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Corpo de baile:

um mundo em transformação
GUIMARÃES ROSA
GUIMARÃES ROSA
Claudia Campos Soares
Doutora em Letras (Literatura Brasi-
leira) pela Universidade de São Paulo.
Professora de Literatura Brasileira da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Resumo
A esmagadora maioria das narrativas rosianas está situada espacialmente no que se poderia chamar, em sentido
amplo, de sertão, região brasileira tradicionalmente caracterizada em nosso pensamento social e história literária
como interior distante, refratário à modernização, onde está praticamente ausente o poder público e inexistem
instituições sociais que garantam às pessoas direitos de cidadãos. Mas o sertão tem suas nuances. Uma delas se
apresenta em Grande sertão: veredas, outra, em Corpo de baile, os dois livros de Guimarães Rosa publicados, com
meses de diferença, em 1956. As novelas que compõem este último livro se passam, mais exatamente, nos gerais,
e revelam um mundo em transformação. As mudanças que aí se verificam indicam que a região está menos dis-
tante do mundo urbano que o sertão propriamente dito, onde se situam as aventuras e os amores de Riobaldo e
Diadorim. E em processo de aproximação crescente.

Palavras Chave
GUIMARÃES ROSA

Guimarães Rosa; Corpo de baile; Características histórico-sociais dos gerais.

Abstract
Most of Guimarães Rosa’s narratives are spatially situated in what could be called, in a broad sense, sertão, a
Brazilian region traditionally characterized in our social thought and in our literary history as being a far-off
countryside, resistant to modernization, where the public administration is practically absent and where the so-
cial institutions that would guarantee the people’s rights as citizens are non-existent. Nevertheless the sertão has
its nuances. One of them is shown in Grande sertão: veredas, and another one in Corpo de baile, the books published
by Guimarães Rosa within a few months in 1956. The novels that comprise the latter are set, most precisely, in the
gerais, and reveal a world in transformation. The changes one observes there are a hint that the region is less dis-
tant from the urban world than the sertão itself, where the adventures and loves of Riobaldo and Diadorim take
place. And they are gradually getting closer.

KEYWORDS
Guimarães Rosa; Corpo de baile; Social-historical characteristics of gerais.

S e r t ão e g e r a i s [...] desde grande parte de Minas Gerais (Oeste


e sobretudo Noroeste), aparecem os “campos ge-
A esmagadora maioria das narrativas rosia- rais”, ou “gerais” – paisagem geográfica que se
nas está situada espacialmente no que se poderia estende, pelo Oeste da Bahia, e Goiás [...], até ao
chamar, em sentido amplo, de sertão. Mas o ser- Piauí e ao Maranhão. § O que caracteriza esses
tão tem suas nuances. Uma delas se apresenta em GERAIS são as chapadas (planaltos, amplas ele-
Grande sertão: veredas; outra, em Corpo de baile, os vações de terreno, chatas, às vezes serras mais ou
dois livros publicados, com meses de diferença, em menos tabulares) e os chapadões (grandes imen-
1956. Esses dois espaços ficcionais representam es- sas chapadas, às vezes séries de chapadas). São de
teticamente duas partes de uma mesma realidade terra péssima, vários tipos sobrepostos de areni-
histórico-social, como se discute a seguir. to, infértil. [...] A vegetação é a do cerrado: arvo-
A ação em Corpo de baile se passa mais exa- rezinhas tortas, baixas, enfezadas [...] E o capim,
tamente nos campos gerais, ou, simplesmente, ge- ali, é de péssima qualidade [...].§ Mas, por entre
rais. Esta extensa – e imprecisamente delimitada as chapadas, separando-as (ou, às vezes, mesmo
– região geográfica do interior do Brasil é descri- no alto, em depressões no meio das chapadas) há
ta detalhadamente por Rosa em carta a Edoardo as veredas. São vales de chão argiloso ou turfo-
Bizzarri, tradutor do livro para o italiano, nos argiloso, onde aflora a água absorvida. [...] A ve-
seguintes termos: reda é um oásis. Em relação às chapadas, elas são,
as veredas, de belo verde-claro, aprazível, macio.

