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Texto para uso exclusivo do Grupo de Pesquisa “A Crítica do Direito e a Subjetividade

Jurídica” – NÃO CIRCULAR

Para uma teoria materialista do Estado1


John Holloway e Sol Picciotto

A atual crise do capitalismo aparece, mais do que nunca, como uma crise do Estado. Na
Inglaterra e em outros lugares a atenção se voltou não apenas ao recorrente fracasso do
Estado em “gerenciar a economia”, mas também à necessidade de reduzir e reformular
as despesas públicas e, consequentemente, reestruturar o próprio aparelho de Estado.
Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial questionou-se seriamente a
funcionalidade de grande parte da administração estatal. Em face desses
acontecimentos, as pessoas veem-se forçadas a modificar seus pontos de vista com
relação às forças e fraquezas, às possibilidades e limitações do Estado; e muitas das
opiniões amplamente sustentadas até alguns anos atrás têm se mostrado ilusórias.
Aqueles que acreditavam em um “novo capitalismo”, que poderia ser opressivo, mas no
qual o problema da crise econômica seria amplamente solucionado através da
intervenção estatal, agora são confrontados com o retorno de altos níveis de
desemprego, reduções salariais, assim como com a redução das despesas estatais. Por
outro lado, aqueles que acreditavam que o retorno do desemprego elevado e uma queda
geral das condições de vida ameaçariam fatalmente o sistema político vigente devem,
no mínimo, estar confusos com o atual curso dos acontecimentos, pois a crise colocou
em evidência não apenas os limites da ação estatal, mas também a extraordinária
capacidade do Estado de superá-la.
Em suma, a presente crise mostrou a necessidade urgente de uma compreensão
adequada do Estado e de sua relação com o processo de acumulação capitalista e a crise.
No passado, na medida em que abordou a questão do Estado, a teoria marxista muitas
vezes limitou-se a: demonstrar que o Estado atua no interesse do capital e a analisar a
relação entre o conteúdo da atividade do Estado e os interesses da classe dominante. No

1
Tradução: Thais Hoshika
Revisão Técnica: Pedro Davoglio
entanto, tal análise é inadequada para uma compreensão do desenvolvimento político e
das possibilidades de ação política. Em um período caracterizado, de um lado, por um
sério questionamento das políticas do Estado intervencionista e, de outro lado, pela
ascensão de partidos comunistas em alguns países da Europa Ocidental, toda a questão
dos limites da atuação estatal torna-se crucial: limitações na capacidade do Estado de
resolver problemas do capital, por um lado, e limitações na possibilidade de usá-lo para
efetuar uma transição ao socialismo, de outro. Ao mesmo tempo, o declínio do
parlamento e a erosão das liberdades civis, mesmo nas democracias mais estáveis,
levantou a questão do desenvolvimento das formas do Estado: pode a democracia
parlamentarista ser vista como norma ideal para o modo de produção capitalista como
um todo, sendo os desvios individuais vistos como meros desvios, ou a democracia
liberal foi apenas a contrapartida ideal de uma certa fase de acumulação que agora está
superada? Em um período que testemunhou o sucesso extraordinário do Estado inglês
em persuadir os trabalhadores a sacrificar seus interesses pelo bem da “sociedade como
um todo”, é essencial analisar por que, mesmo o Estado sendo um Estado de classe, ele
ainda é visto por muitos como uma instância neutra atuando para o bem da sociedade.
Em um período no qual tornou-se comum para os líderes da indústria capitalista atacar
verbalmente não apenas decisões específicas, mas também o Estado em geral, é
colocada novamente em evidência toda a questão acerca da natureza capitalista da
atividade estatal e, particularmente, a questão da “funcionalidade” necessária das ações
estatais em favor do capital. Nosso argumento e o argumento deste livro é que todas
essas perguntas só podem ser respondidas através do desenvolvimento de uma teoria
materialista do Estado, isto é, mediante a análise da relação entre o Estado capitalista e
o modo de produção nas sociedades capitalistas.
Este livro pretende ser uma contribuição para o desenvolvimento de uma teoria
materialista do Estado capitalista. Na República Federal da Alemanha (e em Berlim
Ocidental), os últimos anos presenciaram uma renovação da teoria marxista do Estado
através de um intenso e coerente debate comumente conhecido como o debate da
“derivação do Estado” (“Staatsableitung”). O objetivo deste debate - que é parte do
ressurgimento geral do interesse, desde o final da década de 1960, na elaboração das
categorias científicas desenvolvidas por Marx para uma análise do capitalismo moderno
- tem sido “derivar” sistematicamente o Estado como forma política a partir da natureza
das relações de produção capitalistas, como o primeiro passo em direção à construção
da teoria materialista do Estado burguês e de seu desenvolvimento. Neste livro nós
apresentamos algumas das principais contribuições ao debate alemão da “derivação do
Estado”; mas nós as apresentamos não simplesmente como um fenômeno interessante,
como uma “escola alemã” a ser colocada ao lado de outras “escolas”, mas como uma
crítica fundamental àquelas teorias frequentemente consideradas na Grã-Bretanha como
representantes da teoria marxista do Estado.
Um dos objetivos desta introdução é tornar essa crítica mais explícita. Começaremos
observando a maneira com que o Estado é analisado por esses autores, cientistas
políticos e economistas, que atualmente exercem influência sobre a discussão marxista
nesse país. Do nosso ponto de vista, existe uma dicotomia subjacente ao debate na Grã-
Bretanha. Algumas análises prestam pouca ou nenhuma atenção à especificidade do
político e argumentam (ou frequentemente supõem) que as ações do Estado emergem
mais ou menos diretamente das necessidades do capital: tais análises por vezes são
acusadas de “reducionismo” ou de “determinismo econômico”. Outras análises, em
reação exagerada a essa abordagem, insistiram na “autonomia relativa” do político,
negando (ou muitas vezes ignorando) a necessidade de que teóricos políticos prestem
muita atenção nas condições da acumulação de capital. Esta tendência pode ser
chamada de “politicista”2. O que ambos os polos dessa dicotomia - que, certamente, não
aparece normalmente senão como uma tendência subjacente - têm em comum é a
teorização inadequada da relação entre o econômico e o político como formas distintas
das relações sociais capitalista. Argumentaremos que a única saída é romper essa
dicotomia através do desenvolvimento de uma teoria adequada dessa relação, uma teoria
que fundamente firmemente tanto a especificidade da política como o desenvolvimento
das formas políticas na análise da produção capitalista. Este é precisamente o objetivo
do atual debate alemão. Depois de elaborar nossa crítica das teorias do Estado presentes
na Grã-Bretanha, prosseguiremos com o esboço do curso desse debate, explorando
algumas de suas fraquezas e sugerindo caminhos através dos quais a análise deve ser
levada adiante.

A “teoria política marxista” e a análise do Estado:


A discussão sobre a teoria marxista do Estado na Grã-Bretanha tendeu a se confinar no
infrutífero caminho do debate Miliband-Poulantzas. Este debate originou-se na ilusória

2
Deve ficar claro a partir de nossas definições que o “determinismo econômico” não pode identificar-se
com a obra dos “economistas”, nem o “politicismo” necessariamente com a obra dos “teóricos políticos”.
Desenvolveremos esta questão posteriormente.
polaridade entre as abordagens destes dois autores, entre o que por vezes é chamado de
a abordagem “instrumentalista” e a abordagem “estruturalista” (cf. Gold, Lo and
Wright, 1975; Poulantzas, 2008), que em muito contribuiu para a limitação e
empobrecimento da discussão. O debate da “derivação do Estado” apresentado neste
livro afasta-se desse quadro limitado e evidencia que é completamente equivocado
considerar Miliband e Poulantzas como representantes de polos alternativos na análise
marxista do Estado; e que, apesar de suas diferenças efetivas, o que Poulantzas e
Miliband têm em comum é pelo menos tão significativo quanto o que os separa. Em
contraste com o debate alemão, centrado na análise da inter-relação, da unidade na
separação das diferentes esferas, e insistindo que este enfoque é central para a
compreensão materialista do político, tanto Miliband quanto Poulantzas voltam-se para
o político como um objeto de estudo autônomo, argumentando, ao menos
implicitamente, que um reconhecimento de sua especificidade é pré-condição necessária
para a elaboração de conceitos científicos. Em certa medida, essa diferença é uma
questão de ênfase: claramente nem Poulantzas ou Miliband negam a validade da famosa
afirmação de Marx de que as “formas políticas” apenas podem ser compreendidas
quando relacionadas com a “anatomia da sociedade burguesa” (Prefácio da contribuição
à crítica da economia política, p. 49), mas nenhum dos dois considera importante
analisar essa relação com maior precisão. Uma importante consequência disto é que
nenhum deles tenta construir sistematicamente, a partir das categorias materialistas
históricas desenvolvidas por Marx em sua análise dessa “anatomia” no Capital, uma
teoria marxista do Estado. Pelo contrário, para Poulantzas (explicitamente) e para
Miliband (implicitamente), O Capital é principalmente (embora não exclusivamente)3
uma análise do “nível econômico” e os conceitos ali desenvolvidos (valor, mais-valor,
acumulação, etc.) são conceitos específicos para a análise desse nível. Do mesmo modo
que O Capital analisa a economia como “objeto científico autônomo e específico”
(Poulantzas, 1977 p. 29), a tarefa dos teóricos políticos marxistas, a partir dessa
perspectiva, é considerar o político como “objeto científico autônomo e específico” para
elaborar novos conceitos específicos do “nível político” (conceitos como “hegemonia”,
“bloco no poder”, “classe reinante”, etc.). Assim, portanto, baseando-se nos textos de

3
É também considerado por Poulantzas como uma obra mais geral sobre a articulação do modo de
produção capitalista e o desenvolvimento de conceitos básicos tais como o modo de produção, relações de
produção, etc. Nossa crítica, no entanto, reside em sua apreensão de que as categorias desenvolvidas
especificamente no Capital (valor, mais valor, acumulação etc.) são consideradas conceitos específicos
somente para a análise do nível econômico.
Marx, esses autores consideram necessário desenvolver não os “conceitos econômicos”
mencionados acima, mas os “conceitos políticos” desenvolvidos de maneira
fragmentada nos “escritos políticos” de Marx e nas partes mais “políticas” do Capital
(como a discussão da legislação fabril, etc.). Esse projeto, chamado por Poulantzas de
tentativa de construção de uma “teoria regional da política”, é justificado a partir da
“autonomia característica da economia e da política” no modo de produção capitalista
(1977, p. 28). A suposição de que o político pode ser constituído como um “objeto
científico autônomo e específico” - mais completamente teorizada por Poulantzas, mas
compartilhada igualmente por Miliband - e a interpretação do Capital de Marx em que
se baseiam estão em um acentuado contraste com a abordagem da discussão apresentada
no presente livro. O debate da “derivação do Estado”, que se inspirou em grande medida
no ressurgimento do interesse no Capital no final da década de 1960, não enxerga na
grande obra de Marx uma análise do “nível econômico”, mas uma crítica materialista
da economia política, isto é, uma crítica materialista das tentativas burguesas de analisar
a “economia” de maneira isolada das relações de exploração de classe nas quais se
baseia; em consequência, as categorias elaboradas no Capital (mais-valor, acumulação,
etc.) não são consideradas como específicas à análise do “nível econômico”, mas como
categorias materialistas históricas desenvolvidas de modo a iluminar a estrutura da luta
de classes na sociedade capitalista, bem como as formas e concepções (econômicas ou
outras) originadas dessa estrutura. Disto segue-se que a tarefa não é desenvolver
“conceitos políticos” que complementem o conjunto de “conceitos econômicos”, e sim
desenvolver os conceitos do Capital na crítica não apenas da forma econômica, mas
também da forma política das relações sociais. Voltaremos a esse ponto adiante; no
momento apenas nos interessa confrontar as duas abordagens e argumentar que as
suposições comuns a Miliband e Poulantzas têm como efeito distanciar esses autores de
qualquer possibilidade de elaborar uma análise materialista do desenvolvimento do
Estado, de suas possibilidades e limitações.
O livro de Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista, é útil na medida em que
fornece uma clara crítica introdutória do pensamento sociológico e político burguês,
mas que se encontra profundamente enraizado na tradição empirista inglesa. A principal
falha de Miliband, como de fato foi apontado por Poulantzas, é que, apesar de combater
a teoria burguesa, ele faz pouco mais que mostrar que os teóricos burgueses apreendem
os fatos equivocadamente. Assim, defendendo-se de Poulantzas, Miliband relata que
“além de já ter estudado a teoria marxista do Estado em outro trabalho, estava mais
interessado em compará-la com o ponto de vista dominante democrático-pluralista, e
mostrar as deficiências deste último, do único modo possível, ou seja, em termos
empíricos” (1982, p. 234). Embora seja certamente importante mostrar que a teoria
burguesa não pode dar conta adequadamente do desenvolvimento empírico, uma crítica
marxista sem dúvida deve ir além da exposição dessas “deficiências” em termos
empíricos: para entender a gênese e o desenvolvimento das concepções burguesas e
entender o desenvolvimento do Estado capitalista, é necessário desenvolver uma análise
materialista da relação entre Estado, sociedade e ideologia burguesa. Uma consequência
da abordagem de Miliband é que, dado que ele não fundamenta sua crítica em uma
análise sistemática da sociedade capitalista, ele é incapaz de desenvolver uma análise do
Estado que mostre a relação entre seu desenvolvimento e as contradições crescentes do
modo de produção capitalista. Assim, quando no último capítulo de seu livro ele chega
à “maior de todas as questões a respeito dos regimes do tipo Ocidental… por quanto
tempo a sua configuração “democrático-burguesa” poderá continuar compatível com as
necessidades e os objetivos do capitalismo avançado” (1972, p. 323), sua resposta a essa
importante pergunta é especulativa e vaga, uma vez que ele não conta com uma
abordagem teórica capaz de relacionar o processo de acumulação com o
desenvolvimento da forma do Estado.
Poulantzas critica corretamente Miliband por negligenciar os vínculos estruturais
essenciais entre a burguesia e o Estado capitalista. O que faz com que o Estado, em uma
sociedade capitalista, seja um Estado capitalista não é a composição de classe dos
agentes que compõem o aparelho de Estado, mas a posição ocupada pelo Estado no
modo de produção capitalista:

A relação entre a classe burguesa e o Estado é uma relação objetiva. Isto


significa que, se a função do Estado, em uma determinada formação social,
coincide com os interesses da classe dominante, isso se dá devido ao próprio
sistema; a participação direta dos membros da classe dominante no aparelho do
Estado não é a causa e sim o efeito, e além disso, uma possibilidade contingente
dessa coincidência objetiva (1982, p. 226)

A tarefa da teoria do Estado, portanto, é analisar essa “relação objetiva” ou, remetendo-
se à máxima de Marx, analisar a relação entre as formas políticas e a anatomia da
sociedade burguesa: analisar como e em que medida a natureza “do sistema” (referido
presumidamente por Poulantzas ao modo de produção capitalista) origina uma
“coincidência objetiva” entre as “funções do Estado” e os “interesses da classe
dominante” e, como e em que medida mudanças nesse sistema afetam os interesses da
classe dominante e, consequentemente, a função do Estado.
Poulantzas falha, porém, em focar na relação entre as formas políticas e a “anatomia” da
sociedade burguesa. Seu ponto de vista, indicado no início de seu primeiro livro
importante (1977, p. 28), de que a sociedade capitalista é caracterizada por uma
autonomia relativa das “instâncias” econômica e política, permite a conversão de cada
instância em um objeto de estudo separado e específico, levando-o a negligenciar a
questão mais importante acerca da natureza dessa separação e a relação entre as duas
instâncias. Naturalmente, ele aceita que a separação das duas instâncias não é total, mas
ele relega sua unidade a um problemático “em última instância”, nunca lidando com a
relação entre ambas mais que de uma maneira alusiva e superficial.
Como resultado, os problemas centrais da teoria marxista do Estado, os problemas do
desenvolvimento da forma estatal, dos limites estruturais e as possibilidades da ação
estatal, que só podem ser abordados através de uma análise da relação entre o Estado e
as contradições da acumulação capitalista, são omitidos no trabalho de Poulantzas,
aparentemente em virtude de um maior rigor científico. As implicações da aceitação
estruturalista da fragmentação superficial da sociedade burguesa em estruturas
relativamente autônomas, que a partir dessa perspectiva podem ser examinadas em um
relativo isolamento, se tornam claras. Isso não apenas significa que a questão da inter-
relação entre as estruturas (e, consequentemente, a fonte do movimento dentro das
estruturas) é negligenciada, mas também que o ponto de partida estruturalista tem um
efeito imunizador fatal. Por um lado, as leis do movimento do capital e a tendência da
queda da taxa de lucro são aceitas ou, talvez, mais precisamente, são tomadas como
certas; de outro lado, uma vez que são tomadas como certas e relegadas à esfera
econômica, a análise do político procede com independência em relação às necessidades
e limitações impostas a ele precisamente por essas leis de movimento. Com a
pressuposição da “anatomia da sociedade burguesa”, as “formas políticas” podem ser
examinadas, conforme Marx, em sua autonomia relativa. Essa insistência na “autonomia
relativa” do político pode refletir uma reação parcialmente justificável contra o
“economicismo” ou o “reducionismo”, isto é, contra a simplificação ordinária da
relação entre o econômico e o político que apresenta este como um mero reflexo do
econômico. Mas as abordagens “reducionistas” têm o mérito de tentar dar uma resposta,
ainda que incompleta, a um problema real, o problema de como alcançar uma
compreensão materialista do desenvolvimento político, de como relacionar o
desenvolvimento político com as contradições da produção capitalista: não é nenhum
progresso simplesmente esquivar-se do problema.
Quão importante é o conceito de “autonomia relativa do político” para o trabalho de
Poulantzas e quais são suas consequências? Nos parece que o ponto de partida
equivocado de Poulantzas impõe graves limitações à sua análise. A principal
consequência é que, ao separar seu estudo da política da análise das contradições da
acumulação, isto é, das relações de exploração capitalista, ele coloca-se à margem da
principal fonte de transformação da sociedade capitalista - o desenvolvimento dessas
contradições, potenciado pela luta revolucionária da classe trabalhadora. Segue-se que,
apesar de ser capaz de propor ideias incisivas acerca de características particulares do
Estado burguês, sua análise não ultrapassa o nível da descrição perceptiva. Não há
análise do desenvolvimento da sociedade capitalista, das transformações das relações
Estado-sociedade e do próprio Estado. Dado que não há uma análise sistemática da
relação entre o Estado capitalista e suas bases, da exploração capitalista da classe
trabalhadora no processo de acumulação, também não há uma análise das restrições e
limitações que a natureza da acumulação capitalista impõe à ação estatal. Além disso,
sua falha em problematizar corretamente a natureza da separação do econômico e do
político o leva a uma identificação do econômico com as relações de produção 4 e, ainda,
apesar das declarações e formulações em contrário, há uma tendência contínua a
identificar a luta de classes com o campo do político.
Os méritos, mas também as debilidades, da análise de Poulantzas podem ser vistas em
seu tratamento da integração europeia. Um dos principais propósitos de seu ensaio sobre
“A internacionalização das relações capitalistas e o Estado-nação” (1975, p. 45) é
criticar a visão “economista” excessivamente simplificada, exemplificada na tese de
Mandel, de que o sucesso ou fracasso da integração Europeia depende da forma adotada
pela centralização internacional do capital. Poulantzas corretamente aponta que:

4
Cf. Poulantzas, 1975, p. 15/16. Em nossa opinião, que desenvolveremos posteriormente, relações de
produção e relações de exploração não são nem econômicas nem políticas; no capitalismo elas aparecem
como formas econômicas e políticas distintas das relações sociais, mas a tarefa da teoria marxista é
precisamente criticar e transcender essas formas.
o Estado não é uma simples ferramenta ou instrumento, manipulável à vontade,
das classes dominantes, de modo que cada etapa de internacionalização do
capital provoque uma “supranacionalização” dos Estados… O problema que nos
ocupa... não se reduz a uma contradição simples, de aspecto mecanicista, entre a
base (internacionalização da produção) e uma camada superestrutural (o Estado
nacional) que não lhe “corresponderia” mais. (1975, p. 83/84)

Enquanto a crítica da tese simplista de Mandel indubitavelmente tem alguma força,


Poulantzas falha completamente em nos dar uma análise alternativa sobre a base
material da integração europeia. Sua ênfase está em mostrar que a internacionalização
do capital somente tem o efeito de transformar estruturas políticas nacionais, negando
que isso gere pressões para as organizações políticas a nível europeu. Esta concepção
provém de sua ênfase na tarefa do Estado em manter “a unidade e a coesão de uma
formação social dividida em classes” (1975, p. 84), e sua implicação de que deve,
portanto, existir uma necessária congruência entre a organização do Estado e a forma da
luta de classes. Considerando que “ainda é a forma nacional que prevalece nessas lutas,
por mais internacionais que sejam em sua essência” (1975, p. 84), ele chega à conclusão
de que “este processo atual não fere em nada o papel dominante do Estado no estádio
capitalista monopolista” (1975, p. 87). Isso nos deixa sem qualquer explicação sobre o
ímpeto à integração europeia, as tensões entre as novas formas de acumulação do capital
e as estruturas existentes do Estado.
As mesmas insuficiências podem ser vistas mais claramente no tratamento que
Poulantzas dá ao fascismo. Em seu livro sobre esse tema (Fascismo e Ditadura, 1972)
ele está novamente preocupado em atacar a interpretação “economicista” simplista
sobre o fascismo, que atribui o fascismo simplesmente ao esgarçamento do capitalismo
monopolista. O livro tem muitas intuições críticas a oferecer, mas Poulantzas
novamente evita o questionamento fundamental sobre a relação entre o fascismo e as
contradições da acumulação do capital. Para entender as origens do fascismo e sua
relação com a existência continuada do capitalismo, certamente é necessário examinar a
reorganização das relações sociais, particularmente as relações de exploração, que
ocorre sob o fascismo, perguntar em que medida tal reorganização revela-se necessária
devido às contradições da acumulação enquanto forma básica da luta de classes no
capitalismo, e questionar o motivo pelo qual essa reorganização se realizou dessa
maneira em particular. Dado que vivemos em uma sociedade capitalista caracterizada
pelas mesmas contradições da acumulação e pela consequente reorganização periódica e
por vezes violenta das relações sociais no interesse da continuidade da acumulação,
estas são certamente as questões politicamente importantes. Sem assumir a priori a
funcionalidade do fascismo para o capital, o problema consiste certamente em situar o
fenômeno no processo social de acumulação e crise, isto é, de “reprodução ampliada das
contradições capitalistas” (Bukharin, 1972a, p. 264, tradução minha). Mandel expõe o
problema claramente, de forma esquematizada e assertiva, quando escreve:

A ascensão do fascismo é a expressão de uma grave crise social do capitalismo


tardio, uma crise estrutural que pode, como nos anos 1929-1933, coincidir com
uma crise de sobre-produção, mas que vai além de tais flutuações conjunturais.
Fundamentalmente, é uma crise nas próprias condições da produção e realização
de mais-valor… A função histórica da tomada de poder pelo fascismo é
transformar súbita e violentamente as condições de produção e realização de
mais-valor em benefício de grupos decisivos do capital monopolista (1975, p.
xix, tradução minha).

