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E

m 1991, o Sepultura abriu o dia de metal da


segunda edição do Rock in Rio. Chamada na última
hora, a banda, aparentemente, não foi levada muito
a sério pelos promotores do show. Com um sistema
de som terrível, sob um sol escaldante de janeiro, esperava-se
uma apresentação sem grandes pretensões. Mas, contrariando
todas as previsões, Max, Igor, Andreas e Paulo detonaram no
palco e levaram a plateia ao delírio. Um dos pontos marcantes
do show foi a reação dos fãs após o término da apresentação:
a atração seguinte foi recebida com garrafadas e aos gritos de
“Sepultura! Sepultura!”.

Esse feito, agora lendário, acordou o país para uma pequena


banda de Belo Horizonte que desde 1984 vinha lutando para
deixar sua marca. Contra todas as probabilidades, o Sepultura
conseguiu projeção internacional, e hoje seu nome é
lembrado entre os principais do rock e do metal, ao lado de
Metallica, Slayer e Pantera.

Relentless apresenta a história da banda: o seu começo, tendo


como pano de fundo a ditadura militar e a censura; os
inocentes anos 1980; a turbulência que a banda enfrentou na
década seguinte com a saída de dois de seus fundadores; e
como ela se reinventou para continuar criando sucessos até
hoje. Relentless, acima de tudo, celebra a persistência
inabalável do Sepultura diante das adversidades – que não
foram poucas…

Jason Korolenko, autor do romance The day I left, é mestre em


escrita de cção pela Southern New Hampshire University.
Grande fã de heavy metal, Korolenko resolveu unir suas duas
paixões – Sepultura e livros –, e dessa união surgiu Relentless.
Saiba mais sobre o autor em www.jasonkorolenko.com.
A HISTÓRIA DA BANDA QUE LEVOU O BRASIL PARA
O MUNDO E TROUXE O MUNDO DE VOLTA PARA O
BRASIL.

Em uma época em que fazer música poderia levar para a


cadeia, quatro jovens de Belo Horizonte ousaram se aventurar
por um ritmo pouco explorado no Brasil: o metal. Com
músicas polêmicas – “Antichrist” e “Bestial devastation” – e
letras em inglês, o Sepultura começou, nos anos 1980, a trilhar
um caminho de sucesso que o alçaria ao estrelato
internacional. Em Relentless, o americano Jason Korolenko
narra a história do grupo criado originalmente por Max, Igor,
Jairo e Paulo: desde seu começo, quando o país passava por
grandes transformações políticas, até os dias de hoje, com
seus mais de 30 anos de carreira.

“Uma pesquisa fantástica sobre o Brasil e seu contexto político.


Além de detalhes sobre as músicas, o estúdio… Incrível.”

Andreas Kisser

benvira.com.br
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William Rezende Paiva

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Nathalia Setrini Luiz

Suporte editorial Juliana Bojczuk

Produção grá ca Liliane Cristina Gomes

Tradução do posfácio Marcelo Hauck

Preparação Thais Rocha / Tikinet


Cláudia Emi

Revisão Paulo Ortiz / Tikinet


Amanda Coca / Tikinet
Laila Guilherme

Diagramação Aline Maya / Tikinet

Capa Carlos Renato


William Rezende Paiva

Adaptação para eBook Hondana

ISBN 978-85-8240-110-1

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

Korolenko, Jason
Relentless: 30 anos de Sepultura / Jason Korolenko; tradução Roberto Candido
Francisco. - 1. ed. - São Paulo: Benvirá, 2016.
328 p.: il.; 23 cm.

ISBN 978-85-8240-110-1
Título original: Relentless: the book of Sepultura

1. Sepultura (Conjunto musical). 2. Músicos de rock – Brasil – Biogra a. I. Título.

CDD 782.420981
14-08176 CDU
78.067.26(81)

Traduzido de Relentless: the book of Sepultura, de Jason Korolenko

Copyright © 2014 Jason Korolenko

Todos os direitos reservados à Benvirá,


um selo da Saraiva Educação.
www.benvira.com.br

1a edição, 2016

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma
sem a prévia autorização da Editora Saraiva. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei no 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

547.317.001.001
Para todos os fãs do Sepultura.
SUMÁRIO
Agradecimentos

Prefácio

Apresentação

1 Mórbida devastação brasileira

2 O outro lado do espelho

3 Acima do resto

4 Ascensão brutal

5 Toda forma de caos

6 Raízes

7 Raízes sangrentas

8 Contra tudo e todos

9 O nascimento de uma nova nação

10 Propaganda negra

11 Atravessar o inferno e voltar

12 Mecânica

13 Um momento no tempo

14 A cabeça, o coração, o futuro

Posfácio

Créditos de imagens
Image

QUANDO COMECEI ESTE PROJETO, alguns anos atrás, não imaginei que se
tornaria este monstro. Desde o início, minha intenção era fazer um projeto
com paixão para homenagear uma banda que adoro desde que roubei a fita
Under Siege: Live in Barcelona de um amigo, lá em 1992. Afinal, já tinha
escrito quatro livros e sabia tudo o que havia para saber sobre a banda (ou
pelo menos achava que sabia), então… era para ser fácil, né?

Nem um pouco.

Talvez tenha sido o meu desafio mais difícil até hoje. Mas foi de longe o
mais gratificante. A falta de sono, o estresse de perder repetidamente os
prazos autoimpostos, os milhares de dólares gastos com café e outras
bebidas cafeinadas, tudo valeu a pena. Estou tão grato pelos amigos que fiz
e às pessoas com quem conversei, especialmente no último ano; fãs,
membros da banda, familiares. Quase todos com quem entrei em contato
estavam mais do que dispostos a ajudar de todo modo possível, e
simplesmente não há palavras suficientes em qualquer língua para
expressar minha gratidão.

Acima de tudo, no entanto, tenho que agradecer a Lourdinha Novo por seu
amor e encorajamento inesgotáveis (mesmo quando eu estava rabugento ou
estressado ou cansado ou avoado ou…), pelas horas incontáveis que ela
passou traduzindo entrevistas ou caçando velhos artigos brasileiros, dando
sua opinião sobre meu trabalho, escutando pacientemente eu lhe contar a
mesma história cem vezes, insistindo para que eu permanecesse imparcial
mesmo quando queria muito externar minhas opiniões pessoais. Sem ela,
este livro não existiria. Te amo, babyzinha.

Conhecer mais a fundo esta história e as pessoas envolvidas nela, ir mais a


fundo na música que já me era tão familiar deixou-me com estima e
respeito ainda maiores por tudo o que essa banda fez e por tudo o que
continua fazendo. Ao Sepultura como um todo: obrigado. Vocês detonam e
são nada menos que uma inspiração. Enquanto vocês continuarem a fazer
música, eu vou continuar batendo cabeça na frente do palco.
Tantas pessoas me ajudaram a tornar esta pequena ideia – uma biografia
que cobre 30 anos – realidade, e a cada um deles eu devo muito. Minha
agente e empresária não oficial Monika Bass Cavalera; Andreas, Patricia e
a família Kisser; Derrick Green; Jairo Guedz, Paulo Xisto, Jean Dolabella,
Eloy Casagrande e toda a Sepulfamília pelo apoio, sinceridade e aprovação
desde o primeiro dia; o Grande Antonio “Toninho” Coelho, Djalma
“Thrashão” Agra, Tuka Quinelli e Eric de Haas pelas memórias; Emanuel
Leite Jr., do Diário de Pernambuco, pela assistência com a tradução e mais
ajuda do que eu jamais poderia retribuir; Nicolás Jara Miranda, por
gentilmente fornecer um vasto tesouro em materiais de entrevistas; Sílvio
“Bibika” Gomes e André Barcinski, Joan KSK, Carlos Inciarte, Nick
French, Milton Bratfisch Junior, Sami Saarela, Douglas Cirilo, Derek
Novaes, Felipe Sanchez, Philipe Jacquemin, SOBFC (Sepultura Official
Brazilian Fan Club), os amigos do Sepularmy e Sepultribe pelo mundo,
pela ajuda e dedicação apaixonada; Rodrigo Bill Abecia; Alexey
Kurkdjian; Phil Demmel; Johnny Kelly; Kymm Britton e Jason Newsted;
Roy Z Ramirez; Nestor Junior; Rogério Alves, Débora Guterman, Paula
Carvalho e todos da Editora Saraiva/Benvirá; Roberto Candido Francisco;
Filip Karpow e todos da In Rock, Polônia; Borivoj Krgin e
Blabbermouth.net; Marcelo Coleto, do Rock Noize no Brasil; Nuno Costa,
da SoundZone Magazine em Portugal; RollingStone Indonésia;
RollingStone Brasil; Nacho Belgrande e todos do Whiplash.net; Manifesto
Bar; minha família, claro…

E para alguém que eu tenha esquecido, vou adicionar você na edição


revista que sairá quando a banda celebrar seu cinquentenário daqui a vinte
anos.
BRASIL, 1983. NADA, ABSOLUTAMENTE nada acontecia em nossa cena
musical que fosse realmente digno de destaque, mas eis que lá nas
bandas de Belo Horizonte, Minas Gerais, algo estava prestes a
aparecer para mudar isso para sempre.
Em São Paulo, tudo era lindo e maravilhoso, tínhamos uma cena
cheia de metaleiros curtindo as mais diversas bandas de heavy metal
de outros países. Começando a fazer a festa por aqui, quem reinava
na época eram Iron Maiden, Judas Priest, Saxon, Black Sabbath etc.
Vindos dos Estados Unidos, estavam começando a todo vapor
Metallica, Anthrax, Slayer, Exodus e tantas outras, mas por aqui
nada acontecia. Tínhamos apenas umas bandas que só queriam se
divertir tocando músicas próprias e fazendo covers malfeitos de suas
bandas favoritas.
Alguns empresários do meio fonográ co começavam a perceber
isso, e então passaram a surgir algumas coletâneas trazendo
destaques da cena paulista. Logo também surgiriam coletâneas no
Rio de Janeiro, Minas Gerais etc., todas focando suas atenções
apenas nas bandas locais.
As coletâneas que mais ganharam destaque entre os metaleiros
foram as famosas SP Metal 1 e 2. Ambas traziam ótimas bandas,
porém poucas ganharam seu merecido lugar ao sol do heavy/thrash
metal na época. Entre elas, o Korzus e o Vírus foram as bandas mais
populares, mas mesmo assim nada de tão glorioso acontecia ainda.
1984. Lá em Minas, as coisas estavam para acontecer de verdade.
Muito se falava de duas bandas que mudariam as coisas
verdadeiramente e estavam ganhando espaço no coração dos
sofridos fãs de heavy metal brasileiros: do Rio de Janeiro vinha a
Dorsal Atlântica e, de Belo Horizonte, uns moleques com aparência
de loucos chegavam com força total, o Sepultura. O nome por si já
chamava a atenção, por ser bizarro demais. Sepultura!? “Porra,
foda-se!”, pensamos, “Se esse nome é diferente, quem sabe o som
também não é?”
No nal da década de 1970, início dos anos 1980, existia uma
febre entre os headbangers do Brasil: era a famosa ta cassete, item
obrigatório para quem queria estar atualizado na cena. Comprar
vinil era para poucos. Sendo assim, ouvíamos tudo o que saía no
estilo, mas o que mais procurávamos era algo que soasse brutal e
podre. Havia muitas bandas tentando agradar, mas éramos exigentes
demais! Não demorou muito. De tanto procurar, achamos uma
gravadora da época, a famosa Cogumelo Records, que lançaria um
split album que mudaria a história para sempre.
Duas bandas que participaram dessa edição seriam a resposta
de nitiva a todos os que sempre ansiaram por mudanças: de um
lado, tinha Overdose, banda parecida com similares internacionais;
do outro lado, o Sepultura. Essa, sim, fazendo o som que nos faltava
até então. Em pouco tempo, todo o Brasil sabia do diferencial dos
moleques endiabrados. Várias prensagens desse split foram
relançadas; nalmente, as coisas estavam mudando para melhor. Em
pouco tempo, cópias e mais cópias eram esgotadas nas prateleiras de
lojas especializadas – a mais famosa era a histórica loja Woodstock
Discos, no centrão de nossa amada “Sampa”. De repente, o
Sepultura já era a conversa principal em rodas de bares e outros
eventos. Rapidamente, os garotos estavam nos palcos do Brasil
detonando tudo.
De 1985 a 1987, o Sepultura não parou. Tocou em várias
cidades, nos mais diferentes buracos, estrutura zero, mas a pegada
dos caras era tanta que o show era devastador. Com os discos
Morbid Visions e Schizophrenia, eles deram saltos mais longos,
tocando inclusive em lugares nos quais sequer havia a possibilidade
de o metal existir; no entanto, contrariando todas as lógicas,
encontravam os famosos metaleiros em qualquer lugar do mundo. O
Sepultura tinha de estar onde os fãs estivessem; sempre foi assim e
continua sendo até hoje!
Após esse início avassalador, o Sepultura virou uma realidade
mundial, e essa história vocês vão acompanhar durante a leitura de
Relentless.
Em 1990, foi o cialmente fundado o Sepultura O cial Brazilian
Fan Club (SOBFC). Nesses dias, que há muito caram para trás,
nosso glorioso Sepultura estava rodeado de “muy amigos”, mas a
real era que ainda não víamos ninguém se declarando a favor de
realizar tarefas para dar continuidade aos trabalhos de suporte à
banda pelas terras brasileiras e estrangeiras. Foi aí que resolvemos
conversar sobre nossas ideias com o Max e o Igor, depois com o
Paulo e o Andreas. Assim, depois de vários anos de dedicação à
banda, era chegada a hora de fazer o que muitos sequer tinham
pensado. Batemos o martelo, e as coisas começaram a se realizar.
Com a permissão da banda, com muita honra, orgulho e respeito,
hasteamos a bandeira do Sepultura em uma base na Galeria do
Rock, no centro de São Paulo, o que foi crucial para mostrar nossa
admiração e guiar seus fãs por todo o mundo.
Após essa página da história ser aberta, começou de verdade a
nossa saga em prol da banda, pois o escudo estava erguido para
captar todas as energias positivas e negativas que fossem
direcionadas a ela. Enfrentamos muitas discórdias – e por vezes
coisas que nem posso contar –, pois o Sepultura sempre foi amado e
odiado por muitos fãs, os quais, por motivos fúteis e de caráter
pessoal, descarregavam sua ira em nós, também fãs; então,
motivados por puro orgulho, resolvemos ter uma base para ressaltar
a arte da banda. Diversas vezes tivemos de segurar as más vibrações
que alguns invejosos mandavam sem piedade para a banda, e é por
isso que, por muitos anos, fomos um elo entre o Sepultura e seus fãs.
Apesar de tudo parecer às mil maravilhas, por todos esses anos
enfrentamos muitos obstáculos, lutamos pela banda, zemos as
coisas certas para que o Sepultura sempre estivesse em evidência.
Este sempre foi nosso propósito: lutar pela banda, defendê-la.
Quando o Sepultura foi eliminado do cast do festival Hollywood
Rock, de imediato começamos uma campanha para que fosse
recolocado na programação – é óbvio que conseguimos, graças à
dedicação que todos os fãs tinham pela banda.
Éramos incansáveis! Por muitos anos, eu, Sergio Ca e e Airton
Soares zemos de tudo para manter a chama do Sepultura acesa.
Chegamos a sacri car nossos recursos pessoais para não deixar a
peteca cair. Só posso dizer que tudo valeu e continua valendo a
pena, e isso, todos os que acompanham o Sepultura desde o início
sabem.
Tivemos sempre apoio de muitos familiares, amigos e fãs do
Sepultura, e por isso vou citar alguns membros lendários do clube:
Vânia Cavalera, Simão Bass (in memoriam), família Bass, Alberto
Turco Loco e família Hiar, senhor Paulo (in memoriam), dona Odete,
famílias Xisto e Pinto, senhor Mário, dona Olga e família
Perissinotto, senhor Siegfried, dona Anna Maria, família Kisser,
Djalma Thrashão, Tom, Cição, André Sapo, Tuka Quinelli, Japoneis,
Kazu Nishimori, Gil Cubas, Fabrício from Hell, Waldo Billy, Pancho,
entre tantos outros da gigantesca Sepulnation que ajudaram em
diversas oportunidades.
Nossas conquistas e vitórias foram concretizadas graças à nossa
crença em uma banda que, por mais que critiquem, fez e faz a coisa
mais honesta sempre: permanece correta e el a suas várias
gerações de fãs – e esse espírito continua até os dias de hoje!!!
Por essa razão, continuo conclamando:
AVANTE, SEPULNATION!
Tenham uma boa leitura!

Antonio Vicente Coelho (Toninho)


o ANO DE 1996 foi bom para o Sepultura.
Foi mesmo?
A popularidade da música heavy vem em ondas, e quando esse
estilo de música visceral, agressivo, não é o “da moda”, ele passa a
ser bem underground. Muitos fãs até argumentariam que esse é
exatamente seu espaço. No início dos anos 1980, por exemplo,
bandas como Venom, Metallica e Slayer nem apareciam no radar do
mainstream. Aqueles adolescentes cabeludos, revoltados,
recrutavam seu público um a um, de forma sangrenta, estimulando
o moshing[1] em casas de show minúsculas, decrépitas, e trocando
tas com garotos no mundo todo que ansiavam por algo mais real
do que a merda que a MTV tentava vender como “metal” na época.
Na primeira metade dos anos 1990, o movimento grunge havia
invadido a cena musical, produzindo um exército de clones trajando
camisa de anela. Em 1996, depressão estava na moda. Botas Dr.
Martens estavam na moda.
O metal não estava na moda.
Mas algumas bandas romperam as barreiras e formaram uma
espécie de “elite” do metal. O Metallica, logicamente, foi a primeira,
abrindo caminho para as outras três das Quatro Grandes: Megadeth
e, numa escala menor, Anthrax e Slayer. O Pantera também
conseguiu, e sem comprometer nada da brutalidade de sua música.
Fevereiro foi o mês de lançamento do revolucionário disco Roots,
do Sepultura, um álbum que integrava de maneira expressiva a
música e os ritmos do Brasil, país onde a banda nasceu. O som deles
evoluiu do black metal, do death metal e do thrash dos discos
anteriores para algo mais lento e meloso, em tons mais baixos, com
um groove que fazia o ouvinte sentir vontade de, além de participar
de um bate-cabeça, balançar os quadris. Em Roots, eles tiveram a
colaboração de astros, como o percursionista brasileiro Carlinhos
Brown, Jonathan Davis (do Korn) e Mike Patton (do Faith No More).
Até a tribo indígena dos xavantes, do Norte do Brasil, participou.
O álbum estreou na posição 27 do ranking da Billboard norte-
americana, uma conquista incrível para uma banda como o
Sepultura naquela época, e chegou a vender mais de 2 milhões de
cópias fora do país. Ficou no topo dos rankings de “Melhores do
Ano” em todo o mundo. Recebeu críticas entusiasmadas do New
York Times e do Los Angeles Times, dois jornais in uentes nos
Estados Unidos. A mistura inovadora de metal e ritmos brasileiros
motivou a MTV (em um período em que o M do nome do canal
ainda signi cava Música) a considerá-la “talvez a mais importante
banda de heavy metal dos anos 1990”.
Nada mau para um grupo de jovens brasileiros que, até 1989,
nunca tinham sequer feito um show fora de seu país.
O Sepultura fez uma turnê implacável pelos Estados Unidos,
retornou ao Brasil para uma série triunfante de shows, fez
apresentações em estádios gigantescos em festivais por toda a
Europa e até se aventurou em um concerto em Castle Donington, no
Reino Unido, com apenas três músicos, depois que o vocalista e
cofundador Max Cavalera foi forçado a voltar para Phoenix para o
funeral de seu enteado.
Já não era apenas um fenômeno brasileiro, mas um fenômeno
mundial, tendo levado um pouco de sua terra natal para quase todos
os cantos do planeta.
No entanto, embora tudo parecesse bem quando visto de fora, o
ano de 1996, de modo geral, foi o mais infeliz de toda a gloriosa
carreira da banda. Curtos dez meses depois do lançamento de Roots,
no auge absoluto de sua popularidade – e para surpresa de todos –,
Max deixou a banda que fundara doze anos antes com seu irmão.
De repente, havia uma possibilidade real de a carreira do
Sepultura ser encerrada, bem quando estava prestes a alcançar um
nível incrível de sucesso.
A velha guarda, na velha escola, Caverna. Rio de Janeiro.
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SOMOS PRODUTOS DO CONTEXTO, moldados pelas tradições familiares e


pelas lições daqueles que vieram antes de nós; nosso comportamento e
personalidade são moldados por nossa língua e nossa cultura. Natureza e
cultivo não estão em guerra; em vez disso colaboram, experimentam e
trabalham juntos para desenvolver a parte mais importante de uma pessoa:
os ideais, as crenças e a ética, que penetram muito mais fundo do que esse
órgão tênue que chamamos de pele.

Para entender as pessoas, devemos buscar compreender os ambientes


complexos em que elas são cultivadas. Para entender o Sepultura como
banda, e muitos dos indivíduos que povoam sua história, devemos primeiro
compreender os climas político e econômico do Brasil durante um período
de mudanças devastadoras – a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985 –,
pois foi nesse cenário que a maioria dos membros da banda cresceu.

Também vale notar que a primeira gravação do Sepultura, o bruto e visceral


Bestial Devastation, chegou ao público em 1985, mesmo ano em que o
Brasil retornou à democracia. Mas, antes de explorar essa conexão em
detalhes, devemos nos aprofundar um pouco mais na história do país.

As sementes da ditadura podem ser encontradas já em 1889, quando os


militares deram-se conta do poder que tinham ao derrubar Dom Pedro II e
conduzir a transição do Brasil de um império para uma república. Após
quarenta anos de um apoio minguante, mesmo atuando como o sistema de
freios e contrapesos da república, eles voltariam a exercer sua força durante
a Revolução de 1930.

Em 1929, uma depressão global causou o colapso de diversas economias,


mesmo as mais fortes. O café, o mais lucrativo produto de exportação
brasileiro, sofreu uma queda severa na demanda, e o então presidente
Washington Luís lutou para estabilizar os preços, em vez de diminuí-los,
além de se recusar a alterar as políticas existentes, ou criar novas, a fim de
combater a depressão. Como consequência, a dívida nacional assumiu
proporções absurdas.
A Revolução de 1930 foi, em parte, uma reação a essa atitude de laissez-
faire (não intervenção), mas também uma resposta à crescente negligência
do governo em relação aos militares. Talvez tão importantes quanto isso
tenham sido os eventos que ocorreram após as eleições daquele ano. Júlio
Prestes, o candidato oficial do governo para substituir o presidente
Washington Luís, ganhou facilmente a eleição contra seu oponente Getúlio
Vargas. Mas Vargas tinha o apoio dos militares, que foram muito úteis
quando o vice, João Pessoa, foi assassinado, antes mesmo que Prestes
pudesse sequer assumir o cargo. Os rebeldes se mobilizaram, forçando
Prestes a renunciar e empossando Vargas como presidente provisório.

Esse governo “provisório” durou dezoito anos.

EM 1937, O EXTROVERTIDO Vargas estabeleceu uma nova constituição que


iniciou a era do Estado Novo. Ele introduziu um período de populismo,
aproximando-se do povo em vez da elite política, e mudou o foco do Brasil
da agricultura para a indústria.

Para alguns, Vargas era ditador e fascista. Para outros, era o Pai do Povo.
Lutou pelos direitos dos trabalhadores, assim como das tribos indígenas
existentes. Não obstante, os princípios centrais de sua constituição, que se
basearam na Itália de Mussolini e na Espanha de Franco, de fato
promoveram o crescimento industrial, mas a grande custo.

Durante o Estado Novo, Vargas alertou a nação para uma trama comunista
que pretendia derrubar seu regime, o que lhe permitiu estender seu
mandato. Em resposta a essa “ameaça”, ele eliminou todos os partidos
políticos e modificou novamente a Constituição, para que tivesse um
controle autoritário explícito.

Na verdade, Vargas inventara toda essa história.

A Segunda Guerra Mundial atraiu o Brasil, tradicionalmente passivo, para


suas garras com o afundamento de navios mercantes por submarinos
alemães e italianos. Mas o envolvimento da nação no conflito foi breve, e,
no final da guerra, Getúlio Vargas foi deposto por seu próprio efetivo.
Numa tentativa de redemocratização, o povo legitimamente o elegeria
presidente alguns anos depois, quando o Brasil estava de volta ao precipício
de uma crise econômica.

Havia muita pressão. Diante de uma dívida externa inimaginável e de


pressão internacional contra suas ideias cada vez mais nacionalistas, Vargas
suicidou-se em 1954.

Como consequência do suicídio de Vargas e da transferência da capital do


país, do Rio litorâneo para Brasília, uma cidade no interior, o volume de
dinheiro em circulação cresceu repentina e drasticamente, numa tentativa
de salvar indústrias falimentares. O resultado foi um colapso financeiro
inesperado. A dívida externa dobrou, e o custo de vida triplicou.

No início dos anos 1960, o Brasil era governado por duas facções
concorrentes: o presidente Jânio Quadros, do partido democrata, e seu
opositor, o vice-presidente pró-Vargas João Goulart. Mas Quadros não teve
chance; a maioria do Congresso ainda estava apaixonada por Getúlio
Vargas e, assim, por inércia, apoiava Goulart. Com Quadros ignorando as
questões econômicas e a inflação, fazendo o que pareciam ser conexões
comunistas em suas relações internacionais, ele acabou sendo levado à
renúncia.

Os militares tentaram evitar a presidência iminente de João Goulart, antes


líder do Partido Trabalhista Brasileiro, um homem que temiam que fosse
radical e liberal demais para liderar a nação. Surgiram tensões entre o
Congresso e os direitistas conservadores, e por fim Goulart tornou-se
presidente, apesar de uma tentativa, de ambos os lados, de entrar em acordo
e dar a Goulart menos poderes.

As forças militares ficaram de prontidão.

Quando assumiu, a principal preocupação de Goulart era reconstruir a


classe trabalhadora por meio de um sistema de reformas. Ele apoiou a
formação de sindicatos e aumentos de salários para trabalhadores rurais no
Nordeste, mas essas revoluções camponesas enfureceram os fazendeiros,
cuja maioria estava alinhada com a direita conservadora. As tentativas de
Goulart de fazer uma reconstrução econômica não conseguiram limitar a
inflação; na verdade, tiveram o efeito oposto, levando a nação à pior
recessão em sua história até então.

A situação atingiu seu ponto culminante em 1964.

Temendo uma espécie de retaliação drástica por parte das lideranças


militares, Goulart apelou primeiro para o Congresso e, então, diretamente
ao povo para expandir seus poderes. Mas apelar ao povo pode ter sido o
maior erro da presidência de Goulart. Já apoiados pelos Estados Unidos,
que estavam em meio a sua própria “febre vermelha”, em uma Guerra Fria
com a União Soviética, os militares brasileiros acusaram o presidente e seu
Congresso de comunismo. Eles se sublevaram e forçaram Goulart a se
exilar, iniciando assim um domínio de mais de vinte anos que traria
impactos inimagináveis para o país.

Entre as prioridades de Castelo Branco, o recém-empossado presidente


militar, estava capturar aqueles que ele considerava comunistas, dissidentes
políticos que falavam contra seu sistema, e fazê-los desaparecer, fosse por
prisão ou exílio. Ele retirou os políticos da administração pró-Goulart,
substituindo todos. Determinou que a polícia encontrasse – e confiscasse –
literatura e propaganda comunista ou qualquer coisa que fosse considerada
subversiva. Bibliotecas escolares eram esquadrinhadas, casas de militantes
de esquerda eram invadidas, sindicatos eram levados à clandestinidade,
quando não eram totalmente dissolvidos.

O que se seguiu foi uma porta giratória de líderes autoritários que,


primeiro, reescreveram a Constituição para permitir-lhes seu governo
despótico e, então, criaram sua própria legislação. A implantação do Ato
Institucional no 5 (AI-5), em 1968, produziu a mudança mais dramática.
Entre outras permissões arrebatadoras, deu ao regime o direito legal de
prender dissidentes políticos sem lhes permitir habeas corpus – o direito a
um julgamento legal – e esboçou um código estrito de censura para todo e
qualquer meio de comunicação de massa.

Quando se considera a história e a cultura no Brasil, é praticamente


impossível atenuar os efeitos do AI-5. Por quase dez anos, a Divisão de
Censura de Diversões Públicas (DCDP) lutou para eliminar ou censurar
com rigor todas as formas de protesto – mesmo protestos sugeridos– em
filmes, peças de teatro, programas de TV e música. Os músicos, por
exemplo, eram obrigados a submeter suas obras à DCDP para aprovação
antes de lançá-las. Se fossem consideradas críticas ao regime de alguma
forma, o lançamento era proibido, e os compositores, exilados.

A atenção dispensada às músicas de protesto levou os artistas à


clandestinidade e fez surgir um tipo específico de composição. Camufladas
por metáforas e cantadas ao embalo de ritmos nacionalistas como o samba
e a bossa nova, essas músicas atraíam o povo em diferentes níveis.
Algumas metáforas eram decodificadas pela DCDP, e tesouros nacionais
como Gilberto Gil e Caetano Veloso foram banidos por causa de suas
críticas pouco veladas. As músicas que passaram pelo crivo dos censores
ajudaram no surgimento da MPB.

Em casos extremos, sob o pretexto do plano de “Segurança e


Desenvolvimento”, os dissidentes políticos que não eram exilados
acabavam presos, torturados e, por vezes, executados.

Se o Sepultura tivesse existido na época, compondo canções abertamente


mordazes e de crítica política como “Dictatorshit” [Ditadura de Merda] e
“Refuse/Resist” [Recuse/Resista], seus membros, na melhor das hipóteses,
teriam sido exilados; na pior, presos e torturados.

NO AUGE DA REPRESSÃO, nasceram Massimiliano Antônio Cavalera


(conhecido como Massi ou Max) e seu irmão Igor Graziano: Max em 4 de
agosto de 1969, e Igor em 4 de setembro do ano seguinte. Seus pais,
Graziano e Vânia, moravam no bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde
o salário de Graziano na Embaixada Italiana era mais do que suficiente para
manter a família sem dificuldades financeiras. Ainda assim, Vânia iria até
Belo Horizonte, sua cidade natal, para dar à luz cada menino, já que tanto
sua mãe quanto o antigo médico da família trabalhavam em um hospital de
lá. Poucos dias depois do nascimento dos meninos, mãe e filhos
retornariam para a casa em São Paulo.

A vida da família Cavalera era tranquila, com Vânia – que tinha saído de
casa jovem para ser modelo no Rio e em São Paulo – apoiando seus garotos
incondicionalmente em tudo o que escolhiam fazer. E Graziano, com sua
paixão por música de todos os tipos, de MPB e ópera italiana tradicional a
Black Sabbath e Led Zeppelin, garantia que o apartamento estivesse
sempre tomado por música.

Apesar de, na época, ainda estar sob severa repressão militar, o país era
uma espécie de dicotomia, em meio à experiência do “Milagre Brasileiro”.
O nacionalismo quase fascista fomentado por Getúlio Vargas transformara-
se em um tipo de orgulho patriota após o triunfo da seleção na Copa do
Mundo de 1970. Liderado por lendas como Pelé e Carlos Alberto, o time
recuperou o título quatro anos depois da decepcionante eliminação na
primeira rodada na Inglaterra, tornando-se a primeira seleção tricampeã.

A economia, pela primeira vez em anos, também prosperava, graças em


grande parte a uma política estatal em larga escala, chamada de
Industrialização por Substituição de Importações. Veículos ostentavam com
orgulho adesivos com o lema “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Havia um clima
de esperança e mudança no ar, ainda que, paradoxalmente, a ditadura
estivesse acirrando seu domínio.

COM O SAMBA E outros ritmos de origem africana correndo nas veias da


música brasileira, Igor começou a se interessar por bateria aos 6 anos. A
caixa foi seu primeiro amor, e, sempre que Graziano levava os garotos ao
Palestra Itália para torcer pelo Palmeiras, o “time da família”, Igor levava
sua caixa para ficar batucando com a torcida.

Ainda longe de ser um fã de rock, o jovem passava horas tocando samba


com amigos, intoxicado por ritmos que pulsavam como um coração
acelerado. Com o crescimento do seu desejo de aprender mais sobre o
instrumento, Igor pediu ao pai para inscrevê-lo em uma escola de bateria.
Mas ele não foi longe; desinteressado e desmotivado pela estrutura e pela
rigidez do treinamento, acabou desistindo do curso.

Na infância, os irmãos Cavalera estavam sempre juntos, embora brigas


acontecessem com frequência. Em um incidente especialmente memorável,
Igor quebrou um dente de Max depois de ele esguichar suco de limão nos
olhos do irmão mais novo. Mas criança é criança, e os desentendimentos
desapareciam tão rápido quanto começavam.
Em 1979, a família Cavalera se preparava para mudar para a Itália.
Graziano havia sido transferido para Roma, e os ajustes para a nova vida já
estavam sendo feitos quando ele sofreu um ataque cardíaco repentino e
fatal. Os garotos, Max com 10 anos e Igor com 9, assim como sua irmã
caçula Kira, estavam no carro com ele quando morreu.

Vânia, mesmo devastada e em choque, seguiu trabalhando em São Paulo


por mais alguns anos depois da morte de Graziano. Recusava-se a ceder ao
sofrimento, entendendo que os garotos precisavam dela agora mais do que
nunca. O fardo financeiro decorrente da perda do salário de Graziano
acabou afetando a família, forçando todos a voltar para Belo Horizonte,
onde passaram a morar com a mãe de Vânia, na modesta vizinhança de
Santa Tereza.

Mas não antes de Max e Igor irem a um show em São Paulo que mudaria
sua vida para sempre.

O AI-5 havia sido revisto alguns anos antes da morte de Graziano, o que
fez muitos dos músicos exilados retornar a sua pátria e cada vez mais
atrações internacionais incluir São Paulo e Rio de Janeiro em seu itinerário.
Uma dessas atrações foi o Queen, que se apresentou por duas noites
seguidas no Estádio do Morumbi em 1981, na turnê do álbum The Game.

Os irmãos Cavalera foram com um primo e ficaram maravilhados com o


espetáculo. Igor viu e ouviu Roger Taylor, e soube imediatamente o que
queria fazer de sua vida. Esse evento, muito mais do que qualquer outro,
transformou o jovem Igor, um especialista em samba, em baterista de rock.
E Max, que também era fã de música, ainda que não tão intensamente
quanto o irmão, teve um vislumbre de seu futuro como músico.

Max descobriu em um armário um velho violão no qual seu pai tocava


antigas canções tradicionais italianas. Imediatamente começou a brincar,
aprendendo riffs mesmo sem saber como afinar o instrumento, inspirado
pelo profundo amor de seu pai pela música. Max, um fã jovem e
impressionável, depois de saber que Paul Stanley, do Kiss, tocava uma
guitarra que parecia um espelho quebrado, resolveu criar um efeito
semelhante em seu violão. Diz a lenda que ele quebrou um espelho e colou
os pedaços no corpo do violão.
Não funcionou tão bem quanto ele havia planejado.

EM 1982, UMA BANDA do Pará chamada Stress lançou seu disco homônimo
de estreia. A importância desse álbum também não pode ser subestimada,
já que era – e ainda é – considerado por muitos o primeiro álbum de metal
brasileiro. Cantado inteiramente em português, muitas das letras originais
tiveram de ser mudadas, porque, apesar de o AI-5 já não existir, ainda havia
censura. Soando como uma mistura dos primórdios de Iron Maiden, Judas
Priest e Motörhead, o Stress alcançou enorme sucesso entre os jovens fãs
brasileiros cansados de MPB, samba e bossa nova. Esses garotos estavam
irritados, putos com o estado em que se encontrava o país, e ansiavam por
um tipo de música que refletisse essa fúria.

Max e Igor também estavam curtindo aquele som pesado, deixando o


cabelo crescer, usando óculos escuros e camiseta preta, adotando a estética
da cena metal. O vício em Motörhead, Sex Pistols e Black Sabbath logo
funcionou como uma droga inicial, abrindo seus ouvidos para o consumo
de música ainda mais brutal. Mas, naqueles dias, era difícil conseguir
discos em Belo Horizonte. Max voltou de uma viagem a São Paulo – e à
histórica Woodstock Discos – com três vinis que mudariam a vida dos
jovens irmãos: um era um clássico do Iron Maiden, e os outros dois, de
duas novas bandas norte-americanas: Slayer e Metallica.

EM 1983, O INTERESSE dos irmãos por música estava limitado basicamente


a conversas de escola. Max, a princípio, havia demonstrado vontade de
tocar bateria, mas, como na época Igor já era muito melhor, ele mudou seu
foco para a guitarra. Contudo, a banda propriamente dita só foi surgir
mesmo no ano seguinte, quando os irmãos chegaram a um consenso sobre
o nome, depois de saber que já havia uma banda chamada Tropa de
Choque, a primeira escolha dos rapazes.

O nome escolhido foi Sepultura, notoriamente traduzido da faixa “Dancing


On Your Grave”, do Motörhead.

Os irmãos passavam a maior parte do tempo juntos, compondo canções


rudimentares em equipamentos rudimentares. A primeira guitarra de Max,
comprada em uma loja de usados, recebeu o apelido de “Podreira”, pois era
velha, apodrecida e o braço soltava farpas nos dedos. A bateria de Igor era
formada apenas por uma caixa, um surdo e um prato que precisava ser
sustentado com um cabo de vassoura. Logo incluíram seu vizinho Cássio
na guitarra para integrar a primeira formação do Sepultura – não oficial e
incompleta.

Cássio não durou muito tempo na banda. Na verdade, ele assumiu a


guitarra apenas temporariamente, já que Max não sabia tocar muito bem na
época.

Após a saída de Cássio, os irmãos recrutaram um colega de escola chamado


Wagner Lamounier, que queria ser cantor. No entanto, mais do que cantar, o
vocalista tinha de berrar para ser ouvido em meio à música, já que não
tinham dinheiro para comprar um microfone. As limitações inspirariam o
desenvolvimento de um estilo visceral, berrado, que se tornaria a marca
registrada do metal extremo que o Sepultura tocava em seu início.

Roberto UFO (apelido recebido devido à sua obsessão pelos roqueiros


britânicos do UFO) e Roberto “Gato” Raffan, guitarra e baixo,
respectivamente, foram as peças finais da primeira formação completa do
Sepultura.

Os garotos ensaiavam com seriedade na casa de Gato, cujo pai era pastor da
igreja metodista. A casa era de propriedade da igreja, o que a tornava um
local irônico para ensaios, ainda mais depois que o gosto musical dos
garotos começou a pender para bandas de black metal como Venom,
Hellhammer e Celtic Frost e passaram a adotar temas “macabros” em suas
próprias letras. Wagner chegou até a assumir o apelido “Anticristo”.

“A gente encarava toda aquela coisa de satanismo como uma piada”,


contou Igor tempos depois. “Nunca levamos a sério. Era só um jeito de
chocar as pessoas.”

Coisa que eles conseguiram muito bem.

Para aqueles garotos de 14 e 15 anos, que não eram mais crianças, mas
também não propriamente adultos, o black metal (termo cunhado pelo
Venom, que assim nomeou seu álbum clássico de 1982) talvez tenha sido o
identificador estético perfeito. Estudando em um colégio militar com regras
severas e ideais nacionalistas, o Sepultura tinha uma tendência à rebeldia.
O que traz à mente o clássico diálogo com Marlon Brando em O Selvagem,
no qual lhe perguntam What are you rebelling against? [Contra o que você
está se rebelando?], ao que responde de forma insolente, franca e dramática
What have you got? [Quais opções você tem para mim?].

Cada escolha feita pelos garotos naquela época – tocar música barulhenta e
pesada em vez de MPB, cantar sobre Satanás, até mesmo a decisão de
verter suas letras para o inglês – tinha a rebeldia como fundo. É importante,
porém, levar em consideração o ambiente em que haviam crescido. Ainda
no início da adolescência, temiam a polícia e o governo, e esse medo levou-
os a uma espécie de escapismo por meio da música.

Entretanto, segundo quem os conhecia à época, eram extremamente


respeitosos e educados, especialmente Max e Igor, graças à mãe deles,
Vânia.

A revolta que sentiam emergia apenas por meio da música.

O black metal, no aspecto musical, também funcionava para os garotos. O


estilo era rápido, barulhento, desleixado, e, devido à inexperiência, a
música do Sepultura era naturalmente crua.

Outra inspiração para essa idolatria pelo black metal era uma banda do Rio
de Janeiro. A Dorsal Atlântica besuntava os rostos com corpse paint,[1]
semelhante à do Kiss ou do King Diamond, seu figurino era enfeitado com
cruzes invertidas e seus cintos feitos com munição de rifle – além de
compor canções sobre o diabo. Max foi particularmente inspirado pela
Dorsal Atlântica e seu visual. Se eles podiam fazer aquilo em um país como
o Brasil, onde o catolicismo era mais patrimônio hereditário do que
religião, então o Sepultura também podia.

A maquiagem e as cruzes eram banais. Quando Igor viu uma foto do


Destruction usando cintos feitos com munição, ele soube que precisava ser
mais criativo, e por isso decidiram usar pilhas nos cintos durante as sessões
de fotos. De longe, pensaram os garotos, ninguém conseguiria sequer
perceber a diferença. Vânia auxiliou os garotos na criação do visual do
Sepultura, ajudando a rasgar suas calças nos lugares certos e colocando
tachas nas jaquetas.

GATO FOI A PRIMEIRA baixa da formação, saindo depois de uma briga com
Wagner. Sua partida foi um golpe duplo para a banda, pois não apenas
perderam um baixista, mas também o local para ensaiar.

Logo acharam as duas coisas em um mineiro com cabelo comprido e negro


como o de Paul Stanley, por isso apelidado de Paulinho Kiss.

Nascido em 30 de abril de 1969, Paulo Xisto Pinto Júnior, filho de um


advogado, vivia no bairro do Horto em Belo Horizonte com dois irmãos e
uma irmã. A juventude de Paulo não foi típica; ele não passava horas
zanzando pelo shopping e, como a maioria dos garotos de famílias de
classe média, foi doutrinado no rock por meio de cópias piratas dos álbuns
que todos estavam ouvindo. Desse modo, é possível entender como suas
influências iniciais não foram tão diferentes em relação às dos amigos:
Black Sabbath, Iron Maiden e Kiss, entre outras.

Felizmente, Paulo descobriu a música muito cedo. Se não tivesse, o jovem


teria certamente seguido os passos do pai e se tornado advogado.

Torcedor ilustre do Galo – o Atlético Mineiro –, Paulo tornou-se um


apaixonado por cerveja, risos e bons momentos, e embora trouxesse no
peito o amor pela música, suas habilidades com o baixo eram quase
inexistentes quando conheceu Max e Igor.

Paulo acabara de ser chutado de sua banda anterior, apropriadamente


chamada de AI-5, porque não sabia tocar muito bem, como ele mesmo
admitia. Foi apresentado aos irmãos Cavalera por um amigo em comum do
colégio, sendo aceito imediatamente ao saberem que tinha um baixo
Giannini Stratosonic novo em folha. Os pais de Paulo até permitiram ao
Sepultura transformar um barracão em frente à casa da família em local de
ensaio. Os garotos logo aproveitaram a oportunidade e forraram as paredes
com pôsteres e capas de discos de heavy metal. Aquele pequeno barracão
foi a sede da banda por quase cinco anos.

A técnica de Paulinho Kiss como baixista nem foi levada em consideração.


A banda passava bastante tempo ensaiando com seu equipamento precário,
interrompendo as sessões para ocasionais guerrinhas de amora e banana ao
ar livre, junto às árvores ao lado do barracão. Mas, até então, nenhum dos
garotos tinha dinheiro para equipamento, e precisavam, assim, contornar as
dificuldades com medidas desesperadas. Em um show local de outra banda,
Igor saltou para o palco e enfiou um microfone na calça, mergulhando de
volta à multidão antes que alguém percebesse.

Ensaiavam com um propósito real: pouco antes da entrada de Paulo, o


Sepultura havia agendado sua primeira apresentação, que ocorreria em 4 de
dezembro de 1984, no bairro Barroca, com as bandas Overdose e Tropa de
Choque.

Naquela noite, o Sepultura tocou – mal – como um trio. A mãe de Roberto


UFO não permitia que ele ficasse fora de casa até tão tarde, e por isso o
guitarrista foi chutado da banda. A ausência de Paulo, contudo, foi
compreendida. Havia ido passar as férias com a família em Montes Claros,
planos feitos antes do agendamento do show.

Max, Igor e Wagner tocaram com fúria e paixão, mesmo que sem grande
excelência musical. Para Igor, que usou um capacete do exército, o wig, e
maquiagem preta em volta dos olhos, já era uma conquista só por poder
usar uma bateria completa, gentilmente cedida por Helinho, baterista do
Overdose.

O Sepultura não arregimentou muitos fãs novos naquele show, mas a


inocência pura e juvenil de sua entrada na cena local tornaria as conquistas
dos anos seguintes ainda mais inspiradoras.

O ANO DE 1985 foi de revolução, não apenas para o Sepultura, mas para o
Brasil. A ditadura militar dava seus últimos passos, depois de uma gradual
dissolução. No início de janeiro, aconteceu o primeiro festival Rock In Rio,
que trouxe bandas internacionais de todos os gêneros para a Cidade
Maravilhosa, mas as mais importantes para nossos propósitos foram Iron
Maiden, Queen, AC/DC e Ozzy Osbourne. Dias depois, a ditadura sofreu a
derradeira queda, e acontecia a primeira eleição democrática do país.
A cena metal underground se fortalecia entre três cidades cruciais: Belo
Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo; e o metal brasileiro de todos os
tipos gozava de uma enorme exposição. A Dorsal Atlântica lançava seu
aguardado EP de estreia, Ultimatum. O selo musical Baratos Afins, de São
Paulo, lançava SP Metal 1, compilação das bandas paulistas pesadas: Vírus,
Avenger, Centúrias, Salário Mínimo e Cabeça Metal. O disco foi, de certo
modo, o equivalente brasileiro dos álbuns norte-americanos Metal
Massacre, que lançaram Metallica, Slayer, Overkill, Hellhammer,
Possessed e muitas outras bandas que influenciaram a cena brasileira.

Além disso, Cogumelo, uma loja de discos de Belo Horizonte onde os


metaleiros locais se encontravam, criou seu próprio selo. O primeiro
lançamento reuniria duas bandas que haviam tocado juntas em BH no final
de 1984: em um lado do disco, Século XX, do Overdose; no outro, Bestial
Devastation, do Sepultura.

Image

Max e Jairo. Belo Horizonte, novembro de 1986.

Porém, pouco antes da gravação do disco, algumas mudanças drásticas


ocorreram na banda. O festival Metal BH em março marcou a primeira
apresentação de Paulo com o Sepultura e a última de Wagner. Dependendo
de para quem se pergunte, a história é que o vocalista saiu ou foi descartado
devido aos constantes desentendimentos acerca da música e ao desgaste do
relacionamento com os outros membros.

Ele assumiria quase imediatamente a rival Sarcófago, banda de black metal


que também havia se apresentado no Metal BH. Wagner, a quem Roberto
UFO se juntou por um tempo, aproveitava toda oportunidade na imprensa
para atacar o Sepultura, ridicularizando seus antigos colegas, acusando-os
de serem falsos e vendidos. Sarcófago era, segundo suas palavras, a única e
verdadeira banda de black metal no Brasil.

Seja por acidente ou desígnio, Max assumiu os vocais, mas sua habilidade
com a guitarra ainda deixava a desejar. Não conseguiriam sobreviver como
trio. O Sepultura precisava de um guitarrista solo.
Eis que surge Jairo Guedz, um músico local nascido em 25 de novembro de
1968, cujos talentos organizariam as inclinações um tanto díspares dentro
do Sepultura.

Quando Jairo conheceu Max, Igor e Paulo no bairro Savassi, na rua Rio
Grande do Norte, em frente ao Sabor & Arte, ele já sabia o que era o
Sepultura. Os garotos já estavam ficando conhecidos pelo nome e pelo
visual, mas não tanto pela música, que ainda era muito grosseira e sem
refinamento. Contudo Jairo foi atraído imediatamente pela vontade e
determinação deles, e percebeu que queria fazer parte daquela empolgante
nova cena.

O guitarrista logo trouxe uma imagem de ordem para a banda, ensinando


acordes e truques a Max e convencendo a todos que precisavam ensaiar
mais.

A adição de Jairo ao grupo era exatamente o que o Sepultura precisava para


evoluir. Mesmo que a música ainda fosse caótica, sua contribuição a
transformou em um caos controlado. As estruturas das canções faziam mais
sentido, apesar de o estilo geral da música ser derivado das diversas bandas
de death e black metal que idolatravam na época.

Mesmo assim, havia uma qualidade indefinível que os destacava entre seus
pares. Os fãs percebiam isso. As outras bandas percebiam isso. O Sepultura
sabia disso, tanto que gradualmente começou a deixar de lado o feijão com
arroz visual, como a corpse paint, o couro e as tachas, para se diferenciar
ainda mais do resto das bandas. No Brasil, país tropical, fazia mesmo mais
sentido se apresentar sem o fardo físico decorrente de tais acessórios. E
com a decisão de cantar em inglês, talvez prova ainda maior de sua
“rebeldia” contra tudo o que fosse brasileiro, a banda homenageava seus
heróis musicais, criando ao mesmo tempo um nicho inteiramente seu.

BESTIAL DEVASTATION, GRAVADO E mixado em dois dias em agosto de


1985, traz aquela que muitos consideram a primeira formação de fato do
Sepultura: Max “Possessed” Cavalera na guitarra base e vocais, Jairo
“Tormentor” Guedz na guitarra solo, Igor “Skullcrusher” Cavalera na
bateria/percussão e Paulo “Destructor” Jr. no baixo. O álbum seria lançado
em 1o de dezembro de 1985, quase um ano após o dia de seu primeiro
“show”. Com orgulho, rotularam como death metal seu lado do álbum
Bestial Devastation, apesar de a música soar mais com uma variante de
black metal.

Depois de uma introdução falada, ao estilo Halloween, chamada “The


Curse”, a faixa “Bestial Devastation” vem gritando dos alto-falantes com
velocidade e forte clima. Embora os membros da banda fossem jovens,
ainda adolescentes, o arranjo da música mostra maturidade, alternando os
tempos para enfatizar certos aspectos da faixa. Os garotos já sabiam o que
faziam.

“Antichrist”, espólio do início da banda com letra de Wagner Lamounier,


continua na mesma pegada. Vem completa, até com refrão grudento, que
pede para ser gritado acompanhando Max. Primeira música que gravaram
como banda, “Necromancer” começa com um riff lento e sombrio – talvez
o melhor do álbum – que a banda sabiamente reutiliza no refrão da faixa. E
“Warriors of Death” – uma canção rígida, que só tira o pé do acelerador no
trecho instrumental e no solo batido com o dedo de Jairo – encerra o EP
cedo demais, deixando fãs ávidos por mais. No ecoar da última batida de
pratos e do derradeiro acorde de guitarra, ficou claro que o Sepultura era
um caso à parte – incomparável.

Após bater violentamente em suas guitarras durante o primeiro dia de


gravação, os instrumentos estavam desafinados no segundo dia. Ninguém
podia bancar um afinador, muito menos equipamentos de qualidade
superior, já que os melhores geralmente eram importados. Nenhuma das
famílias tinha boa situação financeira. A realidade naqueles dias era que
uma guitarra fabricada fora do Brasil tinha taxas de importação muito mais
elevadas do que o custo do instrumento. De qualquer maneira, Max, Igor,
Paulo e Jairo não se importavam. Eles preferiam o modo tosco e cru como
aquelas sessões soavam.

E os fãs também preferiam.

A Cogumelo lançou o EP split Bestial Devastation/Século XX em 1o de


dezembro de 1985 para uma base de headbangers imediatamente receptiva,
que favoreceu imensamente o lado do Sepultura do álbum em detrimento
do lado do Overdose, apesar da caricatural representação de um demônio
desenhado à mão (plágio da pintura “In The Underworld” [No Inferno] do
artista peruano Boris Vallejo) pairando sobre uma catedral na capa. Sua
popularidade foi impulsionada, em parte, pela ferocidade das apresentações
ao vivo do Sepultura, algumas das quais foram gravadas e se espalharam
pelo underground como um vírus.

Em abril de 1986, eles novamente se juntaram ao Overdose para uma série


de shows, dessa vez para promover o EP. Quando não estava ensaiando, a
banda já traçava planos para o futuro, enviando fitas para fanzines de todo
o mundo e também para gravadoras nos Estados Unidos. Sediados no
domicílio dos Cavalera na rua Dores do Indaiá, eles às vezes recebiam
rejeições meses mais tarde, muito tempo depois de terem esquecido que
uma fita tinha sido enviada.

Com toda a popularidade local, vieram os pedidos por um álbum completo


do Sepultura, e os garotos continuaram compondo, trabalhando para
alcançar esse próximo objetivo. Quando Jairo encontrou Max para o
almoço um dia e trouxe uma canção chamada “Troops of Doom”, foi
perfeito. A melodia simples, baseada em riffs cromáticos, viria a se tornar o
primeiro “hit” da banda.

E, ainda que não estivessem fazendo mais do que alguns shows em espaços
de poucas semanas (às vezes passando-se meses entre um show e outro), o
Sepultura já estava começando a galgar seu caminho para o topo da lista
das bandas underground. Mas, na época, dentro da cena, os membros do
Mutilator ou do Vulcano, ou mesmo do Sepultura, nunca perceberam
qualquer tipo de hierarquia. Eram simplesmente amigos ajudando amigos,
emprestando instrumentos e lugares para ficar uns aos outros, ajudando a
carregar equipamento e organizando shows em festivais em que todos
poderiam participar.

Um desses shows foi o Festival da Morte, em agosto, realizado no Camisa


10, em Belo Horizonte. O vocalista do Mutilator, Sílvio SDN (também
conhecido como Sílvio Gomes), organizou o evento e contratou o Vulcano,
de Santos, a banda Chakal, de Belo Horizonte, e um projeto paralelo seu
chamado Guerrilha. Como não apenas trabalharia no evento, mas também
tocaria com o Mutilator naquela noite, Sílvio entregou os vocais do
Guerrilha para um amigo chamado Gentil Bastos Netto.
Também no time do Guerrilha estavam Max Cavalera na guitarra, seu
irmão Igor na bateria e Jairo Guedz no baixo. Entre as músicas que tocaram
– originais frenéticos como “Bla”, “Chaos” e “Figueiredo” –, o projeto de
curta duração incluiu um cover de “Infernal Death” do Death para
completar. Filmagens do festival, com entrevistas e palhaçadas de
bastidores, apresentadas por Jairo, acabaram sendo adquiridas pela
Cogumelo, que incluiu alguns dos trechos no relançamento, em 2008, do
clássico Bloody Vengeance do Vulcano.

No dia seguinte ao Festival da Morte, o Sepultura foi ao estúdio Vice-


Versa, onde começaria o trabalho de estúdio nas próprias músicas novas.

Tal como aconteceu com seu antecessor, Morbid Visions foi gravado
rapidamente, em apenas sete dias, e sua produção não foi muito melhor do
que a de Bestial Devastation. Mas é nisso que reside muito do charme do
disco. As primeiras prensagens começavam com uma extensa seção da
ópera Carmina Burana, de Carl Orff, mas foram recolhidas por questões de
direitos autorais. No entanto, o álbum não precisava desse trecho para
estabelecer o tom adequado; parecia mais apropriado simplesmente entrar
com tudo no primeiro riff da faixa-título do que empregar um clichê de
heavy metal frequentemente utilizado como prelúdio.

No conjunto, Morbid Visions soa muito como uma extensão do EP,


destinado a saciar a avidez dos fãs por mais música e dar à banda mais
material original para tocar nos shows. As letras, nesse momento, ainda
eram escritas em português e traduzidas para o inglês, rendendo a eles
interpretações por vezes confusas e por outras engraçadas. Os gritos em
staccato de Max em faixas como “Mayhem” e “War” tornam suas palavras
incompreensíveis na maior parte do tempo, e os fãs brasileiros ou não
entendiam as palavras traduzidas ou não se incomodavam com elas. O que
importava era que os vocais fortemente reverberantes de Max o faziam soar
demoníaco, como uma criatura uivando em meio às trevas de uma caverna.

Os temas predominantes continuam a ser Satanás, velocidade e


extremidade no som, mas isso não significa necessariamente que a música é
unidimensional. “Crucifixion” utiliza acordes estendidos, pinch harmonics
(harmônicos artificiais) e passagens lentas e debulhantes para compensar o
ritmo alucinante dos versos da canção. “Show me the Wrath” começa a
queimar lenta e pesadamente; uma melodia deliberadamente escolhida,
composta por notas individuais que evoluem para um padrão de acordes
semelhante. Apresentando alguns dos mais complexos arranjos de guitarra
e mudanças de tempo do grupo até então, “Show me the Wrath” se destaca
como um ponto alto do álbum.

Ao mesmo tempo que “Funeral Rites” é bem parecida com “Troops of


Doom” em tom e arranjo, particularmente até cerca de um minuto de
duração, ela deságua perfeitamente em “Empire of the Damned”, uma
jornada ao thrash metal que iria ainda mais longe no disco seguinte.

O demônio toscamente desenhado da capa de Bestial Devastation ressurge


na de Morbid Visions, mas o destaque fica por conta do logotipo
retrabalhado do Sepultura, afiado e reluzente como uma espada pronta para
a batalha.

Image

Flyer de divulgação do show de lançamento do álbum Morbid Visions, o


primeiro disco do Sepultura.

Aos poucos, a banda estava se tornando mais profissional.

Uma série de shows levou ao lançamento do álbum em 10 de novembro,


aparentemente mais brutal do que o anterior. Tuka Quinelli, natural de São
Bernardo do Campo, que frequentava a mesma escola que Andreas Kisser,
então guitarrista do Pestilence, relembra: “Eu fui para Americana, no
interior de São Paulo, para ver algumas bandas no Slaughter Festival, e lá
eu encontrei Max e Igor pela primeira vez. O Sepultura ainda era pequeno,
e os caras andavam em meio à multidão naturalmente. Igor me deu o
endereço dele em Belo Horizonte e me convidou para ir lá. Eu fui na
primeira oportunidade. Então voltei para ver eles abrindo pro Venom.
Fiquei na casa deles e fiz amizade com a mãe deles, a Vânia, que é uma
pessoa maravilhosa, muito forte, moderna e que sempre os apoiou”.

Abrir para o Venom (e o convidado especial Exciter) em duas datas da


turnê brasileira do grupo inglês representou um dos primeiros grandes
triunfos do Sepultura. Embora ninguém dentro do círculo interno de bandas
locais falasse abertamente de hierarquia, como mencionado anteriormente,
o fato de que o Sepultura abriu para o Venom – e não o Sarcófago, o
Vulcano ou mesmo o Dorsal Atlântica – dizia muito.

No início do ano seguinte, apesar de Morbid Visions ser um lançamento


ainda recente, o Sepultura já tinha uma boa reputação fora do Brasil,
baseada quase que exclusivamente em sua reputação dentro do Brasil.
Como qualquer banda que se prezasse na era pré-internet, eles devoravam
fanzines em busca da mais nova e pesada música. Com a ajuda de Cabrito,
um vizinho que falava e escrevia em inglês, os garotos se correspondiam
com bandas importantes da cena death metal da Flórida, como Morbid
Angel e Death. Na verdade, foi no álbum Scream Bloody Gore, do Death,
que o nome de Max apareceu pela primeira vez em um disco de verdade
fora do Brasil, em 1987, quando Chuck Schuldiner agradeceu a ele e ao
Sepultura nos créditos.

Da Noruega, um músico chamado Gylve Nagell, também conhecido como


Fenriz, escreveu para Max pedindo cópias das fitas do Sepultura, pois os
fãs de metal mais underground na Europa vinham ouvindo histórias sobre
esses brasileiros insanos. O grupo de Fenriz, o Black Death, viraria o
Darkthrone, uma das mais notórias bandas da primeira leva de black metal
da Noruega. Bandas infames de Oslo, como Mayhem, Thorns e outras,
exaltariam, anos depois, essa fase do Sepultura (e do Sarcófago também),
considerando-a uma influência seminal na cena black metal norueguesa,
que acabaria ganhando destaque no início dos anos 1990.

Para Max, Igor, Paulo e Jairo, seu mundo estava subitamente se tornando
maior. Para Jairo, um destaque pessoal veio na forma de uma turnê pelo
interior de São Paulo – com o Dorsal Atlântica e o Vulcano – que
aproximou mais os membros da banda, tanto em questão de confiança
quanto de amizade.

Mas, estranhamente, esses seriam também os últimos dias de Jairo na


banda.

Image

Cartaz de um dos últimos shows do Sepultura com a participação de Jairo.


