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Matos, R. K. S. & Belem, R. C. Música: formando tribos, constituindo identidades sociais

Música: formando tribos, constituindo identidades sociais

Music: forming tribes, constituting social identities

Música: formando tribos, constituyendo identidades sociales

Robson Kleber de Souza Matos1

Rosemberg Cavalcanti Belem2

Resumo

Neste trabalho investigou-se em que medida a construção da identidade social está relacionada à escolha
de um determinado seguimento musical por jovens de uma tribo. Com esse objetivo, buscou-se ainda
refletir sobre outras questões a esta relacionada, a saber: como se dá o processo de integração a uma
determinada tribo por esses jovens? Como eles, por meio de seu grupo, constroem representações dos
demais grupos, do seu próprio grupo e de si mesmo? De que forma se dá as práticas sociais desses
indivíduos – tanto ingroup, quanto outgroup? Para atender tais objetivos, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com diferentes sujeitos de algumas tribos musicais, que posteriormente foram
analisadas qualitativamente por meio de categorias de análise temáticas baseadas na Teoria da
Identidade Social de Tajfel e que mostraram como a música pode funcionar como compositora de tribos
urbanas e consequentemente de identidades sociais.

Palavras-chaves: Música. Tribos urbanas. Identidades sociais.

Abstract

In this work we investigated to what extent the construction of the social identity is related to the choice
of a certain musical follow-up by young people of a tribe. Through this objective, we look for to reflect
on other issues related to it, namely: how does the process of integration of a particular tribe by these
young people take place? How do they, through their group, construct representations of the other
groups, of their own group and of themselves? How do you give the social practices of these individuals
– both in the ingroup and in the outgroup? To meet these objectives, semi-structured interviews with
different subjects of some musical tribes were carried out, which were later analyzed qualitatively
through thematic analysis categories based on Tajfel’s Social Identity Theory and which showed how
music can function as a composer of urban tribes and consequently of social identities.

Keywords: Music. Urban tribes. Social identities.

Resumen

En este trabajo se investigó en qué medida la construcción de la identidad social está relacionada con la
elección de un determinado seguimiento musical por jóvenes de una tribu. A través de ese objetivo, se

1
Psicólogo do Complexo Hospitalar da Universidade de Pernambuco. Formado pela Universidade Federal de
Pernambuco. Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da
Universidade Estadual de Montes Claros.
2
Psicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Psicólogo na Secretaria de
Educação do estado de Pernambuco e na Secretaria de Saúde da cidade do Recife, como Psicólogo do Consultório
na Rua.

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buscó aún reflexionar sobre otras cuestiones a esta relacionada, a saber: cómo proceso de integración a
una determinada tribu por esos jóvenes? Como ellos, a través de su grupo, construyen representaciones
de los demás grupos, de su propio grupo y de sí mismo? ¿De qué forma se dan las prácticas sociales de
esos individuos – tanto en el ingroup, como en el outgroup? Para atender tales objetivos se realizaron
entrevistas semiestructuradas con diferentes sujetos de algunas tribus musicales, que posteriormente
fueron analizadas cualitativamente a través de categorías de análisis temáticas basadas en la Teoría de
la Identidad Social de Tajfel y que mostraron cómo la música puede funcionar como compositora de
tribus urbanas y consecuentemente de identidades sociales.

Palabras claves: Música. Tribus urbanas. Las identidades sociales.

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Introdução
As sociabilidades juvenis têm sido
Há muito tempo a música está objetos de estudos em diversos contextos.
presente nas mais diversas formas de Iniciado em 1970, a consideração das
expressão cultural do homem e é culturas juvenis como “efeitos de
fundamental, não só por uma óptica técnica, sociabilidade” (Costa, 2003) ganhou corpo
mas também sob uma perspectiva social por meio dos esforços do Centro de Estudos
mais ampla. Pinto (2001), em seu estudo Culturais Contemporâneos da Universidade
sobre questões da antropologia sonora, de Birmigham (CCCS) para entender a
afirma que a música deve, em primeiro subcultura da jovem classe trabalhadora
lugar, para além de elementos estéticos, ser surgida após a Segunda Guerra Mundial,
considerada como uma forma de bem como seus estilos e atividades (Freire
comunicação que tem, igualmente a Filho, 2005). Considerando a importância
qualquer tipo de linguagem, seus próprios da evolução e dos contrapontos desses
códigos. Com efeito, em seu livro The estudos para entendimento da relação entre
Anthropology of Music, fundamental para a jovens, identidades e música, será feita uma
abordagem antropológica da música, digressão a fim de apresentar algumas
Merriam (1964) defende que a música é um perspectivas que servem de base para o
fenômeno que existe unicamente em termos estudo das práticas culturais e dinâmicas
de interação social, feito de pessoas para identitárias contemporâneas.
outras pessoas. Um comportamento Como dito, espalhavam-se após a
socialmente aprendido que possibilita uma Segunda Guerra Mundial diversos grupos
forma simbólica de comunicação na inter- juvenis que serviram de base para os
relação entre indivíduo e grupo. estudos das subculturas realizados pelo
Destaca-se, entre esses aspectos, o CCCS – mods, rocks, rastafáris, skinheads,
poder da música como instrumento de etc. O que estava em pauta nesses estudos
“tribalização”, funcionando como objeto era como tais jovens inseridos nesses
socializante na formação de grupos. Esses grupos lidavam com a ordem social – fosse
grupos possibilitam para seus membros um para forjar, por intermédio do grupo, uma
forte vínculo de afetividade e sociabilidade, aceitação à ordem, fosse, igualmente por
bem como características que propiciam o meio do grupo, para encorajar os estratos
nascimento de uma identidade baseada em subordinados a resistir à opressão, contestar
características compartilhadas por eles. ideologias e estruturas de poder
Portanto, entendendo a necessidade de conservadora. A intenção do CCCS era de
estudos com enfoque nessa perspectiva ressignificar o conceito mercadológico da
mais abrangente de música, que está cultura juvenil, fornecendo, em vez disso,
presente na vida e no cotidiano das pessoas, um retrato mais meticuloso das raízes
buscou-se neste trabalho investigar em que sociais, econômicas e culturais das várias
medida a construção da identidade social subculturas juvenis, bem como das suas
está relacionada à escolha de um relações com as divisões de trabalhos e de
determinado seguimento musical por produção, sem, no entanto, descartar as
jovens de uma tribo. questões etárias e geracionais (Freire Filho,
2005; Freire Filho & Fernandes, 2006).
O que toca as tribos urbanas Apesar do caráter pioneiro e da
importância dos estudos subculturais do
A realidade do tribalismo está aí, cegante, CCCS, a partir de 1990 tais estudos
para o melhor e para o pior. É uma passaram a conviver com diversas críticas,
realidade incontornável e não está limitada
a uma área geográfica particular. Ainda há
elencadas por Freire Filho e Fernandes
muito o que se pensar sobre isso. (2006). Dentre tais críticas destacam-se a
(Maffesoli, 2007, p. 98) ênfase dada na abordagem do estilo visual,

