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FACULDADE DE ARTES VISUAIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

Ludmilla Crician da Costa Santos

MOÇA DE FAIUM/FAYUM: Análise de um retrato mortuário.

Goiânia - GO
Dezembro, 2023
Ludmilla Crician da Costa Santos

MOÇA DE FAIUM/FAYUM: Análise de um retrato mortuário.

Leitura de obra artística desenvolvida para avaliação


quantitativa/qualitativa da disciplina História da arte: do mundo
antigo ao medieval, presente na grade curricular do curso Artes
Visuais, na modalidade de Licenciatura, oferecido pela
Universidade Federal de Goiás.
Professora: Dra. Patricia Bueno Godoy

Goiânia - GO
Dezembro, 2023
Sumário
Introdução ................................................................................................................................................ 4
Retrato de múmia, proveniente da região de Faium/Fayum .................................................................. 4
Contextualização da obra ........................................................................................................................ 5
Leitura descritiva ...................................................................................................................................... 6
Leitura Interpretativa (conotativa) .......................................................................................................... 9
Referências Bibliográficas ...................................................................................................................... 14
Introdução
A obra em questão foi selecionada por parecer contemporânea e transmitir ar misterioso
que dificulta desviar o olhar, diferentemente do exemplo utilizado por H.W Jason junto a
Anthony E. Janson1 quando tratam destes tipos “retratos”, este é um exemplo está longe de ser
considerado naturalista e possui certas características que remetem a arte bizantina, que de
forma quase contraditória, possui normas rígidas de representação que lembram a
inflexibilidade das regras presente na arte egípcia tradicional e que neste exemplar, egípcio,
foram flexibilizadas segundo um legado grego. (GOMBRICH,1999)

Retrato de múmia, proveniente da região de Faium/Fayum


Fotografia 1: Retrato de Mulher

Retrato de Múmia, entre 150-350 d.C. (atribuição de acordo com o estilo), técnica: pintura encaustica sobre
madeira de sicômoro (Ficus sycomorus L, Moraceae (Asensi Amoros e Détienne, 2008), 35 cm (19,5 cm (altura
abaixo do recorte)) x 25 cm (na base) x 0,6 cm, Departamento de Antiguidades Egípcias, Museu do Louvre,
Georges Poncet, (2007)

1 No livro: “Iniciação a história da arte” (1996), de H.W. Janson com Anthony E. Jason, que se utilizaram de um exemplo mais
realista intitulado como “Retrato da múmia de Eutiques”(tradução presente no site do Museu) que data por volta do sec. II d.
C que se encontra no Museu metropolitano de Nova York.
Contextualização da obra
O autor da obra é desconhecido, entretanto, o objeto faz parte de um conjunto de obras
categorizados como “retratos de Faium/Fayum” 2, local majoritário onde foram encontrados
(VASQUE,2019), são pintura egípcias, mais precisamente, máscaras mortuárias, produzidas
entre os séc. I. e V d. C., sobre pequenas tabuas de madeira, telas de linho ou papiro (The
Fitzwilliam Museum, 2021) , com o fim de reproduzir a imagem do falecido e serem colocadas
sobre as múmias nos sarcófagos.(ARGAN,2003) Originalmente estes retratos eram esculpidos,
feitos de cartonagem ou gesso (JANSON,1965), contudo, nos tempos romanos eles foram
“substituídos 3” por estas pinturas, executadas pela técnica de têmpura ou da
eucástica(VASQUE,2019), seu estilo passa ser perceptível quando se compara umas às outras 4,
contudo, havendo existido uma suposta produção veloz e de grande escala, estes objetos
costumam apresentar elementos em comum, como um destaque dos olhos, a aplicação de luz
e sombra e o ângulo de onde é visto o rosto representado. (JANSON,1965),
Estas retratos podem ser pensados como exemplo mais próximos de como seriam as
pinturas romanas feitas em telas, pois, ainda que se tenha encontrado pequenos retratos romanos
do séc. III d. C., estes eram pintados em vidro(JANSON, H.W; JASON,A.F, 1996) e os
exemplares de Pompeia e Herculano são pinturas parietais.(ARGAN,2003) Neste período,
conhecido como “período romano”, o Egito era uma sociedade multicultural, resultante das
relações com povos mediterrâneos, que foram aprofundadas durante o período ptolomaico e
continuadas durante a dominação romana, que tornou o Egito em uma província imperial, com
isto, este recorte temporal pode ser contemplado em dois momentos: “Os dois primeiros
séculos de arranjo e consolidação da administração da província e o terceiro e o quarto séculos
com os acontecimentos próprios do período de crise e consolidação do cristianismo como
religião oficial do Império” (VASQUE,2019) mas, interessa mais perceber o quão fortemente
o Egito foi influenciado pela arte Grega e Romana, dentro deste recorte.
Uma vez que este tipo de máscara Egípcia resulta do encontro de três vertentes de
pensamento artístico mais opostos possíveis, de forma bastante resumida, é possível