QUANDO AS COMPOSIÇÕES PARA o álbum seguinte começaram, Jairo
parecia cada vez menos motivado a continuar na rotina em que o
Sepultura havia caído. Em várias entrevistas antigas, Max disse que
Jairo estava cansado de tocar death metal e preferia música ao estilo
do Poison ou do Mötley Crüe, apesar de isso poder ser apenas uma
versão para a mídia. Quando pensa no assunto, o guitarrista parece
ainda incapaz de explicar ou entender exatamente a razão de sua
saída, citando as bebidas, as drogas e as farras como fatores que
contribuíram. Sabia, por sentir que estava se destruindo, que
precisava de um tempo longe de tudo e de todos. Só o tempo, a
distância e a solidão lhe permitiriam se recompor.
Quando Jairo o cializou sua saída, os três membros
remanescentes caram compreensivelmente desapontados, mas já
sabiam quem deveria substituí-lo. Na verdade, já tinham até tocado
com ele.
A REGIÃO DO ABC, em São Paulo, é formada por três municípios nos
arredores da capital: Santo André, São Bernardo do Campo e São
Caetano do Sul. Polo industrial conhecido principalmente por suas
fábricas de automóveis, o ABC era o local ideal para a criação do
primeiro Partido dos Trabalhadores do Brasil, uma coalizão de
pessoas que enfrentavam a ditadura militar e lutavam pelos direitos
trabalhistas – entre elas, o futuro presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.

Sai Jairo, entra Andreas. Belo Horizonte, abril de 1987.

Também era o lugar de origem de Andreas Rudolf Kisser.


Nascido em 24 de agosto de 1968, em São Bernardo, lho de
mãe eslovena e pai brasileiro, engenheiro em uma fábrica da
Mercedes Benz, Andreas cresceu cercado de arte, música e cultura.
Durante a infância no bairro Rudge Ramos, a casa dos Kisser
estava sempre repleta de música sertaneja, samba, Beatles, Bee Gees
e música caipira de artistas como Tonico e Tinoco e Sérgio Reis.
Seus avós, alemães de nascimento, preferiam música clássica, e sua
avó materna tinha sido cantora durante sua juventude na Eslovênia,
e foi ela que lhe deu seu primeiro instrumento: um violão acústico.
Apegou-se a ele imediatamente, praticando sem discriminação MPB
e qualquer música que estivessem escutando em casa. Caetano
Veloso, Guilherme Arantes, Tonico e Tinoco…
Contudo, sua primeira paixão foi o futebol.
Ávido torcedor do São Paulo, o jovem Andreas ia assistir a
partidas no estádio do Morumbi com seu pai sempre que podia e,
quando não podia, jogava com os amigos na rua. O futebol era sua
paixão, e ainda é; se não fosse por duas bandas em particular, talvez
tivesse seguido carreira como atleta em vez de músico.
Essas duas “primeiras” bandas – a do primeiro álbum que
ganhou e a do primeiro show a que assistiu – mudaram sua vida. O
primeiro disco foi A Night at the Opera, do Queen, e o primeiro
show, do Kiss, bombástico como sempre. A turnê era Creatures of the
Night, em 1983, a última antes de deixarem de usar maquiagem.
Com apenas 14 anos, Andreas conseguiu convencer a mãe a deixá-lo
ir ao show com um amigo.
Dali em diante, suas preferências musicais passaram a incluir
rock mais pesado, como Deep Purple, Led Zeppelin, Black Sabbath e
Iron Maiden. Randy Rhoads, o guitarrista virtuoso dos discos
Blizzard of Ozz e Diary of a Madman, de Ozzy Osbourne, tornou-se
um de seus primeiros ídolos, isso por causa da mistura de elementos
estilísticos de violão erudito ao estilo heavy metal de guitarra.
Na época em que frequentava o Colégio São José, a rotina de
Andreas era razoavelmente prosaica: escola pela manhã, futebol à
tarde e música como trilha sonora o dia todo. Pouco depois do
decisivo show do Kiss, ele se juntou a amigos da escola com
interesses parecidos para tocar covers em eventos escolares, os quais
incluíam de tudo, desde o glam rock do Twisted Sister e Whitesnake
até o autoproclamado black metal do Venom. No início, Andreas era
guitarrista e vocalista, mas era tão tímido que cava escondido na
lateral do palco enquanto cantava.

Es nge, a primeira banda de Kisser, no Tênis Clube, Santo André.

Com a experiência de palco, veio maior con ança. “Uma vez, ele
e seus amigos zeram um show no colégio”, conta Tuka Quinelli, “e
botaram fogo num pôster do Menudo. As freiras caram nervosas
naquele dia…”
Em 1985, a formação da primeira banda de verdade de Kisser
estava completa, com Julinho Cassettari nos vocais, Andreas na
guitarra, Fabio Bonatelli no baixo e Osvaldo Ferreira Júnior na
bateria. Chamada de Es nge devido à fascinação de Kisser por
história egípcia, a banda gravou uma ta demo e expandiu sua área
de atuação, apresentando-se em festas de amigos, barzinhos, lava-
rápidos e até em uma festa junina.
Inspirado por seus heróis de bandas estrangeiras, o Es nge logo
decidiu tentar cantar em inglês em vez de português, mudando seu
nome para Pestilence.
Conseguiu um pequeno, porém dedicado, grupo de fãs, até que
uma inocente jam mudaria tudo.
“Éramos muito unidos na cena underground”, explica Andreas.
“Escutávamos as mesmas bandas, e alguns tinham suas próprias
bandas. Entre São Paulo, Rio e Belo Horizonte havia um número
grande de bandas, e a cena era muito forte. Então, conhecíamos uns
aos outros muito bem, não só o Sepultura, mas todas as bandas. Era
um monte de gente. Você se sentia parte de uma família, uma
tribo.”
Pouco antes de o Sepultura anunciar a saída de Jairo, Andreas e
um amigo foram a Belo Horizonte, onde encontraram a banda pela
primeira vez. “Fomos ao ensaio do Sepultura”, conta ele, “e eu os
conheci e toquei com eles.”
Max tira o lugar do irmão. Rio de Janeiro, julho de 1987.

O encontro foi imprevisto. Naquela mesma semana, em um show


com o Ratos de Porão, a banda tocou como trio, pois Jairo, já
planejando sair, não tinha comparecido aos ensaios nas semanas
anteriores.
Kisser cou com Guedz durante as férias, usando o equipamento
de Alexander “Magoo”, cuja guitarra era compartilhada entre o
Holocausto, o Sepultura e sua própria banda, o Mutilator. Jairo não
queria sair pela porta dos fundos. Queria ao menos dar aos rapazes
tempo su ciente para achar um substituto adequado.
“Fizemos jams tocando Kreator, Slayer e Destruction”, conta
Andreas. “Passamos uma ou duas semanas lá, só detonando e nos
divertindo. E então o Sepultura tinha uma apresentação em São
Paulo.”
As bandas viajaram 640 quilômetros em um ônibus de Belo
Horizonte a Santa Isabel, uma pequena cidade a menos de uma hora
do centro de São Paulo, onde o Sepultura se apresentaria (com
Jairo) no Holocaust Festival, em 18 de janeiro de 1987.

Igor fazendo uma jam no lugar de Paulo. Belo Horizonte, 1988.

Falando sobre a entrada de Kisser na banda, Max costuma


brincar: “Ele era meu roadie”. Mas classi cá-lo como “roadie”, no
sentido estrito do termo, talvez seja um pouco equivocado.
“Nunca fui um roadie”, declara Andreas. “Eu nem sabia que esse
nome existia. Era um festival grande. Eu estava com eles e ajudei,
mas mais como amigo, já que era muito comum os amigos ajudarem
uns aos outros. Éramos muito unidos. Só estava lá ajudando todo
mundo. Paulo. Max. Mas não carreguei ampli cadores porra
nenhuma, não montei equipamento e tal. E, coincidentemente, a
corda da guitarra do Max estourou, e eu subi no palco para tentar
trocar a corda ou algo assim, para ajudá-lo. Tem um vídeo disso”,
conta, rindo. “Ali a lenda nasceu.”
Ainda rindo, Andreas completa: “Acho que arrumei a corda, e ele
pôde continuar tocando, então… fui um bom roadie”.
Alguns meses mais tarde, a troca se tornou o cial.
“Tínhamos um feriado prolongado, a Páscoa”, conta Tuka
Quinelli, “e eu decidi ir a Belo Horizonte visitar uns amigos. Era um
período muito importante, porque o Jairo estava saindo e o
Andreas, entrando. Fui ao ensaio na casa do Paulo, e lá tirei a
primeira foto de Andreas no Sepultura.”
De acordo com todos os relatos, foi um dia tanto triste quanto
empolgante na história da banda. Triste porque a saída de Jairo não
foi resultado de briga ou discussão, e empolgante por causa da
energia que Andreas trouxe ao Sepultura, uma energia que todos
tinham sentido desde a primeira jam, antes do Holocaust Festival.
“Quando os conheci”, disse Andreas, “a química já existia. Estava
pronta. A gente se sentiu bem tocando junto, especialmente Igor e
eu. Conseguíamos tocar as coisas bem pra caralho. Parecia que a
gente se conhecia há muito tempo. Deu muito certo. Acho que desde
o primeiro ensaio já percebemos isso.”
“E eu estava procurando uma banda, sério, porque meus amigos
da escola que começaram o Es nge e o Pestilence haviam me
abandonado. Estavam trabalhando com os pais nos negócios da
família e não tinham o mesmo comprometimento. Não queriam
seguir de verdade o caminho da música. E então conheci o Sepultura
e vi que aqueles caras estavam realmente prontos para a mesma
guerra que eu queria travar”, acrescentou.

Andreas e João Gordo (Ratos de Porão) “se casam”. São Paulo, janeiro de 1988.

“A gente se deu bem logo de cara. As ideias eram as mesmas, os


objetivos e a vontade eram os mesmos. Musicalmente, acho que eles
precisavam de alguém como eu para tornar a coisa mais técnica,
mais desa adora, para fazer bases e ri s um pouco mais difíceis,
que fossem mais so sticados. E eu precisava daquela coisa grosseira,
aprender mais sobre o hardcore e o death metal, sobre a coisa mais
tosca… e Schizophrenia foi consequência disso.”
Andreas, Igor e Max felizes em Belo Horizonte. 1988.

Andreas foi apresentado aos fãs em breve e grande estilo,


quando, em maio, ele e a banda viajaram 48 horas de ônibus para
fazer uma miniturnê, tocando nas cidades pernambucanas de
Caruaru e Recife e, depois, em Campina Grande, na Paraíba. Ao
retornar a Belo Horizonte, o Sepultura voltou imediatamente a
trabalhar no seu segundo álbum.
“Quando eu entrei, eles tinham ideias para músicas como ‘Rest
in Pain’, ‘Escape to the Void’ e ‘Screams Behind the Shadows’, mas
elas ainda não estavam prontas. Eu z a letra de ‘Escape’, que fala
sobre insanidade e pensamentos esquizofrênicos, estresse e
desespero. Então o Max teve a ideia de chamar o álbum de
Schizophrenia.”
“Além disso, ‘Escape into the Mirror’ foi transformada em
‘Escape to the Void’”, continuou Andreas. “Musicalmente, não existe
nenhuma semelhança entre a ‘Escape into the Mirror’ do Es nge e a
música do Sepultura.”

Andreas, Igor e Max tristes em Belo Horizonte. 1988.

Essa letra inspiraria também a imagem da capa do álbum, que


traz um doente mental olhando-se em um espelho e vendo a si
mesmo como realmente é.
“E daí veio o conceito que afastou o Sepultura do death metal e
de tentar copiar as bandas Antichrist e Morbid e todas aquelas
coisas que o Sepultura repetia à exaustão”, disse Andreas. “Aquilo
deu também um novo direcionamento [temático] para as letras e
para falar sobre nossas próprias experiências com amigos loucos e
drogas – um clima mais realista – e sermos nós mesmos. Sem tentar
copiar demais o que vinha de fora.”
Então Andreas se mudou para a casa de Max e Igor e continuou
frequentando a escola por um período, até que Vânia teve uma
conversa séria com os garotos. Disse-lhes, sem rodeios, que, se
quisessem ser bem-sucedidos na música, teriam de dedicar todo o
tempo e energia à banda.

Max com sua primeira guitarra Rich Warlock. Belo Horizonte, 1988.

Outros pais da região acharam que Vânia estava louca, que era
uma má in uência, a an triã de um antro de drogas e álcool onde
todos os metaleiros se encontravam. Mas as drogas eram
estritamente proibidas na casa da família Cavalera. Os únicos vícios
permitidos eram refrigerantes e jogos de tabuleiro. E música, claro.
Anos mais tarde, bem depois de se tornarem mais populares do
que jamais poderiam ter sonhado, Igor elogiou a mãe, grato por sua
dedicação e apoio desde o início, atribuindo a ela importância
fundamental para seu sucesso.
Com a in uência de Kisser, o restante das letras de Schizophrenia
ajudaria a dar forma a um som mais re nado, mais técnico do que o
de Bestial Devastation e Morbid Visions. Apesar do ritmo alucinante e
das palhetadas da técnica tremolo picking ainda serem evidentes, já
não havia letras e imagens satânicas. Os ri s de guitarra eram mais
complexos, os solos, mais pensados, melódicos e preparados. Havia
até passagens de violão clássico, acústico, como em “The Abyss”, em
equilíbrio com a velocidade selvagem de faixas como “Septic
Schizo”.
De modo geral, era um perceptível distanciamento em relação ao
estilo black/death metal de antes, e um passo em direção ao som
mais enraizado no thrash metal social e politicamente consciente
pelo qual seriam conhecidos em breve.
O Sepultura voltou ao estúdio João Guimarães para tentar fazer
uma demo da primeira composição com Andreas, “From the Past
Comes the Storms”, já que essa seria também a primeira experiência
de Kisser em um estúdio de gravação. Em agosto, voltaram ao
estúdio para nalizar o álbum que levou um pouco mais de tempo
do que a gravação de Morbid Visions.
As letras das canções orbitavam entre temas como morte e
insanidade, apesar de a linguagem, à época, ainda deixar algo a
desejar. Como no caso de Bestial Devastation e Morbid Visions, na
verdade, as letras eram escritas em português e, então, vertidas para
o inglês.
“Quando escutei Iron Maiden pela primeira vez”, disse Andreas,
“não tinha ideia do que falavam. Via as imagens e achava aquilo
legal; a música era ótima, o som era ótimo, mas não sabia o que as
letras diziam. Só mais tarde fui descobrir quão idiotas eram as letras
do Kiss. Costumava adorar e cantar tudo aquilo, sem saber, mas
ainda os adoro apesar disso.” Re etindo em retrospecto sobre o
processo de verter suas letras para uma língua que os próprios
membros não entendiam, ele completou: “Quando você acha que
está dizendo algo mas está dizendo algo totalmente contrário, aí é
que mora o perigo”.
“Se você escutar”, disse Andreas, “não há sentido em nosso
inglês em Schizophrenia.É muito complicado fazer traduções do
português para o inglês sem alguém que realmente se importe com a
construção de frases e coisas do tipo. Ninguém consegue entender
nada.” No entanto, completou: “Isso é arte, cara. Para o Max
incorporar todas as letras dentro das canções… você tem que ser
bom para fazer esse tipo de coisa. Foi uma limitação que encaramos
e aproveitamos.”
“Claro que”, continuou, “depois de começar a fazer turnês e a
viver fora do Brasil, você melhora seu inglês; você precisa de menos
palavras para se fazer entender. O português é um caso diferente. É
uma língua mais rica. Tem mais palavras e mais situações, passado,
presente e futuro, do que o inglês. O inglês é muito mais compacto
no modo como você expressa as coisas. Pelo menos no inglês que
falamos, não na literatura pesada, claro. Mas o português é uma das
línguas mais difíceis de aprender. Assim como o russo, o chinês ou
outra do estilo.”
Deixando as letras um pouco de lado, o álbum mostra valores de
produção relativamente mais substanciais e aumento de primor
técnico em relação a Morbid Visions e, musicalmente, mostra a
banda progredindo em direção a um som mais orientado para o
thrash. Abrindo com o grito agudo de violinos, que lembram muito
o tema do lme Psicose, de Alfred Hitchcock, e seguindo para a
primeira faixa, com o urro invertido de Max – “schizophrenia!”, ele
grita –, o álbum mete o pé na porta violentamente com as
palhetadas velozes e a progressão de acordes em tom menor que
iniciam “From the Past Comes the Storms”.
O álbum segue sem perder o pique, passando pelo death metal
com um toque de musica clássica de “To the Wall”, pelo groove
headbang de “Escape to the Void” e “Inquisition Symphony”. Esta
última faixa é um feito impressionante do grupo, um épico
instrumental de sete minutos, com uma introdução acústica, longos
trechos destacando a guitarra solo (com passagens utilizando a
técnica hammer on que trazem à mente “Flash of the Blade”, do Iron
Maiden) e uma estrutura extremamente complexa. A in uência do
Metallica também é óbvia, podendo-se, sem exagero, considerá-la
uma “The Call of Ktulu” com esteroides e metanfetaminas.
“Screams Behind the Shadows” e “Septic Schizo” têm ambas um
pé rme no estilo de Morbid Visions, mas “The Abyss” é o primeiro
passo do álbum rumo à evolução. Um interlúdio de cerca de um
minuto, exemplar das habilidades eruditas de Andreas, “The Abyss”
mostra a avidez do Sepultura por evoluir e seu entendimento de
dinâmica. No contexto do álbum, a música é um momento de
tranquilidade em uma mente esquizofrênica e intensi ca o retorno
do sujeito à insanidade com a feroz “R.I.P. (Rest in Pain)”.
Toda essa jornada se encerra em pouco menos de quarenta
minutos, culminando com a incursão do ouvinte no espírito do
personagem da capa do álbum, incontáveis vozes psicóticas
vociferando dos alto-falantes e, então, subitamente silenciadas.

A COGUMELO LANÇOU SCHIZOPHRENIA dois meses mais tarde, em 30 de


outubro de 1987. Fãs do Sepultura, ao ouvir o álbum pela primeira
vez, entenderam que a banda estava em outro nível, mais elevado
do que no ano anterior, superando todas as outras bandas de metal
brasileiras. Até metaleiros que ainda não eram fãs podiam sentir a
magia uindo pelas ranhuras do vinil.
O resto do mundo sentiu isso também. A Shark Records, selo
com base na Europa, obteve uma cópia e imediatamente a pirateou,
lançando-a no continente sem o conhecimento da Cogumelo ou do
Sepultura. Schizophrenia foi um sucesso imenso na Europa,
vendendo milhares de cópias, pelas quais a banda não recebeu um
centavo sequer. O álbum da Shark logo se tornou um item disputado
por colecionadores. Cópias piratas também apareceram nos Estados
Unidos, e os fanzines underground logo resenharam o álbum, em
alguns casos já se referindo à banda brasileira em ascensão como a
próxima Slayer.
Um desses fanzines, que trazia o Sepultura na capa graças a um
jornalista de metal chamado Borivoj Krgin, chamou a atenção de um
representante da A&R[1] da gravadora Roadrunner Records, de Nova
York.
Em 1988, Monte Conner ainda era um novato na Roadrunner,
tendo começado no departamento de A&R em dezembro do ano
anterior. Além de car intrigado pelo gancho óbvio – que a banda
era do Brasil em vez de uma cidadezinha ou metrópole em
desenvolvimento dos Estados Unidos –, Conner cou de queixo
caído pela mistura visceral de thrash, speed e death metal que
Schizophrenia apresentava.
Krgin – um amigo de longa data de Conner – enviou uma carta a
Max contando do boca a boca sobre o Sepultura no underground e
tentando convencê-lo a ir a Nova York. Nem a Cogumelo, nem Max,
tampouco outra pessoa da banda, tinham condições de pagar a
passagem.
Todos sabiam, porém, que aquela era uma oportunidade que
Max não poderia deixar passar.
Max se encontrou com um trambiqueiro que lhe propôs um
trato. Ele lhe daria a passagem em troca de cem discos, que Max
teria de levar e vender nos Estados Unidos, repassando a renda ao
trambiqueiro quando voltasse. Mas havia uma “pegadinha”: no voo,
Max teria de ngir ser um funcionário da empresa aérea PanAm
para conseguir passar pela alfândega.
Max aceitou o acordo e levou cinquenta discos extras para
oferecer a gravadoras. Pegou um terno emprestado por um primo (já
que também não podia pagar por um), prendeu o cabelo em um
rabo de cavalo e decolou em direção a Nova York.
Max passou a maior parte da semana que cou na Big Apple
negociando com a Roadrunner Records, a matriz norte-americana de
um selo nascido na Holanda cerca de sete anos antes. Mas nenhum
contrato foi assinado durante aquela viagem a Nova York.
Alguns meses depois, contudo, de volta a Belo Horizonte, Max
recebeu uma ligação que alteraria drasticamente a trajetória do
Sepultura.

Aniversário de 21 anos de Max. São Paulo, agosto de 1990.


A HISTÓRIA DA VIAGEM de Max a Nova York se tornou uma espécie
de lenda, que ganhou novos detalhes e perdeu outros, tornando-se
mais rica em nuances ao longo dos anos, dependendo de quem a
conta. A versão contada aqui é provavelmente a mais conhecida e a
que tem mais reviravoltas, embora alguns detalhes possam ser mais
fantasia do que realidade. Não importa quão enfeitada a história
seja, um fato permanece: contando apenas com sua reputação e um
número limitado de discos na carreira, o Sepultura assinou um
contrato internacional com a Roadracer – subsidiária da gravadora
Roadrunner – para gravar sete álbuns, antes mesmo que alguém nos
Estados Unidos os tivesse visto tocar ao vivo.
Nada mau para um bando de garotos brasileiros na faixa dos 20
anos que quase não sabiam inglês. Começaram a fazer aulas,
aprendendo aos poucos a língua, ousando sonhar que poderiam um
dia ter a oportunidade de sair em turnê além de suas fronteiras.
Mas o contrato não era tudo aquilo que parecia, como a banda
logo descobriria.
O sucesso de Schizophrenia dentro do Brasil trouxe a
oportunidade de se aventurarem em destinos longínquos que, se
ainda não internacionais, ao menos permitiram que estendessem sua
atuação para além do eixo Belo Horizonte-Rio de Janeiro-São Paulo.
Tocaram no Amazonas pela primeira vez durante a turnê Green Hell
Tour e incluíram na apresentação uma música da banda anterior de
Andreas Kisser, Pestilence, que entraria no álbum seguinte.
Encabeçaram uma miniturnê com o Ratos de Porão e o Chakal, cujos
folhetos promocionais prometiam, em inglês: THRASH, BARULHO E PUNKS
HARD CORE!!!

Levando-se em consideração as brigas por vezes violentas entre


metaleiros e punks naqueles dias, ver uma escalação daquelas –
assim como Max usando uma camiseta dos Ramones nas
propagandas – foi uma surpresa para muitos. Mas o Sepultura tinha
uma tendência a reunir multidões díspares por meio de suas
próprias paixões. Se os fãs vissem Igor ou Max usando uma camiseta
do Sisters of Mercy, Paulo usando uma do Megadeth ou Andreas
ostentando uma regata do Ratos de Porão, então não tinha problema
gostarem dessas bandas também.
Dentro de um período relativamente curto, Schizophrenia superou
a marca de 10 mil cópias vendidas no Brasil, o que era um grande
feito para uma banda relativamente pequena. E isso se deu,
sobretudo, graças à propaganda boca a boca.
Os fãs brasileiros tinham descoberto algo exclusivamente seu e o
abraçaram como tal, apropriando-se do Sepultura, protegendo e
defendendo seus integrantes como se fossem sua própria família.
Schizophrenia tinha tudo o que amavam no metal – a velocidade, a
ferocidade, os ri s – e era totalmente nacional. E assim, com essa
banda prestes a in igir destruição musical sobre o mundo, não
poderiam estar mais orgulhosos!
Além desse sentimento de orgulho, esses jovens fãs de metal se
sentiam encorajados pelo sucesso crescente do Sepultura. Paulo,
Igor, Max e Andreas não eram diferentes dos garotos que iam a seus
shows. Todos eles lutavam contra a corrupção e a instabilidade
econômica. Todos temiam a polícia em vez de con ar nela. Lutavam
pelos mesmos ideais, contra o preconceito. Por meio de um negócio
e um gênero dominado por gringos, o Sepultura estava começando a
mostrar que paixão, determinação e muito trabalho duro podiam
tornar qualquer coisa possível para esses garotos.
E seguiriam mostrando isso com cada vez maior propriedade
conforme os anos foram passando.
Para sua estreia na Roadrunner, o Sepultura sentia que precisava
dizer a que veio, de forma barulhenta, ousada e explosiva. Ensaiar
por horas a o tinha deixado a banda com um entrosamento
incrível, e com Andreas contribuindo em todo o processo de
gravação, a banda se reuniu novamente no barracão em frente à
casa de Paulo. Estavam prontos para mostrar ao mundo que o Brasil
era mais do que apenas café, praias, futebol e samba.
Talvez, mesmo que inconscientemente, sentissem até certa
responsabilidade para com seus colegas no underground. Ainda que
o Sepultura não tivesse sido necessariamente a banda precursora e
líder da cena heavy metal nacional, havia chegado logo ao topo.
Bandas que haviam precedido o Sepultura, as quais adoravam e com
as quais tinham a nidade – como Dorsal Atlântica, Vulcano, Korzus
e outras –, vinham lutando havia bastante tempo sem alcançar
muita notoriedade fora dos círculos locais restritos. Mesmo Wagner
e o Sarcófago (que se prejudicou por focar apenas em ser “a mais
extrema” de todas as bandas brasileiras) foram deixados para trás.
Quando o assunto era metal no Brasil, no nal da década de 1980
havia o Sepultura… e havia todo o resto.
Contudo, eram jovens, ainda tinham muito a provar e estavam
mais do que prontos para o desa o.
Não houve nenhuma fórmula mágica na criação desse álbum que
em breve seria um clássico, nada além da intensa química que
existia entre os quatro membros. A maioria das canções evoluiu a
partir de simples jams, de Max e Andreas tocando ri s um para o
outro para ver o que cava bom. A maior parte do material foi
composta no barracão de Paulo, exceto por “Slaves of Pain”.
“A gente mudou só o nal”, disse Andreas, “mas ‘Slaves of Pain’
era basicamente uma música do Pestilence.”

ALÉM DAS INFLUÊNCIAS-PADRÃO, COMO Bathory, Slayer, Kreator e Vio-


lence, o punk hardcore começava a se in ltrar no Sepultura. Bandas
como Dead Kennedys, English Dogs, Trouble, Discharge e COC, com
suas letras socialmente conscientes e politicamente críticas, tocavam
sem parar em seus estéreos. Estavam ampliando seus horizontes
musicais, tornando-se mais completos não só como artistas, mas
como fãs de música em geral.
Nos Estados Unidos, a Roadrunner estava analisando uma lista
de possíveis produtores para o álbum… e rapidamente cando sem
opções. Resumindo, ninguém queria fazê-lo. A verba era minúscula,
o pagamento, menor ainda, e a pessoa escolhida teria de vir ao
Brasil durante o pico do verão e trabalhar durante o Natal.
O único trabalho como produtor no currículo de Scott Burns até
aquele momento era um crédito que o Obituary colocara no disco
Slowly We Rot por cortesia, embora ele tivesse trabalhado como
engenheiro de som para o Death, o Morbid Angel e outras bandas.
Burns era peixe pequeno na Morrisound Recording em Tampa,
Flórida, a base da cena death metal com a qual Max tinha se
correspondido apenas alguns anos antes. Apesar de não ter muita
familiaridade com o Sepultura, Burns já tinha ouvido falar da banda.
Durante as sessões de gravação para o disco do Obituary, os também
irmãos Don e John Tardy costumavam colocar Schizophrenia para
tocar no estúdio, sempre enfatizando como era implacável.
Quando a Roadrunner contatou Burns sobre o trabalho, ele
agarrou a oportunidade. Como poderia dizer não? Apesar do
pagamento baixo e do feriado longe de casa, ele teria uma viagem
paga para o Brasil, um país onde nunca estivera, e seu primeiro
trabalho de verdade como produtor. A experiência em si já valia a
pena. Ansioso e entusiasmado, ele até se vestiu a caráter: encontrou
a banda no aeroporto usando bermuda e havaianas.
Adaptou-se imediatamente.
Em 15 de dezembro de 1988, as gravações começaram no
estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, cujo dono e operador era
Liminha, da banda Os Mutantes (o Sepultura homenagearia a
lendária banda ao gravar um cover da faixa “A hora e a vez do
cabelo nascer” durante as sessões). Porém o trabalho não começou
sem contratempos. No primeiro dia de Burns no Brasil, seu quarto
de hotel foi invadido, e todo o equipamento que trouxera para a
banda, incluindo tas e um estéreo portátil para ouvir mixagens
iniciais, foi roubado. As fechaduras na porta do quarto estavam
intactas, o que só poderia signi car que os ladrões eram membros
da equipe do hotel querendo tirar proveito de um gringo ingênuo. E
isso ocorreu depois de a Roadrunner ter sido obrigada a enviar mais
dinheiro a Burns, pois fora necessário pagar taxas no aeroporto para
conseguir passar o equipamento pela alfândega.
Mas nem a banda nem o produtor se deixaram abater.
Trabalhavam à noite, das oito às cinco da manhã, já que o estúdio
era mais barato nesse horário, e dormiam durante os dias
brutalmente quentes de verão.
Para o Sepultura – em especial Max e Andreas –, o Rio não tinha
o charme que o americano via. Burns parecia ser o único a apreciar
a estada lá, passeando pelas praias, tomando drinques no famoso
Bar Veloso, onde nasceu a famosa canção “Garota de Ipanema”.[1]
Ele estava determinado a aproveitar ao máximo a experiência.

Max e Igor na Praia Grande. Abril de 1990.


E, embora às vezes fossem obrigados a se comunicar através de
intérpretes (a banda ainda lutava com o inglês, e o português de
Burns era inexistente), todos sentiam que algo especial estava
acontecendo no estúdio. Os membros do Sepultura se sentiam em
uma banda de verdade, trabalhando pela primeira vez com um
produtor de verdade em um álbum que seria lançado globalmente (e
legalmente dessa vez, no caso da Europa). Mas houve alguma
apreensão. Eles haviam produzido todas as suas próprias gravações
até aquele momento e estavam preocupados quanto a abrir mão do
controle e passá-lo para alguém “de fora” do grupo, alguém que não
tivesse a mesma conexão com a música que eles tinham.
Não precisavam ter se preocupado. Burns, na maior parte do
tempo, permitia ao Sepultura fazer o que faziam melhor. Estava
concentrado somente em alcançar a maior qualidade possível na
produção e, além disso, em conseguir que cada membro da banda
desse seu máximo.
Foram ao trabalho, e foram rapidamente, porque tinham apenas
duas semanas para gravar. Para Max, Andreas e Igor, isso não era
problema. Tinham ensaiado as músicas a ponto de tocá-las quase
inconscientemente. Paulo, no entanto, mesmo sabendo as músicas,
era incapaz de executá-las sob a pressão de um prazo tão apertado.
Tocar ao vivo e em estúdio são coisas completamente diferentes.
Para muitos, a ideia de pisar em um palco e encarar o público é
assustadora o bastante para fazer a pessoa congelar ou desmaiar.
Trabalhar em estúdio seria in nitamente preferível para esse tipo de
pessoa, já que qualquer erro pode ser facilmente acertado ou
regravado.
Mas para alguns músicos o estúdio é um espaço restritivo e
opressivo onde o estresse de tocar sob pressão – e com tempo
limitado e caro – faz que tocar bem seja impossível. O palco, nesses
casos, é um santuário, onde notas perdidas e erros são aceitáveis no
calor da batalha e costumam nem ser notados pela massa de corpos
em convulsão na plateia.
Com um depressivo Paulo não aparecendo muito no estúdio,
Andreas gravava as entradas de baixo para o álbum. Mesmo assim,
caram sem tempo para completar a gravação, e Max teve de ir à
Flórida para poder nalizar os vocais no estúdio Morrisound.
A introdução acústica de “Beneath the Remains”, com suas ondas
ambientais em progressões de notas em escala menor, tem efeito
similar ao da introdução de Schizophrenia. Ela prepara o ouvinte
para a porradaria brutal e frenética que se segue. A banda tirou
proveito das inclinações de Andreas Kisser para a música clássica,
trabalhando a dinâmica do tema recorrente da calmaria antes da
tempestade na abertura do álbum.
E a primeira faixa é de nitivamente uma tempestade.
Repleto de ponta a ponta de um ri monstruoso atrás do outro,
Beneath the Remains deixou claro que o Sepultura havia evoluído. A
faixa-título já apresenta tudo o que de nia a banda naqueles dias,
dos berros rápidos característicos de Max e das evoluções de bateria
de Igor criativamente inspiradas no Slayer ao segmento instrumental
com elementos de música clássica após o solo de guitarra de
Andreas Kisser.
A maior diferença que os fãs perceberiam, porém, estava nas
letras.
Ainda que Schizophrenia tivesse se desviado da clara temática
macabra e satânica de Morbid Visions e Bestial Devastation, mantinha
algo de fantástico, de irreal. Entretanto, em Beneath the Remains, o
Sepultura parece mais losó co e mais atento ao que ocorre no
mundo. Mesmo que ainda não tão críticas em relação ao Brasil em
particular, como alguns trabalhos posteriores seriam, essas letras
mostram Max ertando com assuntos mais próximos da realidade
deles. A música “Beneath the Remains” descreve um quadro sombrio
de uma sociedade devastada pela guerra e pela destruição nuclear,
instigando questões profundas: há realmente vencedores em uma
guerra de tamanha escala? E será que a luta termina um dia? As
respostas parecem evidentes quando a música chega a um m súbito
com o som de tiros e morteiros.
Esses sons de guerra abrem caminho para “Inner Self”, uma
espécie de hino para o Sepultura, que acabaria ganhando um
videoclipe e se tornando um hit relativamente famoso da banda. Os
versos em velocidade mediana são bem mais acessíveis para um
público mais amplo; mas quando o ouvinte se pergunta se seus
queridos brasileiros começaram a car menos ferozes, a velocidade
frenética de sempre ressurge. Essa alternância entre momentos de
simplesmente balançar a cabeça e de fazer um puro headbang –
acompanhando inclusive a batida da poesia falada de Max sobre
guitarras limpas e ri s sujos – é o som de uma banda buscando o
novo, explorando. As letras de Max são mais pessoais do que nunca,
expondo seus sentimentos da época em que caminhava pelas ruas
perto de sua casa sendo julgado por todas as pessoas “normais” ao
seu redor.
Aniversário de 21 anos de Max. São Paulo, agosto de 1990.

“Stronger Than Hate” continua a viagem na relação de vai e


volta entre o rápido e o lento e no jogo de trocas entre Max e
Andreas como guitarristas. São músicos bem diferentes: Max usando
apenas quatro cordas de sua guitarra, já que nunca precisou das
duas cordas altas; e Andreas, o mais técnico da dupla. Mas aqui se
tornam mais conectados, mais do que apenas Max fazendo a base
dos ri s por baixo da levada de Andreas. De modo similar ao que
ocorre no segmento instrumental em “Beneath the Remains”,
Andreas executa melodias complexas por sobre os acordes
incansáveis de Max, abrindo dimensões mais amplas no som do
Sepultura.
Na terceira música, Igor já superara seu próprio talento, e mais
ainda o de seus contemporâneos. Sua intuição é certeira,
acentuando as guitarras quando apropriado, por vezes fazendo a
banda soar como uma metralhadora destroçando em um padrão
rítmico especí co. Mas ele sabe quando se desvencilhar também,
escapando para um tipo de groove que a banda aperfeiçoaria no
decorrer da carreira.
Na sequência, vêm “Mass Hypnosis” e a crítica mordaz de Max à
mentalidade do “seguidor” e àqueles que usam seu poder e
in uência para manipular essas pessoas. Enquanto compunha a
música de forma descontraída nos ensaios, Andreas tropeçou em um
fraseado estranho, de notas altas e dissonantes, que soava ao mesmo
tempo esquisito e legal quando incorporado ao ri de abertura.
Trechos similarmente atípicos de guitarra solo seriam usados em
diversas introduções de músicas ao longo dos anos, tornando-se uma
marca registrada do som do Sepultura.
Outra marca se torna evidente em “Sarcastic Existence”, na qual
acordes oitavados em slide sobre a base conferem uma qualidade
elevada e vocal ao trabalho de Andreas. Sem apontar demais para
ela, a marca de Kisser já se encontra em todo o Beneath the Remains.
As in uências da banda ainda transparecem em certos pontos,
como no caso do distinto tributo ao Metallica pouco antes da
entrada dos vocais em “Sarcastic Existence”. Muito da música, na
verdade, possui algo de épico à la Metallica, das faixas mais longas
dos tempos de Ride the Lightning e Master of Puppets. Mesmo ao
encadear uma parte de guitarra entorpecente atrás da outra, a faixa
em ponto nenhum degringola em uma temível “sopa de ri s” –
expressão cunhada para descrever o processo, sem sentido, de en ar
ri s em uma música sem que haja uma real progressão ou razão
para tal.
Andreas continua a imprimir sua marca profunda no Sepultura
com “Slaves of Pain”, uma das faixas mais tecnicamente complexas
do disco. É quase difícil acreditar que ele a tivesse composto bem
antes de entrar para a banda, levando-se em consideração quão bem
a música se encaixa na sequência. “Lobotomy” segue por essa
estrada técnica com seus compassos compostos circulares, repiques
de bateria que seguem partes de guitarra igualmente percussivas e
um solo especialmente melódico. Após o solo, em ritmo stop/start,
Kisser introduz um ri notavelmente similar ao clássico presente em
“Crazy Train”, porém acelerado a 45 rotações por minuto – uma
homenagem a seu herói Randy Rhoads.
“Lobotomy” e “Hungry” representam um ligeiro retorno aos
versos com excesso de palavras de Schizophrenia, com o sotaque e o
inglês limitado de Max quase atrapalhando. Parte do encanto,
todavia, está na imperfeição bruta dos vocais. Max não canta como
qualquer um, e seu sotaque descaradamente pesado soava exótico
para qualquer um fora do Brasil.
A temática de “Hungry” parece fazer referência direta à
corrupção política no país. O povo, Max lamenta, está passando
fome, está desnutrido; enquanto os ricos têm fome apenas de
dinheiro, os poderosos têm fome apenas de mais poder.
Apesar de ter sido incluída na última hora, “Primitive Future”
(nomeada em referência a um vídeo cult clássico de skate chamado
Future Primitive) é tão poderosa que o Sepultura passaria a usá-la
para abrir shows em turnês que ainda viriam. Igor passa com
destreza da velocidade debulhante ao groove cadenciado, enquanto
a letra de Max e Andreas pondera sobre um mundo morto, fazendo
referência ardilosa a sua terra natal com um verso sobre acordar um
gigante adormecido. O solo de Kisser é extremamente expressivo,
quase uma canção por si só, e tudo chega ao m com um baque
violento.
Beneath the Remainsé difícil de ser categorizado, passando por
quase todas as vertentes de metal. De forma semelhante ao Slayer,
cujo clássico álbum Reign in Blood contém dez músicas em pouco
menos de meia hora, o Sepultura alcançaria o status de lenda do
underground com nove faixas que somam pouco mais de meia hora.
A história por trás da capa de Beneath the Remains ganhou
contornos de mito, talvez pelo fato de – como em outras passagens
da história do Sepultura – haver mais de uma versão. Como diz o
ditado, quando duas pessoas contam versões diferentes do mesmo
caso, a verdade costuma estar no meio-termo.
Se acreditarmos em Max Cavalera, estaremos, então, aceitando o
seguinte: Max descobriu a arte de Michael Whelan na capa de uma
coleção de H. P. Lovecraft intitulada Bloodcurdling Tales of Horror
and the Macabre e enviou o livro para Monte Conner, que, por sua
vez, entrou em contato com o artista. Whelan concordou em
licenciar a obra, mas, por alguma razão, Conner a ofereceu ao
Obituary, para a capa de seu álbum Cause of Death, em vez de deixar
o Sepultura usá-la. Max cou, muito compreensivelmente,
indignado.
Donald Tardy, baterista do Obituary, desconversou essa história.
Desde então tem a rmado que Monte Conner ofereceu a arte para as
duas bandas ao mesmo tempo, e o Obituary simplesmente a pegou
primeiro.
Seja qual for o caso, a arte que acabou na capa de Beneath the
Remains não poderia ter sido mais perfeita. Um crânio pintado de
um laranja escuro como fogo, posicionado fora de centro, com o
novo logotipo do Sepultura, mais legível, estampado sobre uma
vasta extensão de espaço preto. Intitulada Nightmare in Red, a arte
era simples e atraente. Em relação às capas de heavy metal da
época, era muito mais sutil do que as representações explícitas de
carni cina e evisceração vistas nas capas do Slayer ou do Cannibal
Corpse e, ainda assim, evocava uma atmosfera sombria que lembra
os escombros de guerras. E a música também soava assim. Da tensão
clara da abertura – aquela calmaria pré-tempestade que embala os
ouvintes e os leva a uma falsa sensação de segurança – até o m
súbito e apocalíptico de “Primitive Future”, Beneath the Remains era
o Armagedom em forma de som.
O Sepultura, desde o início, sempre teve a sorte de ter ajuda,
apoio e dedicação de um grupo apaixonado de amigos. Um deles era
Eric de Haas, um famoso fotógrafo holandês, creditado dessa forma
no álbum.
“Eu acabei mudando para o Brasil em novembro de 1988”,
explica Eric, “e o Sepultura começou a gravar seu álbum pouco
depois disso. Como eu era fotógrafo e trabalhava para a maioria das
revistas de rock europeias e americanas da época, muitas pessoas
me conheciam, já que essas revistas estavam disponíveis aqui no
Brasil também. O Sepultura era a banda de que todos estavam
falando com entusiasmo, então amigos em comum me levaram ao
estúdio em que eles estavam gravando, no Rio de Janeiro, para dar
uma conferida.”
O apartamento de Max e Igor em Santa Cecília. 1990.

Os rapazes logo perceberam que as oportunidades em Minas


Gerais eram limitadas e que, se quisessem tentar a sorte grande,
deveriam deixar Belo Horizonte. Não houve dúvida. Todos sabiam
para onde deveriam ir.
São Paulo.
Durante um nal de semana, Vânia viajou sozinha para São
Paulo e, para fazer uma surpresa a seus garotos, alugou um
apartamento para Max e Igor em Santa Cecília. Paulo foi morar com
Andreas em Santo André. O quarteto se encontrava todo dia para
ensaiar na Pompeia, não muito longe de onde os irmãos Cavalera
tinham sido criados.
Também era bem perto de onde Eric de Haas morava.
“No começo de 1989”, disse Eric, “Max, Igor, sua mãe e sua irmã
se mudaram para a região central de São Paulo e acabaram morando
a um quarteirão do apartamento que eu tinha alugado. Então
viramos vizinhos e logo depois bons amigos; eles vinham todo dia
ao meu apartamento, a gente saía toda noite, e Max e eu nos
tornamos companheiros de gandaia inseparáveis na época.”
Embora Max estivesse longe de qualquer compromisso, Igor já
tinha iniciado o processo ao namorar sério com uma garota que
havia conhecido três anos antes.
“Eu tinha uma amiga”, relembra Monika Bass Cavalera (na
época, apenas Monika Bass), “e ela chegou em mim e disse que
tinha dois caras bonitinhos de Belo Horizonte em São Paulo e ela
gostava de um cara chamado Igor. A gente foi para a casa dessa
menina, e ela tava tentando car com o Igor, e eu tava lá com o
Max, porque era para ser dois casais, né? E então era eu e o Max, e
eu tive que passar a noite conversando com ele, e aí eu não o vi por
mais uns três anos. Nenhum contato, nada. Mas eu via o Igor tipo
uma vez por ano – ele tinha namorada e eu tinha namorado –, e
então, no terceiro ano, a gente se encontrou de novo, e ele estava
solteiro e eu estava solteira, e a gente começou a sair. Quando eu
conheci eles eu tinha 18, e quando comecei a sair com o Igor eu
tinha 21.”
O apartamento dos irmãos Cavalera rapidamente se tornou
conhecido como um reduto de festas, pessoas entrando e saindo a
qualquer hora da noite. Os membros do Sepultura, enquanto
indivíduos, estavam aproveitando a vida. Eram músicos jovens que
gostavam de diversão ascendendo vertiginosamente à fama no Brasil
e além, prestes a avançar para territórios inesperados com Beneath
the Remains.

A ROADRUNNER LIBEROU ESSA fera em 7 de abril de 1989 com esperança


cautelosa. Claro que queriam que tivesse sucesso, esperavam que
tivesse sucesso, mas mantiveram as expectativas baixas. Tão baixas
que a primeira prensagem do álbum não continha encarte, nem as
letras das músicas. A gravadora estava hesitante em colocar muito
dinheiro na promoção, mais ainda em pagar para a banda fazer uma
turnê fora de sua terra natal, até que o álbum mostrasse força.
A realidade nos negócios da indústria musical era dura, um
círculo vicioso de justi cação. As vendas de álbuns eram utilizadas
para nanciar turnês, que eram usadas para promover os álbuns.
Sem promoção, como o Sepultura poderia esperar que o álbum
vendesse? E, se o álbum não vendesse, como poderiam ter dinheiro
para promovê-lo?
A situação se resolveu sozinha. O reconhecimento mundial de
Beneath the Remains foi imediato, vendendo mais de 200 mil cópias
na Europa e nos Estados Unidos, e quase da noite para o dia
surgiram oportunidades para o Sepultura levar seu estilo peculiar de
metal sul-americano para terras estrangeiras. Acostumados a fazer
apenas dois ou três shows por mês até então, a chance de fazer uma
turnê além de suas próprias fronteiras era ao mesmo tempo
inesperada, muito desejada e incrivelmente assustadora.
Uma excursão pela Europa com a lenda do thrash Sodom,
inicialmente prevista para julho, foi cancelada devido a atrasos na
gravação do grupo alemão, então o Sepultura embarcou em uma
breve turnê pelo Brasil chamada Tour of the Remains. Em um desses
shows, em 22 de julho, com o Atômica de apoio, começaram a
lmar o videoclipe de “Inner Self”. Precisavam de um segundo dia
para completar o vídeo, mas ninguém conseguia se lembrar que
roupas estavam usando durante as gravações do primeiro dia.
O clipe é um marco, justapondo imagens da insanidade do
público com outras da banda à vontade fora do palco. Primeiro
single do álbum e também primeiro vídeo promocional da banda,
“Inner Self” se tornou um hino para o Sepultura.
Nos meses seguintes, alguns outros convites internacionais
chegaram (o mais notável era para uma turnê europeia com o
Nuclear Assault e o Dark Angel), mas nada concreto foi acertado.
Os rapazes temeram ter perdido sua chance. Sabiam que, na
indústria musical, as portas das oportunidades se abriam de forma
breve e, se os artistas não entrassem correndo quando tinham uma
chance, podiam nunca mais ter outra.
Mas a chance com o Sodom acabou reagendada para setembro, e
o Sepultura atravessou a porta. No dia 12 daquele mês, os
brasileiros partiram de São Paulo para Dusseldorf, onde pegaram um
ônibus para Viena, na Áustria, e se juntaram à turnê Agent Orange
Tour, no dia 15.
Para entender quão avassalador esse pequeno feito foi, é preciso
pensar em retrospecto. Um ano antes, o Sepultura tocava
principalmente em festivais underground no Brasil com várias
outras bandas, pois não tinha verba para nanciar seus próprios
shows. Um ano antes dos festivais tinha de dividir uma mesma
guitarra com duas outras bandas, e, não muito antes disso, Igor
precisava de um amigo para segurar o cabo de vassoura que usava
como suporte de prato para que não caísse enquanto tocava.
Agora estavam na Europa, a milhares de quilômetros de casa, em
sua primeira turnê fora do Brasil, a primeira viagem para fora da
América do Sul que faziam juntos.
O astral da banda estava a todo gás quando chegaram ao local
do show na Áustria. Já imaginavam encontrar uma legião de fãs do
Sodom – e apenas do Sodom – esperando, mas caram surpresos ao
encontrar um mar de garotos vestindo camisetas do Sepultura já em
la em frente à casa de shows.
Era o primeiro de muitos bons sinais.
Os brasileiros subiram ao palco naquela noite, ansiosos e prontos
para mostrar à Europa o que sabiam fazer, e abriram sua
apresentação com um combo de porradas: “Primitive Future” e
“Inner Self”. Dominaram a plateia, espreitando-a com sangue nos
olhos, como se fosse sua primeira – e última – apresentação.
Os membros do Sodom, por outro lado, eram veteranos, e
veteranos talvez um pouco cansados. Tocavam com muito menos
intensidade, Igor comentou mais tarde, como se fosse apenas um
trabalho para eles. A multidão também percebeu. O Sepultura,
estimulado pela energia do público, bem como pela falta de energia
do Sodom, tocava com mais e mais fúria a cada noite.
Com ciúmes da reação dos fãs ao Sepultura, ou apenas frustrado
por ter de dividir um ônibus com brasileiros que falavam um inglês
tosco e nada de alemão, o Sodom se deu ao trabalho de fazer da
turnê um verdadeiro inferno para seus companheiros de excursão.
Ou, pelo menos, tentou.
Nada poderia abater o espírito do Sepultura. Nem as instruções e
regras do manager que não conseguiam entender, nem o tempo
incrivelmente curto que tinham para comer durante as paradas na
estrada. Nem mesmo a exigência de que Max tomasse um banho
porque cheirava mal.
Era uma banda que se unia ainda mais na adversidade. Deixe um
deles puto e você deixa todos putos. Quando Max decidiu não tomar
banho pelo resto da turnê, Igor, Andreas e Paulo aderiram ao pacto.
Nenhum deles tomaria banho pelo resto da turnê.
Entretanto, esse plano de ataque passivo-agressivo acabou saindo
pela culatra. Após uma semana se apresentando em casas de show
úmidas e quentes, encharcando de suor seus cabelos e roupas, os
membros da banda não conseguiam aguentar o próprio fedor.
A vingança nal contra o Sodom veio de forma não planejada e
inesperada. Conforme a turnê seguia, mais e mais fãs iam aos shows
somente para ver o Sepultura, saindo do local aos montes logo após
os brasileiros terminarem de tocar. Um evento no lendário Marquee
Club de Londres foi particularmente embaraçoso para a atração
principal. Quase todo o público se retirou depois da performance do
Sepultura. Apenas vinte ou trinta pessoas – em um espaço com
capacidade para setecentas – caram para ver o Sodom.
Não poderiam ter imaginado um começo melhor para sua
carreira internacional.
Duas semanas depois do show nal na Europa, o Sepultura
invadiu o mercado mais cobiçado por eles até então, e de forma
imponente. Na noite de Halloween – oportunamente – e no lendário
Ritz Theater, em Nova York, abriram para um de seus heróis de
infância: o vocalista do Mercyful Fate, King Diamond.
Naquela noite também se apresentou o Sacred Reich, colegas da
Roadrunner, acompanhado por sua empresária Gloria Bujnowski,
que recentemente havia sido convidada pela gravadora para assumir
o Sepultura. Gloria não aceitou, apesar de, assim como Monte
Conner, ter cado intrigada com a reputação da banda.
Ela cou extasiada ao vê-los tocar e imediatamente percebeu o
enorme potencial do grupo. Gloria decidiu naquele momento que
iria gerenciá-los, porém apenas depois que a banda tivesse honrado
completamente seu contrato vigente ou achado um meio de encerrá-
lo.
Em seguida saíram em uma turnê, como atração principal, ao
lado do Faith Or Fear. Ao mesmo tempo que Beneath the Remains
continuava vendendo bem, o público dos shows era decepcionante,
isso devido à promoção bastante pobre. A banda recebia pouco
apoio nanceiro na estrada, mas já estava mais do que feliz apenas
por estar na estrada, e nos Estados Unidos ainda por cima. Reuniu-se
novamente com Gloria em um show em Phoenix, sua cidade natal,
para discutir a parceria que seria selada em breve. A turnê terminou
alguns dias depois, e a banda voltou ao Brasil animada quanto às
perspectivas para o futuro.
Contudo, apesar do sucesso, Max, Igor, Andreas e Paulo não
viam a cor de qualquer dinheiro vindo da Roadrunner.
Eric de Haas explica: “Eu conhecia as pessoas na Roadrunner e o
proprietário, Cees Wessels, muito bem, já que a Roadrunner é uma
empresa holandesa e eu era um dos únicos fotógrafos holandeses
trabalhando para revistas de metal na época. Então já nos
conhecíamos havia muitos anos antes de eu me mudar para o Brasil.
O contrato que Max tinha assinado com a Roadrunner em sua
viagem a Nova York era o tipo de contrato oferecido pela gravadora
para a maioria das bandas da época, e com a falta de conhecimentos
de inglês e a ansiedade para assinar com uma gravadora de fora do
Brasil, aceitaram-no do jeito que veio”.
Talvez nem seja preciso dizer que havia muitos detalhes no
contrato que os membros da banda não entendiam. “Eles estavam
muito felizes por assinar para o lançamento do álbum e para itens
de merchandise e planos futuros ao mesmo tempo”, disse Eric, “mas
só mais tarde descobriram que – mesmo depois de um certo tempo e
vendas altas do álbum e dos itens – continuariam sem receber
dinheiro algum. O contrato tinha uma cláusula estipulando que
mesmo dinheiro de itens de merchandise poderia ser usado para
cobrir os investimentos no álbum, o que signi cava que, cada vez
que a Roadrunner tinha que pagar os direitos de vendas de
mercadorias para a banda, por exemplo, ela investia de alguma
forma – em uma nova gravação ou ainda em outra turnê ou algo
assim.”
Como resultado, o Sepultura nunca recebia.
Max e Paulo no Dynamo Open Air. 1990.

“A situação nanceira na época estava bastante delicada para


Max, Igor e sua mãe”, continua Eric, “então, em certo momento, eu
liguei para Cees e disse que o contrato que Max tinha assinado era
válido, naturalmente, e que a banda estava feliz com ele, mas que
ela não poderia sobreviver sem dinheiro e que, então, ele deveria
começar a mandar dinheiro para o Brasil ou haveria uma grande
chance de a banda simplesmente deixar de existir, porque os irmãos
não seriam capazes de sobreviver sem uma fonte de renda ou um
emprego normal. Cees entendeu a situação e só pediu uma conta
bancária para depositar o dinheiro, e, na mesma semana, eles
receberam seus primeiros 10 mil dólares.”
Naqueles dias, essa quantia era uma fortuna no Brasil.
Em maio de 1990, o Sepultura fez alguns shows com o Napalm
Death no Brasil antes de embarcar em uma segunda rodada de
eventos na Europa. Seu inglês já havia melhorado, principalmente
devido à viagem e a conversas com os fãs americanos e também pela
utilização do inglês como língua secundária mútua em países
europeus. O nome da turnê – Death from the Jungle – era bastante
irônico, já que eles eram garotos da cidade; nenhum deles morava
em um lugar sequer próximo a uma oresta, a menos que as selvas
de concreto de Belo Horizonte e São Paulo fossem levadas em
consideração. No entanto, enquanto jogada de marketing,
funcionava. Raros não brasileiros tinham noção de que a Amazônia
cava a centenas de quilômetros – e era absurdamente diferente –
das metrópoles movimentadas onde os membros do Sepultura
haviam crescido. Death from the Jungle despertou a curiosidade e o
interesse daqueles que ainda não tinham conseguido pôr as mãos em
uma cópia de Beneath the Remains.
O ponto alto da turnê foi uma apresentação no Dynamo Open
Air, na Holanda, para 26 mil pessoas, em 4 de junho. Esse era, de
longe, seu maior público até então, e estavam todos muito nervosos,
com medo de desmaiar ou cair no palco. Como de costume, porém,
no calor do momento, o Sepultura detonou durante sua
apresentação de uma hora e deixou a multidão ensandecida,
implorando por mais.
E, novamente, tinham que agradecer a Eric de Haas por isso.
Eric conta: “Um bom amigo holandês, Andre Verhuysen, era o
organizador do Dynamo Open Air e estava cuidando de turnês por
toda a Europa (e também era próximo das pessoas na Roadrunner),
então eu falei com o Andre sobre o Sepultura tocar no festival e
sobre organizar uma turnê deles pela Europa, já que o álbum estava
recebendo boas críticas em todos os lugares. Andre e eu falamos ao
telefone sobre todos os detalhes. Eu, então, repassei tudo para a
banda, e o Andre montou a primeira turnê europeia deles”.
Todavia, como no caso de Andreas na época de Morbid Visions,
Eric, na verdade, não estava propriamente trabalhando para o
Sepultura; estava apenas fazendo o que podia para ajudar. “Era mais
como ajudar os amigos, sem ter nenhum laço comercial. Em 1990,
eu trouxe o Napalm Death ao Brasil para fazer três shows em São
Paulo, por exemplo. Embora o Sepultura fosse o grupo de heavy
metal de que todo mundo falava, havia também uma forte crença
entre os brasileiros de que qualquer coisa de fora do Brasil era
melhor do que a nacional. Assim, eu aproveitei a oportunidade para
colocar o Sepultura como a atração de apoio ao Napalm Death, mas,
no terceiro dia, troquei eles de lugar e coloquei o Napalm Death
abrindo para o Sepultura, para mostrar claramente que vir do Brasil
não era sinônimo de ser inferior, ou que vir do exterior não era o
mesmo que ser superior. Isso certamente causou um grande impacto
por aqui naquela época.”
O Dynamo Open Air marcou outra mudança signi cativa para a
banda. O Sacred Reich também estava escalado para tocar, o que
signi cava que Gloria Bujnowski – que sempre acompanhava suas
bandas na estrada – também estava lá. Como o Sepultura havia (de
forma bem cara) conseguido se desvencilhar de seu contrato
anterior, Gloria concordou em trabalhar com eles por um ano, sem
cobrar nada, em caráter experimental. Como era uma pessoa prática
que punha a mão na massa, entendia a importância de assegurar
boas relações pessoais.
Contudo, sempre há riscos envolvidos em se aproximar demais
nas relações de negócio, e algumas dessas interações pessoais teriam
consequências desastrosas.
“O Sepultura queria assinar com um empresário de fora do
Brasil”, conta Eric, “e, quando Gloria apareceu pela primeira vez na
história, eles acabaram marcando uma reunião durante a turnê, e
ela até os acompanhou por alguns dias, se não me engano, para ter
tempo de se conhecerem melhor. Claro, eles perguntaram minha
opinião, e, como Andre já tinha trabalhado com Gloria e tido boas
experiências, eu sugeri que fossem em frente, se possível.”
Nos cinco meses entre turnês, em 1990, eles já tinham começado
a trabalhar no próximo álbum. Com seu trabalho de estreia na
Roadrunner tendo se tornado um sucesso altamente inesperado nos
círculos de death metal, a gravadora e a banda acharam que seria
melhor compor músicas novas e voltar ao estúdio o mais rápido
possível. Não queriam dar a ninguém uma chance de respirar;
depois de acertar a todos com um álbum devastador e shows
insanos, queriam nocauteá-los enquanto ainda estavam tontos e com
os joelhos fracos.
Em agosto, o Sepultura voltou ao J. G. Studios, em Belo
Horizonte, por alguns dias para gravar uma versão nova e
tecnicamente melhorada de “Troops of Doom”. A faixa fora
escolhida para entrar como bônus no lançamento da versão norte-
americana de Schizophrenia, totalmente remixada por Scott Burns.
Paulo, Igor, Max e Andreas viajaram para a Flórida e passaram
um mês e meio gravando o álbum seguinte com Burns. Dessa vez,
todo o processo ocorreu no Morrisound, com Andreas novamente
gravando o baixo. A Roadrunner ofereceu um orçamento
consideravelmente maior, pois agora julgava o Sepultura um
produto de retorno garantido, e Burns estava cando conhecido
como o grande produtor de death metal.
No nal daquele ano, a banda retornou aos Estados Unidos para
a SOS Tour, dividindo o palco com o Obituary e o Sadus, com Gloria
no comando. Essa turnê superou em muito a anterior. As casas de
show lotaram de metaleiros suados, delirantes e extasiados atraídos
pela programação brutal e o slogan “Some Tours Were Meant To
Stay Underground”.[2]
“Perigosa” seria uma descrição apropriada para a programação.
Em Milwaukee, o Obituary detonou um artefato pirotécnico não
autorizado que causou uma explosão considerável e queimou o
bumbo de Donald Tardy. A última noite da turnê, em 23 de
dezembro, terminou em caos. No Omni, em Oakland, Califórnia, o
Sadus – tocando em sua cidade natal – embebedou todas as bandas.
Claro, as festas eram comuns em todo show, mas aquela noite foi
muito além do normal. Brigas, vômitos, equipamentos destruídos e
ressacas avassaladoras eram apenas alguns itens no menu.
Também naquela noite, o Sepultura recebeu um presente de
Natal antecipado com a presença de James Het eld e Lars Ulrich do
Metallica na plateia. O Metallica estava em alta na época, devido à
gigantesca popularidade do disco …And Justice for All. Eram ídolos
que o Sepultura admirava mesmo antes de músicas como “Welcome
Home (Sanitarium)” e “One” tornarem-se singles de sucesso em
todos os cantos do mundo. Os brasileiros se sentiam como crianças,
com vertigens e sem acreditar que estavam tocando para seus heróis
– e ainda por cima confraternizando com eles – na base da cena
thrash metal da Bay Area.
Contudo, a banda havia recebido um pouco antes a notícia mais
chocante de sua carreira até aquele momento. Sendo os únicos
roqueiros brasileiros famosos o su ciente para fazer shows no
exterior, haviam sido con rmados para tocar, no ano seguinte, no
Rock In Rio.
SE JÁ SERIA IMPOSSÍVEL ignorar a importância – para o Brasil de modo
geral – do primeiro Rock In Rio, o mesmo vale para a segunda
edição do evento e seu impacto no Sepultura. Promotores os
escalaram para abrir as festividades no Estádio do Maracanã na
noite de 23 de janeiro de 1991, a noite que veria Megadeth, Guns n’
Roses, Judas Priest e Queensryche se apresentar.
A inclusão da banda entre as atrações despertou a atenção das
pessoas para o pequeno grupo chamado Sepultura. É claro que
muitos brasileiros tinham ouvido falar deles, mas poucos fora dos
círculos de iniciados no heavy metal underground entendiam sua
importância em escala global.
Embora o novo álbum ainda não estivesse completamente
nalizado, Scott Burns montou às pressas uma versão menos
trabalhada para lançar de forma limitada, e só no Brasil, para
celebrar a ocasião. Pouco antes do festival, Max, Tuka Quinelli, Eric
de Haas e um grupo de amigos se encontraram na Praia Grande e
estavam agradavelmente envolvidos no consumo de cerveja, batidas
e vodca, quando um grupo de fãs reconheceu Max e se juntou à
festa. Pouco tempo depois, uma pequena multidão tinha se formado,
e Max começou a dizer que a música que vinha do aparelho de som
do seu carro era o novo álbum do Sepultura. Aqueles garotos
caram em êxtase por estarem ouvindo Arise em primeira mão e
com Max, e encheram o metaleiro mineiro de elogios. Na verdade,
Tuka contou depois, rindo, que a música era o trabalho solo da ex-
vocalista do Plasmatics, Wendy O. Williams.