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quase elaborando uma taxonomia de estilos dimensão de resistência grupal,


e maneirismos dos grupos, em detrimento substantivamente ligada à ideia de atrito,
da análise da função das atividades e do encontra-se presente no fenômeno das
consumo musical. Também surge como tribos urbanas.
crítica a opção por pronunciamentos Maffesoli (2007) indica que esse
teóricos mais generalizantes e a recusa em fenômeno é uma decorrência da pós-
examinar o que as subculturas de fato fazem modernidade, sendo por intermédio dessas
e quais os significados dessas atividades tribos que os indivíduos reagiriam face à
para os próprios jovens. anemia suscitada por um social demasiado
No esteio dessas críticas, surgem os racionalizado, representando a urgência de
estudos pós-subculturais, cujo principal uma sociedade empática: partilha das
objetivo é “reavaliar a relação entre jovens, emoções, partilha dos afetos. Para entender
música, estilo e identidade, no terreno um processo decorrente da pós-
social cambiante do novo milênio, em que modernidade, é necessária uma pequena
fluxos e subcorrentes locais se rearticulam digressão para explicar o que é a
e reestruturam de maneira complexa, modernidade e quais suas vicissitudes.
produção novas e híbridas constelações A modernidade foi um projeto de
culturais” (Weinzierl & Muggleton, 2003, cultura iniciado na Europa entre o
p. 2). Os estudos pós-subculturais têm Renascentismo e o século XVII, quando o
como principais marcos teóricos a sujeito passou a se centrar no eu e na
sociologia do gosto de Bourdieu (2007), a consciência, apoiado, primordialmente, na
teoria da performidade de Butler (2011, teoria Cartesiana. Nessa realidade, a
2013) e o conceito de tribalismo de construção da individualidade passou a ser
Maffesoli (1987). Com tais marcos teóricos, eminentemente narcísica, no sentido de que
novas terminologias ganham terreno o indivíduo é particularmente insensível a
(cenas; canais; comunidades emocionais; compromissos com ideias de condutas
estilos de vida; neotribos) em substituição coletivamente orientados; nessa concepção
ao conceito de subcultura. Tendo em vista a o homem é o centro de tudo.
impossibilidade de abordar, neste artigo, as Hoje se vive em um tempo em que a
diversas terminologias e conceitos modernidade é alvo de críticas, no qual esse
supracitados, optar-se-á pelo uso do Eu centrado na razão é posto em questão.
conceito de tribalismo ou neotribalismo Vivemos em uma era pós-moderna, que
juvenil, conforme proposto pelo sociólogo presencia o fracasso desse sujeito moderno
francês Michel Maffesoli, usando-o como centrado no Eu, fazendo com que eles se
base para a análise da relação entre música, sintam “desalojados” em relação à sua
tribos urbanas e identidades sociais. própria identidade. Em uma acepção
Dito isso, Maffesoli (1987), em seu psicanalítica desse fenômeno, Freud
seminal estudo sobre tribos chamado O argumenta no Mal-estar da civilização que
tempo das tribos: o declínio do o preço pago pelo sujeito por apostar na
individualismo nas sociedades em massa, modernidade é o desamparo. Como mostra
cunhou o termo tribos urbanas para Jurandir Freire Costa (1999), o eu
designar os grupos – na maioria das vezes desamparado é a versão deflacionária da
compostos por jovens – “desestruturados”, farsa narcísica do eu triunfante. Em outros
controversos e subversivos que permeavam termos, quando a modernidade traz a ideia
a realidade social contemporânea. Como do homem como centro do mundo, com a
pontua Pais (2004), não por acaso, a palavra imagem de um eu senhor de si mesmo,
tribo é um elemento de composição de dotado de poder e de consciência, a
palavras que exprime a ideia de atrito (do psicanálise, em contrapartida, responde
grego tribé), isto é, a resistência de corpos com a ideia de um eu precário, fadado à
que se opõem quando se confrontam. Essa incompletude, ao mal-estar e à constante