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O capim é verdinho-claro, bom. As veredas são trânsito e percorrem latifúndios e terras devolutas
férteis. Cheias de animais, de pássaros [...]§ Em prestando serviços aos grandes proprietários e se
geral, os moradores dos “gerais” ocupam as ve- envolvendo em grandes batalhas, como as que são
redas, onde podem plantar roça e criar boi [...] narradas em Grande sertão: veredas. Já os gerais são,
(BIZZARRI, 1981, p. 22-23). principalmente, espaços onde “o proprietário tem
sua riqueza defendida e reproduzida não pela ação
O escritor acha necessário descrever a região espetacular dos jagunços, mas pela labuta rotinei-
com tantos detalhes ao tradutor porque costuma ra dos lavradores da terra alheia e dos vaqueiros”
reproduzir suas características, com fidelidade (LIMA, 1999, p. 16). Em Corpo de baile os homens
muitas vezes documental, em seu universo ficcio- não se dedicam à violência como forma de vida,
nal – como se pode observar, por exemplo, na se- embora ela também não esteja muito distante aí.
melhança entre a descrição transcrita acima e a da Lutas jagunças, assassinatos – que acontecem no

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paisagem ao redor da fazenda do misterioso Cara- tempo da narração ou aparecem como lembranças
de-Bronze, na novela homônima: de tempos passados, mas não muito distantes, de
Mar a redor, fim afora, iam-se os Gerais, os Gerais algum personagem – e vida errante não são reali-
do ô e do ao: mesas quebradas e mesas planas, das dades desconhecidas em Corpo de baile.
chapadas, onde há areia; para o verde sujo de más Nas fazendas de gado dos gerais se organizam
árvores, o grameal e o agreste – um capim rude, que pequenas comunidades rurais compostas por: pro-
boca de burro ou de boi não quer; e água e alegre prietário e/ou seu capataz, vaqueiros, pequenos la-
relva arrozã, só nos transvales das veredas, cada vradores e agregados de feitios vários. Administra-
qual, que refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a das pelo próprio dono temos, em Corpo de baile, a
buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos fazenda de Cara-de-Bronze (na novela homônima),
buritizais, os buritizais, os b u r i t i z a i s, os buritis a de seo Senclér (em “A estória de Lélio e Lina”) e
bebentes (ROSA, 1994, p. 669)1. a de iô Liodoro (em “Buriti”), por exemplo; admi-
nistradas por capatazes são a fazenda do Mutum,
Nas baixadas ao redor das veredas – os “oásis” onde moram Miguilim e sua família (em “Campo
verdejantes que brotam em meio aos vastos e secos geral”); e a fazenda da Samarra, cujo administra-
espaços e à vegetação rude do cerrado – concentra- dor é Manuelzão, protagonista de “Uma estória de
se a maioria dos escassos moradores da região. Aí amor”. Estas novelas tratam, entre outras coisas,
estão localizadas as fazendas de gado como a de das possibilidades e dificuldades da vida familiar
Cara-de-Bronze. para os pobres nos gerais (RONCARI, 2004; SOA-
Os gerais são espaço contíguo e complementar RES, 2007). Já no sertão de Grande sertão: veredas, os
em relação ao sertão propriamente dito. De forma jagunços vivem em trânsito permanente, completa-
geral, e em vários sentidos, pode-se dizer, como o mente desgarrados da vida familiar.
faz o ex-jagunço Riobaldo, que os gerais “correm Nos gerais se está um pouco menos longe da
em volta” do sertão (II, 11). São, portanto, uma es- cidade e das instituições que organizam a vida so-
pécie de ante-sala dele. cial. A linha que separa sertão e gerais, entretan-
Sobre o sertão e os gerais, pode-se afirmar to, é tênue e os ambientes às vezes se confundem.
serem, ambos, espaços longínquos, onde o poder Nem para os seus moradores os limites entre eles
público não está presente, e refratários à moderni- são inquestionáveis. É o que demonstram as pa-
zação. Riobaldo diz em Grande sertão: veredas que, lavras de Riobaldo em Grande sertão: veredas: “[...]
no sertão, “criminoso vive seu cristo-jesus arreda- isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situ-
do de arrocho de autoridade” (II, 11); e seo Deo- ado sertão é por os campos gerais a fora a dentro,
grácias, personagem da novela “Campo geral”, de eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do
Corpo de baile, diz em certo momento da narrativa Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curve-
estar escrevendo uma carta ao Presidente da Repú- lo, então, o aqui não é dito sertão?”. E é ele mes-
blica para pedir providências contra os “crimino- mo quem responde: “Enfim, cada um o que quer
sos brutos” que aparecem nas redondezas amea- aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de
çando os moradores da região (I, 482). Criminosos opiniães” (II, 11). A imprecisão acaba sempre des-
vagam por toda parte e não se pode contar com manchando o realismo do mapa porque, como se
a lei em nenhum lugar, mas há uma diferença de sabe, Guimarães Rosa situa suas narrativas em um
grau entre sertão e gerais. O sertão – mais profun- espaço física e historicamente determinado, mas,
do na geografia e no arcaísmo de seus usos e cos- ao recriá-lo esteticamente, introjeta nele elementos
tumes – é lugar onde bandos de jagunços têm livre provenientes das mais diversas culturas. Assim, o

