apenas provocava uma sensação de
impotência. E pensava que era profundamente patético eu ficar paralisado
por problemas invisíveis quando havia tantas desgraças reais no mundo.
Fiquei cada vez mais desesperado. Por isso, decidi agir.
Desliguei-me.
Decidi não ir às redes sociais durante alguns dias. Escrevi uma resposta
automática para os e-mails que recebia. Deixei de ler notícias e de ver
televisão. Não vi videoclipes. Até passei a evitar revistas. (Anos antes,
durante o meu primeiro colapso, o imaginário lustroso das revistas
costumava deixar a minha mente repleta de imagens frenéticas e febris que,
à noite, dificultavam-me o adormecer).
Passei a deixar o telemóvel no piso de baixo, quando subia para me ir
deitar. Tentei sair de casa mais vezes. A minha mesa de cabeceira era um
caos de livros que não lia e de uma série de fios e aparelhos tecnológicos,
por isso tratei de arrumar aquela confusão e levar tudo dali para fora.
Sempre que estava em casa, tentava passar o máximo de tempo deitado,
às escuras, como habitualmente se faz quando se tem uma enxaqueca. Eu já
percebera, desde o primeiro episódio suicida dos meus 20 e tal anos, que a
recuperação passava sempre por uma espécie de edição da vida.
Uma limpeza.
“Há felicidade em ter-se menos”, advoga Fumio Sasaki, defensor do
minimalismo. No início da minha primeira experiência com os ataques de
pânico, limitei-me a fazer uma limpeza às bebidas alcoólicas, aos cigarros e
aos cafés fortes. Naquele momento, muitos anos depois, o problema parecia
estar numa sobrecarga mais generalizada.
Uma sobrecarga de vida.
E, seguramente, uma sobrecarga tecnológica. Durante o meu plano de
recuperação, a única tecnologia com a qual interagi, se excluir o carro e o
fogão, foi assistir a vídeos de ioga do YouTube, sempre com o brilho do
ecrã muito reduzido.
Claro que a ansiedade não desapareceu de forma milagrosa. É óbvio que
não.
Ao contrário do que acontece com o meu smartphone, não se pode
desligar a ansiedade. Mas deixei de me sentir a piorar. Estabilizei. E, após
alguns dias, as coisas começaram a acalmar.
O caminho da recuperação, já familiar, chegou mais cedo do que se
podia esperar. E a abstinência relativamente a certos estimulantes – não
apenas às bebidas alcoólicas e à cafeína, mas a todas aquelas outras coisas –
fez parte do processo.
Resumindo, aos poucos, comecei a sentir-me novamente livre.
Como surgiu este livro
A GENERALIDADE DAS PESSOAS TEM CONSCIÊNCIA daquilo que o mundo
moderno pode provocar em termos físicos. Sabemos perfeitamente que,
apesar dos avanços tecnológicos, alguns aspetos da vida moderna podem
ser nocivos para os nossos corpos. Acidentes de viação, fumar, poluição
atmosférica, estilo de vida sedentário, pizas entregues em casa, radiações,
um quarto copo de vinho tinto.
Trabalhar ao computador, por exemplo, pode representar um perigo em
termos físicos. Estar sentado o dia inteiro e ficar com uma lesão por esforço
repetitivo. Certa vez, um oftalmologista chegou a dizer-me que os meus
olhos vermelhos e a minha obstrução do canal lacrimal resultavam de estar
constantemente a olhar para um ecrã. Aparentemente, pestanejamos menos
vezes quando trabalhamos ao computador.
Por isso, tal como a saúde mental e a saúde física estão interligadas, será
que não poderíamos dizer o mesmo sobre o mundo moderno e o nosso
estado mental? Será que certos aspetos da nossa vida quotidiana, neste
mundo moderno, não podem ser responsáveis pelo modo como nos
sentimos no mundo de hoje?
E não me refiro apenas a coisas; falo também dos valores atuais. Os
mesmos que nos levam a desejar ter mais do que aquilo que temos. Que nos
levam a dar muito mais importância ao trabalho do que ao lazer. Que nos
fazem comparar as nossas partes piores com as partes melhores das outras
pessoas. Que nos levam a sentir que nos falta sempre qualquer coisa.
Dia após dia, à medida que melhorava comecei a ter a ideia de escrever
este livro. Precisamente o livro que tem na mão.
Em Razões para Viver, já abordara o meu estado de saúde mental. Na
altura, a questão com que me deparava era relativamente “simples”: Que
razões existem para eu continuar vivo? Desta vez, a pergunta com que me
confrontava era mais abrangente: Como podemos viver num mundo louco
sem enlouquecermos?
Notícias de um planeta ansioso
AO INICIAR a minha pesquisa, fui imediatamente apanhado por alguns
títulos perfeitamente adequados a esta era em que é preciso captar
rapidamente a atenção do outro. As notícias, claro, são basicamente
pensadas de modo a deixarem-nos stressados. Se fossem pensadas para nos
manterem calmos, nem seriam notícias; seriam ioga. Ou um cachorrinho.
Há uma certa ironia no facto de os órgãos de comunicação noticiarem
aumentos da ansiedade na população quando eles próprios são uma das
fontes que alimentam esse estado.
Bom, mas vejamos alguns dos tais títulos.

O STRESS E AS REDES SOCIAIS POTENCIAM PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL ENTRE

AS RAPARIGAS (The Guardian)

SOLIDÃO CRÓNICA: UMA EPIDEMIA DOS NOSSO DIAS (Forbes)

O FACEBOOK “PODE FAZÊ-LO SENTIR-SE INFELIZ”, DIZ O FACEBOOK (Sky News)

AUMENTO ACENTUADO DE AUTOMUTILAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA (BBC)

STRESS NO TRABALHO AFETA 73 POR CENTO DOS TRABALHADORES (The


Australian)

A OBSESSÃO PELA PERFEIÇÃO E O SUICÍDIO NA UNIVERSIDADE (The New York


Times)

STRESS NO LOCAL DE TRABALHO A SUBIR VERTIGINOSAMENTE (Radio New


Zealand)
IRÃO OS ROBÔS ROUBAR OS TRABALHOS DOS NOSSOS FILHOS? (The New York
Times)

ERA TRUMP PROVOCA AUMENTO DO STRESS E DA HOSTILIDADE NAS ESCOLAS

SECUNDÁRIAS NORTE-AMERICANAS (The Washington Post)

CRIANÇAS DE HONG KONG ESTÃO A SER EDUCADAS PARA ATINGIR A EXCELÊNCIA,

NÃO PARA SEREM FELIZES (South China Morning Post)

ANSIEDADE GENERALIZADA: CADA VEZ MAIS PESSOAS RECORREM A

MEDICAMENTOS PARA LIDAREM COM O STRESS (El País)

EXÉRCITO DE TERAPEUTAS ENVIADO PARA AS ESCOLAS PARA COMBATER EPIDEMIA

DE ANSIEDADE (The Telegraph)

ESTARÁ A INTERNET A DEIXAR-NOS A TODOS COM DÉFICE DE ATENÇÃO? (The


Washington Post)

“AS NOSSAS MENTES PODEM SER PIRATEADAS”: OS ESPECIALISTAS EM TECNOLOGIA

QUE TEMEM UMA DISTOPIA DOS SMARTPHONES (The Guardian)

ADOLESCENTES CRESCEM CADA VEZ MAIS ANSIOSOS E DEPRIMIDOS (The


Economist)

INSTAGRAM: PIOR APLICAÇÃO DAS REDES SOCIAIS PARA A SAÚDE MENTAL DOS

JOVENS (CNN)

PORQUE ESTÃO A DISPARAR AS TAXAS DE SUICÍDIO EM TODO O MUNDO? (Alternet)


Como já referi, não deixa de ser irónico que ler notícias sobre como as
coisas nos andam a tornar ansiosos e deprimidos tenha, na verdade, o efeito
de nos deixar ainda mais ansiosos. E isso, tanto quanto os temas abordados
nos títulos, diz muito sobre o estado em que nos encontramos.
A intenção subjacente a este livro não passa por afirmar que tudo é um
desastre e que estamos todos tramados, pois para isso já temos o Twitter. O
objetivo nem sequer passa por dizer que o mundo moderno se depara com
os desafios mais difíceis de sempre. Em alguns aspetos específicos, o nosso
mundo está visivelmente melhor. Os dados do Banco Mundial revelam que
o número de pessoas a viver em pobreza extrema tem diminuído de forma
drástica: nos últimos 30 anos, a nível mundial, mais de mil milhões de
pessoas deixaram de viver nesse estado. E pensem nos milhões e milhões de
vidas de crianças que têm sido salvas devido à vacinação. Nicolas Kristof,
num artigo publicado no The New York Times, em 2017, salientava que,
comparado com dados de 1990, atualmente há menos 50% de
probabilidades de que aconteça a pior cenário de todos, ou seja, que os pais
percam um filho. Portanto, mesmo perante a continuada violência,
intolerância e injustiça económica que parece prevalecer nos nossos
tempos, também existem razões para termos orgulho e esperança na espécie
humana, se tivermos em conta uma escala mais global.
Cada era tem o seu próprio conjunto de desafios específicos e
complexos. E, apesar de muitas coisas terem melhorado, nem tudo
progrediu. As desigualdades, por exemplo, não desapareceram. E surgiram
problemas novos. Nesta época em que as pessoas têm mais do que alguma
vez tiveram (em termos materiais), muitas vivem com medo, ou sentem-se
desajustadas, ou têm, até, instintos suicidas.
Estou perfeitamente consciente de que não serve de nada adotar a
estratégia, tantas vezes usada, de realçar as vantagens do mundo moderno,
como os níveis de educação, os avanços na saúde ou a subida do
rendimento médio. Isso é como apontar o dedo a uma pessoa deprimida,
dizendo-lhe que devia era estar grata por estar viva. Este livro procura
demonstrar que o que nós sentimos é tão importante como aquilo que
temos. Tenta demonstrar que o bem-estar mental é tão importante quanto o
bem-estar físico e que, na verdade, o bem-estar mental faz parte do bem-
estar físico. E é neste ponto que algo parece estar a correr mal.
Se o mundo moderno nos faz sentir mal, então pouco importa o resto
que, eventualmente, possa estar a correr bem. Sentirmo-nos mal é horrível.
E sentirmo-nos mal quando nos dizem que não há razões concretas para
isso, bem, ainda é mais horrível.
Quero que este livro consiga pôr em perspetiva aquelas manchetes
bombásticas e apresente formas de nos protegermos face a um mundo cheio
de razões para entrarmos em pânico. Independentemente de tudo o que
esteja bem nas nossas vidas, as nossas mentes vão continuar vulneráveis. As
estatísticas apontam para o aumento de diversos tipos de problemas a nível
da saúde mental. Se acreditarmos na importância do nosso bem-estar
mental, então precisamos de tentar perceber, urgentemente, o que pode estar
por trás desse aumento exponencial.
Os problemas de saúde mental não são:
Uma moda.
Um fenómeno passageiro.
Uma coisa própria de celebridades.
Resultado de uma maior consciência dos problemas de saúde mental.
Algo de que se fala sempre com facilidade.
O mesmo de sempre.
O Yin do Yang
TEMOS, PORTANTO, uma história com dois lados.
É verdade que temos boas razões para nos sentirmos gratos pelo
desenvolvimento global. O aumento da esperança de vida, a redução da taxa
de mortalidade infantil, a abundância de alimento e abrigo, a inexistência de
guerras a nível mundial. Abordámos e resolvemos várias das nossas
necessidades físicas mais básicas. Muitos de nós vivem, diariamente, em
relativa segurança, protegidos por um teto e com comida na mesa. Mas,
após resolvermos algumas das questões mais básicas que nos afligiam, será
que não surgiram novas questões? Será que alguns avanços a nível social
criaram novos problemas? Claro que sim.
Por vezes, parece que resolvemos temporariamente o problema da
escassez, substituindo-o pelo problema do excesso.
Para onde quer que se olhe, as pessoas procuram formas de mudar as
suas vidas através da fórmula da subtração. As dietas são o exemplo mais
óbvio deste enamoramento pelas restrições, mas também podemos apontar
a tendência para as pessoas dedicarem determinados meses do ano ao
veganismo ou à abstinência de bebidas alcoólicas, bem como a vontade
cada vez mais frequente de fazerem uma “desintoxicação digital”. O
crescente interesse na meditação, no mindfulness ou no estilo de vida
minimalista representa uma evidente resposta à sobrecarga dos tempos
modernos. É a procura de um yin que contrabalance o yang frenético da
vida no século XXI.
Colapso
À MEDIDA que ultrapassava o meu recente surto de ansiedade, dei por
mim a hesitar sobre este livro. Talvez a minha ideia não passasse de uma
estupidez.
Comecei a pensar que provavelmente não seria lá muito positivo mexer
em todos estes problemas. Mas depois recordei-me de que não falar sobre
os problemas é, em si mesmo, um problema. É esse comportamento que
leva as pessoas a terem um esgotamento no local de trabalho ou na sala de
aula. Que enche as unidades de desabituação e os hospitais, e faz subir as
taxas de suicídio. Por isso, decidi que, no meu caso, era crucial saber mais
sobre estes assuntos. Queria encontrar razões para ser otimista e descobrir
formas de ser feliz; contudo, antes disso, precisava de auscultar a realidade
que me rodeava.
Por exemplo, precisava de saber porque razão tinha medo de abrandar,
como se estivesse dentro do autocarro do filme Speed – Perigo a Alta
Velocidade, no qual baixar dos 80 quilómetros por hora provocaria a
explosão do veículo. Queria descobrir se existe uma relação entre a
velocidade a que eu ando e a velocidade a que o mundo anda.
Esta curiosidade, em parte, tem um lado egoísta. Sinto-me petrificado ao
imaginar até que ponto pode chegar a minha mente, pois sei os lugares por
onde já andou. E também sei que parte da doença que tive, por altura dos
meus 20 e tal anos, se deveu ao meu modo de vida. Muita bebida, pouco
sono, a tentativa de ser algo que não era e, de uma forma mais ampla, as
habituais pressões da sociedade. Nunca mais quero voltar àquele lugar, por
isso, preciso de me manter alerta, não apenas relativamente aos efeitos que
o stress pode ter nas pessoas, mas também em relação às origens desse
mesmo stress. Quero descobrir se alguma das razões por que me sinto, por
vezes, à beira de um colapso se deve parcialmente ao facto de, também por
vezes, o próprio mundo parecer estar à beira de um colapsar.
Colapso acaba por ser uma palavra com muitos sentidos, o que pode
explicar o motivo pelo qual, hoje em dia, tantos profissionais de saúde
preferem não a usar. Mas, na sua essência, percebemos o que pretende
transmitir, pois pode significar, segundo os diferentes dicionários, coisas
como derrota, esmagamento, diminuição brusca de força, queda repentina,
crise, estado de decadência ou degradação, paralisação brusca de uma
atividade, destruição ou derrocada de uma estrutura.
Não é preciso muito para descobrirmos sinais de alerta para um possível
colapso, seja no nosso interior, seja no mundo exterior. Pode soar
demasiado dramático afirmarmos que o planeta está a caminhar para o
colapso. Ainda assim, todos sabemos, sem grande margem para dúvidas,
que o mundo está a sofrer transformações a vários níveis – tecnológico,
ambiental, político… – e que essas mudanças estão a acontecer a um ritmo
frenético. Mais do que nunca, precisamos de perceber como poderemos
editar o mundo, evitando, assim, que ele seja a razão do nosso próprio
colapso.
A vida é maravilhosa (mas há sempre um mas)
A VIDA É MARAVILHOSA.
Sim, até a vida dos nossos dias. Talvez até especialmente a vida dos
nossos dias. Milhões de partículas de magia efémera descem diariamente
sobre as nossas vidas. Podemos pegar num aparelho e falar com alguém que
está noutro hemisfério. Antes de marcarmos as nossas férias, podemos ler
as críticas escritas pelos hóspedes que estiveram alojados no hotel que
pensamos escolher. Graças às imagens de satélite, podemos conhecer todas
as ruas de Tombuctu. Quando adoecemos, podemos ir ao médico para que
ele nos prescreva um antibiótico, curando-nos de uma doença que, no
passado, seria mortal. Podemos ir a um supermercado e comprar vinho do
Chile ou fruta do dragão do Vietname. Temos a possibilidade nunca vista de
expressarmos a nossa discordância relativamente a palavras ou atos de
algum político. Mais do que qualquer outro período da História, temos
acesso a mais informação, mais filmes, mais livros, mais tudo.
Na década de 90 do século XX, quando o slogan da Microsoft nos
perguntava “onde quer ir hoje?”, tratava-se de uma pergunta retórica. Na era
digital, a resposta é quero ir a todo o lado. Recorrendo às palavras do
filósofo Soren Kierkegaard, a ansiedade bem pode ser encarada como “a
vertigem da liberdade”. Ainda assim, esta ampla liberdade de escolha não
deixa de constituir um pequeno milagre.
Porém, enquanto as possibilidades de escolha se tornam infinitas, as
nossas vidas continuam a ser medidas por intervalos de tempo limitado.
Não conseguimos viver todas as vidas possíveis. Não conseguimos ver
todos os filmes, ou ler todos os livros, ou visitar todos os locais que existem
neste belo planeta. Em vez de nos sentirmos bloqueados pelas
possibilidades de escolha, temos de saber editar. Temos de descobrir o que
nos faz bem e pôr o resto de parte. Não precisamos de outro mundo. Tudo
aquilo de que precisamos já está neste, desde que abdiquemos de pensar que
precisamos de tudo.
Tubarões invisíveis
UMA DAS COISAS MAIS FRUSTRANTES para quem lida com a ansiedade é ser
frequentemente difícil encontrar a razão por trás do seu aparecimento. Uma
pessoa pode sentir-se absolutamente aterrorizada, mesmo que não exista
qualquer ameaça real. Não é necessária uma ação concreta; passa-se tudo
no intenso domínio do suspense. É como se estivéssemos no filme Tubarão,
mas sem o tubarão.
Só que, por vezes os tubarões estão lá. Mesmo quando nos sentimos
preocupados sem motivos para isso, essas razões não deixam de lá estar.
São tubarões invisíveis, se quisermos ser metafóricos.
“Vamos precisar de um barco maior”, diz, a certa altura, o chefe de
polícia Martin Brody, no filme Tubarão.
Talvez esse seja igualmente o nosso problema. Não em termos de
tubarões metafóricos, mas antes em termos de barcos metafóricos. Se
calhar, conseguiríamos lidar melhor com o mundo se soubéssemos a
localização precisa desses tubarões e o tipo de barco de que precisaríamos
para navegarmos sãos e salvos através dos mares da vida.
Colisão
POR VEZES, a minha cabeça parece um computador com demasiadas
janelas abertas e o fundo de ecrã atafulhado de coisas. É como ter um
pequeno disco colorido a rodar continuamente dentro de mim,
incapacitando-me de fazer alguma coisa. Bastaria que eu encontrasse uma
forma de fechar alguns separadores, arrastar algumas coisas do painel de
fundo até ao ícone da reciclagem, para poder ficar bem. Mas qual dos
separadores devo fechar, se todos me parecem tão importantes? Como
posso evitar que a minha mente fique sobrecarregada, se o próprio mundo
está sobrecarregado? Temos a capacidade de pensar em tudo e mais alguma
coisa. Por isso, faz sentido que, por vezes, demos por nós a pensar em tudo
e mais alguma coisa. Então, temos de encontrar a coragem suficiente para
apagar os ecrãs, de modo a ligarmo-nos novamente a nós próprios. Temos
de desligar, de forma a restabelecer o contacto.
Coisas que agora são mais rápidas do que
costumavam ser
Correio.
Carros.
Velocistas olímpicos.
Notícias.
Capacidade de processamento.
Fotografias.
Cenas dos filmes.
Transações financeiras.
Viagens.
Crescimento da população mundial.
Desflorestação da floresta tropical amazónica.
Navegação marítima.
Progresso tecnológico.
Relacionamentos.
Acontecimentos políticos.
Pensamentos dentro da nossa cabeça.
Catástrofe constante
PREOCUPAÇÃO é uma palavra relativamente suave que nos provoca a
sensação de que a conseguiremos manter sob controlo. No entanto, as
preocupações sobre o futuro – sejam os dez minutos seguintes ou os
próximos dez anos – representam o principal obstáculo que enfrentamos na
tentativa de viver e apreciar o momento presente.
Sou um catastrofista. Não me fico pela simples preocupação. Nem
pensar. As minhas preocupações são ambiciosas. A minha preocupação é
infinita. A minha ansiedade, mesmo na forma menos assoberbante, é
suficientemente grande para me levar por aí fora. Sempre tive facilidade em
imaginar o pior cenário possível e depois ficar a pensar nisso
constantemente.
Desde que me conheço que é assim. Fui várias vezes ao médico,
convencido de que estava em fase terminal de vida, devido à doença que me
autodiagnosticara, após algumas pesquisas no Google. Em criança, quando
a minha mãe se atrasava a ir buscar-me à escola, pensava logo que o mais
provável era ela ter morrido num acidente de viação brutal. O desastre
nunca acontecia, mas a repetição desse facto (nada ter acontecido) não era
suficiente para contrariar a possibilidade de, um dia, o acidente brutal poder
mesmo acontecer. Cada instante em que a minha mãe estava ausente
representava uma hipótese de ela nunca mais voltar para junto de mim.
A capacidade de imaginar detalhadamente uma cena catastrófica, numa
imagem que misturava metal retorcido e vidros estilhaçados a brilharem na
estrada, tornava-se dominante na minha mente, remetendo para segundo
plano a ideia mais racional da improbabilidade de ocorrer a catástrofe
imaginada. Se a Andrea não atender o telemóvel, não consigo deixar de
pensar que o mais provável é que ela tenha caído das escadas ou, quem
sabe, possa ter morrido por combustão espontânea. E preocupo-me com
muitas outras coisas. Preocupo-me com o transtorno que, sem querer, causo
às pessoas. Preocupo-me por não agradecer tantas vezes como devia as
coisas boas da minha vida. Preocupo-me com as pessoas inocentes que são
presas. Preocupo-me com a violação dos direitos humanos. Preocupo-me
com o racismo, com certas políticas, com a poluição, com o mundo que
vamos deixar à geração dos nossos filhos. Preocupo-me com todas as
espécies que, por culpa dos humanos, estão em vias de extinção. Com a
minha pegada ecológica. Preocupo-me com todo o sofrimento no mundo
cuja resolução não está nas minhas mãos. Preocupa-me poder estar
demasiado centrado em mim, o que só me leva a ficar ainda mais centrado
em mim.
Muito antes da minha primeira experiência sexual, era fácil, para mim,
pensar que tinha SIDA, tal era a força dos aterradores anúncios que
passavam na televisão durante a década de 80 do século XX, numa ação
patrocinada pelo Governo britânico com vista a despertar a consciência
pública para a doença sexualmente transmissível. Se eu comer algo com um
sabor esquisito, imagino imediatamente que vou parar ao hospital com uma
intoxicação alimentar, ainda que isso só me tenha acontecido por uma vez
na vida.
Não consigo estar num aeroporto sem suspeitar do que me rodeia (e,
dessa forma, agir de forma suspeita).
Cada quisto, ou afta, ou sinal pode significar cancro. Cada falha da
memória é Alzheimer precoce. E por aí fora. Isto nos momentos em que me
sinto relativamente bem. Porque quando estou doente, então o catastrofismo
fica fora de controlo.
Agora que penso nisso, a principal característica da ansiedade, pelo
menos no meu caso, é imaginar constantemente a forma como as coisas
podem ficar ainda bastante piores. Na verdade, só muito recentemente
comecei a perceber a influência que o mundo tem nesta minha forma de
pensar, como o estado das nossas mentes – quer estejamos realmente
doentes ou apenas stressados – está associado, em certa medida, ao nosso
estado social. E vice-versa. Por isso, quero tentar perceber quais são as
coisas deste planeta agitado que nos podem afetar.
Há uma diferença abissal entre sentirmo-nos ligeiramente stressados ou
estarmos realmente doentes; no entanto, ambas estão relacionadas.
Acontece o mesmo com a fome: é diferente ter vontade de comer ou estar
esfomeado por não ter comida, mas há uma relação entre as duas, pois o
que causa uma (falta de comida) acaba também por provocar a outra.
Assim, quando estou bem, mas estou stressado, as coisas que me fazem
sentir ligeiramente pior são frequentemente as mesmas coisas que me fazem
sentir muito pior nas alturas em que estou doente. Aquilo que se aprende
durante a doença – por exemplo, quais são as coisas que nos provocam
sofrimento – pode igualmente ser aplicado nos momentos em que estamos
melhor. A dor ensina-nos muito.
Mais algumas preocupações para além das já
mencionadas no capítulo anterior (porque as
preocupações são intermináveis)
* Os noticiários.

* O metro subterrâneo. Quando ando de metro, penso na quantidade de


coisas que pode correr mal. A carruagem pode ficar parada a meio do
túnel. Pode deflagrar um incêndio. Pode ocorrer um ataque terrorista.
Posso sofrer um ataque cardíaco. Mas, se quiser ser justo, posso
afirmar que só tive uma única experiência aterradora associada ao
metro subterrâneo. Foi quando saí de uma estação do metropolitano de
Paris e me vi envolvido por uma ligeira nuvem de gás lacrimogénio.
Na superfície, travava-se de uma batalha entre a polícia e os
trabalhadores que participavam numa manifestação sindical, sendo que
os agentes tinham lançado umas granadas de gás lacrimogénio para um
local demasiado próximo da entrada do metro. Naquele momento, com
a garganta a arder, desconhecia o que se estava a passar. Limitei-me a
cobrir o rosto com um lenço, para tentar respirar, e pensei que era um
ataque terrorista. Não era. Mas o simples facto de o ter pensado já
representou uma espécie de experiência traumática. “Quem teme o
sofrimento, sofre já aquilo que teme”, como diz Montaigne.

* Suicídio. Apesar de ter passado por uma fase suicida, durante a qual
quase me atirei de um penhasco quando era mais novo, a minha
obsessão com o suicídio, nestes últimos tempos, tornou-se mais uma
espécie de medo de que tal venha a acontecer, em vez de uma vontade
de me suicidar.
* Outras preocupações com a saúde. Tais como: paragem cardíaca
súbita e fatal devido a um ataque de pânico (uma hipótese
perfeitamente absurda); uma depressão tão aniquilante que me deixaria
prostrado, incapaz de me voltar a mexer, a minha face numa expressão
rígida como se tivesse acabado de ver a cabeça da Medusa; cancro;
doenças cardiovasculares (tenho colesterol alto, por razões de
hereditariedade); morrer demasiado jovem; morrer demasiado velho; a
morte, em geral.

* Aparência. Já ultrapassámos o mito de que os homens não se


preocupam com o seu aspeto. A minha aparência tem sido motivo de
preocupação. Costumava comprar a revista Men’s Health e seguir
religiosamente os planos de exercícios propostos, na tentativa de ficar
com o corpo escultural do modelo na capa. Também me tenho
preocupado com o meu cabelo, desde a espessura até à possibilidade
de ficar careca. Costumava preocupar-me com os sinais na minha cara.
Ficava a olhá-los ao espelho durante muito tempo, como se os
conseguisse convencer a desaparecerem. Ainda fico preocupado com
as rugas no meu rosto, mas já estou melhor. Não deixa de ser uma
estranha ironia que, em alguns casos, a cura para as preocupações com
o envelhecimento esteja precisamente no facto de… envelhecermos.

* Culpa. Em certos momentos, senti-me culpado por ter ficado muito


aquém de ser um filho perfeito, ou um marido perfeito, ou um cidadão
perfeito, ou um ser humano perfeito. Sinto culpa quando trabalho de
mais, negligenciando a minha família, e quando não trabalho o
suficiente. Mas a culpa nem sempre tem uma causa específica; muitas
vezes, é apenas uma sensação.
* Desadequação. Preocupo-me com a falta de algo e com a forma de
preencher essa lacuna. Costumo sentir, com muita frequência, um
vazio metafórico no meu interior. Ao longo da vida, tentei preencher
esse vazio com todo o tipo de coisas – bebidas alcoólicas, festas,
tweets, comprimidos prescritos pelo médico, drogas, exercício físico,
comida, trabalho, popularidade, viagens, gastar dinheiro, ganhar mais
dinheiro, publicar livros –, mas, claro, nenhuma delas funcionou
verdadeiramente. Em certos casos, tudo o que atirei para o interior
desse vazio apenas serviu para aprofundar o buraco que já lá estava.

* Armas nucleares. Se o armamento nuclear é alvo de notícia – e,


ultimamente, tem sido –, basta passar por uma janela para conseguir
visualizar nuvens de cogumelo. As palavras do antigo general norte-
americano, Omar Nelson Bradley, continuam a ecoar nos nossos dias:
“O nosso mundo é feito de gigantes nucleares e de ética infantil.
Sabemos mais sobre matar do que acerca de viver.”

* Robôs. Acreditem que isto é meio a sério. O nosso futuro robotizado é


uma fonte legítima de preocupações. Boicoto todos os terminais de
pagamento automático e serviços de autoatendimento, num ato
continuado de defesa pró-humana. Mas há outro lado da questão:
pensar em robôs, por vezes, faz-me valorizar este extraordinário
mistério que é estarmos vivos.
Cinco razões para ficarmos felizes por sermos um
ser humano, em vez de um robô autoconsciente
1. William Shakespeare não era um robô. Emily Dickinson não era um
robô. Aristóteles também não. Nem Euclides. Nem Picasso. Nem Mary
Shelley (embora ela acabasse por escrever sobre eles). Todos aqueles
que admiramos, todos aqueles de quem gostamos, não eram nem são
robôs. Os seres humanos são fantásticos para os outros seres humanos.
E nós somos humanos.

2. Somos misteriosos. Um robô é projetado para executar uma ou mais


tarefas. Mas nós não sabemos a razão da nossa existência. Temos de
criar o nosso próprio significado. Já andamos por cá há milhares de
anos e ainda continuamos à procura de respostas. O nosso mistério é
profundamente atraente.

3. Os nossos ainda não muito distantes antepassados escreveram poemas,


lutaram corajosamente em guerras, apaixonaram-se, dançaram,
assistiram a melancólicos pores de sol. Os antepassados de um robô
autoconsciente serão um aspirador defeituoso e um terminal de
pagamento automático.

4. Esta lista apenas tem quatro pontos. É só para confundir os robôs. Mas
cheguei a pedir a alguns amigos virtuais que me dissessem algumas
razões para preferirmos os seres humanos aos robôs. Obtive respostas
muito variadas: “A capacidade de nos rirmos de nós próprios”;
“amor”; “orgasmos e pele macia”; “capacidade de nos
maravilharmos”; “empatia”. Talvez um robô consiga, um dia,
desenvolver estas coisas. Contudo, por enquanto, estas são boas razões
para nos relembrarmos de que os seres humanos são muito especiais.
Onde termina a ansiedade e começam as notícias?
Todo este catastrofismo é irracional, mas isso não lhe tira o poder sobre
as nossas emoções. E não são apenas as pessoas com ansiedade que o
sabem.
Os publicitários sabem-no.
Os agentes de seguros sabem-no.
Os políticos sabem-no.
Os editores de jornais sabem-no.
Os agitadores políticos sabem-no.
Os terroristas sabem-no.
O sexo vende? Nem tanto. O medo é que vende.
E agora já nem precisamos de imaginar como serão as piores
catástrofes. Podemos, literalmente, vê-las. As câmaras dos telemóveis
transformaram-nos a todos em jornalistas televisivos. Quando acontece algo
de terrível – um tsunami, um incêndio florestal, um ataque terrorista –, está
lá sempre alguém a filmar.
Não faltam imagens para alimentar os nossos piores pesadelos. Já não
ficamos informados, como antigamente, pelos jornais ou noticiários de
referência. Vamos buscar informação aos sites de notícias e às redes sociais
e às listas de e-mails. Além disso, os canais noticiosos também já não são o
que eram. Há sempre uma notícia de última hora. E quanto mais aterradora
for, maior o nível de audiência.
Isto não significa que todos os jornalistas querem notícias más. Alguns
querem, se tivermos em conta o modo discutível como as apresentam. Mas
até os melhores canais noticiosos lutam pelas audiências e, ao longo dos
anos, começaram a perceber o que funciona melhor e o que não funciona,
competindo ferozmente pela atenção do espectador. É por isso que os
noticiários televisivos podem ser encarados como uma metáfora do que é
ter uma perturbação de ansiedade generalizada. A separação do ecrã em
janelas com vários rostos ou imagens e o rodapé a passar incessantemente
títulos de outras notícias funcionam como uma espécie de representação
visual do que se sente na ansiedade: um atropelo de conversas e ruídos de
fundo e dramas sensacionalistas. Mesmo num dia sem notícias bombásticas
é provável que surja um sentimento de ansiedade ao assistir aos noticiários.
Porque, na verdade, já não existe um dia sem notícias bombásticas.
E quando algo de realmente terrível acontece, não ajuda nada sermos
bombardeados com um fluxo contínuo de relatos de testemunhas, vídeos
captados por telemóveis ou meras especulações. Não há ali qualquer
informação; apenas sensacionalismo. Portanto, se achar que as notícias
acabam por alterar ou exacerbar o seu estado mental, há apenas uma coisa a
fazer: DESLIGAR. Não permita que o terror invada a sua cabeça. Não há
qualquer benefício em assistir, paralisado, às intermináveis catadupas de
notícias que apenas servem para aumentar a nossa sensação de impotência.
Os canais informativos, sem terem consciência disso, mimetizam a
forma como o medo funciona: foco nas coisas más, postura catastrofista,
fluxo repetido e continuado de informações sobre o mesmo tópico de
preocupação. Desta forma, atualmente, tornou-se complicado perceber qual
é a fronteira entre a nossa perturbação de ansiedade e as verdadeiras
notícias. Onde acaba uma e começam as outras?
Por isso, não devemos esquecer o seguinte:
Não há qualquer vergonha em não assistir aos noticiários.
Não há qualquer vergonha em não ir às redes sociais.
Não há qualquer vergonha em nos desligarmos.
2.

O plano geral
“Muitas vezes, não nos apercebemos, por exemplo, de que os nossos
pensamentos e emoções mais íntimos, na verdade, não são nossos. Isto
porque pensamos em termos de linguagens e imagens que não fomos nós a
inventar, mas sim que nos foram transmitidas pela sociedade em que
vivemos.”
Alan Watts, The Culture of Counter Culture: Edited Transcripts
A vida anda muito depressa
NA PERSPETIVA DO COSMOS, a história da Humanidade tem sido rápida.
Não andamos por cá há assim tanto tempo. O planeta Terra tem cerca de
4,6 mil milhões de anos, enquanto o Homo Sapiens, a nossa maravilhosa e
problemática espécie, só tem cerca de 200 mil anos. E foi apenas nos
últimos 50 mil anos que as coisas evoluíram mais rapidamente. A partir do
momento em que começámos a usar vestuário feito com peles de animais.
Quando criámos o ritual de enterrar os nossos mortos. Desde que
desenvolvemos métodos de caça mais eficazes.
A arte rupestre mais antiga que já se descobriu situa-se numa caverna da
Indonésia e data de há 40 mil anos, o que, em termos da idade do nosso
mundo, representa um pestanejar de olhos. Ainda assim, a arte é mais antiga
do que a agricultura. As quintas existem há cerca de 10 mil anos; ou seja, é
como se tivessem sido criadas ontem. E a escrita, bem, segundo o que se
sabe, deve ser coisa para ter uns meros 5 mil anos.
A civilização, que teve início na Mesopotâmia (numa área que, no mapa
político atual, equivale sensivelmente ao Iraque e à Síria), tem menos de 4
mil anos. Mas, assim que entrámos na era da civilização, as coisas
começaram realmente a acelerar. Foi por essa altura que a humanidade
começou a apertar o cinto de segurança coletivo. Dinheiro. O primeiro
alfabeto. O primeiro sistema de notação musical. As pirâmides. Budismo,
Hinduísmo, Cristianismo, Islamismo, Sikhismo. Filosofia socrática. O
conceito de democracia. Vidro. Espadas. Navios de guerra. Canais.
Estradas. Pontes. Escolas. Papel higiénico. Relógios. Bússolas. Bombas.
Óculos. Minas. Armas. Armas mais poderosas. Jornais. Telescópios. O
primeiro piano. Máquinas de costura. Morfina. Frigoríficos. Cabos de
telégrafo submarinos. Baterias recarregáveis. Telefones. Carros. Aviões.
Esferográficas. Jazz. Concursos de conhecimentos gerais. Coca-Cola.
Poliéster. Armas nucleares. Foguetões rumo à Lua. Computadores pessoais.
Videojogos. O raio do correio eletrónico. A Internet. Nanotecnologia.
Vruuuum.
Estas mudanças, mesmo se encaradas no lapso de quatro milénios, não
têm acontecido de uma forma progressiva e constante; aconteceram numa
curva ascendente tão íngreme que seria capaz de assustar o skater mais
experimentado. A mudança até pode ser uma variável constante; mas a
velocidade da mudança, essa, não é nada fixa.

