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THOMAS S.

SZASZ

A
FRABRICAÇÃO
DA LOUCURA
um estudo comparativo entre
a Inquisição e o movimento de Saúde Mental

Tradução de
Dante Moreira Leite
do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo

ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:
The Manufacture of Madness

Traduzido da primeira edição, publicada em 1971


por ROUTLEDGE & KEGAN PAUL, de Londres
Copyright © 1971 by Thomas S. Szasz

capa de ÉRICO

1976

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por


ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00,
Rio que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil
Sumário

AGRADECIMENTOS ................................................................................................. 7
PREFÁCIO .............................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 13
Parte I A INQUISIÇÃO E A PSIQUIATRIA INSTITUCIONAL ............................... 21
1 OS PROTETORES E OS INIMIGOS INTERNOS DA SOCIEDADE ............................. 22
2 A IDENTIFICAÇÃO DO MALFEITOR ..................................................................... 43
3 A AUTENTICAÇÃO DO MALFEITOR..................................................................... 56
4 A DEFESA DA ÉTICA DOMINANTE ...................................................................... 68
5 A FEITICEIRA COMO DOENTE MENTAL .............................................................. 77
6 A FEITICEIRA COMO TERAPEUTA ....................................................................... 90
7 A FEITICEIRA COMO BODE EXPIATÓRIO .......................................................... 101
8 OS MITOS DA FEITIÇARIA E DA DOENÇA MENTAL .......................................... 115
Parte II FABRICAÇÃO DA LOUCURA ............................................................. 134
9 OS NOVOS FABRICANTES — BENJAMIN RUSH, O PAI DA PSIQUIATRIA
AMERICANA ........................................................................................................ 135
10 O PRODUTO DA CONVERSÃO — DA HERESIA À DOENÇA ............................. 154
11 O NOVO PRODUTO — A INSANIDADE MASTURBATÓRIA.............................. 171
12 A FABRICAÇÃO DO ESTILO MÉDICO ............................................................... 193
13 O BODE EXPIATÓRIO MODELAR DA PSIQUIATRIA — O HOMOSSEXUAL....... 223
14 A EXPULSÃO DO MAL ..................................................................................... 238
15 A LUTA PELO AMOR-PRÓPRIO ....................................................................... 251
EPÍLOGO: “O PÁSSARO PINTADO” ...................................................................... 262
APÊNDICE: UMA HISTÓRIA SINÓPTICA DAS PERSEGUIÇÕES POR FEITIÇARIA E
DOENÇA MENTAL ............................................................................................... 265
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 296
O objetivo deste ensaio é (....) uma tentativa para compreender a época
em que vivemos. Poder-se-ia pensar que um período que, num espaço de
cinquenta anos, desloca, escraviza ou mata setenta milhões de pessoas
deveria ser imediatamente condenado. No entanto, sua culpa precisa ser
compreendida. Em épocas mais inventivas, quando o tirano saqueava as
cidades para conseguir maior fama, quando o escravo acorrentado ao
carro de vitória passava pelas ruas em festa, quando os inimigos eram
lançados a feras selvagens diante do povo, a mente não vacilava diante de
tais crimes, e o julgamento era claro. No entanto, os campos de escravos
sob a bandeira da liberdade, os massacres justificados pela filantropia ou
pelo gosto do super-homem paralisam o Julgamento. No dia em que o
crime — por curiosa transposição, peculiar à nossa época — coloca a
roupagem da inocência, é esta que precisa justificar-se.

Albert Camus
A minha filha, Suzy
AGRADECIMENTOS

Sou profundamente grato a um bom número do pessoas que me ajudaram


generosamente na preparação deste livro.
Tenho uma dívida muito especial para com meu irmão, Dr. George Szasz, que
aquinhoou-me com seu amplo conhecimento de cultura histórica, encaminhou-me para
fontes importantes, forneceu matéria de jornais o periódicos europeus o leu com
espírito crítico vários esboços do manuscrito inteiro.
Desejo agradecer também ao Dr. Bruce de Monterice, por haver lido esboços
a
sucessivos do manuscrita e oferecido muitas sugestões valiosas; à Dr. Shirley Rubert,
por haver chamado a atenção para importantes fontes bibliográficas e fornecido algumas
delas; ao Professor George J. Alexander, codiretor da Escola de Direito da Universidade
de Syracuse, Nova York, por haver lido o capítulo 13 e esclarecido questões de Direito e
a
Psiquiatria; ao Sr. Nobert Slepyan e à Sr. Ann Harris, meus preparadores de originais da
editora Harper & Row, pelas excelentes sugestões para melhorar e organizar o
manuscrito; ao Sr. Arthur Ecker, pela assistência editorial; ao pessoal da Biblioteca da
Escola de Direito da Universidade de Syracuse, especialmente à Srta. Judith Smith, e ao
pessoal da Biblioteca da Universidade de Nova York, Centro Médico do Norte do Estado,
pelos esforços incansáveis para a obtenção dos trabalhos consultados na preparação
desta obra; e ao pessoal da secretaria do Departamento de Psiquiatria do Centro Médico
do Norte do Estado — Sras. Francês Rogers e Betty Handley, Srta. Lois Fay e
a
especialmente minha secretária, Sr. Margaret Bassett — por haver datilografado vários
esboços do manuscrito.
Quero apresentar ainda meus agradecimentos sinceros nos seguintes editores por
haver-me concedido permissão para fazer citações em todo o decorrer deste livro:
Anti-Semita and Jew, Jean Sartre, tradução inglesa de George J. Becker. Copyright ©
1948 by Schocken Books, Inc. Transcrito com permissão de Schocken Books, Inc.
The Anxiety Makers, Alex Comfort. Copyright © 1967 by Books and Broadcast Ltd. Usado
com permissão dos editores, Delacorte Press, Nova York, e Thomas Nelson & Sons
Ltd., Londres.
The Autobiography of Benjamin Rush, organização de George W. Corner. Copyright, 1948
by the American Philosophical Society. Transcrito com permissão do editor,
Princeton University Press.
Collected Papers of Sigmund Freud, organização de Ernest Jones, do Volume XII da Edição
Padrão de The Complete Psychological Works of Sigmund Freud, 1959. Transcrito
com permissão: de Basic Books, Inc., Sigmund Freud Copyrights Ltd., The Institute
of Psycho-Analysis, e the Hogarth Press Ltd., Londres.
Corydon, André Gide. Transcrito com permissão do editor, Farrar, Straus & Giroux, Inc.,
Editions Gallimard (© 1924).
The Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, Rossel Hope Robbins. © 1959 by Crown
Publishers, Inc. Usado com permissão.
Epilegomena to the Study of Greek Religion and Themis, Jane Ellen Harrison. Transcrito
com permissão de University Books, Inc., New Hyde Park, N.Y., 1962.
The Golden Bough, James George Frazer. Nova York, Macmillan, 1942. Transcrito com
permissão de The Macmillan Company.
Handbook of Community Psychiatry and Community Mental Health, Leopold Bellak. Nova
York, Grune & Stratton, 1964. Transcrito com permissão de Grune & Stratton, Inc.
A History of Medical Psychology, Gregory Zilboorg, em colaboração com George W.
Henry, M.D. Copyright, 1941, W. W. Norton & Company, Inc. Transcrito com
permissão do editor.
A History of the Inquisition of Spain, H. C. Lea, Nova York, Macmillan, 1906-1907.
Transcrito com permissão da University of Pennsylvania Press.
The Individual and Society in the Middle Ages, Walter Ullman. Baltimore, The Johns
Hopkins Press, 1966. Com permissão do editor.
The Inquisition of the Middle Ages, H. C. Lea. Nova York, Citadel, 1961. Transcrito com
permissão de Citadel Press, Inc.
“The Kreutzer Sonata”, de The Death of Ivan Ilych and Other Stories, Leon Tolstoy,
tradução inglesa de Aylmer Maude. Transcrito com permissão do editor, Oxford
University Press, Londres.
The Lost World of Thomas Jefferson, Daniel J. Boorstin. Copyright © 1948, Daniel J.
Boorstin. Transcrito com permissão de Beacon Press.
Malleus Maleficarum, James Sprenger e Heinrich Krämer. Transcrito com permissão de
Marianne Rodker e da Hogarth Press Ltd., Londres.
“Masturbatory Insanity”, E. H. Hare, de The Journal of Mental Science, Londres, 108: 1-
25. Transcrito com permissão do British Journal of Psychiatry, Londres.
The Medical Man and the Witch During the Renaissance, Gregory Zilboorg. Baltimore,
The Johns Hopkins Press, 1935. Transcrito com permissão do editor.
The Mentally Ill in America, Albert Deutsch, Nova York, Columbia University Press, 1952.
Transcrito com permissão da Columbia University Press,
Nineteen Eighty-Four, George Orwell, Copyright, 1949 by Harcourt, Brace & World, Inc.
Transcrito com permissão de Brandt & Brandt e A. M. Hcath, Londres.
“No Neurotics in China”, Goffredo Parise, transcrito com permissão de Atlas Magazine e
Corriere Della Sera, Milão.
One Hundred Years of Psychiatry, Emil Kraepelin. Philosophical Library, 1962. Nova York.
Transcrito com permissão de Philosophical Library, Inc.
The Painted Bird, Jerzy Kosinski. Transcrito com permissão da Houghton Mifflin
Company, Boston.
Perceval’s Narrative, Gregory Bateson, Stanford University Press, 1961. Transcrito com
permissão do editor.
“Psychopathic Personality and Sexual Deviation”, Thomas R. Byrne, Jr., e Francis M.
Mulligan. De 40 Temple Law Quarterly. Copyright © 1967 by Temple University.
Usado com permissão do editor.
“Rejection: A Possible Consequence of Seeking Help for Mental Disorders”, Derek L.
Phillips, De The American Sociological Review, 28: 963-972, dez., 1963. Transcrito
com permissão de Sociological Association.
Revolutionary Doctor: Benjamin Rush, 1746-1818, Carl Binger, M.D. Copyright © 1966 by
W. W. Norton & Company, Inc. Transcrito com permissão do editor, W. W. Norton
& Company, Inc.
Saint Genêt, Jean-Paul Sartre, tradução inglesa de Bemard Frechtman. Transcrito com
permissão de George Braziller, Inc., e W. H. & Co. Ltd.
Satanism and Witchcraft, Jules Michelet. Nova York, Citadel, 1965. Transcrito com
permissão de Citadel Press, Inc.
Three Hundred Years of Psychiatry, Richard Hunter e Ida Macalpine, publicado pela
Oxford University Press. Usado com permissão.
The Waning of the Middle Ages, Johnn Huizinga. Copyright, 1949 by St. Martin’s Press.
Garden City. N.Y.: Doubleday- Anchor, 1954. Transcrito com permissão do autor,
St. Martin’s Press, e Edward Arnold (Publishers) Ltd., Londres.
Witchcraft in England, Christina Hole. Transcrito com permissão de B. T. Batsford Ltd.,
Londres, e The Macmillan Company, Nova York.
PREFÁCIO

... a função do escritor esta cheia de pesadas tarefas. Por


definição, não pode servir hoje aos que fazem a história;
precisa servir àqueles que estão submetidos a ela.
1
Albert Camus

Hoje, muitos acreditam que, assim como algumas pessoas sofrem de doenças do fígado
ou dos rins, outras sofrem de doenças da mente ou da personalidade; que as pessoas
vítimas dessas “doenças mentais” são psicológica e socialmente inferiores às que não as
sofrem; que os “doentes mentais”, por causa de sua suposta incapacidade para “saber o
que é melhor para eles” devem ser cuidados por suas famílias ou pelo Estado, mesmo
que esse cuidado exija intervenções impostas a eles contra sua vontade, ou
encarceramento num hospital psiquiátrico.
Considero todo esse sistema de crenças, práticas e conceitos interligados como
2
falso e imoral. Em livro anterior, The Myth of Mental Illness (O Mito da Doença Mental),
tentei mostrar como e por que o conceito de doença mental é errado e enganador.
Neste livro, tentarei mostrar como e por que as convicções éticas e as disposições sociais
baseadas nesse conceito constituem uma ideologia imoral de intolerância.
Especificamente, irei comparar a crença em feitiçaria e a perseguição de feiticeiras à
crença em doença mental e a perseguição de doentes mentais.
A ideologia da doença e da saúde mental serve a uma necessidade moral,
evidente e premente. Como a obrigação clássica do médico é tratar os pacientes que
sofrem, mas para isso obter o seu consentimento e só fazê-lo em seu benefício, é
necessário explicar e justificar as situações em que os indivíduos são “tratados” sem seu
consentimento e em seu prejuízo. O conceito de doença mental ou insanidade atende a
essa necessidade. Permite que os membros “sadios” da sociedade lidem, como
quiserem, com os seus semelhantes que são categorizados como “insanos”. Mas, depois
de ter retirado do louco seu direito de julgar o que é melhor para ele, as pessoas — e
sobretudo os psiquiatras e juízes, seus especialistas médicos e jurídicos em loucura — se
livraram das coerções corretivas do diálogo. É em vão que o suposto louco afirma que
não está doente; sua incapacidade para “reconhecer” que está louco é considerada
como sinal de sua doença. Em vão rejeita tratamento e hospitalizações como formas de
tortura e prisão; sua recusa a submeter-se à autoridade psiquiátrica é considerada como
outro sinal de sua doença. Em sua rejeição médica do Outro como um louco,

1
Albert Camus, The Rebel, pp. v-vi.
2
Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness.
reconhecemos, em roupagem semântica atual e técnica, mas de forma subjacente sem
nenhuma mudança, sua antiga rejeição como um herético.
Evidentemente, não é fácil rejeitar as ideologias bem entrincheiradas — como o
foi o Cristianismo messiânico e como é hoje a Psiquiatria messiânica. Uma vez que se
aceitem as premissas básicas de uma ideologia, as novas observações são percebidas de
acordo com suas imagens e apresentadas em seu vocabulário. O resultado disso é que,
embora as novas observações não possam subverter o sistema de crenças, os novos
“fatos” criados pela ideologia constantemente dão nova confirmação de sua tese. Isso foi
verdade para a crença em feitiçaria e a existência correspondente de feiticeiras, e é
verdade hoje para a crença na doença mental e a existência correspondente de doentes
mentais.
Infelizmente, é mais fácil perceber os erros de nossos antepassados do que os de
nossos contemporâneos. Todos nós sabemos que não há feiticeiras; no entanto, há
poucas centenas de anos, as maiores e mais nobres mentes estavam convencidas de sua
existência. Então, é possível que nossa crença na doença mental tenha tão poucos
fundamentos? E que nossas práticas, baseadas nesse conceito, sejam igualmente
destrutivas da dignidade pessoal e da liberdade política?
Essas perguntas não são inúteis ou pouco importantes. De nossas respostas a elas
depende, não apenas o destino de milhões de norte-americanos rotulados como doentes
mentais, mas, indiretamente, o destino de todos nós. Pois, como já fomos advertidos
repetidamente, uma injustiça feita a uma pessoa — sobretudo numa sociedade que
aspira a ser livre — é uma injustiça feita a todos. Em minha opinião, a “saúde mental” —
no sentido de bem-estar espiritual — dos norte-americanos não pode ser melhorada por
slogans, medicamentos, centros comunitários de saúde mental, ou mesmo com bilhões
de dólares gastos numa “guerra contra a doença mental.” O principal problema na
Psiquiatria foi, e continua sendo, o da violência: a violência ameaçada e temida do
“louco” e a violência contrária e real da sociedade e do psiquiatria contra ele. Disso
resultam a desumanização, a opressão e a perseguição do cidadão estigmatizada como
“mentalmente doente”. Se isso é verdade, seria melhor atentar para a advertência de
John Stuart Mill: “... é contrário à razão e à experiência supor que possa haver qualquer
3
controle real da brutalidade quando a vítima é deixada sob o domínio do carrasco.” A
melhor, realmente a única, esperança para remediar o problema da “doença mental” é
*
enfraquecer — e não fortalecer — o poder da Psiquiatria Institucional. Apenas quando
essa instituição peculiar for abolida, serão liberadas as forças morais da psicoterapia livre
**
de coação. Apenas então as potencialidades da Psiquiatria Contratual poderão

3
John Stuart Mill, The Subjection of Women, pp. 251-252.
*
Por Psiquiatria Institucional indico geralmente as intervenções psiquiátricas impostas por outros às pessoas. Essas intervenções
se caracterizam por perda completa de controle pelo cliente ou “paciente” de sua participação em suas relações com o
especialista. O serviço típico de Psiquiatria Institucional é a hospitalização involuntária em hospital psiquiátrico.
**
Por Psiquiatria Contratual indico geralmente as intervenções psiquiátricas aceitas por pessoas que são levadas a elas por
sofrimento ou dificuldades pessoais. Essas intervenções se caracterizam pela retenção de completo controle, pelo cliente, ou
“paciente”, de sua participação na relação com o especialista. O serviço típico de Psiquiatria Contratual é a psicoterapia
autônoma. Para maior discussão, ver pp. 21 e 22.
desenvolver-se — como um diálogo humano criativo, não prejudicado por lealdades
institucionais e tabus sociais, comprometido com o auxílio ao indivíduo em sua luta
perpétua para ascender, não apenas acima das coerções do instinto, mas também acima
4
do mito.
Em resumo, este é um livro sobre a história da Psiquiatria Institucional — desde
suas origens teóricas na Teologia cristã até suas práticas atuais, baseadas na retórica
médica e impostas pelo poder da polícia. Talvez nunca tenha sido maior do que hoje a
importância, para o homem, de uma compreensão de sua história. Isso ocorre porque a
história, como nos lembra Collingwood, “está voltada para o autoconhecimento
humano. (...) Conhecer a si mesmo significa conhecer o que você pode fazer; e como
ninguém pode saber o que pode fazer antes de tentar, a única indicação quanto ao que o
homem é capaz de fazer é aquilo que o homem já fez. Portanto, o valor da história é que
5
nos ensina o que o homem fez e, assim, o que o homem é.” Ao mostrar o que o homem
fez, e continua a fazer, a seus semelhantes, em nome da ajuda, espero ampliar a nossa
compreensão do que o homem é, bem como o conhecimento do que chega a ser quando
levado pela coerção, ainda que bem justificada por retórica de autoelogio, e o que ainda
pode vir a ser se substituir o controle do Outro pelo autocontrole.
Este livro não pressupõe competência ou instrução específica do leitor — apenas
uma mente aberta. Mas exige uma outra coisa dele — que considere, seriamente, com
Samuel Johnson, que o “inferno está calçado com boas intenções”, e que
conscientemente aplique esta advertência à ideologia, à retórica e aos rituais da
organização política característica de nossa época — o Estado Terapêutico.

Thomas S. Szasz
Syracuse, Nova York

4
Thomas S. Szasz, The Ethics of Psychoanalysis.
5
R. G. Collingwood, The Idea of History, p. 10.
INTRODUÇÃO

... será que houve alguma vez uma tirania que não parecesse
natural aos que dominavam?
1
John Stuart Mill

O conceito de doença mental é análogo ao de feitiçaria. No século XV, os homens


acreditavam que algumas pessoas eram feiticeiras, e que alguns atos eram devidos à
feitiçaria. No século XX, os homens acreditam que algumas pessoas são insanas, e que
alguns atos são devidos à doença mental. Há quase dez anos passados, tentei mostrar
que o conceito de doença mental tem o mesmo status lógico e empírico que o conceito
de feitiçaria; em resumo, que a feitiçaria e a doença mental são conceitos imprecisos e
excessivamente abrangentes, livremente adaptáveis a quaisquer usos que deles queiram
2
fazer o sacerdote ou o médico (ou o “diagnosticador” leigo). Agora, pretendo mostrar
que o conceito de doença mental serve, no mundo contemporâneo, à mesma função
social que tinha o conceito de feitiçaria no fim da Idade Média; em resumo, que a crença
na doença mental e as ações sociais a que conduz têm as mesmas consequências morais
e políticas que a crença na feitiçaria e as ações sociais a que conduzia.
Henry Sigerist, decano dos historiados de Medicina nos Estados Unidos, escreveu
que “na mudança de atitude com relação à feitiçaria, a Psiquiatria nasceu como
3
disciplina médica”. Esta opinião tem sido interpretada como indicação de que as
pessoas supostamente feiticeiras eram realmente doentes mentais, e que, em vez de
serem perseguidas por heresia, deviam ter sido tratadas como insanas.
Embora eu concorde com Sigerist e com outros historiadores da Medicina quando
afirmam que a Psiquiatria se desenvolveu na medida em que a perseguição às feiticeiras
declinou e desapareceu, minha explicação difere radicalmente da que eles apresentam.
Dizem que isso ocorreu porque houve uma gradual compreensão de que as pessoas
consideradas heréticas eram realmente doentes mentais. Digo que isso ocorreu porque
houve uma transformação de uma ideologia religiosa, numa ideologia científica: a
Medicina substituiu a Teologia; o alienista substituiu o inquisidor; o insano substituiu a
feiticeira. O resultado foi a substituição de um movimento religioso por um movimento
médico de massa, e a perseguição dos doentes mentais substituiu a perseguição dos
heréticos.

1
John Stuart Mill, The Subjection of Women, p. 229.
2
Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness.
3
Henry Sigerist, “Introduction”, em Gregory Zilboog, The Medical Man and the Witch During the Renaissance, pp. ix-x.
Os homens que acreditavam na feitiçaria criavam feiticeiras ao atribuir esse papel
a outros, e às vezes a si mesmos. Dessa maneira, literalmente fabricavam feiticeiras cuja
existência, como objetos sociais, provava a realidade da feitiçaria. Afirmar que a feitiçaria
e as feiticeiras não existiam não significa, evidentemente, que não existissem a conduta
pessoal exibida pelas supostas feiticeiras ou as perturbações sociais que lhes eram
atribuídas. Na época da caça às bruxas, havia realmente pessoas que perturbavam ou
incomodavam os outros — por exemplo, homens cujas práticas e crenças religiosas
diferiam das da maioria, ou mulheres que, como parteiras, assistiam o parto de
natimortos. Essas mulheres e esses homens eram muitas vezes acusados de feitiçaria e
perseguidos como feiticeiros. O importante é que essas feiticeiras não escolhiam o papel
de feiticeiras; eram definidas e tratadas como feiticeiras contra sua vontade: em resumo,
o papel era atribuído a elas. No que se refere às feiticeiras acusadas, certamente teriam
preferido, se tivessem escolha, ser esquecidas pelos defensores da Igreja e do poder do
Estado.
Certamente, uma vez que o papel social de feiticeira tivesse sido estabelecido
pela combinação irresistível de opinião de autoridade, propaganda difusa e credulidade
popular, ocasionalmente ocorria que algumas pessoas afirmassem ser feiticeiras.
Declaravam ter as ideias e os sentimentos característicos de feiticeiras: abertamente
proclamavam seu status divergente, a fim de conseguir seus objetivos específicos (que
poderia ser dar sentido a suas vidas ou cometer um tipo de suicídio indireto). Essas
feiticeiras escolhiam o papel que estavam representando; eram voluntariamente
definidas e tratadas como feiticeiras; em resumo, assumiam o papel de feiticeira.
No passado, os homens criavam feiticeiras; hoje, criam doentes mentais. No
entanto, também aqui é importante lembrar que afirmar que as doenças mentais e os
pacientes insanos não existem não significa que não haja a conduta pessoal apresentada
pelas pessoas classificadas como mentalmente doentes, ou alguns tipos de perturbações
sociais a eles atribuídos. Hoje, realmente existem indivíduos que não obedecem à lei, ou
desafiam as convenções da moralidade e da sociedade — por exemplo, homens que
usam heroína, ou mulheres que desprezam seus bebês recém-nascidos. Essas mulheres e
esses homens são frequentemente acusados de doença mental (quando são classificados
como “viciados” ou “psicóticas de pós-parto”) e perseguidos como doentes mentais
*
(através de internamento e tratamento involuntários). O fundamental é que esses
doentes mentais não escolhem o papel de doente mental; são definidos e tratados como
doentes mentais contra sua vontade; em resumo, esse papel é atribuído a eles. No que
se refere aos acusados de doença mental, prefeririam, se o pudessem, ser esquecidos
pelos defensores do poder Médico e do Estado.
Em outras palavras, se nosso objetivo é ver claramente as coisas, e não confirmar
as crenças populares e justificar as práticas aceitas, precisamos distinguir nitidamente

*
O doente mental, especialmente quando assim definido contra sua vontade, talvez seja interpretado de maneira mais adequada
como um “divergente”, seja da sociedade como um todo, ou de um grupo menor, geralmente a família. O indivíduo que difere de
seus semelhantes, que perturba ou escandaliza sua família ou a sociedade, é muitas vezes condenado como insano; às vezes, nem
precisa representar um papel de divergência para ser declarado louco. Essa degradação psiquiátrica atende a importantes
necessidades dos membros “mentalmente sadios” do grupo.
três classes afins, mas distintas, de fenômenos: em primeiro lugar, acontecimentos e
comportamentos — por exemplo, o nascimento de um natimorto, ou a rejeição do bebê
sadio por sua mãe; em segundo lugar, suas explicações através de conceitos religiosos ou
médicos — por exemplo, feitiçaria ou doença mental; em terceiro lugar, seu controle
social, justificado pelas explicações religiosas ou médicas, com a utilização de
intervenções teológicas ou terapêuticas — por exemplo, queimar feiticeiras ou internar
os insanos contra sua vontade.
Podemos aceitar a realidade de um acontecimento ou de um comportamento,
mas rejeitar a explicação e os métodos geralmente aceitos para seu controle. Na
realidade, as disputas mais emotivas tanto na ciência quanto na religião têm-se
centralizado, não no fato do determinados acontecimentos serem ou não reais, mas no
fato de suas explicações serem verdadeiras e as ações usadas para suprimi-los serem
boas. Os que realmente acreditavam em feitiçaria sustentavam que os problemas
humanos eram provocados pelas feiticeiras e que o fato de queimá-las era bom; os que
se opunham a essa teoria consideravam falsa a explicação e más as medidas por ela
justificadas. Os que realmente acreditam em doença mental sustentam que os
problemas humanos são provocados pelos doentes mentais e que o seu internamento
em hospitais é bom; os que se opõem a essa teoria consideram a explicação como errada
*
e as medidas por ela justificadas como más.
Como o papel social do doente mental foi estabelecido pela ainda hoje irresistível
combinação de opinião de autoridade, ampla propaganda e credulidade popular, ocorre
às vezes que as pessoas afirmem estar mentalmente doentes. Dizem ter as ideias e os
sentimentos característicos de pessoas mentalmente doentes; abertamente afirmam seu
status divergente a fim de obter seus fins específicos (que pode ser fugir ao serviço
militar ou alguma outra obrigação, ou ferir a si mesmos ou suas famílias).
Evidentemente, as pessoas podem também definir-se como mentalmente doentes a fim
de conseguir o auxílio psiquiátrico de que precisam e que desejam. Geralmente, essas
pessoas sabem que não estão fisicamente doentes e que sua doença é metafórica.
Assumem o papel de doente mental como o preço que precisam pagar para conseguir os
serviços de um especialista cujos clientes são socialmente definidos dessa forma. No
entanto, o conceito de doença mental não é necessário nem útil para a prática de
4
psicoterapia “de contrato”. Na realidade, os “pacientes de psicoterapia” são muitas
vezes “tratados” por terapeutas não médicos, como, por exemplo, psicólogos e
assistentes sociais. A maior parte do que está dito neste livro não se aplica a esses
pacientes, seus terapeutas ou à relação entre eles.

*
Como as pessoas não gostam de acontecimentos inexplicados e problemas não-resolvidos, tendem a aceitar cegamente — e não
examinar criticamente e, se necessário, rejeitar — as explicações globais, por exemplo, as de feitiçaria e doença mental. Sem
dúvida, foi por isso que a crença na feitiçaria e as práticas de cura do Estado Teológico não foram simplesmente abandonadas,
mas substituídas pela crença na loucura e as práticas de cura do Estado Terapêutico. A mitologia da doença mental e as medidas
de repressão por ela justificadas talvez não sejam abandonadas até que possam ser substituídas por outro sistema de crenças e
uma instituição social nele baseada. Esperemos que a mudança, quando ocorrer, seja um aperfeiçoamento.
4
Ver Thomas S. Szasz, The Ethics of Psychoanalysis.
Embora, às vezes, algumas pessoas assumissem voluntariamente o papel de
feiticeiras, nos estudos históricos sobre as caças às feiticeiras corretamente se aceita
sem discussão que a feiticeira era colocada involuntariamente nesse papel, e que a
instituição responsável por sua situação era a Inquisição. Neste estudo, vou proceder de
forma semelhante. Embora às vezes algumas pessoas assumam voluntariamente o papel
de doente mental, vou supor que o doente mental é colocado involuntariamente nesse
papel, e que a organização responsável por sua situação é a Psiquiatria Institucional. Para
fazer uma distinção clara entre o paciente voluntário e o involuntário, usualmente indico
a vítima da relação psiquiátrica pelo rótulo de “paciente involuntário”, o seu opressor
pelo rótulo de “psiquiatra institucional” e o sistema que autoriza e corporifica sua
interação pelo rótulo de “Psiquiatria Institucional”.
A característica econômica mais importante da Psiquiatria Institucional é que o
psiquiatra institucional é um empregado burocrático, pago pelos seus serviços por uma
organização particular ou oficial (não pelo indivíduo que é o seu cliente ostensivo); sua
característica social mais importante é o uso de força e fraude. Além, do processo de
imposição e do internamento a longo prazo do “insano”, as intervenções do psiquiatra
institucional incluem diversas medidas — entre as quais o exame dos acusados para
verificar sua sanidade ou sua capacidade para enfrentar julgamento, de empregados
para verificar sua capacidade para um emprego, de candidatos à universidade, faculdade
de Medicina ou Instituto de Psicanálise para verificar sua adequação para a admissão
nessas instituições, de histórias de pessoas mortas para verificar sua “capacidade para
5
fazer testamento”, e assim por diante. Os psiquiatras empregados pelos hospitais
psiquiátricos públicos, por serviços de saúde das universidades, pelas organizações
militares, pelos tribunais, pelas prisões e outros em posição semelhante são, segundo
essa definição, psiquiatras institucionais.
A característica econômica mais importante da Psiquiatria de Contrato é que o
psiquiatra de contrato é um empresário particular, pago pelo cliente pelos seus serviços;
sua característica social mais importante é que evita a força e a fraude (e a existência de
punições legais para seu uso). A relação entre o psiquiatra de contrato e o paciente se
baseia em contrato, livremente aceito por ambos, e, de modo geral, livremente res-
cindível por ambos (embora o terapeuta renuncie a algumas de suas opções a respeito).
6
O contrato consiste em uma troca de serviços psiquiátricos por dinheiro, em resumo,
enquanto o psiquiatra institucional se impõe a seus “pacientes”, que não lhe pagam, não
desejam ser seus pacientes e não têm liberdade para rejeitar sua “ajuda” — o psiquiatra
de contrato se oferece a seus pacientes, estes precisam pagar-lhe, precisam desejar ser
seus pacientes e têm liberdade para recusar sua ajuda.
Tal como ocorria com a feiticeira europeia típica do século XV, o doente mental
norte-americano típico de nossos dias é usualmente uma pessoa pobre que está em
dificuldade ou é acusada de criar dificuldades, e que é, contra sua vontade, declarada

5
Ver Thomas S. Szasz. Law, Liberty, and Psychiatry, e Psychiatric Justice.
6
Ver Thomas S. Szasz, “Psychotherapy: A sociocultural perspective, Comptehensive Psychiat., 7: 217-223 (ag.), 1966.
mentalmente doente. Essa pessoa pode aceitar o papel ou tentar repudiá-lo; o psiquiatra
institucional, colocado diante dela, pode tentar mantê-la dentro de seu papel, e talvez
num hospital, por um longo tempo, ou pode libertá-la depois de período relativamente
breve de encarceramento. Em qualquer caso, as autoridades psiquiátricas têm um
controle total da relação.
Para um exemplo da maneira pela qual o fato de ser pobre e indesejado
predispõe uma pessoa a ser colocada no papel de doente mental, deve ser suficiente o
caso seguinte, tirado dos jornais. “Os promotores representando clientes da assistência
social testemunharam... diante da Comissão Estadual de Assistência Social que ‘em seis
ou sete oportunidades, nos dois últimos anos, pessoas que recebiam auxílio e que
ameaçavam criar problemas para os assistentes sociais do Departamento da cidade (de
7
Nova York) foram enviados para a enfermaria psiquiátrica do Hospital Bellevue.’ “
Para um exemplo da maneira pela qual o fato de ser acusada de criar
perturbações predispõe uma pessoa a ser colocada no papel de doente mental,
considerem-se os exemplos seguintes. Em 1964, um total de 1.437 indivíduos “sob
acusação ou queixa nos tribunais penais de Massachusetts foram levados... para
8
observação de pré-julgamento de sua situação mental.” Em linguagem bem clara, 1.437
pessoas foram tratadas — por período maior ou menor — como se fossem mentalmente
doentes, apenas porque tinham sido acusadas de um delito. Isso corresponde a
aproximadamente o dobro das pessoas assim tratadas oito anos antes. Além disso, das
1.437 pessoas detidas para observação temporária (usualmente dois meses), 224, ou
aproximadamente um sexto, foram novamente detidas por um período indefinido do
encarceramento. Em 1964, apenas no Tribunal de Manhattan, 1.388 acusados foram
detidos para exame psiquiátrico pré-julgamento, e desses, um quarto foi novamente
9
detido por período indefinido de encarceramento.
Cito esses relatórios, não como exemplos de abusos infelizes do sistema de
hospital psiquiátrico, que precisassem de correção por cidadãos esclarecidos, mas, ao
contrário, como exemplos característicos de um padrão psiquiátrico difuso de
mortificação, intimidação e degradação, que confirma o direito de algumas autoridades
sociais para colocar alguns indivíduos, principalmente de classes socioeconômicas
inferiores, no papel de doentes mentais. Sustentar que uma instituição social sofre
apenas “abusos” é supor que tem alguns outros usos bons ou desejáveis. Isso, em minha
opinião, tem sido a fraqueza fatal das inúmeras exposições — antigas e recentes,
10
literárias e especializadas — sobre hospitais psiquiátricos estatais. Minha tese é bem

7
John P. Callahan, “Welfare clients called coerced”, New York Times, 22 de julho, 1967, p. 22.
8
A. Louis McGarry, “Competency for trial and due process via the State mental hospital, Amer. J. Psychiat., 122: 623-630
(dez.), 1965.
9
Edith E. Asbury, “Faster mental examinations ordered for defendants here”, New York Times, 8 de julho, 1967, p. 26
10
Como mostra, ver Anton Pavlovich Chekhov, “Ward No. 6”, em Seven Short Stories by Chekhov, pp. 106-157; Mary Jane
Ward, The Snake Pit; Frank L. Wright, Jr., Out of Sight, Out of Mind; Lois Wille, “The mental health clinic, Expressway to
asylum”, Chicago Daily News, 26 de março, 1962: “11 times 12? Youth flunks mental exam’, ibid., 27 de março 1962; “Misfiled
card saves salesman from mental hospital”, ibid., 28 de março, 1962; “Why refugee asked for ticket to Russia”, ibid., 29 de
março, 1962; S. J. Micciche, Bridgewater holds colony of lost men”, Boston Globe, 20 de fev., 1963: “Some jailed 40 yars for
truancy”, ibid., “Consultant psychiatrist, The scandal of the British mental hospital”, Manchester Guardian, 19 de março, 1965;
diferente: em palavras bem simples, é que não há nem pode haver abusos da Psiquiatria
Institucional, pois esta é, em si mesma, um abuso; de forma semelhante, não havia, e
não podia haver, abusos da Inquisição, pois a Inquisição era, em si mesma, um abuso. Na
realidade, assim como a Inquisição era o abuso característico do Cristianismo, a
Psiquiatria Institucional é o abuso característico da Medicina.
Em outras palavras, é razoável e útil falar dos usos e abusos de alguns
empreendimentos humanos complexos — por exemplo, a Religião e a Medicina (ou a
Ciência e o Direito). Mas não é razoável e é equívoco falar de usos e abusos de
instituições (religiosas, médicas, políticas ou de outros tipos) que, por causa de seus
métodos característicos e indispensáveis, consideramos incompatíveis com nossos
padrões de moralidade e dignidade humanas. Evidentemente, o que é compatível ou
incompatível com nosso padrão de moralidade ou dignidade humanas varia de época
para época e de pessoa para pessoa. Enquanto viveu, a Inquisição não ofendia as
sensibilidades da maioria das pessoas — embora individualmente os homens fizessem
tudo o que podiam para ficar fora de seu alcance. Da mesma forma, a Psiquiatria
Institucional não ofende as sensibilidades de maioria das pessoas — embora
individualmente os homens façam tudo o que possam para ficar fora de seu alcance.
Baseando-me claramente no julgamento moral de que a Psiquiatria Institucional é
um abuso, tanto da personalidade humana quanto da relação de tratamento, desejo que
me entendam claramente: ao descrever suas operações, estarei exemplificando seus
usos, não seus abusos. Assim, tentarei mostrar que, se a Psiquiatria Institucional é
prejudicial ao chamado doente mental, isso não se deve ao fato de que esteja sujeita a
abusos, mas, no contrário, porque ferir as pessoas classificadas como insanas é sua
função essencial: a Psiquiatria Institucional é, por assim dizer, planejada para proteger e
enaltecer o grupo (a família, o Estado), ao perseguir e degradar o indivíduo (como insano
11
ou doente).
Embora neste estudo eu tenha usado o método sociológico de estudo da
divergência, sempre que possível evitei denominar “divergentes” as feiticeiras e os
doentes mentais. As palavras têm uma vida própria. Por mais que os sociólogos insistam
que o termo “divergente” não diminui o valor da pessoa ou do grupo que são assim
classificados, a suposição de inferioridade está presa à palavra. Na realidade, os
sociólogos não estão inteiramente isentos de culpa: descrevem os viciados em drogas e
os homossexuais como divergentes, embora nunca empreguem o termo para falar dos
vencedores de Prêmio Nobel ou de campeões olímpicos. Na realidade, o termo
raramente é aplicado a pessoas que tenham características admiradas — por exemplo,
grande riqueza, habilidades superiores, ou fama — embora seja frequentemente
aplicada para os que têm características desprezadas — por exemplo, pobreza, falta de
habilidades aceitas no mercado de trabalho, ou desonra.

Norman Shrapnel. ‘‘Mental hospitais disclosures appall MP”, ibid., 20 de março, 1965; Sylvia Wilson, “The Cinderellas”
(Cartas), ibid., 30 de março, 1965; D. J. Harvey, Typícal conditions (cartas), ibid., 30 de março, 1965.
11
Ver Capítulos 4 e 12-14.
Por essa razão, não aceito a suposição tácita e intrínseca na qualificação de
doentes mentais como divergentes: que, como tais pessoas diferem, ou supostamente
diferem, da maioria, são ipso facto doentes, más, ou erradas, enquanto a maioria é
saudável, boa, sábia ou correta. A expressão “divergentes sociais” para indivíduos
considerados doentes mentais é insatisfatória por uma outra razão: não torna
suficientemente explícito — ao contrário do que ocorre com os termos “bode
expiatório” ou “vítima” — que as maiorias usualmente classificam as pessoas ou grupos
como “divergentes” a fim de colocá-los à parte, como seres inferiores, e para justificar
seu controle social, sua opressão, perseguição ou até destruição completa.
É bom lembrar que os papéis são artefatos sociais. A divergência no papel, por
isso, só tem sentido no contexto de leis e costumes sociais específicos. O delinquente é
divergente porque desobedece à lei; o homossexual porque quase todos são
heterossexuais; o ateu porque a maioria acredita, ou diz acreditar, em Deus. Embora o
afastamento com relação a uma norma estatística de comportamento seja um critério
importante de divergência social, não é o único. Uma pessoa pode ser considerada
divergente apenas porque sua conduta difere de uma norma socialmente aceita, mas
também porque difere de um ideal moralmente aceito. Assim, embora um casamento
feliz seja provavelmente exceção e não regra, a pessoa solteira ou infeliz no casamento é
muitas vezes considerada psicologicamente anormal o socialmente divergente. Há
tempos atrás, quando a masturbação era indiscutivelmente tão frequente quanto hoje,
os psiquiatras consideravam essa prática como um sintoma e causa de insanidade.
Portanto, a divergência social é um termo que abrange uma vasta categoria. Que
tipos de divergência social são considerados como doenças mentais? A resposta é que
são aqueles que provocam uma conduta pessoal que não está de acordo com regras de
saúde mental psiquiatricamente definidas e impostas. Se a recusa de narcóticos é uma
regra de saúde mental, a ingestão de narcóticos será um sinal de doença mental; se a
conduta calma é uma regra de saúde mental, a depressão e a excitação serão sinais de
doença mental, e assim por diante.
Por mais evidente que isso possa parecer, em grande parte não são avaliadas suas
consequências para nossa compreensão da doença mental e da Psiquiatria Institucional.
O fato é que, cada vez que os psiquiatras criam uma nova regra de saúde mental, criam
uma nova classe de indivíduos mentalmente doentes — assim como, cada vez que os
legisladores promulgam uma nova lei restritiva, criam uma nova categoria de
delinquentes. Por exemplo, a proposição de que o preconceito contra os judeus é uma
12
manifestação de psicopatologia, aceita ao lado da opinião de que os soldados norte-
13
americanos que se casam com mulheres vietnamitas ou brancos que se casam com
14
negras, são mentalmente doentes — alguns dos inúmeros casos da inflação
contemporânea do conceito de doença mental — é apenas uma estratégia para ampliar

12
Philip Shabecoff. “Rightist activity rises in Germany”, New York Times, 2 de niarço, 1966, p. 14; “Neo-Nazi activity rises in
Germany”, ibid., 6 de março, 1966, p. 14.
13
“Study depicts GI who marries in Vietnam as a troubled man”, ibid., 25 de fev., 1967, p .7.
14
John Osmundsen, “Doctor discusses “mixed” marriage”, ibid., 7 de nov., 1965, p. 73.
a categoria de pessoas que podem ser legitimamente classificadas como mentalmente
doentes. Como as consequências da classificação como doente mental incluem alguns
castigos — por exemplo, degradação pessoal, perda de emprego, perda do direito de
guiar automóvel, de votar, de firmar contratos válidos, de responder a processo, e, em
último lugar, mas não menos importante, o encarceramento num hospital psiquiátrico,
talvez pelo resto da vida — a expansão da categoria de pessoas que podem ser assim
denominadas é essencial para a ampliação da extensão e do poder do Movimento de
Saúde Mental e seus métodos psiquiátricos de controle social. Como esses controles
sociais — seus conceitos subjacentes, suas formas retóricas, suas aplicações legais
específicas — se assemelham às da Inquisição, é algo que será demonstrado na Parte I.
Na Parte II, seguiremos o desenvolvimento dos métodos contemporâneos de fabricação
de loucura, e mostraremos que a Psiquiatria Institucional atende a uma necessidade
humana básica — validar o Eu como bom (normal), mas invalidar o Outro como mau
(mentalmente doente).
Parte I

A INQUISIÇÃO E A PSIQUIATRIA
INSTITUCIONAL

Nas situações de desespero, os homens sempre se valerão


de meios de desespero. (...) Se a razão nos fez fracassar,
sempre resta a ultima ratio, o poder do milagroso e
misterioso.
1
Ernest Cassirer

[O Grande Inquisidor] (...) também cuidamos dos fracos. São


pecadores e rebeldes, mas no fim também ficarão
obedientes. Ficarão maravilhados conosco e nos verão como
deuses, pois estamos prontos para suportar a liberdade que
lhes pareceu tão amedrontadora e tão dominadora — pois
para eles parecerá terrível ter liberdade. Mas nós lhes
diremos que somos servos do Senhor, e que é em nome do
Senhor que governamos. Nós os enganaremos novamente
(...) Esse engano será nosso sofrimento, pois seremos
obrigados a mentir.
2
Fyodor Dostoievski

1
Ernst Cassirer, The Myth of the State, p. 350.
2
Fyodor Dostoyevsky, The Brothers Karamazov, p. 301.
1
OS PROTETORES E OS INIMIGOS
INTERNOS DA SOCIEDADE

Não posso aceitar sua regra de que devemos julgar o Rei e o


Papa como diferentes dos outros homens, com a suposição
favorável de que não cometeram erros. Se deve haver
alguma suposição, esta deve, inversamente, ser contra os
detentores do poder, aumentando à medida que aumenta o
poder. A responsabilidade histórica deve substituir a
ausência de responsabilidade legal.
1
Lord Acton

Antigamente, quase todos acreditavam em bruxaria, magia simpática e feitiçaria. Os


homens têm uma intensa necessidade do perceber as causas de catástrofes naturais,
epidemias, infelicidades pessoais e morte. A magia e a feitiçaria dão uma teoria primitiva
para explicar essas ocorrências, e métodos adequados para enfrentá-las.
O comportamento das pessoas que difere do apresentado por seus semelhantes
— seja por ficar abaixo dos padrões do grupo, seja por superá-los — constitui um
mistério semelhante e uma ameaça; as noções de posse pelo demônio e loucura dão
uma teoria primitiva para explicar esses acontecimentos e os métodos adequados para
enfrentá-los.
Essas crenças universais, bem como as práticas a elas ligadas, são os materiais a
partir dos quais os homens constroem os movimentos e as instituições sociais. As
crenças que levaram às caças às bruxas existiam muito antes do século XIII, mas só então
a sociedade europeia as usou como base para um movimento organizado. Esse
movimento — cujo objetivo ostensivo era proteger a sociedade contra o mal — se
tornou a Inquisição. O perigo era a feiticeira; o protetor, o inquisidor. De forma
semelhante, embora o conceito de loucura existisse bem antes do século XVII, apenas
então a sociedade europeia começou a organizar um movimento baseado nela. Esse
movimento — cujo objetivo ostensivo era também proteger a sociedade contra o mal —
foi a Psiquiatria Institucional. O perigo era o louco; o protetor, o alienista. A perseguição
às feiticeiras durou mais de quatro séculos. A perseguição de doentes mentais já dura há
mais de três séculos e sua popularidade está aumentando.

1
John Emerich Edward Dalberg Acton, “Letter to Bishop Mandell Creighton”, em Essays on Freedom and Power, p. 335.
Imediatamente, duas perguntas aparecem: se o conceito de feitiçaria era antigo e
conhecido, por que, no século XIII, um movimento persecutório de massa se cristalizou
em volta dele? De forma semelhante, se o conceito de loucura era velho e conhecido,
por que, no século XVII, em volta dele se cristalizou um movimento persecutório de
massa?
Em consequência de certo número de desenvolvimentos históricos — entre eles,
os contatos com culturas estranhas durante as Cruzadas, a evolução do “contrato
feudal”, o crescimento do mercantilismo e de uma classe média — as pessoas se
libertaram de seu secular entorpecimento e começaram a procurar respostas novas para
os problemas da vida. Discutiam a autoridade clerical e começavam a depender cada vez
mais da observação e da experimentação. Assim nasceu a ciência moderna, o que
preparou o ambiente para o adiado conflito entre ela e a Teologia.
A sociedade medieval europeia era dominada pela Igreja. Numa sociedade
religiosa, a divergência é conceituada em ter que, no meio de uma sociedade cristã,
teimosamente rejeitava a divindade de Jesus — e por mais que diferissem entre si —
eram categorizados como “heréticos”; e, assim, cada um deles era um inimigo do Deus,
perseguido pela Inquisição. Walter Ullman, ao escrever a História da Idade Média, assim
se manifesta: “Aceitar, publicamente, opiniões que eram contrárias à fé determinada e
fixada pela lei era heresia, e a razão real para fazer da heresia um crime era — segundo a
explicação do Decretum de Graciano — que o herético mostrava arrogância intelectual
quando preferia suas opiniões às daqueles que tinham qualificações para pronunciar-se a
respeito de questões de fé. Consequentemente, a heresia era alta traição, cometida
contra a majestade divina, cometida através da aberração com relação à fé estabelecida
2
pelo papado.”
No entanto, como o lembra Ullman, do ponto de vista medieval “essa supressão
da opinião do indivíduo não era considerada como violação de seus direitos ou de sua
dignidade como cristão, pois um cristão que atacava sua fé ficava privado de sua
dignidade. (...) Matar esse indivíduo não violava sua dignidade, assim como matar um
3
animal não influi na dignidade de ninguém.”
Nessa época, o elo que unia os homens não era a lei secular a que, como
cidadãos, tivessem dado seu consentimento; ao contrário, como cristãos, obedeciam sem
discutir à lei divina, pois tinham fé em Deus e em seus representantes na Terra. Por um
milênio, até a última parte da Idade Média, o ideal de relações sociais não era a
reciprocidade, mas o domínio benevolente e a submissão leal. As obrigações do sujeito
eram unilaterais: não tinha meios para impor os deveres ostensivos dos superiores com
relação a ele. À maneira dos autores romanos clássicos, o governante era considerado
como “o pai comum de todos”. Os folhetos medievais não se cansam de acentuar o
dever efetivo do rei quanto aos cuidados com os “membros mais fracos” da sociedade.
Mas esse reconhecimento, como o observa Ullman, “estava muito longe de dar aos

2
Walter Ullman, The Individual and Society in the Middle Ages, p. 37.
3
Ibid.
sujeitos (...) qualquer direito próprio e autônomo com o qual pudessem enfrentar o rei.
Se este não cumprisse seu dever, nenhum poder na Terra poderia obrigá-lo a fazer isso.
A frequência dessas exortações estava em proporção inversa com a possibilidade prática
4
e teórica de traduzi-las para a realidade.”
Por milênios, o modelo teórico das relações sociais, considerado como o modelo
divino para a vida na Terra, assim como no céu e no inferno, parecia aos homens a única
ordenação possível dos problemas humanos. Por razões psicológicas óbvias, esse modelo
tem uma atração permanente para os homens. Esse ideal de relação social não-recíproca
começou a ser minado, no século XII, pelo estabelecimento do contrato feudal, no qual
se estabelecia uma reciprocidade de obrigações entre o senhor e o vassalo. O Diffidatio,
ou repúdio do contrato feudal pelo vassalo se o senhor não cumprisse seus deveres ou
ultrapassasse a ligação contratual, não se baseava em complexas teorias ou doutrinas,
5
mas decorria na prática feudal. Ullman acentua que os “princípios feudais não foram
impostos de ‘cima’ à sociedade, mas se desenvolveram gradualmente pela lenta
consideração das exigências sociais reais. (...) A erudição histórica passou a reconhecer
que, no Ocidente, por volta dos séculos XII e XIII, encontramos o período em que foram
plantadas as sementes para o futuro desenvolvimento constitucional, bem como para a
posição do indivíduo na sociedade. (...) Hoje, é fácil sentar comodamente e aceitar sem
discussão, e com benevolência, a posição constitucionalmente fixa do indivíduo como
cidadão, mas esquecemos muito facilmente que isso nem sempre foi assim e que houve
uma época, que se estendeu pela maior parte da Idade Média, durante
aproximadamente um milênio, em que não havia algo que se pudesse denominar
6
cidadão...”
No entanto, as transformações sociais de tal magnitude não ocorrem sem
terríveis sofrimentos humanos. Os governantes, temerosos de perder o poder, redobram
seu domínio; os governados, temerosos de perder a proteção, redobram sua submissão.
Nessa atmosfera de mudança e incerteza, os governantes e os governados se unem num
esforço desesperado para resolver seus problemas. Encontram um bode expiatório,
consideram-no responsável por todos os males da sociedade, e passam a curar a
sociedade ao matar o bode expiatório.
Em 1215, o ano em que o Rei João outorgou a Carta Magna, o Papa Inocêncio III
reuniu o Quarto Concilio de Latrão. “A assembleia foi um notável tributo ao seu poder
universal; mais de mil e quinhentos dignitários de todo o mundo foram para Roma, a fim
7
de considerar os problemas de disciplina dos heréticos e judeus...” O Concilio denunciou
a heresia albigense e proclamou uma guerra santa contra ela; decretou também que os
8
judeus deveriam usar uma faixa amarela na roupa para identificá-los como judeus.

4
Ibid., p. 25.
5
Ibid., p. 64.
6
Ibid., pp. 66, 69, 127.
7
Abram Leon Sachar, A History of the Jews, p. 194.
8
Max,I. Dimont, Jews, God, and History, p. 224.
A partir do século XIII, todos os tipos de desgraças — desde colheitas ruins até as
epidemias — eram atribuídos a feiticeiras e judeus; o seu massacre tornou-se uma
9
prática social aceita. “Embora os séculos entre 1200 e 1600 tenham sido séculos de
sofrimento para os judeus”, escreve Dimont, “foram séculos de igual sofrimento para os
cristãos. O fato de que as acusações contra os judeus apresentavam os rótulos de ‘morte
ritual’ e ‘profanação de hóstia’, e não ‘feitiçaria’, e ‘heresia’, não nos deve enganar. A
mesma psicologia, o mesmo pensamento, o mesmo tipo de processo, o mesmo tipo de
prova e o mesmo tipo de torturas eram empregados contra judeus e cristãos. Assim
como os judeus acusados de morte ritual de animais eram levados à fogueira, os cristãos
10
acusados de feitiçaria eram queimados em praças vizinhas.”
Por mais de dois séculos, o principal impacto da perseguição foi suportado pelos
judeus. Foram expulsos da Inglaterra e da França, convertidos ou mortos, em grandes
números, no resto da Europa. Apenas num período de seis meses, no fim do século XIII,
11
cem mil judeus foram massacrados na Francônia, Baviera e Áustria. Durante esse
período, a perseguição das feiticeiras era esporádica e fortuita. Sua vez chegou nos fins
do século XV.
Assim como as cruzadas para a reconquista da Terra Santa foram iniciadas por
bulas papais, o mesmo ocorreu com essa cruzada para a reconquista da pureza espiritual
da Europa cristã. Os decretos do Quarto Concilio de Latrão foram reformulados e
reorientados por uma bula promulgada pelo Papa Inocêncio VIII em 9 de dezembro de
1484. A seguir, cita-se um trecho dessa bula:
Desejando, com a mais profunda angústia, como a que exige nosso Apostolado, que
principalmente em nossa época a Fé Católica floresça e aumente por toda parte, e que
toda a depravação herética seja afastada para longe das fronteiras e dos limites dos Fiéis,
Nós alegremente proclamamos e até reafirmamos os meios especiais e os métodos pelos
quais Nosso piedoso desejo pode obter o efeito almejado. (...)
Realmente, nos últimos tempos chegou a Nossos ouvidos, o que certamente nos afligiu
com amarga tristeza, que (...) muitas pessoas, de ambos os sexos, sem pensar em sua
salvação e afastando-se da Fé Católica, abandonaram-se a demônios, íncubos e súcubos.
(...)
Por isso, Nós (...) decretamos e ordenamos que os já mencionados inquisidores tenham o
poder para proceder à justa correção, ao encarceramento e ao castigo de quaisquer
pessoas, sem embaraço e impedimento, e de todas as maneiras, como se as províncias, as
cidades, as dioceses, os distritos, os territórios e até as pessoas e seus crimes desse tipo
12
tivessem sido nomeados e especificamente indicados em Nossas palavras. (...)
Dois anos depois, em 1486, essa bula papal foi complementada pela publicação
do famoso manual para perseguidores de bruxas, o Malleus Maleficarum (O Malho das

9
A esse respeito ver Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium, especialmente pp. 307-319.
10
Dimont, p. 238.
11
Sachar, p . 198.
12
Citado em Jacob Sprenger e Heinrich Kramer, Malleus Maleficarum, pp. xix-xx.
13
Bruxas). A isso logo se seguiu uma epidemia de feitiçaria: a incidência de feiticeiras
aumentou, quando as autoridades encarregadas de sua supressão implicitamente
exigiam que isso ocorresse; desenvolveu-se, por outro lado, um aumento
correspondente de interesse por métodos destinados a combater a feitiçaria. Durante
séculos, a Igreja procurou manter seu papel dominante na sociedade. Durante séculos, a
feiticeira representou o papel que lhe estava destinado como bode expiatório da
sociedade.
Desde o início de seus trabalhos, a Inquisição reconheceu o problema da correta
identificação das feiticeiras. Por isso, os inquisidores e as autoridades seculares
receberam critérios de feitiçaria, e esquemas específicos para seu trabalho. A grande
literatura medieval sobre feitiçaria se refere, fundamentalmente, a um desses assuntos,
ou aos dois ao mesmo tempo. Entre essas obras, o Malleus Maleficarum é reconhecido
como o mais importante.
Sprenger e Krämer, os dominicanos inquisidores que escreveram o Malleus,
começam por afirmar que “...a crença na existência de alguns seres chamados bruxas é
uma parte tão essencial da fé católica que sustentar teimosamente a opinião contrária
14
tem um claro odor de heresia.” Em outras palavras, o demônio e suas bruxas são uma
parte tão real da religião cristã quanto Deus e seus santos; um crente autêntico não
pode ter maiores dúvidas sobre qualquer delas. Portanto, discutir a existência de bruxas
já é um sinal de heresia (e, portanto, de feitiçaria ).
Logo aparecem os critérios exatos para a identificação da feitiçaria. Por exemplo,
ouvimos dizer que “ ...as que tentam induzir outras pessoas a realizar ... milagres do mal
são denominadas feiticeiras. E como a infidelidade numa pessoa que foi batizada é,
15
tecnicamente, denominada heresia, essas pessoas são claramente heréticas.”
Os autores do Malleus Maleficarum restringem a amplitude de suspeitos quando
observam que são principalmente as mulheres que “são dedicadas a Superstições
Perversas”. Afirmam que, entre as mulheres, “as parteiras (...) superam todas as outras
16
em maldade”. A razão para que as bruxas sejam usualmente mulheres é que “toda
17
feitiçaria decorre da luxúria carnal, e nas mulheres esta é insaciável”. E a razão pela
qual os homens são protegidos desse crime nefando é que Jesus era um homem:
“...abençoado seja o Altíssimo que até agora preservou o sexo masculino de um crime
tão grande; uma vez que Ele quis nascer e sofrer por nós, deu, aos homens, esse
18
privilégio”. Em resumo, o Malleus é, entre outras coisas, uma espécie de teoria
científico-religiosa da superioridade masculina, justificando — e, na realidade, exigindo
— a perseguição das mulheres como membros de uma classe inferior, pecadora e
perigosa de indivíduos.

13
Sprenger e Krämer.
14
Ibid., p. 1.
15
Ibid., pp. 2-3.
16
Ibid., p. 41.
17
Ibid., p. 47.
18
Ibid.
Depois de ter assim definido a feitiçaria, os autores do Malleus apresentam
critérios específicos para a identificação de bruxas. Vários deles se ligam a características
de doenças. Sustentam, por exemplo, que o aparecimento repentino e dramático de
uma doença, ou do que parece uma doença, é um sinal típico de que a doença é causada
por feitiçaria: “...o mal pode aparecer tão repentinamente num homem, que só pode ser
19
atribuído à feitiçaria”; citam histórias de casos para confirmar a alegação. Um deles é o
seguinte:
Um cidadão bem nascido de Spires tinha uma mulher de disposição tão teimosa que,
embora tentasse agradá-la de todas as formas, recusava-se de todos os modos a atender
aos seus desejos, e estava sempre atormentando-o com insultos injuriosos. Aconteceu que,
ao voltar um dia para casa, como sua mulher se voltasse contra ele com palavras injuriosas,
ele desejou ir embora, a fim de fugir de discussão. Mas a mulher correu rapidamente à sua
frente, e fechou a porta pela qual o marido desejava sair; aos gritos, disse-lhe que, se não
batesse nela, isso indicaria que ele não era honesto nem fiel. Diante dessas palavras
pesadas, o marido estendeu a mão, sem a intenção de feri-la, e bateu de leve, com a mão
aberta, no traseiro da mulher. Imediatamente depois disso, o marido caiu ao chão, e
perdeu os sentidos, ficando na cama vários dias, com doença grave. Ora, é evidente que
essa doença não era natural, mas causada por alguma feitiçaria da mulher. E muitos casos
20
semelhantes já ocorreram, conhecidos por muitas pessoas.
A seguir, Sprenger e Krämer recomendavam os médicos como especialistas em
diagnóstico — e como testemunhas especializadas nos processos — cujas opiniões
especializadas devem ser aceitas pelos inquisidores e pelos leigos para distinguir entre as
doenças devidas a causas naturais e as devidas à feitiçaria.
E se se pergunta como é possível saber se uma doença é causada por feitiçaria, ou por
algum defeito físico natural, respondemos que a primeira é por meio de julgamentos dos
médicos. (...) Por exemplo, os médicos podem perceber, através das circunstâncias, por
exemplo, a idade, a constituição sadia e a reação dos olhos do paciente, que sua doença
não resulta de qualquer defeito do sangue ou do estômago, ou de qualquer outra
enfermidade; por isso, julgam que não se deve a qualquer defeito natural, mas a alguma
causa externa. E como essa causa extrínseca não pode ser qualquer infecção venenosa,
que seria acompanhada por tumores no sangue e no estômago, têm razão suficiente para
21
julgar que seja devida à feitiçaria.

Um terceiro método para distinguir entre a doença natural e a causada por


feitiçaria consistia em interpretar a forma apresentada por chumbo derretido colocado
na água. Dizem os autores do Malleus que “algumas pessoas podem distinguir tais
doenças através de uma prática, que é a seguinte. Seguram chumbo derretido sobre a
cabeça de um homem doente, e o despejam numa vasilha com água. E, se o chumbo se
* 22
condensa em determinada imagem, julgam que a doença é causada por feitiçaria.”

19
Ibid., p. 87.
20
Ibid.
21
Ibid.
*
Como isso era recomendado pela Inquisição e ajudava sua causa, não era considerado magia ou feitiçaria. Quando os
indivíduos empregavam métodos semelhantes para a satisfação de seus interesses, eram declarados heréticos e severamente
punidos. Ver, por exemplo, Charles Williams, Witchcraft, p. 85.
Na época da caça às feiticeiras, os médicos e padres tinham portanto muito
interesse pelo problema do “diagnóstico diferencial” entre doença natural e doença
demoníaca. Essa distinção nos parece simples porque não acreditamos em doenças
sobrenaturais; no entanto, para nossos antepassados, que acreditavam nela, essa
**
diferenciação era uma tarefa difícil. Além disso, os médicos e inquisidores empenhados
em condenar bruxas realizavam seu trabalho contra o pano de fundo de um problema
muito afim e muito real: precisavam distinguir entre as pessoas supostamente culpadas
de atos criminosos, sobretudo envenenadores ou veneficae — e os inocentes de
qualquer erro, isto é, pessoas comuns. Ao ser considerada, simultaneamente, como uma
malfeitora (como enfeitiçada), como a envenenador a, e uma vítima (como um simples
instrumento dos poderes demoníacos), como toda a humanidade comum e sofredora, a
bruxa ajudava a apagar a distinção nítida entre envenenador e não-envenenador, entre
pessoa inocente e culpada.
É significativo que a palavra inglesa witch (feiticeira) venha de uma palavra
hebraica que foi traduzida para venefica em latim, e witch em inglês. Seu significado
original era o de envenenador, diletante em encantamentos mágicos, ou adivinho. O
conceito de feiticeira combina poderes ocultos com possibilidades de benefício ou
23
malefício. Na Europa do Renascimento, o envenenamento, principalmente através de
compostos de arsênico, era uma prática comum. A fabricação e a venda de venenos
tornou-se um comércio amplo e lucrativo, muitas vezes exercido por mulheres, “[o
envenenamento lento] estava tão enraizado na França no período de 1670 a 1680”, diz
Mackay, “que Madame Sevigné, numa de suas cartas, expressa o medo de que francês e
24
envenenador se tornem termos sinônimos.” O problema do diagnóstico correto de
feitiçaria deve ser visto nesse quadro.
Johan Weyer (1515-1588), médico do Duque Guilherme de Cleves, foi um dos
poucos médicos de sua época a falar contra os caçadores de bruxas. Como seus
***
contemporâneos, Weyer acreditava em feitiçaria e feiticeiras; diferia deles apenas por
sustentar que os caçadores de bruxas faziam o diagnóstico de feitiçaria com muita
frequência e com excessiva facilidade. Atacava principalmente “os médicos pouco
informados e com poucas habilidades [que] relegam todas as doenças incuráveis, ou
todas as doenças para as quais deixam de lado os remédios, para a feitiçaria;” assim,
25
concluía que “são os próprios médicos os verdadeiros malfeitores”. Em resumo, Weyer
não se opunha aos caçadores de bruxas, mas apenas a seus “excessos” ou “abusos”’.

