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DOI: 10.1590/1413-81232018236.

07082018 2067

A reforma psiquiátrica no SUS

OPINIÃO OPINION
e a luta por uma sociedade sem manicômios

Psychiatric reform in the SUS and the struggle


for a society without asylums

Paulo Amarante 1
Mônica de Oliveira Nunes 2

Abstract T This article presents a historical Resumo O artigo realiza um percurso histórico e
and epistemological study of the construction of epistemológico da construção das políticas públi-
public policies about mental health and psycho- cas de saúde mental e atenção psicossocial a partir
social care in Brazil´s Unified Health System, the do SUS. Para tanto, propõe uma abordagem que
SUS. To that end, it proposes an approach that identifica as ações e as estratégias relacionadas ao
identifies actions and strategies related to social aspecto da participação social na construção das
participation in the construction of policies, one políticas, um dos princípios fundantes do SUS, e
of the founding principles of SUS, seeking to de- procurando demarcar a importância desta na tra-
lineate its importance in the specific trajectory of jetória específica do processo de reforma psiquiá-
the psychiatric reform process. Subsequently, it trica no Brasil. Posteriormente, destaca também a
highlights the originality and importance of ac- originalidade e a importância da atuação que teve
tions that used culture as a means and as an end, como meio e como fim a cultura, no sentido de não
in the sense of not restricting psychiatric reform restringir a reforma psiquiátrica a uma transfor-
to a transformation limited to public services or mação limitada aos serviços e à saúde em sentido
health in the strict sense of the term, emphasizing estrito, ressaltando o princípio da construção de
the principle of construction of a new locus in so- um novo lugar social para a loucura. Por fim, faz
ciety for madness. Finally, it provides a historical um acompanhamento histórico da promulgação
follow-up of the promulgation of mental health das políticas de saúde mental, identificando as
policies in Brazil, identifying the most important iniciativas mais importantes e seus impactos na
initiatives and their impacts on the transforma- transformação do modelo assistencial e encerra
tion of the care model, and concludes by question- com o questionamento sobre a reorientação con-
1
Laboratório de Estudos e ing the conservative restructuring that is currently servadora que no momento se impõe.
Pesquisas em Saúde Mental taking place. Palavras-chave Saúde mental, Movimento an-
e Atenção Psicossocial, Key words Mental health, Anti-asylum move- timanicomial, Reforma psiquiátrica, Participação
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fiocruz. R. ment, Psychiatric reform, Community participa- social, Reabilitação psicossocial
Leopoldo Bulhões 1480, tion, Psychosocial rehabilitation
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ Brasil.
pauloamarante@gmail.com
2
Universidade Federal da
Bahia, Instituto de Saúde
Coletiva. Salvador BA
Brasil.
2068
Amarante P, Nunes MO

Introdução mentos sociais. Esta foi uma questão permanente


e preocupante no âmbito da RP, possibilitando
As políticas de saúde mental (SM) e atenção psi- que surgissem iniciativas importantes nesta dire-
cossocial (AP) no SUS têm relação direta com a ção. Nossa proposta é refletir sobre este processo
ideia-proposta-projeto-movimento-processo1 da em várias dimensões que, embora simultâneas e
reforma sanitária e com a conjuntura da tran- relacionadas entre si, têm como objetivo ressaltar
sição democrática e, consequentemente, com a e analisar os vários dispositivos e estratégias que
construção do próprio estado democrático. Mas foram adotados.
guardam algumas singularidades!
Os primeiros movimentos relacionados à O processo de participação social
assistência psiquiátrica brasileira surgiram nos na reforma psiquiátrica: os ‘mentaleiros’
anos 1970 quando profissionais recém-formados fazem a diferença
encontraram um cenário de descaso e violência.
