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Amael Oliveira1
INTRODUÇÃO
Da infância, tem pequenos detalhes. Eu morei na Jabotiana quando era pequeno. São
reminiscências, mas não histórias que tenham acontecido comigo mesmo. Nunca
escrevi nada que fosse um fato da minha vida mesmo. [...] Eu era, vamos dizer assim, o
pobre remediado. [...] Nós não tínhamos renda. A renda era do sítio: vender manga,
vender coco. Mas dentro do próprio sítio havia o morador com a pobreza dele, com os
filhos, e eu sempre fui muito observador. [...] Sabe aqueles meninos barrigudos, pés no
chão, cheios de doenças? (VIANA, 2009, p. 3)
Existe um preconceito muito grande também do Nordeste, porque todo mundo acha que
todo mundo é regionalista, que vai falar do sertão, da seca, do sofrimento do homem,
com o pote na cabeça. Aí quando eles descobriram que havia erotismo dentro dessa
miséria toda, viram que era uma coisa nova. (VIANA, 2009, p. 3)
Ainda que não se considere um regionalista, Viana admite que todo autor
escreve a partir do que está a sua volta. “Calha de eu estar no Nordeste, e é disso que
posso falar com mais verdade. A gente parte do local, mas precisa ampliá-lo até
alcançar ressonâncias maiores”. (VIANA, 2010).
É nessa ligação com o local unida, ao mesmo tempo, ao esforço de reelaboração
desse material empírico que reside um dos pontos mais importantes da obra do escritor
sergipano, a construção de uma imagem diferente do sertão. Consciente do uso
ideológico dessa categoria, utilizada, principalmente no período colonial, para
dissimular o massacre aos índios, Viana humaniza o sertão, elaborando em meio ao
clima hostil personagens que descobrem no próprio corpo, por meio da sexualidade, o
verde ausente na vegetação. “Pela primeira vez adivinhei o que era uma campina verde,
devia ser assim, diferente de tudo o que eu tinha visto até então”, afirma o protagonista
de “O meio do mundo”. (VIANA, 1999, P. 15)
Dito isso, esse trabalho procura analisar as imagens do sertão que o autor
constrói no conto “O meio do mundo”, publicado inicialmente em 1993 e reeditado pela
Companhia das Letras em 1999. O conto é um marco importante da obra vianiana,
porque foi o que deu projeção nacional para o escritor até então desconhecido pela
crítica e pela academia. A obra também foi adaptada para o cinema em curta-metragem
produzido por Marcus Vilar exibido no Festival de Curtas de Sergipe.
REGIONALISMO E SERTÃO
De modo geral, denotava “terras sem fé, lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral,
de natureza ainda indomada, habitadas por índios “selvagens” e animais bravios, sobre
as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas, detinham pouca informação e
controle insuficiente. (AMADO, 1995, p. 6)
Etimologicamente, a palavra vem do latim De-Sertum, supino de desere,
significa “o que sai da fileira”, e teria passado à linguagem militar para indicar o que
deserta, o que sai da ordem, o que desaparece, gerando o substantivo desertanum para
indicar o lugar desconhecido aonde ia o desertor. (VICENTINI, 1998, p. 41)
Desta forma, o sertão está ligado etimologicamente a ideia de lugar
desconhecido, fora do controle oficial. A aproximação com o conceito de deserto não é
meramente acidental, mas reflete a noção disseminada de ser um espaço hostil, isolado e
de povoamento precário. Além disso, os habitantes do sertão são, desde o sentido
etimológico de desertor, marginalizados.
Assim, o sertão foi se definindo ao longo dos anos a partir não só do discurso da
história e geografia, mas também do literário. Amado lembra que o termo é ainda uma
referência institucionalizada sobre o espaço do Brasil que, segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), corresponde a uma das subáreas nordestinas, árida e
pobre. (AMADO, 1995, p. 145).