Evidentemente, essa não é uma análise completa do fascismo, mas tem o enorme mérito
de apresentar muito claramente a questão da relação entre a ascensão do fascismo e as
contradições inerentes à exploração de classes capitalista (ou seja, à acumulação) e a
função do fascismo em relação a este processo de exploração. É extraordinário que em
toda a sua extensa análise sobre o fascismo Poulantzas nem sequer apresente o
problema nesses termos. Onde ele discute as contradições econômicas subjacentes ao
fascismo, o faz apenas no contexto das classes dominantes - contradições entre grande e
médio capital, entre capitalistas e proprietários fundiários, etc.; isolar sua discussão
dessas contradições, em todo caso, é muito estranho quando se considera que na análise
de Marx (cf. O Capital, vol. III, cap. 15) a intensificação dos conflitos entre os capitais
individuais ou grupos de capitais pode ser compreendida apenas com relação à crise
geral da extração de mais-valor, ou seja, apenas sobre a base da contradição
fundamental da relação capital-trabalho5. Entretanto, quando Poulantzas discorre sobre

5
É significativo que, em seu tratamento sobre o fascismo, assim como em outras obras, Poulantzas
ocupa-se com as diversas classes em capítulos separados dedicados às “classes dominantes”, “classes
dominadas”, etc. Isso o leva a ignorar a análise sistemática do conflito fundamental entre as classes que
a relação entre o fascismo e a classe trabalhadora, as contradições da relação de
exploração e a tentativa de superar essas contradições através do fascismo quase não são
mencionadas: toda a questão é discutida em termos de uma crise “político-ideológica”.
Poulantzas realiza, assim, a mais extraordinária proeza de escrever uma longa análise
“marxista” sobre o fascismo e as classes sem relacionar o fascismo com o núcleo
fundamental da luta de classes no capitalismo, o processo de acumulação e exploração.
Sem dúvida isso ocorre devido à suposição de que as contradições da acumulação
operam em um nível diferente e, portanto, podem ser “pressupostas”.6
Nos parece que a teoria de Poulantzas, devido a suas próprias limitações, forneceu uma
estrutura que foi adotada por um crescente grupo de “poulantzianos”. Em lugar das
teorias baseadas na análise da acumulação e da luta de classes, eles utilizam os
conceitos políticos de Poulantzas - “bloco no poder”, “hegemonia”, “classe reinante”,
etc. - como cacifos que podem ser preenchidos com os conteúdos relevantes de uma
análise política da estrutura de classes de qualquer Estado em particular. A relação da
teoria geral com a prática política é vista como algo muito similar à “construção de
modelos” burguesa - a teoria “abstrata” é “concretizada”, resultando em uma prescrição
para a intervenção política. O resultado é uma espécie de pragmatismo político, visto
que a prescrição depende do “conteúdo” fornecido pela análise das relações políticas de
classe, e isto é, via de regra, ditado pelas táticas e conveniências do momento político
tal como é imediatamente experienciado. Posto que a relação com o “econômico” é
sempre “em última instância”, pouca atenção é prestada à fundamentação da análise da
luta de classes na efetiva dinâmica da acumulação do capital. É também característico
da abordagem “poulantziana” que, como vimos, os modelos globais da acumulação de

constituem a fonte de todo o movimento histórico. As implicações políticas dessa ênfase nas contradições
dentro, ao invés de entre as classes, é particularmente evidente em seu tratamento da Grécia e da queda da
junta militar em seu mais recente livro (1976). Sobre isso, ver o artigo apresentado por Loukas Politikos
ao grupo sobre a integração européia da Conferência de Economistas Socialistas, intitulado
“internacionalização do capital, a integração europeia e os países em desenvolvimento”, em dezembro de
1975.
6
É certo que Poulantzas tenha rejeitado em certa medida suas considerações metodológicas iniciais,
criticando seu primeiro livro por transmitir “uma certa visão de instâncias como sendo, em alguma
medida, separadas e impermeáveis umas às outras” (2008, p. 125/6), e agora enfatizando mais a unidade
das duas “instâncias” separadas. Pode muito bem ser que Poulantzas, parcialmente sob a influência do
debate alemão, esteja buscando um caminho em direção a uma teoria materialista e dialética da relação
entre a economia e a política, mas seus recentes livros (As classes sociais no capitalismo de hoje e A crise
das ditaduras) não mostram muito progresso nesse sentido. Como vemos em seu tratamento sobre a
integração europeia, não há ainda nenhuma análise sobre o desenvolvimento histórico da relação entre as
formas políticas e econômicas. Poulantzas é incapaz de desenvolver uma teoria da unidade-na-separação
da política e da economia precisamente porque ele rejeita a tarefa da teoria materialista histórica de
considerar como uma totalidade o desenvolvimento capitalista que proporciona a base dessa unidade.
capital sejam, ou ignorados, ou considerados sem efeitos reais sobre a política, de forma
que o Estado-nação burguês seja sempre aceito como o campo político de facto,.
Concentramos nossa discussão nesta sessão em Poulantzas devido à influência exercida
pelas suas obras, mas uma crítica semelhante pode ser feita a algumas obras de Gramsci,
que também se tornou influente entre os “teóricos políticos” e “sociólogos” marxistas
nos últimos anos. Gramsci também discorre sobre a “política como uma ciência
autônoma”, criticando duramente a identificação “economicista” de Rosa Luxemburgo
entre crise econômica e política sem fornecer nenhuma análise alternativa sobre a
relação entre o econômico e o político, além de também concentrar sua atenção nas
classes, frações de classe e hegemonia de classe. Seu enfoque geral consiste na
minimização do problema da relação entre as formas políticas e as condições para a
acumulação de capital, ao dissociar o conceito de crise política do de crise econômica7.
É característico dos autores vistos até agora que eles começam com as categorias
“políticas”, mais especificamente com o que eles veem como a “categoria política”
central, a classe. Isso está em absoluto contraste com o debate alemão aqui apresentado,
o qual começa com um ataque àqueles (no caso, Offe e Habermas) que tentam construir
uma teoria específica sobre o político, e insiste na necessidade de partir das categorias
materialistas desenvolvidas por Marx no Capital. Desse modo, Hirsch critica o
tratamento de Engels a respeito do Estado em “A origem da família, da propriedade
privada e do Estado” por tal abordagem “teórico-classista”:

A incapacidade de tomar como ponto de partida de sua análise as leis e o


desenvolvimento histórico do processo de acumulação e reprodução capitalista
inevitavelmente conduz Engels a uma determinação “teórico-classista” do
Estado muito restrita, segundo a qual o Estado aparece como uma potência
reguladora dos conflitos de classe, situado acima da sociedade. (1973, p. 207,
tradução minha)

Talvez possamos continuar falando e estender isso dizendo que a incapacidade de tomar
como ponto de partida de suas análises as leis e o desenvolvimento histórico do
processo de acumulação e de produção capitalista levam autores como Miliband,
Poulantzas e Gramsci inevitavelmente a uma determinação “teórico-classista” do Estado
7
Cf. o tratamento de Negri de ambos, Poulantzas e Miliband, como “neo-gramscianos” em: (Negri,
1976).
excessivamente restrita, o que tem duas implicações de importância fundamental:
primeiro, eles são incapazes de analisar o desenvolvimento das formas políticas;
segundo, eles são incapazes de analisar sistematicamente as limitações impostas sobre o
Estado pela relação do Estado com o processo de acumulação do capital.

A “economia marxista” e o Estado:


Os teóricos políticos não são, é claro, os únicos interessados na análise do Estado
capitalista. Em vista do crescente “intervencionismo estatal”, não é surpresa que um
número crescente de economistas marxistas tenham voltado suas atenções à análise do
Estado. Seria equivocado supor que os economistas (isto é, aqueles que tomam a análise
da economia como ponto de partida) necessariamente adotam uma abordagem
economicamente determinista ou reducionista do Estado. A distinção entre as duas
tendências mencionadas no início dessa introdução (a “determinista econômica” e a
“politicista”) depende não do ponto de partida da análise, mas da concepção da
totalidade social que subjaz à análise. Assim, a controvérsia que tem dividido tão
acentuadamente os economistas marxistas da Grã-Bretanha nos últimos anos entre os
assim chamados fundamentalistas e neo-ricardianos8, também os divide quanto aos
princípios gerais de suas análises sobre a ação estatal. No geral, os neo-ricardianos
adotaram um ponto de vista positivista, de separação entre as esferas da economia e da
política, que os conduziu a muitos dos mesmos erros cometidos pelos teóricos que
acabamos de examinar: partindo de uma aceitação das formas de aparência fetichizadas
da economia e da política, eles são incapazes de desenvolver uma análise da inter-
relação entre as duas esferas. Os fundamentalistas, por outro lado, apreendem
corretamente a categoria do capital como ponto de partida, mas negligenciam todo o
problema da especificidade do político e do papel do sistema político.
Do lado neo-ricardiano, o problema referente ao papel do Estado aparece de uma
maneira totalmente simplista e livre de problematizações. No livro de Glyn e Sutcliffe,
Capitalismo britânico, trabalhadores e compressão do lucro (1972, tradução minha),
particularmente no capítulo sobre “O papel da política do governo”, o Estado é retratado
quase que simplesmente como o instrumento da classe capitalista em sua luta contra a
militância dos trabalhadores, como “um elemento central na luta do capitalismo para
sobreviver à compressão da taxa de lucro”. Em muitos aspectos, sua análise é a

8
Para uma descrição completa sobre a controvérsia, ver Fine e Harris, 1976b.
contrapartida econômica da análise política de Miliband. O enfoque está em mostrar
empiricamente como o Estado atua no interesse do capital. Os problemas relacionados
ao desenvolvimento do Estado e os motivos que o levam a agir de determinada maneira
não são levantados, ou são explicados simplesmente através da referência à luta de
classes. Mas o mais surpreendente é que o problema das limitações da ação estatal e o
efeito contraditório dos gastos estatais em relação à crise atual não é sequer
mencionado.
Ian Gough, em seu artigo sobre os “Os gastos do Estado no capitalismo avançado”
(1975, tradução minha), centra-se mais especificamente na natureza do Estado
capitalista e ilustra mais claramente a semelhança entre as abordagens dos “neo-
ricardianos” e Poulantzas9. A abordagem neo-ricardiana é caracterizada sobretudo pela
ênfase dada às categorias superficiais, tais como preço, lucro, salário, etc. As categorias
materialistas desenvolvidas por Marx para explicar o movimento dessas formas
fenomênicas são completamente rejeitadas ou consideradas “meras abstrações”, sem
significância prática para uma análise concreta. Consequentemente, eles também
rejeitam a ideia de que o desenvolvimento capitalista pode ser explicado como o
resultado de quaisquer “tendências fundamentais”, rejeitando, particularmente, a queda
tendencial da taxa de lucro10.
Partindo das categorias mais superficiais, não é surpresa que os neo-ricardianos aceitem
como um dado positivo a distinção entre a economia e a política. É sintomático que
Gough inicie seu artigo com uma análise econômica dos gastos estatais e depois, para
uma análise do caráter geral do Estado, volte-se para os teóricos políticos
“especialistas”, Miliband e Poulantzas. Ele os cita como autoridades para enfatizar a
autonomia do Estado:

Tanto para Poulantzas como para Miliband o Estado capitalista é uma entidade
relativamente autônoma que representa os interesses políticos das classes
dominantes e que está localizado no campo da luta de classes. (1975, p. 64,
tradução minha)