22
Ibid.
**
A classificação de doenças como naturais ou demoníacas, e dos pacientes como doentes que exigiam tratamento ou possessos
que exigiam exorcismo, ainda era aceita nos fins do século XVIII e, na realidade, sobreviveu até o presente. A respeito, ver Henri
F. Ellenberger, “The Evolution of Depth Psychology”, em Iago Galdston [org.], Historie Derivations of Modern Psychiatry; e
Jean Lhermitte, True and False Possession.
23
Para mais detalhes, ver capítulo 6.
24
Charles Mackay, Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds, p. 582.
***
Weyer não apenas acreditava na realidade das bruxas, mas afirmava conhecer seu número exato e sua organização. Segundo
dizia, “havia sete milhões, quatrocentos e nove mil e cento e vinte sete bruxas, e todas elas são controladas por setenta e nove
príncipes.” (Citado em Jerome M. Schneck, A History of Psychiatry, p. 41.)
25
Citado em Gregory Zilboorg. The Medical Man and the Witch During the Renaissance, p. 140.
É significativo que o título completo do trabalho clássico de Weyer seja De
Praestigiis Daemonum, et Incantationibus ac Veneficiis — isto é, Os Embustes dos
Demônios e as Preces dos Envenenadores. A começar pelo título e em todo o livro, Weyer
distingue entre “bruxas” e “envenenadores”. Reconhece que há pessoas más que usam
diferentes venenos para prejudicar e matar seus inimigos. São criminosos e devem ser
castigados. No entanto, a maioria das pessoas acusadas de feitiçaria não é desse tipo.
Inocentes de qualquer erro, são infelizes, miseráveis e talvez “iludidos”. Numa carta a
seu protetor, o Duque Guilherme, ao explicar os objetivos do livro De Praestigiis e ao
dedicá-lo a ele, Weyer escreve que seu “objetivo último” nessa obra “é jurídico, pois fala
26
de castigo, mas não da forma usual, de feiticeiras e bruxas.” (Os grifos são meus). E
conclui a carta com uma rejeição total dos processos inquisitoriais e um pedido de
respeito pelos processos judiciais estabelecidos. “A vós, Príncipe, dedico o fruto de meu
pensamento (...) Ao contrário do que fazem outros, não impondes castigos severos a
mulheres pobres e espantadas. Exigis provas, e somente se essas mulheres realmente
deram veneno, provocando a morte de homens ou animais, permitis que a lei se
27
cumpra.” (Os grifos são meus).
Portanto, Weyer insiste em afirmar que, de um ponto de vista jurídico, é
necessário distinguir duas classes de pessoas: as envenenadoras ou pessoas culpadas de
atos criminosos e as não-envenenadoras ou pessoas inocentes de atos criminosos. Mas é
precisamente isso que seus oponentes atacam: como as feiticeiras são criminosas, não
existe possibilidade de fazer tal distinção. As autoridades contemporâneas são muito
claras a respeito. Jean Bodin (1530-1596), um jurista francês, um dos grandes defensores
da Inquisição, além de ser um dos mais apaixonados críticos de Weyer, afirma que
Weyer está “(...) errado (...) uma feiticeira e uma envenenadora são a mesma coisa. Tudo
28
o que é atribuído às feiticeiras é verdade”. Outro crítico de Weyer, um médico de
Marburgo, chamado Scribonius, que escreveu em 1588, criticou especificamente a
tentativa de Weyer para provar “que as feiticeiras apenas imaginam seus crimes, mas na
realidade nada fizeram de errado”. Segundo Scribonius, isso significa que “Weyer nada
mais faz do que retirar a culpa dos ombros das feiticeiras e libertá-las da necessidade de
qualquer castigo. (...) Preciso dizer isso claramente: de acordo com Bodin, acredito que
Weyer se consagrou às feiticeiras, que é seu camarada e companheiro de crimes, que é
um feiticeiro e um fabricante de venenos, que se propôs defender outros feiticeiros e
29
fabricantes de venenos.”
A mistificação do conceito de feitiçaria e sua mistura com o de envenenamento
foram úteis para a Inquisição; por isso, os inquisidores se opunham às tentativas para
desfazer o processo e puniam, como inimigos da ordem teológica estabelecida, os que
persistiam em tais esforços. Os críticos de Weyer, como acabamos de ver, objetavam
exatamente às suas tentativas de desmistificar os males praticados pelas supostas

26
Citado era Gregory Zilboorg. A History of Medical Psychology, p. 214.
27
Ibid., p. 215.
28
Ibid., p, 237.
29
Zilboorg, Medical Man and Witch, pp. 199-200.
feiticeiras. Fazer isso era, como o Malleus tinha estabelecido claramente, um erro grave
e pecaminoso: “Apesar disso, existem alguns que se opõem duramente a toda
autoridade e publicamente afirmam que as feiticeiras não existem, ou, de qualquer
forma, que não podem prejudicar ou ferir a humanidade. Por isso, falando
rigorosamente, os que estão convencidos dessa doutrina do mal podem (...) ser
30
excomungados, pois aberta e claramente estão convencidos de doutrina falsa.”
Como isso é essencial para a clara compreensão de nossa discussão posterior da
feitiçaria e seu paralelo com a doença mental, tentei mostrar com certa minúcia que a
ênfase do argumento de Weyer não se refere ao que os psicopatologistas
contemporâneos supõem — isto é, uma critica do conceito de feitiçaria e um pedido pela
*
sua substituição pelo de doença mental; ao contrário, refere-se aos processos
empregados pelos inquisidores. Tais métodos serão examinados no capítulo seguinte.
No século XVII, com o declínio do poder da Igreja e da interpretação religiosa do
mundo, o complexo inquisidor-feiticeira desapareceu, e em seu lugar surgiu o complexo
alienista-insano mental.
No novo clima cultural — secular e “científico” — tal como em qualquer outro,
continuavam a existir os prejudicados, os dissidentes e os homens que pensavam e
criticavam demais. O conformismo continuava a ser exigido. O não-conformista, o que
fazia objeções, em resumo, todos os que negavam os valores dominantes da sociedade
ou se recusavam a aceitá-los, continuavam a ser inimigos da sociedade. Certamente, a
ordenação adequada dessa nova sociedade já não era conceituada em função de Graça
Divina; ao contrário, era considerada em função da Saúde Pública. Por isso, seus inimigos
internos eram vistos como loucos; e surgiu a Psiquiatria Institucional, tal como antes
tinha aparecido a Inquisição, a fim de proteger, dessa ameaça, o grupo.
As origens do sistema de hospital psiquiátrico confirmam essa generalização. “O
grande confinamento dos insanos”, segundo a adequada denominação de Michel
Foucault, começou no século XVII: “Uma data pode servir de marco: 1656, o decreto que
31
fundou, em Paris, o Hôpital Général.” O decreto que fundou esse estabelecimento, e
outros promulgados na França, foram ordenados por Luís XIII: “Decidimos ser o guardião
e o protetor do referido Hôpital Général, como de fundação real (...) que deve ser
totalmente isento da orientação, da visitação e da jurisdição dos funcionários da

30
Sprenger e Kramer, pp. 8-9.
*
Na realidade, como Weyer acreditava em feitiçaria, e como o conceito de feitiçaria estava intrinsecamente ligado ao de
malefício, Weyer foi incapaz de persuadir seus críticos, ou o público, que as feiticeiras eram inofensivas. Robbins observa
adequadamente que “Weyer foi levado mais pela piedade do que pela razão. Consequentemente, a distinção que tenta estabelecer
entre feiticeiras inofensivas e feiticeiros maldosos era facilmente destruída pelos seus oponentes mais lógicos, como Bodin.”
(Rossell Hope Robbins, The Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 539.)
Hoje, o crítico “moderado” do uso exagerado da hospitalização psiquiátrica involuntária encontra-se na mesma situação difícil.
Desde que acredita na doença mental e desde que o conceito de doença mental está inextricavelmente entrelaçado com o
malefício, ele, tal como Weyer antes dele, também não consegue convencer seus críticos, ou o público, de que os doentes
mentais não são perigosos.
31
Micbel Foucault, Madness and Civilization, p. 39.
Reforma Geral (...) e de todos os outros aos quais proibimos todo conhecimento e
32
jurisdição, em qualquer maneira ou modo.”
A definição original de loucura, apresentada no século XVII — como a condição
que justificava o confinamento no hospital — se conformava às exigências para as quais
este foi criado. Para ser considerado louco, era suficiente ser abandonado, miserável,
pobre, não-desejado pelos pais ou pela sociedade. Os regulamentos que orientavam a
admissão no Bicêtre e na Salpêtrière — os dois hospitais psiquiátricos parisienses que
estavam destinados a uma fama mundial — e postos em efeito a 20 de abril de 1680
consideravam que “os filhos de artesãos e outros habitantes pobres de Paris, até a idade
de vinte e cinco anos, e que trataram mal seus pais ou que por preguiça se recusaram a
trabalhar, ou, no caso das meninas, estiveram levando uma vida de libertinagem, ou em
evidente perigo de serem pervertidas, devem ser encarcerados, os rapazes no Bicêtre, as
moças no Salpêtrière. Essa ação devia ser executada a partir de queixa dos pais, ou, se
estes estivessem mortos, de parentes próximos, ou do pároco. As crianças internadas
deveriam ficar presas enquanto os diretores o considerassem adequado e só deviam ser
33
liberadas com ordem escrita de quatro diretores. Além dessas pessoas, “as prostitutas
e as mulheres que tenham casas de prostituição” deveriam ser encarceradas numa seção
34
especial do Salpêtrière.
As consequências dessas práticas “médicas” são descritas por um observador
francês, depois de o Salpêtrière ter funcionado durante um século:
Em 1778, o Salpêtrière é o maior hospital em Paris, e talvez na Europa; esse hospital é, ao
mesmo tempo, uma casa para mulheres e uma prisão. Recebe moças e mulheres grávidas,
amas-de-leite e as crianças que amamentam; meninos desde sete ou oito meses até quatro
ou cinco anos de idade; meninas pequenas de todas as idades; mulheres e homens casados
idosos; lunáticos furiosos, imbecis, epilépticos, paralíticos, pessoas cegas, aleijados,
pessoas com tinhas, incuráveis de todos os tipos, crianças com feridas abertas, e assim por
diante. No centro do hospital há uma casa para detenção de mulheres, composta de
quatro prisões: le commun, para as moças mais devassas; la correction, para as que não
são consideradas irremediavelmente perdidas; la prison, reservada para as pessoas presas
por ordem do rei; e la grande force, para as mulheres estigmatizadas por ordem dos
35
tribunais.
Ao descrever esse quadro, George Rosen afirma claramente que
“fundamentalmente, o indivíduo era preso, não para receber cuidados médicos, mas
36
para proteger a sociedade e impedir a desintegração de suas instituições.”
Ainda em 1860, não era necessário ser mentalmente doente para ser encarcerado
numa instituição psiquiátrica norte-americana: era suficiente ser uma mulher casada.

32
Ibid.. p. 41.
33
George Rosen, “Social attitudes to irrationality and madness in 17th and 18th century Europe”, J. Hist. Med. & All. Sc., 18:
220-240, 1963; p. 233.
34
Ibid.
35
Citado em Rosen, p. 233.
36
Ibid., p. 237.
Quando a famosa Sra. Packard foi internada no Hospital Estadual para Insanos de
Jacksonville por discordar de seu ministro-marido, as leis de prisão do Estado de Illinois
diziam explicitamente que “As mulheres casadas (...) podem ser admitidas ou detidas no
hospital, por pedido do marido da mulher ou de seu tutor (...) sem as provas de
37
insanidade exigidas em outros casos.”
Em resumo, é uma racionalização recente na história da Psiquiatria que uma
pessoa precise “sofrer” de uma “doença mental” — como esquizofrenia ou psicose senil
— para justificar seu internamento. O fato de ser uma mulher jovem e desempregada,
uma prostituta ou uma pessoa velha e pobre era suficiente. Segundo Foucault: “Não
devemos esquecer que alguns anos depois de sua fundação [em 1656], só o Hôpital
Général de Paris tinha seiscentas pessoas, ou aproximadamente um por cento da
38
população”. Como meio de controle social e de afirmação ritualizada da ética social
dominante, a Psiquiatria Institucional mostrou ser uma sucessora digna da Inquisição.
Como veremos, em situações posteriores foi igualmente satisfatória.
O hôpital général francês, o Irrenhaus alemão e o asilo para insanos inglês se
tornaram a moradia de pessoas chamadas loucas. São consideradas loucas, e por isso
confinadas a essas instituições? Ou são confinadas por serem pobres, fisicamente
doentes ou perigosas, e por isso consideradas loucas? Por trezentos anos, os psiquiatras
trabalharam mais para obscurecer do que para esclarecer esse problema tão simples.
Talvez não pudesse ter sido diferente. Tal como ocorre também em outras profissões —
sobretudo as que se ligam à regulação de problemas sociais — os psiquiatras foram, em
grande parte, responsáveis pela criação de problemas que ostensivamente tentavam
resolver. Mas, tal como ocorre com outros homens, não se pode esperar que os
psiquiatras se comportem sistematicamente contra seus interesses econômicos e
profissionais.
O decreto de Luís XIII não foi um acontecimento isolado, Tem sido repetido
muitas vezes na história da Psiquiatria. O sistema alemão de hospitais psiquiátricos, por
exemplo, foi inaugurado em 1805, com a seguinte declaração do Príncipe Karl August
von Hardenberg:
O Estado deve preocupar-se com todas as instituições para os que que têm as mentes
perturbadas, tanto para a melhoria dos infelizes quanto para o progresso da ciência. Nesse
importante e difícil campo da Medicina, apenas esforços continuados nos permitirão fazer
progressos para o bem da humanidade sofredora. A perfeição só pode ser conseguida em
39
tais instituições [hospitais psiquiátricos estatais] ...
Os pacientes sobre cujo comportamento alguns homens, como Kahlbaum e
Kraepelin, mais tarde construíram seus sistemas de diagnóstico psiquiátrico eram os
internados desses hospitais. Durante o período de cem anos depois da declaração do
Príncipe Hardenberg, a diversidade de doenças mentais que exigiam “diagnóstico” e

37
Illinois Statute Book, Sess. Law 15, Sect. 10, 1851. Citado em E. P. W. Packard, The Prisoner's Hídden Life, p. 37.
38
Foucault, p. 45.
39
Citado em Emil Kraepelin, One Hundred Yeats of Psychiatry, p. 152.
“tratamento” se multiplicavam em toda a Europa, da mesma forma que o número de
pacientes doentes mentais que exigiam hospitalização.
Em nossa época — quinhentos anos depois da bula de Inocêncio VIII, e 150 anos
depois da declaração de guerra da Alemanha à insanidade — somos convocados para
combater a doença mental por uma pessoa da importância do Presidente dos Estados
Unidos. A 5 de fevereiro de 1963, o Presidente Kennedy declarou:
Proponho um programa nacional de saúde mental para ajudar o início de uma ênfase
inteiramente nova, bem como de um método novo para cuidar dos mentalmente doentes.
(...) O Governo em todos os níveis — federal, estadual e local — as fundações particulares e
os cidadãos como indivíduos devem enfrentar suas responsabilidades nessa área. (...)
Precisamos (...) levar novamente o cuidado com a saúde mental para a principal corrente
40
da Medicina norte-americana.
É um pouco decepcionante notar as semelhanças entre essas mensagens de
emulação. Não é preciso duvidar das boas intenções e da sinceridade dos oradores. O
Papa, o Príncipe, o Presidente — cada um deles afirma estar tentando ajudar seus
semelhantes sofredores. O que é amedrontador é verificar que todos ignoram a
possibilidade de que o suposto sofredor, seja de feitiçaria, seja de doença mental,
poderia preferir ser deixado sozinho; que se recusam a apenas oferecer a ajuda e deixar
ao beneficiário o direito de aceitá-la ou recusá-la; e, finalmente, que negam a dolorosa
verdade de que os homens aos quais são impostas as ajudas da Igreja militante ou do
Estado terapêutico são levados, pela força, a corretamente se considerarem, não como
beneficiários e pacientes, mas como vítimas e prisioneiros.
Como vimos, na época da caça às feiticeiras os métodos para a identificação de
uma pessoa como envenenadora e como paciente diferiam radicalmente; o método para
identificá-la como uma feiticeira diferia dos dois anteriores, constituindo um processo
específico. Em nossa época, os métodos para identificação de uma pessoa como
criminosa e como paciente diferem de forma semelhante; o método para identificar a
pessoa como doente mental difere dos dois anteriores, constituindo também um
processo específico. Há boas razões para tais distinções.
Somos atormentados por alguns dos mesmos tipos de problemas sociais que
atormentavam as pessoas durante a Idade Média, e tentamos resolvê-los por métodos
semelhantes. Usamos as mesmas categorias jurídicas e morais: delinquentes e cidadãos
obedientes à lei, culpa e inocência; e usamos também uma categoria intermediária — o
louco ou doente mental — que tentamos colocar numa classe ou outra. Antigamente, a
questão era a seguinte: a que classe pertencem as feiticeiras? Agora, é esta: a que classe
pertencem os doentes mentais? Os psiquiatras institucionais e os homens de opinião
popular esclarecida sustentam que, como são “perigosos para si mesmos e para os
outros”, os insanos pertencem à categoria de semi-delinquentes; isso justifica seu
encarceramento involuntário e os maus tratos que sofrem.

40
John F. Kennedy, Mensagem do Presidente dos Estados Unidos relativa à doença mental e à retardação mental”, 5 de fev.,
1963. 88.° Cong., 1a Ses., Câmara de Representantes, Doc. N.° 58.
Além disso, para confirmar sua ideologia e para justificar seus poderes e
privilégios, os psiquiatras institucionais combinam as noções de doença mental e
criminalidade, e resistem aos esforços para separá-las. Fazem isso ao afirmar que a
doença mental e o crime são uma única e a mesma coisa, e que as pessoas mentalmente
doentes apresentam perigos que não são apresentados pelas pessoas mentalmente
sadias. Philip Q. Roche, que recebeu o Prêmio Isaac Ray da Associação Americana de
Psiquiatria por ter ajudado a aproximar a lei e a Psiquiatria, apresenta essa opinião de
uma forma característica quando diz que “os criminosos só se distinguem dos doentes
mentais pela maneira que escolhemos para lidar com eles. (...) Todos os criminosos são
casos de doença mental (...) o crime é uma perturbação da comunicação, e, por isso,
41
uma forma de doença mental.” Essa opinião — isto é, que o crime é um produto e um
sintoma de doença mental da mesma forma que, por exemplo, a icterícia o é da hepatite
— e hoje aceita pela maioria dos psiquiatras e por muitos advogados e juristas, não é tão
nova quanto seus defensores nos desejam fazer crer. Por exemplo, Sir Matthew Hale
(1609-1678), presidente do Supremo Tribunal de Justiça da Inglaterra e, curiosamente,
um ardente crente em feitiçaria, declarava que “... indiscutivelmente, quase todos os
42
criminosos estão (...) sob certo grau de insanidade parcial, ao cometer esses crimes.”
Reconhecemos nessa opinião uma manifestação inicial da mudança de um modo
religioso para um modo científico de pensar e falar a respeito de pessoas e de relações
humanas. Em vez de dizer que os “criminosos sãos maus”, as autoridades dizem que são
“doentes”; em qualquer caso, no entanto, os suspeitos continuam a ser vistos como
perigosos para a sociedade e, por isso, estão sujeitos às suas sanções.
*
É coerente com as íntimas associações mentais e verbais entre crime e loucura
que as leis de encarceramento sejam formuladas através da suposta “periculosidade” do
indivíduo (para ele mesmo e para os outros), e não em função de sua saúde e doença. A
periculosidade, evidentemente, é uma característica que o suposto doente mental
compartilha com o criminoso, e não com a pessoa que esteja doente segundo critérios
médicos.
A mistificação do conceito de doença mental e sua mistura com o de crime são
agora úteis para a Psiquiatria Institucional, assim como a mistificação do conceito de
bruxaria e sua mistura com o de envenenamento já foi útil para a Inquisição. Na época
de Weyer, o efeito da redução de diferenças entre feitiçaria e envenenamento — delito

41
Philip Q. Roche, The Criminal Mind, p. 241. Para outros exemplos e uma crítica mais extensa dessa opinião, ver Thomas S.
Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, pp. 91-108.
42
Citado em Jonas B. Robitscher, “Tests of criminal responsibility: New rules and old problems”. Land & Water Law Rev., 3:
153-176, 1968; p. 157.
*
Na prática real, o que significa, ou pode significar, a afirmação de que o crime é uma forma de doença mental? Só pode
significar uma redução das diferenças, o que discutiremos logo mais, entre doença e delinquência. Aqui, é suficiente notar que o
julgamento quanto ao fato de uma pessoa ser doente é feito por um médico, geralmente a partir de um exame do corpo da pessoa
(denominada “paciente”), apresentada ao médico, voluntariamente, pelo paciente; independentemente do resultado do processo
diagnóstico, a decisão quanto ao fato de uma intervenção terapêutica ser ou não realizada continua, em última análise, a ser do
paciente. Ao contrário, quando se julga se uma pessoa é ou não criminosa (no Direito anglo-americano) isso é realizado por um
júri leigo, geralmente com base em um exame de informação a respeito da conduta da pessoa (denominada o “acusado”)
apresentada ao júri, muitas vezes sob os protestos do acusado, pelo adversário deste (denominado o “promotor”); finalmente, se
o resultado desse processo “diagnóstico” é a verificação da culpa, a decisão de realizar ou não a intervenção punitiva cabe ao júri
e ao juiz (cujas escolhas são, no entanto, prescritas pela lei).
teológico (heresia) e delito legal (crime) — representava a substituição de processos
legais pelos inquisitoriais. Em nossa época, o efeito da redução das diferenças entre
loucura e periculosidade — entre delito psiquiátrico (doença mental) e delito legal
(crime) — é a substituição da Declaração de Direitos pela Declaração de Tratamentos.
Nos dois casos, o resultado é a tirania terapêutica, clerical no primeiro caso, clínica no
segundo. A Inquisição combinava a arbitrariedade dos juízos teológicos com os castigos
das sanções penais então aceitas. De forma semelhante, a Psiquiatria Institucional
combina a arbitrariedade de juízos psiquiátricos com a punitividade das sanções penais
agora aceitas. Além disso, os psiquiatras institucionais hoje se opõem às tentativas para
desfazer a mistificação intrínseca na ideia de doença mental e castigam, como inimigos
*
da ordem terapêutica vigente, os que persistem em tais esforços — assim como
antigamente os inquisidores, se opunham às tentativas para desfazer a mistificação
intrínseca na ideia de feitiçaria e perseguiam aqueles que (como Weyer) persistiam em
tais esforços.
Apesar disso, persistiremos em tais esforços. Comecemos pelas diferenças entre
crime e doença (corporal) comum. É o crime que ameaça a sociedade, não o criminoso.
Quando um crime foi cometido, o interesse público exige o emprego de métodos amplos
e fortes de diagnóstico policial: para proteger o bem-estar público, o criminoso deve ser
encontrado e preso. Contra isso, existe um interesse particular contrário que deve limitar
e supervisionar cuidadosamente tais métodos: para proteger as liberdades individuais, o
cidadão inocente deve ser defendido contra acusações falsas e encarceramento. Por
isso, os processos para descobrir os crimes devem ser cuidadosamente equilibrados, de
forma a satisfazer a esses interesses contrários. Tais ideias estão contidas no conceito
43
jurídico de “na forma da lei”.
*
A doença ameaça o indivíduo, não a sociedade. Como não existe um interesse
público que exija um diagnóstico de doença quando um indivíduo sofre dor (ao contrário
do que ocorre com um diagnóstico de criminalidade, quando um crime já foi cometido),
o paciente tem liberdade para usar ou evitar quaisquer métodos diagnósticos médicos
que deseje. Se procura o diagnóstico de sua doença com vigor excessivo, ou sem vigor
suficiente. sua saúde pode sofrer, e por isso ele pode sofrer. Portanto, é razoável deixar

*
Segundo Frederick G. Glaser: “Inevitavelmente se pergunta se devem ser tomadas sanções de algum tipo contra o Dr. Szasz,
não apenas pelo conteúdo de suas opiniões, mas por causa da maneira pela qual as apresenta. Preferiu não limitar-se a uma
discussão nos círculos de especialistas, como se vê pelo seu artigo numa revista (no Haper’s), aliás, não o primeiro que
escreveu.” (Frederick G. Glaser, “The Dichotomy Game: A Further Consideration of the Writings of Dr. Thomas Szasz”, Amer.
J. Psychiat., 121: 1069-1074 [maio], 1965; p. 1073.)
Essa intolerância é compreensível. A dúvida quanto à existência ou periculosidade dos doentes mentais limitaria os métodos
permitidos aos psiquiatras institucionais para combater a doença mental, assim como a dúvida a respeito da existência ou
periculosidade das feiticeiras teria limitado os métodos permitidos aos inquisidores para a combater a feitiçaria. Por isso, a
Inquisição floresceu enquanto seus agentes tinham os poderes concedidos pela sociedade a que serviam. A Psiquiatria
Institucional atualmente floresce pela mesma razão. Apenas quando esses poderes são limitados é que uma instituição desse tipo
desaparece.
43
Ver em geral, Irving Brant, The Bill of Rights; para uma apreciação crítica, ver Friedrich A. Hayek. The Comtitution of Liberty,
especialmente pp. 188-191.
*
Isso é verdade principalmente para as doenças não-contagiosas, tais como câncer, doenças do coração ou derrame. As doenças
contagiosas, que discutirei logo a seguir, se assemelham tanto às moléstias não-contagiosas quanto aos crimes, pois ameaçam
tanto o indivíduo quanto a sociedade.
o poder final de decisão para aceitar ou rejeitar os processos de diagnóstico de doença
nas mãos do paciente. Tais ideias estão contidas no conceito legal de “consentimento
44
informado”.
Essas duas categorias, acima descritas em sua forma pura, se juntam em alguns
fenômenos que apresentam os aspectos essenciais de ambas — isto é, o perigo, para o
eu, característico da doença, e a periculosidade para os outros, característica do crime.
Um desses fenômenos, bem conhecido pelo homem medieval e do Renascimento, era a
doença contagiosa. Quando, finalmente, por volta dos fins do século XIII, a Europa se
livrou da lepra, foi invadida por sucessivas ondas de peste bubônica que dizimaram a
população. Finalmente, no século XVI, a sífilis assumiu proporções epidêmicas.
Como a lepra e a peste, as crenças e práticas heréticas também se difundiram
pela população, como se fosse por contágio; também elas eram consideradas, pelos que
as rejeitavam, como prejudiciais ao eu e aos outros. Como a doença contagiosa era
conceituada como prejudicial à pessoa doente e aos outros, formava uma ponte
conceitual já pronta entre a doença comum, não-contagiosa (como algo prejudicial ao
eu) e o crime (prejudicial aos outros). Assim, a doença contagiosa se tomou o modelo
para a heresia religiosa, acentuando a imagem da feitiçaria como uma “condição”
perigosa para a feiticeira e para a vítima. Por isso, parecia haver justificativa para utilizar
medidas especiais para controlar a difusão epidêmica de doenças contagiosas e ideias
heréticas.
Na sociedade e mente modernas, a doença contagiosa — agora simbolizada pela
sífilis e pela tuberculose, mais do que pela lepra e pela peste — continuou a funcionar
como uma ponte conceitual e lógica entre a doença (um ferimento no eu) e o crime (um
ferimento nos outros); assim, tornou-se o modelo para a heresia secular (a doença
mental).
Como a sífilis e a tuberculose, as práticas e crenças não-conformistas também se
difundem pela população como por contágio; também são consideradas, pelos que as
rejeitam, como prejudiciais ao eu e aos outros. Por isso, ainda se considera justificado o
fato de nos valermos de medidas especiais para controlar as doenças contagiosas (cuja
significação social se tomou mínima nas nações industrialmente adiantadas) e ideias
perigosas (cuja significação social aumentou extraordinariamente nesses países). O
resultado disso é uma conceituação difusa de não-conformismo como uma doença
contagiosa — isto é, a mitologia da doença mental; uma aceitação difusa da instituição
que ostensivamente protege as pessoas da doença — isto é, a Psiquiatria Institucional, e
a aprovação popular das operações características dessa instituição — isto é, o uso
sistemático de força e fraude, disfarçado pela arquitetura de hospitais e clínicas, bem
como pela retórica da cura e pelo prestígio da profissão médica.
Portanto, os paralelos fundamentais entre os critérios de feitiçaria e doença
mental podem ser resumidos da seguinte forma:

44
Bernard D. Hirsch, “Informed consent to treatment: Medicolegal comment”, em Albert Averbach e Melvin M. Belli (orgs.),
Tort and Medicai Yearbook, Vol. I, pp. 631-638.
Na Era da Feitiçaria, a doença era considerada natural ou demoníaca. Como não
*
se podia duvidar da existência de feiticeiras como análogas dos santos, (a não ser com o
risco de incorrer na acusação de heresia), a existência de doenças devidas a malefícios de
feiticeiras também não poderia ser posta em dúvida. Por isso, os médicos foram levados
para os processos da Inquisição como especialistas no diagnóstico diferencial desses dois
tipos de doenças.
Na Era da Loucura, a doença é considerada, de modo semelhante, como orgânica
ou psicogênica. Como a existência de mentes como análogas dos órgãos físicos não pode
ser posta em dúvida (a não ser com o risco de incorrer em veemente oposição), a
existência de doenças devidas a mau funcionamento das mentes também não pode ser
**
posta em dúvida. Por isso, os médicos são levados para os processos da Psiquiatria
Institucional como especialistas no diagnóstico diferencial desses dois tipos de doenças.
É por isso que os médicos e psiquiatras se interessam tanto pelo problema do
diagnóstico diferencial de doenças do corpo e doenças da mente. Essa distinção só
parece simples se não acreditamos em doença mental; no entanto, para a maioria das
pessoas, que acreditam nela, essa distinção é uma tarefa difícil. Além disso, o médico e
os psiquiatras que participam de “decisão judicial” psiquiátrica realizam seu trabalho
contra um pano de fundo de um problema muito afim e muito real: precisam distinguir
entre pessoas supostamente culpadas de atos delinquentes, sobretudo atos de violência
contra pessoas da família ou pessoas famosas, e os inocentes de qualquer erro, isto é,
cidadãos comuns. Ao ser considerado simultaneamente como malfeitor (como louco),
como o criminoso e como uma vítima (como doente), como o paciente médico, o
paciente mental ajuda a obscurecer a distinção nítida entre o criminoso e o não-
criminoso, a pessoa inocente e a culpada.
Além disso, em cada uma dessas situações, o médico precisa atuar contra a
classificação que lhe é imposta por sua profissão e por sua sociedade. O diagnosticador
medieval precisava distinguir pessoas com doenças naturais das que tinham doenças
demoníacas. O médico contemporâneo precisa distinguir entre as pessoas com doenças
*
corporais e as que têm doenças mentais. No entanto, ao fazer esse tipo de diagnóstico
diferencial, o medico do século XV não distinguia entre dois tipos de doenças; ao
contrário, prescrevia dois tipos de intervenções: uma médica, outra teológica. Na

*
Na Teologia e no folclore do Cristianismo, os santos são os agentes de Deus, responsáveis pela execução de algumas das ações
de Deus, enquanto as feiticeiras são os agentes do Demônio, responsáveis por algumas de suas más ações. Evidentemente, o bem
e o mal, assim como a beleza e a feiúra, estão nos olhos do observador. Joana d’Arc, queimada viva como feiticeira em 1431, foi
canonizada como santa em 1920. Ver Joan of Arc, em Encyclopaedia Britannica (1949), Vol, 13, pp, 72-75.
**
Como exemplo, pode ser citada a seguinte definição de “mente”, dada por Stanley Cobb, ocupante, por mais de trinta anos, de
uma notável cátedra de Neuropatologia na Universidade Harvard, e um dos mais conhecidos psiquiatras dos Estados Unidos: “A
mente (...) é a relação entre duas partes do cérebro. A mente é uma função do cérebro assim como a contração é uma função do
músculo ou a circulação é uma função do sistema vascular-sanguíneo.” (Stanley Cobb, discussão do tema “Is the term
‘mysterious leap’ warranted?”, em Felix Deutsch [org.], On the Mysterious Leap from the Mind. to the Body, p. 11.)
*
Portanto, minha tese quanto às relações entre a doença orgânica e a doença mental se assemelha à de Weyer quanto às relações
entre doença natural e doença demoníaca, mas também se distingue dela. Assemelha-se à tese de Weyer, na medida em que ele
sustenta que, simplesmente porque não pode curar uma doença, o médico não deve inferir disso que a doença seja devida à
feitiçaria. Difere de sua tese na medida em que Weyer afirma sua crença na feitiçaria como causa de doença e protesta apenas
porque seus colegas fazem esse diagnóstico mais frequentemente do que deveriam. Sustento que, como a feitiçaria, a doença
mental é uma concepção errada que não pode “causar” doença física nem crime.
realidade, como diagnosticador, esse médico era um árbitro que decidia quem deveria
ser tratado por meio de medicamentos, e outros métodos médicos, e quem deveria ser
tratado por exorcismo e outros métodos inquisitoriais. Mutatis mutandis, o médico
contemporâneo não distingue entre dois tipos de doenças; ao contrário, prescreve dois
tipos de intervenção — uma médica, a outra psiquiátrica. Na realidade, como
diagnosticador, esse médico é um árbitro que decide quem deve ser tratado por meio de
medicamentos, cirurgia e outros métodos médicos, e quem deve ser tratado por meio de
eletrochoques, internação e outros métodos psiquiátricos. É por isso que os métodos de
exame, característicos da Psiquiatria Institucional, são compulsórios: o poder de
consentir é retirado do “paciente” e colocado nas mãos de autoridades médicas que
passam a julgá-lo.
O aspecto que devemos lembrar é que, na época do Malleus, se o médico não
pudesse encontrar provas de doença natural, esperava-se que encontrasse provas de
feitiçaria; hoje, se não pode diagnosticar doença orgânica, espera-se que apresente um
**
diagnóstico de doença mental. Em ambas as situações, uma vez que a pessoa venha à
presença do médico, torna-se um paciente que não pode deixar de receber diagnóstico.
O médico muitas vezes só se sente à vontade para escolher entre duas categorias:
doença e feitiçaria, doença física e doença mental; não se sente à vontade — a não ser
que se defina como profissionalmente incapaz ou como socialmente divergente — para
declarar que o paciente não pertence a nenhuma dessas categorias.
Em outras palavras, o médico colocado diante de uma pessoa som uma doença
física demonstrável muitas vezes fica perplexo: deve considerar essa pessoa como
“paciente”? Deve tratá-la e, se o fizer, tratá-la do quê? No passado, o médico geralmente
ficava em dúvida para concluir que essa pessoa não era doente nem possessa, e agora
está em dúvida para concluir que não está doente, nem física nem mentalmente. No
passado, o médico tendia a acreditar que essa pessoa deveria ser submetida aos
tratamentos da Medicina ou da Teologia. Hoje, tende a acreditar que deve submeter-se
aos tratamentos da Medicina ou da Psiquiatria. Em resumo, os médicos evitaram, e
continuam a evitar, a conclusão de que esse problema está fora de sua amplitude de
conhecimento e que, por isso, devem deixar que essa pessoa fique só e sem classificação
*
— dona de seu destino. Essas conclusões tornam-se impossíveis por causa de duas
suposições referentes à relação terapêutica. A primeira é que a pessoa colocada à frente
de um especialista medico ou teológico é um ser impotente e inferior diante de quem o

**
Na medida em que o conceito de doença mental funciona como um rótulo classificatório, que justifica a difamação psiquiátrica
dos não-conformistas, está logicamente errado, não porque deixe de identificar uma característica socialmente definível, mas
porque dá um nome errado a ela, como se fosse uma doença; e está moralmente errado, não porque os médicos e psicólogos que
a usam estejam mal-intencionados, mas porque ajudam o controle social de conduta individual, sem proteções jurídicas da
liberdade individual. Para uma discussão minuciosa desses aspectos, ver Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness.
*
Então, o que é que o médico deve fazer quando colocado diante de um “paciente” sem doença física demonstrável? Como deve
classificá-lo e tratá-lo? Do ponto de vista de uma ética médica digna — que respeite igualmente os direitos do paciente e do
médico para uma auto-definição e decisões autônomas — o examinador pode satisfazer sua necessidade de classificação ao
categorizar seu papel profissional ou o resultado de suas intervenções diagnosticas; no entanto, não deve impor, ao paciente, e
contra a vontade deste, uma classificação. Portanto, o médico pode concluir que não conseguiu encontrar provas de doença
física, mas não que encontrou provas de doença mental; ou que não pode ajudar o paciente, mas não que o cliente deve consultar
um psiquiatra. A respeito, ver Thomas S. Szasz, “The Psychology of Persistent Pain: A Portrait of L’Homme Douloreux”, em A.
Soulairac, J. Cahan e J. Carpentier [orgs.], Pain, pp. 93-113.
médico ou o sacerdote tem uma “responsabilidade”, independentemente de seu (do
especialista) conhecimento ou habilidade, e da qual não pode fugir. A segunda é que o
psiquiatra institucional ou inquisidor não têm vantagens egoístas em seu trabalho com o
paciente ou com o herético, e que, se não fosse sua devoção altruística para curar ou
**
salvar almas, estaria disposto a deixar o sofredor abandonado ao seu “terrível destino”.
Por essas razões, o terapeuta messiânico sente que precisa fazer alguma coisa, ainda
que aquilo que faz seja prejudicial ao sofredor. O infeliz resultado, até recentemente, da
maioria das intervenções terapêuticas, não pode ser considerado surpreendente. Em
primeiro lugar, antes do século XX, as artes de tratamento estavam em estado
extraordinariamente primitivo. Além disso, como as intervenções terapêuticas impostas
aos pacientes eram em grande parte determinadas pelos sentimentos de importância,
dever, culpa, e, evidentemente, possíveis desejos de poder e sadismo do médico (ou do
sacerdote), não eram limitadas por avaliações de seu valor de cura para o cliente ou seu
consentimento esclarecido, ou recusa do “serviço”. Tais circunstâncias ainda
caracterizam o serviço psiquiátrico público (e às vezes particular), cuja qualidade, por
isso, permanece sem verificação por decisões livres dos que, aparentemente, recebem
seus serviços.
Está coerente com esse caráter das guerras contra a feitiçaria e as doenças
mentais que muitos esforços sejam feitos para refinar os critérios de feitiçaria e doença
mental; no entanto, esses esforços só servem para confirmar, com mais segurança, a
realidade dessas ameaças e a legitimidade das defesas contra elas. Nisso, como já vimos,
estava a fraqueza fatal da oposição de Weyer aos “excessos” dos caçadores de
feiticeiras; e aqui, também, está a fraqueza fatal da oposição contemporânea
“moderada” aos “excessos” do Movimento de Saúde Mental.
Como já ocorreu com Weyer, o crítico contemporâneo “moderado” da
hospitalização psiquiátrica involuntária se opõe apenas aos “abusos” e “excessos” da
Psiquiatria Institucional. Deseja melhorar o sistema, e não eliminá-lo. Também ele
acredita na doença mental e na justificativa para internamento dos insanos; sua principal
queixa contra a hospitalização psiquiátrica involuntária é que os pacientes sejam
internados muito frequentemente e muito facilmente — por exemplo, que os pacientes
com doenças físicas não-reconhecidas (por exemplo, hematoma subdural, tumor
cerebral, câncer do pâncreas, e assim por diante) sejam às vezes apressadamente
classificados como psicóticos e inadequadamente confinados em hospitais psiquiátricos.
Esse argumento serve apenas para confirmar a validade do conceito nuclear de doença
mental da Psiquiatria Institucional, e a legitimidade de sua intervenção mais
45
característica, a hospitalização psiquiátrica involuntária.

**
Esse é o mito da ausência de benefícios para os terapeutas coercitivos; seu corolário é o mito dos imensos benefícios para os
coercitivamente auxiliados (mesmo que tais benefícios não sejam avaliados no momento pelos pacientes). Sem essas imagens, as
desigualdades sociais das explorações terapeuticas — ajudantes altruistas que ficam ricos a custa de suas vitimas egoístas, um
aspecto muito evidente, tanto da Inquisição quanto da Psiquiatria Institucional — não poderiam ser mantidas; com essas
imagens, já foram e continuam a ser facilmente justificadas.
45
Thomas S. Szasz, “Science and public policy: The crime of involuntary mental hospitalization”, Med. Opin. & Rev., 4: 24-35
(maio), 1968.
Os problemas já mencionados de “diagnóstico diferencial” inevitavelmente
aparecerão e persistirão, enquanto os médicos forem encarregados de questões que
nada têm a ver com a Medicina. Um médico pode ser capaz, ou não, de verificar se um
paciente sofre de doença física; mas se pensa que o paciente não tem esse tipo de
doença, não pode inferir disso que seus sintomas sejam devidos à feitiçaria ou a doença
mental — ainda que não seja por outra razão, apenas porque não existe esse tipo de
doença.
Os problemas do “diagnóstico diferencial” só desapareceriam se considerássemos
o médico como um especialista apenas em doenças do corpo, e as doenças mentais
fossem reconhecidas como uma entidade fictícia, semelhante à feitiçaria. Se fizéssemos
isso, a função avaliadora do médico se limitaria a fazer um diagnóstico orgânico ou a
concluir que é incapaz de fazer um diagnóstico; sua função terapêutica se reduziria a
tratar de doenças do corpo, ou abster-se de fazê-lo.
Se considerássemos o internamento psiquiátrico involuntário como um crime
contra a humanidade, o problema de saber quem deve ser internado também
desapareceria. O problema de saber quem deveria ser queimado vivo só foi resolvido
quando se abandonou a caça às feiticeiras. Acredito que o problema de saber quem deve
ser internado só será resolvido quando abandonarmos a prática de hospitalização
46
psiquiátrica involuntária.
Embora a caça às feiticeiras nos pareça hoje um crime evidente, devemos ser
cuidadosos ao julgar os homens que acreditavam em feitiçaria e combatiam as
feiticeiras. Pergunta o conhecido historiador francês de Psiquiatria René Semelaigne: “Os
magistrados que perseguiram feiticeiras e acenderam tantas fogueiras devem ser
acusados de crueldade, tal como frequentemente acontece?” E responde: “Também
eram pessoas de seu tempo e, assim, tinham seus preconceitos, suas crenças e
convicções; quando, de acordo com a lei, condenavam os culpados, em suas almas e em
47
suas consciências pensavam ser justos.”
Os inquisidores que se opunham aos heréticos e que os perseguiam agiam de
acordo com suas crenças sinceras, assim como os psiquiatras que se opõem aos insanos
e que os perseguem agem de acordo com as suas. Nos dois casos, podemos discordar
das crenças e repudiar os métodos. Mas não podemos condenar duplamente os
inquisidores — em primeiro lugar, por terem algumas crenças, e, depois, por agirem de
acordo com elas. Também não podemos condenar duplamente os psiquiatras
institucionais — em primeiro lugar, por aceitarem que o não-conformismo social é
doença mental, e, depois, por internarem o doente mental num hospital. Na medida em
que um psiquiatra realmente acredita no mito da doença mental, está obrigado, pela
lógica interna desse conceito, a tratar, com intenção terapêutica bondosa, os que sofrem
dessa doença, embora seus “pacientes” não possam deixar de sentir o tratamento como
uma forma de perseguição.

46
Ibid.
47
Citado em Zilboorg, History of Medical Psychology, p. 557.
Embora a Inquisição e a Psiquiatria Institucional tenham se desenvolvido a partir
de diferentes condições econômicas, morais e sociais, suas operações são semelhantes.
As duas instituições organizaram seus métodos opressivos em termos terapêuticos. O
inquisidor salva a alma do herético e a integridade de sua Igreja; o psiquiatra restaura a
saúde mental de seu paciente e protege sua sociedade do insano perigoso. Como o
psiquiatra, o inquisidor é um epidemiologista: está preocupado com a existência da
feitiçaria; é um diagnosticador: determina quem é feiticeiro e quem não o é; finalmente,
é um terapeuta: exorciza o demônio e, assim, garante a salvação da alma da pessoa
possessa. Por outro lado, a feiticeira, como o paciente psiquiátrico involuntário, é
colocada num papel degradado e divergente contra a sua vontade; está sujeita a alguns
processos diagnósticos a fim de verificar se é ou não uma feiticeira; finalmente, é privada
de liberdade e, frequentemente, da vida, aparentemente para o seu benefício.
Finalmente, como já observamos antes, uma vez que se estabeleçam os papéis de
feiticeira e de doente mental, às vezes as pessoas procuram, por motivos pessoais,
voluntariamente ocupar tais papéis. Por exemplo, Jules Michelet escreve que “Não
poucas [feiticeiras] pareciam desejar positivamente ser queimadas, e quanto mais cedo,
melhor (...). Uma feiticeira inglesa, ao ser levada para a fogueira, pede à multidão que
não critique os seus juízes: ‘Eu desejava morrer. Minha família me desprezou, meu
marido me repudiou. Se eu vivesse, seria apenas uma infelicidade para meus amigos. (...)
48
Eu desejava a morte, e menti para conseguir isso.’ “ Christina Hole apresenta a seguinte
interpretação dos motivos que levavam os homens a se condenarem e a condenarem os
outros como feiticeiros: “Acusar um inimigo de feitiçaria era um método fácil de
vingança; declarar-se enfeitiçado era um caminho fácil para conseguir essa atenção
lisonjeadora que é muito desejada pelos indivíduos desequilibrados e histéricos. (...)
Muitas vezes, o principal objetivo do acusador ora chamar a atenção sobre si mesmo e
colocar-se como vítima da maldade de alguma feiticeira. (...) Em 1599, Thomas Darling,
de Burton-on-Trent, confessou que sua história de três anos antes era mentira, e seus
ataques, fingimento. Sua razão para mentira era a que poderia ter sida dada por muitos
49
outros acusadores mentirosos: ‘Fiz tudo isso por ignorância ou para conseguir glória.’ “
Como o desejo de “atenção lisonjeadora” não se limita a “indivíduos
desequilibrados e histéricos”, mas, ao contrário, é uma necessidade humana básica, é
fácil ver porque, sob certas circunstâncias, os homens facilmente assumem os papéis de
feiticeira, delinquente, ou doente mental.
Em resumo, o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um
progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas, segundo a
interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea, nem um retrocesso
com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo, tal
como o pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria Institucional é
uma continuação da Inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social.

48
Jules Michelet, Satanism and Witchcraft, p. 145.
49
Christina Hole, Witchcraft in England, pp. 94, 101.
O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão
pseudocientífico que parodia os conceitos de ciência. O estilo social se ajusta às
expectativas políticas de nossa época: é um movimento social pseudo-liberal que parodia
os ideais de liberdade e racionalidade.
2
A IDENTIFICAÇÃO DO MALFEITOR

Nossos melhores e mais experimentados médicos trabalham


no Departamento de Operações, sob a supervisão direta do
Benfeitor. (...) Há mais ou menos cinco séculos, quando o
trabalho do Departamento de Operações estava apenas
começando, havia ainda alguns tolos que comparavam nosso
Departamento de Operações com a antiga Inquisição. Mas
isso é tão absurdo quanto comparar um cirurgião que faz
uma traqueotomia com um bandido de estrada. Ambos
usam uma faca, talvez o mesmo tipo de faca, ambos fazem a
mesma coisa, isto é, cortar a garganta de um homem vivo;
no entanto, um é um benfeitor, o outro é um assassino.
1
Eugene Zamiatin

A identidade das bruxas era verificada por três métodos principais: confissão, exame de
marcas de bruxaria com ou sem “picadas” e provação por água. Iremos examinar
separadamente esses métodos e comparar cada um deles com métodos psiquiátricos
contemporâneos para identificar doentes mentais.
Acreditava-se que a confissão era a única maneira segura para provar a feitiçaria.
Como ninguém, a não ser a própria bruxa, poderia testemunhar muitos dos atos
proibidos em discussão — por exemplo, o sabbat do demônio ou os pactos com Satã —
era lógico que a declaração da única testemunha disponível, a acusada, fosse muito
procurada. O fato de a confissão ser obtida sob tortura não perturbava os inquisidores
ou os crentes na mania de feiticeiras. Na realidade, pensava-se que era uma questão de
justiça que uma feiticeira só pudesse ser condenada a partir de sua confissão.
Segundo Sprenger e Krämer, em Malleus, “a justiça comum exige que uma
feiticeira não seja condenada à morte a não ser que seja declarada culpada por sua
2
confissão”. Segundo Robbins, “uma vez acusada, a vítima devia suportar tortura e
3
inevitavelmente fazer uma confissão de culpa”. Todo processo de feiticeira tinha suas
confissões. De forma semelhante, toda audiência de sanidade tem sua auto-acusação
psiquiátrica: o psiquiatra, funcionário público, demonstra para o tribunal, a partir de

1
Eugene Zamiatin, We, pp. 76-77.
2
Citado em Rossell Hope Robbins, The Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 101.
3
Ibid.
afirmações feitas pela vítima ou a ela atribuídas, que o “paciente” está sofrendo de
doença mental. Os registros de processos de feiticeiras estão cheios de confissões
documentadas de pactos com o demônio e outras provas de feitiçaria, tais como os
registros de “alucinações”, “delírios” e outras provas de insanidade na Psiquiatria
4
Institucional. Aqui, deve ser suficiente um exemplo.
Em 1945, Ezra Pound foi preso por traição. Embora desejasse um processo para
que pudesse defender-se, foi declarado psiquiatricamente incapaz de fazê-lo. Esse
julgamento baseou-se em relatórios de quatro psiquiatras, entre os quais o do Dr.
Winfred Overholser, superintendente do St. Elizabeths Hospital em Washington, D. C.,
um hospital psiquiátrico dirigido pelo Governo norte-americano, e que dizia o seguinte:
“Ele [Pound] insiste em afirmar que suas transmissões não eram de traição. (...) É
anormalmente grandiloquente, expansivo e exuberante, em seus modos, exibindo
pressão para falar, digressão e facilidade para distrair-se. Em nossa opinião, à medida
que envelheceu, sua personalidade, por muitos anos anormal, passou por maior
deformação, até o ponto em que hoje sofre de um estado paranoide. (...) Em outras
palavras, está insano e mentalmente incapaz de submeter-se ao processo, e precisa ser
5
tratado em hospital psiquiátrico.” Depois de prender Pound durante treze anos, o Dr.
Overholser afirmou, num depoimento, datado de 14 de abril de 1958, que “Ezra Pound
6
(...) está permanente e incuravelmente insano”.
Ao ler descrições de “confissões” de feiticeiras e de “sintomas” de pacientes
psiquiátricos, devemos sempre lembrar que estamos diante de documentos escritos por
“carrascos” que procuram descrever suas vítimas. Os registros dos caçadores de bruxas
foram conservados pelos inquisidores, não pelas bruxas; o inquisidor controlava a
linguagem da descrição clerical, que não era mais que uma retórica para desmentir uma
pessoa como crente verdadeira e defini-la como herética. De forma semelhante, os
registros de exame psiquiátrico são conservados pelos médicos, não pelos pacientes;
assim, o psiquiatra controla a linguagem da descrição clínica, que é apenas uma retórica
para desmentir que uma pessoa seja normal e defini-la como paciente psiquiátrico. É por
isso que o inquisidor tinha, e o psiquiatra institucional tem, liberdade para interpretar
qualquer comportamento como sinal de feitiçaria ou doença mental.
A seguir são apresentadas duas descrições da maneira pela qual as confissões
eram obtidas de pessoas acusadas de feitiçaria. Segundo Weyer, em De Praestigiis:
“Essas desventuradas mulheres (...) [são] constantemente arrastadas a atrozes
tormentos, até que alegremente troquem qualquer momento dessa amarga existência
pela morte, [e] estejam dispostas a confessar quaisquer crimes a elas sugeridos, em lugar
7
de serem levadas de volta para suas horríveis masmorras e para a tortura contínua.”

4
Para mais documentação, ver Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, e Psychiatric Justice.
5
Citado em Julien Cornell, The Trial of Ezra Pound, p. 37.
6
Ibid., p, 129.
7
Citado em Robbins, p. 102.
Alguns dos mais terríveis depoimentos sobre o trabalho diário do caçador de
bruxas são dados por um jesuíta alemão que auxiliou a Inquisição, mas que depois se
voltou contra ela. O livro Cautio Crirtúnalis (Precauções para Promotores), de Friedrich
von Spee, publicado em 1631, foi uma tentativa fundamental para opor-se ao programa
terapêutico da Igreja contra os supostos heréticos. Spee, que tinha agido como confessor
de centenas de feiticeiras queimadas vivas, escreve: “Antes, nunca pensei em duvidar
que houvesse muitas bruxas no mundo; agora, no entanto, quando examino os registros
8
públicos, acredito que dificilmente existirá uma só bruxa.”
Quanto ao uso de confissões, o Padre Spee escreve o seguinte: “... o resultado é o
mesmo, quando ela [a acusada] confessa ou não. Se confessa, sua culpa é clara: é
executada. Qualquer retratação é inútil. Se não confessa, a tortura é repetida — duas,
três, quatro vezes (...) Nunca pode inocentar-se. Os investigadores se sentiriam
humilhados se libertassem uma mulher; uma vez presa e colocada nas correntes, precisa
9
ser culpada, por meios justos ou sórdidos.”
A pessoa acusada de doença mental está em situação muito semelhante. Se
admitir os sinais e sintomas de doença mental que lhe são atribuídos por seus delatores,
prova que está mentalmente doente; reconhece a gravidade de sua doença e a
necessidade de tratamento num hospital psiquiátrico. Se negar a sua “doença”, apenas
prova que não tem “compreensão” de sua situação; isso, mais do que a confissão da
10
doença, é considerado como justificação para internamento involuntário e tratamento.
A semelhança básica entre as duas situações é que os acusadores não podem
estar errados, e o acusado não pode estar certo. Para a vítima, a admissão e a negação
de feitiçaria e de doença mental, levam ao mesmo fim destrutivo. Quanto às
autoridades, sua atitude é exemplificada pela observação do Padre Spee, segundo a qual
11
“Se o preso morre sob tortura, dizem que o Demônio quebrou seu pescoço.” O mesmo
ocorre com o paciente psiquiátrico atualmente hospitalizado. Se regride no hospital
psiquiátrico, é porque sofre de “esquizofrenia crônica e incurável”; se suas costas se
quebram por convulsões provocadas por eletrochoque, é porque “não há tratamento
médico sem riscos.” Como o Padre Spee, o homem que descobriu a terapia por choque
elétrico mais tarde ficou horrorizado com o que tinha feito. Por volta do fim de sua vida,
ao recordar a primeira vez em que tentara o tratamento num ser humano, o Professor
Ugo Cerletti observou para um colega: “Quando vi a reação do paciente, pensei comigo
12
mesmo: isto deveria ser abolido.”
O Padre Spee também confirmou a observação de Weyer, segundo a qual as
torturas eram tão graves que nenhum prisioneiro poderia deixar de confessar: escreve
no Cautio Criminalis que “O mais robusto homem que passou por isso me disse que

8
Ibid., p. 480.
9
Ibid., pp. 482-483.
10
A esse respeito, ver Erving Goffman, Asylums.
11
Ibid., p. 480.
12
Citado em Frank J. Ayd, Jr., “Guest editorial: Ugo Cerletti, M.D., 1877-1963”, Psychosomatics, 4: A/6-A/7 (nov.-dez.), 1963.
nenhum crime imaginável deixaria de ser confessado, desde que isso provocasse um
pequeno alívio, e aceitaria de bom grado dez mortes para escapar de uma repetição da
13
tortura.” Embora o suicídio seja um pecado grave para os católicos romanos, muitas
pessoas acusadas de feitiçaria se mataram na prisão para escapar da tortura.
Para os casos mais difíceis, onde, apesar de todas as denúncias, ameaças e
torturas, o acusado se mantém silencioso ou afirma sua inocência, o Malleus sugere o
seguinte método para “verificar a verdade”:
...devemos estudar agora o caso extremo, quando depois da utilização de todos os
expedientes, a feiticeira continua silenciosa. O Juiz deve libertá-la e, usando as precauções
a seguir mencionadas, retirá-la do local de castigo para outro lugar (...) Deve fazer com que
seja bem tratada com bons alimentos e boas bebidas, ao mesmo tempo que pessoas
honestas, que não estejam sob suspeita, se aproximem dela e falem sobre outros assuntos,
e finalmente a aconselhem, em confiança, a confessar a verdade, prometendo que o Juiz
será bondoso para ela e interferirá em seu favor. E, finalmente, o Juiz deve chegar e
prometer que será clemente, com a restrição mental de que quer dizer que será clemente
para consigo mesmo e para com o Estado; afinal, tudo o que é feito pela segurança do
14
Estado é clemência.
Portanto, existem algumas boas razões para que os inquisidores eclesiásticos (e
seus discípulos, políticos e psiquiátricos) tenham regularmente conseguido confissões
dos acusados de feitiçaria (e de “crimes” semelhantes). Geralmente, os acusados eram
intimidados, isolados e mistificados pelos que deveriam julgá-los. Por isso, estavam
ansiosos por ver a realidade através dessas imagens, e para exprimi-la no vocabulário da
autoridade admirada e temida: atemorizados pela tortura, diziam tudo o que pensavam
que poderiam protegê-los dela; sob tortura, seu eu era esvaziado de sua antiga
identidade e preenchido pela nova — de herético arrependido — a eles atribuída pelos
15
investigadores.
A polícia secreta dos Estados totalitários contemporâneos copiou fielmente esse
método de inquisição. Os Movimentos de Saúde Mental dos Estados Terapêuticos
contemporâneos puderam aperfeiçoá-lo: os psiquiatras institucionais (bem como
psicólogos e assistentes sociais psiquiátricos) agem como aliados, amigos e terapeutas
do indivíduo, e acreditam que o são, quando, na realidade, são seus adversários. Se o
paciente confidencia seus temores ou suas desconfianças a eles, interpretam isso como
sinal de “doença mental” e é isso que dizem ao empregador; se o paciente não consegue
“cooperar” com eles, consideram essa recusa como um sinal de “doença mental” e
16
também farão relatório ao empregador.
Além das confissões provocadas, o método principal para o diagnóstico de
feitiçaria era encontrar marcas de feiticeira no corpo da acusada. As marcas de feiticeira
eram bicos de seios a mais, uma variação anatômica relativamente comum, ligeiramente

13
Robbins, p. 483.
14
Jacob Sprenger e Heinrich Krämer, Malleus Maleficarum, p. 231.
15
Ver George Orwell, Nineteen Eighty-Fout; e Robert Jay Lifton, Thought Reform and the Psychology of Totalism.
16
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, “The psychiatrist as double agent”, Trans-action, 4: 16-24 (out.), 1967.
mais frequente em homens do que em mulheres, ou qualquer tipo de lesão da pele,
como, por exemplo, sinal congênito na pele, massa carnosa no útero, cicatriz ou
hemangioma. Pensava-se que o sinal indicasse o ponto em que a pessoa possessa tinha
sido cauterizada pelo demônio, tal como o animal pelo seu dono, e constituía prova de
um pacto entre essa pessoa e Satã. Isso fazia com que fosse fácil diagnosticar
praticamente qualquer pessoa como feiticeira.
Naturalmente, os que não estavam tomados pela mania de feiticeiras
reconheciam que essas marcas eram comuns e naturais. “Poucas pessoas no mundo
deixam de ter marcas ocultas em seus corpos, tais como sinais congênitos ou marcas,
iguais às que os traficantes de feiticeiras denominam as marcas ocultas do demônio”.
17 *
Isso foi escrito por Thomas Ady, um crítico inglês da caça às bruxas, em 1656.
Uma linha direta de progressão pode ser traçada das marcas de feiticeira aos
chamados estigmas dos histéricos, e, depois, aos sinais que os esquizofrênicos são
levados a revelar através de testes projetivos. Cada um desses resultados “diagnósticos”
é usado para incriminar o sujeito — como feiticeira, histérico ou esquizofrênico; cada um
deles é depois usado para castigá-lo — através de sanções teológicas, médicas ou
psiquiátricas.
O fato de que as marcas de feiticeira podiam ser encontradas em todas as pessoas
simplificava o trabalho do diagnosticador de feitiçaria. Nem por isso os que buscavam
feiticeiras rejeitavam esses “sinais diagnósticos”, assim como os psiquiatras não rejeitam
angústia, depressão ou desconfiança, que também podem ser encontradas em todas as
pessoas, como “sinais diagnósticos” de doença mental.
No entanto, as marcas visíveis da feiticeira não eram apenas sinais de um pacto
com Satã. Acreditava-se também que uma pessoa poderia ser marcada pelo demônio de
tal forma que em seu corpo ficasse apenas uma marca invisível. Supunha-se que tais
pontos fossem insensíveis à dor e não tivessem sangue, e por isso só poderiam ser
localizados pelo que se denominava “picada”. Se um alfinete fosse colocado num desses
pontos, e se não houvesse sangue nem dor, a pessoa poderia ser feiticeira.
A mania de feitiçaria deu muito trabalho para os médicos, frequentemente
encarregados de encontrar as marcas de bruxaria. As perseguições também permitiram
o desenvolvimento de uma nova profissão, isto é, “picar bruxas” — e um novo
especialista, os “picadores” de bruxas, muitos dos quais eram médicos.
A primeira tarefa do caçador de bruxa era localizar marcas visíveis de bruxa. Isso
explica o costume de cortar todos os pelos e cabelos do suspeito de bruxaria: a marca
poderia ser encontrada numa área peluda, o apenas assim poderia ser exposta. Se não se
encontrasse qualquer marca, empregavam-se as picadas.