Na historiografia literária brasileira, Antonio Candido (1987) aponta três
momentos decisivos para elaboração da categoria sertão. Conforme explica o crítico
brasileiro, que estuda o fenômeno pelo viés da dependência cultural, a noção de pátria
estava vinculada à idéia de natureza e, na ausência de um passado de glórias e do atraso
material, fora o pretexto para a “supervalorização dos aspectos regionais, fazendo
exotismo razão de otimismo social.” (CANDIDO, 1987, p. 141) Nesse sentido, o
regionalismo seria uma “forma privilegiada de expressão literária nacional”
(CANDIDO, 1987, p. 159).
A partir daí, Candido estabelece três fases para o fenômeno do regionalismo
literário no Brasil. A primeira fase que se vincula ao movimento romântico e a
consequente consciência eufórica de país novo. A essa fase, Candido chama de
regionalismo pitoresco, porque é caracterizada pela ênfase no elemento exótico, no
modo de falar peculiar, enfim, a elaboração de uma realidade de caráter turístico.
Talvez não sejam menos grosseiras certas formas primárias de nativismo e regionalismo
literário, que reduzem os problemas humanos a elemento pitoresco, fazendo da paixão e
do sofrimento do homem rural, ou das populações de cor, um equivalente dos mamões e
dos abacaxis. [...] Redunda em fornecer a um leitor urbano europeu ou europeizado
artificialmente, a realidade quase turística que lhe agradaria ver na América.
(CANDIDO, 1987, p. 157, grifo do autor).
O segundo momento, caracterizado na historiografia literária brasileira pelo
regionalismo de 30, corresponde, para Candido (1987, p. 159), à fase de pré-consciência
do subdesenvolvimento e que ele chama de Regionalismo Problemático. Essa fase é
importante, porque corresponde à superação do otimismo patriótico e é pautado pelo
“senso mais realista das condições de vida, bem como dos problemas humanos dos
grupos desprotegidos”. (CANDIDO, 1987, p. 160).
São dessa fase as obras de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, José Lins do
Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida. O crítico
argumenta que já nessa fase o qualificativo regional perde o sentido de ser. “Mas isso
não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior
importância”, acrescenta o crítico. (CANDIDO, 1987, p. 161)
A terceira fase do regionalismo na historiografia brasileira está demarcada pelo
surgimento da obra revolucionária de Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas
(1956). Essa nova fase é caracterizada, segundo Candido, pela “consciência dilacerada
do subdesenvolvimento e por uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na
referência a uma visão empírica do mundo”. (CANDIDO, 1987, p. 162)
Além da ausência do sentimentalismo e da retórica ufanista, esse momento se
caracteriza pelo gosto por “elementos não-realistas, como o absurdo, a magia das
situações de técnicas antinaturalistas, como o monólogo interior, a visão simultânea, o
escorço, a elipse [...], do exotismo e do documentário social.” (CANDIDO, 1987, p.
161)
Por estar próxima ao surrealismo ou super-realismo, Candido chama a essa fase
de super-regionalista e a obra de Guimarães Rosa, maior representante desse terceiro
momento, é para o crítico o que se poderia chamar de a “universalidade da região”.
(CANDIDO, 1987, p. 162).
Como se pode notar, inclusive pela preocupação do crítico em delimitar três
momentos, ou ainda, três tipos de regionalismo, a construção do sertão está imbricada
na história do regionalismo no Brasil. Essa categoria, no entanto, se destaca dentro dos
tipos de literatura regional por ser um dos elementos constituintes da identidade
nacional e, nesse contexto, convém aprofundar o papel do discurso literário para
elaboração dessa geografia imaginativa.
O papel ideológico desse fenômeno também lhe é característico, uma vez que foi
por conta desse discurso que o colonizador usou das maiores atrocidades contra o
colonizado que se afastando da faixa costeira buscou abrigo em regiões mais adentradas
do país. Foi assim não só com os índios, mas também com os negros fugitivos. Logo,
existe uma oposição também imbricada nessa relação de alteridade, a noção de que o
litoral é a área da civilização e o sertão, da barbárie.