AO PROCURAREM O QUE PODE ter desencadeado problemas mais sérios de


saúde mental, os terapeutas identificam, habitualmente, uma mudança
profunda ocorrida na vida do paciente como um dos fatores cruciais. A
mudança é frequentemente associada ao medo. Mudar de casa, perder um
emprego, casar, aumentos ou decréscimos de rendimentos, uma morte na
família, o diagnóstico de um problema de saúde, fazer 40 anos, enfim,
qualquer coisa. Por vezes, nem sequer tem grande importância se é uma
mudança aparentemente boa, como ter um filho ou ser promovido no
trabalho. A intensidade da mudança pode acarretar um choque para o nosso
sistema.
Mas, o que se passa quando a mudança vai para lá da nossa esfera
pessoal?
O que se passa quando uma mudança afeta toda a gente?
O que se passa quando uma sociedade inteira – ou toda a população
mundial – atravessa um período de profunda mudança?
O que acontece nesse caso?
Todas estas perguntas partem, obviamente, de um pressuposto. O
pressuposto de que o mundo está a mudar. E está a mudar em que sentido?
A grande mudança, bem como a mais visível, é tecnológica.
Sim, existem outras mudanças, a nível social, político, económico ou
ambiental, mas a tecnologia está sempre envolvida. Chega mesmo a ser a
base que sustenta essas mudanças.
É óbvio que, enquanto espécie, o ser humano sempre foi moldado pela
tecnologia. A tecnologia é o suporte de tudo.
Num sentido mais restrito, tecnologia significa simplesmente
ferramentas ou métodos. Mas, num sentido mais abrangente, pode significar
linguagem. Pode significar pedras lascadas e gravetos de madeira para fazer
fogo. De acordo com vários antropólogos, o progresso tecnológico é o fator
propulsor mais importante na sociedade humana.
A descoberta do fogo ou a invenção da roda, do arado ou da imprensa
não tiveram apenas uma importância específica, acabando por ter um
impacto generalizado no modo como as sociedades se desenvolveram.
No século XIX, o antropólogo norte-americano Lewis H. Morgan
afirmou que as invenções tecnológicas poderiam levar a novas eras da
humanidade. Ele distinguia três estados da evolução social – selvajaria,
barbárie e civilização –, sendo que a passagem de uma fase para a outra se
devia a enormes saltos tecnológicos. Nos dias de hoje, esta teoria parece-me
um pouco questionável, ao sugerir que houve também um progresso a nível
moral, desde os “selvagens” até aos “civilizados”. Porém, outros
especialistas optaram por prismas algo diferentes.
Na década de 60 do século XX, Nikolai Kardashev, um astrofísico russo
que andava em busca de extraterrestres, achou que a melhor forma de medir
o progresso seria através da informação. No início, pouco mais tínhamos do
que a informação contida nos nossos genes. Depois, surgiram coisas como
linguagem, escrita, livros e, por fim, tecnologias da informação.
Atualmente, os sociólogos e os antropólogos contemporâneos estão
quase todos de acordo quanto ao facto de estarmos a dirigir-nos rumo à
sociedade pós-industrial e que as mudanças estão a ocorrer mais
rapidamente do que no passado.
Mas, qual é mesmo a velocidade destas mudanças?
De acordo com a Lei de Moore – que adotou o apelido do seu autor,
Gordon Moore, cofundador da Intel –, a capacidade dos microprocessadores
duplica a cada 18 meses. Este aumento exponencial explica porque é que o
smartphone no seu bolso tem muito mais capacidades do que os
computadores que, na década de 60 do século XX, chegavam a ocupar salas
inteiras.
Mas este crescimento veloz das capacidades não está apenas confinado
aos microprocessadores. Ocorre em todo o tipo de tecnologia, desde a
largura de banda da Internet até às quantidades de dados armazenados.
Tudo parece indicar que a tecnologia não se limita a progredir calmamente;
estamos perante um progresso em aceleração. O progresso gera mais
progresso.
Hoje em dia, os computadores ajudam a criar computadores com uma
necessidade cada vez menor de interação humana. Isto levou a que tenha
surgido alguma preocupação com a questão da “singularidade”, uma
matéria que está presente tanto nos maiores sonhos como nos maiores
pesadelos. A singularidade, neste caso, representa o ponto em que a
inteligência artificial se tornará mais inteligente do que o maior génio da
humanidade. Nesse momento da História, estaremos perante dois cenários
possíveis, sendo que cada indivíduo se orienta para um deles consoante a
sua tendência para o otimismo ou para o pessimismo. Ou nos fundimos e
evoluímos com essa tecnologia, transformando-nos em cyborgs felizes e
imortais; ou os nossos robôs com autoconsciência, as nossas torradeiras e os
nossos computadores portáteis vão subjugar-nos, tornando os humanos
escravos ou comendo-os ao pequeno-almoço.
Alguém pode prever qual dos dois cenários irá acontecer?
No entanto, estamos a caminhar numa dessas direções. De acordo com o
mundialmente famoso inventor e futurista Ray Kurzweil, aproximamo-nos
da singularidade tecnológica. Para realçar este ponto de vista, Kurzweil
escreveu o best-seller intitulado, pois claro, The Singularity Is Near (A
Singularidade está Próxima).
No início do nosso século, Kurzweil defendeu que “não vamos ter 100
anos de progresso durante o século XXI; vai ser qualquer coisa como 20 mil
anos de progresso (e isto tendo em conta o nosso nível atual)”. Convém
dizer que Kurzweil não é um excêntrico, sob o efeito de erva, que assistiu a
demasiados filmes de ficção científica. As previsões que tem feito
costumam revelar-se verdadeiras. Por exemplo, em 1990 previu que até ao
final da década um computador conseguiria vencer o campeão mundial de
xadrez. As pessoas riram-se da profecia. Mas, em 1997, o melhor xadrezista
do mundo, Garry Kasparov, foi derrotado pelo computador Deep Blue, da
IBM.
E pensem no que aconteceu nestas primeiras décadas do século XXI.
Pensem na rapidez com que a nossa normalidade mudou. A Internet
apoderou-se das nossas vidas. Tornámo-nos mais e mais dependentes dos
cada vez mais inteligentes smartphones. Há máquinas que conseguem
sequenciar os genomas humanos até à casa dos milhares. Os terminais de
pagamento automático são o novo padrão. Os veículos autónomos deixaram
de ser uma profecia louca para se tornarem um modelo de negócio do
mundo real, pondo em perigo os empregos dos taxistas.
Pensem que, no ano 2000, ninguém sabia o que era uma selfie. O
Google já existia, mas googlar estava longe de se tornar um sinónimo de
pesquisar na Internet. Não havia YouTube, nem Wikipedia, nem WhatsApp,
nem vlogging, nem Snapchat, nem Skype, nem Spotify, nem Siri, nem
Facebook, nem bitcoins, nem tweets com gifs, nem Netflix, nem iPads, nem
“lol” ou “ICYMI” [in case you miss it; “só para o caso de teres perdido”],
nem emojis de chorar-de-rir, quase ninguém tinha GPS, geralmente viam-se
fotografias em álbuns e a nuvem era apenas aquela coisa que fazia chover.
Mesmo enquanto escrevo este parágrafo posso sentir como ele se tornará
rapidamente obsoleto. Posso sentir como, daqui a alguns anos, a minha lista
vai conter um sem-número de omissões embaraçosas, de tantas marcas e
invenções tecnológicas que ainda não surgiram. Sim, pensem nisso. Pensem
nas tecnologias que ficaram vergonhosamente obsoletas numa questão de
anos. Pensem nos aparelhos de fax, nos velhos telemóveis, nos CD, nos
antigos modems, nas cassetes VHS e Betamax, nos primeiros leitores de
livros digitais e no GeoCities e no motor de busca Alta Vista.
Portanto, independentemente do que se pense sobre a possibilidade da
singularidade, não há dúvida de que: a) as nossas vidas estão a tornar-se
cada vez mais tecnológicas; b) a tecnologia está a evoluir a uma velocidade
cada vez maior.
E, tal como a tecnologia sempre foi a principal fonte de alterações
sociais, também este ritmo vertiginoso de mudança tecnológica está a
desencadear outras mudanças. Estamos a caminhar para várias
singularidades alternativas. Para muitos outros pontos de não retorno.
Talvez até já tenhamos passado por algum, sem sequer nos darmos conta.
Mudanças no mundo que não são inteiramente
positivas
EM CERTOS ASPETOS, o mundo pode ter progredido de forma rápida,
contudo, a velocidade dessas mudanças não nos deixou propriamente mais
serenos. E algumas mudanças, particularmente as fomentadas pela
tecnologia, foram mais céleres do que outras. Por exemplo:
* Política. A polarização da política entre esquerda e direita, sustentada,
em parte, pelos ecos e campos de batalha das redes sociais, tem-nos
afastado de conceitos que parecem cada vez mais antiquados, como
zonas mais ou menos consensuais, capacidade de chegar a acordo,
verdade objetiva dos factos. Nas palavras do sociólogo norte-
americano Sherry Turkle, vivemos num mundo onde “temos cada vez
mais expectativas relativamente à tecnologia e cada vez menos
expectativas em relação aos outros”. Um mundo onde, para termos a
nossa identidade, precisamos de partilhar o que somos. Houve coisas
positivas nesta mudança. Muitas causas nobres, incluindo uma maior
consciência sobre a saúde mental, ganharam visibilidade devido ao
aspeto viral da Internet. Mas, obviamente, nem tudo tem sido positivo.
O aumento das fake news nas redes sociais, os bots com objetivos
políticos no Twitter, as falhas de segurança da privacidade online são
acontecimentos que já definiram e orientaram irreversivelmente a
política para caminhos enviesados.

* Trabalho. Os robôs e os computadores estão a ficar com os postos de


trabalho dos seres humanos. Os empregadores estão a retirar os fins de
semana aos trabalhadores. O mundo do trabalho está a tornar-se
desumanizado, como se os seres humanos existissem para serem
escravos do trabalho, em vez de o trabalho existir em prol dos
humanos.

* Redes sociais. A socialização dos meios de comunicação abateu-se


rapidamente sobre as nossas vidas. Para os utilizadores do Facebook,
do Twitter, do Instagram, as páginas nas redes sociais são uma espécie
de revista do eu. Será isso saudável? Cada vez se descobrem mais
quebras da ética online, como a recolha ilícita de milhões de perfis
psicológicos através do Facebook, pela Cambridge Analytica, dados
posteriormente utilizados para tentar influenciar resultados eleitorais.
Além disso, podemos apontar algumas preocupações muito sérias no
domínio psicológico. Estamos constantemente a mostrar-nos, a
apresentar-nos como um produto muito apetitoso. Estamos
constantemente a ver os outros com um aspeto maravilhoso e a
fazerem coisas divertidas (coisas que nós não estamos a fazer).

* Linguagem. De acordo com uma pesquisa feita pela University


College de Londres, a língua inglesa está a sofrer alterações com uma
rapidez nunca vista. A crescente utilização de auxiliares da
comunicação – palavras abreviadas (foneticamente, através de
números ou supressão de caracteres), acrónimos, emojis, siglas, gifs –
é reveladora da influência dos avanços tecnológicos na linguagem (da
mesma forma como, séculos atrás, a invenção da imprensa levou à
uniformização da gramática e da ortografia). Portanto, já não se trata
apenas do que as pessoas dizem, mas também da forma como o dizem.
Atualmente, muitos milhões de pessoas têm mais conversas por
mensagens de texto do que cara a cara. Esta mudança sem precedentes
aconteceu no espaço de uma única geração. E isto, apesar de não ser
propriamente um acontecimento negativo em si mesmo, não deixa de
ser um acontecimento.
* Ambiente. Há algumas mudanças que têm, no entanto, um impacto
notoriamente negativo. Deixemo-nos de paninhos quentes: têm um
impacto muitíssimo negativo. As alterações ambientais na Terra são
tão profundas que alguns cientistas já avançaram com a ideia de que o
nosso planeta já entrou numa fase completamente nova, o que também
estará a acontecer com a humanidade. Em 2016, no Congresso
Internacional de Geologia, decorrido na Cidade do Cabo, alguns dos
mais conceituados cientistas advogaram que estamos a deixar a época
do Holoceno – caracterizada por 12 mil anos de estabilidade climática,
iniciados na Idade do Gelo – para entrarmos noutra era: o
Antropoceno, também dito como “a nova idade do homem”. Para estes
cientistas, o crescimento brutal das emissões de dióxido de carbono, a
subida do nível do mar, a poluição dos oceanos, a proliferação do
plástico (segundo o Fórum Económico Mundial, produz-se 20 vezes
mais plástico do que na década de 60 do século XX), a rápida extinção
de espécies, a deflorestação, a agricultura e a aquacultura
industrializadas e o desenvolvimento urbano provam que chegámos a
uma nova era da Terra. No fundo, a vida moderna, embora de forma
lenta, está basicamente a matar o planeta. Será, então, assim tão
estranho que esta sociedade tóxica também nos possa fazer mal?
Tempo futuro
QUANDO O PROGRESSO SURGE de forma rápida, o presente pode parecer-se
com uma espécie de futuro contínuo. Ao vermos um vídeo, que se tornou
viral, de um robô de dimensões humanas a fazer saltos mortais à retaguarda,
parece que a realidade se transformou em ficção científica.
Somos, inclusivamente, encorajados a querer que assim seja. Devemos
“acolher” o futuro e “esquecer” o passado. Toda a sociedade de consumo
assenta na ideia de ficarmos desejosos de ter o último modelo, em vez de
nos contentarmos com o que temos. E trata-se de uma receita quase
infalível para a infelicidade.
Ninguém nos encoraja a viver no aqui e agora. Somos ensinados a viver
noutro tempo: no futuro. Primeiro, metem-nos nos jardins de infância ou na
pré-escola, cuja principal missão é preparar-nos para o que aí vem: a escola
para a escola. Depois, quando entramos para a escola, somos incentivados,
desde muito cedo, a esforçarmo-nos ao máximo e a ter boas notas nos
testes. E esses testes, ao longo do tempo, acabam por se transformar em
exames, cujos resultados, como tão bem sabemos, vão ditar aspetos
importantes do nosso futuro: se vamos prosseguir os estudos, entrando na
universidade, ou se deixamos a escola, aos 16 ou 18 anos, para arranjar um
trabalho. E mesmo que a escolha seja entrar no ensino superior, esperam-
nos mais testes, mais exames, mais decisões intimidantes. Esperam-nos
mais avisos e questões. Como te vês daqui a alguns anos? Deves pensar
bem sobre o teu futuro. Que profissão gostarias de ter? Vais ver que, a
longo prazo, o teu esforço vai ser recompensado.
O sistema educativo ensina-nos uma espécie de mindfulness invertido.
Uma espécie de Estudos Futuros em que, sob o disfarce de Matemática,
Literatura, História, Programação de Computadores, Francês, nos andam a
ensinar que devemos pensar num tempo diferente daquele em que vivemos.
O tempo em que vamos ser crescidos.
Encarar o ato da aprendizagem não pelo seu valor intrínseco, mas por
aquilo que virá a proporcionar, acaba por diminuir a maravilha que é estar
vivo. Somos seres extraordinários que pensam, sentem, criam arte; somos
seres sedentos de conhecimento que, através da aprendizagem, conseguem
pensar sobre si mesmos e o mundo em redor. A aprendizagem é um fim em
si. Tem muito mais para nos oferecer do que aquilo que poderemos
preencher nos cabeçalhos dos impressos. A aprendizagem é uma forma de
amor à vida, aqui e agora.
Começo a compreender como estavam erradas algumas das minhas
aspirações. Como me tinha afastado tanto do presente. Como precisava
sempre de mais do que quer que estivesse perante mim. E continuo à
procura de uma forma de me manter sossegado no presente, e, tal como
dizia a minha avozinha, de ser feliz com o que tenho.
Metas orientadoras
SERÁS FELIZ se tiveres boas notas.
Serás feliz quando fores para a universidade. Serás feliz quando entrares
na universidade certa. Serás feliz quando arranjares um emprego. Serás
feliz quando fores aumentado. Serás feliz quando fores promovido. Serás
feliz quando conseguires ter o teu próprio negócio. Serás feliz quando fores
rico. Serás feliz quando comprares um olival na Sardenha.
Serás feliz quando, um dia, alguém olhar para ti daquela forma. Serás
feliz quando tiveres um relacionamento estável. Serás feliz quando casares.
Serás feliz quando tiveres filhos. Serás feliz quando os teus filhos forem
exatamente as crianças que tu desejas que sejam.
Serás feliz quando saíres de casa dos teus pais. Serás feliz quando
comprares a tua própria casa. Serás feliz quando pagares o empréstimo da
casa. Serás feliz quando tiveres uma casa com jardim. Uma casa no campo.
Rodeada de vizinhos simpáticos que te convidam para um churrasco nos
dias ensolarados do verão, com os vossos filhos a brincarem todos juntos
sob uma brisa cálida.
Serás feliz se cantares. Serás feliz se cantares em frente a uma plateia.
Serás feliz quando o teu álbum de estreia ganhar um Grammy e for número
um nas tabelas de 32 países, incluindo a Letónia.
Serás feliz se escreveres. Serás feliz quando fores publicado. Serás feliz
quando fores novamente publicado. Serás feliz quando tiveres um best-
seller. Serás feliz quando tiveres um best-seller que atinja o topo de vendas.
Serás feliz quando o teu livro for adaptado ao cinema. Serás feliz quando o
teu livro se transformar num grande filme. Serás feliz quando fores a J. K.
Rowling.
Serás feliz quando as pessoas gostarem de ti. Serás feliz quando mais
pessoas passarem a gostar de ti. Serás feliz quando toda a gente gostar de ti.
Serás feliz quando as pessoas sonharem em conhecer-te.
Serás feliz se tiveres uma boa aparência. Serás feliz quando as pessoas
se virarem para te ver. Serás feliz se tiveres uma pele mais suave. Serás
feliz se tiveres menos barriga. Serás feliz se tiveres um abdómen
musculado. Serás feliz quando uma foto tua tiver 10 mil gostos no
Instagram.
Serás feliz quando deixares de te preocupar com coisas terrestres. Serás
feliz quando te tornares uno com o universo. Serás feliz quando fores o
universo. Serás feliz quando fores um deus. Serás feliz quando fores o deus
que governa os restantes deuses. Serás feliz quando fores Zeus, lá nas
nuvens, sobre o Monte Olimpo, dominador de todos os céus.
Talvez.
Talvez.
Talvez.
Talvez
TALVEZ A FELICIDADE não tenha que ver connosco, enquanto indivíduos.
Talvez não seja algo que chega para entrar na nossa vida. Talvez a
felicidade seja algo que se sinta ao sair para o exterior, em vez de algo no
nosso interior. Talvez a felicidade não tenha relação com aquilo que
julgamos merecer. Talvez a felicidade não tenha que ver com o que
podemos obter. Talvez a felicidade esteja relacionada com aquilo que já
temos. Talvez a felicidade tenha que ver com o que podemos dar. Talvez a
felicidade não seja uma borboleta que podemos apanhar com uma rede.
Talvez não exista uma fórmula certa para a felicidade. Talvez só existam
muitos talvez. Se o “para sempre é composto de muitos agora”, tal como
disse Emily Dickinson, então talvez esses agora sejam feitos de talvez.
Talvez o objetivo da vida seja prescindir das certezas da vida para abraçar a
gloriosa incerteza.
3.

A nossa aparência não é quem somos


“É algo muito estranho que os jovens estejam a ver imagens distorcidas
das coisas que deveriam ser.”
Daisy Ridley, sobre as razões de ter deixado o Instagram
Belezas infelizes
NUNCA NA HISTÓRIA da humanidade houve tanta disponibilidade de
produtos e serviços destinados a cumprir o objetivo de nos sentirmos mais
jovens e atraentes.
Cremes de dia, cremes de noite, loções para o pescoço, loções para as
mãos, esfoliantes, sprays de bronzeamento, rímeis, soros
antienvelhecimento, cremes para celulite, máscaras faciais, corretores,
cremes de barbear, aparadores de barba, batons, bases, kits de depilação a
cera, óleos restauradores, corretores para poros dilatados, eyeliners, botox,
manicuras, pedicuras, microdermoabrasão (que, pelo nome, deve ser uma
estranha mistura de esfoliação moderna com tortura medieval), banhos de
lama, algoterapia e a pujante indústria da cirurgia plástica. Há aparadores de
pelos no nariz, pelos nas orelhas e pelos púbicos. Até pode clarear o ânus,
caso acorde para aí virado (o clareamento anal está em franca expansão).
Nunca houve tamanha imensidão de conselhos para ter boa aparência,
como nesta era de blogues de beleza e vloggers de maquilhagem e canais de
personal trainers. Somos bombardeados com livros de dietas e propostas de
inscrição em ginásios; no YouTube, podemos aceder a centenas de
exercícios para uns abdominais de sonho, exercícios para ter um corpo de
herói de ação, de vídeos de ioga para o rosto. E surgem cada vez mais
aplicações e filtros digitais que visam melhorar tudo o que os produtos não
conseguem melhorar. Se assim quisermos, podemos transformarmo-nos nos
nossos sonhos mais irrealistas, criando um fosso ainda maior entre o que
podemos ver ao espelho e a nossa imagem digitalmente melhorada. As
mulheres, e cada vez mais também os homens, estão a fazer tudo o que
podem para melhorarem a sua aparência.
Apesar de todos estes novos métodos e truques para melhorar a nossa
imagem, muitos continuam a sentir-se infelizes quando se olham ao
espelho. O estudo mais abrangente sobre este tema, realizado pelo grupo
GfK e publicado na revista Time, em 2015, indicava que vários milhões de
pessoas estavam insatisfeitas com o seu aspeto. Por exemplo, 38% dos
japoneses diziam-se extremamente infelizes com a sua aparência. Mas o
resultado mais interessante do inquérito estava no facto de o sentimento
sobre a aparência física ser mais condicionado pelo país onde os inquiridos
viviam do que, por exemplo, pelo género a que pertenciam. Na verdade, os
níveis de ansiedade acerca do aspeto físico, em todo o mundo, estão a ficar
nivelados entre homens e mulheres.
Se for mexicano ou turco, tem uma maior probabilidade de se sentir
bem com o que vê ao espelho, uma vez que mais de 70% dos inquiridos
desses países garantiu estar “totalmente satisfeito” ou “bastante satisfeito”
com o seu aspeto. Já os habitantes de Japão, Reino Unido, Rússia ou Coreia
do Sul tinham maior probabilidade de se sentirem muito infelizes.
Então, porque é que tantas pessoas, à exceção de mexicanos e turcos, se
sentem infelizes com a aparência física? Ao que parece, há uma série de
razões.
1. Embora tenham passado a existir mais possibilidades de ficarmos com
um bom aspeto, a verdade é que os padrões que pretendemos alcançar
também acabaram por se tornar muito mais elevados.

2. Mais do que nunca, somos agora constantemente bombardeados por


imagens de gente que é dona de uma beleza invulgar. E isto não
acontece apenas nos ecrãs de cinema e de televisão ou nos cartazes
publicitários; nas redes sociais, toda a gente se mostra ao mundo na
sua melhor (e mais filtrada) imagem.

3. À medida que, em termos gerais, as pessoas se tornam cada vez mais


neuróticas, também aumentam as preocupações com a aparência física.
De acordo com outro estudo (efetuado em 2017 para o Centro
Nacional Americano para a Informação Biotecnológica), as pessoas
insatisfeitas com a aparência passavam mais tempo em frente à
televisão e apresentavam maiores sinais de neurose e de estilos de
apego preocupado-ansioso e assustado-evitativo.

4. O nosso aspeto físico é apresentado como um problema que pode ser


resolvido, se investirmos monetariamente (em cosméticos, revistas de
bem-estar e fitness, alimentos adequados, quotas de ginásios, etc.). Só
que isso não corresponde à verdade. Além disso, o facto de termos
uma boa aparência não impede que a preocupação com o nosso aspeto
continue a ocupar parte da nossa vida. Há tantas pessoas bonitas no
Japão e na Rússia como no México ou na Turquia. E, claro, muitas
pessoas extremamente bonitas – como as modelos, por exemplo –
preocupam-se mais com o seu aspeto do que as pessoas que não têm de
desfilar numa passarela para ganhar a vida.

5. Ainda não somos imortais. Todos estes produtos criados com a


intenção de nos fazerem sentir mais jovens, mais resplandecentes,
menos mortais, não resolvem a questão de fundo. Na verdade, nenhum
deles consegue, de facto, rejuvenescer-nos. As marcas de cosméticos
inventaram uma série de cremes antienvelhecimento e, ainda assim, as
pessoas que os usam continuarão a envelhecer. Simplesmente, em
parte graças a campanhas de marketing na ordem dos milhares de
milhões de dólares direcionadas para que os consumidores tenham
vergonha das suas rugas, essas pessoas ficarão ainda mais preocupadas
com o tema do envelhecimento. A tentativa de parecermos jovens
acaba por acentuar o medo de envelhecer. Por isso, se conseguirmos
aceitar o facto de estarmos a envelhecer, se aceitarmos as nossas rugas
e as rugas dos outros, talvez os diretores de marketing fiquem com
menos medos e receios para explorarem comercialmente.
A beleza de ser humano e imperfeito
NO LICEU, eu era magro como um espeto e costumava ser o rapaz mais
alto da turma. Tinha ataques de fome insaciável, durante os quais comia
sem parar, e bebia cerveja porque queria ser ainda maior. Talvez tivesse um
bocadinho de dismorfia corporal, apercebo-me agora, ao recordar esses
tempos. Sentia-me mal na minha pele. Não gostava da minha aparência.
Costumava fazer séries de 50 flexões, suportando a dor, na tentativa de ficar
igual ao Jean-Claude Van Damme. Não era simplesmente desgostar do meu
corpo; eu odiava o meu corpo, por isso, tentava mudá-lo. A vergonha em
relação ao meu corpo chegava a ser uma sensação física muito forte e real,
com um tipo de dor que, geralmente, as pessoas apenas associam a
raparigas e mulheres. Bem gostaria de poder voltar atrás no tempo para
falar comigo e dizer: Para com isso. Relaxa. Isso não tem importância
nenhuma.
Certa vez, quando era adolescente, odiava tanto um sinal na minha face
que peguei numa escova de dentes e tentei apagá-lo. Mas o problema não
estava no sinal. O problema era estar a analisar a minha cara sob a
perspetiva das minhas próprias inseguranças. Agora, até gosto desse sinal.
Nem consigo perceber porque me perturbava tanto, porque é que passava
horas a olhar-me ao espelho, na esperança de que desaparecesse.
“Não existe o bom ou o mau; é o pensamento que os faz assim”, diz
Hamlet a Rosencrantz. Embora se referisse à Dinamarca, a frase pode
aplicar-se à nossa aparência física. Mesmo que as pessoas sejam
encorajadas para se sentirem aquém do que deveriam ser, não têm
obrigatoriamente de se sentir desse modo, pois basta que percebam que essa
sensação não corresponde à realidade que as preocupa. Portanto, se, por um
lado, passámos a ter maior consciência dos perigos da obesidade, por outro,
parece haver um menor entendimento sobre os demais problemas
associados ao nosso aspeto físico. Se nos sentimos mal com a nossa
aparência, provavelmente teremos de mudar a forma como nos sentimos,
não a nossa aparência.
A professora Pamela Keel, da Universidade Estadual da Flórida, tem
dedicado a carreira ao estudo das perturbações do comportamento alimentar
e às questões relacionadas com a imagem do corpo feminino e masculino,
tendo chegado à conclusão de que a nossa aparência nunca irá resolver a
infelicidade que sentimos sobre… a nossa aparência. “O que poderá
realmente torná-lo mais feliz e saudável: perder cinco quilos ou perder as
atitudes nocivas relativamente ao seu corpo?“, foi a interrogação que
presidiu ao mais recente estudo, realizado no início de 2018. Quando as
pessoas se sentem menos ansiosas relativamente ao aspeto do corpo, os
benefícios notam-se a nível mental, mas também corporal. “Quando as
pessoas se sentem bem no seu corpo, têm maior probabilidade de cuidarem
bem de si, ao invés de tratarem o corpo como um inimigo ou, pior ainda,
como um objeto. Eis uma excelente razão para repensarmos o tipo de
resoluções de Ano Novo que costumamos fazer.”
Esta pode ser uma explicação para a perigosa subida das taxas de
obesidade. Se estivéssemos mais satisfeitos com o nosso corpo, tratá-lo-
íamos com maior gentileza.
Tal como uma ansiedade excessiva relativamente ao dinheiro pode,
paradoxalmente, resultar num consumo compulsivo, preocuparmo-nos com
o nosso corpo não é uma garantia de que venhamos a ficar em melhor
forma.
Tradicionalmente, a pressão exercida sobre as pessoas para se
preocuparem com o seu aspeto, para a alimentação “limpa”, para terem
atenção a coisas como o espaço entre as coxas, para terem corpos prontos
para a praia tem sido muito centrada na questão de género. As mulheres são
o principal alvo dos publicitários. Mesmo num tempo em que cada vez mais
homens sentem pressão para ficarem com um aspeto que não é o aspeto
natural típico dos homens – terem um corpo musculado, terem vergonha
dos defeitos físicos, terem a preocupação de ficar bem nas selfies,
preocuparem-se se o cabelo cai ou fica grisalho –, a pressão exercida sobre
as mulheres em relação à sua aparência disparou para índices jamais vistos.
E, em vez de se tentar reduzir a ansiedade relacionada com a aparência das
mulheres, está também a aumentar a ansiedade dos homens com o seu
aspeto. Até parece que as ideias da igualdade, em algumas áreas, andam a
ser aplicadas de forma distorcida: vamos fazer com que todos se sintam
igualmente ansiosos, em vez de igualmente livres de pressões.
Ainda há pouco, ao passar os olhos pelo Twitter, vi que alguém
partilhara um artigo do New York Post intitulado Bonecos sexuais
masculinos com pénis biónicos vão chegar antes de 2019. A fotografia é
reveladora de uns bonecos sexuais com corpos incrivelmente tonificados,
sem pelos no peito, com cabeleiras que nunca vão cair e pénis sempre
prontos para entrar em ação. Como é óbvio, também estão a acontecer
grandes avanços no campo dos robôs sexuais femininos, avanços até ainda
maiores. Bem, uma coisa é querer ficar igual às modelos nas capas das
revistas, mesmo que essas imagens tenham sido digitalmente tratadas. Mas
será que a próxima moda será querer ficar igual à perfeição imperturbável
de um androide ou um robô biónico? Se assim for, mais vale ir à procura do
pote de ouro no final do arco-íris.
“Na natureza, nada é perfeito e tudo é perfeito”, escreveu Alice Walker.
“As árvores podem ter os troncos torcidos das maneiras mais esquisitas e,
ainda assim, não deixam de ser belas.” O corpo humano nunca será tão
firme e simétrico e perene como o dos robôs sexuais, pelo que precisamos
de aprender rapidamente a sentirmo-nos felizes com um corpo que não
corresponda à versão irrealista do corpo perfeito que a sociedade acaba por
projetar; precisamos de aprender a sentirmo-nos um pouco mais felizes com
o nosso corpo tal como é, mais que não seja porque sentirmo-nos
insatisfeitos não vai fazer com que fiquemos com melhor aspeto. Pelo
contrário, só nos faz sentir muito pior. Somos infinitamente melhores do
que aqueles robôs sexuais todos perfeitinhos. Somos humanos. Por isso, não
devemos ter vergonha de parecermos humanos.
Apontamentos de uma praia
Olá.
Sou uma praia.
Fui criada pelas ondas e marés.
Sou feita de rochas erodidas.
Moro perto do mar.
Ando por cá desde há milhões de anos.
Já existia quando surgiu a vida.
E tenho uma coisa para vos dizer.

Não quero saber dos vossos corpos.

Sou uma praia.


Estou literalmente nas tintas.
O vosso índice de massa corporal é-me completamente indiferente.
Não fico impressionada com os vossos músculos abdominais bem
definidos.
Sou alheia a tudo isso.
Vocês fazem parte de uma de entre as 200 mil gerações de seres
humanos.
Conheci-as a todas.
Também irei ver todas as gerações que se seguirão à vossa.
Mas, desculpem, não serão tantas como antes.
Consigo escutar as coisas que o mar me sussurra.
(O mar odeia-vos. Os envenenadores. É assim que ele vos chama, de
forma um pouco melodramática. Mas é isso que o mar representa para
vocês. Um gigantesco drama.)
Tenho ainda outra coisa para vos dizer.
As outras pessoas que estão na praia também não querem saber dos
vossos corpos.
A sério que não.
Limitam-se a olhar para o mar; ou, então, estão obcecadas com a sua
própria aparência.
E mesmo que até estejam a pensar em vocês, que é que isso interessa?
Porque é os humanos dão tanta importância às opiniões dos outros?
Porque não fazem como eu? Deixem essas preocupações todas na água.
Aceitem-se como são.
Sejam vocês mesmos.
Sejam praias.
Como deixar de nos preocuparmos com o
envelhecimento
1. Compreendam que, de acordo com alguns inquéritos, as pessoas mais
velhas não estão assim tão preocupadas com a velhice. O estudo mais
recente a que tive acesso foi feito pela NORC, uma empresa de
pesquisa norte-americana, em 2016. Numa amostra de 3 mil
indivíduos, descobriu-se que, relativamente ao tema do
envelhecimento, as pessoas mais velhas são mais otimistas do que os
adultos mais jovens: 46% dos inquiridos na casa dos 30 anos disseram
sentir-se otimistas em relação ao envelhecimento, enquanto a
percentagem subiu para 66% nos inquiridos com mais de 70 anos.
Parece que a preocupação com o envelhecimento é um sinal de que
ainda somos jovens. E a principal razão para estarmos otimistas quanto
ao envelhecimento está no otimismo demonstrado pelas pessoas mais
velhas. Ao que parece, a resiliência aumenta com a idade.

2. É algo que acontece. Não podemos fazer grande coisa para evitar o
envelhecimento. Podemos ter uma alimentação saudável, fazer
exercício e ter um estilo de vida mais sensato, mas não deixaremos de
envelhecer. A data do nosso 80.º aniversário continuará a ser a mesma.
É evidente que podemos ter um contributo válido para tentarmos
chegar aos 80 anos, mas isso não significa que o tempo pare para nós.
E a certeza disto tudo, na verdade, até é reconfortante. Quando não há
nada que se possa fazer sobre determinada coisa, qual é a vantagem de
nos preocuparmos com isso? “Toda a gente morre”, escreveu Nora
Ephron. “Quer comamos ou não comamos seis amêndoas por dia, não
há nada que possamos fazer quanto a isso.”
3. Os problemas que geralmente associamos à velhice podem não ser os
problemas que iremos ter. Não somos o Nostradamus para conseguir
adivinhar. Não podemos saber o que iremos ser quando formos velhos.
Não sabemos, por exemplo, se a nossa mente entrará em declínio ou se
será ainda mais brilhante, como aconteceu com Matisse, que pintou
algumas das suas melhores obras de arte depois dos 80 anos.

4. O futuro não é real. O futuro é uma abstração. Apenas conhecemos o


tempo presente. O dia após dia. Temos de viver no aqui e agora.
Existem milhões de versões diferentes do que poderemos ser quando
formos velhos. Mas, no presente, somos uma única versão.
Concentrem-se nisso.

5. Vão arrepender-se de terem medo. Em Os 5 Maiores Arrependimentos


Antes de Partir, a enfermeira de cuidados paliativos Bronnie Ware
partilhou a sua experiência de lidar com quem se aproximava do final
da vida. O maior arrependimento que essas pessoas tinham era o medo.
Muitos dos pacientes da Bronnie viviam numa profunda angústia por
terem gastado tanto tempo de vida a preocuparem-se. Aquelas vidas
tinham sido consumidas pelo medo e pela preocupação com aquilo que
os outros pensavam deles. E essa preocupação tinha-lhes impedido de
serem fiéis à sua própria natureza.

6. Aceitem, não resistam. A forma de se livrarem da ansiedade


relativamente ao envelhecimento pode ser a maneira de se livrarem de
toda a ansiedade. E isso passa pela aceitação, não pela negação. Não
lutem contra o envelhecimento; sintam-no. Em vez de se injetarem
com botox, façam uma operação mental, sem recurso ao bisturi, e
reformulem o vosso ideal de beleza. Rebelem-se contra os ditames do
marketing. Anseiem por se tornarem velhinhas sábias. Tenham a
elegância superior de uma vela derretida. Sejam um mapa com 10 mil
estradas. Sejam o laranja do pôr do sol que suplanta o rosado do nascer
do sol. Sejam alguém que ousa ser verdadeiro consigo mesmo.
4.

Algumas notas sobre o tempo


Medo e tempo
“A ÚNICA COISA que devemos temer é o próprio medo.” Esta frase,
proferida por Franklin D. Roosevelt, em 1932, durante o discurso inaugural
da sua presidência, talvez seja a frase em que mais pensei ao longo da
minha vida. Era uma frase que costumava assombrar-me durante o meu
primeiro episódio de perturbação da ansiedade. Já basta o medo, costumava
pensar. E as mesmas palavras nunca me saíram da cabeça enquanto escrevia
este livro. Tal como outras frases feitas – por exemplo, “o tempo cura tudo”
–, esta tornou-se um lugar-comum por uma boa razão: tem o poder da
verdade.
Quando reflito sobre os meus medos, constato que grande parte deles
estão relacionados com o tempo. Preocupo-me com o envelhecimento. Com
o crescimento dos meus filhos. Com o futuro. Com a possibilidade de
perder pessoas de quem gosto. Com a hipótese de ficar com trabalho
atrasado. Mesmo na escrita deste livro, tenho-me preocupado com a
possibilidade de não conseguir cumprir o prazo. Preocupo-me com o tempo
que gastei de modo estúpido. Com o tempo que passei doente. E, enquanto
fazia as minhas pesquisas, comecei a interrogar-me se o nosso conceito do
tempo não será, em si mesmo, temporário. Mudámos o modo de encarar o
tempo? Será que a via da nossa libertação relativamente ao medo do futuro
terá de passar, obrigatoriamente, por uma relação diferente com o tique-
taque dos minutos, das horas, dos anos? Sinto que, para começar a perceber
o modo como a minha mente – e talvez também as vossas mentes – reage
ao mundo moderno, preciso primeiro de olhar para o próprio conceito de
tempo.
Parem os relógios
NEM SEMPRE tivemos relógios. Durante a maior parte da história da
humanidade, o conceito de “um quarto para as cinco” ou “16h45” não teria
qualquer significado.
Nunca foi encontrada uma pintura rupestre de alguém a acordar
stressado por ter adormecido após o alarme e, por isso, ter faltado à reunião
com a direção marcada para as 9h00. Na realidade, na antiguidade, existiam
apenas dois tempos. Dia e noite. Luz e escuridão. Sono e despertar. Claro
que havia outros tipos de tempo. Havia a altura das refeições, das caçadas,
das lutas, do descanso, da brincadeira, do namoro; mas estes tempos não
eram artificialmente ditados pelos números e ponteiros dos relógios.
Esta estrutura dualista manteve-se intocada quando surgiram os
primeiros métodos de medição do tempo. Afinal de contas, a observação
dos egípcios das sombras causadas pelos obeliscos ou a consulta dos
romanos aos relógios de sol só podiam efetuar-se com a luz do dia. Mesmo
quando, no início do século XIV, começaram a surgir os primeiros relógios
mecânicos na Europa, em locais como igrejas, o acontecimento não teve
grande relevância. Os relógios, na generalidade, não tinham ponteiro dos
minutos e não podiam ser vistos da maior parte das janelas das casas.
Os relógios de bolso começaram a aparecer ao longo do século XVI e,
tal como outros bens de consumo, eram inicialmente um símbolo de
estatuto: uma novidade para a nobreza. Um relógio de bolso chique, em
meados do século XVI, custava cerca de 17 euros, um valor superior ao que
um trabalhador ganhava num ano inteiro. Tanto dinheiro para um relógio
que nem sequer tinha ponteiro dos minutos. Ainda assim, o relógio de bolso
parece ter sido a causa de uma maior ansiedade das pessoas relativamente
ao tempo. Ou, pelo menos, provocava a ansiedade de verificar que horas
seriam.
Quando Samuel Pepys, funcionário público inglês que ficou famoso
pelo seu diário, ofereceu a si próprio um relógio – «e que belo exemplar é»,
escreveu –, percebeu rapidamente, tal como muitos dos atuais utilizadores
da Internet, que o acesso à informação garante um determinado tipo de
liberdade, mas à custa de outras liberdades que se perdem. Eis como
Samuel Pepys, na Londres de 1665, descreveu o que pensava, na entrada do
dia 13 de maio:

Mas, meu Deus!, veja-se quanta da minha antiga criancice


ainda perdura no meu ser, de tal forma que esta tarde, na
carruagem, não consegui deixar de levar o meu relógio na mão,
vendo mais de cem vezes que horas eram; como pude passar tanto
tempo sem um?, dei por mim a pensar com os meus botões; embora
também me relembre que, depois de ter um relógio e de descobrir
que ele representava um problema, me tenha disposto a nunca mais
trazer um comigo para o resto da minha vida.

Certamente que qualquer pessoa que já teve um smartphone ou uma


conta no Facebook consegue sentir empatia relativamente a este
comportamento compulsivo. Ir lá ver, voltar a ver, ver só mais uma vez, e
ainda mais uma, só porque sim. Quando a capacidade de consultar alguma
coisa se torna num ato compulsivo, então damos por nós a ansiar pelos
tempos antigos, quando não havia nada que pudéssemos ir ver.
A questão é que o relógio de Pepys não era muito bom. Nem sequer era
razoável. Na verdade, era uma porcaria que custava os salários de um ano.
Mas, em 1665, não havia relógios de bolso que fossem bons, pelo menos na
função de mostrar as horas. Só uma década depois, com a invenção da mola
em espiral (que tornou possível o acerto do movimento das engrenagens), é
que se tornou possível criar relógios de bolso com relativa precisão.
Claro que, de então para cá, os nossos sistemas de medição do tempo
evoluíram consideravelmente. Estamos, presentemente, na era dos relógios
atómicos, que apresentam uma precisão tão incrível quanto intimidante. Por
exemplo, em 2016, um grupo de físicos construiu, na Alemanha, um relógio
tão preciso que não irá atrasar ou adiantar um único segundo durante 15 mil
milhões de anos. Assim sendo, os cientistas alemães já não têm qualquer
desculpa para se voltarem a atrasar seja no que for.
Estamos demasiado conscientes do tempo numérico, esquecendo quase
por completo o tempo natural. Durante milhares de anos, as pessoas
acordaram às 7h00. A diferença em relação a estes últimos séculos está no
facto de nós acordarmos por serem 7h00. Não vamos para a escola ou para
o trabalho a uma determinada hora do dia porque nos parece ser a melhor
hora para o fazer; vamos por ter sido esse o horário que nos estabeleceram.
Pusemos os nossos instintos nas mãos de um relógio. E, cada vez mais,
somos nós que servimos o tempo, em vez de o tempo nos servir. O tempo
aflige-nos. Ficamos a pensar como é que as horas passaram. Andamos
obcecados com as horas.
Um telefonema
– Matthew? – É a minha mãe. Mais ninguém me chama Matthew.
– Sim?
– Ouviste o que estava a dizer?
– Ah. Ouvi. Qualquer coisa sobre ir ao médico…
Senti-me envergonhado por não a estar a escutar. Continuei a olhar para
o e-mail que estava a escrever. Resolvi mudar de estratégia e contar-lhe a
verdade.
– Desculpa. É que estou ao computador. Ando muito ocupado. Sinto que
não tenho tempo para nada.
Mesmo com a minha mãe a 320 quilómetros, ouço na perfeição o
suspiro que dá.
– Conheço bem essa sensação – diz ela.
Precisamos do tempo que já temos
A QUESTÃO É QUE, mais do que nunca, agora deveríamos ter mais tempo.
Vejamos. Durante o último século, a esperança de vida mais do que
duplicou para as pessoas que vivem em países desenvolvidos. Além disso,
mais do que noutra época qualquer, temos inúmeras tecnologias e aparelhos
que nos poupam tempo.
O correio eletrónico é mais rápido do que as cartas. Os aquecedores
elétricos são mais rápidos do que as lareiras a lenha. As máquinas de lavar
roupa são mais rápidas do que lavar a roupa à mão num rio ou num tanque.
Processos que outrora eram muito trabalhosos, como esperar que o cabelo
secasse, ou percorrer 15 quilómetros, ou ferver água, ou pesquisar
informações, agora não levam quase tempo nenhum. Temos coisas que nos
poupam tempo e esforço, como tratores, automóveis, máquinas de lavar,
linhas de montagem, micro-ondas.
Ainda assim, para muitos de nós, a vida parece fugir debaixo dos pés.
De tal forma que é habitual ouvir coisas como: “Gostava de ler mais,
gostava de aprender a tocar um instrumento, gostava de ir ao ginásio,
gostava de fazer voluntariado, gostava de cozinhar as minhas refeições,
gostava de plantar morangos, gostava de ir visitar os meus amigos de
escola, gostava de treinar para a maratona… só que não tenho tempo.”
Frequentemente, damos por nós a desejar que o dia tivesse mais horas.
Só que isso não ajudaria nada. O problema não está, obviamente, na falta de
tempo. O problema é estarmos sobrecarregados com tudo o resto.
Lembrem-se
Sentir que falta o tempo não significa que falte tempo.
Sentir que é feio não significa que seja feio.
Sentir ansiedade não significa que tenha de estar ansioso.
Sentir que não fez o suficiente não significa que ainda não tenha feito o
suficiente.
Sentir que falta alguma coisa não o torna num ser menos completo.
5.