Assim, são emblemáticos no período o caso dos O primeiro momento diz respeito à cons-
acadêmicos baianos, o memorial da Associação tituição do Movimento dos Trabalhadores em
Psiquiátrica da Bahia2 e a “crise” da Divisão Na- Saúde Mental (MTSM), primeiro sujeito coletivo
cional de Saúde Mental (DINSAM/MS). A “crise com o propósito de reformulação da assistência
da DINSAM” teve grande repercussão após ma- psiquiátrica. É importante observar que, neste
nifestações de entidades expressivas no cenário momento, pouco se utilizavam os termos saúde
nacional (OAB, ABI, CNBB, dentre outras). O mental ou reforma psiquiátrica. O primeiro por
episódio diz respeito à mobilização de bolsistas estar ainda praticamente restrito à proposta da
e residentes dos hospitais psiquiátricos do Mi- saúde mental comunitária ou psiquiatria preven-
nistério da Saúde (MS), onde as condições eram tiva, fundamentada por Caplan3, que foi objeto
absolutamente precárias. A partir de uma carta de muitas críticas, conhecidas e acatadas pelos
encaminhada ao Ministro da Saúde com denún- participantes do MTSM. Duas destas críticas se
cias e reivindicações, foram demitidos 260 pro- tornaram emblemáticas: a de Franco Basaglia,
fissionais, desencadeando um processo de novas intitulada “Carta de Nova York - doente artifi-
denúncias, manifestações e matérias na imprensa cial”4, e a de Joel Birman e Jurandir Freire Costa,
durante vários meses. É neste cenário de redemo- intitulada “Organização de Instituições para uma
cratização e luta contra a ditadura, relacionando Psiquiatria Comunitária”5. O segundo termo,
a luta específica de direitos humanos para as víti- reforma psiquiátrica, só viria a ser utilizado na
mas da violência psiquiátrica com a violência do virada dos anos 1980 para 1990, no mesmo perí-
estado autocrático, que se constituiu o ator social odo em que o termo reforma sanitária começa a
mais importante no processo de reforma psiqui- ser adotado6.
átrica (RP). Isto irá influenciar de forma signifi- Já em 1978, quando o MTSM foi constituído,
cativa a construção das políticas públicas, não só existiram várias atividades importantes para seu
na saúde, mas em outros setores (cultura, justiça, reconhecimento, com destaque para o V Con-
direitos humanos, trabalho e seguridade social). gresso Brasileiro de Psiquiatria, em Camboriú
Este curto resgate objetiva abrir a perspec- (SC), praticamente ocupado pelos participantes
tiva de que a saúde mental se inscreve no ciclo do movimento e para o I Simpósio Sobre Políti-
ideia-proposta-projeto-movimento-processo1, cas Grupos e Instituições, no Copacabana Palace,
mas que, talvez para além do ciclo análogo ou in- para o qual vieram personalidades internacio-
ter-relacionado à reforma sanitária, se constitua nais de renome, tais como Franco Basaglia, Ro-
em um processo mais amplo e complexo. É neste bert Castel, Felix Guattari, Ronald Laing, Donald
sentido que se adota a perspectiva de refletir so- Cooper, Howard Becker, Thomas Szasz dentre
bre saúde mental, atenção psicossocial e reforma outros. Alguns convidados estabeleceram fortes
psiquiátrica nestes 30 anos do SUS, procurando vínculos com os militantes locais, o que ocasio-
identificar estratégias, dispositivos e processos nou uma relação profícua, a exemplo do ocor-
que transbordaram o SUS e que alcançaram ou- rido com Robert Castel, Felix Guattari e Franco
tros setores de forma marcante. Referimo-nos ao Basaglia (que ainda retornou duas vezes ao Bra-
debate iniciado por Sergio Arouca e refletido por sil, antes de falecer dois anos após).
Paim do “‘fantasma da classe ausente’ e os novos Ainda em 1978, o MTSM se aproximou do
sujeitos sociais”1, de que o movimento da reforma Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CE-
sanitária não conseguiu se articular com as mas- BES), passando a organizar Comissões de Saúde
sas populares ou, ao menos, com outros movi- Mental em alguns dos estados onde a entidade
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era mais presente (RJ, SP, MG, BA). O relatório Bauru, já que David Capistrano (um dos funda-
elaborado pela comissão do Rio de Janeiro viria dores do CEBES e da Revista Saúde em Debate e
a ser apresentado no I Simpósio de Políticas de defensor contundente da RP)13 era Secretário de
Saúde da Câmara dos Deputados, no mesmo dia Saúde, o que favoreceria a realização do evento.