Partindo, então, do trabalho do historiador da literatura Edward Said que, em sua
obra Orientalismo, da qual se faz uma homenagem no título desta seção, contesta o
status do oriente por ser uma construção discursiva do ocidente, este trabalho também
procura destacar o papel da obra literária para elaboração do discurso sobre o sertão, o
sertanejo e, consequentemente, sobre a identidade nacional.
A partir das observações de Walia (2004) acerca do Oriente, é possível fazer
uma correlação entre Oriente/Ocidente e, no caso brasileiro, Sertão/Litoral. Assim como
o Oriente, o sertão se transforma em um Eu substitutivo do litoral sobre o qual emergem
posições essencialistas como a violência, a esperteza, a miserabilidade, sempre tomadas
como características desse Outro exótico. “Também tendem a ser visto como
homogêneo: as pessoas desse lugar são massas anônimas em vez de indivíduos.”
(WALIA, 2004, p. 53)
Assim, como observa Walia (2004), o uso sutil de estereótipos, fundados
obsessivamente no caráter primitivo da cultura sertaneja, tornou possível a legitimação
da prática do colonialismo cruel. Tanto a submissão como até a exterminação foi
justificada a partir da missão civilizadora empreendida pelo colonizador. E como
acrescenta Said, quando trata da oposição leste/oeste, “nem o termo oriente nem o
conceito de Ocidente têm estabilidade ontológica; ambos são constituídos de esforço
humano – parte afirmação, parte identificação do Outro”. (SAID, 2008, p. 13)
Da mesma forma, pode-se afirmar que tanto o sertão como o litoral não são
identidades fixas, mas em constante processo de troca, de negociação. Não existe um
sertão como uma realidade duradoura ou mesmo uma essência que o particularize. E, se
a história é feita por homens e mulheres, como atesta o historiador, “do mesmo modo
ela também pode ser desfeita e reescrita, sempre com vários silêncios e elisões, sempre
como formas impostas e desfiguramentos tolerados”. (SAID, 2008, p. 14)
Assim cada obra literária acerca do sertão produz, nesse sentido, um discurso
sobre o sertão, uma representação do Brasil. Não há uma postura de neutralidade dentro
desse debate. Por conseguinte, cada autor deve estar consciente de que a sua produção é
também elaboradora de um construto espacial. E é a consciência dessa condição que
pode levá-lo a superar o discurso do colonizador para dar voz ao discurso do
colonizado, não como expressão direta da oralidade popular, mas como trabalho de
reelaboração imaginativa desse espaço. É dentro desse contexto que se está inserindo a
obra do autor sergipano Antonio Carlos Viana que, como se propõe aqui, é também um
processo de reelaboração do sertão.
ERA UMA CASA SÓ NO MEIO DO MUNDO
A estrada era comprida que nem só, mais ainda que a do mulungu onde a gente ia ver o
doutor uma vez por ano. Meu pai na frente, calado mais que nunca, o sol ardendo na
cabeça, até que ele pôs um lenço no cocuruto calvo. [...] E lá íamos no silêncio da areia
quente esfolando os pés, minha alpercata mais comida que a correia de amolar faca. [...]
Só sabia que a estrada era um nunca de ter fim, as casinhas rareando, criação perdida
vez ou outra por entre a capoeira do mato. (VIANA, 1999, p. 13)
A representação do sertão como local árido de clima hostil está presente. Mas
diferentemente do que ocorre em outras narrativas regionalistas, como em Vidas de
Secas (1938) de Graciliano Ramos ou O Quinze (1930) de Rachel de Queiroz, o clima
não é o foco problematizador da narrativa. Os personagens de Viana não estão fugindo
da seca. Na verdade, existe uma espécie de adaptação dos personagens ao clima de
maneira que ele não surte o efeito devastador que possuiu para as obras da geração de
30 do modernismo.