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procura do Outro para remediar o seu concepção das tribos urbanas, alguns
desamparo. questionamentos podem ser feitos. O que
Dessa maneira, o neotribalismo une esses grupos? Qual o “elemento
juvenil corresponderia a uma espécie de ligador” que faz com que tantas pessoas se
resposta a esse desamparo, a essa sociedade aglutinem ao redor de uma (ou algumas)
fragmentada, fria, individualista, causa/causas comum? Nesse sentido,
competitiva e burocrática. A vivência no Maffesoli (1987) destaca que esses
interior das tribos abre aos jovens a agrupamentos não se dão em função de uma
possibilidade de um encontro afetivo, de estrutura organizacional política, 3 ,
passional, bem como criação de um espaço corporativa, estruturada, mas sim em
de dissidência e de um canal simbólico de virtude de afinidades. Uma dessas
expressão identitária (Maffesoli, 2007). afinidades que está presente na imensa
As tribos seriam um meio pelo qual maioria dessas tribos – e é nesta que este
os sujeitos poderiam “combater” a trabalho se focará – é a dos gostos musicais.
impessoalidade e anonimato dessas
sociedades, permitindo aos seus membros a Música, compondo tribos e identidades
criação de um sentimento de pertença, de sociais
vínculos de sociabilidade e laços pessoais,
assim como códigos de comunicação e É crescente o número de pessoas
comportamentos particulares. que se unem por meio da música; formando
Falando em outros termos, se os grupos, ou as chamadas tribos, criando,
indivíduos que integram algumas tribos assim, meios de sociabilidade, definindo
urbanas se distanciam de determinados valores, códigos, regras e referências
padrões sociais, não é propriamente com o identitária. Atualmente uma tribo urbana
objetivo de se isolarem de tudo que os bastante difundida e facilmente identificada
rodeia, mas para se reencontrarem com devido a suas vestimentas e seus penteados
grupos de referências mais próximos dos peculiares é a dos Emocores, surgida no fim
seus ideais. Como consequência das dos anos 1980 nos EUA, cujo ápice se deu
dificuldades de preservarem a sua diferença no Brasil a partir de 2003. Mas esse
nas tramas da sociedade convencional, fenômeno não é algo recente, visto que a
investem-se em redes relacionais de influência da música na formação de
proximidades que recriam novas cenas identidade e no comportamento das pessoas
urbanas e de filiações social, sendo essas pode ser observada na beatlemania,
suas principais diferenças em relação a ocorrida durante a década de 1960, que
outros grupos de pares de natureza influenciou milhões de jovens ao redor do
contratual: as tribos expressam formas mundo de uma forma nunca antes vista.
específicas de sociabilidades. É, pois, em Percebe-se que a música é um
formas de sociabilidade e formações de instrumento importante na vida de diversas
identidade que devemos pensar quando pessoas, servindo de base para diferentes
falamos de tribos urbanas, sociabilidades propósitos e interesses. A escolha de um
que se orientam por normas determinado gênero musical é
autorreferenciais de natureza estética e ética preponderante na configuração da
e que se assentam na produção de vínculos identidade pessoal e social de alguns
identitários (Pais, 2004). jovens. Janotti Jr (2003) ao falar sobre como
Já designado o surgimento e a se dá a formação e as escolhas de

3
Casos como o dos Skinheads, uma tribo política apontamento feito em estudo realizado por Costa,
surgida na Inglaterra no fim dos anos 1960 e que Tornero e Tropea (1996) sobre o culto à imagem e
logo após se espalhou pelo mundo, contrariam essa autoafirmação das tribos urbanas por meio da
visão de tribo proposta por Maffesoli. Esse violência.

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determinados gêneros musicais na cultura informam as práticas culturais e as


massiva pontua que, embora aspectos dinâmicas identitárias dos grupos juvenis,
mercadológicos estejam marcadamente no contexto dos espaços urbanos
presentes na constituição desses gêneros, contemporâneos”.
estes não descrevem somente quem são os Nesse contexto, pode ser citado no
consumidores potenciais, mas também o Brasil o movimento Manguebit (ou
que esses produtos significam para eles. Na Manguebeat), surgido no Recife no início
formação e escolha de determinado gênero da década de 1990 – que ultrapassou os
musical, estão presentes três aspectos limites da cidade e se difundiu por diversas
básicos, defende o autor: regras partes do mundo – o qual possibilitou aos
econômicas, que envolvem as relações de jovens da periferia, por meio da música e da
consumo; regras semióticas, que envolvem valorização das estéticas locais, um meio
as estratégias de produções de sentido e às para construir sua identidade, tornando
expressões comunicacionais do texto possível sua inclusão social, fazendo com
musical e, por fim, as regras técnicas e que eles deixassem de ser vistos como
formais, como as convenções de execução e potenciais causadores de problemas sociais
habilidades que cada gênero supõe. para serem vistos como sujeitos criadores
Outrossim, Sá e Janotti Jr. (2013) de um novo tipo de arte. Uma arte que, por
ressaltam a importância de trazer a noção de sua vez, propõe uma ressignificação radical
cena, bem como a oposição entre essa dos ideais estéticos-ideológicos locais e que
noção e a ideia de comunidades musicais. exalta práticas cotidianas e saberes locais
Enquanto comunidades musicais define um sujeitados (Foucault, 1999), numa clara
grupo estável cujo envolvimento com oposição aos saberes hierarquizantes e
música tem por função tomar a forma da universalizantes contemplados pelas
exploração de idiomas musicais enraizados instâncias decisórias da sociedade.
geográfico-historicamente, a noção de cena A partir de tais conceitos,
remete a um grupo demarcado por um depreende-se como os gêneros musicais se
espaço cultural no qual coexistem práticas articulam às cenas e às tribos na formação
musicais de forma múltipla, por meio de das identidades sociais. Os indivíduos
variadas formas de trocas. De um lado, nas utilizam a música com propósitos
comunidades, trabalha-se a favor da avaliativos no processo de identificação
estabilização de uma tradição musical, do grupal, sugerindo a importância desse
outro, nas cenas, busca-se um diálogo veículo de comunicação de massa em
cosmopolita e relativizador e que tem na diversas situações em que o jovem se
mudança seu cenário mais importante (Sá & encontra no dia a dia, permeando seu
Janotti Jr, 2013). relacionamento interpessoal e, inclusive,
A ideia de cena musical, portanto, influenciando a escolha do vestuário e a
não contrapõe a noção de tribalismo atração e rejeição por determinados grupos
apresentado por Maffesoli, mas a (Sim & Koh, 2009; Pimentel, Gouveia &
complementa e põe em jogo a noção de Vasconcelos, 2005).
espaço urbano no compêndio de conceitos Ainda sobre como a música está
que envolve as pesquisas musicais. imbricada na cultura juvenil, Pais (1998)
Conforme definido por Stahl (2014, p. 56), assinala que as preferências musicais são
citado por Freire Filho (2009), cena musical acompanhadas de atitudes específicas que
seria caracterizada como “um tipo reforçam – mas também ultrapassam – os
específico de contexto cultural urbano e gostos musicais. É nesse ponto que se
prática de codificação espacial – que configuram as tribos musicais. O vestuário,
oferece meio diferenciados para a linguagem e modo de agir de
compreender complexos circuitos, determinadas tribos refletem um meio de
afiliações, redes e pontos de contato que diferenciação grupal, um modo de eles