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alcance do sertão rosiano é estendido ao “mundo peito (I, 872).
dos valores inteligíveis à comunidade dos homens” Iô Liodoro é dotado de um enorme magnetis-
(CÂNDIDO, 1987, p. 208). Embora este pequeno mo pessoal – descrito como uma espécie de con-
estudo investigue apenas a influência de questões centração de ser (“uma demasia sã em si”), que
histórico-sociais na constituição do mundo ficcio- nascia dele e transbordava, envolvendo e inspi-
nal rosiano, sabe-se que este é apenas um dentre os rando respeito nos que o rodeavam (“que minava
diversos elementos que a compõem. Como afirma da pessoa e marameava, revertendo na gente uma
Riobaldo, “o sertão” (e também os gerais), na ver- circunstância”). Por isto ele não mandava propria-
dade, “é (são) o mundo”; e “está (estão) mesmo é mente, mas “regia”.
“em toda parte” (II, 11). Pode-se observar também no trecho citado
que ao poderoso senhor do Buriti Bom caracterizam
atitudes e maneiras ao mesmo tempo corteses, co-
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medidas e imperativas: sua “firmeza” é “mansa e


Os Gerais onça”. Isso porque a grande respeitabilidade de iô
Liodoro, essa espécie de força moral, advém tam-
A sociedade dos gerais rosianos tem muito em bém da forma como exerce sua autoridade. Ela está
comum com aquela descrita na clássica interpre- baseada na brandura do mando (que amortece o
tação do Brasil de Gilberto Freyre. Ela é estrutura- conflito inerente à situação de desigualdade social);
da em torno de um núcleo familiar central, legali- na reserva, na discrição (meio de manter a forma-
zado, ao redor do qual gravita uma periferia nem lidade – que evita a proximidade nas relações in-
sempre bem delineada, que inclui empregados e terpessoais e mantém as posições na hierarquia);
agregados de feitios vários. É também caracteri- e no comedimento, que caracteriza até mesmo a
zada pela dominação do chefe; e, em relação a ele, linguagem do grande fazendeiro, seu tom estrito:
é ainda poligâmica; e tem dupla moral sexual: se “No defrontá-lo, todos tinham que se compor com
para o homem da “casa grande” quase todas as re- respeito. Mas era mudamente afável. Exercia uma
lações sexuais são permitidas, à mulher está reser- hospitalidade calma, semi-sorria ao enrolar seu ci-
vada a castidade e, depois do casamento, a fideli- garro de palha. [...] Iô Liodoro falava pouco, [...]
dade. Seguindo os antigos padrões do catolicismo não dava intimidade. Conservava uma delimita-
português, a ela compete resguardar a honra do ção, uma distância” (I, 898).
marido, do pai, dos filhos, da família, enfim. Esse sentimento, que parece quase instintivo,
Os grandes fazendeiros dos gerais rosianos de obediência e temor que o fazendeiro do Buriti
têm também muitas características em comum Bom desperta entre os que convivem com ele ali-
com aquela elite, descrita por Oliveira Vianna, menta uma espécie de mistificação de sua autorida-
cujo poder vem da grande propriedade rural. de. Muito do poder e do “carisma” do grande fazen-