17
Citado em Robbins, p. 552.
*
Ady tambem reconhecia que as confissões de feiticeiras eram obtidas por fraude ou eram inventadas pelos inquisidores.
O papel dos médicos nos diagnósticos de feitiçaria pode ser avaliado
superficialmente a partir das várias descrições de “descobertas de casos”, apresentadas
na literatura sobre feitiçaria. Robbins menciona o caso de uma mulher de Genebra,
Michelle Chaudron, que tinha sido acusada de enfeitiçar duas moças. “Michelle foi
examinada pelos médicos que procuravam marcas do demônio, e longas agulhas foram
enfiadas em sua pele, mas o sangue corria de cada picada e Michelle gritava de dor. Não
encontrando uma marca do demônio, os juízes ordenaram que a mulher fosse torturada;
dominada pelo sofrimento, confessou tudo o que dela se pedia. Depois de sua confissão,
os médicos voltaram a procurar a marca do demônio, e então encontraram um pequeno
18
ponto em sua coxa (...) foi condenada a ser estrangulada e queimada.”
Portanto, a semelhança fundamental entre os métodos dos caçadores de bruxas e
os dos psicopatologistas é que nos dois casos há uma burla contra sua vítima e mentira
*
ao público. Nos dois casos, há o jogo de “cara eu ganho, coroa você perde”. Um antigo
método para verificar a culpa de uma pessoa acusada, baseado nesse princípio, é a
provação pela imersão na água. Essa prática foi retomada e tornou-se popular durante o
período de mania com bruxas.
A busca de feiticeiras pela provação na água, ou “natação”, como era muitas
vezes chamada, tornou-se um método aceito na Inglaterra, durante a primeira metade
do século XVII, quando foi recomendada pelo Rei Jaime. Segundo a proclamação de
Jaime I, “Parece que Deus indicou, como um sinal sobrenatural da monstruosa
impiedade das feiticeiras, que a água se recuse a recebê-las em seu seio, pois afastaram
19
de si a água sagrada do batismo e voluntariamente recusaram seu benefício.”
A prova por “natação” consistia em limitar a liberdade de movimento da acusada,
ao prender suas mãos e pés de maneira diferente — usualmente, “o polegar direito no ar
telho menor do pé esquerdo de forma que a feiticeira ficava com os membros
20
cruzados” — e lançá-la em água profunda, três vezes se isso fosse necessário. Se
flutuasse, era culpada; se afundasse, era inocente. Neste último caso, usualmente morria
afogada, a não ser que fosse salva a tempo por seus torturadores. No entanto, como sua
alma ia para o céu, essa prova não era considerada absurda, nem por seus praticantes
nem por suas vítimas. Na realidade, as feiticeiras acusadas às vezes desejavam ser postas
à prova, talvez porque fosse um dos poucos “testes” através dos quais, por maiores que
fossem as dificuldades para superação, poderiam demonstrar sua inocência; ou talvez
porque, como meio de suicídio indireto, poderiam dar fim às suas torturas, sem incorrer
no pecado de autodestruição.
Os objetivos e resultados de vários métodos modernos de psicodiagnóstico se
assemelham muito à provação pela água. Um deles é o uso de testes projetivos — como

18
Ibid., p. 401.
*
Evidentemente, os inquisidores e os psiquiatras institucionais também podem enganar a si mesmos. No entanto, seu auto-
engano os ajuda: mostra que são sacerdotes e médicos autênticos. Ao contrário, o engano a que submetem as massas prejudica as
pessoas; pode convertê-las em vítimas mistificadas.
19
Ibid., p. 492.
20
Ibid., p. 493.
o Rorschach ou o Teste de Apercepção Temática. Quando um psicólogo clínico aplica
esse teste numa pessoa que lhe foi enviada por um psiquiatra, existe a expectativa tácita
de que o teste mostrará alguma “patologia”. Afinal, um psiquiatra competente não
indicaria uma pessoa “normal” para um teste oneroso e complexo. O resultado é que o
psicólogo encontra algum tipo de psicopatologia: o paciente é “histérico”, ou
“deprimido”, ou “latentemente psicótico”, ou na falta de qualquer outra coisa, “mostra
sinais que sugerem organicidade”. Todo esse jargão e falsa linguagem médica serve para
confirmar o sujeito no papel de doente mental, o psiquiatra no papel de médico, o
psicólogo no papel de técnico paramédico (que “testa” a mente do paciente, em vez de
“testar” o seu sangue). Em mais de vinte anos de trabalho psiquiátrico, jamais encontrei
um psicólogo que, a partir de um teste projetivo, dissesse que o sujeito é uma “pessoa
normal, mentalmente sadia”. Embora algumas bruxas possam ter sobrevivido à prova da
água, nenhum “louco” sobrevive ao teste psicológico.
Em outro trabalho já mostrei e documentei que não existe um comportamento ou
pessoa que um psiquiatra contemporâneo não possa, com verossimilhança, diagnosticar
21
como anormal ou doentio. Em vez de repetir o assunto, vou citar um conjunto de
esquemas — muito de acordo com a regra de “cara eu ganho, coroa você perde” —
apresentados por um psiquiatra para descobrir problemas psiquiátricos em crianças de
escola. Num artigo que defendia os serviços psiquiátricos nas escolas públicas, o autor
enumerava os seguintes tipos de comportamento como “sintomáticos de perturbação
subjacente mais profunda (...): 1. Problemas escolares — subaproveitamento,
aproveitamento excessivo, aproveitamento irregular. 2. Problemas sociais com irmãos,
colegas — por exemplo, a criança agressiva, a criança submissa, a exibicionista. 3.
Relações com os pais e outras figuras de autoridade — por exemplo, comportamento de
desafio, comportamento submisso, bajulação. 4. Manifestações comportamentais
explícitas — por exemplo, roer unhas, tiques, chupar o dedo (...) [e] interesses mais
apropriados ao sexo oposto (por exemplo, com menina masculinizada e menino
22
efeminado).”
Evidentemente, não há comportamento infantil que um psiquiatra não possa
colocar numa dessas categorias. Classificar como patológico um aproveitamento escolar
que está “abaixo” ou “acima” do que deveria ser esperado, ou então que é irregular,
seria humorístico, se não fosse trágico. Quando nos dizem que se um paciente
psiquiátrico que chega cedo para a consulta está angustiado, se chega tarde é hostil e se
chega na hora é compulsivo — rimos, porque se supõe que isso seja uma piada. Mas
nesse caso ouvimos a mesma coisa, dita com toda a seriedade.
Aqui, é necessário lembrar os aspectos econômicos das caças às bruxas. A
perseguição de bruxas era extraordinariamente lucrativa para as autoridades
eclesiásticas e seculares, bem como para os indivíduos que participavam desse negócio.
A propriedade da pessoa condenada era confiscada e distribuída entre os

21
Ver especialmente Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness, e Law, Liberty, and Psichiatry.
22
Sherwin S. Radin, “Mental health problems in school children”, J. of Sch. Health, 32: 390-397 (dez.), 1962; p. 392.
“comerciantes” de bruxas e suas instituições. Além disso, as cidades pagavam os serviços
dos caçadores de bruxas e a remuneração dependia do número de bruxas que fosse
descoberto. Assim como o poder e o prestígio dos caçadores de bruxas aumentavam com
a crescente incidência de feitiçaria, também o poder e a riqueza dos psiquiatras
aumentam com a crescente incidência de doença mental. Durante muito tempo não
ocorreu às pessoas que os epidemiologistas eclesiásticos de feitiçaria tivessem interesse
em incidência elevada, e não baixa, dessa perturbação; na realidade, logo que isso foi
integralmente avaliado, a mania de feitiçaria chegava ao fim. Por um período quase tão
longo, não ocorreu às pessoas que os “epidemiologistas” médicos e psiquiátricos da
doença mental também têm um interesse em elevada, e não em baixa incidência dessa
perturbação; na realidade, essa ideia deve ser socialmente reprimida — e os psiquiatras
profissionais fazem tudo para que isso ocorra — para que o mito da doença mental seja
aceito como senso comum esclarecido.
Um vez aceitos os supostos fatos da feitiçaria, torna-se necessário localizar,
identificar e eliminar as bruxas responsáveis por ela. Segundo nos lembra Christina Hole,
“Um dos aspectos mais aterrorizantes da crença geral na feitiçaria era que ninguém sabia
23
ao certo quem era e quem não era bruxa.” O mesmo pode ser dito a respeito de nossa
situação atual: ninguém sabe ao certo quem é ou quem não é doente mental. Disso
decorre a necessidade anterior de caçadores de bruxas, picadores de bruxas e
inquisidores, e daí também decorre a necessidade atual de psiquiatras, psicólogas e
assistentes sociais psiquiátricos.
Adiante, diz Hole: “O mais deplorável subproduto do medo generalizado de
24
bruxas era o caçador profissional de bruxas.” Embora suas atividades fossem realmente
deploráveis, o caçador de bruxas era um subproduto da guerra à feitiçaria, da mesma
forma que o psiquiatra é um subproduto da guerra à doença mental. Os agressores, reais
ou supostos, criam seus oponentes, cuja postura defensiva é, por sua vez, autêntica ou
forjada. Mackay mostra que, imediatamente depois da publicação do livro Malleus,
“surgiu na Europa uma classe de homens que fez da descoberta e morte pelo fogo das
25
bruxas o único assunto de suas vidas.” Eram conhecidos como “caçadores de bruxas”.
Os “caçadores” leigos compartilhavam com os médicos a tarefa de descobrir e identificar
as bruxas.
Existe mais do que semelhança superficial entre o trabalho do caçador de bruxas
do século XVII e o do caçador de doença mental do século XX. Matthew Hopkins, um dos
mais famosos caçadores de bruxas da Inglaterra, “tinha uma pesquisadora constante e
26
pessoal, uma mulher, Goody Phillips, que o acompanhava de cidade em cidade”.
Também os psiquiatras (homens) têm psicólogas ou assistentes sociais (mulheres) como
assistentes. Além disso, de acordo com nosso gosto por operações em larga escala, hoje
temos hospitais psiquiátricos, clínicas de doença mental, comissões de saúde mental,

23
Christina Hole, Witchcraft in England, p. 75.
24
Ibid., p. 89.
25
Charles Mackay, Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds, p. 481.
26
Hole, p. 82.
bem como assistentes sociais psiquiátricos espalhadas pelo país, equipes psiquiátricas
ambulantes com sedes nas grandes cidades e que fazem viagens periódicas ao interior —
todos ocupados em “descoberta de casos psiquiátricas” e muito bem pagos por tal
função. Esse grande trabalho psiquiátrico não ajuda as pessoas identificadas como
doentes; ao estigmatizá-las, mais frequentemente as prejudicam. Mas, na verdade, a
verificação de casos psiquiátricos ou o seu diagnóstico não pretende ajudar as pessoas
identificadas como pacientes; supõe-se que ajude os que não são assim identificados. De
acordo com isso, o psiquiatra institucional é pago pela comunidade (ou pelos parentes
do doente mental), e não por um indivíduo que livremente contrate um serviço.
A origem da compensação do psiquiatra é, naturalmente, um problema da maior
importância para a Psiquiatria. Com a exceção de um breve intervalo — limitado aos
países ocidentais e ao período que vai aproximadamente de 1900 ao presente, durante o
qual coexistiram os serviços dados a pacientes particulares nos consultórios de médicos
e serviços dados a clientes involuntários em hospitais psiquiátricos e outras instituições
— a prática psiquiátrica foi, e agora começa a ser novamente, sinônimo de prática
27
institucional.
Dadas as leis inevitáveis da Economia, a caça às bruxas tornou-se um negócio
florescente. Na Inglaterra e na Escócia, os diagnosticadores leigos eram conhecidos como
“caçadores comuns”; recebiam uma taxa para cada bruxa que descobriam. A mania de
caça às bruxas só terminou quando os caçadores comuns passarem a ser tão numerosos
que se tornaram uma dor de cabeça. No fim, os juízes se recusavam a aceitar as provas
que apresentavam. No entanto, antes dessa exposição inevitável de sua impostura, os
caçadores comuns gozaram do apoio das maiores autoridades da Igreja e do Estado.
Segundo Mackay, “Os parlamentos estimularam a ilusão [com a feitiçaria] tanto na
Inglaterra quanto na Escócia, e, ao armar essas pessoas [os caçadores comuns] com um
tipo de autoridade, de certo modo obrigaram os magistrados e sacerdotes a aceitar suas
28
provas.”
Tudo isso tem paralelo no Movimento da Saúde Mental. Desde a decisão de
M’Naghten, há mais de cem anos, e cada vez mais nas últimas décadas, as maiores
autoridades do Estado — através de seus legisladores e juízes — estimulam a crença na
doença mental, dão aos médicos autoridade oficial no assunto, e persuadem os tribunais
a aceitarem suas provas.
Embora a feitiçaria fosse definida como um delito teológico, a tarefa de identificar
as bruxas era dada a teólogos profissionais (inquisidores) e a caçadores de bruxas (“os
caçadores comuns”). De forma semelhante, embora a doença mental seja definida como
um problema médico, o diagnóstico da loucura é confiado tanto a psicopatologistas
médicos (psiquiatras) quanto a trabalhadores não-médicos (psicólogos, assistentes
sociais). Hoje, cada um desses grupos procura superar os outros no diagnóstico de
doença mental. É o que se deveria esperar. Assim como a identidade e o prestígio social

27
Ver Thomas S. Szasz, “Mental Illness is a myth”, New York Times Magazine, 12 de junho, 1966, pp. 30, 90-92.
28
Mackay, p. 514.
do caçador de bruxas dependiam de sua capacidade para encontrar e identificar bruxas,
o prestígio e a identidade do psicopatologista dependem de sua capacidade para
encontrar e identificar pacientes mentalmente doentes. Quanto maior o número de
bruxas e loucos encontrados, mais competentes o caçador de bruxas e o
psicodiagnosticador.
O erro, evidentemente, não está apenas no fingidor; deve ser compartilhado
pelos que desejam e até pedem para ser enganados. Como as massas acreditavam na
feitiçaria, e hoje acre- ditam na doença mental, os caçadores de bruxas estavam e os
psicopatologistas estão hoje sob irresistível pressão para identificar e autenticar
adequadamente as vítimas. Nem o psiquiatra nem os não-médicos especialistas em
saúde mental decepcionaram suas assistências ansiosas e crédulas.
Por exemplo, durante a Segunda Grande Guerra, o espírito de cruzada da
psicopatologia norte-americana pôde manifestar-se na Divisão Psiquiátrica dos Serviços
Médicos, então chefiada pelo General William C. Menninger. Este inventou um novo
sistema para classificação de doenças mentais e pacientes psiquiátricos, adotado por
todas as Armas das Forças Armadas, e levou à criação do que hoje é conhecido como a
lista oficial de “doenças mentais”, catalogadas no volume Diagnostic and Statistical
29
Manual of Mental Disorders, da Associação Psiquiátrica Americana. Menninger
30
classificou esse trabalho como “magnífica realização”. O seu efeito foi que mais civis
foram declarados mentalmente incapacitados para o serviço militar, mais soldados
foram classificados como mentalmente doentes e mais veteranos de guerra hoje
recebem “compensação” e “tratamento”’ por doença mental do que em qualquer
momento anterior da história. Os números reais são os seguintes: entre janeiro de 1942
e junho de 1945, de aproximadamente quinze milhões de exames para inclusão nas
Forças Armadas, aproximadamente dois milhões foram rejeitados por doença
neuropsiquiátrica; vale dizer, 12% dos examinados foram rejeitados, por causa de
doença mental. Na verdade, o índice foi de 9,7% em 1942 e subiu para 16,4% em 1945.
Além disso, de cada cem rejeições por todas as causas, uma média de 19,1% era por
doença neuropsiquiátrica. Essa proporção subiu de um mínimo de 28,4 em 1942 para um
máximo de 45,8 em 1944. Apesar dessa seleção — ou talvez por causa dela, pois
autenticava a doença mental como uma base muito aceitável para impedir que os
soldados fossem mobilizados — 37% de todas as dispensas médicas nas Forças Armadas
31
foram baseadas em doença neuropsiquiátrica.
Se a grandeza de um psiquiatra é medida pelo número de pessoas que ele
“diagnostica” como “mentalmente doentes”, William Menninger foi realmente um
grande psiquiatra. Muito adequadamente, seus artigos são publicados sob o título de Um

29
Karl Menninger, The Vital Balance, pp. 478-482.
30
Ibid., p. 474.
31
Robert H. Felix, Mental Illness, pp. 28-29.
32
Psiquiatra num Mundo Perturbado. Para o psiquiatra fanático, todos os homens são
33
loucos, assim como para o teólogo fanático todos os homens são pecadores.
A incidência da doença mental é um problema muito caro aos corações dos que
atualmente trabalham em saúde mental. Como os caçadores de bruxas de antigamente,
os psiquiatras contemporâneos nunca se cansam de acentuar a incidência da doença
34
mental e os perigos que os mentalmente doentes apresentam para a sociedade. Por
isso, nossa capacidade para ver sinais de loucura à nossa volta agora se aproxima — e, na
realidade, talvez ultrapasse — à do inquisidor medieval para ver sinais de heresia à sua
volta. Os sintomas de loucura aparecem com frequência cada vez maior e em pessoas de
*
todos os tipos — norte-americanos e estrangeiros, de classe alta e baixa, mortos e vivos.
Hoje, a caça à loucura é realizada e estimulada pelos mais respeitados e influentes
médicos e estadistas, tal como ocorria com a caça às bruxas há alguns séculos. Talvez
ninguém tenha levado mais longe uma crença, ao mesmo tempo ingênua e evangélica,
na doença mental, do que Karl Menninger. Negando as diferenças de fato entre doença
física e doença mental, Menninger sustenta que não há várias doenças, mas apenas uma,
e que todos são às vezes atormentados por ela. Escreve Menninger: “Afirmamos que
existem condições que devem ser descritas como doença mental. No entanto, em vez de
acentuar muito os diferentes tipos e as diferentes imagem clínicas de doenças,
preferimos pensar em todas as formas de doença mental como fundamentalmente a
mesma quanto a sua qualidade, e com diferenças apenas quantitativas. É isso o que
queremos dizer quando dizemos que todas as pessoas têm doença mental de diferentes
graus e em diferentes momentos, e que às vezes algumas estão muito pior, ou
35
melhor.”
As opiniões messiânicas de Menninger aqui encontram expressão na retórica da
Medicina. Menninger diz — sem dúvida num esforço bem-intencionado, mas errado,
para desentoxicar os poderes semânticos e malignos da expressão “doença mental” —
que todos são mentalmente doentes. Mas depois vem a especificação: alguns são mais
doentes do que outros. Presumivelmente, isso significa que os pacientes são mais
doentes e os psiquiatras menos. Como é que tudo isso pode ajudar os pacientes que são
privados de sua liberdade pelos psiquiatras? Menninger não o diz. Ao contrário, exulta
com a noção de que o homem não apenas é culpado do “pecado original”, mas também

32
William C. Menninger, Psychiatrist to a Troubled World.
33
Para um excelente desenvolvimento literário desse tema, ver Joaquim Machado de Assis, “The Psychiatrist” (“O Alienista”),
em The Psychiatrist and Other Stories, pp. 1-45.
34
Ver, por exemplo, Leo Srole, Thomas S. Langer, Stanley T. Michael, Marvin K. Opler, e Thomas A. C. Rennie, Mental Health
in the Metropolis, p. 138.
*
O assassínio do Presidente Kennedy revelou toda a caça à loucura, latente nos Estados Unidos. Hoje podemos colher os
resultados de cuidadosas plantações psiquiátricas dos últimos vinte e cinco anos. As maiores autoridades médicas e
psiquiátricas, bem como os mais respeitados intérpretes leigos dos acontecimentos humanos nos dizem que não apenas
Oswald estava louco quando, supostamente, atirou em Kennedy, mas também que Ruby estava louco quando atirou em
Oswald. Segundo Theodore H. White: “John F. Kennedy foi morto por um louco, Lee Harvey Oswald, que momentaneamente
se considerara fiel ao paranoide Fidel Castro, de Cuba. E Oswald, por sua vez, foi morto, dois dias depois, por outro louco, Jack
Ruby.” (Theodore H. White, The Making of the President, 1964, p: 29.) Em duas breves sentenças encontramos três
diagnósticos psiquiátricos — o de Castro é dado gratuitamente.
35
Karl Menninger, p. 32.
sofre da “doença mental original”: “Já não se aceita a noção de que a pessoa
mentalmente doente é uma exceção. Hoje se admite que quase todas as pessoas têm,
em algum momento, certo grau de doença mental, e muitas têm certo grau de doença
36
mental na maior parte do tempo.”
Assim como Karl Menninger, o decano da Psiquiatria norte-americana, apoia a
crença no mito da doença mental e tudo o que isso implica socialmente para o indivíduo
incriminado de doente mental, também Sir Thomas Browne (1605-1683), o mais
eminente médico de seu tempo, apoiava a crença em feitiçaria e estimulava o castigo
das bruxas. Ao depor, como testemunha especialista, num processo de feitiçaria,
apresentou a opinião de que “em tais casos o demônio age nos corpos humanos por
meios naturais, isto é, excitando e despertando os humores excessivos; (...) esses
ataques poderiam ser naturais, embora elevados a maior grau pela sutileza do demônio,
37
que coopera com a malícia das bruxas.”
A coerção, o domínio e a violência evidentemente não provocam decência,
reciprocidade e compreensão. Embora os caçadores de bruxas geralmente estivessem
livres de acusações de feitiçaria, eram às vezes obrigados a diagnosticar feitiçaria,
embora contra sua vontade. De forma semelhante, embora os psiquiatras estejam
geralmente livres de acusações de doença mental, são às vezes obrigados a diagnosticar,
contra sua vontade, doença mental.
Zilboorg descreve um caso que pode servir de exemplo. Ao descrever a
investigação de feitiçaria numa jovem mulher chamada Françoise Fontaine, que sofria de
ataques supostamente causados por posse pelo demônio, Zilboorg escreve: “Não foi
liberada a não ser depois que seu cabelo e seus pelos nas axilas tivessem sido cortados
pelo cirurgião, que também estava amedrontado e, depois de por três vezes se ter
recusado a realizar a tarefa, finalmente precisou ser ameaçado pelo superintendente
38
com castigo severo, em nome Sua Majestade, o Rei!”
Em 1591, quando isso ocorreu, os médicos geralmente tratavam os doentes com
o consentimento dos pacientes; no entanto, quando chamados a examinar ou tratar
feiticeiras, não tinham esse consentimento. Não houve mudança básica nessa situação.
Ainda hoje, os médicos geralmente tratam os doentes com o consentimento destes; no
entanto, quando chamados a examinar ou tratar doentes mentais, muitas vezes não têm
o consentimento destes. Muitos médicos gostam dessa situação; outros acostumam-se a
ela; alguns precisam ser obrigados a submeter-se a ela. No entanto, gostem ou não da
situação, o fato indiscutível é que a instrução psiquiátrica é, antes de tudo, uma
doutrinação ritualizada na teoria e prática da violência psiquiátrica. Os efeitos
desastrosos disso são evidentes no paciente; embora menos evidentes, suas
consequências para o médico muitas vezes são igualmente trágicas.

36
Ibid., p. 33.
37
Citado em Mackay, p. 518.
38
Gregory Zilboorg, The Medical Man and the Witch During the Renaissance, p. 67.
Uma das poucas “leis” das relações humanas é que, não apenas os que sofrem a
autoridade brutal, mas também os que a exercem, se tomam alienados dos outros e, por
isso, desumanizados. O oprimido tende a tomar-se um objeto passivo, como se fosse
uma coisa, enquanto o opressor se torna uma figura megalomaníaca, divina. Quando o
oprimido compreende que é apenas um simulacro de homem, e o opressor um
simulacro de Deus, o resultado é frequentemente violência explosiva, onde a vítima
procura vingança no assassinato e o destruidor procura o esquecimento no suicídio.
Suponho que isso explique, pelo menos em parte, o fato de que, nos Estados Unidos, a
39
maior incidência de suicídio ocorre entre os psiquiatras.

39
Ver “On sucide”. Time, 25 de nov. 1966, p. 48 e “Physician suicides cause concern”. Med. World News, 9 de junho, 1967, pp.
28-29.
3
A AUTENTICAÇÃO DO MALFEITOR

Foi importante, e talvez decisivo, para o lugar que a loucura


iria ocupar na cultura contemporânea, que o Homo medicus
não fosse chamado para o mundo do confinamento como
um arbiter, para separar o que era crime do que era loucura,
o que era mal do que era doença, mas, ao contrário, como
um guardião, a fim de proteger os outros do vago perigo que
transpirava das paredes do confinamento.
Michel Foucault 1

A denúncia de pessoas como feiticeiras, seu exame para nelas procurar marcas do
demônio, sua tortura para conseguir confissões serviam apenas para conseguir sua
definição formal e legal como feiticeiras e justificar que fossem condenadas à morte,
usualmente na fogueira. Agora, estamos preparados para examinar o processo da
feitiçaria e compará-lo aos processos legais contemporâneos para verificar a posição da
pessoa quanto à saúde mental.
Evidentemente, o processo de feitiçaria não era um processo no sentido
moderno. Embora seu objetivo ostensivo fosse verificar a inocência ou a culpa da
acusada, seu objetivo real era proclamar publicamente a existência, a incidência e o
perigo das bruxas, bem como o poder e a clemência dos inquisidores e dos juízes. De
forma semelhante, um processo de sanidade — por ordem de prisão, adequação para
submeter-se a julgamento, ou habeas corpus para conseguir liberdade num hospital
psiquiátrico — não é também um processo autêntico. Embora seu objetivo ostensivo
seja verificar a doença ou a saúde mental do paciente, seu objetivo real é proclamar
publicamente a existência, a incidência e o perigo das pessoas insanas e o poder e a
clemência dos psiquiatras e juízes.
As pessoas acusadas de heresia ou feitiçaria eram tratadas de forma diferente das
acusadas de delitos comuns —, isto é, não-teológicos. Na Idade Média e no
Renascimento, o processo contra uma pessoa acusada de delito comum era
“acusatório”: ela podia ter a ajuda de advogado; alguns tipos de provas contra ela não
eram admissíveis no tribunal; usualmente não era obrigada a confessar, sob tortura, seu
suposto delito. Todas essas garantias dos direitos do acusado eram afastadas nos
processos por heresia. Segundo Lea, “os que defendiam os erros dos heréticos deviam

1
Michel Foucault, Madness and Civilization, p. 205.
ser tratados como heréticos”. “[Além disso], embora as provas de um herético não
devessem ser recebidas no tribunal, fazia-se uma exceção em favor da fé, e era aceita se
2
fosse contra outro herético.”
A pessoa acusada de doença mental está em situação semelhante. Também ela,
em vez de ser tratada como um adulto respeitável suspeito de crime, é tratada de
maneira paternalista, como uma criança desobediente seria tratada por um “pai com
mais experiência”. As descrições de intervenção psiquiátrica involuntária — e com isso
quero indicar qualquer contato com um psiquiatra que não foi ativamente procurado por
um paciente — exemplificam as semelhanças entre os processos característicos da
Psiquiatria Institucional e os da Inquisição. Aqui, será suficiente um pequeno exemplo.
a
O Sr. e a Sr. Michael Duzynski eram pessoas deslocadas c de origem polonesa que
emigraram para os Estados Unidos logo depois da Segunda Grande Guerra; passaram a
morar num bairro onde se falava o polonês, na Zona Noroeste de Chicago. A 5 de
a
outubro de 1960, a Sr. Duzynski verificou a falta de 380 dólares, em dinheiro, de seu
apartamento. A outra pessoa que tinha a chave do apartamento era o zelador, e ela
concluiu que ele pegara o dinheiro, acusou-o de roubo e exigiu a devolução da quantia.
a
O zelador chamou a polícia e quando esta chegou disse que o Sr. e Sr. Duzynski eram
“malucos”. A polícia levou o casal para a Clínica de Saúde Mental do Cook County
Hospital, onde ambos foram considerados mentalmente doentes. Foram imediatamente
transferidos para o Hospital Estadual de Chicago. Durante a Segunda Grande Guerra, o
Sr. Duzynski tinha sido prisioneiro num campo de concentração nazista. Então, sabia
porque estava preso; agora, não o sabia. Depois de seis semanas, os Duzynski ainda
estavam definhando no hospital, sem qualquer explicação quanto à sua posição ou
esperança de sair. Desesperado, o Sr. Duzynski enforcou-se. Sua morte provocou, de um
lado, comentários negativos quanto aos processos de prisão no Estado de Illinois, e, de
3 a
outro, a soltura de sua viúva. No entanto, o pedido posterior da Sr. Duzynski para uma
4
“indenização” não foi aceito. Além disso, como o encarceramento do casal tinha sido
“correto”, pois tinham sido diagnosticados como “mentalmente doentes” antes da
hospitalização, as “reformas” provocadas pelo seu caso não alteraram de maneira
*
significativa a situação de indivíduos acusados de “doença mental”.
Note-se como o Sr. Duzynski seria tratado de forma diferente se fosse um
delinquente suspeito e não uma pessoa acusada de doença mental: teria sido acusado

2
Henry Charles Lea, The Inquisition of the Middle Ages, p. 17.
3
Ver Lois Wille, “Why refugee asked for ticket to Russia”, Chicago Daily News, 29 de março, 1962, p. 1: James E. Beaver,
“The ‘mentally ill’ and the law: Sisyphus and Zeus”, Utah Law Rev., 1968: 1-71 (mar.). 1968; p. 21.
4
Duzynski v. Nosal, 324 P. 2d 924 (7th Cir.), 1963.
*
Para uma notável paródia do processo de prisão, ver James Thurber, “A Unicorn in the Garden”, em James Thurber, The
Thurber Carnival, pp. 268-269. A história, contada por Thurber em menos de quinhentas palavras, é a seguinte:
Certa manhã, um homem diz a sua mulher que existe um unicórnio no jardim de sua casa. Ela responde: “Você está maluco, e
vou colocar você num hospício”. O marido, “que não gostava das palavras ‘maluco’ e ‘hospício’” [diz]: “Vamos ver como é que
isso fica.” A mulher manda chamar a polícia e o psiquiatra. Quando chegam, ela conta a história. Perguntaram ao marido: “Você
disse à sua mulher que tinha visto um unicórnio?” E o marido: “Está claro que não; o unicórnio é um animal mítico.” “Era só
isso que eu queria saber”, responde o psiquiatra. ... E assim levaram a mulher, gritando e xingando, e depois a internaram numa
instituição. O marido viveu feliz para sempre.
de um delito específico; levado imediatamente à presença de um juiz; teria licença para
depositar fiança e ficar em liberdade condicional até o resultado de seu processo;
julgado diante de um júri de seus semelhantes; se considerado culpado, de acordo com a
lei, seria condenado ao pagamento de uma multa ou ao encarceramento por um período
definido. Em resumo, o suposto doente mental, ao contrário do que ocorre com o
suposto delinquente, é privado das seguintes garantias processuais dadas pela
Constituição: o direito de ter segurança de sua pessoa, sua casa, seus documentos e bens
contra “buscas descabidas e confiscos” (Quinta Emenda); o direito a um “processo
público e rápido, por um júri imparcial”; o direito de ser “informado da natureza e da
causa da acusação; o direito de enfrentar as testemunhas de acusação; o direito de ter
processo compulsório para obter testemunhas a seu favor; ter a assistência de advogado
para sua defesa” (Sexta Emenda); a proteção de “fiança excessiva” e “castigo cruel e
extraordinário” (Oitava Emenda); o direito de não ser privado de “vida, liberdade ou
5
propriedade, sem o processo adequado da lei” (Décima Quarta Emenda).
As proteções dos direitos individuais concedidas ao delinquente são assim
negadas ao insano (tal como o eram até recentemente negadas aos jovens),
ostensivamente para ajudá-lo a receber o tratamento de que necessita. Na realidade,
isso faz com que seja despido de quaisquer meios de autoproteção. Tal como a feiticeira,
a pessoa acusada de doença mental também não pode conservar os seus
representantes. Se o Estado deseja estigmatizá-la como insana, seus parentes,
advogados e psiquiatras usualmente ficarão impotentes para intervir, e podem ser até
6
submetidos a importunações psiquiátricas. A pessoa suspeita de doença mental
também não pode testemunhar em seu favor. Qualquer prova que apresente de sua
sanidade será desacreditada pela suspeita a que está sujeita. Ao mesmo tempo, embora
sua testemunha em seu favor seja afastada como não merecedora de confiança, as
provas dadas por ela quanto à sua perturbação mental são consideradas como provas
incontestáveis de sua insanidade. Em resumo, da mesma forma que a feiticeira acusada,
o paciente mental acusado não pode, com seus argumentos, convencer os juízes de sua
inocência — mas apenas de sua heresia ou de sua doença mental. Segundo Scheff, que
estudou o funcionamento de tribunais urbanos que processam petições de
internamento, “a principal conclusão de nosso estudo foi que, em três dos quatro
tribunais metropolitanos, os processos civis para hospitalizar e internar o doente mental
não têm um objetivo sério de investigação, mas são apenas cerimoniais. (...) A
hospitalização e o tratamento pareciam ser virtualmente automáticos depois de o
7
paciente ter sido levado ao tribunal.”

5
Para numerosos casos sobre as maneiras pelas quais o indivíduo acusado de doença mental é desprotegido pelas cláusulas
precautórias processuais, ver Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry. Para quatro casos extensos de negativa, sob
fundamentos psiquiátricos, do direito a julgamento assegurado pela Sexta Emenda à Constituição, ver Thomas S. Szasz,
Psychiatric Justice.
6
Ver Szasz, Psychiatric Justice, especialmente pp. 85-143.
7
Thomas J. Scheff, “Social conditions for rationality: How urban and rural courts deal with the mentally ill”. Amer. Behav.
Scientist, 7: 21-27 (mar.), 1964; p. 21.
Embora quase todos os psiquiatras e muitos juristas se oponham a esse tipo de
interpretação de nossas leis de higiene mental, e, ao contrário, sustentem que tais
desvios com relação aos processos usados em acusações por delinquência servem aos
interesses do paciente, e não aos do Estado — é evidente que esses mesmos métodos
fizeram com que a Inquisição fosse irresistível. Segundo Lea: “O direito de revogar
quaisquer leis que impedissem o mais livre exercício dos poderes da Inquisição foi
igualmente reivindicado nos dois lados dos Alpes. (...) Isso fez com que a Inquisição fosse
virtualmente dominante em todos os países, e se tornou um princípio aceito de lei que
todos os regulamentos que interferissem na livre ação da Inquisição deviam ser
considerados nulos, e os que os impunham deviam ser castigados.”8 É difícil imaginar
uma semelhança mais convincente entre o papel sócio-legal da Inquisição e o da
Psiquiatria Institucional contemporânea. Quando Lea diz que “No exercício de sua
autoridade quase ilimitada, os inquisidores estavam praticamente livres de qualquer
9
supervisão e qualquer responsabilidade”, apresenta uma afirmação igualmente
aplicável aos psiquiatras institucionais contemporâneos.
A principal semelhança entre o trabalho do inquisidor e o do psiquiatra
contemporâneo encarregado de avaliar a sanidade mental de uma pessoa está na
natureza da tarefa. Segundo Lea: “O dever do inquisidor era diferente do atribuído ao
juiz comum, pois a tarefa a ele atribuída era a tarefa impossível de verificar as opiniões e
os pensamentos secretos do prisioneiro. Para ele, os atos externos só tinham valor como
indicações de crença, que deviam ser aceitos ou rejeitados quando os considerasse
conclusivos ou ilusórios. O crime que procurava suprimir pelo castigo era puramente
10
mental — os atos, por mais criminosos que fossem, estavam fora de sua jurisdição.” Se
substituímos os termos teológicos pelos psiquiátricos, temos uma descrição do trabalho
do psicopatologista contemporâneo.
Em resumo, o inquisidor não se interessava por atos manifestos e antissociais;
esse problema cabia aos tribunais seculares. Estava interessado pela heresia, que era um
crime contra Deus e contra a religião cristã, e por isso era definida em termos teológicos.
De forma semelhante, o psiquiatra institucional não está interessado por atos manifestos
e antissociais; esse é um problema para os tribunais penais. Está interessado por doença
mental, que é um delito contra as leis de saúde mental e a profissão psiquiátrica, e, por
isso, é definida em termos médicos. A doença mental é o conceito nuclear da Psiquiatria
11
Institucional, assim como o era a heresia para a Teologia da Inquisição.
O fato de tanto a heresia quanto a doença mental serem crimes de pensamento,
e não crimes de ato ajuda a explicar os métodos asquerosos usados em sua averiguação.
Com uma nota de esplêndido sarcasmo, Lea observa que “Não devemos ficar admirados
com o fato de o inquisidor se livrar das exigências de processo judicial reconhecido que

8
Lea. p. 37.
9
Ibid., p. 39.
10
Ibid.. p. 96.
11
Ver Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness.
12
(...) tornariam inúteis os seus trabalhos.” Por isso, “O herético, reconhecido ou
simplesmente suspeito, não tinha direitos (...) não havia hesitação ao empregar
13
quaisquer meios que fossem mais rápidos para salvar e propagar a fé.”
Se substituirmos os termos religiosos por termos psiquiátricos, a afirmação de Lea
se torna uma descrição da situação legal do paciente mental hospitalizado: “O doente
mental, diagnosticado ou simplesmente suspeito, não tem direitos (...) não se hesita em
empregar quaisquer meios que sejam mais rápidos para salvar sua saúde mental e
propagar a fé na Medicina psiquiátrica.” Segundo Francis J. Braceland, professor clínico
de Psiquiatria na Universidade Yale, e antigo presidente da Associação Psiquiátrica
Americana: “É característica de algumas doenças que as pessoas não percebam que
estão doentes. Em resumo, às vezes é necessário protegê-las de si mesmas durante
algum tempo. (...) Se um homem me traz sua filha da Califórnia porque está
manifestamente em perigo de perder-se na depravação ou de infelicitar-se de alguma
forma, não espero que a deixe solta em minha cidade, para que aqui ocorra a mesma
14
coisa.”
Como a heresia não era um ato social nem uma condição biológica, mas um
estado de mente, o crime da feitiçaria nunca poderia ser verificado se se seguissem os
processos judiciais reconhecidos. Os irritantes problemas de provas eram superados
quando se adotava o que desde então se conhece como o método inquisitorial de
acusação, que na linguagem corrente é denominado “caça às bruxas”. Lea descreve o
processo da seguinte maneira:
Das três formas de ação penal, acusação, denúncia e inquisição, esta última
necessariamente se tomou, em vez de uma exceção, a regra invariável, e ao mesmo tempo
era despojada das garantias pelas quais suas tendências perigosas tinham sido até certo
ponto neutralizadas. Se um acusador formal se apresentava, o inquisidor tinha instruções
para desestimulá-lo, indicando os perigos do talio, aos quais estava exposto ao registrar-se;
e, por acordo geral, essa forma de ação era rejeitada pelo fato de ser “litigiosa” — isto é,
porque permitia ao acusado algumas oportunidades de defesa. (...) A ação por denúncia
era menos discutível, pois nela o inquisidor atuava ex officio; mas era pouco usual, e o
15
processo inquisitorial cedo se tornou o único seguido.
Embora com mais de quinhentos anos, o processo inquisitorial não chegou a ser
integralmente desenvolvido antes do século XX. A diferença fundamental entre o
processo de acusação e o de inquisição reside nos métodos disponíveis para uma pessoa
ou instituição (frequentemente o Estado) para impor um papel social rebaixado e
degradado a outra pessoa (frequentemente participante de um grupo minoritário). O
processo de acusação dá garantias complexas ao indivíduo, impedindo que seja colocado
num papel atribuído, como, por exemplo, o de criminoso; de modo geral, há necessidade
preliminar de prova de que praticou atos proibidos por lei. O processo inquisitorial retira

12
Lea, p. 97.
13
Ibid., p. 113.
14
Francis J. Braceland, “Testimony”, em Constitutional Rights of the Mentally Ill, pp. 63-74; pp. 64, 71 .
15
Lea, p. 97.
essa proteção do indivíduo e dá à acusação um poder ilimitado para colocar o acusado
no papel atribuído adequado, como, por exemplo, inimigo do Estado ou doente mental.
Nos Estados totalitários, o processo da execução da lei penal é geralmente inquisitorial, e
o mesmo ocorre com as leis e práticas de saúde mental nos Estados não-totalitários.
Na evolução dos métodos religiosos (inquisitoriais) para os métodos médicos
(psiquiátricos) de controle social, houve uma etapa intermediária, que era o uso
ostensivamente terapêutico do poder do rei como déspota benevolente ou governante:
exemplificada pela lettre de cachet francesa, essa forma intermediária — real — de
controle social era simultaneamente religiosa e secular, mágica e científica. Como a
lettre de cachet é o precursor histórico imediato da petição contemporânea de
internamento, será bom apresentar alguns comentários a seu respeito.
Uma lettre de cachet (literalmente, uma carta com um selo) era um documento
com um selo do rei, ou de um de seus funcionários, e que autorizava a prisão, sem
processo, da pessoa ou pessoas nela indicadas. Os usos das lettres de cachet, que teve
sua maior aceitação do início do século XV até o fim do século XVIII, são resumidos da
seguinte forma na Encyclopaedia Britannica:
Ao mesmo tempo que serviam ao Governo como uma arma silenciosa contra inimigos
políticos e escritores perigosos, e como um meio para castigar réus de famílias importantes
sem o escândalo de um processo, as lettres de cachet tinham ainda outros usos. Eram
empregadas pela polícia para lidar com prostitutas, e com sua autoridade os lunáticos
eram encarcerados. Eram também usadas por chefes de família como um meio de
correção, por exemplo, para proteger a honra da família da conduta irregular ou
delinquente de seus filhos; também as mulheres as empregavam para dominar o
16
desregramento dos maridos, e vice-versa.
Essa apresentação constitui também uma descrição exata dos atuais pedidos de prisão.
Portanto, o controle social através da lettre de cachet constitui um estágio
intermediário entre o controle por meio da antiga Inquisição religiosa e o novo, feito
pela Psiquiatria. Os processos dessas três instituições repousam nos mesmos princípios
de paternalismo; difere apenas a identidade do pai, em cujo nome se exerce o controle.
No caso da Inquisição é o Santo Padre, o Papa; no da lettre de cachet, é o Pai Nacional, o
Rei; no da Psiquiatria Institucional, é o Pai Científico, o Médico.
Segundo a explicação de Barrows Dunham, “Teoricamente, a Rei da França era o
pai da família francesa, e, segundo os princípios patriarcais, sua vontade era absoluta.
17
Outros pais podiam apelar a ele, e ele colocaria os filhos recalcitrantes na Bastilha.”
Podiam também colocar seus filhos — como o fez uma mulher com sua filha de quarenta
18
anos — na Salpêtrière! A seguir, diz Dunham, que “quando os tempos ficaram difíceis
(...) o Governo começou a reprimir os intelectuais através do uso frequente de lettres de
cachet. Segundo esse costume, em 23 de julho de 1749, Luís XV, em Compiègne, assinou

16
“Lettres de cachet”, em Encyclopaedia Britannica, Vol. 13, p. 971.
17
Barrows Dunham, Heroes and Heretics, p. 374.
18
Ibid., pp. 374-375.
uma lettre de cachet que tinha o seguinte teor: “Sr. Marquês de Châtelet: esta carta é
para que receba em meu castelo de Vincennes o Sr. Diderot [Denis Diderot, o
enciclopedista e filósofo francês] e aí conservá-lo até segunda ordem minha. Peço a Deus
19
que o conserve, Senhor Marquês de Châtelet, em sua santa guarda.” Dunham
20
comenta: “É encantador o respeito com que se fazia a prisão.” Essa hipócrita piedade
religiosa da lettre de cachet foi substituída pela hipócrita piedade médica da receita para
21
internamento.
Hoje, em muitos estados norte-americanos, os médicos têm o poder para prender
uma pessoa num hospital psiquiátrico (na realidade, uma cadeia) por um período que
pode ir até quinze dias, e isso sem ordem judicial; e, pela vida toda, com uma ordem
22
judicial, que, como veremos logo mais, é obtida como simples formalidade.
Ironicamente, essa transformação do internamento em medida médica, com a qual um
médico pode encarcerar uma pessoa em hospital psiquiátrico sem qualquer recurso aos
tribunais, é considerada uma “liberalização” dos métodos empregados por hospitais
psiquiátricos. Aqui, pode ser citada a posição oficial da Associação Psiquiátrica
Americana, apresentada a uma comissão do Senado que, em 1961, investigava os
direitos dos doentes mentais. Essa posição foi definida por Francis J. Braceland e Jack R.
Ewalt, ambos ex-presidentes da Associação. Em suas palavras: “Nas últimas décadas (...)
a nova; ciência médica da Psiquiatria, numa árdua batalha, avançou o suficiente para que
o público aceite mais a opinião de que a doença mental é uma doença. (...) De modo
geral, os psiquiatras preferem um processo simples de internamento, pelo qual há um
pedido a um hospital, feito por parente próximo ou amigo, e um atestado, por dois
médicos qualificados, de que examinaram a pessoa e verificaram que está mentalmente
23
doente.” Portanto, a Associação Psiquiátrica Americana aceita o internamento através
de lettres de cachet de médicos.
Além disso, assim como o inquisidor supunha que a pessoa acusada de feitiçaria
fosse herética, também o psiquiatra institucional supõe que a pessoa acusada de doença
mental seja um paciente psiquiátrico. Tais suposições foram, e continuam a ser,
justificadas pelos objetivos supostamente terapêuticos das duas intervenções: salvar a
alma do herético e proteger e melhorar a saúde mental do paciente. Thomas J. Scheff
pesquisou as suposições dos psiquiatras com relação a pessoa encaminhadas ao
internamento e seus resultados confirmam as afirmações acima. Depois de resenhar os
estudos existentes sobre internamento, notou que “sugerem a existência de uma
24
pressuposição de doença pelos funcionários da saúde mental”. Por exemplo, em dois

19
Ibid.,
20
Ibid., p. 375.
21
A esse respeito, ver, por exemplo Hugh A. Ross: Commitment of the mentally ill: Problems of law and policy, Mich. Law
Rev., 57: 945-1-18 (maio), 1959; Luis Kutner, “The illusion of due process in commitment proceedings”, Northwestern Univer.
Law Rev., 57: 383-399 (set.-out.), 1962.
22
Ver Frank T. Lindman e Donald M. Mclntyre, Jr. (orgs.), The Mentally Disabled and the Law, pp. 15-106.
23
Depoimento prestado em favor da Associação Psiquiátrica Americana por Francis J. Braceland, Psiquiatra-Chefe, Institute of
Living, Hartford, Connecticut, e Jack R. Ewalt, Chefe do Departamento de Psiquiatria, Harvard Medicai School, Boston, Mass.,
em Constutional Rights of the Mentally III, pp. 79-85; pp. 80-81.
24
Thomas J. Scheff, Being Mentally III, p. 132.
hospitais psiquiátricos, estudados por um período de três meses. David Mechanic “nunca
observou um caso em que o psiquiatra dissesse ao paciente que este não precisava de
tratamento. Ao contrário, todas as pessoas que apareciam no hospital eram incluídas na
população de pacientes, independentemente de sua capacidade para atuar
25
adequadamente fora do hospital.” Outros estudos ampliam essa impressão. Segundo a
observação de Scheff. “entre os funcionários da saúde pública geralmente se admite que
26
os hospitais psiquiátricos públicos dos Estados Unidos aceitam todos os que chegam”.
Scheff observou os processos de seleção em quatro tribunais de um estado do
Centro-Oeste, com o maior volume de casos de doença mental nesse estado. Verificou
que as entrevistas “demoravam de 5 a 17 minutos, e a média era de 10,2 minutos. Quase
27
todos os examinadores estavam apressados.” Concluiu que “o comportamento ou a
‘condição’ da pessoa supostamente doente mental usualmente não é um fator
importante na decisão dos funcionários para recusar ou aceitar novos pacientes no
hospital psiquiátrico. A natureza marginal da maioria dos casos, a rapidez e a
inadequação da maioria dos exames, quando consideradas diante do fato de que
virtualmente todos os pacientes são recomendados para internamento, parece
28
demonstrar essa proposição.”
O psiquiatra tem esses poderes arbitrários porque, tal como o inquisidor antes
dele, não é considerado um promotor ou acusador, mas um benfeitor, uma pessoa capaz
de curar. O conceito do inquisidor como médico espiritual decorria inevitavelmente de a
feitiçaria ser uma divergência espiritual — assim como o conceito do psiquiatra
institucional como médico decorre do conceito de loucura como uma divergência
médica. O perigo de assim considerar a divergência social e o controle estava claro para
os estudiosos da Inquisição, como se pode ver pelos comentários de Lea:
No melhor dos casos, o processo da Inquisição era perigoso em sua união entre promotor e
juiz. (...) O perigo ficava dobrado quando o juiz promotor era um fanático apaixonado
voltado para a defesa da fé e antecipadamente decidido a ver em cada prisioneiro um
herético que deveria ser preso a qualquer preço; mas o perigo não se reduzia quando esse
juiz era apenas ambicioso e estava em busca de taxas e confiscos. No entanto, segundo a
teoria da Igreja, o inquisidor era um pai espiritual imparcial cujas funções na salvação das
29
almas não deveriam ser detidas por regras.
Os mesmos perigos são intrínsecos aos métodos da Psiquiatria Institucional. O
inquisidor piedoso indiscutivelmente ficaria furioso diante da sugestão de que era o
inimigo, não o amigo, do herético. De forma semelhante, o psiquiatra institucional rejeita
encolerizado a ideia de que é o adversário involuntário do paciente, não seu terapeuta.
Ao negar essa interpretação, o inquisidor teria respondido com a afirmação de que as
suas ajudas — até o fato de queimar a vítima viva — destinavam-se a salvar a alma do

25
Ibid., p. 133.
26
Ibid.
27
Ibid., p. 144.
28
Ibid., p. 154.
29
Lea, p. 101.
herético da danação eterna; o psiquiatra responde que seus esforços — onde se incluem
o encarceramento pela vida toda, as convulsões elétricas e a lobotomia — procuram
proteger e melhorar a saúde mental do paciente. As afirmações seguintes de
autoridades psiquiátricas podem servir como exemplo disso.
Gostaríamos que nossos hospitais (...) fossem vistos como centros de tratamento para
pessoas doentes e, evidentemente, desejamos ser considerados como médicos e não como
carcereiros. (...) Como se sabe, existem garantias legais para impedir internamento em
massa em hospitais psiquiátricos, e afirmamos que as pessoas estão bem protegidas contra
isso em todos os estados. Nos 30 anos em que tenho vivido constantemente com esse
problema, nunca vi alguém que eu pudesse supor que estivesse sendo internado
indevidamente. (...) No entanto, o oposto é verdade. As pessoas são retiradas em massa de
nossos hospitais psiquiátricos antes do momento em que isso deveria acontecer, pois essas
30
instituições estão superlotadas. (...) (...) Desejo indicar que o objetivo básico [da
internação] é ter a certeza de que as pessoas doentes recebam o tratamento que é
31
adequado para suas necessidades (...)
Como médicos, desejamos que nossos hospitais psiquiátricos (...) sejam vistos como
centros de tratamento para pessoas doentes, no mesmo sentido em que se veem os
32
hospitais gerais.
Se os psiquiatras realmente desejassem isso, tudo o que precisariam, fazer seria abrir as
portas dos hospitais psiquiátricos, abolir o internamento e tratar apenas as pessoas que, tal
como ocorre nos hospitais, não-psiquiátricos, desejam ser tratadas. É exatamente isso o
33
que venha defendendo nos últimos quinze anos.
Lea assim descreve a função social da Inquisição: “O objetivo da Inquisição é a
destruição da heresia. Esta não pode ser destruída se os heréticos não o forem. (...) Isso
é realizado de duas maneiras: quando são convertidos para a verdadeira fé católica, ou
34
quando, abandonados ao braço secular, são fisicamente queimados.” Essa afirmação
pode ser facilmente traduzida para uma descrição da função social do Movimento de
Saúde Mental: “O objetivo da Psiquiatria é a erradicação da doença mental. A doença
mental não pode ser erradicada se o doente mental não for erradicado (...) Isso é
realizado de duas maneiras: quando o doente recupera a saúde mental, ou quando,
internado em hospitais psiquiátricos públicos, os doentes se mostram incuráveis e, por
isso, são afastados de contato com a sociedade sadia.”
Talvez mais do que qualquer outra coisa, o fato de o promotor e o juiz
pretenderem ter um papel de ajuda é que fazia do processo de feitiçaria uma
deformação. Segundo nos diz Lear “O acusado era prejulgado. Supunha-se que era
culpado, pois, caso contrário, não estaria sendo processado, e praticamente sua única
forma de escapar era confessar as acusações feitas contra ele, renunciar à heresia e
aceitar quaisquer castigos que pudessem ser impostos como forma de penitência. A

30
Braceland, “Testimony”, em Constitutional Rights of the Mentally Ill, pp. 64-65.
31
Ewalt. “Testimony”, ibid., p. 75.
32
Depoimento prestado em favor da Associação Psiquiátrica Ameriricana (...), ibid., p. 80.
33
Ver especialmente Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry.
34
Lea, p. 231.
negação contínuas de culpa e as afirmações de ortodoxia (...) faziam com que se
transformasse num herético impenitente e teimoso, a ser abandonado ao braço secular
35
e condenado à fogueira.”
A aceitação de uma postura terapêutica pelo psiquiatra institucional leva às
mesmas consequências impiedosas. Como o herético acusado, o doente mental acusado
comete o maior pecado quando nega sua doença o afirma que seu estado divergente é
saudável. Por isso, os rótulos diagnósticos mais difamantes da psiquiatria são reservados
paro os indivíduos que, embora declarados insanos pelos especialistas, e confinados em
manicômios, teimosamente continua a afirmar que são sadios. Diz-se que “não têm
qualquer autoconhecimento” ou são descritos como “desligados da realidade” e
usualmente diagnosticados como “paranoides” ou “esquizofrênicos”. Os inquisidores
espanhóis também tinham um nome aviltante para tais pessoas: eram chamados os
“negativos”. Segundo Lea, “O negativo, que continuamente negava sua culpa diante do
testemunho competente, era universalmente considerado um herético impenitente e
pertinaz, para quem não havia alternativa a não ser a fogueira, embora (...) pudesse dizer
mil vezes que era católico e que desejava viver e morrer de acordo com sua fé. Essa era a
36
lógica inevitável da situação. (...)”
Uma das importantes diferenças entre uma pessoa acusada de crime e a acusada
de doença mental é que a primeira muitas vezes tem permissão de fiança, enquanto a
segunda nunca tem essa possibilidade. Também essa distinção pode ser encontrada na
Inquisição. O problema da fiança para os suspeitos de heresia foi considerado pelos
inquisidores do século XV e, segundo Lea, foi decidido da seguinte maneira: “Se uma
pessoa é apanhada em heresia, por sua confissão pessoal, e é impenitente, deve ser
entregue ao braço secular e condenada à morte; se penitente, deve ser conservada
presa pelo resto da vida, e, por isso, não deve ser solta sob fiança; se nega, e é
legitimamente condenada por testemunha, deve, como impenitente, ser entregue ao
37
braço secular para ser executada.”
Da mesma forma, nos processos de doença mental não se permite a fiança. Se o
acusado admite a doença mental, é hospitalizado, frequentemente pelo resto da vida; se
a nega, e se se verifica que é doente de acordo com uma audição de sanidade que se
conforma a todas as exigências de “processo devido”, é internado num hospital
psiquiátrico e tratado contra sua vontade, por quaisquer meios necessários, até que
“compreenda sua situação.”
Nunca será demais acentuar que a ideia de uma penologia psiquiátrica, festejada
hoje como uma invenção nova e humanitária, que deva ser atribuída às “descobertas
científicas” de uma “Psiquiatria dinâmica”, não é nova nem tem origem na Psiquiatria.
Ao contrário, é um aspecto característico da Inquisição, e das ideias religiosas e do
fanatismo que a animavam. Segundo Lea: “Teoricamente, o objetivo da Inquisição era

35
Ibid., p. 103.
36
Henry Charles Lea, A History of the Inquisition of Spain, Vol. 2, p. 585.
37
Lea, Inquisition of Middle Ages p. 103.
salvar as almas. (...) Os castigos impostos ao arrependidos não eram castigos, mas
penitências, e não será um condenado, mas um penitente; qualquer afirmação que
fizesse durante seu processo, mesmo que teimosamente negando as acusações, era uma
confissão, e a prisão a que era enviado era uma casa de penitência ou de misericórdia.
Mesmo as denúncias e as provas de testemunhas da defesa eram às vezes denominadas
38
confissões.”
Essa retórica e essa mitologia terapêutica passaram para as funções penais ou de
sentenças da Inquisição, que, segundo Lea, “se baseava numa ficção que deve ser
compreendida para que possamos avaliar corretamente grande parte de sua ação.
Teoricamente, não tinha poderes para impor castigos. (...) Por isso, suas sentenças não
eram como as de um juiz secular, a vingança da sociedade contra o delinquente, ou
exemplos repressivos para impedir a difusão do crime; eram impostas apenas em
benefício de uma alma transviada, para limpá-la de seu pecado. Os inquisidores falam de
suas ajudas nesse sentido. Quando condenavam um infeliz à prisão perpétua, a fórmula
usada, depois de o processo do Santo Ofício se ter sistematizado, era um simples
conselho para que se dirigisse à prisão e aí se prendesse, realizando penitência com pão
e água, com a advertência de que não deveria sair daí, sob pena de excomunhão, e de
ser considerado como um herético impenitente e perjuro. Se saísse da prisão e fugisse, a
requisição para sua captura numa jurisdição estrangeira o descreve, com singular falta
de humor, como pessoa que, por insanidade, foi levado a rejeitar o remédio salutar que
lhe foi oferecido para sua cura, e a rejeitar o óleo e o vinho que estavam mitigando suas
39
feridas.” (Os grifos são meus.)
Os doentes mentais são detidos e tratados contra sua vontade e pelas mesmas
razões e das mesmas formas. Um juiz de um tribunal de Chicago que realiza audiências
para internamento diz “que este é o único tribunal em que o acusado sempre vence. Se
for liberado, isso significa que está bem. Se for internado, isso se faz pelo seu próprio
40
bem.” Os que trabalham em saúde mental hoje sustentam, tal como o faziam os que
ajudavam a Inquisição, que tudo o que é feito à vítima é feito pelo seu próprio bem. É
isso que faz dos processos de internamento para os pré-pacientes e as audiências de
habeas corpus para os internados os simulacros que são. A seguinte decisão judicial pode
servir de exemplo.
Num esforço para conquistar sua liberdade, Stanley Prochaska, um paciente
internado contra sua vontade no Hospital Psiquiátrico Estadual de Iowa, pediu habeas
corpus, afirmando que tinha sido privado dos recursos normais da lei, pois o advogado
que o defendeu na audição de sanidade não o consultara. A Corte Suprema de Iowa
confirmou a decisão do tribunal de processo, recusando a queixa do acusado. Segundo a
Corte: “Deve-se lembrar que o apelante não está acusado de um crime e não está
encarcerado como tal. Está tendo restrições à sua liberdade na medida em que não tem
liberdade para ir e vir de acordo com sua vontade, mas essa restrição não é feita como

38
Lea, Inquisition of Spain, Vol. 2, p. 569.
39
Lea, Inquisition of Middle Ages, p. 155.
40
Citado em Time, 20 de nov., 1964, p. 76.
castigo, mas para sua proteção e bem-estar, bem como em benefício da sociedade. Essa
perda de liberdade não se refere à liberdade abrangida pelo sentido da regra
constitucional de que ‘nenhuma pessoa será privada da vida, da liberdade ou da
41
propriedade, a não ser de acordo com a lei.”
Uma vez que se aceita essa interpretação terapêutica — seja pela Inquisição, seja
pela Psiquiatria Institucional — tudo o mais decorre logicamente. Por exemplo, Lea nota
que “Por uma ficção legal, supunha-se que o inquisidor notasse os dois lados do caso e
42
cuidasse da defesa, bem como da acusação.” Pela mesma ficção legal, o psiquiatra do
hospital público deve olhar para os dois lados do caso e proteger a comunidade, bem
como o doente mental. Como já vimos, de um lado, os psiquiatras dizem que desejam
ser considerados como médicos, não como carcereiros; de outro, orgulhosamente
afirmar que seu dever é proteger a sociedade. Robert H. Felix, diretor da Faculdade de
Medicina na Universidade de St. Louis e antigo diretor do Instituto Nacional de Saúde
Mental, declara que o “psiquiatra de amanhã, como o seu equivalente de hoje, será um
43
dos guardas da comunidade.”
Aqui, não precisamos analisar longamente as consequências desastrosas das
práticas difundidas e não criticadas dos inquisidores. É suficiente acentuar novamente
que, ao combater a feitiçaria, na realidade os inquisidores a criavam. Segundo Lea: “Os
ensinamentos constantes da Igreja levaram seus melhores homens a considerar que
nenhum ato era mais evidentemente justo do que a queima dos heréticos, e nenhuma
heresia menos defensável do que um pedido de tolerância. (...) O fato é que a Igreja não
44
apenas definia a culpa e impunha o castigo desta, mas criava o próprio crime.” O
45
mesmo, evidentemente, pode ser dito a respeito da Psiquiatria Institucional.
Finalmente, há uma outra semelhança entre a heresia e a doença mental, mas
também uma diferença. Uma vez que a pessoa fosse colocada no papel de herético, o
registro de sua divergência deixava uma marca permanente nela. “A sentença da
Inquisição (...) sempre terminava com uma ressalva quanto ao poder para modificar,
reduzir, aumentar ou retificar livremente. (...) No entanto, o inquisidor não tinha o poder
46
para dar perdão absoluto, reservado exclusivamente ao Papa.”
Da mesma forma, uma vez que a pessoa seja colocada no papel de doente
mental, existe um registro permanente de sua divergência. Tal como ocorria com o
inquisidor, o psiquiatra pode “condenar” uma pessoa à doença mental, mas não pode
retirar o estigma que ele mesmo impôs. Além disso, na Psiquiatria não existe um papa
para dar perdão absoluto diante de um diagnóstico de doença mental, publicamente
apresentado.

41
Prochasha v. Brinegar, 251 Iowa 834, 102 N.W. 2d, 1960; p. 872.
42
Lea, Inquisition of Middle Ages, p. 143.
43
Robert H. Felix, “The image of the psychiatrist; Past, present, and future”, Amer. J. Psychiat., 121: 318-322 (Oct.), 1964; p.
321.
44
Lea, Inquisition of Middle Ages, p. 237.
45
Ver capítulos 12, 14 e 15.
46
Lea, Inquisition of Middle Ages, p. 191.
4
A DEFESA DA ÉTICA DOMINANTE

A verdade. Não; por sua natureza, o homem tem mais medo


da verdade do que da morte — e isso é perfeitamente
natural: afinal, a verdade, para o ser natural do homem, é
ainda mais repugnante do que a morte. Se assim é, por que
devemos nos admirar de que tenha tanto medo dela? (...)
Afinal, o homem é um animal social — apenas no rebanho
pode sentir-se feliz. Para ele, é indiferente estar diante do
mais profundo senso comum ou da maior vileza — sente-se
inteiramente à vontade com essa afirmação, desde que seja
a opinião do rebanho, ou a ação do rebanho, e possa juntar-
se ao rebanho.
1
Sören Kierkegaard

Nos capítulos anteriores examinamos as atividades da Inquisição e da Psiquiatria


Institucional, e notamos as semelhanças entre elas. No entanto, ao lidar com as minúcias
das relações inquisidor-feiticeira e alienista-louco, tal como o fizemos, corremos o usual
perigo de focalizar a minúcia: quanto mais vemos as árvores, mais cegos ficamos para a
floresta. A brutal opressão do herético pelo padre e do doente mental pelo psiquiatra
são certamente importantes. Exemplificam algumas formas pelas quais o desejo de
poder do homem, seu impulso para dominar e degradar seu semelhante, sua ambição de
glória e riqueza se apresentam em diferentes épocas. Essas são as árvores sem as quais
não pode haver florestas. Mas as florestas — isto é, a Inquisição e a Psiquiatria
Institucional — têm outras importantes funções sociais específicas.
A direção das atividades de uma sociedade, como a das de um indivíduo, podem
ser comparadas a um jogo. As religiões, as leis e os costumes da sociedade constituem as
regras segundo as quais as pessoas devem jogar — sob pena de serem castigadas, de
uma forma ou de outra. Evidentemente, quanto mais simples os jogos, e quanto menor o
seu número, mais fácil será jogá-los. É por isso que as sociedades abertas e as liberdades
que oferecem representam um pesado fardo para muitas pessoas. Assim como para os
indivíduos é difícil e pesado jogar mais de um jogo de uma só vez, ou, quando muito,
alguns deles ao mesmo tempo, também as sociedades acham difícil e pesado tolerar a
existência de uma pluralidade de jogos, todos competindo pela atenção e lealdade dos

1
Sören Kierkegaard, The Last Years, p. 132.
cidadãos. Todo grupo — e isso inclui as sociedades — é organizado e conservado por
algumas ideias, práticas e valores que não podem ser discutidos ou desafiados sem
provocar sua perturbação, ou, pelo menos, o medo de perturbação. É por isso que
muitas vezes o pensamento independente pode solapar a solidariedade de grupo, e esta
muitas vezes inibe o pensamento independente. Nas palavras de Karl Mannheim:
“Pertencemos a um grupo, não apenas porque tenhamos nascido nele, nem apenas
porque digamos pertencer a ele, nem finalmente porque a ele damos nossa lealdade e
nossa finalidade, mas, fundamentalmente, porque vemos o mundo e algumas coisas da
2
mesma maneira que esse grupo. (...)” Portanto, ver o mundo de forma diferente pode
nos ameaçar com a solidão; dizer que o vemos de forma diferente nos ameaça com
ostracismo. Portanto, a hipocrisia é a homenagem que o intelecto paga aos costumes.
Neste capítulo, minha tese é que a função social da Inquisição e da Psiquiatria
Institucional reside no serviço que ambas prestam à sociedade; ambas dão um sistema
intelectualmente significativo, moralmente elevado e socialmente bem organizado para
a afirmação ritualizada da benevolência, glória e poder da ética dominante da sociedade.
Do lado de fora, ou para o observador crítico, tais instituições poderiam parecer duras e
opressivas; do lado de dentro, ou para o verdadeiro crente, são belas e generosas, e ao
mesmo tempo agradam às massas e aos seus senhores. Este é o segredo do seu triunfo.
A Inquisição e a Psiquiatria Institucional atendem ao mesmo tipo de função
atribuída aos movimentos totalitários contemporâneos: tranquilizar as angústias
maciças, mobilizadas pelo que é geralmente vivido como um excesso do escolhas,
*
ausência de causas valiosas e de líderes que mereçam confiança. O que esses
movimentos “terapêuticos” têm em comum, não apenas entre si, mas também com
alguns movimentos totalitários contemporâneos, como o nacional-socialismo e o
comunismo, é que todos procuram proteger a integridade de uma sociedade
excessivamente pluralista e heterogênea, bem como sua ética dominante. Para atingir
esse objetivo, cada um deles reprime alguns interesses individuais e morais, e, de modo
geral, sacrifica o “um” pelos “muitos”, o “eu” pelo “nós”; finalmente, para simplificar o
problema conceitual que enfrenta, e para aumentar a coesão do grupo, cada um deles
canaliza — por propaganda sistemática acompanhada pelo uso de uma brutal
demonstração de força — a inimizade para um atacante simbólico ao qual se atribui a
3
iminente desintegração da ordem social.
A Inquisição, como já vimos, preencheu essa função ao definir como heréticos ou
feiticeiros os que rejeitavam, ou supostamente rejeitavam, a ética dominante. O
conceito de feiticeira, indicando a aliança com o Demônio, e não com Deus, servia
igualmente bem às sociedades católicas e protestantes; podiam definir, e definiram, o
outro, como o protótipo do anticristo. De forma semelhante, o conceito de doença

2
Karl Mannheim, Ideology and Utopia, pp. 21-22.
*
“É interessante notar que havia pontos máximos de perseguição à feitiçaria. Todos ocorriam num período em que novas
ideias ameaçavam o esquema autoritário da Igreja, e tinha havido latitude de fé, com a ameaça de desintegração.”
(Pennethorne Hughes, Witchcraft, p. 163.)
3
A esse respeito, ver também Erich Fromm, Escape from Freedom, e Karl R. Popper, The Open Society and Its Enemies.
mental, que indica um estado de doença e não de saúde, serve igualmente à sociedade
capitalista e à comunista (na medida em que aceitam uma interpretação “científica” da
vida humana); as duas podem definir, e realmente definem, o outro como um paradigma
da doença mental.
O objetivo central da Inquisição, como se supõe em seu nome, era inquisitio —
isto é, interrogação — da heresia. Em princípio, a heresia era sempre um crime grave na
lei eclesiástica. Quando o Cristianismo se tornou a Igreja do Estado no Império Romano,
segundo as palavras de Robbins, “a nova religião ampliou a intolerância a que até então
4
estivera sujeita. Por volta do ano 430, o código civil ordenava a morte por heresia...” No
entanto, tais leis não foram empregadas a não ser aproximadamente sete séculos depois
(por razões que notamos antes). A primeira inquisição formal foi ordenada pelo Papa
Lúcio III, em 1184: ordenou que os bispos fizessem buscas sistemáticas sobre desvios
com relação ao ensinamento oficial da Igreja. A partir de seu início, portanto, o objetivo
fundamental da Inquisição era garantir a aceitação de uniformidade de opinião e crença
religiosa. O auto-de-fé (literalmente, um ato ou profissão de fé) era a liturgia dessa
afirmação. Era um ritual cerimonial, realizada na maior praça da cidade, ao qual
assistiam funcionários seculares e religiosos, bem como muitas pessoas, e no qual o
acusado — que já tinha sido processado e condenado — deveria arrepender-se
publicamente; devia renunciar a Satã e aceitar Deus; depois (usualmente) era queimado.
Segundo Lea, cada auto-de-fé apresentava “impressionante solenidade que [despertaria]
5
terror nos heréticos e daria consolação aos corações dos fiéis”. Havia muito cuidado
para não se apresentar, nessas cerimônias, alguns heréticos a respeito de cujo
arrependimento ainda pairasse alguma dúvida, a fim de que não criassem um escândalo
6
pela sua negação. Além disso, havia “cuidados especiais para que os heréticos não se
7
dirigissem ao povo, a fim de que suas afirmações não provocassem simpatia”.
A cerimônia começava com pompa e circunstância, e era seguida por sermão e
preces. Depois, “havia a prestação de juramento aos representantes do poder civil, e era
lido um solene decreto de excomunhão contra todos os que de qualquer forma
8
dificultassem as ações do Santo Ofício”. Os atores e a assistência aproximavam-se então
do ponto máximo da sanção dramática. “...o notário começava a ler as confissões, uma a
uma, na língua vulgar e, depois de cada uma, o acusado devia dizer se era verdadeira.
(...) Depois de responder na afirmativa, devia dizer se se arrependia, ou se perderia o
corpo e alma ao perseverar na heresia; e depois de exprimir seu desejo de abjurar, a
forma de abjuração era lida e ele a repetia, sentença por sentença. Depois, o inquisidor o
absolvia da excomunhão ipso facto em que tinha incorrido pela heresia e lhe prometia
clemência se se comportasse bem, sob a sentença prestes a ser imposta. Seguia-se a
sentença, e assim os arrependidos eram levados adiante em seguida, a começar pelo