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próprios se categorizarem e criarem e valorização aos aspectos significantes que


fortificarem sua identidade grupal, bem existem em comum nesse determinado
como sentimentos de pertença a essas grupo.
tribos. Sendo assim, esses grupos atribuem A categorização social não serve
à preferência musical um papel crucial nos apenas para se diferenciar de outros grupos,
processos de formação de uma identidade mas também para criar uma identidade
social. social, uma vez que esta está associada ao
Mas o que seria essa identidade conhecimento de pertença, evocado pela já
social mencionada? São diversas as mencionada categorização, o significado
definições dadas à identidade social, emocional e avaliativo que resulta dessa
mudando de acordo com cada teórico da pertença exprimir-se-á no favoritismo pelo
Psicologia Social. A concepção usada próprio grupo em detrimento do outro,
neste trabalho é da Escola de Bristol, gerando, dessa maneira, uma identidade
proposto principalmente por Tajfel e social positiva (Amâncio, 1993).
Turner, e “que se refere a um envolvimento Usando novamente o paradigma das
emocional e cognitivo dos indivíduos no tribos urbanas, fica fácil entender o porquê
grupo de pertença e as consequentes de existir uma rivalidade e uma visão
expressões comportamentais desse negativa de algumas tribos em relação a
envolvimento no quadro da relação outras, como a tribo dos headbangers4 e os
intergrupos” (Amâncio, p. 206). A clubbers.5
identidade social seria a parte do nosso Este trabalho buscou, por meio das
autoconceito que resulta ao mesmo tempo teorias já citadas, analisar a relação
de sabermos que pertencemos a um dado existente entre música e a inserção de
grupo social e do valor ou significado sujeitos em uma determinada tribo musical,
emocional que atribuímos a essa pertença. criando, consequentemente, uma identidade
(Tajfel, 1983). social, assim como comportamentos
Na Teoria da Identidade Social, um coletivamente orientados desse grupo,
conceito fundamental para a formação de incluindo o modo como esses grupos se
uma identidade é o de categorização social. diferenciam dos demais. Isso foi feito com
O termo categorização social se refere ao entrevistas e visitas a ambientes de encontro
modo de categorizar o sujeito na sociedade, dessas tribos, também conhecidos como
servindo como um instrumento para criar guetos, que permitiu uma observação direta
um lugar para o indivíduo na sociedade. dos comportamentos dessas tribos.
“Categorização social é um sistema de
orientação que ajuda a criar e definir o lugar Metodologia
do indivíduo na sociedade” (Tajfel, 1983, p.
291). Para realização desta pesquisa,
É nesse sentido que grupos como as foram escolhidos três jovens que se incluem
tribos urbanas oferecem um meio para o em diferentes tribos musicais, que foram
sujeito construir seu lugar na sociedade. escolhidos ao acaso em “locais de encontro”
Também é por meio das categorizações dessas tribos. Os sujeitos estão na faixa
sociais que os indivíduos buscam se etária de 18 a 20 anos. Os entrevistados não
diferençar positivamente dos demais grupos têm nenhuma relação entre si, sequer
(outgroup), destacando sempre as tiveram contato um com outro, visto que as
qualidades do seu grupo (ingroup), gerando entrevistas foram realizadas
um sentimento de pertença e uma separadamente. A escolha dos participantes

4 5
Termo usado para designar membros de tribos que Termo inglês para designar pessoas que frequentam
cultuam o heavy metal e suas variantes, também danceterias e escutam música eletrônica. Pouco
chamado metaleiros. usado no Brasil.