2 Argan utiliza-se da forma gramatical Faium, enquanto H.W. Janson; A.E.Janson e Vasque usam a grafia Faiyum, por isso,
foi adotada ambas na confecção do texto.
3“A máscara funerária continuou a existir concomitantemente com os retratos. No período romano, predominam as

confeccionadas de cartonagem e gesso, com variações regionais. Provavelmente, era escolha do próprio morto ou de sua família
o uso do material funerário de sua preferência.” (VASQUE,2019)
4Existem exemplo mais esquemáticos após o auge da influência greco-romana no Egito que se deu entre o séc. I d.C. - III d.C.,

depois houve uma transição para aquilo que se assemelha uma estética bizantina, Vasque cita um exemplar, um fragmento de
uma mortalha (imagem 6), encontrado na região de Antinoópolis, Médio Egito, que data, provavelmente do séc. IV (séc. III
pelos dados do Louvre) e desperta dúvidas: não se tem certeza se o ankh na mão da falecida representa o símbolo da vida
egípcio ou uma cruz de copta, sendo marca de um período de transição e trazendo semelhanças aos ícones cristões do Monteiro
de Santa Catarina, no monte Sinai e a demais ícones Bizantinos.(pg. 127, 2019)
compreender a arte egípcia como sagrada e mortuária, compreendendo que é caracterizada pela
crença de vida após a morte, consideravam a produção imagética como garantia da conservação
da vida no mundo dos mortos, ou seja, algo que não deveria ser contemplado, em contraponto,
a arte grega era voltada ao culto de divindades, marcada por uma evolução em busca de um
naturalismo idealizado, foi, intencionalmente, feita para ser vista. Enquanto o pensamento
romano acerca da arte, findado no prático, não possuía, inicialmente, uma tradição religiosa
concentrada nas imagens, entendia, primeiramente, a produção artística como atividade manual
e servil, com potencial de distrair dos deveres civis, tão somente, encontrando na produção dos
povos por ela subjugados expolidos de guerra, atribuindo-lhes eventualmente peso de
documento históricos patrícios que eventualmente serviram como instrumento éticos e
políticos, ou seja, a arte passou exercer função narrativa e educativa, estando também acessível
aos indoutos, era para ser vista, porém, com outro objetivo.(ARGAN,2003)
Com isto, as máscaras de Faium/Faiyum são exemplares da lenta transformação cultural
que ocorreu no Egito, que de certa forma, mostram um afastamento da tradição faraônica e uma
grande mistura cultural, pois, por mais que as mascara ainda detinham sua função religiosa,
todavia, as mudanças nas representações que passam, do modelo esquemático tradicional
egípcio e suas regras de representação para a uma individualização do morto através de uma
figuração mais naturalista, que de certo modo, rementem a tradição romana dos bustos, uma
vez que estão centralizadas na pessoa representada ao invés de um ideal ou esquematização
desta, (GOMBRICH,1999) evidenciam, também, a presença de características culturais greco-
romanas presentes na representação do morto, revelando quão desejável era possuir identidade
grega/romana, tendo em vista que no período romano, ter cidadania grega era de muita valia,
uma vez que esta garantia um status social mais elevado, estando abaixo somente dos que
possuíam cidadania romana, os quais eram isentos a pagamentos de tributos. (VASQUES,
2019)