4
Rossel Hope Robbins, The Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 266.
5
Henry Charles Lea, The Inquisition of the Middle Ages, p. 87.
6
Ibid., p. 88.
7
Ibid., p. 89.
8
Ibid., p. 88.
menos culpado. (...) Os que deviam ser “relaxados” ou abandonados ao braço secular
9
[para serem queimados] eram reservados para o fim. (...)”
Essa era uma cerimônia destinada a simbolizar o poder e a clemência do Grande
Inquisidor e sua Igreja todo-poderosa. O grande pecado estava definido: divergência com
relação à opinião ou crença religiosa determinada. O divergente era perdoado e levado
de volta à congregação de fiéis: estava convertido à fé verdadeira. E o culpado era
castigado com clemência: era queimado, sendo estrangulado antes de ser incinerado. (O
herético não-arrependido era queimado vivo).
Comenta Lea: “Podemos facilmente imaginar o efeito produzido na mente
popular por essas cerimônias tenebrosas, quando, por ordem da Inquisição, tudo o que
era grande e poderoso na Terra era chamado a reunir-se humildemente para fazer o
juramento de obediência e testemunhar o exercício da mais elevada expressão da
autoridade humana, que regulava os destinos dos seus semelhantes aqui e na vida
eterna. (...) A fé que assim podia se justificar deveria certamente inspirar o respeito do
10
medo, ainda que não a atração do amor.”
Se alguém ainda tivesse dúvidas quanto à existência ou à realidade de um Deus
Cristão, e de seu grande inimigo, Satã, essa cerimônia seria suficiente para afastá-la. A
realidade do Demônio e de seus “familiares” (as bruxas) era lembrada pela destruição
ritualizada do herético. A significação extraordinária dessa cerimônia pode ser verificada
pelo seguinte fato, presumivelmente não único, e descrito por Huizinga: “O corpo de um
pregador herético da seita dos turpulinos, que morreu na prisão antes da sentença, foi
preservado em cal por uma quinzena, de forma que pudesse ser queimado ao mesmo
11
tempo que uma mulher herética e ainda viva.”
Segundo o comentário de Huizinga: “Uma mentalidade, dominada como a da
época do declínio da Idade Média por uma imaginação muito aguda, por idealismo
ingênuo, e por intenso sentimento, facilmente aceita a realidade de qualquer conceito
que se apresenta à mente. Uma vez que uma ideia tenha recebido um nome e uma
12
forma, sua verdade passa a ser aceita sem discussão”. Evidentemente, essa
mentalidade não está limitada ao período de declínio da Idade Média.
Na retórica da Psiquiatria, o objetivo básico da Inquisição era provocar “mudança
de comportamento” no herético. Sob esse aspecto, os inquisidores foram
extraordinariamente competentes: praticamente todos os seus “sujeitos” conseguiram
“autoconhecimento” e mudaram sua personalidade, de acordo com o que era exigido.
Kamen cita a terapia inquisitorial de um judaizante (o nome dado a judeus convertidos
ao Cristianismo e que secretamente praticavam seus ritos judaicos), num auto-de-fé
realizado na Espanha, em 1719. Escreve Kamen: “Entramos na cena no ponto em que o
réu já está no mastro e uma tocha é passada à frente de seu rosto para adverti-lo do que

9
Ibid.
10
Ibid., p. 89.
11
Johan Huizinga, The Waning of the Middle Ages, p. 143.
12
Ibid., p. 237.
o espera se não se arrepender. Em torno do judaizante estão vários religiosos que com
grande angústia e fervor procuram pressionar o criminoso para que se converta. Com
perfeita serenidade, o criminoso diz: “Eu me converterei à fé de Jesus Cristo”, palavras
que até então não dissera. Isso dá grande alegria aos religiosos que começam a abraçá-lo
com grande ternura e infinitos agradecimentos a Deus por lhe ter aberto a porta para a
13
conversão. (...)” Depois, o judaizante foi estrangulado e queimado.
Já sugeri, e logo mais apresentarei documentação mais minuciosa disso, como a
crença em feitiçaria deu lugar à crença na doença mental, e como as práticas dos
inquisidores foram substituídas pelas dos psiquiatras institucionais. O sacrifício ritual do
herético, o auto-de-fé, foi assim substituído pelo sacrifício ritual do louco, o
internamento do insano.
Evidentemente, a pompa e as circunstâncias do auto-de-fé psiquiátrico já não são
apresentadas na praça da cidade; de acordo com uma sociedade moderna e secular, são
afastadas para o tribunal. Embora a cerimônia seja realizada em relativa intimidade, o
conhecimento de sua existência é tão comum quanto, as queimas dos heréticos. Na
realidade, a grande publicidade sobre as sucessivas entrevistas com os supostos doentes
mentais para verificar sua sanidade serve apenas para autenticar mais fortemente a
saúde mental dos juízes e a doença mental dos declarados insanos.
Nesse ritual moderno e pseudocientífico, a entrada e a saída do hospital são os
momentos mais altos. O paciente entra como herético e sai como convertido. Ou nunca
sai. Nas palavras de Goffman: “A interpretação básica do paciente é a seguinte: se ele
fosse “ele mesmo”, voluntariamente procuraria o tratamento psiquiátrico e
voluntariamente se submeteria a ele, e, quando preparado para a alta, confessaria que
14
seu eu real tinha sido sempre tratado como realmente desejava que fosse tratado.”
Ao ser reconhecido pela sociedade como capaz de decidir dos destinos humanos,
o processo de internamento — como o auto-de-fé, segundo a observação de Lea —
simboliza “o exercício da mais elevada expressão da autoridade humana, regulando os
destinos dos seus semelhantes...” Quem mais, além do psiquiatra contemporâneo,
exerce poderes tão amplos e discricionários sobre um ser humano? Segundo a
observação de Goffman, “o papel do psiquiatra é único entre os serviços, pois nenhum
15
outro tem tais poderes.” O policial e o juiz são limitados pela Lei. Só podem castigar
aquilo que a lei proíbe. As leis de higiene mental, como as ordens dos inquisidores
*
dominicanos, não reconhecem tais limites. Esses terríveis poderes não poderiam e não
podem existir a não ser que sua legitimidade seja amplamente aceita e respeitada. Na
realidade, era isso que ocorria com os inquisidores: opor-se a eles equivalia a opor-se à
Igreja, a Jesus e a Deus. Numa sociedade religiosa, quem pode ser contra Deus? Apenas

13
Henry Kamen, The Spanish Inquisition, p. 193.
14
Erving Goffman, “The medical model and mental hospitalization: Some notes on the vicissitudes of the tinkering trades”, em
Asylums, pp. 321-386; p. 374.
15
Ibid., pp. 358-359.
*
Os psiquiatras nunca falam nem escrevem a respeito de seu poder; preferem falar e escrever a respeito de sua
“responsabilidade” para “tratar” ou “ajudar” “pacientes doentes”.
um herético! O mesmo tipo de lógica e de legitimidade apoia a Psiquiatria Institucional:
opor-se a ela equivale a opor-se à ciência médica, ao médico e à natureza. Numa
sociedade científica, quem pode ser contra a ciência? Apenas um louco!
Considerada nessa perspectiva, a interpretação clássica, que o século XIX dava à
16
luta entre a Teologia e a ciência aparece de forma um pouco diferente. Os cientistas e
intelectuais, principalmente aqueles com inclinação materialista e positivista, preferiram
acreditar que esse era um conflito entre o progresso e o statu quo — a ciência
claramente a favor da liberação e da informação do homem, e a religião como
mistificação e opressão. Nesse quadro, os conflitos entre Galileu e Bellarmino, entre
Darwin e seus críticos fundamentalistas, eram os principais símbolos. A interpretação
psiquiátrica clássica do movimento que vai da feitiçaria à Psiquiatria adota a mesma
interpretação de auto-elogio. Os inquisidores eram homens cheios de ódio e de ideias
religiosas irracionais, e que fizeram muito mal aos heréticos acusados; os psiquiatras, ao
contrário, são homens cheios de amor, informados por ideias científicas racionais e que
fazem grande bem aos pacientes internados. Não apenas essas imagens estão muito
desfocalizadas, mas, o que é talvez ainda mais importante, obscurecem uma intuição
adquirida a grande custo pelo homem moderno, e que será mau perder: os conflitos
fundamentais na vida humana não se dão entre ideias opostas, uma “certa” e outra
“errada” — mas, ao contrário, entre os que têm poder e o usam para oprimir os outros,
e os que são oprimidos e procuram libertar-se do poder.
Certamente, alguns homens, como Galileu e Darwin, tiveram a oposição de
autoridades clericais. E o mesmo ocorreu com heréticos e bruxas. No entanto, homens
como Semmelweis e Freud tiveram oposição de autoridades clínicas. E o mesmo
acontece com os homens e as mulheres que tratamos como pacientes psiquiátricos
involuntários. Isso não é surpreendente. Na sociedade medieval, a Igreja dava a
ideologia, o Estado o poder, Hoje, a Ciência Oficial dá a ideologia, o Estado dá o poder.
Antes, o inquisidor acusava o cidadão de feitiçaria e provava que este era um feiticeiro;
depois, “relaxava” o feiticeiro para o “braço secular” — isto é, o Estado — a fim de ser
queimado' na fogueira. Hoje, o psiquiatra institucional acusa o cidadão de doença mental
e o diagnostica como psicótico; depois, entrega-o ao tribunal — isto é, o Estado — a fim
de que seja internado numa prisão denominada hospital psiquiátrico.
Tais considerações nos ajudam a avaliar a imensa utilidade das práticas clericais
inquisitoriais e das práticas clínicas inquisitoriais. Cada uma delas controla e enfrenta a
tendência para uma anomia que parece ser o preço que os cidadãos de sociedades,
abertas e pluralistas devem pagar por suas liberdades; e cada uma delas dá um sistema
implícito e extralegal de castigos por meio dos quais as classes dominantes podem
conservar seu domínio social. Aqui, será suficiente dar alguns exemplos deste último
aspecto. O assobio nunca poderia ser considerado ilegal; no entanto, um negro que, num
estado sulino dos Estados Unidos, assobiasse (ou fosse acusado de assobiar) para uma
mulher branca poderia ser linchado. A lei do linchamento era, portanto, um acessório da

16
Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom.
lei escrita do Sul; ajudava os brancos a manter os negros “em seu lugar”. Da mesma
forma, a Psiquiatria Institucional é um complemento das leis não-escritas de
manutenção do poder em sociedades insuficientemente comprometidas com a
obediência à Lei. O sentimento de tristeza dificilmente pode ser considerado ilegal; no
entanto, uma mulher pobre que esteja deprimida (e se recuse a desempenhar o papel
que lhe foi atribuído na sociedade) pode ser internada. A lei de internamento é,
portanto, um acessório da lei norte-americana escrita; ajuda os ricos e bem-educados a
conservar os pobres e mal-educados em seu lugar.
Tais considerações também nos ajudam a compreender por que, apesar do fato
do muitas das práticas da Psiquiatria Institucional serem evidentemente fraudulentas,
coercitivas e prejudiciais aos “pacientes”, a instituição recebeu o apoio de todas as
classes, todos os grupos e todas as organizações de nossa sociedade, até dos dedicados à
*
defesa das liberdades civis. Portanto, vivemos numa sociedade em que um número
maior de pessoas, perde sua liberdade através de internação psiquiátrica do que por
prisão penal. Em 1964, o recenseamento diário médio mostrava 563.354 em hospitais
para doenças mentais e 186.735 em instituições para os mentalmente retardados; no
17
mesmo ano, o recenseamento indicava 214.356 em prisões federais e estaduais.
Aparentemente, alguns pacientes de hospitais psiquiátricos aí estão voluntariamente; na
realidade, todavia, todos esses pacientes estão presos, pois mesmo os chamados
pacientes voluntários não podem ter a certeza de que possam sair voluntariamente.
Segundo os dados oficiais, mesmo os favoráveis à Psiquiatria Institucional, há apenas
18
10% de hospitalizações psiquiátricas voluntárias. No entanto, em 1961, apenas 3,5%
dos pacientes no Hospital St. Elizabeths, em Washington, D.C., tinham a situação de
19
voluntários.
Em resumo, mesmo descontando as pessoas que são privadas de sua liberdade
por causa de retardamento mental, mais do dobro de norte-americanos perde sua
liberdade por causa de doença mental do que por causa de crime. Além disso, essa perda
de liberdade não pode ser moralmente justificada, nem como proteção à comunidade
20
nem como tratamento para o “paciente”. Apesar disso, a União Americana de
Liberdades Civis não apenas deixou de se opor a essa prática, mas, ao contrário, deu
ativo apoio a ela. Em seu livro sobre a história da União, Charles Markmann descreve,
com o que me parece ser um orgulho inteiramente injustificado, que, por volta do fim da

*
Um levantamento de Louis Harris, apresentado em 1967, mostrou que 47% dos entrevistados desejavam ampliur o auxílio
federal às clínicas de saúde mental, 39% desejavam que esse auxílio fosse mantido no mesmo nível e apenas 5% desejavam
reduzi-lo. (Seattle Times, 3 de abril de 1967; citado em James E. Beaver, “The mentally ill and the law: Sisyphus and Zeus”, Utah
Law Rev., 1968: 1-71 [março], 1968, p. 2).
Um levantamento realizado na cidade de Nova York revelou que “a maioria (nove entre dez) pensa que o Governo deve
recolher e gastar mais dinheiro com serviços de saúde mental e cinco entre seis pessoas (83%) admitem que, mesmo que a
maioria dos pacientes não fique em melhor estado nesses hospitais psiquiátricos estaduais, estes são necessários porque são
úteis como proteção à comunidade.” (Jack Elinson, Elena Padilla e Marvin E. Perkins, Public Image of Mental Health Services,
pp. XV, 9.)
17
The U.S. Book of Facts, Statistics, and Information, pp. 77, 161.
18
Jonas B. Robitscher, Pursuit of Agreement, p. 121.
19
Winfred Overholser, “Testimony”, em Constitutional Rights of the Mentally III, p. 36.
20
Ver Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, pp. 182-190.
Segunda Grande Guerra, “A União [Americana de Liberdades Civis] ...começou a
esquematizar modelos de regimentos para o internamento dos insanos (...) Vinte anos
depois do primeiro rascunho da União para um modelo de lei para internamentos em
hospitais psiquiátricos, o Congresso promulgou, para o Distrito de Colúmbia, uma lei que
21
segue bem de perto as propostas da União.”
Portanto, a União das Liberdades Civis também aceita, sem discussão, o conceito
de doença mental, cujo “tratamento”, por prisão, é depois delegado a psiquiatras. A
posição da União Americana pelas Liberdades Civis mostra com que entusiasmo, e com
que ausência de crítica, todos os grupos e todas as organizações contemporâneas —
clericais e seculares, médicas e jurídicas, liberais e conservadoras, as que defendem
maior rigor na imposição da lei e as que defendem maior atendimento das liberdades
civis — admitem que é desejável o internamento civil.
Segundo a União, “uma pessoa que é involuntariamente internada num hospital
psiquiátrico perde sua liberdade de movimento e de associação e em muitas
comunidades enfrenta o perigo de ser estigmatizada como “insana”. Portanto, é
fundamental que ninguém seja internado sem uma audição cuidadosa e um processo de
júri que inclua todas as proteções constitucionais de um processo de júri em outros tipos
22
de processo civil.” A ilogicidade e negação de liberalidade nessa recomendação são
chocantes: se a doença mental não está definida (ou se é o que os psiquiatras ou as
massas dizem que é), qual a proteção dada por um processo de júri? Se o internamento
provoca a perda de liberdade, por que aceitar a hipocrisia legal de que é um “processo
civil”? Em que outro processo civil pode o litigante derrotado ser aprisionado por toda a
vida?
A recomendação da União Americana pelas Liberdades Civis continua: “Uma
pessoa, uma vez internada, tem direito a um reexame periódico por um tribunal (...)
considerando a possibilidade de sua liberação, quando isso seja permitido por sua
23
condição.” Existe um psiquiatra no país, ou no mundo, que não diga que está fazendo
exatamente isso? Portanto, essa recomendação equivale a uma aprovação integral do
statu quo psiquiátrico. Tudo o quo a União Americana pelas Liberdades Civis pede é que
os tribunais liberem o paciente quando sua condição o permita. Não só diz uma só
palavra a respeito da relação de antagonismo entre o médico, em cuja opinião o tribunal
*
baseia sua opinião, e o “paciente”, cuja liberdade precisa ser defendida.

21
Charles Lam Markmann, The Noblest Cry, pp. 400-401.
22
American Civil Liberties Union, The Policy Guide of the American Civil Liberties Union (“Policy N.° 225: The Mentally Ill —
Civil Commitment”), junho, 1966.
23
Ibid.
*
O chamado liberalismo psiquiátrico — na realidade, o autoritarismo psiquiátrico — influiu em todos os programas da União,
no que se refere a problemas de saúde mental. Assim, apesar do uso claramente estratégico — e muitas vezes claramente
fraudulento — da defesa de insanidade, a União aceita calorosamente a adoção do que denomina os exames “liberais” de
responsabilidade criminal. Ao adotar as novas definições de insanidade criminal — especificamente, as aceitas na Durham Rule
e na proposta do American Law Institute — os tribunais estão, nas palavras da União, “liberalizando a regra de M’Naghten, que
já tem 123 nnos” à luz da Psiquiatria moderna (American Civil Liberties Union, New Dimensions ... New Challenges: 146th
Annual Report [julho, 1965-jnneiro, 1967), p. 35). Ao adotar essa interpretação, a União se torna porta-voz do Movimento de
Saúde Mental.
Se o programa da União quanto a internamento civil é mal concebido, suas
recomendações para melhorias futuras são aterrorizantes: “Uma pessoa hospitalizada
por doença mental”, diz o documento, “tem direito a cuidado psiquiátrico e médico,
24
adequado ao seu caso específico.” Ao fazer esta declaração, a União não apenas apoia
o internamento a partir de um conceito não-definido de doença mental e como uma
função “médica” legítima, mas também advoga o “tratamento” psiquiátrico,
independentemente do fato de o paciente concordar ou não com ele ou do perigo ou
destrutividade desse “tratamento”. Será que a União realmente acredita que a
hospitalização psiquiátrica involuntária com tratamento involuntário (principalmente se
o tratamento consiste em eletrochoque ou lobotomia) é preferível à hospitalização
psiquiátrica involuntária sem esse tratamento? Mas, então, o que é um auto-de-fé sem
uma fogueira? Certamente, o doente mental deve ter direito a tratamento, assim como
o herético tem direito de juntar-se a seu Criador. Certamente, o internamento ritualiza a
legitimidade de hospitalização psiquiátrica involuntária e, através dela, da benevolência
25
da Psiquiatria Institucional e da Sociedade Terapêutica a que serve.
Segundo Maurice Maeterlinck: “Na época da Inquisição espanhola, a opinião do
bom senso (...) era certamente que as pessoas não deviam queimar um número
excessivamente grande de heréticos; a opinião extrema e irracional evidentemente
26
exigia que ninguém fosse queimado.” Hoje, ocorre a mesma coisa com a hospitalização
psiquiátrica involuntária. A opinião do bom senso é hoje que os psiquiatras devem
internar apenas os pacientes psiquiátricos que estão “muito doentes”, ou que “são
perigosos para si mesmos ou para os outros”; a opinião extrema e irracional
evidentemente exige que ninguém seja internado.

24
Ibid.
25
Ver Thomas S. Szasz, “Toward the therapeutic State”, New Republic, 11 de dez., 1965, pp. 26-29.
26
Citado em Homer W. Smith, Man and His Gods, p. vi.
5
A FEITICEIRA COMO DOENTE MENTAL

... o Malleus Maleficarum poderia, com algumas pequenas


modificações, servir como um excelente manual moderno de
Psiquiatria clínica descritiva do século XV, desde que a
palavra feiticeira fosse substituída pela palavra paciente, e se
eliminasse o demônio.
1
Gregory Zilboorg

2
A partir das obras de alguns autores, como Rush e Esquirol, a Psiquiatria mostra uma
tendência indiscutível para interpretar, como doença mental, todos os tipos de
comportamento divergente ou extraordinário. Essa tendência foi muito reforçada por
Freud e pelos psicanalistas que, ao focalizarem os chamados determinantes
inconscientes do comportamento, tendiam a interpretar até o comportamento
“racional” de acordo com o modelo do comportamento “irracional”. Por isso, o
comportamento normal era explicado pela referência a comportamento anormal. Nas
palavras de Freud: “A pesquisa psiquiátrica (...) não pode deixar de considerar digno de
compreensão tudo o que pode ser reconhecido nesses grandes modelos [de grandes
homens] e acredita que ninguém é tão grande que possa ser degradado ao ser sujeito às
leis que governam, com igual força, tanto a atividade normal quanto a patológica. (...)
Quem quer que se volta contra nossa ousadia para examinar [Leonardo da Vinci] à luz de
descobertas feitas no campo da patologia está preso a preconceitos que atualmente, e
com razão, já abandonamos. Já não pensamos que seja possível distinguir com clareza a
3
doença e a saúde, as pessoas normais e as neuróticas (...)”
Embora Freud reconhecesse alguns dos perigos inerentes à interpretação
patológica do comportamento humano, aparentemente não compreendia a verdadeira
natureza do problema, pois agiu como se uma desculpa verbal fosse suficiente para
resolvê-lo. Em seu ensaio sobre Leonardo da Vinci, diz Freud: “Quando a pesquisa
psiquiátrica, normalmente satisfeita em retirar seu material de homens mais frágeis, se
aproxima de alguém colocada entre os maiores da espécie humana, não o faz pelas
razões frequentemente atribuídas pelo leigo. Escurecer o brilhante e lançar o sublime na
lama não estão entre os seus objetivos, e não obtém satisfação em reduzir o espaço que

1
Gregory Zilboorg, The Medical Man and the Witch During the Renaissance, p. 58.
2
Ver capítulo 9.
3
Sigmundo Freud, “Leonardo Da Vinci and a memory of his childhood” (1910), em The Standard Edition of the Complete
Psychological Works of Sigmund Freud, Vol. XI, pp. 57-137; pp. 63, 131.
separa a perfeição dos grandes da inadequação dos objetos que constituem sua
4
preocupação usual.”
Aqui, vemos Freud fazendo uma observação — como se fosse um fato lamentável
e não um juízo moral discutível — sobre “... a inadequação dos objetos que constituem
sua [da Psiquiatria] preocupação usual.” Como não vê o juízo moral, não pode discuti-lo.
Em vez disso, fica satisfeito em dizer que “expressamente insistimos em que nunca
consideramos Leonardo como um neurótico na frase inadequada, ou como um ‘caso
nervoso’, como se diz impropriamente.” Embora Freud não deseje denegrir Leonardo da
Vinci como um “caso de nervos”, evidentemente não se opõe a que outros, menos
dotados e menos famosos, sejam assim degradados.
Assim, embora talvez de forma não-intencional e involuntária, o novo vocabulário
da Psicanálise foi combinado com o vocabulário tradicional da Psiquiatria, criando uma
*
retórica de rejeição de popularidade e poder até então inatingidos. O resultado foi que
a conduta de todos — mortos ou vivos, primitivos ou modernos, famosos ou indignos —
se tomou objeto adequado para o exame, a explicação e a estigmatização do
psicopatologista.
Certamente, ao adotar esse método, a Psicanálise lançou uma nova luz sobre
algumas semelhanças importantes entre sonhos e sintomas mentais, entre o
comportamento do homem primitivo e de seu descendente civilizado, entre o mito e a
loucura. Sob esses aspectos, a perspectiva psicopatológica enriqueceu e ampliou nossa
compreensão da natureza humana e da conduta pessoal. No entanto, esse método tinha
um grave perigo e este logo se manifestou. Como os observadores e intérpretes eram
psiquiatras, e como se impressionavam com a necessidade de fazer diagnósticos
psicopatológicos, todos os tipos de comportamentos humanos tendiam a ser percebidos
e descritos como manifestações de doença mental; e várias personalidades, mortas e
vivas, tendiam a ser vistas e diagnosticadas como indivíduos mentalmente doentes. A
ideia de que as feiticeiras fossem pessoas mentalmente doentes é uma parte integral
5
dessa perspectiva psiquiátrica.
A possibilidade de que algumas pessoas acusadas de feitiçaria fossem
“mentalmente doentes” foi sugerida durante as caças às feiticeiras, principalmente por
Johann Weyer. Em sua dedicatória do livro De Praestigiis ao Duque William de Cleves,
escreve Weyer: “A vós, Príncipe, dedico o fruto de meus pensamentos... ninguém, como
vós, concorda com minhas [opiniões sobre a feitiçaria], segundo as quais as feiticeiras
não podem prejudicar ninguém através de vontade maliciosa ou exorcismo mais
tenebroso, mas, ao contrário, que sua imaginação — inflamada por demônios de uma

4
Ibid., p. 63.
*
Embora os métodos “terapêuticos” de Freud fossem diferentes dos empregados por seus colegas, sua aceitação entusiástica
e o uso que fez do vocabulário psiquiátrico para denegrir as pessoas o colocaram na corrente principal do pensamento
psiquiátrico: ao reclassificar as feiticeiras como neuróticas, ele ajudou a substituir os métodos teológicos pelos psiquiátricos
como forma de invalidar os seres humanos. O resultado — que faz parte da história contemporânea — é uma retórica de
justificação que torna legítima a desumanidade do homem com relação a outros homens, não por apelos a Deus, mas por
apelos à Saúde.
5
Ibid., p. 131.
forma que não podemos compreender — e a tortura da melancolia fazem com que
6
apenas imaginem que causaram todos os tipos de mal.”
Será uma coincidência que a sugestão de que as feiticeiras fossem mentalmente
perturbadas tenha sido dada por um médico que se opunha à sua perseguição? Ou será,
ao contrário, que essa hipótese já é uma arma na luta contra os caçadores de bruxas? Os
dados sugerem que ocorre esta última hipótese: em outras palavras, que a loucura é
uma desculpa para o erro (feitiçaria), apresentada por uma autoridade (Weyer) em favor
de pessoas perseguidas (feiticeiras), a fim de diminuir seu sofrimento nas mãos dos
7
opressores (inquisidores), cegos a todas as desculpas, menos esta (loucura). Muitos
psiquiatras contemporâneos abertamente confessam esse objetivo. Em vez de protestar
contra a pena de morte, em si mesma, defendem o conceito de insanidade como uma
proteção “humanitária” de acusados que, sem a defesa de insanidade, seriam
8
condenados à morte.
Essa aspiração manifestamente elevada de salvar o acusado da execução foi o
motivo subjacente na importante decisão M’Naghten, em 1843. Conhecida como a regra
M’Naghten, essa decisão tem dado, a partir de então, a base médico-legal para a
9
alegação de insanidade, a defesa através de insanidade e o veredicto de insanidade.
Assim, nos manuais contemporâneos de Psiquiatria, a defesa de insanidade é
invariavelmente atribuída às “descobertas” da Psiquiatria “científica”; e sua grande
popularidade nos últimos tempos, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países
ocidentais, é atribuída a uma avaliação legislativa e judicial, embora atrasada, das
supostas “contribuições” da Psiquiatria à aplicação da lei penal. Essa interpretação não
encontra qualquer apoio nos fatos. Mais de trezentos anos antes de M’Naghten, quando
não havia algo que se aproximasse da “Medicina moderna”, e muitos menos algo que,
ainda que remotamente, pudesse ser denominado “Psiquiatria”, a defesa de insanidade
era uma alegação aceita nos processos de feitiçaria realizados pela Inquisição
*
espanhola.

6
Johann Weyer, De Praestigiis Daemonum (1563), citado em Gregory Zilboorg, A History of Medical Psychology, p. 215.
7
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, “Bootlegging hamanistic values through psychiatry”, Antioch Rev., 22: 341-349
(outono), 1962.
8
Ver, por exemplo, M. Ralph Kaufman, Psychiatry: “Why ‘medical’ or ‘social’ model?”, A.M.A. Arch. Gen. Psychiat., 17: 347-
360 (set.), 1967.
9
M’Naghten’s Case, 10 Cl. 8 F. 200, 8 Eng. Rep. 718 (H.L.), 1843. A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, Law, Liberty and
Psychiatry, pp. 138-146; e “The insanity defense and the insanity verdict”, Temple Law Quart., 40: 271-282 (primavera-verão),
1967.
*
Como será discutido de maneira mais completa no capítulo 7, a Inquisição espanhola se opunha à perseguição de feiticeiras.
Tinha suas mãos cheias de judeus, judaizantes e mouros, e não desejava participar da mania de feiticeiras. Por isso,
desestimulava as caçadas às bruxas, e, quando por causa da pressão pública, não podia evitar a perseguição de supostas
bruxas, refugiava-se no subterfúgio de que as feiticeiras eram loucas. Isso livrava a Igreja espanhola da declaração franca de
que não havia feiticeiras, uma crença amplamente aceita, mas discretamente sustentada pelas figuras mais importantes do seu
clero, e a protegia da má consciência que a queima de pessoas acusadas de feitiçaria teria provocado. Portanto, há
semelhanças evidentes entre o uso do conceito de insanidade e processos de feitiçaria na Espanha do século XVI e nos
processos criminais nos Estados Unidos do século XX. A respeito, ver Thomas S. Szasz, “Moral conflict and psychiatry”, Yale
Rev., 49: 555-566 (junho), 1960; “Mind tapping: Psychiatric subversion of constitutional: rights”, Amer. J. Psychiat., 119: 323-
327 (out.), 1962.
Segundo Lea: “Os insanos eram reconhecidos como irresponsáveis e eram
enviados aos hospitais. (...) Na opinião esclarecida, aceita pela Inquisição no que se
refere à feitiçaria, as instruções de 1537 indicam uma disposição para considerar as
supostas feiticeiras como insanas. (...) Na época, Barcelona tinha em suas mãos uma
feiticeira chamada Juanita Rosquells, que os médicos e consultores consideraram
mentalmente perturbada; não sabendo o que fazer, levaram o caso para a Suprema, e
10
esta ordenou sua dispensa. (...)” No entanto, esse resultado não era o usual.
Geralmente, as pessoas consideradas insanas eram encarceradas num mosteiro ou num
11
hospital.
Os médicos mais responsáveis pela classificação de feiticeiras como doentes
mentais foram os conhecidos psiquiatras franceses Pinel, Esquirol o Charcot. Foram não
apenas os fundadores da escola francesa de Psiquiatria, mas também de toda a
Psiquiatria contemporânea como uma disciplina positivista e médica. Suas opiniões
dominaram a Medicina do século XIX.
Philippe Pinel (1745-1826) acreditava que as feiticeiras eram pessoas
mentalmente doentes, mas não tratou amplamente do assunta. Em seu Tratado da
Insanidade (1801) afirma, sem discussão ou demonstração, que “Numa palavra, os
endomonia- dos de todos os tipos devem ser classificados como maníacos ou
12
melancólicos.” E considera Weyer como uma vítima da crença em feitiçaria: “O crédito
atribuído às imposturas de possessões demoníacas nos trabalhos de Wierus [Weyer] não
deve causar admiração, quando consideramos que seus trabalhos foram publicados em
meados do século XVII, e têm tantas referências à Teologia quanto à Medicina. Esse
13
autor (...) parece ter sido grande adepto dos mistérios do exorcismo.”
Jean Étienne-Dominique Esquirol (1772-1840), aluno e herdeiro intelectual de
Pinel, fez mais do que qualquer outro para firmar a opinião de que as feiticeiras eram
pessoas mentalmente perturbadas. Esquirol, o mais importante psiquiatra de sua época,
acreditava não apenas que as feiticeiras e bruxas eram mentalmente doentes, mas que
todos ou quase todos os criminosos também eram atacados do mesmo mal; por isso,
defendia a ideia de que os delinquentes deveriam ser tratados por internamento em
hospitais psiquiátricos e não em prisões. Os historiadores da Psiquiatria moderna e os
psiquiatras judiciais nele obtiveram tais ideias. Em 1838, escrevia Esquirol: “Hoje, tais
ideias podem parecer estranhas, mas, algum dia, espero, serão transformadas em
verdades aceitas por todos. Onde encontraremos hoje um juiz que condene à fogueira
um homem perturbado ou uma cigana acusada de feitiçaria mágica? Há muito tempo os
magistrados começaram a mandar a feiticeira para um asilo de insanos; já não fazem
14
com que sejam castigadas como trapaceiras.”

10
Henry Charles Lea, A History of the Inquisition of Spain. Vol. 3, p. 58.
11
Ibid., p. 59.
12
Philippe Pinel, A Treatise on Insanity, p. 238.
13
Ibid., p. 237.
14
Citado em Zilboorg, History of Medicai Psychology, pp. 391-392.
As opiniões de Esquirol sobre as bruxas foram amplamente aceitas pelos
estudiosos do século XIX. Lecky, em sua clássica History of European Morais, repete o
diagnóstico de Esquirol como se apresentasse verdades evidentes. Caracteriza as
15
feiticeiras como “decrépitas no corpo e perturbadas na mente” e atribui seu frequente
16
suicídio a “medo e loucura (que) se combinam para levar as vítimas a essa ação”.
Descrevendo uma vítima da Inquisição espanhola em 1359, Lecky escreve: “A pobre
17
lunática caiu nas mãos do arcebispo de Toledo e foi queimada viva.” Comentando a
mania de feitiçaria e a “epidemia de suicídio puramente insano” que ocorriam
esporadicamente na Europa entre os séculos XV e XVII, até Lecky afirma delicadamente
18
que tais problemas “pertencem mais à história da Medicina do que à dos problemas”.
Nada, em minha opinião, poderia estar mais longe da verdade.
Nas mãos de Jean-Martin Charcot (1825-1893), a feitiçaria se tornou um
problema de “Neuropatologia”. No obituário de seu grande mestre, Freud escreveu:
“Charcot (...) baseou-se amplamente nos relatórios ainda existentes de processos de
bruxaria e possessões pelo demônio para mostrar que as manifestações da neurose
(histeria) eram as mesmas nessa época e atualmente. Tratava a histeria como outro
19
tópico em Neuropatologia. (...)” Como Esquirol, Charcot considerou as feiticeiras
*
segundo a definição dos que as torturavam, e passou a estudar sua “Neuropatologia”. E
Freud fez a mesma coisa. Em suas mãos, no entanto, a feitiçaria se tornou um problema
de “psicopatologia”.
Em seu obituário de Charcot, Freud propõe “a teoria de uma divisão da
consciência como uma solução para o enigma da histeria”, e depois lembra a seus
leitores que, “ao considerar a possessão por um demônio como a causa dos fenômenos
histéricos, a Idade Média na realidade escolheu essa solução; seria suficiente trocar a
terminologia religiosa dessa época de trevas e superstições pela linguagem científica de
20
hoje”. Essa suposição é espantosa: Freud reconhece que a descrição psicanalítica da
histeria é apenas uma revisão semântica da demonológica. Por isso, tenta legitimar suas
metáforas ao supor que constituem parte da linguagem da ciência, quando na realidade
**
isso não acontece.

15
William E. H. Lecky, History of European Morais, Vol. II, p. 54.
16
Ibid., p. 55.
17
Ibid., p. 87.
18
Ibid., p. 55.
19
Sigmund Freud, “Charcot” (1893), em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Vol. III,
pp. 7-23; p. 20.
*
É interessante observar que, enquanto Freud considerava Charcot como intensamente interessado na feitiçaria e sua relação
com a doença mental, não existe referência a esse assunto na bela biografia de Charcot, escrita por Georges Guillain, e
intitulada J.-M. Charcot, 1825-1893: His Life, His Work. A razão para essa discrepância é, provavelmente, que Freud era psi-
quiatra, e Guillain neurologista. A biografia escrita por Guillain tem uma orientação neurológica e acentua as contribuições de
Charcot a esse campo, e não à Psiquiatria. Talvez porque já não exista mais nada que possa ser atribuído à concepção
neuropatológica de feitiçaria, Guillain não fala a respeito. Freud, ao contrário, estava preparado para ouvir as opiniões
psiquiátricas e psicológicas, e por isso conservou duradouras impressões desses aspectos de seu trabalho.
20
Ibid.
**
No entanto, não seria justo criticar excessivamente Freud por sua intoxicação ingênua com a “ciência”. As opiniões acima
indicadas foram escritas antes que Kraus, Wittgenstein, Orwell e outros esclarecessem a significação definidora da linguagem,
tanto para a ciência quanto para os problemas humanos. Hoje, sabemos, ou temos poucas razões para não saber, que o
A concepção demonológica da histeria, e a reinterpretação quase-médica que
dela deu Charcot, provocaram uma impressão duradoura em Freud, que voltou
repetidamente ao tema. Numa carta de 17 de janeiro de 1897, pergunta a Fliess: “O que
é que você diria se eu contasse que toda a minha nova teoria da histeria era conhecida e
tinha sido publicada centenas de vezes — e há vários séculos? Você se lembra como eu
sempre disse que a teoria medieval da possessão demoníaca, sustentada pelos tribunais
eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e de uma divisão da
consciência? (...) de passagem, as crueldades permitiam compreender alguns sintomas
21
da histeria que até então permaneciam obscuros.”
Aqui, vemos Freud dando o salto decisivo para a psicopatologia: aceita o paciente
oficialmente identificado como um paciente e passa a examinar os seus sintomas. Em
primeiro lugar, passa a considerar-se proprietário da interpretação psicopatológica da
possessão demoníaca que já tinha sido criada pela escola francesa de Psiquiatria; depois,
passa a deixar de lado as crueldades impostas às vítimas como indicações do caráter
humano dos perseguidores, e da natureza social da época, e, ao contrário* chega a
interpretá-las como parte dos sintomas apresentados pelos, “pacientes”.
Trinta anos depois de publicar o necrológio de Charcot, Freud volta às
semelhanças entre a teoria demonológica da possessão e a teoria psicanalítica da
histeria. Em seu ensaio sobre Uma Neurose Demonológica do Século XVII, escreve: “Não
devemos ficar surpresos ao verificar que, enquanto as neuroses de nossos dias
apresentam um aspecto hipocondríaco e parecem disfarçadas como doenças orgânicas,
as neuroses desses tempos distantes emergem como ciladas demonológicas. Vários
autores, entre os quais deve ser mencionado Charcot, já identificaram, como o sabemos,
as manifestações de histeria nas descrições de possessão demoníaca e êxtase que foram
preservadas para nós nas obras de arte. (...) A teoria demonológica dessas épocas de
obscurantismo finalmente derrotou todas as interpretações somáticas do período de
ciência “exata”. Os estados de possessão demoníaca correspondem a nossas neuroses.
(...) Aos nossos olhos, os demônios são desejos maus e condenáveis, derivados de
22
impulsos instintivos, que foram repudiados e reprimidos.”
Aqui, Freud afirma que o clima cultural em que as pessoas vivem determina a
forma simbólica e manifesta das “neuroses” que criam; mas não chega a supor a
possibilidade de que também determinem que pessoas assumirão os papéis dominantes
como perseguidores, e quais delas são colocadas em papéis submissos como vítimas.
Assim fecha porta para uma perspectiva histórico-cultural mais ampla, não apenas para a
“doença mental”, mas também para a Psiquiatria, bem como para a interpretação de

comportamento das feiticeiras não ocorria num vazio social: em parte, comportavam-se como o faziam porque eram
perseguidas por seus inimigos (os inquisidores); e seu comportamento era descrito da forma como o era porque a linguagem
para fazê-lo era controlada por seus perseguidores (os teólogos). Mutatis mutandis, o mesmo é verdade para os “histéricos”
que Charcot e Freud encontravam na Salpêtrière: comportavam-se como o faziam em parte porque eram perseguidas por seus
inimigos (os neuropsiquiatras); e sua conduta era descrita como o era porque a linguagem para fazê-lo era controlada por seus
perseguidores (os médicos).
21
Sigmund Freud, “Carta 56” (a Wilhelm Fliess, 17 de jan., 1897), ibid. Vol. I, p. 242.
22
Sigmund Freud, “A seventeenth-century demonological neurosis” (1923), ibid., Vol. XIX, pp. 67-105; p. 72.
que a sociedade não apenas conforma as formas simbólicas da loucura que cria, mas
também determina a existência, a direção, a força e o resultado desse processo de
fabricação.
Portanto, como já vimos, a teoria psicopatológica da feitiçaria não nasce com
Gregory Zilboorg. No entanto, Zilboorg foi indiscutivelmente um dos seus
popularizadores mais explícitos e mais convincentes; se lhe faltava originalidade,
sobrava-lhe “habilidade de vendedor”. Além disso, Zilboorg escreveu numa época em
que sua audiência tinha sido preparada para sua mensagem através de décadas de
propaganda psiquiátrica e psicológica sobre doença mental. Talvez também por essa
razão suas interpretações tiveram enorme influência. Virtualmente todos os psiquiatras
e historiadores contemporâneos de Psiquiatria que se manifestam a respeito da feitiçaria
aceitam as interpretações de Zilboorg.
O núcleo da tese de Zilboorg é que quase todas as bruxas eram mentalmente
doentes. Mas sua doença não era adequadamente reconhecida e era erradamente
interpretada como um sinal de feitiçaria. Nas palavras de Zilboorg: “O Malleus foi uma
reação contra os sinais inquietantes de crescente instabilidade da ordem estabelecida, e
centenas de milhares de doentes mentais tornaram-se vítimas dessa violenta reação.
Nem todos os acusados do feiticeiros e bruxas eram mentalmente doentes, mas quase
23
todos os mentalmente doentes eram considerados feiticeiros, bruxas ou enfeitiçados.”
Zilboorg não discute a saúde mental dos inquisidores. Nem apresenta qualquer
prova para mostrar que as feiticeiras fossem mentalmente doentes. Ao contrário, apenas
declara que eram doentes e procura fixar a validade dessa interpretação ao repeti-la
constantemente. Sua descrição do caso de Françoise Fontaine (cujo “tratamento”
24
inquisitorial já comentei antes ) é um bom exemplo. Como sabemos que essa mulher
era mentalmente doente? Eis a prova de Zilboorg: “Seria inútil, evidentemente, tentar
submeter à análise moderna os sintomas de Françoise Fontaine a fim de mostrar o fato
25
evidente [sic] de que era uma moça mentalmente doente.”
O método de Zilboorg para verificar a insanidade é igual ao do inquisidor para
verificar a feitiçaria: os dois afirmam que seu sujeito sofre da condição temida, e usam
sua autoridade e seu poder para transformar seu juízo em realidade social. A partir desse
tipo de “prova”, Zilboorg conclui que “...sem dúvida, em nossa mente fica a impressão de
que milhões de feiticeiras, bruxas, possessos e obcecados, constituíam uma massa
enorme de neuróticos, psicóticos e pessoas em estado grave com delírio orgânico muito
deteriorado... por muitos anos, o mundo parecia um verdadeiro asilo para insanos, sem
26
um hospital psiquiátrico adequado.” O pensamento se espanta diante desse absurdo.
Zilboorg delicadamente ignora fatos que deve ter conhecido a partir de seu estudo da
feitiçaria, mas que não se ajustam a seu objetivo de “vender” a Psiquiatria. Entre tais

23
Zilboorg, History of Medical Psychology, p. 153.
24
Ver capítulo 2, p. 41.
25
Zilboorg, Medical Man and Witch, pp. 69-70.
26
Ibid., p. 73.
fatos devem ser mencionados, em primeiro lugar, que muitas pessoas acusadas de
feitiçaria eram criminosos — por exemplo, envenenadores; em segundo lugar, que
outros eram terapeutas — por exemplos, parteiras; em terceiro lugar, que ainda outras
eram de religião errada — por exemplo, protestantes em países católicos ou vice-versa;
finalmente, que havia aqueles — que provavelmente constituíam a maioria — que eram
apenas homens e mulheres inocentes, falsamente acusados, por diferentes razões.
Mas para Zilboorg, como para outros imperialistas psiquiátricos ansiosos por
conquistar toda a Idade Média para a Psicologia médica, as feiticeiras — quem quer que
fossem — eram simplesmente doentes mentais. “A fusão de insanidade, feitiçaria e
heresia num conceito”, escreve Zilboorg, “e a exclusão até da suspeita de que o
27
problema pudesse ser médico completavam-se.” Mas qual é ou onde está o problema
médico aqui? A heresia e a feitiçaria eram definidas e compreendidas como problemas
religiosos e legais; donde a participação de tribunais eclesiásticos e seculares nos
processos de bruxaria. Ao sugerir que o problema da feitiçaria era médico, Zilboorg não
apenas ignora todas essas provas históricas, mas também nega o papel da discriminação
social e da procura de bodes expiatórios nas caças às feiticeiras. Afinal,
independentemente de qualquer outra coisa que pudessem ser, as pessoas acusadas de
feitiçaria eram indivíduos oprimidos e perseguidos. No entanto, em si mesmas, a
opressão e a perseguição não são problemas médicos, embora evidentemente possam
ter, e usualmente tenham, consequências médicas.
Comentando o Malleus, Zilboorg diz que “As experiências alucinatórias, sexuais
28
ou não, das mulheres psicóticas da época foram descritas por Sprenger e Krämer.”
Ainda aqui, Zilboorg simplesmente rotula como “psicóticas” as mulheres, e como
“alucinatórias” as suas experiências. Mas isso não foi provado. Na realidade, o que
Zilboorg denomina “experiências alucinatórias” eram usualmente mentiras e fabricações
que as pessoas acusadas de feitiçaria eram obrigadas a exprimir sob tortura. Zilboorg não
apenas ignora isso, mas insiste que seu objetivo, ao analisar as caçadas às feiticeiras, foi
“fundamentalmente descrever e esquematizar algumas das forças em jogo, e não julgar,
29
aprovar ou reprovar... pois o problema é científico e clínico, e não moral.”
Zilboorg repete suas interpretações psicopatológicas da feitiçaria ao discutir De
Praestigiis, de Weyer: “Ele (Weyer) não deixa dúvida de que uma conclusão é justificada:
as feiticeiras são pessoas mentalmente doentes, e os monges que atormentam e
30
torturam as pobres criaturas são os que devem ser castigados.” E depois: “As
confissões das bruxas e feiticeiras (...) segundo ele (Weyer) insistia eram formas de
loucura, formas de fantasia anormal, uma indicação e uma parte de uma grave doença
31
mental em que toda a personalidade era atingida.”

27
Zilboorg, History of Medical Psychology, p. 555.
28
Ibid., p. 160.
29
Zilboorg, Medical Man and Witch, p. 63.
30
Zilboorg, History of Medical Psychology, p. 216.
31
Ibid., p. 231.
Assim, Zilboorg deforma as opiniões de Weyer, a fim de que possam parecer
adequadas às suas teses. O que Weyer acentuava mais nitidamente era que os
indivíduos acusados de feitiçaria usualmente eram inocentes que nada tinham feito de
errado. O problema da doença mental não é crucial nem saliente na tese de Weyer.
Acima de tudo, De Praestigiis é um ataque à corrupção e à desumanidade dos
inquisidores. Nas palavras de Weyer: “De todas as desgraças que as diferentes opiniões
fanáticas e corruptas que, com o auxilio de Satã, foram trazidas em nossa época para a
Cristandade, a menor não é aquela que, sob o nome de feitiçaria, é semeada como
semente maldosa. (...) Quase todos os teólogos silenciam a respeito de sua perversidade,
os doutos a toleram, os juristas tratam dela ainda sob a influência de velhos
preconceitos; onde quer que eu ouça, não há ninguém, ninguém mesmo, que por
compaixão humana desfaça o labirinto ou estenda a mão para tratar dos mortalmente
32
feridos.”
Isso ainda não é tudo. Weyer diz dos caçadores de bruxas, que são “tiranos, juízes
sanguinários, carniceiros, torturadores e ladrões ferozes, que se despiram de toda
33
humanidade e não conhecem a piedade”. Conclui sua denúncia dos inquisidores e de
todos os que auxiliam seu trabalho com estas palavras: “Por isso vos convoco perante o
tribunal do Grande Juiz, que decidirá entre nós, quando a verdade que esmagastes com
os pés e enterrastes surgirá de novo e vos condenará, exigindo vingança por vossas
34
desumanidades.”
Será que essas palavras são de um “homem religioso, fiel e reverente, [cujo único
objetivo era] provar que as feiticeiras eram mentalmente doentes e que deveriam ser
tratadas por médicos e não ser interrogadas por eclesiásticos”, segundo as palavras de
Alexander e Selesnick que repetem Zilboorg e ainda exageram seus esforços para
35
“descobrir” Weyer como o fundador da Psiquiatria moderna? Ou serão palavras de um
crítico da sociedade que protesta contra o poder sem limites e a imoralidade dos
opressores de sua época?
Já vimos como, nas mãos de Zilboorg, a interpretação psicopatológica da feitiçaria
começa como hipótese médica e termina como uma deformação cega. Essa deformação,
por sua vez, ser tornou dogma psiquiátrico, de forma que hoje nenhum estudante
“sério” de Psiquiatria duvida que as feiticeiras fossem doentes mentais. Albert Deutsch,
autor de um manual padrão sobre a história da Psiquiatria norte-americana, aceita como
indiscutível que as feiticeiras eram doentes mentais. Escreve que “Os documentos dos
processos de feitiçaria que chegaram até nós dão provas convincentes de que uma
grande percentagem das pessoas acusadas de feitiçaria era realmente de doentes
mentais. (...) Evidentemente, não é possível calcular a percentagem das vítimas da mania

32
Ibid., pp 213-214.
33
Citado em Robbins, Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 540.
34
Ibid.
35
Franz G. Alexander e Sheldon T. Selesnick, The History of Psychiatry, p. 86.
de feitiçaria que eram mentalmente doentes, mas, a partir dos registros existentes, não
36
parece exagero supor que abrangiam pelo menos um terço das pessoas executadas.”
No entanto, os processos de feitiçaria eram, afinal de contas, processos. Assim,
estavam interessados por culpa e inocência, não por doença e saúde. Zilboorg obscurece
isso ao falar constantemente em doença mental. O fato é que as feiticeiras eram
severamente punidas por “crimes” que, para muitos observadores honestos, estavam
mal definidos e não eram satisfatoriamente provados. No entanto, o simples fato de que
elas foram torturadas e queimadas é suficiente para fazer delas objetos de interesse
psicopatológico específico: sua conduta social e suas palavras constituem “material” de
Psicopatolagia. Com toda a solenidade, Alexander e Selesnick nos dizem que “Uma
feiticeira aliviava sua culpa ao confessar suas fantasias sexuais em tribunal público; ao
mesmo tempo, conseguia algumas satisfações eróticas ao apresentar minúcias dessas
fantasias diante dos acusadores masculinos. Essas mulheres com graves perturbações
emocionais [sic] eram muito suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e
confessariam o fato de ter vivido com espíritos maus, assim como hoje os indivíduos
perturbados, influenciados por manchetes de jornais, se fantasiam como os assassinos
37
muito procurados pela polícia.”
A retórica da Psiquiatria moderna é aqui apresentada em sua forma mais
delicada. Alexander e Selesnick omitem qualquer referência às torturas usadas para
obter confissões de supostas feiticeiras. Na realidade, chegam até a comparar as
confissões de feiticeiras acusadas com as falsas suposições de crimes, apresentadas por
pessoas que de nada foram acusadas, que fazem suas fantasias apenas a partir de suas
necessidades pessoais e de histórias apresentadas em jornais. A imoralidade dessa
analogia está no fato de considerar como iguais a influência de brutais torturas físicas e a
de mensagens impressas, apresentadas sem qualquer coerção. Nessa interpretação, o
processo de feitiçaria é transformado, de uma situação em que as pessoas acusadas são
torturadas até que confessem crimes para os quais o castigo é a fogueira, numa situação
em que cidadãos que não foram maltratados dizem ter cometido crimes dos quais
facilmente se provará sua inocência.
A extensão completa da falsidade e da imortalidade dessa interpretação
psiquiátrica da feitiçaria torna-se evidente se a compararmos ao registro da Inquisição,
compilado e amplamente aceito por teólogos e historiadores cristãos. Essa interpretação
histórica, ao contrário do que ocorre com a psiquiátrica, focaliza; os perseguidores, não
os perseguidos; atribui a intolerância aos primeiros, e não a doença mental aos
segundos. Por exemplo, Henry Charles Lea, o grande historiador da Inquisição, diz o
seguinte a respeito do papel da Igreja na perseguição dos não conformistas (aqui, os
judeus):
O longo registro da perversidade humana não apresenta um exemplo mais
comprometedor da facilidade com a qual as más paixões do homem podem justificar-se

36
Albert Deutsch, The Mentally lll in America, p. 21.
37
Alexander e Selesnick, p. 68.
com o pretexto do dever do que a maneira pela qual a Igreja, supondo representar Aquele
que morreu para salvar a humanidade, deliberadamente plantou as sementes da
intolerância e da perseguição, e assiduamente cultivou sua colheita por mais de mil e
quinhentos anos. (...) O homem está sempre pronto para oprimir e espoliar seus
semelhantes e, quando aprende com seus líderes religiosos que a justiça e a humanidade
constituem um pecado contra Deus, a espoliação e a opressão se tornam os deveres mais
fáceis. Não é excessivo dizer que a Igreja é a principal, se não a única, responsável pelos
infinitos erros cometidos contra os judeus durante a Idade Média e pelos preconceitos, que
38
ainda hoje são frequentes em muitos lugares.
Andrew Dickson White, um estudioso profundamente religioso, primeiro
presidente da Universidade Cornell, e autor da clássica History of the Warfare of Science
with Theology in Christendom, também nada descobriu de errado nas vítimas; eram
apenas bodes expiatórios. E também ele notou que entra as vítimas, não apenas na
Espanha, mas também no resto da Europa, os judeus muitas vezes se salientavam.
Segundo White: “Ainda em 1527 o povo de Pavia, ameaçado pela peste, apelou a S.
Bemardino de Feltro, que durante sua vida tinha sido um grande inimigo dos judeus, e
assim foi aprovado um decreto prometendo que, se o santo evitasse a peste, os judeus
seriam expulsos da cidade. O santo aparentemente aceitou a troca, e no devido tempo
39
os judeus foram expulsos.”
Em resumo, a perspectiva psiquiátrica da feitiçaria não pode ser aceita porque, ao
lidar com a suposta perturbação mental das feiticeiras, afasta a atenção do observador
das atividades do caçador de feiticeiras. Dessa forma, a conduta social do opressor é
deixada de lado, afastada ou, em alguns casos, também desculpada como produto de
* 40
loucura. Para Zilboorg, os autores do Malleus são “dois honestos dominicanos.”
Menninger, outro entusiasta advogado da interpretação médica da feitiçaria,, muda isso
41
para “dois dominicanos ardorosos, mas equivocados.” De forma semelhante,
Masserman diz que o Malleus “...é o resultado da pesquisa e codificação dos fervorosos
frades [Sprenger e Krämer]”, caracterizando-o como “...um manual medieval de
Psiquiatria clínica, pois descreve minuciosamente, como sinais de magia e feitiçaria, as
anestesias, as parestesias, as disfunções motoras, as alucinações e os delírios que hoje
seriam considerados como patognomônicos de graves perturbações neuróticas ou
42
psicóticas.”

38
Lea, Inquisition of Spain, Vol. 4, pp. 35-36.
39
Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, pp. 356-357.
*
Devemos a Deutsch a interpretação de que tanto os caçadores de feiticeiras quanto estas eram doentes mentais. Diz Deutsch:
“O caso de Mary Glover, de Boston, que foi processada e executada em 1688, serviu como um prólogo adequado para o grande
drama de Salem. Em microcosmo, exemplifica muito claramente a presença da doença mental tanto nos acusadores quanto
nos acusados.” (Deutsch, The Mentally Ill in America, p. 33). Esta passagem mostra até que ponto Deutsch, um jornalista astuto
e sensível, ficou mergulhado e se tornou cego diante da mitologia e da retórica de seus mentores psiquiátricos. Acredita ter
visto — “muito claramente” — que não apenas as feiticeiras, mas também seus acusadores, eram mentalmente doentes; em
resumo, que todas as dramatis personae nessa tragédia estavam loucas.
40
Zilboorg, Medical Man and Witch, p. 45.
41
Karl Menninger, The Vital Balance, p. 16.
42
Jules H. Masserman, The Practice of Dynamic Psychiatry, p. 370.
Mas onde estão os fatos? Robbins, um estudioso da feitiçaria que merece muito
mais crédito do que Zilboorg e seus colegas que o copiam, nos diz que Krämer, um dos
autores do Malleus, tinha “estimulado uma mulher de maus costumes a esconder-se
num forno, fazendo acreditar que o demônio mora vaali (...) a fim de justificar suas caças
às bruxas. A vos dessa mulher denunciava muitas pessoas, cruelmente torturadas por
43
Krämer. O bispo de Brixen finalmente conseguiu expulsar Krämer. (...)” Quanto a
Sprenger — o outro dominicano “honesto”, mas “equivocado” — suspeitou-se que
tivesse forjado uma carta de aprovação da Faculdade de Teologia da Universidade de
Colônia, em 1487, acrescentada ao Malleus. Por ocasião de sua morte, seus colegas não
celebraram por ele uma missa de réquiem, uma omissão que “pode ter sido provocada
44
por sua desonestidade acadêmica”.
Assim podemos caracterizar os aspectos mais notáveis da teoria psicopatológica
da feitiçaria: a ideia de que as bruxas eram loucas foi sugerida por Weyer; foi
inteiramente desenvolvida por Esquirol e aceita pela maioria dos historiadores, médicos
e eruditos do século XIX; finalmente, foi elevada a dogma psiquiátrico indiscutível por
Zilboorg e outros “psiquiatras dinâmicos” dos meados do século XX.
Os resultados disso foram dois. De um lado, as bruxas se tornaram objeto de
interminável interesse psicopatológico; seu comportamento foi considerado como prova
da “realidade” trans-histórica e transcultural da doença mental. De outro lado, os
inquisidores, juízes, médicos e examinadores de bruxas foram cada vez mais ignorados
pelos psiquiatras; seu comportamento passou a ser considerado como um erro infeliz de
uma época anterior de obscurantismo. Como exemplo disso pode ser apresentada a
opinião de Henry Sigerist, o eminente historiador da Medicina, que sustentava que “sem
dúvida, muitas das mulheres que terminaram suas vidas nas fogueiras eram
personalidades psicopáticas, mas isso não ocorria com os homens que as perseguiam.
Era a sociedade como um todo que acreditava em feitiçaria como uma filosofia
45
definida.” Esta opinião exclui a possibilidade de que os fenômenos aqui discutidos —
denominados feitiçaria no Renascimento e doença mental hoje — sejam realmente
criados pela interação social de opressor e oprimido. Se o observador se identifica com o
opressor, mas deseja desculpá-lo, ao mesmo tempo que tem piedade do oprimido, mas
deseja controlá-lo, denomina a vítima doente mental. É por isso que os psiquiatras dizem
que as bruxas eram loucas. Inversamente, se o observador se identifica com o oprimido e
deseja elevá-lo, ao mesmo tempo que abomina o opressor e deseja degradá-lo, diz que o
perseguidor era mentalmente doente. É por isso que os psiquiatras dizem que os
nazistas eram loucos. Insisto em afirmar que as duas interpretações são piores do que
falsas: ao fazerem intervir a doença mental (ou feitiçaria, em período anterior),
escondem, desculpam e afastam o fato aterrorizante, mas muito importante, que é a
desumanidade do homem com relação o homem.

43
Robbins, p. 338.
44
Ibid., p. 340.
45
Henry Sigerist, “Preface”, em Zilboorg, Medicai Man and Witch, pp. viii-ix.
Em resumo, podemos concluir que, embora a teoria psiquiátrica da feitiçaria seja
inútil para a nossa compreensão das caças às bruxas, é valiosa para a nossa compreensão
da Psiquiatria e de seu conceito nuclear de doença mental. O que se chama “doença
mental” (ou “Psicopatologia”) surge como o nome do produto de um tipo específico de
relação entre o opressor e o oprimido.
6
A FEITICEIRA COMO TERAPEUTA

Os médicos, que num sentido ainda mais real são os seus [de
Satã] filhos fiéis, que surgiram do empirismo popular
conhecido como feitiçaria, esses, que são seus herdeiros
prediletos, aos quais deixou seu mais nobre patrimônio,
muito facilmente esquecem esse fato. São
fundamentalmente ingratos às feiticeiras que prepararam o
caminho para eles. Fazem mais ... dão aos escarnecedores
algumas armas cruéis para usar contra ele (...) Satã, segundo
dão a entender, é apenas uma forma de doença!
1
Jules Michelet

A interpretação psiquiátrica moderna da feiticeira como pessoa mentalmente doente


não é apenas uma interpretação falsa do registro histórico; é uma negação perversa do
verdadeiro papel da feiticeira como benfeitora ou terapeuta, além de malfeitora e
perturbadora. Como as interpretações psiquiátricas das caças às feiticeiras negligenciam
a figura da boa feiticeira — também chamada feiticeira branca (em contraste com a
feiticeira negra) ou do mago e da parteira — tais descrições devem ser entendidas pelo
que são: propaganda psiquiátrica, e não historiografia medieval.
Para entender o papel da feiticeira como terapeuta, precisamos lembrar que a
Medicina da Idade Média, tal como outros ramos do conhecimento, estava em estado de
parada, adormecida. “Com a exceção de médicos árabes ou judeus, contratados a
elevado preço pelos ricos, o tratamento medieval era desconhecido — as pessoas
2
podiam apenas reunir-se nas portas das igrejas e receber aspersão de água benta.”
Além disso, dada a misoginia religiosa da época, a mulher era tratada como animal, ou
ainda pior. Por isso, como observa Michelet, “nessa época nenhuma mulher poderia
consultar um médico homem, confiar nele, e dizer-lhe os seus segredos. As feiticeiras
eram as únicas observadoras nesse campo e, especificamente para as mulheres, eram as
3
únicas terapeutas.”
Em resumo, os pobres e impotentes estavam profundamente abandonados: o
padre e a Igreja tinham a proteção do senhor feudal; o médico era empregado de

1
Jules Michelet, Satanism and Witchcraff, p. 225.
2
Ibid., p. 77.
3
Ibid., p. 81.
príncipes e condes. Onde é que o servo miserável e sua mulher maltratada poderiam
conseguir alívio para sua infelicidade? Não dentro da igreja de sua fé, nem da corte de
seu senhor, mas apenas na magia, na superstição e na feitiçaria. Por isso, voltavam-se
para o mágico, a feiticeira e a bruxa.
A feiticeira interpretava e aplicava os ritos mágicos de cura (para controlar a
doença) e de influência pessoal (para controlar os malfeitores). Segundo nos lembra
Michelet, lembrança que aliás precisa ser transmitida aos historiadores da Medicina e da
Psiquiatria: “Por mil anos, o povo só teve uma terapeuta — a feiticeira. Os imperadores,
os reis e papas, bem como os barões mais ricos, tinham diferentes médicos de Salermo,
ou então médicos judeus e mouros; mas o maior grupo de qualquer Estado, o que se
4
poderia denominar todo mundo, consultava apenas a Saga, a Feiticeira”. Esta era
muitas vezes chamada a Boa Senhora, ou a Senhora Bela, a Bella Donna — o nome de
um dos seus medicamentos, ainda hoje usado pelos médicos.
Na realidade, a boa bruxa não era apenas médica, mas também astróloga,
nigromante, profeta e feiticeira. O estudo da Anatomia, durante muito tempo proibido
pela Igreja, começou com ela; por isso foi acusada de roubar túmulos e de vender
crianças para o Demônio. O estudo de venenos, de Química e de Farmacologia também
começou com ela. É evidente porque isso teria que ser assim. Como a terapia secular
tinha sido proibida pela Igreja, só poderia ser praticada por marginais da sociedade:
judeus ou feiticeiras. Segundo a observação de Pennethorne Hughes: “Os judeus eram
estigmatizados como usurários porque apenas um judeu tinha permissão, dentro do
sistema medieval, para emprestar dinheiro, e podia exercer poucas profissões. Da
mesma forma, as feiticeiras tinham, em grande parte, um monopólio dos poderes de
cura — os poderes duplos de curar o ferir — porque havia uma proibição medieval
5
contra a Medicina.”
Além disso, nas mentes das pessoas simples que procuravam sua ajuda, a boa
feiticeira não era (necessariamente) uma aliada do Demônio; essa interpretação foi
6
imposta a seu papel pela Igreja, durante a Idade Média. Na realidade, o mago, ou mais
frequentemente a feiticeira, constituía um tipo de terapeuta pré-científico, que
combinava os papéis de praticante de Medicina, sacerdote e bom vizinho. Nas palavras
de Christina Hole: “A bruxa branca, ou feiticeira, era a protetora da comunidade, assim
como seu oponente criminoso era seu inimigo. Como a feiticeira negra, dependia de
magia, mas usava-a principalmente para objetivos bons, para curar a doença, para
afastar maus olhados, para identificar ladrões ou encontrar objetos roubados, bem como
para proteger seus vizinhos de todos os tipos de mal. (...) Quando havia poucos médicos
e estes não eram muito habilidosos, a feiticeira era muitas vezes capaz de curar doenças
simples com o uso de ervas e senso comum, ataviados com magias. (...) A feiticeira
atendia como parteira. (...) Seu [da feiticeira branca] valor para a comunidade estava no

4
Ibid., p. x.
5
Pennethorne Hughes, Witchcraft, p. 302.
6
Michelet, p. xiv.
fato de ser conhecida e aceita, e era chamada em casos de doença e perturbação,
7
quando nenhum estranho, por mais versado que fosse, seria consultado.”
A feiticeira branca era, portanto, uma terapeuta, uma médica, uma servidora do
indivíduo sofredor. Seus serviços iam desde curar uma doença e dar poções de amor até
predizer o futuro e encontrar tesouros escondidos. As pessoas que a consultavam o
faziam voluntariamente, e pagavam por seus serviços, seja em dinheiro, seja com
objetos. Como sua posição era baixa, os homens não temiam o seu poder social. Em vez
disso, nela projetavam todas as expectativas mágicas de cura de doença e alívio de
sofrimento. Isso se tornou uma fonte de poder sobrenatural que inspirava terror e medo
em seus clientes, e muitas vezes fazia com que fosse perseguida como feiticeira negra.
As parteiras, especificamente, eram muitas vezes suspeitas de magia negra. Em The
Midwife and the Witch (A Parteira e a Feiticeira), escreve Forbes: “Como as parteiras
muitas vezes tinham má reputação, até uma praticante inocente poderia ser acusada de
bruxaria se o parto tivesse um resultado infeliz, ou se os pacientes não-obstétricos que
algumas parteiras tentavam tratar não ficassem curados. (...) Ainda mais graves eram as
acusações de que as parteiras destruíam os bebês, antes ou logo depois do parto ...o
Malleus Maleficarum dizia que as parteiras bruxas destruíam a criança no útero,
provocando um aborto, ou encontravam, um momento de segredo em que podiam
8
oferecer o bebê recem-nascido a Satã.”
Dada a natureza de um elo humano entre o camponês sofredor e as feiticeiras
aceitas, a boa feiticeira tornou-se dotada de grandes poderes de cura; é a adivinha, a
mãe do terapeuta mesmérico, a hipnotizadora e a psiquiatra (particular). Além disso,
como é na realidade uma combinação de mágica e empirista, a feiticeira adquire, ao
fazer experiência com remédios tirados de plantas, um conhecimento autêntico de
alguns agentes farmacológicos muito poderosos. Tão adiantado é seu conhecimento
que, em 1527, Paracelso, considerado um dos grandes médicos de seu tempo, queima
sua farmacopéia oficial, declarando que “tinha aprendido com as feiticeiras tudo o que
9
sabia.” É importante acentuar que o mágico (ou feiticeiro ou bruxa — a distinção entre
eles frequentemente se perde) era um tipo de cientista. Seu poder não residia apenas
em sua autoridade, mas também em seus métodos. Nesse método era básica a
suposição, segundo nos lembra Hole, “de que, por estudo cuidadoso e aplicação correta
de algumas regras definidas, o mágico sempre poderia obter os resultados que desejava.
10
Para ele, como para o cientista, o universo era governado por leis imutáveis. (...)” Por
essa razão, a “interpretação do mágico não era religiosa, mas científica, por mais erradas
que fossem as premissas em que se baseava. A humildade e as súplicas do crente não
11
constituíam parte de seu equipamento mental.”