9
Para uma discussão completa do artigo de Gough, ver Holloway e Picciotto (1976); Fine e Harris
(1976a).
10
Em vista da ênfase atribuída às categorias superficiais, talvez não seja surpreendente que seu trabalho,
assim como o de Poulantzas, seja caracterizado por uma hostilidade geral ao que eles consideram como
uma interpretação “historicista” ou “hegeliana” de Marx: ver em particular Hodgson (1976).
Uma vez que o Estado é, portanto, liberado (pela autoridade dos especialistas) das
exigências impostas pela acumulação de capital, Gough também é liberado da
necessidade de analisar os limites impostos à ação estatal pela relação estrutural com o
processo de produção capitalista. Para ele (e para os neo-ricardianos em geral), os
limites da ação estatal não advém da lógica do capital, mas da luta de classes. Para eles,
assim como para Poulantzas (1975, p. 84), o desenvolvimento capitalista não deve ser
explicado em termos de um desdobramento das contradições da produção capitalista
através da luta de classes, mas em termos da luta de classes entendida como um
processo político exógeno às relações econômicas.
Enquanto é axiomático que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a
história da luta de classes” (Manifesto Comunista), é de suma importância que para
entender esta história deve-se observar que a forma da luta de classes, a forma do
antagonismo de classe, varia de sociedade para sociedade, e que a forma da luta de
classes tem um papel central em determinar a dinâmica dessa luta. A forma que o
antagonismo, a forma que a exploração de classe toma na sociedade capitalista foi o
objeto da análise de Marx no Capital. É apenas sobre a base de um entendimento da
forma específica da exploração de classe capitalista, baseada na extração do mais-valor,
que nós podemos entender a dinâmica da luta de classes no capitalismo e,
consequentemente, o desenvolvimento social e político das sociedades capitalistas.
Dizer que o desenvolvimento capitalista é determinado pela luta de classes certamente é
verdadeiro - de fato, nós podemos avançar e dizer que é, ele mesmo, um processo de
luta de classes. Mas, em primeiro lugar, é equivocado simplesmente contradizer esta
afirmação com uma explicação do desenvolvimento capitalista em termos de
“tendências fundamentais” da acumulação capitalista; e, segundo, na medida em que tal
contraposição seja implicada, ou na medida em que “as tendências fundamentais” seja
descartadas como irrelevantes ou periféricas, aquela afirmação não é mais do que uma
banalidade enganosa que desconsidera a importância decisiva da forma da luta de
classes e que inevitavelmente conduz a uma concepção a-histórica do capitalismo e,
consequentemente, a uma concepção utópica acerca da transição ao socialismo.11
Rejeitar essas abordagens que partem da autonomia da política nos levaria de volta ao
“férreo determinismo economicista” (Gramsci, 2007, p. 71) que esses autores criticam?

11
O problema da análise da forma torna-se mais complexo diante da necessidade de compreender a
natureza essencial das relações sociais que apresentam a si mesmas em certas formas fenomênicas. Sobre
isto ver o artigo de Blanke, Jürgen e Kastendiek, 1978.
Mesmo que insistamos na necessidade de partir da categoria do capital, uma vez que são
as contradições da relação de capital (enquanto a forma básica assumida pelo
antagonismo de classes na sociedade capitalista) que fornecem a base para entender a
dinâmica do desenvolvimento social e político no capitalismo, o problema da natureza
da relação entre as ações do Estado e a acumulação do capital permanece. Ou esse
problema simplesmente deveria ser descartado por não se tratar de um problema,
negando-se a autonomia da política, e tomando-se como certa a correspondência entre
as ações (e a estrutura) do Estado e os requisitos de acumulação capitalista? Certamente
essa suposição está presente no trabalho de muitos marxistas, entre eles os assim
chamados fundamentalistas. Nesse sentido Yaffe, por exemplo, com razão deu grande
ênfase ao papel dos gastos estatais na crise atual; ao criticar os neo-ricardianos, ele
apontou corretamente que os gastos estatais não são uma panaceia que irá curar todos os
males do capitalismo, que existem limites para a extensão e o efeito dos gastos estatais
que resultam de sua natureza improdutiva e, portanto, dos requisitos da acumulação.
Tudo isso é importante e um grande avanço em relação ao ponto de vista “esquerdista”
ordinário que não vai além de apontar o conteúdo capitalista da ação estatal. O que é
relevante, no entanto, é que, embora atribua grande importância aos gastos do Estado,
Yaffe não reputa ser necessário avançar em sua análise do Estado. O resultado é uma
concepção bastante monolítica do Estado, que simplesmente atribui o crescimento do
aparelho de Estado ao compromisso do pós-guerra com o pleno emprego, e que se
contenta em considerar os efeitos dos gastos estatais através de sua classificação nas
categorias de gasto “produtivo” ou “improdutivo”.
Apesar da análise de Yaffe ser válida enquanto um esboço grosseiro, ela deixa vários
problemas sem resolver. O problema relacionado ao modo como os interesses do capital
são estabelecidos através do sistema político não é nem colocado. Para ele, “a
intervenção do Estado burguês surge diretamente das necessidades do capital” (Yaffe e
Bullock, 1975, p. 33, tradução minha). Mas então como nós podemos entender o papel
da democracia burguesa, e como podemos compreender as ações individuais do Estado
que aparentemente não correspondem aos interesses do capital? Novamente, o problema
das contradições internas ao aparelho de Estado não é colocado: “este aparelho é
simplesmente um aumento de gastos improdutivos” (1975, p. 34, tradução minha). O
grande avanço de Yaffe em face da análise dos neo-ricardianos é apontar que, embora
as ações do Estado favoreçam o capital pelo seu conteúdo, certas limitações são
impostas à ação estatal pela natureza de sua relação com o processo de acumulação.
Entretanto, Yaffe foca exclusivamente em um dos aspectos dessas limitações, a saber, o
fato de que esses gastos estatais representam uma dedução do mais-valor social total e,
portanto, são limitados pelas reivindicações concorrentes dos capitais privados sobre
esse mais-valor que devem ser satisfeitas para que a acumulação continue. Dentro
desses limites, presume-se que o Estado atua racionalmente no interesse do capital. Os
ensaios deste livro argumentam que esse é apenas um aspecto das limitações da ação
estatal, e que para uma compreensão mais completa do Estado é necessário analisar
outras limitações da ação estatal que emergem da natureza da relação estrutural entre
capital e Estado - limitações que restringem em grande medida ou tornam impossível a
ação do Estado no interesse racional do capital, independentemente dos limites dos
gastos estatais. Essas objeções às análises de Yaffe não são apenas trivialidades
acadêmicas: elas podem afetar a interpretação das ações individuais do Estado, a
apreciação das contradições no interior da classe capitalista e questões vitais como o
corte do gasto público: simplesmente opor-se aos cortes do gasto público sem maiores
considerações implica em uma concepção do Estado como sendo potencialmente
benéfico à classe trabalhadora, ao invés de se tratar de uma forma de dominação
capitalista, uma forma completamente impregnada por seu lugar neste sistema de
dominação.
Fine e Harris tentam transcender o debate neo-ricardiano-fundamentalista, de modo a
levar a análise do Estado a um novo patamar em sua discussão sobre Gough (1976a) e
em sua revisão dos debates recentes (1976b). Eles criticam Gough por não partir da
categoria do capital em sua análise, e também enfatizam corretamente a especificidade
do político e a importância de desenvolver uma teoria materialista do Estado. Eles não
fazem muito progresso, no entanto, ao analisar a relação entre o capital e o Estado
basicamente porque parecem ver o capital simplesmente como uma categoria
econômica e adotar o modelo simplista de sociedade como base-superestrutura no qual a
base econômica é determinante. O capital e a economia, consequentemente, são
situados a priori como sendo separados do político, de modo que não fica claro como a
unidade (e a inter-relação) das esferas separadas devem ser analisadas. Nós
argumentaremos que esse ponto de partida é incapaz de render uma solução: o que se
pretende não é uma teoria econômica, mas uma teoria materialista do Estado. A
economia não deve ser vista como a base que determina a superestrutura política, em
vez disso tanto o econômico quanto o político são formas de relações sociais, formas
estabelecidas pela relação básica de conflito de classes na sociedade capitalista, a
relação de capital; formas cuja existência dissociada emerge, tanto lógica quanto
historicamente, da natureza dessa relação. O desenvolvimento da esfera política não
deve ser visto como um reflexo da economia, mas deve ser compreendido em termos do
desenvolvimento da relação de capital, a saber, da exploração de classe na produção
capitalista. Foi sobre a base da produção capitalista em geral que Marx desenvolveu sua
crítica das formas econômicas e é também sobre a análise do desenvolvimento das
relações de produção, enquanto relações de classe, que se deve basear a crítica das
formas políticas burguesas.
Está implícito em nossa descrição das análises do Estado atualmente influentes na
discussão marxista britânica um contraste entre estas análises e o debate alemão que
apresentamos neste livro e que agora analisaremos em maiores detalhes. Poderá ser útil
reiterar nossos pontos principais de modo a ressaltar os avanços na análise sobre o
Estado proporcionados pelo debate alemão. Argumentamos que a inadequação das
atuais teorias britânicas provêm de um equívoco em focar a relação entre Estado e
sociedade ou, de uma maneira mais geral, uma falha em analisar a articulação da
totalidade das relações sociais capitalistas. Por um lado, temos observado a aceitação
das categorias fetichizadas do pensamento burguês como um dado positivo da
fragmentação da sociedade burguesa no contexto econômico e político: isto,
argumentamos, conduz inevitavelmente a uma análise a-histórica e por conseguinte
utópica do capitalismo e das possibilidade do socialismo. Aqui, a separação das esferas
econômica e política é enfatizada e a totalidade unificadora é negligenciada. No outro
extremo, vemos que a redução da política a um mero reflexo da economia, em uma
ênfase excessiva no todo unificador que negligencia a particularização, real, embora
historicamente condicionada, da generalidade das relações capitalistas nas formas
políticas e econômicas, resulta em um ponto de vista extremamente simplificado da
relação entre as ações do Estado e os requisitos da acumulação capitalista.
O ponto de partida de todo o debate alemão da “derivação do Estado” é a crítica aos
teóricos (no caso, Offe e Habermas) que separam o estudo da política da análise da
acumulação capitalista. Entretanto, ao invés de simplesmente reiterar a conexão entre
capital e Estado, as contribuições ao debate aceitaram a separação do econômico e do
político e tentaram estabelecer, lógica e historicamente, o fundamento dessa separação
na natureza da produção capitalista. Em outras palavras, o objetivo tem sido derivar o
Estado (ou a separação da economia da política) da categoria de capital. Este foi o ponto
de partida essencial do ensaio seminal de Wolfgang Müller e Christel Neusüss. No
curso do debate somaram-se muitas críticas a este artigo, mas a suposição central, a
ênfase na necessidade de fundamentar a separação do político com relação ao
econômico na análise do capital tem sido universalmente aceita, considerada como
correto de maneira geral. Em nossa concepção, esse simples passo, que enfatiza
simultaneamente a totalidade unificadora das relações sociais capitalistas e a
fragmentação historicamente condicionada daquelas relações em formas fetichizadas é
um passo importante para a criação da estrutura conceitual de uma análise materialista
do Estado. No restante desta introdução analisaremos o debate alemão de modo a
identificar o progresso que tem sido realizado em desenvolver tal teoria, e como esse
progresso pode ser continuado.