NOS BASTIDORES, ANTES DA apresentação, o Sepultura foi visto como


uma banda de amadores. Embora os membros do Megadeth fossem
amigáveis – encontraram-se com os brasileiros e perguntaram se
gostariam de se juntar a eles para o jantar –, os promotores haviam
proibido o Sepultura de entrar nas tendas VIP, onde as bandas
estrangeiras eram tratadas como realeza. Eles não ganharam um
centavo pela apresentação, e a Roadrunner teve de pagar todas as
contas.
Era uma situação típica desses grandes festivais internacionais.
Atrações nacionais eram consideradas de segunda linha. As bandas
gringas eram aquelas que atraíam o grande público. O Sepultura
tinha sido jogado na mistura como uma obrigação, na última hora.
Pouco antes de subir ao palco, no calor escaldante de um verão
tropical, Igor, Andreas, Max e Paulo eram um turbilhão de energia
nervosa. Esse era sempre o momento de maior ansiedade, Andreas
explicou. O momento nal pré-show.
Assim que Max animou a multidão de 70 mil pessoas gritando
“Vamos detonar, Rio!” e Igor começou a introdução que levou a
“Primitive Future”, o nervosismo se dissipou, e a adrenalina os
dominou.
O som estava terrível, o sistema de PA era uma droga. Os vocais
de Max estavam muito altos, as guitarras tão soterradas na mistura
que pareciam não existir, e a transmissão de TV ao vivo cruzava os
sinais de tempos em tempos, tocando a música de alguma outra
banda.
Mas aquela meia hora sobre o palco virou o mundo da banda de
cabeça para baixo.

Posando para fotos de kilt.

Os promotores achavam que o encaixe no início do evento


garantiria que o Sepultura entrasse e saísse com pouco ou nenhum
alarde, mas estavam fatalmente errados. Aquele era um público de
heavy metal em um dia de heavy metal. Estavam ávidos pelo
Sepultura e com tamanha intensidade que a atração seguinte, o
cantor e compositor Lobão – no lugar errado, na hora errada –, só
pôde tocar algumas músicas antes de ser enxotado do palco com
uma saraivada de pedras e garrafas. E as músicas que ele conseguiu
tocar foram abafadas por gritos ensurdecedores de “Sepultura!
Sepultura!”.
Apesar dos percalços, foi uma apresentação inegavelmente
triunfante, a primeira em território nacional desde 1989. De
repente, o Brasil entendeu o que todo o planeta já sabia: o Sepultura
estava prestes a conquistar o mundo da heavy music.
Alguns meses mais tarde, depois de uma mixagem adequada,
cortesia de Andy Wallace, o clássico instantâneo Arise chegava às
prateleiras das lojas. Ao mesmo tempo que as músicas atacavam
direto na jugular com uma mistura feroz de death e thrash metal, o
ouvinte mais atento perceberia traços de música industrial, punk e
até mesmo de samba e batucada. Quanto às letras, mais do que
nunca as canções re etiam a violência e a corrupção do Brasil, as
di culdades de crescer em um país em desenvolvimento, uma nação
do Terceiro Mundo. A produção e a qualidade de som estavam em
um nível superior ao de Beneath the Remains, devido ao orçamento
ampliado e ao trabalho magistral de Andy Wallace. O inglês de Max
continuava a melhorar, incrementando suas habilidades vocais; e as
letras estavam mais curtas, mais diretas, proporcionando maior
brutalidade e impacto.
Com Geezer Butler e Tony Iommi, do Black Sabbath.

Do Brasil para o mundo.


Arise deixa de lado qualquer tipo de enrolação, atacando forte e
rápido segundos após a batida sinistra de tambores e uma sirene de
ataque aéreo que soa monótona e abafada, como se estivesse sob
escombros. Apesar de o Sepultura ter gravado uma versão de
estúdio da introdução que usara no Rock In Rio incluiria em futuras
edições especiais do álbum como faixa bônus, a decisão de
mergulhar direto na explosiva “Arise” foi acertada. A canção é
brutal, lancinante e perfeita.
Novamente, como no caso da progressão de Schizophrenia para
Beneath the Remains, há uma melhoria atordoante quanto à
profundidade das letras. Max assume um tom losó co aqui, não só
introduzindo ideias instigantes, mas também usando de certa
presciência para expressar essas ideias de tal forma que, mais tarde,
inspirariam a interação do público. As melodias de Andreas Kisser
estão mais frenéticas, mais complexas do que nunca, e a bateria de
Igor é simples e extremamente complicada ao mesmo tempo.
Primeiro single do disco, “Arise” ganhou ainda mais atenção
após seu videoclipe ter sido banido da MTV. O canal acreditava que
o imaginário apocalíptico e religioso era controverso. O fato de ter
sido lmado no deserto de Mojave, mais especi camente na área
onde Charles Manson e seus seguidores se escondiam, só aumentou
sua infâmia.
Max e Igor passando o som em Santos. Abril de 1991.

Billy Gould, do Faith No More, e Dino Cazares, do Fear Factory,


acompanharam a banda na lmagem. Apesar do visual e da
localização, o clipe não foi lmado em temperaturas escaldantes. Na
verdade estava um frio congelante, e os gurantes cruci cados
passaram mal algumas vezes depois de serem amarrados
praticamente nus à cruz.
A atenção e a consciência da banda em relação à reação do
público caram mais uma vez explícitas em “Dead Embryonic
Cells”, outra faixa que ganhou um clipe. Enquanto o disco Arise, até
agora, mostra a música do Sepultura cada vez mais complexa, ao
mesmo tempo ela se torna cada vez menos complicada nos lugares
certos. Depois de uma miscelânea de ri s intrincados e da melodia
novamente psicótica de Andreas Kisser, “Dead Embryonic Cells”
subitamente sofre uma parada, passando para um groove lento. Esse
ritmo maquinal de uma única nota, um ri de guitarra tão simples
que pode ser tocado com uma só mão, levaria o público a pular e a
fazer headbang por muitos anos a o. É a pegada mais profunda que
o Sepultura já criara, garantindo à faixa um lugar permanente em
futuras apresentações.
Arise desfruta de seu primeiro momento suave, mesmo que
breve, com a introdução acústica de “Desperate Cry”. Vinte
segundos de alívio depois, a porradaria começa de novo, agora com
intensidade apenas ligeiramente abrandada. Mas uma redução na
intensidade não é igual a uma redução no peso. Mais e mais a banda
aprende a conter-se, a não tocar a todo vapor pela duração completa
da música.
“Murder”, uma canção que o Sepultura tinha tocado pela
primeira vez na turnê de Beneath the Remains e que recebera uma
reação poderosa, dá continuidade ao exemplo de moderação. Igor
diminui seu ritmo durante a maior parte da faixa, mesmo enquanto
as guitarras seguem aceleradas. Empregando progressões levemente
reconhecíveis que poderiam quali car “Murder” como uma espécie
de continuação de “Inner Self”, Andreas e Max brincam com
harmonias e contrapontos. Max cospe fúria contra as notícias
constantes de homicídios e mortes, citando um incidente no Brasil
em que oito detentos sufocaram devido à superlotação na cela de
uma prisão.
As in uências do Slayer transparecem com força em
“Subtraction”, que também reverencia o Megadeth da era de Killing
Is My Business… And Business Is Good. Estranhamente, a música
detona ao estilo do mais puro thrash, apesar de os ouvintes sentirem
um gostinho de hardcore – um bocado de Dead Kennedys, talvez –,
mais ou menos no terceiro quarto da faixa, por conta de uma seção
de baixo bem ressaltada. E o refrão contagiante, quase do tipo que
se canta junto, implora para ser gritado a plenos pulmões.
Igor acrescenta certa brasilidade na introdução de “Altered
State” (um prenúncio do que viria anos mais tarde), com ritmos que
lembram uma batucada sobre um fundo de vento, apitos,
instrumentos de madeira e até mesmo sintetizadores. Andreas dá cor
ao início da canção com seus efeitos e acordes oitavados
característicos, além de seus versos vagamente sombrios e
perturbadores. As palavras de Max na faixa seguinte, “Under Siege
(Regnum Irae)” – cuja segunda parte do título signi ca, em latim,
“reino da ira” –, são quase poesia em certas partes. O espaçamento
incomum de frases e versos, ditos em voz baixa, reverberando como
um disco tocado em sentido contrário, permite a Max ponderar em
profundidade a batalha entre espiritualidade e humanidade. Por que
a tendência é que um sofra enquanto o outro prospera?
A Roadrunner lançaria “Under Siege (Regnum Irae)” como um
single, talvez porque a música fosse, em parte, a mais lenta e
acessível da banda até então. Mas ela é mais pesada do que uma
tonelada de tijolos. Dentre as muitas outras lições, o Sepultura
aprendera que poderia aumentar o peso de um ri apenas
diminuindo sua velocidade. Essa é uma técnica com a qual faria
muitas experiências em álbuns posteriores.
A viciante e vibrante “Meaningless Movements” merece crédito
por ser um êxtase para os headbangers. Na segunda metade da
música, ri s fundem-se, notas dissonantes e consistentes criam um
estilo industrial, evoluindo para um ritmo extremamente rápido, que
depois retrocede e termina do jeito que começou. A música que
fecha o álbum, “Infected Voice”, é implacável do começo ao m,
com guitarras tão velozes quanto as das faixas mais aceleradas de
Schizophrenia. Ela não desacelera até o grito nal, a palavra nal, e
só então podemos recuperar o fôlego. Parando para pensar, o
ouvinte percebe que o disco Arise foi implacável desde o momento
em que começou.
Uma versão nervosa de “Orgasmatron” do Motörhead foi
gravada, mas acabou não sendo incluída no álbum. Em vez disso, a
música apareceria como uma faixa-bônus no single de “Dead
Embryonic Cells” e, muito mais tarde, como parte de uma coleção
de “lados B”. Outra canção, uma original intitulada “C.I.U.
(Criminals in Uniform)”, também foi gravada durante as sessões de
Arise. Com letra da ex-editora da revista Metal Maniacs, Katherine
Ludwig Moses (que, curiosamente, tem um lho chamado Max), a
faixa é forte, embora não tão intensa quanto as outras, e assim,
compreensivelmente, cou fora do álbum.
Dessa vez, com a capa de Michael Whelan, a banda conseguiu a
aproximação de Lovecraft que buscava em Beneath the Remains. A
torre labiríntica de Whelan construída de carne humana e pedaços
de corpos – sua visão de Yog-Sothoth, um deus do Mito de Cthulhu –
jaz sobre uma paisagem vasta e infernal, uma imagem facilmente
tão psicótica quanto a música contida no álbum. A Roadrunner
celebrou o lançamento de Arise com um cartão-postal que trazia a
capa e uma saudação: BEM-VINDOS AO BRASIL.
Arise estreou com comentários igualmente entusiasmados de fãs
e críticos. Chegou à posição 119 na parada da Billboard americana,
um feito inacreditável para um tipo tão extremo de música em um
período dominado por Bryan Adams, Color Me Badd e Mariah
Carey. Ganhou Disco de Ouro na Indonésia e na Malásia, levando a
banda a excursionar em um tour promocional de quase dois anos de
shows.

Andreas em Santos. Abril de 1991.

Esses dois anos foram repletos de altos e baixos. Entre os altos,


turnês com Ozzy Osbourne, Ministry e Helmet, além de Arise chegar
a vender mais de um milhão de cópias em todo o mundo. Entre os
pontos baixos, um show infame em São Paulo no qual o Sepultura
gravou um videoclipe para “Orgasmatron”.
A CENA METAL UNDERGROUND no Brasil durante a década de 1980
dependia, como vimos, do boca a boca e da troca de tas. Isso
também não era incomum em outros países onde o metal extremo
estava dando seus primeiros passos. A cultura de negociação de tas
era indicativa de uma comunidade solidária, na qual seus membros
eram amplamente considerados párias da sociedade. Eles se
apoiavam nas manias e no vício pela música que re etia seus
sentimentos mais íntimos. E, naqueles círculos do underground, os
fãs e as bandas eram por vezes indistinguíveis, não só porque
tinham o mesmo visual, com cabelos longos e jaquetas de jeans
cobertas de patches de bandas, mas porque muitas vezes eram fãs e
músicos ao mesmo tempo.
O sistema de apoio mútuo entre essas pessoas que pensavam da
mesma maneira costuma ser subestimado ou mesmo ignorado. A
vitória de uma banda underground era praticamente a vitória de
todas elas, podendo abrir portas antes fechadas.
Mas no Brasil, mais do que em outros lugares, a simples criação
de um fã-clube tinha um papel fundamental nas realizações de uma
banda.

AO SE DISSECAR A história do Sepultura, é praticamente impossível


negar a importância do Fã-Clube O cial, carinhosamente chamado
de S.O.B.F.C. [Sepultura O cial Brazilian Fan Club], inaugurado em
1990 e com quartel-general estabelecido em 1991 na Galeria do
Rock, em São Paulo.
A loja 452 se tornou um local de encontro sagrado para os fãs de
Sampa e de todo o Brasil – e de fora também – que peregrinam à
meca do metal. Com as paredes totalmente cobertas de pôsteres,
capas de disco, adesivos, emblemas, bandeiras e tudo o mais que se
possa imaginar com o logo do Sepultura, o quartel-general
costumava receber visitas dos próprios membros da banda sempre
que estavam na cidade.
A ideia para um fã-clube desse tipo, no entanto, vinha sendo
desenvolvida na mente de Antonio “Toninho” Coelho desde pouco
depois do lançamento de Schizophrenia.
Ao longo dos anos, o próprio Toninho se tornou uma espécie de
ícone da cena metal brasileira. Sempre presente em qualquer show
importante em São Paulo, sempre sorridente e sedento por uma
cerveja, ele tem pregado o evangelho do Sepultura desde 1985,
aparecendo em diversos pontos da trajetória da banda.
“O primeiro show que fui ver foi no mesmo ano”, disse Toninho,
“na época em que o Sepultura estava viajando com o Overdose para
promover o Bestial Devastation. O local era uma casa chamada Heavy
Metal Club, na Vila Carrão, em São Paulo. O lugar estava
superlotado, e o Sepultura simplesmente devastou tudo. O Overdose
não teve nenhuma chance aquele dia! Eles foram zoados pelo
público porque as roupas deles pareciam de glam metal.”
Em 1988, lembra Toninho, o Sepultura “já tinha conquistado seu
espaço no Brasil, e os gringos estavam começando a conhecer o som
da banda”. Então ele juntou forças com outros fãs e fez algumas
camisetas especiais que todos usaram quando a banda voltou a São
Paulo para lançar o álbum Schizophrenia.
Parece algo inocente, mas nenhuma outra banda brasileira havia
recebido tal homenagem antes.
Djalma “Thrashão” Agra, um dos compatriotas mais próximos de
Toninho, viu a banda pela primeira vez na mesma turnê, em
Manaus, em julho de 1988.
Ele explicou a atmosfera das cenas underground na época, assim
como o caráter pessoal que essa dedicação mostrava. “Ser um fã de
metal nos anos 1980 e até meados dos anos 1990 no Brasil era uma
aventura muito perigosa. Tinha turmas de skinheads e punks sempre
brigando entre eles e atacando os fãs de metal.”
No ônibus a caminho da primeira apresentação do Sepultura no
Olímpico Clube, Djalma se separou de seus amigos. Dois membros
de uma gangue se aproximaram, gritando com ele aparentemente
sem razão alguma. Procuravam por uma briga – e acharam.
Djalma relembra: “Meu irmão, que fazia artes marciais havia
bastante tempo, começou uma briga enorme dentro do ônibus. Nós
literalmente jogamos os caras pela janela, e eles juraram vingança”.
E tentaram, em um show no bairro Matinha. A gangue dominava
aquela vizinhança, era seu território, e não teve di culdade para
achar Djalma e seus amigos. Avançando contra eles, dessa vez com
um pedaço de pau, o líder da gangue foi desarmado e novamente
humilhado pelo irmão de Djalma. Se a polícia não tivesse aparecido
pouco depois, a noite poderia ter acabado de forma bem diferente
para todos eles.
O Sepultura também encarou algumas di culdades naquela
noite. Djalma se lembra de alguns problemas técnicos, e a banda foi
tão afetada pelo calor do Amazonas que teve de parar o show
algumas vezes para se recompor. Todos os que compareceram – até
mesmo alguns fãs que haviam levado um caixão de verdade –
sentiram, porém, que estavam presenciando um momento histórico.
Infelizmente, como Igor viria a ressaltar, a violência era comum
no Brasil, sobretudo em multidões. Enquanto a maioria ia para
curtir o show e se divertir, havia sempre aqueles que iam para
arranjar brigas ou para roubar. Esses eventos não passavam
despercebidos pela mídia sensacionalista, sempre à procura de
qualquer desculpa para condenar o heavy metal por ser
incontrolável e por atrair audiências indesejáveis.
No entanto, o SOBFC apoiava o Sepultura, defendendo seus
heróis – e a si mesmo – perante todos os críticos. Tal devoção não
tinha como não ser notada, e uma conexão nasceu, tornando-se mais
intensa do que qualquer relacionamento entre banda e fãs.
Em maio de 1991, Gloria trabalhou com a Prefeitura de São
Paulo e a Secretaria de Cultura na organização de um show gratuito
especial na praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu,
onde vários jogos foram disputados durante a Copa do Mundo de
1950. O que fora planejado como um evento divertido e pací co em
agradecimento ao fã-clube e aos fãs brasileiros, já que o Sepultura
estivera longe por muito tempo, terminou como um dia negro na
história da banda.
“Lembro do dia muito bem”, disse Djalma, “porque eu morava
perto do Pacaembu e desde o começo do dia eu via da janela do
meu apartamento milhares de pessoas indo para o show, a maioria
carregando garrafas com todo tipo de bebida alcoólica.”
Quando Djalma chegou à praça Charles Miller, viu pelo menos
15 mil fãs – apesar de a praça comportar confortavelmente apenas
10 mil – e algumas tropas da polícia. O show só começaria dentro
de algumas horas.
“Com o passar do tempo, o número de fãs passou dos 40 mil.”
Djalma conta que todos estavam desesperados para presenciar uma
rara apresentação antes da próxima partida da banda para outra
turnê internacional interminável.
“Por ser ao ar livre e gratuito”, completou Toninho, “o show
atraiu gente de todas as tribos.”
“Lembro-me de muitas brigas ao redor”, disse Djalma. “O clima
estava muito pesado. Não havia segurança. Milhares de pessoas, a
maioria jovem, com bebidas alcoólicas e sem segurança por perto…
Claro que as brigas eram apenas uma questão de tempo.”
A multidão cava cada vez mais enfurecida e fora de controle,
mais ainda quando o Sepultura estava no palco. A certa altura a
banda parou de tocar, e Igor saiu de trás da bateria para fazer uma
declaração incisiva ao microfone. “Quero que todo mundo assista a
este show sem qualquer forma de violência, com muita paz”, disse
ele. “Esta banda é a favor da paz, não da violência.”
Porém, do palco, ninguém tinha ideia de quão fora de controle a
multidão tinha cado, por isso o show continuou. Só se soube
depois que mais de uma dúzia de fãs caram gravemente feridos e
um foi morto a tiros.
“Eu só fui saber sobre a morte do garoto no dia seguinte no
jornal”, disse Djalma. “Um skinhead atirou no cara. Ouvimos dizer
que o garoto pertencia a uma gangue também, mas nunca soubemos
a verdade. O fato é que o evento teve um impacto muito negativo
sobre a banda, e levou anos para as pessoas perceberem que o
Sepultura não foi de maneira alguma responsável por aquilo.”
“A banda, é claro, nunca teve a intenção de organizar um show
para machucar ninguém”, acrescentou Toninho. “Mas a imprensa da
época queria ver o rock envolvido em todo tipo de merda. O público
não era bem-visto pelas autoridades e pela mídia. Qualquer coisa
que acontecesse em um evento desse tamanho, obviamente [a
mídia] iria aproveitar ao máximo o lado ruim. A morte no show era
tudo o que eles queriam.”
“A mídia não estava errada”, lembra Djalma, “quando dizia que
o público era violento, porque parte dele realmente era.”
Toninho concorda: “Toda a mídia especializada aproveitou o
momento tanto para ajudar quanto para detonar a imagem do
Sepultura”.
A mídia encontrou seu bode expiatório. Mesmo o Sepultura
sempre insistindo que sua música era um re exo da sociedade, a
imprensa se opunha veementemente à ideia. Alegava que a música
alta e hiperveloz e as letras hostis incitavam a violência nas pessoas.
Em entrevistas posteriores, Max confrontaria diretamente esses
jornalistas, ressaltando que a banda e os fãs estavam unidos na
mesma frustração. Os fãs do Sepultura, segundo ele, iam para os
shows já putos da vida por serem criticados por ter cabelos
compridos e tatuagens, por não se encaixarem nos moldes que a
sociedade havia preestabelecido para eles. Já estavam putos porque o
governo estava mais interessado em alimentar sua própria ambição
do que em alimentar seus pobres. Já estavam putos com a injustiça, a
corrupção, o crime, a pobreza. Assim como os artistas durante a
ditadura militar, que davam voz a seu descontentamento por meio
da música de protesto, o Sepultura era um megafone dando vazão à
raiva das pessoas.
Mas a banda não teve chance de responder às acusações da
mídia naquele momento. Menos de uma semana após o incidente na
praça Charles Miller, já estava nos Países Baixos para começar a
turnê de Arise, que a manteria na estrada por quase dois anos.

APÓS ALGUNS SHOWS DE aquecimento e uma participação em um


festival na Alemanha, a turnê europeia começou o cialmente tendo
o Sacred Reich como convidado especial e abertura do Heathen,
banda thrash de curta duração da Bay Area. A mídia de metal –
aquela que apoiava a música pesada, e não a que condenava –
estava alvoroçada com as histórias dos já renomados shows do
Sepultura. No nal de maio, para mostrar a todos exatamente o que
sabia fazer, a banda gravou dois shows na Catalunha para lançar
mais tarde como sua primeira ta de vídeo, com o nome Under
Siege: Live in Barcelona. Para os não iniciados, que ainda não tinham
visto o Sepultura ao vivo, cou claro que a banda era voraz, que
tocava a todo gás. As performances incendiárias constituíam a maior
parte do vídeo, intercaladas com segmentos de entrevistas
reveladoras.
Gloria e o Sepultura (e o Sacred Reich) mergulharam direto da
Europa em uma turnê com o apropriado nome New Titans On The
Bloc cruzando os Estados Unidos, com o acréscimo do Napalm Death
e do Sick Of It All na escalação. Apesar de ameaças de processo por
parte dos empresários da sensação do pop adolescente New Kids on
the Block, a jornada foi uma conquista de proporções
impressionantes. Bandas, equipes técnicas e fãs seguiram em notória
harmonia durante a turnê de dois meses. Com a mais pura alegria e
boa vontade, o Sepultura bebeu toda a cerveja Heineken do Napalm
Death. Duas meninas japonesas acompanharam a banda
religiosamente pela costa oeste, sem jamais perder um único show.
Em um evento em Nova York, no qual o Sick Of It All não pôde
tocar, o White Zombie, que vinha cando cada vez mais famoso,
completou o time.
Atravessando o sudeste e o meio-oeste dos Estados Unidos, onde
quase nada de importante acontecia, o Sepultura era, para muitos,
uma lufada estranha de ar exótico. Conforme sua notoriedade
aumentava, aumentava também o número de pedidos por
entrevistas. A mídia e a imprensa cavam fascinadas por eles e seus
sotaques, perguntando sobre a injustiça social, os problemas de
drogas e as gangues das favelas no Brasil. Os rapazes se expressavam
muito bem, agora com um inglês mais re nado. Explicavam que
suas letras nem sempre eram feitas direcionadas ao Brasil
especi camente, mas visavam aumentar a conscientização sobre
problemas semelhantes em todo o mundo.
Paulo, que detestava dar entrevistas, ngia não entender coisa
alguma em inglês para escapar delas.
Uma pausa de três meses foi necessária no último bimestre do
ano. Em dezembro, poucos dias após os primeiros shows da banda
no México (vídeos não o ciais mostram um público
ensandecidamente fora de controle dando as boas-vindas a seus
irmãos latino-americanos com furiosa paixão), Andreas quebrou o
braço direito em um acidente de moto aquática. O momento foi
inoportuno; o Sepultura tinha sido escalado para uma turnê de Natal
pela Europa chamada Christmas Metal Meetings com Motörhead,
Morbid Angel e Kreator, que começaria no dia 18 daquele mês. Em
vez de cancelar sua participação naqueles seis eventos, Igor, Paulo e
Max foram com o guitarrista Silvio Golfetti do Korzus como
substituto. Andreas cou desapontado por não poder contribuir, mas
elogiou Golfetti por fazer um trabalho tão fantástico com uma
convocação tão em cima da hora.
A banda se deu mais um curto período de descanso, dessa vez na
época das festas de m de ano, retornando à estrada em março de
1992, com o braço de Andreas preso em uma tala de metal e os
metaleiros do Fudge Tunnel, do Reino Unido, como apoio. A turnê
deu início à amizade entre Max Cavalera e Alex Newport, do Fudge
Tunnel, que culminaria em um projeto conjunto – meio música
industrial, meio metal e barulhento ao extremo – chamado
Nailbomb.

Com a equipe da gravadora Roadrunner (reparem no braço quebrado de Andreas).


A Indonésia, incrivelmente, apreciou Arise de um modo que
poucos países tinham feito. Os fãs de lá sentiram muita a nidade
com os brasileiros, já que suas lutas cotidianas não eram tão
diferentes. Desde que obtivera sua independência da colonização
holandesa em 1945, a Indonésia vinha lidando com a pobreza e a
rápida mudança econômica, a corrupção política e a violência. As
letras em Arise que eram direcionadas ao Brasil, conforme os
rapazes haviam explicado, poderiam muito bem se aplicar a
qualquer país em desenvolvimento do Terceiro Mundo. Incluindo a
Indonésia.
E, assim como o Brasil, a Indonésia sofria de uma enorme
desigualdade entre ricos e pobres. Milhões de cidadãos viviam na
miséria e na pobreza enquanto os ricos cavam mais ricos. Um
desses empresários in uentes convidou o Sepultura ao seu palácio
para uma apresentação privada, cobrindo a banda com presentes,
comida, bebida e cultura. Esse show contrastou extremamente com
o de Jacarta, no qual 40 mil fãs não tão ricos foram atacados pela
polícia, golpeados com varas de bambu e forçados a se sentar em
silêncio depois que as autoridades julgaram a multidão selvagem e
desordeira.
Na Indonésia.

Foi um choque tão grande que Max parou o show para dizer que
lamentava todos os problemas e queria que pudessem fazer mais do
que apenas pedir desculpas. Nos Estados Unidos, Max Cavalera
chegaria a brigar com seguranças por agredirem fãs. Na Indonésia,
não soube o que fazer.
A parceria mais grandiosa daquele verão seria entre o Metallica e
o Guns n’ Roses, que se uniram para uma turnê por estádios norte-
americanos, com o Faith No More como convidado especial. Em 8
de agosto, durante a apresentação do Metallica em Montreal, James
Het eld errou uma marcação de palco em “Fade To Black” e pisou
no inferno quando um vulcão de fogo pirotécnico explodiu debaixo
de seus pés. Através do sistema de PA, conforme a música ia
sumindo, o público podia ouvir as cordas da guitarra de Het eld
estalando e rompendo com o calor.
Felizmente, James estava tocando uma nova guitarra com dois
braços, e o tamanho avantajado do instrumento – ainda que não o
tenha protegido completamente – pode ter salvado sua vida.
Sempre o bom soldado, James Het eld voltou ao palco menos de
três semanas depois, embora com um braço gravemente queimado e
incapaz de tocar guitarra. John Marshall, do Metal Church, o
substituiu, tal como tinha feito na turnê Master of Puppets, quando
James quebrou o braço andando de skate.
Entretanto, John Marshall quase não cou com a vaga nessa
segunda vez.
Pouco antes de retomar a turnê, o baixista Jason Newsted, do
Metallica, conversara com Phil Rind, do Sacred Reich, um velho
amigo dos tempos das casas de show em Phoenix, Arizona, quando
Newsted detonava pela cidade com a banda Flotsam and Jetsam.
Jason disse a Rind que o Metallica estava procurando um guitarrista
para substituir James após o acidente. Phil disse a Jason que
Andreas Kisser estava livre.
O Sepultura havia recentemente feito cinco shows no Brasil e
encontrava-se com um pequeno tempo livre antes de seu próximo
tour norte-americano, que começaria em outubro, abrindo para
Ozzy Osbourne e Alice In Chains. Assim, em meados de agosto, o
Metallica pagou a viagem para Andreas Kisser ir a Denver,
Colorado, fazer um teste para a vaga temporária.
Newsted e Kisser se conheceram brevemente alguns meses antes,
no MTV Video Music Awards, em Los Angeles, Califórnia. O
Metallica tinha feito uma apresentação naquela noite, e o clipe do
Sepultura “Orgasmatron” era um dos indicados – e foi vencedor – ao
Prêmio Escolha da Audiência Internacional de Melhor Vídeo
Brasileiro.
No Colorado, Andreas desembarcou do avião e encontrou uma
limusine à sua espera. Aquilo era muito mais intenso do que bater
papo com seus heróis de infância nos bastidores de uma cerimônia
de premiação. Ele estava prestes a tocar com eles.

Black Sabbath passando o som no palco com backdrop do Sepultura.

Andreas cou em Denver por alguns dias e ensaiou duas vezes


com o Metallica, no primeiro dia sem James, no segundo dia com o
vocalista presente e cantando. Andreas conhecia o material mais
antigo – tudo até …And Justice for All – como a palma da mão.
Debulharam com maestria através de “The Shortest Straw” e “One”,
e até das músicas mais novas “Enter Sandman” e “Sad But True”,
com Kisser mostrando o melhor de si. Infelizmente para Andreas, o
Metallica estava em turnê promovendo seu disco homônimo, mais
conhecido como Black Album. Quando chegou a hora de tocar faixas
como “Nothing Else Matters” e “The Unforgiven”, dois dos maiores
hits do álbum, o guitarrista teve di culdades. Não conhecia as
músicas muito bem, e não havia tempo su ciente para aprendê-las.
Ainda que não tenha conseguido a vaga, Kisser não poderia de
modo algum car desapontado com a medalha de prata. Como
prêmio de consolação, o teste foi o começo de uma amizade para a
vida toda com Jason Newsted.
O restante do ano de 1992 passou como se fosse um vídeo de
melhores momentos. Os brasileiros se deram muito bem com todos
da equipe de Ozzy, curtindo as noites com Layne Staley e os caras
do Alice In Chains, cujo recém-lançado álbum Dirt estava subindo
como um foguete nas paradas. Na última noite da turnê, em 15 de
novembro, eles testemunharam algo histórico quando Ozzy se
reuniu no palco com Bill Ward, Tony Iommi e Geezer Butler para
tocar com o Black Sabbath pela primeira vez desde 1979.
Nem a saúde conseguiu tirar o Sepultura dos trilhos. Quando
Max não pôde fazer um show por estar doente, os outros seguiram
em frente, tocando como um trio em respeito aos fãs. Isso já
acontecera antes, durante uma turnê em 1989, por isso não seria a
primeira vez que tocariam sem o vocalista.
E, claro, também não seria a última vez.
Com Tony Iommi do Black Sabbath.

Ser banda de abertura em uma improvável turnê por arenas


gigantescas (muitas das quais com capacidade para 10 mil ou mais
pessoas) fechou o ano de maneira explosiva. O Ministry encabeçava
a turnê, surfando alto na onda de popularidade do álbum Psalm 69 e
com o Helmet sentindo o peso de seu hit “Unsung”. Para muitos, a
inclusão do Sepultura parecia estranha, mas, na verdade, o Helmet
era o mais diferente dentre os três.
Os brasileiros adoraram ambas as bandas. E a in uência do
Ministry em particular seria sentida no álbum seguinte.
Ainda assim, muitos imaginavam como essa turnê se
desenrolaria. Música industrial, hardcore alternativo e thrash metal
no mesmo programa?
Acabou sendo uma das turnês mais consistentes e violentas do
Sepultura quanto à reação do público.
Em locais em que todos cavam na pista, sem assentos, tudo
acabava se tornando um imenso mosh pit[1] a noite inteira, do fundo
até a frente e de um lado a outro. Noite após noite, fãs agredidos
perdiam a consciência ou eram retirados em macas, muitos dizendo
que realmente tinham pensado que iam morrer naqueles pits. No
show em San Francisco, um fã (presumivelmente embriagado) caiu
de um dos mezaninos, batendo no concreto abaixo com a calça nos
tornozelos.
O show em Atlanta, Geórgia, no entanto, poderia ter levado o
prêmio de mais brutal. Quando o Helmet foi forçado a cancelar, o
infame líder do Ministry, Al Jourgensen, chamou seu amigo Ice-T. O
rapper estava na cidade com o Body Count, seu projeto de metal
extremo, que não hesitou em substituir o Helmet naquela noite.
O nome da banda, Body Count [Contagem de Corpos], não
poderia ter sido mais apropriado para a ocasião.
E a turnê com o Ministry e o Helmet não poderia ter sido um
encerramento mais apropriado para o ciclo de Arise. Paulo, Igor,
Andreas e Max fecharam o ano cheios de energia, extasiados com a
música e a experiência que tiveram, prontos para mudar o foco
coletivo, visando o próximo álbum.
NO INÍCIO DE 1993, a paisagem do rock estava se alterando. Bandas
como Pearl Jam e Nirvana haviam dominado as rádios, e bandas de
metal foram aos poucos sendo forçadas de volta ao underground. O
infame Black Album, do Metallica, amado e odiado na mesma
medida, já tinha então dois anos, e o Pantera só lançaria seu álbum
Far Beyond Driven, que chegaria ao topo das paradas no ano
seguinte. Duas das bandas emblemáticas da new wave do heavy
metal britânico – Iron Maiden e Judas Priest – perderam seus
vocalistas icônicos quando Bruce Dickinson e Rob Halford
anunciaram quase simultaneamente que sairiam de suas respectivas
bandas.
Ainda assim, 1993 teve seus momentos de destaque para o
metal, só que não muitos. O Anthrax lançou o bem recebido Sound
of White Noise, seu primeiro álbum com o vocalista do Armored
Saint, John Bush, substituindo Joey Belladonna. A sueca Entombed
causou certo furor quando seu disco Wolverine Blues – no qual as
raízes death metal da banda deram lugar ao que denominaram
death ’n’ roll – foi vendido (aparentemente sem o conhecimento da
banda) em uma embalagem que continha uma HQ “perdida” do
famoso personagem da Marvel, Wolverine. Além disso, Rob Halford
ressurgiu a todo vapor após sua saída do Judas Priest, lançando War
of Words com sua nova banda, o Fight.
Após ter encerrado o ciclo da turnê Arise no nal de 1992, o
Sepultura voltou ao Brasil para as férias, precisando de muito
descanso depois de dois anos na estrada. Mas quase que
imediatamente, já em Santo André, Max e Andreas começaram a
compor. A primeira música que concluíram, “Propaganda”, veio de
forma rápida e fácil, antes mesmo que tivessem em mente um
conceito sólido para o próximo álbum. Musicalmente, a canção
soava ao estilo de Arise, mas ao mesmo tempo apontava para um
território novo e inexplorado.
Em janeiro de 1993, os quatro se mudaram para Phoenix, onde
Gloria morava, para nalizar a composição (apesar de que Igor, que
adorava surfar e sentia falta do mar, acabaria se mudando para San
Diego, Califórnia, com Monika). Uma mudança permanente para os
Estados Unidos estava nos planos desde o lançamento de Arise.
Quanto à logística, fazia sentido, pois a estrutura corporativa da
banda estava, na época, baseada no país. A gravadora, os
advogados, os agentes. Gloria gerenciava os escritórios de sua casa,
e enquanto metade da equipe de estrada do Sepultura era brasileira,
a outra metade chamava Phoenix de lar.
A legião de fãs brasileiros tinha sentimentos contraditórios em
relação à mudança, entendendo que era necessária para que a banda
continuasse sua escalada de sucesso, mas desapontada, já que teriam
cada vez menos oportunidades de ver seus heróis no Brasil.
Para Max, havia outra razão para a mudança. Ele e Gloria
haviam começado um relacionamento, e o casal estava prestes a ter
seu primeiro lho.
“Ela chegou pra mim no ônibus”, contou Monika a respeito de
Gloria, referindo-se a uma das muitas turnês de Arise, “e me disse:
‘Monika, tenho que te contar uma coisa: estou apaixonada por Max.
O que eu devo fazer?’.”

Andreas no Japão.
Para Monika, a admissão vinha com um gosto de alívio. Ela
havia pensado que “talvez fosse bom para ele ter alguém, porque ele
sempre foi tipo… duas, três garotas ao mesmo tempo saindo do
quarto dele à noite. Era uma loucura. Para mim, era difícil, porque
eu estava com o Igor o tempo todo, ele dormia na minha casa ou eu
dormia na casa dele, e eu tinha que lidar com essa situação de ter
milhões de garotas em volta do Max o tempo todo. Então eu fui a
primeira a dizer para a Gloria: ‘Vai em frente’”.

TODO ESSE TEMPO PASSADO longe do solo nativo teria um impacto muito
profundo no som do próximo álbum. Eles haviam estabelecido uma
reputação como mais do que “apenas” uma banda de heavy metal
do Brasil. Eram agora “a” banda de heavy metal brasileira, e a
mudança sutil nas palavras fez uma enorme diferença. Para os fãs de
todo o mundo, o Sepultura havia alterado a imagem que tinham do
país sul-americano. Para muitos deles, na verdade, o Sepultura
representava a única imagem que tinham do Brasil.
Como resultado, Max, Paulo, Andreas e Igor sentiam um senso de
responsabilidade pela forma como representavam sua nação. Quanto
mais culturas e países conheciam, mais orgulho sentiam por serem
brasileiros – por todos os aspectos positivos e negativos implicados.
E apesar de serem expatriados, sentiam uma necessidade,
Andreas explicou mais tarde, de lembrar ao mundo que eram uma
banda brasileira.
Igor, já considerado por muitos de seus pares como um dos
melhores bateristas de metal, queria distanciar-se ainda mais,
concentrando-se em seus pontos fortes, permitindo que suas
tendências rítmicas brasileiras brilhassem; trazer para a banda
ritmos tribais que lhe eram extremamente naturais, já que crescera
ouvindo-os e tocando-os. Estavam sob sua pele.
Mais do que qualquer coisa, com esse novo álbum, o estilo de
Igor Cavalera na bateria viria a diferenciar o Sepultura dos outros
grupos de metal da época.
Contudo, as in uências presentes em Chaos A.D. eram numerosas
e diversi cadas, justamente porque haviam passado tanto tempo
fora do Brasil.
Para começar, eles procuraram um som mais encorpado e
re nado que favoreceu o groove em detrimento da velocidade.
Alguns dos puristas do thrash metal desaprovavam isso
veementemente, acusando-os de “vendidos”, preocupados que o
Sepultura estivesse indo na direção das bandas de Seattle que eram
populares na época. Embora Max insistisse que o grunge nunca fora
uma in uência, não teria havido vergonha alguma em admitir esse
crescimento. A nal, as bandas mais pesadas da era grunge – Alice In
Chains e Soundgarden entre elas – evocavam o Black Sabbath na sua
música tanto quanto o Sepultura, e ninguém discutia que o Sabbath
era o patriarca do panteão do metal.
Mas receber críticas tão duras, até mesmo de sua própria base de
fãs, não era novidade para a banda. Eles haviam sido acusados de se
vender depois de mudar seu estilo de black metal para uma mistura
visceral de death e thrash metal, com alguns “verdadeiros” fãs se
recusando a ouvir qualquer coisa posterior a Morbid Visions. Ainda
mais absurdo, alguns diriam até que a banda se vendeu depois que
aprendeu a a nar suas guitarras, ou ainda mais para trás, depois da
saída de Wagner.
Sílvio “BBK” Gomes e Paulo durante intervalo da gravação de Chaos A.D., o quinto álbum do
Sepultura.

Tendo aperfeiçoado seu estilo próprio de thrash do Terceiro


Mundo, mas recusando-se a ser con nado por ele, o Sepultura
desacelerou o ritmo e destacou os tons graves de baixo nessas novas
músicas. Como músicos, eles não só estudaram seu ofício, mas
também como o público reagia à música que tocavam. Cruzavam as
referências das novas ideias com suas experiências observando a
multidão enlouquecer durante os segmentos instrumentais de
canções como “Dead Embryonic Cells” e “Desperate Cry”,
centrando-se na máxima de que uma nota tocada certinha pode ser o
som mais pesado do mundo.
“As músicas não serão tão rápidas”, Max explicou para um jornal
local, “mas vão ser mais nervosas [e] agressivas.”
Depois de passar um m de semana com suas esposas em Sedona
– uma cidade no norte do Arizona, onde ainda vivem tribos de
índios americanos e o sol colore as estruturas de arenito com um
vermelho brilhante –, Andreas (que nunca saía de casa sem um
violão) e Max começaram a trabalhar em uma ideia para o
experimento mais ousado da banda até então. Não era nervoso nem
agressivo. De modo algum. Incorporava até algumas das melodias
caipiras, das músicas sertanejas que o pai de Andreas costumava
ouvir em casa quando ele era criança.
O quarteto se estabeleceu em um armazém ao sul de Phoenix, o
mesmo local onde o Sacred Reich ensaiava, e foi direto para o
trabalho de completar a composição de Chaos A.D. A con ança de
cada membro estava em alta como nunca, e coletivamente também,
sua musicalidade namente a ada após a extensa turnê. O espaço
de ensaio transbordava energia com entusiasmo, criatividade e a
crença cautelosa de que o Sepultura estava prestes a quebrar ainda
mais barreiras; a Roadrunner zera recentemente uma parceria com
a Epic/Sony para proporcionar distribuição em larga escala para o
álbum nos Estados Unidos.
Assim que o direcionamento musical foi resolvido, as primeiras
três faixas – “Refuse/Resist”, “Territory” e “Slave New World” (que
ganharam videoclipes e foram lançadas como singles) – foram
escritas em pouco tempo, quase como se alguma força sobrenatural
estivesse transmitindo as canções através dos instrumentos da
banda. As letras eram tão explosivas quanto as músicas, Max
enfurecido berrando sobre revoltas globais violentas contra
lideranças despóticas, guerras territoriais e censura.
A banda já sabia que tinha algo especial em mãos, e o tema geral
do álbum logo se tornou evidente: toda forma de caos.
Quando chegou a hora de gravar, algumas mudanças foram
feitas. Scott Burns tornara-se um produtor muito procurado nos
círculos de death metal, uma cena que o Sepultura estava
intencionalmente evitando. Por isso escolheram Andy Wallace, já
que ele tinha feito um trabalho magistral na mixagem de Arise, mas
decidiram não voltar para os estúdios da Morrisound porque sempre
havia pessoas demais ao redor, distrações demais. Em busca de um
lugar mais calmo e isolado onde pudessem se concentrar,
instalaram-se no Rock eld Studios, no País de Gales. Se era bom o
su ciente para Black Sabbath e Motörhead, que haviam gravado
dois álbuns seminais lá, era bom o su ciente para o Sepultura. Na
verdade, até o Queen, seus heróis de infância, havia gravado a
maior parte do clássico “Bohemian Rhapsody” em Rock eld.
E, pela primeira vez, Paulo teria não somente o benefício do
tempo, mas também equilíbrio e autocon ança para gravar suas
próprias faixas de baixo no estúdio.
Abrindo com o ritmo ultrassônico de um batimento cardíaco
fetal – do primeiro lho de Max e Gloria, Zyon –, Chaos A.D.
explode para a vida com uma introdução de percussão tribal
agressiva. As porradas de Igor na caixa lembram disparos de
metralhadora, abrindo caminho para um ri de duas notas, simples
porém destruidor, sobre o qual os criativos acordes de Kisser soam
como uma sirene. O grito de guerra de Max no refrão de
“Refuse/Resist” é um convite virulento à rebeldia, uma oração
implorando para ser gritada por milhares de fãs em shows futuros.
Aqueles não familiarizados com a música brasileira – ou mesmo
aqueles que já o eram – certamente caram estupefatos ao ouvir
pela primeira vez o samba anabolizado no início de “Territory”. Esse
era um terreno completamente novo para a maioria dos fãs de
metal. Era um território razoavelmente novo para o Sepultura
também; apesar da introdução, era a canção mais lenta que haviam
composto até aquele momento. O groove lento e ao mesmo tempo
incandescente pode ser, de fato, o motivo por trás do peso de
“Territory”. A letra de Kisser, rajadas de versos de quatro ou cinco
sílabas, apenas incrementa a simplicidade intensa da faixa.

Max e Zyon no Donington.

Os versos curtos em staccato continuam presentes em “Slave


New World”, enfatizando a mudança em relação aos dias de
Schizophrenia, quando Max costumava en ar tantas palavras quanto
podia em um verso. Os efeitos de tal concisão tornam mais clara a
mensagem, aqui coescrita por Evan Seinfeld, baixista do Biohazard,
que levou um livro de letras para a casa de Cavalera. Os vocais,
quando não cuspidos a mil por hora, também se acomodavam
melhor na estrutura da música, tornando-se, eles mesmos, uma
espécie de percussão.
“Amen”, com seus acordes demorados de guitarra e linhas de
baixo encaixados perfeitamente com o groove de Igor, destaca o tom
grave e pesado que o Sepultura queria explorar nesse disco.
Ouvintes mais atentos podem perceber a in uência do Black Album
do Metallica. Alguns anos antes, o Metallica tinha trabalhado com o
estimado produtor Bob Rock para trazer o som do baixo de Jason
Newsted para uma posição de destaque na música deles. A técnica
de Bob Rock baseava-se em levar Jason a se concentrar mais em
tocar em conjunto com o bumbo de Lars Ulrich, em vez da técnica
tradicional de heavy metal de simplesmente tocar o ri da guitarra
base uma oitava mais baixo. Paulo faz algo similar aqui, criando um
novo substrato de som com o qual o Sepultura pôde experimentar.
Em uma locação no castelo Chepstow para uma sessão de fotos,
um guia turístico levou a banda para uma pequena sala sem teto e
com paredes com mais de dois andares de altura. A acústica, devido
a isso, era de tirar o fôlego, e arranjos foram feitos para que
gravassem “Kaiowas” no castelo. É possível ouvir pássaros no
começo da música conforme a banda se a na e se aquece melodia
adentro. Chepstow forneceu o ambiente perfeito para uma música
desse tipo, uma faixa enxuta e despojada nascida em Sedona, com
Igor e Paulo mais tarde desenvolvendo seus ritmos em baldes de
plástico. É, em certo sentido, uma versão brasileira dos momentos
mais dark e acústicos do Led Zeppelin, inspirada tanto pela
localidade celta quanto pelos sons de sua terra natal. Para a
gravação, Max foi forçado a usar um dos violões de Andreas, já que
ele nem sequer possuía um na época.
O encarte de Chaos A.D. traz uma explicação sobre “Kaiowas”,
uma homenagem à tribo indígena brasileira de mesmo nome: muitos
de seus membros cometeram suicídio após a apropriação de suas
terras por homens brancos.
“Propaganda” retrocede um pouco não só musicalmente, mas
vocalmente também. Max volta a usar versos longos na letra que
critica severamente as mentiras e os rumores da imprensa, mas suas
palavras já estavam mais espaçadas, acentuando o ri de uma nota
só que explode em uníssono com os bumbos duplos de Igor.
O ritmo de “Biotech is Godzilla” revisita os dias de puro thrash
do Sepultura, embora os ri s sejam menos complexos e mais
apoiados no groove e na interação com a bateria. A canção não
tinha letra quando fora oferecida ao velho amigo Jello Biafra como
faixa para uma participação especial.
Andreas tocando “Kaiowas”.

Infame vocalista da inspiradora banda punk Dead Kennedys e o


cérebro por trás das letras por vezes políticas e absurdas da banda,
Jello era um herói de longa data do Sepultura. Ele também era um
colecionador de música obsessivo, trocando tas com pessoas de
todo o mundo, quando se deparou com uma cópia de Schizophrenia
no nal dos anos 1980. Ficou chocado e maravilhado o su ciente
para convidá-los a contribuir, em 1992, para o álbum tributo ao
Dead Kennedy chamado Virus 100 – no qual zeram o cover de
“Drug Me” –, que contou também com participações do Faith No
More e do Napalm Death.
Para a até então sem nome “Biotech Is Godzilla”, Max sugeriu
que a letra revisitasse uma faixa clássica do Dead Kennedys, uma
espécie de “Nazi Punks Fuck O ! Part Two”, mas Jello teve uma
ideia melhor. Inspirada por seus recentes protestos na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(CNUMAD), a ECO-92, no Rio de Janeiro, e pelas várias teorias da
conspiração que havia desenvolvido em resposta aos motivos mais
clandestinos das Nações Unidas, a letra de Biafra emitiu um alerta
controverso contra a intervenção política na área de biotecnologia.
Incorporando in uências do Black Sabbath, “Nomad” é um canto
fúnebre lento e nefasto, com seções que lembram vagamente o
Oriente Médio, evocando imagens de tribos do deserto que se
deslocam de um lugar para outro, raramente parando por muito
tempo. É um símbolo da existência do Sepultura, vivendo sempre na
estrada. A faixa a seguir descreve de forma mais explícita a banda
com seu título e único verso, “We Who Are Not As Others”. Mas o
“nós” nesta faixa se refere também aos fãs do Sepultura. Essas seis
curtas palavras são um grito de guerra, uma celebração da
individualidade e da comunidade ao mesmo tempo, representadas
na chamada e resposta entre Max e seu grupo na segunda metade da
música. Essas seis palavras explicam os sentimentos de Max sobre a
repressão que ele sentira quando criança, a repressão que outros
haviam sentido nas mãos da ditadura militar. Essas seis palavras
justi cam as tatuagens do Sepultura, como libertação da repressão e
liberdade de expressão. Essas seis palavras expõem a ignorância das
pessoas no poder, dos que estão no controle, como, por exemplo,
quando os militares tentaram recrutar Igor alguns anos antes:
tinham dispensado o baterista, com nojo, por causa de suas
tatuagens. “We Who Are Not As Others” fala da falta de con ança e
de respeito da sociedade em relação à sua juventude.
Se, com Arise e Beneath the Remains, a banda queria expor o lado
mais sombrio do Brasil, levou isso ao extremo em Chaos A.D. Em
“Manifest”, Max faz o papel de jornalista, informando sobre um
massacre que ocorrera na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo,
apenas alguns meses antes. Projetado para armazenar 3 mil
detentos, o Carandiru estava superlotado, com cerca de 8 mil presos,
quando uma rebelião começou no Pavilhão 9. A resposta da polícia
de “atirar primeiro e perguntar depois” resultou na morte de mais
de 100 detentos. Nenhum policial tinha sido incriminado até o
início de 2013 – quando começariam os julgamentos, mais de dez
anos após a penitenciária ter sido demolida e mais de vinte após o
massacre ter ocorrido.
A natureza industrial de “Manifest” pode bem ter sido devida à
a nidade recém-descoberta de Andreas pelo Ministry, cujos ri s
circulares e repetitivos e barulhos metálicos criavam uma atmosfera
quase hipnótica.
Talvez inspirado pelo local onde gravava e fascinado com o
simbolismo e misticismo celta, o Sepultura optou por incluir um
cover de “The Hunt”, do New Model Army, no álbum. Foi uma
atrasada admissão de sua apreciação por Discharge, The Exploited e
pelo punk rock inglês hardcore em geral. Eles também gravaram
uma versão de “Symptom of the Universe”, do Black Sabbath, que
vinham incluindo em apresentações ao vivo desde 1988 e que seria
incluída no álbum tributo Nativity in Black.
Um nal apropriado para um álbum tão furioso, “Clenched Fist”
combina os sons de trituradoras e guitarras com uma das letras mais
pessoais de Max até então. Chaos A.D. fecha como abriu – com um
punho. No entanto, enquanto em “Refuse/Resist” o punho foi
levantado em desa o, aqui está fechado para o ataque.
Dois covers em português – “Cruci cados pelo Sistema”, do
Ratos de Porão, e “Polícia”, dos Titãs – também foram gravados nas
sessões. Assim como “Symptom of the Universe”, os dois covers já
eram presença obrigatória em shows havia anos. O punk hardcore
americano de “Inhuman Nature”, do Final Con ict, harmonizava
com a temática de Chaos A.D. bem o su ciente para ser gravado,
embora não tenha sido incluído entre as faixas do álbum.
Com suas in uências industriais e natureza caótica, o álbum
precisava de uma capa que representasse bem sua música e seu
conceito. Michael Whelan recebeu algumas músicas para ouvir em
busca de inspiração e começou a trabalhar depois de um
brainstorming ao telefone com Max. Este também tinha algumas
ideias bem especí cas em mente. A arte resultante mostra uma
imagem perturbadora de uma gura suspensa de cabeça para baixo,
completamente envolta e amarrada por um pano ensanguentado,
sua alma sendo sugada e assimilada por máquinas.
Era perfeita.
Em junho, poucos meses antes do lançamento do álbum, Max e
Gloria se casaram em sua casa em Phoenix. Membros do Sacred
Reich e representantes da gravadora Roadrunner Records
compareceram, assim como uma série de outros amigos e familiares,
incluindo a mãe e a irmã de Max. Todos se divertiram na festa de
casamento, mas sob o véu da alegria e da celebração, em um nível
pro ssional, a união do vocalista e da empresária representava um
grande con ito de interesses. Embora não tivesse se tornado um
problema ainda – e Max insistia que não se tornaria –, as sementes
para o drama futuro haviam sido plantadas.
Chaos A.D. estreou com muitos elogios em setembro de 1993. Em
comemoração ao álbum e sua natureza mundana, a banda deu uma
grande festa de lançamento em um castelo na Inglaterra. Organizada
com temas tanto medievais quanto brasileiros, havia capoeiristas em
trajes de bobos da corte, convidados deleitando-se com coxas de
peru gigantes e bebendo uísque de cálices adornados com o logotipo
do Sepultura. A banda tocou “Kaiowas” e exibiu o vídeo de
“Territory”, que tinha lmado em Israel durante um período de
relativa paz. Embora Andreas não tivesse escrito a letra
especi camente sobre o con ito árabe-israelense, o tema do vídeo
funcionava para a música. Imagens de guerra, destruição e tensão
religiosa foram intercaladas com imagens de membros do Sepultura
no Mar Morto, e o clipe visualmente impressionante ganhou elogios
e prêmios em todo o mundo por suas mensagens social e
politicamente conscientes.
Andreas durante as lmagens do clipe “Territory” em Israel.

ENQUANTO ISSO, NO BRASIL, a empresa de cigarros Souza Cruz estava se


preparando para a próxima edição de seu festival anual Hollywood
Rock. Eles haviam anunciado o line-up meses antes, programando
três dias em janeiro de 1994, divididos entre estádios no Rio de
Janeiro e em São Paulo. O festival seria uma celebração de música
popular de todo o mundo, incluindo artistas como Aerosmith e
Whitney Houston. Apresentaria também uma série de bandas
brasileiras, como Titãs, Jorge Ben Jor e Skank.
Porém a atração brasileira mais popular em terras estrangeiras
estava, estranhamente, fora da lista.
Em resumo, os promotores do Hollywood Rock tinham medo de
contratar o Sepultura. Temiam a repetição dos eventos trágicos da
praça Charles Miller, em 1991.
Enfurecido, o fã-clube brasileiro tomou a questão para si. “Nosso
maior feito”, segundo Djalma Agra, “foi trazer o Sepultura para o
Hollywood Rock.”
Após o anúncio de que o Sepultura não seria convidado a tocar,
Toninho e sua turma foram às ruas fazer um abaixo-assinado,
gastando vários meses no recrutamento de fãs para a causa.
“Lembre-se”, explica Djalma, “que não tínhamos internet na
época, então íamos a todo show de metal colher assinaturas. Lembro
de percorrer a la inteira em shows como do Pantera, Ramones,
Motörhead, Manowar; e, incrivelmente, a maioria das pessoas
assinava para ver o Sepultura.”
O fã-clube recolheu mais de 8 mil assinaturas, o que ainda hoje
com a facilidade viral das mídias sociais não seria pouca coisa.
Toninho, Agra e Sergio Ca é compilaram o abaixo-assinado e o
levaram para o escritório da Souza Cruz, localizado em um grande
complexo de edifícios no coração do distrito nanceiro de São
Paulo. O trio se reuniu com promotores do Hollywood Rock, que
caram impressionados com a dedicação do fã-clube e dos fãs da
banda. A Souza Cruz reviu sua decisão, convidando o cialmente o
Sepultura para tocar no dia 15 de janeiro em São Paulo e uma
semana depois no Rio de Janeiro.
Paulo “turistando” em Israel.

O infame Hollywood Rock.


“A gente teve uma puta sorte”, disse Toninho, “já que a gente
teve a chance de viver a história perto da banda e ser parte dela!”
Em reconhecimento de sua vitória, poucos dias antes do festival
Toninho confeccionou uma bandeira do Brasil com o “S” tribal do
Sepultura, que Bozo tinha desenhado em 1991, no centro. Toninho,
Agra e alguns outros levaram a bandeira ao aeroporto de Guarulhos
para dar as boas-vindas à banda, mas foram prontamente presos
quando a Polícia Federal avistou a bandeira.
“Alegaram que era crime modi car a bandeira nacional”, disse
Djalma, “então a gente os convenceu que tínhamos entendido e que
ninguém a veria.”
Mais tarde, Toninho deu a bandeira a Max, que a mostrou para a
plateia com orgulho após a triunfante apresentação do Sepultura em
São Paulo.
Dentro de minutos, policiais estavam esperando por Max no
backstage.
“Depois do show”, Max contou em uma entrevista, “havia vinte
policiais no nosso camarim procurando pela bandeira. Diziam que
eu tinha cuspido e pisado na bandeira e que eu era antibrasileiro e
comunista. Era mentira… eles inventaram tudo.”
Filmagens para o clipe promocional de “Refuse/Resist” haviam
sido feitas durante o show e, de fato, não mostram nenhuma
irregularidade. A imagem nal do vídeo, na verdade, é uma de Max
e Igor levantando a bandeira de Toninho, com orgulho, para todos
verem.
Mais uma vez a banda se sentiu na mira da polícia –
especialmente Max, já que fora o único preso. De novo, ele se sentiu
perseguido por causa do cabelo comprido, das tatuagens e das letras
críticas.
A prisão foi muito divulgada no Brasil, polarizando as opiniões
de fãs e críticos do Sepultura ainda mais. Nunca do tipo que recua
frente a uma polêmica, a banda iria contra-atacar de uma forma
bastante criativa, unindo-se aos Titãs no palco no Rio de Janeiro
para tocar uma versão barulhenta de “Polícia”. Rugindo os versos
altamente críticos da música, Max não deixou qualquer dúvida
quanto a seus sentimentos.