Sobrecarga de vida
Um excesso de tudo
NO MUNDO ATUAL, há excesso de tudo.
Pensem num caso isolado qualquer.
Pensem, por exemplo, no que têm nas mãos: um livro.
Existem muitos livros. Por uma razão qualquer, escolheu ler este, facto
pelo qual estou extremamente grato. Mas enquanto lê este livro, também
pode estar a pensar, com algum sofrimento à mistura, que não está a ler
outros. E, embora eu não o queira deixar demasiado stressado, a verdade é
que há muitos outros livros. O sítio de Internet Mental Floss, baseando-se
quase exclusivamente nos dados do Google, calcula que devam existir 134
021 533 livros. Esta estimativa de mais de 134 milhões de livros, no
entanto, era relativamente conservadora. E era de meados de 2016.
Portanto, neste momento já existem mais uns quantos milhões. Seja como
for, podemos considerar que 134 021 533 são mesmo muitos livros.
Mas nem sempre foi assim.
Nem sempre existiram tantos livros, e havia uma razão óbvia para isso.
Antes da invenção da imprensa, os livros eram feitos à mão. Escreviam-se
em superfícies de barro, em papiro, em cera ou em pergaminho. Mesmo
após o aparecimento da prensa, não havia assim tanto que ler. Teria sido
difícil criar um clube de leitura na Inglaterra dos primórdios do século XVI,
uma vez que, segundo dados da Biblioteca Britânica, apenas se publicavam
cerca de 40 obras por ano. Face a estes números, qualquer leitor ávido
conseguiria manter-se facilmente a par de tudo o que era publicado.
“Então, o que vamos todos ler?”, perguntaria um membro do hipotético
clube de leitura.
“O que houver, Cédric”, seria a resposta.
Porém, esta situação de escassez alterou-se muito rapidamente. Por
volta de 1600, já se publicavam cerca de 400 títulos por ano, só em
Inglaterra. Dez vezes mais do que no século anterior.
Embora habitualmente se diga que o poeta Samuel Taylor Coleridge foi
a última pessoa a ler tudo aquilo que havia para ler, isso não passa de uma
impossibilidade técnica, uma vez que ele morreu em 1834, numa altura em
que já existiam milhões de livros. No entanto, o interessante é que as
pessoas daquela época podiam acreditar na possibilidade de alguém ler
tudo o que havia. Hoje em dia, ninguém acreditaria em tal coisa.
Mesmo que fôssemos os detentores do recorde mundial de leitura
rápida, temos a consciência de que o número de livros que iremos ler numa
vida nunca deixarão de constituir uma parcela ínfima dos livros existentes.
Estamos afogados em livros, tal como estamos afogados em programas
televisivos. No entanto, só conseguimos ler um livro de cada vez, tal como
só conseguimos ver um programa de cada vez. Conseguimos multiplicar
tudo e mais alguma coisa, mas continuamos seres individuais. Só existe um
de cada um nós. E somos todos mais pequenos do que a Internet. Para
desfrutar da vida, talvez seja melhor parar de pensar sobre tudo o que não
vamos conseguir ler, ou ver, ou dizer, ou fazer, e começarmos a pensar
numa forma de apreciar o mundo dentro das nossas limitações. Viver à
escala humana. Concentrarmo-nos nas poucas coisas que poderemos fazer,
em vez de nos milhões de coisas que nunca conseguiremos fazer. Não
desejarmos ter vidas paralelas. Descobrirmos uma equação mais simples.
Termos orgulho em ser um número primo indivisível. Termos orgulho em
sermos um só.
O mundo está a ter um ataque de pânico
O PÂNICO é uma espécie de sobrecarga.
Pelo menos, era assim que os meus ataques de pânico pareciam. Um
excesso de pensamentos e medo. Uma mente sobrecarregada que chega a
um ponto de rutura e se deixa invadir pelo pânico. Porque essa sobrecarga
faz-nos sentir encurralados. Psicologicamente aprisionados. É por isso que
os ataques de pânico acontecem frequentemente em ambientes cheios de
estímulos: supermercados, discotecas, recintos de espetáculos, carruagens
sobrelotadas.
Mas, o que acontece quando a sobrecarga se torna uma das principais
características da vida moderna? Há sobrecarga de consumo. Sobrecarga de
trabalho. Sobrecarga do ambiente. Sobrecarga de notícias. Sobrecarga de
informação.
O desafio dos nossos dias, portanto, não está tanto no facto de a vida ser
necessariamente pior do que aquilo que foi antes. Em vários aspetos,
atualmente temos o potencial para vivermos melhores vidas, mais saudáveis
e até mais felizes do que no passado. O problema é que as nossas vidas
também estão atulhadas. O desafio à nossa frente passa por descobrirmos
quem somos, no meio desta multidão.
Locais onde tive ataques de pânico
Em supermercados.
Num piso subterrâneo sem janelas de um armazém.
Num festival de música cheio de gente.
Numa discoteca.
Num avião.
No metro de Londres.
Num bar de tapas em Sevilha.
Num estúdio da BBC News.
Num comboio entre Londres e York (durou a maior parte da viagem).
Num cinema.
Numa sala de teatro.
Numa loja da esquina.
Num palco, sentindo-me fora do meu estado normal, perante a atenção
de um milhar de pessoas na plateia.
Ao passear por Covent Garden.
A ver televisão.
Em casa, noite dentro, após um dia atarefado, com uma luz alaranjada
ameaçadora do candeeiro de rua a perpassar o cortinado.
Numa sucursal de banco.
Em frente a um ecrã de computador.
Um planeta nervoso
IMAGINA QUE NÃO era o mundo a levar as pessoas à loucura – disse-me
recentemente um amigo, depois de eu lhe ter falado sobre o livro que
andava a tentar escrever. – Imagina que o próprio mundo está louco. Ou,
pelo menos, as partes do mundo que estão relacionadas connosco. Com os
humanos. Ou seja, e se o mundo estiver literalmente doido? Acho que é isso
que está a acontecer. Acho que as sociedades humanas estão a ter um
colapso.
– Pois. Como um doente à beira de um ataque de nervos.
– Isso. Bom, claro que o mundo não é uma pessoa. Mas, tal como dizes,
está cada vez mais ligado, como um sistema nervoso. Na verdade, já está
assim há algum tempo. No outro dia, estava a ler sobre um tipo do século
XIX que já dizia, nessa altura, que os cabos telegráficos eram como um
sistema nervoso.
Após alguma pesquisa, descobri que esse homem se chamava Charles
Tilston Bright e fora o responsável pela instalação do primeiro cabo de
telégrafo transatlântico. Ele referia-se à rede mundial de telegrafia como o
“sistema de nervos elétricos do mundo”.
Atualmente, já não enviamos telegramas, uma vez que revelaram fracas
capacidades para anexar vídeos de gatos ninja ou emojis. Mas o sistema
nervoso do mundo não desapareceu. Pelo contrário, evoluiu de tal forma em
termos de escala e de complexidade que, desde junho de 2017, chegámos a
um ponto em que mais de metade da população mundial está ligada à
Internet, segundo as estimativas da União Internacional de
Telecomunicações (uma agência das Nações Unidas que, por sinal, se
chamava União Internacional do Telégrafo).
O número de utilizadores da Internet tem crescido exponencialmente de
ano para ano. É quase de loucos pensar que, em 1995, quase ninguém
navegava na Internet: apenas 16 milhões de pessoas, o que representava uns
meros 0,4% da população mundial. Uma década depois, em 2005, o número
ascendia a mil milhões de pessoas, o que significava que 15% da população
mundial já estava online. E, em 2017, os dígitos subiram para a casa dos
51%.
Nesse mesmo ano, o número de utilizadores ativos do Facebook
(pessoas que usam o Facebook pelo menos uma vez por mês) chegou aos
2,07 mil milhões. Se voltarmos atrás, até ao início da década, em 2010 nem
sequer havia tanta gente ligada à Internet. Estamos perante uma mudança
extremamente rápida e que só aconteceu graças à “modernização” de
grande parte do mundo em que vivemos: todas as infraestruturas foram
aceleradamente substituídas para garantir o acesso à Internet de banda larga.
Outro fator que contribuiu para isto foi o crescimento do número de
smartphones, que também facilitou o acesso à Internet.
E não é só o número de pessoas que usam a Internet que está a crescer;
o número de horas que passamos online também está a aumentar.
Os seres humanos estão agora mais ligados do que nunca pela
tecnologia, e esta mudança radical ocorreu em pouco mais de uma década.
O resultado disto, no mínimo, é que se passou a discutir muito mais na
Internet. Lembremos, para o caso, o que Tolstói escreveu, em 1894, no livro
O Reino de Deus Está em Vós:

Quanto mais os homens estiverem a salvo das necessidades,


mais aumentarão os telégrafos, os telefones, os livros, os jornais, as
revistas; quanto mais crescerem os meios de propagação para as
mentiras e hipocrisias contraditórias, mais os homens ficarão
desunidos e, consequentemente, infelizes, que é o que estamos a
presenciar nos nossos dias.
As coisas estão a acontecer com demasiada rapidez para que sejamos
capazes de dar conta de tudo. Estão a acontecer certamente com muito
maior celeridade do que no tempo de Tolstói. Todo este distanciamento.
Toda esta informação. Toda esta conectividade tecnológica. Usa-se
bastante, e de forma adequada, a metáfora do cérebro mundial. Nós somos
as células nervosas do cérebro mundial, transmitindo-nos a nós próprios
para as restantes células nervosas. Enviamos e recebemos toda esta
sobrecarga. Uma sobrecarga de neurónios num planeta ansioso. Num
planeta prestes a sofrer um acidente.
6.

Ansiedades da Internet
“A Internet é a primeira coisa construída pela humanidade que a
humanidade não consegue compreender; é a maior experiência anárquica
que já tivemos.”
Eric Schmidt, ex-CEO da Google

“Um punhado de pessoas a trabalhar num punhado de empresas


tecnológicas, cujas escolhas irão orientar o que andam a pensar mil milhões
de pessoas… Não conheço nenhum problema mais premente do que este…
Está a alterar as nossas democracias e a mudar a nossa capacidade de ter as
conversas e os relacionamentos que queremos ter uns com os outros.”
Tristan Harris, ex-funcionário da Google
Coisas que adoro na Internet
Ações coletivas contra a injustiça social.
Ver videoclips de músicas pop antigas de que já me tinha esquecido.
Ver trailers de filmes sem ter de estar numa sala de cinema.
A Wikipedia, o Spotify, as receitas da BBC Good Food.
O processo de fazer pesquisa para uma visita ao estrangeiro.
O Goodreads.
Encontrar pessoas que percebem o que sentimos quando estamos em
baixo.
Falar com leitores com quem, de outra forma, nunca falaria.
Amabilidades, que por acaso até acontecem com frequência.
Ver vídeos de animais a fazerem coisas incríveis (um polvo a abrir um
jarro, um gorila a dançar num poste).
Ter a possibilidade de chegar às pessoas via e-mail ou por mensagem de
uma forma que não conseguiria fazer na vida real.
Tweets engraçados.
Manter o contacto com os velhos amigos.
A possibilidade de testar as minhas ideias com as pessoas.
Instrutores de ioga mesmo bons de Austin, no Texas, cujas aulas posso
seguir sem ter de viver em Austin, no Texas.
Vídeos igualmente bons com alongamentos pós-corrida.
Usar a Internet para pesquisar o lado menos bom da Internet.
Coisas que devia fazer menos na Internet
Fazer posts sobre uma experiência cheia de significado, quando podia
estar a ter uma nova experiência real cheia de significado.
Escrever tweets com opiniões que não vão convencer ninguém.
Clicar em links de artigos que, na verdade, não me apetece ler.
Ver o fluxo de tweets da minha página inicial, quando devia estar a
tomar o pequeno-almoço.
Ler as avaliações na Amazon dos meus livros.
Comparar a minha vida com a vida das outras pessoas.
Ficar especado a olhar para e-mails, sem lhes dar resposta.
Responder a e-mails, quando devia estar a ouvir a minha mãe a contar a
sua ida ao médico.
Sentir a alegria vazia dos “gostos” e dos “favoritos”.
Pesquisar o meu próprio nome.
Não ver até ao fim os vídeos de canções de que gosto, só porque vi
outro vídeo de que gosto e apressei-me a clicar nele.
Pesquisar no Google sintomas e autodiagnósticos (lá por sermos
hipocondríacos, não significa que estejamos realmente a morrer).
Pesquisar no Google coisas – qualquer coisa (“número de átomos no
corpo humano”; “benefícios da curcuma na saúde”, “elenco de West Side
Story”, “como descarregar fotografias do iCloud”) – depois da meia-noite.
Verificar como é que uma atualização de tweet/fotografia/status está a
correr (e continuar a acompanhar o andamento da coisa),
Querer ficar offline, sem efetivamente ficar offline.
O mundo está a encolher
EM PARTE, a sensação de sobrecarga de vida deriva da forma como o
mundo parece ter-se contraído e ficado mais concentrado. Realmente, o
universo dos humanos acelerou e, de facto, também encolheu. O mundo
está cada vez mais conectado e as pessoas também. A “mente coletiva” – ou
“mente de colmeia”, termo que apareceu pela primeira vez num conto de
ficção científica escrito por James H. Schmitz, em 1950 – tornou-se uma
realidade. As nossas vidas, os nossos dados e emoções estão agora mais
interligados do que nunca. A Internet unifica, mesmo quando apenas parece
estar a criar divisões.
O mundo não encolheu da noite para o dia. Há séculos que os seres
humanos comunicam muito para lá do alcance das suas vozes, usando tudo
e mais alguma coisa, desde sinais de fumo até pombos-correio. A chegada
da Invencível Armada espanhola foi anunciada por uma cadeia de raios de
farol que se estendeu de Plymouth até Londres.
No século XIX, o telégrafo elétrico uniu continentes distantes. Depois
disso, o sistema nervoso do mundo conheceu as evoluções do telefone, da
rádio, da televisão e, claro, da Internet.
Em muitos aspetos, estas ligações aproximam-nos cada vez mais uns
dos outros. Podemos jogar videojogos em tempo real com vários outros
jogadores; enviar um e-mail, uma mensagem de texto, fazer uma
videochamada pelo Skype ou pelo Facebook para alguém que está a mais
de 15 mil quilómetros. A distância física é cada vez mais irrelevante. As
redes sociais têm permitido ações conjuntas como jamais vimos, desde
manifestações, revoluções ou intervenções nos resultados eleitorais. A
Internet, para o mal e para o bem, tem possibilitado que as pessoas se
juntem para forçar a mudança.
O problema é que se estivermos ligados a um enorme sistema nervoso, a
nossa felicidade – e infelicidade – torna-se mais coletiva do que alguma vez
foi. As emoções do grupo tornam-se as nossas emoções.
Histeria em massa
NA HISTÓRIA, há milhares de exemplos de indivíduos cujas emoções
acabam por ser influenciadas pelas multidões em redor, desde os
julgamentos das bruxas de Salem até à Beatlemania.
Um dos exemplos mais divertidos e simultaneamente assustadores, é o
caso de um convento francês do século XV em que uma freira começou a
miar como se fosse um gato. Não tardou a que mais freiras começassem
também a miar. No espaço de meses, os habitantes das aldeias em redor
ficaram espantados por passarem a escutar todas as freiras a miarem
durante várias horas ao dia, como se fossem um ruidoso coro de gatos. E as
freiras só pararam de miar quando as autoridades ameaçaram chicoteá-las.
Existem outros exemplos igualmente estranhos. Como a Praga da Dança
de 1518, na qual, durante o período de um mês, 400 pessoas de Estrasburgo
dançaram sem parar até entrarem em colapso – em alguns casos, mesmo até
à morte –, sem que houvesse qualquer razão para o fazerem. Nem sequer
havia música a tocar.
Ou, segundo reza a lenda, o que ocorreu durante as Guerras
Napoleónicas, quando os habitantes de Hartlepool, em Inglaterra, se
convenceram de que um macaco que dera à costa após o naufrágio de um
navio era, na verdade, um espião francês, acabando por enforcar o pobre e
confuso primata. As notícias falsas, portanto, não são propriamente uma
novidade.
Só que, atualmente, claro está, temos uma tecnologia – a Internet – que
facilita e potencia a ocorrência de comportamentos grupais. Todos os dias,
ou todas as horas, tornam-se virais coisas tão diferentes como músicas,
tweets ou vídeos com gatos. Aliás, a palavra “viral” é perfeita para
descrever o efeito de contágio provocado por esta união da natureza
humana à tecnologia. E não são apenas vídeos e tweets e produtos que
podem ser contagiosos; as emoções também podem ser.
Um mundo totalmente conectado tem o potencial de enlouquecer todo
de uma só vez.
Passinhos de bebé
VOLTÁRAMOS ao mesmo.
– Matt, sai da Internet.
A Andrea tinha razão, e estava apenas a preocupar-se comigo, mas eu
não queria saber.
– Está tudo bem.
– Não está nada bem. Estás a discutir com alguém. Queres escrever um
livro sobre como lidar com o stress causado pela Internet e estás a ficar
stressado com a Internet.
– O livro não é bem sobre isso. Estou a tentar perceber de que forma a
modernidade afeta as nossas mentes. Estou a escrever sobre o mundo
enquanto lugar ansioso. Sobre a conexão que existe entre as nossas psiques.
Estou a escrever sobre diversos aspetos de um…
– OK – disse ela, com a palma da mão estendida. – Não estou
interessada em ouvir a TED Talk sobre as tuas intenções.
Suspirei.
– Só estou a responder a um e-mail.
– Não, não estás.
– Tudo bem. Estou no Twitter. Mas há só um ponto que tenho de deixar
claro…
– Matt, a decisão é tua. Mas eu pensava que a ideia por trás disto tudo
era tentares descobrir uma forma de não ficares assim.
– Assim como?
– Tão preso nas coisas às quais não devias ficar preso. Só não quero que
fiques doente. Só isso. Porque é com estas coisas que costumas ficar doente.
A Andrea saiu da sala. Fiquei a olhar para o tweet que estava prestes a
publicar. Não serviria, certamente, para acrescentar nada à minha vida. Ou à
vida de quem quer que fosse. Aquela publicação iria apenas fazer com que
continuasse a consultar o meu telemóvel, como se fosse Samuel Pepys com
o seu novo relógio. Cliquei na tecla delete, e senti um enorme alívio
enquanto observava cada letra a desaparecer.
Uma ode às redes sociais
Quando na Internet a raiva se arrasta
Tentando outra presa prender
Chegou a altura de dizer basta
Pegar num livro e começar a ler
Espelhos
OS NEUROBIÓLOGOS IDENTIFICARAM os neurónios espelho como uma das
redes neurais que se ativam nos cérebros dos primatas – incluindo os
humanos – durante a interação com os outros.
E, nesta era em que tudo está ligado, os espelhos tornam-se maiores.
Quando as pessoas se sentem assustadas após um acontecimento
terrível, esse medo propaga-se como um fogo digital.
Quando as pessoas se sentem enraivecidas, essa raiva reproduz-se.
Mesmo quando as pessoas que têm opiniões contrárias às nossas
mostram a sua emoção, nós conseguimos sentir uma emoção semelhante.
Por exemplo, se estivermos online e alguém se enfurecer connosco por
discordar duma determinada opinião, é pouco provável que mudemos a
nossa opinião, mas é previsível que fiquemos igualmente furiosos. Vemos
isso todos os dias nas redes sociais; pessoas a discutirem umas com as
outras, entrincheiradas em lados opostos, mas a espelharem os respetivos
estados emocionais.
Acontece-me várias vezes; daí a chamada de atenção da Andrea. Acabei
por me envolver em discussões com pessoas por me terem chamado “floco
de neve” ou “liberal da treta” ou por me terem gritado num tweet “O
LIBERALISMO É UMA DOENÇA MENTAL”. Eu até tenho noção de que discutir
com as pessoas pela Internet não é a melhor forma de gastar o meu precioso
tempo neste planeta; ainda assim, dou por mim a fazê-lo, sem ser capaz de
me controlar. Agora consigo ver isso. E preciso de arranjar uma forma de
parar.
A questão de fundo, em tudo isto, é que, mesmo que eu tenha um
posicionamento político muito diferente das pessoas com quem estou a
discutir, em termos psicológicos estamos a alimentarmo-nos mutuamente
dos mesmos sentimentos de raiva. Somos adversários políticos, mas
espelhos emocionais.
Certa vez, durante um ataque de ansiedade, publiquei um tweet parvo.
“A ansiedade é o meu superpoder”, escrevi.
Eu não queria dizer que a ansiedade era uma coisa boa. Eu queria dizer
que a ansiedade era uma coisa tão, mas tão intensa que as pessoas que a têm
em excesso andam pela vida como um Clark Kent ansioso ou um Bruce
Wayne atormentado, por conhecerem o segredo do que são. E isso pode
significar um fardo muito pesado de pensamentos sucessivos e
incontroláveis, bem como uma causa de desespero, embora seja possível,
por vezes, que uma pessoa se convença de que existe o reverso da medalha.
No meu caso, por exemplo, sinto-me grato por isto me ter forçado a
deixar de fumar, a ficar em boa forma física, por me ter feito pensar nas
coisas que me fazem bem, assim como nas pessoas que gostavam de mim e
nas que não gostavam. Sinto-me grato por isto me ter levado a um caminho
no qual tento ajudar outras pessoas que passam pelo mesmo; e sinto-me
grato porque isto me levou, nos períodos em que estou bem, a poder sentir a
vida de modo mais intenso.
O tweet era mais ou menos o resumo do que eu escrevera em Razões
para Viver. Só que, desta vez, não me tinha exprimido lá muito bem. E, de
repente, estava a ser o foco de todas as atenções no Twitter.
Decidi apagar a publicação, mas foi demasiado tarde. Algumas pessoas
tinham feito a captura de ecrã do tweet e já tinham começado a incitar toda
a gente raivosa a direcionarem toda ira do mundo na minha direção. Coisas
do estilo: «SUPERPODER??? MAS QUE MERDA É ESTA!?!?!?»; «@matthaig1 É
TÓXICO»; “Apaga a tua conta”; “Mas que grande idiota”, e por aí fora. Eu
continuei ligado, apesar de tremendamente assustado, a assistir àquele
choque frontal, provocado por mim, enquanto o meu Twitter era inundado
com dezenas, e depois centenas, de mensagens de pessoas iradas, todas
convencidas de que tinham a razão do seu lado e de que estavam a pôr o
dedo na ferida. Já agora, quando se sofre de ansiedade, “pôr o dedo na
ferida” é uma expressão sem grande relevância. É que tudo parece uma
ferida.
A raiva tornou-se contagiosa e eu quase a sentia como uma energia
física que emanava do ecrã. O meu coração começou a bater mais depressa.
Senti o espaço a ficar mais pequeno. Tinha dificuldades em respirar. Estava
encostado às cordas e comecei a sentir que a realidade se derretia. «Merda,
merda, merda.» Perdi-me no meio de um breve ataque de pânico, imerso
numa mistura doentia de culpa, medo e autodefesa raivosa, decidido a
nunca mais me tentar livrar da ansiedade através de um tweet.
Há coisas que é melhor não partilhar com os outros.
Além disso, e mais importante, queria descobrir uma forma de impedir
que a imagem que as outras pessoas tinham de mim se tornasse na minha
imagem de mim mesmo. Queria forjar uma espécie de imunidade
emocional. As redes sociais, quando estamos demasiado envolvidos, podem
fazer com que nos sintamos dentro de uma bolsa de valores, na qual nós, e a
nossa presença online, somos as ações. Quando as opiniões negativas
começam a acumular-se, sentimos que o nosso valor, enquanto pessoas, está
a cair vertiginosamente. E eu queria ver-me livre dessa sensação. Queria
desligar-me psicologicamente. Queria ser uma bolsa de valores
autossustentável, em termos psicológicos. Queria sentir-me bem com os
meus próprios erros, consciente de que cada ser humano vale muito mais do
que os seus erros. Queria permitir-me o reconhecimento de que me conheço
melhor do que um estranho me conhece. Queria ser capaz de deixar que
outras pessoas pensassem que eu era um parvalhão, sem sentir que eu era
um parvalhão. Queria dar importância às outras pessoas, mas não queria dar
importância às leituras erradas sobre mim que surgissem na matriz
opinativa da Internet.
Como nos mantermos sãos na Internet: uma lista
de mandamentos utópicos que raramente sigo, por
serem tão difíceis de cumprir
1. Praticar a abstinência. Mais especificamente, a abstinência das redes
sociais. Resistam aos eventuais excessos para os quais se possam sentir
atraídos. Fortaleçam os músculos da autocontenção.

2. Não pesquisem sintomas de doenças no Google, a não ser que queiram


passar sete horas convencidos de que vão morrer antes da hora do
jantar.

3. Lembrem-se de que, na verdade, ninguém quer saber da vossa


aparência física. As pessoas só querem saber da sua própria aparência.
Além de vocês, mais ninguém no mundo se preocupa com o aspeto da
vossa cara.

4. Compreendam que o que parece real pode não o ser. Quando o


romancista William Gibson, no seu livro Burning Chrome, publicado
em 1982, imaginou aquilo a que chamou “ciberespaço”, estava a
pensar numa “alucinação consensual”. Esta descrição tem sido muito
útil quando me vejo submerso nas tecnologias e estas passam a afetar a
minha vida não digital. Toda a Internet está a um passo de distância da
vida real. Um dos grandes poderes da Internet é ser como um espelho
do mundo offline; mas uma réplica do mundo exterior não representa o
mundo exterior. A realidade da Internet só pode ser a realidade da
Internet. É verdade que se podem fazer amigos online. Mas a realidade
não digital continua a ser de utilidade primordial para testar essa
amizade. É surpreendente como tudo desaparece rapidamente da nossa
mente, assim que nos afastamos da Internet, seja por um minuto, uma
hora, um dia, uma semana.

5. Compreendam que as pessoas são muito mais do que uma publicação


nas redes sociais. Pensem na quantidade de ideias contraditórias que
diariamente têm. Pensem nas várias posturas contraditórias que já
tiveram ao longo da vossa vida. Respondam às opiniões expressas
online, mas não deixem que uma opinião emitida de forma apressada
possa definir um ser humano. “No plano cósmico, cada um de nós é
precioso”, disse o astrofísico Carl Sagan. “Se um ser humano discorda
de si, deixe-o viver. Em 100 mil milhões de galáxias, não encontrará
outro.”

6. Não siga pessoas de quem não gosta. Fiz esta promessa a mim mesmo
na passagem de ano de 2018 e, até agora, tem funcionado. Seguir as
pessoas que odiamos, ao contrário do que se possa pensar, não é o
escape mais acertado para a nossa raiva. Pelo contrário, só vai
alimentar a nossa raiva. De certa forma, também acaba por reforçar o
eco da nossa própria voz, ao fazer-nos sentir que só os outros têm
opiniões extremadas. O melhor mesmo é não ir à procura de coisas que
nos deixem infelizes. Não devemos avaliar o nosso próprio valor
comparando-nos com outras pessoas. Não devemos tentar definir quem
somos através do contra, mas sim daquilo de que somos a favor.
Naveguemos na Internet de acordo com esse princípio.

7. Não entre no jogo das avaliações. A Internet adora as avaliações,


sejam de livros na Amazon, ou de restaurantes no TripAdvisor, ou de
filmes no RottenTomatoes, ou das nossas fotografias, das nossas
atualizações de estado, dos nossos tweets. Ignorem os gostos, os
favoritos, as partilhas. Não nos devemos julgar à luz deste tipo de
avaliações que não têm qualquer valor real. Para que todos gostassem
de nós, teríamos de ser a pessoa mais insípida do mundo. William
Shakespeare, considerado por muitos o maior escritor de sempre, tem
uma média relativamente medíocre de 3,7 nas avaliações do
Goodreads.

8. Não gaste tempo da sua vida preocupado com aquilo que pode estar a
perder. Não quero soar muito budista sobre isto – bem, se calhar vou
mesmo soar um pouco budista –, mas a vida não é ficarmos satisfeitos
com o que estamos a fazer, mas sim estarmos satisfeitos com o que
estamos a ser.

9. Nunca atrasem uma refeição ou a hora de deitar por causa da Internet.

10. Mantenham-se humanos. Resistam aos algoritmos. Não se


transformem numa caricatura de vocês mesmos. Desliguem os
anúncios pop-up. Saiam da vossa câmara de eco. Não permitam que o
anonimato do mundo virtual vos torne num ser do qual teriam
vergonha no mundo real. Sejam um mistério por desvendar, em vez
de uma estatística. Sejam alguém que um computador nunca
consegue verdadeiramente conhecer. Mantenham a empatia bem viva.
Quebrem os padrões instituídos. Resistam às tendências de
robotização. Mantenham-se humanos.
Nunca se deixem ir
UM DOS DESAFIOS MAIS INTERESSANTES com que nos iremos defrontar ao
longo deste século, à medida que nos fundimos cada vez mais, e de formas
mais complexas, com a tecnologia, talvez seja este: num cenário digital,
como vamos preservar o nosso lado mais humano? Como nos podemos
manter fiéis ao que somos, sem nos deixarmos ir na corrente?
Tenham cuidado com o que fingem ser
«SOMOS O QUE FINGIMOS SER. Portanto, temos de ser cuidadosos com o
que fingimos ser», disse Kurt Vonnegut, décadas antes de as pessoas terem
contas no Instagram. A frase parece encaixar-se na perfeição nesta era das
redes sociais. Estamos constantemente a escolher uma forma de nos
apresentarmos ao mundo – desde a t-shirt que vestimos, às palavras que
usamos, passando pelas partes do corpo em que decidimos cortar os pelos –,
mas, nas redes sociais, este ato de apresentação tem outro alcance.
Andamos constantemente distanciados da nossa imagem online. Os nossos
perfis são como se fossem figurinhas nossas da Guerra das Estrelas.
Tornámo-nos um produto ambulante.
A imagem de cachimbo não é um cachimbo, afirmou Magritte. Existe
um fosso permanente entre significante e significado. Um perfil online do
nosso melhor amigo não é o nosso melhor amigo. Uma atualização de
estado que mostra um dia passado no parque não é um dia passado no
parque. E a vontade de gritar a nossa felicidade ao mundo inteiro não
equivale ao quão felizes estamos.
Como ser feliz
1. Não se compare com as restantes pessoas.
2. Não se compare com as restantes pessoas.
3. Não se compare com as restantes pessoas.
4. Não se compare com as restantes pessoas.
5. Não se compare com as restantes pessoas.
6. Não se compare com as restantes pessoas.
7. Não se compare com as restantes pessoas.
Mais um clique
SE UM RATINHO DE LABORATÓRIO acionar uma alavanca e receber algo de
que gosta em troca, ele vai continuar a acionar a alavanca. Mas não é assim
tão pouco habitual que, ao acionarmos uma alavanca, como se fôssemos um
ratinho, os resultados obtidos sejam díspares. Por vezes, vem algo de que
gostamos, outras vezes, não.
Costumava pensar que as redes sociais eram inofensivas. Costumava
pensar que estava nas redes sociais porque gostava. Porém, continuei a estar
nas redes sociais mesmo quando isso não me dava qualquer prazer.
Lembro-me bem dessa sensação. É a mesma sensação que se tem num bar,
às 3h00, depois de todos os nossos amigos já terem ido para casa.
Os algoritmos comem a empatia
ATUALMENTE, GRAÇAS aos algoritmos inteligentes, quando fazemos uma
compra online são-nos apresentadas muitas outras coisas de que podemos
gostar. São coisas que pessoas como nós poderiam comprar.
Se estivermos a ouvir música no Spotify ou no YouTube, é-nos
apresentada uma lista de outras músicas que são praticamente iguais
àquelas que estamos a ouvir.
Se estivermos na Amazon, são-nos mostrados os livros comprados por
outras pessoas que também compraram aquele livro.
Se estivermos nas redes sociais, dizem-nos para adicionar perfis
semelhantes aos perfis das pessoas de quem já somos amigos ou que já
seguimos. Mais do mesmo.
Somos encorajados a mantermo-nos dentro da nossa zona de conforto, e
isto porque as empresas de tecnologia sabem que a generalidade das
pessoas prefere ouvir, ler, ver, comer e usar o tipo de coisas que já ouvia,
lia, via, comia e usava antes. Só que, ao longo da história, não tínhamos
grande possibilidade de ser assim. Éramos obrigados a sair de casa e a ter
de lidar com pessoas que não eram iguais a nós. Tínhamos de lidar com
coisas que não eram nada como as coisas de que gostávamos. E isso era
horrível.
Mas, agora, pode ser ainda pior.
Agora, podemos dar por nós a odiar profundamente qualquer pessoa que
não pense de maneira semelhante à nossa. E os políticos podem acabar por
nem sequer tentar chegar a acordo com o outro lado. A diferença, em vez de
ser motivo de regozijo, torna-se motivo de receio e até de escárnio. Pessoas
com visões semelhantes acabam por se desentender, por se mostrar
incapazes de aguentar a mais ínfima diferença de opinião, fechando-se nas
suas pequenas câmaras de eco, onde só cabem elas próprias, para, até ao
final dos tempos, escutarem sempre a mesma canção, lerem a milésima
versão do mesmo livro, partilharem (e voltarem a partilhar) as suas
opiniões.
Acontece que somos humanos. Podemos resistir a este estado de coisas.
Podemos resistir ao facto de quererem que fiquemos circunscritos a uma
pequena tribo digital. Podemos abraçar a vida em toda a sua plenitude. Em
toda a sua banda larga. Estamos sempre a descobrir formas de o fazer. Sim,
podemos ser um pouco caóticos. Mas a nossa força está também nesse caos.
Não fazemos coisas só porque fazem sentido. E a Internet, neste ponto,
pode ser uma aliada, não uma inimiga. A Internet contém o mundo inteiro.
A Internet pode ser aquilo que nós desejarmos que seja. A Internet pode
levar-nos a qualquer lugar que queiramos. Só precisamos de nos assegurar
de que somos nós que fazemos essa escolha, e não a tecnologia, nem os web
designers, nem os programadores que têm a capacidade de manipular os
nossos estados de alma.
O que as pessoas que estão nas redes sociais
pensam das redes sociais
NESTA DEMANDA com vista a procurar isolar a minha mente do nosso
mundo à beira de um ataque de nervos, comecei a tentar imaginar o que
sentiria se decidisse abandonar todas as redes sociais. Nesse exercício de
imaginar uma vida sem redes sociais, acabei por… ir parar às redes sociais.
Para descobrir o que queria descobrir, decidi colocar a seguinte pergunta
aos meus seguidores do Twitter: “As redes sociais são boas ou más para o
vosso bem-estar mental?” A pergunta tocou num ponto sensível, pois recebi
mais de 2 mil respostas. No seu todo, oferecem um panorama complexo.
Mas, tendo em consideração que são sobretudo utilizadores regulares e
muito ativos das redes sociais, talvez possa afirmar que fiquei perante um
quadro bastante negro. Quer dizer, se pensarmos em fazer uma pergunta
semelhante a leitores assíduos, a cinéfilos ou a pessoas que costumam fazer
caminhadas, dificilmente obteríamos respostas tão díspares. Seja como for,
deixo-vos com uma amostra representativa.

April Joy @AprilWaterson


Tanto funciona como uma causa de ansiedade como é uma forma de
lidar com ela. Em alturas em que me sinto ansiosa, é bom poder esvaziar a
cabeça ao navegar pelas redes e ler coisas só para me distrair. Ao mesmo
tempo, esta necessidade contínua de publicar coisas que sejam
garantidamente tidas em conta pelas pessoas não é propriamente uma ideia
que proporcione tranquilidade.

Dean Smith @deansmith7


Más. Por vezes, descubro-me a comparar os meus bastidores (solidão,
ansiedade, etc.) com os pontos altos das outras pessoas (sucesso, festas,
etc.). Eu sei que aquilo não é um reflexo verdadeiro da vida delas, ainda
assim, faz-me mossa.

Miss R! @Fabteachertips
Quando me sinto realmente em baixo, facilmente me deixo ficar sozinha
na cama, a navegar nas redes sociais durante várias horas. Na verdade, não
sei por que razão o faço, quando há tantas outras coisas mais produtivas que
poderia estar a fazer. Mas não me faz sentir melhor, disso tenho a certeza!

Immi Wright @immi_wright


Saí do Facebook depois duma fase em que atinji preocupantes níveis de
vontade de me suicidar; e descobri que comecei a sentir maior confiança em
mim. Creio que o FB mostra, muitas vezes, as pessoas numa espécie de
realidade idealizada. No Twitter, não preciso de me preocupar tanto com
isso, uma vez que sigo apenas estrelas de rock e o WeRateDogs
(NósAvaliamosCães).

Kieran Sangha @kieran_sangha


É bom no sentido em que nos podemos ligar a outros que conseguem
compreender aquilo por que estamos a passar. O lado menos bom é que cria
um vício, como se fosse uma droga, e tem o potencial para assumir o
controlo da nossa vida.

Hayley Murphy @hayleym_swvegan


Boas. Não existe ninguém, MESMO NINGUÉM, que me entenda na
“vida real”. É literalmente uma boia de salvação saber que não estou
sozinha. Qualquer ferramenta usada de forma errada pode ser perigosa, mas
se a usarmos da forma correta pode ter resultados incríveis.
Bonnie Burton @bonniegrrl
Ambas. Boas, porque me consigo ligar facilmente a pessoas que admiro
e que me inspiram. Más, porque as redes sociais acabam por ser uma
plataforma para o assédio, pois não existem consequências para quem se
comportar mal.

Shylah Ellis @MsEels


Em criança, quando ainda não estava nas redes sociais, basicamente
pensava que era a única pessoa a sofrer de depressão. Sentia-me
permanentemente isolado e as únicas pessoas com quem tinha contacto
eram do tipo tóxico. As redes sociais permitiram-me interagir com pessoas
incríveis de várias partes do mundo.

Kyle Murray @TheKyleMurray


Trabalho nas redes sociais e, apesar de pensar que têm alguns lados
positivos, talvez as evitasse por completo, se houvesse outra forma de
conseguir manter contacto com os meus amigos que estão longe. Têm sido
usadas como uma arma por pessoas muito más. Tenho FB desde 2004 e
mantenho o meu perfil principalmente por uma questão de nostalgia.

James @james____s
Cito algo que ouvi recentemente: “O Facebook é o sítio onde toda a
gente mente aos amigos. O Twitter é o sítio onde dizem a verdade a
estranhos.”

Abigail Rieley @abigailrieley


Ambas. Já fiz amizades reais online e o apoio que podemos receber
pode ser muito real, MAS se estivermos em baixo e nos sentirmos inúteis
pode ser uma porta de entrada para um mundo que nos mantém de fora,
isolados.

Kate Leaver @kateileaver


Um pouco de ambas, mas algo melhores do que a reputação que têm.
Acredito que se podem travar amizades verdadeiras através das redes
sociais, o que é muito útil caso alguém não possa sair de casa. Quando
estamos sozinhos/deprimidos, por vezes, espreitar outras vidas pode ajudar.

Jayne Hardy @JayneHardy_


Ambas. Tenho de traçar limites, mas, quando consigo gerir e impor
essas barreiras, no meu caso, as redes sociais são positivas.

Gareth L Powell @garethpowell


Sendo um escritor freelance, o Twitter é como uma pausa para café no
escritório. É onde posso falar com amigos e colegas. Sem isso, sentir-me-ia
bastante isolado.

Claire Allen @ClaireAllan


Um pouco das duas. Enquanto escritora a trabalhar sozinha,
possibilitam-me interagir socialmente, para bem da minha sanidade. Mas
creio que também acabam por realçar o melhor e, ainda com maior
frequência, o pior da humanidade, o que serve para aumentar a minha
ansiedade.

Yassmin Abdel-Magied @yassmin_a


É como tudo o resto. Podem ser fantásticas, mas precisam de ser bem
geridas, de maneira que o lado bom seja superior ao lado mau. Foi no
Twitter que conheci alguns dos meus melhores novos amigos.
Hollie Newton @HollieNuisance
Gosto das ideias e das notícias e das fotografias coloridas. Gosto de ver
o que os meus amigos andam a fazer. Interagir. Mas se ficar lá mais do que
alguns minutos… começo a sentir-me gradualmente vazia e desadaptada.

Cole Moreton @colemoreton


Não são boas. Perturbam-me, sugam-me para discussões violentas, e
depois fico com tanta repulsa que só me apetece acabar com tudo. Depois, o
ciclo recomeça.

Rachel Hawkins @ourrachblogs


Ambas. O Instagram deixa-me invejosa. O Facebook faz-me sentir
irritada, e, por vezes, o Twitter deixa-me stressada.

Kat Brown @katbrown


Ambas. Ganho muito com elas (trabalho, gargalhadas, amigos,
contactos), mas também sei que o centro da minha atenção mudou
radicalmente. Muitas vezes, estou concentrada no online. Que estará prestes
a acontecer? Que PODERÁ ter acontecido? Notícias e dopamina = argh.

Nigel Jay Cooper @nijay


Há alturas em que sinto que é como estar numa sala cheia de gente que
não escuta e só grita, pelo que tenho de me afastar disso… Mas também há
o modo como ligam as pessoas, o lado do apoio ao outro e o sentido de
comunidade. (1/2)

Para mim, creio que o smartphone “sempre ligado” é a parte da equação


mais importante. Tenho de criar o tempo de pousar o telemóvel para me
concentrar no mundo real à minha volta, em vez de no mundo virtual. No
meu caso, conseguir gerir este aspeto é a chave para não me sentir
esmagado pelas redes sociais. (2/2)
Como sermos felizes (II)
NÃO COMPARE O SEU eu atual com um eu hipotético. Não se afogue num
mar de “e se”. Não encha a sua cabeça com versões imaginárias de si que
vivem em universos paralelos, por terem tomado decisões diferentes das
que tomou. A era da Internet encoraja-nos à fórmula “escolha e compare”,
mas não entre nisso. “A comparação rouba-nos a alegria”, disse Theodore
Roosevelt. Somos o que somos. O passado é o passado. A única forma de
termos uma vida melhor é a partir do presente. Ficar a remoer nos
arrependimentos apenas vai fazer com que o presente se torne mais uma
daquelas coisas de que se irá arrepender. Aceitem a vossa realidade. Sejam
suficientemente humanos para cometerem erros. Sejam suficientemente
humanos para não temerem o futuro. Sejam suficientemente humanos para,
como dizer, serem suficientes. Aceitar o lugar em que a nossa vida está
facilita muito a capacidade de ficarmos felizes pelas outras pessoas, sem
que nos sintamos mal connosco próprios.
7.