O debate da derivação do Estado


Dado que o debate da “derivação do Estado” muitas vezes aparenta ser abstrato, é
apropriado, desde logo, enfatizar que se trata de uma resposta a problemas políticos
práticos. Eventos ocorridos ao final da década de 1960 na República Federal da
Alemanha apresentaram problemas políticos aos quais as análises marxistas anteriores
não ofereceram respostas imediatas. Houve três acontecimentos que apontaram
fortemente para uma mesma questão. Primeiro, a recessão de 1966-1967, a primeira
grande ruptura do “milagre econômico” da Alemanha Ocidental, que levou ao poder,
pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, os Socialdemocratas (SPD), como
colaboradores minoritários na Grande Coalizão com os Democratas Cristãos (CDU). A
alteração do governo foi acompanhada da realização de uma mudança ideológica do
liberalismo do pós-guerra para uma ênfase na planificação e no intervencionismo
estatal, e a aprovação dessa mudança política deveu-se à exitosa recuperação econômica
de 1967 e 1968. Segundo, as eleições de 1969 trouxeram os Socialdemocratas (SPD) ao
poder como o maior colaborador de um governo social-liberal comprometido com a
implantação de abrangentes reformas sociais. Terceiro, esse período intermediário
presenciou a ascensão e o declínio de poderosos movimentos estudantis que, apesar de,
teoricamente, serem mais desenvolvidos que o movimento francês ou inglês, nunca
obtiveram sucesso em estabelecer contato real com o movimento da classe trabalhadora.
Esses três acontecimentos levantaram de formas ligeiramente diferentes a mesma
questão: a questão dos limites (e possibilidades) da ação estatal. O primeiro
acontecimento levantou a questão da capacidade do Estado em continuar
“administrando” as crises e planejando o desenvolvimento social indefinidamente, se o
Estado poderia continuar a moldar a sociedade aos interesses do capital sem limites
aparentes (como estava implícito nos textos de Marcuse e outros autores influentes no
final dos anos 1960). O segundo acontecimento, da chegada da coalização social-liberal
ao poder, traz o problema da habilidade dos governos reformistas em atingir reformas
significativas, ou melhor, o problema dos limites do reformismo. Em terceiro lugar, o
fracasso do movimento estudantil em estabelecer vínculos com os trabalhadores
levantou o problema de compreender a base material da crença generalizada no
reformismo. Esses são os principais problemas a respeito do Estado com os quais o
debate alemão teve que lidar. Certamente existem outros problemas aí implicados: na
medida em que a crise gradativamente aprofunda-se em meados dos anos 1970 e as
políticas estatais tornam-se mais repressivas, os problemas da funcionalidade da ação
estatal e da natureza repressiva do Estado tornam-se mais evidentes, mas a maior parte
do debate aqui reproduzido está preocupado com os limites da ação estatal e a base das
ilusões a respeito do poder do Estado.
Diante dessa tarefa, a teoria marxista até então existente sobre o Estado foi considerada
inadequada. A literatura politicamente importante do final dos anos 1960
(especialmente “A transformação da democracia”, de Agnoli e Brückner) centrava-se
na crítica à democracia burguesa. Após ressaltar a importância política dessa crítica,
Müller e Neusüss, no artigo que deu início a todo o debate, em 1970, apontaram a sua
inadequação em resolver os problemas com os quais se depararam:

se levada a sério, esta critica deve converter-se em uma crítica do


desenvolvimento das variadas funções do Estado contemporâneo… e de suas
limitações concretas e contradições. Ao explicar e criticar as instituições do
Estado como instrumentos de manipulação da classe dominante, não é possível
desvendar os limites dessa manipulação. Estes apenas podem ser revelados
através de uma análise que mostre detalhadamente as necessidades e os limites
da intervenção estatal, decorrente das contradições do processo de produção
capitalista como processo de trabalho e de valorização. (1970, p. 33, tradução
minha)
Para compreender os limites da ação estatal era necessário analisar a relação entre
Estado e sociedade; para entender esta relação era necessário investigar sua fonte, a
fonte da particularização (Besonderung) da sociedade capitalista nas esferas
aparentemente autônomas do Estado e da sociedade. Assim como a investigação de
Marx sobre a relação entre dinheiro e mercadoria baseou-se na análise da origem dessa
relação ou, em outras palavras, na derivação da forma dinheiro a partir das contradições
da mercadoria, Müller e Neusüss argumentam (1970, p. 35) que a análise da relação
entre Estado e sociedade deve se basear na derivação da forma estatal (como uma
“existência particular ao lado e fora da sociedade civil” (A Ideologia Alemã, p. 75)) das
contradições da sociedade capitalista.
Essa abordagem teórica assenta-se sobre uma determinada compreensão do método
marxista, exemplificado especialmente no Capital. A grande obra de Marx, como uma
“crítica da economia política”, intenta penetrar as categorias da economia política de
modo a desvendar as relações sociais por elas veladas, de modo a mostrar que as
categorias como valor de troca, preço, etc., não são uma realidade objetiva eterna, mas
representam formas historicamente determinadas que assumem as relações sociais na
sociedade burguesa:

...são justamente essas formas que constituem as categorias da economia


burguesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto,
dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de
produção historicamente determinado, a produção de mercadorias. (O Capital,
vol. 1, p. 151)

Além disso, Marx não somente procurou decifrar essas formas, seu objetivo era oferecer
uma crítica materialista das formas econômicas, isto é, mostrar por que as relações
sociais burguesas assumiam as formas expressas nas categorias de valor, preço,
dinheiro, etc. Com efeito, ele distinguia sua teoria da economia política burguesa
precisamente sobre a seguinte base:

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o


valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas.
Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo
assume aquela forma, e, portanto, por que o trabalho se representa no valor, e a
medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do
produto do trabalho? (O Capital, vol. 1, p. 154/5)

Em sua crítica das formas econômicas, portanto, Marx não simplesmente examina uma
forma após a outra: a começar pela forma básica do valor e as relações sociais que ela
expressa e a partir das quais ela surge, ele “deriva” as outras formas dessas relações
sociais. Para Marx, analisar a forma é analisar (histórica e logicamente) sua origem e
seu desenvolvimento12.
Nessa perspectiva, resta claro que O Capital não se trata de uma tentativa de examinar
“a economia isoladamente” (Fine e Harris, 1976a, p. 109, tradução minha) e, ainda
menos, da economia como um “objeto científico autônomo e específico” (1977 p. 29),
como compreende Poulantzas. É uma crítica materialista histórica das formas da
economia política que intenta mostrar as relações sociais que se escondem por detrás, e
originam, essas formas. Segue-se que o estudo do político não deve ser uma tentativa de
desenvolver alguma “ciência política” autônoma, e sim uma crítica da ciência política
que visa decifrar as categorias políticas como formas de relações sociais. Considerando
que o objeto de estudo é a sociedade burguesa, as relações sociais que são veladas e que
originam essas formas políticas serão essencialmente as relações sociais reveladas por
Marx em sua crítica da economia política, a saber, as relações sociais do modo de
produção capitalista. Logicamente, portanto, o debate alemão, que se ocupa com a
análise da forma política, inspira-se menos nos textos manifestamente políticos de Marx
do que no Capital e nos Grundrisse. Isto não decorre de uma posição econômica
determinista, mas, pelo contrário, de uma compreensão do Capital não enquanto uma

12
O problema da forma, ou melhor, a compreensão da análise de Marx como a crítica materialista das
categorias burguesas enquanto formas de relações sociais, têm sido consideravelmente negligenciado
pelos marxistas desse país. Na Alemanha Ocidental, no entanto, à análise da forma foi dada uma
importância central por um conjunto de estudos influentes no final dos anos 1960 e início dos anos 1970.
Nesse sentido, Rosdolsky, em seu excelente comentário sobre os Grundrisse, afirma que: “Para Marx, as
formas sociais da produção e da distribuição constituem, em sua especificidade, o verdadeiro objeto da
análise econômica” (2001, p. 79).
Assim Backhaus se refere ao “tema central da análise de Marx da forma valor: por que esse conteúdo
toma essa forma”? (1969, p. 132, tradução minha) Reichelt, por sua vez, introduz sua obra afirmando
que: “o que diferencia a crítica da economia política de toda a formulação teórica de ordem econômica -
inclusive da atual - é a seguinte problematização específica - assim se poderia sintetizar a abordagem
marxiana na forma de uma pergunta: O que se oculta atrás das categorias mesmas? Qual é o teor peculiar
das determinidades formais de cunho econômico, portanto da forma-mercadoria, da forma-dinheiro, da
forma-capital, da forma do lucro, do juro etc.? Enquanto a economia política burguesa de modo geral se
caracteriza por apreender exteriormente as categorias, Marx insiste numa rigorosa derivação da gênese
dessas formas…” (2013, p. 26).
análise econômica, mas como uma crítica materialista das formas econômicas. Assim
como as relações sociais do modo de produção capitalista deram origem às formas
econômicas e às categorias da economia política, elas também dão origem à forma
política e às categorias da ciência política. A investigação da relação entre o econômico
e o político não começa com a pergunta referente ao modo pelo qual a “base
econômica” determina a “superestrutura política”, mas sim: qual é a característica das
relações sociais na sociedade burguesa que faz com que elas apareçam enquanto formas
separadas, como relações econômicas e relações políticas?
Essa maneira de abordar o Estado não é completamente nova: a questão já foi colocada
nesses termos em 1923 por Pachukanis, cujo ensaio magistral sobre a “Teoria geral do
direito e marxismo”, apesar de traduzido para o inglês, tem sido negligenciado pelos
marxistas na Grã-Bretanha13. Pachukanis, cuja relevância para o debate alemão foi
percebida apenas no curso desse debate, incumbiu-se de derivar a forma do direito e a
forma estreitamente relacionado do Estado da natureza da produção capitalista de
mercadorias. Ainda que abstrato em sua formulação, seu argumento visou levantar uma
importante questão política. Escrito na União Soviética de 1923, ele argumentou que o
direito e o Estado se tratavam de formas que emergiram da natureza das relações sociais
da sociedade capitalista; e que, apesar de ser indubitavelmente necessário para uma
sociedade em transição utilizar essas formas no interesse do proletariado, era
considerado uma deturpação da teoria marxista argumentar a favor do desenvolvimento
de um “direito socialista” ou de um “Estado socialista”. Ele questionou os teóricos
marxistas que então haviam criticado o conteúdo de classe do direito e do Estado sem
considerar que a forma do direito e a forma do Estado eram igualmente determinadas
pela natureza da sociedade capitalista e não poderiam simplesmente serem transpostas
para uma nova forma de sociedade. (Os paralelos com a crítica moderna das teorias do
capitalismo monopolista de Estado deveriam ser evidentes). Assim, ele discorre sobre a
teoria rival de Stutchka:

Essa definição revela o conteúdo de classe contido nas formas jurídicas, mas não
nos explica por que esse conteúdo assume tal forma. Para a filosofia do direito

13
É uma pena que o Pachukanis tenha sido negligenciado pelos marxistas na Grã Bretanha: isso talvez
deva-se parcialmente à relativa inacessibilidade das traduções existentes, e parcialmente devido à terrível
qualidade das traduções (que refere-se às mercadorias como “bens”, e “força do trabalhador” em lugar de
força de trabalho, etc.). Consequentemente, nós retraduzimos nossas citações de Pachukanis quando
necessário.
burguesa, que considera a relação jurídica como a forma natural e eterna de
qualquer relação humana, essa questão nem é colocada. Para a teoria marxista,
que se esforça para penetrar nos mistérios das formas sociais e reconduzir “todas
as relações humanas ao próprio ser humano”, essa tarefa deve ser colocada em
primeiro lugar (Pachukanis, 2017, p. 96).

