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AÇÕES CULTURAIS NA BAIXADA FLUMINENSE/RJ: APONTAMENTOS

INICIAIS

Larissa Corrêa de Souza1


João Luiz Guerreiro Mendes2

Resumo: A ênfase midiática da Baixada Fluminense (RJ) como um local de miséria e


violência fortalece o olhar do senso comum sobre as vulnerabilidades intrínsecas às
áreas periféricas. Diferente dos discursos da imprensa sobre e em nome dos moradores
da região, o artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa com agentes culturais a
partir da autorrepresentação dos grupos. Tendo como metodologia a conversa e a
narrativa, os agentes culturais da região apresentam sua percepção acerca do espaço
onde vivem, do fazer cultural que o caracteriza, das suas experimentações de mundo,
dos locais de memória e resistência, além dos silenciamentos que a Baixada Fluminense
enfrenta. Com base nessas informações, foi observado de que forma as ações culturais
existentes nessa região periférica contribuem para a transformação do local e dos
indivíduos que nele residem, apresentando-os as novas possibilidades que se abrem a
partir da criatividade, da ação e da reflexão.

Palavras-Chave: Ação Cultural; Baixada Fluminense; movimentos culturais coletivos.

1 INTRODUÇÃO

Muito se diz e se escreve na mídia sobre e em nome da Baixada Fluminense. O


estigma de violência e pobreza é tema de noticiários escritos e televisivos, fortalecendo
olhares sobre as fragilidades e vulnerabilidades inerentes às áreas periféricas em um
país desigual. Como produto temos um processo de silenciamento do movimento
cultural que existe na região, que ultrapassam os 3 milhões de habitantes, segundo o
último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em
2010.
1
Graduanda em Produção Cultural pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ). E-mail: larissacorrea.procult@gmail.com.
2
Doutor em políticas públicas de cultura pela UFRJ e Professor do bacharelado em Produção Cultural do
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). E-mail: jguerreiro2@gmail.com.
O artigo apresenta resultados parciais de uma das linhas de pesquisa do grupo
Observatório da Indústria Cultura (OICult): Ações culturais na Baixada Fluminense:
diálogos e autorrepresentações. A partir de narrativas (verbal ou imagética) e de
conversas com os agentes culturais da região da Baixada Fluminense, dando espaço à
autorrepresentação dos grupos, foi observada a percepção deles acerca do seu território,
do fazer cultural que os caracterizam, das suas percepções de mundo, das táticas de que
se utilizam para atuar para além dos estigmas de carência difundidos pela mídia.
Buscou-se analisar, então, de que forma essas ações culturais podem modificar a
imagem construída para a Baixada Fluminense e contribuir para a transformação do
indivíduo, além de refletir se existe um processo de transformação dos moradores de
espectadores a atores do processo cultural e, se não, o que é necessário para que ele
aconteça.

2 BAIXADA FLUMINENSE: ESTIGMAS E SILENCIAMENTOS

A Baixada Fluminense é uma área do Estado do Rio de Janeiro inserida na


região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) o que, por si só, já aponta para uma
complexidade quanto à sua definição. De acordo com o Censo Demográfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, a região é composta
por treze cidades: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé,
Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e
Seropédica. Apesar de alguns deles possuírem uma alta concentração de renda, como
Duque de Caxias, que está entre os vinte maiores orçamentos entre mais de cinco mil
municípios do Brasil, o histórico ligado a grupos de extermínio, abandono por parte do
poder público, doenças ligadas à pobreza, além de outros, ainda são uma sombra para os
moradores da região (HERALDO HB, 2013). Segundo esse autor, para grande parte da
juventude local morar na Baixada Fluminense tornou-se um motivo de vergonha, por
todas as más condições de vida a que os habitantes do território foram submetidos no
decorrer dos anos e os estereótipos a que estão submetidos.
A Baixada Fluminense foi estigmatizada como um lugar onde só há miséria e
violência. Notícias que reforçam essas ideias ocupam páginas de diferentes jornais
impressos e on line, além do espaço nas redes de comunicação televisivas. Sendo a
imprensa um veículo de comunicação capaz de gerar e fixar representações acerca de
fatos, pessoas e espaços (ENNE, 2004), as análises e discursos em nome e sobre os
moradores e a própria região, reforçam essa imagem no senso comum. Dessa forma,
segundo Enne,