7
Christina Hole, Witchcraft in England, pp. 129-130.
8
Thomas Rogers Forbes, The Miduiife and the Witch, pp. 126-127.
9
Michelet, p. xi.
10
Hole, p. 12.
11
Ibid., p. 13.
*
Certamente, nem todos os métodos de cura da feiticeira branca eram científicos.
Alguns eram claramente mágicos, um deles sendo a transferência do mal (doença) de
uma pessoa atingida para um agente mediador (a pessoa de feiticeira). Por exemplo, em
1590, Agnes Sampson, uma feiticeira escocesa, foi acusada de ter curado um certo
Robert Kers de uma doença “lançada sobre ele por um feiticeiro, quando estava em
Dumfries, e cuja doença transferiu para si mesma, conservando-a com grandes suspiros
e sofrimento até a manhã, momento em que houve um grande barulho ouvido na
12
casa.” O ruído foi feito pela feiticeira em seus esforços para passar a doença de si
mesma para um cão ou um gato. No entanto, essa tentativa fracassou, a doença não
atingiu o animal, e, em vez disso, atingiu Alexander Douglas de Dalkeith, que morreu por
isso. O doente original, Robert Kers, sarou.
Dados os seus métodos e sua popularidade, a feiticeira branca era um desafio à
Igreja. Michelet sugere — e a sugestão é plausível — que o empirismo da feiticeira e da
bruxaria foi, sobretudo, uma revolta contra a autoridade da Igreja. E pergunta Michelet:
“Como é que se chegou à grande descoberta [de cura científica, oposta a princípios
religiosos]?” E responde: “Sem dúvida, pela simples aplicação do princípio demoníaco de
que tudo deve ser feito às avessas, precisamente da moda inversa à empregada pelo
mundo da religião. A Igreja tinha um horror sagrado a todos os venenos; Satã os utiliza
13
como agentes de cura.” Acentuando que a ciência sempre progride através do
ceticismo com relação à autoridade estabelecida, Michelet observa: “Existe acaso uma só
ciência que se possa demonstrar não ter sido originalmente uma revolta contra a
autoridade? A Medicina, acima de tudo, era real e verdadeiramente satânica, uma
revolta contra a doença, isto é, contra o merecido flagelo de um Deus ofendido.
Evidentemente, é um ato pecaminoso deter a alma em seu caminho para o céu e
14
recolocá-la na vida deste mundo!”
Portanto, é um grave erro acreditar que a Igreja se opunha à feitiçaria apenas
porque considerava a feiticeira uma causa de doença e infelicidade. Nas palavras de
Hole: “A Igreja Cristã Primitiva denunciava a magia branca e a magia negra como
15
igualmente pecaminosas.” Não é difícil entender essa oposição do Cristianismo —
desde o Catolicismo original até a Reforma e os nossos contemporâneos
fundamentalistas — à ciência, e principalmente à cura pelos meios físicos misturados
com ritos mágicos. “[A magia] era um apelo a um poder diferente de Deus, uma tentativa
arrogante de conseguir por artes humanas o que só poderia ser dado ou negado pela
Vontade Divina. Se qualquer rito mágico desse certo, isso só poderia ocorrer com a ajuda
dos demônios, e quem quer que procurasse fazer qualquer coisa, mesmo o bem, por tais

*
Alguns autores acentuam os aspectos mágicos, enquanto outros acentuam os aspectos científicos das formas de tratamento
das feiticeiras. Na realidade, as feiticeiras constituíam uma corporificação da sabedoria e dos absurdos do pensamento
popular; utilizavam rituais mágicos (por exemplo, a repetição de fórmulas cabalísticas), bem como atos técnicos (receitar
medicamentos).
12
James George Frazer, The Golden Bough, p. 542.
13
Michelet, p. 84.
14
Ibid., pp. 308-309.
15
Hole, p. 191.
meios, deveria ser inimigo de Deus. Os cabalismos de cura eram tão condenados quanto
16
as magias negras. (...) “ No entanto, ao auxiliar os fracos, a feiticeira branca tendia a
minar as hierarquias estabelecidas de domínio — do sacerdote com relação ao
penitente, do senhor com relação ao camponês, do homem com relação à mulher. Aqui
reside a principal ameaça da feiticeira à Igreja. E essa é uma das razões pelas quais, no
século XV, a Igreja se dispôs a destruí-la.
A partir dos registros históricos, fica realmente claro que a Igreja se ressentia
ainda mais da feiticeira boa do que da má. A feiticeira, a parteira que era uma terapeuta
eficiente, era uma afronta à supremacia do sacerdote. Por isso, os inquisidores se
dispuseram à repressão sistemática de seus competidores não-oficiais. Declaravam que a
cura de corpos e almas era domínio exclusivo de Deus e dos seus vigários na Terra, isto é,
os sacerdotes. Escrevem Krämer e Sprenger: “Com relação ao segundo ponto, que uma
criatura possa ser modificada para melhor ou para pior, deve-se sempre entender que
isso só pode ser feito com a permissão e, realmente, pelo poder de Deus, e que isso só é
17
feito para corrigir ou punir. (...)”
A proibição da Igreja contra a cura não se dirigia somente contra as feiticeiras ou
bruxas; volta-se também contra os médicos. Isso era coerente com a premissa de que o
homem foi criado por Deus e pertence, de corpo e alma, ao seu Criador. Nessa
interpretação, modelada talvez pelo modelo feudal de Economia Agrícola, o homem é a
terra, Deus o senhor feudal, e o sacerdote o camponês que trabalha a terra. Como a
terra só podia ser arada com a permissão do proprietário e por aqueles indicados por
ele, também o homem só poderia ser curado com a permissão de Deus do céu e por
aqueles indicados por Ele. Os invasores — isto é, os terapeutas não-clericais — eram por
isso impedidos de praticar sua arte, perseguidos e, se necessário, mortos. Aqui vemos a
cura do homem colocada sob a jurisdição exclusiva de Deus e do sacerdote; mais tarde,
veremos que ficou colocada sob a da natureza e do médico.
Em sua clássica descrição da History of Warfare of Science with Theology in
Christendom, Andrew Dickson White acentua essa postura fundamentalmente
antimédica da Igreja medieval: “Mesmo a Escola de Salerno sofria a aversão de muitos
religiosos estritos, pois prescrevia regras de dieta, o que indicava uma crença de que a
doença decorre de causas naturais e não da malícia do demônio. (...) Por isso, sem
dúvida, o Concilio de Latrão, no início do século XIII, proibiu os médicos, sob pena de
exclusão da Igreja, de empreender o tratamento médico sem pedir conselho eclesiástico.
Essa opinião foi por muito tempo aceita pela Igreja, e quase duzentos e cinquenta anos
depois foi revivida pelo Papa Pio V. Não apenas ordenou que todos os médicos, antes de
fazer tratamento, chamassem um médico de almas, a partir da ideia de que a
enfermidade corporal frequentemente decorre de pecado, mas também determinou
que, se no fim de três dias, o paciente não se confessasse com um sacerdote, o médico
deveria cessar o tratamento, sob pena de ser privado do direito de curar, e de expulsão

16
Ibid., p. 19.
17
Jacob Sprenger e Heinrich Krãmer, Malleus Maleficarum, p. 8.
da faculdade se fosse professor, e que todo médico ou professor de Medicina deveria
18
jurar que estaria atendendo a essas condições.” A Igreja estabeleceu proibições
19
específicas aos médicos judeus.
É significativo que os sacerdotes não diziam que os médicos judeus e as feiticeiras
não pudessem curar; ao contrário, afirmavam que sua cura era má. Por exemplo,
quando, nos meados do século XVII, o conselho da cidade de Hall, em Württemberg, deu
alguns privilégios aos médicos judeus, o clero da cidade protestou, declarando que “era
melhor morrer com Cristo do que ser curado por um médico judeu que tem o auxílio do
20
demônio.” Sprenger e Krämer também se queixam, dizendo que “pessoas enfeitiçadas”
consultam feiticeiras e são curadas por elas. Escrevem: “O método comum de livrar-se
de enfeitiçamento, embora ilegal, é que as pessoas enfeitiçadas procurem feiticeiras, por
quem são frequentemente curadas, e não por padres ou exorcistas. Portanto, a
experiência mostra que tais curas são realizadas com o auxílio do demônio, o que é ilegal
buscar; portanto, não poder ser legal curar dessa forma o enfeitiçamento, e este deve
21
ser pacientemente suportado.”
Assim como os sacerdotes medievais proibiam que os não-clericais curassem,
também os clínicos modernos (os médicos) proíbem que os não-clínicos (psicólogos,
22
assistentes sociais) pratiquem independentemente a Psicoterapia. Como antes, os
psicoterapeutas médicos usualmente não dizem que os terapeutas não-médicos sejam
incompetentes; ao contrário, afirmam que é “irresponsável” e, portanto, inadequado,
*
que qualquer pessoa que não seja médica trate “pacientes doentes.”
A ideia de que a boa feiticeira representasse uma afronta especial à religião
organizada foi ainda mais confirmada por seu destino nos países protestantes: também
nesse caso se disse que era um mal ainda maior do que a feiticeira má! Eis como William
Perkins, talvez o mais famoso entre os caçadores de bruxas da Inglaterra, explicou por
que isso devia ser assim: “... seria mil vezes melhor para o país se todas as feiticeiras,
principalmente a feiticeira terapeuta, morressem. Usualmente os homens odeiam a
feiticeira maléfica e cospem nela, considerando-a indigna de viver entre eles; ao mesmo
tempo correm para a outra quando estão necessitados, dependem dela como de seu

18
Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, p. 322.
19
Ibid., pp. 328-329.
20
Ibid., p. 329.
21
Sprenger e Kramer, p. 156.
22
Resolução da Comissão Executiva da Associação Psiquiátrica Americana, 7 de março, 1954; citado em Henry A. Davidson,
“The semantics of psychoterapy”, Amer. J. Psychiat., 115: 410-413 (nov.), 1958; p. 411.
*
A seguinte resolução da Comissão Executiva da Associação Psiquiátrica Americana, de 7 de março de 1954, é um bom
exemplo disso: “As doenças mentais são entidades bem definidas, claramente descritas e delineadas na Nomenclatura
Padronizada; o diagnóstico e o tratamento das doenças mentais continua sendo uma responsabilidade médica.” (Citada em
Henry A. Davidson, “The semanties of Psychotherapy”, Amer, J. Psychiat., 115: 410-413 [nov.], 1958; p. 411.) A Associação
Psicannlítica Americana também repudiou a chamada análise leiga e proíbe a formação de não médicos em seus institutos
reconhecidos. Para maior discussão crítica, ver Thomas S. Szasz, “Psychiatry, psychotherapy, and psychology”, A.M.A. Arch.
Gen. Psychiat., 1: 455-463 (nov.), 1959, e “Three problems in contemporary psychoanalytic training”, ibid., 3: 82-94 (julho),
1960.
Deus, e assim milhares são levados para sua confusão final. Portanto, a morte é a parte
23
justa e merecida da boa feiticeira.”
A Lei Inglesa de Feitiçaria de 1542 especificamente enumera a boa feiticeira,
descrevendo-a como um tipo de terapeuta não-licenciada (em Medicina e outras
aptidões úteis) entre outras atividades proibidas por lei. O Decreto refere-se a pessoas
que “... ilegalmente criaram e praticaram Invocações e Conjurações de Espíritos,
pretendendo, por tais meios, compreender e conseguir conhecimento para seu lucro
quanto ao local em que devem ou deveriam ser encontrados tesouros de ouro ou prata,
seja na terra ou em outros lugares secretos (...) coisas que só podem ser usadas e
exercitadas com grande ofensa à lei de Deus, mal e dano aos súditos do Rei, e perda de
algumas de tais Delinquentes, para grande desonra de Deus, infâmia e inquietação do
24
Reino.”
Aqui vemos, sob forma espantosamente nua, alguns dos motivos econômicos
subjacentes à caça às bruxas: a Igreja e o Estado, os sacerdotes e o governante secular
invocam argumentos morais para a defesa de suas práticas monopolísticas. Supõe-se
que apenas os senhores poderosos “obtenham conhecimento” e assim se enriqueçam;
quando o indivíduo inferior tenta fazer o mesmo, é castigado por egoísmo, por pensar
apenas em seu “lucro pessoal” e ofender a “lei de Deus.” Em resumo, o Decreto Inglês de
Feitiçaria de 1542 apresenta a defesa do comunismo (como Capitalismo do Estado) em
forma surpreendentemente moderna: fingindo a retórica do coletivismo altruísta, as
autoridades declaram que apenas o “Reino” (o Estado Eclesiástico) tem o direito de
possuir bens e riquezas; para o indivíduo, o fato de ter tais bens é um roubo — um
pecado contra Deus e um crime contra a sociedade. Certamente, isso é apenas uma
variação do antigo tema de poder e desigualdade social. “Quod licet Jovi, non licet bovi”
(“O que é permitido a Júpiter, não é permitido à vaca”) é a forma de os romanos
apresentarem esse princípio. O que as autoridades realmente proíbem são os esforços
do indivíduo para a autodeterminação; o que mais temem é uma redução da distância
entre o governante e o governado. Como essa distância se mede — em termos
teológicos, econômicos, políticos, raciais, sexuais ou psiquiátricos — não é muito
importante. A revolta contra a autoridade era, e continua a ser até hoje, o pecado
original, o crime clássico do indivíduo.
Em 1563, vinte e um anos depois da aprovação do Decreto Inglês de Feitiçaria, foi
promulgada uma nova lei escocesa que, segundo nos diz Trevor-Roper, “abandonou a
antiga distinção humanitária entre feiticeira ‘boa’ e feiticeira ‘má’. (...) Obedecendo à voz
de Calvino, prescrevia a morte para todas as feiticeiras, boas e más, e para aqueles que
25
as consultassem.” De forma semelhante, “Em 1572, Augusto, o Pio, Eleitor da Saxônia,
introduziu um novo código penal segundo o qual mesmo a boa feiticeira devia ser
queimada, simplesmente por ter feito um pacto com o demônio, mesmo que não tenha

23
Citado em Hole, p. 130.
24
Ibid., pp. 159-160.
25
H. R. Trevor-Roper, “Witches and witchcraft: An historical essay” (II), Encounter, 28: 13-34 (junho), 1967; p. 13.
26
prejudicado quem quer que seja com sua feitiçaria.” Aqui vemos claramente, mais uma
vez, que o mal da feitiçaria não era um ato específico e manifesto, mas uma condição
íntima e secreta da pessoa acusada.
Quando Jaime I se tornou Rei da Inglaterra, não gostou das suaves leis
elizabeteanas contra as feiticeiras. Assim, “descobriu uma deficiência na lei (...) pela qual
ninguém morreu por feitiçaria, a não ser as pessoas que tinham, com esse meio,
27
assassinado alguém, de forma que foram executados assassinos, e não feiticeiras.” Em
outras palavras, até então as supostas feiticeiras tinham sido castigadas apenas por
aquilo que faziam; Jaime I fez com que a lei fosse modificada, de forma que fossem
punidas por aquilo que eram.
Esses fatos a respeito da feiticeira medieval como terapeuta tiram, da teoria
psicopatológica da feitiçaria, seus últimos vestígios de plausibilidade. Na verdade, o fato
de considerar as feiticeiras apenas como indivíduos aberrantes e perturbadores, e nunca
como conselheiros e terapeutas competentes, é um engano singularmente limitado a
*
historiadores médicos e psiquiátricos da feitiçaria. Outros autores, cujos trabalhos citei,
reconhecem o papel significativo da feiticeira medieval como a mãe, por assim dizer, não
apenas do médico moderno, mas também do astrônomo e do químico. Portanto, a
interpretação médico-psiquiátrica da relação entre a Igreja e a feiticeira serve também
para obscurecer a rivalidade inicial e pré-científica para o domínio nas profissões que
cuidam da saúde. Os sacerdotes católicos e protestantes impediam que a feiticeira
exercesse sua arte de cura. No Ocidente, apenas os judeus e maometanos toleravam a
livre competição entre os terapeutas espirituais (religiosos) e os seculares (médicos).
Disso decorreu a indiscutível supremacia, até o Iluminismo, dos médicos árabes e judeus,
tanto na Europa quanto na África.
Como a Igreja medieval, com o apoio de reis, príncipes e autoridades seculares,
controlava a prática e a educação médicas, a Inquisição constitui, entre outras coisas, um
caso inicial do repúdio, pelo “profissional”, das habilidades do “não-profissional” e da
interferência nos direitos que este último tinha para atender os pobres. Os médicos
contemporâneos apresentam a mesma intolerância com relação aos terapeutas sem
formação médica; os psiquiatras, com relação aos que não são legitimados por sua
corporação.
Nas palavras de Michelet, a Igreja “declara, no século XIV, que se uma mulher se
28
atrever a curar, sem ter estudado, é uma feiticeira e deve morrer.” No entanto, a
parteira tinha estudado. Seu mestre era a Natureza, e não a Bíblia! Na época da Religião,
ter estudado significava aprender o que a Igreja definia e ensinava como práticas e

26
Ibid.
27
Ibid., p. 14.
*
As observações de Redlich e Freedman constituem uma notável exceção na usual interpretação psiquiátrica dos caçadores de
feiticeiras. Dizem que o Malleus é “perverso”; classificam as crenças de Sprenger e Krämer como “sádicas e misóginas”;
deploram a “herança vulgar e sádica” que a Idade Média transmitiu “ao pensamento e à prática psiquiátrica”. (Frederick C.
Redlich e Daniel X. Freedman, The Theory and Practice of Psychiatry, p. 32.)
28
Michelet, p. xix.
princípios corretos de várias disciplinas, assim como hoje significa aprender o que a
Ciência define como tal.
Em resumo, o Estado Teológico proibia as práticas da feiticeira branca; de forma
semelhante, o Estado Terapêutico contemporâneo proíbe as práticas do terapeuta não-
formado. Por exemplo, em 1967, o pastor da Primeira Igreja de Ciência Religiosa, em
Hemet, Califórnia, foi considerada culpado de prática ilegal da Medicina por tratar
“problemas emocionais e de peso” com hipnotismo, pois, na opinião do tribunal, “...a
hipnose só pode ser usada quando sob a orientação de um médico ou cirurgião, seja
29
quando tenta diagnosticar, seja quando tenta tratar ou receitar.”
Evidentemente, tudo isso tem uma lógica: os pobres não apenas devem ser
oprimidos; devem ser mantidos também em perpétua impotência e dependência com
relação aos senhores. Isso explica a necessidade de negar-lhes seus terapeutas não
formados, um processo claramente discernível já na Idade Média, e apesar do que se diz
em contrário, hoje inteiramente aceito. Em vez de permitir que os pobres tenham acesso
aos que podem ajudá-los, os pobres recebem médicos empregados pelo Estado. Os
asilos de insanos, os recursos de saúde pública e os cuidados oferecidos pela caridade,
em hospitais municipais de ensino, deslocaram as feiticeiras brancas que, embora sem
formação médica, muitas vezes pelo menos serviam autenticamente aos doentes
pobres. Sem dúvida, algumas feiticeiras brancas eram charlatãs que procuravam lucros
pessoais. No entanto, isso não muda o núcleo da minha tese: a feiticeira branca era, em
princípio, servidora do indivíduo doente, enquanto o sacerdote era, em princípio, um
servidor de Deus. De forma semelhante, em nossos dias, o terapeuta não-formado, por
mais ineficiente que seja tecnicamente, é o servidor do indivíduo que procura ajuda,
enquanto que o médico burocrático, por mais eficiente que seja tecnicamente, é o
servidor da instituição que o emprega. Aqui, suponho, está a fonte de grande parte da
30
insatisfação popular com os médicos e com os tratamentos médicos atuais.
Além disso, assim como o sacerdote considerava a feiticeira branca como uma
charlatã teológica e a perseguia em nome dos fiéis, também o médico considera o
terapeuta não-licenciado um charlatão médico e o persegue em nome do paciente.
Certamente, algumas pessoas são e sempre serão mais competentes e habilidosas do
que outras, seja em Medicina, em Teologia ou qualquer outra disciplina; e,
evidentemente, a incompetência médica apresenta um perigo muito grande para as
pessoas doentes. Hoje se admite, quase sem discussão, que esse perigo justifica a
intervenção paternalista do Estado — protegendo o cidadão de cuidados médicos
inadequados através de regulamentos de licença para a prática de Medicina e sanções
penais. Isso coloca o Estado no papel de julgar o que é cuidado médico adequado, quem
é competente para dá-lo e quanta competência se deve verificar. Na realidade, não só o
Estado é incapaz de atender a essa responsabilidade e não está preparado para exercê-

29
“Monmedical hypnotist convicted”, A.M.A. News, 2 de out., 1967, p. 9.
30
Thomas S. Szasz, “Medical ethics: A historical perspective”, Med. Opin. & Rev., 4: 115-121 (fev.). 1968.
la, mas, ao aceitar a tarefa, torna-se um árbitro do que constitui “Medicina científica”,
31
assim como a Igreja medieval se tornou árbitro do que constituía “fé verdadeira”.
Na verdade, é uma ironia que, apesar do registro histórico acima resumido,
nenhum, psiquiatra homem, nenhum homem historiador da Psiquiatria, reconheça a
feiticeira como terapeuta, a verdadeira mãe do módico e psicoterapeuta
contemporâneos de clínica particular. Ao contrário, como vimos, o Homem (o Médico
Masculino) tira da Mulher (a Feiticeira Branca) a sua descoberta: diz que ela está louca e
que ele é o terapeuta esclarecido. Esse processo se repete constantemente na História
da Medicina. Semmelweis, o protetor da mulher parturiente que ficava doente por causa
de infecção provocada pela mão do médico, também foi considerado louco e internado
32
num asilo de insanos. Anna O., a imortal paciente de Joseph Breuer, ensina, a seu
médico, o significado humano da neurose e o valor psicoterapêutico da auto-revelação a
33
uma autoridade compreensiva e em quem se tem confiança; apesar disso, as pessoas
com problemas de vida são definidas como mentalmente doentes, e seus interlocutores
como especialistas médicos que conhecem melhor as “mentes” de seus “pacientes” do
que estes. A injustiça e a violência da Psiquiatria Institucional, simbolizadas pelo médico
que atua como carcereiro e torturador com relação a uma pessoa que não deseja ser sua
paciente, são assim ampliadas quando o historiador da Psiquiatria chega a trair o seu
dever intelectual. Esse historiador apresenta, não os sofrimentos das vítimas, mas as
mentiras dos opressores; serve, não à verdade, mas ao poder: não ao paciente, mas à
profissão. Sua traição à fidelidade histórica é coerente com as funções políticas da
Psiquiatria como uma instituição de controle social, e com os métodos característicos
34
dessa instituição, isto é, a força e a fraude.
Na interpretação psiquiátrica moderna, a feiticeira medieval era um indivíduo
mentalmente doente — uma “paciente” ainda não reconhecida pela ciência médica. Na
realidade, era muitas vezes uma bruxa, uma feiticeira e, acima de tudo, uma terapeuta
— parteira e médica — uma “especialista” sem formação, livremente procurada para
ajudar aqueles a que servia. Essa inversão de papéis — passando a feiticeira de
terapeuta a doente, de psicoterapeuta a doente mental — foi imposta às feiticeiras pelos
historiadores da Psiquiatria que criavam a lenda de sua pré-história. Aqui está uma das
mais amargas ironias da opressão: a vítima, por mais inocente que seja, continua a
transpirar um odor de erro e desonra; o vencedor, por mais injusto que tenha sido,
continua a irradiar um ar de autoridade e benevolência. Essa é a razão pela qual o
médico contemporâneo, principalmente o psiquiatra, sistematicamente repudia seu
verdadeiro ancestral medieval, a feiticeira inferior e discutível. Ao contrário, prefere ligar
sua ascendência diretamente aos médicos hipocráticos da Grécia antiga, passando em
silêncio pela vergonha da Idade Média; ou reconhecendo esse período, afirma como seu

31
A esse respeito, ver Milton. Friedman. Capitalism and Freedom, pp. 137-160; e Thomas S. Szasz, “The right to health”,
Georgetown Law J., 57: 734-51 (mar.), 1969.
32
Ver William J. Sinclar, Semmelweis: His life and His Doctrine, especialmente pp. 267-270.
33
Ver Thomas S. Szasz, “The concept of transference”, Int. J. Psycho-And., 44: 432-443, 1963.
34
A esse respeito, ver Kingsley Davis, “The application of science to personal relations: A critique of the family clinic idea”,
Amer. Social. Rev., 1: 238-249 (abr.), 1936; and Mental hygiene and the dass structure, Psychiat., 1: 55-65 (jan.), 1938.
predecessor o sacerdote católico romano, indicando seu trabalho em benefício do pobre
doente. Seus ancestrais, segundo afirma, eram os homens de Deus; na realidade, eram
as mulheres de Satã.
Por essa inautenticidade fundamental, a profissão médica pagou o elevado prego
que o negócio com a falsidade inevitavelmente cobra. Ao negar suas origens — na
realidade, ao identificar-se com os que agrediram seus predecessores — o médico
moderno perde sua identidade como um terapeuta modesto, mas descrente no dogma
da autoridade social estabelecida, e, ao contrário, se torna um servidor do Estado. Assim,
no decurso de aproximadamente quatro séculos, o médico despreza seu mandato
hipocrático como servidor do indivíduo sofredor e, em vez disso, assume o papel de
funcionário civil que protege a saúde do Estado burocrático. Nas histórias oficiais da
Medicina contemporânea, essa negação da feitiçaria e da bruxaria como terapia forma
um elo importante na transformação fatal do papel do médico: de empresário individual
a empregado burocrático.
7
A FEITICEIRA COMO BODE EXPIATÓRIO

As pessoas de bem dão nomes às coisas, e estas conservam


tais nomes. (...) [O bode expiatório] está do lado dos objetos
que recebem nomes, não daqueles que os dão.
Jean-Paul Sartre 1

Os psiquiatras são defensores entusiastas da teoria psicopatológica da feitiçaria:


sustentam que as feiticeiras eram mulheres mentalmente doentes que tinham sido
erradamente diagnosticadas por inquisidores bem-intencionados, mas ignorantes. Os
historiadores, ao contrário, são defensores ardorosos da teoria de bode expiatório da
feitiçaria: sustentam que as feiticeiras eram as ofertas “de sacrifício” de uma sociedade
animada pelo simbolismo e pelos valores da Teologia cristã. Esta última perspectiva para
entender a feitiçaria não é nova: suas origens podem ser facilmente rastreadas na
metade do último século. Por isso, é muito significativo que os psiquiatras
sistematicamente desprezem essa interpretação dos caçadores de bruxas.
Segundo a teoria de bode expiatório da feitiçaria, a crença em bruxas e sua
perseguição organizada representam uma expressão da busca de uma explicação e de
um controle dos vários problemas humanos, principalmente doenças físicas e conflitos
sociais. Geoffrev Parrinder, antropólogo inglês, escreve: “Se os homens desejavam uma
explicação de todos os males da natureza, puderam encontrá-la nas atividades diabólicas
das feiticeiras. Estas constituíam um bode expiatório para os problemas da sociedade, tal
como o tinham feito os judeus em determinados períodos, e tal como o fariam
novamente para os nazistas alemães no século XX. Reginald Scot, que viveu no meio do
medo às bruxas e escreveu tão corajosamente contra toda essa superstição, dá a mesma
imagem. ‘Se qualquer adversidade, luto, doença, perda de filhos, cereal, gado ou
liberdade acontece para eles, logo depois clamam pelas bruxas. (...) Logo que um trovão
ou um vento de temporal são ouvidos, correm para os sinos das igrejas, ou clamem por
2
fogueiras para as bruxas’ “. Parinder compara as caças às feiticeiras ao anti-semitismo e
aos movimentos políticos modernos de massa, e conclui que a “crença na feitiçaria é um
erro trágico, uma explicação falsa para os males da vida, e só levou à opressão cruel e
3
sem fundamento, em que sofreram inúmeras pessoas inocentes”.

1
Jean-Paul Sartre, Saint Genet, p. 40.
2
Geoffrey Parrinder, Witchcraft, p. 54.
3
Ibid., p. 14.
Muitos estudiosos observaram as semelhanças entre a perseguição de feiticeiras
e as dos judeus. Por exemplo, Andrew Dickson White chama a atenção para um quadro
do século XVII, existente na Galeria Real de Nápoles, e onde se apresentam as “medidas
tomadas para salvar a cidade da peste de 1656”: o quadro “representa o povo, levado
pelos sacerdotes, executando, com horríveis torturas, judeus, heréticos e feiticeiras, que
supostamente estavam provocando a pestilência, enquanto que nos céus a Virgem e São
4
Januário intercedem junto a Cristo para que embainhe sua espada e detenha a peste”.
Pennerthorne Hughes, um historiador inglês, dá a mesma explicação para as
atividades dos inquisidores. Escreve: “Essas heresias [antes da Reforma] devem ser
esquematicamente mencionadas porque, nas mentes dos inquisidores, estavam
intimamente ligadas à feitiçaria, e tinham aspectos comuns com o culto. Assim como os
inquisidores de direita do nazismo falavam na mesmo tom sobre judeus, intelectuais e
marxistas, também os homens religiosos da Idade Média e do Renascimento falavam no
5
mesmo tom sobre judeus, feiticeiras e heréticos.”
Adolf Leschnitzer, um historiador judeu de origem alemã, traça um paralelo entre
a perseguição dos judeus e a das feiticeiras: “Nos séculos XVI e XVII, a perseguição dos
judeus foi substituída pela perseguição das feiticeiras. Depois, nos séculos XIX e XX, o
processo se inverteu. No fim da Idade Média, já se pode mostrar que a perseguição dos
judeus foi apresentada como um recurso para distrair a atenção. (...) Quando, depois dos
grandes massacres, perseguições e expulsões dos séculos XIV ao XVI (...) as feiticeiras e
bruxas se tornam as novas vítimas da perseguição. Com o desaparecimento dos judeus,
tomaram seu lugar como um novo alvo, desesperadamente necessário para o alívio
6
emocional.”
Embora a afirmação de Leschnitzer, de que os judeus e as feiticeiras se tenham
alternado como bodes expiatórios da sociedade, não se ajusto tão bem aos fatos quanto
o supõe, sua tese geral é correta. Observa Leschnitzer que “A mania de feitiçaria foi um
fenômeno não muito diferente do anti-semitismo racial criado pela Alemanha do século
XI e inteiramente desenvolvido nesse país durante o século XX. Os paralelos são
evidentes: incerteza econômica e emocional, as preocupações com a segurança física, os
temores metafísicos quanto à salvação da alma; o desvio de impulsos antissociais
turbulentos contra um único grupo indefeso; a denúncia dos inimigos internos e
externos como aliados do demônio; crueldade no combate — na guerra contra o
demônio tudo é permitido; espoliação do inimigo — os bens das feiticeiras eram quase
7
sempre confiscados; [etc.].”
Leschnitzer nota, corretamente, que o bode expiatório não é uma pessoa real,
mas um tipo; ou, na conceituação psicanalítica, uma figura de transferência, na qual o
observador projeta seus temores (ou esperanças). Para aqueles que os temiam, o judeu

4
Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, pp. CFJ-CFV. A esse respeito, ver
também Norman Cohn The Pursuit of the Millennium, e Warrant for Genocide.
5
Pennethorme Hughes, Witchcraft, p. 64.
6
Adolf Leschnitzer, The Magic Background of Modem Anti-Semitism, pp. 144-145.
7
Ibid., pp. 98-99.
e a feiticeira pareciam semelhantes. O terror “antes ligado à feiticeira foi, nos séculos XIX
e XX, transferido ao judeu. As pessoas aprendiam a estremecer na presença do judeu, da
mesma forma que antes se aprendia a estremecer diante da feiticeira. Até a palavra
‘judeu’ se tornou carregada com os mesmos valores emocionais antes intrínsecos a
‘feiticeira’. E como a palavra ridicularizada, “feiticeira”, se tornou quase tabu e, depois da
época do Iluminismo, dificilmente poderia ser empregada a sério, era por isso mesmo
mais fácil, menos responsável e exigia menos cuidado a conservação ou reconquista das
concepções arcaicas subjacentes a essa palavra. Numa época de semi-educação, muitos
8
dos chamados educados acompanharam os outros.”
Embora Leschnitzer acentue principalmente a exploração dos paralelos entre as
caças às bruxas e o anti-semitismo nazista, ele não deixa de perceber as semelhanças
igualmente importantes entre o anti-semitismo medieval e o anti-semitismo moderno.
Diz que, durante a Idade Média, “os judeus eram considerados responsáveis pela peste;
hoje, de maneira não menos absurda, são considerados os responsáveis pelo
desemprego e pela crise econômica. Os judeus são nossa desgraça! Este grito de reunião,
acompanhado por um programa amplo de açulamento contra os judeus, teve
precisamente o mesmo efeito que o açulamento contra os ‘envenenadores das fontes’
9
na Idade Média. As massas responderam ao apelo.”
De forma muito semelhante, hoje todas as infelicidades são atribuídas à loucura.
E, tal como em épocas anteriores, as massas respondem ao chamado que as convoca
para pegar em armas contra o inimigo — definido abstratamente como doença mental,
mas corporificado concretamente em pessoas definidas como doentes mentais.
É coerente com a teoria de bode expiatório da feitiçaria, mas não com a teoria
psicopatológica, que os indivíduos perseguidos sejam muitas vezes impotentes e pobres;
e que, além das feiticeiras, os judeus, os heréticos de todos os tipos, os protestantes e os
cientistas cujas opiniões ameaçavam o dogma da Igreja fossem também vítimas da
Inquisição. Em resumo, enquanto a teoria psiquiátrica liga a crença em feitiçaria e a
perseguição de feiticeiras às supostas doenças mentais das feiticeiras, a teoria de bode
expiatório as liga a condições específicas da sociedade em que tais práticas e crenças
ocorreram. Dadas essas diferentes perspectivas, as pesquisas psiquiátricas da feitiçaria
se concentram nas feiticeiras e ignoram os caçadores de bruxas, enquanto as pesquisas
*
não-psiquiátricas invertem esse foco.
Embora as paixões das pessoas, receptivas à propaganda da Igreja, tenham
permitido a difusão da mania de bruxas, os inquisidores aí desempenharam um papel
fundamental: determinavam quem era colocado no papel de feiticeira e quem não o era.

8
Ibid., p. 146.
9
Ibid., pp. 164-165.
*
Da mesma forma, a perspectiva médico-psiquiátrica usual para a análise da loucura leva a uma focalização exclusiva no
chamado doente mental e um desprezo correspondente do papel do psiquiatra. Por mais de uma década venho insistindo em
que essa perspectiva é uma parte insuficiente e em parte inteiramente falsa; e que, para compreender a Psiquiatria
Institucional (ou o Movimento de Saúde Mental) precisamos estudar os psiquiatras, não os doentes mentais. A respeito, ver
Thomas S. Szasz, “Science and public policy: The crime of involuntary mental hospitali- zation”, Med. Opin. & Rev., 4: 24-35
(maio), 1968.
Quando apontavam seus dedos para as mulheres, estas eram queimadas; quando para
os judaizantes, estes eram queimados; quando para os protestantes, estes eram
queimados.
Se a feitiçaria tinha suas vítimas principalmente em algumas classes sociais, o
mesmo acontece com a doença mental. Os hospícios dos séculos XVII e XVIII estavam
cheios dos misérables da sociedade; os hospitais públicos dos séculos XIX e XX estão
10
cheios de pessoas pobres e com pouca educação. Por quê? Porque o controle social e a
submissão dessas pessoas é um dos principais objetivos da Psiquiatria Social.
Evidentemente, essa não é a explicação psiquiátrica oficial. Os porta-vozes do
Movimento de Saúde Mental consideram o predomínio de pessoas de classe baixa nos
hospitais psiquiátricos como indicação da elevada incidência de doença mental nas
classes mais baixas; assim, constroem uma justificativa para a busca de casos
psiquiátricos entre tais pessoas. Por exemplo, os autores de um estudo recente sobre
esquizofrenia e pobreza dizem que “O exame superficial dos estudos sobre distribuição
de ‘doença mental’ e perturbação psicológica nos levam a concluir, provisoriamente, que
os estratos sócio-econômicos mais baixos têm menor proporção de indivíduos
mentalmente sadios e maior proporção de indivíduos com problemas psicológicos do
que os outros estratos sociais. (...) Parece razoavelmente seguro concluir que a
esquizofrenia tratada está concentrada nos estratos sócio-econômicos mais baixos dos
11
grandes centros urbanos nos Estados Unidos.” Depois, os autores fazem uma resenha
de oito teorias que procuram explicar essa elevada incidência de esquizofrenia entre os
pobres, apresentam; sua “explicação integrada” pessoal, mas nunca consideram a
possibilidade de que o esquizofrênico de classe social mais baixa seja apenas o bode
expiatório, disfarçado nos rótulos diagnósticos da Psiquiatria moderna das classes média
e alta. Sprenger e Krämer interpretaram, de forma semelhante, o predomínio de
mulheres entre os possuídos pelo Demônio, como indicação da elevada incidência de
feitiçaria entre as mulheres; assim, construíram uma justificativa para que houvesse
12
atenção especial da Inquisição voltada para elas.
Como vimos, a teoria psicopatológica da feitiçaria não é a única existente para dar
conta das caças às bruxas. A opinião de que as feiticeiras eram os bodes expiatórios da
sociedade foi sustentada por Reginald Scot há quatrocentos anos, foi formulada numa
explicação ampla e convincente por Jules Michelet há mais de duzentos anos, e
amplamente documentada a partir de fontes originais por Henry Charles Lea há mais de
cinquenta anos. Se isso é verdade, por que é que os psiquiatras institucionais e os
historiadores de Psiquiatria ignoram essa explicação alternativa e, ao contrário, preferem
a opinião de que as feiticeiras eram mulheres loucas? Um esforço para responder a esta
pergunta ajudará a esclarecer, não apenas a importância prática dessas duas teorias
sobre a mania de feitiçaria, mas também a natureza da Psiquiatria Institucional como um
movimento moderno de massas.

10
August B. Hollingshead e Frederick C. Redlich, Social Class and Mental Illness.
11
Paul M Roman e Harrison M. Trice., Schizophenia and the Poor, pp 14 and 37.
12
Ver capítulo 1.
13
Todas as explicações atendem a uma função prática, estratégica. A teoria
psicopatológica da feitiçaria não é exceção a isso. Seu principal objetivo é autenticar,
como cientistas médicos esclarecidos, os médicos que a apresentaram. O efeito, ainda
que não a intenção dessa explicação, é deixar de lado a explicação alternativa da
feitiçaria, isto é, que as pessoas supostamente feiticeiras não eram mentalmente
doentes, mas bodes expiatórios da sociedade. Em outras palavras, a função básica da
teoria médica da feitiçaria — e, em minha opinião, também sua imoralidade básica —
está no fato de desviar a atenção das práticas persecutórias dos psiquiatras
institucionais, focalizando-a, em vez disso, nas supostas perturbações dos doentes
mentais internados. Nos dois casos, são negadas ou ignoradas as atividades dos
responsáveis pela colocação dos indivíduos nos papéis de feiticeira e doente mental. É
por isso que as interpretações médicas da feitiçaria apresentadas pelos psiquiatras
sistematicamente deixam de reconhecer a ligação entre as caças às bruxas e o anti-
semitismo organizado da Europa do fim da Idade Média e do Renascimento. Isso é
verdade para todos os livros de história da Psiquiatria que vi.
14
Considere-se, como exemplo, a História da Psicologia Médica, de Zilboorg.
Publicada pela primeira vez em 1941, e amplamente aceita como um livro clássico na
historiografia médica e psiquiátrica, é um volume composto por 606 páginas de tipo
pequeno, sendo que as últimas 16 são de índice remissivo. No entanto, esse índice
remissivo não tem um item para “judeus”, “anti-semitismo” ou “Inquisição espanhola”.
O único item para “Espanha” é uma citação elogiosa para o estabelecimento de hospitais
15
psiquiátricos nesse país já no século XV.
16
O livro História da Psiquiatria, de Alexander e Selesnick, não apenas repete e
exagera a interpretação errada que Zilboorg dá das caças às bruxas, mas também deixa
de citar a Inquisição espanhola. Os autores dedicam, de passagem, uma sentença à
perseguição dos judeus: “Esta época [fim da Idade Média] precisou encontrar seus bodes
expiatórios, e a grande perseguição aos judeus aparentemente não foi suficiente para
17
reduzir essa onda.” Alexander e Selesnick não dizem quem perseguiu os judeus, ou por
que o fez. Na realidade, não satisfeitos com reduzir a participação da Igreja em tais
perseguições, os autores na realidade invertem seu papel. Escrevem que “Os séculos XIII
e XIV foram marcados por movimentos psicóticos de massa que aterrorizaram a Igreja,
18
pois não podiam ser controlados.”
No caso de obras como as de Zilboorg e de Alexander e Selesnick, que abrangem
um amplo panorama intelectual e político de quase toda a história da humanidade, tais
omissões falam eloquentemente pelo seu silêncio. É uma premissa desses autores que a

13
Thomas S. Szasz, “The Psychiatric Classification of Behavoir: A Strategy of Personal Constraint”, em Leonard D Eron (arg),
The Classification of Behavior Disorders, pp. 123-170.
14
Gregory Zilboorg, A History of Medical Psychology.
15
Ibid., pp. 591-606.
16
Franz G. Alexander e Sheldon T. Selesnick, The History of Psychiatry.
17
Ibid., p. 66.
18
Ibid., p 67.
Psiquiatria Institucional é uma organização para dar cuidados médicos. Portanto, não é
surpreendente que escolham apenas as provas históricas que possam ser conformadas
de maneira a confirmar essa premissa, e ignorem as que indicam que a Psiquiatria
Institucional é fundamentalmente uma organização para a perseguição dos não-
conformistas; que, além de omitir toda a história do anti-semitismo medieval e sua
ligação com a perseguição de feiticeiras, também omitam o grande capítulo da
19
Psiquiatria do século XIX que se preocupava com a “insanidade masiurbatória”.
Evidentemente, toda história é seletiva. Quero dizer apenas que as histórias
padronizadas da Psiquiatria — ao misturar, como o fazem, a Psiquiatria Institucional, a
Psicanálise e outras intervenções consideradas “psiquiátricas” — borram as diferenças
entre processos que ajudam a sociedade (e muitas vezes prejudicam o paciente) e os que
ajudam o paciente (e às vezes prejudicam a sociedade); depois de ter borrado tais
diferenças, acentuam o valor “terapêutico”, para o chamado paciente, de virtualmente
todos os métodos psiquiátricos. Minha tendência — que já tornei explícita — é que é
preciso separar a Psiquiatria Institucional (que depende de coerção e cuja função é
proteger a sociedade) da Psiquiatria de Contrato (que depende de cooperação e cuja
função é proteger o cliente individual). Por isso, aqui me limitei a escolher o material
significativo para a história da Psiquiatria Institucional.
Em resumo, os psiquiatras e historiadores da Psiquiatria sistematicamente
absolvem a Igreja Católica e as Igrejas protestantes de suas responsabilidades quanto à
intolerância social que os teólogos e os historiadores não-psiquiatras de há muito
20
reconhecem e aceitam. Para demonstrar a validade desta interpretação — e para
mostrar com que coerência os psiquiatras deformam a história das caças às bruxas, para
dar a entender que os inquisidores perseguiram apenas “histéricas”, isto é, mulheres que
se comportavam de maneira estranha — faremos uma rápida resenha da estreita relação
entre a perseguição das bruxas e dos judeus no fim da Idade Média e no Renascimento,
bem como de doentes mentais e de judeus no mundo contemporâneo.
Em nenhuma outra nação medieval os judeus chegaram tão alto na sociedade
quanto na Espanha. Por razões que aqui não nos interessam diretamente, as pressões de
discriminação contra os judeus (e também contra os mouros) aumentaram de maneira
correspondente. Na Espanha católica, como em outras nações cristãs da época e de
períodos posteriores, o desvio com relação à fé de Jesus passou a ser definido como
*
heresia. Por isso, a perseguição aos judeus passou a ser considerada uma sanção
justificada contra eles. Isso colocava os judeus e as feiticeiras na mesma categoria —
como divergentes com relação à conduta e crenças sociais prescritas, isto é, como

19
Ver capítulo 11.
20
Para um relato recente da perseguição dos judeus no século XV, ver Friedrich Heer, Gottes Erste Liebe (O Primeiro Amor de
Deus) e sua apreciação crítica por Rudolf Augstein, Die perfden juden (os judeus heréticos), Der Spiegel, 4 de set., 1967, pp.
120-126.
*
Nas palavras de Lea: “Para avaliar corretamente a posição dos judeus na Espanha, inicialmente é preciso compreender como
eram considerados na Cristandade, durante o período medieval. Já se viu que a Igreja considerava o judeu como despido, por
causa da culpa de seus ancestrais, de todos os direitos naturais, com exceção do direito à vida.” (Henry Charles Lea, A Hisíory of
the Inquisition of Spain, Vol. 1, p. 81.)
heréticos. Isso não é simples analogia. Segundo Trevor-Roper: “Na Hungria medieval, as
feiticeiras eram condenadas, por um primeiro delito, a ficar o dia todo num local público,
21
com um chapéu de judeu.” Se durante o Renascimento se acreditava que apenas os
cristãos poderiam ser feiticeiros, antes do século XVI a feitiçaria era uma acusação
22
frequentemente levantada contra judeus. Segundo a observação de Trevor-Roper:
“Quando consideramos a perseguição da heresia como intolerância social, a diferença
23
intelectual entre uma heresia e outra se torna menos significativa.”
A primeira consequência do anti-semitismo espanhol foi a conversão em massa
dos judeus. As pressões para conformismo social e religioso continuavam a aumentar e,
em 1492, todos os judeus remanescentes foram expulsos da Espanha. O incidente que
levou a isso merece ser mencionado, pois foi quase repetido cinco séculos depois na
Rússia. “A profissão médica era virtualmente monopolizada pelos judeus, e os círculos
reais e aristocráticos dependiam muito dessa raça para conseguir médicos. (...) A
consequência infeliz (...) foi que os médicos judeus foram acusados de envenenar seus
pacientes. Isso foi apresentado como uma razão contemporânea para a expulsão dos
judeus em 1492, o médico real, um judeu, sendo acusado de envenenar o Infante Don
24
Juan, filho de Fernando e Isabel.” Em 1953, Stalin afirmou que um grupo de médicos,
muitos deles judeus, o estavam envenenando e conspirando para matá-lo. Depois da
25
morte de Stalin, a “conspiração” foi qualificada de “invenção”.
Na Espanha, nem a conversão nem a expulsão foram suficientes para resolver o
“problema judeu”. Se o judeu era um estrangeiro, o mesmo ocorria, talvez em menor
grau, com o judeu convertido. Na Espanha, no século XV, permaneciam dezenas de
*
milhares de judeus convertidos, chamados conversos, que continuavam a dominar o
comércio e o capital. Por isso, foi necessário distinguir entre velhos e novos cristãos, e,
mais especificamente, os judeus cuja conversão era “autêntica”, daqueles cuja conversão
era uma questão de utilidade e, secretamente, continuavam a praticar alguns dos rituais
de sua antiga fé. A Inquisição espanhola foi estabelecida, por decreto papal de novembro
de 1478, para exercer essa função de “diagnóstico diferencial”. Sua tarefa era examinar a
autenticidade da conversão dos conversos. Os judaizantes se tornaram os principais
bodes expiatórios da sociedade espanhola. Como exemplo do trabalho da Inquisição
espanhola, podemos lembrar o seguinte caso, descrito por Lea.
Em 1567, uma mulher chamada Elvira del Campo foi processada em Toledo como
judaizante e considerada culpada. Sua ascendência era de conversos e ela se casara com
um cristão velho. “Segundo as testemunhas, que tinham vivido com ela como criadas, ou

21
H R Trevor-Roper, “Witches and witchcraft: An historical essay’’ (I), Encounter, 28: 3-25 (maio), 1967; p. 13.
22
Ibid.
23
Ibid., p. 11.
24
Henry Kamen, The Spanish Inquisition, p. 15.
25
Walt W. Rostow, The Dynamics of Soviet Society, pp. 222-226.
*
Os judeus espanhóis convertidos eram chamados conversos pelos espanhóis, e marranos, a palavra espanhola para porcos,
pelos judeus. Não se sabe quem cunhou a palavra marrano, se judeu ou espanhol, nem por que o nome foi aceito e por que os
judeus ainda chamam marranos os criptojudeus espanhóis. As pessoas acusadas pela Inquisição espanhola de prática secreta
de fé judaica eram denominadas judaizantes. A respeito, ver Max I. Dimont, Jews, God, and History, p. 220.
eram vizinhas, a acusada ia à Igreja e dava todos os sinais externos de ser boa cristã; era
delicada e caridosa, mas não comia carne de porco (...).” Em seu processo, Elvira
reconheceu que não comia carne de porco, mas atribuía isso a recomendação médica
“para uma doença a ela transmitida por seu marido, e que ela desejava encobrir”.
Negava ser judaizante e incessantemente afirmava sua fé na religião católica. Como as
provas contra elas não eram decisivas, o tribunal ordenou que fosse torturada. Depois de
duas vezes torturada, admitiu que “quando tinha onze anos de idade sua mãe lhe tinha
dito para não comer carne de porco e respeitar o sábado. (...)” Por causa dessa confissão,
um dos juízes votou pelo seu relaxamento (isto é, ser queimada em praça pública), “mas
os outros admitiram a reconciliação, com limitações, confisco e três anos de prisão e
sanbenito, devidamente impostos num auto-de-fé de 13 de junho de 1568, mas, em
pouco mais de seis meses, a prisão foi comutada para penitências espirituais, e ela teve
liberdade para sair. Assim, além dos horrores de seu processo, ficou arruinada pelo resto
26
da vida e uma mancha indelével foi colocada em seus parentes e descendentes.”
Esse processo parece tão desumano a Lea, que este não pode acreditar que os
inquisidores fossem sinceros a crença que professavam. Diz Lea: “Por mais triviais que
pareçam as minúcias desse processo, não deixam de ter importância como amostra do
que estava ocupando os tribunais de toda a Espanha, e despertam uma interessante
pergunta: será que realmente os inquisidores acreditavam no que afirmavam na
sentença pública, isto é, que estavam trabalhando para livrar Elvira dos erros e escuridão
de sua apostasia e salvar sua alma? Os aspectos insignificantes de que pode depender o
destino da acusada são exemplificados pela insistência com a qual repisavam a
abstinência de carne de porco, o fato de se recusar a comer bolos amanteigados, no fato
de usar duas panelas para cozinhar, no momento em que mudava sua camisola e
27
preparava o pão.”
O papel decisivo do inquisidor como aquele que escolhia o bode expiatório é
apresentado dramaticamente pelas vítimas que escolhia na Espanha, comparadas às
indicadas no resto da Europa. Na Espanha, como vimos, a Inquisição foi criada
especificamente para distinguir entre católicos e judeus. Por isso, os bodes expiatórios
dos inquisidores espanhóis eram judeus, judaizantes e conversos. Como a necessidade
de bodes expiatórios tinha sido satisfeita por esse grupo, a Inquisição espanhola não
estimulava a perseguição de feiticeiras. Na realidade, frequentemente se opunha à
mania de bruxas, e isso numa época em que as fogueiras de bruxas eram comuns em
todo o resto do continente europeu. Entre os inquisidores espanhóis que combateram a
crença em feitiçaria, nenhum é mais famoso do que Alonzo Salazar de Frias. Em 1610,
depois de pessoalmente pesquisar uma epidemia de feitiçaria em Logrono, Salazar
concluiu que os fenômenos tinham sido provocados pela presença de inquisidores que
procuravam bruxas. Em seu relatório à Suprema, escreve que “Não encontrei sequer
indicações das quais seja possível inferir que um único ato de feitiçaria tenha realmente
ocorrido. (...) Este esclarecimento fortaleceu muito minhas desconfianças anteriores de

26
Henry Charles Lea, A History of the Inquisition of Spain, Vol. 3 pp. 233-234.
27
Ibid., p. 234.
que as provas apresentadas por cúmplices, sem provas externas de outras pessoas, são
insuficientes até para justificar a detenção. Além disso, minha experiência leva à
convicção de que, dos que se valem do Edito da Graça, três quartos, ou mais, falsamente
se acusam e acusam seus cúmplices. Acredito, mais, que viriam livremente para a
Inquisição a fim de desmentir suas confissões se pensassem que seriam recebidos com
bondade e sem castigo, pois temo que meus esforços para induzir isso não tenham sido
28
suficientemente conhecidos.”
As diferenças entre a Inquisição espanhola e a Inquisição romana com relação à
feitiçaria são coerentemente acentuadas pelos historiadores e teólogos, e de forma
igualmente coerente ignoradas pelos psiquiatras e historiadores da Medicina. Não
precisamos procurar as razões para essa omissão. Se as feiticeiras queimadas em praça
pública fossem pessoas mentalmente doentes, e se quase não houve feiticeiras
queimadas na Espanha, o epidemiologista psiquiátrico está diante da necessidade de
explicar por que, com tão grande número de loucos no resto da Europa, havia número
tão pequeno deles na Espanha. Ou será que os judeus, os judaizantes e os conversos
perseguidos pela Inquisição espanhola eram também mentalmente doentes? No
raciocínio dos que sustentam que as feiticeiras eram mentalmente doentes está implícita
a suposição de que uma instituição tão sublime quanto a Igreja Católica Romana não
perseguiria as pessoas se estas nada tivessem de “errado”. Como diz o provérbio, onde
há fumaça, há fogo. O historiador da Psiquiatria adapta isso a seus objetivos e conclui
que onde houve fogo, houve doença mental. Em vez de ser um símbolo da Inquisição, a
*
fogueira se torna um sistema da doença mental das feiticeiras. Apenas dessa maneira
podemos explicar por que os psiquiatras consideram as feiticeiras, e apenas as
feiticeiras, como um grupo de indivíduos medievais que, embora não escolhidos por
médicos, sofriam de doenças (mentais). Uma coincidência notável.
Na Idade Média, evidentemente, havia muitas classes bem identificadas: príncipes
e sacerdotes, comerciantes e mercenários, servos e nobres — e, evidentemente, judeus.
Nenhum desses grupos foi escolhido pelos psiquiatras para um estudo específico, e
nenhum deles foi diagnosticado como sofrendo en masse, de doença mental. Então, por
que as feiticeiras? E por que não os judeus que, como vimos, foram perseguidos da
mesma forma que as feiticeiras e, na realidade, às vezes como se fossem feiticeiros?
A resposta é simples. A perseguição dos judeus (e dos protestantes e católicos) é
clara e inegavelmente uma perseguição religiosa: os judeus (e huguenotes e católicos)
são classificados por termos hoje familiares para nós; por tais razões, não podem ser
facilmente reclassificados, en masse, como doentes mentais. A perseguição de
feiticeiras, de outro lado, apresenta uma imagem muito diferente para a mente
moderna. A feiticeira — por causa do poder semântico dessa palavra, cuja significação
não devemos subestimar — não é vista como praticante de uma religião legítima,
enquanto que os cristãos e judeus são assim considerados; como seu comportamento

28
Ibid., Vol. 4 pp. 233-234.
*
Se fôssemos aplicar essa lógica perversa à história recente, deveríamos considerar a câmara de gás, não como um símbolo da
Alemanha nazista, mas como um sintoma de alguma pandemia incurável entre os judeus europeus.
deriva em parte de fontes pré-cristãs e pagãs, a feiticeira aparece facilmente como uma
figura estranha e bizarra (a não ser para o especialista em história medieval ou Teologia);
por essas razões se presta perfeitamente como um tema de redefinição psiquiátrica,
como insana. Além disso — e a importância dessa consideração final não deve ser
subestimada — de todos os grupos perseguidos na Idade Média e na Reforma, apenas a
feiticeira pode ser psiquiatricamente difamada sem provocar a ira protetora de grupos
contemporâneos. Se os psiquiatras diagnoticassem como loucos os judeus, os
protestantes ou os católicos queimados em praça pública por seus inimigos — os nossos
contemporâneos dessas religiões corretamente considerariam isso como insultos
acrescentados às injúrias. E indignadamente repudiariam esse novo ataque à sua
integridade e dignidade, apresentado por jargão psiquiátrico, mas nesse caso
*
insuficientemente disfarçado por este. As feiticeiras, no entanto, não têm sucessores
organizados ou identificados; não existe um grupo para proteger seu bom nome. Muitas
das coisas que delas fizeram vítimas ideais dos inquisidores medievais também as fazem
vítimas históricas ideais dos psiquiatras contemporâneos.
Ao considerar a feitiçaria como uma posição estigmatizada, imposta às vitimas
por seus inimigos, e não como uma condição ou doença apresentada por indivíduos
isolados ou neles contida, podemos facilmente explicar a incidência diferencial de
feiticeiras — tão perturbadora para a teoria psiquiátrica da feitiçaria — de uma lado e do
outro dos Pirineus. O problema da incidência diferente de doentes mentais
(hospitalizados) entre várias classes sociais no Ocidente moderno desaparece se
consideramos a doença mental como uma posição estigmatizada imposta a cidadãos por
seus opressores, e não como uma doença ou condição apresentada pelos pacientes ou
neles contida. Assim, inquisidores, caçadores de bruxas e seus assistentes legais
raramente eram queimados em praça pública; isso acontecia frequentemente com
pessoas pobres e pouco importantes. De forma semelhante, os psiquiatras, os psicólogos
e os advogados raramente são colocados em hospitais psiquiátricos; isso acontece
frequentemente com pessoas pobres e pouco importantes. Evidentemente, é por isso
também que existem tantas pessoas idosas nos hospitais psiquiátricos públicos. (Em
alguns hospitais, os velhos constituem 40% da população de pacientes.) As pessoas
idosas, principalmente quando são pobres, em nossa sociedade, ocupam uma posição
muito semelhante à das mulheres na sociedade medieval. São as que têm menos
possibilidade de proteger-se contra rotulação médica condenável; se indesejável, são
facilmente classificadas como vítimas de “psicose de senilidade”, ou algum outro tipo de
insanidade, e internadas em hospícios para o “cuidado” e “tratamento” de sua “doença”.
A opinião de que a perseguição de feiticeiras foi estimulada por duas forças, a
Igreja e o povo, e que, sem uma delas, principalmente sem a primeira, não poderia haver
feiticeiras nem caças a elas, é muito bem exemplificada pela experiência espanhola.
Nesse caso, a diferença reside integralmente na Igreja. O povo estava tão disposto a

*
A propósito, é interessante notar que Albert Schweitzer dedicou sua tese médica à tarefa de provar que seus colegas médicos
estavam errados, ao diagnosticar Jesus como um paranóide, e ao estabelecer, pelo que denomina um exame “imparcial” dos
registros históricos, que Jesus era mentalmente sadio. (Albert Schweitzer, The Psychiatric Study of Jesus.)
acreditar em feiticeiras e a persegui-las quanto no resto da Europa. No entanto, a
Inquisição espanhola, como o acentua Williams, “atacou exatamente os métodos que,
em quase todos os outros lugares, foram adotados. Proibia que os juízes apresentassem
perguntas que inevitavelmente levariam a determinadas respostas; proibia o que era
recomendado pelo Malleus — as falsas promessas; exigia que os sermões explicassem
como a destruição das colheitas era devida a mau tempo, e não às feiticeiras;
continuamente impunha como sentenças apenas a abjuração mais formal; e, finalmente,
instruía tão bem os tribunais que, antes de 1600, uma mulher que por duas vezes se
29
acusou de ter tido relações carnais com um incubo foi nas duas vezes absolvida.”
Fora da península ibérica, a tarefa do inquisidor era, pelo menos em princípio,
semelhante à de seu colega espanhol; também ele devia distinguir entre os cristãos
autênticos e os falsos ou heréticos. No entanto, o conceito de heresia era mais flexível na
Espanha do que para lá dos Pirineus. Nas partes católicas da Europa, o herético poderia
ser judeu, feiticeira ou protestante; nas partes protestantes, poderia ser judeu, feiticeira
ou católico. Nas guerras religiosas, quando territórios católicos e protestantes se
opunham, Trevor-Roper observa que “era natural que as feiticeiras fossem encontradas
em ilhas protestantes como Orléans ou Normandia (e) que por volta de 1609 toda a
30
população da Navarra ‘protestante’ fosse considerada de feiticeiras”. Era também
natural que, “Quando o Bispo Palladius, o reformador da Dinamarca, visitou sua diocese,
tivesse declarado que aqueles que usavam preces ou fórmulas católicas eram
31
feiticeiros.”
Existem outros exemplos de grupos de pessoas definidos como heréticos — ou
“degenerados”, ou mentalmente doentes. Em 1568, a Inquisição espanhola declarou que
32
toda a população da Holanda era herética e a condenou à morte. Os nazistas
declararam “racialmente degenerados” grupos inteiros de pessoas que desejavam
destruir — principalmente judeus, poloneses e russos. Nós, nos Estados Unidos,
declaramos como mentalmente doentes en masse vários outros grupos — viciados em
33
drogas, homossexuais, pessoas com preconceitos anti-semitas e contra os negros.
Herbert Marcuse, um dos principais ideólogos e teóricos da Nova Esquerda, diagnostica
como “insana” toda a sociedade norte-americana: “...na medida em que essa sociedade
dispõe de recursos muito maiores do que em qualquer outra época anterior, e ao
mesmo tempo deforma e desperdiça tais recursos mais do que em qualquer outra época
34
anterior, digo que essa sociedade é insana. (...)”
O médico moderno, principalmente quando serve a uma ideologia racista ou
psiquiátrica, e não a um paciente individual, pode ser colocado numa tarefa semelhante

29
Charles Williams, Witchcraft, p. 249.
30
H. R. Trevor-Roper. “Witches and witchcraft: An historical essay” (II). Encounter, 28 13-34 (junho), 1967; p. 14.
31
Ibid.
32
Herbert J. Muller, Fteedom in the Western World, p. 173.
33
Ver cap. 12 e 13.
34
Herbert Marcuse, citado em “Democracy has/hans’t a future ... a present”, New York Times Magazine, 26 de maio, 1968, pp.
30-31, 98-104; p. 102.
de escolha de bode expiatório. Por exemplo, o médico nazista era às vezes chamado a
distinguir entre arianos autênticos e arianos falsos, isto é, judeus. Em seu romance
documentário a respeito da ocupação alemã de Kiev, Kuznetsov conta a história de um
soldado russo feito prisioneiro e que era suspeito de ser judeu: “Foi levado a uma sala de
conferência, onde os médicos alemães, o examinaram para procurar traços judaicos, mas
35
seu diagnóstico foi negativo.” Esse médico do século XX que procura traços judaicos
pouco se diferencia de seus colegas do século XIX que procuravam estigmas histéricos,
*
ou de seus colegas do século XVI que procuravam as marcas de feiticeira. De forma
semelhante, o médico psiquiatra contemporâneo muitas vezes é chamado a distinguir
entre pacientes autênticos, isto é, pessoas que sofrem de doenças físicas — e doentes
falsos ou heréticos, isto é, pessoas que sofrem de doenças mentais.
Certamente, aquele que escolhe o bode expiatório — inquisidor ou psiquiatra —
não trabalha num vácuo social. A perseguição de um grupo minoritário não é imposta a
uma população resistente, mas, ao contrário, surge de amargos conflitos, sociais. Apesar
disso, a mitologia orientadora de um movimento desse tipo é usualmente inventada por
alguns poucos indivíduos ambiciosos. Uma vez inventada, a mitologia se difunde pela ala
propagandista do movimento. Nas palavras de Lea: “A mania de feiticeiras era
fundamentalmente uma doença da imaginação, criada e estimulada pela perseguição da
feitiçaria. Sempre que o inquisidor ou magistrado civil passava a destruí-la pelo fogo.
uma colheita de feiticeiras crescia nas suas pegadas. Cada perseguição ampliava o seu
círculo, até que quase toda a população podia participar do processo, seguido por
36
execuções não mais contadas pelas dezenas, mas pelas centenas.”
Trevor-Roper tem a mesma opinião: “Todas as provas mostram claramente que a
nova mitologia [da feitiçaria] devia seu sistema inteiramente aos próprios inquisidores.
Assim como os anti-semitas construíam, a partir de minúcias isoladas de escândalo, sua
mitologia sistemática de assassinato ritual, poços envenenados e a conspiração mundial
dos Sábios de Sião, também os caçadores de bruxas construíam sua mitologia
sistemática do reino de Satã e das cúmplices do Satã, a partir de tolices de credulidade
camponesa o histeria feminina; e uma mitologia, tal como a outra (...) [cria] suas provus
37
e [é] aplicável num campo muito mais amplo que seu ponto original.” O mesmo pode
ser dito a respeito da mitologia da doença mental: deve todo o seu sistema aos
*
psiquiatras.
Em resumo, a feiticeira e o judeu no passado, o louco e o judeu hoje, representam
dois aliados muito próximos — que às vezes não podem ser separados, mas às vezes são

35
Anatoly Kuznetsov, Babi Yar, p. 236.
*
Segundo Guaccius, caçador de bruxas do Renascimento, a marca de feiticeira, imposta pelo demônio, é destinada a imitar a
circuncisão, a marca física que identifica a raça satânica dos judeus. (Leschnitzer, The Magic Background of Modem Anti-
Semitism, p. 223.)
36
Lea, Inquisition of Spain, Vol. 4, pp. 206-208.
37
Trevor-Roper, (II), p. 15.
*
No capítulo 5, indiquei as origens dessa mitologia psiquiátrica; no capítulo 8 rastrearei de modo mais completo sua evolução;
nos capítulos 9-13 discutirei e documentarei sua história recente e sua função atual. Ver também Thomas S. Szasz, The Myth of
Mental Illness.
claramente distintos — inimigos da sociedade. Antes de seu delito, a feiticeira medieval
era um membro integral da sociedade; seu crime foi a heresia — isto é, rejeição da ética
dominante — e por isso foi castigada. O judeu medieval, ao contrário, nunca foi um
membro aceito da sociedade. Às vezes, quando se acreditava que sua presença ajudava a
sociedade, era tolerado como visita; em outros momentos, quando se acreditava que
sua presença ameaçava a comunidade, era perseguido como inimigo. O que a feiticeira
cristã e a vítima judaica tinham em comum era que a sociedade em que viviam os
considerava como seus inimigos e procurava destruí-los.
A mesma relação existe entre o louco contemporâneo e o judeu. Antes de sua
doença mental, o doente mental (não-judeu) é um membro da sociedade; seu crime é a
loucura — isto é, rejeição da ética secular dominante — e por isso é castigado. O judeu
contemporâneo, ao contrário, não é uma parte integralmente aceita da sociedade. Um
judeu entre cristãos (ou, pior, entre ateus, como na Rússia soviética) é considerada como
um estranho; às vezes, porque se acredita que sua presença é útil para o grupo, é
tolerado; outras vezes, como se acredita que sua presença é prejudicial para o grupo, é
**
perseguido. Ainda aqui, o que o louco e o judeu têm em comum é o fato de que a
sociedade em que vivem os considera como inimigos e, por isso, procura destruí-los.
Além disso, a tendência popular para perseguir judeus e loucos tem sido estimulada por
38
técnicas semelhantes: durante séculos, os cristãos aprenderam a desprezar os judeus;
e desde o seu nascimento como especialização médica, no século XVII, os médicos
39
psiquiatras ensinaram o desprezo pelos doentes mentais. No entanto, aqui termina a
semelhança. Afinal, a instrução religiosa cristã não fingia ter como seu objeto o cuidado
com os judeus, enquanto que a “educação para saúde mental” finge ter como seu objeto
o cuidado com os doentes mentais. Assim, oficialmente, a história da Psiquiatria é
apresentada como se fosse a história do cuidado e do tratamento dos insanos; na
realidade, é a história de sua perseguição.
Em resumo, o efeito, se não a intenção, da interpretação psiquiátrica moderna da
mania de feitiçaria é a degradação, como insanos, de milhões de homens, mulheres e
crianças inocentes; o afastamento de responsabilidade, como virtual não-participante,
da Igreja Católica Romana e de seu braço executivo, a Inquisição, pelo pogrom contra os
judeus, heréticos e feiticeiras, bem como a desculpa semelhante das Igrejas protestantes
e seus principais porta-vozes que defenderam a guerra santa contra a feitiçaria; e, em
último lugar, mas não menos importante, a exaltação, como terapeuta e cientista
médico, do psiquiatra — o único possuidor de uma compreensão “esclarecida” e

**
O perigo especifico que o judeu representa para a comunidade acompanhou as mudancas historicas no que a sociedade
valoriza. Na Idade Media, o judeu era um traidor da cristandade; seus ancestrais, segundo se acreditava, mataram Jesus, e ele
continuava a rejeitar a fe verdadeira e a autoridade da Igreja. No mundo moderno, o judeu e um traidor da Patria e se opoe a
ideologia politica dominante. Dreyfus simboliza o judeu como traidor da patria. A partir da Revolucao Sovietica, o judeu surgiu
como o inimigo prototipico do capitalismo e do comunismo. No Ocidente, a ideologia comunista e vista como inspirada pelos
judeus, considerando-se Marx e Trotsky como seus simbolos principais. No Oriente, a ideologia capitalista e vista como
inspirada pelos judeus, considerando-se os Rothschild e outros “banqueiros judeus” como seus principais simbolos.
38
Jules Isaac, The Teaching of Contempt.
39
Michel Foucault, Madness and Civilization.
“científica” da feitiçaria e dos métodos médicos necessários para o controle dos perigos
40
à saúde pública que são apresentados pelas diferenças entre seres humanos.
Portanto, o fim de uma ideologia é o início de outra; quando termina a heresia
religiosa, começa a heresia psiquiátrica; quando termina a perseguição da feiticeira,
começa a perseguição do louco.