Nesse sentido, quando Pachukanis aborda a análise do Estado, ele aponta para a
insuficiência de se indicar a natureza de classe do Estado: este deve ser analisado como
uma forma específica de dominação de classe. Havendo delineado o surgimento da
separação entre público e privado, entre Estado e sociedade, com o surgimento da
produção capitalista, ele critica a caracterização de Engels do Estado em A origem da
família, da propriedade privada e do Estado, que relaciona de maneira simplista o
Estado ao conflito de classes, afirmando depois, que:

Por trás de todas essas controvérsias, está colocada uma única questão
fundamental: por que a dominação de classe não se apresenta como é, ou seja, a
sujeição de uma parte da população à outra, mas assume a forma de uma
dominação estatal oficial ou, o que dá no mesmo, por que o aparelho de coerção
estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, mas se
destaca deste, assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal,
separado da sociedade? (Pachukanis, 2017, p. 143)

Essa talvez seja a mais clara formulação da questão abordada pelo debate alemão: a
questão da forma do Estado capitalista. Ao invés de recorrer imediatamente à resposta
dada por Pachukanis a essa questão, continuemos examinando alguns aspectos do
debate em si.
Quais foram os avanços realizados pelo debate da “derivação do Estado” ao analisar a
forma do Estado? Considerando que as mais importantes contribuições são apresentadas
neste volume, não é necessário listar detalhadamente aqui o debate em todas as suas
nuances e pontos de controvérsia. Seguiremos aqui com a discussão apenas na medida
em que for necessária para elucidar os principais pontos em questão e, por conseguinte,
os principais problemas que surgiram na tentativa de derivar a forma e a função do
Estado. O leitor descobrirá que um pequeno número de problemas importantes, porém
aparentemente obscuros, atravessam o debate: o problema de qual deveria ser o ponto
de partida para derivar a forma do Estado a partir da sociedade e, particularmente, se a
derivação deveria basear-se na análise da superfície ou da essência da sociedade
capitalista; o problema da relação entre a derivação da forma e a derivação da função do
Estado; e o problema da relação entre a derivação lógica e a análise histórica.
Finalmente - e esse problema destaca-se cada vez mais nas últimas contribuições -,
todas essas questões ressaltam o problema dos limites da “derivação do Estado”, ou o
quanto essa abordagem pode ser levada adiante. Claramente qualquer tentativa de
classificação incorre em uma injusta simplificação das nuances das diferentes posições
tomadas; contudo, de modo a simplificar as coisas, certamente duas, ou possivelmente
três, orientações gerais - embora não precisamente delimitadas - podem ser distinguidas.
Em primeiro lugar14 - e essa talvez seja a abordagem “dominante” do problema -
encontram-se aqueles que derivam a necessidade da forma do Estado, enquanto uma
instituição separada, a partir da natureza das relações entre capitais. Começando pelo
fato de que o capital apenas pode existir na forma de capitais individuais, esses autores
focaram no modo como a reprodução do capital como um todo - capital social total - é
assegurado. Em termos gerais, concluem que é apenas devido à existência de um Estado
autonomizado, situado acima dos conflitos, que as relações sociais de uma sociedade
(de outra forma anárquica) são reproduzidas e os interesses gerais do capital social total
consagrados.
Assim, Müller e Neusüss, baseando-se na análise de Marx sobre a legislação fabril no
Capital, deduzem a necessidade do Estado como uma forma particular “ao lado e fora
da sociedade civil” da característica autodestrutiva da sociedade capitalista: “em seu
impulso cego e desmedido, sua voracidade de lobisomem por mais-trabalho” (O
Capital, vol. 1, p. 337), o capital destruiria sua própria base, isto é, a força de trabalho
dos trabalhadores, se não fosse pela necessária intervenção do Estado, atuando no
interesse do capital em geral (ainda que sob pressão da classe trabalhadora) para
proteger o bem-estar dos trabalhadores (Müller e Neusüss, 1978, p. 37). Enfatizando o
aspecto de bem-estar da atividade do Estado como uma condição necessária para a
reprodução da força de trabalho, Müller e Neusüss derivam da inabilidade dos capitais
individuais de exercer essa função, a necessária autonomia do Estado e a base material
da crença reformista na natureza socialmente benevolente da atividade estatal.

14
Seria errado personificar o debate, mas os proponentes dessa primeira abordagem estão geralmente
associados com Berlim e a revista Probleme des Klassenkampfs.
O argumento de Altvater em seu ensaio sobre o intervencionismo estatal, do qual
incluímos um breve fragmento aqui, adota uma abordagem teórica similar, ainda que em
termos mais gerais. Altvater deriva o Estado da incapacidade do capital, como resultado
de sua existência enquanto muitos capitais reciprocamente antagônicos, de reproduzir a
natureza social de sua própria existência: de modo a assegurar sua reprodução, o capital
requer um Estado que não se sujeite às mesmas limitações dos capitais individuais, e
que seja, assim, capaz de satisfazer as necessidades que o capital é incapaz de satisfazer
(Altvater, 1978, p. 41). Desta derivação da forma do Estado realizada por Altvater (e
todos os autores que adotam uma abordagem teórica similar) segue-se que as funções do
Estado derivadas dizem respeito à compensação das deficiências do capital privado e à
organização dos capitais individuais em um conjunto viável. Assim, as quatro funções
gerais do Estado a que Altvater chega são todas da seguinte natureza:

1. A provisão das condições materiais gerais de produção (“infraestrutura”);


2. O estabelecimento e a garantia das relações jurídicas em geral, através das quais
são executadas as relações entre sujeitos de direitos na sociedade capitalista;
3. A regulação do conflito entre trabalho assalariado e capital e, se necessário, a
repressão política da classe trabalhadora - não apenas através da lei, mas
também da polícia e do exército;
4. a proteção da existência e da expansão do capital nacional total no mercado
mundial capitalista. (1978, p. 42, tradução minha)

O ensaio de Blanke, Jürgens e Kastendiek é a versão mais refinada e desenvolvida dessa


abordagem. Eles também partem da fragmentação da produção social na produção de
mercadorias por produtores individuais, e derivam a forma e a função do Estado da
necessidade de regular as relações entre produtores de mercadorias através do direito e
do dinheiro. A regulação por estes meios é necessária para a manutenção das relações
de troca entre produtores de mercadorias, além disso, essa regulação só pode advir de
um corpo situado fora das relações de produção mercantil. Ao argumentar dessa
maneira, estão seguindo de perto os passos de Pachukanis, que também relaciona o
desenvolvimento do Estado como uma forma separada à emergência da troca de
mercadorias:
A dominação de fato adquire um caráter jurídico público preciso quando
surgem, ao lado e independentemente dela, relações ligadas a atos de troca, ou
seja, as relações privadas par excellence. Aparecendo a título de fiador dessas
relações, o poder se torna um poder social, um poder público, que persegue o
interesse impessoal da ordem (PACHUKANIS, 2017, p. 141)

O desenvolvimento do argumento de Pachukanis por Blanke, Jürgens e Kastendiek


evidencia a estreita relação entre as questões examinadas aqui e os interesses dos
teóricos marxistas do direito.15
Essa primeira abordagem é muito meritória e lançou uma considerável luz sobre a
relação entre o Estado e os capitais individuais. Em particular, ela oferece uma
alternativa clara à tese do “capitalismo monopolista de Estado” acerca da fusão entre o
capital monopolista e o Estado. Uma alternativa que enfatiza tanto a natureza capitalista
do Estado como a essencial distinção entre o capital e o Estado: é esta crítica do
capitalismo monopolista de Estado que subjaz a afirmações insistentes de Altvater de
que “o Estado… nunca é um capitalista total material e real, mas sempre apenas um
capitalista total ideal ou fictício” (1978, p. 42, tradução minha).16 Essa abordagem
teórica também contribuiu em muito para a análise da questão da nacionalização e do
setor público e da função deste setor em sua discussão da provisão das “condições
gerais de produção” pelo Estado.17 Finalmente, os autores que compartilham desse
amplo horizonte teórico têm muitas coisas interessantes a dizer sobre a questão central
dos limites da ação estatal: ver, em particular, a discussão de Altvater sobre a relação
entre a atividade estatal e a acumulação de mais-valor, bem como a discussão de
Blanke, Jürgens e Kastendiek sobre as limitações advindas da natureza necessariamente
indireta ou mediada da ação estatal. Não estamos de nenhuma maneira descartando
essas contribuições quando apontamos que existem, no entanto, três fortes objeções a
esse horizonte teórico. Em primeiro lugar, na medida em que18 elas apresentam o Estado
como a institucionalização dos interesses do capital em geral ou de modo a satisfazer os
requisitos do capital, atribuem ao Estado um poder e um conhecimento que ele não pode

15
Sobre os últimos avanços dos teóricos marxistas do direito, ver o ensaio de Blanke, Jürgens e
Kastendiek.
16
Um interessante aspecto do debate alemão foi a frutífera estimulação recebida pelas críticas das teorias
sobre o capitalismo monopolista de Estado: para um tratamento específico dessas teorias, ver Wirth
(1972; 1973).
17
Para uma discussão completa das condições gerais de produção, ver Lapple (1973).
18
Blake, Jürgen e Kastendiek também fazem essa crítica (ver 1978, p. 138).
possuir. Dado que o Estado é derivado da necessidade de exercer uma função que não
pode ser exercida pelo capital privado, a sua habilidade em cumprir essa função já é
pressuposta. Isso significa, como aponta Joachim Hirsch (1978, p. 187, tradução
minha), “que o problema central da análise do Estado, a saber, a questão de se o
aparelho de Estado é plenamente capaz - e, em caso afirmativo, em que condições - de
executar certas funções e quais são suas consequências, é evitado”. Disto decorre a
insistência dos críticos dessa escola de que é necessário derivar as funções do Estado de
sua forma, e não vice-versa. A segunda objeção vai de encontro ao cerne desse
horizonte teórico: ao partir da fragmentação do capital social e das relações antagônicas
entre capitais individuais ou entre produtores individuais de mercadorias, essa
abordagem tem muito pouco a dizer sobre o Estado enquanto uma forma de dominação
de classe, sobre as relações de repressão e legitimação existentes entre o Estado e classe
trabalhadora. É uma característica notável do debate alemão o fato de que, com uma ou
duas exceções, tenha colocado pouquíssima ênfase na natureza repressiva do Estado.
Em parte, isso reflete uma orientação geral do debate, que considera a si mesmo como
uma crítica da análise ordinária que apresenta o Estado simplesmente como uma
ferramenta de dominação de classe; e em parte provavelmente represente uma
generalização da experiência da Alemanha Ocidental do início dos anos 1970, quando a
classe trabalhadora estava relativamente quiescente e a “discussão pública” centrava-se
nos problemas relacionados ao planejamento do desenvolvimento econômico. Isso nos
leva a uma terceira, e possivelmente a objeção mais elementar, a saber, que essa
abordagem teórica é fundamentalmente a-histórica. A-histórica porque o motor do
desenvolvimento capitalista não reside no antagonismo das relações entre capitais
individuais ou entre produtores individuais de mercadorias, mas nas relações
antagônicas entre capital e trabalho, na acumulação de capital concebida enquanto um
processo de luta de classes. Consequentemente, em abordagens teóricas desse tipo,
ainda que a análise histórica sem dúvidas seja considerada importante, a história é
sempre introduzida como algo externo à análise: é feita uma distinção, implícita ou
explicitamente, entre a análise lógica e histórica. Essa distinção está implícita em todas
essas análises, mas é levantada explicitamente por Blake, Jürgens e Kastendiek: depois
de definir a “análise da forma” como a derivação do Estado, enquanto uma forma
necessária à reprodução da sociedade capitalista, eles prosseguem afirmando que:
Neste nível de abstração, entretanto, somente podemos levantar os pontos de
partida gerais para o desenvolvimento das “funções” do processo de reprodução
que devem tomar forma de modo que se situem fora do sistema de trabalho
social organizado privadamente. A questão acerca de como esse processo de
formação ocorre de fato, de como é traduzido em estrutura, instituições e
processos do Estado, não pode mais ser respondida pela análise da forma. Essa
questão deve ser objeto de uma análise histórica. Todavia, a precisa demarcação
e mediação entre a análise da forma e a análise histórica apresentam problemas
complexos. Dependerá de como se compreende a determinação histórica do
conceito de capital em geral em Marx (Blanke, Jürgens e Kastendiek, 1978, p.
119, tradução minha).