há um esforço partilhado por agentes3 diversos – inclusive


aqueles que formulam suas identidades locais em termos
antagônicos – no sentido de gerar “imagens positivas” para a
Baixada Fluminense, que possibilitem uma reversão do que
muitos consideram o principal problema dos que residem na
região: a perda de “autoestima” em razão dos “estigmas”. [...] E
tal senso comum, de acordo com os mesmos agentes, teria sido
formado a partir das imagens negativas produzidas pela grande
imprensa acerca da região. Dessa forma, as ações de “resgate”
ou “construção” de uma identidade positiva para a BF pode ser
percebida como reações às representações negativas veiculadas
pela mídia e arraigadas no senso comum. (ENNE, 2004, p. 15)

Sendo assim, desejando modificar a identidade construída para a Baixada


Fluminense – tanto para os próprios moradores, quanto para aqueles que não a
conhecem – e iniciar o processo de “des-silenciamento”, vimos surgir a partir da década
de 1990, mas principalmente, nos primeiros anos da década de 2000 um movimento de
agentes culturais, se utilizando de diferentes meios de divulgação de ações artísticas,
políticas, de memória e resistência, propagando as atividades culturais que já
aconteciam nos municípios, a fim de ressignificar a imagem da região, construída, até
então, por outros. Esse vem se constituindo em um movimento de passar à
autorrepresentação e à autonomia de significados, pois seus discursos não são, de
maneira alguma, neutros. Estão impregnados das suas formas de experimentação de
mundo (GONÇALVES E HEAD, 2009).
Buscando identificar as ações destes praticantes culturais, a pesquisa “Ações
culturais na Baixada Fluminense: diálogos e autorrepresentações”, buscou agrupar as
ações em 9 (nove) eixos temáticos, a saber: as denominadas culturas populares, afro-
brasileira, artes visuais, arte digital, dança, música, artes cênicas, o setor audiovisual e
ações relacionadas ao incentivo à leitura e literatura.
Iniciamos os debates junto ao grupo de pesquisa sobre como poderíamos, ao
mesmo tempo, identificar os movimentos coletivos da Baixada e garantir a

3
Os agentes citados foram entrevistados pela autora, na ocasião de sua pesquisa de doutorado, que
resultou na tese “Lugar, meu amigo, é minha Baixada: memória, identidade e representação social”.
Publicada no Rio de Janeiro, em 2002.
autorrepresentação dos grupos na pesquisa. Optamos, então, por buscar as narrativas
dos integrantes dos movimentos culturais.
A opção por iniciar o projeto a partir da autorrepresentação desses grupos passa
pelo reconhecimento de que a produção desses discursos se configura em uma prática
cotidiana em sociedades contemporâneas. Podemos assumir que há uma multiplicidade
de autorrepresentação imagética coletiva.
E, é na construção da autoimagem, que Gonçalves e Head (2009) anunciam o
devir imagético, um movimento no qual a imagem etnográfica passa a ser entendida a
partir da possibilidade que cada um tem na criação de suas próprias significações, sem
ser reconhecido meramente pela submissão direta em relação às forças sociais.
Nas rodas de conversas já realizadas observamos que os praticantes culturais da
Baixada Fluminense vêm se articulando em redes que extrapolam o território dos seus
municípios ou as fronteiras entre as diversas formas de manifestação artística.
Percebemos que esses praticantes culturais se espelham em dificuldades semelhantes –
como a ausência de políticas públicas de cultura adequadas à realidade das suas ações.
Essas redes, entretanto, vem ampliando a visibilidade e o fortalecimento da cena
cultural da Baixada Fluminense, como um todo.
A pesquisa vem, portanto, analisando as significações de fazer ação cultural na
Baixada Fluminense a partir dos próprios praticantes.