40
Ver Thomas S. Szasz, “The destruetion of differences”, New Republic, 10 de junho 1967, pp. 21-23.
8
OS MITOS DA FEITIÇARIA
E DA DOENÇA MENTAL

Ficou muito fácil ver que os homens infelizes do passado


viviam de acordo com crenças erradas e até absurdas; assim,
podemos não ter um respeito adequado por eles, e esquecer
que os historiadores do futuro indicarão que também nós
vivemos de acordo com mitos.
1
Herbert J. Muller

A interpretação psiquiátrica da feitiçaria padece de muitos erros. Entre eles, não é menor
o de afirmar que Johann Weyer descobriu que as feiticeiras eram mulheres mentalmente
doentes. Virtualmente todos os estudiosos contemporâneos da história da Psiquiatria
aceitaram essa opinião, popularizada por Zilboorg, que rastreia o nascimento da
Psiquiatria até o fim da mania de feiticeiras, e considera Weyer como o Colombo da
loucura. A seguinte caracterização de George Mora pode servir de exemplo: “Johann
Weyer hoje [é] corretamente considerado como o pai da Psiquiatria moderna. (...) Mas
Weyer devia permanecer isolado, um gigante da Psiquiatria, praticamente desconhecido
2
até o início de nosso século. (...)
Esse tipo de afirmação dá a impressão de que o historiador da Psiquiatria é uma
pessoa socialmente neutra, que descobre “fatos” históricos — quando, na verdade, é um
propagandista psiquiátrico, que ativamente modela a imagem de sua disciplina. Weyer
tem sido canonizado com o pai da Psiquiatria porque foi um dos poucos médicos que se
opuseram à perseguição das feiticeiras. Ao considerá-lo como seu fundador, a Psiquiatria
Institucional tentou, c em grande parte conseguiu, esconder suas práticas opressivas
atrás de uma fachada de retórica liberadora. É significativo que Weyer tenha sido
“descoberto” como o “verdadeiro” pai da Psiquiatria só no século XX, e por psiquiatras
norte-americanos, isto é, quando e onde a Psiquiatria Institucional se tornou uma força
social básica no mundo ocidental.
No entanto, Weyer não descobriu a loucura das feiticeiras. Certamente, merece
crédito por se opor à Inquisição, a principal instituição de opressão de seu tempo. Mas
assumir uma posição de dignidade humana não é o mesmo que propor uma nova teoria

1
Herbert J. Muller, Freedom in the Western World, pp. 40-41.
2
George Mora. “From Demonology to the Narrenturm”, em lago Galdston (org), Historie Derivations of Modem Psychiatry, pp.
41-73; p. 50.
ou fazer uma descoberta empírica. A opinião de que a doença mental não é uma doença,
e de que o hospício é uma prisão, e não um hospital, também não é minha; é apenas
uma nova ordenação de intuições e conhecimento de há muito disponíveis aos homens,
*
tanto fora quanto dentro da Medicina.
A perseguição de feiticeiras e de loucos é a expressão de intolerância social e uma
busca de bodes expiatórios. Os que se opõem a esse fanatismo e a essa opressão não
professam necessariamente crenças revolucionárias nem propõem verdades novas. Ao
contrário, sua heresia muitas vezes reside em seu conservantismo, isto é, em sua
insistência na validade de ideias e valores de há muito estabelecidos e aceitos. Em A
Peste, Camus apresenta isso da seguinte forma: “Mas repetidamente chega um
momento na história em que um homem que se atreve a dizer que dois e dois são igual a
3
quatro é castigado com a condenação à morte.”
Parece-me que sustentar que aquilo que denominamos doença mental não é uma
doença é como afirmar que dois e dois são quatro; e que sustentar que a hospitalização
psiquiátrica involuntária é uma prática imoral é como sustentar que três e três são seis.
Aceito essas opiniões desde que, como o diz John Stuart Mill em The Subjection of
4
Women; “Formei qualquer opinião a respeito de problemas sociais e políticos (...)
Por milênios, foi conveniente para os homens acreditar que as mulheres eram
inferiores, seres semi-humanos que precisavam ser subjugados e cuidados. Os homens
sãos, por tempo quase igualmente tão longo, consideraram os homens insanos da
mesma forma. Como a opressão das mulheres pelos homens parecia natural, era difícil,
observou Mill, afastar essa opinião através de argumentos racionais: “Na medida em que
uma opinião está fortemente enraizada nos sentimentos, ganha estabilidade, em vez de
5
perdê-la, quando há um peso preponderante de argumentos contra ela.” Como hoje a
opressão de pacientes insanos por psiquiatras sãos nos parece igualmente natural, a
correção desse sistema dificilmente pode ser afastada apenas por argumentos racionais.
Talvez a melhor maneira de compreender o caráter mítico de algumas crenças
seja examinar sua história. Por que o homem medieval quis acreditar na feitiçaria e
procurou melhorar sua sociedade através da salvação compulsória das feiticeiras? Por
que o homem contemporâneo prefere acreditar no mito da doença mental e procura

*
Aqui reside uma diferença fundamental entre a ciência natural e a ciência social. Na primeira, falamos de uma nova descoberta
quando algo autenticamente novo — usualmente tanto num sentido cognitivo quanto num sentido prático — se acrescenta ao
conhecimento que o homem tem do mundo; a descoberta (física) da radioatividade é um exemplo disso. Nas ciências humanas,
no entanto, muitas vezes consideramos que há descoberta quando o homem ultrapassa a mitologia de sua sociedade ou cultura, e
“redescobre” algo que já fora conhecido por épocas anteriores; a “descoberta” (psicanalítica) da sexualidade infantil é um
exemplo disso. Certamente, tais progressos, que consistem fundamentalmente em destruir os mitos das crenças predominantes,
também acrescentam algo aparentemente novo ao conhecimento que o homem tem do mundo. No entanto, existe uma importante
diferença entre esses dois tipos de inovação científica. A primeira, da ciência natural, exige um avanço cognitivo que leva a novo
território; a segunda, da ciência social, auto-emancipação dos mitos dominantes do grupo a que a pessoa pertence, o que
frequentemente leva a sabedoria muito antiga. Talvez essa seja a razão pela qual o estudo das Ciências Sociais, principalmente
da história, muitas vezes nos deixa a impressão de que, a respeito das relações humanas, tudo o que é importante já era
conhecido e já foi dito antes; de outro lado, a história da ciência e da tecnologia provoca a impressão exatamente oposta.
3
Albert Camus, The Plague, p. 121.
4
John Stuart Mill, The Subjection of Women, p. 219.
5
Ibid.
melhorar sua sociedade através do tratamento compulsório de doentes mentais? Nesses
dois fenômenos de massa estamos diante de dois fenômenos interligados: um mito
orientador (de feitiçaria e de doença mental) e uma instituição social poderosa (a
Inquisição e a Psiquiatria Institucional); o primeiro dá a justificação ideológica; o
segundo, os meios práticos para a ação social. Tudo o que eu disse até agora neste livro,
e principalmente no capítulo 4, foi um esforço para responder a essas perguntas. Como
na discussão até aqui apresentada, acentuei as práticas institucionais e não as
justificações ideológicas (mitológicas), neste capítulo irei concentrar meus argumentos
no que os homens acreditam e nas imagens que usam para exprimir sua crença, e não
naquilo que ostensivamente procuram o nos meios que empregam para consegui-lo.
Como o demonstrou a pesquisa histórica, muito antes de Weyer os homens
tinham dúvidas a respeito da existência de feiticeiras; na realidade, muito antes do
iluminismo alguns governantes mais sábios chegaram a aprovar leis que proibiam que as
feiticeiras fossem maltratadas. Por exemplo, já no século VIII, São Bonifácio, o apóstolo
6
inglês na Alemanha, declarava que a crença em feitiçaria “não era cristã”. Essa é uma
opinião notavelmente esclarecida, na medida em que esquece o mandato bíblico — “não
7
deixareis viver uma feiticeira” — século mais tarde invocado para justificar as caças às
bruxas. Também no século VIII, na Saxônia recém-convertida, Carlos Magno decretou a
pena de morte, não para as feiticeiras, mas para quem quer que queimasse supostas
feiticeiras. Na Hungria no século XI, as leis do Rei Salomão não tomavam conhecimento
8
das feiticeiras, “uma vez que não existem”. Quinhentos anos depois, Weyer, embora
protestando contra os excessos dos caçadores de bruxas, estava certo da existência real
das feiticeiras.
É chocante e, ao mesmo tempo, apaziguador, verificar que durante o
Renascimento, quando o conhecimento floresceu e a ciência experimental nasceu, foram
esquecidas as leis contra as caças às bruxas criadas na Idade Média, e a antiga
“ignorância” a respeito de feiticeiras foi “corrigida” por novos conhecimentos científicos
e teológicos. Quando o Malleus foi publicado em 1486, trazia em sua página de rosto a
seguinte epígrafe: “Haeresis est maxima opera maleficarum non credere” (“Não acreditar
9
na feitiçaria é a maior das heresias”). E, como um doutor da Sorbonne escreveu em
1609, o sábado das bruxas era um “fato objetivo, descrido apenas pelos que não são
10
bons da cabeça”.
Embora a crença na feitiçaria fosse difusa no fim da Idade Média e no
*
Renascimento, uma leitura cuidadosa do Malleus sugere que muitos duvidavam dos

6
H. R. Trevor-Roper, “Witches and witchcraft: An historical essay” (I), Encounter, 28: 3-25 (maio), 1967; p. 4.
7
Êxodo, 22: 18.
8
Trevor-Roper, p. 4.
9
Ibid., p. 15.
10
Ibid.
*
Ainda em 1775, Sir William Blackstone, o Pai do Direito Inglês, dizia que “negar a possibilidade e, mais ainda, a existência
real da feitiçaria e da bruxaria é, ao mesmo tempo, negar a palavra revelada de Deus (...) e, em si mesma, a coisa é uma verdade
testemunhada por todas as nações do mundo.” (Citado por Henry Charles Lea, A History of the Inquisition of Spain, Vol. 4, p.
247). Logo a crença começou a ser discutida. No entanto, essa mudança não representou um avanço real da mente humana
males atribuídos às feiticeiras, bem como dos métodos utilizados pelos inquisidores. No
entanto, não há provas diretas de que os homens duvidassem da realidade da feitiçaria
ou da existência de feiticeiras. Evidentemente, uma manifestação explícita dessa dúvida
equivaleria a uma sentença de morte auto-imposta por heresia.
Os homens no poder não exortam seus súditos a aceitar ideias em que já creem.
Portanto, se existe necessidade de impor crença e de ameaçar por descrença, podemos
inferir que o súdito não tem fé ou está assaltado por dúvida. Quando as autoridades
clericais advertem que a feitiçaria é real e que as feiticeiras são perigosas, e que
acreditar em outra coisa é pecado grave, eu quando as autoridades seculares declararam
que a doença mental é real (“como qualquer outra doença...”), e que o ponto de vista
contrário é um erro grave — podemos supor que nem os que exortam nem os que são
exortados estão convencidos da verdade da afirmação. Na realidade, esse tipo de
“educação”, sustentada por ameaça e força, revela o valor estratégico da proposição a
11
ser aceita. Se o leitor contemporâneo não se lembrar dessa suposição da propaganda
da Inquisição, pode não notar — principalmente porque aceita, como indiscutível, seu
cepticismo a respeito da feitiçaria — as repetidas citações, encontradas no Malleus, a
pessoas que não acreditam em feitiçaria. Dessas advertências infiro que a dúvida quanto
à realidade da feitiçaria, no fim do século XV na Europa, era muito mais predominante do
que os historiadores modernos, que em vão procuram declarações manifestas de tais
opiniões, nos levam a crer.
A segunda seção da Parte I do Malleus é intitulada “Onde se Discute se é Heresia
Sustentar que as Bruxas Existem”. A apresentação peculiarmente invertida da frase deve
ser notada. Sprenger e Krämer discutem se a crença em feitiçaria é um erro — apenas
para concluir que não acreditar nisso é um grave pecado. “Pode-se perguntar se as
pessoas que sustentam que as bruxas não existem devem ser consideradas como
12
heréticas notórias.” Respondem afirmativamente. Isso equivaleria a vermos os
psiquiatras contemporâneos perguntarem se existem doentes mentais, e responderem
que acreditar coisa diferente é um erro grave e uma ofensa grave contra a profissão
psiquiátrica. Como eu disse que a doença mental é um “mito”, precisamente esse
13
argumento foi apresentado por vários psiquiatras que criticam minha opinião.
Principalmente os sacerdotes e inquisidores não devem duvidar da realidade da
feitiçaria. Já é um grande mal, dizem Sprenger e Krämer, que o leigo seja “ignorante”
quanto à feitiçaria; “os que precisam curar as almas [sic] não podem alegar uma
ignorância invencível, nem essa ignorância específica, como a denominam os filósofos,

Williams observa amargamente que “Os homens ficavam aterrorizados com a possibilidade de se comportar de maneira diferente
dos outros e aqueles que uma vez acreditaram em feiticeiras agora descrêem delas exatamente pela mesma razão — porque todo
o mundo faz isso”. (Charles Williams, Witchcraft, p. 301.) Isso poderia dar o que pensar a todos os que aceitam a crença popular
em doença mental.
11
Ver Thomas S. Szasz, “Criminal insanity: Fact or strategy?”, New Republic, 21 de Nov. 1964 pp. 19-22; e The Psychiatric
Classification of Behavior: A Strategy of Personal Constraint”, em Leonard D. Eron (org.), The Classification of Behavior
Disorders, pp. 125-170.
12
Jacob Sprenger e Heinrich Krämer, Malleus Maleficarum, p. 8.
13
Ver, por exemplo, M. Ralph Kaufman, “Psychiatry: Why medicai or social Model?”, A M.A. Arch. Cen Psychiat., 17: 347-360
(sept.), 1967; pp. 347-348.
que pelos autores do Direito Canônico e pelos Teólogos é denominada Ignorância do
14
Fato.” Da mesma forma, aos leigos é permissível ser “ignorante” quanto aos fatos da
doença mental; os médicos e psiquiatras, no entanto, devem apresentar obediência
completa a esse conceito e a suas implicações práticas (por exemplo, limitar o
tratamento da doença mental aos médicos e justificar o internamento dos insanos como
*
medida médica).
Em outra passagem, Sprenger e Krämer descrevem a feitiçaria com termos
extraordinariamente modernos: atribuem a seguinte opinião — que consideraríamos
correta — a muitos de seus contemporâneos, e declaram que é uma heresia sustentá-la.
“E o primeiro erro que eles [os teólogos] condenam”, escrevem os autores, “é o dos que
dizem que não há feitiçaria no mundo, mas apenas na imaginação de homens que,
através de sua ignorância de causas ocultas que nenhum homem ainda compreende,
atribuem alguns efeitos naturais à feitiçaria (...). Os Doutores da Igreja condenam esse
erro como pura falsidade (...). Santo Tomás a impugna como heresia real (...) portanto,
15
esses merecem ser suspeitos de heresia.”
Apesar das condenações do Malleus e dos inquisidores, houve homens corajosos
e honestos que, durante os muitos séculos de perseguição às feiticeiras, apresentaram
dúvidas quanto à culpa das vítimas e condenaram os métodos de seus acusadores.
Thomas Ady, Cornelius Agrippa, Salazar de Frias, Friedrich von Spee e Johann Weyer
devem ser mencionados entre os críticos mais conhecidos das caças às feiticeiras.
16
Salazar, inquisidor espanhol a cujo trabalho já nos referimos anteriormente, foi, mais
que qualquer outro, responsável, pela inexistência de perseguição às feiticeiras na
Espanha. Examinou, com mente aberta, as acusações de feitiçaria e, em 1611, concluiu
“que aproximadamente mil e seiscentas pessoas foram erradamente acusadas. Em certo
local, encontrou estórias de um Sábado de feiticeiras organizado no local em que seus
secretários tinham passado a noite. Fez com que mulheres que confessavam relação
carnal fossem fisicamente examinadas por outras mulheres; verificou que eram
17
virgens.”
Thomas Ady foi um dos principais críticos das caças às feiticeiras. Seu livro A
Candle in the Darh, (Uma Vela na Escuridão) 1655, foi em vão citado pelo Reverendo
18
George Burroughs em seu processo em Salem. O ataque de Ady à mania de bruxas
tinha duas bases. De um lado, tentava mostrar que as provas contemporâneas de
feitiçaria não se baseavam na Bíblia. Ady pergunta: “Onde está escrito no Velho ou no

14
Sprenger e Krämer, p. 9.
*
Robert H. Felix, ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (dos Estados Unidos) e diretor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Saint Louis, afirma claramente que “Nós [psiquiatras] lidamos realmente com doenças da mente". (O grifo é do
original.) Robert H. Felix, “The image of the psychiatrist: Past, present and future”, Amer. J. Psychiat., 121: 318-322 ([out],
1964, p. 320). A crítica a essa posição é considerada heresia psiquiátrica. Ver, por exemplo, Frederick G. Glaser, “The
dichotomy game: A further consideration of the writings of Doctor Thomas Szasz”, Amer. J. Psychiat., 121: 1069-1074 (maio),
1965; p. 1073.
15
Ibid., p. 56.
16
Ver capítulo 7.
17
Charles Williams, p. 252.
18
Rossell Hope Robbins Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 19.
Novo Testamento que uma feiticeira é uma assassina, ou que tem o poder de matar por
feitiço, ou provocar sofrimento com qualquer doença ou enfermidade? Onde está escrito
19
que as bruxas têm diabinhos que sugam seu corpo?” E continua dessa forma, num
esforço para eliminar a autoridade bíblica na perseguição às feiticeiras.
De outro lado, Ady também denunciou o exame de supostas bruxas através de
métodos cruéis e fraudulentos: “Qualquer homem informado e livre de preconceito que
examine apenas as confissões comumente apresentadas verá com que ciladas e
sofismas, com que ameaças e mentiras, com crueldade pura e simples tais confissões são
arrancadas de pessoas inocentes e pobres, e as monstruosas adições e multiplicações
são depois inventadas para fazer a questão parecer verdadeira, embora continue a ser
20
nitidamente falsa.” O fato de tais argumentos não terem sido aceitos mostra o papel
secundário que a razão desempenha na aceitação ou rejeição das crenças que motivam
os movimentos de massa. Além disso, na Espanha, onde a perseguição de feiticeiras
sofreu a oposição das autoridades eclesiásticas, a mania de feiticeiras foi detida sem tais
argumentos. Tais fatos indicam o papel determinante da autoridade e do poder no
desenvolvimento e na interrupção de tais movimentos. A Inquisição espanhola
conseguiu deter as caças às feiticeiras, enquanto que os indivíduos que combatiam a
Inquisição romana e a mania protestante de feiticeiras não conseguiram fazê-lo.
Por exemplo, em 1640 a Inquisição espanhola “suspendeu o caso de Maria Sanz
Trinqueros, contra a qual havia testemunho de feitiçaria, e, em 1641, dispensou com
uma repreensão Maria Alfonsa de la Torre, acusada de matar gado, embora as
testemunhas jurassem que a tinham visto à meia-noite, cavalgando uma vassoura sobre
um campo de centeio, com um ruído, como se estivesse acompanhada por uma multidão
21
de demônios”. A partir de casos desse tipo, Lea infere que “...é evidente que a
Inquisição tinha chegado à conclusão de que a feitiçaria era virtualmente uma ilusão, ou
que o testemunho de acusação era falso. Isso não podia ser abertamente proclamado; a
crença era sustentada de há muito e estava de há muito afirmada pela Igreja para que
22
pudesse ser considerada falsa...” A ideia de que a doença mental não existe, a não ser
talvez como mito, também não pode ser abertamente reconhecida. A doutrina de que a
doença mental é uma doença está muito firmemente estabelecida pela ciência para que
possa ser considerada falsa. O prestígio e a tradição da profissão médica ficam como
obstáculos para a rápida correção desse erro monumental.
Obediente à vida das organizações burocráticas, a Inquisição espanhola nunca
admitiu que quaisquer de seus ensinamentos tivessem sido falsos ou que suas práticas
tenham sido equivocadas. Como o indica Lea: “Não negou a existência de feitiçaria, nem
modificou os castigos para o crime... (em vez disso) praticamente tomou impossível a
prova, o que desestimulava as acusações formais, ao mesmo tempo que sua proibição de
processos preliminares pelos comissários e pelos funcionários locais, seculares e

19
Ibid.
20
Geoffrey Parrinder, Witchcraft, p . 82.
21
Henry Charles Lea, A Hiltory of the Inquisition of Spain, Vol. 4 p. 239.
22
Ibid.
eclesiásticos, foi eficiente para impedir o aparecimento de epidemia de feitiçaria. Na
medida em que posso saber pelos registros de que disponho, os casos foram muito
23
pouco numerosos (...) depois de 1610.”
Talvez as ideologias da feitiçaria e da loucura possam ser colocadas em relevo
ainda mais nítido se focalizarmos os ideais morais e as imagens características de suas
épocas. No século XIII, o símbolo da nobreza é o cavaleiro, o da depravação, a feiticeira
negra; a motivação bondosa é cavalheiresca, a maldosa é satânica. Essas imagens
corporificam e exprimem o ódio sexual e destrutivo à mulher; o senhor, o símbolo do
bem, é homem; a feiticeira, o símbolo do mal, é mulher. Ao mesmo tempo, a batalha
entre os sexos, a traição entre os nobres, a opressão dos pobres pelos ricos — nada disso
é apresentado diretamente; ao contrário, a realidade social é apresentada como se fosse
um sonho em que os símbolos significassem os seus oposto. A mulher não é degradada;
é exaltada. Os nobres não são brutais e traiçoeiros; são refinados e cavalheirescos.
Huizinga assim apresenta a situação:
Froissart, autor de uma epopéia super-romântica de cavalaria, Meliador, narra
continuamente traições e crueldades, sem tomar consciência da contradição entre suas
concepções gerais e o conteúdo de sua narrativa. Molinet, em sua crônica, de vez em
quando lembra sua intenção cavalheiresca, e interrompe sua descrição realista dos
acontecimentos a fim de expandir-se numa torrente de palavras elevadas. A concepção da
cavalaria constituía para esses autores uma espécie de chave mágica, com a ajuda da qual
explicavam para si mesmos os motivos da política e da história. Como a imagem confusa da
história contemporânea era excessivamente complicada para sua compreensão,
24
simplificavam-na, por assim dizer, pela ficção da cavalaria como uma força motivadora...
Não é difícil encontrar a razão para essas imagens. Ao procurar explicações para
acontecimentos, e sobretudo para suas ações, os homens sempre tentam lisonjear-se ou
lisonjear seus superiores. Como, na Idade Média, a poesia, a literatura e a história eram
escritas pelo opressor ou para este, não é surpreendente ouvirmos tanta coisa a respeito
da glória dos príncipes e do cavalheirismo dos senhores.
Com essa ficção tradicional [observa Huizinga], conseguiram explicar para si mesmos, da
melhor forma possível, os motivos e o curso da história, então reduzida a um espetáculo de
honra dos príncipes e virtude dos senhores, a um jogo nobre com regras heróicas e
edificantes. Como um princípio de historiografia, esse ponto de vista é muito pouco
significativo. A história assim concebida se torna um sumário de proezas de armas e de
cerimônias. Os historiadores par excellence serão arautos e reis em armas — assim o pensa
Froissart — pois são as testemunhas desses atos sublimes; são epecialistas em questões de
* 25
honra e de glória, e é para registrar a honra e a glória que se escreve a história.

23
Ibid., p . 240.
24
Johan Huizinga, The Waning of the Middle Ages, p. 68.
*
O que Huizinga diz aqui a respeito da Idade Média aplica-se, mutatis mutandis, à nossa época. Na Idade Média, o historiador
precisava ser um especialista em “questões de honra e glória”; hoje, precisa ser especialista em questões de saúde mental e
maturidade emocional. Na Idade Média, a história era escrita para “registrar honra e glória”; hoje, é escrita para registrar saúde
mental e estabilidade emocional. As provas e a observação são subordinadas à atribuição de virtude cristã ou saúde mental aos
heróis, pecado satânico ou doença mental ao vilões. Para um exemplo, desse tipo de historiografia contemporânea, ver Meyer A.
Zeligs, Friendship and Fratricide.
25
Ibid., p. 69.
Embora a mentalidade do homem moderno possa ser mais adiantada do que a de
seu ancestral medieval, mostra a mesma credulidade com relação à autoridade e a
mesma tendência para explicar situações ou acontecimentos complicados por um único
motivo. Se a Idade Média teve seus tipos ideais de bem e mal, também temos os nossos.
Seus tipos ideais eram o cavaleiro armado e a feiticeira negra. Os nossos são o médico
com avental branco e o psicótico perigoso. Eles tinham Sir Lancelot; nós temos Rex
Morgan, doutor em Medicina. Eles tinham feiticeiras que envenenavam homens de
posição elevada; nós temos loucos que matam líderes políticos. Os símbolos de bem e
mal novamente significam duas classes conflitantes de seres humanos, os vencedores e
as vítimas.
Na Idade Média, as imagens de cavalaria disfarçavam o conflito entre homem e
mulher. Hoje, através das imagens da terapia, escondemos o conflito entre médico e
paciente, especialista e leigo. O lirismo da cavalaria embrutecia seu sentido de realidade;
o lirismo da terapia embrutece o nosso sentido de realidade. Os medievais reprimiam a
verdade a respeito da heresia e da salvação pela inquisição; nós reprimimos a verdade a
respeito da doença mental e do tratamento psiquiátrico imposto. A poesia da cavalaria
focalizava cavaleiros, torneios, pompa e o sacrifício de Jesus. As masmorras, a tortura e a
fogueira não precisavam ser descritas. Todas as conheciam e na realidade aprovavam e
gozavam sua aplicação adequada para salvar a alma herética do Outro. Da mesma forma,
a poesia da terapia focaliza médicos, pesquisa médica, os grandes recursos gastos em
serviços psiquiátricos, bem como a dedicação altruísta do psiquiatra à terapia. O hospital
psiquiátrico público, o processo de internamento e a degradação social do doente
mental não precisam ser discutidos. Todos conhecem esses aspectos e na realidade
aprovam sua aplicação para curar o pensamento mentalmente doente do Outro.
A história medieval, segundo a observação de Huizinga, se reduziu dessa forma a
“um espetáculo de honra dos príncipes; e virtude dos cavaleiros”. A história moderna,
pelo menos nas mãos dos psiquiatras, corre o perigo de ser também reduzida a um
espetáculo da honra dos governantes e da virtude dos médicos. Na Alemanha nazista,
essas imagens dramáticas foram apresentadas no endeusamento do governante e na
glorificação dos médicos como seus funcionários. Os médicos combatiam assim os
“animais nocivos” (judeus) e “consumidores inúteis de alimento” (pessoas idosas ou com
doenças incuráveis), e, ao fazê-lo, nas palavras do Juiz Robert Jackson, “transformaram o
sanatório Hadamar [um hospital psiquiátrico alemão em que tais pacientes eram mortos]
26
num açougue humano”. Nas nações não-totalitárias, as mesmas imagens dramáticas
são apresentadas em formas apenas ligeiramente menos violentas. Os líderes
democráticos não são endeusados, mas são celebrados como modelos de saúde mental;
seus oponentes não são liquidados, mas são degradados como mentalmente doentes.
Diante de grandes e perturbadores acontecimentos, por exemplo, o assassínio de um
Presidente, as pessoas avidamente aceitam a loucura (tal como o faziam com a feiticeira

26
Citado em Maximilian Koessler, “Euthanasia in the Hadamar Sanatorium and International Law”, J. Crim. Law, Criminol.,
and Police Sci., 43 V 735-755 (mar.-abr.), 1953; pp. 739-740.
antes) como sua explicação, e esperam que os psiquiatras (tal como faziam antes com os
27
inquisidores) contenham a ameaça desse tal transcendente.
Em resumo, o mito — de feitiçaria ou de doença mental — atua como uma
imagem justificatória e retórica para o grupo e para o indivíduo. O mito, nas palavras de
Bronislaw Malinowski, “pode ligar-se, não apenas à magia, mas a qualquer forma de
poder social ou aspiração social. É sempre usado para explicar deveres ou privilégios
extraordinários, grandes desigualdades sociais, grandes responsabilidades de posição,
28
tanto da elevada quanto da baixa”.
O mito da feitiçaria era usado para explicar os deveres e privilégios
extraordinários do inquisidor; de forma semelhante, o mito da doença mental é usado
para explicar os do psiquiatra institucional. Os mitos não são fantasias artísticas, estórias
de fadas que os homens constroem para se divertir e divertir seus semelhantes;
constituem o núcleo, por assim dizer, do organismo social, necessário para sua
sobrevivência — como essa sociedade específica.
Na realidade, os antropólogos não têm dificuldade para descobrir os mitos nas
culturas primitivas, e os críticos sociais também não têm dificuldade para descobrir os
mitos de suas sociedades. Assim, Barrows Dunham adverte que “há muitos mitos quanto
à natureza da sociedade; tais mitos podem ser encontrados, ampliados num grande
volume, no núcleo mesmo da ciência. Haverá poucas tarefas mais importantes do que
afastar tais mitos, e assim instilar saúde e vigor no estudo mais valioso que o homem
29
pode fazer — o de sua natureza e de seu destino.”
Examinemos agora, de um ponto de vista diverso do aceito pelas suas ideologias,
a história da feitiçaria e da doença mental, a fim de verificar o que é que encontramos.
A ideia de que a loucura não é menos significativa do que a sanidade — na
realidade, que o louco, como o chamado gênio, vê mais exatamente a realidade —
ocorre frequentemente na literatura ocidental. Um exemplo notável dessa opinião pode
ser encontrado no Evangelho Segundo São Mateus, onde lemos que o primeiro homem a
reconhecer a divindade de Jesus foi “um homem com espírito obscuro”, isto é, um louco.
No idioma da Psiquiatria moderna, a verificação correta da realidade é aqui equivalente
a doença mental. Citaremos algumas passagens significativa disso.
A sentença inicial do Livro de São Marcos, o segundo capítulo do Novo
Testamento, define o objetivo essencial desse Evangelho como a identificação de Jesus
30
como o filho de Deus: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” Depois,
desenrola-se a história. “E aconteceu naqueles dias que Jesus veio de Nazaré da Galiléia,
e foi batizado por João no Jordão. E logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o

27
A esse respeito, ver Chapter 5; também Thomas S. Szasz, “The Mentat Health Ethic”, em Richard T. De George (org.), Ethics
and Society, pp. 85-110.
28
Bronislaw Malinowski, Magic, Science, and Religion, p. 84.
29
Barrows Dunham, Man Against Myth, p. 18.
30
Marcos, 1: 1. Aqui e nos capítulos subsequentes, minha fonte de citações bíblicas é a Revised Standard Version of the Holy
Bible.
Espírito, que como uma pomba descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia:
31
Tu és o meu Filho amado em quem me com prazo.”
Jesus depois passou quarenta dias no deserto, resistindo às tentações de Satanás,
voltou para a Galiléia para pregar o Evangelho de Deus, e reuniu à sua volta os primeiros
seguidores, com os quais vai para Cafarnaum. “E entraram em Cafarnaum, e, logo no
sábado, entrando na sinagoga, ensinava. E maravilhavam- se da sua doutrina, porque os
ensinava como tendo autoridade, e não como os escribas. E estava na sinagoga deles um
homem com um espírito imundo, e exclamou dizendo: Ah! Que temos contigo, Jesus
32
nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus.” (Os grifos são
meus.)
Esse “louco” é, portanto, o primeiro mortal a reconhecer a verdadeira identidade
de Jesus. Mas essa identificação, segundo Jesus, é prematura. Pede silêncio: “E
repreendeu-o Jesus, dizendo: cala-te, e sai dele. E então o espírito imundo,
33
despedaçando-o, e clamando com grande voz, saiu dele.”
Este tema se repete muitas vezes. Assim, à medida que se difundia a fama de
Jesus como terapeuta, “...de tal maneira que todos quantos tinham algum mal se
arrojavam sobre ele, para o tocarem. E os espíritos imundos, vendo-o, prostravam-se
diante dele, e clamavam, dizendo: Tu és o Filho de Deus. E ele os ameaçava muito, para
34
que não o manifestassem.” E novamente: “E chegaram à outra banda do mar, à
província dos gerasenos. E, saindo Jesus do barco, foi logo ter com ele, dos sepulcros, um
homem com espírito imundo; o qual tinha a sua morada nos sepulcros, e nem ainda com
cadeias o podia alguém prender; (...) e clamando com grande voz, disse: Que tenho eu
35
contigo, Jesus Filho do Deus Altíssimo?”
Os romanos antigos viam a loucura mais ou menos como os autores do Livro de
São Marcos. “In vino veritas” (“No vinho está a verdade”), dizia o provérbio. Não se
enganavam, ao contrário de nossos juristas modernos, quanto à natureza da bebedeira,
isto é, não lhe atribuíam irracionalidade ou ausência de significado. Ao contrário,
acreditavam, e creio que corretamente, que quando um homem está sob a influência do
álcool, sua conduta, longe de deixar de ter sentido, exprime suas aspirações verdadeiras
ou autênticas. No entanto, tratar dessa maneira o bêbedo é tratá-la com a mesma
dignidade com que são tratados seus semelhantes sóbrios. Para o puritano que deseja
humilhar e castigar o ébrio que não se controla, para o médico que deseja degradar e
tratar o alcoólatra “autodestrutivo”, isso não é adequado. Que melhor maneira de
degradar o culpado do que declarar que é incapaz de saber o que está fazendo — seja
quando vai beber ou quando está intoxicado? Essa é a fórmula geral para a
desumanização e degradação de todas essas pessoas cuja conduta os psiquiatras hoje

31
Ibid., 1:9-11.
32
Ibid., 1; 21-24.
33
Ibid.. 1: 25-26.
34
Ibid., 3: 10-12.
35
Ibid., 5: 1-7.
consideram “causada” por doença mental. O comportamento dessas pessoas é
considerado “sem sentido”. O alcoólatra, o viciado, o homossexual — todos eles e
muitos outros são considerados mentalmente doentes. É isso o que nos dizem os
melhores psiquiatras e mais elevados juizes. Para chegar a essa opinião — que por acaso
é muito convincente, tanto para eles quanto para nossa sociedade — sem dúvida
seguem a fórmula de Lewis Carroll. Em Alice no País das Maravilhas, o Rei diz que “se
isso não tem sentido, elimina-se muita complicação no mundo, pois não precisamos
36
encontrar sentido.” No entanto, se a tarefa do humanista é relatar o sentido, e não
escondê-lo, não podemos ficar contentes com essa solução, por mais tentadora que seja.
A proposição de que o louco não sabe do que está falando, ou que suas
afirmações não são verdadeiras, é explicitamente negada num provérbio alemão que diz
que “apenas as crianças e os loucos dizem a verdade” (“Nur Kinder und Narren sagen die
Wahrheit “ ).
Na língua inglesa, temos a famosa frase de Shakespeare a respeito do “método na
*
loucura”. Acredito que é significativo que Shakespeare não tenha considerado
necessário explicar ou defender essa opinião. Isso sugere que a ideia era um lugar-
comum em sua época. Se isso é verdade, significaria que na Inglaterra da época de
Elisabete os homens sabiam, não apenas que existe uma diferença entre doença física e
desequilíbrio espiritual, mas também que o comportamento insano, tanto quanto o
sadio, está dirigido por objetivo e é motivado; ou, como o diríamos, hoje, que é tatico ou
estratégico. Em resumo, Shakespeare e seus espectadores consideravam o
comportamento do louco como perfeitamente racional do ponto de vista do ator ou do
indivíduo atingido — uma perspectiva que a Psicanálise e a Psicologia existencial
precisaram redescobrir e defender contra as poderosas pretensões de uma Psiquiatria
positivista, organicamente orientada.
Para John Peruval, filho de um Primeiro-Ministro da Inglaterra, que, em 1830, foi
internado num hospital psiquiátrico por sua família, era igualmente clara a distinção
entre doença física e doença mental, entre tratamento dos corpos e cura das almas:
Qual o direito do médico para supor que pode invadir os segredos da consciência moral do
paciente? Eles [os médicos] confessam-se ignorantes da natureza da doença de que
tratam; realmente, mostram-se teimosamente ignorantes (...). Os sacerdotes da Igreja
oficial deviam ter superintendência das necessidades e enfermidades mentais das pessoas
perturbadas de sua comunidade, e o trabalho do médico do corpo e o do médico da alma,
distintos por natureza, deviam ser igualmente respeitados. Os soberanos deste país, os seus
ministros e o povo são culpados do esquecimento dessa importante distinção, e a hierarquia traiu
37
seu cargo.” [Os grifos são meus.]

36
Lewis Carroll, “Alice's Adventures in Wonderland,” em The Annotated Alice, p. 159.
*
“Polonius: Embora isto possa ser loucura, é uma loucura com método.” (Hamlet, ato II, cena 2, verso 211.) Para uma análise
penetrante da compreensão que Shakespeare tinha da loucura de Hamlet, ver Howard M. Feinstein, “Hamlet's Horatio and the
therapeutic mode”, Amer. J. Psychiat., 123: 803-809 (jun.), 1967.
37
Gregory Bateson (org.). PercevaVs Nanrative, pp. 186-187.
Essa distinção — entre doenças do corpo e problemas de vida — era igualmente
clara para Leão Tolstói, em 1889. Na realidade, já no começo da história da Psiquiatria —
quando Charcot, e não Freud, é que era o especialista médico famoso em todo o mundo
— Tolstói viu que o médico que conceitua as dificuldades de vida como doenças
mistifica, em vez de esclarecer o problema, e prejudica, em vez de ajudar o sofredor. Na
Sonata a Kreutzer, cujo protagonista é um marido que é a vítima de uma relação
tragicamente desigual, mutualmente exploradora entre homens e mulheres, Tolstói
exprime a seguinte opinião a respeito de Psiquiatria e Medicina psicológica:
Notando um tom muito maldoso em sua voz sempre que falava de médicos, eu lhe disse:
— Vejo que você não gosta de médicos. — Não é um caso de gostar ou não gostar.
Arruinaram minha vida e as vidas de milhares e centenas de milhares de seres humanos, e
não posso deixar de ligar a causa ao efeito (...) Hoje, já não podemos dizer: você não está
vivendo direito, precisava viver melhor. Não podemos dizer isso, nem para nós mesmos
nem para os outros. Se você tem uma vida ruim, isso é causado pelo funcionamento
anormal de seus nervos, etc. Por isso, você precisa procurar os médicos, e eles receitam
um remédio, feito por um químico, e você precisa beber isso! Você fica pior ainda; então
38
há mais remédios, e novamente o médico. É uma excelente trapaça!
Em trecho posterior, Tolstói indica especificamente o casamento infeliz como um
fenômeno frequentemente mal interpretado pelos médicos como se fosse uma doença,
e condena Charcot por isso. Essa é uma avaliação de Charcot que se afasta muito da que
encontramos nos manuais de história da Psiquiatria.
Éramos como dois prisioneiros [escreve Tolstói, falando pela boca do marido que é
finalmente levado a matar sua mulher] e nos odiávamos, e estávamos acorrentados um ao
outro, envenenando nossas vidas e tentando não ver isso. Nesse tempo, eu não sabia que
noventa e nove por cento das pessoas casadas vivem num inferno semelhante àquele em
que eu estava, nem que não pode ser diferente. Nesse tempo, eu não sabia isso a meu
respeito nem a respeito dos outros (...) Por isso, vivíamos numa neblina permanente, sem
39
ver a condição em que estávamos (...)
Realmente, seria difícil encontrar uma intuição mais penetrante para descrever o
caráter mitológico da doença mental.
Freud, como sabemos, reconstruiu os vários sentidos das diferentes “doenças
mentais”, não apenas, nem fundamentalmente, a partir do que aprendeu com seus
pacientes (que, evidentemente, não eram “pacientes” no sentido médico do termo), mas
também do que aprendeu com as obras de homens de letras. Os que acreditam que o
ponto de vista adaptativo na Psiquiatria é algo novo — uma grande descoberta científica
de Harry Stack Sullivan ou de Sandor Rado, e um progresso importante com relação a
Freud — devem considerar a seguinte passagem de The Way of All Flesh, de Samuel
Butler:
Durante toda a nossa vida, todos os dias e todas as horas, estamos no processo de
adaptação de nossos eus mudados e não-mudados a ambientes modificados e não-

38
Leo Tolstoy, The Kreutzer Sonata, em The Death of Ivan Ilych and Other Stories, pp. 157-239: pp. 193-194.
39
Ibid., pp. 200, 201.
modificados; na realidade, viver não é nada mais do que esse processo de acomodação;
quando fracassamos um pouco nisso somos estúpidos, quando fracassamos claramente
somos loucos, quando o interrompemos momentaneamente estamos dormindo, quando
40
desistimos inteiramente disso estamos mortos.
Um dos primeiros críticos do tratamento médico coercitivo da insanidade, e que
escreveu muito antes do advento do confinamento sistemático dos loucos, foi Caelius
Aurelianus, um médico romano, de origem africana, que viveu no século II da era cristã.
Lamenta ele que
(Seus colegas médicos) pareçam estar loucos, em vez de dispostos a curar seus pacientes,
quando os comparam a animais selvagens, que devem ser domados por privação de
alimento e as torturas da sede. Sem dúvida levados pelo mesmo erro, desejam acorrentá-
los cruelmente, sem pensar que suas pernas podem ser feridas ou quebradas, e que é mais
fácil e mais cômodo retê-los com mão humana do que pelo peso muitas vezes inútil das
correntes. Chegam até a defender a violência pessoal, o açoite, como se com essa
41
provocação pudessem provocar a volta da razão.
Quando, mil e quinhentos anos mais tarde, Pinel defendeu ideias semelhantes, foi
celebrado como um grande inovador da Psiquiatria. Quando, aproximadamente na
mesma época, Benjamin Rush advogava e praticava brutalidades “psiquiátricas” muito
piores do que as denunciadas por esse médico da Roma antiga, foi celebrado como um
*
grande médico e grande filatropo. Pinel, segundo a versão dos historiadores oficiais da
Psiquiatria, iniciou a Primeira Revolução Psiquiátrica. Rush, por seu lado, foi canonizado
**
como o Pai da Psiquiatria americana.
A ideia de que o hospital psiquiátrico é prejudicial para os internados, atendendo
basicamente aos interesses dos parentes do paciente ou aos da sociedade, pode ser mais
facilmente rastreada até a alguns indivíduos específicos na história da Psiquiatria do que
a de que a doença mental não é uma doença. Isso ocorre porque o hospital psiquiátrico
não tem mais do que trezentos, anos de vida, enquanto que as opiniões do homem
sobre a loucura são tão antigas quanto a história documentada.
Um estudo da origem dos hospícios europeus do século XVII mostra muito
claramente que, quando tais instituições foram fundadas, não eram consideradas como
42
recursos médicos ou terapêuticos. Ao contrário, eram consideradas como estruturas,

40
Samuel Butler, The Way of Ali Flesh, p. 278.
41
Citado em Albert Deutsch, The Mentally III in America, p. 10.
*
O caminho do progresso na Psiquiatria é circular, periodicamente voltando a seu ponto de partida. Em 1754, os seguintes itens
aparecem no livro de registros do Pennsylvania Hospital, o mais antigo hospital dos Estados Unidos, o primeiro a cuidar de
doentes mentais, e o orgulho dos historiógrafos da Psiquiatria americana; “John Cresson, ferreiro, paga ao hospital por 1 par de
algemas, 2 cadeados de pernas, 2 anéis grandes e 2 grampos grandes, 5 correntes e 2 anéis grandes e 2 cordas para celas, £
1.10.3. Paga por 7 jardas de pano para camisa-de-força, £ 0.14.4%. (Edward A. Stracker, Beyond the Clinical Frontiers, p. 155.)
Com os progressos modernos na tecnologia da violência psiquiátrica, os hospitais psiquiátricos substituíram as algemas por
eletrochoques, e as camisas-de-força por tranqüilizantes.
**
A grande maioria dos livros sobre história da Psiquiatria sofre as mesmas deformações que as histórias da escravidão escritas
antes da Guerra Civil por homens favoráveis à manutenção dos escravos. Os manuais padrões sobre a história da Psiquiatria são
descrições das glórias da Psiquiatria Institucional. Ainda não se escreveu uma história da Psiquiatria do ponto de vista do
"paciente".
42
Michel Foucault, Madness and Civilization, p. 40.
semelhantes a prisões para o confinamento de pessoas socialmente indesejáveis. A
partir desse núcleo desenvolveu-se um sistema institucional cada vez mais amplo de
hospitais e hospícios públicos e particulares, confinamentos que aos poucos se tornaram
justificados com base em insanidade. No entanto, logo que essa ideia foi apresentada, foi
criticada como inaceitável e falsa.
Uma crítica inicial à hospitalização psiquiátrica involuntária — em termos quase
idênticos aos dos autores modernos — vem da pena de Andrew Harper, cirurgião da
equipe do Royal Garrison Battalion of Foot, no Forte Nassau, nas Baamas.
O costume de imediatamente levar as infelizes vítimas de insanidade para as celas do
hospício, ou para apartamentos amedrontadores de prisão particular [escreveu Harper, em
1789], tem certamente muita ignorância e absurdo. Essa prática, é verdade, pode atender
aos objetivos de interesse particular, e da conveniência doméstica, mas ao mesmo tempo
destrói as obrigações de humanidade, tira qualquer oportunidade do sofredor, privando-o
de todas as circunstâncias favoráveis que poderiam levar à sua recuperação (...) Estou
convencido de que o confinamento- nunca deixa de piorar a doença. O estado de coerção é
43
um estado de tortura contra o qual, em qualquer circunstância, a mente se revolta.
Dezesseis anos depois, em 1815, Thomas Bakewell, proprietário leigo de um
hospício particular na Inglaterra, protestou,, numa carta dirigida ao Presidente da
Comissão Escolhida da Câmara dos Comuns, indicada para investigar o estado dos
hospícios, que “O tratamento geral do insano é indiscutivelmente errado; é um desafio
ao estado atual do conhecimento, aos melhores sentimentos da humanidade
esclarecida, e à política nacional (...) Os grandes hospícios públicos para os insanos são
certamente errados; afinal, nada poderia ser tão bem calculado, para impedir a cura de
44
um estado de insanidade, do que os horrores do Grande Hospício. (...)”
John Reid, médico inglês e autor do manual clássico de Psiquiatria, intitulado De
Insana (1789), antecipou em quase duzentos anos a opinião psiquiátrica atual de que os
indivíduos confinados em hospitais psiquiátricos aprendem a agir maluca- mente e
podem, dessa forma, ficar loucos.
É principalmente por causa do tratamento bárbaro e não-filosófico (...) da indisposição
mental [escreveu Reid, em 1816] que as residências psiquiátricas se tornam muitas vezes
as criadoras de insanidade, onde uma aberração, por menor que seja, com relação à
excitação nervosa sadia e normal, pode, com o passar do tempo, amadurecer e expandir-se
na monstruosidade integral e amedrontadora da loucura (...) Muitos dos locais destinados
à prisão de inválidos intelectuais podem ser vistas apenas como viveiros e fábricas de
45
loucura.

As ideias contemporâneas de que “sanidade” e “insanidade” são categorias


criadas e usadas para segregar, e assim ferir, as pessoas classificadas como insanas, e

43
Andrew Harper, A Treatise on the Real Cause and Cure of Insanity, em Richard Hunter e Ida Macalpine (orgs.), Three
Hundred Years of Psychiatry, 1535-1860 pp. 522-524; p. 524.
44
Thomas Bakewell, “Carta ao Presidente da Comissão Seleta da Câmara dos Comuns, designada para o inquérito sobre o estado
dos hospícios” Hunter e Macalpine, pp. 705-709; p. 706.
45
John Reid, De Insania, em Hunter e Macalpine, pp. 722-728; pp. 723-725.
que o objetivo do confinamento das pessoas em hospitais psiquiátricos não é curá-las de
uma doença, mas autenticá-las como insanas, foram claramente apresentadas por John
Conolly há quase 150 anos passados. Conolly era professor de Medicina na Universidade
de Londres e conhecido psiquiatra. Em sua obra clássica, intitulada An Inquiry Concerning
the Indications of Insanity, With Suggestions for the Better Protection and Care of the
Insone, e publicada em 1830, Conolly escreve:
Eles [os médicos] têm procurado e imaginado uma fronteira nítida e definível entre
sanidade e insanidade, e que não apenas é imaginária, e arbitrariamente colocado, mas
como supostamente separa todos os que estão mentalmente perturbados do resto dos
homens, tem sido infelizmente considerada uma justificação para algumas medidas contra
a parte condenada, o que, no caso da maioria, é desnecessário e aflitivo (...) Uma vez
confinado, o próprio confinamento é considerado como a maior prova de que um homem
deve estar louco (...) Não importa que o certificado seja provavelmente assinado por
aqueles que pouco sabem de loucura ou da necessidade de confinamento; ou por aqueles
que não examinaram cuidadosamente o paciente; um visitante teme confessar, diante
desse documento, o que pode ser colocado como simples falta de penetração numa
questão em que ninguém parece ter dúvida, a não ser ele; ou pode até ser tentado a fingir
46
perceber sinais de loucura que não existem.
Embora eu tenha citado principalmente opiniões de médicos e dirigentes do
hospitais, seria errado pensar que tivessem intuições complexas de uma vanguarda
científica. Ao contrário. Tais ideias sobre a loucura eram muito comuns. Por exemplo,
para John Stuart Mill era óbvio que as pessoas eram internadas em hospícios, não para
que fossem tratadas por doenças, mas para serem punidas por divergência: “... o homem
e, mais ainda, a mulher que podem ser acusados de fazer o “que ninguém mais faz” ou
de “não fazer o que todo mundo faz” correm (...) o perigo de ser internados como
47
lunáticos (...)”. Houve necessidade de “campanha educacional”, coroada de êxito
apenas em nossa época, antes que o público e os médicos chegassem a aceitar a
*
insanidade mental como uma doença e o hospício como um hospital.
John Perceval, cujas opiniões sobre doença mental foram antes citadas, era
contemporâneo de John Conolly. Como leigo que viveu o internamento em várias
instituições psiquiátricas particulares, suas observações sobre o internamento merecem
atenção.
Serei obrigado a dizer [escreveu Perceval, em 1830] que a maior parte da violência que
ocorre em asilos de lunáticos deve ser atribuída à conduta dos que estão lidando com a
doença, e não à doença em si mesma; e que o comportamento usualmente indicado pelo
médico, aos visitantes, como sintomas da doença pela qual o paciente está internado, é

46
John Conolly, An Inquiry Concerning the Indications of Insanity, With Suggestions for the Better Protection and Care of the
Insane, em Hunter e Macalpine, pp. 805-809; pp. 806-807.
47
John Stuart Mill, On Liberty, pp. 99-100.
*
Robert H. Felix pergunta; “Por que é que o movimento de saúde mental, tal como é hoje conhecido, obteve tanto êxito durante
o meio século a partir de 1900?” (Mental Illness, p. 32.) Atribui isso a Clifford Beers e à máquina de propaganda de saúde
mental que montou. O “êxito” do Movimento de Saúde Mental a que se refere Felix não é medido, no entanto, pelo
desenvolvimento de “tratamentos” eficientes para a “doença mental”, mas pela capacidade da profissão para encontrar muitos
casos da doença, e para canalizar para seus cofres partes correspondentemente grandes dos recursos dados pelos impostos
federais e estaduais (nos Estados Unidos).
geralmente mais ou menos razoável, e certamente um resultado natural desse
confinamento, e seus refinamentos específicos de crueldade; pois todos têm suas torturas
48
morais e mentais refinadas, quando não torturas físicas.
Portanto, Perceval deixa muito claro que, no hospital psiquiátrico, o médico e o
paciente estão fechados numa luta pelo poder, onde o médico é colocado no papel de
49
opressor, o paciente no de vítima. Além disso, deixa também bem claro — e, também
sob esse aspecto a Psiquiatria moderna ainda não o igualou — o papel dos parentes do
doente mental; são eles que dão ao médico o poder de controlar e coagir o paciente.
No entanto, quando os médicos lunáticos dizem que a presença de amigos é prejudicial aos
pacientes lunáticos [observa Perceval] não estão cientes do fato — pelo menos não o
reconhecem — de que as emoções e as perturbações violentas do espírito, que ocorrem no
encontro súbito com eles PODE decorrer do fato de serem dominados pelo sentido da
conduta dos conhecidos com relação a eles, do fato de os negligenciarem e entregarem ao
cuidado o ao controle de estranhos, e do tratamento dos próprios médicos. Naturalmente,
os médicos não reconhecem isso, pois, se estilo agindo por limitação de inteligência, seu
orgulho se recusa à correção, o não admitirá a suspeita de que estejam errados; se estão
agindo com duplicidade e hipocrisia, necessariamente preservam esse caráter, e não
podem, sem incorrer em incoerência, confessar que tenham cometido qualquer erro —
quem pode esperar isso deles? A gente não pode colher uvas em figueira-do-inferno.
50
Apesar disso, é verdade. [Grifos do original.]
Perceval também chama a atenção para alguns paralelos entre a Inquisição e a
Psiquiatria Institucional. Certamente, a analogia de Perceval não é a de Zilboorg, mas sua
imagem espetacular. Não quer dizer que as feiticeiras e os doentes mentais sejam iguais;
ao contrário, é porque os inquisidores e psiquiatras são semelhantes que tratam suas
vítimas de forma semelhante. Pergunta Perceval: “Onde está o orgulho da religião
protestante — onde está a liberdade de consciência, se um médico lunático pode ser o
juiz supremo de seus pacientes nesses assuntos, quando os asilos de lunáticos
51
substituem a Inquisição, e de forma tão aterrorizante?”
O paralelo entre a Inquisição e a Psiquiatria Institucional foi apresentada sob
a
forma mais completa pela Sr. E. P. W. Packard, internada, em 1860, pelo seu marido
(ministro religioso) no Hospital Estadual de Jacksonville. Esse internamento, na medida
em que podemos reconstruir o caso, se baseou em discordâncias entre o Reverendo
a
Packard e sua mulher em questões de fé e princípios religiosos. Depois de ter a Sr.
Packard conseguido sua liberdade — através do que deve ter sido uma das primeiras
ordens de habeas corpus conseguida por um doente mental nos Estados Unidos —
publicou uma descrição de suas experiências no hospital. Nessa descrição, escreveu ela:
Se eu vivesse no século XVI, e não no século XIX, meu marido teria usado as leis daquela
época para me castigar como herética, por me ter afastado do credo aceito — enquanto

48
Bateson, p. 114.
49
Para um desenvolvimento literário comovente desse tema, ver Anton Pavlovich Chekhov, “Ward No. 6”, em Seven Short
Stories by Chekhov, pp. 106-157.
50
Bateson, p. 218.
51
Ibid., p. 299.
que, agora, sob a influência de algum espírito intolerante ele usa essa instituição
autocrática como meia de tortura para conseguir o mesmo resultado, isto é, uma
retratação de minha fé. Em outras palavras, em vez de me chamar pelo título obsoleto de
herético, moderniza essa frase, substituindo por insanidade a heresia como o crime pelo
qual sou agora sentenciada a prisão indefinida em uma de nossas Inquisições Modernas
(...) Grande parte do que agora é chamado insanidade será vista pelas épocas futuras como
um sentimento semelhante ao que agora temos com relação aos que sofreram como
52
bruxas em Salem, no Massachusetts. [Grifo no original.]
a
As semelhanças entre a Sr. Packard e as bruxas do Salem eram talvez maiores do
que ela pensava. Nos dois casos, as vítimas foram perseguidas com base numa ideologia
aceita sem discussão por especialistas e leigos; nos dois, os acusados nunca mudaram a
base lógica da acusação, limitando sua queixa à afirmação de que tinham sido
a
erroneamente identificados como participantes da classe “delituosa”. A Sr. Packard não
duvidava da existência da insanidade nem do fato de que seria adequado confinar loucos
em hospitais psiquiátricos, mesmo contra sua vontade. Mas insistia em afirmar que ela
não era um deles. Outros autores que resenharam seu caso — mesmo um estudioso tão
cuidadoso da história da Psiquiatria quanto Albert Deutsch — pensavam que ela era
a
mentalmente doente. Escreve Deutsch: “O fato de saber se a Sr. Packard era ou não
mentalmente sadia no momento de seu internamento ou prisão é uma questão
discutível. Parece certo que sofria algumas alucinações, e tinha sido, quando moça,
53
internada por pequeno período no Hospital Estadual Worcester, em Massachusetts.”
Aqui, Deustsch ficou preso na mesma ratoeira que apanha todos os que tratam a
retórica da opressão como se fosse um diálogo entre iguais. O acusado — feiticeira,
judeu, doente mental — deve ter errado ou ser culpado, pois, se não fosse assim, não
seria acusado por homens “honestos”. O que alguns críticos “razoáveis” das práticas de
saúde mental — como Deutsch — deixam de ver é que numa relação em que um dos
lados controla o outro pela força bruta, um proíbe toda possibilidade de diálogo com o
outro; e, diante de um observador crítico que não está submetido a seu poder, impede
qualquer possibilidade de credibilidade.
Nada mostra tão bem o peso de uma ideologia nas mentes de homens quanto
essa teimosa aceitação, por acusadores e acusados, de imagens e vocabulário idênticos.
A história da feitiçaria está cheia dos mesmos tipos de acusações e refutações de ser ou
não feiticeira, os acusadores e os acusados não tendo a menor dúvida quanto à
existência de feiticeiras. A mesma aceitação da existência de doença mental caracteriza
as descrições contemporâneas de internamento de mulheres e homens “normais” nos
hospícios para doentes mentais.
a
Nos anais da feitiçaria, o caso de Mary Easty é bem paralelo ao da Sr. Packard.
Em 1692, em Salem, Massachussetts, Mary Easty foi acusada de feitiçaria e condenada à
morte. Numa introdução à reedição de sua “Petição”, Edmund S. Morgan nota que “Ela
poderia facilmente ter escapado ao castigo (de morte) se admitisse sua culpa e se

52
E. P. W. Packard, Modem Persecution, Vol. I, p. 95.
53
Deutsch, pp. 424-425.
pedisse a mercê do tribunal. Mas fazer isso seria uma deturpação de sua consciência
moral e comprometeria sua alma. Mary Easty não tinha nosso esclarecimento quanto à
não-existência de feitiçaria. Sabia que Satã estava solto no mundo e que o tribunal que a
condenava estava fazendo o melhor que podia para combater o demônio. Pensava bem
dos seus juizes. Mas sabia que não era culpada, e não se atrevia a mentir para salvar sua
54
vida.”
Na realidade, Mary Easty foi uma vítima trágica. Ingênua e confiante, respeitou
seus juizes até o momento de sua morte. Em sua “Petição”, escreve aos juizes: “Não
duvido que vossas execlências fazem tudo o que está em vosso poder para descobrir e
identificar a feitiçaria e as feiticeiras, e que não seriam culpados de sangue inocente no
mundo (...) que o Senhor em Sua infinita mercê vos dirija nesse grande trabalho para
55
que, em Sua abençoada vontade, não mais seja vertido sangue inocente.”
a
Mary Easty sustenta que não é feiticeira; a Sr. Packard, que não é doente mental;
as vítimas de nosso Movimento de Saúde Mental, que não são mentalmente doentes.
Ninguém nega a realidade da feitiçaria ou da doença mental.
Trevor-Roper acentua esse grande poder da ideologia dominante sobre as mentes
dos homens e considera como exemplo o que se pode ver na história da feitiçaria.
No fim da mania de feitiçaria [escreve ele], embora sempre ouçamos dizer que alguns
negam a existência de feiticeiras, na realidade nunca ouvimos as negações. Até o último, os
argumentos mais radicais contra a mania de feitiçaria não é que as feiticeiras não existem,
nem mesmo que o pacto com Satã seja impossível, mas apenas que os juizes erram em sua
identificação. As “pobres mulheres tontas”, como as chama Scot (...) Eram “melancólicas”.
Essa é uma doutrina muito fatigante (...) Não podia ser refutada. Mas também não podia
56
refutar a mania de feitiçaria. Logicamente, a deixava intocada.
A observação de Trevor-Roper sobre a ausência de crítica fundamental à doutrina
da feitiçaria durante as caças às feiticeiras é bem justa. No entanto, o mesmo pode ser
dito a respeito da mitologia de qualquer movimento popular de massa. A divergência
com relação a tais ideologias é conceitualmente difícil e pessoalmente perigosa. As
ideologias apresentadas em vocabulário terapêutico ou de salvação são muito
resistentes à crítica. Tais sistemas de crença não apenas impõem obediência à verdade,
tal como é revelada a sacerdotes ou médicos, mas também definem o ceticismo como
*
heresia ou loucura. Portanto, a significação real da retórica terapêutica está em seu

54
Edmund S. Morgan (org.), Mary Easty. “Petition of an Accused Witch”, 1692, cm Daniel Boorstin (org.), An American
Primer, pp. 26-30; p. 28.
55
Ibid., p. 29.
56
H. R. Trevor-Roper, “Witches and, witchcraft; An historical essay”, (II), Encounter, 28: 13-34 (junho), 1967; p. 16.
*
Os historiadores das caças às feiticeiras viram isso. Assim, Pennethorne Hughes escreve: “Para o Fiel, era uma Época de Fé e,
como tal, capaz de tudo dominar. A crítica era loucura, e os heréticos e as feiticeiras eram linchados com a crueldade
aterrorizante com a qual os animais afastam aquele de sua espécie que sofre de uma deformação. Se a Totalidade admite
tolerância, sua defesa é inútil.” (Pennethorne Hughes, Witchcraft, p. 59.) As perseguições em nome da ciência (ou, melhor, do
cientismo) imitaram e até superaram as que foram feitas em nome da religião. Hoje, ninguém discute isso. A única divergência
que resta ocorre entre os otimistas, que consideram que as caças científicas às feiticeiras já foram superadas, por exemplo, no
nazismo e no stalinismo, e os pessimistas, que consideram que o pior ainda está para vir — por exemplo, na progressiva
desumanização do homem através de poderes não-controlados de Governos centrais totais.
poder para desarmar a vítima e o crítico. Afinal, numa sociedade cristã quem é que pode
opor-se a Deus? Apenas um herético. E numa sociedade científica, quem é que pode
**
opor-se à saúde mental? Apenas um louco. Na época da mania de feitiçaria, o consenso
popular apoiava a Inquisição: “... ninguém se atrevia a levantar a voz contra o que era
por toda parte considerado, pelas almas fiéis, como capaz de atender à necessidade mais
57
urgente da época”, segundo o comentário de Lea. Hoje, nos Estados Unidos, existe um
consenso semelhante, e que diz que, depois da segurança nacional, o mais grave
problema social é a doença mental. Isso justifica, não apenas grandes gastos de fundos
públicos, mas também o emprego de métodos extrajudiciais de controle social.
Quem pode criticar tais excessos populares? Julien Benda pensava que isso era o
58
dever moral fundamental dos intelectuais. No entanto, seria um equívoco pensar que
os intelectuais, como um grupo, ou qualquer outro grupo, possam manter essa postura e
sobreviver numa sociedade extraordinariamente hostil a ele. Por isso, penso que a tarefa
da crítica social deve permanecer para sempre nas mãos dos indivíduos. Atormentado ou
perseguido, um indivíduo pode sobreviver mais facilmente do que uma organização.
Não existe prova histórica de que qualquer grupo de intelectuais — seja de
sacerdotes, advogados, médicos ou educadores — tenha resistido às crenças populares
de seu tempo. Os indivíduos muitas vezes fizeram isso. Por isso, Robbins erra quando
afirma que “O que faz da feitiçaria tão repelente, e moralmente inferior ao fascismo, é
que em toda a Europa civilizada, em todos os países (com a possível exceção posterior da
Holanda), o clero levou a perseguições e fez condenações em nome do Cristianismo,
enquanto que os advogados e juizes e professores faziam uma defesa em nome da
59
razão.” Uma crítica idêntica de “advogados e juizes e professores” — bem como de
60
sacerdotes e de médicos — poderia ser feita no caso da escravidão negra e da
Psiquiatria Institucional.
A lição dada pela Inquisição e sua ideologia de salvação espiritual é uma lição que
o homem contemporâneo, diante da nova Inquisição da Psiquiatria e sua ideologia de
salvação secular, só pode ignorar com grandes riscos. A lição é que o homem sempre
deve escolher entre a liberdade e outros valores competitivos — por exemplo, saúde,
segurança ou bem-estar. E, se escolher a liberdade, deverá estar preparado para pagar
seu preço — não apenas com eterna vigilância contra tiranos maldosos, inclinados a
escravizar seus súditos; com ceticismo eterno de sacerdotes e psiquiatras benévolos,
inclinados a curar mentes e almas; mas também em eterna oposição a maiorias
esclarecidas, inclinadas a reformar minorias mal orientadas.