Vianna atribui a essa “classe” um caráter provin- deiro, entretanto, tem fundamento de ordem social:
do “da medula cavalheresca”, que lhe determina: advém do fato, já aqui comentado, de no universo
o sentimento de respeitabilidade, o agudíssimo ficcional de Corpo de baile estar praticamente ausente
senso de dignidade pessoal, a probidade, o res- o poder público e inexistirem instituições sociais que
peito à palavra dada, a independência moral, a al- garantam às pessoas direitos de cidadãos. Por isto,
tivez discreta e digna, o magnetismo pessoal, en- de forma semelhante a do interior do Brasil descrito
tre outras virtudes nobilitantes (VIANNA, 1987, por Oliveira Vianna, aí vigora o sistema paternalista
p. 50-58). de proteção das camadas empobrecidas pelos gran-
Assim é, por exemplo, iô Liodoro, o patriarca des proprietários de terra – que, como conseqüên-
de “Buriti”, a última novela do livro: cia, submetem as primeiras ao seu poder. A plebe
[...] Ao em volta de iô Liodoro, tudo não se conce- rural – sempre à margem ou precariamente instala-
bia calado? Iô Liodoro regia sem se carecer; mas da no processo produtivo, carente de propriedades,
somente por ser duro em todo o alteado, um ho- de mecanismos de assistência e promoção social, e
mem roliço – o cabeça. Seu conspeito era um acaso sem qualquer forma de organização ou fórum ins-
de firmeza mansa e onça, uma demasia sã em si, titucional para reivindicação de direitos – acaba se
que minava da pessoa e marameava, revertendo na alojando “de favor” na propriedade de um podero-
gente uma circunstância [...]. Temiam iô Liodoro? so; ou colocando-se, de outra forma qualquer, sob
Tem um não em todo sim e as pessoas são muito a proteção de um; muitas vezes grata e pronta a
variadas. Aí, em algumas horas, temessem. Mas remunerá-lo com qualquer tipo de serviço.2
não precisavam de dar demonstração. Tinham res- Isto pode ser observado na imagem amigável

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das relações interpessoais fortemente hierarquiza- Sobre ele, afirma Lima (1999, p. 114), que,
das que, em “Buriti”, é apresentada através do tri-
ângulo amoroso formado por iô Liodoro, uma de embora possua uma grande fazenda para pecuá-
suas amantes, D. Dionéia, e o marido desta última, ria, com pastos invejáveis e um plantel de primei-
o Inspetor, no episódio em que eles se encontram ra linha, envolve-se em negócios desastrosos que
aos pés do Buriti-Grande (I, 883-885). acabarão por obrigá-lo a se desfazer da proprie-
O Inspetor – que, como se descobre nesta oca- dade para saldar dívidas. [...] o poder do dinheiro
sião, era sexualmente impotente – estava ajoelha- moderno derrotou um sujeito cuja prosperidade
do sob a palmeira procurando um “capinzinho de repousava sobre o dinheiro antigo – a riqueza
bom remédio” que nhô Gualberto indicara para fundiária.
curá-lo, quando se aproximaram D. Dionéia e iô
Liodoro, que passeavam a cavalo. Nhô Gualberto Seo Senclér, representante de uma antiga no-