em que o CEBES apresentou o documento “A O II Encontro enfatiza a proposta de “uma
questão democrática na área da Saúde”, no qual sociedade sem manicômios”, lema proposto pela
foi apresentada a proposta de um Sistema Único Rede de Alternativas à Psiquiatria, após realiza-
de Saúde (SUS)7. ção de importante encontro em Buenos Aires, em
A última viagem de Basaglia ao Brasil teve 1986, do qual participam alguns dos mais impor-
forte repercussão na mídia. Noticiada em gran- tantes membros internacionais (Robert Castel,
des meios de comunicação, estimulou obras mar- Felix Guattari, Franco Rotelli, Franca Basaglia).
cantes: Nos porões da loucura de Hiram Firmino8, “Por uma sociedade sem manicômios” revela
coletânea das crônicas publicadas no Diário de duas transformações significativas no movi-
Minas, e o premiado curta Em nome da Razão de mento. Uma, que diz respeito à sua constituição,
Helvécio Ratton9. na medida em que deixa de ser um coletivo de
No ano seguinte, 1979, o MTSM organizou o profissionais para se tornar um movimento so-
I Congresso de Saúde Mental em São Paulo, de- cial, não apenas com os próprios “loucos” e seus
monstrando vigor e iniciativa, mesmo sem qual- familiares, mas também com outros ativistas de
quer apoio financeiro. Ainda neste ano, a aproxi- direitos humanos. Outra, que se refere à sua ima-
mação com a recém-criada Associação Brasileira gem-objetivo, até então relativamente associada
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) à melhoria do sistema, à luta contra a violência,
significaria mais uma estratégia de ampliação da a discriminação e segregação, mas não explicita-
articulação do movimento com o campo mais mente pela extinção das instituições e concepções
geral da saúde. manicomiais. A partir de então se transforma em
No início dos anos 1980, com a crise financei- Movimento da Luta Antimanicomial (MLA).
ra da Previdência Social (PS), surgiram propos- No âmbito das conferências, é mister destacar
tas de reformulação da assistência médica neste que o MLA sempre teve papel de destaque nas
âmbito, mas também da saúde, e muitos dos edições municipais, estaduais e nacionais de saú-
participantes do MTSM foram envolvidos nes- de mental. O campo da saúde mental passa a pra-
tes processos, e, em consequência das mudanças ticar uma radicalidade da proposta de participa-
políticas, especialmente com a Nova República, ção social, muito além do formalmente previsto
houve a convocação da histórica 8ª Conferência na legislação do SUS, acerca da participação dos
Nacional de Saúde, que revolucionou a forma de usuários pela Lei 8.080/9014. A II Conferência,
participação social na elaboração de políticas pú- convocada por Fernando Collor, foi realizada (de
blicas10. Na medida em que a oitava, como ficou 30/11 a 02/12 de 1992), cinco anos após a pri-
conhecida, teve um temário mais geral (Saúde meira, e a III, convocada por Fernando Henrique
como direito; Reformulação do sistema nacional Cardoso, ocorreu entre 11 a 15/12 de 2001, quase
de saúde; Financiamento do setor)11, foi decidido dez anos após a anterior. E, paradoxalmente, no
convocar conferências específicas, dentre as quais sentido que denota uma contradição, no primei-
a de Saúde Mental. A realização da I Conferência ro mandato de Luís Inácio Lula da Silva não foi
Nacional de Saúde Mental, no entanto, ocorreu realizada a conferência. A quarta edição da mes-
após muitas dificuldades na medida em que, pa- ma só ocorreu de 27/06 a 01/07 de 2010, no últi-
radoxalmente, o setor de saúde mental do MS mo ano de seu segundo mandato, após vigorosa
era desfavorável às ideias reformadoras e mesmo pressão dos movimentos sociais que realizaram
à da participação social na construção das polí- várias manifestações que culminaram com a his-
ticas públicas. Para sua realização foi decisiva a tórica Marcha dos Usuários em 30 de setembro
atuação de participantes do MTSM que desen- daquele ano em Brasília. Apesar de ter sido con-
cadearam conferências estaduais sem a anuência vocada como a primeira conferência interseto-
do governo central. E foi a única conferência que rial, a participação de outros setores ficou restrita
não aconteceu em Brasília, e sim no Rio de Janei- a componentes do governo e não se expandiu aos
ro, de 25 a 28 de junho de 198712. movimentos sociais ligados ao trabalho, direitos
Durante a I CNSM ocorreu um encontro do humanos, cultura, educação, direito à terra e as-
MTSM que decidiu convocar o seu II Congres- sim por diante.