Leitura descritiva
A obra em questão trata-se de uma pintura do busto de uma jovem mulher, seus ombros
estão voltados ligeiramente para a direita, enquanto seu rosto está voltado a uma posição central,
como de quem olha para a frente, mantem seus olhos direcionados para a esquerda, sua
expressão facial é séria, mas, carrega um ar misterioso, pois sua boca, aparentemente
inexpressiva, as vezes parece forma um leve sorriso, menos efetivo se comparado ao sorriso
arcaico das korés. A mulher está trajada, aparentemente, como um vestido vermelho tinto que
possui com duas faixas pretas e uma gola branca, seu pescoço alongado carrega dois colares,
usa brincos e um pendente, que está centralizado na sua cabeça, todas suas joias aparentam ser
de ouro, um dos colares é aparentemente formado por ouro e outro tipo de pedra preciosa com
cor verde, seus brincos trazem pontos brancos, manchas, que podem representar perolas ou
diamantes recebendo o brilho da luz, o fundo da figura para ser da cor da própria madeira e
não há qualquer outra figuração.
Com base nos dados disponibilizados pelo museu do Louvre é possível ter uma ideia da
escala da obra em questão, ao todo são 35 cm de altura por 25 cm de comprimento na base, ou
seja, são dimensões próximas ao padrão de uma régua escolar, que tem cerca de 30 cm, tendo
isto em vista é possível compreender que não se trata de uma pintura muito pequena, ao ponto
de ser necessário aproximar ou inclinar a cabeça para vê-la e nem muito grande, para que tenha
que se afastar dela para conseguir capturar a inteireza de detalhes, contudo, se fixada em uma
parede ou posta em uma estande dentro do museu, pode se tê-la como relativamente pequena,
ainda mais, se levar em conta que o corte da madeira é desregular. Quanto a composição: a
figura feminina é vista de frente, apesar da leve inclinação de seu tronco, seus ombros e busto
forma uma base larga que vai diminuindo de largura a mediada que o traço se conecta ao
pescoço, compondo uma base quase triangular, a linhas que demarcam a silhueta são
acompanhadas pelo recorte igualmente triangular da gola da veste.
Imagem 2: Demarcação do retrato de múmia sobre efeito preto e branco.

Retrato de Múmia, entre 150-350 d.C. (atribuição de acordo com o estilo), técnica: pintura
encaustica sobre madeira de sicômoro (Ficus sycomorus L, Moraceae (Asensi Amoros e
Détienne, 2008)), 35 cm (19,5 cm (altura abaixo do recorte)) x 25 cm (na base) x 0,6 cm,
Departamento de Antiguidades Egípcias, Museu do Louvre, Georges Poncet, (2007)
As dobras do vestido a direita, junto ao caimento do colar dão certa estranheza quando
relacionadas a posição do ombro direito, já pescoço apresenta uma leve inclinação e ondulação
devido à posição da cabeça, a qual possui o formato popularmente conhecido como oval, que é
acentuado pelo cabelo cacheado, organizado, possivelmente, por um coque, ganhando assim
uma visualização, mais ou menos, triangular. O rosto lembra o padrão bizantino de
representação5, seu nariz é estranhamente fino é reto para ser tido como naturalista, porém,
auxilia direcionar a atenção para a boca, e junto ao leve detalhe de um “bigode chinês” forma
outro triangulo, de igual modo, esse nariz, quando levado em consideração ao conjunto dos
olhos e as sobrancelhas, constrói visualmente um triangulo invertido. Pode-se dizer que essa
figura é composta linhas curvilíneas, organizada está espacialmente sobre uma forma
“triangular6”, com consequentes fluxos triangulares dentro da figura, configurados em sentidos
opostos, como ampulhetas, sendo que, somente o nariz, a gola da roupa, as sobrancelhas e no
traço central da boca são concebidos por traços mais retilíneos.
Não há outra figuração na obra, entretanto, o contorno da figura junto a presença da
técnica de sombreado, dá o senso de tridimensionalidade, aparentemente há resquícios de cor
na tabua, em volta da figura, riscos mais claros, que constaram com o conjunto de cores,
indicando uma possível sobreposição das formas por meio das cores de outa, a foto
disponibilizada pelo Louvre não oferece tantos detalhes da superfície da madeira e seu estado
de conservação, mas há uma foto presente no livro intitulado “História da arte italiana: Da
antiguidade a Duccio_ vol. 1 (ARGAN,2003) apresenta maior qualidade e até mesmo
tonalidades diferentes (Imagens 3 e 4), provavelmente por ser mais antiga e por ter passado por
diversos processos de conservação. Trazer este exemplo, com características diferente, gera
suporte para evidenciar como a textura da madeira se faz participante no preenchimento das
cores e sustentam, junto ao jogo de luz e sombra, a ilusão de tridimensionalidade, talvez, quando
esta mascará foi confeccionada, sua madeira não presentasse a mesma textura, de certo que a
pintura não possuía estes pequenos craquelados, todavia, hoje podem ser considerados como
parte compositiva da obra.
A imagem do Louvre possui cores e, como dito anteriormente, tonalidades diferentes,
nela vemos tons de amarelo, branco, bege, cinza (nos olhos), marrom, vermelho tinto (que