E, MAIS UMA VEZ, a banda não teve tempo para se debruçar sobre mais
publicidade negativa devido à sua agenda frenética. Uma turnê
pelos Estados Unidos com Fear Factory, Clutch e Fudge Tunnel
como bandas de apoio estava prevista para começar apenas duas
semanas depois dos concertos do Hollywood Rock.
No começo de 1993, antes do início das sessões de gravação de
Chaos A.D., Max e Alex Newport – fundador e cérebro do Fudge
Tunnel – criaram o já citado Nailbomb como um projeto paralelo
em dupla, uma forma de matar um pouco do tempo de inatividade.
Em questão de semanas, conceberam um coquetel Molotov de metal
industrial intitulado Point Blank. O álbum trazia barulho e raiva
explícita na mesma medida, impulsionado tanto pelo gênio
tecnológico de Alex como pela fúria crua de Max. O álbum contava
com participações de Igor, Andreas e Dino Cazares, do Fear Factory.
Nem Max nem Newport consideravam o Nailbomb uma banda
“real” – ou tradicional –, de modo que, embora Point Blank tivesse
sido concluído antes de Chaos A.D., a Roadrunner decidiu engavetar
o álbum até março de 1994, para não entrar em con ito com o
lançamento do Sepultura. Eles queriam aproveitar a parceria com a
Epic/Sony tanto quanto pudessem, não deixando coisa alguma
desviar a atenção de Chaos A.D.
Entretanto, havia preocupações. Embora Chaos A.D. estivesse
vendendo bem, não era tão bem quanto esperado. A Epic havia
despejado um milhão de dólares para promoção, ajudando o álbum
a chegar ao 32o lugar na parada da Billboard americana e 11o no
Reino Unido, ganhando discos de ouro e prata na Europa, Brasil e
Indonésia.
Esses números não eram algo para desanimar e eram realmente
muito impressionantes para uma banda com o histórico do
Sepultura. Ainda assim, algo não estava certo. A nal, a Epic havia
prometido que Chaos A.D. superaria em muito o que alcançou de
fato, particularmente nos Estados Unidos, que era o mercado mais
cobiçado na época. Mas naquele país a veiculação nas rádios era
escassa, e, fora do programa Headbanger’s Ball, a seleção-padrão de
publicações como Metal Edge e aparições ocasionais em revistas de
guitarra, a promoção era praticamente inexistente. Onde estavam as
matérias de capa? Onde estava todo aquele apoio de “grande
gravadora”?
Durante uma entrevista à MTV Brasil, Igor revelou que os
artistas de hip-hop americanos com os quais o Sepultura zera
amizade os haviam alertado sobre o racismo. Enquanto os rappers
eram vítimas de preconceito por serem negros em uma indústria
musical predominantemente branca, eles acreditavam que os
membros do Sepultura seriam vítimas de preconceito semelhante
por serem brasileiros.
Igor e os rapazes não queriam acreditar naquilo, mas, conforme
o tempo passava, os sinais eram fortes demais para serem ignorados.
Durante entrevistas para revistas, a banda geralmente recebia a
promessa de ser o destaque, mas quase sempre encontrava alguma
outra banda na capa mais tarde – bandas norte-americanas.
Como se essa negligência não fosse su ciente para in amar os
ânimos da banda, começaram a perceber que Prong e Fight – as
outras duas bandas de metal que haviam assinado um contrato de
distribuição semelhante com a Epic/Sony – estavam por toda parte.
O balanço percussivo de “Snap Your Fingers, Snap Your Neck”, do
Prong, e a grudenta “Little Crazy”, do Fight, explodiram nas rádios
de rock em 1994. Ambas as canções passaram meses em alta. Logo,
tornou-se óbvio que o selo estava derramando todo o seu dinheiro
nas duas bandas americanas e deixando os brasileiros à própria
sorte.
A boa reputação do Sepultura em apresentações ao vivo os
precedia. Igor, mais tarde, suspeitaria que outras bandas temiam
fazer turnês com o Sepultura como bandas de abertura ou
convidados especiais, porque achavam que seriam enxotadas do
palco toda noite, assim como acontecera com o Sodom.
Mas havia ao menos uma que não tinha medo.
Pintados pela tribo xavantes.
A TURNÊ FAR BEYOND DRIVEN, do Pantera com o Sepultura como
convidado especial e abertura do Biohazard, teve início em junho de
1994.
Qualquer um, sortudo o su ciente para sair em turnê com o
Pantera durante o auge da banda, relembra esses tempos como um
ponto alto na carreira, a maior diversão que já teve na estrada. Com
o Sepultura não foi diferente. O guitarrista do Pantera, Darrell
“Dimebag” Abbott, era o típico instigador de um sem-número de
palhaçadas de bêbado, quase sempre armado com uma câmera em
uma mão e uma Black Tooth Grin (bebida forte, mistura de uísque e
Coca-Cola) na outra, insistindo para que todos à sua volta cassem
tão bêbados quanto ele sempre estava.
Dentre os destaques desses shows estava uma versão rouca e
cheia de energia de “Kaiowas”, na qual Max, Andreas e Paulo
trocavam seus instrumentos por baquetas depois do solo de Kisser.
Integrantes do Pantera e do Biohazard, assim como qualquer outro
músico à vista, por vezes se juntavam à banda para espancar
instrumentos de percussão espalhados pelo palco. Aquilo levava um
pouco do Brasil aonde quer que tocassem.
Inicialmente, pensaram que a canção jamais caria boa ao vivo.
Nem sequer cogitavam tocar desplugados em meio a outras canções.
Porém, depois de ver a banda Neurosis, de Oakland, deixar de lado
as guitarras e tentar algo similar, o Sepultura resolveu dar uma
chance ao método.
Acabou se tornando um dos momentos mais pesados do show.
As turnês de Chaos – a princípio com abertura do Biohazard e
mais tarde do Prong – foram repletas de momentos especiais, do
tipo que muitos músicos têm sorte de experimentar uma ou duas
vezes na carreira, quem dirá em um ano. Em 4 de junho, a menos de
uma semana do início da Copa do Mundo, o Sepultura
(tecnicamente encabeçando o show, graças a uma pesquisa com os
leitores da revista Kerrang!) se viu frente a um mar de camisetas
amarelas e bandeiras do Brasil durante uma apresentação
memorável no festival anual Monsters of Rock na Inglaterra. De
volta aos Estados Unidos um mês mais tarde, em Laguna Hills,
Califórnia, um Sepultura animado e bastante intoxicado invadiu o
palco do Pantera quando a seleção brasileira derrotou a Itália na
nal da Copa. A partida ocorrera a apenas uma hora de carro dali,
em Pasadena, e o Pantera gentilmente permitiu ao Sepultura tocar
por mais tempo naquela noite.
Dividir o palco era algo comum naquela turnê. Andreas tocava
com o Pantera em “Walk”, música contagiante que virou um clássico
instantâneo, assim como Paulo, quando os brasileiros foram
forçados a cancelar alguns shows depois de Max machucar o joelho.
Phil Anselmo, o vocalista pouco amigável do Pantera, costumava se
juntar ao Sepultura para uma versão de “Hear Nothing, See Nothing,
Say Nothing”, do Discharge. Empolgado em uma dessas jams, Max
soltou a guitarra e tentou despedaçá-la. Depois de alguns golpes sem
sucesso, Phil Anselmo pediu com um gesto para Max lhe passar o
instrumento e, com uma cacetada poderosa, arrebentou a guitarra.
Com um sorriso, passou os pedaços a Max, que os arremessou para
alguns fãs sortudos à frente da multidão.
No entanto, Max não tinha nenhum interesse particular em tocar
em grandes casas de show. Muitas vezes com assentos xos e forte
esquema de segurança, esses locais não inspiravam mosh pits,
mergulhos de cima do palco, e não atraíam o público mais extremo
e empolgado que a banda gostava como nas casas menores. Ele
preferia estar próximo aos fãs, cara a cara, sentindo o suor e o calor
emanando do público. A música do Sepultura, segundo Max,
impressionava muito mais nesse tipo de ambiente.
De barba verde (e calibrado), celebrando a vitória do Brasil na Copa do Mundo.

Passagens curtas pela Austrália e pelo Japão em setembro


encerraram a turnê Chaos A.D., cujos únicos pontos baixos foram a
lesão de Max e um incidente na Europa, no qual a polícia revistou o
ônibus do Sepultura em busca de drogas. Não achou coisa alguma,
levando Max a reescrever a letra de “Antichrist” [Anticristo] –
transformada em “Anticop” [antipolicial] – e a incluí-la em shows
para expressar em voz alta seu desgosto com as forças da lei.
Mas, antes de fechar o capítulo das turnês de Chaos A.D., surgiu
uma oportunidade, no início de novembro, que a banda não podia
recusar. Anunciado como uma das atrações principais da turnê Acid
Chaos, o Sepultura se juntou à lenda do punk de Nova York,
Ramones, em uma curta excursão pelo Brasil com o Raimundos,
banda de punk rock hardcore de Brasília. Com um slogan avisando
“Este show irá tirar você do sério”, a curta temporada mais do que
fez jus à campanha publicitária e viria a ser citada por Max como
um ponto alto em sua carreira.
Já era hora de um descanso muito necessário, uma oportunidade
para os integrantes aproveitarem um esboço de normalidade em
meio ao caos do sucesso. Em dezembro, Andreas e sua querida
Patricia se casaram, e, não muito tempo depois, Igor se casou com
sua namorada de longa data, Monika.
O ano de 1995 foi pouco intenso, e, com o benefício de pensar
em retrospecto, o número de atividades externas em que o Sepultura
se envolvia podia ser indício de um distanciamento lento dentro da
banda. Igor se dedicava a fazer o design de capas e a seguir suas
inclinações artísticas. Ele gostava de desenhar quando criança e
queria retomar a atividade, agora que tinha tempo disponível.
Em parceria com Alberto Hiar, Igor se entregou a outra atividade
que considerou um escape para recarregar as energias gastas com as
turnês: design de moda. Ele e Alberto Hiar criaram a marca
Cavalera, e com a coleção de lançamento – chamada “Vision by
Igor” – o baterista mostrou sua visão sobre roupas do universo do
skate e hip-hop.
Max continuou a compor e a acompanhar religiosamente seu
amado Palmeiras. As duas coisas (fora do âmbito da família) eram
suas únicas paixões, suas únicas constantes. No início de junho, Max
e Igor foram à Holanda para dois shows especiais que deram m ao
Nailbomb. O primeiro foi um aquecimento em uma espelunca em
Eindhoven. O segundo, uma apresentação gigantesca no Dynamo
Open Air, que foi gravada e lançada pela Roadrunner com o título
Proud to Commit Commercial Suicide. No dia seguinte, para fechar o
show do Biohazard, Max subiu ao palco com Robb Flynn e Adam
Duce do Machine Head para participar na música “Hold My Own”,
como forma de retribuir a participação de Evan Seinfeld no show do
Nailbomb.
Andreas também se juntou a Robb Flynn, assim como aos amigos
em comum Jason Newsted e Tom Hunting, baterista do Exodus,
para um projeto descompromissado chamado Quarteto da Pinga. A
banda foi batizada com esse nome depois que Andreas trouxe uma
garrafa de cachaça para saborearem enquanto faziam uma jam, e o
tema daquelas gravações estava formado. Beber, passar um tempo
com os amigos, tocar música. Sem pressão, sem estresse, sem
preocupações.
O Quarteto da Pinga evoluiria para outro grupo no ano seguinte
com os mesmos membros, exceto Flynn. O Sexoturica (uma
combinação dos nomes Sepultura, Exodus e Metallica) – nome pelo
qual haviam sido chamados – gravou uma demo no estúdio de Jason
Newsted, na Califórnia, o Chophouse, durante um nal de semana.
O Quarteto da Pinga fez o mesmo, e o resultado foi uma demo de
três músicas que eles não tinham nenhuma intenção de lançar (a
demo do Sexoturica seria lançada em 2002 em um CD junto com
outro projeto de Jason Newsted – o devidamente nomeado IR8,[1]
que também trazia Devin Townsend). Apesar disso, a demo do
Quarteto vazou e se tornou uma lenda no circuito underground de
troca de material.
Enquanto os outros três membros permaneciam relativamente
ocupados de alguma forma, o tranquilo e reservado Paulo pareceu
sumir completamente da vista do público.
Mas os fãs do Sepultura certamente não foram deixados de lado.
Foram amparados nessa fase de baixa atividade por um vídeo de
longa duração que era parte rockumentário, parte registro ao vivo,
parte coleção de vídeos promocionais. Compilado no mesmo espírito
dos clássicos vídeos caseiros do Pantera, Third World Chaos mostrava
um lado do Sepultura que os fãs tinham visto apenas um pouco
durante os segmentos de entrevista de Under Siege. Viram uma
banda de irmãos que levavam sua música a sério, mas que também
sabiam se divertir. Testemunharam performances brutais com o
Ratos de Porão e Jello Biafra, assim como as jams de percussão de
samba da turnê com o Pantera e o Biohazard.
Para fãs não brasileiros, o vídeo gerava uma espécie de choque
cultural, já que apresentava faixas como “Cruci cados pelo Sistema”
e “Polícia”, músicas que certamente não haviam escutado em uma
era anterior ao YouTube e ao compartilhamento de arquivos.
Mas Third World Chaos não prestava homenagem apenas às
raízes brasileiras da banda. O vídeo tornava o mundo um pouco
menor para todos, com trechos de locais tão culturalmente diversos
quanto o Japão e a Europa. Havia até mesmo lmagens de
apresentações de Debus que o Sepultura havia presenciado na
Indonésia, nas quais os éis islâmicos perfuravam a própria carne
com facas e lanças sem apresentar sangramento ou cicatriz.
Não demorou muito, porém, e o Sepultura estava ansioso para
voltar ao trabalho, para se reunir e começar a compor o seu sexto
álbum.

CHAOS A.D. TINHA DE fato lançado a banda em uma espécie de


mainstream da heavy music, algo que surgiu no início dos anos
1990, apesar de o movimento, que em breve desempenharia um
papel importante na morte do metal, já ter se estabelecido. Nirvana
e Pearl Jam ditavam a moda daquela época com um estilo de
música retro-rock que aqueles que gostam de rotular chamavam de
“grunge”. O termo era um pouco equivocado; ao mesmo tempo que
tentava descrever o som da música – guitarras desa nadas e
performances toscas –, era muito limitante. Em vez disso, passou a
ser sinônimo de Seattle, a cidade natal daquelas bandas que foram
empurrando os grupos de heavy metal de volta para o underground.
Você não teria ouvido “Refuse/ Resist” e “Slave New World” em
muitas estações de rádio além das éis ao metal, como a KNAC e a
Z-Rock, ou visto os videoclipes na MTV em qualquer outro
programa a não ser o Headbanger’s Ball, nas noites de sábado, ainda
que o Sepultura tivesse passado a maior parte de 1994 atuando
como atração principal em arenas por toda a Europa e cruzando os
Estados Unidos tocando em shows esgotados, tanto como banda
principal quanto como apoio para outras atrações. Na época em que
começaram a compor o disco que sucederia Chaos A.D., os
brasileiros eram a banda mais importante da Roadrunner, apesar de
o acordo de distribuição com a Epic/Sony ter sido desfeito.
A perda da distribuição de um selo maior não era um grande
problema para o Sepultura naquele ponto da carreira. Entendiam – e
aceitavam – que a Epic fora grande demais para eles e que seu lugar
era em um selo menor, como a Roadrunner. A Epic não se
importava com a banda, não se importava com a música. O
Sepultura era apenas mais um nome em sua lista.
Ao iniciar o trabalho para o álbum seguinte, foram buscar
referências nas in uências nativas que haviam explorado de forma
apenas super cial em Chaos A.D. Aqueles eram seus diferenciais, os
elementos únicos que nenhuma outra banda tinha, então decidiram
levá-los ao extremo. Pode-se chamar de acúmulo de nostalgia ou de
sentir falta de casa ou de saudades, mas a mudança da banda para
Phoenix foi ao menos em parte responsável por essa decisão.
“Quando saímos do Brasil”, Max contou à revista Rock Brigade,
“isso ajudou a gente a ver que tinha um monte de coisas legais que a
gente podia incorporar à nossa música.” O título do novo álbum,
Roots, descrevia perfeitamente o desejo da banda de voltar seu olhar
a sua herança cultural, mas não necessariamente um desejo de
revisitar as raízes de sua música. Quanto a isso, foram ainda mais
além. O resultado nal foi algo completamente novo, original e
vital.
Singularidade e evolução sempre foram fundamentais para o
Sepultura. Eles nunca quiseram ser o tipo de banda que faz o mesmo
álbum várias e várias vezes, e esse é um sinal de integridade que
vemos constantemente em todo o curso de sua história. Como
músicos, era – e ainda é – crucial para eles desa arem-se. Aceitaram
que alguns fãs apreciavam essa atitude, enquanto outros a
abominavam e prefeririam que continuassem lançando novas
versões de Beneath the Remains e Arise. Aqueles que gritavam
“vendidos” frente a Chaos A.D. provavelmente fariam o mesmo com
o novo disco, mas o Sepultura estava tranquilo quanto a isso. Em
primeiro lugar, tinham que alcançar suas aspirações musicais.
Tinham que fazer o que os deixava felizes.
E, com esse novo álbum, os rapazes queriam apresentar uma
imagem mais equilibrada do Brasil. Chaos A.D. era muito pesado,
muito focado em corrupção, violência e morte. Dessa vez, queriam
homenagear sua terra natal incorporando um pouco de sua
diversidade musical. Enquanto o som continuava agressivo, as letras
que estavam escrevendo queriam transformar aquela energia
negativa em algo positivo.
No nal de agosto, interromperam as sessões de composição para
retornar a São Paulo, onde participariam da primeira edição da
premiação Video Music Awards da MTV Brasil. Sendo os
representantes musicais do Brasil mais populares no exterior, foram
convidados a encerrar o prêmio de uma forma que só eles eram
capazes. A inclusão do Sepultura em um programa como esse dizia
muito sobre a relação de amor e ódio do Brasil com a banda naquela
época. Antes que nos esqueçamos, apenas poucos anos antes a
banda havia sido amplamente criticada e malvista por causa do
incidente na praça Charles Miller. A prisão de Max ao término do
Hollywood Rock ainda estava fresca na memória. Embora uma
aparição do Sepultura sempre trouxesse sua parcela de controvérsia,
ninguém podia negar seu impacto na con guração da música
brasileira e, talvez mais importante, sua contribuição na propagação
mundial do nome do Brasil.
Max nas Catacumbas durante as gravações do clipe “Roots Bloody Roots”.

Uma execução absolutamente furiosa de “Territory” foi seguida


de uma versão cheia de energia de “Kaiowas”, e, quando um
batalhão de músicos surgiu para a jam de percussão ao nal, uma
forte sensação de triunfo e orgulho pairava no ar. Apesar de ser mais
popular no exterior do que no Brasil, apesar de estar vivendo nos
Estados Unidos, o Sepultura estava orgulhoso de ser uma banda
brasileira, e, naquele momento, o Brasil estava orgulhoso dela.
Um dos percussionistas que se juntaram a eles no palco do VMB
foi Carlinhos Brown, um artista baiano conhecido como líder e
criador do Timbalada. Uma amizade nasceu naquela noite, e quando
o Sepultura decidiu incorporar intensamente ritmos brasileiros ao
novo álbum, convidar Brown para contribuir foi apenas natural.
ALGUNS DIZEM QUE a derrocada do grunge começou com a morte de
sua gura principal, Kurt Cobain, do Nirvana, em 1994. Em outubro
do mesmo ano, uma banda de Bakers eld, Califórnia, lançou seu
álbum de estreia homônimo, e a cara do rock mudou de novo. A
banda era o Korn, e o álbum – assim como sua produção – tornou-se
uma in uência central na hora de fazer Roots.
Embora seja discutível se o disco Korn é “metal” (e a própria
banda certamente evita a rotulação estética, dizendo que odeia
quando o termo é aplicado a sua música), ele é inegavelmente
pesado. Eles ajudaram a popularizar a guitarra de sete cordas e
a naram os instrumentos mais para o grave, para acrescentar ainda
maior peso. O baixo era destacado, algo não encontrado
frequentemente no rock da época, e também era tocado de forma a
acompanhar a bateria e criar um groove de estilo hip-hop, em vez
de simplesmente seguir os ri s da guitarra nota por nota. As letras
de Jonathon Davis eram sinceras. Os vocais transpareciam
vulnerabilidade, outro quase tabu no mundo de machos alfa da
heavy music. As músicas não eram rápidas, e não havia um solo de
guitarra sequer.
O sucesso de Korn, e do disco seguinte Life is Peachy, tornou seu
produtor muito requisitado. Ross Robinson – ex-guitarrista de thrash
metal e o homem por trás das demos que precederam o disco Soul of
a New Machine, do Fear Factory – logo se tornaria conhecido por sua
criatividade em estúdio, bem como por sua espiritualidade e
capacidade de conseguir performances sinceras e entusiasmadas dos
artistas com quem trabalhava. Artistas tão diversos quanto Slipknot,
Machine Head e até Vanilla Ice.
Gravado em grande parte nos estúdios de Richard Kaplan em
Malibu, o Indigo Ranch Studios, Roots não foi criado com a intenção
de ser um clássico, uma revolução ou qualquer coisa senão mais um
passo na evolução do Sepultura. E não poderia ter acontecido em
qualquer outro lugar a não ser o Indigo Ranch, onde Kaplan havia
reunido um arsenal de equipamentos, pedais e efeitos ao longo dos
anos. O estúdio era como um parque de diversões ou uma loja de
doces para músicos.

Descendo para o trabalho.

Roots começa aos poucos, em meio a sons de grilos e cigarras e o


que soa quase como um tiro. Antes que o ouvinte possa re etir
sobre o ruído, “Roots Bloody Roots” explode nos alto-falantes como
um pontapé sonoro nos dentes. O som é pesado, mas um tipo de
pesado diferente daquele a que os fãs do Sepultura estão
acostumados.
Talvez a primeira coisa notável aos ouvintes seja a maior
simplicidade do trabalho da guitarra base e que as guitarras estão
a nadas em tom abaixo do padrão. O Korn certamente pode ter
servido como uma in uência aqui, mas existem também outras
origens. Enquanto escrevia músicas em casa, Max tinha se
acostumado a colocar cordas novas na guitarra e a não se preocupar
em a ná-las.
As frequências baixas, no entanto, tornavam difícil dar claridade
ao som. Richard Kaplan tinha a solução.
Ao trabalhar com o Korn, Kaplan tinha construído um pedal de
guitarra de madeira compensada baseado na famosa caixa de
distorção Big Mu . Sua criação era um híbrido de transistores e
tubos de alto ganho que mantinham o peso grave esmagador sem
turvar o tom. Naturalmente, ele o chamou de Bigger[2] Mu . Max e
Andreas gostaram tanto do pedal que Kaplan construiu-lhes um
modelo especial, que poderiam levar com eles na estrada.
Talvez a segunda coisa que os ouvintes notaram foi o groove, o
swing brasileiro na bateria de Igor. Embora shows da turnê de Roots
fossem naturalmente abertos com “Roots Bloody Roots”, estava
claro que a música era um hino que acabaria por ganhar seu lugar
no encerramento. O som perfeito para fechar um show. O refrão,
com o rugido viciante do título poético, remonta às inspirações
líricas de Max em Chaos A.D., não só em seu minimalismo, mas
também em seu conteúdo. Poderia tanto prestar homenagem ao U2
quanto ao Black Sabbath, a “Sunday Bloody Sunday” ou a “Sabbath
Bloody Sabbath”.
Após uma música, e em muitos casos ao ser ouvido pela primeira
vez, o álbum já soava bem diferente do esperado.
As surpresas só continuaram a partir daí. “Attitude” apresentou o
som de um instrumento completamente desconhecido para a
maioria das pessoas fora do Brasil e do sul da África. O som
anasalado de um berimbau tocado por Max leva a um prefácio de
guitarra sinistro, semelhante à música “Shoots and Ladders”, do
Korn. Tal como acontece com a música anterior, “Attitude” é
impulsionada por um ri de uma única corda pouco so sticado,
composto por apenas duas notas. Quanto à letra, os ouvintes já
percebem um lado menos politicamente motivado e mais pessoal do
Sepultura.
Essa conexão pessoal foi o que fez de Ross Robinson uma escolha
ideal para produzir o disco. Música, para ele, era o som da alma.
Embora a banda tivesse, de certa forma, testado vários outros
produtores tocando as músicas ao vivo para eles, somente Ross
deixou clara sua conexão espiritual com a música. Apenas ele
mostrou seu entusiasmo desenfreado pelas possibilidades do
trabalho que poderia fazer com o Sepultura.
Boa parte da música seguinte, “Cut-Throat”, não é muito
diferente do material em Chaos A.D. – é apenas mais lenta e bem
pesada. Em geral, Max berra contra a natureza corporativa de
gravadoras endinheiradas e, mais especi camente, ataca, de forma
criativa, a Epic, pelo modo como lidou mal com o acordo de
codistribuição com a Roadrunner.
“Decoração” da sala de ensaios.

“Ratamahatta”, no entanto, representa a primeira de algumas


surpresas em Roots. A faixa inovadora – com percussão adicional de
Ross Robinson e do baterista do Korn, David Silveria – é centrada
nos ritmos de maracatu de Carlinhos Brown e nos versos em
português com chamada e resposta trocados por Brown e Max. Essa
“poesia suja” é familiar para os jovens do Brasil, a natureza abstrata
dos versos que muitas vezes são escolhidos menos por seu
signi cado e mais por suas qualidades rítmicas e musicais. Palavras
amarradas para formular mais um conceito do que uma ideia
concreta.
A primeira parte parece falar da luta da juventude brasileira
durante uma época de grande opressão e di culdades econômicas. A
segunda, com sua menção a heróis do povo como Zé do Caixão,
Zumbi e Lampião, parece representar a liberdade, uma ruptura com
a norma ou o típico. O próprio título funciona como um instrumento
de percussão nas apresentações de Brown, a palavra criada a partir
da ideia de muitos ratos em Manhattan, unindo os Estados Unidos e
o Brasil.
“Ratamahatta” como um todo representa uma quebra de
paradigma, um afastamento em relação a arquétipos, para bandas
de metal daqueles dias ou de qualquer dia.
Evoluindo da caixa de Igor com traços de samba acentuados por
acordes de guitarra, o clima ansiosamente funesto de “Breed Apart”
gera uma atmosfera sombria com seu groove. Max vomita a letra de
versos vagos que rasteja sobre acordes sustentados ao longo da
música, explodindo em um grito motivacional que exige que
criemos nossos próprios caminhos na vida, sem permitir que os
preconceitos de outros nos mantenham prostrados. A canção é um
potente coquetel de dinâmicas, mostrando como os momentos
tranquilos e os gritantes podem trabalhar juntos para ampli car os
efeitos uns dos outros. A ruptura completamente inesperada no meio
desmonta a música, utilizando berimbaus e ritmos sincopados de
uma forma quase hipnótica, e soa como uma roda de capoeira
anfetaminada. Esse segmento destaca o uso inovador de sons
brasileiros e de metal para forjar algo grandioso, pesado e
totalmente original.
Linhas de baixo bem medidas encorpam os tons da bateria de
Igor e estabelecem as bases de “Straighthate”. Harmonias de
guitarra intensas levam a um ri meio Sepultura, meio Black
Sabbath, seguido de versos repletos de wah-wahs.[3] Andreas,
fazendo sua primeira aparição vocal perceptível no álbum, solta a
voz com empolgação nos versos pré-refrão, um contraponto direto
aos berros de Max. Mais uma vez eles tiram bom proveito do ri de
guitarra de uma corda, com o pedal de distorção Bigger Mu de
Kaplan emprestando uma tonelada de peso extra.
A relativamente curta “Spit” começa com feedback e a
introdução de baixo nervosa de Paulo, para depois virar um tipo de
hardcore desa nado, um som de puro headbang. A natureza direta
da faixa faz a seguinte, “Lookaway”, uma música já esquisita e
desconcertante, parecer ainda mais estranha.
Apresentando o scratch techno do DJ Lethal, do House of Pain
(que montou a música utilizando computadores e truques de
estúdio), os cantos em estilo gregoriano distorcidos de Mike Patton e
a letra doentia, cortesia de Jonathon Davis, do Korn, “Lookaway” é
diferente de tudo o que o Sepultura já havia feito ou faria depois. É
uma faixa inquietante, beirando o industrial, provavelmente
inspirada tanto pelo Ministry quanto pelo trabalho de Max no
Nailbomb, apesar de não parecer nem de longe com nenhuma das
duas bandas. A temática também não poderia ser mais distante
daquilo que os fãs do Sepultura tinham ouvido antes. Davis, em sua
típica abordagem de evitar os temas comuns do metal, adota a
persona de um homem que está enojado com a ideia de fazer sexo
oral.
Preparando a sala de ensaios. Phoenix.

“Lookaway” é uma música que só poderia ter sido feita com o


envolvimento daquelas pessoas especí cas e de forma totalmente
não planejada. Trabalhar com músicos convidados nunca foi algo
que o Sepultura planejasse com antecedência ou acertasse com
gravadoras, empresários ou advogados. Era sempre uma ideia
repentina envolvendo quem estivesse por perto no momento e o
respeito mútuo que tinham pela música e pelo processo de criação.
Tratava-se de impulso. Tratava-se de arte.
“Dusted”, inteiramente construída por Andreas Kisser, deixa o
ouvinte mais à vontade ao trazer um som mais reconhecível, algo
que poderia ter se encaixado bem em Chaos A.D. A música também
exibe a passagem mais experimental do guitarrista até então, com
solos opostos indo de um extremo a outro da escala, possivelmente
em homenagem a Tony Iommi, que costumava executar uma técnica
semelhante em discos do Black Sabbath.
“Born Stubborn” é outra faixa que busca referências em um
passado recente, embora tenha uma pegada mais animada, devido
ao ri em progressão com nota em modo maior. Ainda assim, as
camadas de efeitos de estúdio estranhos e ruídos – sem falar na
inclusão do canto tribal dos índios Xavantes ao nal – tornam a
música bem adequada à sequência de Roots.
A participação de Xavantes aqui é apenas um aperitivo do que
está por vir.
“Jasco”, uma faixa instrumental curta que incorpora melodias
tradicionais brasileiras, dá destaque à paixão de Andreas por viola
clássica – uma disciplina que continua a estudar e aprimorar por
horas todos os dias. Apesar de constar como uma faixa autônoma,
“Jasco” serve de introdução para a faixa seguinte, um
desenvolvimento mais extremo da experiência iniciada em
“Kaiowas”.
“Itsári”, que signi ca raízes na língua xavante, foi composta e
gravada durante o período de três dias que a banda passou na aldeia
da tribo no Mato Grosso. A ideia para o projeto já vinha sendo
desenvolvida havia algum tempo, em parte inspirada pela visão de
Max do lme Brincando nos campos do Senhor. O lme, e seus temas
sobre a civilização do “homem branco” causando vários danos a
tribos indígenas, reacendeu o interesse que tinha levado o Sepultura
a compor “Kaiowas”.
A aproximação com os Xavantes ajudou a de nir todo o conceito
de Roots e até a dar o título ao álbum.
A banda passou quase um ano se correspondendo com
representantes da tribo, preenchendo papelada, discutindo a
logística para levar o equipamento de gravação para uma área tão
remota e sem eletricidade, sem as comodidades modernas. Mas
havia pelo menos um obstáculo com o qual não teriam que se
preocupar: os Xavantes eram independentes do governo, o que
signi cava que não haveria burocracia alguma para driblar.

Monika e Ross no “dormitório” da tribo Xavante.

Organizar a visita já levou bastante tempo sem a interferência do


governo; imagine quão complicado e demorado o processo teria sido
se o governo estivesse envolvido.
O grupo principal de visitantes – incluindo a banda, Gloria e a
família de Max, a esposa de Igor, Monika, os fotógrafos, os
representantes da gravadora e Ross Robinson – voou de São Paulo
para Goiânia e de lá, dividido em quatro pequenos aviões Cessna,
dirigiu-se para a aldeia xavante Pimentel Barbosa. Os aviões eram
velhos e simples, suscetíveis a turbulências até por ventos fracos.
Paulo, sentado na frente, perto do piloto, recebeu um tutorial
sobre alguns indicadores. Quando verde, disse o piloto enquanto
apontava para o radar, estava tudo bem. Quando amarelo, todos
deveriam ser avisados que poderia haver turbulência. Se vermelho,
a recomendação era segurar rme, porque a turbulência seria
intensa. Bem nesse momento – falando do diabo… – um vento forte
atingiu o avião, balançando-o de um lado para o outro, fazendo os
passageiros cambalear.
Paulo, apavorado, mostrou ao piloto que o radar não estava
vermelho. O piloto respondeu que o radar estava quebrado.
Apenas três aviões conseguiram pousar naquele dia. O quarto,
que continha todo o equipamento de gravação, só conseguiu chegar
na tarde do dia seguinte. Nesse meio-tempo, os Xavantes
absorveram Max, Igor, Paulo e Andreas em sua cultura, adornando-
os com pintura facial e corporal, mostrando-lhes rituais e canções
tradicionais, envolvendo-os até mesmo em suas danças e músicas.
Pintados e prontos para o trabalho.

Essa união foi fundamental não apenas para a banda, mas


também para a tribo. Seu líder contou experiências passadas com
artistas que só se aproveitaram da tribo para publicidade e ganho
pessoal. Esperavam que fosse diferente com o Sepultura, que
mantivessem contato depois de tudo ter se encerrado e que levassem
ao mundo a riqueza e a diversidade de seu povo.
Sala de ensaio. Phoenix.

Assim que o equipamento de gravação chegou e um gravador de


oito faixas foi conectado a uma bateria de carro, todos foram ao
trabalho. Havia sido decidido com antecedência que, para o álbum,
os Xavantes realizariam um canto de cura – Datar Wawere na língua
deles – com Max e Andreas acompanhando nos violões e Igor e
Paulo na percussão.
A bateria já estava quase descarregada ao m da sessão de
gravação, e o Sepultura mostrou seu respeito e gratidão para com a
tribo tocando “Kaiowas” para eles. Duas vezes.
Continuando com a temática de homenagem às raízes do Brasil,
“Ambush” conta a história de Chico Mendes, inspirada no livro
Fronteiras de sangue, de Javier Moro. Chico Mendes era um
combatente da liberdade que lutava para impedir a destruição das
orestas tropicais. Como resultado dos numerosos protestos que
Mendes liderava e apoiava, um fazendeiro local o matou em sua
casa. Depois de um intervalo instrumental súbito no meio de
“Ambush”, no qual Carlinhos Brown mais uma vez se faz ouvir, Max
dispara seu refrão mais feroz até então, terminando a canção com
uma pergunta: Por quê? Por quê? Ele é silenciado pelos disparos
rítmicos de três tiros, simbolizando os disparos que tiraram a vida
de Chico Mendes.
Revisitando a atmosfera sombria e sinistra de algumas das faixas
anteriores, “Endangered Species” mais uma vez tem uma quebra
com a ajuda de Carlinhos, agora em um solo instrumental ainda
mais arrepiante, carregado com gritos gravados em reverso e cantos
baixos, como algo saído diretamente da trilha sonora de um lme de
terror. Também se ouve a incorporação da grande variedade de
efeitos de estúdio de Richard Kaplan, e começa-se a perguntar como
o Sepultura vai conseguir reproduzi-los ao vivo.
Os efeitos, no entanto, são mais adereços do que necessidade.
Adicionam brilho à música, sem nunca ofuscar as estruturas básicas
das canções. Isso era de extrema importância. O Sepultura era – e
ainda é – uma banda especializada em apresentações ao vivo e,
portanto, tinha que ser capaz de reproduzir qualquer uma de suas
músicas em shows.
Por mais que tivessem esperança de poder se concentrar nos
aspectos mais positivos do Brasil em Roots, por vezes têm uma
recaída e voltam a atacar alguns dos assuntos que os deixavam
putos desde o início. Um exemplo é “Dictatorshit”, um discurso
feroz contra a ditadura militar. Familiares e amigos continuam
impactados pelo desaparecimento de quem se manifestou contra os
líderes há tantos anos, e a banda promete nunca se esquecer.
“Dictatorshit” termina em um tom explosivo, que teria sido
apropriado – levando-se em consideração como o álbum começa –
para fechar Roots como um todo. Todavia, há um tom ainda mais
adequado.
A faixa de treze minutos “escondida” no nal do disco – não
incluída nos créditos – começa com os mesmos estalos ouvidos no
início de “Roots Bloody Roots”. Não se trata, en m, de disparos,
mas de um dos instrumentos de percussão de Carlinhos Brown
quebrando. Logo a seguir, diz a lenda, Brown beijou o instrumento,
sussurrou uma prece e então o arremessou no cânion próximo a
Indigo Ranch.
Isso marca o começo da “jam do cânion”, que na verdade é o
encerramento de uma sessão de quatro horas que zeram no local,
comungando com a natureza, tornando-se uma entidade coletiva por
meio da música.

ÀS VEZES, O IMPACTO de um álbum só é sentido muitos anos depois,


quando as pessoas conseguem ver os efeitos que ele teve em outras
músicas, em outras bandas. Talvez esses discos estejam muito “à
frente do seu tempo” para serem reconhecidos como revolucionários
no momento em que são lançados.
Roots não é um desses álbuns.
Mesmo que alguns fãs não tenham recebido bem a mudança
drástica do Sepultura, poucos podiam negar que a banda tinha
destruído barreiras. Havia feito um álbum que nenhuma outra
banda poderia fazer. Tinha assimilado suas próprias raízes pessoais
– a brasilidade poderosa que corria em suas veias – e criado um som
completamente novo e original. Alguns diriam até que a banda criou
um subgênero inteiramente novo de música pesada: o tribal metal.
A capa do álbum também ressalta com primor o aspecto tribal do
projeto. Michael Whelan foi contratado de novo para o trabalho,
desenvolvendo uma moldura para o rosto da criança indígena
presente na nota de mil cruzeiros, antiga moeda do Brasil. Como
toque nal, Whelan retratou a criança usando um colar que traz o
logo-padrão do Sepultura, o “S”.
Algumas faixas adicionais foram gravadas durante as sessões
para Roots, o que se tornara um hábito da banda. Relembraram os
primórdios com uma versão suja e macabra de “Procreation of the
Wicked”, do Celtic Frost. Max encarou a música “War”, de Bob
Marley, cuja letra foi extraída de um pronunciamento de um
imperador etíope nas Nações Unidas, e transformou a versão reggae
redentora de Marley em um discurso virulento. E, além desses dois
covers, o Sepultura convidou novamente Mike Patton para
participar da original – e sinistra – “Mine”.
Musicalmente, a banda podia estar a ada, unida na intenção de
criar algo totalmente diferente de qualquer coisa que havia feito,
mas o estúdio estava longe de ser pací co. A banda se distanciava,
irritada por um estranhamento crescente. Andreas, Paulo e Igor
sentiam que Gloria exercia um controle muito grande sobre a banda.
Mostrando preferência por Max. Passando dos limites em seu papel
de empresária. E quando ocorriam desentendimentos Max, é claro,
escolhia tomar partido a favor de sua esposa.
“Durante as gravações, havia discussões até sobre como
deveríamos tocar”, disse Andreas. “Tudo era feito na casa dela, e ela
controlava tudo o tempo todo.”
Alguns dos fãs mais sagazes começaram a comparar o Sepultura
aos Beatles, prevendo problemas, chamando Gloria de “Yoko Ono do
metal”. Mas a situação era bem mais complicada no Sepultura, com
uma diferença gritante: Yoko Ono não era empresária dos Beatles.
Fazia sentido, no entanto. Gloria, cujo trabalho era gerenciar a
banda como um todo, também era casada com o vocalista, com o
cara que já era um ponto focal da mídia simplesmente porque estava
à frente do microfone todas as noites. Como tal, havia um perigo
muito real de con ito pessoal interferindo nas decisões pro ssionais.
“Do meu ponto de vista”, explicou Toninho, “sempre achei que
não ia funcionar, porque, se você casa com a pessoa que manda, é
claro que tudo muda. De repente, Paulo, Igor e Andreas estavam em
segundo plano, Max era o chefe, e Gloria era seu braço-direito.”
Eric de Haas compartilhava de um sentimento parecido. “Gloria
encontrava razões para lentamente separar Max de seus amigos e da
banda, e em certo ponto Max e eu também acabamos nos
distanciando. A razão para isso foi que, após uma turnê, uma grande
revista brasileira chamada Bizz queria escrever sobre a turnê e
precisava de algumas fotos.” Eric forneceu todas as fotos que tinha
tirado à Bizz, e entre as que escolheram para publicar estava uma
foto da área dos bastidores que mostrava Max tomando banho e
outra de Paulo segurando uma garrafa de Jack Daniels. Gloria cou
furiosa, insistindo que aquelas imagens prejudicariam a imagem do
Sepultura.
“Max cou irritado comigo por causa disso, e a gente acabou não
passando mais tempo juntos”, completou Eric.
Na verdade, todos eles foram vendo cada vez menos o vocalista,
como Monika a rmou: “Max cava sempre na parte de trás do
ônibus, sem falar com ninguém. Era a banda na parte da frente e
Max e Gloria na parte de trás. E ele nunca ia na frente para falar
com ninguém. Ele entrava no palco e depois voltava. Então era meio
tipo… já tava estranho nesse ponto”.
Eric disse: “Gloria queria afastar qualquer um que pudesse
in uenciar Max de algum modo. Ela queria ser a única pessoa em
quem Max prestasse atenção”.
“Igor tentou conversar com Max uma vez”, completou Monika,
“e o Max cou tipo ‘Ah, você tá errado, não tem nada acontecendo
aqui’, e Igor foi cando cada vez mais incomodado. Acho que o Igor
era o mais incomodado, porque na cabeça dele estava perdendo o
irmão. Ele praticamente não tinha mais contato com ele.”

O ÚNICO SHOW NOS Estados Unidos antes do lançamento de Roots


aconteceu em janeiro, na casa de shows coincidentemente chamada
Club Rio, ao norte de Tempe, Arizona. Era um aquecimento especial
nos arredores da nova cidade em que moravam, após o qual
atravessariam o oceano para uma turnê promocional curta na
Europa, antes de voltar aos Estados Unidos para cair na estrada
junto com o Ozzy e o Type O Negative, banda do Brooklyn.
Analisando em retrospecto entrevistas e videoclipes daqueles
dias, sabendo o que sabemos agora, é fácil perceber que algo estava
errado. A banda parecia estar distante, distraída, de fala mansa. No
momento em que iam rapidamente ganhando popularidade, não
pareciam tão animados ou entusiasmados como se poderia esperar.
Igor e Paulo passavam o tempo treinando jiu-jítsu. Alguns
companheiros de excursão notaram que os membros da banda
estavam razoavelmente amigáveis, mas na maior parte do tempo
cada um cava isolado, “na sua”, o que era uma grande mudança
em relação às turnês de 1994 com o Pantera.
Parte disso pode ser explicada pelo fato de que o Sepultura tinha,
de certo modo, crescido ao longo dos últimos anos. Max e Andreas
estavam casados e tinham lhos, e Igor também estava casado e
com um lho a caminho. Estavam mais responsáveis, evitando as
farras, levando a pro ssão – mesmo na estrada – um pouco mais a
sério.
Mas isso também pode ser explicado pelo acirramento das
tensões entre os membros da banda.
“Quando eu engravidei”, relembra Monika, “meu bebê estava
previsto para fevereiro de 1997. Então eu disse ao Igor… isso foi em
julho… ‘Você tem que dizer à Gloria que a gente precisa de folga em
fevereiro porque o bebê vai nascer’.”
Igor ligou, mas Gloria negou seu pedido.
Monika continua: “Gloria disse: ‘Não posso. Eu já tenho o Japão’.
E ele falou tipo ‘Quê? O que você quer dizer com isso?’, e ela disse
‘Eu não posso cancelar a turnê. A gente vai achar um substituto para
você se você não pode fazer a turnê no Japão’. Então ele falou tipo,
‘tá bom, foda-se’, e desligou o telefone. E ele disse ‘eu não vou fazer
a turnê’”.

PORÉM, É DA NATUREZA humana se unir em momentos difíceis. Nas


primeiras horas de 16 de agosto, ocorreu uma tragédia em casa, em
Phoenix, enquanto a banda e Gloria chegavam a Londres para se
apresentar no Monsters of Rock, no dia seguinte, no Donington
Park. Estavam escalados para tocar no palco principal como a
antepenúltima banda, pouco antes de Ozzy Osbourne e Kiss, as
atrações principais do evento.
Pouco depois de chegarem ao hotel, Andreas recebeu uma
ligação de Patricia. Ela havia voltado para casa, em Phoenix, com
um amigo e a babá dos lhos de Max e Gloria, e tinha a pior notícia
que um pai ou uma mãe pode receber. Dana, o lho de Gloria,
enteado de Max, havia morrido em um acidente de carro. Ele tinha
apenas 21 anos.
As brigas internas cessaram imediatamente. Gloria e os membros
da banda, cada um deles chocado e devastado para dizer o mínimo,
concordaram que ela e Max tinham que voar para casa o mais
rápido possível. Estavam unidos em um outro aspecto também. Por
respeito aos fãs que tinham ido a Donington apenas para vê-los, o
Sepultura iria se apresentar conforme o planejado, mas como um
trio, com Andreas Kisser assumindo a maior parte dos vocais, e
convidados como Sílvio “Bibika” Gomes e Evan Seinfeld, do
Biohazard.
Ozzy Osbourne e Sharon, sua esposa e empresária, permitiram
que Gloria e Max usassem o jato particular deles para conseguirem
chegar em Phoenix no mesmo dia.
Monika relembra: “Quando o lho da Gloria morreu, eu estava
na Jamaica com meu chefe, e alguém me ligou e disse que ele tinha
morrido. Então eu peguei um voo no dia seguinte e fui ao funeral
dele”.
A casa era um lugar sombrio no momento da chegada. Família e
amigos estavam inconsoláveis, lamentando a perda extremamente
precoce de uma alma gentil, cuja única paixão era a música. Jason
Newsted e Max passaram uma noite em lágrimas, fazendo uma ta
para que pudessem enterrar Dana ao som de suas músicas favoritas.
Detalhes acerca da morte de Dana são vagos até hoje. Algumas
pessoas a rmam que ele foi assassinado, que seu carro foi jogado
para fora da estrada por membros de gangues que tinham jurado
vingança contra os amigos que estavam no carro de Dana. Se foi um
acidente ou algo completamente diferente, o evento teve in uência
decisiva nos trabalhos futuros de Max.
Enquanto isso, em Donington Park, Andreas explicou a situação
ao compreensivo público e pediu-lhes para participar de um minuto
de silêncio antes de tocarem “Roots Bloody Roots”. O show como
um todo pode não ter sido o melhor deles, mas foi certamente o
melhor que poderiam ter feito, dada a situação.
Em vez de car em casa, chafurdar no sofrimento e na tristeza, o
Sepultura lidou com aquilo da melhor maneira que podia. Cerca de
um mês após a morte de Dana, estava de volta à estrada, dessa vez
como parte de um pacote que incluía Ozzy, Danzig e Biohazard.
Mas não sem desentendimentos.
“Quando o Dana morreu”, conta Monika, “eles tinham uma turnê
marcada para duas semanas depois – pois estavam fazendo uma
pausa – e marcaram uma reunião com Max. Max entrou na casa de
Paulo, e eu quei escondida atrás da porta, (escutando) claro”, ela
diz com um riso gentil. “Eles disseram: ‘Max, a gente sabe como isso
é duro para a Gloria, mas a gente precisa ir em frente. Essa é uma
grande oportunidade para fazermos turnê com o Ozzy, e a gente não
pode perder, então a Gloria pode car em casa e você vai com a
gente’. E o Max disse: ‘Ok, eu vou fazer a turnê. Vou falar com ela e
depois vou fazer a turnê. Vai car tudo bem’.”
Mas nada estava bem.
Monika continua: “Nosso gerente de turnê, Eddie Rocha, ligou
para a Gloria e disse que precisava saber da turnê dali a duas
semanas, porque a banda tinha dito a ele para começar a adiantar as
coisas, que o Max estava bem, que ele iria participar da turnê. Ela
disse: ‘Você tá louco? Ele nunca vai me deixar aqui. Ele não vai
fazer a turnê’. Na época, Igor disse: ‘Então… o lho dela morre, e
ela cancela a turnê toda. O meu bebê nasce, e eu já vinha avisando
todo mundo seis, sete meses antes, e ela diz que quer me substituir
por um novo baterista. Ela que se foda’”.
A turnê seguiu em frente. Com Max. Mas aquele foi o começo do
m.
Dadas as circunstâncias, sair em turnê pode não ter sido a
melhor decisão na época. Max e Gloria estavam emocionalmente
destroçados pela morte de Dana. Igor, Andreas e Paulo ainda
percebiam sinais de favorecimento por parte de Gloria e estavam
discutindo suas opções. A pele coletiva do Sepultura estava coberta
de estilhaços, punhais dolorosos, tanto de natureza pessoal quanto
pro ssional, e voltar à estrada só os enterrou mais fundo na carne.
Os quatro meses seguintes foram de sofrimento de diversas
espécies, culminando em uma separação desagradável, que já vinha
se desenhando e que encobriu a estação das festas com uma nuvem
de trevas.
EM MEADOS DE NOVEMBRO, a banda voltou para casa, para o Brasil, a
m de realizar uma série de shows, mas o clima da recepção estava
longe de ser ideal. De certo modo, a divisão já havia ocorrido: Max e
Gloria de um lado, e Paulo, Andreas e Igor do outro. Durante a
maior parte de 1996, após o lançamento de Roots, as duas facções
mal se viram, com exceção de ensaios e apresentações.
As tensões, que vinham gradualmente se acirrando havia cerca
de um ano, nalmente atingiram o auge na Argentina, como contou
Andreas em uma conversa franca. “Estávamos muito felizes de estar
no Brasil, nossa casa, nosso lar, as raízes do Sepultura”, disse, com
um esboço sutil de riso constrangido. “Ao mesmo tempo, era um
desastre fora dos palcos. E na Argentina ocorreu a maior briga que
já tivemos.”
Em 14 de novembro, no estádio Obras Sanitarias, em Buenos
Aires, uma arena coberta com capacidade para 5 mil pessoas,
ninguém na plateia podia imaginar quão tensos estavam os
relacionamentos na banda. O Sepultura tocou como se estivesse em
chamas, incendiando o público com energia pura, apesar de
saberem que provavelmente o m estava próximo. E havia tensões
externas também, entre elas a tristeza constante de Max e Gloria
pela morte não esclarecida de Dana, além da preocupação de Igor
com sua lha Joanna, recém-nascida prematura de seis meses, ainda
no hospital lutando contra doenças e infecções. Planos já eram feitos
para trazer o ex-baterista do Machine Head, Chris Kontos, para a
iminente turnê australiana em janeiro, de modo que Igor pudesse
car em casa com Monika e Joanna.
Mesmo estando no auge absoluto do sucesso, revolucionando a
música heavy e lotando estádios ao redor do mundo, aqueles não
foram dias felizes para o Sepultura.
Max descreveu os eventos que transcorreram depois do show em
Buenos Aires dizendo que fora despertado logo após deitar-se. Era
Andreas ao telefone, com Igor e Paulo. Precisavam fazer uma
reunião e não podiam esperar até a manhã seguinte. Segundo Max,
nem ele nem Gloria faziam ideia sobre o que o trio queria conversar.
“A banda realmente se separou na Argentina”, disse Andreas,
“depois do show de Buenos Aires. Foi pesado, intenso, nervos à or
da pele, e a banda decidiu foder com tudo.”
A decisão foi resultado de conversas que os três vinham tendo
havia alguns meses. Igor fora o primeiro a sugerir uma mudança,
ainda furioso, chamando a atenção para uma perceptível alteração
na dinâmica da banda. Todos entendiam que Max, por ser o
vocalista, recebia naturalmente mais atenção da mídia, como
consequência de sua posição. Entretanto, conforme a popularidade
da banda crescia, começou a parecer que Max era o Sepultura e os
outros três, mera banda de apoio. Ainda que, na melhor das
hipóteses, Gloria não estivesse “vendendo” essa imagem para a
mídia – como acreditavam Igor, Andreas e Paulo –, ela não fazia
nada para mudar essa impressão, de modo a representar a banda
inteira tão bem quanto representava o marido.
Igor sugeriu a solução mais lógica: Gloria poderia permanecer
como empresária de Max, enquanto os outros três buscariam os
serviços de outra pessoa. Mas nada se resolveu de fato naquela noite
na Argentina. As pressões e responsabilidades decorrentes de ser
uma banda popular em turnê eram grandes demais para serem
ignoradas, e, claro, ninguém queria sequer cogitar a dissolução do
Sepultura.
“Em novembro”, relembra Monika, “quando decidiram contar a
Gloria que ela não seria mais a empresária, eu estava grávida e tive
um parto prematuro. Minha lha deveria nascer em fevereiro, mas
nasceu em novembro. Ela tinha 30 centímetros e 600 gramas e teve
que car no hospital por três meses. Como alguém pode pensar que
eu me importava com o que aconteceria com a banda? A única coisa
que eu disse ao Igor foi: ‘Vocês da banda vão tomar uma decisão,
então vocês têm que fazer essa turnê, porque a gente não faz ideia
do que vai acontecer quando vocês disserem que não querem mais
trabalhar com ela. E, caso Max decida sair da banda, a gente vai
car sem dinheiro. Então vai fazer isso, que eu vou cuidar do bebê
no hospital’.”
“Depois do tumulto”, explicou Andreas, “naquela mesma noite,
decidimos ir para a Europa, já que tínhamos uma turnê continental
agendada. Tínhamos o festival Big Day Out em janeiro. Tínhamos
uma grande turnê no Japão em janeiro e fevereiro. Então decidimos
ir para a Europa, conversar sobre aquilo e resolver as coisas. Claro
que isso não aconteceu. Principalmente durante a turnê. Roots
estava estourando no mundo todo, e nós estávamos na Europa
tocando em estádios do caralho, para 10 ou 15 mil pessoas. Depois
de tudo, aquilo tornou-se uma enorme bola de neve. Ninguém sabia
como controlar a situação. Nenhuma gravadora, nenhum
empresário. Ninguém.”
O Sepultura tornara-se uma máquina, uma entidade, muito
maior do que qualquer de suas partes, quiçá com muito mais força
do que qualquer uma delas poderia controlar – inclusive Gloria.
Andreas resumiu aquilo, traduzindo em palavras o que todos os
outros presos naquela máquina sentiam: “Qual é o sentido de tocar
numa porra de um estádio e se sentir infeliz?”.
A infelicidade afetava cada um de forma diferente, enquanto
indivíduos, embora nunca tenha parecido afetar a música.
“O m”, disse Andreas, “chegou no show no Brixton Academy,
em 16 de dezembro de 1996, exatamente no dia em que o contrato
de Gloria expirou.”
A data não foi coincidência.
“Na época de Roots, as coisas estavam difíceis fora da música”,
prossegue Andreas, falando com uma tranquilidade que vem de anos
de distanciamento. “Gloria queria, na verdade, construir uma
carreira para Max, e nós éramos a banda de apoio. Isso é o que ela
queria fazer, e é o que ela ainda quer hoje com o Soul y e todos os
projetos de Max. Esse é o sonho deles, e infelizmente ela tentou
alcançá-lo com o Sepultura.”
“Queríamos mudar aquele sistema”, explica Andreas.
“Queríamos ser um pouco mais pro ssionais, ter um pouco mais de
controle sobre as coisas, sem ter uma só pessoa cuidando de tudo. E
isso era difícil de discutir, porque tudo era muito passional. Gloria
era sempre muito passional, além do Max, e havia o Igor no meio
fazendo o papel de irmão.”
Desde os primórdios em Belo Horizonte, e depois em São Paulo,
o Sepultura se considerava uma tribo. O entrosamento de suas
apresentações ao vivo vinha da prática quase ritualística, constante,
e havia, segundo Andreas, algo de muito sagrado naquilo. Tocavam
todos os dias – covers de bandas que adoravam, como Slayer,
Destruction e Venom – e trabalhavam constantemente nas próprias
músicas. Eram uma família, unidos na música e na superação de
desa os tanto dentro quanto fora da indústria musical. Haviam
crescido no e com o Sepultura, mas, no nal de 1996, já não eram
mais garotos. Haviam constituído suas próprias famílias.
“[Já não] éramos quatro caras do Brasil que ensaiavam todos os
dias”, explica Andreas. “Não éramos mais aquele tipo de banda.
Tínhamos famílias, vivíamos em nossas casas, a banda era um
grande sucesso. Desde os dias de Schizophrenia, as coisas
caminhavam passo a passo. Não paramos, sabe? Então tudo estava
um pouco mais louco, e esse tipo de energia familiar era o que não
nos permitia alcançar um nível pro ssional.”
O show no Brixton Academy acabou sendo lançado pela
Roadrunner como um registro sonoro do último show de Max com o
Sepultura – contra a vontade da banda, que até hoje se recusa a
reconhecê-lo como álbum “o cial”. Com o nome Under a Pale Grey
Sky, o disco é intocado, sem retoques de estúdio, sendo apenas
mixado e masterizado para garantir um som equilibrado. Ele é
violento, não polido, e humano… e o Sepultura se opôs ao seu
lançamento sobretudo porque o álbum colocou sob os holofotes um
momento terrível e conturbado da história da banda.
Após a saída do palco do Brixton Academy, sob o agudo
lancinante do feedback das guitarras, Max foi para o ônibus
enquanto os outros três se reuniram com Gloria no backstage.
Segundo todos os relatos, a reunião foi tranquila e re etida, e o trio
apresentou a Gloria uma carta – preparada pelo advogado deles –
que o cialmente encerrava seu contrato. Se não o tivessem feito
naquele dia especí co, em que o acordo original expirou, o contrato
teria sido automaticamente renovado.
“Ela sabia que o contrato expiraria”, disse Andreas, “e sabia que
queríamos mudar o sistema de gerenciamento do Sepultura. E, claro,
Max e Gloria não concordavam. Tinham todo o direito de não
concordar. Só que Max não estava naquela reunião. Estávamos
apenas eu, Gloria, Paulo e Igor. Max cou no ônibus por alguma
razão. Não estava lá para ver sua esposa ser demitida.”
Andreas completa: “Ela foi demitida, não ele. Max nem deu as
caras naquela última reunião, não estava lá com a gente, nem
mesmo com Gloria. Não estava com ninguém. Ela estava por conta
própria, e nós por conta própria como banda. E aquilo nos deu
forças para seguir em frente, na verdade, porque eu, Igor e Paulo
estávamos unidos para car com o Sepultura, com a parte boa – o
nome e tudo o mais – e com a ruim também. Levamos muito tempo
para arrumar os negócios”.
“Ela foi demitida”, repete Andreas, “e ele deixou a banda.
Apenas deram as costas para nós. Além disso, Glória levou consigo
toda a estrutura que o Sepultura havia demorado dez anos para
construir, a con ança da gravadora, o gerenciamento. Levaram…
Max levou tudo.”
Tudo, exceto o nome.
Passado o Ano-Novo, os primeiros meses de 1997 foram repletos
de confusão e incerteza. Turnês na Austrália e Japão programadas
para janeiro e fevereiro foram canceladas. A decisão o cial sobre a
situação da banda ainda não havia sido tomada, e não havia
comunicação alguma entre Max e os outros três membros. Max e
Gloria tinham voltado para Phoenix, enquanto Igor, Paulo e Andreas
se reuniram no Brasil para as festas de m de ano, convencidos de
que poderiam acertar as coisas internamente, sem a mídia, os fãs ou
qualquer outra pessoa envolvida ou mesmo ciente da situação.
Porém todos os planos de discrição foram descartados quando Max
divulgou uma declaração inesperada através de canais midiáticos
mundo afora, uma carta aberta carregada de sentimentos.
A declaração trazia, em parte, a seguinte mensagem:

Quero que as pessoas saibam que o que sinto não é diferente do que elas sentem ao
ouvirem que nosso trabalho está sendo forçado a acabar; choro todos os dias, estou
magoado, triste, com raiva, completamente chocado. Sinto como se metade de mim tivesse
morrido.
Não foi decisão minha separar a banda, Gloria e eu fomos praticamente expulsos do
Sepultura. Tenho de ser honesto, o sentimento já não era o mesmo de quando começamos,
ou de quando tocamos pela primeira vez fora do Brasil, mas em vez disso estava mais
para um monte de lhos da puta “de fora” dizendo a todos o que fazer, como agir e essa
merda toda!!!
Fiquei enojado disso, não preciso dessa merda na minha vida. Quero ter prazer em
estar numa banda de novo, criar, tocar, rir, chorar, brigar, ir em busca daquele sonho
impossível; e quero todos esses sentimentos de volta…
Uma das coisas que mais me magoam é o fato de que a gente era uma tribo tão unida
numa época, e infelizmente as pessoas começam a mudar e a agir diferente, com inveja,
ganância etc.
Tudo que posso dizer, do fundo do coração: a gente era um time perfeito, nós quatro,
Gloria, os roadies, toda a organização e, como dizem no Brasil, “em time que está
ganhando, não se mexe”, e isso é uma puta verdade!!!
A gente poderia ter trocado membros da equipe por gente mais pro ssional, mas a
gente segurava as pontas uns dos outros; claro que a gente podia conseguir um baixista
melhor, ou um roadie superpro ssional, mas não é assim que eu acreditava que as coisas
deveriam ser, a gente permanece el aos membros da tribo e se ajuda!!! E então, do nada,
eles deram uma carta para a Gloria dizendo que ela não era mais empresária de Andreas,
Igor ou Paulo, sem uma porra de um motivo, simplesmente demitida pelos outros três
caras. Essa não é mais a tribo em que eu acredito.
Só quero que todos saibam: eu nunca desisti do Sepultura, eu nunca destruí o
Sepultura, e tentei tudo que podia para acertar o problema, mas já não tinha jeito, era
tarde demais e infelizmente as pessoas esquecem de onde vieram…

Ao ver essa notícia na mídia brasileira, Andreas, Igor e Paulo


caram atônitos. Em resposta, os três organizaram uma coletiva de
imprensa em São Paulo para anunciar que, como resultado direto da
declaração de Max, o Sepultura tinha decidido continuar sem ele.
Até deixaram as portas abertas para o retorno do vocalista, apesar
de deixarem muito claro que não esperariam para sempre. Ao
encarar a possibilidade de que seu irmão poderia nunca mais voltar,
Igor declarou com franqueza: “O Sepultura não está morto”.
Durante uma entrevista à MTV Brasil, o sempre extrovertido
João Gordo admitiu que não estava surpreso com a saída de Max.
Disse que, depois do casamento de Max e Gloria, era apenas questão
de tempo e que todos já sabiam disso.
Pouco depois da coletiva, a banda cou sabendo – mais uma vez
pela imprensa, e não diretamente do próprio Max ou de alguém de
sua equipe – que Max havia formado um novo grupo, chamado
Soul y, e já trabalhava em um novo álbum com outros músicos.
Igor, contudo, ouviu do próprio Max.
Monika conta: “Eu lembro quando levei o bebê para casa, Max
ligou pro Igor, e eu lembro exatamente onde o Igor estava sentado,
porque isso é algo que…”. Ela para, sacudindo a cabeça. “Ele ligou e
disse: ‘Ei, Igor, vamos nos livrar de todos os caras e vamos fazer
nossas próprias coisas, eu e você, a gente pode ter uma outra
banda’, e Igor falou tipo ‘Max, você não tá entendendo. Eu não
quero trabalhar com sua esposa. Não tem a ver com os caras ou
qualquer coisa assim. Eu não quero a sua esposa’”.
Monika estava a seu lado e sugeriu outra solução. “Eu disse: ‘Por
que você não diz que ele poderia ter Gloria como empresária, e você
os outros contratam outra pessoa, e aí vocês podem trabalhar
assim’?”
Mas para Igor já tinha dado. Ele estava de saco cheio.
Então tudo havia acabado.
Em abril, o agora trio se reuniu em San Diego, Califórnia, para
começar a compor as canções que integrariam Against. Tinham um
propósito renovado. Todos os pensamentos sobre um possível
recomeço com um novo nome para a banda, ou até mesmo um
afastamento total da indústria musical, desapareceram assim que
voltaram ao batente. Fazer música juntos era divertido de novo.
Decidiram aproveitar o momento. Canalizariam as emoções do ano
anterior – toda frustração, raiva e amargura – em um novo álbum.
Como uma fênix, ressurgiriam, renascidos das cinzas.
Era a aurora de uma nova era para o Sepultura.
“Houve momentos em que pensamos em desistir”, revelou
Andreas em uma entrevista à revista Metal Hammer. “Felizmente,
nossa música está acima de tudo, e essa é a razão da nossa
sobrevivência.” No entanto, havia mais do que apenas a música,
como explica Igor. A família também precisava ser levada em
consideração. Tinham suas próprias esposas, seus lhos. “Esse tipo
de coisa sempre acaba pesando em qualquer decisão que eu tomo. O
Sepultura é algo que amo e que, ao mesmo tempo, me propicia
sustentar minha família. Eu levo isso muito a sério.”
As novas canções exalavam ferocidade. Todas as experiências do
ano anterior e as di culdades pelas quais ainda passavam se
tornaram inspiração. Enquanto Max ainda falava sobre a separação
– por vezes dizendo que saiu em apoio à esposa, outras vezes
alegando que fora demitido por inveja –, o Sepultura permanecia
relativamente quieto, concentrando-se, em vez disso, na produção
do novo álbum. Não sentiam necessidade de justi car ou defender
suas ações, mesmo com a mídia aceitando a ideia de Max como
vítima e cruci cando Igor, Andreas e Paulo.
“A imprensa sempre precisa desse tipo de fofoca para atrair
leitores”, diz Paulo, apaziguando, a seu modo sóbrio. “Assim, as
coisas às vezes se tornam uma novela.” Infelizmente, a novela
manipulou muitos fãs e os levou a escolher um lado, como se Soul y
vs. Sepultura fosse uma espécie de luta de boxe, e como se a torcida
por uma implicasse ódio pela outra.
Como trio, o Sepultura passou a maior parte de 1997 compondo,
amadurecendo como músicos e como pessoas e, talvez o mais
importante, fortalecendo os laços de amizade. Andreas logo decidiu
assumir os vocais, declarando à revista Kerrang!: “Por enquanto,
queremos manter a banda apenas com nós três. Vou desenvolver
minhas técnicas vocais e talvez, mais tarde, a gente possa considerar
a necessidade de chamar outro músico ou vocalista”.
Tocar como trio, pelo menos musicalmente, não era
necessariamente uma experiência nova. Ao longo dos últimos anos,
Max vinha cada vez mais interagindo com o público, esforçando-se
para construir a química essencial entre banda e público que pode
transformar um mero show em espetáculo. Como resultado, sua
atenção às partes da guitarra base diminuíam. Na turnê de Roots, ele
chegou a soltar o instrumento do corpo completamente, retorcendo-
se para lá e para cá como que para fazer jus a seu velho apelido,
possessed [possuído].
E Andreas re ete: “Quando Max não podia tocar em alguns
shows, a gente tocava como um trio”. Mas para condicionar sua voz
de uma forma que complementaria perfeitamente a música do
Sepultura, bem como desenvolver sua própria presença como
frontman, Andreas sabia que teria de dividir seu foco entre cantar e
tocar guitarra. “Isso é algo totalmente diferente”, disse ele, “tentar
criar seu próprio estilo e sua própria maneira característica.”
Diminuir seu foco na guitarra simplesmente estava fora de
cogitação.
Armados com doze canções, a versão trio do Sepultura voltou ao
Brasil mais tarde naquele ano para prosseguir com as composições e
começar as audições para vocalistas. Sabiam o que queriam de um
vocalista e o que não queriam. Queriam alguém agressivo, que
pudesse fazer justiça às furiosas canções novas com sua própria
personalidade. Não queriam um clone de Max Cavalera.
No livro Sepultura – toda a história, Igor ponderou sobre a
situação: “Poderíamos ter chamado um cantor famoso, mas achamos
que seria melhor procurar alguém novo, desconhecido, que
trouxesse energia nova à banda”. Em 24 de outubro, uma nota na
imprensa anunciou o cialmente a busca pelo substituto de Max,
causando uma enxurrada de tas demo.
A banda ouviu centenas de gravações, mas apenas algumas vozes
despertaram o interesse de todos. Um número seleto de candidatos
recebeu uma demo preliminar, instrumental, da nova faixa “Choke”.
Os cantores em potencial receberam instruções para criarem suas
próprias letras e melodias, já que a banda não estava apenas
recrutando um mercenário. Precisavam de alguém com quem
pudessem compor. Deveria ser como sempre fora: quatro caras
trocando ideias e pensando o material juntos.
Para Derrick Green, a audição para o Sepultura não poderia ter
sido mais providencial. Sua banda, Alpha Jerk, estava em processo
de dissolução. Como que por intervenção divina, Mike Gitter – um
amigo e representante da A&R da Roadrunner Records – avisou
Derrick que o Sepultura estava procurando por um vocalista. Foi
uma surpresa para o norte-americano, que até então nem sabia que
Max deixara a banda.
Derrick hesitou a princípio, incerto quanto ao tipo de vocalista
que tinham em mente. Sabia que não faria sentido participar da
audição se quisessem alguém que cantasse como Max, pois seu
interesse era apenas ser ele mesmo.
Green havia experimentado sucesso razoável como membro de
uma banda de Cleveland chamada Outface. A banda lançou em
1992 seu único álbum, Friendly Green (em homenagem ao pai de
Derrick), recebendo críticas respeitáveis. Apesar de ter assinado com
um selo de certo modo punk, a Crisis Records, e de ser divulgada
como uma banda hardcore, esses rótulos eram limitantes demais
para descrever o som do Outface. Tinham muito mais a ver com o
Bad Brains do que com o Sex Pistols ou o Sick of It All. Todavia,
após uma breve turnê pelos Estados Unidos e uma jornada pela
Europa para divulgar Friendly Green, a banda se separou. Enquanto
Derrick e o guitarrista Charlie Garriga se dirigiram para o leste, em
uma tentativa de reviver o Outface como parte da infame cena
hardcore de Nova York, o baixista Frank Cavanagh permaneceu em
Cleveland e acabaria, mais tarde, se juntando ao Filter (mas só
depois de, coincidentemente, o Sepultura e o Filter aparecerem
juntos na trilha sonora do lme de horror Os demônios da noite).
“Kamaitachi”, o trio intacto.

Enquanto trabalhava como segurança de boates em Nova York,


Green começou uma nova banda chamada Over end, que acabou se
transformando no Alpha Jerk, ambas tendo como membros
principais Derrick e a vocalista Sarah Cox.
O Alpha Jerk lançou seu único álbum, homônimo, em 1996,
fazendo apresentações esporádicas na região de Nova York. Mas a
banda não deslanchava. Então, com o Alpha Jerk meio que na
geladeira, Derrick cedeu e entregou sua ta para que Mike Gitter a
encaminhasse aos rapazes no Brasil. Imediatamente sgados pela
energia bruta e pela extensão da voz do cantor, mandaram a demo
instrumental de “Choke”, e Derrick passou a trabalhar nela no
estúdio de um amigo, Davide Gentile, que tocava baixo na banda de
pós-hardcore Orange 9mm. Coincidentemente, Davide fora
convidado para uma audição do Sepultura havia algumas semanas.
“Eles realmente gostaram de Davide”, declarou Derrick em
entrevista ao Cleveland Examiner, “mas ele queria seguir carreira em
engenharia de som. Ele me ajudou muito com minha ta para a
audição…”
Não demorou para Derrick receber uma ligação de Igor, em
nome da banda, convidando-o para passar algumas semanas no
Brasil.
Gravando com Carlo Bartolini.

Na nota divulgada na imprensa em outubro, o baterista declarara


que o vocalista ideal para eles seria “alguém que se dê bem com a
gente… que de alguma forma tenha as mesmas ideias sobre a vida e
veja as coisas do mesmo modo que a gente. Em outras palavras, não
o típico metaleiro que só pensa em cerveja. Queremos um cara que
possa conversar sobre cerveja e futebol!”. Naturalmente, fazer as
audições no Brasil teve uma motivação maior.
As raízes nacionais do Sepultura tinham se tornado parte vital de
sua sonoridade. Além disso, no aspecto individual, crescer no Brasil
ajudara a de nir suas personalidades. Somos moldados por nossa
cultura, por nossa língua, pelas crenças e tradições de nossa pátria,
até mesmo por nossa música. Tudo isso se integra ao quebra-cabeça
de nosso – por vezes inconsciente – senso de identidade. A banda
compreendia isso, mas nunca pensou em limitar o leque de
candidatos a vocalistas brasileiros. (Se bem que, em uma observação
bem-humorada, Paulo certa vez comentou sobre uma ta enviada
por um boiadeiro do Mato Grosso: “A voz do peão era legal, mas o
visual não encaixava”.)
Mais do que uma audição ao vivo, passar duas semanas com a
banda em São Paulo era também um teste de signi cância cultural.
O vocalista conseguiria absorver e se adaptar ao Brasil além de
absorver e se adaptar à música?
Quando recebeu a ligação para o teste com a banda no Brasil,
Derrick Green não pensou duas vezes. Embarcou, ansioso, para a
América do Sul.
Já na primeira sessão tocando juntos, todos sentiram a química.
O Sepultura soube na hora que tinha achado seu homem, mas não
contou a Derrick.
Ainda não.
“Claro que sua voz era o mais importante, mas os arranjos que
fez para ‘Choke’ realmente o deixaram em vantagem”, contou
Andreas à Spin City.
Nesse ínterim, Eric Guadagnoli, da banda italiana de death metal
Electrocution, gravou uma demo que excitou a curiosidade da
banda. Dentre outros, três nomes bem conhecidos da Bay Area de
San Francisco também tentaram a sorte: Phil Demmel (guitarrista
principalmente do Vio-lence e do Machine Head), Chuck Billy
(vocalista do Testament) e Steev Esquival (o berrador do Skinlab).
“Eu tinha falado com Borivoj Krgin na época”, contou Demmel.
“Ele conhecia meu trabalho no álbum Torque e, apesar de saber que
Derrick já estava praticamente na banda, acabou me convencendo a
escrever uma letra e a gravar uma ta para mandar pros caras. Ele
providenciou o envio das DATs para mim, e eu gravei com James
Murphy (que havia trabalhado em Torque meses antes) a canção
‘Choke’. Quando terminei, ele me apresentou as versões de Chuck e
Steev enquanto mixava.”
A competição foi amigável entre os três amigos de longa data.
“Não foi embaraçoso porque parecia que [o Sepultura] já tinha
achado o seu cara”, continuou Phil. “Eu estava entrincheirado em
casa na época e meio que tinha desistido da música. Borivoj disse
que tinham me achado ‘bom, mas com um estilo clássico demais
para aquilo que tinham em mente.’”
Um mês depois da audição ao vivo com a banda, de volta a Nova
York, Derrick Green ainda estava ansioso e agitado. Sabia que
queria o trabalho mais do que qualquer coisa, mas receava ter
esperanças demais. Em um dia que, de outro modo, seria
insigni cante, ele recebeu outra ligação decisiva, pouco antes de
sair para o Lakeside Lounge, no East Village. Todd Singerman,
empresário da banda à época, estava na linha perguntando se
Derrick gostaria de voltar ao Brasil, dessa vez como vocalista do
Sepultura.
“Acho que meu coração parou”, comentou Derrick tempos
depois.
DERRICK LEON GREEN, NASCIDO em Cleveland, Ohio, em 20 de janeiro
de 1971, viveu na cidade com seus pais, um irmão e uma irmã até
os 7 anos, quando a família mudou-se para um pequeno subúrbio a
alguns quilômetros a leste. Foi uma bela mudança para o jovem
Derrick, deixar Cleveland e ir para Shaker Heights, uma comunidade
pitoresca com uma população de apenas 30 mil habitantes. Fundada
em 1912 por Shakers – um grupo altamente religioso de éis que
promoviam o celibato, a ética do trabalho e o amor a Deus acima de
tudo –, Shaker Heights foi um dos primeiros subúrbios americanos a
começar a praticar uma integração racial agressiva na década de
1950. Na época em que a família Green se mudou para lá no nal
dos anos 1970, afro-americanos compunham cerca de um terço da
população, e a cidade já tinha a reputação de ser uma das
comunidades com maior tolerância racial no país.
Aos 14 anos, Derrick já assistia a shows de hardcore e punk rock
em Cleveland sempre que podia, e um dos aspectos mais atraentes
da cena para ele, além da música, era que não importava quem ele
era ou de onde vinha. A cor de sua pele não importava, nem sua
idade, origem ou crenças. Dois anos depois, em 1986, Derrick se
juntou a sua primeira banda, o Outface, que já havia tido dois
vocalistas até então.
E, depois de pouco mais de uma década na cena musical, Derrick
encontrava-se em uma posição invejável. Estava a caminho de São
Paulo como o novo vocalista do Sepultura, para ajudar a encerrar a
composição e começar a gravar Against.
Sem dúvida, teria de estar à altura de seu antecessor.
Nos ensaios, Derrick se encaixava como a peça que faltava do
quebra-cabeça. Isso pode ser, pelo menos em parte, devido ao fato
de que Andreas, Paulo e Igor haviam passado nove meses
trabalhando internamente na reconstrução do Sepultura. Se tivessem
se apressado para encontrar um novo vocalista, para compor um
novo álbum e saltar de volta para a estrada, poderiam ter enterrado
seus problemas em vez de lidar com eles. E questões enterradas
sempre acabam por encontrar seu caminho à superfície.
Como Andreas gosta de dizer, o futuro é apenas uma
consequência do presente.
Ainda assim, mesmo com um vocalista em tempo integral,
muitas das novas faixas tinham tanto Derrick quanto Andreas
cantando, alternando versos e passagens. Foi um resultado natural
de passar tanto tempo como um trio, explicou Andreas. “Eu testei a
minha voz em muitas canções, em muitos pedaços, músicas
completas e coisas assim, só pra ferrar com tudo”, ele disse. “Foi
uma experiência legal. Nós zemos para Against por causa daquele
período de tempo, e em seguida Derrick assumiu mais porque ele é
muito melhor, sabe? Ele é bem focado na coisa.”
Integrar Derrick o máximo e o mais rápido possível era essencial
para avançarem. O Sepultura sentia que precisava manter aquele
espírito de “banda” que sempre havia tido, mesmo com Max, apesar
de alguns críticos quererem acreditar que Max tinha sido a única
força motriz da banda. A mentalidade de tribo continuava lá, ainda
que os membros da tribo tivessem mudado.
Mas Derrick sequer teve a chance de realmente se aclimatar ao
Brasil, já que a maior parte da composição já estava completa e as
gravações aconteceriam em vários estúdios diferentes, quase todos
nos Estados Unidos. Enquanto isso, em 3 de junho, a Roadrunner
lançava Blood Rooted, uma coleção de “lados-B” raros do Sepultura,
remixes e performances ao vivo. Seria a primeira de muitas ocasiões
em que o selo lucraria com a separação.
Enquanto a banda cogitava possíveis produtores, Howard Benson
os procurou em busca do cargo. Com um currículo variado e
eclético, indo de T.S.O.L. a Tu , Bang Tango e chegando a Body
Count, Benson trabalhara em uma ta de pré-produção para o
Sepultura que a banda adorou. Haviam achado a pessoa certa.
O processo de gravação daquela vez foi diferente de tudo o que
tinham experimentado até então, e o som do álbum foi uma prova
disso. De repente, havia mais espaço no mix para o baixo de Paulo e
para Andreas relaxar. Igor gravava faixas de bateria em frente a um
piano com um microfone montado no interior, conferindo uma
qualidade melódica na medida certa para a percussão. Derrick
conseguia não apenas gritar e rosnar com toda a sua potência, mas
podia realmente cantar, adicionando mais camadas dinâmicas às
canções. E Benson descobriu uma nova tecnologia de computador,
bem à frente dos dias de tas magnéticas: Pro Tools. O software
permitia maior exibilidade e criatividade na edição e mixagem das
faixas.
Todos sabiam que o álbum seria julgado primeiro apenas pelo
seu título, então precisavam de algo poderoso, uma palavra que
resumisse toda a sua existência naquele momento.
E aquela única palavra – Against– dizia tudo.

Arrebentando no European Summer Festival Circuit.

Inspirado por uma canção que Andreas tinha escrito chamada


“Against the Tide”, o título descrevia sucintamente os últimos dois
anos. Enquanto Max expressava suas frustrações através da
imprensa, o Sepultura vomitava as suas por meio da música. Ainda
assim, alguns entenderam errado. Eles não estavam “contra” Max
especi camente, ou mesmo Gloria. Estavam contra tudo o que tinha
ocorrido como resultado da divisão. A difamação da mídia. Os
boatos. As mentiras. A pressão de certas pessoas para os fãs
“escolherem um lado”. Era um assunto particular, que, acreditavam,
não deveria ter envolvido qualquer pessoa além daquelas
diretamente afetadas pela situação.
Porém, a mídia adora um drama, e os críticos zeram sua lição
de casa, dissecando as letras de Against, tentando traduzir cada
palavra em um discurso anti-Max e anti-Gloria.
As in uências do hardcore são claras na faixa-título e de
abertura do álbum, ganhando vida com a velocidade dos bumbos
duplos de Igor. Para aqueles que esperavam que o Sepultura
continuasse por um caminho musical similar ao de Roots, lamacento
e distintamente brasileiro, uma surpresa os aguardava. A velocidade
e a ferocidade, mesmo antes da entrada dos vocais, mostravam que
a banda, de novo, não queria se repetir. Em menos de um minuto,
Derrick faz sua primeira aparição, cuspindo palavras absolutamente
furiosas.
Claro que a banda soa diferente, mas essa é precisamente a
questão. Max era único. Insubstituível. Algo inde nível, porém
muito próprio do Sepultura ainda está lá em Against. Talvez alguns
se recusem a aceitar isso. Talvez a mudança seja muito grande para
eles, da mesma forma que certos fãs do Black Sabbath protestaram
contra o disco Heaven and Hell, no qual Ronnie James Dio substituiu
Ozzy Osbourne. Independentemente da opinião, a primeira música
de uma nova era deixa claro que o Sepultura está dando um passo
corajoso, deixando o passado, em direção ao futuro.
A música “Choke”, no entanto, assim como o arranjo vocal que
garantiu a Derrick Green seu emprego, aponta respeitosamente na
direção de Roots. A voz de Derrick é áspera em todos os pontos
certos, um pouco mais aguda do que os rugidos guturais de Max, e a
música ganha em groove com um ri de verso que usa apenas notas
simples – sem acordes –, enfatizando o casamento grave entre baixo
e bateria. É uma mistura de velho e novo. Um interlúdio tribal,
semelhante às jams de bateria em versões ao vivo de “Kaiowas” e
“Ratamahatta”, traz de volta memórias, mas depois vem a
introdução da guitarra solo, e a guitarra de ritmo desacelera. Isso é
algo novo para os fãs, acostumados a ouvir Max debulhando em
suas quatro cordas nos solos de guitarra.
Na letra de “Rumors”, a mídia sensacionalista encontra os
ataques contundentes que procurava. Infelizmente para ela, é um
dos alvos. Kisser faz sua declaração mais direta até então, atacando
aqueles que espalham desinformação e mentiras com base nos
depoimentos de uma única pessoa. Os críticos distorcem o
argumento, provando que a letra está certa, já que de nem a música
como um ataque verbal contra Max.
A primeira verdadeira faixa de destaque do álbum vem em
seguida, a sombria e atmosférica “Old Earth”. A voz de Derrick,
além de super cialmente não soar como Max, dá à banda uma
oportunidade para explorar a dinâmica de um verso calmo e
misterioso, explodindo em um refrão violento repentinamente e
então se arrastando de volta a uma calmaria inquietante. Uma
música dessa natureza não teria sido possível com Max, que tinha
criado um estilo identi cável baseado – assumidamente – em sua
falta de habilidade para cantar. Quanto à letra, com a contribuição
de Green, “Old Earth” desvia dos temas das primeiras faixas e
direciona sua fúria rmemente aos danos ambientais e pessoais que
nós, como seres humanos, podemos causar. Desmatamento.
Poluição. Racismo. Ganância. Essas são as maneiras pelas quais
matamos nosso planeta e a nós mesmos.

Igor no quartel-general do SOBFC (fã-clube o cial do Sepultura), Galeria do Rock.

Against atinge seu compasso, caindo em um ritmo confortável,


quando “Floaters In Mud” novamente atravessa a linha entre o velho
e o novo. O prelúdio tribal de Igor é modi cado, não mais tão
brasileiro, e sim japonês, utilizando sinos e instrumentos percussivos
obscuros que vinha colecionando ao longo dos anos. A estrutura-
padrão de verso-refrão-verso-refrão é interrompida com um ri
repentino ao estilo de Chaos A.D., mas a música se transforma e se
contorce em trechos instrumentais solo e padrões circulares de
guitarra que levam os ouvintes a esperar o inesperado. O próprio
título descreve uma estranha sensação que Andreas experimentara
recentemente, ao aparecer no mesmo show que Max. Eles não se
falaram nem mesmo se aproximaram. Antes próximos como irmãos,
estavam agora divididos, separados, uma sensação surreal que
Andreas comparou a utuar na lama.
Derrick e Andreas mais uma vez alternam os vocais em
“Boycott”, um protesto emputecido que utiliza o mesmo ri simples
de duas notas para o verso e o refrão. Essa canção, em particular,
ilustra a natureza ambígua das letras de Kisser e como elas estão
abertas a interpretação. Será que ele está falando da polícia? Dos
exércitos do mundo? Independentemente disso, a mensagem
continua a mesma. Aqueles que são designados para proteger e
servir, que vivem pela arma, sofrem com um estresse debilitante
porque servem a dois mestres que raramente têm motivações
mútuas: o governo e o povo.
“Tribus”, uma faixa instrumental curta, é interessante por poder
ter uma série de signi cados. A própria palavra vem do latim tres,
que signi ca três, um número que vemos repetidas vezes ao longo
de Against e que pode representar o trio Igor, Paulo e Andreas
quando lutava para manter o Sepultura vivo, antes de adotar
Derrick. Mas também se refere à história romana, signi cando
qualquer uma das três tribos originais. É uma palavra forte,
reiterando a a rmação de que eles ainda são uma tribo e vão
continuar como uma tribo, agora com um novo quarto membro.
“Tribus” continua em “Common Bonds” com a perfeição suave
de uma trilha sonora. O resto do álbum, na verdade, com seu uso de
intervalos e encerramentos instrumentais, soa quase como a trilha
sonora de um lme que não existe. Em outra novidade para a
banda, a rápida e agressiva “Common Bonds” é dividida ao meio
pelas vozes harmonizadas de Derrick e Andreas, que recitam – quase
cantando – uma quadra de versos de inspiração e força.
A conexão ao estilo trilha sonora continua com “F.O.E.”, mais
um interlúdio instrumental, dessa vez uma versão alterada da faixa
“Freedom of Expression”, de The J. B. Pickers. Os brasileiros ouviam
um pedaço dessa canção há anos, como tema de abertura do
programa Globo Repórter. Quando Igor descobriu o original, em uma
trilha sonora em vinil do lme dos anos 1970 Corrida contra o
destino, sentiu que deveriam fazer um cover. A versão adaptada do
Sepultura amarra “Common Bonds” muito bem ao punk hardcore de
“Reza”, com letra e vocais do parceiro de crime João Gordo, do
Ratos de Porão.
Com exceção de “Ratamahatta”, com poucas linhas da letra em
inglês, “Reza” tem a honra de ser a primeira música do Sepultura
cantada totalmente em português. Após os anos de amizade, shows
juntos e tributos, já estava na hora de uma colaboração com João
Gordo. “Reza” agrada em todos os quesitos, um retorno a uma época
passada que não teria soado fora de lugar se tivesse sido escrita para
Chaos A.D.
Mesmo “Unconscious” ressoa no estilo de meados dos anos 1990.
Se tivesse havido um álbum entre Chaos A.D. e Roots, essa música
poderia ter entrado nele. Para ouvintes não in uenciados por
preconceitos, já devia estar claro que Andreas, Paulo e Igor eram tão
responsáveis por ajudar a de nir o som “clássico” do Sepultura
quanto Max.
Durante uma turnê em 1991, Igor tinha se deparado com uma
gravação de um grupo japonês chamado Kodo. O nome do grupo
carrega alguns signi cados que de nem seu propósito: a palavra
kodo é traduzida literalmente como “batida do coração”, mas
também pode signi car “crianças do tambor”. Explorando as
possibilidades ilimitadas de som com o tambor tradicional japonês
taiko, Kodo fascinou Igor imediatamente. Anos mais tarde
encontraram-se na Bélgica, e o Sepultura teve uma grata surpresa,
pois os percussionistas japoneses não só conheciam sua música,
como também eram fãs. Os dois grupos esboçaram planos de
trabalhar juntos um dia.
Um dia se tornou quatro durante a gravação de Against, quando
Andreas, Paulo e Igor viajaram para a ilha de Sado para visitar o
vilarejo do Kodo (Derrick cou em Los Angeles com Benson,
gravando vocais). Assim como tinham feito com a tribo Xavante, os
membros da banda mergulharam na cultura local, tornando-se parte
daquela comunidade por um breve período. Juntos, compuseram e
gravaram “Kamaitachi”, uma canção nascida das lendas.
A origem desse mito veio de habitantes das montanhas que, ao
andarem pelos arredores, por vezes se viam cercados por repentinos
redemoinhos de vento que atacavam veloz e brutalmente, para
depois desaparecerem com igual velocidade.
Costumava-se imaginar os monstros dentro desses redemoinhos
como um trio de doninhas violentas, sendo assim chamados de
kamaitachi, junção de kama (foice) e itachi (doninha). Atacavam em
bando: a primeira derrubava a vítima, a segunda rasgava sua carne
com garras a adíssimas, e a terceira doninha curava, para que a
vítima casse sem manchas de sangue ou ferimentos.
Metaforicamente, a música “Kamaitachi” comemora o tempo que
o Sepultura passou como um trio, lutando contra os críticos e os
opositores. Os membros do Sepultura, naquele limbo entre Max e
Derrick, eram mesmo os kamaitachi míticos, atacando através de sua
música. Estendendo a metáfora ainda mais, pode-se sugerir que Igor
incapacitava seus adversários com suas pancadas percussivas,
Andreas rasgava a carne com seus ri s a ados e Paulo curava com o
bálsamo grave de suas linhas de baixo.
Representações artísticas dos kamaitachi, bem como do
mitsudomoe (um símbolo com um triskélion de lâminas
frequentemente visto em peles de taiko), foram posteriormente
utilizadas intensamente na arte promocional para Against.
Uma versão retrabalhada de “Kamaitachi” (com vocais do velho
amigo Mike Patton e originalmente chamada de “Diary of a Drug
Fiend”, em referência ao infame romance de Aleister Crowley)
apareceria mais tarde na trilha sonora do lme de horror Freddy vs.
Jason com o nome “The Waste”.
Se há uma canção, acima de todas as outras, que pode ser
interpretada como um resumo da constituição emocional do
Sepultura à época, seria “Drowned Out”. Apesar de Derrick ter
escrito toda a letra, o veneno que cospe poderia ser sobre qualquer
um. Poderia ser sobre um amigo egoísta que traiu um con dente.
Poderia ser sobre Max virando as costas para a banda. Poderia ser
sobre a mídia ou a gravadora. Poderia ser sobre tudo isso. Tal como
aconteceu com a maior parte do material, a banda tocou “Drowned
Out” apenas uma vez para Derrick ouvir e então lhe pediu para
cantar junto. Os padrões vocais foram espontâneos e passionais, e,
independentemente de qual era o alvo da raiva de Derrick, a
crueldade sem adornos da música claramente inspirou a letra.
A raiva é puri cada com “Hatred Aside”, composta e gravada no
Chophouse Studio, de Jason Newsted, em San Francisco. Com
Newsted na guitarra barítono, vocais e teremim, a banda deixa o
ódio de lado e celebra sua força, sua determinação, sua unidade.
Against como um todo, na verdade, é uma espécie de puri cação.
Abrange o processo de cura, consumindo sua raiva a partir da
tensão enfurecida da abertura com “Against” até chegar à tranquila
“T3rcermillennium”. As suaves batidas tribais, violões e violoncelos,
nessa faixa nal, simbolizam um renascimento conforme o segundo
milênio chega ao m e o terceiro começa. O Sepultura renasce.
Curiosamente, a primeira metade da canção foi gravada em um
gravador DAT portátil, na casa de Igor, em San Diego, enquanto os
rapazes estavam por lá, tocando despreocupados e assistindo a um
jogo de futebol. Depois de reconhecerem a beleza daquilo que
haviam criado, eles nalizaram “T3rcermillenium” no estúdio,
adicionando camadas de atmosfera à curta gravação feita na casa de
Igor.
Com o álbum terminado, o Sepultura deu um suspiro coletivo de
alívio. Estava acabado. Haviam sobrevivido. Haviam provado a si
mesmos que existia vida após Max Cavalera. Contudo, a nova tribo
estava ansiosa para pegar a estrada e ver como os fãs iriam receber
a nova formação.
UM CERTO NÚMERO DE forças continuava a atiçar as brasas ainda
fumegantes da cisão. Quando Max lançou seu primeiro álbum pós-
Sepultura, intitulado Soul y, assim como sua nova banda, em abril
de 1998, a mídia orbitava em torno dele. Pintava um quadro de Max
como a vítima, e, como ele falava abertamente sobre a situação, isso
ajudou a promover essa imagem.
Apesar de as entrevistas de Max muitas vezes se contradizerem, a
imprensa con ava nele porque ele era mais direto. Porque falava
sobre aquilo. Porque expunha o drama. E aos olhos da mídia, assim
como aos de alguns fãs que foram sugados para a confusão, o fato
de que Max lançara um álbum antes de seus ex-companheiros de
banda era prova su ciente – para eles – de que o vocalista tinha sido
o líder do bando o tempo todo. Intencionalmente ou não, Max
alimentou essa crença ao adotar o mesmo produtor, o mesmo
estúdio e o mesmo engenheiro de mixagem que a banda adotara em
Roots. Até estruturas musicais, sons e a nações de guitarra eram os
mesmos. Soul y foi, para todos os efeitos e propósitos, um Roots
Parte Dois.
Ao discutir suas opiniões sobre esse assunto, Andreas disse: “Para
o primeiro álbum do Soul y, só mudaram o guitarrista, o baterista e
o baixista para fazer o álbum. Ele contratou Ross Robinson, Andy
Wallace, tinha a mesma gerência, usou o mesmo estúdio. Ele tentou
copiar o Roots, mas o disco Soul y não chega nem perto. O
Sepultura foi numa direção diferente, e a gente sempre ia… Se você
comparar Arise, Chaos A.D. e Roots, eles são álbuns totalmente
diferentes, porque esse é o nosso espírito. Mas acho que, em 1996,
ele infelizmente ainda não tinha saído do lugar”.
Basta ler o encarte com as letras de Soul y para perceber que
Max estava escrevendo com uma carga de dor. As músicas foram
feitas para doer, algumas atacando sua antiga banda (até mesmo o
ex-companheiro de longa data Wagner Lamounier), disparando
acusações pouco veladas de ganância e inveja.
Tudo isso serviu para criar ainda mais barreiras entre a
Roadrunner Records e o Sepultura. Max era o menino de ouro da
Roadrunner agora, então é claro que o selo daria mais promoção,
melhor marketing, maior visibilidade e melhores oportunidades de
turnê para o Soul y. Mais uma vez, as cartas estavam contra o
Sepultura, mas eles não iriam reclamar, nem recuar. Era apenas
mais um desa o a ser superado.
Apesar da separação amarga e infeliz, Andreas, Paulo e Igor
continuavam a insistir que não se arrependiam de coisa alguma do
que havia acontecido. Só lamentavam a maneira como tinha
acontecido, publicamente, com os meios de comunicação
envolvidos. Depois de tudo aquilo, o Sepultura estava mais do que
pronto para seguir em frente. Manteve-se em silêncio, e continuou
trabalhando.
De qualquer maneira, havia preocupações mais imediatas. A
banda fora escalada para apresentar Derrick Green aos fãs
brasileiros em uma transmissão ao vivo do Music Video Awards da
MTV brasileira em meados de agosto e novamente, alguns dias
depois, em seu primeiro show completo no Brasil com o americano.
Para aliviar a pressão de começar em um palco tão grande,
organizou um trio de shows de aquecimento secretos, no sul da
Califórnia, usando o nome Troops of Doom.
“Nós zemos três shows como Troops of Doom”, disse Andreas.
O primeiro foi na casa de shows Brick by Brick em San Diego. Ao
mesmo tempo que era muito bom e um alívio tocar novamente,
Andreas sabia que tinham de crescer e melhorar bastante. O
segundo e terceiro shows foram sucessivamente melhores, lembra
Andreas: “O último show foi no mesmo dia em que o Brasil perdeu a
nal da Copa do Mundo de 1998, na França, contra o time da casa.
Tinha sido uma tarde horrível assistindo ao Brasil perder tão feio de
três a zero, mas à noite subimos ao palco e destruímos. Foi o melhor
dos três shows e nos sentimos ótimos por seguir em frente, por
manter o Sepultura vivo”.
Aqueles foram talvez, na opinião do guitarrista, os shows mais
importantes da carreira do Sepultura.
Tão preparados quanto possível, dadas as circunstâncias, Derrick,
Andreas, Paulo e Igor arrebentaram no VMB em 13 de agosto, com o
americano gritando um entusiasmado “Brasil!” para dar partida à
curta apresentação. Eles transbordaram energia em uma
performance brutal de “Choke”, fazendo headbang como loucos, as
tranças de Green girando pelo ar, provando sem sombra de dúvida
que seu lugar era no palco com aquela banda. Por mais que tentasse
parecer irado ao gritar a poesia venenosa da canção, não se podia
deixar de notar o sorriso ocasional de Derrick iluminando seu rosto
com puro deleite.
Como se não bastasse, os fãs paulistanos ainda foram agraciados
com uma surpresa quando Andreas anunciou um convidado, Jason
Newsted, do Metallica, na guitarra barítono e backing vocals. A
banda começou a tocar “Roots Bloody Roots”, e até os fãs de
Caetano Veloso se levantaram.
Em 15 de agosto veio o primeiro teste real da nova formação. O
festival Barulho Contra a Fome foi realizado no Anhembi, em São
Paulo, com um público de 30 mil pessoas. Organizado pela
Prefeitura de São Paulo e encabeçado pelo Sepultura, o ingresso
custava R$ 10 mais um quilo de alimento não perecível. No espírito
do evento, nenhuma das bandas recebeu qualquer tipo de
pagamento pelas apresentações.
O show foi um grande sucesso, e o público acolheu
calorosamente Derrick na tribo. Também ocorreram surpresas,
começando com a “bênção” de Zé do Caixão na apresentação
(chamada de “Prenúncio”, e mais tarde lançada como faixa-bônus
em edições brasileiras de Against, bem como no EP Tribus). Após a
participação de Jason Newsted no VMB algumas noites antes,
muitos esperavam vê-lo de novo naquela noite. Não caram
decepcionados. Newsted tocou guitarra base em várias canções, e,
juntos, ele e o Sepultura rugiram a versão clássica do Metallica de
“Last Caress/Green Hell”, o medley de músicas do Mis ts, com
Jason nos vocais.
Entrevistas e divulgação.

Dentre outros destaques, Mike Patton se juntou às festividades


em “Lookaway”, e membros pintados da tribo Xavante encantaram o
público com sua interpretação ao vivo do canto de cura durante
“Itsári”. Carlinhos Brown se juntou à banda para “Ratamahatta”,
depois de parar o show trazendo para o palco um rapaz que
ameaçaria se suicidar mais tarde.
Slayer-tura.

Mas um convidado especial chamou mais atenção que todos os


outros, a pessoa que havia passado a posição de guitarrista para
Andreas mais de uma década antes. Jairo Guedz, para o delírio
eufórico dos espectadores, reuniu-se a seus companheiros para uma
performance esmagadora de “Troops of Doom”.
Era uma passagem apropriada ligando uma era do Sepultura à
seguinte.
Pelo resto dos meses de agosto e setembro inteiros, a banda fez
um circuito de entrevistas promocionais na Europa, antes de
embarcar em uma pequena turnê por casas de shows dos Estados
Unidos. Visitando Amsterdã, Derrick se apaixonou pela cidade,
xando residência lá por um tempo. Funcionava bem para a
programação da banda, considerando a extensão e a frequência das
turnês que planejavam para a Europa. Ao contrário do Brasil, por
exemplo, onde os shows aconteciam geralmente no m de semana,
em países europeus o Sepultura poderia tocar todo e qualquer dia da
semana. Além disso, Amsterdã tinha uma localização central e de
fácil acesso para ir e voltar das apresentações por todo o mundo.
Uma turnê europeia preencheu 1998, com o Sepultura como
convidado especial do Slayer como parte do pacote de sua turnê
Diabolus On Tour, com abertura da então desconhecida System of a
Down. O projeto era um sonho para o Sepultura, considerando o
impacto que o Slayer tivera em seus anos de formação. Após a
trágica morte do guitarrista fundador Je Hanneman em 2013,
Andreas Kisser a rmou repetidamente que, se não fosse pelo Slayer,
o Sepultura seria uma banda radicalmente diferente. Fitas de ensaio
dos primórdios (e de shows) mostravam os garotos detonando numa
versão de “Black Magic”.
Então, quando o guitarrista Kerry King se juntou ao Sepultura no
palco para tocar “Propaganda”, os rapazes não podiam ter cado
mais honrados e extasiados.
Durante a curta pausa para as festas no nal de 1998 e início de
1999, antes que a porção norte-americana mais extensa da turnê
Fight Against começasse, o músico brasileiro André Moraes contatou
Igor para ver se o baterista estava interessado em fazer um trabalho
de trilha sonora. Moraes havia recentemente visto o Sepultura
tocando “Kaiowas” na televisão e imaginou que a percussão pesada,
violões e melodias distintamente brasileiras seriam perfeitos para No
coração dos deuses, um projeto em que estava trabalhando com o
pai, o produtor de cinema Geraldo Moraes.
Embora André tivesse algumas ideias que queria incorporar, na
maior parte do tempo deu a Igor liberdade total para fazer o que
achasse apropriado. O baterista alistou Andreas no projeto, e os dois
foram direto ao trabalho, compondo enquanto viam trechos não
editados do lme, e dentro de algumas semanas tinham um produto
acabado. A música ainda conseguiu cativar Mike Patton, que por
acaso estava na cidade. Ele levou uma ta de “Procura o cara” para
a Califórnia, onde incluiu os vocais, e então mandou a música de
volta para o Brasil para ser incluída na trilha sonora.
Andreas também trabalhou com André Moraes em um formato
diferente naquele ano, como músico convidado em uma música
chamada “7”, do álbum de estreia da banda de André, a In erno.
Os setlists para os shows americanos e canadenses no início de
1999 variavam pouco, com a intenção do Sepultura de mostrar aos
fãs que não estavam interessados em depender apenas da força de
seu material antigo. Começaram a criar medleys de canções como
“Arise” e “Dead Embryonic Cells”, “Inner Self” e “Beneath the
Remains”, para ter mais tempo para músicas mais novas.
Acreditando profundamente no álbum, eles costumavam tocar mais
da metade de Against todas as noites.
Em maio de 1999, outro sonho se tornou realidade, quando o
Metallica trouxe sua turnê Garage Remains the Same para o Brasil,
contando com o Sepultura para prestar apoio direto. O Metallica – e
especialmente Jason Newsted – achava apropriado que os brasileiros
abrissem esses shows. Em questão de meses, tinham feito shows com
duas das bandas do Big Four que os in uenciaram quando jovens e
tinham dividido o palco com o Megadeth no Rock In Rio II. A única
que faltava era o Anthrax, mas essa conexão viria mais tarde.
Durante a estada no Brasil, zeram várias aparições na televisão,
indo a programas como Turma da Cultura e H. Embora alguns fãs
parecessem quase ofendidos por Max ter sido substituído por um
americano, alegando que o Sepultura já não podia ser “a voz do
Brasil”, a maioria dos fãs gostou de Derrick Green. O Sepultura
continuava a crescer com Derrick, fortalecendo as performances ao
vivo com visitas a Austrália, Nova Zelândia e Japão e fechando o
ciclo com um giro por festivais de verão na Europa.
Após um descanso breve no Brasil em agosto de 1999, a banda
estava pronta para escrever o capítulo seguinte de sua história.
ASSIM QUE DEIXOU PARA trás a turbulência emocional do momento, o
Sepultura pôde perceber que Against era um disco um tanto confuso,
estilisticamente falando, o que por certo re etia a agitação e a
confusão que vivenciaram na época. Ainda que não fosse um álbum
fraco, Against era, sobretudo, um trabalho de transição, uma ponte
ligando duas eras distintas do Sepultura.
Após um ano sólido de turnê e entrosamento, estavam prontos
para começar a produzir um álbum que representaria mais
precisamente a banda que haviam se tornado após a saída de Max
Cavalera. Para isso, sentiram que seria necessário retornar ao Brasil.
Queriam trabalhar o material com calma, experimentar novas
ideias, assimilar a identidade musical própria de Derrick para forjar
algo maior e melhor – e talvez um pouco mais otimista – do que
Against. Estar no Brasil oferecia também a oportunidade de relaxar e
não forçar o trabalho com o material devido a prazos apertados ou
saudade da família.
Derrick fez uma mudança internacional pela segunda vez em
menos de dois anos. “Eu me mudei para que pudéssemos estar
próximos para trabalhar na composição de Nation”, ele disse. “Eu
gostava de viver em Amsterdã, mas era melhor que eu estivesse no
Brasil.”
Não foi fácil para ele no início. Morava sozinho em São Paulo e
não falava português muito bem. Já estava acostumado com o
sentimento de choque cultural depois de morar na Holanda, mas o
aspecto mais estranho daquilo tudo foi virar uma celebridade
instantaneamente. Aonde quer que fosse, as pessoas o conheciam
como o “gringo” do Sepultura. Os fãs, contudo, foram sempre
respeitosos, demonstrando o carinho e a hospitalidade que são
naturais dos brasileiros ao tentar por vezes falar em inglês, só para
facilitar a vida de Derrick.
É razoável dizer que o Sepultura, nesse período, transcendera o
rótulo de “banda brasileira”, ainda que estivesse iniciando um
processo de mudança de nitiva de volta a seu país. No início dos
anos 1980, ainda garotos em Belo Horizonte e São Paulo, haviam
absorvido tantas in uências estrangeiras quanto podiam. Foram o
sucesso internacional e a mudança para os Estados Unidos que
realmente zeram emergir sua “brasilidade”. No entanto, viver no
exterior, ao ritmo de novas culturas, por intermináveis meses na
estrada, muda uma pessoa. Muda uma banda. Quando o Sepultura
xou suas raízes no Brasil ao limiar de um novo milênio e com um
novo vocalista americano, estava – talvez sem perceber – fechando o
ciclo. Havia levado o Brasil ao mundo e agora trazia o mundo de
volta ao Brasil.
De fato, uma banda como aquela só poderia ter surgido no
Brasil. Com uma tradição musical tão rica e variada, as in uências
do país vinham de lugares espalhados pelo globo – África, Europa,
Ásia, até América do Norte. O país é um verdadeiro caldeirão
cultural. O Sepultura incorporou essa atitude de aceitação,
arrancando inspiração musical de todo e qualquer lugar e estilo.
Mesmo nos primórdios, quando diziam odiar samba, sertanejo e
MPB, aqueles sons estavam sendo assimilados à psique coletiva,
vindo à tona mais tarde em faixas como “Kaiowas” e “Ratamahatta”.
Seja pintando o rosto e copiando as sementes de black metal do
Venom ou tocando com os percussionistas japoneses do grupo Kodo,
o Sepultura nunca limitou suas opções quanto a onde achar
inspiração.
Essa profunda consciência global viria a delinear o conceito por
trás do álbum seguinte, e em mais de uma maneira.
Apesar de uma pausa para se juntar à turnê do festival Tattoo the
Earth, no verão americano de 2000, com bandas como Slipknot,
Slayer, Sevendust e Lamb of God (além do Metallica, que participou
em um show em Nova Jersey), o Sepultura passou a maior parte do
ano ensaiando pesado. A Roadrunner ofereceu uma verba minúscula
para a produção, assim como havia feito com Beneath the Remains,
então, quando chegou a época da gravação, a banda decidiu car no
Brasil, não apenas por conveniência, mas também por necessidade
nanceira – como acontecera em 1989 –, já que era mais barato
gravar aqui.
Derrick na área.

Com o nome Nation, o álbum já começa mostrando a que veio de


forma audaciosa com a faixa “Sepulnation” e sua introdução ao
estilo típico de Igor.
A julgar apenas pelo nome e pelas progressões de acordes do ri
principal, nada convencionais mas muito contagiantes, tudo levava
a crer que a canção se tornaria um hino, presença obrigatória em
shows por muitos anos dali em diante. Ela estabelece o tom, a
temática do álbum: a criação idealista de uma nação nova e global,
espécie de utopia sem fronteiras, sem armas, sem violência e sem
ódio, que funciona apenas com base no respeito por tudo e por
todos.
Como podemos criar isso?
A explosão de energia hardcore de um minuto, “Revolt”, nos diz
como. É o começo da rebelião, da guerra violenta que sempre
precede a paz.
“Border Wars” reduz um pouco a agressividade, denunciando os
males do sistema e como eles afetam as pessoas individual e
coletivamente. Os gritos de resistência de Derrick no refrão – No!
No!– são carregados de eco, como se estivesse berrando em um
megafone, discursando em um comício ou uma manifestação.
Transparece nos ritmos da faixa a fascinação de Igor por dancehall,
uma variante jamaicana da música techno com raízes no reggae e no
dub.
Inserido no nal de “Border Wars” está o primeiro de quatro
interlúdios falados, famosas citações de madre Teresa, Mahatma
Gandhi, Albert Einstein e Dalai Lama, cada uma recitada em uma
língua diferente para demonstrar tolerância a todas as religiões e
crenças, assim como preconizar a paz.
“One Man Army” tem Derrick dirigindo uma espécie de
manifesto vocal ao governo de forma direta, calma e con ante,
declarando em seu refrão simples que um homem pode fazer a
diferença. Os versos do início apresentam-se como uma narração na
primeira pessoa do singular, utilizando o eu do indivíduo, porém os
versos seguintes são na primeira pessoa do plural, passando do eu ao
nós conforme as pessoas se unem e se tornam uma só entidade. A
quebra devolve um senso de tranquilidade, o discurso da verdade
soando quase como um cântico, mas a hostilidade logo retorna,
talvez signi cando que a mudança não está simplesmente vindo… a
mudança já começou. A faixa termina com uma batida tribal calma
e melodia hipnótica – os revolucionários assegurados de sua vitória
iminente.
“Vox Populi” – “a voz do povo” em latim – é um chamado à luta,
um grito de guerra, com o ri de Andreas se repetindo pelos versos
como um alarme. A narrativa agora é quase toda na primeira pessoa
do plural, com nós e nosso/a, em apoio às forças que estão
destruindo o sistema e construindo um novo sobre as cinzas do
velho.
“The Ways of Faith”, com uso de cítara e melodias do Oriente
Médio, é outra canção que começa e termina com um tom suave,
alternando passividade com agressividade distorcida. A letra fala da
corrupção de religiões organizadas e das guerras travadas sob o
pretexto de visões discordantes quanto a qual delas segue o deus
“verdadeiro”. É um apelo por tolerância, um grito desesperado, se
preferir, por liberdade religiosa completa, para adorar e ter fé – ou
para não adorar e não ter fé, se assim a pessoa escolher – sem medo
de perseguição.
A faixa seguinte lança um olhar losó co sobre a história em
que tudo deu errado e quão facilmente tudo poderia ter sido
evitado. Mesmo assim, Derrick sugere, nunca é tarde demais. Há
sempre uma cura para os males da humanidade. Apresentando
ritmos tribais e uma linha de baixo de inspiração indígena africana,
“Uma cura” começa dizendo como nós, enquanto humanidade,
simplesmente zemos merda. A canção termina como começou,
revisitando o primeiro verso, mas dessa vez com um tom
ligeiramente mais animado. Ainda assim, o ouvinte se pergunta:
cometeremos os mesmos erros da próxima vez?
Um ataque verbal franco contra a pena de morte e os governos
que a empregam, “Who Must Die?” procura responder a uma
questão de moralidade. Quem somos nós – quem são eles? – para
decidir quem pode viver e quem deve morrer? A pena de morte não
é mais do que assassinato consentido, sugere a letra de Andreas
Kisser e Derrick Green, e quem paga o preço no caso de um erro ou
falso veredicto? É uma pergunta difícil, mas necessária, do tipo que
um grupo como o U2 poderia perguntar, e pode-se especular se é
coincidência que Andreas utilize efeitos de delay e eco que lembram
o guitarrista do U2, The Edge.
Agra, Toninho, Andreas, Derrick e SOBFC em frente ao Teatro Municipal. São Paulo.