so Nacional, em dezembro daquele mesmo ano. Além da expressiva participação do MLA
Como sede para o mesmo foi eleita a cidade de nas conferências, audiências públicas e outros, o
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mesmo passou a participar da Comissão Inter- em dois anos, congressos nacionais assim como
setorial de Saúde Mental do Conselho Nacional os fóruns de direitos humanos e saúde mental.
de Saúde, em que pese o fato de que a concepção Tanto os congressos quanto os fóruns passaram a
de intersetorialidade aí utilizada estava restrita assumir de maneira mais central a crítica ao mo-
aos segmentos do campo da saúde mental (espe- delo biomédico em psiquiatria e aos interesses
cialmente familiares e usuários). As reuniões da que os orientam. A título de exemplo, a entidade
Comissão eram convocadas de forma irregular e possibilitou a vinda de várias expressões interna-
os representantes do MLA criticavam a falta de cionais de movimentos de crítica à medicaliza-
poder decisório da comissão. ção da vida cotidiana, dos “ouvidores de vozes”,
Uma vez constituído como Movimento da do Diálogo-Aberto, com destaque para Robert
Luta Antimanicomial, o coletivo passou a organi- Whitaker16, que aqui esteve quatro vezes.
zar núcleos nas capitais e em praticamente todas Com os primeiros sinais de desmonte do
grandes cidades do país. Elemento decisivo para SUS, o que ocorreu antes ainda do impedimen-
esta ampliação foi a criação, já em Bauru, do Dia to de Dilma Rousseff, mas em decorrência das
Nacional da Luta Antimanicomial. O dia 18 de negociações para que o mesmo não ocorresse,
Maio serviria para despertar o pensamento crí- o MS foi assumido por conservadores e, para a
tico na sociedade sobre a violência institucional Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras
da psiquiatria e a exclusão das pessoas em sofri- Drogas, foi nomeado ex-diretor de um hospital
mento psíquico. Pode-se considerar que o objeti- psiquiátrico fechado por ação do Ministério Pú-
vo teve êxito na medida em que, desde então, são blico e notório defensor do modelo manicomial.
realizadas atividades políticas, científicas, cultu- Em resposta, o MLA “ocupou” por 4 meses as
rais e sociais não apenas no dia em questão, mas dependências da Coordenação que só foi desocu-
por todo o mês de maio, que passou a ser con- pada por ordem judicial. Este ato, de repercussão
siderado o Mês da Luta Antimanicomial. Dada a internacional, demonstrou a capacidade de or-
grande repercussão dos eventos organizados pelo ganização e intervenção política do movimento
MLA e pela sua também expressiva participação “mentaleiro”.
nos fatos mais gerais da saúde, a denominação de
mentaleiros (em alusão ao heavy metal) passou a Há tanta vida lá fora:
ser amplamente utilizada para caracterizar o “ba- um novo lugar social para a loucura
rulho” causado por este ator social.
Por outro lado, o MLA passou a organizar A noção de RP como processo social com-
eventos próprios, o primeiro em 1993, em Salva- plexo, elaborada originalmente por Rotelli et al.17
dor, e o mais recente, em 2014, em Niterói, com para se referir às estratégias de desinstitucionali-
relativa regularidade e expressiva autonomia, zação, tem sido adotada no Brasil13,18 no sentido
tanto em termos organizativos quanto financei- de destacar a amplitude do processo, ressaltando
ros, e passou a estimular e a contribuir com a que o mesmo não se reduz à reforma de servi-
organização de encontros nacionais de associa- ços e tecnologias de cuidado, em que pese a im-
ções de usuários de serviços de saúde mental e portância das mesmas. Birman, nos primórdios
familiares que, em 2014, realizou sua 14ª edição. deste processo, observou que o que estava “em
Em Vasconcelos15, podem ser encontradas infor- pauta de maneira decisiva é delinear um outro
mações preciosas sobre as bases históricas e polí- lugar social para a loucura em nossa tradição cul-
ticas, tensões e tendências deste ator social. tural”19. Este aspecto pode ser considerado uma
A criação da Associação Brasileira de Saúde das principais referências para que se construísse
Mental (Abrasme) representou um elemento outras estratégias e dispositivos políticos, sociais
novo no cenário da participação social no con- e culturais, e não apenas clínicos e terapêuticos.