5 Não somente a representação da face, com olhos grandes e o nariz fino, mas todo o traçado dos ombros, principalmente o
direito, e a inclinação do pescoço alongado, se assemelha as representações presentes no The Holy Trinity Icon de Andei
Rublev( 1411-1427)
6 Não chega a ser um triangulo por causa do recorte do suporte onde a figura foi feita.
lembra nobreza), ocre, verdes, salmão e preto, essas tonalidades variam junto com a construção
da luz, que vem do alto, pela esquerda, determinando a posição do brilho nas joias, nos olhos e
no traço do nariz. A gradação de tonalidades, do claro para o escuro, na área do pescoço, nas
bochechas e sobre as pálpebras dos olhos criam, junto a textura do suporte, o aspecto da
superfície da pele, contudo, foi movimento ondular do pincel do artífice que determinou a
textura dos cabelos, já os padrões, que se encontram nas correntes dos colares, nos pequenos
pontos dos brincos e na joia sobre o cabelo são reforçados pela ilusão orquestrada pelo
diferentes tonalidades de cor que resultam em uma sobreposição espacial.

Imagem 3: Retirada do Livro de Argan(2003) Imagem 4: Detalhe

Retrato de Múmia, entre 150-350 d.C. (atribuição de acordo com o estilo), técnica: pintura encaustica sobre
madeira de sicômoro (Ficus sycomorus L, Moraceae (Asensi Amoros e Détienne, 2008), 35 cm (19,5 cm (altura
abaixo do recorte)) x 25 cm (na base) x 0,6 cm, Departamento de Antiguidades Egípcias, Museu do Louvre.
Georges Poncet,(2007)

Leitura Interpretativa (conotativa)


Argan utiliza esta obra como um exemplo, mas não fala especificamente dela, diz que
nos retratos de faium/faiyum a pessoa geralmente é representada de frente, com os olhos
arregalados para dar a ideia de vida; entretanto, só se acentua algum traço fisionômico que
lembra a aparência real do falecido, se tratando de um processo que não parte do “verdadeiro”,
antes de uma aproximação da realidade, que vai de um “geral ao particular”, sem resultar uma
apropriação direta do real (2003). Gombrich, de igual modo não fala desta obra em específico,
porém do conjunto ao qual pertence, enfatizando que tanto a arte helenística quanto a romana
desalojaram as artes dos reinos orientais, referenciando este tipo de máscaras como exemplares
de adaptação cultural/ artística, dado que ainda se manteiam o costume de sepultamento, porém,
passava-se a adotar outro modelo de construção para as máscaras mortuárias, escolhendo
artistas que “conheciam todos os estratagemas da arte grega do retrato”, destacando que: “Esses
retratos, que eram certamente feitos por humildes artífices a um baixo preço7, ainda hoje nos
surpreendem por seu vigor e realismo. Há poucas obras de arte antiga que pareçam tão
"modernas" quanto essas” (1999)
De acordo com Janson(1965) estes “retratos” são os únicos grupos coerente de pinturas
à disposição que se aproximam das pinturas de retratos romanas, pois, por mais que, segundo
com Plínio, este retratos eram costume na república romana e estavam ligados ao culto dos
ancestrais, nenhum destes exemplares sobreviveu até a contemporaneidade, enquanto os
exemplares de Faium/Faiyum conseguiram resistir devido a sobrevivência, ou pelo retorno, do
costume Egípcio de prender a imagem do falecido junto ao seu corpo mumificado. opina que
no seu melhor estado revelam um traçado certeiro, que dificilmente seria superado, existindo
exemplares bastante naturalista (Imagem 5), explica ainda há diferentes estilos, contudo existe
também uma incerteza se poderiam ser classificados como helenístico ou romano.(1965) Já no
livro: “Iniciação a história da arte”, Janson e Anthony E. Janson afirmam que apesar de se ter
encontrados algumas miniatura pintadas sobre vidro, que podem datar do séc. III d.C. ou
anteriormente, os retratos de Faiyum/Faium continuam sendo a melhor opção para ter uma
noção de como seria as retratos romanos pintados, sendo uma “estranha versão romanizada do
sarcófago egípcio”, esclarecem que antes do Egito ser dominado por Roma, as cabeças
representadas nos sarcófagos eram modeladas em pedra, gesso ou madeira e que eventualmente
foram “trocadas” por este modelo em questão, utilizam novamente do modelo do menino
Eutyches (Imagem 5), apontando como o artista enfatizou certos detalhes:
“Como nos bustos esculpidos, o artista ampliou e enfatizou determinados traços: os
olhos, por exemplo, são exageradamente grandes. Mas a estilização, nesse exemplo
feliz não foi feita com a intenção de nos intimidar (como no caso do 'Olhar hipnótico
de Constantino [...]), mas apenas de recordar a personalidade agradável de uma
criança amada.” (JASON H.W; JASON A. E,1996)
Já Vasques fez um estudo mais aprofundado acerca das máscaras de Faium/Faiyum,
tendo-as como objeto que possibilitam analisar as mudanças socioculturais ocorridas no Egito
durante o período romano, mais precisamente, a relação entre a manutenção da tradição egípcia