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foi aleatória, sem que eles tenham tido com a técnica de análise de conteúdo e
nenhum contato prévio com o realizador da organizadas de acordo com os objetivos
entrevista. delineados na pesquisa, com extração dos
Sujeito 1 (S1): Dezenove anos, trechos mais significativos dos
estudante universitário. Afirma que tem depoimentos e, na busca da compreensão de
como estilo musical predileto o heavy elementos pertinentes ao tema, os
metal, não sendo aberto a escutar “novos conteúdos foram desmembrados em
sons”. Escuta esse tipo de som desde os 15 categorias de análise, na tentativa de
anos e diz que atualmente é bem menos identificar pontos de semelhança e
radical do que quando começou a escutar. diferença entre discursos.
Sujeito 2 (S2): Dezoito anos, Quanto aos procedimentos éticos,
estudante. Define-se como regueiro, mas resguardou-se a preservação dos dados, a
também apaixonado por rock. Escuta confidencialidade, a ética e o anonimato dos
reggae desde os 14 anos. indivíduos pesquisados, sendo que as
Sujeito 3 (S3): Vinte anos, estudante entrevistas foram feitas com o
universitário. Tem como estilo preferido o consentimento de todos os entrevistados,
reggae, mas diz que também escuta outros preservando-os de toda e qualquer
estilos, como hardcore e pop/rock. apreensão ou danos. Dessa forma, para
Começou a escutar esse tipo de música há manter o sigilo dos entrevistados, e para
dois anos. melhor identificá-los, serão utilizadas siglas
Para efetuação das entrevistas na identificação das falas, seguida de
semiestruturadas, foi usado um MP3 para numeração dada conforme ordem de
gravação de voz. Uma posterior transcrição realização das entrevistas.
foi realizada com ajuda do software Via
Voice. A entrevista buscou abarcar Resultados e Discussão
determinados pontos como:
- Que tipo de música esse sujeito Tomando como referências os
escuta; núcleos de interesse contido no roteiro de
- O que o fez gostar desse tipo de entrevista, foram elaboradas quatro
música; categorias objetivando uma melhor análise.
- Qual opinião a respeito de uma Tais categorias se dividem em “Música e
pessoa (não conhecida) que tenha o mesmo ideologia”; “Música como aglutinadora
gosto musical e atitudes parecidas e qual social”; “Música, categorização social e
opinião a respeito de uma pessoa (não identidade positiva” e, finalmente, “Música
conhecida) que tenha um diferente gosto e identidade social”.
musical;
- Existe algum meio de diferençar Música e ideologia
pessoas com mesmos gostos e pessoas com
gostos diferentes. A música e o ato de fazer música
Primeiramente, foi elaborado um estão sempre permeados de significados a
roteiro de entrevista padrão que foi usado ela subjacentes, muitas vezes no campo
com todos os sujeitos. Feito isso, as político e ideológico. Assim, por exemplo,
entrevistas foram realizadas em locais em uma parada militar, a marcha não serve
considerados “guetos” por essas tribos, apenas para o desfile ritmado dos soldados,
onde além da entrevista em si foi observado mas também reflete uma gama de outros
o comportamento da tribo como um todo significados, como toda uma simbologia de
nesse ambiente. A entrevista não teve poder, organização, hierarquia e bravura
nenhum tempo limite, ficando à escolha dos para eles (Ikeda, 2007). Essa categoria está
sujeitos e do entrevistador o momento ideal interessada em um desses significados
de encerrá-la. As falas foram analisadas subjacentes da música, mais

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especificamente o caráter ideológico, pode se inferir que ele atribui às


presente em grande parte do discurso dos características “rebelde, independente e
entrevistados. revolucionário” um caráter positivo.
Nota-se, dessa maneira, que ao
- Regueiros pensam em mudar o mundo escolher um determinado seguimento
com suas ideias positivas. Política é um musical os entrevistados carregam com esse
assunto que a gente conversa bastante, o
que acontece no país em termos gerais, o
tipo de música uma série de pensamentos e
assunto do regueiro é sempre positivo, ideias relativamente coesos entre esses
visando uma melhoria, para o bem comum. membros, que, além de servir como
Regueiro pensam que em tudo há um lado referências identitárias para eles, também
bom, em tudo há uma salvação. A gente funcionam como marcadores sociais dessas
leva o reggae não como estilo, mas como
religião. (S2)
tribos para o outgroup.
- Mas eu me identifico muito com o reggae,
é uma vibração tão boa que me passa, não Música como “aglutinadora” social
apenas pelo ritmo que é calmo, mas pelas
letras que falam de tudo. Do racismo, da Como já mencionado ao longo do
desigualdade, do amor que precisamos ter
com as pessoas, são coisas que entram em
trabalho, as tribos urbanas não se unem de
uma sintonia. Tem músicas que eu chego a forma organizada e estruturada, mas por
me arrepiar. É incrível. (S3) afinidades, podendo ser uma dessas
- [...] Se diferenciam pela forma de pensar. afinidades a música, que funcionaria como
Ideologia, principalmente. Tem um jeito de um “ponto de contato em comum” entre
diferenciar sim. Pela conversa, pelo jeito de
falar, a gente sente a diferença. Um roqueiro
esses diversos sujeitos na formação de uma
tem um estilo mais rebelde, independente, é tribo. Essa categoria tem por objetivo
uma coisa mais revolucionária. (S1) analisar em que medida a música pode ser
responsável pela formação das tribos
Mesmo não sendo inicialmente um musicais, assim como analisar, também,
dos pontos de análises que seria abordado e como se dá a relação dos indivíduos em uma
em nenhum momento serem perguntados mesma tribo.
diretamente sobre o caráter ideológico da
música – no sentido da música como - Fica mais fácil conversar quando sei que a
formadoras de formas de pensar –, esse pessoa gosta igual a mim. Antigamente bem
mais, hoje assim, quer dizer... na época do
tema foi recorrente na fala de todos os auge pra mim eu dizia assim “deu *****,
entrevistados. Isso recai sobre o que ele gosta de tal banda”. (S1)
Friedlander (2002) e Fradique (2003) - Me sinto mais aceito, sei lá, acho que aqui
argumentam, quando eles apontam que a todo mundo é meio igual. (S1)
escolha musical por determinados neotribos - Parece que entre regueiros o papo flui
mais rápido, os interesses são parecidos. A
juvenis, nos quais estão incluídos os coisa é bem mais simples, a gente discute
headbangers e os regueiros, é uma maneira sobre reggae e tal. Já com outras pessoas,
de construir formas de pensar, sendo um parece que rola uma discussão diferente,
processo de conscientização. Percebe-se no meio que ideias paralelas [sic]. Não é que
discurso de S2 e S3, que fazem parte da regueiros sejam ou pensem de maneira
igual, mas as ideias são mais simétricas.
mesma tribo, uma coerência, pois eles (S2)
falam basicamente sobre o mesmo tema, - Acho que tipo quando a gente se reúne é
que é a positividade e o caráter político que uma coisa muito boa. Tu sente que tá todo
perpassam o “pensar reggae’. Já o S1 atribui mundo ali, sabe? Com os pés no chão,
a forma de pensar independente e querendo sempre e sempre o melhor pra
todos. É uma positividade concentrada em
revolucionária dos headbangers como um palavras tão simples e humildes, entende?
meio de se diferenciar das demais tribos, De uma outra forma de se expressar. Bom,
sendo esta, portanto, também, uma música é a linha que me une aos meus
categorização social da tribo, uma vez que amigos. (S3)