O choque das notícias


O efeito multiplicador
Vivemos num mundo à beira de um ataque de nervos. O mundo pode
ser aterrador. A polarização da política, os movimentos nacionalistas, a
ascensão de nazis inspirados em Hitler, as elites plutocráticas, o terrorismo,
as alterações climáticas, as revoluções políticas, o racismo, a misoginia, a
falta de privacidade, os algoritmos cada vez mais inteligentes que recolhem
e analisam os nossos dados pessoais para ficarem com o nosso dinheiro ou
o nosso voto, a ascensão da inteligência artificial e respetivas implicações, a
renovada ameaça de uma guerra nuclear, as violações dos direitos humanos,
a devastação do planeta. E não se trata apenas do que se passa. Afinal de
contas, o mundo sempre teve coisas terríveis a acontecer em algum lado. A
diferença é que agora – graças às câmaras dos telemóveis e às redes sociais
e às notícias de última hora e ao facto de estarmos permanentemente
ligados à Internet – podemos experienciar, de uma forma mais visceral e
direta do que antes, o que acontece noutro lugar qualquer. E essa
experiência chega-nos e multiplica-se a partir de mil perspetivas diferentes.
Imaginem, por exemplo, que já existiam redes sociais e telemóveis com
câmara aquando da Segunda Guerra Mundial. Se as pessoas tivessem visto
nos smartphones, em imagens nítidas e a cores, as consequências de cada
bomba, ou a realidade de cada campo de concentração, ou os corpos
mutilados e ensanguentados dos soldados, então a experiência psicológica
coletiva teria expandido todos esses horrores muito para lá daqueles que os
sentiam na pele.
Seria positivo lembrarmo-nos que a sensação que temos atualmente – de
que as coisas pioram de ano para ano – não passa, em parte, disso mesmo:
uma sensação. Estamos cada vez mais ligados aos contínuos exageros e
horrores das notícias sobre o nosso mundo, pelo que o efeito é algo
deprimente. Há um sentimento global de que está tudo a afundar. E até
corremos o risco de estes sentimentos de receio poderem, por eles próprios,
realmente acabar por tornar o mundo pior.
Se virmos imagens de um ataque terrorista, torna-se muito mais fácil
imaginar que algo semelhante pode acontecer a qualquer hora, em qualquer
lugar, inclusive no sítio onde vivemos. Pouco importa se, racionalmente,
soubermos que existem maiores probabilidades de virmos a morrer de
cancro, ou acidente de viação, ou até de suicídio; o terror sensacionalista a
que assistimos nos noticiários consegue dominar os nossos pensamentos. E
os políticos exploram isso, exagerando os medos e criando divisões ainda
maiores. O que, por sua vez, conduz a uma maior instabilidade e a novas
oportunidades para os terroristas poderem cumprir o seu objetivo: provocar
o terror. E depois lá vêm os políticos ou os comentadores aumentar ainda
mais os níveis do medo na sociedade.
É como se alguém que tivesse um transtorno compulsivo não
conseguisse parar de reiterar os seus medos, nunca saindo de casa ou
lavando as mãos 200 vezes por dia. Embora possa pensar que, desse modo,
está a proteger-se, na verdade, está apenas a provocar danos a ela própria.
Só que, desta vez, o transtorno não é um assunto individual. É social. E
mundial.
Choques para o sistema
A PALAVRA “CHOQUE” é cada vez mais usada pelos comentadores políticos
das televisões. Ler jornais ou assistir às notícias deste século XXI provoca a
sensação de estarmos sob um bombardeio incessante. Um bombardeio de
choque.
De manhã, acedemos ao nosso canal preferido de notícias online e
ficamos logo tensos. “Porra, o que aconteceu agora?”, parece ter-se tornado
uma reação generalizada.
Embora o choque possa ser uma experiência desagradável para uma
pessoa ou uma sociedade, também representa uma ferramenta política
muito útil. Se perguntarem a qualquer pessoa que já tenha sofrido um
ataque de pânico o que sente nesses instantes, ela responderá que não
consegue pensar em mais nada a não ser no medo. Quando alguém está em
estado de choque fica confuso. Não consegue raciocinar. Fica passivo. Vai
para onde as pessoas lhe dizem para ir.
Foi Naomi Klein quem cunhou a expressão “doutrina do choque” para
descrever a tática cínica de usar, de forma sistemática, “a desorientação das
pessoas após um choque coletivo” para obter ganhos políticos ou
empresariais. Por exemplo, as companhias petrolíferas que aproveitam o
choque da guerra para entrarem num novo país; ou um presidente norte-
americano que explora o terrorismo para tentar impor medidas mais duras
de anti-imigração.
“Nós não entramos em estado de choque quando acontece alguma coisa
má em grande escala”, afirma Klein. “Tem de ser uma coisa má e numa
escala tão gigantesca que escapa à nossa compreensão.”
O problema é que, atualmente, temos uma cobertura noticiosa 24 horas
por dia, repleta de novos acontecimentos que raramente têm tempo de
serem digeridos. Vivemos no mundo das notícias, o qual, pela sua própria
natureza, saltita em busca da novidade, apresentando cada novo evento com
títulos e frases bombásticas, raramente transmitindo uma visão mais serena
e profunda sobre o que se está a passar.
Compreensivelmente, o choque resulta numa série de emoções
negativas: medo, tristeza, sensação de impotência, raiva. A tentação de
passarmos a vida inteira a publicar tweets furiosos contra as injustiças do
mundo é certamente humana, mas isso não é suficiente. Em última análise,
podemos estar simplesmente a contribuir com mais umas vozes para o coro
de lamentos que serve apenas os objetivos dos governantes ou dos
extremistas, que podem preferir que andemos distraídos devido ao estado de
choque.
Quando um indivíduo com perturbação de pânico entra num processo de
recuperação, no meio do terror, acaba por sentir uma grande irritação e
exasperação. Contudo, algures nesse caminho, há um momento em que é
preciso chegar a algum tipo de compreensão e aceitação. Não propriamente
por as coisas não serem assim tão más, mas antes por, precisamente, serem
realmente más.
Lembro-me de, certa vez, durante um estado depressivo, estar a
observar um céu cheio de estrelas. A maravilha do universo.
Quando estava no fundo do poço, mesmo que me custasse muito,
forçava-me sempre a descobrir a beleza, a bondade, o amor. Era muito
difícil de conseguir, mas tinha de tentar. A mudança não acontece
simplesmente por nos focarmos no sítio de onde queremos escapar.
Acontece se nos focarmos no sítio a que queremos chegar. Não chega
batermos nos maus da fita; é preciso encorajarmos os bons. É preciso
descobrir a esperança que já existe e ajudá-la a crescer.
Imaginem
IMAGINEM SE um dia destes chamássemos apenas seres humanos aos
seres humanos. Sem nacionalidades em primeiro lugar. Sem a religião que
professam. Nem britânico, nem americano, nem francês, nem alemão, nem
iraniano, nem chinês, nem muçulmano, nem sikh, nem cristão, nem
asiático, nem preto, nem branco, nem homem, nem mulher, nem diretor da
Coca-Cola, nem membro de gangue, nem mãe de três filhos, nem
historiador, nem economista, nem jornalista da BBC, nem utilizador do
Twitter, nem consumidor, nem fã de O Caminho das Estrelas, nem autor,
nem 17 anos de idade, ou 39, ou 83, nem conservador, nem liberal. Mudar
tudo apenas para humano. Da mesma forma que todos vemos as tartarugas
apenas como tartarugas. Humano, humano, humano. Para que seja possível
vermos aquilo que fingimos saber. Para nos lembrarmos de que somos um
animal, unido enquanto espécie que existe neste frágil pontinho azul do
espaço, o único planeta, que se saiba, que contém vida. Mergulhem neste
piroso e sentimental milagre. Vamos definir-nos pela monstruosa sorte de
estarmos vivos e, mais do que isso, de termos consciência de estarmos
vivos. De estarmos aqui, neste momento, no mais belo planeta que alguma
vez conheceremos. Um planeta onde podemos respirar, viver, apaixonarmo-
nos, comer pão com manteiga de amendoim, dizer olá aos cães, dançar ao
som de música, ler Bonjour Tristesse, ver todos os episódios de séries de
televisão de seguida, e onde podemos apreciar o modo como a luz solar
sobressai contra a sombra de um prédio, e sentir o vento e a chuva na nossa
pele delicada, e cuidar uns dos outros, e sonhar acordados, e sonhar
enquanto dormimos e dissolver-nos no doce mistério de nós próprios. Um
dia em que, no fundo, seríamos tão humanos como todos os outros
humanos.
Seis formas de se manter a par das notícias sem
endoidecer
1. Lembrem-se de que a forma como reagem às notícias não tem que ver
apenas com o teor das notícias, mas também com a forma como as
recebem. A Internet e os canais noticiosos servem as notícias de um
modo que nos deixa desorientados. É fácil acreditarmos que as coisas
estão a piorar, quando, na verdade, essas coisas podem simplesmente
fazer com que nos sintamos pior. O meio não é apenas a mensagem; é
a intensidade emocional dessa mensagem.

2. Limitem a quantidade de vezes que veem notícias. Faço minhas as


palavras de Debra Morse, minha amiga do Facebook: “Lembram-se
que, em 1973, só ouvíamos notícias duas vezes ao dia? Era o jornal da
manhã e o noticiário televisivo da noite. E, mesmo assim, vimo-nos
livres do Nixon.”

3. Tenham consciência de que o mundo não é tão violento como aquilo


que sentem. Muitos autores que abordaram esta matéria, como o
famoso cientista cognitivo Steven Pinker, têm realçado que a
sociedade atual, apesar de todos os seus horrores, está menos violenta
do que antes. “Claro que ainda existe violência”, afirma o historiador
Yuval Noah Harari. “Vivo no Médio Oriente, pelo que tenho perfeita
consciência disso. Mas, comparativamente com o resto da História, há
agora menos violência. Hoje em dia, há mais pessoas a morrerem por
comerem demasiado do que por causa da violência, o que, na verdade,
é um feito extraordinário.”

4. Mantenham contacto com animais. Os animais não humanos são


terapêuticos, por várias razões. Uma das quais é o facto de não verem
notícias. Os cães, os gatos, os peixinhos dourados, os antílopes não
querem saber das coisas que são importantes para nós, como a política
e a economia e todas essas coisas flutuantes. Ainda assim, a vida deles
prossegue, tal como a nossa. Fiquem com o que A. A. Milne escreveu
em O Ursinho Pooh: “Algumas pessoas falam com os animais. Mas
poucas os ouvem. O problema é esse.”

5. Não se preocupem com coisas que não podem controlar. As notícias


estão repletas de coisas relativamente às quais não podemos fazer
nada. Façam tudo o que estiver ao vosso alcance (despertem as
consciências para os temas que vos preocupam, deem o que puderem
às causas que vos apaixonam), mas aceitem igualmente as coisas que
não conseguem fazer.

6. Lembrem-se: assistir a notícias sobre coisas más não significa que não
estejam a acontecer coisas boas. Há notícias boas a acontecer em todo
o lado. Estão a acontecer neste preciso momento. Em todo o mundo.
Nos hospitais, em casamentos, nas escolas e escritórios, nas
maternidades, nos portões de chegadas de aeroportos, em quartos, nas
caixas de entrada de e-mail, nas ruas, no sorriso amável de um
estranho. Há milhões e milhões de maravilhas da vida quotidiana que
nós não vemos.
Um elogio ao pensamento positivo
O MEU VELHO EU, ainda antes de adoecer, era bastante cínico quanto ao
pensamento positivo, ou aos pores-do-sol, ou às músicas cor-de-rosa, ou às
expressões de esperança e otimismo. Mas, depois de ficar doente, quando
estava mesmo no meio da doença, a minha vida dependia de eu conseguir
afastar o meu lado pessimista. O cinismo era um luxo reservado a quem não
tinha pensamentos suicidas. Eu precisava de descobrir a esperança. Aquela
coisa com asas. A minha vida dependia disso.
Pode parecer um pouco rebuscado associar uma cura psicológica a uma
cura social e política, mas, se o lado pessoal também for político, então o
psicológico também o será. Atualmente, vivemos, aparentemente, um
ambiente político baseado numa separação dos lados; uma divisão, em
parte, alimentada pela Internet.
Precisamos de redescobrir os nossos elos comuns, enquanto seres
humanos. Como o conseguir? Bem, uma invasão por extraterrestres daria
conta do recado, mas é melhor não ficarmos à espera disso.
O problema da política é um problema de tribos. “Quando nos
separamos por crença, por nacionalidade, por tradições, isso gera
violência”, ensinou-nos o filósofo Jiddu Krishnamurti.
Uma das coisas que aprendi com a doença mental é que a capacidade de
avançar consiste numa questão de aceitação. Só ao aceitarmos uma
determinada situação é que a poderemos vir a mudar. Temos de aprender a
não ficar em estado de choque por causa do choque. Temos de aprender a
não cair num estado de pânico por causa do pânico. Temos de aprender a
mudar aquilo que conseguimos mudar e a não ficarmos frustrados com o
que não conseguimos mudar.
Não existe nenhuma panaceia ou utopia; existe apenas amor e bondade,
e a tentativa de, no meio do caos, melhorarmos as coisas em tudo aquilo
que nos for possível. E mantermos as nossas mentes abertas, muito abertas
mesmo, num mundo que, tantas vezes, tenta mantê-las fechadas.
8.

Um pequeno capítulo sobre o sono


A guerra ao sono
ANTES DE 1879, altura em que Thomas Edison inventou a primeira
lâmpada incandescente realmente prática, toda a iluminação era a gás ou a
petróleo. A lâmpada, fortemente promovida pela Edison & Swan Eletric
Light Company, veio, literalmente, a acender o planeta. Eram objetos
práticos (pequenos, baratos e seguros) que emitiam uma quantidade
adequada de luz, pelo que não tardaram a espalhar-se pelas casas e
escritórios de todo o mundo.
Os seres humanos tinham, finalmente, conquistado a noite. A escuridão,
essa fonte de tantos dos nossos medos mais primários, podia ser contrariada
com um simples toque de interruptor. Perante essa possibilidade de
prolongar artificialmente o anoitecer, as pessoas começaram a deitar-se cada
vez mais tarde. Facto que, diga-se, não preocupava minimamente Edison.
Na verdade, ele via nisso algo indubitavelmente positivo. Em 1914, Edison,
que já então gozava de fama à escala mundial, chegou a declarar: “Não
existe qualquer razão para que os homens se deitem de todo.” E ainda foi
mais longe: ele acreditava realmente que dormir era algo que fazia mal, e
que dormir demasiado, muito provavelmente, tornaria uma pessoa
preguiçosa. Edison via a lâmpada como uma espécie de remédio; a luz
artificial poderia curar pessoas “ineficazes e com pouca saúde”.
Mas, como é óbvio, estava errado. Se não dormirmos, não funcionamos
devidamente.
Os humanos, tal como os pássaros e as tartarugas, têm relógios
biológicos. Têm ritmos circadianos. Isto significa que reagimos de forma
diferente ao longo do dia; os nossos corpos evoluíram para funcionarem
consoante seja dia ou noite. Daqui a 150 mil gerações, talvez os humanos
evoluam para se adaptarem à luz artificial, mas, por enquanto, os nossos
corpos e as nossas mentes continuam iguais aos dos humanos que existiram
antes de Edison ter patenteado a lâmpada. Em resumo: precisamos de
dormir.
Porém, não andamos a ter exatamente aquilo de que precisamos. A
Organização Mundial da Saúde – que declarou as perturbações do sono
como uma epidemia nos países industrializados – recomenda que se durma
entre sete a nove horas por dia. Mas não há assim tantos de nós que o
façam. De acordo com um estudo da Fundação Americana do Sono, em
média os americanos, britânicos e japoneses dormem bastante menos de
sete horas diárias, enquanto noutros países, como Alemanha ou Canadá, a
média situa-se, periclitantemente nas sete horas por noite. Segundo outra
pesquisa, desta vez realizada pela Gallup, uma pessoa dorme hoje, em
média, menos uma hora do que dormia em 1942.
No entanto, a iluminação artificial não é o único fator que contribui para
este estado de coisas. Os especialistas do sono apontam também a forma
como se trabalha atualmente, bem como a subida dos níveis de solidão e
ansiedade neste mundo frenético que funciona 24 horas por dia, sete dias
por semana, como outros aspetos que aumentam o desejo de ficar acordado
a conversar online ou a ver programas e vídeos de entretenimento.
E existem tantos incentivos para ficarmos acordados. Tantos e-mails à
espera de resposta. Tantos episódios disponíveis da nossa série televisiva
preferida. Tantas compras online para fazer. Tantos leilões no eBay para
acompanhar. Tantas notícias para nos informarmos. Tantas contas de redes
sociais para atualizar, tantos espetáculos, tantos livros, tantos potenciais
encontros com quem teclar, tantas ambições por concretizar. Tantas pessoas
– discípulas de Edison, ainda que não o saibam – que querem manter-nos
acordados.
Todos sabemos que, quando não dormimos, tendemos a ficar mais
tristes, mais preocupados, mais irritadiços e mais letárgicos. O sono é
essencial para o nosso bem-estar. Quando não dormimos bem, isso pode ter
consequências muito sérias no nosso estado mental e físico. Apesar de
alguns efeitos da falta de sono poderem ser discutíveis, há alguns a respeito
dos quais a comunidade médica chegou a um consenso alargado. Assim, se
cruzarmos vários estudos e fontes, podemos dizer que não dormir bem:
* Enfraquece o nosso sistema imunitário;

* Aumenta o risco de doença arterial coronária;

* Aumenta o risco de ataque cardíaco;

* Aumenta o risco de diabetes;

* Aumenta o risco de acidente de viação;

* Está associado a uma maior probabilidade de cancro da mama, cancro


colorretal, cancro da próstata;

* Prejudica a capacidade de concentração;

* Interfere com a memória;

* Aumenta o risco de Alzheimer;

* Aumenta a probabilidade de engordar;

* Reduz o desejo sexual;

* Aumenta os níveis de cortisol (a hormona do stress);

* Aumenta a probabilidade de depressão.


No livro Porque dormimos?, o “cientista do sono” Matthew Walker
escreve que o sono parece otimizar o funcionamento dos processos
cerebrais e dos principais órgãos do corpo. “Os danos mentais e físicos
causados por uma noite mal dormida suplantam os danos causados por uma
falta equivalente de comida ou de exercício.”
O sono é essencial; e é fantástico. No entanto, o sono é um dos inimigos
tradicionais da sociedade de consumo. Quando estamos a dormir, não
podemos comprar nada. Quando dormimos, não podemos trabalhar ou
ganhar dinheiro ou atualizar o Instagram. Muito poucas empresas,
excetuando os vendedores de camas e de colchões ou os fabricantes de
persianas, ganham dinheiro com o nosso sono. Ainda ninguém descobriu
uma forma de construir um centro comercial no qual se possa entrar
enquanto fazemos uma sesta, um local onde as empresas comprem espaço
de anúncios nos nossos sonhos, um sítio onde se possa gastar dinheiro sem
termos de estar conscientes.
Aos poucos, o sono lá se vai tornando um pouco mais comercializado.
Hoje em dia, já existem clínicas privadas do sono e centros de sono, nos
quais se paga por conselhos para melhorar a rotina de sono. Já existem
“monitores do sono”, que avaliam os movimentos enquanto se dorme, e que
têm sido alvo de críticas (por exemplo, num artigo do The Guardian,
publicado em 2018, sobre “sono limpo”), tanto por não serem fiáveis, como
por serem contraproducentes, pois apenas servem para aumentar a
ansiedade das pessoas relativamente ao sono.
De qualquer forma, o sono ainda se vai mantendo um território quase
virgem de distrações. Razão pela qual, aparentemente, ninguém consegue ir
cedo para a cama.
E agora, neste estádio avançado do capitalismo, dormir já não é apenas
encarado como algo que atrasa o trabalho; é visto como um rival dos
negócios.
Reed Hastings, diretor-executivo da Netflix, acredita que o seu principal
concorrente não é a HBO, nem a Amazon, nem qualquer outra companhia
de streaming; é o sono. Num certame da indústria, que decorreu em Los
Angeles, em novembro de 2017, Hastings terá dito, citado pela Fast
Company: “Pensem comigo. Quando veem um programa do Netflix e ficam
viciados, acabam por se deitar tarde… Vendo bem, no fundo estamos a
competir com o sono. E, assim sendo, estamos a falar de um grande
intervalo de tempo.”
Eis a atitude que prevalece relativamente ao sono: algo de que devemos
suspeitar, pois é um tempo em que não estamos ligados, não estamos a
consumir, não estamos a gastar dinheiro. Esta também é a nossa atitude em
relação ao tempo: algo que não deve ser desperdiçado simplesmente a
descansar, a dormir, a existir. Somos governados pelo relógio. Pela
lâmpada. Pelo brilho do smartphone. Pela sensação de nunca estarmos
saciados. A sensação de não, isto nunca chega. A nossa felicidade, dizem,
está mesmo ao virar da esquina. Está à distância de um clique, de uma
compra, de uma interação. Está à nossa espera, a brilhar, como a luz ao
fundo de um túnel que, afinal, parece nunca ter fim.
O problema é que nós simplesmente não fomos feitos para viver as
nossas vidas sob uma luz artificial. Não fomos feitos para despertar ao som
de relógios-despertadores ou para adormecer banhados na luz azulada do
smartphone. Vivemos numa sociedade acordada 24 horas por dia, mas não
vivemos em corpos despertos 24 horas por dia.
Alguma coisa tem de ceder.
Como dormir num planeta ansioso
ATUALMENTE, EXISTE UMA imensidão de soluções tecnológicas ou de
serviços pagos: desde aparelhos que monitorizam o sono, a lâmpadas sem
luz azul, passando pela hipnoterapia ou máscaras de sono. Mas muitos
destes produtos de consumo visam aumentar a nossa ansiedade
relativamente ao sono.
Na verdade, há formas bem mais simples e eficazes. O conselho mais
vezes dado pelos especialistas inclui criar uma rotina, evitar a cafeína,
evitar a nicotina, evitar as bebidas alcoólicas demasiado tardias (posso
confirmar todas estas dicas), fazer exercício ao início do dia, evitar os
jantares pesados, relaxar antes de ir para a cama e apanhar alguma luz do
sol.
No meu caso, fazer dez minutos de ioga (muito) suave e respirar
calmamente tem funcionado bem durante os surtos de ansiedade, no
decurso do quais dormir se torna problemático.
Mas uma das soluções mais eficazes, embora algo enfadonha, é de uma
simplicidade espantosa. De acordo com o professor Daniel Forger, da
Universidade do Michigan, líder de uma equipa de investigadores que
analisou padrões de sono em várias partes do mundo, vivemos atualmente
em plena “crise global de sono”, na medida em que a sociedade nos
empurra para ficarmos acordados até mais tarde. A resposta a esta crise,
disse ele à BBC, não passa por aumentar os dias em que dormimos até mais
tarde. Aparentemente, a hora a que se acorda não faz assim tanta diferença.
A resposta passa, então, por nos deitarmos um pouco mais cedo, pois,
quanto mais tarde as pessoas forem para a cama, menos tempo de sono
terão. Mas até este simples ato de nos deitarmos mais cedo pode exigir uma
mudança cultural. Seria interessante olharmos para os países onde se dorme
menos e perceber o que é que as pessoas andam a fazer: estão a divertir-se
com amigos num jantar até tarde ou nem saíram do escritório para jantar?
Outra solução é ser disciplinado no uso do portátil e do telemóvel,
tentando não os levar para a cama, pois a luz azul dos ecrãs afeta de forma
negativa a melatonina, a hormona do sono.
Seja como for, acabo de constatar que, enquanto teclo estas palavras, já
passa da meia-noite. É melhor desligar o portátil. E vou tentar adormecer
sem sequer consultar o telemóvel.
9.

Prioridades
Uma viagem a um centro de acolhimento para
sem-abrigo
Mesmo quando o mundo não nos aterroriza às claras, a velocidade, o
ritmo e as distrações da vida moderna podem constituir uma espécie de
assalto mental que não é fácil de identificar. Por vezes, a vida parece tornar-
se demasiado complicada, demasiado desumana, e acabamos por perder de
vista aquilo que realmente interessa.
Há alguns meses, desloquei-me a um centro de acolhimento para sem-
abrigo. Ficava em Kinsgton, junto ao Tamisa, um abastado subúrbio de
Londres onde muitos julgariam impossível que existisse o problema de
pessoas a viverem na rua.
Fui convidado para ir lá falar sobre literatura e saúde mental. O local
chama-se Joel Centre e já recebeu prémios pelo seu trabalho, baseado na
ideia de dar às pessoas algo mais do que apenas uma cama para passar a
noite. Ali, trabalha-se sob o lema “Ajudar as Pessoas a Acreditarem em Si
Mesmas”. Um voluntário do centro disse-me que a ideia passa por ter a
noção de que as pessoas que recorrem à instituição não sentem apenas falta
de uma cama: sentem falta de pertença. “Tentamos dar-lhes isso. O
problema é a falta de um lar, não a falta de uma casa. Não ter um lar é
muito mais do que não ter um quarto para dormir.” O voluntário
acrescentou que o facto de trabalhar no centro o fez compreender aquilo de
que as pessoas “realmente precisam na vida, sem ser toda a porcaria do
costume”.
Por isso, as pessoas que recorrem ao centro, além de terem uma cama,
um armário com chave e acesso a um balneário e à máquina de lavar roupa,
também se podem sentar todos os dias à volta de uma mesa, juntamente
com outros hóspedes, para comerem refeições saudáveis. Muitas vezes, são
os próprios hóspedes que tratam de ajudar na cozinha, tal como também
desempenham tarefas na limpeza do centro, no arranjo do jardim e no
auxílio à comunidade local.
O centro é deles. Eles fazem parte do abrigo.
Depois de ter falado sobre a minha experiência com problemas de saúde
mental, acebei por ficar a conversar com o homem sentado ao meu lado.
Devia ser mais ou menos da minha idade. Tinha ar de quem passara por
muita coisa, quer em termos mentais quer físicos, ainda assim estava
sorridente. Disse-me que se tornara um sem-abrigo após o final do seu
relacionamento; entrou em depressão, mas, numa tentativa de negação,
começou a beber. Tornou-se alcoólico e, segundo me contou, o centro
salvou-lhe a vida. Depois, apontou vagamente para a porta e disse-me que,
“lá fora”, a vida não fazia muito sentido. Ele tinha ficado perdido nessa
vida.
Para ele, o mundo era desumano. Porém, no centro, eram as pequenas
coisas que contavam. “Conversar com pessoas, sentarmo-nos à volta da
mesa com outras pessoas, trabalhar para resultados que se possam ver.”
Era essa a sensação que aquele lugar me dava. Como se ali houvesse
uma filtragem das coisas de que as pessoas precisam na vida. E tudo o que
fazia mal aos hóspedes ficava de fora, pois o centro era bastante rigoroso
relativamente à proibição de bebidas alcoólicas, drogas e outras coisas do
género. Os responsáveis da instituição tinham pensado seriamente sobre o
que deixariam entrar e o que, literalmente, ficaria à porta.
Apesar de a maior parte das pessoas ter uma vida melhor do que os
hóspedes do Joel Centre, o lema do abrigo não deixa de ser aplicável. É,
inclusive, de uma simplicidade extrema. Realçar as coisas que nos fazem
sentir bem, cortar as coisas que nos fazem mal e permitir que as pessoas se
sintam verdadeiramente ligadas ao mundo em redor.
Penso que este será o maior paradoxo do mundo moderno. Estamos
todos ligados uns aos outros, mas sentimo-nos frequentemente do lado de
fora. A crescente sobrecarga e complexidade da vida moderna pode
provocar o isolamento.
Juntemos a isto o facto de que nem sempre sabemos exatamente o que é
que nos faz sentir solitários ou isolados. Pode ser difícil distinguir quais são
realmente os problemas em causa. É como abrir um iPhone para o tentar
arranjar com os nossos próprios meios. Por vezes, parece que a sociedade
funciona como a Apple, evitando a todo o custo que consigamos
escarafunchar dentro de nós, na tentativa de encontrarmos o que possa estar
errado connosco. E é isso que temos de fazer. Porque, frequentemente,
identificar um problema e ficar plenamente consciente dele pode tornar-se a
própria solução.
Multidões solitárias
EIS O PARADOXO da vida moderna: nunca estivemos tão ligados e nunca
estivemos tão sozinhos. O automóvel substituiu o autocarro. Trabalhar a
partir de casa (ou estar desempregado) substituiu a fábrica e, cada vez mais,
o escritório da empresa. A televisão substituiu a sala de espetáculos. O
Netflix está a converter-se na nova sala de cinema. As redes sociais são o
novo “conhecer pessoas no café da esquina ou no bar”. O Twitter substituiu
a pausa para café. E a individualidade substituiu o coletivismo e a
comunidade. Cada vez temos menos encontros cara a cara; cada vez temos
mais interações com avatares.
Os seres humanos são criaturas sociais. Nas palavras de George
Monbiot, somos “a abelha mamífera”. Mas as nossas colmeias mudaram de
forma drástica.
Tenho vindo a notar que, à medida que os anos passam, enquanto o
número de amigos virtuais cresce, a quantidade de amigos que vejo na vida
real vai diminuindo.
Decidi, então, alterar este estado de coisas. Ando a fazer um esforço
para sair pelo menos uma vez por semana para estar com os meus amigos. E
tenho-me sentido melhor por causa disso.
Não sinto qualquer nostalgia relativamente aos discos de vinil ou aos
CD, mas sinto saudades do contacto cara a cara. Não é contacto pelo
Facebook. Não é contacto pelo Skype. É falar mesmo com outra pessoa,
faça chuva ou faça sol, sem nada a interpor-se entre nós, para além do ar.
Quando estou em casa, tento fechar o meu portátil e conversar com os meus
filhos, para que eles não cresçam a pensar que são menos importantes do
que um MacBook Pro. E estou a tentar não cancelar encontros com amigos
só porque não estou para me dar a esse trabalho.
Isto exige, de facto, um esforço. É mesmo muito difícil. Há dias em que
penso que seria mais fácil convencer a Coreia do Norte a desistir do
programa de armas nucleares do que impedir-me de verificar as redes
sociais 17 vezes antes do pequeno-almoço.
A socialização online é fácil e à prova de água. Não implica chamar um
táxi ou ter uma camisa lavada e passada. E, por vezes, é maravilhosa. Aliás,
é muitas vezes maravilhosa.
Mas, bem lá nas profundezas do meu ser, consigo perceber que esse
ambiente digitalizado, livre de cheiros, com luz artificial, causador de
divisões, detido por empresas, não consegue preencher todas as minhas
necessidades, tal como uma refeição pronta a levar não substitui o enorme
prazer de comer num restaurante. E eu, sendo alguém cuja ansiedade, certa
vez, resvalou até à agorafobia, forço-me a passar cada vez mais tempo
nessa coisa confusa e ventosa à qual, idilicamente, ainda chamamos de
mundo real.
Como ser solitário
JÁ OUVIU ALGUM pai a resmungar sobre a necessidade que o filho tem de
estar sempre entretido? Algo do estilo: “Quando eu era jovem, conseguia
estar sentado no banco traseiro do carro e ficar só a olhar para as nuvens e
para a relva durante 17 horas, sem nunca me aborrecer. Agora, a nossa
Misha nem consegue estar cinco segundos dentro do carro, sem estar a ver
o Alvin e os Esquilos 17, ou a jogar qualquer coisa, ou a tirar selfies dela
com unicórnios…”
Bem, há uma razão óbvia para este tipo de desabafos. Quanto mais
somos estimulados, mais fácil é sentirmo-nos aborrecidos.
Eis mais um paradoxo.
Em teoria, nunca foi tão fácil não nos sentirmos sozinhos. Há sempre
alguém online com quem podemos falar. Se estamos distantes de quem
amamos, podemos contactá-los via Skype. Mas a solidão, tal como outra
coisa qualquer, é uma emoção. Nas alturas em que sofri de depressão, tive a
enorme felicidade de estar rodeado por pessoas que me amavam. Mas
nunca me senti tão sozinho.
Julgo que a escritora norte-americana Edith Wharton foi a pessoa mais
sábia de sempre relativamente ao tema da solidão. Ela acreditava que a cura
não passava por estar sempre acompanhado, mas antes em descobrir uma
forma de sermos felizes quando estamos na nossa companhia. Não é
tornarmo-nos antissociais; é não termos receio de estarmos sozinhos. Para
Wharton, a cura para a tristeza significava “decorar tão ricamente a nossa
casa interior, de forma a ficarmos contentes quando lá estivermos, a
ficarmos contentes por receber quem queira entrar e ficar um pouco, mas
igualmente felizes nas alturas em que, inevitavelmente, ficarmos sozinhos”.
10.

Medos telefónicos
Uma sessão de terapia no ano 2049
ROBÔ-TERAPEUTA: Então, de que se queixa?
O MEU FILHO: Bem, acho que tudo remonta aos meus pais.
ROBÔ-TERAPEUTA: A sério?
O MEU FILHO: Mais especificamente, ao meu pai.
ROBÔ-TERAPEUTA: Qual era o problema com ele?
O MEU FILHO: Estava sempre ao telemóvel. Eu sentia que ele gostava
mais do telemóvel do que de mim.
ROBÔ-TERAPEUTA: Tenho a certeza de que isso não é verdade. Muitas

pessoas dessa geração não tinham conhecimento de todos os potenciais


efeitos do uso prolongado do telemóvel. Não sabiam, por exemplo, como
esses aparelhos eram viciantes. É preciso ter em conta que, na altura, era
quase tudo uma novidade. Além disso, toda a gente fazia o mesmo.
O MEU FILHO: Bom, mas isso deixou-me marcas. Dava por mim a pensar,

“porque é que eu não sou tão interessante para ele como o feed do Twitter?
Porque é que ele prefere olhar para o ecrã do telemóvel dele em vez de
olhar para mim? Porque é que sinto que só consigo chamar-lhe a atenção
quando o incomodo?” Claro que isto foi nos tempos anteriores à revolução
de 2030.
ROBÔ-TERAPEUTA: Pois. Por onde anda agora o seu pai?

O MEU FILHO: Oh, ele morreu em 2027. Foi atropelado por um carro sem
condutor, enquanto procurava um gif engraçado para enviar.
ROBÔ-TERAPEUTA: Isso é muito triste. Desde essa altura, o que tem feito?

O MEU FILHO: Investi num pai-robô. Ainda pesquisei várias opções


holográficas, mas queria um pai que pudesse abraçar. Programei-o para
nunca verificar as notificações que recebe. Sempre que preciso dele, está
presente.
ROBÔ-TERAPEUTA: Que bom ouvir isso.
Como ter um smartphone e, ainda assim,
permanecer um ser humano funcional
1. Não sinta que tem de estar sempre disponível. No tempo das cartas e
dos telefones fixos (que não foi assim há tanto tempo), tentar entrar em
contacto com alguém era uma empreitada lenta e sem garantia de
sucesso. Na era do WhatsApp e do Messenger, este esforço tornou-se
fácil, gratuito e instantâneo. Mas o outro lado da moeda desta enorme
facilidade é pressuporem que estejamos sempre contactáveis. Espera-
se que a chamada seja atendida. Que se responda às mensagens de
texto e aos e-mails. Que atualizemos as nossas redes sociais. Mas
podemos optar por não sentir essa obrigatoriedade. Por vezes,
podemos deixar os outros à espera. Podemos até correr o risco de
abandonar as nossas redes sociais por algum tempo, pois, se os nossos
amigos forem mesmo nossos amigos, vão compreender a nossa
necessidade de espairecer a cabeça. E, se não forem nossos amigos,
não existe sequer razão para nos preocuparmos com eles.

2. Desligue as notificações. Este ponto é crucial. É isto que lhe permitirá


manter a sanidade (pelo menos parcialmente…). Desligue todas as
notificações. Todas. Não precisa de nenhuma. Recupere o controlo das
coisas.

3. Passe alturas do dia sem ter o telemóvel ao lado. OK, reconheço que
não sou lá muito bom neste ponto. Mas estou a melhorar. Ninguém
precisa sempre do telemóvel. Não precisamos dele junto à cama. Não
precisamos dele à hora das refeições, em casa. Não precisamos dele
quando saímos para correr. Agora, faço o seguinte: saio de casa para
dar um passeio sem levar o telemóvel. Eu sei que parece um pouco
ridículo dizer isto como se fosse um feito extraordinário, mas, para
mim, foi. É como fazer exercício físico. Requer esforço.

4. Não carregue no botão da página principal a cada dois minutos.


Exercite a restrição do impulso de ver o que há de novo.

5. Não associe os seus níveis de ansiedade à percentagem de bateria que


ainda tem no telemóvel.

6. Não chame nomes feios ao telemóvel. Não lhe faça súplicas. Não
negoceie com ele. Não o atire pelos ares. O telemóvel é absolutamente
indiferente relativamente às suas emoções. Se ficar sem rede ou sem
bateria não é por vingança; é, simplesmente, por se tratar de um objeto
inanimado. Em resumo: não passa de um telemóvel.

7. Não ponha o telemóvel na mesa de cabeceira. Não estou a criticar,


entenda-se. A maior parte das pessoas dorme com os telemóveis ao
lado porque eles substituíram os relógios-despertadores. Eu tenho o
telemóvel perto da cama quase todas as noites. Os meus pais dormem
com os telemóveis junto à cama. Toda a gente que conheço tem os
telemóveis junto à cama. Talvez, um dia, as nossas camas sejam os
nossos telemóveis. Mas parece-me que durmo melhor quando não o
tenho próximo de mim, quando o deixo noutra parte da casa; ou até
noutra parte do quarto, mais distante da cama. Eu sei que isto pode
soar pouco realista, mas é bom termos objetivos por conquistar. Uma
espécie de ideal do qual nos tentamos aproximar. Podemos até chegar
a fantasiar com o dia em que seremos suficientemente fortes para
nunca mais precisarmos de ter o telemóvel sempre ao nosso lado.
Como nos velhos tempos. Como no século XIX. Como no século XX.
Como em 2006.
8. Pratiquem o minimalismo com as aplicações. Uma sobrecarga de
aplicações e opções serve para aumentar o leque de escolha, mas acaba
também por aumentar o stress quando usamos o telemóvel. Temos à
nossa disposição uma gama quase infinita de coisas que podemos
adicionar aos nossos telemóveis. Mas um leque de escolha mais
abrangente leva à tomada de mais decisões e, logo, a maiores níveis de
stress. Nós nascemos sem aplicações no nosso telemóvel. Já agora,
sabem que mais? Na verdade, até nascemos sem telemóvel! E a vida
não deixava de ser bela por causa disso.