**
Se uma pessoa discorda da autoridade e chega a desobedecer a ela, quando esta é religiosa, é o Demônio ou é possuída pelo
Demônio. De forma semelhante, se uma pessoa discorda da autoridade e chega a desobedecer a ela, quando esta é científica, é
louco ou doente. Em última análise, trata-se de uma questão de definição. O Demônio, a feitiçaria e o herético são definidos
como rebeldes contra Deus e seus representantes na Terra — isto é, a Igreja e o sacerdote. De forma semelhante, o insano, o
louco e o psicótico rebeldes contra a Natureza e seus especialistas na Terra — isto é, a Medicina e o médico.
57
Lea, p. 46.
58
Julíen Benda, The Great Betrayal.
59
Robbins. p. 17.
60
Ver especialmente David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture.
Parte II
FABRICAÇÃO DA LOUCURA

[O Grande Inquisidor]: Nós os convenceremos e eles só


ficarão livres quando renunciarem à sua liberdade e se
submeterem a nós. E estaremos certos ou estaremos
mentindo? Eles estarão convencidos de que estamos certos
...
1
Fyodor Dostoyevsky

Em outros tempos, quando se pretendia queimar os ateus, as


pessoas caridosas costumavam sugerir que fossem colocadas
em hospícios; hoje, não seria surpreendente ver a realização
disso, e os seus autores aplaudindo a si mesmos, pois, em
vez de perseguir as pessoas por causa da religião, teriam
adotado um modo humano e cristão de tratar esses infelizes,
não sem uma secreta satisfação por ver que os outros teriam
conseguido aquilo que mereciam.
2
John Stuart Mill

1
Fyodor Dostoyevsky, The Brothers Karamazov, p. 306.
2
John Stuart Mill, On Liberty, p. 100.
9
OS NOVOS FABRICANTES
— BENJAMIN RUSH,
O PAI DA PSIQUIATRIA AMERICANA

Quando o jeffersionano encontrou o conceito de mal em


Teologia ou Filosofia Moral, naturalizou esse conceito como
apenas outra doença do corpo: uma doença, certamente, do
senso moral, mas que essencialmente não seria diferente de
outras. Condenar um homem pela corrupção de seu senso
moral seria como condená-lo pela suscetibilidade à febre
amarela — como repreender um vagão por ter uma roda
quebrada.
1
Daniel J. Boorstin

A metamorfose da mente medieval para a mente moderna exigiu uma vasta conversão
ideológica — da perspectiva da Teologia para a da Ciência. Minha tese é que a melhor
maneira de compreender o conceito de doença mental é considerá-lo coma parte dessa
mudança. As condições ou comportamentos que hoje denominamos doenças mentais
não foram descobertos como doenças — por exemplo, como a diabetes mellitus ou o
enfarte do miocárdio. Ao contrário, eram conhecidos por outros nomes, por exemplo,
heresia, patifaria, possessão e assim por diante, ou tinham sido aceitos como usuais e
naturais e, por isso, não tinham nomes específicos. Nos séculos XVIII e XIX, muitos desses
fenômenos — nunca antes conceituados em termos médicos — tiveram novos nomes ou
foram reclassificados como doenças. Esse processo, que levou à criação da disciplina
conhecida como Psiquiatria, é parte integrante do processo mais amplo de substituição
de conceitos religiosos por conceitos científicos. Assim, a Natureza substituía Deus; o
Estado substituía a Igreja; a doença mental substituía a feitiçaria.
Assim, nas Ciências Naturais testemunhamos uma mudança profunda em ideias e
práticas: usamos fertilizantes, e não sacrifícios de animais para melhorar nossas
colheitas; medicamentos e cirurgia, e não magia de simpatia, para curar doenças;
energia, derivada do movimento de água, da queima de óleos fósseis e da reação de
materiais de fissão, e não as preces, para mover os mares e punir nossos inimigos. No

1
Daniel J. Boorstin, The Lost World of Thomas Jefferson, pp. 148-149.
*
entanto, não houve uma mudança comparável nas “Ciências Sociais”. As descrições e
explicações do comportamento humano e do controle social são, na maioria das vezes,
apenas formas de revestir, com um vocabulário novo, aparentemente científico,
2
explicações e descrições religiosas anteriores. Como já vimos, isso fica muito claro na
substituição do conceito teológico de heresia pelo conceito médico de doença mental, e
das sanções religiosas de confinamento numa masmorra ou da queima em praça pública
pelas sanções psiquiátricas de confinamento num hospital ou pelas torturas chamadas
tratamentos.
Esta mudança na conceituação e no controle da conduta pessoal, do religioso e
moral para o médico e social, fica extraordinariamente clara nas ideias e práticas da
maioria dos psiquiatras do Iluminismo. Um exemplo notável é o de Benjamin Rush. Suas
ideias e seu trabalho servirão de exemplo para minhas proposições sobre a origem, a
natureza e os usos do conceito de doença mental.
Benjamim Rush (1746-1813) foi Médico-Geral do Exército Continental e professor
de Física e Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia. É
indiscutivelmente o pai da Psiquiatria americana; seu retrato enfeita a chancela da
Associação Psiquiátrica Americana. Que tipo de homem era ele? Quais suas ideias e
práticas psiquiátricas?
Rush é celebrado como o fundador da Psiquiatria americana porque afirmava que
não há diferenças entre doenças físicas e doenças mentais e porque, através de sua
grande influência pessoal como grande médico e amigo dos fundadores da República, foi
capaz de impor suas ideias sobre a doença mental. Em resumo, foi o primeiro médico
americano a defender a transformação de problemas sociais em problemas médicos, e
seu controle coercitivo através de sanções “terapêuticas” e não “punitivas”. Como
veremos, as ideias de Rush ainda parecem notavelmente atuais. Isso ocorre porque os
problemas sociais que Rush tentou solucionar ainda estão presentes entre nós, e porque
ainda estamos tentando o seu controle através de sanções médicas.
Em 1812, Rush publicou sua obra-prima, intitulada Medical Inquiries and
Observations upon the Diseases of the Mind (Pesquisas e observações Médicas sobre as
3
Doenças da Mente), uma obra que teve muitas edições, foi traduzida para várias línguas
e ajudou a estabelecer a Psiquiatria como uma especialização médica. Numa carta a seu
amigo John Adams, escreve Rush: “Os temas (das doenças mentais) estiveram até agora
envolvidos em mistério. Tentei trazê-los para o nível de todas as outras doenças do
corpo humano e mostrar que a mente e o corpo são dirigidos pelas mesmas causas e
4
estão submetidos às mesmas leis.”

*
Coloquei aspas na expressão Ciências Sociais para indicar o caráter cientificamente duvidoso das disciplinas usualmente
colocadas sob esse título, ou, pelo menos, as diferenças fundamentais entre elas e as Ciências Naturais. Tais diferenças decorrem
do seu objeto — pessoas ou seres, humanos no caso das Ciências Sociais, coisas ou seres não-humanos no caso das Ciências
Naturais. Embora minhas observações seguintes se dirijam principalmente à Psiquiatria, de modo geral são aplicáveis também à
História, à Psicologia, à Ciência Política, à Sociologia e à Assistência Social.
2
Ver capítulo 5.
3
Benjamin Rush, Medical Inquiries and Observations upon the Diseases of the Mind (1812).
4
Citado em Carl Binger, Revolutionary Doctor, p. 281.
Evidentemente, as provas de Rush para sua crença de que os chamados doentes
mentais estavam fisicamente doentes eram inteiramente inadequadas. Ele baseava sua
opinião em observações do seguinte tipo: “...sete oitavos de todos os pacientes
perturbados no Hospital de Pensilvânia no ano de 1811 tinham frequentes palpitações
5
(...) No entanto, juntamente com a autoridade pessoal de Rush, esse “sintoma”,
interpretado como “... uma prova inequívoca de perturbação intelectual”, foi suficiente
6
para obter um perdão presidencial para um assassino condenado. Incapaz de provar
empiricamente que as doenças mentais e físicas eram iguais, Rush tentou “provar” isso
estrategicamente, tratando as duas da mesma forma: “Infiro que a loucura está
fundamentalmente localizada nos vasos sanguíneos, a partir da observação de que os
remédios que mais rápida e seguramente a curam são exatamente os mesmos que
curam febre ou doenças de vasos sanguíneos que têm outras causas, e em outras partes
*7
do corpo.”
Ao contrário do que ocorreu com seus contemporâneos nas- Ciências Físicas,
Rush, o celebrado cientista médico, nada descobriu. Certamente inovou. Usou o conceito
de insanidade de maneira nova. Por exemplo, Rush acreditava que, depois da Paz de
1783, o povo dos Estados Unidos não estava preparado para novas situações; deu a
seguinte explicação para o seu comportamento: “Os excessos da paixão pela liberdade,
inflamados pelo resultado vitorioso da guerra, provocaram, em muitas pessoas, opiniões
e condutas que não podiam ser afastadas pela razão nem contidos pelo Governo (...) A
extensa influência que tais opiniões tiveram sobre as compreensões. as paixões e a
moral de muitos dos cidadãos dos Estados Unidos, constituiu! uma forma de insanidade,
8
que tomarei a liberdade de distinguir pelo nome de anarquia.”
Essa não era uma interpretação psiquiátrica isolada da disposição popular — uma
metáfora poética na linguagem médica — que Rush se permitisse apresentar. Ao
contrário, era um ponto de vista definido, realmente um par de óculos ideológicos
através dos quais Rush olhava para o mundo. Por isso, seus olhos viam o mundo através
de doença e saúde. Classificou a oposição à Revolução (americana) como doença; apoio
a ela, como terapia. Os norte-americanos leais à Coroa Britânica “tendiam a sofrer de
uma doença que Rush batizou de “revolutiona”. ... [Enquanto] que as mulheres que eram
9
favoráveis à causa revolucionária ficavam curadas de histeria.”
Rush era um mestre da metáfora médica, e rebatizava problemas morais e sociais
através de termos médicos. Como exemplo disso temos uma espécie de dicionário que
inventou, denominado Um Termômetro Moral e Físico, onde se encontravam os
equivalentes médicos de termos morais. Explica Carl Binger: “No alto da escala, está a

5
Rush, p. 20.
6
Ibid.
*
Os psiquiatras contemporâneos empregam a mesma estratégia. Ao tratar doentes mentais com hospitalização e medicamentos
“provam” que esses indivíduos estão doentes e sofrem de uma moléstia.
7
Ibid., p . 26.
8
Citado em Boorstin, p. 182.
9
Ibid.
temperança, que leva a saúde e riqueza. Isso é compatível com água, leite e cerveja
fraca. A alegria, a força e o alimento também podem combinar com cidra e vinho de
pera, vinho de uva, cerveja preta e cerveja forte, quando tomadas em pequenas
quantidades e nas refeições. Depois a escala desce rapidamente para 70° F abaixo de
zero, começando com ponche, e passando por tari e rum, grogue, cerveja misturada com
10
aguardente e licor, bitter misturado com licor...” e assim por diante. Numa carta a
Jeremy Belknap, escreve Rush: “Espero que, no ano de 1915, um bêbedo será tão
inaceitável na sociedade quanto um mentiroso ou um ladrão, e o uso de álcool será tão
11
incomum nas famílias quanto uma bebida feita de arsênico ou uma mistura de cicuta.”
Em outras palavras, Rush estava fazendo propaganda contra o álcool, usando
integralmente a retórica da Medicina. Binger acreditava que “a seu favor se deve dizer
que, apesar de sua cólera moral, Rush reconhecia que o vício da bebida forte era um
grande problema médico e de saúde pública, o que infelizmente continua a ser verdade
12
até hoje.” Naturalmente, o que se pensa da tática de Rush depende daquilo que se
pensa da ideologia do imperialismo psiquiátrico e suas sanções quase- médicas
consequentes. Binger, que também foi uma figura proeminente no movimento de saúde
mental nos Estados Unidos, louva Rush pelo fato de “reconhecer” a bebida como um
problema médico. Mas Rush não reconheceu que a bebida era um problema médico;
*
definiu-a como problema médico.
Com relação à linguagem obscena dos chamados loucos, Rush sustentava que
suas palavras não tinham sentido e, por isso, “estavam tão vazias de irreverência quanto
um ataque de epilepsia (...)” — uma opinião que atribuía aos “ensinamentos (...) da
13
ciência médica (...)” Para manter essa opinião, Rush precisava tratar as pessoas como
seres inanimados. Fez exatamente isso, ao comparar “Os vícios aparentes dessas pessoas
perturbadas (...) às substâncias nocivas que são às vezes lançadas na superfície da Terra
14
por um terremoto (...)” Depois de começar a reinterpretar o desvio social como doença
mental, Rush estava disposto a ir até o fim nesse caminho. O ponto a que realmente
chegou parece incrível, mesmo para o leitor contemporâneo, habituado a ver todos os
tipos de comportamento indesejável como a manifestação de uma perturbação mental.
“Sofrimento, vergonha, terror, cólera”, declara Rush sem quaisquer restrições,
15
“inadequados para atos legais, são loucuras passageiras. (...) O suicídio é loucura.” E

10
Binger, p. 200.
11
Ibid., p. 201.
12
Ibid.
*
Num esforço para humanizar o Direito através da Psiquiatria, a União Americana das Liberdades Civis está agora aceitando
erradamente, tal como o fez Rush há quase duzentos anos, a retórica de propaganda como se fosse afirmação descritiva. Depois
de elogiar a decisão de 1962 da Suprema Corte que considerou o vício em narcóticos como doença, e não um crime, Markmann,
observa, e aprova, o fato de a União “ter começado uma campanha semelhante contra a indiferença paralela que trata o alcoólatra
como um criminoso que não é, e não como o homem doente que é (...) a União tentará fazer com que o Direito acompanhe a
Medicina e a Justiça.” (Charles Lam Markmann, The Nablest City, p. 406). Para uma discussão crítica do conceito de alcoolismo
como doença, ver Thomas Szasz, “Alcoholism: A socioethical perspective”, Western Med., 7: 15-21 (dez.), 1966.
13
Ibid., p. 268.
14
Rush, p. 160.
15
Benjamim Rush, “Lecture on the medical jurisprudence of the mind”, em The Autobiography of Benjamin Rush, pp 348-351;
p. 350.
corajosamente; define sanidade o insanidade: “Sanidade — aptidão para julgar as coisas
como outros homens, e hábitos regulares, etc. A insanidade é um distanciamento com
16
relação a isso.” Portanto, Rush iguala conformismo social e saúde mental, e
inconformismo social e doença mental. No entanto, quem deve julgar se o indivíduo se
conforma ou não? Como se se antecipasse à pergunta, Rush responde que “os médicos
17
são os melhores juízes da sanidade”. Não é surpreendente que seja o santo padroeiro
da. Associação Psiquiátrica Americana, e que os historiadores da Psiquiatria para sempre
pretendam convencer as pessoas de que o inconformismo social é doença, e não
divergência, e que a Psiquiatria seja um ramo da Medicina, e não da polícia. Deve-se
observar também como Rush — que assinou a Declaração da Independência e era amigo
de muitos dos Fundadores da República — considerada a posição legal e política dos
supostos loucos. Em sua opinião, “a ausência de razão anula o contrato social da pessoa,
18
priva-o dos direitos civis, elimina sua moralidade e seu. testemunho etc.” Os
psiquiatras ainda empregam essa figura de linguagem ao justificar sua violência contra o
chamado doente mental. Mas Rush, um homem muito culto, com um grande domínio da
língua inglesa, devia saber que isso era uma retórica enganadora. A “ausência de razão”
não pode anular o contrato social de um homem, nem privá-lo de seus direitos civis;
pode apenas fazer com que fique estúpido ou mal preparado para a cidadania. São os
indivíduos (que usam o poder) e não as doenças (que prejudicam as faculdades mentais)
que impõem limitações legais e políticas — como as enumeradas por Rush — a outros
homens.
Rush também sustentava que os crimes eram doenças. Essa ideia é muitas vezes,
e erradamente, atribuída aos psiquiatras modernos. Uma das classes de doenças mentais
que inventou era denominada “perturbações da “vontade.” O assassinato e o roubo
eram “sintomas” desse complexo de doenças. Nas palavras de Rush: “Escolhi esses dois
sintomas dessa doença (pois não são delitos) entre seus outros efeitos mórbidos, a fim
de retirar as pessoas que delas sofrem do braço da lei, e torná-las sujeitos da mão
19
delicada e tolerante da Medicina.” Logo veremos até que ponto a mão de Rush era
delicada e tolerante. Vale a pena notar que nessa passagem Rush admite, talvez
involuntariamente, que considera o assassinato e o roubo como doença, não porque
sejam doenças, mas para justificar a transferência de assassinos e ladrões do controle de
policiais e juízes para o dos médicos e assistentes dos hospícios.
Rush também considerava a mentira uma doença, na realidade “uma doença
física (...) As pessoas assim doentes não podem falar a verdade a respeito de qualquer
20
assunto (...)” Aparentemente, o fato de a maioria das doenças “descobertas” por Rush
serem incuráveis não o perturbava. “Diz-se que a mentira, como um vício, é incurável. O
21
mesmo pode ser dito dela como doença, quando aparece na vida adulta.”

16
Ibid.
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Binger, p. 264.
20
Rush, Medical Inquiries, p. 265.
21
Ibid.
O aspecto mais revelador do plano de Rush para uma inquisição psiquiátrica é sua
“descoberta” da doença mental que denomina “Perturbação no Princípio da Fé, ou
22
Faculdade de Crença”. Segundo Rush, “essa faculdade da mente está sujeita à
perturbação, bem como à doença; vale dizer, a uma incapacidade para crer em coisas
23
que são confirmadas por todas as provas que usualmente impõem a crença”. Como
exemplos de pacientes que sofrem dessa doença mental, Rush enumera “as pessoas que
negam sua crença na utilidade da Medicina, tal como é praticada por médicos com
educação regular, acreditando implicitamente em charlatães; (e) pessoas que se recusam
a admitir o testemunho humano em favor das verdades da religião cristã, acreditando
24
em todos os acontecimentos da história profana.”
Apresentado de forma tão direta, o objetivo da conversão semântica da moral
para a Medicina fica perturbadoramente claro. Cui bono? Quem ganha com isso? O
paciente? Não. O sacerdote? Não. O médico? Sim.
O fato de a conceituação médica que Rush apresentou doa problemas sociais —
ou da conduta pessoal que não aceitava — ter servido para justificar seu controle médico
é algo que se toma transparente em seus trabalhos escritos e suas frases. Segundo nos
diz Binger: “Se ficava irritado e magoado com as loucuras de seus semelhantes, tentava
25
desculpá-las dizendo que quase todos os homens eram loucos em liberdade.” Rush era
um defensor apaixonado do confinamento psiquiátrico como um método de
“tratamento” e evidentemente preferiria ver seus inimigos colocados atrás das grades
psiquiátricas, ou coisas pior ainda. Por exemplo, para a “mentira (...) como doença”,
receita “o único remédio (...) dor física, aplicada com corda, ou confinamento, ou
26
abstinência de alimento”.
Os mesmos princípios e métodos — diagnóstico médico, seguido por métodos
coercitivos nele baseados — caracterizam a posição de Rush quanto ao alcoolismo. Não
apenas afirma que o “uso do bebida forte” ó uma doença; também defende seu controle
médico coercitivo. Para exercer tal controle, sem hesitação convoca o poder policial do
Estado. Não é difícil entender por que a Psiquiatria americana o coloca como seu
patrono: “Eles [os que usam bebida forte] são objetos da caridade e da tendência
humanitária, da mesma forma que as pessoas loucas. Na realidade, são mais prejudiciais
à sociedade do que o seria a maioria dos pacientes perturbados de hospital comum, se
fosse posta em liberdade. Quem pode calcular a ampla influência de um marido bêbedo
27
sobre sua mulher ou sobre a propriedade e a moralidade de sua família (...)” Assim a
proteção da propriedade e da moralidade se tornou um problema médico. Devemos
notar que Binger está inteiramente de acordo com Rush quanto ao alcoolismo. Comenta
que “Depois de mais de um século e meio, só podemos repetir e aplaudir tais

22
Ibid., p. 271.
23
Ibid., p. 273.
24
Ibid., pp. 273-274.
25
Binger, p. 296.
26
Rush, Medical Inquiries, pp. 265-266.
27
Ibid., p. 267.
sentimentos (...) Até agora, a sociedade ainda não seguiu seu conselho nem atendeu a
28
essa necessidade urgente”.
Assim, a ética puritana se disfarça como preocupação médica baseada em fatos
científicos sobre doenças e suas curas. Disso resultam a retórica psiquiátrica de
diagnóstico e tratamento, bem como a prática psiquiátrica de coerção e opressão, em
nome da saúde mental. Ao assumir essa posição, o médico fanático substituiu o clero
empolgado numa cruzada. Até Binger reconhece que Rush era um reformador
evangélico, dizendo que “nunca foi um cientista puro que pudesse olhar friamente para
29
a loucura humana, e era mais um Savonarola do que um Leonardo”.
Não é surpreendente verificar que “Rush também dedicou seu zelo de reformador
contra o uso habitual de tabaco, que, segundo ele, leva a desejo de bebida forte e é
prejudicial tanto à saúde quanto à moralidade. Pensava que de modo geral os fumantes
30 *
são repugnantes.” Em sua batalha contra o tabaco, bem como na que desenvolveu
contra o álcool, a arma de Rush não era argumento baseado em informação, mas
intimidação baseada em ameaça. Era a velha tática do enxofre e do fogo do inferno,
traduzida para uma linguagem da Medicina. Rush ameaçava seus possíveis pacientes — e
considerava que toda a sociedade era composta de pacientes seus — com as terríveis
consequências médicas da bebida e do fumo, assim como seus irmãos de batina
ameaçavam seus paroquianos — e todos os outros em que pudessem colocar a mão —
com a danação eterna.
Binger diz que Rush “considera-se um médico não apenas de homens e mulheres
31
doentes, mas também dos males da sociedade”. Além disso, “o médico do século XVIII
era uma figura autoritária, e Rush, por causa de seu extraordinário magnetismo pessoal,
bem como de sua inteligência e de sua reputação como o maior médico dos Estados
Unidos, era a encarnação mesma da autoridade. Não hesitava em explorar isso através
32
do emprego de persuasão moral e emocional”.
Binger tenta disfarçar os métodos autocráticos de Rush, pois estes incluíam muito
mais que “persuasão”. Por exemplo, Binger diz que se “seu paciente pensava que tinha
uma serpente no estômago, Rush não hesitava em fazer com que uma serpente fosse
33
colocada em suas fezes”. Isso não era uma mentira isolada. Ao contrário, era um
exemplo da mentira sistemática a serviço do que Rush denominava terapia psiquiátrica.

28
Binger, p. 269.
29
Ibid., p. 198.
30
Ibid., p. 201.
*
Aparentemente, não havia conflito entre a guerra que Rush fazia ao tabaco e sua cordial amizade com Jefferson e outros
proprietários de terra cuja renda decorria principalmente de plantações de tabaco. Por exemplo, no ano de 1799 a colheita de
tabaco obtida por Jefferson chegou a 43.433 libras. (Nathan S. Schachner, Thomas Jefferson, p. 643.) Esta contradição entre
condenar o tabaco como um perigo para a saúde enquanto ao mesmo tempo que se estimular seu cultivo e o lucro obtido com sua
venda, foi algo que Benjamin Rush legou à nação que ajudou a fundar. Por muito tempo esquecida, essa herança foi
recentemente descoberta; o resultado é que hoje o Governo americano condena o fumo através de seu Departamento de Saúde,
Educação e Bem-Estar, mas dá subsídios ao cultivo do tabaco através de seu Departamento de Agricultura.
31
Ibid., p. 173.
32
Ibid., p. 273.
33
Ibid.
Rush dá o seguinte conselho: “É fácil conseguir a cura dos pacientes que pensam que são
de vidro fazendo com que caiam ao sentar-se — puxando-se a cadeira um pouco antes
— e depois mostrando a eles um grande monte de cacos de vidro, como se fossem
34
fragmentos de seu corpo.” De forma semelhante, Rush descreve, e aprova, a cura de
um paciente “que acreditava que era uma planta. Um de seus colegas, que aceitava esse
delírio, convenceu-o de que não poderia viver se fosse regado, e enquanto fazia com que
o paciente acreditasse que estava despejando água de uma chaleira, colocava urina na
35
sua cabeça.” Outro tratamento aprovado por Rush é assim descrito por ele. “Ouvi falar
de uma pessoa que sofria dessa doença (loucura) e que pensava estar morta; ficou
imediatamente curada quando ouviu um médico dizer que abriria seu corpo para
* 36
descobrir a causa de sua morte.”
Tais episódios exemplificam a relação fundamental entre o alienista e o doente
mental, bem como os conceitos paralelos de loucura e cura. Se o cidadão diz uma
mentira, é um doente que sofre de doença mental; se o psiquiatra mente, é um
**
terapeuta magnânimo que realiza um cura.
Binger reconhece que o “controle era o aspecto fundamental da atividade
37
terapêutica de Rush,” mas, ainda aqui, reduz a um mínimo o fanatismo de Rush, bem
como as suas intromissões e sua clara brutalidade. O “controle” de que fala Binger se
dirigia exclusivamente ao paciente. O antocontrole não era parte do “equipamento”
terapêutico de Rush. E o autocontrole continua a ser mercadoria rara no estoque do
psiquiatra contemporâneo. Nada fazer era anátema para Rush. Como penso que os tipos
de medidas “terapêuticas” que Rush usava com pacientes psiquiátricos revelam o tipo de
homem que era (uma ligação igualmente válida para os psiquiatras de hoje), devemos
dar uma especial atenção a elas.
Rush acreditava que, para curar a loucura, o médico precisava ter um controle
completo sobre a pessoa do louco. Não era o único a aceitar essa opinião que, na
realidade, era aceita pela maioria dos médicos de seu tempo, O grande Philippe Pinel —
que, segundo se pensa, retirou as correntes do insano — era um defensor irrestrito da
coerção psiquiátrica. Na verdade, opunha-se ao uso de correntes e ataques físicos aos
doentes mentais, não porque desejasse devolver-lhes a liberdade, mas porque
acreditava que, num hospício corretamente administrado, os pacientes ficariam tão
impressionados com o poder e a autoridade extraordinária dos responsáveis que esses
métodos mais duros de controle seriam desnecessários. O Tratado de Insanidade de
Pinel está cheio de elogios à “intimidação” e “coerção”, o que se pode ver no seguinte

34
Rujh, Midical Inquiries, p. 110.
35
Ibid.
*
Para uma história de “cura” psiquiátrica semelhante, ver a descrição, apresentada por Spitzka, da recuperação de um jovem que
sofria de “insanidade masturbatória” e que se curou ao descobrir que a família planejava interná-lo num hospício para doentes
mentais (capítulo 11).
36
Ibid., p. 111.
**
Rush revolveu o problema moral inerente ao fato de o medico enganar o paciente dizendo que os fins justificam os meios: “...a
mentira (ao paciente) sera justificavel se servir para cura-lo de sua doenca”. (Rush, Medical Inquiries, p. 109.)
37
Binger, p . 273.
trecho: “No entanto, se ele [o louco] enfrenta uma força evidente e convincentemente
superior, submete-se sem oposição ou violência.” “Nos casos anteriores de insanidade,
rastreamos os bons efeitos de intimidação sem severidade; de opressão, sem violência;
* 38
de triunfo, sem excessos.”
Por seu lado, Rush defendia, não apenas mentiras e trapaças conscientes, mas
várias outras intervenções — e especialmente a hospitalização involuntária — como
métodos “terapêuticos”. Nas suas palavras: “Será necessário mencionar os meios para
estabelecer um governo completo sobre os pacientes vítimas de loucura e, assim, ao
conseguir sua obediência, respeito e afeições, permitir que o médico aplique seus
39
tratamentos com facilidade, segurança e acerto.”
Um dos tratamentos prediletos de Rush era o “terror” que, segundo ele, “age
poderosamente no corpo, através da mente, e deve ser empregado na cura da
40
loucura”. Para aterrorizar adequadamente o paciente, era necessário afastá-lo de sua
casa e encarcerá-lo num hospício. Isso é o que Rush considerava terapêutico: “O efeito
41
da privação de liberdade tem sido às vezes extremamente salutar (...)” Na época de
Rush, era fácil proceder a esse encarceramento. Até meados do século XIX, o médico
americano tinha o poder incontestável de impor a detenção médica de qualquer
indivíduo que considerasse necessitado de cuidados por doença mental. Para conseguir
o internamento de um paciente, segundo nos conta Deutsch, tudo o que Rush precisava
fazer era escrever, “num pedaço qualquer de papel que James Sproul é paciente para o
42
Pennsylvania Hospital, e colocar sua assinatura em baixo disso”.
No entanto, seria um erro acreditar que Rush ignorava a privação de liberdade
pessoal inerente ao encarceramento médico ou psiquiátrico. Apenas pensava, como o
fazem muitos psiquiatras contemporâneos, que essa perda de liberdade era amplamente
justificada pela proteção que dava à sociedade. A perspectiva psiquiátrica quanto à
prisão civil não avançou um milímetro com relação à posição de Rush a respeito. Em sua
proposta para encarceramento dos bêbedos, Rush escreve: “Nem se diga que a prisão
dessas pessoas num hospital será um ataque à liberdade pessoal e, portanto,
incompatível com a liberdade de nossos Governos. Não usamos esse argumento quando
colocamos um ladrão na cadeia; apesar disso, considerando o conjunto de males do
maior número de bêbedos, quando comparado ao de ladrões, bem como os maiores

*
Esta opinião continua a ser muito aceita pelos psiquiatras institucionais. Masserman, por exemplo, afirma francamente que a
Psiquiatria pode ser melhor no serviço militar do que na vida civil porque no primeiro ambiente o médico pode exercer uma
“autoridade (...) sobre eles (os pacientes)” que não tem no segundo caso. (Jules Masserman, The Practice of Dynamic Psychiatry,
p. 634.) De forma semelhante, Glasscr considera o controle coercitivo do paciente como uma vantagem técnica, não como uma
responsabilidade moral. Quando uma “mulher rica, jovem, satisfatoriamente casada, mãe de dois filhos e cujo único problema
evidente era peso excessivo (...)” provocantemente pergunta a Glasser porque ele não pode ajudá-la, e compara isso com sua
capacidade para “ajudar” moças delinqüentes internadas, Glasser responde: “Porque não posso trancar você. Se eu pudesse fazer
isso, você sabe tão bem quanto eu que você mudaria.” (William Glasser, Reality Therapy, p. 142.)
38
Philippe Pinel, A Treatise on Insanity, pp. 27, 63.
39
Rush, Medical Inquiries, p. 174.
40
Ibid., p. 175.
41
Ibid.
42
Albert Deutsch, The Mentally III in America, p. 422.
males que a influência de seu exemplo e de sua conduta imoral introduzem na
sociedade, deve ser evidente que a segurança e a prosperidade de uma comunidade são
mais protegidas pela prisão dos bêbedos do que pela dos ladrões. Para impedir a
injustiça ou a opressão, ninguém deve ser enviado para o hospital em vista, ou CASA DA
SOBRIEDADE, sem exame e entrega por um tribunal, formado por um médico e dois ou
* 43
três magistrados, ou funcionários indicados para isso.”
Uma vez que o paciente estivesse psiquiatricamente preso e ficasse incapaz de
resistir aos esforços terapêuticos de seu médico, Rush empregava algumas medidas
extremamente desagradáveis para a pessoa; na realidade, mesmo na época de Rush,
alguns desses métodos se confundiriam com as torturas usadas fora do ambiente
médico. As palavras de Rush revelam isso. Depois de recomendar algumas das medidas
acima resumidas, declara que “se todos os métodos já mencionados forem ineficientes
para conseguir o governo sobre pacientes perturbados, deve-se recorrer a alguns modos
44
de coerção. Depois de resenhar todo o conjunto de suas intervenções psiquiátricas,
Rush nota, com evidente satisfação, que “pela aplicação adequada desses modos leves e
aterrorizantes de castigo, raramente se necessitará de correntes e nunca se precisará de
açoites para governar as pessoas loucas. No uso dos últimos, faço exceção para os casos
em que um ataque repentino e não-provocado [sic!] aos médicos ou atendentes pode
fazer com que um ou dois açoites com corda, ou tapas com a mão, sejam uma medida
45
necessária de autodefesa”.
Às vezes Rush classifica seus métodos como “tratamentos”, e às vezes como
“castigos”. O exemplo seguinte mostra muito claramente o que Rush pensava dos
loucos: compara-os a animais não-domados e considera que o dever do médico é
dominá-los. Em sua lista de recomendações terapêuticas — entre as quais encontramos
“confinamento por camisa-de-força”, (...) privação de seu alimento usual e agradável,
46
(...) despejar água fria sob a camisa (...)”, sangria, solidão, escuridão — Rush inclui
“uma posição ereta do corpo”. Esse método é empregado da seguinte forma: “Existe um
método de domar cavalos rebeldes na Inglaterra, encurralando-os, e depois impedindo
que deitem ou durmam, colocando-se pregos pontudos em seus corpos, durante dois ou
três dias e noites. Não tenho dúvida de que as mesmas vantagens podem ser obtidas se
colocarmos os loucos em posição ereta, e acordados, durante vinte e quatro horas, mas
47
por meios diferentes e mais suaves.”
Uma das mais famosas invenções terapêuticas de Rush foi um aparelho que
denominou o “tranquilizante”. Deutsch descreve esse aparelho da seguinte maneira:

*
Os princípios e práticas de justiça psiquiátrica, aqui defendidos por Rush, não apenas caracterizam a administração da lei
soviética, mas estão-se tornando cada vez mais influentes na administração da lei inglesa e americana. A organização política
disso resultante foi por mim intitulada o “Estado Terapêutico”. (Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, e Psychiatric
Justice.)
43
Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, e Psychiatric Justice.
44
Ibid., p. 181.
45
Ibid., p. 183.
46
Ibid., pp. 181-192.
47
Ibid., p. 192.
“...o tranquilizante era formado por uma cadeira ao qual o paciente era amarrado pelos
pés e pelas mãos, além de uma parte que mantinha a cabeça numa posição fixa. Esse
mecanismo pretendia reduzir o pulso ao diminuir a ação muscular (...) do corpo do
paciente. Hoje seria considerado um instrumento para tortura demoníaca; realmente foi
48
inventado por causa dos sentimentos humanitários de Rush.” Aparentemente, os
contemporâneos de Rush também consideravam esse instrumento como uma forma de
*
tortura, pois não há provas de que voluntariamente se tenham submetido a ele.
Tal como ocorreu com muitas invenções e descobertas psiquiátricos, a cadeira
tranquilizante de Rush era uma adaptação de um instrumento inquisitorial para lidar
com bruxas, e que era denominado cadeira de bruxa. Esse aparelho era uma “cadeira de
ferro, com tachas chatas, e na qual a acusada era amarrada, enquanto se acendia fogo
embaixo da cadeira (...) A ideia de tortura era que ajudava a verdade. A dor levava o
espírito humano ao seu último ponto de existência mortal; aí, em sua nudez, era
49
interrogado e respondia às perguntas.”
A segunda invenção psiquiátrico-terapêutica de Rush era uma máquina chamada
o “girador”. Era uma “prancha giratória a que se prendiam os pacientes que sofriam de
'loucura apática', com a cabeça colocada o mais longe possível do centro. Podia ser
50
girado a grandes velocidades, fazendo com que o sangue corresse para a cabeça. (...)”
Na realidade, é uma ironia que hoje, quando os psiquiatras e cientistas sociais
friamente rejeitam o “patriotismo” como uma justificativa para a violência contra
inimigos externos, carinhosamente aceitem o “terapeuticismo” como uma justificativa
para a violência contra doentes mentais. Como acabamos de ver, Deutsch nos diz que
Rush inventou o “tranquilizante” por causa de “considerações humanitárias”. Na
realidade, não podemos saber com certeza por que o inventou. Sabemos apenas que
Rush afirmava que tinha sido motivado por benevolência. Numa carta datada de 1810,
assim descreveu o objetivo dessa invenção: “Para eliminar os males [da camisa-de-força]
e ao mesmo tempo conservar todos os benefícios da coerção, fiz uma solicitação a um
51
carpinteiro engenhoso (...)” (Os grifos são meus.) Binger, no entanto, defende
coerentemente as ações de Rush como inteiramente justificadas por seus motivos.
A Psiquiatria não abandonará seus métodos violentos e coercitivos a não ser que
os repudie em seus heróis. É por isso que critico não apenas o tratamento dado por Rush
aos insanos, mas também a sua aceitação e sua defesa feitas pelos psiquiatras e

48
Deutsch, p. 79.
*
Com o desenvolvimento de técnicas farmacológicas modernas, os psiquiatras passaram a usar barbitúricos para extrair a
verdade de seus doentes mentais, e fenotiazinas para dominá-los. O “estoque” (como é indicado pelos psiquiatras com orientação
médica) do terapeuta psiquiátrico na realidade acompanhou os progressos na tecnologia da violência. Assim como os soldados já
não precisam ser mortos pela baioneta em combate corpo a corpo, e podem ser mortos por bombas lançadas de aviões, também
os doentes mentais já não precisam ser amarrados em camisas-de-força, e podem receber injeções de medicamentos, que, se
necessário, podem ser injetados neles com revólver especial para isso. Ver “Bringing violent psychotics back alive; gun that fires
drug-filled syringe is aimed at subduing patients safely”. (Med. World News, 8 de set., 1967, p. 71.)
49
Charles Williams, Witchcraft, p. 178.
50
Deutsch, p. 79.
51
Ibid.
**
cientistas sociais contemporâneos. Já não é possível discutir os fatos. Mesmo Deutsch
os reconhece, embora sobre eles escreva sem condenar Rush ou outros “grandes”
benfeitores psiquiátricos. Comenta que “por estranho que pareça, as torturas e terrores
que tinham sido aplicados em épocas anteriores como castigos diretos, receberam nesse
período as bênçãos de teoria médica respeitável como medidas terapêuticas elogiáveis.
(...) Os médicos especializados nos cuidados com os insanos superaram-se na invenção
52
de engenhosos mecanismos para aterrorizar.” Mas isso só é estranho se insistimos em
ver a doença mental como doença e não como uma noção substituta da heresia; se
insistimos em ver os psiquiatras como médicos e não como os substitutos e sucessores
dos inquisidores; se insistimos em ver as intervenções psiquiátricas como tratamentos e
*
não como substitutos dos castigos impostos pelas torturas inquisitoriais.
O “tranquilizante” e o “girador” não eram os únicos métodos terapêuticos de
Rush. Ele usava o “mergulho” que consistia em imergir a paciente na água e dizer-lhe
que seria afogada. Deutsch defende essa crua adaptação da provação pela água, imposta
pelo caçador de bruxas, dizendo que as terapias de Rush “era realmente delicadas,
quando comparadas aos métodos aceitos por muitos de seus mais celebrados
53
contemporâneos”, enquanto Binger fala no “mergulho” como uma “forma de
54
intimidação engenhosa.”
Assim, o pai da Psiquiatria americana aparece como uma pessoa autoritária,
dominadora, violenta e fanática que via doença mental em toda parte, e que estava
disposto a usar as medidas mais aterrorizantes para controlar esse tremendo flagelo.
Nessa postura reconhecemos a origem do mal do qual supostamente nos guarda o
protetor. Esse tipo de “diagnosticador” — sacerdote ou médico — não encontra
feiticeiras ou loucos; é ele que os cria. Evidentemente, ninguém pode dizer quantas

**
As seguintes citações, embora pequenas, devem ser suficientes para mostrar como os psiquiatras propagandistas idolatram
Rush. “Era seu coração que se revoltava diante do tratamento desumano do insano.” (Sarah R. Riedman e Clarence C. Green,
Benjamin Rush, p. 233.) “[Rush estava] trabalhando para fazer o bem, mesmo quando se comportava pior (...) [Ele] sempre
procurava, por mais violentos que fossem os seus métodos, ser humano.” (James Thomas Flexner, “He sought to do good”, New
York Times Book Reviews, 13 de nov. 1966, p. 60.) Embora os psiquiatras e historiadores da Psiquiatria tenham apenas elogios a
Rush como um grande humanista, médico, e cientista, outros, não identificados com o Movimento da Saúde Mental, nele vêem
exatamente o oposto. Assim, Thomas Jefferson, que conhecia bem Rush e o considerava um amigo, nele reconhecia a ameaça
médica que real mente era. Numa carta ao Dr. Thomas Cooper, em 1814, escreve Jefferson: “Em sua teoria de sangria e
mercúrio, sempre me opus a meu amigo Rush, embora sempre tenha gostado muito dele; mas ele fez muito mal, na convicção
sincera de que estava preservando a vida e felicidade de todos os que o cercavam.” (Citado em Maurice B. Strauss [org.],
Familiar Medical Quotations, p. 425.) William B. Bean, professor de Medicina na Universidade de Iowa e notável erudito da
história da Medicina, reafirma o juízo que Jefferson fazia de Rush: “Os aspectos heróicos de Benjamin Rush [escreve ele] (...)
nos fizeram esquecer o mal que causou. Sua disposição para seguir as indicações da ignorância, suas convicções dogmáticas de
que estava certo, sua extrema capacidade para enganar-se, sempre o ajudaram a matar um número incalculável de pacientes em
Filadélfia. (William B. Bean, “Bring out your dead” [editorial], Arch. Intern. Med., 117: 1-3 [jan.], 1966; p. 3.)
52
Ibid., p. 81.
*
Diz-se que um inquisidor espanhol anônimo observou, a propósito dos terrores da Inquisição, que “não tem muita importância
o fato de que aqueles que morrem por causa da religião sejam culpados ou inocentes, desde que aterrorizemos o povo com esses
exemplos”. (Herbert J. Muller, Freedom in the Western World, p. 173.) Esse comentário também se aplica aos métodos da
medicina pré- científica e da Psiquiatria Institucional. Evidentemente, as ligações psicológicas entre ajuda e crueldade foram
muitas vezes notadas. Eis o que Russell nos diz a respeito: “Quando examinarmos as opiniões de épocas anteriores e que agora
consideramos absurdas, verificaremos que, nove vezes em dez, eram apresentadas para justificar a imposição de sofrimento (...)
Não sou capaz de pensar em casos de um tratamento médico errado que fosse agradável, e não desagradável, para o paciente.”
(Bertrand Russell, Unpopular Essays, p. 148.)
53
Ibid., p. 80.
54
Binger, p. 277.
vítimas Rush criou. Uma delas, no entanto, merece ser rapidamente mencionada. Estou
falando de John, seu filho.
Pode parecer falta de caridade discutir a vida familiar do psiquiatra cujas ideias e
práticas estamos analisando. Como a maioria das pessoas, considero repugnantes os
argumentos ad hominem; não pretendo empregar qualquer deles. No entanto, existe
uma importante diferença, sobretudo no estudo do comportamento humano, entre os
esforços para repudiar as realizações e as ideias de um homem, ao indicar algum aspecto
pouco edificante de sua vida pessoal, e notar algum aspecto de sua vida para verificar a
importância que teve sobre ele, como um indivíduo, seja na vida particular, seja na vida
publica. Penso que este último emprego de informação pessoal sobre psiquiatras,
psicólogos, políticos, artistas e outras pessoas pode ser legítimo e esclarecedor.
Não é difícil ver que o filho mais velho de um homem como Benjamin Rush
deveria ter alguns problemas difíceis para construir uma identidade própria. Foi isso o
que aparentemente aconteceu. John Rush começou a estudar Medicina, desistiu dela
para começar uma carreira na marinha, voltou à Medicina e obteve o seu diploma, mas
novamente a abandonou. No dia 11 de dezembro de 1802, Benjamin Rush fez a seguinte
observação no seu Commonplace Book: “Hoje, meu filho John recomeçou seu estudo de
Medicina. Eslava ele tão ansioso para voltar para minha casa e meus trabalhos que disse
que “substituiria um dos meus empregados e até limparia meu estábulo, em vez de
55
continuar sua vida na marinha”. Podemos perguntar por que o filho precisava, ou
pensava que precisava, humilhar-se diante do pai antes de voltar para casa; e perguntar
por que o pai registrou essa humilhação do filho no diário.
John voltou para casa e obteve o diploma de médico em 1804. Sua tese foi
dedicada ao pai. Depois, em vez de aceitar um emprego no Philadelphia General Hospital
— onde estaria sob a sombra do pai — voltou para a marinha como mestre de
cabotagem. Sua carreira naval durou menos de quatro anos. Em 1807. John Rush teve
um duelo com Benjamin Taylor, um de seus amigos mais íntimos, no qual o matou.
Menos de um ano depois disso, tentou o suicídio. Em fevereiro de 1810, John voltou
para a casa do pai. Este o descreveu da seguinte maneira: “Nem os abraços nem as
lágrimas de seus pais, seus irmãos ou irmãs puderam fazer com que falasse com eles. Sua
dor, seu cabelo despenteado e sua longa barba aumentavam o sofrimento provocado
56
pela doença de sua mente. (...)”
57
Não é possível nem necessário reconstruir aqui o destino de John. Deve ser
suficiente registrar o que aconteceu com ele: foi fechado no hospital de seu pai, onde
*
permaneceu, com a exceção de uma pequena “melhora”, até morrer vinte e sete anos
mais tarde.

55
Benjamin Rush, Commonplace Book of Benjamin Rush, 1792-1813, em The Autobiography of Benjamin Rush, pp. 213-360; p.
282.
56
Ibid., p. 288.
57
A história de John Rush é recontada no Apêndice 3 de Benjamim Rush’s Autobiography, pp. 369-371.
*
Anotação no Commonplace Book, em 2 de setembro de 1810: “Neste dia, meu filho John veio um pouco melhor do hospital,
mas não está bem. Voltou para o hospital seis dias depois, muito pior.” (Em The Auto-biography of Benjamin Rush, p. 294.)
A 2 de janeiro de 1811, Rush escreve a Jefferson: “Meu filho está melhor.
Começou a prestar atenção a suas roupas, e de vez em quando abre um livro. (...) Está
agora numa cela no Pennsylvania Hospital, onde há muita razão para acreditar que
58
terminará seus dias.” “Este prognóstico”, comenta Binger friamente, “foi muito
59
correto.”
Mas certamente isso não faz justiça ao que aconteceu. Rush não apenas
“prognosticou” que seu filho ficaria confinado pelo resto de sua vida; na realidade,
iniciou o confinamento. Binger não comenta o fato de que Rush era responsável pelo
Pennsylvania Hospital e era, portanto, não apenas o pai de John, mas também seu
médico, seu psiquiatra e seu carcereiro. Na época de Rush, tanto quanto hoje, era
costume que os médicos não tratassem de pessoas de sua família.
Este retrato de Rush como médico e como psiquiatra estaria incompleto se não se
falasse em sua atitude com relação ao negro. Como um dos signatários da Declaração de
Independência e um dos primeiros abolicionistas, geralmente se pensa em Rush como
um grande liberal, isto é, um amante da liberdade. Isso está longe da verdade. Embora
*
amasse a liberdade, amava muito mais o poder. Suas ideias a respeito dos negros
revelam essa afirmação de uma forma surpreendente.
Binger insinua a existência de uma semelhança, talvez uma ligação, entre a
oposição de Rush à escravidão e sua oposição à bebida: “Havia dois temas que
continuavam a atormentar Rush e a impedir sua tranquilidade: um era a existência da
escravidão nos Estados Unidos (...); o outro era o abuso de bebidas alcóolicas e a grande
60
difusão do alcoolismo.”
Segundo Rush, os negros lhe despertavam uma emoção especial. Escreveu o
seguinte a Jeremy Belknap: “Amo até o nome África, e nunca vejo um negro, escravo ou
livre, sem emoções que raramente sinto com a mesma intensidade com relação a meus
61
infelizes semelhantes de constituição mais agradável.” É significativo que Rush utilize a
palavra “infelizes” para seus semelhantes brancos, pois esse termo é usualmente
empregado pelos médicos para pacientes com doenças incuráveis. A atitude de Rush
com relação aos negros revela seu profundo paternalismo. Como muitos liberais
contemporâneos, Rush faz uma discriminação inversa: considera o negro como muito
valioso, e assim se define implicitamente como generoso e protetor.
Mais surpreendente do que o confessado amor de Rush pelos negros é sua teoria
da negritude. Rush não acredita que Deus tenha criado os negros como pretos; nem que
o negro seja preto por natureza. Ao contrário, acredita que a negritude seja uma doença!
Esta teoria — muito coerente com sua perspectiva pan-médica da vida e seu fanatismo

58
Citado em Binger, p. 288.
59
Ibid.
*
“O amor do poder e o amor da liberdade estão em antagonismo eterno”, observou John Stuart Mill. (Em The Subjection of
Women, p. 313.)
60
Ibid., p. 197.
61
Ibid.
terapêutico com relação a tudo o que considerava inferior ou de que não gostava —
merece uma atenção um pouco maior.
A geração de Rush estava dividida entre as afirmações da Declaração da
Independência e as realidades da escravidão negra. O núcleo da Declaração era a
“verdade evidente por si mesma (...) de que todos os homens são criados iguais”. O
núcleo da escravidão era a crença profundamente arraigada de que o negro é
racialmente inferior ao branco. Em suas almas, os americanos ansiavam pela solução
dessa amarga contradição. Rush tentou encontrar uma saída. A solução que apresentou
— como tantas outras soluções psiquiátricas para dilemas morais — dava uma
justificação para o status quo.
As origens exatas do conceito de negritude como doença foram as seguintes. Por
volta de 1792, começaram a aparecer pontos brancos no corpo de um escravo negro
chamado Henry Moss. No espaço de três anos, ele ficou quase que completamente
branco, Moss tinha os sintomas de uma doença hereditária que conhecemos como
vitiligo. Essa condição, que se caracteriza por progressiva perda de pigmentação da pele,
ocorre tanto em pessoas brancas quanto negras. Nos Estados Unidos, aproximadamente
uma pessoa em cem sofre dessa moléstia.
Em 1796, com cartas de apresentação, Moss foi para Filadélfia, se anunciou em
impressos públicos, se exibiu pelo preço de ingresso, então considerável, “de um quarto
62
de dólar por pessoa” e usou os lucros para comprar sua liberdade. Evidentemente, isso
era demais para Rush. Como o inquisidor que vê heresia em qualquer lugar para que
dirija seu olhar, isso era tudo de que Rush precisava para ver doença. No entanto, o que
é notável é que tenha considerado a cor biologicamente normal do negro como uma
doença, e a perturbação de pele de Moss como uma “cura espontânea”.
Numa reunião especial da Sociedade Filosófica Americana, realizada a 14 de julho
de 1797, Rush leu um trabalho intitulado “Observações destinadas a sustentar a
63
suposição de que a Cor preta (tal como é chamada) dos negros deriva da LEPRA”. Nesse
trabalho, Rush argumentava, segundo o resumo feito por Daniel Boorstin:
... para chegar à conclusão de que a chamada cor preta do negro era o efeito, não de
qualquer diferença original em sua natureza, mas do sofrimento de lepra por seus
ancestrais. Esta doença, segundo observava, era acompanhado em alguns casos por uma
cor preta da pele. Os lábios grossos e o nariz chato, típicos dos negros, eram na realidade
sintomas de lepra, mais de uma vez observados pelo próprio Rush. Os habitantes das ilhas
de lepra do Pacífico Sul possuíam lábios grossos e cabelo encaracolado, e o albinismo
(também encontrado em negros americanos) não era desconhecido nessa região. A mesma
insensibilidade mórbida dos nervos, provocada pela lepra, era encontrada peculiarmente
nos negros, que, comparados aos brancos, eram mais capazes de suportar operações
cirúrgicas. Rush lembrava casos em que os negros na realidade seguravam a parte superior
de um membro durante a amputação. Essa insensibilidade patológica era também

62
William Stanton, The Leopard’s Spots, p. 6.
63
Benjamim Rush, “Observations intended to favour a supposition that the blak color (as it is called) of the Negrões is derived
from the LEPROSY”, Trans. Amer. Phil. Soc., 4: 289-297, 1799.
aparente na apatia com que os negros se expunham a grande calor, bem como a
indiferença com a qual seguravam carvões quentes. Os leprosos eram notáveis por
intensos desejos sexuais; e esses desejos eram tão intensos no negro que mesmo as
circunstâncias deprimentes da escravidão não tinham impedido sua extraordinária
fertilidade. Quando solicitado a explicar a duração da cor dos negros através dos séculos,
Rush respondeu que, de todas as doenças, a lepra era a mais permanentemente herdada.
Segundo Rush, o fato de que no século XVIII os negros raramente passavam essa doença a
outros não pode ser argumento contra sua teoria, pois nessa época a doença praticamente
64
tinha deixado de ser infecciosa.
O núcleo da teoria de Rush era que o negro sofria de uma lepra congênita que “...
65
aparecia em forma tão branda que a pigmentação excessiva era seu único sintoma”.
Segundo Rush, Henry Moss estava passando por cura espontânea.
Com essa teoria, Rush fazia com que o negro se tornasse um empregado
doméstico aceitável do ponto de vista médico, enquanto que ao mesmo tempo exigia
sua segregação sexual para impedir que transmitisse uma doença hereditária muito
temida. Portanto, aqui estava um modelo inicial do conceito médico perfeito de doença
— um conceito que ajuda o médico e a sociedade a que este serve, ao mesmo tempo
*
que justifica os maus tratos sociais como profilaxia médica.
Nas palavras de Stanton, “depois de ter verificado que a cor do negro era um
sintoma de lepra endêmica”, Rush tirou três conclusões. Em primeiro lugar, “os brancos
devem deixar de tiranizá-los, pois sua doença deve torná-los dignos de uma parte dupla
de nossa humanidade”. No entanto, e por isso mesmo, os brancos não devem casar-se
com eles, pois isso “tenderá a infeccionar a posteridade com a perturbação (...)
66
Finalmente, devemos fazer esforços para curar a doença.”
Não fica claro se Rush pensava que negro devesse dizer se desejaria ou não ser
curado, ou se pensava que, para o tratamento do negro, assim como do louco, “o que
vale é a palavra do médico”. De qualquer forma, Rush anunciava que “recentemente, a
natureza indicou o caminho nesse caso. Começou a cura espontânea dessa doença em

64
Boorstin, p. 90.
65
Stanton, p. 7.
*
Se um dos chamados doentes mentais tivesse uma teoria tão evidentemente útil para ele, diríamos que sua explicação era uma
“projeção”, e diríamos que seria um “paranóico”. No entanto, como diz o provérbio indiano: “O que interessa é saber de quem é
o guru que está sendo ferido.”
Deve-se notar que em sua longa biografia de Rush, que trata principalmente das suas atividades médicas, Binger consiga não
dizer uma só palavra a respeito da teoria da pele preta dos negros. A teoria da lepra e o silêncio de Binger revelam a função
estratégica da retórica da doença na Psiquiatria. A teoria de Rush destinava-se a ajudar os brancos a aceitar o negro como um
homem, ao mesmo tempo que o rejeitava como um paciente infeccioso. É de se supor que a omissão de Binger tenha um objetivo
semelhante — isto é, ajudar os americanos a aceitarem a doença mental como um problema médico, ao mesmo tempo que
rejeitam o doente mental como um marginal social. Se Binger tratasse da teoria da negritude de Rush, estimularia o leitor a
pensar que as teorias de doença mental de Rush não seriam melhores do que as da negritude, e assim passaria a ter dúvidas
quanto ao fundamento mesmo do Movimento de Saúde Mental. E Binger também não está sozinho nessa maneira de reescrever a
história da Psiquiatria. Nenhum dos manuais usuais de história da Psiquiatria menciona a teoria de Rush sobre a lepra da
negritude.
66
Ibid., pp. 12-13.
67
várias pessoas negras neste país.” Aqui, estava fazendo referência ao caso de Henry
Moss, já mencionado.
Rush esperava que as tentativas para tratar os negros dessa lepra seriam
estimuladas quando os filósofos compreendessem até que ponto aumentaria a felicidade
humana. Essa cura, segundo Rush, “provocaria uma grande felicidade no mundo (ao
destruir) um dos argumentos favoráveis à escravização do negro, pois os ignorantes
68
supõem que a sua cor os marca como objetos de juízos divinos...” Vale a pena notar,
aqui, a substituição de uma explicação religiosa cruel por uma explicação científica
benévola. Evidentemente, Rush tirou de sua ideologia médica, aplicada a alcoolismo,
fumo, insanidade ou negritude — o que tinha posto nela: a Bíblia. Perturbados com a
escravidão, os contemporâneos de Rush encontraram uma nas Escrituras justificativa
para a escravização do negro: Deus tinha marcado o negro para mostrar sua posição
69
inferior aos olhos do Criador. Rush buscou a ciência, e nela encontrou aquilo que
procurava: não foi Deus, foi a natureza que marcou o homem negro; sua negritude, além
*
disso, é um sinal, não de seu “pecado congênito”, mas de sua “doença congênita”.
Segundo Rush, essa cura aumentaria a felicidade do negro, pois “por mais felizes
70
que pareçam com sua cor, há muitas provas de que preferem a das pessoas brancas.”
Assim, em sua atitude com relação ao negro, Rush aceita o princípio fundamental
da Psiquiatria Institucional, isto é, que o “paciente” não conhece, e por isso não pode
proteger, os seus interesses. Precisa do médico para isso. Em 1796, o psiquiatra sabia
que o negro preferiria ser branco. Hoje, o psiquiatra sabe que o supostamente viciado
em drogas preferiria não tomar drogas; que o homossexual preferiria ser heterossexual;
**
que o suicida preferiria viver. O resultado disso é que o psiquiatra deprecia a
experiência humana e pretende destruir terapeuticamente as diferenças humanas.
Rush nos permite compreender até que ponto são pouco originais, e, apesar
disso, como são duradouras, as posturas terapêuticas do psiquiatra contemporâneo.
Desde a Inquisição, os opressores têm insistido em vestir os uniformes de ajudantes.
Inicialmente, usavam o uniforme do sacerdote. Hoje, não se apresentam sem aventais
médicos. O paternalismo benevolente (se desejamos dar nome tão errado aos males

67
Ibid., p. 13.
68
Ibid.
69
Ver, por exemplo, David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture, especialmente capítulos 6 e 7.
*
Definir como uma doença o que para o Outro é fisiologicamente natural (por exemplo, a pele preta do negro), ou pessoalmente
desejável (por exemplo, as doenças da pessoa considerada louca), e como tratamentos os esforços do médico para mudá-las para
condições e crenças mais atraentes para a profissão médica ou a sociedade, tem sido, e continua a ser, uma estratégia
característica da Psiquiatria Institucional.
70
Stanton, p. 13.
**
Quase todo artigo ou livro sobre o “cuidado” do doente mental involuntário pode ser usado para exemplificar a afirmação de
que os médicos voltam ao paternalismo para justificar suas exigências de controles coercitivos em situações em que o paciente,
ou suposto paciente, discorda dele. “Alguns casos [não indivíduos!] — escreve Solomon num artigo recente sobre o suicídio —
(...) devem ser considerados irresponsáveis, não apenas com relação, a impulsos violentos, mas também todos os assuntos
médicos. Nessa classe, que ele rotula de “Os Irresponsáveis”, coloca “As Crianças”, “Os Mentalmente Retardados”, “Os
Psicóticos” e “Os Severamente Atingidos por Doença Mortal”. A conclusão de Solomon é que “Por mais repugnante que isso
possa ser, ele [o médico] pode precisar agir contra os desejos do paciente a fim de proteger a vida deste último, bem como a de
outros.” (Philip Solomon, “The burden of responsability in suicide”, J.A.M.A., 199: 321-324 [30 de janeiro], 1967.)
humanos) era o artigo de fé básico e a arma estratégica fundamental para o domínio,
pelos sacerdotes dos considerados pecadores; e continuou a sê-lo para o domínio, pelo
psiquiatra, dos que considera loucos. Em Rush, as características desses dois tipos de
opressores estavam perfeitamente combinadas numa única identidade. Ao propor a
lepra como uma explicação para a pele preta do negro, deixou escapar que não defendia
essa hipótese apenas porque acreditasse que fosse verdadeira, mas, mais importante
ainda, porque a considerava socialmente útil. Assim, Rush sustentava que, ao aceitar a
teoria da lepra da negritude, “tornaremos fácil e universal a crença de que a espécie
humana descende de um só par, e assim não apenas aumentamos o peso da revelação
cristã, mas afastamos um obstáculo natural ao exercício dessa benevolência universal
71
que é por ela imposta.”
Aqui, vemos como Rush pede a aceitação de sua teoria porque esta aumenta o
“peso da revelação cristã”, e porque ajuda seus semelhantes brancos americanos a
“exercer (...) a benevolência universal”, com relação ao negro. O que essa retórica
floreada disfarça é o fato de Rush defender a separação entre as raças, justificada, não
pelos esquemas superados da posição tradicional em favor da escravidão, mas pelas
últimas descobertas da “ciência médica”. Isso não é apenas minha explicação das
intenções de Rush: é ele quem diz isso. Escreve que, “se a cor dos negros é efeito de
doença, os fatos e princípios aqui apresentados devem ensinar às pessoas brancas a
necessidade de conservar o preconceito contra essas ligações com eles que tenderiam a
72
infeccionar a posteridade com alguma parte dessa perturbação.”
O caráter chauvinista, e até racista, dessa teoria não escapou aos historiadores.
Segundo a observação de Boorstin, em todo o argumento de Rush a respeito do negro
“existia a suposição (tanto mais significante pelo fato de não ser explicitamente
reconhecida) de que a norma para a cor de um membro sadio da espécie humana é a cor
branca. Era inconcebível para Rush que, quando o negro fosse curado de sua doença e
voltasse à sua condição primitiva, tivesse a aparência vermelha do índio americano ou a
cor amarela do asiático. Um dos argumentos finais para redobrar o esforço para realizar
uma cura era que o negro poderia ter a felicidade de ter a cor branca e adequada da pele
73
humana.”
A teoria de lepra da negritude — antecessora das teorias psiquiátricas
contemporâneas de grande diversidade de comportamentos — é realmente uma
paródia à Orwell da Medicina a serviço do controle comportamental. Rush a empregou
principalmente como expressão de sua paixão reformista, tão ilimitada em sua
intolerância das diferenças humanas quanto em seu fanatismo terapêutico. Como o
inquisidor que aceita o herético se este se desdiz e aceita a fé verdadeira, também Rush
aceita o negro se este puder ser curado de sua negritude e se tornar branco!