Apesar de “Saga” ter sido inspirada na história real da vida de


Kisser, a letra assume um duplo sentido quando associada ao
conceito de Nation como um todo. Abrindo com seus tambores de
guerra e a convocação à batalha de Derrick, a faixa é violenta e
tensa, mas com momentos de glória. As pessoas estão cansadas de
aguentar caladas, estão se revoltando.
A seguir, uma colaboração com o Dr. Israel, um artista
profundamente underground do Brooklyn, em Nova York, cujas
especialidades são o dub, o reggae e a mistura de sons de todo o
espectro musical. A primeira metade de “Tribe to a Nation”
apresenta o lírico discurso em reggae de Israel, como se signi casse
a disseminação de uma nova linguagem, uma linguagem universal
de unidade. O próprio título fala de unidade, da tribo se levantando
e se tornando uma nação própria.
O ritmo frenético e os vocais furiosos na segunda metade da
canção foram inspirados por um ri de teclado de dubstep que
Derrick e Evetts tinham ouvido em uma boate em São Paulo.
Andreas transformou o ri em um produto do Sepultura, e Igor
colocou uma batida techno sobre ele. Do começo ao m, “Tribe to a
Nation” pode ser a experimentação mais radical da banda até aquele
momento em sua carreira.
A tribo de Nation está metaforicamente querendo derramar
sangue. Logo quando a rebelião está a um passo da vitória, o
governo contra-ataca por meio da voz de Jello Biafra.
O álbum precisava de um antagonista, alguém para desempenhar
o papel de instigador em meio a toda a positividade e otimismo.
Jello desempenha o papel perfeitamente. Gravando em San
Francisco enquanto o Sepultura continuava a gravar no Brasil, ele
defende o sistema em “Politricks”, consumido em excesso e ego,
insistindo que o povo precisa do governo muito mais do que o
governo precisa do povo. “Politricks” soa exatamente como o que é,
uma música-tema de vilão, com um clima semelhante ao da Marcha
Imperial de Darth Vader nos lmes da série Star Wars. Derrick
contra-ataca no refrão, resistindo ao discurso ardiloso de Jello,
gritando em protesto.
Em outra breve explosão de fúria hardcore, Jamey Jasta junta-se
à resistência em “Human Cause”. A banda de Jasta, o Hatebreed
(que também estava ligada aos brasileiros pelo produtor em comum,
Steve Evetts), zera amizade com o Sepultura durante o tempo que
passaram juntos em Tattoo the Earth, ocasião em que Igor criou o
mascote de turnê do Hatebreed, uma torrada tatuada, meio punk,
apelidada de Hatebread.[1]
Em pouco menos de um minuto, “Human Cause” nos lembra que
sempre há esperança, mesmo nas trevas.
“Resista às tentações da ‘alta’ sociedade”, Nation nos incita na
sequência. “Rejeite a obsessão insana por riqueza e fama, assim
como as percepções de que o dinheiro não vai apenas lhe trazer uma
vida melhor, mas também tornar-lhe uma pessoa melhor. Os meios
de comunicação de massa iludem com mentiras, fazem lavagem
cerebral, levam você a acreditar no sonho deles e não no seu
próprio. Vista terno e gravata, entre na la, mantenha a máquina
funcionando, e tudo vai car bem.” “Reject” é sobre a confusão que
às vezes sentimos quando percebemos que as verdades que nos
contaram não são, de fato, verdadeiras.
“Water”, assim como seu nome, corre calma e vigorosamente,
argumentando sobre a premissa da faixa anterior. Impulsionada
principalmente pela percussão, baixos como os únicos instrumentos
de corda e os tons suaves e mais agradáveis da voz de Derrick, essa
é uma canção de promessa, mas também de conselho. A guerra por
uma nova nação acabou, o campo de batalha é uma confusão de
corpos, o lado vitorioso não pode ser determinado. Quer o sistema
tenha caído, quer tenha sobrevivido tão forte como sempre, a faixa,
tanto lírica quanto musicalmente, lembra o ouvinte que podemos ser
gentis, como a água em sua forma mais tranquila, ou fortes,
poderosos, como uma torrente capaz de penetrar até mesmo rochas.
A faixa “Water” deságua em “Valtio” com as melodias elaboradas
de um violão de cordas de nylon. Escrita por Andreas em um violão
acústico clássico, a canção que fecha o álbum foi arranjada pelo
grupo de violoncelistas nlandês Apocalyptica em seu estilo único.
Literalmente traduzido como “estado”, o título, no contexto do disco
como um todo, pode se referir a uma nação sem governo, uma
utopia feliz que a banda procurou criar desde o início.
Durante as sessões de gravação, o Sepultura tirou da manga
alguns covers para a edição especial de Nation. Dois deles –
“Annihilation”, da banda de punk hardcore de San Francisco de
curta duração Cruci x, e “Rise Above”, da Black Flag, do vocalista
Henry Rollins – se adequaram ao tema do álbum perfeitamente. A
adição de “Bela Lugosi’s Dead”, do Bauhaus, uma homenagem lenta
e sinistra ao famoso ator que interpretou Drácula, foi a única
extravagância dentre as canções escolhidas.
Embora composto e gravado inteiramente no Brasil, o Sepultura
usou suas in uências nacionais com moderação, e realmente só para
conferir unidade temática a Nation. Eles já haviam explorado essa
vertente – e tirado proveito dela – em Roots, e foi em consonância
com o espírito de evolução que se esforçaram para evitá-la dessa
vez.
Shepard Fairey, artista grá co conhecido por sua marca OBEY,
foi o responsável pela arte de Nation, usando cores e motivos tais
como punhos levantados, típicos de propaganda de resistência.
Aliás, Fairey se tornaria famoso anos mais tarde por seu cartaz
icônico da campanha do presidente dos Estados Unidos Barack
Obama – vermelho, branco e azul com a palavra em negrito HOPE
na parte inferior.
No dia 19 de janeiro de 2001, dois meses antes da data prevista
para o lançamento de Nation, o Sepultura se apresentou no Rock In
Rio III para mais de 150 mil pessoas – público que poderia ter sido
muito maior se os promotores não tivessem decidido parar de
vender ingressos antes que se esgotassem –, quase dez anos depois
de seu primeiro show no festival. As circunstâncias, porém, foram
muito diferentes. Em 1991, ninguém no Brasil levava o Sepultura a
sério, exceto sua dedicada e ardorosa base de fãs. Em 2001, já eram
considerados lendas locais, tocando à noite em vez de abrir o
festival sob o sol escaldante. Eles tinham luzes e sistema de som
dessa vez, e tiveram mais de uma hora para fazer sua apresentação.
Rob Halford tocou a seguir, e então a atração principal da noite, o
Iron Maiden (que gravava um DVD, após o recente retorno do
vocalista Bruce Dickinson e do guitarrista Adrian Smith), e cou
surpreendentemente claro para todos os que não tinham percebido
antes: o Sepultura tinha conseguido o impossível. Estava em pé de
igualdade com seus heróis, havia passado de simples fãs a pares no
panteão do metal.
Durante eventos promocionais pré-lançamento que levaram
Derrick ao Japão e à Austrália, Igor lidando com a imprensa no
Brasil e Andreas e Paulo trabalhando na Europa, a banda recebeu
uma notícia fantástica. Ainda na onda do sucesso no Rock In Rio, o
Sepultura comemorou o 20 de fevereiro como um dia histórico
quando Roots e Arise quebraram barreiras simultaneamente no
Reino Unido. Roots foi premiado com Disco de Ouro por vender
mais de 100 mil cópias, enquanto Arise foi prata com 60 mil.
Aquele foi um bom começo para um ano que certamente traria
um bocado de complicações.
A turnê Sepulnation começou em 9 de março em Columbus, Ohio
(no Alrosa Villa, o local infame onde Darrell “Dimebag” Abbott, do
Pantera, seria tragicamente morto, no palco, alguns anos mais
tarde), não muito longe da cidade natal de Derrick; com o apoio do
Hatebreed, do Puya e do Flybanger, após o Vision Of Disorder ter
desistido por problemas logísticos. A mentalidade de cruzar
fronteiras e tocar em todos os lugares que podiam nunca parecera
mais apropriada do que com o novo disco Nation, e shows na
Europa, novamente com o Hatebreed, assim como na Coreia do Sul,
no Japão – no Beast Feast Festival – e na América do Sul estavam
entre os primeiros no itinerário a serem con rmados.
Nation chegou às lojas em 20 de março em todo o mundo e um
dia antes no Reino Unido, onde estreou nas paradas no respeitável
número 88. Alcançou Disco de Ouro no Brasil com 50 mil cópias,
entrou com tudo no Top 200 da Billboard no número 134 e
aterrissou em 4o lugar na lista dos álbuns independentes mais
vendidos dos Estados Unidos, apesar de ter recebido quase nenhuma
promoção ou publicidade da Roadrunner. Ainda assim, as vendas
totais estavam baixas. A gravadora cancelou um videoclipe
planejado para “One Man Army” depois que decidiu não investir
mais na banda, mas, estranhamente, resolveu produzir um kit
eletrônico de imprensa a ser lmado enquanto a banda estava em
Paris. Infelizmente, o kit nunca teria a oportunidade de servir ao seu
propósito, apesar de Nation ter sido aclamado pela crítica. Aqueles
que foram capazes de ver o álbum objetivamente, julgando-o pelo
que era em vez de pelo que não era, entenderam e aceitaram que a
banda tinha mudado, mas que o espírito era o mesmo.
A frustração do Sepultura com a falta de apoio da Roadrunner
aumentou com o passar dos meses. Cada membro externou seu
descontentamento claramente, condenando verbalmente o selo por
se recusar a apoiar a banda em um momento tão importante. A
Roadrunner não tinha interesse naquela encarnação da banda e, em
julho, emitiu um comunicado à imprensa anunciando que havia
encerrado a parceria com o Sepultura.
O desejo de separação era mútuo.
Era novamente o fechamento de um ciclo. Beneath the Remains, o
primeiro álbum do Sepultura lançado pela Roadrunner, tinha sido o
último gravado no Brasil antes de Nation, o disco que encerrou seu
contrato.
Entretanto, a Roadrunner tinha um ás na manga na forma de
gravações do show no Brixton Academy em Londres, a fatídica noite
em 1996 que registrou a última apresentação de Max com a banda.
Grande parte de 2001 foi uma luta para mostrar ao mundo que
Derrick havia feito por merecer seu lugar como vocalista e membro
de igual importância dentro da banda. Ele não era apenas um
mercenário. Não era assim que o Sepultura funcionava.
Naturalmente, a fase de adaptação levou um tempo após a
substituição de uma gura importante como Max, e alguns fãs
nunca aceitaram isso. Mas a con ança de Derrick – e do Sepultura
como um todo – estava muito mais forte, tanto no álbum novo
quanto no palco, principalmente por terem começado e terminado o
projeto juntos. A banda estava extremamente orgulhosa de Nation, e
com razão.
Eles sentiam um grande alívio por funcionar como uma
verdadeira banda de novo, sem os dramas pelos quais haviam
passado durante os anos 1990.
A agenda de shows costumava ser implacável, muitas vezes
en leirando cinco ou seis noites com apenas um dia de folga no
meio. Igor, Paulo e Andreas não estranhavam uma carga de trabalho
tão intensa, e Derrick se habituou rapidamente à rotina. Um
pro ssional perfeito, Derrick vivia para o palco. Não fumava, não
bebia e não participava de farras excessivas, sempre preocupado
com o efeito dessas atividades em sua voz e em seu desempenho.
Eles não eram mais garotos. Esse era seu ganha-pão, e tinham
que protegê-lo a todo custo. Contudo, acima disso estava um
profundo respeito e gratidão aos fãs que tinham permanecido éis a
eles ao longo de todas as mudanças e de todo o caos. Eles se sentiam
obrigados a dar sempre o melhor show que podiam. Para os
brasileiros, isso decorria de sua própria infância, quando se
consideravam sortudos se vissem um show de uma banda de rock
internacional por ano. Músicos pro ssionais e experientes – mas
ainda fãs –, eles se lembravam de como era e se recusavam a correr
o risco de decepcionar aquele garoto que talvez pudesse assistir a
apenas um show a cada dois ou três anos.
Nome estabelecido na música que haviam se tornado, com
amigos de todos os gêneros, a oportunidade de expandir seus
horizontes musicais estava sempre disponível. Em 2001,
contribuíram para Uncivilization, do Biohazard – exceto Paulo. Como
grupo, o Sepultura colaborou com O Rappa no álbum Instinto
Coletivo. A faixa “Ninguém regula a América”, uma mistura cáustica
de metal, reggae e hip-hop, trazia Derrick e Marcelo Falcão,
vocalista da banda O Rappa, criticando ferozmente o presidente
norte-americano George W. Bush, suas políticas externas, Wall
Street, entre outros alvos – em inglês e português.
Mas 2002 foi um ano particularmente sombrio para o Sepultura.
Eles não viajaram muito além de umas poucas datas espalhadas pelo
Brasil, tocando uma das poucas canções novas que tinham escrito: a
excessivamente feroz “Corrupted”. Eles romperam com outra
empresa de gerenciamento, e as negociações com a gravadora do
guru do Iron Maiden, Rod Smallwood, a Sanctuary Records,
fracassaram completamente, de forma inesperada.
Trabalharam em material novo em um ritmo calmo, preocupados
por não terem gravadora, mas aliviados por terem se desatado da
Roadrunner. Igor planejava um projeto paralelo com o vocalista do
Biohazard, Billy Graziadei (que na verdade nunca chegou a
acontecer), que recentemente se mudara para o Brasil. Andreas
compôs música para o lme Bellini e a es nge. Nation continuava a
vender bem, quase superando 100 mil cópias nos Estados Unidos em
pouco mais de um ano, durante uma época em que os meios de
comunicação em todo o mundo consideravam a música heavy como
“morta”. O ano de 2002, de fato, marcou o m de uma série de
bandas que de algum modo faziam parte da história do Sepultura,
como Alice In Chains (após a morte do vocalista Layne Staley),
God esh e, ainda que temporariamente, Fear Factory e Megadeth.
Não foi um ano bom para o metal.
Todavia, o Sepultura seguia na luta, entrando em estúdio com
Steve Evetts em agosto para gravar um EP de covers na gravadora
Trama, em São Paulo. A intenção era tanto manterem-se aquecidos
antes de iniciarem os trabalhos no próximo álbum, quanto
desprenderem-se de toda in uência externa, passando, então, a se
concentrar na criação de algo brutal e direto, algo que seria puro
Sepultura.
Em outubro, as nuvens negras começaram a se dissipar um
pouco. A banda assinou um contrato de gravação com a SPV/
Steamhammer para territórios europeus, além de acertar novos
acordos para distribuição no Brasil e no Japão. Uma negociação
norte-americana, contudo, não se concretizou.
Era como começar de novo. Mais uma vez.
Enquanto isso, a Roadrunner anunciou o lançamento iminente de
Under a Pale Grey Sky, o registro musical completo e sem edição do
show derradeiro com Max, uma tentativa óbvia de capitalizar em
cima da separação.
O Sepultura se opôs ao lançamento com veemência. Até
tentaram trabalhar com o selo, mesmo não sendo mais obrigados,
sugerindo que escolhessem qualquer outro show da turnê de Roots,
um que não colocasse na berlinda circunstâncias tão negativas.
Havia diversos outros concertos da turnê que, segundo a banda,
representavam melhor aquela era. Tecnicamente, o show no Brixton
Academy tinha suas falhas, como Igor errando no começo de
“Troops of Doom”, por exemplo, e quase descarrilando a canção.
Mas falhas, naquelas circunstâncias, eram certamente esperadas.
Todos estavam preocupados no palco, sabendo o que viria a seguir.
Apesar da resistência do Sepultura, a Roadrunner via muitos
cifrões. Sabia que o álbum venderia bem, ainda que somente pelos
aspectos nostálgicos, dramáticos e curiosos, justi cando o
lançamento com base na alegada necessidade de recuperar os custos
dos investimentos no Sepultura após a saída de Max.
Em setembro, a Roadrunner lançou o disco Under a Pale Grey
Sky. Foi apenas mais um contratempo para a banda. Encararam a
questão com tranquilidade, não se abalaram e seguiram em frente
com a carreira.
EM FORMA DE EP, Revolusongs foi lançado exclusivamente no Brasil e
no Japão, no primeiro trimestre de 2003. Pode-se dizer que foi a
versão do Sepultura de The $5.98 EP: Garage Days Re-Revisited, do
Metallica, até os últimos minutos. Enquanto o EP do Metallica
fechava com um trecho desleixado e desa nado do clássico do Iron
Maiden “Run To The Hills”, o Sepultura fez o mesmo com uma
interpretação igualmente relaxada de “Enter Sandman”, do
Metallica (redime-se disso, no entanto, com um trecho provocador e
brutal de “Fight Fire with Fire”).
Dos sete covers em Revolusongs, apenas dois deles são faixas das
quais um fã poderia realmente esperar que a banda zesse versões.
Os outros cinco, assim como o bônus do Bauhaus em Nation,
pegaram muita gente de surpresa. E essa era a intenção. Teria sido
muito fácil – e óbvio – simplesmente gravar um monte de músicas
thrash, suas preferidas de monstros do metal como Slayer e Vio-
lence.
Revolusongs diz a que veio com “Messiah”, originalmente dos
suíços do Hellhammer, progenitores do black metal, que eram
liderados por Thomas Gabriel Fischer, herói dos primórdios do
Sepultura que se tornaria o homem principal do Celtic Frost.
Termina com “Piranha”, do Exodus, fechando o ciclo de metal, mas
as faixas do meio viajam por uma montanha-russa de gêneros.
A pegada quase gótica de “Angel”, do Massive Attack, criadores
do trip hop, emenda muito bem em “Black Steel in the Hour of
Chaos”. O grosso dessa faixa meio obscura do Public Enemy é
cantado em forma de rap, em português, por Maurinho “Sabotage”,
um artista de hip-hop considerado por muitos uma espécie de Tupac
Shakur brasileiro. Toca-discos de DJ e scratches?, os fãs pensaram,
chocados, ao ouvir pela primeira vez. Rap? Esqueceram-se que
Andreas usava camisetas do Public Enemy no palco desde 1989, e
Igor sempre fora fã das batidas do hip-hop, por quase tanto tempo
quanto fora fã de metal.
“Mongoloid”, do Devo, vem a seguir, e o ouvinte pode perceber
que o Sepultura está realmente curtindo, que está se divertindo com
uma faixa que nunca poderia ter encaixado no contexto de um
álbum de verdade. “Mountain Song”, com seus ri s de guitarra com
palm mute de Dave Navarro e Jane’s Addiction, ca na linha tênue
entre o esperado e o inesperado. Um rock pesado e sem frescuras,
“Mountain Song” soa praticamente como se o Sepultura a tivesse
composto.
A faixa de destaque, no entanto, continua sendo sua versão
animada de “Bullet the Blue Sky”, do U2. O que não deveria ser uma
surpresa. Fãs mais antenados se lembrarão da in uência das lendas
irlandesas do rock sobre o Sepultura desde a época de Chaos A.D.
Tanto a banda quanto a gravadora SPV acharam que “Bullet the
Blue Sky” era forte o su ciente para merecer um videoclipe e, em
novembro de 2002, meses antes de Revolusongs ser vazado para o
público, começaram a lmar em São Paulo, com Derrick
desempenhando um papel central na produção e como personagem
no próprio vídeo.
“Filmar e fotografar é algo que eu tenho feito já tem um tempo”,
disse mais tarde, “mas eu gostaria muito de trabalhar mais com
direção. Tem um monte de clipes em que eu queria me envolver no
processo de criação e direção, pelo menos trabalhar na ideia, porque
eu consigo senti-la – visualmente – a partir da música.”
O simples fato de a SPV querer bancar a produção de um vídeo
para uma música de um EP lançado apenas em dois países, sendo
que nenhum deles era o maior mercado da banda, já dizia muito
sobre a diferença entre a con ança da gravadora no Sepultura em
comparação com a falta de apoio da Roadrunner após a saída de
Max. A Roadrunner havia nanciado apenas um vídeo ao longo de
dois álbuns e quatro anos, e a palavra nanciado nem é o termo
mais apropriado; simplesmente juntaram trechos de uma
apresentação que já havia sido lmada.
Derrick durante as lmagens do clipe de “Bullet the Blue Sky”, São Paulo.
Andreas ajustando o som durante a gravação do álbum Roorback, Rio de Janeiro.

“Então”, continua Derrick, “‘Bullet the Blue Sky’ foi o primeiro


clipe em que a gente teve uma verba boa de verdade.” O vocalista
havia esboçado a premissa básica do vídeo: “Um garoto correndo.
Alguém o está perseguindo, ou ele está correndo em direção a
alguma coisa, correndo pela cidade e passando por um monte de
doideira”.
Derrick analisou várias tas com amostras de lmagem que
vinham de todo lugar, e acabou descobrindo o incrível Ricardo Della
Rosa. “Não sei se na verdade ele já tinha feito um clipe, já que era
um diretor de fotogra a”, ele disse. “Um diretor de verdade.”
Após discutir o conceito com Derrick, Ricardo sugeriu que o
vocalista interpretasse o papel principal no vídeo.
Derrick explica: “Ele gostou de muitas das ideias, pequenas
coisas: malhando na academia, tinha televisores por todo lado… Eu
via cada um de nós nas telas, nas janelas, nas lojas. Via a gente na
sala branca vestindo só preto. Mas o vídeo em si seria sujo e
raivoso”.
A partir daquelas ideias, eles criaram algo “muito especial”,
conclui Derrick. “Um clipe realmente bom, eu achei. E eu adoro
trabalhar nesse lado da coisa, com o diretor, criando ideias. Então é
uma coisa que eu quero fazer mais no futuro, com certeza.”
Aparentemente, o restante do Brasil também achou que era “um
clipe realmente bom”. Ele ganhou um prêmio – por melhor direção
de fotogra a na categoria videoclipe – na edição de 2003 da
prestigiada premiação da Associação Brasileira de Cinematogra a,
levando ainda o troféu na categoria Melhor Fotogra a no MTV
Video Music Brasil daquele ano.
E, com Revolusongs, o Sepultura homenageou não apenas as
bandas que adorava, mas também o fã-clube o cial, que a tinha
adorado por tanto tempo. Colocaram Toninho mascarado na capa do
disco e escalaram Thrashão para o clipe de “Bullet the Blue Sky”.
Ele pode ser visto brevemente correndo ao lado de Derrick quando o
vídeo alcança cerca de um minuto e meio de duração.
Apesar de o Sepultura ter cado um pouco fora do radar nos
Estados Unidos, continuou a trabalhar no Brasil em vários projetos.
Um deles, o premiado lme Lisbela e o Prisioneiro, traz em sua trilha
sonora trabalhos conjuntos com ninguém menos que Zé Ramalho e
João Falcão.
Mas, em janeiro de 2003, a banda retornou ao Rio de Janeiro
para começar a gravar a todo gás seu próximo lançamento – agora
um álbum completo – nos Estúdios AR, levando Steve Evetts com
eles.

MAIS OU MENOS UM ano antes, durante uma jam amigável no


Manifesto Bar em São Paulo, Andreas e Paul Di’Anno – o vocalista
original e bem-amado do Iron Maiden – haviam tocado com fúria
três clássicos do Iron que contaram com a voz potente de Di’Anno
nas gravações originais. Tocaram “Killers”, “Wrathchild” e
“Phantom of the Opera” e depois zeram planos para Paul voltar ao
Brasil para uma participação especial no novo álbum. Mas Di’Anno
não pôde, o que de certa forma acabou sendo melhor.
Dessa vez decidiram fazer diferente e não ter muitos músicos
convidados. Com uma exceção feita apenas a João Barone, baterista
dos Paralamas do Sucesso, que adicionou um toque de percussão em
“Urge”, o álbum seria o Sepultura na sua forma mais pura e bruta.
Repleta com os rangidos dos dispositivos de guerra e de
esmagadoras maquinações políticas, “Come Back Alive” traz uma
mensagem bem direta: esta banda está atrás de sangue, pronta para
mostrar ao mundo que pode ter perdido sua gravadora de longa
data, mas que, no quadro mais geral, isso não fez muita diferença.
Ainda tinha a paixão, o fogo. O baixo de Paulo está mais destacado
do que nunca, pulsando nos alto-falantes como uma pequena bomba
atômica. Alternando o ritmo de pegada média e pesada da levada do
refrão com versos em estilo thrash em um vai e vem, “Come Back
Alive” também estabelece o tom das letras do álbum, solidarizando-
se com os soldados americanos, jogados em uma guerra odiosa
depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova
York.
Andreas e Paul Di’Anno no Manifesto Bar.

Enquanto transmitia trechos do processo de gravação via


streaming na internet, o webmaster do Sepultura deparou com uma
palavra que parecia resumir muito bem a temática dominante das
novas músicas. Roorback, também conhecida como propaganda
negra ou difamação política, teve suas origens nas eleições
presidenciais de 1844 nos Estados Unidos, quando o partido Whig
usou um personagem ctício, o barão Von Roorback, para acusar o
candidato da oposição, James K. Polk, de ser um senhor de escravos.
Apesar de não ser um álbum tão conceitual quanto Nation,
Roorback constitui um tipo particular de propaganda, atacando
governos e sistemas políticos corruptos e aqueles indivíduos ávidos
por poder que manipulam pessoas em benefício próprio. Até mesmo
a capa, com a imagem de uma gura que paira sobre a Terra com
seus dedos cravados no solo, foi pertinente para o tema (aliás, a
capa que Derek Hess criaria mais tarde para Come Clarity, da banda
In Flames, seria mais do que parecida com seu trabalho em
Roorback). E o título pode também ser considerado um tipo de jogo
de palavras: em um sentido bem literal, a banda estava roaring back,
ou seja, rugindo em resposta aos rugidos de seus vários alvos.
Criticando o processo eleitoral dos Estados Unidos,
provavelmente em referência à eleição de 2000, quando o
democrata Al Gore venceu no voto popular e ainda assim perdeu a
presidência para George W. Bush, “Godless” acusa os políticos de
serem autocentrados, não respondendo a ninguém, nem mesmo às
pessoas que os elegem. Utilizando progressões de ri longas e
deslizantes que lembram faixas como “Sepulnation”, assim como os
característicos e esmagadores ri s de corda única, “Godless” ferve
com raiva.
“Apes of God” continua o ataque, uma canção forte que abriria
shows nas futuras turnês de Roorback com Derrick na guitarra. O
solo de Kisser aqui não é convencional, notas altíssimas sobrepostas
criam uma majestosa tapeçaria de sons antes de virarem uma lenta e
arrastada barulheira ensurdecedora. A música toma emprestado o
título de um romance do escritor britânico Wyndham Lewis, em que
os “Apes of God” [Macacos de Deus] são descritos como
personagens zombeteiros e malévolos que imitam aqueles que – ao
mesmo tempo – admiram e odeiam. Embora a letra seja vaga, dado
o contexto do livro e do álbum, esses “Apes of God” podem
representar quaisquer pessoas movidas por ciúme e inveja.
“More of the Same”, ao contrário de seu título, está longe de ser
mais do mesmo para o Sepultura, com sua desacelerada no meio,
passando a um estilo mais relaxado de lounge music. Tendo a
reverberação de sua voz tratada, Derrick exiona os músculos vocais
em melodias suaves, meio jazz, enquanto a banda diminui o volume
em uma re exão musical da mensagem da canção. Tal mensagem
parece ser de aceitação relutante; os líderes, os políticos, são todos
corruptos e direcionam suas prioridades para todos os lugares,
exceto para onde deveriam estar. Guerras ainda são travadas por
petróleo, por terra, por dinheiro e, de forma contraproducente, por
paz. Nada mudou, e em tempos tão desesperados como estes parece
que nada jamais mudará.

Igor faz uma pausa durante a gravação do álbum Roorback.

Os versos de Kisser em “Urge” são alguns dos mais diretos que


ele já escreveu, fazendo referência óbvia à situação no Brasil
especi camente e revelando a evolução das composições do
guitarrista e da banda. “Originalmente”, ele disse, “era uma cópia e,
aos poucos, a gente começou a viajar para tocar, primeiro fora do
nosso estado, depois indo para o Norte e o Sul do Brasil, e depois
para a Europa. Então a gente foi vendo que podia falar sobre nossas
experiências, sobre ser do Brasil, comparando o Brasil a outros
países e a outras maneiras de ver a política e a religião. É apenas
uma maneira mais honesta e interessante de falar sobre as coisas
que você vive, sobre as próprias experiências, os pontos de vista – e
não sobre uma fantasia. Na vida, quando a gente ca mais velho,
certos conceitos também mudam, certas ideias se transformam.”
Escrever as verdades, como eles as veem naquele momento, não
é apenas uma maneira de se reconectar com o que está acontecendo
em casa, mas sim um modo de se conectar regularmente com os fãs,
como Andreas explicou: “A gente colocou tudo na música. Expressou
o que sente e o que pensa através dela e recebeu respostas de
pessoas em todo o mundo dizendo que as músicas do Sepultura – as
letras – realmente as ajudaram a saber o que está acontecendo no
mundo. A gente recebeu cartas das linhas de frente dizendo que ‘o
Sepultura nos ajuda a sobreviver dia a dia’, então é a maneira como
a gente se relaciona melhor com as pessoas”.
“Corrupted”, uma das músicas que testaram na estrada antes de
gravar, vai rasgando em frente com um ri que parece uma
locomotiva a vapor. Grande parte da canção, no entanto, é levada
por uma harmonia percussiva simples da guitarra de Kisser, repetida
sobre acentos de baixo e bateria, permitindo que os vocais
enfurecidos de Derrick quem em evidência.
Os vocais novamente brilham em “As It Is”, uma faixa que
revisita a dinâmica de um verso tranquilo em contradição a um
refrão alto e gritado, embora de uma maneira que nunca tinham
feito antes. Derrick invoca de novo a vibe de cantor de música
lounge e, assim como em “More of the Same”, prega a aceitação das
coisas como são, alertando, no entanto, para os perigos de se
contentar com elas. Devemos aceitá-las como são? É uma pergunta
interessante, outro ponto de vista a considerar; o outro lado da
recusa e da resistência – apresentado aqui em um tom sarcástico,
quase irônico. Apesar de sua parte do meio ter a assinatura típica do
Sepultura, “As It Is” mostra a banda mais uma vez fazendo
experiências, brincando com melodias e ritmos indianos e um solo
de guitarra meio invertido, que nos chega como a trilha sonora de
um sonho ou de uma meditação.
“Mind War”, por outro lado, é Sepultura na veia, mas com uma
pegada hardcore mais trabalhada. Uma das faixas mais acessíveis do
álbum, ela também ganharia um clipe de Ricardo Della Rosa. O
clipe se passa na cabeça de um personagem mentalmente
perturbado interpretado por Paulo, falando das lutas internas que
todos enfrentamos em nossa mente, com cenas da banda tocando
lmadas em um elevador de carga de um estacionamento de trinta
andares em São Paulo. Perto do nal do clipe, a música cessa
repentinamente, como se uma luz na mente do personagem tivesse
se apagado. Em um interlúdio bastante confuso, o espectador é
levado a uma loja onde duas descendentes de japoneses discutem
sobre o que aconteceu e como acender a luz novamente antes que
escureça. Algo interessante a notar: a mulher que faz compras
durante a discussão é ninguém menos que Vânia Cavalera, mãe de
Max e Igor.
Uma explosão de raiva de dois minutos e meio, “Leech” lembra
as incursões no punk rock inglês do início da carreira do Sepultura,
na onda da banda G.B.H. e do Subhumans. Com uma energia
imediata que torna a canção perfeita para ser tocada ao vivo,
Derrick cospe veneno sobre aqueles que se aproveitam dos outros.
“The Rift” continua por esse caminho, outra atração rápida, curta e
direto ao ponto. A música fala de guerras religiosas e morte, um
abismo que se formou entre o homem e sua espiritualidade, e deixa
o ouvinte se perguntando quando foi que tudo deu errado.
“Bottomed Out” é o momento mais bizarro do Sepultura até
então, o mais perto que já chegaram de tocar uma “balada”. Versos
suaves uem como um riacho de água musical, e Derrick canta
sobre sua luta – nossa luta – para conter a raiva. Estamos todos
fartos do sistema e, embora não saibamos exatamente como mudá-
lo, sabemos que precisa ser mudado. Quando a suavidade dá lugar
ao peso em “Bottomed Out”, é um tipo diferente de peso para o
Sepultura – lento, repleto de graves, com pouca distorção, levando a
um trecho sombrio e melódico que traz o Jane’s Addiction de volta à
mente. Esse suspiro de alívio, de relativa calma, cessa de súbito ao
som de tambores serenos, o que torna a porrada de “Activist” muito
mais poderosa.
Música hardcore com uma mensagem hardcore e um refrão
atípico (sem guitarras, apenas bateria e gritos de Derrick), “Activist”
é bastante representativa do álbum como um todo. Grande parte de
Roorback escapa ao clichê do uso de ri s de guitarra com palm
mute, um arroz com feijão do heavy metal, em favor de uma
abordagem mais despojada e aberta. O disco não é tão tradicional,
nada do típico metal “metaleiro”, tenso e temperamental. Pelo
contrário, é a mistura mais potente de hardcore e punk rock que já
ouvimos do Sepultura. Desde os primeiros dias, eles – especialmente
Max e Igor – foram atraídos por essas in uências, Kaaos, Terveet
Kadet e Exploited, e, com as raízes de Derrick sendo de uma cena
similar, Roorback faz bonito.
Embora o clima no estúdio fosse descontraído e positivo (e os
vídeos das sessões atestam isso), Djalma “Thrashão” lembra-se de
um dia sombrio, pesado, quando estava entrevistando a banda e
tirando fotos para publicidade. Naquele dia, eles tinham recebido a
notícia da morte do rapper Sabotage, baleado em um incidente
supostamente relacionado a drogas.

EM MEADOS DE ABRIL de 2003, o Sepultura partiu em uma curta turnê


pelos Estados Unidos com as lendas canadenses do Voivod, embora
Roorback estivesse programado para ser lançado apenas no dia 27
daquele mês. Mesmo então, sairia em quase todos os lugares, exceto
nos Estados Unidos, onde as negociações com a divisão norte-
americana da SPV/Steamhammer ainda estavam em andamento.
Aguçaram o apetite do público americano com apenas algumas
canções novas, tocando “Mind War” em todos os shows e
“Corrupted” em alguns, e algumas selecionadas de Revolusongs para
completar. E, com Jason Newsted tendo se juntado ao Voivod como
membro em tempo integral no ano anterior, era natural que ele
acompanhasse o Sepultura no palco ocasionalmente para tocar
guitarra base em alguns dos clássicos.
Paulo tomando um pouco de ar fresco durante as gravações do álbum Roorback, Rio de Janeiro.

A banda estava feliz por estar de volta aos Estados Unidos –


a nal, viveram lá por muitos anos e ainda sentiam que o país era
uma espécie de “segunda casa” –, mas, mais importante, caram
felizes em ver que os fãs dos Estados Unidos estavam contentes em
vê-los. Sempre fora um mercado difícil, não só para bandas de
metal, mas para artistas musicais em geral, pois tudo era muito
dependente da mídia. Tendências vêm e vão muito rapidamente nos
Estados Unidos, e, se bandas cam longe por muito tempo, correm o
risco de serem esquecidas. E, como Nation não tinha sido bem
promovido, parecia que o Sepultura tinha se afastado por um tempo
muito longo.
No restante do mundo, o hit surpresa “Bullet the Blue Sky” foi
adicionado à edição-padrão do disco Roorback, enquanto as edições
especiais foram vendidas com o EP Revolusongs completo. Um mês
depois, o contrato norte-americano tornou-se o cial, e, em 26 de
agosto, Canadá e Estados Unidos puseram as mãos no novo material.

Paulo e Andreas durante sessão de gravação do álbum Roorback, Rio de Janeiro.

Mas a diferença de três meses entre as datas de lançamento foi


infeliz. Muitos fãs no Canadá e nos Estados Unidos já haviam
baixado versões digitais das edições estrangeiras em sites de
compartilhamento de arquivos como Napster, Kazaa e Soulseek. A
internet estava apenas começando a mudar a indústria da música de
maneira que ninguém poderia ter previsto.
Depois da turnê nos Estados Unidos, o verão de 2003 estava
reservado para saltos de festival em festival: Download, em Castle
Donington; Sweden Rock, na Suécia; Wâldrock, na Holanda;
Wanted, na Hungria; Graspop Metal Meeting, na Bélgica; With Full
Force, na Alemanha; Metalmania Festival, na Espanha. E a lista ia
muito além. O mês de junho inteiro e a maior parte de julho foram
passados na Europa, com agosto reservado para férias, antes de
fechar o ano com América do Sul, Austrália e Costa Rica.
As turnês em 2004 foram escassas, pelo menos para os padrões
do Sepultura. Eles desaceleraram um pouco, deixando mais espaço
do que o habitual entre os shows e estendendo as pausas entre as
turnês um pouco mais do que no passado. Mais uma vez foram
soberanos em um palco do Rock In Rio, em 4 de junho, dessa vez
em uma edição internacional em Lisboa, Portugal. Mas, com Derrick
vivendo no Brasil em tempo integral, era mais fácil para a banda
montar shows locais sempre que estavam no Brasil.
Fora do Sepultura, Derrick e Paulo investiram em um bar em São
Paulo, o Bunker Lounge Café, que foi devidamente decorado como
um bunker militar subterrâneo e dava destaque à música suave e
eclética do período da guerra, como o blues e o jazz. Andreas tocou
com Os Paralamas do Sucesso, com a lenda do thrash alemão
Destruction e com o Brasil Rock Stars, e Igor sentou-se à bateria com
os terroristas musicais mexicanos do Brujeria.
Eles mereciam a carga de trabalho reduzida. Fizeram jus a ela.
Especialmente porque 2004 marcou o aniversário de 20 anos da
banda.
Para celebrar essa ocasião, lançaram seu próprio festival –
habilmente intitulado Sepulfest –, que ocorreria em São Paulo no
dia 25 de setembro. Planejado para ser mais do que apenas uma
festa em comemoração a sua carreira, ele servia a outro propósito.
Como Paulo explicou, esperavam abrir as portas para outras bandas
brasileiras das quais gostavam. Algumas dessas bandas também
eram representadas pela recém-criada empresa de Monika Cavalera,
a Base 2 Produções, a partir da qual ela agora atuava o cialmente
como empresária do Sepultura.
De certo modo, e sem saber, ela já vinha há anos se preparando
para o trabalho. “Eu estou com eles desde 1989, levando todos para
lá e para cá com o equipamento e, nos ns de semana, para a praia
e a casa de campo do meu pai. E então, quando eu z meu curso de
agente de viagens, eu disse ao Igor que queria trabalhar com a
banda porque eu poderia fazer um bom negócio para eles em termos
de voos e hotéis e tudo o mais. E então eles me permitiram fazer
isso. Ela [Gloria] me deu permissão para fazer todos os trabalhos.
Por que a gente iria car em um hotel cinco estrelas por três horas,
quando poderia car em um que custa 40 dólares em vez de 300?
Essa é uma questão sobre a qual eu sempre falava com Igor. Por que
vocês têm que gastar tanto dinheiro em passagens aéreas ou até
mesmo ônibus? Por que vocês não podem car em um ônibus em
vez de três ônibus, se vocês têm que pagar tudo isso no nal? Isso
não está saindo de graça. Eu queria que Igor trouxesse dinheiro para
casa, e não que gastasse dinheiro em turnê, porque todo esse
dinheiro vai embora assim mesmo, e, em seguida, a gravadora iria
receber tudo isso de volta com as vendas e tudo o mais.”
E, depois de passar por três empresários desde Gloria, o
Sepultura acabou com Daise Simões, a famosa empresária dos Titãs.
“Mas eu sabia o que estava acontecendo com a banda”, disse
Monika. “Tudo.” Um dia, Daise foi até Monika e sugeriu que ela
assumisse porque conhecia a banda melhor do que qualquer um.
“Eu comecei a fazer as coisas para eles aqui no Brasil, e depois,
quando Igor e eu nos separamos, eu cheguei para a banda e disse:
‘Bem, até agora eu z tudo de graça, agora eu preciso receber
pagamento’. E foi aí que tudo começou de verdade.”
Com eles no programa de estreia do Sepulfest estavam Ratos de
Porão, Claustrofobia, Nação Zumbi e Massacration. A banda
Massacration, idealizada por Bruno Sutter (também conhecido como
“Detonator”) como uma paródia do estereótipo do heavy metal, foi
uma inclusão importante, destacou Derrick. Nascido no programa de
comédia Hermes e Renato, o Massacration incorporou um pouco de
diversão, um pouco de humor e um monte de risadas a um gênero
de nido por sua agressividade, “caras feias” e fúria. Até os
headbangers precisam sorrir de vez em quando.
Mas Igor não sorria muito na época, com sua vida pessoal em um
período de transição. Sua esperança de se reunir com o irmão – um
desejo que nunca fora segredo – cava mais forte conforme seu
casamento com Monika se extinguia. Em vários momentos, depois
da saída de Max, ela tinha sido, na verdade, a única pessoa capaz de
impedir Igor de sair da banda também. Poucas pessoas sabiam quão
perto Igor tinha chegado de abandonar o Sepultura em várias
ocasiões. Monika o havia convencido do contrário, que ele não
deveria viver no passado, que ele tinha que seguir em frente. Agora,
sem a sua in uência pessoal, sem nenhum dos dois relacionamentos
– e talvez se sentindo um pouco incomodado por Monika continuar
a trabalhar com a banda –, era apenas uma questão de tempo até
Igor se apartar completamente.
Depois de seis anos e três álbuns fortes (e cada vez mais fortes),
o Sepulfest também homenageou Derrick Green por, sem dúvida, ter
feito por merecer seu lugar na banda. Ainda assim, de tempos em
tempos, repórteres o tratavam como “o cara novo”, perguntando
sobre o processo de integração, como se sentia, se tinha cado
intimidado por entrar no lugar de Max.
A resposta, é claro, era “não”, já que ele não estava entrando no
lugar de Max. Ele e os outros três passaram aqueles seis anos
desenvolvendo algo novo, algo diferente, enquanto lutavam para
manter a alma do Sepultura viva. Derrick estava ciente da
magnitude da posição e respeitava muito Max Cavalera e seu lugar
na história, mas aqueles dias tinham acabado. O Sepultura havia
seguido em frente, ainda que uma parte de sua base de fãs não
tivesse. Derrick sabia que algumas pessoas não gostariam dele
simplesmente porque ele não era Max, mas estava tranquilo quanto
a isso. A negatividade nunca o incomodou.
Era uma atitude nascida em seus primeiros dias nas casas de
show de Cleveland. Se as pessoas gostassem dele, ótimo. Se não, ele
não se importava. Uma atitude prudente a todos os artistas, se
quiserem sobreviver nesse negócio, já que sempre haverá críticos.
Sempre haverá pessoas tentando derrotá-lo.
Uma excursão europeia com o Motörhead ocupou a agenda de
novembro, e o início de 2005 marcou mais um aniversário, os 25
anos da Roadrunner Records. A homenagem da gravadora ao seu
lugar no legado do heavy metal veio na forma de um álbum com
uma seleção só de estrelas, chamado Roadrunner United. O disco
reunia tantos nomes díspares quanto possível, todos os quais tinham
sido contratados da gravadora em algum momento. Quatro
“capitães de equipe” foram selecionados para compor e produzir
músicas com os colaboradores de sua escolha. Um deles era Dino
Cazares, que recrutou Andreas Kisser como seu guitarrista. Outro
capitão era Robb Flynn, que escreveu uma música para Max
Cavalera cantar. Seria a primeira vez que Andreas Kisser e Max
Cavalera apareceriam no mesmo álbum em uma década – embora
em faixas diferentes.
Um show que seria uma versão ao vivo do tributo ocorreu mais
tarde naquele ano, com Andreas assumindo a posição de guitarrista
da banda da casa. Havia rumores de que Max iria ao evento, o que
deixou muitos surpresos e ansiosos pelas possibilidades implícitas.
Max não apareceu, algo que talvez não tenha sido surpresa para
ninguém.
NO FINAL DE 2004, o planejamento preliminar para o próximo álbum
já havia começado. Esse foi um marco, independentemente de
qualquer outro fator. A maioria das bandas não sobrevive tempo
su ciente para fazer um segundo álbum, quem dirá um décimo. E,
considerando as di culdades que tinham passado desde 1996, sua
determinação em continuar em face das adversidades foi nada
menos do que inspiradora. Uma banda menos apaixonada, menos
focada, menos motivada teria desmoronado anos antes.
Dessa vez, Paulo sugeriu que trabalhassem com base em um
tema, uma estrutura abrangente para dar sentido às sessões de
composição. Andreas e Igor vinham aprimorando a ideia de compor
a trilha sonora de um livro, inspirados por seu trabalho em No
coração dos deuses e Lisbela e o prisioneiro, e Derrick tinha o tema
ideal. Era uma história que tinha lido na escola anos atrás: A divina
comédia, um poema épico italiano escrito pelo orentino Dante
Alighieri. Com suas descrições detalhadas e explícitas do inferno e
do sofrimento e temas subjacentes que poderiam ser facilmente
considerados paralelos a eventos modernos, todos concordaram que
era uma ideia que valia a pena explorar.
Embora fossem todos relativamente familiarizados com o
conceito do livro – o poeta Virgílio mostra a Dante o caminho da
salvação, levando-o através do Inferno, do Purgatório e, nalmente,
do Paraíso –, cada membro pegou uma cópia e leu até o m,
fazendo anotações e trazendo suas próprias ideias para a criação
daquele que seria seu empreendimento mais ambicioso.
Discutindo a rotina que passaram anos estabelecendo e como ela
tornava o processo de criação mais fácil e mais livre de percalços
possível, Andreas explica: “Eu apenas expresso minha ideia, as
ideias que gostaria de desenvolver, e tento manter a coisa
interessante. Como todo mundo tem sua própria voz, debatemos
muito, conversamos muito. E, assim que achamos uma direção, nós
a seguimos”.
O Sepultura nunca trabalhou de acordo com os princípios da
democracia. É tudo ou nada com eles, todos ou ninguém. Ainda que
todos os quatro componham e ensaiem em casa, compilando
melodias, ri s e letras, as decisões nais sobre o que é usado e o que
não é deve ser unânime.
“Discutimos até o ponto em que estamos todos de acordo”,
explica Andreas, “então a gente vai. Eu posso ter grandes ideias,
mas não posso forçar ninguém a fazer algo, especialmente Derrick.
Eu não poderia escrever letras para Derrick sobre comer carne” (já
que Derrick é vegetariano desde os 15 anos) “ou matar animais ou
algo assim. Ele realmente teria que acreditar nisso, para retratar,
para representar.”
Isso pode soar como uma forma rígida e presa de criar música,
mas, na realidade, as democracias em bandas geralmente levam a
brigas e rancor. O Sepultura sempre entendeu a importância de ter
certeza da aprovação de cada membro. Desde a saída de Max, o
conceito realmente tinha sido entendido: o todo é sempre maior do
que as partes individuais.
“Fazemos as músicas para nós mesmos em primeiro lugar”, diz
Paulo. “Precisamos ser felizes com o que estamos fazendo. Tudo
começa comigo e com a banda. Não fazemos música para a
gravadora ou qualquer outra pessoa; fazemos para nós mesmos, e o
resto é consequência.”
Andreas concorda: “É um processo muito livre e aberto que a
gente tem que curtir. Embora seja um trabalho, não é como numa
empresa – nosso negócio é a música. Pode ser um dia de bom humor
ou um dia de mau humor, mas tudo ajuda a expressar o que
sentimos na música”.
Para a coprodução, o Sepultura escolheu André Moraes, por sua
vasta experiência em trilhas sonoras de lme, e Stanley Soares, seu
engenheiro de som ao vivo. Sobre Soares, Andreas diz: “Ele está com
a gente há muitos anos e conhece a música. Ele é um ótimo
guitarrista também. Tem sensibilidade de músico. Ele sabe o som
que a gente deve ter”.
O álbum, assim como o livro, é dividido em três partes – Inferno,
Purgatório e Paraíso – com cada seção re etindo musicalmente a
atmosfera de cada cântico. No Inferno, por exemplo, a estrutura
musical é simples e direta. Simplesmente quatro caras tocando
música alta e pesada. O Sepultura fazendo o que faz melhor. No
Purgatório, as músicas se tornam mais complexas, com a adição de
instrumentos de sopro e seções de cordas. E, no Paraíso, que é
representado por apenas uma canção, um maior arsenal de
instrumentos pinta um retrato sonoro de unidade e de uma paz
hesitante.
O álbum começa com o clima sinistro peculiar de “Lost (Intro)”,
de nindo a atmosfera adequada para este primeiro cântico. Dante,
tanto no livro quanto na música, está perdido na mata, oprimido por
um profundo sentimento de medo. Essencialmente, ele perdeu seu
caminho na vida. Vozes fantasmas o chamam da escuridão, e ele se
sente tonto, como se estivesse dormindo e sonhando. Na faixa, o
canto invertido de Derrick Green corre sobre um verso poético que
será repetido em todo o álbum. As vozes cam mais altas, mais
intensas, mais ameaçadoras, e Dante começa a correr.
Banda e equipe se preparando para uma pelada.

A primeira música propriamente dita de Dante xxi – “ Dark Wood


of Error” – abre com um ri rítmico, galopante, com palm mute e
padrões de bateria combinando, enquanto Dante foge ainda mais
para dentro da oresta. Guitarras, baixo e bateria pulsam em
uníssono, crescendo em intensidade, pontuados por toques de
acordes completos, quando Dante irrompe das árvores chegando a
áreas relativamente abertas. A oresta o engole novamente, e sua
respiração ca pesada. Dante sente os animais selvagens ao redor, à
espreita na escuridão, e a música nalmente explode em violência
com a voz de Derrick, no momento em que Dante é vencido pelo
terror.
DANTE, O ESCRITOR, UTILIZOU metáforas e imagens em seu poema para
revelar verdades às vezes escondidas sobre a política e a sociedade
na Florença de sua época. Em vez de fazer referência direta às
histórias especi camente, o Sepultura abordou A divina comédia do
mesmo modo que Dante: usando-a como base para tecer
comentários sobre o mundo como o viam no momento. Em “Dark
Wood of Error”, Derrick encarna o papel de Dante, mas todos somos
Dante nessa era de guerra, ódio e caos. Ele conta da luz que há além
do limite da oresta, uma luz que não é capaz de alcançar pois é
guardada por três bestas, cada uma representando um tipo de
pecado. Por meio dos versos de Kisser, Derrick joga o ouvinte em
uma situação semelhante, alertando sobre nossas três bestas – o
Reino Unido, os Estados Unidos e as Nações Unidas – que detêm o
poder supremo e, portanto, são suscetíveis à corrupção suprema.
Nesse ponto da história, Dante encontra Virgílio, o poeta
romano, que lhe diz que há apenas uma maneira de escapar da
oresta escura. Derrick, então, nos leva a um desvio para o inferno.
A introdução rápida e com bumbos duplos de “Convicted in Life”
é típica de Igor Cavalera, talvez signi cando o barulho das portas do
Inferno enquanto Dante passa, seus sentidos inundados com os uivos
dos espíritos torturados que foram afastados da luz de Deus. Suas
escolhas na vida os condenaram na morte.
Inspirados em parte pelas histórias de moradores das favelas
brasileiras, muitos dos quais nascem para uma vida trágica da qual
nunca terão oportunidade de escapar, os versos de Kisser e Green
são praticamente um lamento, e o solo de guitarra de Andreas é
como um lamento de mil vozes, como os gemidos e gritos dessas
almas perdidas.
Depois de atravessar o rio Aqueronte, Dante é conduzido através
dos cinco primeiros círculos do Inferno, testemunhando as punições
mais terríveis e explícitas. Após o primeiro, o Limbo, cada um dos
círculos seguintes é reservado para um tipo especí co de pecador,
do lascivo e glutão ao ganancioso e irado. Dante entra, então, na
cidade chamada Dis, que abrange do sexto ao nono círculo, onde os
mais ofensivos de todos os pecadores sofrem: os assassinos, os
suicidas e os torturadores.
O Sepultura marca essa passagem com melodias de cítara e
tambores esmurrados que evocam imagens de uma enorme cidade
murada envolta em chamas, demônios e diabos empoleirados sobre
os parapeitos, assim como Dante descreve. Primeira faixa com letra
escrita exclusivamente por Derrick Green, “City of Dis” ataca
aqueles que reprimem a crença e a opinião individual com ameaças
de danação. Se tivermos fé em nós mesmos, a rma Derrick, não há
possibilidade de errarmos.
Tendo sobrevivido aos círculos mais baixos, Dante en m
encontra com Lúcifer, a fera imponente com três caras, enterrada
até a cintura em gelo. Com “False”, o Sepultura também chega à
extremidade inferior do Inferno. Eles chegam com ritmo furioso,
denunciando aqueles que abusam do poder e usam o status para
in uenciar os mais fracos. A faixa desacelera no meio, trompas e
trombetas anunciam o aparecimento de Lúcifer. O solo de Kisser é
frenético, intencionalmente quase sem melodia, talvez espelhando a
irrealidade percebida por Dante, sua admiração pela pura
impossibilidade daquilo tudo. Em A divina comédia, o leitor vê cada
face da besta mastigando uma gura histórica diferente. Brutus.
Judas. Cassius. Nos versos de Kisser, são esses falsos líderes que
estão pagando o preço eterno.
Depois de encarar Lúcifer, Dante escala o pelo da besta e sobe
até a saída, terminando, assim, sua jornada através do Inferno. A
música “Fighting On” fecha o cântico do Inferno com uma
introdução de guitarra levemente distorcida, e uma repetição
circular do mantra que Derrick entoa no início do disco. É uma faixa
de ritmo médio, con ante em seu passo, uma prova da força que
todos carregamos dentro de nós. Os últimos acordes de guitarra
somem aos poucos, fortemente distorcidos, soando como um fogo
que se apaga enquanto Dante escapa do Inferno.
O interlúdio “Limbo (Intro)” marca a transferência do Inferno
para o Purgatório, uma tensa sinfonia de cordas imitando o ri de
guitarra que irá conduzir a faixa seguinte, “Ostia”. Mas a
sobreposição de harmonias e o uso do “trítono do diabo” – um
intervalo musical tradicionalmente utilizado na música clássica para
criar uma atmosfera sombria ou macabra – alertam o ouvinte de que
Dante não está seguro. Nós não estamos muito seguros – ainda.
A palavra “Ostia” pode ser de nida como uma pequena abertura
que leva de um espaço con nado e escuro para um campo aberto.
Musicalmente, a canção soa como se os céus estivessem se abrindo
acima de Dante enquanto ele escala o Monte do Purgatório. O uso
intenso de trombetas sinaliza a ascensão do poeta para fora do
submundo em direção à luz. Os versos de Kisser mostram o Dante
do Sepultura observando as almas dos Penitentes Tardios – aqueles
que morreram antes de receber a extrema-unção – utuando ao
redor, pedindo orações dos vivos para ajudá-las a seguir em frente.
Um solo de violino melancólico e depressivo interrompe o peso
esmagador, talvez como uma expressão de arrependimento daqueles
que permanecerão presos no Purgatório. Mas o Dante do Sepultura
logo percebe que essas almas em particular não merecem qualquer
lamento, pois são os espíritos daqueles que usaram o amor como
uma porta de entrada para o pecado, e a música responde na mesma
moeda, voltando ao peso inicial.
Explorando mais profundamente o conceito de pecado
psicológico, a banda se lança em “Buried Words”. A faixa furiosa
abre com Andreas usando novamente o tremolo e a distorção pesada
de sua guitarra para imitar o som de fogo. O vocal de Derrick é
bruto, raivoso; suas palavras, cruéis ao assumirem o papel de vítima
em uma história de abuso. Esse personagem tenta enterrar as
palavras, enterrar o trauma causado pelas mãos de um padre que
usa o amor como uma desculpa para fazer o mal.
“Nuclear Seven” se desvia um pouco da história de Dante. A
música caminha a passos pesados, crescendo dinamicamente
enquanto Kisser liga tematicamente os sete terraços do Monte
Purgatório – cada um representando um dos sete pecados capitais –
às sete nações que (no momento da criação da música) tinham
desenvolvido armas nucleares. Sua mensagem de alerta é de
esperança, um apelo por mudança, no momento em que Dante
retorna e pisa na última trilha do Purgatório.
“Repeating the Horror”, com seu ritmo vagamente techno e
fraseados medievais, soa bem diferente do resto do álbum,
marcando não somente o movimento físico da história, mas também
uma progressão no caráter de Dante. Ele quer redenção, e Derrick
grita por ela também. Nós sempre temos a capacidade de mudar, ele
parece dizer, mas primeiro temos de olhar mais atentamente para os
horrores que de outra forma desejaríamos evitar. Nós devemos
primeiro olhar a verdade na cara antes que possamos ter esperança
de transformá-la. Devemos, primeiramente, ser honestos sobre
nossos erros, nossas fraquezas, nossas falhas, antes que possamos ter
esperança de transformar a nós mesmos.
A instrumental “Eunoé (Intro)” representa a passagem de Dante
do Purgatório ao Paraíso. Depois de lavar as memórias dos pecados
no rio Letes, os penitentes se banham nas águas do Eunoé para
fortalecer as memórias de todo o bem que zeram em vida. O
Sepultura se catapulta desse interlúdio frenético, dessa puri cação
desesperada, para o Paraíso Terrestre de “Crown and Miter”. Em um
gesto simbólico, Virgílio coroa Dante, declarando-o senhor de si
mesmo e de suas próprias ações. A mensagem do Sepultura é a
mesma: a jornada para a salvação é longa e dolorosa, mas com
compaixão, individualidade e crença em nós mesmos, todos
podemos alcançar o impossível.
Um breve interlúdio nal, o majestoso e ainda tenso nono
círculo do Paraíso, “Primium Mobile (Intro)” dá lugar a “Still
Flame”, música coescrita com André Moraes, que fecha o álbum.
Com uma espécie de canto gregoriano, tercinas repetitivas, cítaras,
cordas e teclados, a faixa alterna momentos de pura tranquilidade
com progressões de notas intensas e ansiosas, culminando com a
libertação nal de Derrick quando Dante se une a Deus.
A banda chamou o artista brasileiro Stephen “Calma”
Doitschino para desenhar a capa do álbum e a arte interna, uma
série de dez imagens baseadas em A divina comédia em seu estilo
único. O trabalho de Stephen, conhecido por suas ilustrações
coloridas atraentes ao olhar e com conotações religiosas, conferiu à
trilha sonora de Dante uma imagética perfeita – ao mesmo tempo
moderna e tradicional.
Em março e abril aconteceram dois eventos especiais. Em março,
a banda viajou a Dubai, uma cidade rica e altamente ocidentalizada
nos Emirados Árabes Unidos. Entre outras bandas, Sepultura,
Machine Head e os roqueiros britânicos do The Darkness estavam no
programa para a primeira edição do Desert Rock Festival. Como um
presente para as pessoas do público – que vieram de todo o Oriente
Médio para participar –, Robb Flynn (vocalista e guitarrista do
Machine Head) convidou Andreas Kisser ao palco com sua banda
para arregaçar na música “Creeping Death”, do Metallica.
O Sepultura voltou para casa e, no mês seguinte, fez um show
em São Paulo, que foi gravado para o lançamento de CD e DVD. Live
in São Paulo, o primeiro álbum ao vivo a ser o cialmente
sancionado pela banda, celebrava sua história desde os primórdios
até o presente. Entre os convidados, João Gordo, Alex Camargo
Kolesne, do Krisiun, o DJ Zé Gonzáles e o rapper B-Negão, e mais
uma vez Jairo se juntou à banda para tocar “Troops of Doom” e,
dessa vez, “Necromancer” também.
A presença recorrente de Guedz no palco do Sepultura fez muitos
fãs se perguntarem se a banda poderia voltar a tê-lo como membro
em tempo integral. Embora Derrick tocasse guitarra ao vivo em
algumas músicas aqui e ali, ele era um vocalista que precisava de
liberdade para se movimentar, sem estar con nado a um pedestal de
microfone.
“Houve um tempo em que até pensei sobre isso”, explicou
Andreas alguns anos mais tarde, “em falar com Jairo sobre fazer
alguma coisa juntos. Ele não estava pronto. Ele disse ‘Ah, não sei…
Eu estou fazendo umas coisas aí’, e então acabou não acontecendo.
Anos mais tarde, ele voltou e disse: ‘Eu estou pronto’, e então a
gente disse ‘Ah, não sei…’”, contou rindo. “O momento não bateu.
Mas ele é o único que faz sentido.”
Quando perguntado se realmente já tinha sido uma preocupação
séria ter um segundo guitarrista na equação, Andreas disse: “É algo
que vem e vai. Às vezes as pessoas falam sobre isso, às vezes as
pessoas esquecem. É apenas algo que a gente se sente confortável do
jeito que está. Há muito mais espaço para tocar”.
Ele acrescentou: “Essa coisa sobre colocar uma guitarra extra não
é uma coisa técnica. Você tem que colocar alguém na banda. Você
tem que colocar outra pessoa. É muito mais complicado. E colocar
alguém lá só para estar lá, tocando… não sei, não… não é legal.
Você realmente tem que representar as músicas do jeito que são
hoje. Não estamos tentando enganar ninguém. Tem muitas bandas
que usam duas guitarras em estúdio, e ao vivo eles são… o que
quiserem ser. Desde Black Sabbath, Van Halen e Pantera, tantas
bandas. Não é apenas porque a gente teve outro guitarrista antes
que necessariamente precisa de outro. Você tem que se sentir muito
confortável em ter alguém lá no palco e tocar junto e representar
algo muito maior do que a própria música. Então… a gente nunca
encontrou esse cara”.
Mas alguns meses antes do lançamento – em 14 de março – de
Dante xxi, que foi universalmente aclamado pela crítica como o
álbum mais forte do Sepultura da era Derrick Green, havia boatos de
dissidência nas leiras. Circularam rumores de que Igor não estava
feliz, que ele não vinha se divertindo nas turnês há muito tempo,
ainda que tivesse contribuído bastante em estúdio na composição e
gravação do álbum.
Em janeiro de 2006, Borivoj Krgin informou através de seu site,
Blabbermouth, que Igor tinha decidido deixar a banda e que, aliás,
estava sendo substituído pelo ex-baterista do Soul y, Roy Mayorga.
Igor, escrevendo para o site o cial do Sepultura, refutou a
notícia, a rmando que estava apenas dando um tempo. Ele havia
recentemente se casado após dois anos da separação de Monika e
tinha um lho a caminho. Queria passar um pouco de tempo em
casa, recarregar suas baterias, desfrutar de algum tempo livre com a
família. Ele con rmou que Roy iria realmente socar a bateria na
próxima turnê europeia, mas garantiu aos fãs que sua ausência era
apenas temporária.
Era difícil não ver os sinais.
A maioria dos rumores, nesse caso, era verdade. Igor, desde
2004, realmente não estava feliz fazendo turnês. Mas ele acreditava,
inicialmente, que se toda a banda entrasse em hiato por um tempo,
poderia ajudar na situação. Ele tinha até falado com Andreas sobre
buscar maneiras de injetar energia nova no Sepultura.
Mas com um álbum poderoso escondido em sua manga coletiva,
Andreas, Paulo e Derrick – e mesmo Igor, até certo ponto –
entendiam que não poderiam simplesmente descansar à sombra dos
louros. As primeiras semanas após o lançamento de um álbum eram
vitais, o número de unidades vendidas imediatamente após a
chegada às ruas muitas vezes determinava os orçamentos de turnê e
o nível de apoio nanceiro da gravadora. Para a subsistência do
Sepultura, eles sabiam, precisavam pegar a estrada, e precisavam
muito.
Não tinham tanto tempo para encontrar o substituto de Igor, por
isso Andreas, Paulo e Derrick cogitaram sobre uma lista de
bateristas que tinha tempo livre em sua agenda. Inicialmente,
queriam o velho amigo Vinnie Paul para a vaga, mas o assassinato
de seu irmão Darrell, durante um show em 2004, ainda era muito
recente, e ele não estava pronto para voltar para trás da bateria. Em
vez disso, concordaram quanto a Roy Mayorga, que não só estava
disponível, mas, tendo tocado com o Soul y recentemente, também
sabia um monte de material antigo.
Antes de partir para a Europa, Andreas reuniu-se com Igor e eles
concordaram em discutir suas opções novamente após o retorno do
Sepultura. Talvez Igor estivesse certo, talvez eles só precisassem de
um tempo. Eles vinham compondo, gravando e fazendo turnês há
vinte anos, com muito pouco tempo livre. Mesmo durante os
desanimados meses de 2002, a banda permaneceu relativamente
ocupada.
Eles lembraram a situação com Max vários anos antes, como as
di culdades haviam crescido como uma bola de neve até que
ninguém mais era capaz de controlá-las. Com a clareza do
crescimento e da maturidade, eles consideraram a possibilidade de
que os problemas com Max poderiam ter sido resolvidos se a banda
tivesse simplesmente saído de férias por um ano ou dois.
Porém, uma vez na estrada, o trio aceitou a realidade de sua
situação. No clima musical atual, uma banda como o Sepultura não
poderia sobreviver sem muito trabalho duro. Nessa época de
mudança, o download ilegal estava causando quedas vertiginosas na
vendas de disco. As próprias vendas do Sepultura estavam caindo,
mesmo com seus álbuns recebendo elogios cada vez mais fantásticos
da crítica. Como músicos pro ssionais, eles não podiam sustentar
esse hiato. E, mais do que isso, eles perceberam que, na verdade,
não queriam isso.
Pouco depois da turnê, Andreas tentou convencer Igor a car por
mais algum tempo, pelo menos até que o ciclo promocional de Dante
xxi acabasse. Quando Mayorga saiu para se juntar ao Stone Sour
como membro em tempo integral, a banda trouxe o mineiro Jean
Dolabella para ocupar a vaga na bateria, na esperança de que Igor
voltasse em breve.
Mas a mídia brasileira já estava se referindo a Dolabella como “o
novo baterista do Sepultura”, e, além de todo o resto, isso foi demais
para Igor. Em 12 de junho de 2006, Igor Cavalera seguiu os passos
do irmão e saiu o cialmente da banda, dizendo à imprensa no
Brasil: “Eu acredito que minha missão no Sepultura tenha chegado
ao m. Estou muito orgulhoso de tudo que zemos, mas eu sinto
que a formação atual do grupo já não faz jus às minhas expectativas
como músico e como pessoa”.
Monika re ete sobre isso, dizendo: “Durante alguns anos, eu
sempre dei força para o Igor continuar na banda depois que o Max
saiu, e, mesmo que ele diga ‘Eu estava cheio da banda, eu não quero
mais tocar com eles’, nunca senti isso. Sempre senti que ele queria
lutar, estar tocando feliz e fazendo turnê e tudo o mais”.
Andreas, Paulo e Derrick caram decepcionados com a
declaração, mas não muito surpresos. Andreas, em particular, tinha
sentido que o anúncio seria feito logo, embora ele tivesse esperança
de que Igor esperaria pelo menos até a banda terminar de promover
Dante xxi. Ele pensou que, nesse dia, talvez pudessem encerrar tudo
juntos e em grande estilo. Desde 1987, naquele primeiro ensaio em
Belo Horizonte, quando todos ao alcance do som podiam sentir a
química intensa entre Andreas e Igor, eles tinham sido como almas
gêmeas musicais. O guitarrista não poderia se imaginar fazendo
outro álbum do Sepultura sem Igor.
Então eles honraram seus contratos quanto aos shows pré-
con rmados e não zeram planos para além do último show. Em
uma série de entrevistas, um Andreas excepcionalmente enigmático
parecia sugerir que a banda poderia acabar em breve.
No entanto, uma vez rmemente entrincheirados na estrada,
tudo se encaixou novamente. Dolabella tinha talento e habilidade
para o trabalho, mas, além disso, também cava cheio de emoção e
todo sorridente no palco. Ele estava feliz por estar lá.
Igor tinha razão, meses antes, quando sugeriu que o Sepultura
precisava de uma injeção de energia nova.
A decisão de continuar causou reações violentas de determinado
tipo de “fãs”. Haters que tinham desistido da banda depois que Max
saiu, e mesmo alguns dos que não desistiram, exigiam que o
Sepultura parasse ou alterasse seu nome. Mas o fato é que ninguém
obrigou Max e Igor a sair. Eles saíram por vontade própria.
Em uma série de entrevistas após sua saída, Max deixou clara sua
crença: Andreas, Igor e Paulo deveriam aposentar o nome porque
não era mais a mesma “tribo”. Igor, quando solicitado a dar sua
opinião após sua própria saída, inicialmente declarou que escolheu
sair e, portanto, não tinha o direito de dizer o que seria o certo a
fazer. Mais tarde, mudou sua postura, concordando com Max.
Segundo eles, sem os irmãos Cavalera, não deveria haver Sepultura.
Um jornal do Rio até citou Igor, dizendo que ele e os outros três
tinham concordado em enterrar o nome do Sepultura
de nitivamente após as turnês de Dante xxi, apesar de Paulo ter
contestado a alegação imediatamente.
Em um comentário interessante, Tuka Quinelli costuma contar
uma história que Max uma vez revelou a ela. Ao procurar por um
nome para sua nova banda em 1997, ele abriu um dicionário de
português em uma página aleatória, e a primeira palavra que viu foi
sepultura. Na verdade, os críticos mais exaltados da formação pós-
Cavalera se perguntavam exatamente por que Max e Igor não
pegaram o nome de volta. A nal, eles tinham começado a banda.
Nada no mundo da música é tão simples. Na década de 1990,
Max, Igor, Andreas e Paulo – aos olhos do direito de marcas –
zeram o que era conhecido como uma parceria geral e, assim,
todos eram igualmente donos do nome. Isso não signi ca que cada
um possuía um pedaço do nome – perfeitos 25% –, isso signi ca que
cada um possuía 100% do nome, por mais matematicamente
confuso que possa parecer. Em teoria, quando Max saiu, não havia
coisa alguma que o impedisse de chamar sua nova banda de
Sepultura.
No entanto, se isso tivesse ocorrido, teria sido complicado e caro.
Nessa realidade alternativa, com gravadoras e promotores querendo
investir no “verdadeiro” Sepultura, o caso teria provavelmente
chegado aos tribunais, cabendo ao juiz decidir. Uma sentença desse
tipo geralmente depende de uma série de fatores, tais como quem
era o principal compositor e quem era mais nitidamente identi cado
como sendo “a cara” da banda.
Seja qual for o caso, a parceria legal do Sepultura – consistindo
de Andreas Kisser, Paulo Xisto Pinto Jr., Max Cavalera e Igor
Cavalera – foi dissolvida em 1998, com o lançamento de Against, e
Max assinou o cialmente um documento desistindo de seu direito
sobre o nome pouco depois. Em um movimento proativo, o
Sepultura, então, registrou o nome como uma corporação,
protegendo-o no caso de quaisquer divergências futuras.
Mas, conversando com Nicolás Jara Miranda anos depois,
Andreas explicou: “Nós não somos escravos, é o que insisto em
dizer, não somos escravos de um nome, de uma época, de um ano
ou de um tempo. Recriamos isso todos os dias e construímos isso
todos os dias para que possa estar vivo. Os fãs que respeitam esse
fato permanecem com a gente. É claro que eles não têm que gostar
de tudo, mas eles respeitam o que o Sepultura está fazendo. De certa
forma, posso dizer que é o que eu espero: respeito, mesmo se não
concordarem com o que estamos fazendo”.