3 AÇÃO CULTURAL E OS ESPAÇOS DE PRODUÇÃO DA CULTURA NA


BAIXADA FLUMINENSE

Se houve uma construção de alguns consensos em relação à cultura conforme


salientamos anteriormente, cabe retomarmos ao que pode ser vista como uma matriz da
política cultural implementada a partir de 2003 ou, pelo menos, a sua inspiração.
Partimos da hipótese que as transformações operadas no interior do Ministério
da Cultura na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira entre 2003/2010 pode ser analisada
como uma ressignificação da política cultural paulistana da prefeitura de Luiza
Erundina (1989/1993). Os objetivos foram ampliados, as raízes das discussões sobre o
papel do Estado na Cultura aprofundadas, na não distinção entre cultura popular ou
erudita, mas sim, como diz CHAUÍ (1995), entre a criatividade inovadora e a repetição
cultural de massa e, também, foram criadas novas formas de participação dos agentes
culturais representantes da sociedade civil dentro da arena de disputa que conforma o
aparelho de Estado. E, indo além da experiência paulistana, o principal programa que
recepciona essas novas demandas - Programa Cultura Viva - ganhou musculatura ao
incorporar novos atores culturais, novas experiências administrativas e a sua escala de
atuação.
Os sinais que nos admitem adotar tal hipótese são: 1) a incorporação, na
formulação da política cultural, de representantes da sociedade civil que produzem
diversificadamente bens culturais materiais e imateriais; 2) certificação de expressões
culturais fora do circuito mercadológico através de, entre outras ações, os Pontos de
Culturas; 3) ao articular a produção e fruição dos bens culturais com os
empreendimentos da Economia Solidária (empresas autogeridas, cooperativas populares
etc.) possibilitou discussões de alternativas de inserção social, com geração de trabalho
e renda, através da cultura; e 4) dentro do contexto de exclusão cultural brasileiro, as
atividades potencializadas pelo Programa Cultura Viva propiciaram o acesso a bens
culturais em territórios antes não reconhecidos como espaços de produção cultural.
Assim, as sementes da construção do processo de descentralização da gestão
cultural e desconcentração de recursos em direção ao território onde ocorrem, na
prática, as ações culturais que estão no documento-base Imaginação a serviço do Brasil
(2002), são, também, frutos de outras sementes nas administrações públicas com viés de
gestão participativas, assim como essas nos remetem às demandas dos movimentos
sociais da década 1980.
A estratégia então desenhada consistia em, através da adesão voluntária dos
municípios e estados, provocar a constituição dos conselhos municipais e estaduais de
Cultura contando com a obrigatoriedade da participação de representantes da sociedade
civil.
Não houve novidade na estratégia, pois em outras áreas os conselhos são
instalados seja por exigências de programas nacionais ou internacionais, seja por
contrapartidas de recursos financeiros ou em equipamentos conforme políticas de
governo ou financiadores de projetos ao nível municipal.
Em levantamentos realizados em 2001, 2005, 2006 e 2009, o IBGE apontou para
uma proliferação dos Conselhos Municipais de Cultura. Entretanto, os patamares ainda
são baixos. Em 2001, havia Conselho em 13,2% dos municípios brasileiros. Para o ano
de 2009, a pesquisa conseguiu detectar um percentual de 24,7% municípios com
conselhos.
Para podermos comparar a capilaridade destes conselhos com o de outras áreas
de conselhos de controle social vejamos na área da Saúde. Segundo o mesmo Perfil
Municipal do Brasil, mais de 97% do dos municípios tinham Conselhos de Saúde em
2009.