7Mas certamente eram feitos de forma muito trabalhosa (The Fitzwilliam Museum), saiba mais em: The Fitzwilliam Museum.
Construction of Roman period mummy portraits.2021(9m44s). Disponível em:<
https://www.youtube.com/watch?v=XOrWcgVmXGU >
e sua memória, junto a sua adaptação e transformações sociais nesse período, efetuando sua
analise por meio da vertente aberta pelos estudos sociais, partindo do conceito de
emaranhamento de Philipp Stockhammer: “o qual permite considerarmos a formação de
elementos terceiros, a partir da aglutinação de outros, o que o autor chama de “emaranhamento
material” e “emaranhamento relacional” sem necessariamente tratar de uma relação de conflito
cultural, embora esse possa estar presente.” (2019)
Portanto, ela não analisou estes retratos meramente como objetos artísticos, antes, como uma
fonte documental dos aspectos sociais do Egito Romano8, as quais ainda que mantivessem seus
aspectos religiosos originais, “encontravam ainda ecos no culto aos antepassados presente tanto
na cultura grega quanto na romana” (VASQUES, 2019) esclarecendo que:
“Uma das funções dos retratos pintados era o seu uso no lugar da máscara mortuária,
representando a face (naturalizada ou idealizada) do morto, num fenômeno de
emaranhamento entre tradições distintas, mas que mantinha o valor religioso egípcio
na manutenção da mumificação” (VASQUES, 2019)
Imagem 5: Retrato da múmia Eutyches

Retrato da múmia de Eutyches, período romano, d.C. 100–150, encaustica sobre madeira, 18 cm x 19 cm, doado
por Edward S. Harkness, 1918, The Metropolitan Museum of Art.

8 Assistir este vídeo do The Met ajuda compreender melhor alguns aspectos sociais: The Fayum Portraits: Funerary Painting
of Roman Egypt, 1988 | From the Vaults.2020(14m37s). Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=B1NkjU8Xowc
>
por meio destas máscaras, se expressa a preocupação com o mantimento de um estado social,
muito ligada a possuir a identidade grego/romana e a preservação da memória, resultando em
representações mais ligada ao aspecto individual do morto, mantendo função pública para os
que morreram e seus familiares:
“Jan Assmann (2003), ao analisar a concepção funerária egípcia, considera que
possamos distinguir entre os elementos associados a uma identidade social e a uma
identidade física do morto. Segundo ele, o Ka, juntamente com o nome (ren), fazia
parte da esfera social do morto, associado à sua memória, enquanto o Ba (espécie de
alma ou espírito móvel), a sombra (shut) e o corpo (khat) seriam os elementos físicos
e, portanto, mais individualizados do morto. Pensando no caso da religião funerária
do Egito Romano podemos considerar que os elementos oriundos da cultura romana
(e grega) estariam mais presentes na identidade social do morto, na qual havia a
preocupação com a manutenção do status social de uma elite local que se espelhava
em Roma e nos seus costumes (penteados, vestimentas, joias etc.), em voga na casa
imperial. O ka enquanto representação do morto poderia, como imagem, ser
representado conforme a influência de elementos gregos e romanos, sendo que este
emaranhamento material variava conforme a região do Egito e a sua proximidade com
Alexandria.” (VASQUES,2019)