JEAN TURRER DOLABELLA, TAMBÉM mineiro, foi abençoado, como seus


companheiros do Sepultura, por ter sido criado em uma família
musical. Em 14 de maio de 1978, ele nasceu em Uberaba, lho de
pais que tocavam de tudo, de guitarra e piano a acordeão (assim
como a mãe de Kisser). Desde muito jovem, o menino só tinha
aspirações de ser músico e nada mais, tocando bateria e guitarra e, o
que não é surpresa, ouvindo Sepultura.
“Ouvi o Sepultura pela primeira vez quando tinha 8 ou 10 anos”,
ele disse, “e eu criei muito respeito pela banda, pois me inspiravam
como músico, como ocorreu com um monte de gente ao redor do
mundo, e para além da música, eles me inspiraram a fazer o que
pudesse, o que quisesse. Levando em consideração que não é fácil
para um garoto no Brasil, como no caso das pessoas que começaram
isso na época, sair e tocar em um país diferente. Eles foram a
primeira banda a fazer isso, então eles meio que abriram todas as
portas. Eu fui muito in uenciado por essa atitude: siga seu sonho,
faça o que você realmente acha que é bom. A vida pode ser música,
a música pode ser vida!”
Apesar dessa in uência e do fato de que o primeiro “grande”
concerto a que assistiu foi um show do Sepultura em Uberlândia, em
1991, na turnê de Arise (quando teve a sorte de ir aos bastidores,
quinze anos antes de voltar de novo ao backstage, agora como
baterista em vez de apenas um fã), Jean cresceu e se tornou um
músico completo, nunca querendo se sentir preso a um gênero
musical ou estilo especí co. Ele se inspirou muito no Van Halen, um
grupo que escutava de forma meio obsessiva, bem como em John
Bonham, baterista do Led Zeppelin, e Mike Bordin, do Faith No
More.
Aos 15 anos, ele já tocava bateria pro ssionalmente.
Alguns anos mais tarde, Dolabella formou sua primeira banda,
chamada Diesel, com seu irmão Ian. Eles gravaram seu álbum de
estreia homônimo com Stanley Soares, um homem que viria a
desempenhar um papel importante no destino de Dolabella.
O Diesel era uma banda promissora, ganhando força
rapidamente no cenário underground de Belo Horizonte com seus
grooves de heavy rock e seu apelo mainstream– um som
drasticamente diferente em relação ao do Sepultura. No início de
2000, eles se encaixavam perfeitamente com bandas como
Silverchair e Red Hot Chili Peppers, e, de fato, o Diesel tocou com as
duas no Rock In Rio III, depois de vencer um concurso de bandas.
Como seus primos mineiros mais pesados do Sepultura, a banda
entendeu as limitações pro ssionais de tentar “vencer” em Belo
Horizonte e se mudou para Los Angeles, Califórnia, um ninho de
música rock. Mudaram o nome para Udora, após supostas disputas
legais com a marca norte-americana de jeans Diesel, e foram
rapidamente arrebatados por uma gravadora.
Mas a indústria musical é inconstante. Pouco depois que o álbum
Liberty Square, do Udora, foi lançado, o selo se dissolveu na RCA,
comprado pela gigante do setor. A RCA queria um single que o
Udora não tinha, e a banda foi abandonada tão rapidamente quanto
tinha sido contratada. Mas Dolabella, ao menos, tinha uma bolsa de
estudos na prestigiada Music Academy de Los Angeles pela qual
voltar. Depois de se formar, ele deixou o Udora e retornou a Belo
Horizonte.
Andreas Kisser entrou em contato com ele alguns meses depois
de seu retorno para casa. Igor, segundo Kisser, não estava mais
interessado em turnês, e o Sepultura não queria cancelar um monte
de apresentações que já haviam sido programadas. Dolabella
ensaiou uma lista de músicas retirada de setlists de shows recentes,
fez o teste, e, alguns dias depois, Paulo ligou para ele e tornou
o cial.
Aconteceu que, ao conversar sobre suas opções depois da saída
de Roy Mayorga, Stanley Soares contou a Andreas sobre um
baterista incrível, com quem havia trabalhado, chamado Jean
Dolabella.
EMBORA CADA UM DOS irmãos Cavalera tenha saído do Sepultura por
escolha, vale a pena mencionar sua reunião, em 2007, porque tem
impacto nesta história em diferentes níveis. Após dez anos de
silêncio entre os dois, dez anos em que sua mãe Vânia desejou
apenas que seus lhos deixassem o passado de lado e se tornassem
irmãos novamente, dez anos de luta do baterista por manter sua
decisão de permanecer no Sepultura e não seguir Max, Igor
nalmente pegou o telefone e ligou para Gloria. Eles conversaram
por algum tempo, e, quando Gloria passou o telefone para o marido,
Max quase morreu de susto.
Em pouco tempo, Max e Igor (que agora escrevia seu nome como
Iggor por achar que tinha um visual melhor) formaram uma banda
chamada Cavalera Conspiracy, gravando um álbum que contou com
membros do Gojira, Soul y e Pantera. Um punhado de turnês curtas
precedeu um segundo álbum, e, quando a banda voltou ao Brasil, os
irmãos se reuniram a Jairo Guedz para tocar “Troops of Doom”. Era
um momento especial – três quartos da primeira formação
verdadeira do Sepultura no palco, juntos novamente, e na mesma
cidade onde tudo tinha começado quase trinta anos antes. Depois,
Max e Igor voltaram o foco para seus interesses principais – Max
para o Soul y, Igor para o Mixhell (um projeto de fusão de
percussão e dança ao vivo que começara com sua esposa Laima) –,
em paz e contentes com seu relacionamento renovado.
O Cavalera Conspiracy, no entanto, parecia inspirar certa
nostalgia em Max. Quase ao mesmo tempo, depois de unir forças
com Igor, Max começou a falar sobre uma possível reunião com
Andreas e Paulo também. Igor não estava interessado. A única
reunião com que se importava – a reunião familiar com seu irmão –
já tinha acontecido.
O Sepultura, como Igor, não tinha interesse em voltar ao
passado. Com Jean Dolabella, tinham encontrado um novo baterista
entusiasmado, cuja formação adicionava um groove de jazz ao metal
cheio de ri s característico da banda. Mais uma vez, como sempre,
seu som estava evoluindo, mudando.
Jean embarcou nessa tradição de evolução imediatamente e, de
fato, era atraído por ela. “O Sepultura nunca foi a ‘mesma banda’”,
disse ele, oferecendo a perspectiva única de alguém que, como
Derrick, tinha acompanhado a música primeiro pelo lado de fora e,
em seguida, pelo de dentro. “Quando você ouve Beneath the Remains
e depois Arise, ou Arise e então Chaos A.D., ou Chaos A.D. e Roots,
você percebe que o Sepultura foi sempre mudando –
independentemente dos membros, gravadora ou qualquer outra
coisa. A banda está sempre em busca de renovação, tentando fazer
algo novo ou estiloso. Nunca vai ser uma banda que continua
fazendo e refazendo as mesmas coisas, e é estranho que a gente
ainda pense assim apesar de todas as queixas e pressões. Por
exemplo, pessoas que adoram Arise acham que a banda deveria se
manter naquele estilo, uma espécie de thrash ou como quiser
chamar. E, aí, as pessoas que gostam de Chaos A.D. acham que
devemos car naquele período, e as pessoas interessadas em death
metal querem que o Sepultura só toque isso pelo resto da vida.”
“Existem algumas bandas que continuam fazendo a mesma coisa,
e eu respeito isso”, continuou Jean. “Eu acho que é legal e não sou
contra. Estou apenas dizendo que o Sepultura evolui e está sempre
olhando para o futuro, fazendo coisas novas, trazendo elementos
diferentes, culturas diferentes e ritmos diferentes.”
Fazia quase dez anos desde a última alteração de um membro.
Durante aquele ano complicado entre a saída de Max e a entrada de
Derrick, o Sepultura teve que reaprender a compor. E, quando
incorporaram Derrick, foram forçados a fazê-lo novamente. Agora,
com Jean entrando no bando, foi muito mais fácil a adaptação a
uma nova personalidade musical, pois já tinham feito isso antes.
Andreas explicou a facilidade de transição, dizendo: “Todo
mundo que veio trouxe algo de novo, e é disso que a gente
precisava. Quero dizer, o Sepultura não é uma banda de músicos
contratados. Se você está na banda, você está na banda. Você tem
que contribuir, expressar suas opiniões, colocar seu estilo, é claro,
respeitando o passado, mas sem copiá-lo, sem tentar ser outra
pessoa, mas sim sendo você mesmo. Então, todo o resto é
consequência dessa atitude. Quanto você vai compor? Quanto você
vai acrescentar? Isso é outra história. Mas o espírito está lá. Se você
está dentro, então você contribui. Não há ninguém para lhe dizer o
que fazer – isso não é o Sepultura. Todo mundo que veio levou seu
tempo para se adaptar a uma nova situação, mas funcionou muito
bem. Você tem que respeitar esse tempo”.
Infelizmente para o Sepultura, como para a maioria dos outros
músicos pro ssionais, as vendas totais de álbuns vinham declinando
constantemente desde a proliferação do Napster, em 2001. Embora
fãs e críticos elogiassem Dante xxi por sua ousadia, coragem e
qualidade, o disco teve o pior desempenho de venda do Sepultura
até hoje. O compartilhamento de arquivos e os sites peer to peer
tornavam muito fácil para qualquer um em qualquer lugar baixar
músicas sempre que quisesse. E de graça. Sem entrar no atoleiro
moral da propriedade intelectual e da questão do certo e do errado,
podemos dizer, sem dúvida, que a mudança nos meios de
disseminação de conteúdo apresentou aspectos positivos e
negativos. Por um lado, deu aos músicos acesso instantâneo a um
público global. Por outro lado, cou mais difícil para as bandas
sobreviverem – especialmente para as bandas de heavy metal.
Em vez de adotar essa tecnologia desde cedo e encontrar uma
maneira de trabalhar com ela, as gravadoras tentaram lutar contra a
perda de lucros aumentando o preço dos CDs. Isso, evidentemente,
teve o efeito oposto.
Paulo resumiu as frustrações comuns de um músico contratado,
dizendo que as gravadoras “são todas iguais. Elas eram como
bancos, agora tão todas fodidas. É bom, hoje em dia, porque, com a
internet e todas essas coisas, uma pessoa é capaz de procurar e
encontrar diferentes tipos de música de maneira bem fácil. Mas eu
acho que deveria haver um reconhecimento nal para o artista, que
ele/ela receba um pouco por download. Hoje, basicamente, a sua
música é de graça. Poucas pessoas compram seu produto. A maioria
simplesmente faz download. Eu penso que a gente está no meio de
uma grande transição. Ninguém sabe realmente o que está
acontecendo ou que direção seguir”.
“Enquanto as turnês forem bem e a vida continuar”, conclui ele,
“para mim, isso é o mais importante. Um disco registra um
momento da sua vida, mas o momento essencial é quando você está
no palco. O poder do Sepultura é a competência na hora de tocar ao
vivo.”
OS ÚLTIMOS DEZ ANOS haviam sido uma luta constante para a banda,
com muitos avanços e alguns retrocessos. Depois de tanto tempo,
porém, tudo parecia estável e promissor. Muitos, que antes
duvidavam, agora começavam a aceitar que a banda tinha, há
muito, saído da sombra de suas encarnações anteriores. Mas os
integrantes não renegavam aqueles anos nem quaisquer outros. Em
vez disso, os aceitavam de braços abertos, sempre equilibrando em
seus sets ao vivo uma saudável mistura de músicas antigas e novas.
Eles respeitavam a história do Sepultura, suas raízes, infância e
jornada de desenvolvimento, mas se recusavam a ser uma banda que
vive do passado.
Em agosto de 2006, a música deles chegou às telas de cinema em
Talladega Nights: The Ballad of Ricky Bobby [no Brasil, Ricky Bobby –
A toda velocidade], estrelando o comediante Will Ferrell, ex-
integrante do Saturday Night Live, com trechos de “Desperate Cry” e
“Inner Self” aparecendo em pontos de destaque do lme. A
exposição inesperada causou um aumento igualmente inesperado
nas vendas de discos e nos downloads. Um mês depois, ganharam
dois prêmios no MTV Video Music Awards Brasil com o clipe de
“Convicted in Life”. O vídeo, que fora lmado em fevereiro e
marcava a última aparição de Igor com o grupo que cofundou, levou
os prêmios de Melhor Direção e Melhor Edição. Com imagens
explícitas de frigorí cos, abate de animais, desmatamento e suicídio
e efeitos especiais mostrando os integrantes da banda perdendo
partes do corpo enquanto tocam, “Convicted in Life” retoma a
mensagem de Dante sobre a importância das escolhas e sobre como
uma escolha errada em vida pode nos condenar na morte.
Infelizmente, uma turnê nos Estados Unidos com Sworn Enemy,
Diecast e Suicide Silence, prevista para começar em novembro de
2006, foi adiada, já que problemas com os vistos impediram o
Sepultura de chegar ao país a tempo. Se havia uma coisa que
odiavam mais do que qualquer outra, era cancelar um show. Mas
uma vez lá e no embalo da estrada, cou evidente que não iriam se
contentar em viver só do sucesso do passado. Das cerca de duas
horas de duração das apresentaçõess, quase metade apresentava
material de Against e de discos posteriores. As clássicas obrigatórias,
naturalmente, eram faixas como “Territory”, “Arise” e, claro, “Roots
Bloody Roots”.
No retorno à Europa, no início de 2007, o Sepultura mudou seus
sets ainda mais, revezando-se em diferentes músicas antigas, mas
nunca sacri cando tempo de palco para tocar material menos
recente. Na verdade, conforme os shows se tornaram mais longos, o
equilíbrio entre músicas antigas e novas passou a ser quase perfeito.
Cortes mais lamentados como “Boycott” e “Activist” foram revividos
e reincorporados aos shows. O público dos shows era sempre
grande, ainda que as vendas de álbuns não fossem mais tão
numerosas quanto costumavam ser.
A turnê europeia foi dividida em duas etapas, com datas na
América do Sul e México encaixadas entre as duas. Andreas
permanecia ativo sempre que estava no Brasil e reprisou seu papel
como compositor de trilhas sonoras, dessa vez para Bellini e o
demônio, além de trabalhar em um álbum solo, agora acompanhado
pelo talento de Jean Dolabella, projeto que levaria cinco anos para
concluir.
A segunda etapa da jornada pela Europa em 2007 levou-os a
participar dos festivais de verão tradicionais, bem como dos nada
tradicionais. Sempre procurando expandir seus horizontes culturais,
o Sepultura participou do Lez’arts Schenique Festival, em Sélestat,
França, que integrava música e conscientização sobre causas
mundiais. A cada ano o tema era diferente, e em 2007 o foco foi o
movimento de independência do Tibete. Nesse evento especial, a
banda se apresentou com o cantor tibetano Loten Namling, que
acrescentou melodias e cantos tradicionais de sua cultura à música
visceral da banda.
Além de ir às localidades-padrão em toda a Europa, continuaram
em sua determinação de tocar em todo e qualquer lugar que os
recebesse. No segundo semestre do ano, zeram shows em áreas
afastadas, como Letônia, Lituânia, Rússia e Estônia.
E, mesmo nesse ponto da carreira, ainda era possível viajar a
países nos quais nunca tinham tocado. Em outubro, o Sepultura
desembarcou na Índia pela primeira vez, com shows marcados para
detonar em Délhi, Shillong e Bangalore.
É interessante notar que mesmo viajantes altamente experientes
como eles ainda passam por choques culturais de tempos em
tempos, como explicou Andreas em uma matéria publicada no
Brasil. A Índia não tinha leis de trânsito, e vacas, cães e galinhas
vagavam livremente pelas ruas. Próximo ao Taj Mahal, encantadores
de serpente e crianças dançando com macacos em coleiras
imploravam por trocados.
Embora os shows tenham sido detonantes, as condições nem
sempre eram ideais. Em Shillong, por exemplo, a banda tocou em
um palco amarrado com barbante e tecido, com os expostos e
cabos espalhados a esmo. Eles tiveram que encerrar o set mais cedo,
não por causa da construção de má qualidade, mas porque Jean foi
vítima de intoxicação alimentar, pois todos os condimentos usados
nos bastidores estavam com a validade vencida havia anos.
Making of de “A-Lex I”, com Alexey Kurkdjian.

Bangalore, a terceira maior cidade do país e a mais moderna


dentre as que guravam na miniturnê do Sepultura, não era menos
caótica, com tráfego e congestionamento em pé de igualdade com
São Paulo. Mas não importavam as circunstâncias, estavam em
êxtase por tocar para os raivosos fãs indianos. Derrick Green,
emocionado, falou a eles em cada cidade, elogiando-os com muito
respeito e grato pelas memórias que ele e a banda levariam para
casa.
E o ano de 2008 trouxe outro acontecimento inédito: o Sepultura
se tornou uma das poucas atrações internacionais a realizar um
show em Cuba desde o estabelecimento do regime comunista de
Fidel Castro em 1965.
A Tribuna Anti-Imperialista José Martí, em Havana, recebeu a
banda em julho, onde também teve a oportunidade de prestar suas
homenagens no monumento a Che Guevara. Para os brasileiros,
tocar em Cuba foi um daqueles raros momentos de a rmação da
vida, considerando as semelhanças entre a abordagem da censura no
país e a da ditadura militar no Brasil. Não era uma experiência sem
importância para Derrick Green também; desde o embargo dos
Estados Unidos contra o país na década de 1960, os americanos
eram proibidos de gastar dinheiro em Cuba. Supondo-se que um
viajante em visita teria que pagar por algo, seja um hotel ou até
mesmo uma refeição, uma visita de mais de um dia estava fora de
questão para os americanos.
Mas a oportunidade de tocar em Cuba veio com uma condição.
Eles deveriam se apresentar gratuitamente, assim como zera o
Audioslave em 2005 e como faziam todos os artistas visitantes.
Mais de 50 mil cubanos testemunharam o espetáculo que é o
show do Sepultura – e amaram cada minuto. Respeitar a condição
valeu a pena.
Ainda assim, a banda não viajou muito naquele ano. Uma crise
econômica mundial mostrava seus efeitos, e os promotores
enfrentavam di culdades em marcar shows porque o público estava
sendo mais cuidadoso com seu dinheiro. E, apesar de que teria sido
compreensível dar uma pausa prolongada após o ciclo de turnês
Dante xxi, como planejado originalmente com Igor, preferiram
aproveitar o impulso novo que tinham ganhado ao tocar com Jean.
Reuniram-se após um período curto de férias (durante o qual
Derrick se juntara ao Musica Diablo, uma banda violentamente
thrash liderada por André Alves, do Nitrominds) e começaram a
triar uma in nidade de ri s e ideias que se desenvolveram durante
passagens de som na estrada.
“A gente grava tudo”, disse Andreas. “Quero dizer, algumas
músicas de A-Lex surgiram quando a gente estava em turnê, a
primeira com Jean. A gente estava fazendo a veri cação de som,
brincando com ri s e gravamos cada pequena parte aqui e ali.
Depois a gente escutou tudo e desenvolveu as músicas mais tarde. A
gente compõe o tempo todo e mantém a gravação para qualquer
situação que precisar.”
As sessões de Dante tinham sido uma experiência tão agradável,
desa adora e ao mesmo tempo inspiradora que mais uma vez
decidiram compor a trilha sonora de um livro, agora um clássico
literário que realmente haviam considerado fazer alguns poucos
anos antes: Laranja mecânica, de Anthony Burgess.
Quando a banda nalmente conseguiu entrar em estúdio para
ensaiar, o álbum ganhou vida em cerca de três meses. A
espontaneidade representava uma metáfora apropriada para o
imediatismo do livro.
“No início”, disse Derrick, “a parte da composição é uma espécie
de jam no estúdio, só criando coisas. Eu trago meu violão, toco
alguns ri s que eu possa ter, e, em seguida, o Andreas pega dali e
elabora mais, e a gente discute se deve ser mais rápido ou mais
lento. É muito aberto. E o padrão vocal também aparece no
momento em que estamos compondo. É simplesmente o que vem à
minha cabeça ouvindo a música pela primeira vez.”
Enquanto realizava esse projeto, embora não da mesma
magnitude que Dante, Derrick encarou a composição de uma forma
similar. Em vez de simplesmente analisar Laranja mecânica,
mergulhou mais fundo na temática da história lendo sobre Anthony
Burgess, pesquisando com a nco sobre o porquê de o autor ter
desenvolvido a história da maneira que zera. Sem Igor na banda,
Derrick e Andreas passaram a cuidar de todas as letras, então se
reuniam e compartilhavam suas ideias, discutindo os temas que
abordariam e como o fariam. Isso era essencial para garantir que
não cantariam sobre os mesmos assuntos seguidas vezes.
“É muito mais fácil quando você tem um conceito pronto”,
explicou ele, “porque aí você pode realmente dividir a coisa. Foi
assim que a gente fez com o livro: ele foi dividido em quatro partes
diferentes, por isso foi mais fácil criar as letras, as partes do baixo,
as da bateria e algumas outras coisas. Bem no início do álbum, por
exemplo, a gente pensou que devia ter músicas mais violentas, mais
agressivas, já que esse era o estado de espírito de Alex – pelo menos
nesse grupo inicial de canções. A segunda parte mostra um aspecto
mais restritivo daquilo que o Estado está tentando impingir a ele,
um determinado tratamento a m de que se torne uma pessoa boa,
diluindo assim seu livre-arbítrio. E, então, a terceira parte é
principalmente a vingança, e todas as coisas ruins que Alex fez
voltam para assombrá-lo. E a quarta, a reconciliação por recuperar
seu livre-arbítrio e perceber que não era daquela maneira que queria
viver.”
O objetivo era semelhante ao de Dante: espelhar no livro os
eventos e situações dos dias modernos. Como qualquer boa obra de
literatura, sua história é atemporal e pode ser aplicada a qualquer
época.
E, como na maioria dos casos de trabalhos criativos de cção, a
ideia para o livro nasceu de duas ideias não relacionadas que foram
amarradas para formar algo novo e original.
Burgess tomou emprestada uma velha expressão popular
cockney[1] – as queer as a clockwork orange [estranho como uma
laranja mecânica] – e a juntou ao conceito de terapia de aversão.
Em 1961, quando o autor começou a escrever o livro, o governo
estava considerando seriamente a terapia de aversão como um meio
para eliminar o impulso criminal. O resultado de tal lavagem
cerebral era o que Burgess considerava uma “laranja mecânica”, isto
é, um homem que parece vivo e orgânico por fora, mas na verdade é
mecânico como um relógio ou uma máquina por dentro. A capa de
A-Lex, um emaranhado de pedaços de esculturas de Kris Kuksi –
montado por Ulisses Razaboni, Mário Níveo, Rodrigo Almeida e
Marco Piza –, fortalece essa ideia, apresentando uma imagem do
que parece ser o funcionamento interno de um relógio, só que
construído com ossos e partes do corpo em vez de metal.
No livro, o protagonista, que também funciona como
antagonista, é um jovem chamado Alex. Ele e seus amigos, seus
droogs, são consumidos por impulsos violentos, falando em sua
própria gíria, chamada Nadsat, baseada no russo. A linguagem é
importante dentro da construção geral do livro, assim como na
cultura, unindo esses droogs em suas atividades de gangue. Mesmo o
nome do personagem não é por acaso: em latim, o termo a-lex,
como o título do álbum do Sepultura, pode signi car “sem lei”.
Durante uma de suas fúrias noturnas, Alex e seus droogs invadem
uma casa de campo, espancando o homem que vive lá e forçando-o
a assistir enquanto estupram brutalmente sua esposa. Mas Alex é
capturado pela polícia e condenado a catorze anos de prisão.
Durante esse tempo, depois de matar outro preso, ele recebe a
terapia de aversão – técnica de Ludovico – em uma tentativa de
apagar esses impulsos. O tratamento dado pelo Estado consiste em
Alex assistir a lmes sádicos enquanto ingere medicamentos que o
deixam violentamente doente. Sua crença é a de que, ao longo do
tempo, até mesmo pensar em violência deixará Alex sicamente
doente.
Mas os impulsos não podem ser eliminados por essa terapia,
apenas enterrados. O Estado está tratando os sintomas, não a causa.
E mais uma vez, como em Dante, os versos contam a história do
personagem, e a música re ete seu estado de espírito. A abordagem
de jam session solta e rápida para a composição e a estrutura da
música serviram como uma metáfora perfeita para a construção
mental de Alex.
A estruturação do álbum, porém, foi muito bem organizada,
como Derrick havia mencionado. Quatro interlúdios instrumentais
estrategicamente colocados separam as seções de A-Lex que lidam
com seções especí cas do livro, de forma semelhante ao layout
musical de Dante xxi. Esses interlúdios permitem ao ouvinte a fácil
transição para o “capítulo” seguinte do álbum, por assim dizer.
As variações lentas e ascendentes de “A-Lex I” crescem rumo à
ritmicamente vertiginosa “Moloko Mesto”, uma das faixas mais
rápidas que a banda zera nos últimos anos. Com o primeiro verso
escrito na linguagem dos droogs, o título – moloko signi ca “leite”, e
mesto signi ca “lugar” – refere-se a uma bebida alucinógena à base
de leite que Alex e seus amigos bebem em preparação para o que
denominaram “ultraviolência”. E ultraviolenta é uma metáfora
apropriada para a natureza implacável da música. Derrick grita
sobre as injustiças do homem, do abuso de drogas ilegais e
prescritas, de como o sistema defeituoso gerou violência em seus
cidadãos. Intencional ou não, a declaração traça um paralelo
interessante com a situação da banda no Brasil durante os anos
1980 e início dos 1990, quando defendiam a natureza furiosa de sua
música diante das críticas da mídia.
“Filthy Rot”, uma música pulsante e viciante com tendências
rítmicas, é trabalhada basicamente com um ri e apenas algumas
notas ao longo da música. Ela bate, soca e soa exatamente como a
debulhante briga de gangues que pretendia simbolizar. O refrão
tribal e entoado faz referência aos droogs e a sua anarquia contra os
costumes: ao ouvirem um mendigo cantando um velho hino de
guerra, espancam-no quase até a morte por não suportarem o Estado
ou quem o apoia. Poderia espelhar os Estados Unidos ou algum
outro país belicista cujos cidadãos cuspiram e bateram nos próprios
soldados depois que voltaram de mais uma guerra impopular?
O primeiro single do álbum, “We’ve Lost You!”, ganhou um
vídeo icônico de André Moraes e uma estreia ao vivo em 2008 no
Latin Grammy Awards, no qual o Sepultura precedeu sua
apresentação com uma versão de “Garota de Ipanema”, de Tom
Jobim. A introdução com um toque clássico explode em um ri
percussivo que ressoa pesado e deprimente na cabeça do ouvinte.
Alex parece lutar para equilibrar sua intensa valorização da beleza
com sua insaciável sede de violência.
A sede vence.
O clipe, por outro lado, desvia-se um pouco do livro, muito
embora adote bastante de sua imagética. Vemos um jovem Alex,
suas inclinações ultraviolentas em desenvolvimento, bebendo no
Milkbar, testemunhando um homem atacar uma mulher. Alex
espanca o homem até a morte, pisando nele com violência até deixá-
lo completamente ensanguentado, antes de arrastá-lo para o mato e
queimar seu corpo. O tema é diferente em relação ao livro de
Burgess, em que Alex é um sociopata completo que não tem
qualquer senso moral de certo ou errado. No vídeo do Sepultura,
entretanto, ele está mais para um jovem – embora extremo –
justiceiro.
Voltando à mensagem de Burgess, “What I Do!” (que mais tarde
ganhou um clipe “ao vivo”) é o som de Alex aceitando a natureza do
seu ser, fazendo o que faz simplesmente pelo prazer primitivo da
coisa. Embora os versos tratem diretamente do estado de ser do
personagem, também servem como comentário social – como
zeram no livro, mantendo um duplo signi cado – atestando a
natureza impetuosa, um sentimento de direito que parece correr
desenfreado na juventude nos dias de hoje.
Mas Alex, nas primeiras páginas de Laranja mecânica, encontra
momentos de paz, momentos de alívio de seus impulsos, e talvez até
remorso por suas ações, ao ouvir seu amado Beethoven. A música é
sua salvação. Há uma comparação interessante a ser feita aqui
também, quando consideramos a semelhança com adolescentes fãs
de heavy metal, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, que
extravasam sua agressividade através da música.
“A-lex II”, o primeiro interlúdio, começa com um punhado
psicodélico de sons. Alex foi capturado pela polícia, condenado pelo
Estado. Pode-se imaginá-lo sendo amarrado a uma mesa e
conduzido a um centro de tratamento conforme a contida seção
instrumental segue tocando.
Inicialmente, ele resiste ao tratamento. Em algum nível, Alex
entende que o Estado não tem o direito moral de roubar sua
liberdade de escolha. Eles o estão transformando em uma máquina,
em uma laranja mecânica, um homem que funciona de forma
pací ca só porque foi condicionado a isso. Como mencionado
anteriormente, estão tratando os sintomas da sua doença, não a
causa.

Making of de “A-Lex II”.

“The Treatment”, como o Sepultura a apresenta, é uma canção


tensa e espinhosa tocando dentro da mente de Alex enquanto seu
sistema rejeita e ao mesmo tempo aceita a terapia de aversão de
Ludovico. Derrick absorve a confusão do personagem, sua psicose,
enquanto ele se torna distante – separado – de seu senso de
individualidade.
“Metamorphosis” começa. Com uma introdução lenta e sinistra,
o Sepultura mantém o ouvinte dentro das emoções de Alex enquanto
ele lamenta a perda de sua humanidade. A faixa é naturalmente
mais reservada do que as anteriores a “The Treatment”, e, com
“Sadistic Values”, esse padrão continua à medida que Alex se
esconde ainda mais em si mesmo. Ele entende que, em algum lugar
dentro dele, essas tendências ultraviolentas ainda existem. Sobre
guitarras limpas e rufos de caixa, a voz harmonizada de Derrick
deixa escapar um sentimento de derrota. Na segunda metade da
canção, retornam a distorção, as guitarras pesadas e a bateria de
dois bumbos, e Derrick rosna forte ao lamentar esses valores sádicos
que continuam a assombrar Alex.
Durante as duas curtas faixas seguintes, “Forceful Behavior” e
“Conform” (essa última construída sobre um ri que traz “Take My
Scars”, do Machine Head, à mente), sentimos a ansiedade crescer
enquanto Alex luta desesperadamente contra um ideal que o Estado
está tentando impingir a ele. Em menos de cinco minutos, as duas
músicas falam sobre os perigos do controle, da conformidade em
grande escala a um conceito pre-de nido e predeterminado do que é
certo. Com Laranja mecânica, como observou a revista The New
Yorker, a mensagem de Burgess é a seguinte: é melhor ser “mau por
escolha própria do que bom por meio de uma lavagem cerebral
cientí ca”.
Making of de “A-Lex III”.

“A-lex III” marca a libertação do personagem da prisão depois de


dois anos. Ele é totalmente inofensivo agora, depois do tratamento,
quase como uma criança, incapaz de cometer qualquer ato violento,
mesmo que seja para se defender dos atos violentos dos outros. Os
versos de “The Experiment” são apresentados a partir de um ponto
de vista em terceira pessoa, a opinião de alguém de fora sobre a
terapia do Estado e como ela afetou Alex e outros como ele. Mas é
também um aviso. A velocidade de “The Experiment” aumenta, e
Kisser faz sons de sirene com sua guitarra quando Alex descobre que
dois de seus antigos droogs agora são policiais e buscam vingança
por experiências passadas. Os policiais o raptam, levam-no para o
campo e o espancam violentamente.
Com as linhas de baixo pulsantes da abertura de “Strike”, o
ouvinte sente o medo e a preocupação do personagem aumentando
enquanto corre para procurar abrigo em uma casa de campo
próxima. E não é uma casa qualquer, é a casa de F. Alexander, a
casa que Alex e seus droogs tinham invadido no início do livro. A
casa da mulher que estupraram.
Mas o homem não o reconhece. Ao ouvir a história da terapia de
aversão que Alex sofrera, F. Alexander e seus compatriotas – um
grupo de dissidentes políticos – procuram usar o garoto e sua
situação como uma ferramenta para atacar o Estado.
Alex se recusa a participar. Ele ataca verbalmente os homens,
voltando a usar sua antiga linguagem Nadsat, e só então F.
Alexander o reconhece. Apesar de “Enough Said” ter só um minuto e
meio de duração e conter apenas dois versos, a canção ruge com
fúria e vingança.
Os homens trancam Alex em um sótão. E F. Alexander sabe
exatamente como dar o troco.
Ele percebera que a técnica de Ludovico tivera um efeito
inesperado sobre Alex. Um dos lmes aos quais Alex tinha sido
forçado a assistir durante a terapia de aversão tinha seu amado
Beethoven na trilha sonora. Como resultado, ele fora despojado até
mesmo do prazer de ouvir sua música favorita.
A importância desse tema no livro permitiu ao Sepultura
experimentar novamente com algo que nunca tinha feito antes.
Andreas e Jean trabalharam com Alexey Kurkdjian, regente da
Sphaera Rock Orchestra, de São Paulo, para arranjar uma versão em
estilo metal e orquestral da “9a Sinfonia” de Beethoven, que
chamaram de “Ludwig Van”.
No livro, após prender Alex no sótão, F. Alexander toca música
clássica na esperança de que ele cometa suicídio para aliviar sua
dor. Em vez disso ele se joga de uma janela e vai acordar em um
hospital, onde a técnica de Ludovico é revertida e Alex se torna seu
antigo eu novamente.
“A-lex IV” é o início do despertar do personagem. Ele percebe
que a terapia de aversão representa um grande paradoxo,
especialmente se aceita de bom grado. Para mudar quem somos,
devemos primeiro reconhecer que algo precisa mudar. A di culdade
reside na execução desse passo. Devemos fazer um esforço
consciente, uma escolha, mas a “terapia” de Ludovico remove o
livre-arbítrio da equação.
Através de um velho amigo, Pete – bem como de sua esposa e
lho –, Alex nalmente deseja, por vontade própria, acabar com
seus modos violentos. A faixa de encerramento, “Paradox”, volta à
agressão das músicas iniciais de A-Lex, mas agora a raiva de Alex é
redirecionada para nossa condição de vítimas da lavagem cerebral
executada pela televisão, pela mídia e pelo Estado, que de nem o
que devemos pensar, no que devemos acreditar e como devemos nos
comportar. Alex deseja mudar por si mesmo, porque ele pensa que
deve mudar, não porque alguém pensa que ele deva mudar ou exige
que mude.
A inclusão dessa canção nal foi crucial. Uma coisa que o
Sepultura não quis fazer em A-Lex foi planejar seu conceito
inteiramente com base na adaptação cinematográ ca de Laranja
mecânica. Stanley Kubrick, diretor e roteirista do lme, baseou sua
visão na versão americana do livro, que omitiu o último capítulo em
que Alex se redime de seus comportamentos violentos. Esse
vigésimo primeiro capítulo era, para Anthony Burgess, bem como é
para o Sepultura, uma parte essencial do apelo da história. Sem ele,
o livro – e o lme – encerra com um tom de desespero, com a
percepção deprimente de que Alex sucumbiu a seus demônios.

Making of de “A-Lex IV”.

Terminar o álbum com um tom de autopercepção e,


essencialmente, esperança foi uma decisão que revelou um grupo de
músicos cada vez mais maduros. Embora Dante encerre com um tom
similar, esse era o curso natural do livro de Dante Alighieri. No caso
de A-Lex, a escolha de incluir ativamente o mais edi cante dos dois
desenlaces diz muito sobre os membros do Sepultura.
A música e o processo de criá-la também tinham amadurecido.
“Eu gosto de dizer que é um estilo ‘maduro’ por não estarmos
presos a nada”, disse Jean. “De certa forma, nós não nos
importamos, o que signi ca que quando estávamos fazendo A-Lex,
por exemplo, não havia uma estrutura para seguir; foi só ir tocando
– uma questão de fazer tudo o que a gente achava que era bom.
Para ser mais especí co, se há um encaminhamento e ele soa bom,
maravilha. Mas se é uma canção sem um caminho de nido, é
maravilhoso também.”

Making of de “A-Lex V”.

Atrasos durante o processo de mixagem adiaram o lançamento,


originalmente previsto para outubro de 2008, para o dia 23 de
janeiro do ano seguinte. Nesse meio-tempo, no início de 2009,
Andreas se reuniu com alguns amigos que formaram uma banda
cover só com astros do ramo. A formação inicial foi fechada com
Tim “Ripper” Owens nos vocais, David Ellefson, do Megadeth, no
baixo, e o ex-baterista do Megadeth, Jimmy DeGrasso. Montado com
a intenção exclusiva de ser uma maneira de diversão em algumas
jam sessions ao vivo, o Hail! nunca compôs, nem pensou em
compor, qualquer material original. Anunciou sua existência com
uma pequena turnê no Chile e ao longo dos anos viajou a locais
distantes como Rússia e Turquia com um elenco rotativo de
membros.
Jean Dolabella também se permitiu alguma atividade em um
projeto paralelo experimental e jazzístico com Augusto Nogueira,
chamado Indireto. Derrick fez amizade com Sam Spiegel, irmão do
diretor de cinema Spike Jonze, quando Sam estava no Brasil
terminando seu projeto de fusão de eletrônico e hip-hop, o N.A.S.A.
Green e Spiegel começaram a lançar as bases para um grupo de
robo-funk e R&B eletrônico chamado Maximum Hedrum.

A-LEX SEGUIU A TENDÊNCIA de seus antecessores recentes, sofrendo com


baixas vendas na primeira semana, apesar de críticas elogiosas e de
até entrar em uma série de paradas pelo mundo. Desde Against,
conforme o público ia aceitando as mudanças na banda – e a banda
continuava a se rmar –, a recepção crítica de cada lançamento foi
cando sucessivamente melhor, mais positiva. Infelizmente, as leis
de direitos autorais on-line – bem como as gravadoras, diga-se de
passagem – ainda não tinham se adaptado às mudanças trazidas
pelo compartilhamento de arquivos e redes peer-to-peer na internet.
Em um passado não muito distante, os músicos excursionavam para
promover seus álbuns. Agora era o contrário. Bandas lançavam
álbuns para ter um motivo para sair em turnê.
Se há uma mensagem recorrente nessa história, é que o
Sepultura não só se adapta às mudanças, como ele as abraça. Eles,
que antes protestaram contra o bootleg ilegal de Schizophrenia –
numa época que as vendas de discos poderiam construir ou destruir
uma carreira –, nos dias de hoje entendiam que nenhuma banda
poderia mais contar apenas com os rendimentos dos álbuns.
“Eu acho que é mais livre”, disse Andreas. “É uma fase de
transição. Não está muito claro o que vai acontecer. A internet está
aqui, e você pode lançar um álbum em diversos formatos: pendrive,
download, e até o vinil está voltando. Então você tem que ser mais
criativo para lidar com isso. Eu acho que em toda fase de transição
aparece uma série de oportunidades, e é um momento muito fértil.
Você tem que lidar com isso e criar ideias para explorar e ir além da
estrada. Isso é o que sempre zemos. Estar na estrada com nosso
merchandising.”
Empresas de sucesso podem, por vezes, subsistir com base
apenas em sua marca, e, para vantagem deles, o Sepultura tinha
uma marca forte, ao passo que muitos de seus colegas não tinham. O
logo “S” de Bozo tornara-se um ícone, aparecendo em tudo, desde as
óbvias camisetas e bonés de turnê até óculos de sol, calções e
Havaianas. Em 2012, a marca adornaria até mesmo o rótulo da
cerveja Weizen do Sepultura.
Mas, para uma banda como a deles, tudo sempre levava às
turnês. “Basta manter o pé na estrada”, disse Andreas. “Não há
como lutar contra algo que está mudando. Temos que nos adaptar e
criar ideias para explorar e apresentar nossa música.”
Havia ainda outro lado negativo da internet. Da noite para o dia,
qualquer pessoa com um computador e uma conexão de dados
poderia ser um crítico. A natureza anônima e desprovida de rosto da
rede permitiu que certo tipo de pessoas dissesse coisas que nunca
teria coragem de dizer em um ambiente mais pessoal. Alguns
chamaram a formação de então de gananciosa, uma “banda cover”,
alegando que não tinha o direito de continuar como Sepultura sem
os irmãos Cavalera. Sugerindo que estava se aproveitando da
notoriedade do nome da banda.
Claro que os caras estavam cientes das críticas. As vozes mais
altas e mordazes parecem sempre achar um modo de se destacar.
Paulo abordou a questão dizendo: “Nós temos lutado muito –
especialmente com o disco novo – para mostrar essa nova cara, que
já é antiga para nós, mas não para a maioria das pessoas da mídia”.
Para grande desgosto dos céticos, essa atitude desa adora tinha
permitido ao Sepultura seguir em frente como músicos pro ssionais,
em turnê, fazendo o que amam, apesar dos obstáculos e mudanças
de integrantes, há 25 anos.
À sua maneira franca de costume, Paulo afastou a preocupação.
“Não temos medo de nada. Vamos provar que podemos fazê-lo, mais
uma vez. Foi provado algumas vezes, e, se precisar ser provado mais
uma vez, vamos fazê-lo. E, se depender de mim, vou car muito
feliz por estar nesta banda por mais 25 anos.”
Em março, dividiram o palco novamente com o Iron Maiden,
dessa vez como apoio direto no Quilmes Rock Festival, em Buenos
Aires, Argentina. E, um pouco antes, membros das duas bandas se
divertiram juntos de forma diferente: o Maidonians Football Club,
time de futebol de Steve Harris, baixista do Iron Maiden, tinha
encarado os brasileiros em uma partida de futebol amistosa em São
Paulo. O lado brasileiro, contando em seu escrete com Andreas
Kisser e Ronaldo, o ex-goleiro do Corinthians, perdeu de 8 a 0 para
o Maidonians, time muito mais experiente e treinado (mais tarde,
em 2009, o Sepultura organizaria uma partida contra alguns de seus
fãs da Sepultribe. Nesse jogo, eles se saíram muito melhor).
EM AGOSTO, VEIO O lançamento de Hubris I & II, álbum solo de Kisser,
nalmente vendo a luz do dia depois de tantos anos em preparação,
oportunamente lançado no dia seguinte ao do aniversário do
guitarrista. Com Jean Dolabella na bateria e coproduzido pelo
próprio Andreas, o álbum de dois discos apresentou a gama de
talentos musicais de Kisser. O primeiro disco, mais voltado ao rock e
com foco na guitarra elétrica, contou com o ilustre Zé Ramalho
como vocalista convidado na faixa “Em busca do ouro”. O segundo
disco destacou o amor de Andreas pelo violão clássico acústico com
cordas de nylon.
Mas, como diz o ditado, havia problemas no paraíso. Jean estava
tendo di culdade para se adaptar à intensidade da vida na estrada.
“Tenho tocado com o Sepultura há três anos”, disse ele. “A maior
turnê durou cerca de dois meses. Quando a turnê acaba, a gente
volta pro Brasil e ca aqui, pelo menos, uma ou duas semanas por
mês. Na primeira turnê, pensei: ‘Eu não consigo fazer isso. Não
aguento’. Então veio o segundo, o terceiro e o quarto de trezentos
shows, e eu me acostumei com isso.”
Mas car longe de casa por tanto tempo tem seu preço. “Não é
fácil”, continuou ele, “mas acho que nada na vida é. Sinceramente,
acho que a gente não consegue um bom equilíbrio na vida porque
está sempre à procura de algo mais. Isso é a vida! É tipo assim, eu
estou tocando em uma das maiores bandas de metal e estou muito
feliz com isso, mas não consigo parar de tocar outros tipos de
música. É assim. Você nunca vai ser extremamente feliz, tipo chegar
ao nirvana. Simplesmente acho isso impossível.”
É uma vida difícil, sem dúvida. Para muitos fãs e jovens músicos
em formação, a vida na estrada parece encantadora. Você viaja de
cidade em cidade como um nômade, vendo e experimentando novos
lugares, espalhando sua música entre multidões apaixonadas aonde
quer que vá. Mas a realidade é bem mais mundana; incontáveis
horas gastas alternando entre dormir em ônibus de turnê e aviões.
Você está o tempo todo em movimento e raramente tem a
oportunidade de visitar locais interessantes em qualquer cidade
aonde vá tocar. A compensação de esperar e viajar 22 horas todos os
dias são as duas horas que se passa no palco.
A estrada está entulhada de vidas destruídas e músicos mortos
que não conseguiram aguentar a monotonia, o tédio. Músicos que
preenchiam suas horas vazias com drogas e bebidas.
Mas, para a maioria dos artistas veteranos, as festas diminuem
com o tempo. As pessoas se esquecem: para o Sepultura, e outras
bandas como eles, fazer turnês é seu ofício. É como colocam comida
na mesa para alimentar a família. Para sobreviver por bastante
tempo nesse negócio duro, têm de tratar o trabalho
pro ssionalmente. Eles têm de agir como pro ssionais.
“A gente mantém o foco”, explicou Andreas. “Se tem um show
hoje, a gente sabe que tem que tocar à noite, então não vai car
bebendo muito ou fazendo merdas que poderiam afetar o show.
Claro, a gente fez muito isso quando era mais novo. Agora a gente tá
muito focado no que faz. A gente se conhece o su ciente para saber
nossos limites. Se eu tomar uma ou duas cervejas, sei que vou estar
bem pra tocar.”
Cuidar-se na estrada tornou-se, com o passar dos anos, cada vez
mais uma prioridade. Mesmo Paulo, um beberrão notório que já
chegara a virar treze garrafas de vinho em cerca de um dia, dera um
tempo nas farras. Com sua agenda particularmente implacável,
ninguém na banda poderia se dar ao luxo de car doente ou
machucado.
Jean aprendeu isso em primeira mão. “Eu tive alguns problemas
com meu pulso”, disse ele. “A gente ia tocar no México por três dias,
e no primeiro dia senti um pouco de dor, no segundo cou pior, e
no terceiro cou impossível de tocar. Eu pensei que estava fodido. A
gente estava a um ou dois meses de ir para uma grande turnê na
Europa, então eu tinha de fazer alguma coisa.”
“Eu fui à médica, e ela me disse que eu tinha de alongar. Ela me
ensinou como e quanto tempo deveria fazê-lo. O processo de
aprendizagem durou três semanas; eu ia à sioterapia duas vezes
por semana. Hoje em dia, tenho uma rotina antes de cada show.
Toda noite, faço 40, 45 minutos de alongamento e 30 minutos de
aquecimento. Eu realmente preciso fazer isso! Por causa disso, sinto-
me muito melhor, não sinto dor. Sei que posso tocar pra valer.”
O ano de 2010 começou de forma fantástica, com mais dois
shows em janeiro, abrindo para o Metallica no Estádio do Morumbi,
em São Paulo. Muita gente no planeta veria o Sepultura em turnê
naquele ano, com uma notável exceção: os Estados Unidos.
Também em janeiro, a SPV/Steamhammer anunciou que lançaria
A-Lex, só que com duas faixas adicionais. Jogadas confusas como
essa eram indicativas da incapacidade da indústria em abordar
devidamente o encolhimento de vendas em face da música on-line
gratuita. E os fãs se sentiram explorados. Sendo forçados a comprar
o álbum inteiro pela segunda vez – e apenas um ano depois de ter
sido lançado originalmente – por causa de apenas duas faixas novas?
Que tipo de incentivo era aquele, especialmente quando essas duas
faixas poderiam ser facilmente encontradas on-line?
No nal, o relançamento nunca ocorreu, porque o Sepultura e a
SPV/Steamhammer cortaram relações alguns meses mais tarde.
Especulou-se que o selo não teria a pegada comercial forte que o
Sepultura precisava para promover apropriadamente seu trabalho
nos Estados Unidos, um mercado em que ainda lutava para
reingressar. Falta de apoio nas turnês pode ter sido um fator
decisivo na separação também.
Dessa vez, a banda não caria sem uma gravadora por muito
tempo.
EM MEADOS DE 2010, o Sepultura assinou um contrato com a Nuclear
Blast que era muito mais promissor para o futuro da banda.
Fundada na Alemanha em 1987, a Nuclear Blast construiu sua
reputação com base em trabalho duro e honesto e dedicação tão
grande quanto a dos fãs. Isso ocorre principalmente porque os
pro ssionais da gravadora – assim como no caso da Roadrunner nos
seus melhores anos – são fãs das bandas com quem trabalham e por
isso as tratam adequadamente. É uma característica que ajuda as
gravadoras independentes a sobreviver e, em alguns casos, a
prosperar, enquanto as chamadas “grandes” – cuja preocupação com
dinheiro e status muitas vezes tem precedência sobre a preocupação
com seus artistas – vão de mal a pior a cada ano.
A banda começou a compor, de fato, ainda na estrada em 2010,
algo que nunca tinha feito antes em tal profundidade, nem mesmo
quando recolhia ri s durante as veri cações de som nas turnês
promocionais de Dante xxi. De volta a São Paulo no nal do ano,
eles regularmente vazavam vídeos de ensaios para mostrar aos fãs
como o processo se desenrolava. Os espectadores podiam ver uma
banda animada, feliz e motivada, trabalhando em conjunto música a
música. Antes de terminar a composição, já haviam con rmado uma
série de turnês, incluindo uma para o início de 2011 na América do
Norte. Seria sua primeira série de shows mais extensa lá em cerca de
cinco anos.
Não havia dúvida de que a Nuclear Blast con ava no Sepultura.
Ainda assim, mesmo com toda a energia para seguir em frente,
havia cada vez mais rumores sobre uma reunião da formação
“clássica”. Assim como em qualquer drama de qualidade, certos
personagens se fazem presentes – seja pela intenção, seja pela
circunstância – mesmo tempos depois de saírem de cena e de
deixarem a história.
E sobre poucas outras bandas a sombra de um ex-integrante
paira de forma tão consistente quanto sobre o Sepultura.
Os rumores não eram novidade, embora nunca tivesse havido
qualquer substância por trás deles. Alguns anos antes, por exemplo,
houve rumores de que Sharon Osbourne tinha oferecido 1 milhão de
dólares a Max, Andreas, Paulo e Igor para se reunirem em uma
apresentação especial encabeçando o Ozzfest, o festival anual de
heavy metal de seu marido. Mas, como de costume, era só conversa
ada, que não havia de modo algum partido das partes citadas.
Mas depois que o Cavalera Conspiracy entrou em um hiato, a
nostalgia de Max parecia crescer, e ele continuava a falar sobre as
possibilidades de um retorno ao Sepultura. Por um tempo, ele
mencionou isso em quase todas as entrevistas que dava. Em
algumas, ele dizia que a única pessoa impedindo era Paulo, que
queria mais dinheiro. Em outras, Max dizia que ele e Andreas já
estavam em negociações; que tinha proposto que apenas ele e Igor
tivessem Gloria como empresária, e, desse modo, Paulo e Andreas
poderiam ser empresariados por quem quisessem. Então ele dizia
depois que a tática tinha falhado porque Kisser não queria Gloria
envolvida de modo algum.
O Sepultura – ainda assim – não queria a reunião. Eles cansaram
de negar cada novo boato, e as falas de Max se tornaram tão
gritantes, tão persistentes que a banda se viu forçada a divulgar sua
própria declaração. Não haveria reunião, anunciaram de forma
in exível, e nunca houvera qualquer pensamento nesse sentido.
“Não acreditem mais em porra de boato nenhum”, Andreas disse,
claramente irritado. “Estamos cansados de ouvir toda a porra dessa
merda que Max está dizendo no mundo todo, que vai ter uma
reunião e isso e aquilo. Estamos aqui para dizer que não há
comunicação, nenhuma conversa sobre qualquer tipo de reunião ou
de show com os irmãos Cavalera. Igor está fazendo seu trabalho,
Max deveria estar fazendo o dele, e nós estamos fazendo o nosso. O
Sepultura já existe há 26 anos e estamos comemorando isso com um
novo álbum, um novo contrato e uma nova turnê mundial. E espero
que este seja o m da porra dos boatos e da porra… das mentiras!”
Tendo esclarecido tudo com essa mensagem nal, na noite
seguinte o Sepultura tocou o álbum Arise– pela primeira vez na
íntegra – numa festa em comemoração ao 16o aniversário do
Manifesto Bar, em São Paulo. Foi um modo irônico e apropriado de
encerrar o capítulo de toda a boataria sobre reunião.
Mas tudo isso – o drama e a tensão, mas também os 26 anos de
história e evolução – acabou entrando no álbum seguinte, que seria
apropriadamente intitulado Kairos. O termo, uma palavra grega que
representa um momento especial de tempo indeterminado, descrevia
perfeitamente as re exões da banda sobre o passado, sua visão do
presente e suas perspectivas para o futuro.
Derrick, de perto e em pessoa. Albany, abril de 2012.

Para produzir o disco, escolheram Roy Z, um homem de muitos


talentos. Ele não só havia produzido clássicos modernos dos
vocalistas do Iron Maiden e Judas Priest, respectivamente Bruce
Dickinson e Rob Halford, como também atuado como guitarrista
para ambos, sendo de importância gritante na hora de tocar (sem
trocadilho) o projeto de composição de cada álbum. O ouvido de
Roy para a música e para os tons de guitarra em particular ajudaria
o Sepultura a alcançar o som “ao vivo” que buscava com Kairos.
Um músico exímio, após ter passado muitos anos aprimorando
sua destreza com o Tribe of Gypsies, sua própria banda de rock
latino americanizado, Roy era o cara que o Sepultura estava
procurando, e era surpreendente que não tivessem trabalhado juntos
até então.
Embora Derrick já tivesse se mudado novamente a essa altura e
trocado São Paulo por Praga, na República Tcheca, tal mudança não
atrapalhou nem um pouco os planos do Sepultura. Novamente,
entraram em estúdio na Trama, dessa vez levando com eles Roy e
um monte de câmeras de vídeo, cortesia da Jack Daniels do Brasil,
que patrocinou a transmissão ao vivo das sessões pela internet. Em
alguns dias da semana, algumas horas por dia, os fãs podiam dar
uma olhada nas gravações conforme aconteciam (às quintas-feiras,
no entanto, pouco trabalho parecia ser feito; a transmissão nesse dia
era uma promoção para a Jack Daniels, com uma mesa de bar em
que a banda e os visitantes passavam momentos agradáveis e
tomavam algumas bebidas).
Ao contrário dos dois álbuns anteriores, houve um esforço
consciente para não exagerar no número de músicas. Queriam
manter o disco curto, com foco em lapidar cada música e cada parte
até que brilhasse.
A bem projetada “Spectrum” exempli ca bem esse ideal.
Evocando suas in uências do Ministry, o Sepultura repete o mesmo
ri por quase toda a canção, para criar uma vibe hipnótica e
assombrosa. As letras dão o tom geral de Kairos, falando dos
esforços que empreenderam e das batalhas que venceram ao longo
dos anos, do orgulho que sentiam por permanecerem éis a essa luta
em que acreditam. A faixa-título expõe essa temática, com Derrick
cantando sobre o quão necessário é – para eles – seguir sempre em
frente, mesmo enquanto outros retrocedem, e criar sempre esses
momentos kairos.
Essa faixa pesada, quase um hino, evita um solo de guitarra
típico e, em vez disso, emprega uma seção melódica de sonoridade
vagamente indiana no meio. A partir disso, ela ganha dinâmica com
um ri simples que leva a uma parada súbita e, então, associa-se
com a bateria para forjar um groove que lembra os clássicos
intervalos instrumentais em “Desperate Cry” e “Dead Embryonic
Cells”.
A música “Relentless” é bem como seu título indica. O ritmo
incansável da bateria de bumbos duplos de Dolabella e o baixo
igualmente percussivo de Paulo, casados com a saraivada seca da
corda de Kisser e os vocais distorcidos de Derrick – alguns dos seus
mais expressivos –, evocam ainda mais comparações com a música
industrial. Com um solo de guitarra em duas partes que tem tanto a
marca característica de Andreas quanto os gritos peculiares de
Dimebag Darrell, os ouvintes percebem a primeira prova da
insistência de Roy Z (e de Derrick Green) para que Kisser foque a
criação de solos mais técnicos e magistrais. Em “Relentless” ele faz
exatamente isso, compondo um de seus melhores solos, do tipo que
faz até mesmo os guitarristas mais experientes babar sobre seus
trastes.
Se “Spectrum” não foi su ciente para convencer os fãs da relação
do Sepultura com a música industrial, a versão da banda de “Just
One Fix”, do lendário disco do Ministry Psalm 69: The Way to
Succeed and the Way to Suck Eggs, acaba com qualquer dúvida.
Originalmente planejada como uma faixa-bônus, a inclusão da
música na seleção de Kairos diz muito sobre sua in uência.
Lenta, macabra e atmosférica, “Dialog” é uma conversa interna,
uma admissão de imperfeição e às vezes fraqueza, sugerindo que
mesmo as pessoas mais fortes e persistentes têm seus momentos de
dúvida. Um ri bem básico, acompanhado pelo peso grave do baixo
de Paulo e com uma batida igualmente básica como base, torna-se
um dos momentos mais esmagadores no álbum. Novamente, o
Sepultura adota a estratégia que a música mais pesada nem sempre
tem de ser complicada e difícil de tocar, mas a complexidade surgirá
em outro brilhante solo de Andreas.
Como já mencionado, com o surgimento da internet, veio a
ascensão do crítico amador. Derrick ataca esses inimigos
diretamente, acusando-os de só ter coragem de dizer o que dizem
porque se escondem atrás de uma tela de computador. Não importa.
Toda a merda que falam, todo o ódio e a negatividade só fazem o
Sepultura trabalhar ainda mais duro. E os detratores também os
deixam ainda mais gratos pelos fãs verdadeiros. Por aqueles que
acreditam em sua música e continuam a apoiá-los. Com um solo
duplo psicótico no início, não muito distante de “Escape to the
Void”, a faixa “Mask” é um soco na cara. Repetidamente.
Originalmente escrita para A-Lex e ocasionalmente apresentada
perto do m daquela turnê, “Seethe” não foi deixada de fora
daquele álbum por não ser tão boa quanto as outras faixas, mas
porque simplesmente não se encaixava no contexto do disco. Ela se
encaixa perfeitamente em Kairos, no entanto, trabalhando com uma
batida rápida, meio punk, e uma progressão que os guitarristas por
certo vão reconhecer como um tributo aos versos de ri s em “Dead
Embryonic Cells”. Apresentando mais uma melodia de cair o queixo,
a mudança de ritmo no meio do solo é novamente similar a álbuns
anteriores, e Derrick, com seus vocais absolutamente furiosos, narra
a história de um homem que, em vez de sucumbir aos demônios da
raiva, usa essa emoção para alcançar a iluminação.
Consistentemente brutal, “Born Strong” remonta musicalmente a
um passado não tão distante, soando quase como uma faixa perdida
de Dante xxi, lembrando até mesmo algumas das letras, embora a
maior parte da mensagem siga a temática de Nation.
Dando continuidade a esse clima de Dante, “Embrace the Storm”
por vezes, dá a impressão de ser uma continuação de “Ostia”.
Porém, o ri notadamente hardcore por volta da metade a
diferencia, tornando clara a in uência de bandas como Sick Of It
All, Biohazard e Agnostic Front e das letras inspiradoras desses
grupos, que cantam sobre tirar forças do caráter inevitável da
mudança.
Revisitando os dias de puro thrash de Beneath the Remains e
Arise, “No One Will Stand” não teria soado fora de lugar em
qualquer desses álbuns. De longe a música mais rápida em Kairos,
fala de união, de como os detratores e as merdas faladas por eles
levaram a banda a se unir ainda mais ao longo dos anos. “No One
Will Stand” ataca em todas as frentes de batalha, reiterando a
crença de que o Sepultura como um todo é sempre maior do que
qualquer uma de suas partes.
Seguindo a tradição de colaboração com grupos de percussão
internacionais, em “Structure Violence (Azzes)”, a banda trabalha,
dessa vez, com os franceses do Les Tambours du Bronx, em outro
exemplo da in uência da música industrial. Os dois grupos se
conheceram em um festival alguns anos antes e discutiram a
possibilidade de construir algo juntos no futuro. Em “Structure
Violence”, culturas colidem, com trechos da letra em inglês, francês
e português. As bandas, contudo, nunca se encontraram em estúdio:
o Les Tambours du Bronx trabalhava na França enquanto o
Sepultura gravava no Brasil, e a facilidade da internet lhes permitia
enviar e receber arquivos para completar a canção.
A edição especial em digipack inclui um par de faixas-bônus,
sendo uma delas um cover e a outra uma original. “Firestarter”,
originalmente do The Prodigy, foi outra ideia que nasceu no estúdio,
do desejo costumeiro da banda de não escolher uma música
tipicamente metal para gravar. Uma faixa divertida e animada,
“Firestarter” seria encaixada em sets ao vivo com imensa aprovação
do público. E “Point of No Return”, com sua distinta introdução com
cavalgada e acordes construídos com notas dissonantes, poderia
perfeitamente ter sido uma faixa-bônus de Chaos A.D.
Sem dúvida alguma, Kairos consegue transmitir a vibe“ao vivo”
que o Sepultura e Roy Z buscavam. Mais da metade do disco foi
gravada “de primeira”, e ter Derrick gravando seus vocais na sala de
controle, em vez de em uma cabine isolada, ajudou a dar uma
sensação orgânica e robusta à música. Completando a temática da
natureza inde nível do tempo, Kairos contém quatro interlúdios
sonoros atmosféricos: 2011, 1433, 5772 e 4648. Cada um representa
o mesmo período de tempo, o ano de criação de Kairos. 2011 no
calendário gregoriano. 1433 no calendário islâmico. 5772 no
calendário hebreu. E 4648 no calendário lunar chinês. Esses
interlúdios signi cam que o tempo é, em essência, um conceito
inventado, e que nossa vida é uma série de momentos kairos. Os
próprios sons são trechos da banda na estrada, indo de um lugar
para outro, passando o tempo em meio ao tempo.
A capa, que retrata uma criatura alada ao mesmo tempo viva e
em decomposição, tanto humana quanto inumana, apresenta a
representação visual perfeita de Kairos. A criatura segura uma
ampulheta, meio vazia ou meio cheia de areia, dependendo da
perspectiva de cada um. Desenvolvida por Erich Sayers, um artista
multitalentoso que tinha se apresentado e mostrado seu trabalho à
banda nos bastidores de um show em Los Angeles, a arte de Kairos
representou tanto o ponto de vista do Sepultura quanto a música
contida na embalagem.