De uma forma geral, entretanto, avaliamos os espaços públicos ocupados por
representantes dos movimentos culturais como necessários para construção de processos
democratizantes de acesso e formulação de políticas públicas. E que, a despeito dos
problemas que se seguiram à implantação dos conselhos nos diversos níveis de governo,
houve um alargamento do conceito do que seria cultura, sua forma de produzir e como
se apropriar dela, ao mesmo tempo em que alarga o reconhecimento do que seriam
práticas culturais ou ações culturais.
A busca pela construção de espaços de participação social, a partir das demandas
e lutas políticas rearticuladas pelos movimentos sociais em 1980 não se restringiu à área
cultural, nem nela surgiu. Mas, vimos que ela permeou os debates de implantação de a
política pública de cultura ao nível nacional.
Contudo, essa luta pela ampliação dos espaços de participação extrapola a
relação entre o MinC e os movimentos sociocultural e vai informar ou mesmo
influenciar outras relações de construção de formulação da política cultura em outras
esferas e regiões.
Quando, no ano de 2.000, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
campus Duque de Caxias, ocorrem duas reuniões preparatórias e o lançamento, em 09
de dezembro deste mesmo ano, do Fórum de Cultura da Baixada, a principal pergunta
era: quem fazia parte da cena cultural na Baixada Fluminense? E, destes encontros,
começou-se a se organizar uma rede entre ações culturais da Baixada.
Portanto, também na Baixada Fluminense a constituição das tramas e
entrelaçamentos das ações culturais são anteriores ao que poderia ser visto como uma
inversão de prioridades do Ministério da Cultura a partir de 2003. Mas, também,
conforme salientado por quase todos os representantes das 19 (dezenove) ações
culturais que dialogaram com a pesquisa, há um forte sentimento que este novo olhar
trazido do Planalto para a Planície transbordou sobre a Baixada Fluminense.
Cabe ressaltar que, na pesquisa, nos apropriamos das noções de Teixeira Coelho
(2001) para buscarmos delimitar as fronteiras das ações culturais na Baixada
Fluminense. Segundo esse autor, em 1945, o escritor Mário de Andrade discutia sobre
uma arte que promovesse a consciência da função histórica do brasileiro daquela época,
colocando-a a serviço da educação e da formação de público (COELHO, 2001). Seria
uma arte preocupada em ser um instrumento de mudança social, que fosse além do fazer
artístico e das questões que rodeiam seu próprio mundo. Essas discussões fomentaram a
ideia da ação cultural no Brasil.
A ação cultural é, portanto, um processo. O seu início é determinado, mas o fim
não é planejado. Sendo assim, ela não possui etapas que levem a um fim (COELHO,
2001). Nela, o agente possui o papel fundamental de compreender os mecanismos da
atuação em um grupo e intervir, acionando esse processo. Não se trata de dirigir a ação,
mas de criar condições para que as pessoas inseridas nela possam se dirigir.
Além disso, segundo essa interpretação, a ação cultural também tem como
finalidade promover ao indivíduo a reflexão e a consciência sob três óticas: sobre si
mesmo, ou seja, seu corpo, sua subjetividade, a forma como os outros o veem e ele
próprio se vê; sobre o coletivo, observando a presença do outro, a semelhança de ideias,
o compartilhamento de bens e o emprego de energia pra solucionar propostas comuns;
e, por fim, sobre o entorno, compreendendo o espaço em que ele está inserido e a
relação desse ambiente com ele e o coletivo (COELHO, 2001). É a partir dessas
propostas, visando dar o impulso inicial pra que deixe de existir a passividade por parte
desses indivíduos e eles se tornem atores do processo, que atuam os agentes culturais.