texto da RP. Criada a partir do GT de Saúde Men- Uma destas estratégias foi, potencialmente, o es-
tal da Abrasco, a Abrasme teve como propósito tímulo à participação social na construção das
constituir um novo ator que reunisse, a um só políticas, tanto no âmbito dos serviços, quanto
tempo, os vários sujeitos envolvidos, dos usuários nos fóruns mais gerais (conferências, audiências
e familiares e outros ativistas ligados às questões públicas, conselhos de saúde, e outros espaços)
de etnia, gênero, sexualidade, diversidade cultu- além, evidentemente, de um forte protagonismo
ral e direitos humanos, e todos que estivessem em enquanto sujeitos do movimento antimanico-
serviços ou outros dispositivos, e também com mial20, ou de empoderamento21,22.
os que atuassem na produção de conhecimento e No I Encontro Nacional, em Salvador, foi
políticas. A Abrasme passou a organizar, de dois consolidada uma diretriz fundamental para a
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RP no sentido da construção de um novo lugar ambulatorial (que consistia em consultas espar-
social para a loucura. Trata-se da concepção de sas de renovação de receitas, ou de tímida oferta
que, se o objeto da mudança seria no âmbito da psicoterápica). Uma função alternativa ou inter-
cultura, das práticas culturais, a estratégia tam- mediária ao modelo hospitalar predominante
bém deveria ser cultural. Surge aí a proposta de naquele período28.
trabalhar com a cultura como meio e como fim23. Com a inclusão dos princípios do SUS na
A utilização da arte e da cultura, para além de re- Constituição de 1988, foi aberta uma nova pers-
curso meramente terapêutico ou auxiliar da clí- pectiva para a autonomia e o desenvolvimento
nica, passou a assumir a dimensão de produção das políticas municipais de saúde; vigorosa ex-
de subjetividade e de vida24. Nesta linha de atua- pressão disso foi o que ocorreu em Santos/SP em
ção, o processo de RP é tomado por um enorme 1989. Apesar de ainda sob a vigência do Sistema
contingente de iniciativas artístico-culturais no Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS),
sentido de promover transformações no imagi- os gestores recém-eleitos no município decidem
nário social e nas práticas discursivas sobre lou- apressar a instalação do SUS e realizam interven-
cura, diversidade e diferença25,26. ção em hospital psiquiátrico onde ocorriam gra-
Desde as camisetas que provocam reflexões ves violações dos direitos humanos. Ao contrário
(“de perto ninguém é normal”, da música de Ca- de intervenções anteriores no mesmo hospital
etano Veloso; “há tanta vida lá fora”, de Lulu San- ou em geral, no país, o desfecho não apontaria
tos, etc.), a exposições de artes plásticas, eventos melhorias, mas a extinção do hospital, com con-
culturais e a criação de variadas expressões artís- sequente criação de uma rede denominada de
tico-culturais (Coral Cênico Cidadãos Cantantes, substitutiva, composta não apenas de serviços
Harmonia Enlouquece, Sistema Nervoso Alterado, descentralizados, distribuídos pelo território,
Trem Tam Tam e Os Impacientes, coletivos carna- mas também de dispositivos que pudessem con-
valescos Tá Pirando Pirado Piro, Loucura Subur- templar outras dimensões e demandas da vida,
bana, Doido é Tu, Lokomotiva, grupos de teatro tais como moradia, trabalho lazer, cultura, etc.