EM ABRIL, A CIDADE de São Paulo realizou a Virada Cultural, evento


anual de 24 horas que homenageia e promove a diversidade
cultural. O Sepultura foi incluído no programa do evento de 2011.
Apoiando em voz alta a preservação do pau-brasil, sem o qual
muitos instrumentos clássicos como violinos, violas e contrabaixos
não poderiam ser feitos, eles organizaram uma apresentação
especial com a Orquestra Experimental de Repertório de São Paulo.
A iniciativa foi concebida pelo documentarista Otávio Juliano e pela
Interface Filmes, em meio a lmagens para um documentário que
abrange toda a carreira do Sepultura.
A apresentação começou com a orquestra sozinha, aquecendo a
multidão na rua com o 1o Ato de “Die Meistersinger von Nürnberg”,
de Wagner, e “Valtio”, do Sepultura. A banda, então, entrou no
palco, oferecendo em colaboração faixas raramente tocadas (e, em
alguns casos, nunca antes tocadas ao vivo) como “Inquisition
Symphony”, “The Ways of Faith”, “City of Dis” e “Ludwig Van”.
Embora a apresentação tenha sido lmada para um lançamento
em DVD, a imprevisibilidade de um ambiente ao ar livre – e na rua,
ainda por cima – resultou em problemas de som durante a gravação.
O Sepultura fez planos para recriar o show no futuro em um local
onde poderia controlar a acústica um pouco melhor.
A turnê norte-americana teve início poucos dias após a Virada
Cultural, com a banda como atração principal de um pacote
incomum com a banda polonesa de death metal Hate e o monstro
austríaco do black metal Belphegor. A turnê, no entanto, foi além
das expectativas, lotando arenas de mil e 2 mil lugares com os fãs
norte-americanos felizes por terem o Sepultura de volta. Como o
lançamento de Kairos não estava programado para os próximos
meses, tocaram apenas duas músicas novas nesses shows: “Seethe” e
a faixa-título. Ambas tiveram recepções raivosas.
Andreas comentou sobre a mudança no tamanho dos locais de
show ao longo dos anos, dizendo: “A gente tem tocado em lugares
muito menores, e foi muito difícil ganhar con ança de novo,
principalmente na época de Against. Demorou um pouco, mas a
gente está muito mais feliz. A gente curte a música do Sepultura, os
fãs e tudo o mais e não tem que lidar com nenhuma merda
esquizofrênica nem com nenhuma bagagem”.
Também estavam levando seu negócio tão a sério quanto sua
música, trabalhando em estreita colaboração com Monika e a Base 2
Produções, bem como com seus agentes e promotores fora do Brasil.
Tudo parecia estar em ascensão novamente, sobretudo após Kairos
ter sido lançado em junho. O disco gurou nas paradas de países de
todo o mundo e recebeu elogios fervorosos até mesmo dos ouvintes
mais céticos, superando os números das vendas na primeira semana
tanto de A-Lex quanto de Dante xxi. Foi uma recepção bem merecida
nesses tempos em que poucas pessoas ainda compram discos.
Logo após o lançamento de Kairos e pouco antes de uma extensa
turnê europeia, a tendinite de Jean atacou novamente. Como
resultado, o primeiro show foi remarcado para a banda ter tempo de
encontrar um substituto adequado até Dolabella se recuperar.
Felizmente, seus amigos do Torture Squad, uma banda de thrash de
São Paulo, estavam na Europa para a turnê de seu álbum Hellbound.
Amilcar Christófaro, o baterista do Torture Squad, crescera ouvindo
Sepultura. Ele sabia as músicas nos mínimos detalhes e cou mais
do que feliz em assumir o posto para os shows.
Eloy, Andreas e Yohan Kisser no backstage do Orion Festival.

Todavia, alguns fãs mais devotos do Sepultura imaginaram se


algo estaria acontecendo longe dos olhos do público.
Embora a tendinite de Dolabella fosse, de fato, um problema que
afetava temporariamente sua capacidade de tocar, havia mesmo
alguma coisa acontecendo nos bastidores. Mas os fãs só
descobririam bem mais tarde.
Enquanto isso, Andreas estava consultando o catálogo de
músicas do Anthrax e aperfeiçoando sua palhetadas ao tocá-las.
Meses antes, Scott Ian havia entrado em contato com Andreas, pois
sua esposa daria à luz em julho, período no qual o Anthrax estaria
em turnê na Europa. Sendo o primeiro lho de Scott, ele queria
estar em casa para o parto, mas não queria que a banda tivesse de
cancelar shows, alguns dos quais seriam parte de um evento
monumental.
As tradicionais bandas conhecidas como “as quatro grandes” do
thrash – Metallica, Megadeth, Anthrax e Slayer –, cada uma com sua
identidade própria e distinta, caram famosas por popularizar o
gênero do metal no início e meados dos anos 1980. Embora
Megadeth, Anthrax e Slayer já tivessem unido forças antes em uma
turnê intitulada Clash of the Titans, o Metallica sempre estivera
alguns degraus acima dos outros (e bem mais do que alguns degraus
após o lançamento de seu álbum homônimo, o Black Album, em
1991).

James Het eld (Metallica) e Andreas no backstage do Orion Fest. Junho de 2012.

Em 2010, graças em parte à amizade renovada entre Dave


Mustaine, o líder do Megadeth, e sua antiga banda Metallica (da
qual o então incontrolável e alcoólatra Mustaine fora chutado sem a
menor cerimônia em 1983), “as quatro grandes” se reuniram pela
primeira vez no Festival Sonisphere, em Varsóvia, Polônia. O show
único tinha o Metallica como atração principal, naturalmente, com
cada um dos outros três grupos apresentando sets quase completos
para o gigantesco público, que, em êxtase, mal podia acreditar no
que via e ouvia.
Algum tempo depois naquele ano, os quatro grupos decidiram
levar esse legado em frente ao fazer uma miniturnê chamada The Big
4, no verão seguinte. Como Scott Ian não conseguiria tocar nas datas
devido a sua iminente condição de pai, ele teve a bênção de sua
banda para convidar Andreas para assumir a função da guitarra
base.
Andreas Kisser se juntou ao Anthrax para alguns de seus shows
como atração principal, assim como para os da turnê The Big 4. A
cada noite, ao m do set do Metallica, os membros de todas as
bandas tomavam o palco para tocar uma música juntos.
Andreas estava vivendo seu sonho, entorpecido de emoção,
adrenalina e kairos.
E, enquanto cada membro do Anthrax tinha sua própria camiseta
para a apresentação, mostrando nas costas uma versão circular de
seu logo com as cores da bandeira americana escorridas, como que
pintadas com spray, Andreas representou o Brasil em sua camiseta
customizada do Anthrax. Ela ostentava o mesmo logo, mas com o
verde, azul e amarelo da bandeira brasileira.
Imediatamente após a série curta de apresentações, Kisser tatuou
o logo na parte interna do antebraço como lembrança e, para honrar
ainda mais seu tempo no Anthrax, encaixou o ri de “Madhouse”
em versões ao vivo de “Inner Self”.
O Sepultura também ainda não tinha terminado de deixar sua
marca em 2011. Após uma série de shows na Europa, retornou à
América do Sul para apresentações conjuntas com o Machine Head
e, em setembro, tornou-se a primeira banda a tocar quatro vezes no
Rock In Rio. Trouxe o Les Tambours du Bronx, integrando os
percussionistas franceses em seu show, mais uma vez expandindo
seus limites.
E, então, chocou seus fãs novamente.
Image

NO INÍCIO DE NOVEMBRO de 2011, menos de um mês após o Rock In Rio e


sem outros sinais exteriores de problemas, a banda anunciou a saída de
Jean Dolabella. Embora a notícia tenha vindo como um choque para os fãs,
Andreas explicou que a saída de Jean não era tão súbita como pode ter
parecido na época.

“O Jean tinha planejado sair da banda já havia algum tempo”, ele disse.
“Um ano, um ano e meio antes de sair de fato. Ele ficou até o Rock In Rio
porque queria fazer esse show grande, e, claro, para nós era mais
conveniente ficar com ele, já que ele sabia todas as músicas. Então a gente
já sabia há mais ou menos um ano que ele ia sair.”

Embora fosse um baterista completo, um músico apaixonado e respeitado,


Jean não tinha a mesma constituição que os outros caras. As turnês sem
fim, semanas que se tornavam meses longe de casa e da família em São
Paulo haviam desgastado Dolabella.

“Infelizmente”, disse Andreas, “ele não conseguiu aguentar a estrada. Ele


não é desse tipo de músico. Não é um nômade. A gente fez o Rock In Rio,
e aí ele saiu.”

Conhecido por sua ética de trabalho incansável e por uma abordagem


extremamente técnica e, ainda assim, sempre criativa em relação à bateria,
em cinco breves anos Jean tinha ganhado um lugar no coração dos fãs.
Embora para Derrick, Andreas e Paulo a perda de outro membro fosse
frustrante, as circunstâncias eram compreensíveis, e a separação foi
amigável.

“Jean fez um ótimo trabalho com a gente”, disse Andreas. “Ótimos álbuns,
realmente especiais, principalmente Kairos. Ele está aqui em São Paulo,
construindo um estúdio.”

Porém havia turnês marcadas, mais shows para tocar. Kairos não tinha
sequer seis meses de lançamento, e o ciclo promocional apenas começara.
Já haviam tido essa experiência antes, com Igor, e sabiam que o melhor a
fazer seria pegar a estrada imediatamente, como fizeram com Dante xxi,
enquanto o álbum ainda era recente. Pensaram em chamar um baterista
temporário para terminar as turnês, citando nomes como o de Paul Bostaph,
exmembro do Hail! e do Slayer.

Mas o destino tinha seu próprio plano. O Sepultura passava por problemas
de som no Palco Sunset no Rock In Rio, e, enquanto isso, a banda brasileira
Glória iniciava seu set no Palco Mundo. Aquele show ficaria marcado
como o último que o baterista fenômeno Eloy Casagrande – de 20 anos –
faria com a banda à qual havia se juntado apenas seis meses antes.

Claro que os rapazes já tinham ouvido falar de Eloy – parecia que muitos
músicos da área já tinham ouvido falar dele também, incluindo Andreas.
“A gente sabia que ele era um prodígio na bateria desde muito jovem. Ele
apareceu na televisão, ele é de Santo André, que é a mesma região em que
Igor e Monika moravam. Os filhos de Igor estudavam na mesma escola em
que o Eloy estudou por um tempo. Mas ele veio depois que soube que a
gente estava procurando um baterista e não estava muito satisfeito com o
Glória, eu acho. Ele só estava fazendo seu trabalho. Então ele ficou mais do
que feliz de ter a chance de trabalhar com a gente.”

E tinha sido um trabalho difícil para Eloy com o Glória no Rock In Rio. O
estilo de metal da banda Glória era bem genérico, mais mainstream e
voltado para adolescentes e ratos de shopping rebeldes, comparado ao dos
titãs do Palco Mundo como Metallica e Motörhead ou até mesmo o
Slipknot (que era rejeitado com ódio pelos “verdadeiros” fãs de metal, mas
tinha suas raízes profundamente cravadas na cena death metal da Flórida).
O Glória foi recebido com vaias e arremessos de garrafa – assim como
ocorreu com Lobão quando se apresentou após o Sepultura em 1991. A
certa altura, lembra Eloy, uma garrafa de dois litros com algum líquido
estranho passou voando perto de sua cabeça enquanto tocava, e ele se
perguntou se sairiam do palco ilesos.

“O Eloy apareceu do nada”, disse Andreas sobre sua entrada no Sepultura.


“A gente tava tocando ao mesmo tempo no Rock In Rio, com o Glória no
Palco Mundo e nós no Sunset. E então, algumas semanas mais tarde, ele foi
num ensaio. Na verdade, ele foi num show em São Paulo, com o Angra, eu
acho, e a gente encontrou com eles nos bastidores. A gente fez um teste
com o Eloy, mas, porra, na primeira batida na bateria a gente já sabia que
ele era o cara. Ele tocou bem pra caramba, com muita vontade.”

Estava tudo pronto, e a mudança foi feita antes mesmo que alguém fora do
círculo interno da banda soubesse que algo estava acontecendo. No mesmo
dia – na mesma nota para a imprensa, na verdade – em que o Sepultura
revelou a decisão de Jean de deixar a banda, apresentou ao mundo seu novo
baterista.

NASCIDO EM SANTO ANDRÉ, em 29 de janeiro de 1991, Eloy Casagrande


Lopes tinha acabado de sair do útero quando o Sepultura lançou o
demolidor disco Arise. Aos 6 anos, ele ganhou sua primeira bateria, um
pequeno brinquedo de plástico, depois de chamar a atenção dos pais por
estar sempre batucando em coisas por toda a casa. Aos 7 anos, depois de
fazer algumas aulas, ele havia demonstrado tanta dedicação e paixão pelo
instrumento que seus pais lhe compraram uma bateria profissional.

Tal como aconteceu com os outros membros do Sepultura, talvez o fator


mais decisivo no desenvolvimento de Eloy como músico tenha sido o apoio
incansável de sua família. Com a ajuda deles, Eloy se apresentava em
eventos de igreja, feiras por todo o país, e se tornou conhecido como um
prodígio depois de aparecer na televisão como vencedor de inúmeros
concursos.

Duas grandes competições – e duas vitórias – o esperavam. Em 2004, Eloy


foi o campeão no Batuka International Drummer Fest, realizado em São
Paulo, exclusivamente para bateristas com menos de 13 anos. E, no ano
seguinte, ganhou o primeiro prêmio na categoria sub-18 do Modern
Drummer’s Undiscovered Drummer Contest.

Conhecida como a revista de bateria número 1 do mundo, a Modern


Drummer alçou Eloy ao estrelato com apenas 14 anos, em uma competição
que atraiu centenas de músicos de todas as partes do globo.

Segundo Paulo Jr., depois de saber da saída de Igor Cavalera, em 2006,


Eloy queria fazer um teste para o Sepultura, mas seus pais lhe disseram que
era muito jovem. Em vez disso, ele buscou ganhar experiência profissional
e, depois, juntou-se à banda solo pós-Angra de André Matos, na qual
continuou até 2011, quando foi chamado para o Sepultura.

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Até hoje Paulo continua andando de ônibus.

“Fiquei em estado de choque”, Eloy afirmou na nota de imprensa. “Eu sou


fã da banda faz anos; vai ser uma honra tocar com eles.”

O Sepultura nunca teve problemas para achar bateristas competentes. “Não


sei como explicar”, disse Andreas, “mas a percussão é algo muito natural
para nós, brasileiros. Até eu ou qualquer um consegue batucar legal numa
mesa de bar e tal. A gente tem uma porra de um instinto de batucar em
qualquer coisa.”

Mas havia uma grande diferença entre Jean Dolabella e Eloy Casagrande,
como Andreas observou. “O Jean não é realmente um cara do metal. Ele
tem metal em suas influências, mas ele é mais… tipo um baterista de jazz.
Ele consegue tocar qualquer coisa. Ele é um ótimo músico, mas o Eloy é
mais metal. O Eloy é quase como um Igor mais jovem, um monstro que
tem muito sangue nos olhos.”

“Apesar do Jean ter feito um ótimo trabalho”, acrescentou, “você não sentia
isso, essa influência do metal. Ele não conhecia o Judas Priest, por
exemplo. Ele não teve essa formação com o metal que todo metaleiro teve.
Foi ótimo, mas assim ele não duraria muito nessa estrada mesmo. A gente
tem muita sorte de poder contar com músicos tão bons quando precisa.”

O batismo de fogo de Eloy veio rápido. Menos de duas semanas após ele
assumir a bateria publicamente, essa nova encarnação do Sepultura partiu
para a Europa para coencabeçar um mês de shows com o Exodus, na turnê
Thrashfest Classics. O tema da turnê levou cada banda no programa a tocar
apenas as músicas de seus álbuns mais thrash e “clássicos”, então o setlist
do Sepultura era composto de faixas de Beneath the Remains, Arise e
Chaos A.D. (embora este último não fosse necessariamente um disco thrash
propriamente dito).
Sua inclusão no programa da turnê Thrashfest Classics confundiu o
Sepultura a princípio, não porque eles não se encaixassem – pois era certo
que sim –, mas porque não fazia muito sentido para eles. Haviam acabado
de lançar Kairos, um álbum extremamente vital e forte, que pregava o
conceito de homenagear o passado sem revivê-lo. Fazer uma turnê de
Kairos, mas não tocar nada dele? Não fazia lá muito sentido.

Apesar disso, quanto mais pensavam na ideia, mais empolgante ela se


tornava. Seria um modo divertido de resgatar músicas que não eram
tocadas ao vivo havia anos. E quando terminasse, seria o fim. Voltariam aos
negócios como sempre.

Aqueles shows lotaram todos os estabelecimentos que tiveram o prazer de


tê-los como atração. Gary Holt, do Exodus, tocou em vários momentos com
o Sepultura, e Andreas, por sua vez, também tocou com o Exodus. Os
companheiros de turnê do Destruction e do Heathen juntavam-se à banda
brasileira para versões barulhentas de “Kaiowas”. E, noite após noite, Eloy
Casagrande chocava o público, que ficava de queixo caído com a precisão e
o poder de sua habilidade, especialmente com seu solo de bateria na
introdução de “Subtraction”. As pessoas já começaram a especular sobre o
próximo álbum do Sepultura, imaginando o que esse garoto-prodígio
inventaria em estúdio.

A banda também imaginava, sentindo que a vontade e o talento de Eloy a


alçavam a um novo nível.

Derrick, Paulo e Andreas ganhavam maior sincronia com Eloy conforme


faziam mais shows juntos. Depois de um breve descanso de férias,
mergulharam de cabeça na Europa Oriental e nos países bálticos em 2012,
passando quase três semanas na Rússia – a mais extensa turnê lá até então
–, destruindo os locais de show mais obscuros que encontravam. Poucos
dias após o último show em Minsk, Bielorrússia, o Sepultura estava
novamente em solo americano, a segunda excursão norte-americana em
menos de um ano. Na noite de abertura, no Yost Theater, em Santa Ana,
Califórnia, o produtor e guitarrista extraordinário Roy Z emprestou seu
talento em uma versão de “Just One Fix”, do Ministry, na qual Roy e
Andreas se alternaram em longos solos de guitarra.
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Check-in logo cedo.

Essa turnê, que incluía os veteranos do thrash metal do Death Angel e os


novatos do thrash do Havok, foi especial por outra razão. Pela primeira vez
o Sepultura excursionava fora do Brasil com outra banda brasileira.

A história do Krisiun não era tão diferente da do Sepultura. Eles cresceram


ouvindo muitos dos mesmos grupos – Slayer, Morbid Angel, Kreator – e,
como o Sepultura, o Krisiun se mudou para São Paulo em seus primeiros
dias em busca de melhores oportunidades (só que veio do Rio Grande do
Sul em vez de Minas Gerais). O Sepultura gostava de retribuir à cena local,
já que foi a banda que abriu essa porta internacional para outros grupos
brasileiros.

E eles já possuíam uma conexão de longa data. Alex Camargo, vocalista e


baixista do Krisiun, berrara uns versos de “Necromancer” com Derrick em
2005 para as gravações de Live in São Paulo.

Uma breve excursão pela América do Sul se seguiu e, depois, outra jornada
pela Europa (que começou com a reunião do Sepultura e Les Tambours du
Bronx, dessa vez no Rock In Rio Lisboa). Em junho, a banda voltou aos
Estados Unidos para participar do primeiro festival anual Orion Fest,
escolhida a dedo pela banda anfitriã, o Metallica.

Voltando à Europa para os festivais de verão de costume, o Sepultura


dizimou os palcos do Wacken (mais uma vez com o Les Tambours du
Bronx) e do Summer Breeze na Alemanha, do Bloodstock na Inglaterra e
do Rokk Inn Mountain na Áustria, entre outros, e, como sempre, tocando
em casas menores e com maior proximidade do público nos outros dias.

Em novembro, depois de dez anos longe de um de seus mercados mais


raivosos, o Sepultura chegou à Indonésia para dar aos fãs a chance de ver
Derrick e Eloy em ação. O público em Tenggarong, Jacarta e Makassar foi
tão fenomenal quanto o das cidades em que tinha tocado uma década antes.
Só em Tenggarong, eles lotaram um estádio de futebol – cerca de 40 mil
pessoas – sem outras atrações no programa.
Os fãs indonésios ficaram extasiados de ver seus irmãos brasileiros depois
de tanto tempo, e o sentimento era mútuo.

O Sepultura passou o fim de ano em grande estilo, em um cruzeiro de


Miami, na Flórida, até as Bahamas e de volta. Com mais de quarenta
bandas de metal tocando ao longo da jornada, a chamada Barge To Hell
[Barcaça para o inferno] era o sonho de todo headbanger; uma
oportunidade para os fãs se misturarem com suas bandas favoritas em um
ambiente de férias relaxante, onde cada noite terminava com álcool,
libertinagem e devastadoras performances ao vivo.

O ano de 2012 chegou ao fim, e a banda recém-reenergizada debandou para


desfrutar de algum tempo de inatividade antes de compor o próximo disco.
Derrick e Sam Spiegel finalmente lançaram o aguardado álbum completo
de seu projeto Maximum Hedrum e partiram em uma pequena turnê. Entre
os destaques, pode-se citar uma temporada como atração principal no clube
Los Globos, em Los Angeles, bem como a apresentação no South by
Southwest, no Texas, e uma aparição no programa de televisão do ex-
apresentador da MTV Carson Daly.

Eloy deu vários workshops de bateria por todo o Brasil e se reuniu à sua
banda paralela, a cristã Iahweh, para alguns shows pontuais. Mesmo Paulo
ficou ocupado nesse período, gravando uma participação especial para a
banda Eminence, de Belo Horizonte (na qual Jairo Guedz também
costumava tocar baixo), e finalmente, completando o álbum de estreia de
sua outra banda, o Unabomber Files, com o vocalista do Chakal e
colaborador em Schizophrenia Vladimir Korg.

Andreas, sempre ocupado com trabalho, começou a apresentar o “Pegadas


de Andreas Kisser”, um programa semanal de rádio, transmitido do Brasil
para o mundo através da internet. O programa se destacava por seu apoio a
bandas nacionais, sempre com o interesse de levar os não brasileiros a
ouvir grupos que poderiam nunca ouvir de outro modo. Kisser também
participou em um novo projeto musical, o De La Tierra, uma espécie de
supergrupo latino-americano com membros do Maná, D-Mente e Fabulosos
Cadillacs.
Apesar de Derrick Green ter tocado guitarra em algumas faixas ao vivo em
seus primeiros dias com o Sepultura, o De La Tierra representou um novo
desafio para Andreas em estúdio.

“É a primeira vez que toco com outro guitarrista depois de Max, depois de
muito tempo, e não é fácil juntar duas guitarras. Você tem que conhecer a
outra pessoa bem, e eu e Andrés Giménez não tocamos muito juntos, mas a
gente está fazendo um bom trabalho em pegar várias pessoas e fazer soar
como uma banda”, disse rindo. “A gente ensaiou um pouco, e ele é um
ótimo músico também, e todo mundo tá na mesma sintonia.”

Novamente, talvez por causa desse projeto ou pelas jam sessions frequentes
de Kisser com seu filho Yohan na guitarra em bares brasileiros, as pessoas
começaram a especular sobre sua possível entrada no Sepultura.

“Tem muita gente falando do meu filho Yohan. Falando, tipo, ‘meu, você
vai colocar ele no Sepultura?’. Cara… ele tem a vida dele”, comentou
Andreas, rindo de novo e balançando a cabeça. “Eu não quero fazer isso
com o moleque, colocar ele numa prisão. Ele é mais do que bem-vindo pra
tocar com a gente, claro, mas eu acho que seria muita coisa pra ele. Ele está
começando algo por conta própria e quer fazer a música dele e as coisas
dele.”

Kisser prossegue: “Seria uma grande experiência pegar a estrada. Na


verdade, ele estava com a gente em alguns shows na turnê do ano passado
pela Europa. Ele passou quinze dias das férias dele com a gente na estrada
e tocou com a gente em “Ratamahatta” e tal. Foi muito legal. Eu não vejo
problema nenhum em fazer isso, mas oficializar, tipo, ‘este é o
guitarrista…’. Isso já é demais pra ele. É muito arriscado você chegar a
esse ponto. E ele não merece isso, no bom sentido. Ele merece mais do que
isso pra vida dele. Ele tem que construir algo por conta própria, pra ele
mesmo”.

Andreas continua, pensando mais uma vez sobre a questão de adicionar


uma segunda guitarra e por que algumas pessoas achavam isso tão
importante: “Outro instrumento só vai deixar o som mais potente se for
muito bem ensaiado. Sabe, é isso que eu quero dizer: aqui, nas gravações
do De La Tierra, a gente tá se encontrando agora. Isso ainda pode ficar
muito melhor. Agora, a gente tá conhecendo um ao outro como
guitarristas… eu e o Max, a gente era, tipo, como um só, praticamente. A
gente tocava muito juntos. Depois que eu entrei na banda, a gente
costumava praticar todos os dias, cara. Todos os dias. Isso era sagrado. E
com muita vontade. A gente adorava aquilo. E a gente ia pro ensaio todo
dia e tocava e tocava”. Com um toque de nostalgia na voz, Andreas conta:
“A gente tocava alguns covers, mas também compunha… a gente
compunha pra caramba. E então a gente construiu o tipo de estilo que a
gente tinha juntos… isso leva tempo”.

PROJETOS PARALELOS À PARTE, o Sepultura permaneceu a prioridade


número 1 de todos, e a composição do 13o álbum transcorreu sem
dificuldades e com velocidade, graças à injeção da energia de Eloy. O
aniversário de 30 anos da banda estava chegando, e em 2012 houve
algumas reuniões dignas de menção. Depois de deixar o cargo na
Roadrunner Records, que estava em processo de dissolução, Monte Conner
firmou uma parceria para expandir a filial norte-americana da gravadora
Nuclear Blast, o que novamente reuniu Monte e o Sepultura. E, no final do
ano, Ross Robinson vazou via Twitter que tinha falado com Andreas sobre
produzir o próximo disco.

Com 30 anos de carreira, a banda estava, por assim dizer, voltando a suas
“raízes” [roots]. Alguns membros mudaram, o estúdio mudara (Richard
Kaplan vendeu Indigo Ranch, e Robinson montou seu próprio estúdio à
beira-mar em Venice, Califórnia), mas o espírito do Sepultura estava vivo e
ativo.

Para alívio de todos, o clima também havia mudado desde a última vez que
trabalharam juntos. Ross até mencionou que a atmosfera no estúdio estava
muito menos estressante dessa vez, muito mais positiva e mais propícia
para a criação de algo mágico. Foi-se o drama, foram-se as discussões.

Pensando em retrospecto sobre o último trabalho que fizeram juntos, Ross


percebeu que todos tinham algo a provar.

Trabalhando com Robinson estava Steve Evetts, com quem o Sepultura não
trabalhava desde Roorback. Parecia uma reunião familiar, amigos
desgarrados, quase irmãos, que não se viam há anos, agora mais velhos,
mais sábios e gratos por manter essas relações pessoais.

Eloy acabou as gravações das faixas de bateria em questão de dias. Como


era típico de Ross, durante as gravações ele se juntava à banda em uma
cabine de jam a fim de sentir a música e a conexão espiritual entre seus
criadores. Ele absorvia os sons, deixava que fluíssem através dele,
respondendo fisicamente de uma forma contagiante que enchia a cabine e
todos nela de energia.

Em uma parceria exclusiva com o jornal Diário de Pernambuco e o


jornalista Emanuel Leite Jr., Andreas detalhou o processo de gravação em
diários de estúdio periódicos. Ele explicou que, devido a certas
circunstâncias, foram forçados a fazer as coisas de forma um pouco
diferente dessa vez.

As sessões típicas se davam da seguinte maneira: a banda toda tocava as


músicas junta, cada instrumento era gravado em seu próprio canal isolado,
permitindo que o baterista gravasse suas partes com o vigor de uma
apresentação ao vivo. Quando terminavam com a bateria, era a vez das
guitarras, produzidas com base nos “esboços” gravados com a banda
tocando junta. Após as guitarras, as faixas de baixo eram produzidas da
mesma forma, e os solos, os vocais e outros pedaços variados vinham por
último.

Dessa vez, no entanto, Derrick perderia algumas das sessões por causa de
compromissos com o Maximum Hedrum, uma miniturnê confirmada
anteriormente. Então, em vez de esperar até que as canções estivessem
terminadas para gravar os vocais, Derrick cantou suas partes música a
música com Andreas provendo a guitarra rítmica.

Como de costume, estavam sempre fazendo experiências, sempre se


esforçando para fazer algo diferente. Para Andreas, a espontaneidade de
gravar dessa maneira contribui para a vividez do disco.

O estúdio recebeu visitantes inesperados: Dino Cazares e Dave Lombardo,


o lendário baterista do Slayer. No caso deste último, Lombardo tinha
enviado a Ross uma mensagem de texto dizendo que estava na área,
passeando com seu cachorro. O produtor respondeu imediatamente,
perguntando se o baterista gostaria de entrar e fazer algo com o Sepultura.
Lombardo agarrou a oportunidade.

Foi mais um momento histórico para o Sepultura, e para Eloy


especialmente, trabalhar com o homem que desenvolveu um estilo único e
imediatamente reconhecível de tocar thrash metal. Ainda que as faixas de
bateria já estivessem prontas, Ross e Evetts levaram duas baterias a um
salão, com uma grande porta de vidro pela qual se via o mar. Eles
rapidamente instalaram microfones, querendo preservar a magia do
momento. Sem pratos ou apetrechos, apenas tambores, Eloy e Lombardo
botaram para quebrar em uma jam tribal incrível, que mais tarde foi
inserida perfeitamente em uma música chamada “Obsessed”.

A ansiedade pelo lançamento do novo álbum era intensa, palpável, e só


crescia. Muitos acreditavam que a banda estava prestes a dizer a que veio
novamente, com Eloy, com Ross, com algumas das músicas mais poderosas
de sua carreira. E em uma cartada inovadora, o título mostrou que
novamente estavam quebrando seu paradigma criativo. Em vez de um
sentimento expresso em uma ou duas palavras curtas, que passariam a
mensagem de forma sucinta, escolheram uma frase inspirada no clássico
filme mudo Metropolis: The Mediator Between Head and Hands Must Be
the Heart [O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração].
Algumas pessoas adoraram, outras odiaram. Contudo, todos estavam
comentando sobre o título.

O título, como Andreas explicou, é uma referência à condição moderna, a


como a sociedade em geral está cada vez mais sem rosto, mais robotizada
com a proliferação das redes sociais e dos relacionamentos pela internet.
Mas o coração está na raiz de nossa existência. É o que une a humanidade e
nos mantém humanos. Ele nos mantém solidários. Ele nos mantém vivos e
em relação de empatia com o outro, reais.

No momento em que este texto é escrito, somente a lista de faixas e a capa


foram liberadas para o público. Nomes de músicas como “The Age of the
Atheist”, “Impending Doom”, “Trauma of War” e “The Bliss of Ignorants”
revelam a temática do álbum: a necessidade do coração e como é difícil
acreditar de fato em qualquer coisa nestes dias. Como é difícil manter a
esperança.

Em um momento propício, quando milhões de cidadãos insatisfeitos


tomaram as ruas do país para protestar contra o aumento dos custos
relativos à Copa do Mundo de 2014 – enquanto as condições dos hospitais
só pioram e crianças passam fome –, Andreas enviou seu apoio ao povo do
Brasil, pedindo-lhes que mantenham a esperança viva, lembrando-lhes de
que isso nunca é um desperdício de esforços.

MAS, POR MAIS QUE tentasse, o Sepultura não conseguia escapar de


situações tensas. No mesmo dia em que o Diário de Pernambuco mostrou a
imagem do desenho a carvão de Alexandre Wagner que estamparia a capa
de The Mediator, Gloria Cavalera anunciou que a autobiografia de Max
seria lançada dali a apenas quatro dias. Ela garantia que o livro seria
polêmico e iria revelar verdades que haviam permanecido enterradas por
dezessete anos. Que iria finalmente contar a história real do porquê de Max
ter deixado a banda.

A versão apresentada no livro alega que Gloria saiu do Sepultura por sua
livre e espontânea vontade e vinha planejando sair algum tempo antes do
final de 1996. O livro também traz acusações e ataques mais contundentes
de Cavalera a seus ex-companheiros de banda até então, com Paulo e
Monika sendo alvos da artilharia mais pesada, levando as pessoas a se
perguntarem – em se tratando de um homem que sempre expressara seu
desejo de uma “reunião” – o que exatamente ele esperava alcançar.

“Deixa eles fazerem as coisas deles, a gente vai fazer as nossas”, disse
Monika, resignada, mas claramente um pouco agitada. “Está tudo bem com
a gente, nós não nos importamos. Mas por que eles têm de atacar as
pessoas? Quantas vezes eu tive que parar meu carro porque [Gloria] estava
ao telefone falando sobre a reunião, como poderia ser bom e nós
poderíamos ganhar um monte de dinheiro, todos os discos, todos os itens de
merchandise, tudo isso. Ela disse que dividiria comigo a organização e
depois estaríamos juntas em turnê, ela foi muito legal. Mas nós temos
estado muito ocupados, e eu só quero que eles nos deixem em paz. Façam
suas coisas, deixa a gente fazer as nossas. A reunião não vai acontecer
porque não é para acontecer. Isso foi o que eu disse pra Gloria na primeira
vez que falei com ela ao telefone.”

Ela continua: “Mas com toda essa situação, eu nunca falei nada sobre
ninguém. Mas aí ele [Max] resolveu me atacar sem motivo…”.

O momento de lançamento do livro, juntamente com a suposta animosidade


do texto, pode ter sido uma tentativa de roubar um pouco do brilho do
Sepultura, já que a banda estava produzindo algo extremamente brilhante.

Vozes “inteiradas” murmuravam que The Mediator era de longe o trabalho


mais forte da banda em anos, rivalizando até mesmo com seus primeiros
clássicos, e iria silenciar os críticos que insistiam que a banda deveria ter
desistido em 1996. Com covers de Death e Chico Science & Nação Zumbi,
o álbum novamente presta homenagem às raízes do Sepultura sem ser
definido por elas.

E Monika tinha garantido não apenas uma, mas duas noites para a banda no
Rock In Rio em setembro.

Na primeira noite, dividiram o palco novamente com o Les Tambours du


Bronx, dessa vez para a gravação de um DVD, e na segunda fizeram uma
apresentação especial ao lado de Zé Ramalho. Nenhuma outra banda,
nacional ou internacional, tinha tocado no Rock In Rio tantas vezes quanto
o Sepultura, e nenhuma outra banda tinha sido honrada com a oportunidade
de tocar dois sets completos em duas noites diferentes.

Que bela mudança em comparação a 1991, quando os promotores os


colocaram no programa por pura obrigação, esperando que desaparecessem
sem qualquer alarde.

E o ano de 2014 – aniversário de 30 anos do Sepultura – reserva muito


mais também, com o documentário sobre sua carreira finalmente planejado
para lançamento, as habituais turnês implacáveis e uma série de outras
surpresas.

Como sempre fizeram, Andreas, Paulo, Derrick e Eloy marchavam em


frente, recusando-se a se distrair com a negatividade lançada contra eles
pelos meios de comunicação e ex-associados. Em cada ato, mostravam que
o nome Sepultura tinha passado a representar muito mais do que apenas
música, muito mais do que apenas as pessoas envolvidas na sua criação.
Tudo sobre a história da banda – as coisas boas e as coisas ruins também –
havia imbuído o nome com um significado mais profundo, um significado
espiritual. Sepultura se tornou um símbolo de luta e persistência, de nunca
desistir, de lutar e seguir em frente mesmo quando os tempos parecem
sombrios. Representa adaptação e evolução e recusa a permanecer
complacente, como foi mostrado repetidas vezes nesta história.

De fato, veio a significar o oposto do sentido original do termo; não tem a


ver com morte, mas, sim, com vida.

“O nome é algo pelo que eu tenho muito orgulho e muito respeito”, disse
Derrick. “Ao longo dos anos, o Sepultura sempre teve isso. De verdade,
porque é sempre uma luta com a banda. Se tem algo essencial na banda é
que, desde o início até onde ela está agora, tem sido uma batalha constante,
e nada nunca foi realmente fácil devido às mais variadas circunstâncias. Só
o fato de ser de um país do Terceiro Mundo, das diferentes pessoas
mudando no grupo, empresários diferentes, mudanças entre gravadoras…
só a tensão toda envolvida em lidar com o aspecto de negócio da coisa.
Mas eu sinto que sempre fomos capazes de manter a cabeça erguida com o
nome Sepultura. É algo em que a gente realmente acredita e respeita.”

Embora Derrick não estivesse presente na criação do nome, ele com certeza
teve um papel fundamental em defini-lo.

“É um fenômeno incrível que o nome ainda seja relevante em conversas,


mesmo que você não goste do que aconteceu no passado ou do que está
acontecendo agora no Sepultura. Não importa! Ainda é um bom tema de
conversa porque há muito mistério, lendas e mitos por trás dele – junto com
as coisas que são muito reais, muito emocionais, muito apaixonadas e
muito fortes. E acredito que o nome sempre teve acepções diferentes,
devido à incrível história que aconteceu.”

“Acho que significa espírito”, disse Andreas. “O espírito musical. Digamos


que a palavra no dicionário não tem nenhum significado; Sepultura não
significa túmulo, mas, sim, a música que a gente faz, o estilo, o modo como
fazemos nossas coisas, e isso é o que realmente nos mantém juntos. Para
tentar sempre encontrar algo novo, encontrar um desafio para nós. É por
isso que a gente ainda está aqui, apesar de todas as mudanças. E, claro, um
monte de gente tem sua própria ideia do que Sepultura deve ser ou do que
é.”

“É difícil de definir, mas a gente sabe o que o Sepultura significa, e é por


isso que a gente ainda gosta de trabalhar um com o outro, tendo esse
privilégio de viajar pelo mundo e representar o Brasil em todos os lugares e
ir a lugares novos – todo ano a gente visita um lugar novo – onde a gente
nunca foi antes. É maravilhoso! É sempre para satisfazer algum desejo. Eu
acho que esse é o espírito do nome.”

Paulo concorda, e acrescenta: “Claro, eu acho que teve evolução; quem tá


na banda – desde o primeiro dia até hoje – realmente entende e sabe como
representar o nome. Pode-se dizer que a gente criou um monstro, e, mesmo
quando gente muito importante saiu da banda no passado, o nome
continuou forte, e quem entrou percebeu e soube como fazer as coisas e não
decepcionar ninguém. Hoje em dia, eu acho que o próprio nome é mais
forte do que qualquer um dos membros”.

Mas Sepultura também significa entusiasmo e dedicação, como afirma


Andreas.

“Se a gente não tivesse paixão pela coisa, a gente não estaria aqui. Nós não
somos escravos de nós mesmos”, disse ele, reiterando um lema importante,
que define suas crenças pessoais. “Nós não somos escravos do nome
Sepultura. A gente recria esse nome a cada dia, e é por isso que a gente ama
o que faz, o resto é consequência. Estar no palco é a melhor parte, mas uma
consequência disso são as viagens – aviões, ônibus, neve e um monte de
merda só para chegar lá. Como a gente ama o que faz, acaba aceitando as
consequências.”

Essas consequências, no entanto, podem ser um inferno se as pessoas


envolvidas não se dão bem. É um dos motivos mais comuns que causam
separação nas bandas. Mas estar no Sepultura agora, sem todo o drama,
sem ter que lidar com o estresse de certas relações interpessoais, é mais
divertido do que nunca.
“É assim que deveria ser”, disse Andreas. “Você já tá longe da família e
não quer viver num inferno. Você quer estar com os amigos e com gente
que você acredita que tenha o mesmo ponto de vista – não o mesmo ponto
de vista, mas os mesmos objetivos –, e a gente tá junto nessa batalha. A
gente tem que se divertir. Sempre.”

Assim como ele havia mencionado anteriormente, por que se preocupar em


continuar se isso só te faz infeliz? Essa é uma máxima universal, que se
aplica a todos os campos profissionais fora da indústria da música. Mas
também se aplica à vida em geral, uma prova do valor da mudança. Todos
nos esforçamos para alcançar a felicidade e a satisfação. Se as
circunstâncias o impedem de conseguir esses objetivos, mude as
circunstâncias.

Muitos se perguntam se a separação de 1996 poderia ter sido evitada. Para


o Sepultura, as coisas tinham que mudar. E, desde então, todos se uniram
no esforço para que as coisas não voltem a ser como eram.

Como explicou Derrick: “Eu definitivamente vejo o futuro como um


avanço, sem nunca olhar para trás. Isso é uma coisa que fez a banda
conseguir se manter viva, seguindo em frente de verdade e tentando se
recriar. Pra gente, é sempre importante manter a cabeça aberta e não se
prender a uma situação do tipo essa é a direção que a gente tem que seguir.
Acho melhor deixar as coisas acontecer naturalmente, e quando a gente
chegar no ponto específico – onde a gente precisa chegar – certamente vai
ser sempre um passo à frente. Como artistas”. E reafirma: “Isso é algo
extremamente importante”.

Paulo resume tudo refletindo sobre a vida de um músico profissional. “Pra


maioria dos músicos, é muito difícil. Pra mim, na minha opinião, a gente
teve muita sorte de ter uma coisa tão especial e tão forte acontecendo. A
maioria dos músicos toca num bar ou tem um segundo emprego, e a gente
dedicou nossa vida principalmente ao Sepultura. A gente teve a chance de
ver tantos lugares que uma pessoa poderia demorar mais de uma vida para
ver. Mas é uma vida muito difícil. A gente escolheu um tipo diferente de
trabalho. É mais um estilo de vida ao qual você se dedica, que você nunca
pode parar. Levando em consideração que músicos, e artistas em geral, não
têm aposentadoria – você se aposenta quando morre – então, se você tem
80 anos e consegue tocar, vai lá e toca. Para artistas, para músicos, não
existe esse negócio de aposentadoria depois de quarenta anos de serviço.
Você vai tocando até morrer.”

E para o Sepultura, com trinta anos de estrada, não há túmulo à vista.


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“A gente realmente sente que o interesse pelo Sepultura está mais forte do
que nunca…” – Andreas Kisser

NA INDÚSTRIA DA MÚSICA, hoje em dia mais do que em qualquer outra


época, dois anos é uma vida. Curtos 24 meses são suficientes para fazer
uma banda nova explodir ou para explodi-la. Também é possível ver
veteranos experientes saírem do underground ou afundarem nele como uma
pedra, e às vezes as duas coisas acontecem nesse mesmo intervalo de
tempo. As tendências mudam, a moda muda, a tecnologia muda. As
pessoas mudam, e o gosto delas também. O heavy metal muda.

Mesmo assim, o Sepultura continua evoluindo, continua ampliando os


limites daquilo que faz, de como faz e de onde faz.

Desde o lançamento do aclamado The Mediator Between Head and Hands


Must Be the Heart, em 25 de outubro de 2013, um álbum considerado
quase unanimemente, tanto pela crítica quanto pelos fãs, como o trabalho
mais forte da banda desde Roots, de 1996, o Sepultura tem atuado com
grande energia, fazendo aquilo que sabe fazer melhor: trabalhar. E os frutos
dessa labuta estão se tornando visíveis. A banda está finalizando uma série
de eventos em comemoração ao seu 30o aniversário – shows novos,
músicas novas, merchandise novo, tudo isso prestando uma saudável
homenagem ao passado sem perder sua âncora no presente –, e há um
palpável clima de respeito e admiração por aquilo que esses cavalheiros
realizaram ao longo dos anos, além de um entusiasmo pelo que ainda está
por vir.

No entanto, o panorama da indústria da música, sempre em mudança,


impõe a permanente necessidade de gerenciamento, de superação de
obstáculos, de saltar através de arcos em chamas.

Os meses antes do lançamento de qualquer disco são cruciais para


promovê-lo, mesmo numa época em que as vendas têm uma importância
cada vez menor. Além disso, é crucial fazer coincidir a turnê promocional
com o lançamento do álbum. Para as bandas de metal cuja carreira e
sustento dependem da estrada, um setlist incrementado com músicas novas
pode resultar em vendas do disco enquanto ele ainda é recente, e quanto
maiores forem as vendas nos primeiros meses após o lançamento, maior a
probabilidade de a gravadora investir numa futura turnê.

No meio de setembro de 2013, o Sepultura anunciou seu retorno aos


Estados Unidos e ao Canadá, algo que vinha sendo aguardado há muito
tempo. É verdade que os Estados Unidos sempre foram um mercado difícil
para as turnês da banda. O país é enorme e regido por qualquer bobagem
que faça sucesso nas rádios. Por isso, quando uma banda emplaca, ela tem
de mandar ver com tudo que tem. Tanto o Sepultura como sua gravadora, a
Nuclear Blast, reconheceram que fazer uma turnê norte-americana
paralelamente ao lançamento de Mediator era uma ótima oportunidade.

A turnê Tsunami of Metal, que também tinha as bandas Unearth, de Boston,


e Kataklysm, do Canadá, estava agendada para começar no dia 1o de
novembro de 2013, na House of Blues, em Hollywood, Califórnia,
pouquíssimos dias depois de o Mediator chegar às ruas. Os ingressos
antecipados, assim como os pacotes meet and greet de muitos shows, foram
vendidos rapidamente, mas, quando setembro estava quase chegando ao
fim, a banda e os produtores começaram a ficar preocupados. Para
trabalharem nos Estados Unidos, mesmo que temporariamente, os
brasileiros precisavam de um visto H, ou seja, um visto de trabalho. E eles
só poderiam dar entrada na papelada quando todas as viagens e datas em
que trabalhariam estivessem confirmadas. Mas um atraso inesperado na
análise da documentação colocou toda a turnê em risco.

O Congresso dos Estados Unidos tinha uma tarefa nessa época: aprovar o
orçamento dos gastos governamentais. Dada a confusão da política
bipartidária, com republicanos e democratas recusando-se a entrar em
acordo sobre a controversa política de saúde pública do presidente, e com
um Congresso incapaz de chegar a uma decisão dentro do prazo, no dia 1o
de outubro a maioria das operações do governo foi paralisada.

Inclusive a emissão de vistos.


Ainda que a inatividade do governo tenha durado somente dezesseis dias,
não havia muitos motivos para se ter esperança. Na última vez em que
acontecera uma situação similar, entre o final de 1995 e o início de 1996,
cerca de 20 a 30 mil pedidos de visto deixaram de ser analisados em cada
dia de paralização, segundo apurou o Serviço de Pesquisa do Congresso.

Com o orçamento aprovado e as operações da embaixada dos Estados


Unidos no Brasil novamente em pleno funcionamento no dia 17 de outubro,
os empresários e produtores de turnê fizeram tudo o que podiam para
acelerar a emissão dos vistos dos músicos. Enquanto isso, o Sepultura
comemorava o 20o aniversário do disco Chaos A.D. com três shows no
Sesc Belenzinho, em São Paulo, quando tocaram o disco inteiro ao vivo
pela primeira vez na história da banda. Mas, sem os vistos em mãos no dia
29 de outubro, um dia antes da data marcada para irem a Los Angeles, e
sem ideia de quando os documentos chegariam, toda a turnê norte-
americana, lamentavelmente, teve de ser cancelada.

Em vez de ficar de braços cruzados, a banda fez um punhado de shows pelo


Brasil para se manter aquecida para a primeira etapa da turnê europeia, que
começaria em 1o de fevereiro de 2014. O Sepultura seria a atração
principal, ao lado de Legion of the Damned, Flotsam and Jetsam, entre
outras bandas.

Nos meses seguintes, o Sepultura detonou em shows com um vigor


renovado, e todos estavam empolgados para exibir os talentos do baterista
Eloy Casagrande em suas primeiras músicas originais com a nova família.
Os fãs retribuíram na mesma moeda. Músicas como “The Vatican”,
“Manipulation of Tragedy” e “Trauma of War” inspiraram a abertura de
mosh pits violentos como os das antigas, ciclones de corpos suados
rasgando as multidões que quase sempre esgotavam os ingressos e eram
compostas cada vez mais de gerações jovens que nem sequer tinham a
idade de muitos dos álbuns da banda. Os integrantes do Sepultura tinham
realmente se transformado em estadistas experientes.

Entre junho e setembro de 2014, a banda passou boa parte do tempo na


Europa, sobretudo em palcos de festivais, como já tinha se tornado
tradição, inclusive nos habituais Download, Hellfest e Graspop Metal
Meeting. Mas houve algumas exceções dignas de nota. A primeira delas foi
quando o Sepultura deu dois shows na China. Depois de todos esses anos, a
banda continua a abrir novos caminhos e a espalhar a marca singular de seu
metal brasileiro por lugares nunca visitados. A segunda foi o retorno à
África do Sul depois de onze anos; e a terceira, o retorno, há muito tempo
aguardado, à Austrália e à Nova Zelândia, onde tinham tocado em 2003 e
1999, respectivamente.

Durante os eventuais períodos de folga, Derrick, Andreas, Paulo e Eloy


continuavam ocupados com projetos tanto musicais como não musicais,
alguns relacionados à banda e outros paralelos. No final de setembro, foram
a Nova York para uma apresentação surpresa – e um reencontro – com o
Les Tambours du Bronx, quando tocaram “Structure Violence (Azzes)” em
um palco montado na Times Square para anunciar a primeira edição do
Rock In Rio nos Estados Unidos. Foi uma proeza e tanto para o Sepultura,
o que lhes garantiu uma exposição enorme diante de um público que uma
banda de metal dificilmente atingiria. E o material promocional foi
coerente com a apresentação: no mesmo mês, um CD, um DVD e um blu-
ray sobre a colaboração das duas bandas no ano anterior foram lançados
com o título Sepultura and Les Tambours Du Bronx: Metal Veins – Alive at
Rock In Rio.

De volta ao Brasil, Andreas passou um tempo compondo a trilha sonora


para a série de TV Dupla identidade, e a banda inteira gravou as músicas.
Um drama policial em torno da caçada a um serial killer, Dupla identidade
teve uma temporada, e a música do Sepultura para o programa foi lançada
somente em formato digital. Embora não seja considerada um lançamento
“oficial”, a trilha sonora de dez músicas, com duração de 22 minutos, é
excepcional, uma mistura atmosférica de paisagens sonoras e riffs
matadores, que serve muito bem para preencher a lacuna entre Mediator e
seu sucessor, a ser composto em 2016, e saciar os fãs. Outra música
violenta é “Dark Side”, que tem duração de um minuto e meio. Foi escrita
como uma espécie de hino para a Dark Side, uma editora brasileira
especializada em literatura sombria e de terror.

Depois de um longo período de férias, a turnê de comemoração dos trinta


anos do Sepultura teve início em 4 de fevereiro de 2015, no cruzeiro
Motorcycle Rock, que partiu de Santos. Eles abriram com uma versão
violentíssima de “From the Past Comes the Storms”, do álbum
Schizophrenia, a primeira composição de Andreas com a banda, e o setlist
teve várias músicas que não eram tocadas ao vivo há anos. “Bestial
Devastation” foi seguida sem intervalo por “Kairos”, enquanto “Breed
Apart” desembocou em “The Vatican”. Músicas antigas e novas
funcionaram perfeitamente juntas, prova de que a essência e o espírito do
Sepultura estavam tão fortes quanto no passado.

A turnê de aniversário continuou na Rússia. Enquanto isso, outros shows


nos Estados Unidos – e, mais importante, os vistos – estavam finalmente
assegurados, e a jornada norte-americana podia começar. Mas, em abril,
outra mudança aconteceu na administração da banda, quando o Sepultura
discretamente rompeu com o último Cavalera associado a ele, a empresária
Monika.

A banda continuou tocando e lançou um monte de merchandise


comemorativo, além de uma música nova, “Sepultura Under My Skin”,
escrita especialmente para os fãs ultradedicados que marcaram a pele com
tatuagens do Sepultura. A capa do single, um mosaico de tatuagens
organizado pelo artista Javier Andrés no formato do S tribal, que é a marca
registrada da banda, homenageia a singular relação estabelecida entre a
banda e os fãs ao longo de décadas. A música foi lançada em formato
digital e em vinil colorido no dia 9 de junho (o lado B tem uma gravação ao
vivo de “Kairos”), mas estreou ao vivo exatamente um mês antes, no Rock
In Rio Las Vegas.

O Rock In Rio é um festival conhecido, em parte, por reunir artistas de


estilos díspares, e a edição de Vegas não foi diferente. No final de sua
apresentação, o Sepultura recebeu o guitarrista Steve Vai no palco, e os
cinco tocaram uma mescla de “Kaiowas” e “Bad Horsie”, de Steve Vai,
bem como a obrigatória “Roots, Bloody Roots”, com um extenso solo de
guitarra. Transmitido ao vivo pela internet, o primeiro Rock In Rio dos
Estados Unidos foi um extraordinário sucesso, um show visto por um
público gigantesco, o que mais uma vez aumentou a visibilidade e a
exposição da banda. Aliás, de todos os músicos que tocaram naquele fim de
semana de rock, incluindo Deftones e Metallica, o jornal Las Vegas Sun
elegeu o Sepultura como destaque e colocou Andreas Kisser fazendo um
headbang com seu estiloso cabelo na capa de sua edição de domingo.

Era a melhor exposição na imprensa, na hora mais apropriada possível.

A jornada norte-americana decolou (quase) sem empecilhos. E, sempre que


a turnê de aniversário parecia estar finalmente chegando ao fim, o
Sepultura agendava mais shows. E mais shows. Depois, mais alguns.
Qualquer banda que planejasse pendurar as chuteiras depois de uma
sequência de shows teria aqui um ótimo momento para fazer isso.

Mas os garotos do Brasil (e de Cleveland) ainda não estão prontos para se


aposentar. Quando jornalistas perguntam a eles: “O que mais vem por aí?”,
os integrantes da banda geralmente respondem: “Quem sabe mais uns trinta
anos”. Ideias para um álbum novo já estão em gestação. Há um sentimento
generalizado no ar, como afirmou Kisser, de que o interesse do público pelo
Sepultura está mais forte do que nunca. Os caras estão contentes, saudáveis,
humildes e satisfeitos com o lugar que ocupam no léxico do heavy metal.

Outro marco está se aproximando. Neste momento, o dia 23 de janeiro de


2016 está a apenas dois meses de distância, uma data que marcará os 25
anos da primeira apresentação do Sepultura no Rock In Rio, em um
escaldante dia de verão, com um set de duração nada invejável, quando os
promotores desejavam – e esperavam – que os brasileiros fizessem um
barulhinho e depois desaparecessem para sempre.

Mas o Sepultura ainda está aqui.

E aqui continuará.

12 de novembro de 2015
ARQUIVO PESSOAL DA BANDA: 20-21, 50, 91, 92-93, 94, 108, 110, 111,
114-115, 119, 121, 124, 126, 130, 131, 132, 136, 139, 145,
147, 149, 152, 154, 155, 156, 176, 178, 184-185, 196, 197,
203, 238-239, 262-263, 271, 272, 275, 276, 301, 304

CORTESIA DE DJALMA AGRA: 107, 188 (foto de Antonio Coelho), 206-


207, 220, 223, 225, 229, 230

CORTESIA DE ERIC HAAS: 84

CORTESIA DE LUANA YANASIB: 219

CORTESIA DE NESTOR JUNIOR: 294, 295

CORTESIA DE TUKA QUINELLI: 38, 44, 46, 48, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 62-
63, 70, 73, 77, 95, 99
JASON KOROLENKO: 286
1 Moshing é um estilo de dança que surgiu na cena hardcore dos anos 1990, que consiste
basicamente em um grupo de pessoas em uma roda jogando-se umas contra as outras.
[N. T.]
1Corpse paint é um estilo de maquiagem branca e preta usada
principalmente por bandas de black metal em shows ou sessões de fotos
para lhes conferir aparência inumana, cadavérica ou demoníaca. [N. T.]
1 A&R é a divisão de prospecção e acompanhamento de novos talentos de uma gravadora.
[N. T.]
1 Hoje, o Bar Veloso se chama Garota de Ipanema, em homenagem à canção. [N. T.]
2 Algumas Turnês Deveriam Mesmo Ficar no Underground. O slogan faz um trocadilho com
os dois sentidos de underground: o sentido literal “sob o solo”, talvez insinuando que a
turnê seja perigosa e furiosa demais e que seria melhor que casse escondida, longe da
sociedade, no subterrâneo; e o sentido gurado, empregado para adjetivar algo,
geralmente uma forma de expressão artística fora do, ou mesmo avesso ao, mainstream,
ou seja, fora da cultura popular e da cultura midiática (e, por consequência, fora da
grande indústria cultural, seja por princípio ou como consequência de posições ou
escolhas estéticas adotadas).
1 Mosh pit (ou roda punk, no Brasil) é uma dança típica de gêneros musicais como punk
rock ou heavy metal. Nesta dança, os participantes movimentam-se de forma agressiva
e brusca, colidindo entre si dentro de um espaço delimitado.
1 IR8: em inglês, lê-se irate, que signi ca irado. [N. T.]
2 Um jogo entre “big” (grande) e “bigger” (maior). [N. T.]
3 Wah-wah é o nome de um pedal de guitarra e do som peculiar que emite. [N. T.]
1 Um trocadilho com o nome da banda, Hatebreed, que pode ser traduzido como cria do
ódio, com Hatebread, pão do ódio. [N. T.]
1 Cockney designa um habitante da região East End de Londres, ou quali ca algo
correlato. [N. T.]

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