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sobre som e sentido: “o som é onda, os


A primeira fala de S1 denota uma corpos vibram, e essas vibrações
“empatia inicial” que ele sente por pessoas transmitem-se sob formas de propagação
que têm um mesmo gosto musical, mesmo ondulatória, capazes de serem captadas
que para ele seja desconhecido. Durante o pelos nossos ouvidos, e interpretados pelo
resto de sua fala, ele mostra como se sente nosso cérebro, o que lhe dá configurações e
aceito no ambiente em que se encontrava – sentido”. Dessa forma, a autora defende a
que, como já dito, era um ponto de encontro ideia de música operando como força,
dessa tribo – por considerar que ali todos instalando-se como linhas de fugas
são “meio iguais”. Já a fala de S2 e S3 (Guatarri & Deleuze, 2000) que atravessam
remetem à relação entre os membros dessa os corpos, permitindo uma “interpenetração
tribo depois de já inseridos nela, que sem obstrução” (Santos, 2000, p. 66).
segundo eles “fluem” de maneira mais A música operando como força
rápida por haver uma comunhão de significa dizer que o que está em pauta não
interesses e ideias, uma vez que, como fala é necessariamente os eixos harmônicos e
S2, “as ideias são mais simétricas”. estruturais, mas sim a ação direta provocada
Essas falas são interessantes, pois no sistema nervoso desse ouvinte,
tocam em um dos pontos abordados por permitindo o “imediatismo assombroso da
Maffesoli (1987), e já mencionado ao longo sensação”. Com efeito, a música e escuta
do trabalho, que afirma que a filiação de um tornam-se fluidas e livres, desenvolvendo-
jovem a uma determinada tribo se dá por se por conexões rizomáticas e que, como
uma questão de empatia, de feeling, sendo a rizoma, leva-nos as percorrê-las,
música, nesse caso, o elemento principal conectando-se livremente de um ponto a
nessa inserção. A frase “Bem, música é a outro, sem trajetórias fixas. Uma escuta que
linha que me une aos meus amigos”, dita se dá por conexões livres, que “flui” entre
por S3, resume bem a relação existente um espaço e outro, operando por contágio
entre a música e a formação das tribos (Santos, 2000; Guatarri & Deleuze, 2000).
urbanas, sendo a música o meio pelo qual os
sujeitos criam uma “empatia inicial”, Música, categorização social e identidade
suscitada pela fala do Sujeito 1, e positiva
socializam mais facilmente com outros
sujeitos de gostos parecidos, “fechando-se” O processo de categorização social e
em grupos sociais que compartilhem e comparação social são os elos primordiais
valorizem essas características que eles têm para a construção da identidade. Para Tajfel
em comum. A trajetória desses sujeitos é (1983, p. 290), a categorização social é o
simples e identificável. Uma vez que processo por meio do qual “[...] se reúnem
gostam de determinados tipos de música, os objetos ou acontecimentos sociais em
muitas vezes não benquistos por boa parte grupos, que são equivalentes no que diz
da população, eles buscam outros sujeitos respeito às ações, intenções e sistemas de
que compartilhem e deem valor a esse crenças do indivíduo”. Esse processo de
gosto, inserindo-se dessa maneira em suas comparação social se dá por meio do
respectivas tribos e consequentemente confronto entre o ingroup e outgroup,
configurando-as. quando os indivíduos muitas vezes
Interessante, ainda, notar a atribuem uma valoração positiva
descrição da sensação de “fluição” e de (identidade positiva) ao seu grupo e
positividade ao ouvir determinado gênero negativa ao outgroup, sendo esse um
musical. Isso vai ao encontro da noção de mecanismo básico na formação da
escuta nômade, apontado por Santos identidade social.
(2000), que, por sua vez, se apoia nas
definições que Wisnik (1989, p. 17) oferece - Antigamente eu só falava bem dizer com