como Pirei na Cenna, Ueinz!, Os Insênicos, e mui- Além da criação de cinco Núcleos de Atenção
tos outros...) expressam estas estratégias. Psicossocial (NAPS), foram abertas residências
Em 2007 foi realizada a Oficina “Loucos pela para egressos do hospital, uma cooperativa de
Diversidade”, presidida pelo Ministro Gilberto trabalho, um projeto cultural de rádio, TV e te-
Gil27, a partir da qual foi lançado um edital em atro, além de vários outros programas interseto-
que se inscreveram cerca de 400 iniciativas cul- riais com crianças e jovens, profissionais do sexo,
turais, expressão da forma da arte-cultura na RP. redução de danos, violência doméstica, dentre
Enfim, a estratégia via atividades artístico-cultu- outros.
rais possibilitou uma dimensão muito criativa no Em pouco tempo passa a ter visibilidade a
âmbito da saúde mental no SUS, tanto no que diz rede de dispositivos substitutivos criados em vá-
respeito ao cotidiano dos serviços quanto à inter- rios municípios do país, e regulamentados pelas
venção cultural na cidade, no âmbito público das portarias 189, em 1991, que introduziu os códi-
relações sociais. gos NAPS/CAPS na tabela do SUS e pela 224, de
1992, que os define como unidades de saúde lo-
Dos serviços substitutivos à RAPS cais/regionalizadas responsável pela cobertura de
uma população definida pelo nível local a ofere-
Na década de 1970 e parte de 1980, o movi- cer cuidados intermediários entre a rede ambu-
mento da RP desenvolveu o pensamento crítico latorial e a internação hospitalar. Muitos outros
à institucionalização da loucura. Os conceitos dispositivos são criados, tais como hospitais-dia,
de institucionalismo, poder institucionalizante centros de convivência e cultura, centros de refe-
e instituição total predominavam nos discursos rência, oficinas terapêuticas, dentre outros. Este
de então. É no final dos anos 1980 que surge a crescimento revela a riqueza e a criatividade dos
perspectiva de criar serviços que deem início a atores da RP no âmbito do SUS. É importante
práticas inovadoras. destacar que, ao mesmo tempo em que as por-
Em São Paulo foi criado o primeiro Centro de tarias propiciaram o aumento da rede, por outro
Atenção Psicossocial (CAPS) e outras iniciativas limitaram sua autonomia em termos de inovação
começaram a surgir. São serviços que cumprem e resolubilidade.
a função inédita de oferecer cuidado intensivo a Em 1989, com o processo de Santos e a de-
usuários com quadro psiquiátrico grave sem lan- monstração da viabilidade e eficácia da rede
çar mão da hospitalização ou do frágil modelo substitutiva ao modelo manicomial, foi apresen-
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tado o projeto de lei 3.657/89. O PL ficou quase ção dos pontos de atenção das redes de saúde no
12 anos em tramitação, mas, mesmo rejeitado, território, qualificando o cuidado por meio do
propiciou que um substitutivo fosse aprovado e acolhimento, do acompanhamento contínuo e
introduzisse mudanças significativas nas políti- da atenção às urgências.
cas do campo, embora não contemplassem ple- Apesar da importância da RAPS e da organi-
namente os anseios da RP. zação articulada da rede que ela instituiu, é im-
A Lei 10.2016 foi sancionada em 06/04 de portante destacar que, para as atividades de cul-
2001, ano em que foi também realizada a III tura e trabalho e geração de renda, não foram de-
Conferência Nacional de Saúde Mental, o que finidos recursos orçamentários, revelando assim
contribuiu para desenhar um cenário muito fa- o pouco significado estratégico atribuído a tais
vorável e promissor para o campo da saúde men- iniciativas que poderiam ser melhor utilizadas,
tal no SUS. tendo em mente a regulamentação do Programa
Mas, enquanto o PL tramitava, foram apro- de Geração de Renda e Trabalho (Resolução CO-
vadas muitas leis estaduais e municipais de RP DEFAT nº 59/1994) e dos Pontos de Cultura (Lei
em capitais e cidades importantes por todo o nº 12.343/2010).