9. Não tentem ser multitarefas. Temos telemóveis que conseguem fazer


tudo, desde ler mapas até afinar a nossa guitarra, e é tentador pensar
que também conseguimos fazer tantas coisas tão diferentes e todas ao
mesmo tempo. Por exemplo, enquanto estou a escrever este ponto tive
de me impedir de ir ver a caixa de entrada do correio eletrónico, de
verificar se tinha novas mensagens de texto e de ir espreitar as minhas
redes sociais. O que requereu um enorme e consciente esforço da
minha parte. Segundo o neurocientista Daniel Levitin, não somos
propriamente feitos para o tipo de multitarefas que a era da Internet
parece solicitar. “Apesar de pensarmos que conseguimos dar conta de
muita coisa, na verdade, está provado que as multitarefas nos tornam
menos eficientes”, escreve Levitin em The Organized Mind: Thinking
Straight in the Age of Information Overload. Quando realizamos várias
tarefas em simultâneo, isso cria um círculo vicioso de dopamina, que
recompensa o cérebro por perder capacidade de concentração. As
multitarefas também podem aumentar o stress e baixar o Quociente de
Inteligência. “Em vez de colher as grandes recompensas que advêm de
um maior e mais sustentado esforço de concentração, acabamos por
colher prémios sem valor, uns rebuçadinhos, por completarmos um
milhar de pequeninas tarefas”, conclui o neurocientista.
10. Aceitem a incerteza. A tentação de verificar o telemóvel deve-se à
incerteza. É isso que torna o “jogo” tão viciante. Queremos que
alguém responda à mensagem que enviámos, mas não sabemos se já
o fizeram. Então, temos de verificar. Queremos muito encontrar o
mistério e a promessa por trás daqueles três pontinhos a piscar,
expectantes relativamente ao que a pessoa está a escrever. Queremos
muito saber qual é a reação à nossa atualização de estado ou nova
foto de perfil. Mas precisamos mesmo de o saber ao segundo? Porque
é que isso não pode esperar para depois de descansarmos, de termos a
nossa reunião, de fazermos a nossa caminhada, de vermos a nossa
série televisiva, de tomarmos a refeição ou simplesmente de
sonharmos um pouco acordados? Será que as pessoas realmente
precisam de estar a olha para os telemóveis durante as reuniões ou os
funerais? Talvez não precisássemos de o fazer, caso
compreendêssemos que esta atenção contínua nunca será capaz de
nos deixar inteiramente satisfeitos. Tudo porque a incerteza é algo
que nunca acaba. Não existe a “verificação definitiva” do telemóvel.
Pensem em quantas vezes consultaram o telemóvel durante o dia de
ontem. Precisavam mesmo de o ter feito com tanta frequência? Eu
certamente não. Diminuí bastante o número de vezes que consulto o
telemóvel, mas ainda tenho um longo caminho a percorrer. Quantas
vezes por dia toca no seu telemóvel? Quantas vezes olha para ele?
Poderá sentir dificuldades em contabilizar. A resposta, possivelmente,
andará na ordem das centenas. Agora imagina, digo para mim
próprio, que só olhavas para o teu telemóvel umas, vá, cinco vezes
por dia. Que catástrofe poderia acontecer?
Brilho
QUANDO ERA MIÚDO, tinha uma obsessão com candeeiros de rua e janelas
resplandecentes. No banco traseiro do carro, punha-me a observar as janelas
que assumiam um tom rosado, por causa da luz que atravessava os
cortinados vermelhos (como se fosse o peito do E.T., em E.T. – O
extraterrestre), imaginando as vidas que decorriam no interior dessas casas.
O brilho da luz artificial tem, para mim, algo que me deixa fascinado. Em
1983, quando tinha 8 anos, os meus pais tinham um velho guia de viagens
chamado Discover America, no qual havia uma enorme imagem de Las
Vegas, à noite. “Quero ir ali”, disse eu à minha mãe. Ela não achou grande
piada ao meu desejo. Nunca me levou a Las Vegas.
– Já é tarde – digo à Andrea.
Lemos um pouco, depois desligamos as luzes, sempre um pouco mais
tarde de que aquilo que deveríamos. E imagino sempre o quadrado da nossa
janela a apagar-se para quem quer que esteja nesse momento a passar por
ali.
– Boa noite – diz a Andrea.
– Boa noite.
Passa um pouco da meia-noite e o quarto está todo às escuras; à exceção
do brilho de um telemóvel.
– Matt, não vais dormir?
– Já tentei. Tenho a cabeça a mil à hora.
– Devias largar o telemóvel.
– Isto distrai-me do zumbido nas orelhas.
– Bem, mas isso não me deixa dormir.
– Está bem, desculpa, vou largar o telemóvel.
– Sabes bem o que vai acontecer se passares várias noites a dormir mal.
– Eu sei. Boa noite…
E fecho os olhos e a minha mente continua acelerada, com mil
preocupações a clamarem pela minha atenção, como se fossem sinais de
néon de Las Vegas, cujas cores mancham os meus sonhos até se
desvanecerem ao raiar do dia.
Como sair da cama
1. Acordar.
2. Pegar no telemóvel.
3. Ficar a olhar para o telemóvel durante 72 minutos.
4. Suspirar.
5. Sair da cama.

Em alternativa, de vez em quando, pode tentar dispensar os pontos dois,


três e quatro.
Um problema no seu bolso
Enquanto escrevia este livro, no início de 2018, o The Observer pediu-
me que desse o meu contributo para um artigo em que uma série de
escritores colocavam algumas perguntas à romancista e ensaísta Zadie
Smith. Aceitei a oportunidade, em parte porque a tinha visto em algumas
festas literárias, na altura em que os meus livros começaram a ser
publicados, só que fiquei tão emudecido e paralisado, devido à minha
ansiedade, que não me atrevi a aproximar-me para falar com ela.
Eu já lera coisas sobre o ceticismo com que ela encarava as redes
sociais, bem como a valorização que dava ao seu “direito de estar errada”,
pelo que resolvi perguntar-lhe: “Está preocupada com o que as redes sociais
estão a fazer à nossa sociedade?”
Ela não foi meiga nas palavras e começou logo a resposta com uma
crítica aos smartphones.
“Não suporto os telemóveis e não os quero na minha vida, de modo
nenhum. Fazem-me sentir ansiosa, deprimida, morta por dentro,
mentalmente instável. Mas apoio totalmente qualquer pessoa que os assuma
como uma adição maravilhosa e profunda para a sua vida.”
Embora se descreva a si mesma como uma “abstinente ludita”, Smith
acredita que esta é a altura certa para olharmos para a forma como usamos a
tecnologia. “Que impacto esse aparelhinho no seu bolso tem nas suas
relações íntimas com as outras pessoas?”, perguntava ela. “«Que impacto
está a ter no seu comportamento enquanto cidadão de uma sociedade?
Talvez nenhum! Talvez não haja qualquer problema. Mas, e se houver? Será
que precisamos dele à noite, pousado ao lado da nossa almofada? Será que
os nossos filhos de 7 anos precisam de telemóvel? Será que lhes queremos
transmitir a nossa dependência e obsessão? Temos de pensar bem em tudo
isto. Não podemos simplesmente deixar que sejam as empresas de
tecnologia a decidirem por nós.”
Utilizo o meu telemóvel muito mais do que a Zadie Smith, apesar disso
– ou talvez por isso –, partilho muitas das ansiedades dela. E existem alguns
sinais de que até aqueles que trabalham nas empresas tecnológicas também
se preocupam com o assunto, o que significa que devíamos ficar ainda mais
preocupados com o caminho para onde nos estão a levar essas empresas
estupidamente poderosas. Por exemplo, sabe-se (pelo menos desde que o
The New York Times o noticiou, em 2011) que muitos funcionários da Apple
e da Yahoo! escolheram matricular os filhos em escolas que evitama
tecnologia, como a Waldorf School da Peninsula, em Los Altos.
Também há vários especialistas em tecnologia que têm vindo a público
alertar para os perigos de certas coisas que eles próprios ajudaram a criar.
Justin Rosenstein, o inventor do botão Like no Facebook, disse que a
tecnologia é tão viciante que o obrigou a ativar no seu telemóvel a opção de
controlo parental – que o impede de descarregar aplicações e restringe a
utilização das redes sociais. E, um pouco à margem disto, talvez valha a
pena mencionar que a função “Gosto” do Facebook ajuda os analistas de
dados a perceberem quem nós somos. Os nossos “Gostos” online são
reveladores de tudo, desde a nossa orientação sexual às crenças políticas, e
podem ser recolhidos para que sejamos posteriormente influenciados, como
ficou demonstrado pelo escândalo da Cambridge Analytica, em 2018. Nos
relatórios sobre o caso, alega-se que cerca de 50 milhões de utilizadores do
Facebook viram os seus dados pessoais ilegalmente coligidos e usados pela
empresa britânica que procura auxiliar grupos empresariais e partidos
políticos a “alterar o comportamento do público”.
“É bastante comum que os humanos desenvolvam coisas com a melhor
das intenções e que essas coisas acabem por ter consequências imprevistas e
negativas…”, disse Rosenstein ao The Guardian, em 2017, como se fosse
um Dr. Frankenstein dos nossos dias. “Anda toda a gente distraída,
sempre.”
Dois dos fundadores do Twitter também expressaram os seus remorsos.
Evan Williams, que abandonou o cargo de diretor-executivo em 2010, disse
ao The New York Times, em 2017, que estava insatisfeito pela ajuda dada
pelo Twitter à eleição de Donald Trump como presidente. “O papel do
Twitter nisso é algo de muito mau.” Outro dos cofundadores do Twitter, Biz
Stone, revelou outro tipo de arrependimento. Numa entrevista à Inc., disse
que o Twitter teria infletido na direção errada quando permitiu que as
pessoas assinalassem outras pessoas nos posts, criando-se assim um
ambiente propício para o bullying. De acordo com o Buzzfeed, outro
funcionário da empresa chamou ao Twitter “um frasco de mel para os
idiotas”.
No início de 2018, Tim Cook, chefe-executivo da Apple, disse, perante
uma plateia de estudantes de Essex, Inglaterra, que as crianças (como o seu
sobrinho) não deviam estar numa rede social ou sobrecarregarem-se de
tecnologia, o que só vem demonstrar que este tema não é apenas
preocupante para os luditas.
Na verdade, um grupo de ex-funcionários de empresas tecnológicas foi
ainda mais longe, criando o Centro para a Tecnologia Humana, cuja missão
visa “realinhar a tecnologia com os superiores interesses da humanidade” e
reverter a “crise de atenção digital”.
Agora, finalmente, já há muitos exemplos de pessoas ligadas à
tecnologia que se encontram para debater as preocupações em relação a este
tema. Na conferência Truth About Tech (A Verdade sobre a Tecnologia),
realizada em 2018, em Washington, o painel de oradores incluiu Tristan
Harris, antigo especialista em ética da Google e agora é um dos principais
ativistas na área da tecnologia, ou Roger McNamee, um dos primeiros
investidores do Facebook, bem como políticos e membros de grupos de lóbi
como o Common Sense Media, todos unidos na tentativa de combater o
vício tecnológico entre os mais jovens. Foram várias as preocupações
abordadas, como o modo utilizado pelo Gmail da Google para “sequestrar”
a mente ou como o Snapchat explora a amizade entre os adolescentes para
fomentar o vício tecnológico, através de funcionalidades como as Snapchat
streaks, através da qual os utilizadores podem ver quantas interações por dia
tiveram com os amigos. Segundo o The Guardian, Harris comparou o
mundo das empresas de tecnologia ao velho Oeste, no sentido em que o
sistema de valores se resume a “construir um casino onde se quiser”. Já
MacNamee comparou-o às indústrias do tabaco e da alimentação do
passado, quando os cigarros eram publicitados como saudáveis ou os
fabricantes de refeições prontas a comer se esqueciam de referir que os
produtos estavam carregados de sal. Mas há uma diferença entre estes
mundos. Relativamente ao vício do tabaco, por exemplo, os cigarros não
tinham qualquer informação sobre as pessoas que os fumavam. Os cigarros
não recolhiam dados. Um cigarro não nos conhecia melhor do que a nossa
família. Mas com a Internet, não é bem assim; a rede pode ficar a saber tudo
sobre nós. Pode saber quem são os nossos amigos, conhecer os nossos
gostos musicais, saber as nossas preocupações com a alimentação, a nossa
vida amorosa, as nossas orientações políticas; e as empresas ligadas à
Internet bem podem continuar a usar estas informações para tornarem os
seus produtos ainda mais viciantes. E, segundo alertam os especialistas em
tecnologia, a questão é que, por enquanto, não há leis regulação que as
impeçam de o fazer.
As preocupações veiculadas por estes especialistas são reforçadas por
uma cada vez maior quantidade de pesquisas. Por exemplo, estudos
mostram que a tecnologia contribui para um estado de “atenção parcial
contínua” e de como isso pode ser viciante. Um estudo de 2017 da
McCombs School of Business, da Universidade do Texas, concluiu que a
simples presença do nosso smartphone pode reduzir a “capacidade
cognitiva”.
Na altura em que escrevo isto, ainda não existe um reconhecimento
oficial de que o “vício do smartphone” ou o “vício das redes sociais” são
perturbações mentais, embora o facto de a Organização Mundial da Saúde
ter passado a classificar oficialmente a compulsão em videojogos como um
problema de saúde mental sugira a existência de uma perceção crescente
sobre o modo como a tecnologia pode afetar seriamente a nossa saúde
mental. Mas esse novo entendimento tem ainda um longo caminho a
percorrer, e está claramente atrasado em relação à velocidade
desorientadora das mudanças tecnológicas.
Porém, a pressão está a aumentar. Em 2018, por exemplo, a CNN
noticiou que a gigante Unilever ameaçou retirar os seus anúncios do
Facebook e do Google, caso as empresas não se envolvam no combate aos
problemas tóxicos – incluindo as questões relacionadas com a privacidade
online, os conteúdos pouco recomendáveis ou a falta de proteção das
crianças – que estão a “minar a confiança social, provocando danos aos
utilizadores e pondo em causa as democracias”. Há uma consciência cada
vez maior de que o gigantesco poder das empresas da Internet deve estar
ligado, como acontecia ao Homem-Aranha, a um enorme sentido de
responsabilidade. Porém, é questionável quanta desta responsabilidade é
que essas empresas acabarão por assumir sem que haja uma verdadeira
pressão financeira e social, semelhante à que agora começa a aparecer. Tal
como aconteceu com as indústrias da comida rápida, dos cigarros ou das
armas, as empresas que lucram com determinada coisa podem ser as mais
relutantes em encarar os potenciais problemas. Por isso, quando os
primeiros a acionar o alarme são os que estiveram e estão por dentro, talvez
devêssemos escutá-los com muita atenção.
11.

O detetive do desespero
“Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas”
T. S. Eliot, A Terra Devastada
Tomada de consciência
AOS 24 ANOS, quando fiquei doente pela primeira vez – quando “avariei”
–, o mundo tornou-se mais acutilante. Era uma acutilância quase dolorosa.
Subitamente, as sombras ganharam espessura, o cinzento das nuvens estava
mais carregado, a música era mais barulhenta. Despertei para tudo o que
antes me passara despercebido. Passei a notar as coisas do mundo moderno
que me faziam sentir pior. Coisas que, provavelmente, fazem com que nos
sintamos pior. Sentia a desgastante pressão da publicidade, a loucura
frenética das hordas de transeuntes e do trânsito automóvel, a natureza
sufocante das expectativas sociais.
Há muita coisa que podemos aprender quando estamos doentes para
vivermos melhor quando estamos saudáveis.
Mas, quando estou bem, esqueço-me destas coisas. O truque é
agarrarmo-nos a este conhecimento. Transformar a recuperação em
prevenção. Viver como vivo quando estou doente, mas sem estar doente.
Esperança
HÁ ALGUNS FATORES que afetam a nossa saúde mental que são genéticos,
acabando, assim, por estar associados aos circuitos químicos do cérebro de
cada indivíduo. Não há grande coisa que se possa fazer quanto ao que
herdamos no nosso código genético. Por isso, é mais interessante
centrarmos as nossas atenções naquilo em que podemos intervir: os aspetos
transitórios, ou seja, os gatilhos que desencadeiam determinados efeitos e
que se vão alterando com a passagem do tempo e as mudanças nas
sociedades.
Outras épocas da história também tiveram, obviamente, as suas próprias
crises de saúde mental. Mas o facto de os nossos antepassados terem tido os
seus próprios problemas não deve implicar complacência relativamente à
cultura da nossa época.
E o melhor – e mais libertador – deste ponto é que se a nossa ansiedade
for, em parte, resultado da nossa cultura, então isso significa que também
pode ser algo que conseguimos mudar, alterando o modo como reagimos a
essa cultura. Na verdade, nem sequer precisamos de mudar nada de modo
deliberado. A mudança pode acontecer apenas pelo facto de tomarmos essa
consciência.
Muitas vezes, ao ficarmos conscientes de qualquer coisa, estamos já a
encontrar a solução de que precisamos.
O detetive do desespero
CREIO QUE O MUNDO vai ser sempre caótico. E que eu vou ser sempre
caótico. Talvez o leitor também seja caótico. Mas, e esta parte é muito
importante para mim, eu acredito que é possível ser-se caoticamente feliz.
Ou, pelo menos, ser-se um caos ligeiramente menos infeliz. Sermos um
caos com que possamos lidar. “Em todo o caos há um cosmos, em toda a
desordem uma ordem secreta”, disse Carl Jung.
O caos não é assim tão problemático. Como já devem ter reparado,
estou a tentar falar do estado caótico do mundo e do estado caótico das
nossas mentes num livro deliberadamente caótico. Ou, pelo menos, é essa a
minha desculpa para apresentar estes fragmentos de forma que, uma vez
unidos, possam fazer sentido como um todo. Espero que isto faça algum
sentido. Ou então, se não fizer sentido, que essa falta de sentido possa levar-
vos a pensar em algumas coisas.
O problema não reside no estado caótico do mundo, mas na esperança
de que o mundo seja diferente do que é. Passam-nos a ideia de que
controlamos tudo. De que podemos ser qualquer coisa e ir a qualquer lugar.
Dizem-nos que, por vivermos num mundo com livre-arbítrio, devíamos ser
capazes de escolher os sítios a que vamos online, ou escolher aquilo a que
assistimos na televisão, ou decidir qual das milhentas receitas disponíveis
vamos experimentar. Mais do que isso, dizem-nos que devíamos ser
capazes de escolher o modo como nos sentimos. Por isso, quando não
sentimos o que queremos sentir, ou aquilo que esperam que nós sintamos,
essa discrepância torna-se confusa e desanimadora. Porque não
conseguimos ser felizes perante a hipótese de podermos escolher tanta
coisa? E porque me sinto triste e preocupado quando, na verdade, não tenho
qualquer razão para me sentir triste e preocupado?
Mas a realidade é ligeiramente diferente desta linearidade. Quando
adoeci pela primeira vez, mesmo logo no início, nem sequer sabia o que
tinha, quanto mais saber o que provocava aquilo. Não compreendia
minimamente o inferno a que tentava escapar; apenas sabia que queria sair
dali. Se tivermos a perna a arder, não sabemos qual é a temperatura das
chamas. Só sabemos que está a doer muito.
Mais tarde, os médicos colocam rótulos nas coisas. “Ataque de pânico”,
“perturbação da ansiedade generalizada” e “depressão”. Estes rótulos,
embora assustadores, foram também importantes, pois deram-me uma base
com a qual podia trabalhar. Deixei de me sentir um extraterrestre. Era um
ser humano com doenças próprias dos humanos, doenças que milhões de
seres humanos já tiveram, doenças que a maior parte das pessoas conseguiu
superar, ou, então, com as quais tiveram de aprender a lidar.
Mesmo depois de saber os nomes das minhas doenças, continuei a
acreditar que todas tinham germinado do meu interior. Estavam ali, dentro
de mim, da mesma forma que o Grand Canyon também estava gravado na
minha memória geográfica; eram algo fixo, sobre o qual não podia fazer
nada.
Nunca mais poderia apreciar música. Ou comida. Ou livros. Ou
conversas. Ou a luz do sol. Ou cinema. Ou férias. Ou fosse o que fosse. Eu
estava podre, podre até ao âmago, podre como um, como uma, como… –
nunca haverá uma metáfora adequada para a depressão – uma árvore
doente. Uma árvore doente a quem a namorada e os pais estavam sempre a
repetir “tu vais ficar bem, vamos descobrir uma forma de ficares bem”.
E, claro, apareceram várias soluções. Experimentei os comprimidos
(diazepam) prescritos por um médico. Experimentei as várias infusões
receitadas por um homeopata. Experimentei os conselhos dados por amigos
e família. Experimentei erva-de-São-João e óleo essencial de lavanda.
Experimentei comprimidos para dormir. Experimentei falar com linhas de
apoio telefónico. Depois, parei de experimentar. Passei por uma fase em
que o diazepam me provocava pesadelos e acabou por ser um pesadelo
ainda maior tentar livrar-me daqueles comprimidos. Provavelmente devia
ter tentado outro tipo de medicação, mas não o fiz. Pensem o que quiserem,
mas não era dono do meu raciocínio. Para complicar a situação, estava
assustado, ou melhor, estava profundamente aterrorizado com a ideia de
tomar mais comprimidos ou de procurar outras ajudas, após tanta coisa ter
falhado.
Quando falei desta fase no livro Razões para Viver, algumas pessoas
acharam que me estava a manifestar contra os comprimidos, pelo que, desta
vez, quero deixar uma coisa bem clara: não sou contra os medicamentos.
Embora ainda subsistam uma série de pontos de interrogação a que as
empresas farmacêuticas e os investigadores científicos estão a tentar
responder (o que é algo inerente à pesquisa científica), tenho consciência de
que os medicamentos já salvaram muitas vidas. Conheço pessoas que me
dizem que não sobreviveriam sem comprimidos. E até acredito que,
provavelmente, haveria outra medicação que me poderia ter ajudado, eu é
que não a descobri. No entanto, não acredito que os comprimidos sejam a
solução completa. E também acredito que alguns medicamentos mal
receitados podem levar as pessoas a sentirem-se pior, embora isso possa
acontecer com quase tudo. Podem muito bem receitar-nos comprimidos
errados para a nossa artrite ou para a nossa doença de coração. Por isso,
parece-me até algo do senso comum defender que os medicamentos não são
a única solução. Raramente são. Se sofrermos de inflamações articulares, o
ioga, a natação e a exposição solar podem ser benéficos, tal como os
medicamentos também podem ser úteis. Não se trata de uma questão de um
ou outro. Temos de descobrir o que funciona connosco. No meu caso, temos
de acrescentar o facto de eu estar traumatizado e de nem sequer conseguir
pensar devidamente.
Nessa altura, experimentar coisas que não funcionavam só piorava a
minha vida. Como disse, até podia existir o tratamento adequado para o
meu caso – fosse terapia ou medicação –, mas eu não tive a sorte de o
encontrar. Não tive a coragem de ir à procura da solução. A dor era tão
grande que eu praticamente só tinha forças para tentar manter-me vivo. Na
minha cabeça, não podia arriscar a sair um milímetro ou um grama daquilo
que já conhecia. Cada dia parecia um teste: viver ou morrer? Sei que isto,
assim descrito, parece um pouco ridículo, mas era essa a realidade em que
eu vivia. Todas as tentativas de combate ao turbilhão instalado no interior
da minha cabeça tinham falhado. E, verdade seja dita, os médicos que
consultei acabaram por não se mostrar lá muito compreensivos. Porém,
quero crer que, desde o início deste século, as coisas, em muitos aspetos, já
terão evoluído.
De qualquer forma, ali estava eu, no fundo do poço, sem vislumbrar um
caminho ou escapatória, a tentar descobrir como poderia fugir dali.
Tal como muitas outras pessoas em situações semelhantes, acabei por
me transformar numa espécie de detetive que precisava de resolver um caso
de homicídio. A princípio, não existiam pistas, pelo menos evidentes a olho
nu. Cada dia no fundo do poço era um inferno. Mesmo durante as primeiras
semanas e meses, cada dia incluía momentos de uma dor emocional tão
intensa que bastava isso para matar qualquer esperança de que me poderia
livrar daquele inferno. Mas, depois, comecei a perceber que a dor, embora
estivesse dentro de mim, era muitas vezes provocada por estímulos
externos. E esse pensamento deixava-me melhor, melhor do que alguma vez
me sentira com todas as outras soluções que experimentara. Mais tarde,
percebi que certas coisas podiam fazer com que me sentisse pior: bebidas
alcoólicas, cigarros, música alta, multidões. O mundo entra em nós. Seja o
que for que estivermos a fazer, ele entra em nós. Só que eu não dera conta
disso, até ter ficado doente.
Nota para mim
MANTÉM A CALMA. Não fiques parado. Mantém-te humano. Continua a
insistir. Continua a ter desejos. Continua a aperfeiçoar-te. Continua a olhar
pela janela. Mantém o foco. Mantém-te livre. Continua a ignorar os trolls.
Continua a ignorar os anúncios pop-up e os pensamentos que te surgem
espontaneamente na cabeça. Não tenhas medo de cair no ridículo. Mantém-
te curioso. Mantém-te detentor da tua verdade. Continua a amar. Continua a
permitir-te essa prerrogativa humana de cometer erros. Constrói um muro
em redor do teu espaço. Continua a ler. Continua a escrever. Mantém o teu
telemóvel à distância de um braço. Não percas a cabeça, quando anda toda a
gente a perdê-la. Continua a espantar-te. Continua a respirar a própria vida.
Continua a lembrar-te do que o stress te pode fazer.
(Continua a lembrar-te daquele dia no centro comercial.)
O medo e as compras
ESTAVA NUM CENTRO COMERCIAL. A chorar.
Aos 24 anos, rodeado por uma multidão e lojas e sinais luminosos,
senti-me incapaz de lidar com o que me estava a acontecer.
– Não… Não consigo fazer isto – sussurrei, entre a respiração
descompassada.
– Matt?
Aquilo era um teste. Ir com a Andrea, então minha namorada, até à
cidade mais próxima do local onde os pais dela moravam (Newcastle, no
norte de Inglaterra), apenas para fazer algumas compras. Nem fazia ideia do
que era suposto irmos comprar. Estava exclusivamente concentrado em não
ter um ataque de pânico enquanto íamos às compras. Estava concentrado
em ser igual às pessoas normais.
– Desculpa, não consigo, eu…
Ali estava eu, e tudo aquilo era tão patético. Eu, um jovem adulto, num
mundo que sempre me mostrara – desde a televisão ao campo de jogos –
que um homem era forte e duro que aguentava a dor sem chorar; num
mundo que mostrava que sermos jovens consistia em sermos alegres e
divertirmo-nos muito nessa resplandecente terra da juventude. E ali estava
eu, supostamente na melhor altura da minha vida, a choramingar por coisa
nenhuma no meio de um centro comercial. Pois bem, não era chorar por
nada. As minhas lágrimas deviam-se à dor que eu sentia. E ao terror que
estava a sentir. Uma dor e um terror que ficara a conhecer um mês antes,
ainda a trabalhar em Espanha, quando tive um ataque de pânico que nunca
chegou propriamente a terminar, fundindo-se com um sentimento
indescritivelmente forte de desespero, pavor e mal-estar que parecia
corroer-me até aos ossos.
O desespero tornou-se tão forte que quase me custou a vida. Parecia não
haver fuga possível. E, mesmo que a morte fosse assustadora, aquele terror
vivo parecia ainda pior. Toda a gente tem o seu limite: aquele ponto em que
já não aguenta mais. E, de repente, quase inesperadamente, eu atingi o meu.
– Está tudo bem – dizia-me a Andrea, a segurar a minha mão, naquele
momento mais uma mãe ou uma enfermeira do que a minha namorada.
– Não, não está. Desculpa. Desculpa.
– Tomaste o comprimido esta manhã?
– Sim, mas não está a funcionar.
– Vai ficar tudo bem. Isso é só pânico.
Só pânico.
O olhar preocupado dela apenas piorava a situação. Já a fizera passar
por tanto… Eu só precisava de dar um passo e caminhar. Caminhar e falar e
respirar como uma pessoa normal. Não era assim tão difícil. Não era como
lançar um foguetão com destino à Lua. Mas parecia.
– Não consigo.
O rosto da Andrea assumiu uma expressão mais áspera. Via-se pela
rigidez do queixo e da boca que até ela tinha limites. Estava zangada
comigo, para o meu bem.
– Tu consegues.
– Não, Andi, não consigo mesmo. Porra, tu não compreendes.
As pessoas que passavam em todas as direções, carregadas com os sacos
de compras, olhavam de soslaio para nós.
– Respira com calma, vá. Respira profundamente.
Tentei inspirar profundamente, mas parecia-me que o ar nem chegava
aos pulmões.
– Eu… eu… eu… Falta-me o ar.
Nesse mesmo dia, mais cedo, não estive assim tão mal. Sentia apenas
um ligeiro desespero que nunca desaparecia. Mas, durante o trajeto de
autocarro até à cidade, o medo entranhou-se em mim, como se me
estivessem lentamente a enrolar num cobertor cheio de ácaros.
No centro comercial, era como se o terror se tivesse apoderado do meu
corpo.
Estava paralisado junto à porta de uma loja, rodeado de pessoas; ainda
assim, sentia-me sozinho. Comecei a engolir em seco, à procura de me
reorientar. O engolir de saliva compulsivo era um dos pequenos sinais da
perturbação obsessiva-compulsiva que eu acabei por desenvolver. Mas,
naquele momento, até desejava que esse sintoma me pudesse distrair,
mantendo-me afastado de algo ainda pior. Mas não resultou.
Não havia esperança. Não havia fuga possível. A vida era para os
outros.
Tinha conseguido segurar o mundo, mas naquele instante ele estava
novamente a desabar sobre mim. E a voz da Andrea, a última réstia de
esperança, a voz que tentava chegar até à pessoa que eu já não era, parecia-
me cada vez mais distante.
Só temos uma mente
SEMPRE QUE PENSO naquele episódio do centro comercial, um de muitos
semelhantes em que o meu cérebro se torna numa espécie de cenário de
guerra, procuro dissecá-lo. Vasculho o meu passado de forma a aceitá-lo e a
aprender com ele. Não apenas aprender o modo de evitar os ataques de
pânico, mas a forma como a minha mente interage com o mundo e
descobrir como posso andar menos stressado.
O primeiro problema foi que aquele evento específico aconteceu numa
fase inicial da minha experiência com a ansiedade e a depressão. Quando se
tem um primeiro surto de doença mental, pensa-se que, dali em diante, a
nossa vida vai passar a ser sempre assim. Vamos ficar com uma depressão,
pontuada por ataques de pânico, e as coisas nunca hão de mudar. Era
aterrador imaginar que seria esse o meu futuro. Era uma sensação
claustrofóbica, da qual, aparentemente, não havia escapatória possível.
O segundo problema estava relacionado com o facto de eu ainda
desconhecer a maneira de tentar lidar com os ataques de pânico. Uma lição
que, diga-se, levaria anos a aprender.
O terceiro problema era eu não perceber as ligações existentes entre o
lado externo e o lado interno. Desconhecia o relacionamento próximo entre
o “aquilo que sentimos” e o “onde nós estamos”. Desconhecia que o
universo das lojas e das vendas e do marketing nem sempre é positivo para
as nossas mentes. Nos anos mais recentes, têm sido realizados muitos
estudos sobre o efeito dos ambientes externos na nossa saúde. Por exemplo,
em 2013, uma pesquisa efetuada pela Universidade de Essex, por
encomenda da Mind, uma organização sem fins lucrativos ligada à saúde
mental, comparou a experiência de andar num centro comercial com a
experiência de um “passeio na natureza” pelo parque Belhus Woods,
precisamente em Essex. Apesar de se saber que uma caminhada, seja em
ambientes fechados ou exteriores, faz bem à mente, cerca de 44% dos
inquiridos disseram ter sentido um decréscimo na sua autoestima ao
caminharem pelo centro comercial. Pelo contrário, quase 90% das pessoas
que caminharam na floresta afirmaram que sentiram um aumento da
autoestima. Como mais tarde irei mencionar, há cada vez mais estudos deste
tipo, ou seja, a apontarem os benefícios da natureza na nossa mente. Mas,
naquela altura, eu não conhecia qualquer pesquisa neste âmbito. Na
verdade, quase não havia estudos sobre o assunto.
Faz sentido que os centros comerciais não sejam locais agradáveis para
se estar. É um ambiente propositadamente cheio de estímulos, um edifício
projetado não para acalmar nem para gerar conforto, mas simplesmente
para nos levar a gastar dinheiro. Provavelmente, uma vez que a ansiedade,
muitas vezes, acaba por desencadear o consumo, não seria do interesse dos
centros comerciais que as pessoas se sentissem serenas e satisfeitas. Para os
interesses de um centro comercial, a serenidade e a satisfação devem ser um
objetivo que se alcança após a compra de algo, em vez de algo a que se
acede simplesmente por estar lá.
O quarto problema relacionava-se com o sentimento de culpa. Eu sentia-
me culpado devido aos sintomas que, na realidade, não encarava como
sintomas de uma doença. Via-os como sintomas do meu estado caótico.
Outra das lições que continuo a tentar aprender – e escrever este livro
está a ajudar-me nesse sentido – é que as distrações não funcionavam (e não
funcionam). Os centros comerciais, por um lado, são ambientes criados com
o propósito de nos distraírem; só que não me distraíam de mim próprio.
Aquela multidão de pessoas não me ajudava a ligar-me aos outros seres
humanos. Sentia-me mais solitário entre aquela gente toda do que quando
estava apenas com outra pessoa ou mesmo sozinho.
Já estava bastante familiarizado com essa tática: tentar encontrar um
tormento qualquer que me distraísse do que me estava a atormentar naquele
momento. Muitos anos antes de existir o Twitter ou a compulsão de ir
espreitar as redes sociais para anestesiar a mente, já eu sentia uma
necessidade desesperada de me distrair com qualquer coisa. Mas não servia
de nada. Os nossos sintomas aprofundam-se, caso tentemos lutar contra
eles, em vez de os acolhermos. A distração é uma tentativa de fuga que
raramente tem sucesso. Não se consegue apagar um incêndio só por
ignorarmos que ele existe; temos de reconhecer a existência do fogo para
depois o apagar. Não é a engolir saliva, ou a enviar tweets, ou a beber álcool
de forma compulsiva que vamos conseguir eliminar a dor. Chega uma altura
em que temos de a enfrentar. Temos de nos enfrentar a nós próprios. Mesmo
num mundo sujeito a um milhão de distrações, continuamos a ter apenas
uma mente.
Os manequins malévolos
QUANDO PENSO AGORA naquele ataque de pânico específico, penso no
modo como o mundo me afetou.. Na altura, ainda que não fosse de forma
totalmente consciente, eu tinha uma noção instintiva dos estímulos em meu
redor. Até os manequins na montra das lojas eram estímulos.
Ali estava eu, naquele espaço comercial fechado, artificial e
movimentado. Muito para lá de um ponto de segurança. Estava em
confronto com a minha individualidade e, ao olhar para a Andrea, percebi
que estava a entrar num processo já bem conhecido: estava prestes a
estragar o nosso dia.
Fechei os olhos, na tentativa de escapar aos estímulos do centro
comercial, mas só via monstros e demónios, num repositório mental de
imagens mais horrendas do que qualquer hidra ou ciclope. Um piscar de
olhos era suficiente para mergulhar imediatamente no meu submundo de
criaturas abomináveis.
– Vá lá, tu consegues. Respira profundamente.
Tentei fazer o que a Andrea me dizia: respirar profundamente. Só que o
ar não parecia ar. Era como se não sentisse o ar. Como se não conseguisse
sentir-me a mim mesmo.
Passei a mão pelos olhos para limpar as lágrimas.
Do lado oposto do corredor, havia uma loja de roupas. Não me recordo
da marca, mas lembro-me perfeitamente, pois ficou gravado na minha
memória como um acontecimento traumático, dos manequins na montra a
envergarem vestidos de mulher. Eram daqueles manequins com cabeça
cinzenta, sem cabelos, com linhas no rosto que sugeriam olhos e nariz meio
abstratos. Manequins sem boca, estáticos, em poses pouco naturais.
O ar deles parecia-me profundamente malévolo. Como se fossem seres
sencientes que não só sabiam da minha dor, como também eram parte dessa
dor. Como se fossem parcialmente responsáveis pela minha dor.
De facto, durante os meses e anos que se seguiram, a sensação de que
certas partes do mundo continham uma qualquer maldade secreta capaz de
nos impor uma enorme dor e desespero, tornou-se um aspeto fundamental
da minha ansiedade e da minha depressão. Podia encontrar essa maldade
num rosto sorridente de revista. Ou nas luzes traseiras dos carros, que
naquele vermelho arrastado se assemelhavam a olhos diabólicos. Ou na
intensa luminosidade azulada de um ecrã de computador.
E, claro, podia encontrar essa maldade no eco sinistro de humanidade
que emanava dos manequins das montras.
Certo dia, quando me sentisse preparado para enfrentar a minha dor,
esta sensibilidade extrema poderia vir a ser útil. Poderia ajudar-me a
entender que, se as coisas externas eram capazes de ter um impacto
negativo em mim, então, outras coisas externas poderiam ter um impacto
positivo. Mas, naquela altura, só estava preocupado com a possibilidade de
estar a perder a minha sanidade.
Estava convencido de que não tinha sido feito para viver na realidade do
nosso mundo. E, de certa maneira, tinha razão. Não tinha sido criado para o
nosso mundo. Fui criado, tal como as restantes pessoas, pelo mundo. Fui
criado pelos meus pais, pela cultura, pela televisão, pelos livros, pela
política, pela escola e talvez até pelos centros comerciais.
Portanto, das duas, uma: ou precisava de um novo eu, ou precisava de
um novo planeta. Mas não sabia como poderia encontrar qualquer um deles,
o que motivou tendências suicidas.
– Tenho de sair daqui – disse, a esfregar os olhos como uma criança
perdida no supermercado.
O termo usado era tão abrangente que tanto podia significar sair da
minha cabeça como sair deste planeta. Mas, claro, naquele momento
significava apenas que eu queria sair do centro comercial.
– Está bem, está bem – concordou a Andrea. Ela estava mesmo ao meu
lado, mas, ao mesmo tempo, parecia estar a milhares de quilómetros de
distância. Depois, olhou em redor, à procura da saída mais próxima. – Por
aqui.
Saímos para o exterior, fomos inundados pela luz natural e regressámos
a casa dos pais da Andrea; fui logo deitar-me na cama que fora da Andrea e
disse aos pais dela que me doía a cabeça, pois uma dor de cabeça era mais
fácil de entender do que o ciclone invisível que rodopiava dentro de mim.
Pois bem, durante semanas e meses, continuei a sofrer, umas vezes
mais, outras menos, até que comecei a melhorar. E, ainda mais importante,
a perceber.
Um desejo
GOSTAVA MUITO de conseguir explicar uma coisa ao meu eu mais novo.
Gostava de lhe poder dizer que aquilo não era só eu. Quem me dera poder
dizer-lhe que havia coisas que eu podia fazer. Porque a minha ansiedade, a
minha depressão, não se limitavam a estar ali. Muitas vezes, a doença, tal
como uma ferida, tem um contexto.
Frequentemente, quando caio num estado de desespero ou nervosismo
mental e a minha cabeça fica cheia de pensamentos indesejáveis que não
consigo refrear, isso resulta de uma sequência de coisas. Quando faço
demasiado, penso demasiado, absorvo demasiado, como demasiado mal,
durmo pouco, trabalho demasiado ou fico demasiado extenuado pela vida,
então o resultado é certo.
Repetidas lesões de esforço mental.
Como viver no século XXI sem ter um ataque de
pânico
1. Vigie-se. Seja seu amigo. Seja seu progenitor. Seja afetuoso consigo.
Analise o que anda a fazer. Será que precisa mesmo de ver o último
episódio da série quando já passa da meia-noite? Será que precisa
mesmo do terceiro ou quarto copo de vinho? Será que isso vai
realmente ao encontro do que é bom para si?

2. Liberte espaço na sua mente. A sobrecarga gera pânico. Neste mundo


sobrecarregado de estímulos, é preciso criar um filtro. Precisamos de
simplificar tudo. Por vezes, precisamos de desligar. Precisamos de
deixar de estar sempre a olhar para o telemóvel. Precisamos de
momentos em que o pensamento esteja livre do trabalho. Temos de
fazer uma espécie de feng shui mental.

3. Ouça sons acalmantes. Coisas que sejam menos estimulantes do que a


música. O som das ondas, da sua respiração, da brisa nas folhas das
árvores, o ronronar de um gato e, melhor ainda, o barulho da chuva.

4. Deixe acontecer. Quando começamos a sentir o pânico a aumentar, a


reação instintiva é ficarmos ainda mais em pânico. Entramos em
pânico por causa do pânico. Um metapânico. O truque é tentar sentir o
pânico sem entrar em pânico por causa disso. Parece quase
impossível, mas não é. Eu tinha uma perturbação de pânico, um
problema de saúde mental que não se fica pelos ocasionais ataques de
pânico, correspondendo a ataques de pânico frequentes e ao medo
infernal e permanente do próximo ataque. Na altura em que já
acumulara centenas de ataques de pânico, comecei a achar que era eu
que os queria ter. Não era, obviamente. Mas costumava esforçar-me
bastante na tentativa de invocar o pânico, numa espécie de teste, para
ver como conseguia lidar com o ataque. E, quanto mais vezes
convidava o pânico para ficar comigo, menos queria tê-lo por perto.

5. Aceite o que estiver a sentir. E aceite que as suas sensações não


passam disso mesmo: sensações.

6. Não se atire ferozmente à vida. “Deveríamos tocar na vida, em vez de


a estrangular”, disse o escritor Ray Bradbury.

7. Não há problema em libertar o medo. O medo apenas tenta mostrar a


sua utilidade, procura dizer-nos que nos protege. Tentem aceitar o
medo mais como um sentimento e menos como uma informação
válida. “Antes de aprender a ter, deviam-nos ensinar o desapego”,
disse igualmente Bradbury.

8. Tenha consciência do sítio onde se encontra. Está num ambiente com


demasiados estímulos? Há algum sítio mais calmo para onde possa ir?
Há algum espaço verde para onde possa olhar? Nos centros das
cidades, as lojas ao nível da nossa visão são um cenário mais intenso
do que o topo dos edifícios. Olhe para cima. Ver o céu ajuda.

9. Faça exercício e alongamentos. O pânico tem tanto de físico como de


mental. Para mim, a corrida e o ioga são os exercícios que mais me
ajudam. Especialmente o ioga. O meu corpo fica encolhido, após
tantas horas curvado sobre o portátil, e o ioga ajuda-me a alongá-lo.

10. Respire. Respire de forma profunda, pura, suave. Concentre-se na


respiração. A respiração representa o ritmo a que leva a vida; é o
ritmo da sua canção pessoal. É a forma de regressar ao centro de
tudo. Ao centro de si próprio, quando o mundo quer é levá-lo noutras
direções. Respirar foi a primeira coisa que aprendemos a fazer. É a
coisa mais simples e essencial que fazemos. Termos consciência da
nossa respiração é lembrarmo-nos de que estamos vivos.
12.