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gente que gostava da mesma coisa que eu. evangélica, percebe-se um “choque” entre
Hoje em dia falo com todo mundo... com essas visões, uma vez que muitas vezes a
evangélico, com todo mundo, mesmo que
eu não goste.[...] mas não é por causa disso
imagem do heavy metal está associada à
que o cara vai deixar de falar com eles. Mas arruaça, selvageria e ao paganismo,6 sendo
tem quem pense assim? Tem, e muitos, mas o contrário da imagem proposta pelas
não é mais o meu caso. (S1) instituições evangélicas e que, portanto,
-Num show de reggae você se sente em representam a esse grupo uma ameaça a sua
casa, todos são extremamente sociáveis,
você sente a paz, já fui em vários shows de
identidade social, como mencionado por
reggae, [...], eu nunca vi uma briga em um Tajfel.
show de reggae, nem sequer uma discussão, Sociáveis, pacíficos, maduros e
a mentalidade é outra, o povo é mais amorosos. Essas são as características
maduro, mais da paz. (S2) atribuídas por S2 ou S3 ao próprio grupo
- Cara, você nunca vai se desentender com
um regueiro. O reggae prega sempre paz e
quando perguntados como se dá a relação
amor, se você curte o reggae de verdade, entre eles e pessoas com um mesmo gosto
você sempre vai ser amigável e pacífico. musical. A alternativa de categorização
Então regueiros são amigáveis com todos. “escolhida” pelos sujeitos segue uma linha
E com outro regueiro então, nem se fala. de representar-se positivamente em relação
Amizade forte mesmo. (S3)
- Um regueiro geralmente, se não curte,
aos demais grupos, não atribuindo ao
pelo menos respeita todos os tipos de tribos, outgroup, portanto, características
e se sente bem entre elas, pois fazer novas negativas. Ainda nas falas de S3, percebe-
amizades faz parte do reggae. Num show de se um fato curioso. Quando perguntado
reggae você se sente em casa, todos são como se dá as relações entre ele e outros
extremamente sociáveis, você sente paz.
(S2)
jovens com mesmo gosto musical, ele
- É uma coisa meio estranha falar com encerra sua fala com a frase “Amizade forte
pessoas de gostos diferentes. E eu tenho mesmo”, já quando perguntado como se dá
pavor de pagode, por exemplo. Então, acho a relação dele com jovens de outras tribos,
que eu não me aproximaria desta pessoa ele encerra com “É apenas amizade”. Nota-
com a intenção de aprender ou gostar de
alguma coisa, porque seria totalmente fora
se que a relação desse sujeito na
do padrão, mas eu conheço muita gente que comunidade empática da tribo tem algo que
ama pagode e tudo mais, só que a relação vai além de uma “simples amizade”, sendo
minha com essas pessoas é que eu não falo uma relação mais sólida, de maior empatia
de música. É apenas uma amizade. (S3) por ter essas características positivas
supracitadas por ele.
Na fala de S1, que representa a tribo Tais achados corroboram com os
dos Headbangers, há indícios de achados de Oliveira, Camilo e Assunção
discriminação e preconceito no agir da (2003) ao estudarem as tribos urbanas como
tribo, apesar de ele deixar claro que essa não sistemas semióticos, no qual há a adoção de
é mais atitude que o representa. Esse uma imagem estética compartilhada pelo
comportamento é apontado por Tajfel grupo em que não basta os integrantes das
(1983) como sendo relativamente normal tribos terem um visual semelhante entre si,
no processo de categorização social, diz ele é necessário ser diferentes dos demais. Não
que a rejeição e o preconceito são tipos de compartilhar essa imagem é ser normal, ou,
defesa contra aqueles que se apresentam “não ser nada”.
como ameaça ao nosso modo de vida e à De um modo geral, o que se pode
nossa posição social, ou seja, à nossa perceber é que as identidades positivas que
identidade. Fazendo um breve paralelo os entrevistados se atribuem refletem o tipo
entre a postura headbanger e a postura de som por eles escolhidos. Enquanto os

6 da identidade e da representação do Heavy Metal é


Neste trabalho não há a intenção de analisar se tais
características são verdadeiras ou falsas, a questão bem trabalhada no estudo de Silva (2008).

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sujeitos 2 e 3 reclamam as qualidades de fazer essa entrevista, eu não faria e seria