país e outras inovações foram introduzidas. Uma
delas foi a constituição dos Serviços Residenciais
Terapêuticos (Portarias 106/2000 e 1.220/2000). Comentários finais sobre a evolução das
A construção de uma rede de SRT´s foi ampla- políticas de saúde mental e atenção
mente favorecida com o advento do Programa de psicossocial no âmbito do SUS:
Volta Para Casa (Lei n° 10.708, de 31/07/2003). os ventos sopram para o passado
Após os SRTs foi instituído o Programa Na-
cional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – O relatório da Comissão de Saúde Mental do
PNASH/Psiquiatria em 2002, que deu início a Cebes apresentado em 1979 no I Simpósio de
um processo regular de avaliação dos hospitais Políticas de Saúde da Câmara dos Deputados
psiquiátricos, públicos e privados conveniados observava que 96% de todos os recursos gastos
ao SUS. Como resultado houve o fechamento de na assistência psiquiátrica eram destinados ao
centenas de hospitais e alguns milhares de leitos pagamento de diárias hospitalares nos mais de 80
absolutamente inadequados para a assistência à mil leitos existentes no país em 1977. Observava
saúde. ainda que de 1973 a 1976 as internações psiquiá-
Outros marcos importantes das políticas de tricas aumentaram 344%7.
saúde mental no SUS foram estabelecidos pela O último informativo da Coordenação Na-
Portaria/GM nº 336, de 19/02 de 2002, que rede- cional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas
finiu os CAPS em relação à sua organização, ao do Ministério da Saúde foi publicado em 201530,
porte, à especificidade da clientela atendida. Pas- pois, após este período tiveram início mudanças
saram a existir CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi que redefiniram as políticas públicas, não apenas
(infantil ou infanto-juvenil) e CAPSad (álcool e no setor saúde e saúde mental, mas de toda a con-
drogas). Outro marco veio pela Portaria 154 de cepção do estado provedor e de direitos.
2008 que estabeleceu a constituição do Núcleo Em que pesem eventuais críticas e comentá-
de Apoio à Saúde da Família (NASF), com o ob- rios, por vezes necessários e justos, à condução
jetivo de propiciar “apoio matricial” às equipes da política, é importante reconhecer muitos
de Saúde da Família, cumprindo um importante avanços ocorridos na RP brasileira. Uma delas
papel de dar suporte tanto técnico quanto insti- é a expressiva diminuição de leitos psiquiátri-
tucional na atenção básica29. cos: dos 80 mil na década de 1970 para 25.988
Em 2011 foi instituída a RAPS (Portaria GM/ em 2014. Considerando o investimento em ser-
MS nº 3.088 de 23/12 de 2011), que possibilita viços de atenção psicossocial, especialmente em
uma nova dimensão ao conjunto das ações em CAPS, que em 2014 ultrapassam a cifra dos 2 mil,
saúde mental no SUS, cujos objetivos principais e alcançam uma cobertura de 0,86 CAPS por 100
foram definidos como a ampliação do acesso à mil/habitantes, os gastos com hospitais caíram de
atenção psicossocial da população, em seus di- 75,24% em 2002 para 20,61% em 2013, enquanto
ferentes níveis de complexidade; promoção do que, revertendo a política, os gastos com atenção
acesso das pessoas com transtornos mentais e psicossocial passam de 24,76% para 79,39% no
com necessidades decorrentes do uso do crack, mesmo período. Em 2014, foram registrados 610
álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos SRT´s com 2.031 moradores egressos de insti-
de atenção; e garantia da articulação e integra- tuições psiquiátricas e o Programa de Volta Para
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Casa passou a ter 4.349 beneficiários e as iniciati- SUS e a RP passaram a ser alvo de mudanças ra-
vas de geração de renda chegaram a 1.008. dicais e de importantes retrocessos. No campo da
Mas os ventos começaram a mudar já em saúde mental, a Comissão Intergestores Tripar-
2015, com o Ministério da Saúde sendo objeto tite31 aprovou a resolução em dezembro de 2017
de negociação política e com ele os princípios que praticamente resgata o modelo manicomial e
do SUS. E, por fim, após a instalação do estado dá início a um processo de desmontagem de todo
de exceção pelo qual o país passa no momento, o o processo construído ao longo de décadas no
âmbito da RP brasileira.

Colaboradores Referências

P Amarante e MO Nunes participaram igual- 1. Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira. Contribuição
para a compreensão e crítica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edi-
mente de todas as etapas de elaboração do artigo.
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