O corpo pensante
Quatro humores
HÁ MUITO TEMPO, na Grécia Antiga, os médicos referiam-se ao corpo
humano como possuindo “quatro humores”. Cada problema de saúde podia
ser atribuído ao excesso ou à falta de um de quatro fluídos corporais:
sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra.
Na era do Império Romano, estes quatro humores passaram a
corresponder a quatro temperamentos. Por exemplo, quem tivesse acessos
de raiva seria diagnosticado como tendo demasiada bílis amarela, que
correspondia ao humor do fogo. Se dissermos a alguém para lavar a cara
com água fria, estamos a dar um conselho de saúde vindo da Roma Antiga.
Se alguém se sentisse deprimido ou melancólico isso devia-se a uma
sobredosagem de bílis negra. Na verdade, a palavra “melancolia” deriva,
pelo latim, das palavras gregas melas (negro) e kholé (bílis).
Este sistema de divisão não parece nada científico. Mas, de certa forma,
era bastante avançado para a época, principalmente por não fazer uma
distinção entre saúde mental e saúde física.
Devemos essa divisão especialmente ao filósofo René Descartes, que
acreditava na separação do corpo e da mente enquanto entidades distintas.
Por volta de 1640, Descartes defendeu que o corpo funcionava como uma
máquina irracional e que a mente, pelo contrário, tinha uma natureza
imaterial.
As pessoas adoraram a ideia. Foi um sucesso. Um sucesso que ainda
hoje tem influência na nossa sociedade.
Mas esta separação não faz muito sentido.
A saúde mental está intrinsecamente ligada ao corpo todo. E o corpo
todo está intrinsecamente ligado à saúde mental. Não podemos traçar uma
linha entre corpo e mente, tal como não podemos traçar uma linha entre
dois oceanos. Ambos estão interligados.
Sabemos que o exercício físico tem um impacto positivo em todos os
tipos de questões mentais, desde a depressão à perturbação de
hiperatividade e défice de atenção. Tal como se sabe que as doenças físicas
têm efeitos a nível mental. A gripe pode causar alucinações. Um
diagnóstico de cancro pode levar à depressão. A asma pode causar um
ataque de pânico. Um ataque cardíaco pode ser mentalmente traumático. Se
o stress provocar dores nas costas – ou um zumbido nos ouvidos, ou dores
no peito, ou um sistema imunitário enfraquecido, ou dores de estômago –,
isso será um problema físico ou mental?
Creio que temos de deixar de encarar a saúde física e a saúde mental
como uma questão de uma ou outra. Não existe diferença entre elas; é uma
e outra. Somos seres mentais e físicos; não podemos ser divididos em
secções independentes. Não somos um grande armazém existencial. Somos
tudo ao mesmo tempo.
Entranhas
O CÉREBRO TEM FORMA FÍSICA.

Além disso, os pensamentos não resultam apenas do cérebro. De acordo


com o que o neurocientista Guy Claxton escreve em Intelligence in the
Flesh, “o corpo, as entranhas, os sentidos, o sistema imunitário e o sistema
linfático interagem de forma tão instantânea e complexa com o cérebro que
não podemos traçar uma linha à volta do pescoço e dizer ‘acima desta linha
é só inteligência e abaixo desta linha é tudo subalterno’. Nós não temos
corpos. Nós somos corpos.”
Depois, temos a questão do “pequeno cérebro”, uma rede de 100
milhões de neurónios (células nervosas) situada no nosso estômago e
intestino. Tudo bem, fica muito distante dos cerca de 85 mil milhões de
neurónios do nosso “cérebro principal”, mas isso não é razão para não lhe
darmos atenção. Estes 100 milhões de neurónios são sensivelmente o que
um gato tem dentro da sua cabeça.
Quando temos “borboletas na barriga” antes de uma entrevista de
emprego, ou quando nos atrasamos na hora da refeição e sentimos fome,
isso é o nosso “cérebro secundário” a falar com o cérebro principal.
Por outras palavras: a ideia da saúde mental estar separada do nosso ser
físico é tão antiquada como a longa peruca que Descartes usava.
Ainda assim, continuamos a sofrer os efeitos desta divisão. O mundo do
trabalho está separado entre trabalhos físicos e trabalhos intelectuais. Há os
empregos qualificados, que requerem aquilo a que geralmente chamamos
de inteligência e “educação superior”, e os empregos menos valorizados, de
“baixa qualificação”, geralmente associados ao trabalho manual. Os
executivos e os operários; o fato e gravata e o fato-macaco.
Há inteligência no movimento. Inteligência para dançar. Inteligência
para praticar desporto. Porém, começamos logo a dividir as pessoas, desde
a idade escolar e sem pensarmos muito nisso, entre os tipos desportivo e
intelectual. Os atletas e os génios. E isto, mais tarde, acaba por determinar a
escolha da profissão, resultando num trabalho manual menos bem pago ou
num trabalho mais bem pago a olhar para folhas de cálculo. A nossa cultura
também está dividida entre inferior e superior. Livros que nos façam rir ou
que nos ponham o coração aos pulos são vistos como menos importantes do
que os livros que nos façam “pensar”.
Quanto mais olharmos para a linha traçada entre a mente e o corpo,
mais ela nos parecerá sem sentido; no entanto, o nosso sistema de saúde
baseia-se nessa linha. E não é apenas o sistema de saúde; é toda a
sociedade. Somos nós todos. Chegou o momento de mudarmos isto.
Chegou o momento de voltarmos a juntar as duas partes. Chegou o
momento de aceitarmos o ser humano como um todo.
Uma nota à margem sobre o estigma
NÃO SOMOS ENCORAJADOS a falar sobre a nossa saúde mental, pelo menos
até à altura em que temos um problema mental, como se tivéssemos de
fingir que somos perfeitamente saudáveis. O stress não é visto com a
suficiente seriedade. Ou então, leva-se tão a sério que, hoje em dia, as
pessoas sentem vergonha de falar dos dias em que não se sentem
psicologicamente bem. Em qualquer das situações, isso faz com que cada
vez mais pessoas estejam doentes, e não apenas stressadas.
E quando ficamos realmente doentes, e talvez até com vontade de falar
do assunto, deparamo-nos com um novo estigma.
Ao contrário do que acontece com outras doenças, as perturbações
mentais são muitas vezes encaradas como uma questão específica das
pessoas em causa. Uma vez que os problemas mentais são vistos como algo
intrinsecamente diferente da normalidade, falamos deles de forma diferente,
num tom mais escandalizado. Basta pensarmos nas palavras associadas às
perturbações mentais.
Por vezes, os jornais e as revistas falam de celebridades que
“confessam” terem adições, ou depressões, ou ansiedade, ou perturbações
do comportamento alimentar como se qualquer uma dessas coisas fosse um
crime. Demasiadas vezes, encontram-se explicações para os crimes reais
com base numa perturbação qualquer – os meios de comunicação associam
frequentemente os tiroteios em massa ou os abusos sexuais a um contexto
de “problemas de saúde mental” ou a uma “adição”, em vez de ao
terrorismo ou aos crimes sexuais. Na verdade, existe uma maior
probabilidade de as pessoas com perturbações mentais poderem ser vítimas
de certos crimes.
Também não sabemos lá muito bem como abordar o tema do suicídio.
Quando se fala do assunto, a tendência é utilizar o verbo “cometer”, que
tem uma conotação ligada aos tabus ou à criminalidade, fazendo eco dos
tempos em que, de facto, o suicídio era considerado um ato criminoso.
(Recentemente, ando a tentar dizer “morte por suicídio”, mas a expressão
ainda me soa algo forçada e estranha na ponta da língua.) Muitas pessoas
têm dificuldade em lidar com a ideia de ceifarem a própria vida, pois isso
soa a todos como algo insultuoso, como se víssemos o suicídio como uma
escolha, como se alguém tivesse escolhido desistir da vida, essa coisa tão
preciosa, sagrada e frágil como um ovo de passarinho. Mas eu sei, por
experiência própria, que o suicídio não é uma escolha assim tão óbvia. Pode
ser algo que provoque temor, que apavora, e, ainda assim, algo para o qual
nos sentimos compelidos, devido aos sofrimentos causados pela vida.
Portanto, não é fácil falar deste assunto. Mas é preciso falar, pois esta
atmosfera carregada de vergonha e de silêncio, além de impedir que as
pessoas obtenham a ajuda adequada, leva a que se possam sentir cada vez
mais assustadoramente solitárias. E isso, em último grau, pode tornar-se
fatal.
O suicídio é a principal causa de morte de mulheres e homens entre os
20 e os 34 anos. É igualmente a principal causa de morte entre os homens
com menos de 50 anos (Pelo menos, no país onde vivo, a Inglaterra; mas há
outros países europeus com números igualmente negros. Nos Estados
Unidos, onde as armas de fogo contribuem para as estatísticas deprimentes,
o suicídio é a décima causa de morte, em termos globais, considerando
todos os géneros e idades, embora, tal como na Europa, no Canadá e na
Austrália, os homens tenham mais do triplo de probabilidades de se
suicidarem, quando comparado com as mulheres). Muitas vezes, estas
mortes poderiam ser evitadas. Portanto, temos de ignorar os pedidos para
“sermos homens valentes” e, em vez disso, procurarmos encontrar uma
força real dentro de nós. Uma força que permita aos homens e às mulheres
dizerem o que sentem.
Ainda hoje podemos ouvir resquícios desta vergonha histórica. Sempre
que, por exemplo, falamos de alguém recorrendo à expressão “está a lutar
com os seus demónios”, no fundo, estamos a invocar as ideias
supersticiosas da Idade das Trevas, quando a loucura era vista como uma
obra do diabo.
E, depois, há sempre a mesa conversa do ser-se corajoso; como seria
bom que, um dia, uma figura pública falasse da sua depressão sem que os
meios de comunicação usassem logo expressões como “coragem
extraordinária” ou “confissão pública”. Reconheço as boas intenções, mas
ninguém deveria ter de confessar que, por exemplo, tem uma perturbação
de ansiedade. É algo que, simplesmente, deveria poder ser dito. É uma
doença, tal como asma, sarampo ou meningite. Não é um segredo com
culpa. A vergonha que as pessoas sentem acaba por exacerbar os sintomas.
Sim, é verdade, muitas vezes as pessoas são corajosas. Mas essa coragem
não devia estar no facto de falarem sobre a doença, mas antes no facto de
viverem com ela. Sempre que alguém me diz que sou corajoso, sinto que
talvez deva ficar com medo.
Imaginem que se preparavam para a vossa caminhada relaxante na
floresta quando alguém se aproxima e vos aborda.
– Onde vais? – pergunta a pessoa.
– Vou dar um passeio à floresta – diz-lhe.
– Uau – diz ela, ofegante, dando um passo atrás.
– Uau o quê?
Uma lágrima forma-se no canto do olho da pessoa. Ela assenta a mão
sobre o nosso ombro.
– Tens muita coragem.
– Tenho?
– Tens uma coragem incrível. Na verdade, és uma inspiração.
E nós engoliríamos em seco, ficaríamos pálidos, e nunca mais teríamos
vontade de entrar na floresta.
Além disso, ainda paira no ar a ideia tóxica de que as pessoas partilham
os problemas de saúde mental só para chamarem a “atenção”.
Essa atenção que as pessoas procuram pode salvar vidas.
Nas palavras de C. S. Lewis, “a habitual tentativa de esconder a dor
mental, aumenta o fardo: é mais fácil dizer ‘dói-me o dente’ do que ‘tenho o
coração partido’”.
Devíamos tentar fazer deste mundo um lugar onde fosse mais fácil falar
dos nossos problemas. O ato de falar não serve apenas para aprofundar a
consciência sobre os temas. Os sucessos obtidos por vários tipos de
psicoterapia, conquistados ao longo do último século, são a prova evidente
de que falar sobre o assunto pode ter benefícios para a saúde. Pode,
inclusivamente, aliviar os sintomas. A exteriorização da dor e o facto de
ficarmos a saber que outros sentem o mesmo que nós, pode curar quem
conta e quem escuta.
Portanto, nunca deixem de falar.
Nunca permitam que outras pessoas vos façam sentir que, se tiverem um
problema de saúde mental, isso deve-se a uma falha ou fraqueza vossa.
Se tiverem uma perturbação de ansiedade, sabem bem que não se trata
de uma fraqueza. Quando se tem ansiedade, viver com a doença, continuar
a aparecer nos lugares e a fazer coisas requer uma força que a maior parte
das pessoas não imagina e talvez nunca precise de imaginar. Temos de
eliminar a equação que liga a condição ao doente. É preciso forjar uma
compreensão mais apurada relativamente às diferentes pressões que cada
um sente. O simples ato de entrar numa loja pode ser encarado como um
sinal de força, caso a pessoa tenha às costas uma tonelada de peso invisível.
Tabela de psicogramas
(pg = psicogramas)

Imaginem que podiam inventar uma forma de medir o peso psicológico


que cada um de nós sente. Não poderia isso ser útil na ligação entre mente e
corpo? Não ajudaria as pessoas a perceberem que o stress é algo que
realmente existe? Não nos auxiliaria a lidar com as ansiedades da vida
moderna? Façam-me a vontade: chamemos psicograma a esta unidade
imaginária.
“Oh, já atingi o meu limite diário de psicogramas. Não posso ir ver os
meus e-mails.”

Caminhar num centro comercial 1298 pg


Telefonema do banco 182 pg
Entrevista de emprego 458 pg
Ver as notícias 222 pg
Uma caixa de entrada cheia de e-mails por responder 321 pg
Um tweet nosso de que ninguém gosta 98 pg
Culpa de não irmos ao ginásio 50 pg
Culpa de não ligarmos aos nossos parentes mais próximos 295 pg
Constatar o nosso aspeto envelhecido/cansado/com peso a mais 177 pg
Medo de perder uma festa que vemos anunciada nas redes 62 pg
sociais 82 pg
Dar conta de que publicámos um tweet com um erro ortográfico 672 pg
Um sintoma preocupante que pesquisámos no Google 1328 pg
Ter de falar em público 488 pg
Ver imagens de corpos perfeitos que nunca iremos ter 632 pg
Entrar numa discussão com um troll da Internet 317 pg
Um encontro amoroso que se torna embaraçoso 815 pg
Pagar as contas dos cartões de crédito 701 pg
Perceber que é segunda-feira e que temos de trabalhar 2156 pg
Sermos substituídos por um robô no nosso posto de trabalho 1293 pg
Coisas que queríamos ter feito e não fizemos

Nota: o peso psicológico apresenta uma grande variação. O psicograma


é uma unidade de medida subjetiva.
13.

O fim da realidade
“… este choque entre a imagem que temos de nós e o que realmente
somos é, como sempre, muito dolorosa e há duas coisas que podemos fazer
sobre isso: dar um passo adiante e enfrentar o choque, tentando tornarmo-
nos no que realmente somos, ou dar um passo atrás e tentar permanecer
naquilo que pensávamos que éramos, o que não passa de uma fantasia à
qual, seguramente, acabaremos por sucumbir.
James Baldwin, Nobody Knows my Name
Eu sou o que sou o que sou
POR VEZES, precisamos de dar um passo atrás para depois darmos dois
passos à frente. Precisamos de enfrentar a dor. A dor mais profunda. Só
recentemente me senti preparado para isso.
Preciso de voltar atrás.
Ao tempo antes do centro comercial.
A um quarto de brancura hospitalar.
– Quem sou eu? – perguntei, no centro de saúde espanhol, durante a fase
inicial do meu primeiro colapso mental.
Quando me sinto bem e sereno, a pergunta não é assim tão assustadora.
Quem sou eu? Não existe este eu. Não existe um tu. Ou melhor, existem
milhões de eus. “I” (eu) é a palavra mais longa da língua inglesa.
Atrás de cada eu há outro eu, e mais um eu, e ainda mais um eu, como
se fôssemos uma matrioska. Terei um eu de base? Terás um tu de base? Ou
será que as nossas identidades não são bonecas russas, mas sim espirais
intermináveis? Será a nossa identidade um universo que nunca tem fim,
mas que nos pode levar ao ponto de partida?
Num estado relativamente estável, agrada-me filosofar sobre estas
questões. Suponho que talvez exista um eu bem definido que possa
formular estas perguntas. Mas, quando estava doente, estas preocupações
não eram meras abstrações. Eram mistérios angustiantes à espera de
resolução, como se a minha própria vida dependesse disso. E a minha vida
dependia mesmo disso. A sensação de autoconsciência desaparecera –
abafada pela multidão – e eu sentia que poderia ficar aprisionado num eu
infinito, a flutuar silenciosamente no pânico, sem nenhum sítio onde
pudesse pousar.
Realidade versus supermercados
É FREQUENTE os ataques de pânico acontecerem nos supermercados.
Conheço uma pessoa que só teve um ataque de pânico na vida.
Aconteceu num supermercado.
Quando vasculhava os grupos de mensagens do início do século XXI à
procura de dicas para lidar com a ansiedade, a ligação do ataque de pânico a
supermercados aparecia em praticamente todos. Neste momento, estou a ver
um grupo que começa assim: “PORQUE TEMOS ATAQUES DE PÂNICO QUANDO
ESTAMOS A FAZER COMPRAS NUM SUPERMERCADO?”

O pânico existe para nos auxiliar. Tal como noutros animais, o pânico é
a forma de a nossa mente e de o nosso corpo nos dizerem que temos de
fazer alguma coisa. Fugir ou lutar. Escapar do predador ou enfrentá-lo. Mas
um supermercado não é um urso ou um lobo ou um inimigo humano do
tempo das cavernas. Não se luta com um supermercado. Podemos fugir
dele, mas isso só aumentará a possibilidade de termos um ataque de pânico
da próxima vez que tivermos de lá voltar. E pode até nem ser àquele
supermercado específico. Se entramos no jogo de evitar um sítio, qualquer
supermercado pode tornar-se uma ameaça. E, depois, todas as lojas. E,
depois, todo o mundo lá fora.
As pessoas que nunca tiveram a experiência de viver um período com
perturbações de ansiedade e pânico não conseguem entender que é possível
perder a sensação de sermos reais. Isso é algo que as pessoas nem notam.
Não nos levantamos de manhã e, enquanto barramos manteiga de
amendoim na nossa torrada, pomo-nos a pensar: “Ah, muito bem, mantém-
se intacta a consciência de que eu sou eu e de que o mundo continua a ser
algo real, por isso posso ir à minha vida.” É algo que já está lá. Até deixar
de estar. Até darmos por nós no corredor dos cereais, imersos num terror
inexplicável.
É fácil descrever os sintomas mais óbvios que ocorrem durante um
ataque de pânico: pensamento acelerado, palpitações, rigidez do peito, falta
de ar, náuseas, sensação de formigueiro no interior da cabeça ou nos braços
e pernas. Mas há outro sintoma mais complicado que eu costumava ter. Um
que, vim a constatar, acaba por estar no cerne dos meus ataques de pânico, e
que tem um nome bem apropriado: a desrealização.
Mesmo dentro da sensação de desrealização, eu continuava a saber que
eu era eu. Só não sentia que eu fosse eu. Era uma sensação de estar
desintegrado. Como uma escultura de areia a esboroar-se.
Esta sensação reveste-se de um paradoxo: sentimos uma intensidade
extremada do nosso eu e, simultaneamente, um esvaziamento do nosso eu.
Há uma sensação de ponto sem retorno, como se, subitamente, tivéssemos
perdido alguma coisa, algo que nem sequer fazíamos ideia de que era
preciso cuidar. E essa coisa a necessitar do nosso cuidado éramos nós.
Ao pensar nas razões que levam os supermercados a serem um gatilho
tão poderoso para o despertar de ataques de pânico, surge-me a ideia de que
talvez seja por serem espaços, já em si, um tanto fora da realidade. Os
supermercados, tal como os centros comerciais, são locais inteiramente
artificiais. Nesta era das compras online, até podem parecer espaços
antiquados, quase exóticos, ainda assim são bastante mais modernos do que
a nossa natureza biológica.
Num supermercado não há luz natural. O zumbido ameaçador das arcas
frigoríficas parece a banda sonora de um filme de terror. As opções ao
nosso dispor superam as nossas capacidades naturais de escolha. A
multidão e as prateleiras são hiperestimulantes. Muitos dos produtos não
são naturais. Não apenas porque grande parte deles têm aditivos químicos,
embora isso também conte, mas porque foram adulterados. As latas de
atum, os sacos de salada, as caixas de arroz tufado com adoçantes, os
panados de frango, as carnes processadas, os comprimidos de vitaminas, os
frascos de alho já picado, os pacotes de batatas fritas com sabor a chili…
nada disto é natural. E, neste ambiente artificial, também nos podemos
sentir artificiais, caso a nossa ansiedade não esteja suficientemente
controlada. Podemos sentirmo-nos tão distantes de nós próprios como um
rolo de papel higiénico está distante de uma árvore. Durante os meus
ataques de pânico nos supermercados, os objetos nas prateleiras ganhavam
uma faceta que eu achava sinistra. Pareciam extraterrestres. E, de certo
modo, eles eram e são alienígenas. Tinham sido retirados do lugar a que
pertenciam, algo com o qual eu conseguia identificar-me. Talvez isso seja a
raiz de tudo. Eu sentia que não pertencia ali. Era-me impossível encontrar
paz num local tão sobrecarregado de tudo, num local tão artificial. O medo
era a única coisa que, nesses momentos, conhecia de mim próprio. E toda
aquela parafernália de objetos duplicados no supermercado só me fazia
sentir pior. “Os objetos não deviam impressionar o tato, visto que não
vivem”, escreveu Sartre, em A Náusea, numa altura em que, seguramente,
estava a ter uma semana má. “(…) E, a mim, os objetos tocam-me; é
insuportável. Tenho medo de entrar em contacto com eles, como se fossem
animais vivos.”
Os objetos dos supermercados também não são como os outros objetos.
São objetos a quem impuseram marcas. Enquanto os produtos se limitam a
existir no espaço físico, as marcas tentam chegar ao nosso espaço mental.
Querem entrar nas nossas cabeças. Em muitos casos, as companhias têm
psicólogos de marketing para fazerem isso mesmo. Para brincarem com as
nossas mentes. Para nos manipularem, levando-nos a comprar objetos.
Homem das cavernas
IMAGINEM QUE UMA mulher do tempo das cavernas tinha ficado
congelada há 50 mil anos.
Vamos chamar-lhe Su.
Agora imaginem que o bloco de gelo em que ela estava congelada
começava a derreter em frente ao supermercado do vosso bairro.
Su, a mulher das cavernas, entra no supermercado. As portas
automáticas fecham-se atrás dela, como que por artes mágicas. A luz, as
cores e o aglomerado de pessoas assustam-na. Os carrinhos de compras
parecem-lhe estranhos animais metálicos que os humanos conseguiram
domesticar, empurrando-os em várias direções. Su espanta-se com as
prateleiras resplandecentes, repletas de mercadorias em pacotes de plástico.
Os terminais de pagamento automático são desconcertantes. Os sacos que
as pessoas carregam parecem feitos de uma estranha pele branca.
– Artigo desconhecido no terminal de pagamento automático – diz uma
voz robótica. – Artigo desconhecido no terminal de pagamento
automático… Artigo desconhecido no terminal de pagamento automático…
Su começa a entrar em pânico. Corre em direção à janela, bate contra o
vidro e entra num pranto incompreensível.
– Owagh! Agh! Ug-aggh!
Seguem-se outros urros.
Eis-nos chegados ao volte-face final desta história.
(Rufar de tambores.)
A Son, com efeito, somos Nós.
(Um abrir de boca irónico.)
A Su somos todos nós. A única diferença é que nós estamos um pouco
mais habituados aos supermercados.
Em termos biológicos, não mudámos ao longo destes 50 mil anos. Mas
a sociedade mudou. E muito. Espera-se, até, que fiquemos gratos por esta
mudança. Afinal de contas, se Su não tivesse ficado congelada,
provavelmente teria morrido aos 22 anos debaixo de uma cavalgada de
javalis, ou aos 16 anos, sacrificada num ritual qualquer. E nós somos
sortudos. Não pode haver melhor sorte do que sermos um humano que vive
no século XXI, em vez de um ser morto da época neolítica.
Mas, justamente devido a essa sorte, temos de estimar a vida que nos foi
concedida. Que razão haveria para não o fazer, se, para além de nos
sentirmos sortudos, também nos pudéssemos sentir outras coisas, como
serenos, felizes, saudáveis? Não deveríamos, por isso, querer saber o que o
mundo nos pode fazer? Porque esse conhecimento pode ajudar-nos.
A mim, atualmente, essa noção ajuda-me quando estou num
supermercado. Nos centros comerciais. No IKEA. Ao computador. Numa
rua cheia de gente. Quando estou sozinho num quarto de hotel. Ajuda-me
seja em que lugar for. Ajuda-me saber que sou apenas um homem das
cavernas num mundo que evoluiu mais depressa do que os nossos corpos e
mentes.
Borrão
HÁ DOIS DIAS, vacilei. Senti novamente a estranha dor psicológica do céu
cinzento. Ao ir buscar a minha filha à aula de dança, senti que me estava a
afundar no passeio. Ao reconhecer a velha sensação de agorafobia, comecei
a engolir saliva compulsivamente.
Só que, agora, comparando com o passado, já estou ligeiramente mais
consciente do que se passa. Sabia que não andava a dormir bem. Que
andava a trabalhar demasiado. Que andava demasiado preocupado com este
livro. Que andava preocupado com um milhão de pequenas coisas
estúpidas. Por isso, parei de pensar em e-mails, afastei-me deste documento
de Word, assisti a um vídeo de “ioga para dormir”, alimentei-me com
comida saudável e tentei desligar. Resolvi ir passear o cão à beira-mar.
Então, percebi: não tem importância nenhuma. Deixa de ser neurótico.
Nada das coisas que me preocupavam mudariam o estado da minha
vida. Eu continuaria a poder ir passear o cão. Continuaria a poder ver o mar.
Continuaria a poder passar tempo com as pessoas que amo.
E a ansiedade bateu em retirada, como se fosse uma criminosa, a ser
interrogada sob um foco de luz.
14.

Desejos
“Talvez, quando nos encontremos a querer tudo, seja por estarmos
perigosamente a não querer nada.”
Sylvia Plath
Poço dos desejos
Ao escrever este livro, digitei “como posso ser” no Google. Eis as cinco
sugestões de autopreenchimento que me apareceram:
– Rico
– Famoso
– Modelo
– Piloto
– Ator
Transcendência
ANDAM A VENDER-NOS infelicidade porque é na infelicidade que se ganha
dinheiro.
A maior parte doq eu nos é vendido baseia-se na ideia de que
poderíamos ficar melhor do que estamos se tentássemos ser outra coisa.
Pensem no caso das revistas de moda.
Durante 25 anos, Lucinda Chambers foi diretora de moda da Vogue
britânica. Logo após ter deixado o cargo, disse o que pensava sobre a
indústria em que trabalhara tanto tempo. Chambers declarou que, apesar de
todo o discurso em redor de dar confiança e poder às pessoas, poucas são as
revistas que contribuem, de facto, para que as pessoas se sintam mais
confiantes. “A maior parte delas deixa-nos com níveis de ansiedade
elevados, seja por não darmos o jantar festivo mais adequado, por não
pormos a mesa da forma correta ou por não andarmos a conhecer as pessoas
certas”, disse a ex-diretora à revista Vestoj, numa entrevista que
rapidamente se tornou viral. Além disso, o modo como as revistas de moda
se centram em roupas de preços inacessíveis (para a maior parte dos
leitores) serve apenas para exacerbar a infelicidade, ao levar as pessoas a
pensarem que são pobres.
“Na moda, estamos sempre a tentar que as pessoas comprem algo de
que não precisam”, continuou Chambers. “Não precisamos de mais malas,
camisas ou sapatos. Por isso, persuadimos, encorajamos ou coagimos as
pessoas para que elas continuem a comprar coisas.”
As revistas, os sítios de Internet e as páginas de redes sociais ligadas à
moda acabam por vender uma espécie de transcendência. Vendem uma
saída. Uma escapatória. Mas, muitas vezes, isto tem um efeito pouco
saudável, pois, para que as pessoas se transcendam, primeiro temos de as
deixar infelizes com aquilo que são.
As pessoas acabam por comprar um livro de dietas para ficar com o
corpo da modelo que está na capa ou adquirem um perfume na tentativa de
se aproximarem da imagem da celebridade que tem o nome gravado no
frasco, mas isso tem um custo que vai para lá do mero aspeto financeiro.
Sim, as pessoas até podem sentir-se melhor no momento da compra, mas, a
longo prazo, estão apenas a alimentar a vontade de ser outra coisa qualquer:
mais glamorosa, mais atraente, mais famosa. Somos encorajados a sairmos
de nós e a querermos outras vidas. E essas vidas alternativas são tão reais
como o tal pote de ouro no fim do arco-íris.
Talvez o segredo de beleza que nenhuma revista de moda nos quer
contar esteja no facto de, para ficarmos felizes com a nossa aparência,
termos de aceitar o que já somos. Vivemos na era do Photoshop e da
cirurgia estética e, em breve, estaremos na era dos robôs criados por
designers. Provavelmente, esta será a altura ideal para aceitarmos as nossas
idiossincrasias humanas, em vez de procurarmos atingir a perfeição insípida
de um androide.
Podemos pensar: ah, preciso de ter um determinado aspeto para atrair as
outras pessoas. Ou podemos pensar: vendo bem, ser como sou é a melhor
forma de filtrar as pessoas que não vão ser boas para mim.
A infelicidade com a nossa aparência não está relacionada com o nosso
aspeto; as modelos, obviamente, não têm perturbações do comportamento
alimentar por terem peso a mais ou serem feias.
Vários indicadores mundiais assinalam o aumento das perturbações do
comportamento alimentar. Em 2017, a organização sem fins lucrativos
Eating Disorder Hope, depois de analisar várias pesquisas a nível
internacional, reportou que as perturbações do comportamento alimentar, a
nível mundial, mostravam uma tendência de subida semelhante à dos países
ocidentais e dos países industrializados. Na Ásia, por exemplo, sítios como
Japão, Hong Kong ou Singapura têm taxas bastante mais elevadas do que
Filipinas, Malásia ou Vietname, embora estes últimos países apresentem
taxas de crescimento semelhantes às dos países “avançados” e
“ocidentalizados”.
As Fiji são outro caso paradigmático. Segundo as pesquisas efetuadas, a
taxa de perturbações do comportamento alimentar começou a aumentar em
meados da década de 90 do século XX, na altura em que a televisão chegou
pela primeira vez àquelas ilhas do Pacífico Sul. Em 1999, o The New York
Times publicava um artigo em que referia a quase inexistência de
perturbações do comportamento alimentar nas Fiji, isto antes de a televisão
ter apresentado outro tipo de modelos, bastante mais magros, em séries de
sucesso mundial como Melrose Place e Beverly Hills 90210. Nas Fiji, antes
desta invasão televisiva que mostrava novos ideais de corpos às raparigas e
aos rapazes locais, quando se dizia a alguém “engordaste” isso era
considerado um elogio.
No Reino Unido, os números do Serviço Nacional de Saúde (NHS
Digital) para 2018 revelaram que as admissões hospitalares relativas a
perturbações do comportamento alimentar praticamente duplicaram em
menos de uma década, sendo as raparigas de 20 e poucos anos a faixa de
maior risco. Na altura em que vieram a público estes números, Caroline
Price, da Beat, a principal organização não governamental ligada às
perturbações do comportamento alimentar, disse ao The Guardian que,
apesar de as perturbações do comportamento alimentar serem “complexas”
e se deverem a “muitos fatores”, também terão muito que ver com a cultura
dos nossos tempos. “As perturbações do comportamento alimentar estão a
aumentar, em parte, devido aos desafios impostos pela sociedade dos nossos
dias, onde se incluem a pressão das redes sociais e a pressão dos exames.”
Embora estes fatores não sejam a única causa do problema, tal como é
reconhecido por especialistas como Caroline Price, podem ser agravantes
para as personalidades mais predispostas a terem perturbações deste tipo.
De acordo com a organização britânica Centro Nacional para as
Perturbações do Comportamento Alimentar (NCED), os fatores causais
incluem fatores genéticos, pais com distúrbios alimentares, ser maltratado
por ser gordo, negligência ou abuso da criança, traumas infantis, relações
familiares, ter um amigo com alguma perturbação do comportamento
alimentar e, por último, mas não menos importante, a “cultura”. E, neste
âmbito, torna-se particularmente problemática uma cultura na qual parece
existir sempre uma nova dieta para experimentar e em que, de acordo com o
sítio da NCED, “um indivíduo vulnerável interioriza as imagens que vê na
televisão ou nas revistas, comparando-se sempre desfavoravelmente com
essas imagens de um ideal impossível de alcançar».
O sítio de Internet acrescenta ainda que “as pessoas que conseguem
admirar uma modelo bonita, mas dizem ‘eu nunca conseguiria ser como ela,
mas isso não me incomoda lá muito’ são as que têm menores
probabilidades de serem vítimas de problemas com a alimentação”. Talvez
este corte entre as imagens que vemos e aquilo que somos possa ser uma
lição para todos nós. Precisamos de construir uma espécie de sistema
imunitário da nossa mente, para podermos absorver o mundo à nossa volta,
sem que ele acabe por nos infetar.
Como sermos mais bondosos connosco sobre nós
próprios
1. Pensem nas pessoas de quem gostaram. Nas relações mais profundas
que já tiveram. Na alegria que sentiam quando viam essas pessoas. Em
como essa alegria não tinha nada a ver com a aparência delas, exceto o
facto de se parecerem com elas próprias e de estarmos contentes por as
ver. Seja seu amigo. Fique feliz por reconhecer a pessoa por detrás do
seu rosto.

2. Altere a perspetiva com que olha para as suas fotografias. Cada


fotografia que vê e pensa “oh, pareço tão velho” será, um dia, uma
fotografia para a qual vão olhar e dizer: “Oh, parecia tão jovem nesta
altura.” Em vez de se sentirem envelhecidos, por partirem do vosso eu
mais novo, tentem sentir-se jovens perante a perspetiva de um vosso eu
mais velho.

3. Amem as vossas imperfeições. Realcem-nas, até. São aquilo que vos


tornam diferentes de qualquer androide ou robô. “Se procurar a
perfeição, nunca estará satisfeita”, diz Natalie, a esposa de Lvov, em
Anna Karenina.

4. Não tente ser igual a outra pessoa. Aprecie a sua diferença.

5. Não se preocupe quando as pessoas não gostarem de si. Nem toda a


gente irá gostar de si. É melhor que não gostem de nós por sermos
iguais a nós do que gostarem por sermos outra pessoa. A vida não é
uma peça de teatro. Não ensaie um papel para si. Seja autêntico.

6. Projete os seus pensamentos para fora. Pense na natureza. Pesquise


fotografias de rãs de vidro da Amazónia. Situe-se em relação à ordem
natural das coisas. Há 9 milhões de espécies conhecidas e estima-se
que isso seja apenas 20% dos animais que existem no mundo.
Reconheçam a beleza da vida. E a beleza de estarmos vivos. Não
liguem aos idiotas que restringem as definições do que é ser belo. São
cegos que não conseguem ver como é maravilhosa a imperfeição da
vida.

7. Nunca permita que a opinião negativa de um estranho sobre si se torne


a visão que tem sobre si.

8. Caso se sinta mal consigo, mantenha-se longe do Instagram.

9. Lembre-se de que mais ninguém anda preocupado com o aspeto do seu


rosto.

10. Faça alguma coisa durante o dia que não seja trabalho, ou tarefas
domésticas, ou estar na Internet. Dance. Dê uns pontapés numa bola.
Faça crepes. Toque música. Jogue Pac-Man. Faça festas a um cão.
Aprenda a tocar um instrumento. Telefone a um amigo. Brinque no
chão com uma criança. Saia de casa. Vá dar um passeio. Sinta o
vento na cara. Ou então deite-se no chão, encoste os pés à parede e
respire apenas.
Um apontamento sobre querermos coisas
NÃO HÁ PROBLEMA em desejarmos coisas – seja fama, uma aparência
jovem, 10 mil gostos, abdominais musculados, donuts –, mas tenham em
conta que querer também significa que algo pode estar em falta. É isso que
implica “querer”: o momento em que passamos a querer algo é também o
momento em que nos tornamos insatisfeitos. Por isso, há que ter cuidado
com o que queremos, para não criamos demasiados buracos dentro de nós,
buracos por onde a felicidade possa escapar, como se fôssemos um balde
furado. Quanto mais coisas quisermos, mais nos perderemos a nós, gota a
gota.
Se já fosse suficientemente bom, em que gastaria o
seu dinheiro?
A FELICIDADE NÃO É amiga da economia.
Somos constantemente encorajados a sentirmo-nos, pelo menos, um
pouco insatisfeitos connosco. Dizem-nos que os nossos corpos são
demasiado gordos, ou demasiado magros, ou demasiado flácidos.
Espera-se que a nossa pele tenha a dose adequada de bronzeado ou o
tom certo de luminosidade. E, o que é deprimente, a indústria de
branqueamento da pele já vale milhares de milhões de dólares, e tem
crescido de ano para ano. Trata-se de um exemplo particularmente
perturbador, mas esta ideia de não nos sentirmos suficientemente bem tem
sido explorada por empresas de praticamente todas as áreas de negócio. De
facto, por vezes parece que a única intenção do marketing é fazer com que
as pessoas se sintam mal na sua pele.
Neste âmbito, vejamos o que diz Robert Rosenthal, autor de
Optimarketing: Marketing Optimization to Electrify Your Business. Em
2014, Rosenthal escreveu na revista Fast Company que, para se ser um
marketeer de sucesso, é necessário pensar em termos dos benefícios do
produto, em vez de pensar nas características do mesmo. O que até parece
inócuo, certo?
Mas, depois, Rosenthal acrescentava que os benefícios têm
frequentemente uma componente psicológica. “O medo, a incerteza e a
dúvida, ou MID, costumam ser usados de forma legítima pelas empresas e
organizações para obrigarem os consumidores a parar, pensar e mudarem o
seu comportamento. O MID é tão poderoso que tem a capacidade de arrasar
com a concorrência.”
Para os gurus do marketing, o sucesso da campanha é a única coisa que
interessa. Os fins justificam os meios. E quase nem apetece pensar nas
consequências mais amplas de se deixarem milhões de pessoas mais
ansiosas do que aquilo que precisariam de estar.
Mesmo quando uma campanha publicitária não está, de forma muito
clara, a invocar o medo, ainda assim, pode continuar a ter efeitos nocivos a
nível psicológico. Se nos vendem a ideia de sermos porreiros graças a umas
calças, inconscientemente, passamos a sentir a pressão de obtermos e
mantermos esse estatuto de porreiros. Também acontece com frequência,
depois de gastarmos muito dinheiro num objeto desejado, ficarmos com a
sensação de que nos estamos a afundar. O nosso anseio por algo raramente
se traduz em satisfação quando a obtemos. Por isso, passamos a desejar
outra coisa qualquer, num círculo vicioso. Somos encorajados a querer o
que nos leva a querer outra coisa.
Em resumo, encorajam-nos a sermos viciados.
Nunca chega
NADA É SUFICIENTE.