Sem pretender negar a complexidade desse problema - e a isto voltaremos mais adiante
- não nos parece correto fazer tal rígida distinção entre a análise da forma e a análise
histórica. Se a análise da forma for compreendida como puramente lógica e a análise
histórica como empírica, isso não nos ajudará a desenvolver uma teoria materialista
histórica do desenvolvimento do Estado. Não é coincidência que, quando Blanke,
Jürgens e Kastendiek concluem seu ensaio com um esboço das diferentes fases do
desenvolvimento da atividade do Estado (1978, p. 142-146), este esboço seja pouco
convincente e comporte pouca relação com a análise que o precedeu.
A segunda abordagem teórica, muito menos delimitada que a primeira, é encontrada
naquelas obras que enfatizam a necessidade de basear a análise do Estado não na
natureza essencial do capital, mas nas formas de aparência das relações capitalistas na
superfície da sociedade. Essa abordagem teórica é melhor exemplificada pelo artigo de
Flatow e Huisken - aqui apresentados através da crítica de Reichelt19. Após apontar que
a “sociedade” de Altvater não parece ter lugar para a classe trabalhadora, Flatow e
Huisken argumentam que é necessário não apenas analisar a questão do motivo pelo
qual o Estado não é imediatamente identificável com a classe capitalista, como também
suscitam a questão de como é possível para o Estado, uma forma de dominação de
classe, aparecer como uma instituição situada “ao lado e fora da sociedade civil”.
Insistindo, assim, na importância de derivar não apenas a necessidade da forma do
Estado, como também suas possibilidades, eles retornam a um dos problemas

19
Originalmente pretendíamos incluir o artigo de Flatow e Huisken, mas os autores posteriormente
retiraram a permissão.
levantados por Müller e Neusüs, a saber, o problema da base material da aceitação do
Estado enquanto uma instância neutra pela classe trabalhadora. A resposta, como
argumentam Flatow e Huisken, não deve ser buscada na análise da “essência” da
sociedade capitalista, nas relações essenciais de exploração de classe, mas na análise da
“superfície” dessa sociedade:

A tese central de nosso argumento é que apenas a partir das determinações da


superfície da sociedade burguesa que emergem as inter-relações que
possibilitam a apreensão da essência do Estado burguês (1973, p. 100, tradução
minha)

É na superfície da sociedade que aparece a comunidade de interesses, não apenas dos


capitais, mas de todos os membros da sociedade. Referindo-se à “fórmula trinitária”
(“capital-lucro (lucro empresarial mais juros), terra-renda fundiária, trabalho-salário” (O
Capital, vol. III, p. 877) debatido por Marx (ao final do volume 3 do Capital), Flatow e
Huisken argumentam que todos os membros da sociedade têm (superficialmente) um
interesse comum em razão de seu status comum como proprietários de uma fonte de
rendimentos. É essa comunidade de interesses (apesar de superficial) que torna possível
a existência de um Estado autônomo, aparentemente neutro. Quando se trata, no
entanto, de derivar a necessidade da autonomização do Estado, a resposta de Flatow e
Huisken é muito similar à de Altvater. Um Estado autônomo é necessário porque as
relações de concorrência existentes entre diferentes classes de “proprietários privados”
(isto é, proprietários de diferentes fontes de rendimentos) tornam impossível a
realização de seus interesses comuns senão através do Estado.
Essa segunda abordagem teórica está ainda mais longe de nos fornecer uma análise
materialista histórica do Estado. Ao partir da aparência fetichizada da superfície da
sociedade burguesa, e não de um aspecto da estrutura das relações sociais (tal como a
primeira abordagem teórica apresentada fazia), esses autores inevitavelmente
excluíram-se de uma compreensão histórica do Estado. O mérito do artigo de Flatow e
Huisken consiste em chamar a atenção para a importância primária da análise do
fetichismo da mercadoria, das relações entre aparência e essência, em qualquer estudo
sobre o problema da legitimação, e de como o Estado é capaz de aparecer como uma
instância neutra atuando em favor dos interesses gerais. Mas na medida em que levam
adiante sua análise e separam a análise da superfície da análise das relações essenciais
da sociedade, resta sugerido (como Reichelt argumenta) que eles mesmos tornam-se
reféns das ilusões fetichistas e perdem vista da natureza da superfície como uma mera
forma cujo desenvolvimento só pode ser compreendido através de uma investigação das
relações de classe que ela vela.
A terceira abordagem teórica - aliás, a maior contraposição à primeira abordagem20 - é
representada aqui principalmente por Joachim Hirsch (apesar de a discussão de Reichelt
sobre Flatow e Huisken em muito se aproximar da análise de Hirsch). Essa abordagem
parte novamente da investigação da estrutura básica da sociedade capitalista - mas com
enfoque não nas relações entre produtores de mercadorias, mas na natureza da relação
de capital, a relação de exploração do trabalho pelo capital. Paradoxalmente, essa
abordagem também pode ser reconduzida a Pachukanis e a sua questão:

… por que a dominação de classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de


uma parte da população à outra, mas assume a forma de uma dominação estatal
oficial... (2017, p. 143)

A resposta para essa questão deve certamente residir na natureza da relação de


dominação em si. Hirsch argumenta que a forma particular do Estado deve ser derivada
não da necessidade de estabelecer o interesse geral em uma sociedade anárquica, mas da
natureza das relações sociais de dominação na sociedade capitalista. A forma que a
exploração assume sob o capitalismo não depende do uso direto da força, mas
primariamente da compulsão de repetição de incompreensíveis leis de reprodução. De
fato, a forma da apropriação do mais produto no capitalismo requer que as relações de
força sejam abstraídas do processo imediato de produção e que se localizem em uma
instância apartada dos produtores diretos. Assim, tanto lógica como historicamente, o
estabelecimento do processo de produção capitalista é acompanhado da abstração das
relações de força do processo imediato de produção, constituindo, dessa maneira, duas
diferentes esferas: “política” e “econômica” (1978, p. 61-64). Em contraposição às
outras duas abordagens teóricas apresentadas, essa está, desde o começo, centrada na
natureza coercitiva e de classe do Estado; mas este não é apresentado vulgarmente como
um instrumento de dominação de classe, mas como uma forma específica e

20
Se a primeira abordagem teórica pode ser vagamente identificada com Berlim, então essa abordagem
pode ser associada com Frankfurt e o jornal Gesellschaft.
historicamente condicionada das relações sociais de exploração, uma forma diferenciada
que não pode ser simplesmente identificada com a forma econômica, o domínio da
concorrência.
Dessa derivação do Estado desdobram-se duas consequências. Primeiro, enquanto está
implícito na abordagem teórica que deriva a necessidade do Estado das deficiências
organizativas do capital privado o fato de que o Estado é, em algum sentido, a
institucionalização dos “interesses gerais” do capital, isto não ocorre com a abordagem
de Hirsch. Pelo contrário, Hirsch cita Marx no sentido de que, longe de ser uma
institucionalização dos interesses gerais, o Estado está “apartado dos interesses
individuais e coletivos reais” (A ideologia alemã). Os limites da atividade Estatal,
portanto, apresentam-se para Hirsch de maneira muito mais evidente que para os demais
contribuintes do debate em questão. Estes assumem que, dentro da margem estabelecida
pelas exigências da acumulação de capital, o Estado pode atuar no interesse do capital
em geral. Para Hirsch, a relação estrutural do Estado para com a sociedade torna até isto
extremamente problemático, posto que ele enxerga como as contradições da sociedade
capitalista reproduzem-se dentro do aparelho de Estado, tornando dessa forma
questionável se o Estado pode alguma vez agir adequadamente no interesse do capital
em geral. Mas se as ações estatais não são identificadas com os interesses do capital em
geral, isso contradiz a ligação lógica entre as leis de movimento do capital e o conteúdo
da atividade estatal. Hirsch, por conseguinte, é o primeiro de nossos colaboradores que,
sem questionar sua importância, seriamente levanta a questão dos limites da abordagem
lógica da “derivação do Estado”.
A segunda consequência é que, da derivação do Estado da relação de exploração
capitalista segue-se que, ainda que o Estado não represente uma institucionalização dos
interesses gerais do capital, sua existência como uma forma particular de relação social
depende da reprodução da relação de capital, isto é, depende da acumulação. Isso
significa que as atividades do Estado estão limitadas e estruturadas pela pré-condição de
sua própria existência, pela necessidade de assegurar (ou tentar assegurar) a
continuidade da acumulação de capital. Devido a sua forma, como uma instância
separada do processo imediato de produção, o Estado é estruturalmente restringido a
reagir aos resultados do processo de produção e reprodução; as atividades do Estado e
suas funções individuais (mas não sua forma) se desenvolvem, então, através de um
processo de reação mediada pelo desenvolvimento do processo de acumulação. Ainda
que não se possa derivar diretamente o conteúdo da atividade estatal (isto é, a
configuração particular que essa reação adota) do processo de acumulação, o ponto de
partida para a análise dessa atividade, do desenvolvimento do Estado e suas limitações,
deve ser a análise do processo de acumulação e de seu desenvolvimento contraditório.
São as contradições inerentes à acumulação (como a forma capitalista da exploração de
classe), contradições eficazmente condensadas na análise de Marx sobre a queda
tendencial da taxa de lucro, que constitui, para Hirsch, a força dinâmica por trás do
desenvolvimento do processo de acumulação e, consequentemente, do desenvolvimento
do próprio Estado. A queda tendencial da taxa de lucro e as contratendências que ela
desencadeia emergem, assim, como a chave para a compreensão do desenvolvimento do
Estado. Está claro, a partir de uma leitura da análise de Hirsch, que ele compreende a
queda tendencial da taxa de lucro não como uma lei econômica que tem
necessariamente uma manifestação estatística, mas como a expressão de um processo
social de luta de classes que impõe ao capitalismo a necessidade de reorganizar
constantemente suas próprias relações de produção, um processo de reorganização que
Hirsch relaciona com a mobilização das contratendências à queda tendencial da taxa de
lucro:

A mobilização das contratendências significa, na prática, a reorganização tanto


de um complexo histórico de condições sociais gerais de produção, como as
relações de exploração em um processo que apenas pode proceder de uma
maneira tendente à crise. Assim, o curso real necessariamente tendente à crise do
processo de acumulação e desenvolvimento da sociedade capitalista depende
decisivamente de se e de que maneira logra-se a reorganização necessária das
condições e relações de produção (1978, p. 74, tradução minha).

Para uma análise histórica rigorosa da economia capitalista e de seu desenvolvimento


político é necessário, portanto, voltar-se para o processo de constante reorganização
pela luta e através da crise das relações sociais capitalistas, econômicas e políticas.
Essa abordagem teórica, que toma como ponto de partida a relação antagônica entre
capital e trabalho no processo de acumulação, nos fornece o pano de fundo para uma
análise histórica e materialista do Estado. O processo de renovação constante das
relações sociais, inerente à concepção da queda tendencial da taxa de lucro, é um
processo histórico que não se reinicia do zero toda vez, uma vez que cada ciclo de
reorganização é moldado pelas contradições cada vez mais intensificadas dos ciclos
anteriores. Ainda que essa reorganização assuma diferentes características em
conjunturas específicas, as formas fundamentais em todas as conjunturas são moldadas
pelas contradições do processo de acumulação. Desse modo, é possível distinguir as
diferentes fases (econômicas e políticas) de reorganização que ocorreram em uma escala
global. Nessa abordagem teórica, a história efetiva de desenvolvimento das funções do
Estado e de suas instituições não é, portanto, algo que tenha sido de alguma forma
adicionado depois de concluída a derivação lógica do Estado, visto que já está implícita
na análise “lógica”. Em outras palavras, a análise não é apenas lógica, mas também
histórica21. Como expõe Hirsch:

a investigação das funções estatais deve basear-se na análise categorial do curso


histórico do processo de acumulação capitalista. Entretanto, deve-se ter em
mente que esse não é um problema de dedução lógica das leis abstratas, mas um
entendimento conceitualmente informado de um processo histórico… (1978, p.
82, tradução minha).