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parece esperar do marido ultrajado uma ação vio- breza territorial, perde suas propriedades num
lenta (“Em outros tempos, homem matava homem mundo que vai gradativamente sendo dominado
por causa de mulher!” – I, 885), mas o Inspetor, pelo “vil metal”. É o que sugerem os nomes daque-
sem se levantar do chão, cumprimenta com corte- les que irão doravante, comandar a fazenda do Pi-
sia o amante da mulher. A cena se resolve com o nhém. São eles o novo proprietário, seo Amafra, e
louvor de nhô Gualberto ao comportamento sem- o encarregado, Dobrandino, personagens cujos no-
pre digno do senhor do Buriti Bom: “Quando os mes, segundo Luiz Roncari, “ressoam a chegada da
dois chegaram para junto de nós, tudo tão trivial, mafra, a gente ordinária, e do dobrão, a moeda anti-
tão bem sucedido... Iô Liodoro não franze. Ele é ga”. Seo Senclér, ao contrário, tinha como capataz
homem pelo correto. Ajuda muito ao Inspetor...” o Aristó, cujo nome, é ainda Roncari quem observa,
(I, 885). vem de aristós – que significa o melhor (RONCARI,
Esta fala de nhô Gualberto revela também os 2004, p. 155).
termos em que se coloca o poder do grande fazen- “Dão-Lalalão”, entretanto, talvez seja a novela
deiro. Na ausência de qualquer possibilidade de de Corpo de baile na qual os índices de moderniza-
valer-se de instituições que lhes garantam direitos ção estejam mais evidentes. Além da presença de
civis, os desvalidos dos gerais necessitam da pro- muitos tipos de mercadorias industrializadas (de
teção de um poderoso. É efetivamente iô Liodoro maços de cigarros a caminhões), a novela tem como
quem arca com todas as despesas de D. Dionéia e temas importantes, conforme apontou Theodozio
do marido quando eles precisam se mudar para (2004, p. 226): “primeiro, a integração mercantil
a cidade por causa de uma doença da mulher. de vilas e cidades, e a incorporação ao território
Por esta proteção, entretanto, paga-se o preço da econômico de porções do país antes isoladas; se-
dignidade pessoal. São muito significativas, nes- gundo, a introdução, naquelas áreas, de uma nova
se sentido, a impotência sexual do Inspetor e sua tecnologia de comunicação, o rádio, e sua assimila-
posição rebaixada diante do amante da mulher, ção pela comunidade tradicional”.
como percebe nhô Gualberto: “(O Inspetor) Esta- Como observou Roncari (2007, p. 21), repercu-
va jazente aí, de mãos no chão, catando [...]: figu- tem na novela acontecimentos históricos importan-
rava um besouro bosteiro...” (I, 885). tes dos anos 30 e 40 do século XX,
O tempo do patriarca, entretanto, parece es- anos posteriores ao da Revolução de 1930, quando
tar ameaçado nos gerais de Corpo de baile. Seo Sen- uma política de afirmação do poder central procu-
clér, o fazendeiro de “A estória de Lélio e Lina”, rava substituir o federalismo oligárquico da Pri-
também é um legítimo representante da “nobreza meira República. Nessa época o sertão e as regiões
dos campos” de que fala Oliveira Vianna: como interiores do país começaram a atrair a atenção das
iô Liodoro, “rege”, soberano, sua propriedade e políticas do Estado e a sentir com mais constância a
seus vaqueiros e irradia respeitabilidade. Como presença de seus agentes.
observou Luiz Roncari, sua Casa, sempre que re-
ferida no texto, aparece “grafada com maiúscula, Soropita, o protagonista da estória, é um ex-
de modo a distingui-la das demais e como se fosse valentão que se envolveu nas lutas que ocorreram
a própria ou a única casa, a casa-grande” (RON- no período entre Estado e poderes locais: “Falavam
CARI, 2007, p. 157) 3. [...] que ele era mandado do Governo, pra acabar
O fazendeiro do Pinhém, entretanto, tinha com os valentões aí do norte. [...] Surrupita só li-
muitas dívidas, e acabou tendo de entregar a fa- quidou cabras de fama, só faleceu valentões arres-
zenda aos credores como forma de pagamento. peitados...” (I, 825). Entretanto, atormentado pelo