Fui sempre viciado em qualquer coisa. O objecto da adição podia


mudar, mas a sensação de necessitar de algo mantinha-se igual.
As bebidas alcoólicas costumavam ser a minha cena. Era capaz de beber
sem parar.
Quando trabalhava num escritório, como vendedor, sob os céus
sombrios de Croydon, o meu único sonho era escapar daquele lugar. As três
cervejas que bebia todas as noites, seguidas de uma vodca com Coca-Cola,
ajudavam a suavizar o meu desespero, embora, na manhã seguinte, ao
acordar, tudo me parecesse ainda pior.
Alguns anos após ter tido o meu colapso, acabei por não sentir grande
dificuldade em deixar de beber. Ou de fumar. Ou de tudo. Parei com todos
os estimulantes, incluindo café, chá e Coca-Cola. Por viver num estado de
dor e pânico permanentes, teria feito qualquer coisa para me distrair dos
meus pensamentos, mas por esses dias também já sabia que o álcool não
teria esse efeito. E também pensava que os medicamentos não iriam
funcionar. Nessa altura, estava convencido de que, embora os comprimidos
funcionassem para muitas pessoas, eu pertencia ao grupo de desafortunados
para quem não funcionavam. Também me convenci de que, em tempos,
tivera tendência para as adições. Foi mais difícil perceber que continuava a
ter essa tendência, mas que a aplicava à descoberta de vícios mais
“positivos”. Correr, por exemplo, como o meu pai me aconselhara. Fazer
ioga. Meditar. Trabalhar. Ter sucesso.
Anos mais tarde, numa altura em que me sentia incomparavelmente
melhor, comecei novamente a beber. Não bebia todos os dias nem todas as
semanas, mas, quando bebia, fazia-o de forma irresponsável. A diferença
era que, dessa vez, eu apercebia-me de como o álcool afetava a minha
mente. Conseguia ver o ciclo acabado de cumprir. Sentia-me ligeiramente
mal – não ao nível de uma perturbação de pânico, apenas uma leve
depressão generalizada –, bebia, sentia-me melhor. Depois, vinha a ressaca
e o sentimento de culpa, sensações que se prolongavam no tempo e faziam
baixar a minha autoestima, criando, novamente, a necessidade de me
distrair. De beber. Beber oito cervejas e um cocktail com gin, com os
correspondentes perigos. Durante a ressaca, era impossível ser um bom
marido, ou um bom pai, ou um bom escritor. Mas a ironia era que essa
sensação de desgosto comigo próprio, por ficar aquém do devido,
aumentava as probabilidades de voltar a beber muito. Aprendi, entretanto,
que, por muito grande que seja o desejo de beber, a culpa posterior será
sempre maior. Ainda assim, é muito difícil. Sinto uma grande empatia
relativamente a todos os que já procuraram no álcool uma solução para o
implacável desespero que sentem. E por todos os que foram julgados,
durante esse processo, pelas pessoas que nunca sentiram esse doloroso
desejo de fuga de nós próprios.
Quando as pessoas dizem que o estigma associado às doenças mentais
está a desaparecer, até podem estar certas no que se refere à melhoria das
condições de apoio a quem sofre de depressão ou ataques de pânico. Mas,
provavelmente, não se referem ao alcoolismo, à automutilação, às psicoses,
à perturbação borderline da personalidade, às perturbações do
comportamento alimentar, aos comportamentos compulsivos ou à
toxicodependência. Estas são coisas que conseguem pôr à prova até os
espíritos mais abertos. E esse é o problema com as doenças mentais. Se é
fácil não julgar as pessoas por terem uma doença, já é mais difícil não as
julgar pelos comportamentos ocasionalmente provocados por essa doença.
Tudo porque as pessoas não veem as razões por trás.
Lembro-me de ter ido assistir a um concerto do talento raro que era
Amy Winehouse e de ficar com lágrimas nos olhos, ao ver como a
assistência – composta maioritariamente por bêbados – ria e gozava,
enquanto ela, embriagada, arrastava as palavras entre as canções, numa
tentativa desesperada de se recompor. Aquilo deixou-me em brasa, numa
mistura de vergonha e raiva, de tal forma que dei por mim a tentar, de forma
ridícula, falar com ela por telepatia. Está tudo bem, dizia-lhe. Tu vais ficar
bem. Eles simplesmente não compreendem.
Neste preciso momento, ao escrever estas linhas, ao ver o sol a brilhar lá
fora, dou por mim com vontade de beber uma caipirinha. Um pouco de
cachaça, sumo de lima, açúcar, e aí temos o mais famoso cocktail do Brasil.
É o paraíso dentro de um copo. Guardo memórias de beber caipirinhas sob
a sombra das arcadas de praças espanholas, e este meu desejo é, em parte,
um desejo de voltar a ter 21 anos e uma vida despreocupada. Mas sei que
seria má ideia. Por isso, tenho de me recordar a razão de querer a caipirinha
e o que poderia acontecer, caso a bebesse. Tenho de me recordar que não
seria apenas um copo. Tenho de me recordar a que, no passado, o desejo de
uma simples bebida – depois de terminada, de forma satisfatória, a reunião
de trabalho da tarde – terminou com um telefonema para casa, a partir de
Victoria Station, às 6h00, depois de eu ter perdido a carteira. E preciso de
me relembrar do efeito espiral que me levou a mergulhar novamente num
estado de depressão e ansiedade. A recaída foi tão forte que dava por mim a
chorar, enquanto olhava para a gaveta das meias; bastava um vestígio de
nuvens cinzentas ou uma capa de revista para desencadear em mim uma
sensação infinita de desespero. Todo este ato de recordar o que se passou,
esta consciência plena de causas e efeitos, torna mais fácil a resistência ao
desejo. Pensar num mês de inferno enfiado numa jaula sobrepõe-se à ideia
de uma noite paradisíaca de copos.
O que estou a tentar demonstrar não se resume especificamente às
bebidas alcoólicas. Trata-se, principalmente, de um padrão de adição –
insatisfação, solução temporária, aumento da insatisfação – que serve de
modelo para grande parte da cultura de consumo. É também o modelo de
grande parte das nossas relações com a tecnologia. O perigo do uso
excessivo das tecnologias está a tornar-se cada vez mais evidente. Em 2018,
o diretor-executivo da Apple, Tim Cook, começou a abordar este assunto.
“Não acredito no uso excessivo das tecnologias. Não sou daqueles que
dizem que somos bem-sucedidos se as usarmos a toda a hora.”
O problema é que, no caso das tecnologias, é mais fácil dizer do que
fazer.
“Não se enganem: verificar o e-mail, o Facebook ou o Twitter constitui
uma adição neural”, escreve o neurocientista Daniel Levitin, no seu livro
The Organized Mind The Thinking Straight In The Age Of Information
Overload. Sempre que vamos espreitar as redes sociais, “descobrimos algo
novo e sentimo-nos socialmente mais interligados (de uma forma
cibernética algo estranha e impessoal), recebendo mais uma dose de
hormonas de recompensa”, algo que nos indica que acabámos de cumprir
alguma coisa. Mas, como em todas as adições, não se pode confiar neste
sentimento de recompensa, tal como refere Levitin: “é a parte burra do
cérebro, a que busca novidades, que comanda o sistema límbico, que induz
essa sensação de prazer, e não os centros de pensamento e planeamento
mais elevados do córtex pré-frontal.”
Pode ser difícil perceber quais são os nossos problemas, caso toda a
gente tenha os mesmos problemas, à semelhança do que acontece aos
membros de um qualquer culto religioso. Se todos estiverem sempre
agarrados ao telemóvel, a andar para cima e para baixo pelas páginas das
redes sociais ou nas sequências de mensagens, então isso passa a ser o
comportamento normal. Se todos se levantarem demasiado cedo para ir
trabalhar 12 horas seguidas num emprego que detestam, porque deveríamos
pôr isso em causa? Se todos andam preocupados com o aspeto físico, então
também deve ser caso para nos preocuparmos com o nosso. Se todos
utilizam os limites dos cartões de crédito para pagar coisas de que
realmente não precisam, então é porque isso não deve ser um problema. Se
o planeta inteiro estiver a ter uma espécie de colapso coletivo, isso até
acaba por se encaixar nos nossos comportamentos menos saudáveis.
Quando a loucura se converte em normalidade, a única forma de
encontrarmos a sanidade passa pela audácia de sermos diferentes. Ou pela
audácia de sermos o eu que existe à margem de todo o entulho com que a
vida moderna entope corpo e mente.
Um paradoxo
EXISTE UM PARADOXO relacionado com as sociedades de consumo
modernas. Estas sociedades de alta tecnologia parecem encorajar a
individualidade através do desencorajamento (na verdade, quase uma
proibição) de pensarmos como indivíduos. Não se pretende um afastamento
das distrações da sociedade – como as pessoas com adição têm de fazer,
caso queiram recuperar as rédeas da sua vida –, a fim de nos colocarmos
algumas questões. O que ando a fazer? Porque continuo a fazê-lo, se isso
não me traz felicidade? De um modo retorcido, este tipo de questionamento
torna-se mais fácil se estivermos perante uma compulsão que a sociedade
tenha mais dificuldade em aceitar, como a adição à heroína, do que uma
compulsão mais compreensível, como fazer dieta, ou enviar tweets, ou
comprar coisas, ou trabalhar. Se a loucura for coletiva e a doença cultural,
até o diagnóstico pode ser complicado, quanto mais o tratamento.
Mesmo quando o grosso da sociedade nos empurra num determinado
rumo, se essa direção nos deixar infelizes, então tem de existir a
possibilidade de aprendermos a mudar de rumo. Mudar de direção para
irmos ao encontro de nós próprios, ao encontro de uma verdade que pode
estar a ser escondida pelas distrações. As nossas vidas até podem depender
desta mudança de rumo.
Somos mais do que um consumidor
Não deixe que ninguém nem coisa alguma o faça sentir que fica aquém
do esperado. Não sinta que tem de conseguir mais para ser aceite pelos
outros. Ponha de lado as tentativas de parecer melhor do que aquilo que é;
contente-se com o seu próprio ser. Deixe de sonhar com objetivos e metas
inalcançáveis. Aceite o que o marketing não quer para si: está tudo bem
consigo. Não lhe falta nada.
15.

Duas listas sobre trabalho


“Quantos jovens licenciados aceitaram empregos exigentes em firmas
poderosas, jurando que trabalhariam com afinco e ganhariam o dinheiro que
lhes permitiria reformarem-se e dedicarem-se aos seus verdadeiros
interesses quando chegassem aos 35 anos? Porém, quando chegam a essa
idade, têm dívidas, filhos na escola, casas nos subúrbios que os obrigam a
ter, pelo menos, dois carros por família, e a sensação de que a vida não vale
a pena ser vivida sem vinhos muito bons e férias dispendiosas no
estrangeiro. O que se espera que façam: que voltem a desenterrar raízes?
Não, duplicam os esforços e continuam a labutar.”
Yuval Noah Harari, Sapiens – História Breve da Humanidade

“Quero dizer, muito a sério, que muitos males estão a ser causados ao
mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e que o caminho para a
felicidade e prosperidade reside numa diminuição organizada do trabalho.”
Bertrand Russel, In Praise of Idleness (1932)
O trabalho é tóxico
1. Historicamente, distanciámo-nos do modo como costumávamos
trabalhar. Enquanto seres individuais, raramente consumimos o que
produzimos. Muitas vezes, as pessoas não conseguem trabalhos de
acordo com as suas qualificações. Aos poucos, o trabalho humano
começa a ser substituído pelas máquinas. Terminais de pagamento
automático. Linhas de montagem robotizadas. Atendimento telefónico
automatizado.

2. A economia mundial é injusta. Sim, estão a ser feitos progressos. De


acordo com os dados do Banco Mundial, a percentagem de pessoas a
viver em pobreza extrema diminui de ano para ano. Mas têm surgido
outras desigualdades. Segundo um relatório da Oxfam, datado de
2017, os oito multimilionários mais ricos do mundo detêm uma
riqueza igual à soma da riqueza dos 3,6 mil milhões de pessoas que
compõem a parte mais pobre do planeta. Enquanto a classe média do
mundo ocidental está a encolher, segundo uma pesquisa do Credit
Suisse, os extremos dos mais ricos e dos mais pobres estão a aumentar.
É difícil continuar a acreditar no mito da meritocracia.

3. O bullying abunda nos locais de trabalho. A natureza competitiva de


muitos ambientes de trabalho fomenta uma rivalidade agressiva, que
pode facilmente transbordar para a manipulação e o bullying. De
acordo com uma pesquisa efetuada pela Universidade de Phoenix,
75% dos trabalhadores norte-americanos já foram afetados pelo
bullying no local de trabalho, seja na condição de vítima ou na
condição de testemunha. Mas as vítimas nem sempre são quem se
pensa. De acordo com o Bullying Workplace Institute, em vez de os
alvos serem invariavelmente os membros mais fracos de uma equipa,
podem muitas vezes ser trabalhadores mais qualificados e eficientes do
que os agressores, ou seja, as vítimas podem ser pessoas mais
experientes que são vistas como uma ameaça. E estudos da TUC, em
colaboração com o Everyday Sexism Project, descobriram que 52%
das mulheres afirmam terem sido alvo de assédio sexual no trabalho.

4. Em casos mais graves, o stress no local de trabalho pode ser fatal. Por
exemplo, entre 2008 e 2009, bem como em 2014, a companhia de
telecomunicações francesa Orange reportou vagas de suicídios de
funcionários. Após a primeira vaga, quando 35 funcionários se
mataram num espaço de meses, o patrão da companhia desvalorizou o
sucedido, ao qual se referiu como “uma moda”, embora um relatório
oficial, citado no The Guardian, apontasse o dedo ao clima de “assédio
por parte da gestão” que tinha “fragilizado psicologicamente os
trabalhadores, pondo em causa a sua saúde física e mental”.

5. A cultura da avaliação é tóxica. Paul Verhaeghe, professor belga de


Psicanálise, acredita que a forma como o trabalho está atualmente
instituído nas nossas sociedades – com supervisores a supervisionarem
supervisores e toda a gente a ser continuamente observada e avaliada –
é tóxica. E mesmo quem não trabalha também sofre do mesmo tipo de
testes e monitorização. Como as nossas crianças em idade escolar
andam a descobrir, toda esta cultura de testes e avaliações, em vez de
criar um ambiente confortável no presente leva a um estado de stress
acerca do futuro.

6. Os valores do local de trabalho podem levar à baixa autoestima.


Somos encorajados a acreditar que o sucesso é fruto do esforço e que
tudo depende do trabalho árduo de cada indivíduo. Por isso, não é
surpreendente que levemos o assunto muito a peito quando sentimos
que estamos a falhar – o que acontece frequentemente nesta cultura
baseada nas aspirações, que aumenta continuamente a fasquia da nossa
felicidade. Pensamos que tudo se resume ao nosso desempenho.
Ninguém nos encoraja a ver o contexto em que estamos inseridos.

7. Gostamos de trabalhar. O trabalho dá-nos um propósito. Mas também


pode ter efeitos negativos na nossa saúde física. Em 2015, o Instituto
de Saúde Ocupacional finlandês publicou um estudo – o maior do
género – que abordava a ligação entre excesso de trabalho e bebidas
alcoólicas. Após compilar uma série de dados relativos a mais de 333
mil trabalhadores de 14 países diferentes, concluiu-se que quanto mais
horas se trabalha, mais álcool se bebe.

8. É difícil desafiar a nossa obsessão cultural pelo trabalho. Os líderes


políticos e empresariais continuam a defender a ideia de que trabalhar
sem parar é uma virtude moral. Põem aquele ar lisonjeador e
sentimental quando falam da “gente trabalhadora e honesta” e das
“famílias trabalhadoras”. E nós aceitamos a semana de cinco dias de
trabalho como se fosse uma lei da natureza. Muitas vezes, fazem-nos
sentir culpados quando não estamos a trabalhar. Dizemos para nós
mesmos, tal como Benjamim Franklin, que “tempo é dinheiro”,
esquecendo-nos de que o dinheiro também tem que ver com a sorte.
Muitas pessoas que trabalham arduamente durante várias horas por dia
têm bastante menos dinheiro do que algumas pessoas que nunca
trabalharam na vida.

9. As pessoas trabalham cada vez mais tempo, mas essas horas extra não
garantem, por si só, uma maior produtividade. Quando a Suécia fez um
estudo experimental para testar horários de trabalho de seis horas
diárias para as enfermeiras de Gotemburgo, os resultados mostraram
que as enfermeiras se sentiam mais felizes e enérgicas do que quando
trabalhavam oito horas por dia. E isso refletiu-se no menor número de
faltas por doença, na redução das queixas físicas (como dores de costas
ou dores no pescoço) e num aumento da produtividade por hora de
trabalho.

10. A nossa cultura do trabalho é frequentemente desumanizada.


Precisamos de avaliar se o nosso trabalho nos deixa doentes ou
infelizes e, caso seja esse o caso, ver o que podemos fazer. Quanta
pressão podemos realmente colocar em cima de nós, só porque o
modo como trabalhamos nos faz sentir que estamos constantemente
atrasados ou aquém do esperado? Será que a vida é uma corrida que
estamos sempre a perder? Nesta tentativa de acompanhar o ritmo que
nos é imposto, nem sequer nos atrevemos a parar para pensar no que
pode ser melhor para nós.
Dez formas de trabalhar sem ter um esgotamento
1. Tentem fazer algo de que gostem. Se gostarem do vosso trabalho, vão
sentir-se melhor quando trabalham. Se gostarem do vosso trabalho,
não o sentirão como um trabalho. Tentem pensar no trabalho como
uma diversão produtiva.

2. Definam como objetivo não despachar ainda mais coisas. Procurem


ter menos coisas para fazer. Sejam minimalistas no trabalho. O
minimalismo passa por fazer mais com menos. E tanto da nossa vida
no trabalho parece ser fazer menos com mais. Parecermos muito ativos
nem sempre corresponde ao cumprimento das nossas tarefas.

3. Estabeleça limites. Guarde partes do dia e da semana para momentos


livres de trabalho, de e-mails, de problemas.

4. Não entre em stress com os prazos. Este livro já está atrasado


relativamente ao prazo estipulado, e ainda assim, ficou pronto e foi
publicado, como se verifica.

5. Tenha consciência de que a sua caixa de entrada de correio eletrónico


nunca irá ficar vazia. Aceite esse facto.

6. Sempre que for possível, tente trabalhar de forma a ajudar a tornar o


mundo um pouco melhor. O mundo molda o que somos. Tornar o
mundo um lugar melhor também fará de nós melhores pessoas.

7. Seja amável para si próprio. Se os aspetos negativos do trabalho


suplantarem os aspetos positivos do dinheiro, então não o faça. Se
alguém estiver a usar o poder que tem para o intimidar ou assediar, não
o aceite. Se detestar o seu emprego e puder afastar-se um pouco
durante a hora do almoço, então afaste-se. E nunca mais volte.

8. Não pense que o seu trabalho é mais importante do que aquilo que é.
“Um sintoma de que está perto de um esgotamento é pensar que o seu
trabalho é tremendamente importante”, disse Bertrand Russell.

9. Não trabalhe naquilo em que as outras pessoas esperam que trabalhe.


Escolha o trabalho que quer fazer. Só temos uma vida. É sempre
melhor vivê-la dentro da nossa pele.

10. Não seja perfecionista. Os seres humanos são imperfeitos. O trabalho


feito por humanos tem imperfeições. Seja mais humano e menos
robô. Seja mais imperfeito. As evoluções acontecem por causa dos
erros.
16.

Moldar o futuro
Progresso
SE DISSESSE QUE o progresso tecnológico é, no seu todo, uma coisa má,
isso seria entendido como uma afirmação tresloucada, conservadora e
reacionária.
Quase ninguém trocaria o mundo tecnológico em que vivemos pelo
mundo de há 100 anos. Quem é que gostaria de prescindir dos automóveis,
do GPS, dos smartphones, dos computadores portáteis, das máquinas de
lavar, do Skype, das redes sociais, dos videojogos, do Spotify, dos raios-X,
dos pacemakers, das caixas multibanco, das compras online? Eu,
certamente, não.
Ao escrever este livro, tentei debruçar-me sobre o custo para os
humanos, em termos psicológicos, de viver neste mundo, através da única
forma como o poderia fazer: a minha própria mente. Já escrevi que nós,
enquanto seres individuais, podemos tentar mantermo-nos sãos dentro de
um mundo capaz de enlouquecer qualquer um. O facto de eu ter tido uma
doença mental, apesar de ter sido um verdadeiro pesadelo, acabou por me
ensinar algumas coisas sobre os tormentos do mundo moderno e os vários
aspetos que desencadeiam a ansiedade.
Porém, aquilo com que realmente me debato é sobre o que podemos
fazer enquanto sociedade. Não podemos voltar atrás no tempo. Não
podemos, subitamente, varrer a tecnologia; aliás, nem o quereríamos. Por
isso, como é que nós, como um todo, podemos contribuir para criar um
mundo melhor para todos?
Uma das pessoas que melhor respondeu a esta pergunta foi Yuval Noah
Harari, professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, cujos
livros inovadores Sapiens e Homo Deus nos questionam sobre os traços que
nos tornam seres humanos e o modo como a tecnologia está a alterar o
nosso mundo e, mais do que isso, sobre o a forma como está a transformar a
própria humanidade. Harari descreve um cenário terrível para o futuro, com
um mundo onde os humanos podem vir a ser ultrapassados pelas máquinas
que eles próprios criaram. “O Homo Sapiens, tal como o conhecemos,
desaparecerá sensivelmente no espaço de um século”, conclui o professor
universitário, de modo deprimente.
Depois de ler as obras de Harari, interroguei-me sobre as razões que
levam a humanidade a querer apressar, de forma voluntária, um futuro que,
aos poucos, a tornará redundante. Isso fez-me lembrar outro livro que me
inspirou, quando era mais jovem – Straw Dogs, escrito pelo filósofo John
Gray – que explorava de forma brutal a ideia de que o progresso da
sociedade humana, afinal, não passa de um perigoso mito. À luz daquilo
que sabemos, somos os únicos animais obcecados com a ideia do progresso.
Se por acaso existirem tartarugas historiadoras a agradecer às gerações
passadas por terem ajudado a criar uma sociedade de tartarugas mais
esclarecida, bem, então isso está a passar-nos ao lado.
Num artigo para o The Observer, perguntei a Harari se deveríamos
tentar resistir à ideia de futuro como um cenário de inevitável progresso
tecnológico. Deveríamos tentar criar um tipo de futurismo diferente?
“Não podemos simplesmente parar o progresso tecnológico”,
respondeu Harari. “Mesmo se um país suspender a sua pesquisa no campo
da inteligência artificial, outros países vão continuar a fazê-la. A grande
questão é o que fazer com a tecnologia. A mesma tecnologia pode ser usada
para fins sociais e políticos muito diferentes.”
Nos nossos dias, a Internet parece ser o caso mais óbvio. Mas, aquilo a
que antigamente chamávamos world wide web também é o exemplo de algo
que começou como um ideal utópico e que rapidamente descambou numa
distopia.
“Se olharmos para o século XX, podemos constatar que era possível criar
uma ditadura comunista ou uma democracia liberal a partir da mesma
tecnologia da eletricidade e dos comboios”, prosseguiu Harari. “Passa-se o
mesmo com a inteligência artificial e a bioengenharia. Por isso, penso que
as pessoas não se deviam concentrar em formas de evitar o progresso
tecnológico, pois isso é uma impossibilidade. Em vez disso, o foco devia
estar no tipo de utilização que vamos dar às novas tecnologias. E, neste
ponto, ainda temos bastante poder para influenciar o rumo que a tecnologia
está a tomar.”
Portanto, tal como tantas outras coisas, a resposta para a resolução do
problema passa, antes de mais, por estarmos cientes do problema. Dito de
outra forma: a solução para tornar as nossas mentes e o nosso planeta mais
saudáveis e felizes é, no fundo, a mesma. Quando Harari referiu que
podemos usar a mesma tecnologia para fins muito diferentes, isso tanto se
aplica a nível micro como macro; tanto ao indivíduo como à sociedade.
Termos consciência da forma como a nossa utilização da tecnologia nos
afeta é também, de forma indireta, estarmos conscientes de como a
tecnologia afeta o planeta. Não é o planeta que nos molda; nós moldamos o
planeta através das nossas escolhas de vida.
Por vezes, quando nós – e as nossas sociedades – caminhamos na
direção de algo pouco saudável, temos de tomar a atitude mais corajosa e
mais difícil de todas: temos de mudar.
Essa mudança pode assumir muitas formas diferentes. Pode significar o
uso da tecnologia como um auxiliar da nossa mente, através de uma
aplicação que limite a nossa utilização das redes sociais, ou instalar um
regulador de luminosidade, ou fazer mais caminhadas, ou ser mais amável
para com as pessoas quando estamos online, ou escolher um carro menos
poluente. Em última análise, sermos gentis connosco é a mesma coisa que
sermos gentis com o planeta.
“Progresso significa estarmos mais perto do lugar a que queremos
chegar”, escreveu C. S. Lewis. “Mas, se estivermos no caminho errado,
seguir em frente não nos vai deixar mais próximos desse lugar.”
Eis uma forma fantástica de encararmos esta questão. Um avanço, seja a
nível individual ou global, não é algo intrinsecamente positivo. Por vezes,
empurramos a nossa vida na direção errada. Por vezes, as sociedades
caminham na direção errada. Se sentirmos que isso nos está a deixar
infelizes, progredir pode significar dar meia-volta e caminhar para trás até
encontrar a estrada certa. Mas nunca devemos sentir, seja a nível pessoal ou
de uma cultura comum, que apenas existe uma versão do futuro, e que esta
é inevitável.
Cabe-nos moldar esse futuro.
Espaço
OS ESPAÇOS SÃO essenciais para moldar o nosso próprio futuro.
Precisamos de nos assegurar da existência de espaços onde possamos ser
livres. Espaços físicos e espaços mentais onde seja possível sermos nós
próprios.
Cada vez mais, as nossas cidades e vilas são espaços que nos querem lá
como consumidores, não tanto enquanto pessoas. O que só torna ainda mais
premente a valorização dos tais espaços, presentemente sob ameaça, onde
ainda podemos existir como um indivíduo economicamente irrelevante.
Espaços como florestas, parques, museus públicos, galerias de arte,
bibliotecas.
As bibliotecas, por exemplo, são espaços maravilhosos que, atualmente,
correm perigo de vida. Muitas pessoas com responsabilidades políticas
pensam que as bibliotecas são obsoletas nesta era da Internet. O que está
longe de ser verdade. Muitas estão a usar a Internet de forma inovadora,
quer no acesso aos livros quer no acesso à própria Internet. Além disso, as
bibliotecas não têm que ver só com os livros. Representam um dos poucos
espaços públicos que não preferem a carteira ao dono da carteira.
Mas existem outros espaços que estão igualmente sob ameaça.
Espaços que não são físicos. Espaços de tempo. Espaços digitais.
Algumas empresas de serviços de Internet procuram ver-nos cada vez
menos como seres individuais, cada vez menos como seres humanos, para
nos encararem como um organismo cheio de dados que podem recolher
para posteriormente venderem.
E há espaços do dia e da semana que estão a ser constantemente
engolidos em função do trabalho e de outras responsabilidades.
E há até espaços mentais que estão sob ameaça. Parece ser cada vez
mais difícil encontrar tempo para pensar livremente ou, pelo menos, pensar
calmamente. O que poderá explicar o aumento das perturbações da
ansiedade, como também o aumento de práticas que procuram contrariar
essa tendência, como o ioga e a meditação.
Além dos espaços físicos, as pessoas estão desejosas de espaços mentais
nos quais podem ser livres. Um espaço à margem das coisas que, neste
mundo já de si agitado, nos distraem o pensamento, sem nós o pedirmos,
enchendo-nos a cabeça como se fossem uma série de anúncios pop-up para
a mente. Esse espaço livre ainda existe, à espera de ser descoberto por cada
um de nós. Acontece que não podemos ficar à espera que ele venha ter
connosco. Temos de ser nós a procurá-lo. Talvez seja necessário estabelecer
um horário para a leitura, ou fazer ioga, ou tomar um longo banho de
imersão, ou cozinhar um dos nossos pratos preferidos, ou fazer uma
caminhada. Talvez seja necessário desligar o telemóvel. Fechar o portátil.
Desconectarmo-nos, de forma a encontrarmos uma espécie de versão
acústica do nosso ser.
A ficção é liberdade
OS LIVROS, através das histórias e da ficção, podem ser uma forma de
recuperarmos algum espaço.
Quando eu tinha 11 anos, sem amigos e com dificuldades de integração
na escola, li Os Marginais, Tempos de Juventude e Tex, todos de S. E.
Hinton, e subitamente voltei a ter amigos. Os livros que a autora escrevera
eram meus amigos. As personagens que ela criara eram minhas amigas. E
eram amigos a sério, pois ajudaram-me, tal como, noutras alturas, fui
ajudado pelos meus amigos Ursinho Pooh, Scout Finch, Pip ou pela Cécile,
de Bonjour Tristesse. As histórias em que eles habitavam eram lugares onde
eu me podia esconder e sentir-me em segurança.
Os mundos da ficção são essenciais neste planeta que pode tornar-se
excessivo, neste planeta em que estamos a ficar sem espaço mental. Esses
mundos podem funcionar como um escape à realidade, sim, mas não como
escapatória à verdade. É precisamente o contrário. Eu costumava ter
dificuldades em integrar-me no mundo “real”. Os códigos que tínhamos de
seguir. As mentiras que tínhamos de dizer. Os risos que tínhamos de fingir.
Mas eu não sentia que a ficção fosse uma fuga a essas verdades; era uma
espécie de porta de entrada nessa realidade. Mesmo que a verdade do livro
estivesse repleta de monstros ou ursos falantes, o certo é que havia ali
sempre algum tipo de verdade. Uma verdade capaz de manter a nossa
sanidade ou, pelo menos, de nos manter na nossa pele.
No meu caso, ler nunca foi uma atividade antissocial. Bem pelo
contrário, era profundamente social. Ficar intimamente ligado à imaginação
de outro ser humano era o tipo de socialização mais profunda que podia
existir. Ler era uma forma de me ligar a algo, sem necessidade de passar
pelos inúmeros filtros que, geralmente, a sociedade impõe.
Muitas vezes, dá-se importância à leitura devido ao valor social. A
leitura está associada à educação, à economia, e por aí fora. Mas isso é
passar ao lado do verdadeiro sentido da leitura.
Ler não é importante por nos ajudar a arranjar um emprego. É
importante por nos dar um espaço em que podemos existir para lá da nossa
vida real. É a forma de os seres humanos se juntarem. De as mentes se
ligarem umas às outras. É a forma dos sonhos, da empatia, da compreensão,
do escape.
A leitura é amor em ação.
Não precisa de ser nos livros. Mas temos de encontrar esse espaço.
Somos frequentemente encorajados a querer as experiências mais
radicais e excitantes. A agir sob o impulso do momento. Just do it, como
nos incitava constantemente o slogan da Nike, como se fosse um personal
trainer. Como se o significado da vida estivesse numa medalha de ouro, ou
na escalada do Evereste, ou em ser cabeça de cartaz num festival, ou em ter
um orgasmo intenso ao saltar de paraquedas sobre as cataratas do Niágara.
Eu costumava sentir o mesmo. Queria perder-me nas experiências mais
intensas, como se a vida fosse apenas um copo de tequila bebido de um só
trago. Mas a maior parte das vidas não pode ser vivida desta forma. Para
termos alguma possibilidade de atingir uma felicidade duradoura,
precisamos de abrandar. Além de simplesmente fazermos, temos também de
simplesmente sermos.
Enchemos as nossas vidas de atividades, porque, no mundo ocidental,
sentimos frequentemente que a felicidade e a satisfação são alcançadas pela
aquisição, por “agarrar a vida pelos cornos”, por aproveitar cada dia ao
máximo. Por vezes, talvez fosse melhor substituir este conceito da vida, de
que algo se “agarra” ou se “alcança”, por alguma coisa que já tenhamos.
Vamos seguramente desfrutar mais da vida, caso limpemos o que anda a
atafulhar a nossa mente.
“Muitas pessoas pensam que a excitação é felicidade, mas não se está
em paz quando se está excitado. A verdadeira felicidade baseia-se na paz”,
escreveu o monge budista Thich Nhat Hanh, em A Arte do Poder.
Pessoalmente, não quereria uma vida completamente neutra, com base
numa completa paz interior. De vez em quando, quero ter algumas
experiências mais radicais, mais intensas, mais animadas. Isso faz parte de
mim. Mas, mais do que nunca, também anseio por aquele tipo de paz e
aceitação.
Precisamos de criar um espaço interior para nos conhecermos melhor,
para nos sentirmos mais confortáveis com o nosso eu; precisamos de um
espaço para nos descobrirmos, longe de um mundo que, tantas vezes, nos
encoraja a perdermo-nos de nós próprios.
Precisamos de criar um espaço de tempo para nós, seja através dos
livros, da meditação ou de olhar a paisagem através de uma janela. Um sítio
onde não estejamos a ansiar, a desejar, a trabalhar, a preocuparmo-nos, a
pensar em tudo e mais alguma coisa. Um sítio onde nem sequer esperemos
algo. Um lugar onde possamos ficar neutros, onde possamos simplesmente
respirar, onde possamos ser, imersos no simples e básico contentamento da
nossa existência, sem desejarmos mais nada para além daquilo que já
temos: a própria vida.
Objetivo
SENTIR CADA INSTANTE, não pensar no amanhã, aprender a desligar-se de
preocupações, arrependimentos e medos provocados pelo conceito de
tempo. Caminhar sem pensar em mais nada a não ser na caminhada. Ficar
deitado na cama, acordado, sem se preocupar com o sono. Deixe-se apenas
ficar, numa felicidade horizontal, sem qualquer preocupação com o passado
ou o futuro.
17.

A canção de si mesmo
Plátanos
ENQUANTO ESCREVIA ESTE LIVRO, a minha mãe foi submetida a uma
intervenção cirúrgica. Uma operação para substituir a válvula mitral. A
operação correu bem e a fase de recuperação também, mas a semana que
passou nos Cuidados Intensivos foi uma espécie de montanha-russa, com
médicos e enfermeiras a vigiarem de perto os níveis de oxigénio no sangue
dela. A coisa chegou a estar feia.
Viajei com a Andrea até ao norte. Ficámos num hotel perto do hospital.
Quando visitava a minha mãe, sentava-me ao lado da cama dela, juntamente
com o meu pai, a vê-la acordar e voltar a adormecer. Ajudei a dar-lhe a
comida do hospital à boca e saí muitas vezes à rua, para lhe ir comprar
batidos ou para levar um jornal ao meu pai. A preocupação com o estado da
minha mãe ofuscou tudo o resto. Sentia-me terrivelmente culpado por
praticamente a ter ignorado, quando ela me contou as suas primeiras idas ao
médico.
Naquele momento, não queria saber de e-mails urgentes que
continuavam sem resposta. Não sentia qualquer vontade de espreitar as
redes sociais. Ao ver-me ali sentado, numa Unidade de Cuidados
Intensivos, a ouvir os choros de agonia que chegavam de trás da fina cortina
do hospital, enquanto o doente da cama ao lado dava o último suspiro, o
próprio mundo parecia-me um cenário totalmente irrelevante.
As unidades de cuidados intensivos podem, por vezes, ser espaços
desoladores; mas aqueles quartos esterilizados, cheios de pessoas entre a
vida e a morte, também podem ser espaços de esperança. No meio de tudo
aquilo, as enfermeiras e os médicos eram uma inspiração.
É uma pena, parece-me, que sejam necessários acontecimentos tão
importantes nas nossas vidas, ou nas vidas daqueles que amamos, para
conseguirmos ter uma perspetiva diferente das coisas. Imaginem que
conseguíamos guardar essa nova perspetiva. Imaginem que conseguíamos
ter sempre a noção do que é prioritário, independentemente de estarmos
doentes ou saudáveis. Imaginem que conseguíamos pensar sempre naqueles
que amamos da maneira que pensamos quando eles têm uma doença
complicada. Imaginem que conseguíamos manter sempre à tona esse amor
(que está sempre lá). Imaginem que conseguíamos aplicar à própria vida a
nossa gentileza e o nosso sentimento de gratidão.
Agora, sempre que sinto a minha vida ficar atulhada de porcarias que
me provocam stress, procuro lembrar-me daquele quarto de hospital. Um
quarto em que os doentes agradeciam o simples facto de poderem olhar pela
janela. Em que agradeciam a possibilidade de verem uns raios de sol e uns
plátanos.
Um quarto onde a vida, em si mesma, era tudo.
Amor
Só o amor nos poderá salvar.
Menos psicogramas (coisas que nos fazem sentir
mais leves)
Imaginem se, na senda dos psicogramas, existissem coisas que
pudessem aliviar a vossa mente, torná-la mais leve. Nesse caso, uma
denominação possível poderia ser “psicogramas negativos” ou “menos pg”.

57 pg
O sol a aparecer inesperadamente por detrás de uma nuvem 320 pg
O “está tudo bem consigo” dito por um médico 638 pg
Estar de férias num sítio sem rede sem fios (após o pânico 125 pg
inicial) 487 pg
Passear o cão 732 pg
Uma sessão de ioga 398 pg
Ficarmos absorvidos por um bom livro 1291
Chegar a casa após uma viagem de comboio cansativa pg
Estar no meio da natureza 1350
Dançar pg
Um parente próximo que recupera bem de uma operação 3982
pg