Outro elemento característico do regionalismo de tendência sertanista é a
propensão para o discurso falado. A oralidade também está presente de maneira saliente
não só por ser um conto narrado em primeira pessoa, que garante maior proximidade do
texto ao personagem, mas também pelo trabalho de escolha vocabular do próprio autor.
Logo, podem-se encontrar expressões do registro falado como “cocuruto” ou regências
verbais pouco usuais na modalidade escrita como “íamos no silêncio” ao lado de
vocábulos presentes também no registro culto como “alpercata” e “calvo”.
Dessa forma, Viana não restringe o falar sertanejo ao modo exótico de expressão
que foi a tônica dos regionalistas do Romantismo brasileiro, nem apresenta os
personagens sob a ótica do turista que procura a nuança peculiar. Viana, por assim
dizer, deixa os personagens falarem por si mesmos, procurando evitar o olhar do
homem citadino que descreve o sertão para outro homem também citadino. Isto porque,
de acordo com Vicentini (1998), a literatura sertanista como letra representante de um
mundo iletrado não existe, exceto na literatura oral ou popular. Logo, “o mundo da
literatura sertanista é o mundo do escritor citadino fingido de sertanejo, que escreve para
um leitor também ele citadino, a respeito de uma cultura diferente da sua”.
(VICENTINI, 1998, p. 44)
Outra importante crítica que Vicentini tece é voltada para o tratamento dado ao
tema. Segundo a pesquisadora, há obras sertanistas que conseguem superar a tradição
fundada em estereotipo, propondo um tratamento singular do tema. Essas obras,
conforme Vicentini, “se tornam paradigmas dentro do qual se renovam, completamente,
esses velhos temas”. (VICENTINI, 1998, p. 44).
Dessa forma, Viana supera o tema da seca, dos flagelos dos retirantes, da miséria
e do abandono social para propor uma leitura do sertão a partir do seu conteúdo
humano. Essa leitura humanista se articula às demais obras sobre esse espaço
geográfico que é, ao mesmo tempo, empírico e imaginativo. É empírico, porque pode
ser localizado a partir de coordenadas geográficas, e imaginativo, porque é a elaboração
discursiva de um espaço.
Nesse último caso, é possível perceber que Viana realiza um jogo verbal com a
expressão “meio do mundo” em oposição a “fim de mundo”, uma das representações
recorrentes do sertão. No conto, esse espaço deixa de ser o lócus do desertor, ou seja,
um local que engendra a perda da noção espacial como num labirinto. Para Viana, o
sertão é o centro do mundo.
Assim, como esclarece Walia (2004, p. 84) a partir da obra de Said, o autor
nunca está morto, sempre está presente com alguma intenção concreta, ainda que se veja
afetado pelas pressões sociais. Logo, a posição de Viana parte da condição de
subalternidade ou de periferia de sua obra. Como escritor consciente de sua condição,
Viana resiste ao discurso de poder que instituiu o sertão como lócus da barbárie para
propor um sertão humano, um sertão que está dentro das pessoas como já dissera certa
vez Guimarães Rosa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8,
n.15, 1995, p. 145-151.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987,
p. 140-162.
VIANA, Antonio Carlos. Escrita livre: entrevista com Antônio Carlos Viana.
Disponível em: http://www.escritalivre.com.br/entrevista/antonio_carlos_viana-
16_09_05.php. Acesso em: 06 de dez. 2010.
VIANA, Antonio Carlos. O meio do mundo. In: VIANA, Antonio Carlos. O meio do
mundo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 13-16.
VIANA, Antonio Carlos. Sem dó nem piedade: entrevista concedida a Flávia Martins.
Cinform, Aracaju, 15 jun. 2009. Caderno Cultura & Variedades, p. 3.