4 A ATUAÇÃO DOS COLETIVOS DA BAIXADA FLUMINENSE PERANTE AS


AUSÊNCIAS

A pesquisa “Ações culturais na Baixada Fluminense: diálogos e


autorrepresentações” se iniciou em 2013, com a participação voluntária de duas alunas
do curso de bacharelado em Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro,
Campus Nilópolis (IFRJ/Nilópolis). Já no ano de 2014, a partir de apoios dos setores de
pesquisa da instituição e do CNPq pudemos ampliar o quadro de bolsistas (hoje com um
total de seis além do coordenador) e iniciar uma ação mais estruturada. No decorrer de
2014 realizamos rodas de conversa com 15 representantes de ações culturais da Baixada
Fluminense e, em 2015, mais 4 rodas de conversa até o momento.
Metodologicamente a pesquisa irá realizar conversas com representantes de
quatro grupos por município visando um número mínimo total de 52 (cinquenta e duas)
rodas de conversas realizadas até 2016.
Temos a pretensão de promover diferentes diálogos: entre a(o)s pesquisadora(e)s
e os praticantes das ações culturais da Baixada Fluminense; entre a(o)s pesquisadora(e)s
e a(o)s representantes formais das manifestações culturais da Baixada Fluminense e;
entre a(o)s pesquisadora(e)s e a(o)s participantes dos Conselhos Municipais e Fóruns de
Cultura da Baixada Fluminense.
Da sistematização inicial das rodas de conversas realizadas já podemos observar
algumas pistas sobre as ações culturais, as políticas culturais na região e as articulações
em redes dessas ações.
Quase dez anos depois da I Conferência Nacional de Cultura que teve como
tema central a interação do Estado e da sociedade na construção da política pública da
cultura, o relato dos agentes culturais da Baixada Fluminense enfatiza a ausência de
políticas públicas de cultura adequadas à realidade das ações culturais dos municípios.
As principais críticas observadas nessa fase preliminar da pesquisa é sobre a falta de
investimentos que e incentivem atividades culturais periódicas e não esporádicas, que é
o que atualmente prevalece.
Já tendo sido realizadas rodas de conversas com pelo menos um grupo de ações
culturais em sete municípios da região (Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri,
Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu e São João de Meriti) com exceção dos grupos de
Nilópolis, os demais apontaram para a promoção de atividades culturais relacionadas
apenas ao período de festas – aniversário municipal, Dia de Reis, Carnaval, Festa
Junina, Natal e/ou Dia da Consciência Negra. Em algumas dessas festividades, segundo
os praticantes, há a apresentação de artistas da indústria cultural, que vem de outras
cidades e estados para se apresentar na região.
Desejosos de fomentar a cena cultural de onde vivem, os agentes dizem
permanecer na resistência para que os locais de memória não se percam e para que as
atividades culturais no seu local de origem deixem de acontecer em apenas um ou dois
finais de semana por ano, além de informar que estes foram os principais motivos de se
reunirem em grupos, formando os coletivos que atuam nos seus municípios, mas sempre
articulados com os outros grupos que intervém no âmbito da cultura na Baixada
Fluminense.
Esses coletivos buscam, na autonomia e independência do poder público,
construir, a partir de recursos próprios, em sua maioria, a cena cultural, política, de
memória e resistência, que hoje se fortalece e multiplica agentes na Baixada
Fluminense. Pierre Nora nos diz que:
os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que
não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é
preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar
elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são
naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória
refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente
guardados nada mais faz do que levar à incandescência a
verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância
comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões
sobre os quais se escora. (NORA, 1993, p.7).

Esses agentes culturais dão o impulso externo a uma ação que, sem eles, não
aconteceria, uma vez que não ocorre de forma espontânea (COELHO, 2001). Mas, a
partir dessa intervenção, o grupo de indivíduos que se inserem na ação cultural passa a
se empoderar do local, da atividade, das ideias, e deixam de ser objetos da cultura,
tornando-se sujeitos (JEANSON, 1973).
Outra preocupação que pudemos depreender das narrativas dos praticantes
culturais é com relação aos Conselhos Municipais de Cultura. Segundo informações
obtidas com os grupos e confirmadas em ida às cidades, nove municípios 4 da Baixada
Fluminense têm Conselhos formalmente constituídos. Entretanto, a percepção dos
praticantes é que existem pelo menos dois problemas. O primeiro refere-se a um
suposto aparelhamento político dos conselhos. A ocupação de algumas das vagas
destinadas a representantes da sociedade civil estariam sendo preenchidas com atores
sociais articulados pelo poder público como uma forma de manter o controle sobre a
elaboração das políticas culturais municipais a ser executada pelas secretarias
municipais de cultura. Outra questão levantada é que em muitos municípios, a
implementação do Conselho Municipal de Cultura ocorreu apenas para cumprir parte
das condicionalidades junto ao Ministério da Cultura para obter acesso aos recursos do
Fundo Nacional de Cultura. Assim, em diversos municípios não obtivemos informações
sobre quantas reuniões do conselho ocorreram em 2014.
Cabe acrescentar que detectamos que há um movimento em algumas gestões
municipais da região em direção a um esvaziamento das secretarias municipais de
cultura transformando-as em subsecretaria (como é o caso do município de Mesquita)
ou integrando-as às secretarias de educação (conforme ocorreu em São João de Meriti).
A avaliação de alguns conselheiros contatados é que, como não foi possível realizar a