E por aí fora.
Sri Lanka
Fui convidado para participar no festival literário da belíssima cidade
fortaleza de Galle, na costa sudoeste do Sri Lanka, no qual iria falar sobre
saúde mental. O evento acabou por se revelar bastante especial, já que falar
sobre doenças mentais ainda é uma espécie de tabu no Sri Lanka. A sessão
foi extremamente emotiva, pois pude ouvir relatos de pessoas que, ao
contrário do habitual, contavam publicamente as suas histórias com a
ansiedade, a depressão, a perturbação obsessiva-compulsiva, as tendências
suicidas, a perturbação bipolar ou a esquizofrenia. Era como se pudéssemos
sentir o estigma a evaporar-se diante dos nossos olhos.
Mas o dia seguinte à extraordinária sessão ficou ainda mais gravado na
minha memória. Na praia de Hikkiduwa, entre os habitantes locais e os
turistas de mochila às costas, pude alimentar tartarugas-gigantes. Dei-lhes
algas para comerem, com a minha própria mão. A Andrea e as crianças
estavam comigo. Aquele era o tipo de momento que eu, nos meus 20 e tal
anos, agoráfobo, convencido de que nem sequer chegaria aos 30, já tendo
afastado para longe todos os que gostavam de mim, acreditava que jamais
viesse a seria possível. E, afinal, já nos meus 40, ali estava eu, no
hemisfério sul, numa praia paradisíaca, rodeado pelas pessoas que amava,
em contacto com aqueles enormes e antiquíssimos répteis anfíbios. Na sua
longevidade, as tartarugas-gigantes pareciam muito serenas e sábias.
Desejei tanto que fosse possível a um humano fazer-lhes algumas
perguntas. Queria saber qual era o segredo daquela sabedoria que pareciam
evidenciar.
Portanto, quando sinto que a depressão começa a invadir-me, cerro os
olhos e acedo ao meu repositório de dias bons. Penso no sol, nos risos, nas
tartarugas. E tento recordar-me de como, por vezes, o que parece impossível
acaba por se concretizar.
Um modo anfíbio de ver a vida
– Olá, tartaruga.
– Oh, olá.
– Algum conselho em relação à vida?
– Perguntas-me a mim porquê?
– Porque és uma tartaruga.
– E?
– As tartarugas existem há uma eternidade. Andam por cá há cerca de
157 milhões de anos. Isso é mais de 700 vezes o tempo em que nós, o
Homo Sapiens, andamos por cá. Por isso, enquanto espécie, vocês devem
saber umas coisinhas.
– Estás a confundir longevidade com abrangência de conhecimento.
– É que, ao contrário das tartarugas, os humanos acabaram por fazer
deste mundo uma trapalhada.
– Eu sei. Estamos em perigo de extinção por vossa causa.
– Desculpa.
– A culpa é de todos, não é exclusivamente tua. Mas, sim, também é tua.
– Eu sei. Também sou humano. Tenho de partilhar essa culpa.
– Pois tens.
– Pois tenho.
– Bom, de qualquer maneira, se queres mesmo um conselho, eu diria
para parares com isso.
– Isso o quê?
– Isso. Correr atrás de coisa nenhuma. Os humanos parecem ter sempre
pressa em escapar-se de onde quer que estejam. Porquê? É por causa do ar
que respiram? Será que não vos sustém o suficiente? Talvez precisem de
passar mais tempo no mar. Mas eu diria: para com isso. E não é uma
questão de ritmo, é uma questão de sermos o nosso tempo. Tanto faz se te
moves de forma rápida ou lenta; o importante é teres a consciência de que
irás sempre contigo para toda a parte. Alegra-te por remares no oceano da
tua existência.
– Está bem.
– Olha para a minha cabeça. É minúscula. A minha proporção entre
cérebro e massa corporal é ridícula. Mas isso não é assim tão importante. Se
cuidares da tua vida, consegues concentrar-te em seres aquilo que precisas
de ser. Se quiseres, podes ver a vida de um modo anfíbio. Podes estar em
sintonia com os ritmos do planeta, seja no mar ou em terra. Podes ligar-te
aos sons do vento e da água. Podes sintonizar-te contigo próprio. Se queres
saber, é maravilhoso ser uma tartaruga.
– Acredito. Obrigado, tartaruga.
– Bom, e agora podes dar-me mais umas algas?
Inverter o círculo vicioso
A ANSIEDADE ALIMENTA-SE a si própria. Sofrer de ansiedade, em forma de
doença, torna-se um círculo vicioso de desespero. A única solução passa
por interromper o ciclo de metapreocupação; parar de nos preocuparmos
com o facto de nos preocuparmos, o que é praticamente impossível. Por
vezes, o truque passa por encontrar uma forma de inverter o círculo vicioso.
Eu faço-o através da aceitação de que estou num estado de não aceitação.
Tento sentir-me confortável com o facto de estar desconfortável. Tento
aceitar que não detenho o controlo.
Um estereótipo que é real: só podemos chegar ao lugar que queremos se
primeiro aceitarmos o lugar em que estamos. O mundo tenta dizer-nos que
não devemos aceitar o que somos. Incita-nos a querermos ser mais ricos,
mais bonitos, mais magros, mais felizes. Incita-nos a querermos mais.
Quando temos uma doença, este sentimento de fuga ao que somos fica
ainda mais forte; no entanto, é nessa condição que mais precisamos de nos
aceitar, de aceitar o momento doloroso, para nos podermos livrar dele.
Suavemente, deixando a dor voltar ao mundo de onde veio.
O céu será sempre o céu
Ainda agora olhei pela janela e senti-me imediatamente mais calmo. A
Lua está deslumbrante, meio escondida através de um véu de nuvens
arroxeadas. O céu é sensacional. Nenhuma fotografia consegue captar toda
a sua beleza.
Isto fez-me lembrar de outra coisa. Quando, há uma década, tive um
longo episódio de depressão (a pior depressão após o meu colapso dos 20 e
tal anos), olhar pela janela costumava ser uma das poucas atividades
capazes de me dar algum conforto. Vivíamos no Yorkshire, onde o céu
surgia vasto e límpido, por não haver muita iluminação artificial. À noite,
costumava levar o lixo até o caixote da rua e punha-me a observar o céu
imenso; à medida que me sentia cada vez mais pequenino, a minha dor
também diminuía. Ficava ali durante algum tempo, a respirar o ar puro, a
olhar para os planetas, as estrelas, as constelações. Inspirava
profundamente, como se o universo fosse algo que pudesse ser sorvido. Por
vezes, pousava a mão no estômago e começava a sentir a minha respiração
agitada a acalmar.
Perguntava-me muitas vezes, e ainda me pergunto, porque é que o céu,
especialmente o céu noturno, tinha aquele efeito em mim. Costumava achar
que talvez tivesse algo que ver com a escala. Quando olhamos para o
universo, não podemos deixar de nos sentirmos minúsculos. Sentimos a
nossa pequenez, tanto no espaço como no tempo, porque, ao olharmos para
o espaço, estamos também a olhar para a história. Vemos as estrelas como
elas eram, não como são. A luz não aparece instantaneamente; viaja no
tempo. A luz move-se a quase 300 mil quilómetros por segundo. O que
parece muito, mas, ao mesmo tempo, significa que a luz da estrela mais
próxima da Terra (sem ser o sol) demorou mais de quatro anos a chegar até
nós.
Algumas das estrelas visíveis a olho nu estão a mais de 15 mil anos-luz
de distância. Ou seja, a luz que vemos com os nossos olhos começou a sua
viagem por alturas do final da Idade do Gelo. Começou a viagem antes de a
humanidade ter aprendido a cultivar a terra. Contrariamente à ideia que
costumamos ouvir, a maior parte das estrelas que vemos não está morta. As
estrelas têm uma existência muito longa, ao invés do que acontece com os
humanos. Mas isso não estraga o efeito terapêutico do majestoso céu
noturno. Bem pelo contrário. O nosso breve papel no universo é uma das
coisas mais raras e belas das galáxias: somos um organismo vivo que
respira e tem consciência.
Quando olhamos para o céu, podemos tentar enquadrar no contexto
cósmico todas as nossas preocupações típicas do século XXI. O céu é maior
do que os e-mails, e os prazos, e hipotecas da casa, e trolls da Internet; é
maior do que a nossa mente e respetivas doenças; é maior do que nomes,
países, datas e relógios. Quando comparadas com o céu, todas as nossas
preocupações terrestres são bastante passageiras. Ao longo das nossas
vidas, ao longo de todos os capítulos da história da humanidade, o céu foi
sempre o céu.
E, claro, quando estamos a olhar para o céu, não estamos a olhar para
algo que esteja fora de nós. Na verdade, estamos a olhar para o sítio de onde
viemos. “O azoto no nosso DNA, o cálcio nos nossos dentes, o ferro no
nosso sangue, o carbono nas nossas tartes de maçã, foram feitos no interior
de estrelas em colapso. Nós somos feitos de material estelar”, escreveu o
astrofísico Carl Sagan, na sua obra-prima Cosmos.
O céu, tal como o mar, pode ancorar-nos. Parece falar connosco. “Olha,
está tudo bem; há algo maior do que a vida de que fazes parte e esse algo é,
literalmente, cósmico. É algo verdadeiramente maravilhoso. E tu tens de ser
como uma árvore ou como um pássaro para te sentires parte da ordem
maior da natureza, agora e sempre. Tu és incrível. És tudo e és nada. És um
único momento e és toda a eternidade. Fazes parte do universo em
movimento.
Bravo.
Natureza
JÁ TEM SIDO demonstrado que o céu serve mesmo para nos acalmar.
Em 2018, um estudo conduzido pelo King’s College de Londres
descobriu que a possibilidade de olharmos para o céu tem efeitos positivos
na nossa saúde mental. E não é apenas o céu; passa-se o mesmo com olhar
para as árvores, ouvir os pássaros, estar fora de casa, contactar com a
natureza.
Foi pedido aos participantes no estudo que registassem os seus estados
mentais em diferentes locais. O estudo tinha várias nuances, pois levava em
conta o risco individual de se desenvolver alguma perturbação mental, com
base em alguns testes prévios que avaliaram os comportamentos impulsivos
de cada participante.
A pesquisa, inteligentemente intitulada “Mente urbana: usar tecnologias
de smartphone para investigar em tempo real o impacto da natureza no
bem-estar mental”, revelou que, apesar de o contacto com a natureza ser
bom para todas as pessoas, é especialmente benéfico para quem for mais
vulnerável a problemas de saúde mental, como adição, perturbação de
hiperatividade e défice de atenção, perturbação da personalidade antissocial
e perturbação bipolar. Uma exposição curta à natureza tem um impacto
benéfico, e quantificável, no bem-estar mental”, concluiu o Dr. Andrea
Mechelli, que conduziu o estudo.
Surgem cada vez mais projetos de ecoterapia ou de atividades que
utilizam a natureza como processo ativo para a melhoria da saúde mental e
física. Nas cidades, estão a ser usados jardins e hortas comunitárias para
baixar os níveis de stress, ansiedade e depressão. Claro que isto quase se
poderia resumir a um velho conselho: “Vai apanhar ar fresco.” Em 1859,
nas suas Notas sobre Enfermagem, Florence Nightingale escreveu que
“além de um quarto fechado, o que mais magoa [os doentes] é um quarto
escuro”, deixando o conselho: “Não lhes basta luz, eles querem luz do sol
direta.” Os estudos científicos parecem, finalmente, chegar à mesma
conclusão.
O problema é que, atualmente, mais de metade da população mundial
vive em grandes cidades. Em 1950, mais de dois terços da população
mundial ainda vivia em cenários rurais. Agora, a maior parte das pessoas
reside nas áreas urbanas. E, à medida que as pessoas passam cada vez mais
tempo dentro de paredes, torna-se evidente que a nossa existência está
menos ligada às florestas ou ao céu azul.
Chegou a altura de ganharmos uma maior consciência de que os azuis e
os verdes da natureza nos podem ajudar. Tal como podem ajudar a vida das
crianças. Mais ar fresco, mais luz solar e, com sorte, mais passeios pelo
campo e pela floresta. Escorados nas pesquisas científicas, talvez seja
possível tornar mais verdes e agradáveis os espaços urbanos comuns em
que habitamos, para que todos, e não apenas um punhado de sortudos,
possam colher os benefícios da natureza.
O mundo cá dentro
SIM, É VERDADE que a beleza da natureza pode curar. Mas, em 1999, em
Ibiza, vi-me à beira de um penhasco, próximo da moradia onde vivia, no
aconchego de um dos cantos mais calmos da zona este da ilha, preparando-
me para saltar.
Não vislumbrava nem sentia qualquer hipótese de conseguir aguentar o
período de dor e confusão mental que atravessava; só queria que não
houvesse ninguém que gostasse de mim, para poder, simplesmente,
desaparecer sem causar dano.
Por vezes, penso naquele precipício. Penso nos arbustos sob os meus
pés, do mar a brilhar à minha frente, da costa de paredes calcárias a perder
de vista. Naquele momento, nada daquilo me servia de consolo. Está
provado que a natureza pode ser boa para nós; mas, num momento de crise,
nada parece ter o poder de nos ajudar. Naquele momento de dor extrema,
embora invisível, nenhuma paisagem do mundo poderia fazer-me sentir
melhor. No espaço de duas décadas, a vista daquele precipício não deve ter
mudado muito. Ainda assim, agora podia ficar lá de pé, a sentir a beleza em
redor, achando-me muito diferente do rapaz aterrorizado que lá estivera.
O mundo afeta-nos; mas não é bem a nós. Há um espaço no nosso
interior que se mantém independente do que vemos e de onde estamos. Isto
explica a razão por que podemos sentir dor, mesmo estando num cenário
exterior repleto de beleza e paz. Mas há outro lado da moeda: a
possibilidade de nos sentirmos calmos no meio de um mundo cheio de
medo. Podemos cultivar uma tranquilidade interior, capaz de subsistir e
crescer, ajudando-nos a seguir em frente.
Costuma dizer-se que um livro é diferente para cada leitor. Ou seja, cada
leitor lê o livro de uma forma específica. Se cinco pessoas se sentassem
para ler, por exemplo, A Mão Esquerda das Trevas, de Ursula K. Le Guin,
acabaríamos com cinco opiniões diferentes, e todas elas legítimas. A
questão não é tanto o que se lê, mas antes como se lê. Um escritor até pode
dar início a uma história, mas essa história só ganha vida com o leitor. E um
livro nunca vive duas vezes da mesma forma. A narrativa não tem só que
ver com as palavras que a compõem, mas também com quem lê essas
palavras. Essa é a equação variável. É aí que reside a magia. A única coisa
que um escritor pode fazer é oferecer um fósforo (e, de preferência, um
fósforo seco). Depois, é o leitor que tem de acender essa chama e dar vida
ao livro.
O mundo também é assim. Há tantos mundos quanto os seus habitantes.
O mundo existe em cada um de nós. A nossa experiência neste mundo não é
uma coisa única, objetiva e imutável chamada “O Mundo”. Nada disso. A
nossa experiência neste mundo é a interação que cada um de nós tem com o
mundo, a interpretação que cada um de nós faz do mundo. De certa forma,
todos criamos os nossos próprios mundos. Lemos o mundo à nossa maneira.
Mas, também de certo modo, podemos escolher as leituras que queremos
fazer. Temos de descobrir que facetas do mundo nos fazem sentir tristes, ou
amedrontados, ou confusos, ou doentes, ou calmos, ou felizes.
Temos de descobrir, entre todos os milhares de milhões de mundos
pessoais, qual é o mundo em que queremos viver. O mundo que, se não
fosse imaginado por cada um de nós, jamais existiria.
Do mesmo modo, temos de perceber que o mundo não corresponde aos
nossos sentimentos, independentemente da forma como ele os influencie.
Podemos sentir-nos calmos num hospital ou submersos pela dor num
penhasco espanhol.
Podemos ser contraditórios em relação a nós próprios. Podemos
contradizer o mundo. Por vezes, podemos até fazer o impossível. Podemos
viver quando a morte parece inevitável. E, mesmo depois de percebermos
que ficámos sem esperança, podemos ter esperança.
Nós, desligados
A VIDA, POR VEZES, pode soar como uma canção com demasiada
produção: uma cacofonia de 100 instrumentos a tocarem todos em
simultâneo. Por vezes, quando uma canção está repleta de coisas, é difícil
perceber de que canção se trata. Por vezes, a mesma canção soa melhor se
for reduzida apenas a uma voz e a uma guitarra.
E, tal como essa canção com demasiadas coisas, nós também nos
podemos sentir um pouco perdidos.
A nossa constituição natural não sofreu alterações ao longo das últimas
dezenas de milhares de anos, e isso é algo de que nos deveríamos lembrar,
aquando da criação de uma nova aplicação, um novo smartphone, uma nova
rede social, uma nova arma nuclear. Devíamos ter sempre presente a canção
que afirma a nossa condição humana. Pensarmos no céu, quando nos
sentirmos submersos. Descobrirmos a calma no meio de uma era saturada
pelo marketing, e pelas notícias de última hora, e pelos milhões de picos
emocionais proporcionados diariamente pela Internet. Não termos receio de
termos medo. Não termos receio de sermos nós próprios – fantásticos,
verdadeiros, belos, frágeis, imperfeitos –, este extraordinário animal que vai
envelhecendo, preso no tempo e no espaço, mas que também tem a
capacidade de se libertar, caso escolha parar, a qualquer momento, para
descobrir alguma coisa – uma canção, um raio de sol, uma conversa, um
grafiti – que lhe faça sentir o assombro, tão puro e improvável, de estar
vivo.
18.

Tudo o que somos, já é o suficiente


“Há um único recanto do universo que podemos ter a certeza de
conseguir melhorar: o nosso próprio eu.”
Aldous Huxley
Coisas que existem quase desde sempre
PENHASCOS. FETOS. Camaradagem. O céu. O homem na Lua. O
sentimentalismo do amanhecer e do pôr-do-sol. Amor eterno. Desejo
inebriante. Planos que se abandonam. Arrependimento. Noites sem nuvens.
Lua cheia. Beijos matinais. Fruta fresca. Oceanos. Mares. Marés. Rios.
Lagos plácidos como um espelho. Rostos amistosos. Humor. Riso.
Histórias. Mitos. Canções. Fome. Prazer. Sexo. Morte. Fé. Fogo. A bondade
profunda e silenciosa do eu observador. A luz que fica mais intensa devido
à escuridão em redor. Contacto visual. Dançar. Conversa de chacha.
Silêncios cheios de significado. Sono. Sonhos. Pesadelos. Monstros feitos
de sombras. Tartarugas. Peixes-espada. A frescura verdejante da erva
molhada. As nuvens arroxeadas do entardecer. A erosão lenta das rochas
causado pelo embate das ondas do mar. A mancha escura e brilhante da
areia molhada. O suspiro de alívio depois de matarmos a sede. A terrível e
tentadora consciência de estar vivo. O agora de que é feito o para sempre. A
possibilidade da esperança. A promessa do lar.
O que digo a mim mesmo quando tudo se torna
demasiado pesado
1. Está tudo bem.

2. Mesmo que não esteja tudo bem, se for uma coisa que não podes
controlar, não a tentes controlar.

3. Sentes-te incompreendido. Toda a gente é incompreendida. Não te


preocupes com a compreensão das outras pessoas. Procura
compreender-te a ti mesmo. Depois disso, o resto não vai ter
importância.

4. Aceita-te. Se não conseguires ser feliz como és, pelo menos tenta
aceitar aquilo que és agora. Não podes mudar nada em ti antes de te
conheceres.

5. Nunca sejas fixe. Nunca tentes ser fixe. Nunca te preocupes com o que
pensam as pessoas fixes. Aproxima-te das pessoas calorosas. A vida é
calor. Estarás frio quando morreres.

6. Encontra um bom livro. Senta-te e lê-o. Haverá alturas da tua vida em


que te vais sentir perdido e confuso. A leitura é a forma de regressares
a ti próprio. Quero que te lembres disto. Quanto mais leres, mais
facilmente encontrarás a saída desses tempos complicados.

7. Não te prendas a certas coisas. Não te deixes cegar pelas conotações


do teu nome, género, nacionalidade, sexualidade ou perfil de
Facebook. Sê mais do que um mero conjunto de dados à espera de
serem recolhidos. “Quando me despojo do que sou, torno-me no que
poderei ser”, disse o filósofo chinês Lao Tzu.
8. Abranda. “A natureza não se apressa, ainda assim, tudo se concretiza”,
para citar novamente Lao Tzu.

9. Desfruta da Internet. Não a uses quando ela não te der prazer. (Nada
foi tão fácil de dizer e tão difícil de fazer.)

10. Lembra-te de que muitas pessoas pensam o mesmo que tu. Até as
poderás encontrar online. Aliás, esse é um dos aspetos mais
terapêuticos da era das redes sociais: a possibilidade de encontrares
dores semelhantes à que sentes. Poderes encontrar alguém que irá
compreender-te.

11. Como disse Yoda, da Guerra das Estrelas, não podes tentar ser.
Tentar ser é precisamente o oposto de ser.

12. Os defeitos são o que te torna alguém único. Acarinha as tuas


imperfeições. Não tentes separar e deitar fora a tua natureza humana.

13. Não deixes que o marketing te convença de que a felicidade é uma


transação comercial. “Muitas pessoas gastam o dinheiro que não têm
para comprar coisas de que não precisam, de forma a impressionar
pessoas de que não gostam», disse o cowboy de ascendência índia
Will Rogers.

14. Toma sempre o pequeno-almoço.

15. Deita-te antes da meia-noite, na maior parte dos dias.

16. Mesmo durante as épocas mais loucas – Natal, jantares de família,


períodos de muito trabalho, férias citadinas – reserva alguns
momentos de paz. De vez em quando, retira-te para uma divisão
vazia. Acrescenta uns parênteses ao teu dia.
17. Faz menos compras.

18. Pratica ioga. É mais difícil ficares stressado se o teu corpo e a tua
respiração estiverem calmos.

19. Quando surgirem alturas complicadas, cumpre uma rotina.

20. Não compares as piores partes da tua vida com as melhores partes da
vida das outras pessoas.

21. Dá valor às coisas de que sentirias mais saudades caso elas


desaparecessem.

22. Não tentes ficar preso ao chão. Não tentes compreender o que és de
forma absoluta e definitiva. “Tentar definir-se é como tentar morder o
próprio dente”, disse o filósofo Alan Watts.

23. Vai dar uma caminhada. Vai dar uma corrida. Dança. Come uma tosta
com manteiga de amendoim.

24. Não tentes sentir nada que não sintas. Não tentes ser nada que não
podes ser. Essas tentativas vão deixar-te esgotado.

25. Estar ligado ao mundo não tem nada que ver com redes sem fios.

26. O futuro não existe. Fazer planos para o futuro é apenas fazer planos
para outro presente em que estaremos a fazer planos para o futuro.

27. Respira.

28. “Não é maneira de viver, ficar à espera de amar”, escreveu Dave


Eggers. Se tens algo ou alguém que amas, então ama-a neste preciso
instante. Ama agora. Ama neste momento. Ama sem medo. Sê
altruísta a distribuíres amor.

29. Não te sintas culpado. Atualmente, é quase impossível não sentirmos


algum tipo de culpa. Isso só não acontece se fores um sociopata.
Estamos atolados de culpa. A culpa que inculcamos desde as
refeições da nossa infância, a culpa de estarmos a comer quando
sabemos que há pessoas que passam fome. A culpa de pertencermos a
uma classe privilegiada. A culpa ambiental de conduzirmos um carro,
ou de andarmos de avião, ou de usarmos plástico. A culpa de
comprarmos coisas que podem ser eticamente duvidosas, embora sem
percebermos bem de que modo. A culpa dos desejos de infidelidade
ou dos desejos reprimidos. A culpa de não sermos o que as outras
pessoas querem que nós sejamos. A culpa de ocuparmos espaço. A
culpa de não conseguirmos fazer coisas que as outras pessoas
conseguem fazer. A culpa de estarmos doentes. A culpa de estarmos
vivos. E toda esta culpa é inútil. Não ajuda ninguém. Tenta fazer bem
as coisas agora, sem te afogares nos eventuais males que possas ter
feito no passado.

30. Põe-te à margem das forças de mercado. Não entres nesse jogo
competitivo. Resiste à culpa do não vou fazer. Descobre o espaço que
não está à venda dentro de ti. O espaço verdadeiro. O espaço humano.
O espaço que nunca pode ser avaliado através de números, dinheiro
ou produtividade. O espaço que a economia de mercado não
consegue distinguir.

31. Olha para o céu. (É fantástico. É sempre fantástico.)

32. Passa algum tempo com um animal que não seja humano.
33. Não te envergonhes de ser aborrecido. O aborrecimento pode ser
saudável. Quando a vida se torna dura, tenta centrar-te nessas
emoções de tonalidade bege.

34. Não te avalies de acordo com a avaliação que as outras pessoas


fazem de ti. “Ninguém pode fazer com que te sintas inferior sem o
teu consentimento”, disse Eleanor Roosevelt.

35. O mundo pode ser um lugar triste. Mas lembra-te que, hoje mesmo,
houve um milhão de atos de bondade de que ninguém falou. Um
milhão de atos de amor. A bondade silenciosa dos seres humanos
continua bem viva.

36. Não te fustigues por seres uma grande trapalhada. Está tudo bem. O
próprio universo é uma enorme confusão. As galáxias andam à
deriva. Portanto, estás em sintonia com o cosmos.

37. Se te sentires mentalmente menos bem, trata de ti como se tivesses


um problema físico. Pensa em asma, ou na gripe, ou outra coisa
qualquer. Faz o que tens de fazer para melhorares e não te sintas
envergonhado por isso. Não te ponhas a andar para todo o lado com
uma perna partida.

38. Não faz mal se chorares. As pessoas choram. As mulheres choram. E


os homens choram. Têm glândulas e sacos lacrimais iguais às dos
outros seres humanos. Não existem diferenças entre um homem e
uma mulher a chorar. É algo natural. Os papéis sociais tornam-se
tóxicos quando não permitem um escape para a dor. Ou uma reação
emocional. Chora, humano. Chora até ficares sem lágrimas.
39. Permite-te falhar. Permite-te ter dúvidas. Permite-te seres vulnerável.
Permite-te mudares de ideias. Permite-te seres imperfeito. Permite-te
resistires ao dinamismo. Permite-te não atravessares
propositadamente a vida como uma seta disparada a alta velocidade.

40. Procura querer menos. Um desejo de algo é um buraco. Querer algo


passa a ser uma falta. Essa é parte da equação. Quando o poeta Byron
escreveu “Quero um herói”, ele queria dizer que lhe faltava um. O ato
de querer coisas de que não precisamos faz-nos sentir uma falta que
não tínhamos. Tudo aquilo de que precisas está aqui. Um ser humano
fica completo pelo simples facto de ser humano. Nós somos o nosso
próprio destino.
Lei dos rendimentos decrescentes
O PLANETA TERRA É ÚNICO. Na vasta arena cósmica do universo, segundo
o que sabemos, trata-se do único sítio onde existe vida. E é um planeta que
inclui tudo aquilo de que os humanos precisam para sobreviverem.
Mas não é só o planeta que é incrível. Tu também és. Foste incrível
desde o dia em que nasceste. Desde esse dia, foste tudo. Ninguém olha para
um recém-nascido e pensa: oh, não, olhem só para isto, falta-lhe tanta
coisa. As pessoas olham para um bebé e pensam que é a imagem da
perfeição; um ser puro, sem nenhuma das complexidades e cargas da vida.
Nascemos completos. Deem-nos comida, bebida, um abrigo, cantem-
nos uma canção, contem-nos uma história, deem-nos pessoas com quem
conversar, pessoas de quem possamos gostar, pessoas por quem nos
apaixonarmos, e já está: ficamos com uma vida.
Mas, algures pelo caminho, aumentámos a fasquia daquilo de que
precisamos, ou sentimos que precisamos, para sermos felizes.
Somos encorajados a comprar coisas que nos façam felizes, porque as
empresas são encorajadas a ganhar mais dinheiro para aumentar o seu
sucesso. E isto é viciante. Não porque nos faz felizes; é viciante por não nos
fazer felizes. Compramos algo e, durante algum tempo, gostamos disso (por
nos agradar a parte da novidade); mas depois habituamo-nos a possuir essa
coisa, “sossegamos” e passamos a necessitar de outra coisa qualquer.
Precisamos daquela sensação de mudança, de variedade. Algo mais recente,
melhor, mais evoluído. E o ciclo renova-se.
Com o passar do tempo, habituamo-nos a ter isto e mais aquilo.
E isto aplica-se a tudo.
Quem ambicionar ter muitos gostos numa selfie publicada no Instagram
não tardará a querer ter ainda mais gostos, ficando desapontado caso não o
consiga. O estudante que só tira Muito Bom nos testes vai sentir-se um
falhado caso tenha um único Bom. O empresário que enriquece vai querer
ganhar ainda mais dinheiro. O frequentador do ginásio que gosta do seu
novo corpo tonificado vai querer treinar cada vez mais. O funcionário que
obteve a promoção que tanto desejava não tardará a querer outra promoção.
Cada compra, cada conquista, cada feito acaba sempre por aumentar a
fasquia.
Em tempos, eu pensava que ficaria eternamente feliz se os meus artigos
fossem publicados. Depois, passou a ser publicar um livro. Depois, era
conseguir publicar outro livro. Depois, era se o livro se tornasse um best-
seller. Depois, se mais um fosse um best-seller. Depois, se o livro fosse o
número um da lista dos best-sellers. Depois, se me comprassem os direitos
do livro para uma adaptação ao cinema. E por aí fora. E, de facto, como
acontece a tantas pessoas, fiquei feliz sempre que alcancei um objetivo que
estabelecera para a minha carreira; mas isto era apenas um sentimento
fugaz, pois a minha mente rapidamente se habituava ao que eu conseguira
alcançar e tratava de traçar um novo objetivo. Por isso, quando mais
obtinha, mais precisava para atingir a estabilidade.
Quanto mais “sucesso” obtemos, mais facilmente nos sentiremos
desapontados quando não conseguirmos alcançar o nosso desejo. A única
diferença, quando se é bem-sucedido, é que ninguém vai sentir pena de nós.
Independentemente do que possa alcançar ou comprar, os sentimentos
associados não serão duradouros. Um campeão olímpico vai querer sempre
mais vitórias. A estrela que adora os holofotes vai querer sempre mais
fama. Tal como o alcoólico quer mais uma bebida ou o jogador quer fazer
mais uma aposta.
Mas o que se recebe em troca vai estar sempre a diminuir. A criança que
tem 100 brinquedos vai brincar cada vez menos com um novo presente.
Pensem um pouco nisto. Se pudessem comprar umas férias dez vezes
mais caras do que as vossas últimas férias, iriam sentir-se dez vezes mais
relaxados? Duvido. Se gastassem dez vezes mais tempo na página de
entrada do Twitter, ficariam dez vezes mais bem informados? Claro que
não. Se passassem o dobro do tempo no trabalho, despachariam o dobro do
trabalho? Os estudos sugerem que não. Se pudessem comprar um carro dez
vezes mais caro do que o vosso carro atual ele faria um trajeto dez vezes
mais rapidamente? Não. Se comprassem mais cremes antienvelhecimento
envelheceriam menos com cada compra feita? Também não.
Somos condicionados a querermos mais. Muitas vezes, este
condicionamento surge por parte de empresas que estão igualmente
condicionadas, entre elas, para quererem mais. Querer mais é o padrão
geral.
Mas, tal como só existe um planeta – cujos recursos são finitos –,
também existe apenas um eu. Cada um de nós tem igualmente um recurso
finito: o tempo. E, simplesmente, não conseguimos multiplicar-nos. Um
planeta sobrecarregado persuade-nos a termos uma vida sobrecarregada;
mas, em última análise, não podemos brincar com todos os brinquedos. Não
conseguimos usar todas as aplicações. Não podemos ir a todas as festas.
Não podemos fazer o trabalho de 20 pessoas. Não podemos estar
atualizados sobre todas as notícias. Não podemos usar simultaneamente os
nossos 11 casacos. Não conseguimos ver todas as séries que não se podem
perder. Não podemos viver em dois sítios ao mesmo tempo. Podemos
comprar mais coisas, conquistar mais coisas, trabalhar mais horas, ganhar
mais dinheiro, esforçarmo-nos mais, publicar mais tweets, ver mais coisas,
querer mais, mas, à medida que vai decrescendo o tilintar de cada uma
destas novas campainhas, chega-se a um ponto em que temos de nos
perguntar: isto tudo serve para quê?
Quanta felicidade extra estou a conquistar? Porque é que quero mais do
que aquilo de que preciso?
Não seria mais feliz se aprendesse a apreciar o que já tenho?
Ideias simples para um recomeço
* Estado de consciência. Esteja consciente de quanto tempo passa com
o telemóvel na mão, da forma como as notícias mexem com a sua
mente, de como as suas atitudes relativamente ao trabalho estão a
mudar, de que está ligado ao sistema nervoso do mundo, da quantidade
de pressões que sente e de quantas delas derivam de problemas da vida
moderna. Ter consciência das coisas torna-se uma solução. Estarmos
cientes de que um fogão aceso nos vai queimar a mão implica também
a noção de que podemos manter a mão longe da chama. Do mesmo
modo, estarmos conscientes dos tubarões invisíveis da vida moderna
ajuda a evitá-los.

* Sentido de completude. Não temos de sentir as deficiências que outros


nos fazem sentir ou que a sociedade parece querer que sintamos.
Nascemos da forma que era suposto nascer, e assim continuamos.
Nunca seremos outra pessoa, por isso não procure ser outra pessoa.
Não temos duplos. Estamos aqui para sermos autênticos. Por isso, não
se compare com os outros nem se julgue com base na opinião de
pessoas que nunca viveram na sua pele.

* O mundo é real, mas o seu mundo é subjetivo. Mudar a sua perspetiva


altera o seu planeta. Pode até mudar a sua vida. Na teoria multiverso,
defende-se que cada decisão tomada por nós leva à criação de um novo
universo. Por vezes, podemos entrar num novo universo apenas pelo
facto de não verificarmos o telemóvel de dez em dez minutos.

* Menos é mais. Um planeta sobrecarregado conduz a uma mente


sobrecarregada. Conduz a noitadas e sonos leves. Conduz a
preocupações, às 3h00, por causa dos e-mails por responder. Em casos
mais extremos, conduz a ataques de pânico no corredor dos cereais.
Não é tanto Mo Money Mo Problems (mais dinheiro, mais problemas),
como dizia uma música de Notorious B.I.G. É “mais tudo, mais
problemas”. Simplifique a sua vida. Ponha de lado o que não precisa
de estar lá.

* Já sabe aquilo que tem maior significado para si. As coisas que
realmente importam são, obviamente, as coisas de que sentiria uma
profunda falta caso ficasse sem elas. Quando tiver oportunidade, são
essas as coisas em que deve gastar o seu tempo. Pessoas, locais, livros,
comidas, experiências, tanto faz. E, por vezes, para desfrutar mais
destas coisas, vai ter de se livrar de outras. Precisa de se libertar.
As coisas importantes
HÁ UMA SEMANA, fui a uma loja solidária deixar uma série de coisas que
acumulara ao longo dos tempos. Senti-me bem. Não apenas por causa da
solidariedade, mas pela expurgação. A nossa casa ficou livre de muita da
minha tralha. Roupas e aftershaves que nunca usava, duas cadeiras em que
ninguém se sentava, DVD antigos de filmes que nunca vou voltar a ver e
até, hum, alguns livros que nunca irei ler.
– Tens a certeza de que te queres ver livre disto tudo? – perguntara-me a
Andrea, ao observar a quantidade de sacos de plástico no hall de entrada.
Até ela, uma pessoa com o dom de se desembaraçar das coisas que não são
necessárias, estava espantada.
– Sim. Acho que sim.
Na verdade, este processo de separar coisas para deitar fora fez com que
desse mais valor a certas coisas que já eram minhas. Por exemplo, ao pôr de
lado alguns DVD de filmes antigos, descobri um que não só queria manter,
como até queria rever. Do Céu Caiu uma Estrela era o título da capa. Dois
dias depois, revi o filme.
Não quero, de forma alguma, deixar-vos com a ideia de que estão a
perder algo importante; aliás, nem se trata de nada deste tempo. Mas se, por
acaso, ainda não viram Do Céu Caiu uma Estrela, filme a preto e branco de
1946, então tentem ver. Não é um filme lamechas. É sentimental e sério,
mas de uma forma honesta. É um filme muito cru e poderoso sobre a
importância das vidas ditas insignificantes. Um filme sobre a razão de
sermos importantes. Sobre a diferença que uma vida pode fazer. Sobre as
razões para nos mantermos vivos. Aquele filme nunca será uma perda de
tempo, pelo contrário, ajuda-nos a valorizar o tempo.
Isto serve de exemplo sobre como a atividade de pormos de lado a tralha
sem importância – que consume o nosso tempo e entope a nossa sala de
estar – ajuda a realçar as coisas que valem a pena. Da mesma forma, limitar
o nosso acesso às notícias ajuda-nos a dar prioridade aos assuntos
importantes, no tempo que acabarmos por dedicar às notícias. Trabalhar
menos horas ajuda a tornar essas horas mais produtivas. E por aí adiante.
Façam uma edição à vossa vida. Desentupam o vosso espaço.
Para vos dizer a verdade, a parte fácil foi separar as coisas. É fácil
dispensarmos metade da roupa do nosso armário. É fácil afinarmos o filtro
do e-mail e desligarmos as notificações. É fácil sermos mais amáveis para
com as pessoas quando estamos online. É relativamente fácil passarmos a
deitar-nos um pouco mais cedo. É relativamente fácil ficarmos mais
conscientes da nossa respiração e tentarmos arranjar meia hora por dia para
praticar ioga. É relativamente fácil deixarmos o telemóvel a carregar à
noite, fora do nosso quarto. (Bem, esta ainda é difícil, mas é assim que
estou a fazer.)
A parte realmente difícil é mudarmos a nossa atitude interior. Como
podemos editar isso?
São atitudes que a sociedade enraizou dentro de nós. Atitudes
relacionadas com o que temos de fazer e o que temos de ser para termos
algum valor. Com o modo como deveríamos trabalhar, ou ganhar dinheiro,
ou consumir, sobre o que deveríamos estar a ver, sobre como deveria ser a
nossa vida. Com o modo como devemos separar a nossa saúde mental da
nossa saúde física. Com as coisas de que, segundo os políticos e os
marketeers, devemos ter medo. Com as coisas que devemos querer e as
coisas de que é suposto sentirmos falta, de modo a darmos a nossa
contribuição para manter a ordem social e o crescimento económico.
Pois. Não é fácil. Mas a aceitação parece ser fundamental.
Aceitar o que somos. Aceitar a realidade da sociedade, mas também a
realidade do nosso eu, sem sentirmos que estamos incompletos. É essa
sensação de nos faltar algo que enche de tralha as nossas mentes e as nossas
casas. Temos de nos tentar manter inteiros. Seres humanos completos, sem
outra razão para andar por cá a não ser serem eles próprios. “Passa por
libertar o nosso eu”, escreveu Virginia Woolf, sentindo algumas
dificuldades em concretizá-lo. “Deixar que ele encontre as suas dimensões,
sem impedimentos.”
Por falar nisso, estaria a mentir se dissesse que já cheguei a este ponto.
Nem por sombras. Estou mais próximo, mas ainda muito distante. Até
duvido que chegue de forma total a essa mente tão límpida como uma
nascente de montanha. Duvido que possa atingir esse idílico estado de
nirvana, acima do nervosismo do mundo da tecnologia, da sociedade de
consumo, das múltiplas distrações. Não existe uma linha de chegada. Não
se trata de atingirmos a perfeição. Na verdade, punirmo-nos a nós mesmos
por não sermos perfeitos faz parte do problema. Por isso, aceitar o lugar em
que estou – com melhorias, mas imperfeito –, acaba por ser uma tarefa sem
fim, mas que, ainda assim, está repleta de recompensas.
É muito mais fácil protegermo-nos quando sabemos quais são as coisas
que nos fazem mal.
Passa-se o mesmo com a alimentação. Se soubermos que as barras de
chocolate e a Coca-Cola não são lá muito saudáveis, isso não significa que
jamais consumiremos esses produtos. Mas talvez possa significar um
consumo mais moderado, e, quem sabe, até um maior prazer sempre que
comermos uma barra de chocolate ou bebermos um refrigerante, por passar
a ser uma ocasião especial.
Portanto, em vez de ver cinco horas seguidas de televisão, agora tento
ver um só programa ou episódio. Em vez de gastar a tarde inteira nas redes
sociais, gasto dez minutos aqui e ali, vendo sempre as horas no computador
quando me ligo, para conseguir ficar com a noção do tempo que estou a
gastar. Sempre que posso, tento praticar boas ações. Nada de heroico,
apenas coisas banais: doar para uma causa solidária, conversar com sem-
abrigo, ajudar pessoas com perturbações mentais, oferecer o meu lugar no
comboio. Microdelicadezas. Não as faço apenas por uma questão altruísta,
mas também porque praticar boas ações é algo de muito reconfortante. Faz-
nos sentir bem. É uma espécie de limpeza psicológica. A bondade tem a
capacidade de renovar a alma. E talvez isso faça do nosso planeta ansioso
um planeta um pouco menos ansioso.
O processo nunca termina. Tento estar bem comigo. Tento sentir que
esta forma de me aceitar não passa por me forçar, ou me desgastar, ou
praticar muito. Tento pensar que, para ser um homem, não preciso de ser
forte e invulnerável. Tento pensar que não tenho de me preocupar com o
que as outras pessoas pensam de mim. E, mesmo quando me sinto frágil,
mesmo quando sou assoberbado por todos aqueles pensamentos e medos
indesejados, por todo aquele spam mental, tento manter a calma. Tento nem
sequer tentar nada e limitar-me a aceitar a minha forma de ser. Aceito o que
sinto. E, assim, posso compreender o que sinto e tentar mudar o meu modo
de interagir com o mundo.
O mundo está dentro de si
NÓS ATÉ podemos ser uma parte do planeta. Mas, do mesmo modo, o
planeta é uma parte de nós. E podemos escolher o modo como respondemos
ao planeta. Podemos mudar as partes que entram em nós. Em certo sentido,
é fácil concluir que o planeta mostra alguns sintomas semelhantes aos de
alguém que sofre de uma perturbação de ansiedade; só que não existe
apenas uma versão do mundo. Há sete mil milhões de versões do mundo. O
ideal é que encontremos a versão que melhor combina connosco.
E lembre-se: tudo o que os humanos têm de especial – a nossa
capacidade para amar, criar arte, fazer amizades, inventar histórias e tudo
isso – não resulta da vida moderna, mas antes do facto de sermos humanos.
Por isso, enquanto não for possível desembaraçar-nos do stress desvairado e
transitório da vida moderna, podemos encostar uma orelha ao nosso eu
humano (ou, se preferirem, à nossa alma) para escutarmos a quietude
silenciosa da existência. E compreender que não precisamos que nos
distraiam de nós próprios.
Tudo aquilo de que precisamos já está aqui. Tudo o que somos é
suficiente. Não precisamos de um barco maior para lidarmos com os
tubarões invisíveis que nadam ao nosso redor. Somos maiores do que o
barco. O cérebro, como disse Emily Dickinson, é maior do que o céu. Se
dermos conta de como a vida moderna nos faz sentir e se, ao
reconhecermos essa realidade, tivermos a abertura de espírito suficiente
para mudarmos – quando a mudança for benéfica para a nossa saúde –,
então poderemos envolver-nos neste mundo tão belo.
Começo
OLHO PARA O RELÓGIO do meu computador.
Agora costumo fazer isto para saber o tempo que passo a olhar para o
ecrã. O simples facto de ter essa noção faz com que passe menos tempo ao
computador. Acho que é este o segredo: estar consciente das coisas.
Eis algo mais de que tenho consciência: o meu cão, neste momento,
aninhado aos meus pés.
E também estou consciente da paisagem.
Através da janela, vejo o sol a brilhar. À distância, consigo ver o mar. E
um parque eólico flutuante, a pontuar o horizonte com pequenas linhas de
esperança. E um emaranhado de cabos telefónicos que cortam o cenário
como riscos de uma pintura abstrata. E telhados e chaminés que apontam
para esse céu a que raramente prestamos atenção.
Observo o mar e isso acalma-me. Estou a tentar ficar em sintonia com
aquilo que nos faz sentir bem neste mundo. É deste modo que podemos
viver no presente. É assim que cada momento se pode transformar num
começo. Por estarmos conscientes. Por afastar as coisas de que não
precisamos e descobrir aquilo de que o nosso ser realmente necessita. E, a
partir desse estado de consciência, poderemos encontrar uma forma de nos
mantermos sob controlo, sem sermos obrigados a prescindir do nosso amor
por este mundo. É essa a missão. É difícil, sim, difícil como o raio. Mas,
por outro lado, também é melhor do que o desespero. E, se nos
assegurarmos de que isto não será apenas mais uma coisa em que podemos
falhar, se aceitarmos as nossas falhas e fracassos como algo natural, então, a
nossa missão fica bastante mais facilitada.
Mais logo, vou a um centro comercial. Não gosto de andar em centros
comerciais, mas já não me provocam ataques de pânico. O segredo para
sobreviver aos centros comerciais, aos supermercados, aos comentários
negativos na Internet ou a qualquer outra coisa não passa por ignorá-los, ou
fugir deles, ou lutar contra eles; passa por deixá-los existirem. Aceitem que
não têm qualquer controlo sobre isso. Apenas podem ter controlo sobre
vocês mesmos.
“Afinal de contas, a melhor coisa que se pode fazer quando chove é
deixar que chova”, escreveu o poeta Henry Wodsworth Longfellow. Isso
mesmo. Deixem chover. Deixem o planeta ser o que é. Não há alternativa.
Mas, além disso, estejam conscientes dos vossos sentimentos, sejam bons
ou maus. Percebam o que funciona bem para vocês e aceitem o que
funciona mal. Quando se sabe que a chuva é apenas chuva, e não o fim do
mundo, tudo fica mais fácil.
Mas, neste preciso momento, não está a chover.
Por isso, assim que terminar esta página, vou gravar este documento,
fechar o portátil e vou até lá fora.
Vou sair para a luz do sol e para o ar puro.
Vou sair para a vida.

FIM
Pessoas a quem gostaria de agradecer

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que conheci na vida real ou


online ao longo dos últimos anos e que arranjaram coragem para falarem
sobre a sua saúde mental. Quanto mais falamos, mais encorajamos outros a
fazerem o mesmo.
Embora os livros, por ironia, só tenham um nome na capa, são
usualmente um trabalho de equipa. É o caso deste livro, ainda mais do que
outros. Primeiro, sinto uma enorme e permanente gratidão para com a
minha grande, calorosa, destemida e incansável agente Clare Conville, e
para com todos aqueles que trabalham com ela na C+W Curtis Brown.
Tenho de agradecer ao meu excelente e paciente editor Francis
Bickmore, da Canongate, e a todas as outras pessoas inteligentes que leram
as primeiras versões, incluindo os meus brilhantes editores do outro lado do
oceano – o meu editor nos Estados Unidos, Patrick Nolan, da Penguin
Random House, e Kate Cassaday, da HarperCollins Canada. Este livro
também não seria este livro sem os olhares argutos de Alison Rae, Megan
Reid, Leila Cruickshank, Jo Dingley, Lorraine McCann, Jenny Fry e o chefe
da Canongate, Jamie Bing. Agradeço igualmente a Pete Adlington, pelo
magnífico trabalho na capa, e a toda a equipa da Canongate que trabalhou
tão arduamente neste e nos meus outros livros, incluindo Andrea Joyce,
Caroline Clarke, Jess Neale, Neal Price, Alice Shortland, Lucy Zhou e
Vicki Watson.
Agradeço a todos os amigos das redes sociais que me permitiram que os
citasse neste livro.
Naturalmente, agradeço à Andrea, por ser a primeira e a mais honesta
leitora deste livro e por ser alguém que torna a vida neste planeta ansioso
menos irritante para os nervos. E peço desculpa à Pearl e ao Lucas por este
livro que, ironicamente, fez com que passasse mais tempo do que o habitual
a olhar para um portátil.
E obrigado a todos vocês por escolherem este livro no meio da
infinidade de livros que existem por aí fora. Isso tem, para mim, um enorme
significado.
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