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passado de lutas sangrentas, tenta se regenerar, tendo cumprido já muitas etapas do processo de
estabelecendo-se com a mulher, Doralda – por sua reencontro com o passado recalcado (PRADO JR.,
vez uma ex-prostituta, cujo passado ele também 1985), Soropita pode desejar a mulher em sua intei-
procura apagar –, como pequeno comerciante no reza, sem precisar ocultar nela as marcas do passado.
povoado do Ão. Roncari observa a respeito da Ainda nessa noite, consegue, também pela primeira
trajetória desse personagem que o seu processo vez, conversar abertamente com Doralda sobre sua
de busca de inserção social ocorre paralelamen- vida anterior e fazer a ela as perguntas que sempre o
te à “busca de uma ordem institucionalizada, atormentaram, mas ele nunca ousara fazer.
na qual a lei substituísse a força” que, no perío- Ao final da novela, enfim reconciliado con-
do em que se passa a estória, empreende o país sigo mesmo, o antigo valentão não precisa mais
(RONCARI, 2007, p. 27). recorrer à violência. Pelo menos não à física. Um
Que uma nova ordem social está se implan- resto de manifestação de força, entretanto, se rea-
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tando nos gerais parece indicar também o fato de liza. Sendo temido como ex-jagunço perigoso e es-
Soropita não tornar a recorrer à violência física tando situado em posição social superior, Soropita
para resolver seu dilema pessoal, ao contrário do acaba descarregando o resto de tensão emocional
que indica o desenvolvimento da trama, como se gerada pelos acontecimentos sobre o “preto Iládio”
discute a seguir. – o companheiro de Dalberto que, segundo Roncari,
Duplamente atormentado (pelo seu passado e tratara o marido de Doralda com uma intimidade
pelo da mulher), Soropita construíra sua nova vida que pareceu ofensiva a sua mentalidade patriarcal
a partir da negação do vivido. Entretanto, um en- (RONCARI, 2007, p. 77). Importa acrescentar que,
contro por acaso com um companheiro das lutas sobre Iládio, Soropita também projetara o ódio que
do passado – que ele temia ter conhecido Doral- sentira no passado pelo “preto Sabarás”, a quem
da em seus tempos de prostituta – ameaça a vida encontrara com Doralda quando fora chamá-la para
que construíra, e características do antigo valentão deixar a casa de prostituição e viver com ele.
ameaçam tornar a vir à tona. No confronto entre os dois personagens “o
Desse momento em diante, desenvolver-se-á, ressentimento pessoal se encontra com a história”
na novela, a promessa, gradativamente intensifica- (RONCARI, 2007, p. 77). Roncari observa que é a
da, da explosão da violência. O desfecho da estó- posição de seu oponente na “ordem branca patriar-
ria, entretanto, frustra essa expectativa. O destino cal” (RONCARI, 2007, p. 78) que permite a Soropita
que Soropita dá a suas inquietações íntimas não é o exercer sobre ele seu arbítrio. Diante da ameaça do
previsível, aquele que sua intimidade anterior com mais forte, Iládio “reafirma a antiga submissão (da
a violência faria supor. Durante a noite em que che- escravidão), volta a seu lugar”, pois, além de humi-
ga a “apalpar a coronha” do revólver (I, 848) dian- lhar-se implorando por sua vida, chama Soropita de
te da ameaça de o amigo desvendar o segredo do “patrão” e “toma a benção do superior” (RONCA-
passado da mulher, acaba recuando quando Dal- RI, 2007, p. 81).
berto expressa drama semelhante ao seu: também É preciso considerar, entretanto, que, apesar de
ele está apaixonado por uma prostituta, Analma, e oprimir e humilhar o mais fraco, Soropita não che-
deseja, mas hesita em viver com ela. O hóspede de ga à violência física – pois o conflito se “resolve”,
Soropita, contudo, parece lidar bem melhor com a principalmente, no plano interior. Como observou
questão que o antigo companheiro de armas – que Bento Prado Jr., a crise do personagem rosiano só
se casou com Doralda, mas tenta, desesperadamen- encontra algum tipo de solução quando ele, enfim,
te, apagar-lhe o passado. Obviamente, como se vê, rende-se ao encontro tão temido com aquele Outro –
ele sempre retorna, de uma forma ou de outra. O que é, na verdade, “o mais profundo de sua própria
amante de Analma, entretanto, não age da mesma identidade” (PRADO JR., 1985, p. 201). Um momen-
forma, pois expõe seu problema ao amigo e com ele to crucial do processo que leva a esse encontro rea-
procura aconselhar-se. Em certo momento, Soropi- liza-se quando, justamente pela mediação da figura
ta se admira da “falta de malícia” de Dalberto (I, de Iládio, Soropita consegue fazer convergir, em
p.848); mais adiante, entretanto, o que o compor- sua imaginação, Izilda, prostituta de suas fantasias,
tamento do amigo parece indicar é que ele é “tão e Doralda (I, p. 833), reintegrando, assim, “o passa-
seguro só assim de si” (I, 851). do no presente”. Nas palavras de Prado Jr. (1985, p.
Nessa mesma noite, quando se deita com Do- 201), “a solução da trama se encontra no momento
ralda, Soropita pede a ela que não diminua a luz em que o herói consegue finalmente ouvir o discur-
do candeeiro, pois queria vê-la como nunca antes: so deste Outro com o qual perdera todo o contato”,
“nua total, de propósito” (I, p.853). A essa altura, pois ele “se perdera na inconsciência”.