“pacífico, maduros e sociáveis”, qualidades super mal-educado com você. Eu era
estressado, mal-humorado e tinha pavio
essas que estão presentes nas letras e no curto. Era o tipo de pessoa que você não
contexto histórico do reggae, S1 – na fala queria ter como amigo. Graças ao reggae eu
“Um roqueiro tem um estilo mais rebelde, mudei, quando você ouve o reggae, você
independente, é uma coisa mais relaxa, você se acalma, depois você vai
revolucionária” – também sugere evoluindo e estudando a verdadeira história
do reggae, vai vendo como o reggae foi
qualidades que recaem sobre a história e os capaz de mudar muitos, vai vendo como o
conteúdos recorrentes do rock ao longo dos movimento Rastafári mudou muita gente.
anos. Isso indica como a música é de Quando virei regueiro de verdade, eu
fundamental importância na caracterização mudei. Hoje sou amigável com todos, eu
da identidade positiva desses sujeitos e, era sempre revoltado com tudo e com todos
ao meu redor, mas quando virei regueiro, eu
consequentemente, de sua categorização coloquei uma nova regra em minha vida:
social. Primeiro eu me mudo, pra depois mudar o
mundo. E é assim que o reggae me
Música e identidade social influencia até hoje, o reggae me traz paz,
tranquilidade. (S2)
- Meu chão mesmo é reggae, reggae em
Ao fazer parte de uma tribo, o primeiro lugar. Depois vem as outras
jovem, com ela, constrói sua identidade bandinhas e tals. (S3)
social. Como dito, a música pode estar
presente na inserção e na relação entre Mesmo não sendo a intenção de
jovens ingroup e outgroup, bem como o fazer uma análise do discurso dos
papel da música no processo de entrevistados, pode-se inferir na fala deles
categorização social. Categorizar-se que expressões como “nós”, “sou regueiro”,
socialmente e relacionar-se com “opostos” “a gente se encontra”, “meu chão é o
são os mecanismos básicos na construção reggae” expressam sentimentos de
de uma identidade social para esses jovens. pertença, identificação e diferenciação
Levando em conta o conceito apresentado identitária, fundamental para a constituição
por Tajfel (1983) de que “a identidade de identidades sociais.
social seria a parte do nosso autoconceito Na segunda fala de S1, ele toca em
que resulta ao mesmo tempo de sabermos um ponto fundamental nas tribos urbanas e
que pertencemos a um dado grupo social e também já abordado aqui: a questão
do valor ou significado emocional que corporal. Roupas, penteados, tatuagens e
atribuímos a essa pertença”, essa categoria bodypiercing são meios encontrados pelos
objetiva perceber como a escolha por indivíduos para dar vazão a formas de
determinado tipo de música influenciou e expressão pessoal e de singularização
influencia os jovens entrevistados, social. Isso fica claro na fala de S1, quando
refletindo em suas identidades sociais. a roupa preta pra ele era um meio de
demonstrar que ele fazia parte daquela
- Tudo, né. O jeito de se vestir, de andar, tribo, causando ânsia e até medo em não ser
forma de pensar, ideologia... (S1)
- Hoje em dia nem é tanto assim, não ligo
quisto como tal. Trazendo esse paradigma
pra isso mais não. Antigamente eu não para outras tribos – como a dos regueiros,
usava uma roupa colorida. Não usava dos punkers, dos rappers, dos mangueboys,
colorida nenhuma, não tinha nenhuma na etc. –, percebe-se que nessas tribos há uma
minha gaveta, achava que iam dizer: “ah, aparente uniformização, “um visual básico”
ele não gosta de rock não”. Hoje acho uma
besteira, tenho pouquíssimas roupas pretas.
entre os seus membros, sendo esse um meio
Depois que a fase passa, a pessoa cresce. de reafirmar sua identidade, tanto ingroup
(S1) quanto outgroup.
- Cara, sou regueiro. (S2) Quando perguntados sobre de que
- Cara, há tempos atrás se você me pedisse modo o tipo música escolhido por eles os

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influenciaram e os influenciam, S1 e S2 são Atrelada a essa questão está a


bastante enfáticos em atribuir que grande necessidades de esses indivíduos deixaram
parte do seu comportamento se deve à claro a qual grupo pertencem, tanto para
escolha daquele determinado gosto musical. pessoas do seu grupo quanto para pessoas
S2 relata como a escolha por esse tipo de que não fazem parte dele. É aí que se
música fez com que ele passasse a ter as configuram as tribos urbanas, pois ao se
características positivas, que anteriormente fechar em grupos de pessoas com
foram apontadas como parte da identidade características em comum, esses sujeitos
positiva dessa tribo. criam novas formas de sociabilidades,
Essas falas mostram como a música constroem referências identitárias para si e
pode ser responsável pela constituição de representações dos demais grupos.
identidades sociais desses sujeitos. Mais Portanto, com base nas análises aqui
uma vez ,traçando uma trajetória desses apresentadas, pôde-se apontar que a música
indivíduos, percebe-se que ao escolher um pode atuar na constituição das identidades
determinado tipo de música e “entrar” em sociais desses sujeitos ao funcionar como
uma tribo urbana esses sujeitos passam a ter principal catalisador na formação das tribos
uma série de referências identitárias urbanas. Uma vez nessas tribos, esses
compartilhadas com os outros membros, jovens constroem suas identidades sociais,
como uma “cartilha” a seguir para, além de que refletem, também, aspectos
ser respeitado na tribo, também ser relacionados àquele tipo de música por ele
reconhecido pelo outgroup como fazendo escolhido.
parte daquela tribo. Ou seja, isso recai
exatamente no que Tajfel defende ao dizer Referências
que a identidade social surge do resultado
do nosso conhecimento de saber que Amância, L. (1993). Identidade social e
fazemos parte de um grupo, bem como o relações intergrupais, In J. Vala & M.
valor que damos a esse pertencimento, que B. Monteiro (Orgs.). Psicologia
é bem descrita por S2 na sua segunda fala. Social (pp. 288-307). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Considerações finais Butler, J. (2011). Bodies that Matter: On the
Discursive Limits of Sex. Swansea:
Tendo como base o objetivo Routledge.
primordial do trabalho, que foi buscar de Butler, J. (2013). Excitable Speech: A
que maneira a música pode influenciar na Politics of the Performative.
criação de identidades sociais por jovens de Swansea: Routledge.
uma tribo, nota-se que essa influência se dá Blacking, J. (1995). How Music is Man? (5a
justamente a partir do momento que esses ed). London: University of
jovens se filiam a essas tribos. Como citou Washington Press.
John Blacking (1995, p.223), “fazer música Bourdieu, P. (2007). A distinção crítica
é um tipo especial de ação social que pode social do julgamento. São Paulo:
ter consequências importantes para outros Edusp.
tipos de ações sociais”. No caso do presente Cabecinhas, R., & Llázaro, A. (1997).
trabalho, pôde-se reparar que a música atua Identidade social e estereótipos
como uma facilitadora social para jovens sociais de grupos em conflito: um
com gostos musicais parecidos. É, pois, a estudo numa organização
música que definirá como esses jovens se universitária. Instituto de Ciências
relacionarão com “os outros”, sendo ela Sociais da Universidade do Minho.
responsável por uma “empatia inicial” ou Costa, A. F. (2003). Estilos de
um preconceito e discriminação deles pelos sociabilidade. In Cordeito et al.
demais. Etnografias urbanas. (pp. 121-129),

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Recebido em: 24/8/2017

Aprovado em: 20/2/2019

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