Ainda, a incorporação dos elementos artísticos mais naturalistas, além de marca o


caráter mais individual da imagem demarca igualmente um período em que houve certa
diminuição do poder dos templos em contraponto com o aumento no poder centrado nos
cidadãos que administravam as cidades, cuja intensidade variou segundo a região, o que não
invalidou o aspecto mágico da imagem, pois ainda no período faraônico a identidade facial,
dentro de suas normas representativas, já estava presente.(VASQUE,2019) Por fim, revelar
que nem todos estes retratos eram realistas, alguns eram mais esquemáticos e com o passar do
tempo está pintura foi se apoucando, sendo eventualmente “substituída” por desenhos
esquemáticos, que retomaram padrões da arte egípcia, Vaques afirma que não a uma certeza de
qual seria o motivo para o descarte da tradição clássica, informando que entre muitos dos
prováveis motivos seriam o predomínio da religião cristã e a forma escolhida da representação
dos santos, havendo indícios, em alguns retratos, de uma estética semelhante a arte bizantina
(imagem 6).(2019)
Imagem 6: Mortalha de Crispina
Mortalha de Crispina, 225-250 d.C. técnica: têmpura e folhamento em ouro sobre tela de
linho, 96 cm (largura) x 198 cm (comprimento) 9, Departamento de Antiguidades Egípcias,
Museu do Louvre, Georges Poncet(2012)

9 Por maio das informações adquiridas pelo museu do Louvre, não há uma medida para altura, entretanto contém mais de uma
medida para largura e comprimento, cuja variação aparenta ser a medida do “acessório” e dos fragmentos “na bandeja”, dada
a falta do conhecimento técnico do termo e pouco domínio do idioma em questão, optou-se por traduzir somente aquilo que se
obteve certeza até determinado momento.
Referências Bibliográficas
ARGAN, Giulio C. A Arte Romana. In: História da arte italiana: Da antiguidade a Duccio_ vol.
1. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, pg.167-240.
GOMBRICH, E. H. Conquistadores do Mundo: Romanos, Budistas, Judeus e Cristãos, séculos
I a IV d.C. In: GOMBRICH, E.H. A história da Arte, 16ªed, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos editora, 1999.
JASON, H.W. Roman Art. In: JASON, H.W. History of art. New York: Harry.N. Abrams Inc,
1965, pg. 130-156.
JANSON, H.N.; JANSON, A.E. Arte Romana. In: JANSON, H.N.; JANSON, A.E. Iniciação à
História da Arte. Martins Fontes Editora, São Paulo, 1996. Pg. 67-88
Museu do Louvre. Lincel de Crispina. Disponível em:<Linceul de Crispina - Louvre
Collections > Acesso em: 24 dez. 2023
Museu do Louvre. Portrait de momie. Disponível em: >portrait de momie - Louvre Collections
< Acesso em: 24 dez. 2023
RUBLEV, Andrei. The Holy Trinity icon (1411/1427). Tretyakov Gallery. Disponível em:<
https://artsandculture.google.com/asset/the-holy-trinity-icon-andrei-rublev/dwF-zpb9JXF6Kg
> Acesso em: 24 dez. 2023
The Fitzwilliam Museum. Construction of Roman period mummy portraits.2021(9m44s).
Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=XOrWcgVmXGU > Acesso em: 24 dez.
2023
The Fitzwilliam Museum. Painting Roman period mummy portraits.2021(10m23s). Disponível
em < https://www.youtube.com/watch?v=cBVNFDIL3Fg > Acesso em: 24 dez. 2023
The Met. The Fayum Portraits: Funerary Painting of Roman Egypt, 1988 | From the
Vaults.2020(14m37s). Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=B1NkjU8Xowc >
Acesso em:24 dez. 2023
The Metropolitan Museum of Art. Portrait of the Boy Eutyches. Disponível em: < Portrait of
the Boy Eutyches | Roman Period | The Metropolitan Museum of Art (metmuseum.org) >
Acesso em 24 dez. 2023
VASQUE, Marcia S. Egito Romano: entre tradição, memória e renovação. Revista do Museu
de Arqueologia e Etnologia, [S.L], n. 32, p. 120-130, 21 set. 2019. Disponível em: <
https://www.revistas.usp.br/revmae/article/view/164247 > Acesso em: 24 dez.2023

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