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foram suas amantes – como Jini e “as tias”, Tomásia
O anti-clímax em “Dão-Lalalão”, a solução do e Conceição (I, 750). Adélia Baiana é a amante de seo
conflito ocorrida em âmbito psicológico, demons- Senclér durante o tempo em que se passa a estória.
tra que a violência não é mais o principal meio de Ela é mulher do Ustavo, um trabalhador da fazenda,
e, portanto, dependente do amante de sua mulher (I,
solucionar desavenças pessoais nos gerais. A cida-
734). O triângulo que formam esses três personagens é,
de, com suas normas reguladoras da conduta so- por este motivo, muito semelhante ao que formam iô
cial, está bem mais próxima aí do que no sertão, Liodoro, dona Dionéia e o Inspetor.
onde se situam as andanças jagunças e os amores
de Riobaldo e Diadorim. E em processo de aproxi-
mação crescente. Observadas essas características, REFERÊNCIAS
é possível perceber que Corpo de Baile representa
literariamente uma situação de confronto entre for-
BIZZARRI, Edoardo. João Guimarães Rosa: correspondên-
ças tradicionais e emergentes. A partir de outras cia (com seu tradutor italiano). 2.ed. São Paulo: T. A. Quei-

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interpretações do Brasil e de percepções e reflexões roz/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1981.
próprias acerca do momento histórico em que vi- CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros en-
via, Guimarães Rosa construiu também sua visão saios. São Paulo: Ática, 1987.
do país. Nela, o escritor investiga aspectos do com- LIMA, Nísia Trindade Lima. Um sertão chamado Brasil: in-
plexo trânsito da nação pelas sendas da moderni- telectuais e representação geográfica da identidade nacional.
zação, e se pergunta, como o ex-jagunço Riobaldo: Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ/UCAM, 1999.
“cidade acaba com o sertão. Acaba?” (II, 111). PRADO Jr., Bento. O destino decifrado. In: ______. Alguns
ensaios: filosofia, literatura, psicanálise. São Paulo: Max Li-
monad, 1985, p.195-226.
Notas
RONCARI, Luiz. O cão do sertão. In: _____. O cão do sertão:
literatura e engajamento. São Paulo: UNESP, 2007.
1 Os trechos da obra de Guimarães Rosa transcritos nes-
te trabalho foram extraídos da Ficção completa, em dois RONCARI. Luiz. O Brasil de Rosa: mito e história no uni-
volumes (1994), e serão indicados pelo número do vo- verso rosiano: o amor e o poder. São Paulo: Editora UNESP,
lume em algarismos romanos seguido do número de 2004.
página em algarismos arábicos. ROSA, Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. 2v.
2 A outra alternativa de que dispõem os homens da ple- SOARES, Claudia Campos. Considerações sobre Corpo de
be rural é se transformarem em jagunços, e adentrarem baile. Itinerários, 25, 2007, p.41-68.
o sertão profundo. Roncari (2007, p. 26) observa que o
THEODOZIO, Vera. “Ondas de rádio no Ao”. Caderno de
que o jagunço busca é “através do poder de sua violên-
resumos do III Seminário Internacional Guimarães Rosa.
cia, escapar ao destino da plebe deserdada”.
PUC Minas, 2004, p.226.

3 Também como Iô Liodoro, Seo Senclér tem uma vida VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil: po-
sexual muito ativa com mulheres da periferia. Muitas pulações rurais do centro-sul. 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia;
das que habitam ao redor da casa grande do Pinhém Niterói: EdUFF, 1987.

“A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por

Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de

beleza é também um dever cristão.”

Grande sertão: veredas

ângulo 115, out./dez., 2008, p. 40-47. 47

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