Este ponto nos parece de importância central. O propósito da crítica às formas política e
econômica de Marx não é simplesmente analisar uma determinada sociedade. Não há
muito sentido em falar sobre as “formas” capitalistas das relações sociais a menos que
se tenha outras formas em mente, a menos que se considere estas formas como
transitórias. Está implícito no próprio conceito de “forma” a ideia de que ela é
determinada historicamente e desenvolvida historicamente. É precisamente essa crítica
das formas capitalistas como formas transitórias que fornece a base da análise marxista.
Tal como afirma Rosa Luxemburgo:

O segredo da teoria do valor de Marx, de sua análise do dinheiro, de sua teoria


do capital, da taxa de lucro e, por conseguinte, de todo o sistema econômico

21
O termo “lógica do capital” tem sido amplamente utilizado na Grã Bretanha para qualquer análise que
se baseia nas contradições do capital; deve ficar claro à luz dessa introdução e, certamente, da leitura do
presente livro que, no entanto, seria completamente equivocado utilizar a etiqueta da “lógica do capital” a
todo o debate aqui apresentado; que, apesar de todos os autores partirem da análise do capital, há
diferenças muito grandes em suas abordagens teóricas da “derivação” do Estado e suas compreensões
sobre a “lógica” do capital.
atual, está no caráter transitório da economia capitalista… É precisa e
unicamente porque Marx considerava em primeiro lugar como socialista, isto é,
de um ponto de vista histórico, a economia capitalista, que pôde decifrar os seus
hieróglifos… (2009, p. 22)

Consequentemente, as categorias desenvolvidas por Marx para criticar as formas da


sociedade capitalista não foram projetadas para descrever uma sociedade estática, mas
para conceituar essas formas como expressões de um processo histórico:

O tratamento lógico de Marx em conceituar a economia, como afirma Engels, é


sobretudo histórico, só que despido de sua forma histórica e casualidades
inquietantes. Fornece, portanto, ainda que abstratamente, uma imagem refletida
do processo histórico real, “uma imagem refletida corrigida, porém corrigida de
acordo com as leis da própria trajetória histórica; e, assim, cada fator pode ser
estudado no ponto de desenvolvimento de sua plena maturidade, em sua forma
clássica” (ROSDOLSKY, 1974, p. 65, tradução minha)

Portanto, certamente é incorreto traçar uma clara distinção entre a análise da forma e a
análise histórica, como o faz Blanke, Jürgens e Kastendiek. A análise da forma é uma
análise historicamente determinada e historicamente desenvolvida, sendo difícil ver
como uma análise adequada da forma pode ser outra coisa além de histórica.
O problema, no entanto, não é simplesmente compreender as categorias de Marx como
categorias simultaneamente lógica e históricas, posto que a dificuldade de relacionar a
“imagem de espelho corrigida” com o “processo histórico real”, de relacionar a
acumulação capitalista e suas tendências formalmente derivadas com o atual
desenvolvimento da luta de classes, bem como a compreensão da luta de classes não
apenas em sua forma, mas na interação entre forma e conteúdo, ainda permanece. Nesse
sentido é possível levantar dúvidas a respeito do desenvolvimento de Hirsch em sua
própria análise. O principal ponto do artigo de Hirsch parece residir em sua análise da
mobilização das contratendências à queda tendencial da taxa de lucro como um
necessário processo (determinado por sua forma) econômico, político e ideológico de
luta de classes para reestruturar as relações sociais capitalistas de produção. Esta luta
(para a manutenção ou restauração das condições de acumulação) é objeto de certas
constrições formais e finalidades que podem ser derivadas logicamente da natureza da
produção de mais-valor. O resultado dessa luta, no entanto, não pode ser derivado de
sua forma, mas apenas pode ser analisado em termos dos conteúdos concretos dessa
luta, da organização e força das várias classes e frações de classes, da maneira com que
a luta é travada nas frentes econômica, política, ideológica, etc. Essa luta, a luta pela
acumulação, na qual o capital é confrontado continuamente pelos seus próprios limites
imanentes e busca superar esses limites permanecendo dentro dos moldes de sua própria
existência (reestruturada), é certamente o cerne da luta de classes na sociedade
capitalista. Esse ponto, central para sua análise da queda tendencial da taxa de lucro,
tende, talvez, a escapar de Hirsch no subsequente desenvolvimento de seu argumento. A
segunda parte de seu artigo concentra-se em fornecer um esboço histórico das principais
fases de reorganização das relações sociais capitalistas e sua relação com o
desenvolvimento das funções estatais. Enquanto esse esboço oferece um inestimável
quadro no interior do qual analisamos o processo concreto de reorganização do
“complexo histórico de condições sociais gerais de produção e relações de exploração”,
há uma tendência de ocultação da ênfase em que essa reorganização é um processo de
luta de classes. Operando nesse nível de abstração, há uma tendência a sugerir que o
desenvolvimento do Estado corresponde, grosso modo, aos requisitos da acumulação de
capital, mas que a análise da maneira pela qual e em que medida esses requisitos
expressam-se e são (ou não são) satisfeitos requereria uma teoria da luta de classes.
Existe talvez uma diferença sutil entre, de um lado, argumentar que a acumulação deve
ser considerada como um processo de luta de classes determinado pela forma e tendente
à crise (e, portanto, que a luta de classes deve ser vista como orientada para e formada
pela luta para acumular), e, de outro, sugerir que a relação entre acumulação e atividade
estatal deve ser compreendida como sendo mediada pela luta de classes. Por mais sutil
que seja essa passagem, as consequências podem ser marcantes: enquanto a abordagem
anterior levaria a uma análise da separação e inter-relação entre a economia e a política
no processo concreto de luta para reestruturar o capital, a abordagem posterior sugere a
necessidade de se analisar o “vínculo perdido” (político) entre o processo de
acumulação (econômico) e a atividade do Estado. Nos parece mais proveitoso seguir o
primeiro caminho, a análise da acumulação como luta de classes22.

22
Hirsch anuncia que estaria, até certo ponto, seguindo o segundo caminho (a análise do “vínculo
perdido”) nas últimas páginas de seu ensaio e em seu trabalho mais recente: (ver, 1976).
Nesta perspectiva é oportuna a insistência de Heide Gerstenberger em sua contribuição
sobre a importância de uma investigação histórica concreta em qualquer análise sobre o
desenvolvimento do Estado. Essa ênfase na análise histórica do curso concreto da luta
de classes em determinadas sociedades revela por suposto a especificidade do
desenvolvimento de determinados Estados e evidencia o problema de até que ponto se
pode falar do Estado capitalista. Ao mesmo tempo, no entanto, os efeitos
universalizantes e socializantes do modo de produção capitalista implicam que uma
teoria geral do Estado capitalista é tanto possível como necessária. A dominação global
do modo de produção capitalista implica que, em contraposição aos modos de produção
anteriores, não há apenas uma multiplicidade de Estados particulares cujas formas
refletem e resultam da história particular de cada sociedade. A generalização das
relações de produção capitalistas produz uma generalização das condições de
reprodução dessas relações. Além disso, como aponta Gerstenberger, a dominação
crescente e a extensão do modo de produção capitalista gera uma convergência na
estrutura e nas características dos Estados individuais. Entretanto, uma teoria geral do
Estado capitalista deve basear-se nas formas particulares assumidas pela acumulação de
capital, e na atual história da luta de classes através da qual o modo de produção
capitalista desenvolveu-se e expandiu-se em escala global. Nesse sentido, Claudia von
Braunmühl enfatiza em sua contribuição a importância de relacionar o econômico e o
político não apenas no contexto do Estado-nação, como também no contexto
internacional. Sob esta perspectiva, a própria fragmentação do capital em capitais
nacionais e da organização política do capital internacional em Estados-nação (assim
como suas relações no sistema imperialista), deve ser estabelecida a partir do
crescimento histórico efetivo da produção capitalista, das condições históricas
específicas que consagraram os capitais nacionais e suas relações com o mercado
mundial. Como ela argumenta, não apenas a existência, mas também a forma particular
e histórica de desenvolvimento de cada Estado-nação apenas podem ser compreendidas
adequadamente através de uma análise da relação entre o Estado, o capital nacional e o
desenvolvimento internacional das contradições da acumulação capitalista.
Os últimos três colaboradores mencionados nesse livro (Hirsch, Gerstenberger e
Braunmühl) levantam de diferentes maneiras a questão referente aos limites da análise
da forma do Estado. Levantar o problema dos limites da abordagem é, no entanto, bem
diferente de questionar o valor da abordagem. O objetivo do debate da “derivação do
Estado” tem sido chegar a um entendimento do Estado como uma forma particular de
relações sociais no capitalismo e dos impulsos e limitações da atividade estatal que
resultam dessa forma. Sugerimos anteriormente que, na discussão marxista do Estado na
Grã-Bretanha, existe uma tendência subjacente a contrapor a “lógica do capital” à “luta
de classes” como pontos de partida alternativos para uma análise do Estado.
Argumentamos que contrapor essas duas abordagens é criar uma falsa polaridade: a
“lógica do capital” é nada mais que a expressão da forma básica da luta de classes na
sociedade capitalista. É equivocado pensar que o desenvolvimento social pode ser
compreendido através de uma análise da luta de classes que seja indiferente à questão da
forma da luta de classes: tal análise não pode fazer jus à natureza das limitações e dos
impulsos que emergem dessa forma. Essa indiferença ao problema da forma nos parece
ser a essência do reformismo, e também o ponto central de nossa crítica a Poulantzas,
Miliband, Gramsci e os neo-ricardianos. Entretanto, se uma análise indiferente em
relação à forma for rejeitada, é igualmente equivocado pensar que a análise do Estado
pode ser reduzida à análise de sua forma, a uma mera “lógica do capital”. É bem
possível que às vezes - especialmente nas contribuições iniciais ao debate alemão - se
tenha esperado demais da análise da forma. O problema, no entanto, é analisar o
desenvolvimento social não simplesmente em termos da “forma” da luta de classes
(posto que isto tende a levar a uma concepção extremamente determinista do
desenvolvimento social), nem exclusivamente em termos de seu “conteúdo”, mas sim
entender que o desenvolvimento social é determinado por uma interação dialética entre
forma e conteúdo:

De acordo com o método dialético utilizado por Marx, o “conteúdo” e a “forma”


que origina existem em interação constante e luta constante uma com a outra, da
qual resulta, por um lado, no abandono das formas e, por outro lado, na
transformação dos conteúdos (ROSDOLSKY, 1974, p. 66-7, tradução minha)

Esse é o modo como devemos compreender o grande avanço teórico realizado pelo
debate alemão. Não é que a “análise da forma” represente algum “caminho real para a
ciência”, segundo o qual não se encontrarão obstáculos para uma compreensão do
político: se o leitor eventualmente considerar o debate muito formal e muito abstrato,
essas críticas serão parcialmente justificáveis. O maior avanço da abordagem teórica da
“análise da forma” não é ter resolvido todos os problemas da teoria marxista do Estado,
mas ter estabelecido o pré-requisito essencial para uma compreensão do Estado
baseado na relação dialética entre forma e conteúdo da luta de classes. Somente a
análise da forma não é suficiente, mas enquanto o problema da forma for ignorado, uma
compreensão adequada do Estado é impossível.
É muito importante que os colaboradores do debate da “derivação do Estado”
compreendam o avanço teórico como resultante desse debate e que uma compreensão
dos seus limites não os conduza a um ceticismo quanto ao seu valor. Conforme os
limites da análise da forma tornaram-se claros, houve sinais de desilusão com relação à
abordagem teórica da “derivação do Estado” formal em alguns dos trabalhos mais
recentes23. Ao invés de avançar teoricamente analisando as lutas de classes efetivas que
mediaram e definiram o desenvolvimento das contradições do capital como relação,
houve uma tentação de esquivar-se desse processo utilizando as categorias políticas dos
teóricos políticos marxistas como Gramsci e Poulantzas. Sem pretender subestimar o
valor dos trabalhos desses teóricos, nos parece, no entanto, que suas análises não podem
simplesmente serem “anexadas” à abordagem teórica da derivação do Estado, e sim que
necessitariam de uma cuidadosa reelaboração à luz dos avanços teóricos alcançados.
Conforme o debate da “derivação do Estado” passa para um novo patamar no qual,
parcialmente como resultado de acontecimentos políticos na Alemanha Ocidental,
parcialmente como resultado da dinâmica do debate em si, maior atenção está sendo
dada à análise da conjuntura política atual, é importante que as análises “concretas”
sejam compreendidas não como um abandono do debate da derivação do Estado, mas
como um desenvolvimento desse debate, que o conteúdo da luta de classes seja sempre
analisado em sua relação de tensão dialética com sua forma.
O objetivo desta introdução não é condensar ou fazer jus aos colaboradores individuais
deste livro: essa tarefa, em qualquer um dos casos, seria impossível dentro dos limites
de uma curta introdução. O objetivo, antes de mais nada, foi situar o debate aqui
apresentado, esboçar alguns dos temas e problemas que surgiram e, sobretudo, explicar
por que consideramos que os seguintes artigos representam um grande avanço no árduo
caminho em direção a uma teoria materialista do Estado.

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