4
Belford Roxo, Duque de Caxias, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São
João de Meriti.
cooptação de alguns Conselhos Municipais, os gestores preferiram abrir mão dos
recursos extra-orçamentários.
Finalizando essas impressões iniciais sobre as ações culturais na Baixada
Fluminense, gostaríamos de salientar que a despeito da visão até aqui generalizada da
ausência sistemática de políticas culturais direcionadas ao fomento, fortalecimento e
consolidação de ações culturais neste território, os praticantes culturais vem fazendo
políticas culturais que podemos chamar de resistência, de baixo para cima ou, ainda,
como táticas de sobrevivência.
Seria, portanto, uma prática que se aproxima da noção de tática defendida por
Michel de Certeau (1994). Segundo o autor, a “tática é o movimento dentro do campo
de visão do inimigo (CERTEAU, 1994. p.100)”. O próprio Certeau nos explica melhor:

chamo de tática a ação calculada que é determinada pela


ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe
fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar
senão o do outro (p.100).

Como nos propõe Certeau, a tática,

tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas


particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí
vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia (p.101).

Nestas pistas iniciais que nos dão os praticantes culturais da Baixada Fluminense
nos parece que, apesar de não atuarem como um bloco hegemônico, utilizam a tática
nomeada por Certeau quando aceitam participar de Conselhos Municipais de Cultura ou
recursos advindos dos quase inexistentes editais de apoio às suas ações culturais.
Percebemos que em alguns momentos e/ou para alguns podem ser práticas de
resistência, e em outros momentos e/ou para outros são ações culturais com expressões
políticas diversas.

5 PISTAS E CAMINHOS

Buscamos iniciar o debate sobre quem são os responsáveis pelas ações culturais
na Baixada Fluminense, região onde as práticas culturais são sistematicamente
silenciadas. Obtivemos algumas pistas e caminhos a seguir. Eles intervém na cena
cultural, se organizam para se fortalecer, utilizam muitas das vezes recursos próprios
para suas atividades e apresentam uma visão de certo esgotamento frente às estratégias
políticas hegemônicas. Parecem procurar caminhos próprios e se ancoram nas redes
sociais para amplificar suas vozes, seus olhares e seus desejos. Vem rompendo a
barreira da invisibilidade imposta pelas mídias através das tecnologias de informação e
comunicação.
Porém, qual o potencial que as práticas contra-hegemônicas utilizadas têm frente
aos desafios dos estigmas? Sem apoio financeiro por parte dos poderes públicos locais
quais as estratégias de financiamento/sobrevivência essas ações vêm criando? Como
fortalecer os espaços de construções das políticas públicas culturais e, ao mesmo tempo,
enfrentarem o descrédito contemporâneo com algumas das instituições democráticas?
Mais do que respostas, as rodas de conversas com os representantes das ações
culturais da região vem suscitando novas perguntas. Esperamos conseguir construir
junto com eles caminhos e descobertas comuns.

REFERÊNCIAS

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Brasil. Brasília, DF, 2006.
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Vozes, 1994.
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Disponível em: < http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2014/03/15/acao-cultural-
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