71
Boorstin, p. 91.
72
Ibid.
73
Ibid., p. 92.
É precisamente isso o que caracteriza o homem como inimigo das diferenças
humanas. Aceita o Outro na medida em que o Outro se conforma à sua imagem e à sua
conduta. No entanto, se ele e o Outro são diferentes, define o Outro como deficiente —
física, mental e moralmente — e só o aceita na medida em que é capaz de afastar os
aspectos que o isolam do normal. Se o Outro renuncia às suas crenças falsas, ou se
submete a tratamento para sua doença, então, e apenas então, será aceito como um
membro do grupo. Se não consegue fazer isso, o Outro se torna o Mau — quer seja
chamado o Estranho, o Paciente, ou o Inimigo.
Este princípio, tão claramente enunciado por Benjamin Rush, se tornou a marca
da Psiquiatria Institucional; as estratégias nela implícitas, tão entusiasticamente
empregadas por ele, se tornaram os métodos terapêuticos do psiquiatra institucional.
10
O PRODUTO DA CONVERSÃO —
DA HERESIA À DOENÇA

Mesmo a pessoa com maior preconceito deve admitir que


essa religião sem teologia [positivismo] não pode ser
acusada de relaxamento das restrições morais. Ao contrário,
prodigiosamente exagera tais restrições.
1
John Stuart Mill

No trabalho de Benjamin Rush, rastreamos as manifestações da grande conversão


ideológica — da Teologia para a Ciência. Vimos como Rush redefiniu o pecado como
doença, e a sanção moral como tratamento médico. Neste capítulo, iremos analisar esse
processo em termos mais amplos e mostrar que, na medida em que a ética social
dominante passou de religiosa a secular, o problema da heresia desapareceu, e o
problema da loucura surgiu e adquiriu grande significação social. No capítulo seguinte,
iremos examinar a criação dos divergentes sociais, e mostrar que, assim como antes os
sacerdotes criavam heréticos, os médicos, os novos guardiães da moralidade e da
conduta social, começaram a fabricar loucos.
A mudança, de uma conceituação e de controle de conduta pessoal pela religião e
pela moral, para um universo social e médico, influiu em toda a Psiquiatria e nos campos
afins. Talvez em nenhum outro aspecto essa transformação seja mais evidente do que na
perspectiva contemporânea do chamado desvio sexual, e sobretudo da
homossexualidade. Por isso, iremos comparar o conceito de homossexualidade,
predominante na época das caçadas às bruxas, ao conceito de homossexualidade como
doença mental, hoje mais difundido.
O comportamento homossexual — como o comportamento heterossexual e auto-
erótico — ocorre entre os macacos superiores, e entre os seres humanos que vivem em
condições culturais muito diversas. A julgar por registros artísticos, históricos e literários,
também ocorria em sociedades e épocas antigas. Hoje, é parte do dogma da opinião
americana psiquiatricamente esclarecida que a homossexualidade é uma doença — uma
forma de doença mental. Essa é uma opinião relativamente recente. No- passado, os
homens tinham opiniões muito diferentes a respeito da homossexualidade, desde
aceitá-la como atividade perfeitamente natural até proibi-la como o mais hediondo dos

1
John Stuart Mill, Auguste Comte and Positivism, p. 142.
crimes. Aqui, não iremos discutir os aspectos culturais e históricos da
2
homossexualidade; em vez disso, vamos nos limitar a uma comparação entre a atitude
com relação à homossexualidade durante as caças às bruxas e em nossos dias. Como a
sociedade do fim da Idade Média e a do Renascimento estavam profundamente
imbuídas dos ensinamentos do Cristianismo, inicialmente iremos apresentar uma
resenha das principais referências bíblicas a esse assunto.
A Bíblia proíbe praticamente qualquer forma de atividade sexual que não seja a
relação heterossexual e genital. A homossexualidade é proibida inicialmente no Gênese,
na história de Lot. Uma noite, dois anjos chegaram a Sodoma, disfarçados de homens.
Lot os encontra nas portas da cidade e os convida para sua casa. Inicialmente, os anjos
recusam a hospitalidade de Lot, oferecendo-se para passar a noite na rua; mas, diante da
insistência de Lot, segundo nos diz o Velho Testamento, “entraram em sua casa; e ele
fez-lhe um banquete, e cozeu bolos sem levadura, e comeram. E antes que se deitassem,
cercaram a casa os varões daquela cidade, os varões de Sodoma, desde o moço até o
velho; todo o povo de todos os bairros. E chamaram a Lot, e disseram-lhe: Onde estão os
3
varões que a ti vieram nesta noite? Trá-los fora a nós, para que os conheçamos.”
Os homens de Sodoma desejavam usar os viajantes como objetos sexuais. Entre
os antigos israelitas, no entanto, quem dava abrigo a estranhos era obrigado a protegê-
los de maus tratos. Por isso, Lot ofereceu suas filhas como objetos substitutos: “Então
saiu Lot a eles à porta, e fechou a porta atrás de si, e disse: Meus irmãos, rogo-vos que
não façais mal: eis aqui, tenho, duas filhas, que ainda não conheceram varão: fora vo-las
trarei, e farei delas como bom for aos vossos olhos; somente nada façais a estes varões,
4
porque por isso vieram à sombra do meu telhado.”
Como aí se sugere, a homossexualidade era considerada um delito grave. Esta
história também revela a imensa desvalorização das mulheres, como seres humanos, na
ética do judaísmo antigo. Lot dá mais valor à dignidade de seus hóspedes masculinos do
que à de suas filhas. A ética cristã não elevou muito acima da judaica o valor da vida
feminina; nem a ética clínica a elevou muito acima da clerical. É por isso que a maioria
das pessoas identificadas como feiticeiras pelos inquisidores masculinos eram mulheres;
por isso também, a maioria das pessoas diagnosticadas como histéricas, por psiquiatras
masculinos, eram mulheres.
O episódio de Sodoma é, indiscutivelmente, a primeira descrição, na história
humana, de ciladas para os homossexuais, uma estratégia muito usada pelas agências
legais nos países ocidentais, principalmente nos Estados Unidos. Na realidade, os
homens de Sodoma foram apanhados numa cilada pelos dois estrangeiros, que na
realidade não eram viajantes, mas anjos, isto é, os policiais de Deus, vestidos à paisana.
Esses agentes do grupo policial bíblico não perderam tempo em punir os delinquentes:

2
Para um relato clássico da homossexualidade em épocas passadas e em várias culturas, ver Edward Westermarck, The Origin
and Development of the Moral Ideas, Vol. II, capítulo XLIII, pp. 456-489; para uma exposição mais recente ver, por exemplo,
Wainrigh Churchill. Homosexual Behauior Among Males.
3
Gênese, 19: 3-5.
4
Ibid., 19: 6-8.
5
(...) feriram de cegueira os varões que estavam à porta da casa (...)” Depois, os anjos
advertem Lot do plano de Deus para destruir a cidade do mal, dando-lhe tempo para
fugir com sua família. A seguir, vem o terrível castigo de Deus: “Então o Senhor fez
chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra; e derribou
aquelas cidades e toda aquela campina, e todos os moradores daquelas cidades, e o que
6
nascia na terra.”
A homossexualidade é novamente proibida no Levítico. “Com macho não te
7
deitarás; abominação é.” O adultério, o incesto e a bestialidade são também proibidos.
O castigo para a transgressão é a morte: “Quando também um homem se deitar com
outro homem, como com uma mulher, ambos fizeram abominações; certamente
*8
morrerão; o seu sangue é sobre eles.”
É importante notar que apenas a homossexualidade masculina é proibida: “Não
deitarás com um homem como com uma mulher.” Deus se dirige apenas aos homens.
Não diz que a mulher não deve deitar-se com uma mulher como com um homem. Aqui,
por omissão e suposigão, e em outros pontos de maneira mais clara, a mulher é tratada
como um animal humano, e não como um ser humano integral. Os códigos mais
atualizados das nações ocidentais que lidam com a homossexualidade continuam a
manter essa postura com relação às mulheres: embora a relação sexual entre adultos
que voluntariamente a desejam continue a ser proibida em muitos países, isso nunca se
**
aplica às mulheres. A inferência quanto à posição menos que humana das mulheres é
inevitável. Não admira que em sua prece matutina o judeu ortodoxo diga “Abençoado
seja Deus... por não me ter feito uma mulher”, enquanto que a mulher diz “Abençoado
9
seja o Senhor que me criou de acordo com Sua vontade”.
Evidentemente, as proibições bíblicas tiveram uma profunda influência no fato de
na Idade Média se ter identificado essa prática com a heresia; sobre nossas leis penais e
nossas atitudes sociais, com relação à homossexualidade como um híbrido de crime e
doença; e na linguagem que ainda usamos para descrever muitos dos atos sexuais
chamados divegentes. A sodomia é um exemplo disso.
O Unabridged Dictionary de Webster (terceira edição) define a sodomia como “as
tendências homossexuais dos homens da cidade, segundo narração no Gênese, 19: 1-11;

5
Ibid., 19: 11.
6
Ibid., 19: 24-25.
7
Levítico, 18: 22.
*
Para outras referências bíblicas à homossexualidade, condenando-a em termos basicamente semelhantes, ver: Juizes, 1: 22-30; I
Reis, 22: 46; Reis, 23: 7; Romanos, 1: 27; Coríntios, 6: 9; Timóteo, 1: 10.
8
Ibid., 20: 13.
**
Kinsey e seus colaboradores documentaram amplamente o tratamento social diferente, através dos tempos, dos atos
homossexuais masculinos e femininos. Observam que o Talmude é relativamente tolerante com relação às mulheres,
classificando a atividade homossexual feminina como “simples obscenidade”, o que impediria que a mulher culpada disso se
casasse com um rabino. (Alfred C. Kinsey, Wardell B. Pomeroy, Clyde E. Martin e Paul Gebhard, Sexual Behavior in the
Human Female, p. 483.) Na história européia, durante a Idade Média, houve muitos registros de morte imposta a homens por
causa de atividade sexual com outros homens, mas um número muito pequeno de casos registrados de ação semelhante contra
mulheres.” (Ibid.)
9
Citado em Simone de Beauvoir, The Second Sex, p. xxi.
cópula carnal com pessoa do mesmo sexo ou com animal, ou cópula carnal não-natural
com uma pessoa do sexo oposto; especificamente, a penetração do órgão masculino na
boca ou no ânus de outra pessoa.” Esta definição é pragmaticamente correta. Tanto nas
obras psiquiátricas quanto nas literárias, o termo “sodomia” é usado para descrever
atividade sexual com contato entre pênis e boca ou ânus, independentemente do fato de
a parte “passiva” ser homem ou mulher. Portanto, fellatio é um tipo de sodomia. Como
os seres humanos frequentemente praticam esses e outros atos sexuais não-genitais,
Kinsey acentuou corretamente que há poucos norte-americanos que, em suas vidas
10
sexuais diárias, não violem as proibições religiosas de sua fé e as leis penais de seu país.
Em resumo, a Igreja se opunha à homossexualidade não apenas, ou mesmo
basicamente, porque fosse “anormal” ou “anti-natural”, mas porque satisfazia à
lubricidade carnal e permitia prazer corporal. Segundo Rattray Taylor, essa condenação
da homossexualidade “era apenas um aspecto da condenação geral do prazer sexual e,
na realidade, da atividade sexual não diretamente necessária para a continuação, da
espécie. Mesmo no matrimônio, a atividade sexual era severamente restrita, e a
11
virgindade era considerada um estado mais abençoado do que o matrimônio.”
Portanto, não é acidental que a luxúria carnal, que leva a práticas sexuais não-
procriativas e a prazer de todos os tipos, fosse uma paixão característica das bruxas.
Supunha-se que estas satisfaziam seus desejos através de cópula com o Demônio, uma
figura masculina de masculinidade super-humana, equipada com um “pênis bifurcado”,
12
o que lhe permitia penetrar uma mulher tanto pela vagina quanto pelo ânus.
Quando passamos para uma consideração das atitudes da Igreja com relação ao
sexo durante as caças às bruxas, descobrimos uma lição direta entre noções de
divergência religiosa e delito sexual: a heresia e homossexualidade tomaram-se uma e a
*
mesma coisa. Durante vários séculos, não se fazia distinção entre heterodoxia religiosa
e mau comportamento sexual, principalmente homossexualidade. Nas palavras de
Westermarck, “durante a Idade Média, os heréticos eram sem discussão, acusados de
vício anti-natural [homossexualidade] (...) Nas leis medievais, a sodomia era também
repetidamente mencionada juntamente com a heresia, e o castigo era o mesmo para as
13
duas.”
Na Espanha do século XIII, a penalidade para a homossexualidade era a castração
14
e a “lapidação” [execução por apedrejamento]. Fernando e Isabel mudaram isso, em
1479, para “ser queimado vivo e confisco, independentemente da situação social do

10
Alfred C. Kinsey, Wardell B. Pomeroy e Clyde E. Martin, Sexual Behavior in the Human Male, pp. 659-666.
11
Gordon Rattray Taylor, “Historical and Mythologicâl Aspects of Homosexuality”, em Judd Marmor (org.). Sexual Inversion,
pp. 140-164; 145-146.
12
Ibid., p. 145.
*
O conceito de mal, sobretudo na medida em que atua como um recurso retórico que justifica a expulsão da fonte de perigo,
absorve muitas distinções cognitivas. Assim, na Idade Média, o herético, a feiticeira, o sodomista e a bruxa eram freqüentemente
colocados numa só categoria.
13
Westermarck, p. 489.
14
Henry Charles Lea, A History of the Inquisition of Spain, Vol. 4. p. 362.
15
culpado”. Em outras palavras, o crime estava sujeito a tribunais seculares e
eclesiásticos — assim como agora está sujeito a sanções penais e psiquiátricas. Em 1451,
Nicolau V deu à Inquisição poderes para lidar com a homossexualidade. “Quando a
instituição [a Inquisição] foi fundada na Espanha”, escreve Lea, “...o tribunal de Sevilha
tornou-a [a homossexualidade] um objeto de uma busca especial; houve muitas prisões
16
e muitos fugitivos, e doze condenados foram queimados.” A Inquisição espanhola que,
17
como vimos, tinha como principais inimigos os judaizantes e os mouros, tratou
*
severamente os homossexuais.
Também em Portugal foram impostas as severas proibições espanholas contra a
homossexualidade. “Em 1640, os Regulamentos prescrevem que o delito deve ser
tratado como heresia, e o castigo deve ser relaxação [queima na fogueira] ou flagelação
[açoitamento] e as galés. Num caso que ocorreu em Lisboa no auto de 1723, a sentença
18
foi flagelação e dez anos de serviço nas galés.”
Em Valência, o castigo usual para a homossexualidade era queimar na fogueira.
No entanto, havia tendência para não impor tal penalidade, porque esses delinquentes
“...não poderiam escapar, ao contrário do que ocorria com os heréticos, por confissão e
19
conversão”. A respeito, é interessante notar que os clérigos homossexuais eram
tratados de modo mais brando que os leigos que apresentavam o mesmo
comportamento. Nas palavras de Lea: “Muitas autoridades sustentavam que os clérigos
não estavam sujeitos ao rigor da lei para esse delito, e era opinião comum que a
** 20
incorrigibilidade era necessária para que se justificasse a pena usual.”
A frequência de perseguições por homossexualidade na Espanha era considerável.
De 1780 a 1820, segundo Lea, “o número total de casos que chegaram aos três tribunais
21
[em Valência] foi de exatamente cem”.
Nos países de língua inglesa, a ligação entre heresia e homossexualidade pode ser
avaliada pelo uso de uma só palavra para indicar os dois conceitos: buggery. O sentido
duplo dessa palavra permanece até hoje. O Unabridged Dictionary de Webster (terceira
edição) define “buggery” como “heresy, sodomy” (heresia, sodomia), e define “bugger”

15
Ibid.
16
Ibid.
17
Ver capítulo 7.
*
Isso não ocorria com a Inquisição romana, cujos principais inimigos eram feiticeiras e protestantes. Segundo nos diz Lea, "...
em toda a Itália, o crime era tratado com uma tolerância inteiramente inadequada à sua atrocidade. Além disso, a Inquisição
romana não tomava conhecimento da homossexualidade.” Essa tolerância, na realidade uma aprovação da homossexualidade na
Itália, pode ser verificada pelo fato de que, em 1664, alguns franciscanos na realidade “se tornaram identificáveis por fazer
elogios a essa prática...” (Lea, A History of Inquisition of Spain, p. 365.)
18
Lea, Vol. 4. pp. 365-366.
19
Ibid., p. 367.
**
Os médicos atualmente gozam de uma indulgência semelhante no que se refere a “delitos” psiquiátricos típicos — por
exemplo, depressão e a tentativa de suicídio. Os leigos são severamente punidos por essa conduta: são hospitalizados e tratados
contra sua vontade. Embora a incidência de suicídio seja mais elevada entre os médicos do que em qualquer outro grupo — e
mais elevada ainda entre os psiquiatras — os médicos que exibem tal conduta raramente são castigados com hospitalização
psiquiátrica involuntária e tratamento.
20
Ibid., p. 368.
21
Ibid., p. 371.
como “heretic, sodomite” (herético, sodomita). A palavra deriva do latim medieval
bugarus e bulgarus, literalmente búlgaro, “a partir de aceitação, pelos búlgaros, da Igreja
Oriental, considerada herética”.
Esta ligação, ao mesmo tempo semântica e conceituai, entre heterodoxia e
sodomia, estava firmemente estabelecida no fim da Idade Média, e nunca foi desfeita. É
tão intensa hoje quanto há seiscentos anos passados. No século XIV, ser estigmatizado
como herético ou sodomita era ser colocado fora da sociedade. Como a ideologia
predominante era teológica, a divergência religiosa era considerada um delito tão grave
que colocaria o indivíduo como não-pessoa. Quaisquer qualidades valiosas que tivesse
seriam inúteis. O pecado da heresia ocultava todas as características pessoais e
contraditórias, assim como os ensinamentos de Deus e da Igreja ocultavam todas as
observações empíricas contraditórias. A doença denominada “doença mental” — e sua
subespécie “homossexualidade” — desempenham o mesmo papel atualmente. O finado
Senador Joseph McCarthy identificava o pecado social do comunismo com o pecado
sexual da homossexualidade, e usava os dois rótulos como se fossem sinônimos. Não
podia ter feito isso se não houvesse uma crença geral de que, tal como ocorria com os
heréticos medievais, os homens rotulados “homossexuais” são totalmente maus. Não
podem ter características compensatórias ou redentoras: não podem ser escritores
talentosos ou americanos patrióticos. Considerada essa premissa — que McCarthy não
inventou, mas apenas apropriou para seu uso — segue-se que os homossexuais devem
ser também politicamente divergentes, isto é, comunistas. A mesma lógica aplica-se ao
contrário. Se os comunistas são as encarnações contemporâneas e seculares do
Demônio — por assim dizer incubi e succúbi políticos — segue-se que também eles não
*
têm aspectos redentores. Devem ser completamente maus. Precisam ser homossexuais.
Agora, já podemos considerar o problema da homossexualidade em sua forma
contemporânea; em outras palavras, será que a homossexualidade é uma doença? Num
livro recente e competente sobre a “inversão sexual”, o organizador, Judd Marmor,
propõe a pergunta e responde que “A maioria dos psicanalistas aqui apresentados, com
a exceção de Szasz, são de opinião que a homossexualidade é nitidamente uma doença a
22
ser tratada e corrigida.” (Os grifos são meus.) O fanatismo de correção do terapeuta
psiquiátrico contemporâneo aparece aqui de uma forma bem clara. Confunde-se a
doença como uma condição biológica e como um papel social. O câncer da bexiga é uma
doença; mas o fato de ser tratado, ou não, depende de pessoa que tem a doença; e não

*
Ao usar a expressao “doenca mental” (e suas varinates) seguimos o mesmo principio. Quando dizemos que homens como Erza
Pound e Lee Harvey Oswald são loucos, estabelecemos, por atribuição, uma característica dessa pessoa que recobre com
maldade transcendente o indivíduo que supostamente descreve. Uma vez aceita a caracterização, esta nega as outras qualidades
humanas — principalmente as boas qualidades — do indivíduo. Assim, este fica degradado e desumanizado. Depois, não mais
nos preocupamos com ele como pessoa com direitos e talentos. Se é poeta, podemos desprezá-lo como artista; se é acusado de
um crime, podemos ignorar sua culpa ou sua inocência: se é suspeito de ter assassinado o Presidente, e é depois morto na cadeia,
podemos simplificar um acontecimento irremediavelmente inexplicado, com grandes conseqüências políticas e internacionais,
atribuindo tudo à loucura de um indivíduo virtualmente desconhecido. Em resumo, a heresia psiquiátrica, como a heresia
religiosa, é um conceito funcional. É útil para a sociedade que o emprega; se não o fosse, o conceito nunca teria sido criado e não
continuaria a receber apoio popular.
22
Marmor, p. 15.
23
do médico que faz o seu diagnóstico! Marmor, como muitos psiquiatras
contemporâneos, esquece ou ignora essa distinção. Certamente, existe uma boa razão
para que ele, como muitos outros “especialistas em saúde mental” façam isso: ao
suporem que a convenção seja a Natureza, que desobedecer a uma proibição pessoal
seja doença médica, eles se estabelecem como agentes do. controle social e, ao mesmo
tempo, disfarçam suas intervenções punitivas nas ciladas semânticas e sociais da prática
médica.
René Guyon, um estudioso francês dos costumes sexuais, reconheceu essa
tendência característica da Psiquiatria moderna para considerar como doentio o que é
apenas contra as convenções. Observa que “É quase inacreditável o trabalho dos
psiquiatras para explicar (...) a natureza através de convenções, a saúde através de
doença mental (...) O método característico desse sistema é que, sempre que encontra
um ato natural que é contrário às convenções predominantes, considera esse ato como
24
perturbação ou anormalidade mental.”
Portanto, saber se a homossexualidade é uma doença, ou não, é um falso
problema. Se por doença entendemos um desvio com relação a uma norma anatômica
ou fisiológica — tal como ocorre no caso de perna fraturada ou diabetes — certamente a
homossexualidade não é uma doença. Apesar disso, ainda é possível perguntar se existe
uma predisposição genética para a homossexualidade, tal como para um corpo forte: ou
se é um padrão inteiramente aprendido de comportamento. Esta pergunta não pode ser
respondida com segurança. Atualmente, as provas para essa disposição são muito fracas,
se é que existem. No entanto, a pessoa com orientação biológica pode dizer que no
futuro será possível descobrir mais provas para essa hereditariedade. Talvez. Mas
mesmo que se prove que os homossexuais têm certas preferências sexuais por causa de
sua natureza, e não de sua formação, o que é que isso provaria? As pessoas que
prematuramente ficam calvas são, num sentido mais rigoroso dessa palavra, mais
doentes do que os homossexuais poderiam ser. O que dizer disso? Evidentemente, que a
pergunta que está sendo proposta não é saber se uma determinada pessoa manifesta
desvios com relação a uma norma anatômica e fisiológica, mas qual a significação moral
e social que a sociedade atribui a esse comportamento — se é devido a doença
infecciosa (tal como ocorria antes com a lepra) ou se é uma preferência aprendida (tal
como ocorre atualmente com a homossexualidade).
A preocupação psiquiátrica com o conceito de doença da homossexualidade — tal
como com o conceito de doença das chamadas doenças mentais, como alcoolismo, vício
em drogas ou suicídio — esconde o fato de que os homossexuais constituem um grupo
de indivíduos estigmatizados pela Medicina e socialmente perseguidos. O ruído
provocado por sua perseguição e seus gritos angustiados de protesto são abafados pela
retórica da terapia — assim como a retórica da salvação abafava o ruído criado pela
perseguição de heréticos e seus gritos angustiados de protesto. É uma grande hipocrisia

23
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, “Scientific method an social role in medicine and psychiatry”, A M.A. Arch. Int. Med.,
101: 228-238 (fev.), 1958; e “Alcoholism: A socioethical perspective”, Western Med. 7: 15-21 (dez.), 1966.
24
René Guyon, The Ethics of Sexual Acts, pp. 270-271.
fingir que os médicos, os psiquiatras ou os leigos “normais” realmente se importam com
o bem- estar do doente mental em geral, ou do homossexual em particular. Se isso fosse
verdade, deixariam de torturá-los ao mesmo tempo que afirmam estar dando auxílio a
eles. Mas é exatamente isso o que os reformadores — teológicos ou médicos — se
*
recusam a fazer.
A ideia de que o homossexual é “doente” apenas no sentido em que é assim
classificado pelos outros, e ele mesmo aceita essa classificação, pode ser rastreada pelo
menos até a obra autobiográfica de André Gide, Corydon, e talvez até antes. Publicada
inicial e anonimamente, em 1911, a narrativa é apresentada sob a forma de uma série de
diálogos entre o autor e Corydon, um amigo mais jovem. O trecho seguinte exemplifica a
concepção que Gide tem do homossexual como uma vítima de uma sociedade
fanaticamente heterossexual.
— Estou (...) preparando um estudo muito importante sobre o assunto [a
homossexualidade] — [diz o autor].
— Então as obras de Moll, Kraft-Ebing e Raffalovitch não são suficientes para você? [replica
Corydon].
— Não são satisfatórias. Eu gostaria de tratar do assunto de uma outra maneira (...) Estou
escrevendo uma Defesa da Homossexualidade.
— Se você já está nesse caminho, porque não escreve uma Apologia?
— Porque esse título deformaria minhas ideias. Tenho medo que as pessoas já achem a
palavra Defesa uma provocação (...) Esta causa não tem mártires. ‘
— Não use palavras tão solenes.
— Uso as palavras de que preciso. Já tivemos Wilde, Krupp, Macdonald, Eulenburg (...)
Vítimas! Tantas vítimas quantas você quiser. Mas nem um só mártir. Todos negam: sempre
negarão.
— Agora você chegou ao fundamental. Todos se sentem envergonhados e se desculpam
logo que se veem diante da opinião pública, da imprensa, do tribunal.
— Você está certo. Quando a pessoa tenta demonstrar sua inocência ao negar sua vida,
está-se submetendo à opinião pública. Como tudo isso é estranho! Temos a coragem de ter
nossas opiniões, mas não de ter os nossos hábitos. Podemos aceitar o sofrimento, mas não
25
a desonra.
Aqui, Gide desmascara a homossexualidade como um papel socialmente
estigmatizado, como o de feiticeira ou de judeu, que, sob a pressão da opinião pública,
seu portador tende a negar e repudiar. O homossexual é um bode expiatório que não
desperta compreensão. Por isso, só pode ser uma vítima, nunca um mártir. Isso é tão
verdade hoje nos Estados Unidos quanto há cinquenta anos na França. Além disso, o
mesmo se aplica ao doente mental: também ele só pode ser uma vítima, nunca um
mártir.

* Por muitas décadas, mas sobretudo desde a época do Senador Joseph McCarthy, a insinuação de homossexualidade do
adversário se tornou uma estratégia aceita na vida política americana. Se a homossexualidade é uma doença — como “qualquer
outra” — por que é que os psiquiatras não protestam contra seu emprego como um meio de degradação social e desqualificação
política? Para maior discussão da hipocrisia do conceito de doença no caso da homossexualidade, ver o capítulo 13.
25
André Gide, Corydon, pp. 8-10.
O trecho seguinte mostra a compreensão profunda que Gide tem do conceito de
doença quando aplicada à inversão sexual, e, mutatis mutandis, de modo geral às
doenças mentais.
— Se você tivesse conhecimento dela [inclinação homossexual], o que faria? — [pergunta
Corydon],
— Acho que teria curado o menino — [responde o autor].
— Você disse há um momento que era incurável.
— Eu o teria curado como curei a mim mesmo (...) Convencendo-o de que não era doente
(...) que nada havia de antinatural em seu «desvio.
— E se ele persistisse, você naturalmente aceitaria.
— Essa é uma questão inteiramente diferente. Quando se resolve o problema fisiológico,
26
começa o problema moral.”
Portanto, Gide mostra que o “diagnóstico” de homossexualidade é, na realidade,
um rótulo de estigma que, para proteger, sua identidade autêntica, o sujeito deve
rejeitar. Para fugir do controle médico, o homossexual deve repudiar o diagnóstico que
lhe foi atribuído pelo médico. Em outras palavras, a homossexualidade é uma doença no
mesmo sentido em que a negritude foi considerada doença. Benjamin Rush afirmava que
os negros tinham pele negra porque eram doentes: admitia que sua doença devia ser
27
usada como justificativa para seu controle social. O seguidor contemporâneo de Rush
afirma que os homens cuja conduta sexual condena são doentes: usa sua doença como
justificativa para seu controle social.
Apenas em nossos dias os negros conseguiram escapar das ciladas semânticas e
sociais em que os brancos os prenderam logo que se livraram, há um século atrás, de
suas algemas legais. Os chamados doentes mentais, cujos grilhões — forjados com
documentos de internamento, paredes de hospitais e torturas diabólicas apresentadas
como “tratamentos médicos” — têm uma estranha influência em seus corpos e almas só
agora estão aprendendo a se humilhar diante de seus senhores psiquiátricos. Parece
provável que muitas outras pessoas precisarão ser injuriadas pelos rótulos psiquiátricos e
suas consequências sociais antes que os homens reconheçam os perigos da Psiquiatria
Institucional e se protejam deles. Pelo menos, essa é a lição sugerida pela história da
feitiçaria.
Enquanto os homens puderam denunciar os outros como bruxos — de forma que
o bruxo seria considerado sempre o Outro, nunca o Eu — a feitiçaria continuou a ser um
conceito facilmente explorável e a Inquisição uma instituição florescente. Apenas a perdi
da fé na autoridade dos inquisidores e em sua; missão religiosa deu um fim a essa prática
*
de canibalismo simbólico. Do forma semelhante, enquanto os homens puderem
denunciar-se uns aos outros como mentalmente doentes (homossexuais, viciados,
insanos, o assim por diante) — de forma que o louco possa ser sempre considerado o
Outro, nunca o Eu — a doença mental continuará um conceito facilmente explorável, e a

26
Ibid., pp. 20-21.
27
Ver capítulo 20.
*
O conceito de canibalismo simbolico e discutido mais amplamente no capitulo 15.
Psiquiatria Coercitiva uma instituição florescente. Se isso é verdade, apenas a perda da fé
na autoridade dos psiquiatras: institucionais e sua missão médica dará um fim à
Inquisição Psiquiátrica. Esse dia ainda não está próximo.
Minha tese é que a perspectiva psiquiátrica para considerar a homossexualidade
é apenas uma réplica pouco disfarçada da perspectiva religiosa afastada, e que os
esforços para “tratar” pela Medicina esse tipo de conduta é apenas um método
disfarçado para suprimi-la, o que pode ser verificado em qualquer descrição psiquiátrica
contemporânea da homossexualidade. A maneira de tratar o problema apresentada por
Karl Menninger, geralmente reconhecido como o mais “liberal” e “progressista” dos
psiquiatras contemporâneos, é bom exemplo. No livro The Vital Balance (O Equilíbrio
Vital), Menninger discute a homossexualidade sob o título geral de “Uma Segunda
Ordem de Descontrole e Desorganização”, imediatamente depois de uma análise de
28
“Modalidades de Perversão Sexual”. Segundo Menninger, “não podemos, como Gide,
exaltar a homossexualidade. Ao contrário do que fazem outros, também não vamos
condená-la. Nós a consideramos um sintoma como todas as funções de outros sintomas
29
— agressão, sensualidade, autocastigo e o esforço para impedir algo pior.” (Os grifos
são meus.) Menninger, como outros médicos que escrevem sobre tópicos morais, se
denuncia pela escolha das palavras: se a homossexualidade é um “sintoma”, o que é que
tem para ser “condenada” ou não “condenada”? Menninger não falaria em “condenar
ou não condenar” a febre da pneumonia ou a icterícia da obstrução biliar — mas fala em
“condenar” ou “não condenar” um “sintoma” psiquiátrico. Suas recomendações
“terapêuticas” para a homossexualidade permitem a suspeita de que seu papel médico é
apenas um disfarce para o de moralista ou tecnocrata da sociedade.
Um “homem casado, religioso, diretor de um banco, pai de três filhos” — em
resumo, um pilar da comunidade — consulta Menninger e lhe confia seu segredo: é
homossexual. O homem pergunta: O que posso fazer? A resposta de Menninger:
“Evidentemente, uma coisa que poderia fazer seria viver castamente; há milhões de
pessoas com inclinações heterossexuais que, por uma razão ou outra, são castas, e isso
30
não deveria ser mais difícil para uma pessoa com inclinação homossexual.” É verdade.
Mas será que a possibilidade de abstinência sexual não teria ocorrido a um homem que
*
conseguiu chegar a diretor de banco?
A segunda recomendação de Menninger é “procurar tratamento para a
homossexualidade. O tratamento pode ser eficiente se a pessoa não está muito
mergulhada no desespero, ou nas racionalizações de que havia algo errado em seus
genes hereditários, de que foi condenada a ser assim e que precisa obter o melhor que

28
Karl Menninger, The Vital Balance, pp. 195-198.
29
Ibid., p. 198.
30
Ibid., p. 196.
*
A respeito, ver a observação de Guyon: “Finalmente, os médicos, prostituindo a ciência para colocá-la a serviço de um tabu (e
aceitando este último sem discuti-lo) procuraram mostrar que é possível não praticar o ato sexual, e que isso não é prejudicial à
saúde (René Guyon, The Ethics of Sexual Acts, p. 204.) Aqui, Guyon está fazendo referência a atos heterossexuais, mas, mutatis
mutandis, o mesmo também se aplica a atos homossexuais e auto-eróticos.
31
puder com isso.” Para Menninger, o “tratamento” só pode ter um objetivo: converter o
herético à fé verdadeira, transformar o homossexual num heterossexual. A possibilidade
de ajudar o cliente a aceitar com maior serenidade as suas inclinações, de ajudá-lo a
valorizar mais sua identidade autêntica do que o juízo da sociedade a respeito — tais
alternativas terapêuticas não são sequer mencionadas por Menninger. Na realidade,
censura o homossexual ao inverter uma antiga acusação contra ele: há apenas alguns
anos — depois de desistir da “teoria” de que a homossexualidade era causada por
masturbação, o que era um dogma psiquiátrico padronizado por volta dos fins do século
XIX — os psiquiatras afirmavam que a inversão sexual era uma doença genética; era
devida à “má hereditariedade”. Apesar disso, Menninger diretamente acusa o
homossexual de “racionalizar” quando acredita que a hereditariedade pode ter algo a
ver com a natureza de seus interesses sexuais, e não está ansioso para mudá-los na
direção aprovada pela sociedade. Talvez uma razão para a intransigência intelectual de
Minninger seja o fato de que ele não tem dúvida de que sabe o que é realmente a
homossexualidade, ou qual a sua “essência”: é “agressão”, o nome psiquiátrico para
Satã. Escreve Menninger: “Mas continua a ser verdade que, quando clínica e
oficialmente vemos a homossexualidade, esta quase sempre revela sua natureza
32
essencialmente agressiva.” (Os grifos são meus.) Evidentemente, quando Menninger
nota “clínica e oficialmente” [sic] qualquer outro comportamento sexual ou social,
*
também vê sua essência na agressão. Como o teólogo devoto que vê o Demônio
emboscado em toda parte, Menninger, o freudiano devoto, aí vê a agressão e o instinto
de morte.
No entanto, às vezes Menninger esquece sua orientação clínica e fala em termos
clericais explícitos. Na sua introdução a The Wolfenden Report, por exemplo, afirma que
33
“A prostituição e a homossexualidade têm um elevado posto no reino dos males” — o
que não deixa de ser uma afirmação extraordinária num dos principais psiquiatras da
segunda metade do século XX. Mas o fato de considerar a prostituição e a
homossexualidade como pecados graves não impede que Menninger considere também
essas atividades como doenças mentais. “Do ponto de vista psiquiátrico, tanto a
homossexualidade quanto a prostituição — à qual devemos acrescentar o uso de
prostitutas — apresentam provas de sexualidade imatura, bem como de
desenvolvimento psicológico detido ou regressão. Independentemente da maneira de o
público considerar tal comportamento, para os psiquiatras não há dúvida [sic] quanto à
34
sua anormalidade.” Menninger parece acreditar que o fato de não termos dúvidas

31
Ibid.
32
Ibid., p. 197.
*
Menninger apresenta a mesma explicação para a masturbação, "...na mente inconsciente [a masturbação] sempre representa
uma agressão contra alguém”. (Karl Menninger, Man Against Himself, p. 69.) Para discussão mais ampla, ver o capitulo 11.
33
Karl Menninger, “Introduction”, em The Wolfenden Report, pp. 5-7; P 5.
34
Ibid., p 6.
sobre as nossas opiniões seja uma grande virtude, um sinal indiscutível de mercê
*
psiquiátrica.
Os psiquiatras contemporâneos não admitem a possibilidade de que possam estar
errados quando classificam a inversão sexual como uma doença. “Numa discussão sobre
a homossexualidade, os psiquiatras provavelmente serão unânimes pelo menos num
35
ponto: a crença de que o homossexual é uma pessoa doente.” Esta afirmação aparece
na introdução a um panfleto sobre a homossexualidade, distribuído gratuitamente pelos
Laboratórios Roche, um dos principais fabricantes dos chamados medicamentos psico-
farmacológicos. Como o inquisidor, o psiquiatra define, e assim valida, sua posição
existencial através daquilo a que se opõe — como heresia ou doença. Ao teimosamente
afirmar que o homossexual é doente, o psiquiatra apenas pede para ser aceito como
**
médico.
De acordo com as regras sacerdotais de um inquisidor contemporâneo, as
práticas de perseguição do psiquiatra institucional são apresentadas no vocabulário da
Medicina. Fingindo tratar uma doença semelhante a sarampo durante seu período de
incubação a fim de tratá-la melhor, o psiquiatra na realidade impõe rótulos
pseudomédicos aos bodes expiatórios da sociedade, a fim de melhor prejudicá-los,
rejeitá-los e destruí-los. Não satisfeitos com diagnosticar os homossexuais manifestos
como “doentes”, os psiquiatras afirmar ser capazes de descobrir a presença dessa
suposta doença (evidentemente, em sua forma “latente”) em pessoas que não mostram
sinais externos dela. Afirmam também que são capazes de diagnosticar a
homossexualidade durante a infância, quando, por assim dizer, está em incubação. Nas
palavras de Holemon e Winokur, “já notamos que isso [comportamento afeminado]
muitas vezes antecede a orientação homossexual e as relações homossexuais. Nesses
pacientes, a afeminação parece ser o problema fundamental, enquanto o
comportamento sexual é secundário. A partir disso, devemos ser capazes de predizer
que crianças desenvolverão homossexualidade afeminada, ao escolher as que
36
apresentam sinais objetivos de afeminação.” Em linha semelhante, Shearer declara que
o “excessivo apego ao genitor do sexo oposto, sobretudo entre pai e filha, deve também
37
alertar o médico quanto à possibilidade de homossexualidade”. O que é que constitui
“excessivo apego”? Quanto de afeição entre filho e genitor do sexo oposto se deve

*
As convicções virtuosas dos que se pretendem benfeitores da humanidade levaram Russell a observar que “Quase todos os
males que o homem praticou contra o homem vieram de pessoas que tinham muita certeza a respeito de algo que, na verdade, era
falso”. (Bertrand Russell, Unpopular Essays, p. 162.)
35
Crosscurrents of Psychiatric Thought Today, p. 1.
**
Como é difícil verificar qual a crença verdadeira — seja nas mitologias do Cristianismo, seja nas da Psiquiatria — sobretudo
para atender às exigências de um juiz céptico, a hostilidade contra o herético se torna o sinal da autenticidade da crença. Falando
através de Sancho Pança, Cervantes assim apresenta o problema: “Apesar disso, os historiadores devem ter pena de mim e tratar-
me delicadamente em suas obras, ainda que somente por em ter sempre acreditado em Deus e nos princípios da Igreja Católica
Romana, e por eu ser inimigo mortal dos judeus.” (Miguel de Cervantes Saavedra, The Adventures of Don Quivote, p. 516.) Em
outras palavras, como o crente espanhol que vivia no ponto máximo da Inquisição provava sua ortodoxia religiosa ao odiar os
judeus, também o psiquiatra científico de hoje prova sua ortodoxia médica ao odiar as doenças mentais.
36
Ibid., p. 13.
37
Ibid., p. 14.
permitir, sem que isso signifique a presença de uma doença temível, a
homossexualidade?
Do que se disse acima podemos concluir que a opinião psiquiátrica a respeito dos
*
homossexuais não é uma proposição científica, mas um preconceito médico. Aqui, é
pertinente recordar que, quanto mais atenção os inquisidores davam à feitiçaria, mais se
multiplicavam as feitiçeiras. O mesmo princípio se aplica às doenças mentais em geral, e
à homossexualidade em particular. Na realidade, os esforços fanáticos para erradicar e
impedir tais “perturbações” criam as condições em que se desenvolvem a aceitação e a
atribuição de tais papéis.
Com a intuição penetrante de artista literário, William S. Burroughs descreveu
exatamente esse processo — isto é, a fabricação da loucura através de um “exame
médico” para a “identificação precoce” de homossexualidade. Um episódio de Naked
Lunch, denominado “O Exame”, começa quando Carl Pederson encontra “em sua caixa,
um cartão que lhe pede para comparecer, para uma entrevista com o Doutor Benway, no
38
Ministério de Higiene Mental e Profilaxia (...)” Durante o exame, Pederson compreende
que está sendo analisado para verificação de “divergência sexual”. O médico explica que
a homossexualidade é “uma doença (...) certamente nada para ser censurado ou, hum,
39
elogiado, assim como não se condena, por exemplo (...) tuberculose. (...)” No entanto,
como é uma doença contagiosa, deve, se necessário, ser tratada compulsoriamente. “O
tratamento dessas doenças [diz o doutor Benway] é, atualmente, quase que apenas
sintomático.” O médico repentinamente se encostou em sua cadeira e teve um acesso
de riso metálico (...) Não fique tão assustado, meu rapaz. Isso é apenas uma piada
40
profissional. Dizer que o tratamento é sintomático significa que não há tratamento (...)”
Depois de submeter Carl a uma série de “testes” humilhantes, o doutor finalmente diz:
“É, Carl, você pode me dizer quantas vezes e sob que condições você (...) hum (...)
41
praticou atos homossexuais?” Quando a cena termina, Carl está se sentindo doido: “Eu
42
mal podia ouvir a voz do médico. A sala estava explodindo no espaço.”
Está claro que os psiquiatras têm interesses pessoais no diagnóstico de doença
mental para o maior número de pessoas, assim como os heréticos tinham interesse em
acusar heréticos. O psiquiatra “consciencioso” se identifica como um médico
competente por sustentar que os que apresentam anomalias sexuais (e todos os tipos de

*
Numa dessas inversões irônicas de papéis que tão freqüentemente ocorrem na história humana, o homossexual é atualmente
perseguido pelos médicos, e defendido pelos sacerdotes. Num artigo publicado na influente revista National Catholic Reporter, o
Padre Henri Nouwen, de Utrecht, na Holanda, propõe de outra forma o problema da homossexualidade, à luz do ensino
fenomenológico e da doutrina cristã moderna. Sua tese é que a homossexualidade não é um pecado nem uma doença, mas um
preconceito médico e, principalmente, psiquiátrico. Segundo o Padre Nouwen: “Se um homem escolheu a maneira homossexual
de viver, se prefere grupos homossexuais e amigos homossexuais, e não mostra qualquer desejo ou qualquer disposição para
mudar, não tem qualquer sentido castigá-lo ou tentar mudá-lo.” (Henri J. M. Nouwen, “Homossexuality: Prejudice or mental
illness?”, Nat. Cath. Rep., 29 de novembro, 1967, p. 8.) Ver também Lars Ullterstam, The Erotic Minorities, sobretudo p. 24.
38
William S. Burroughs, Naked Lunch, pp. 186-197; p. 186.
39
Ibid., p. 188.
40
Ibid., p. 189.
41
Ibid., p. 196.
42
Ibid., p. 197.
outras pessoas, talvez toda a humanidade, como o diria Karl Menninger) são
mentalmente doentes, assim como o inquisidor “consciencioso” se identificava como
cristão fiel ao sustentar que os homossexuais (e todos os tipos de pessoas diferentes)
eram heréticos. Precisamos compreender que, em situações desse tipo, não estamos
diante de problemas científicos, que devam ser resolvidos, mas diante de papéis sociais
*
que precisam ser confirmados. O inquisidor e a feiticeira, o psiquiatra e o doente mental
se criam mutuamente e mutuamente autenticam seus papéis. Para um inquisidor,
afirmar que as feiticeiras não eram heréticas e que suas almas não exigiam um esforço
especial para salvação equivaleria a afirmar que não haveria necessidade de caçadores
de bruxas. De forma semelhante, se um psicopatologista afirmasse que os homossexuais
não são doentes e que nem seus corpos nem suas almas exigem esforços especiais para
cura, estaria dizendo que não há necessidade de psiquiatras impostos.
É necessário lembrar que a maioria das pessoas diagnosticadas como fisicamente
doentes se sentem doentes e se consideram doentes; a maioria das pessoas
diagnosticadas como mentalmente doentes não se sentem doentes nem se consideram
doentes. Por isso, usualmente não procuram o auxílio de um médico ou de um
psiquiatra. Tudo isso, como vimos, é paralelo à situação da feiticeira. Também ela
geralmente não se considerava pecadora nem feiticeira. Por isso, não procurava o auxílio
do inquisidor. Portanto, se um psiquiatra tem um paciente desse tipo, ou se um padre
tem um paroquiano também desse tipo, precisam ter o poder para impor seu “cuidado”
a um sujeito que não o deseja. O Estado dá esse poder ao psiquiatra, da mesma forma
que a Igreja o dava ao inquisidor.
No entanto, essas não são as únicas relações possíveis, nem as únicas relações
existentes entre psiquiatras e pacientes, ou entre sacerdotes e paroquianos. Algumas de
suas relações são, e eram, inteiramente voluntárias e mutuamente aceitas. A discussão a
respeito do conceito de doença aplicado à homossexualidade (e de modo geral às
doenças mentais) se reduz a duas perguntas e a nossas respostas a elas. Em primeiro
lugar, será que os psiquiatras devem ter o direito de considerar a homossexualidade
como uma doença (qualquer que seja a sua definição)? Eu digo: evidentemente têm esse
direito. Se esse conceito os ajuda, ficarão mais ricos; se ajuda seus pacientes, estes
ficarão mais felizes. Em segundo lugar, será que os psiquiatras devem ter o poder para,
em aliança com o Estado, impor sua definição de homossexualidade a clientes

*
Um notável psiquiatra, especializado em homossexualidade, classifica o celibato como uma forma de doença mental. Diz Irving
Bieber: “A incapacidade para casar, em qualquer dos sexos, é conseqüência de medo do casamento. Existe um crescente
reconhecimento de que o celibato é sintoma de psicopatologia ...” (Time, 15 de set., 1967, p. 27.) Se a incapacidade para casar
pode, evidentemente, ser devida a medo do outro sexo ou do casamento como instituição social, o impulso para casar pode ser
devido a medo de solidão ou de homossexualidade. Para Bieber, celibato significa psicopatologia. Para mim, essa opinião tão
difundida indica o intenso medo de um papel sexual condenado pela sociedade. Nos Estados Unidos de nossos dias, o impulso
para a aceitação social como heterossexual normal é tão forte quanto o impulso, na Espanha do Renascimento, para a aceitação
como católico fiel. Na opinião de Bieber, o fato de desempenhar o primeiro papel exige que classifiquemos o celibato e a
homossexualidade como doenças, assim como a representação do segundo papel exigia, na opinião de especialistas mais antigos,
que a pessoa classificasse o Judaismo e o Maometismo como heresias.
involuntários? Eu respondo: Evidentemente não devem ter esse direito. Em outro
** 43
trabalho já apresentei minhas razões para essa opinião.
Os psiquiatras e outras pessoas que aceitam e pedem a adoção do conceito de
doença para a homossexualidade (e para outros tipos de comportamento humano)
muitas vezes parecem estar falando a respeito da primeira pergunta — isto é, que tipo
de doença tem o suposto “paciente”. Mas de modo geral, conscientemente ou não,
estão interessados pela segunda pergunta — isto é, como controlar ou “corrigir” (para
usar o termo de Marmor) a suposta doença do paciente. O presidente da Mattachine
Society, a maior organização americana de homossexuais, corretamente adverte que
“quando os médicos correm para a imprensa com afirmações ousadas de que possuem
‘curas’ para a homossexualidade, não estão servindo ao homossexual. Na realidade,
estão fazendo exatamente o oposto: estão aumentando a pressão social sobre ele. (...)
44
Uma ‘cura’ seria um tipo de ‘solução final’ para o problema homossexual.”
Nossa opinião a respeito do conceito de homossexualidade como doença e sobre
o seu controle social através da Medicina ficaria bem mais clara se a ela aplicássemos
nossa experiência com o conceito de heresia para a homossexualidade e seu controle
social através da religião. Na realidade, os paralelos entre esses dois conjuntos de
conceitos e de sanções sociais precisam ser ampliados apenas para incluir uma
consideração adicional — a legitimidade ou ilegitimidade da combinação das ideias e
práticas religiosas e médicas com o poder político.
Se é verdade que Deus recompensa os cristãos fiéis com a felicidade eterna numa
vida terrena, será que isso não é suficiente para assegurar a crença verdadeira? Por que
é que o Estado deve usar seu poder policial para impor a crença religiosa aos não-
crentes, se, deixados sós, esses heréticos certamente sofrerão a danação eterna? No
passado, os cristãos fanáticos respondiam a esse desafio afirmando seu amor ilimitado
pelo seu irmão “equivocado”, que ele estava obrigado a “salvar” de seu horrível destino.
Como, usualmente, o gentio não podia ser salvo apenas com a persuasão, o uso de força
— justificado pelo objetivo teológico elevado — era aceitável.
Ao testemunhar as trágicas consequências dessa lógica, quando traduzida para a
vida diária, os Fundadores da República Americana reafirmaram a clássica distinção entre
verdade e poder, e procuraram corporificar essa distinção entre instituições políticas

**
Não estou supondo que minha opinião sobre a homossexualidade seja original. Nem sou o único a sustentá-la. Robert Lindner,
um conhecido psicanalista não-médico, escreve o seguinte: "... quando se tira a casca de nosso sistema contemporâneo de defesas
contra o velho conflito quanto a sexo, descobre-se a mesma hostilidade pelo invertido e por seu modo de vida e a mesma aversão
por ele, como pessoa, que são tradicionais na sociedade ocidental. O fato de agora empregarmos outros termos — como “doente”
ou “desajustado” — ao homossexual, parece ter pouca importância, pelo menos no que se refere a atitudes e sentimentos básicos.
Na realidade, sugiro que precisamente essas designações revelam a horrível verdade de nossa disposição atual com relação aos
homossexuais e a impostura das ostentações sócio-sexuais modernas; afinal, no léxico atual, essas palavras refletem o não-
conformismo de seus referentes — e o não conformismo é o principal, talvez o único pecado de nossa época”. (Robert Lindner,
Must You Conform?, pp. 32-33.)
43
Ver especialmente Thomas S. Szasz, “Scientifc method and social role; Alcoholism: A socioethical perspective”; e Law,
Liberty, and Psychiatry.
44
Dick Leitsch, “The psychotherapy of homosexuality: Let's forget Jocasta and her little boy”, Psychiat. Opin., 4: 28-35 (junho)
1967: p, 35.
adequadas. Os Fundadores argumentavam que, se as religiões cristãs fossem verdadeiras
(como muitos deles acreditavam que fossem), seu valor (ou o valor de outras religiões)
devia tornar-se manifesto para homens racionais (e, geralmente, tratavam os homens
como racionais). Como admitiam a possibilidade do erro religioso, recusavam-se a
aceitar qualquer fé específica como a única verdadeira. Em resumo, sustentavam que, se
houvesse erro na religião, os homens deviam poder descobri-lo sozinhos, e agir
livremente, de acordo com suas descobertas. O resultado disso foi o conceito
caracteristicamente americano de liberdade e pluralismo religiosos, baseados na
separação entre a Igreja e o Estado. Esse conceito, que depende inteiramente do fato de
que os guardiães oficiais do dogma religioso não podem ter acesso ao poder policial do
Estado, está corporificado na Primeira Emenda à Constituição, e que afirma que “O
Congresso não aprovará lei referente ao estabelecimento de uma religião, ou que proíbe
o seu livre exercício...”
Na medida em que a ideologia que atualmente ameaça as liberdades individuais
não é religiosa, mas médica, o indivíduo precisa ser protegido, não dos sacerdotes, mas
dos médicos. Por isso, a lógica indica — por mais que os aspectos práticos e o “senso
comum” mostrem que isso é absurdo — que as proteções constitucionais tradicionais de
opressão por uma Igreja reconhecida e apoiada pelo Estado devem ser ampliadas para
proteção de opressão por uma Medicina reconhecida e apoiada pelo Estado. A
justificativa atual para uma separação entre Medicina e Estado é semelhante à que antes
havia para uma separação entre Igreja e Estado.
Assim como o conceito cristão de pecado traz consigo a pena de sofrer no inferno,
o conceito científico de doença traz consigo a pena de sofrer na terra. Além disso, se é
verdade que a natureza recompensa os crentes fiéis na Medicina (e sobretudo os que
procuram tratamento médico imediato e adequado para suas doenças) com uma vida
longa e saudável, será que isso não é atração suficiente para assegurar a crença
verdadeira? Por que é que o Estado deve usar seu poder policial para impor o dogma
médico aos não-crentes, quando, se abandonados a si mesmos, esses heréticos
certamente sofrerão os males da deterioração física e mental? Hoje, o psiquiatra
fanático enfrenta esse desafio dizendo que tem uma obrigação médica ilimitada para
com seu irmão “doente”, que tem o dever de “tratar” a sua doença amedrontadora.
Como, usualmente, o louco não pode ser curado apenas por persuasão, o uso de força —
justificado pelo objetivo terapêutico elevado — é apropriado.
Ao testemunhar as consequências trágicas dessa lógica, quando traduzida para a
vida diária, devemos imitar a sabedoria e a coragem de nossos antepassados e acreditar
que os homens podem saber o que é melhor para seus interesses médicos. Se realmente
valorizamos a cura médica e nos recusamos a confundi-la com opressão terapêutica —
assim como nossos antepassados realmente valorizavam a fé religiosa e se recusavam a
confundi-la com a opressão teológica — devemos deixar que cada homem procure sua
salvação médica, e erguer uma parede invisível, mas impenetrável, que estabeleça uma
*
separação entre a Medicina e o Estado.

*
Uma nova emenda constitucional, que amplie as garantias da primeira emenda para a Medicina, deveria dizer que “O
Congresso não fará leis que respeite uma organização da Medicina, ou o seu livre exercício. ...” Neste momento da história,
qualquer coisa que mesmo de longe se aproxime dessa declaração parece impossível, pois a Medicina Organizada é hoje uma
parte tão integrante do Governo americano quanto a Religião Organizada do Governo da Espanha no século XV. Apesar disso,
talvez: se possa dar um primeiro passo nessa direção.
11
O NOVO PRODUTO — A INSANIDADE
MASTURBATÓRIA

Tudo o que alguns tiranos da mente desejam é que os


homens que ensinam tenham mentes doentias.
1
Voltaire

Segundo Spinoza, a natureza tem horror ao vácuo. Esta frase é uma dessas projeções
poéticas que nos dizem mais a respeito de quem o a diz do que a respeito do tema. Se a
Natureza não ama o vácuo, nem tem horror a ele, os homens certamente têm horror a
fenômenos sem explicação, a problemas sem soluções. É por isso que a religião e a
magia são os verdadeiros ancestrais do racionalismo e da ciência. É também por isso
que, sob o nome de racionalismo e ciência, foram propostas e aceitas muitas explicações
de problemas, embora não sejam menos erradas, e sejam muitas vezes mais prejudiciais
2
do que as aceitas em períodos pró-científicos.
Por volta dos fins do século XVII, com o declínio do poder das crenças e
instituições religiosas, e com o aumento correspondente de poder do pensamento
secular e dos governantes dos Estados-nações, a força explicativa e a utilidade do
conceito de feitiçaria declinaram rapidamente. O Demônio e seus discípulos já não eram
suficientes como a causa de infelicidades de outro modo inexplicáveis. Havia
necessidade de uma explicação de igual amplitude. Onde é que poderia ser encontrada?
Apenas uma fonte: nas autoridades que sucediam aos sacerdotes e cujas fábulas
explicativas, denominadas ciências, estavam afastando-as da religião. Entre os novos
cientistas, os médicos, como especialistas na posse mais indispensável do homem, o seu
corpo, estavam em posição muito favorável para apresentar uma nova explicação para
muitas das coisas antes atribuídas à feitiçaria. Além disso, se a nova teoria é apenas uma
edição revista da anterior, tanto melhor; as pessoas podem pensar que têm uma nova
verdadade, sem precisar fazer grandes mudanças em seus hábitos mentais ou
mundanos.
O conceito de insanidade estava admiravelmente ajustado para substituir o
conceito de feitiçaria. No entanto, assim como a feitiçaria tinha uma causa, e a recebia
no pacto com o Demônio, também a loucura precisava ter uma causa. Por isso, apareceu

1
François Voltaire, Philosophical Dictionary (1764), p. 254.
2
Ver especialmente Friedrich A. Hayek, The Conter-Revolution of Science.
a seguinte pergunta: o que é que causa a loucura, e como é que esta pode ser impedida
e curada? Ora, para o tipo de construção de teoria que aqui estamos considerando —
isto é, uma teoria que seja inteiramente estratégica e não empírica — é importante que
o “agente causador” seja onipresente. Isso permite que o teórico — que, na realidade,
disfarçadamente impõe os valores e as regras sociais — aplique sua explicação a
qualquer problema que deseje, e ajuste a teoria a ele: e também lhe permite não aplicar
suas explicações quando ele, ou seus agentes poderosos, não deseje fazê-lo. Como a
feitiçaria era consequência de um pacto com o Demônio, e como o Demônio era
onipresente, os atos que uma pessoa desejasse repudiar ou punir sempre poderiam ser
atribuídos à feitiçaria. Essa explicação precisaria ser substituída por uma explicação
igualmente universal em sua aplicação potencial, porém mais mundana em suas
imagens. Se a necessidade é realmente a mãe da invenção, essa época deu à luz um
gênio completo: propôs a ideia de que a loucura se deve a outro ato abominável — a
masturbação. Foi assim, suponho, que nasceu o mito da loucura masturbatória.
Portanto, a doença conhecida desde o século XVIII como “insanidade masturbatória”
constitui o novo produto manufaturado pela nova extirpe de fabricantes de humanidade
degradada, os médicos e, sobretudo, os alienistas (ou psiquiatras).
Embora muitas práticas sexuais sejam mencionadas na Bíblia, a masturbação não
*
está entre eles. Apesar disso, as objeções à masturbação, como a outros tipos de atos
sexuais não procriativos, se originam de fontes religiosas judaico-cristãs. Segundo a
observação de Kinsey, “nos códigos judaicos ortodoxos, a masturbação constitui um
pecado fundamental e em certos momentos na história dos judeus, um pecado punido
3
com a morte.” Na realidade, Kinsey afirma que “poucos povos condenaram tão
severamente a masturbação quanto aos judeus. As citações e discussões talmúdicas
apresentam a masturbação como um pecado maior do que as relações sexuais fora do
casamento. No código judaico, havia desculpas para as relações sexuais pré-
matrimoniais e para relações sexuais com algumas pessoas, mas não para a
masturbação. Evidentemente, a lógica dessa proibição dependia do motivo de
reprodução na filosofia sexual dos judeus. Isso fazia com que qualquer ato que não
tivesse a possibilidade de uma concepção se tomasse antinatura, uma códigos jurídicos
4
atuais”.
Essa opinião foi adotada, praticamente sem alteração, inicialmente pela Igreja e
depois pela Medicina. O resultado, nas palavras de Kinsey, é que “as recomendações do

*
Embora o onanismo seja sinônimo de masturbação, o crime de Onã não era masturbação, uma prática não referida na Bíblia. A
história bíblica é a seguinte: Her, irmão mais velho de Onã, desagradou a Deus, que o fez morrer. Disse então Judá (pai de
ambos) a Onã: “Une-te à mulher do teu irmão, cumpre teu dever de cunhado para ela, assegurando uma descendência para teu
irmão.” Onã sabia que os filhos que nasceriam não. seriam seus, e, por isso, cada vez que se unia à mulher de seu irmão, deixava
cair por terra o sêmen, para não dar descendência a seu irmão. O que ele fazia desagradava ao Senhor, que o fez morrer
também.” (Gênese, 38: 8-10). Em outras palavras, o ato de Onã não era masturbação, mas coitus interruptus, retirada do pênis da
vagina antes da ejaculação. Seu crime não era auto-satisfação sexual, mas recusa a obedecer à lei do levirato e ter um filho com a
viúva de seu irmão.
3
Alfred C. Kinsey, WardelI B. Pomeroy, Clyde E. Martin e Paul Gebhard, Sexual Behavior in the Human Female, p. 168.
4
Ibid., p. 473.
Talmude quanto ao comportamento sexual são quase idênticas às de nossos códigos
5
jurídicos atuais”.
A palavra “masturbação” não aparece no inglês antes da metade do século XVIII; a
6
primeira citação no Oxford English Dictionary é de 1766. A etimologia da palavra é
significativa: é uma corruptela da palavra latina manustupration ou estupro manual, com
o sentido de sujar com a mão. O uso da palavra “onanismo” como sinônimo de
masturbação foi introduzido em 1710, pelo autor anônimo do importante texto Onania,
e que será discutido logo adiante; esse termo foi geralmente preferido nos trabalhos
médicos durante os séculos XVIII e XIX, e só neste século foi substituído pela palavra
“masturbação”.
O crédito por inventar a masturbação como um grave perigo médico deve ser
dado a um sacerdote anônimo que se tornou médico e que, por volta de 1710, publicou
um tratado intitulado’ Onania, or the Heinous Sin of Self-Pollution. Em seu excelente
estudo da “insanidade masturbatória”, Hare sugere que o autor não era certamente um
médico respeitável. Seu livro está mais preocupado com o pecado do que com o mal da
7
masturbação. No entanto, essa distinção não era feita pelos médicos da época, nem
pelos psiquiatras, mesmo hoje. De qualquer forma, o livro Onania deve ter atendido a
uma grande necessidade popular — talvez à necessidade de ser enganado, agora por
autoridades médicas, e não mais religiosas — pois, por volta de 1730, chegou à sua
décima quinta edição e, em 1765, a octogésima.
Embora o autor de Onania pudesse ser um charlatão, preparou o palco para que
aí médicos muito considerados desempenhassem papéis centrais. Em 1758, Tissot, um
notável médico de Lausanne, publicou um livro intitulado Onania, or a Treatise upon the
Disorders Produced by Masturbation (Onania, ou um Tratado sobre as Perturbações
Provocadas pela Masturbação). Com o aparecimento dessa obra, a posição da
masturbação como um fator etiológico fundamental foi colocada no que se poderia
denominar uma base médica sólida: autoridades médicas eminentes diziam que isso era
verdade! O livro de Tissot é importante, não apenas como uma das obras que iniciaram o
mito da loucura masturbatória, mas também como um exemplo, hoje: comum na
Psiquiatria, de argumentos morais disfarçados em retórica médica. Tissot não se limita a
advertir o leitor que os excessos sexuais de todos os tipos, mas a masturbação
especificamente, podem provocar um grande número de perturbações sérias, tanto
físicas quanto mentais, entre elas “definhamento, deterioração de vista, perturbações de
8
digestão, impotência, (...) e insanidade”, também condena o masturbador como um
“criminoso”, considera essa prática um “crime flagrante” e fala da condição deteriorada
da vítima como uma condição que “o torna digno do desprezo e não da piedade de seus

5
Alfred C. Kinsey, WardelI B. Pomeroy e Clyde E. Martin, Sexuat Behavior in the Human Male, p. 465.
6
E. H. Hare, “Masturbatory insanity: The history of an idea”, J. Ment. Sci., 108: 1-25 (jan.), 1962; p. 20.
7
Ibid., p. 2.
8
Ibid., pp. 2-3.
9
semelhantes”, e conclui que o castigo do paciente pela doença neste mundo é apenas
10
um prelúdio ao seu castigo pelo fogo eterno no outro mundo.
O livro de Tissot foi traduzido para o inglês em 1766. Logo depois, a ideia de
insanidade masturbatória se transformou de hipótese em dogma. Desde
aproximadamente 1800 até as primeiras décadas deste século, os médicos ameaçavam
os pacientes com as consequências funestas da masturbação de uma forma que
dificilmente poderia ser separada daquela pela qual os sacerdotes, seus antecessores,
ameaçavam os fiéis com as consequências desastrosas da heresia. Além disso, não
apenas ameaçavam, mas também castigavam — embora seu castigo fosse denominado
“tratamento”. Na verdade, é o castigo pela masturbação que define o papel desse novo
especialista, o alienista ou psiquiatra. O castigo pela masturbação é a insanidade futura,
gerando filhos que ficarão loucos, e, em último lugar, mas não menos importante,
internamento em hospícios para a insanidade atual. Portanto, desde o início de sua
carreira histórica, o psiquiatra institucional desempenha, simultaneamente, os papéis de
acusador, juiz e guarda. Tal como é correto para um moralista secular, ele substitui a
ameaça de breu e fogo do inferno pela ameaça de insanidade e hereditariedade
marcada, substitui o castigo de danação eterna no inferno pelo castigo de prisão
perpétua num inferno terreno, denominado hospício.
Na primeira metade do século XIX, a masturbação gradualmente se torna definida
como um problema psiquiátrico; na segunda metade do século, inicialmente os
cirurgiões e, depois, os psiquiatras, se tornam especialistas auxiliares, os primeiros como
especialistas na cura da “doença” e os últimos como especialistas na prevenção de seu
desenvolvimento. Embora isso seja um orgulho duvidoso para a Psiquiatria americana, a
primeira afirmação clara da masturbação como uma causa de insanidade a aparecer em
um livro sobre doenças mentais foi no de Benjamin Rush intitulado Medical Inquiries
* 11
upon Diseases of the Mind Diz Rush “em minha clínica, ocorreram quatro casos de
loucura com essa causa, no período de 1804 a 1807. “Mais do que costumam pensar pais
e médicos, a loucura é induzida por essa causa em homens jovens. Os efeitos mórbidos
de excessos em relações sexuais com mulheres são tênues e de natureza passageira,
quando comparados à corrente de males físicos e morais que esse vício solitário fixa no
12
corpo e na mente.” O onanismo, prossegue Rush, “provoca fraqueza de sêmen,
impotência, disúria, ataxia motora, fraqueza pulmonar, dispesia, redução de visão,
13
vertigem, epilepsia, hipocondria, perda de memória, manalgia, imbecilidade e morte”.

9
Ibid., p. 3.
10
Ibid.
*
Johann Frank, o fundador reconhecido da saúde pública, considerava a masturbação no seu campo, mais de trinta anos antes de
Rush a ter reclamado para o seu. Frank dizia em 1780 que o onanismo estava tão difundido nas escolas que as autoridades
“devem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para eliminar essa praga”. (Citado em E. H. Hare, “Masturbatory insanity: The
history of an idea”, J. Ment. Sci., 108: 1-25 [jan.], 1962, p. 23.)
11
Benjamin Rush, Medical Inquiries and Observations upon the Diseases of the Mind (1812).
12
Ibid., p. 33.
13
Ibid., p. 347.
Sem dúvida, Rush foi um pioneiro na fabricação da loucura, e principalmente na
fabricação da loucura masturbatória. Hare indica que Pinel não menciona a masturbação
na primeira edição de seu famoso Traité médico-philosophique sur l'alienation mentale,
publicado em 1801; e, embora discuta o assunto na segunda edição, publicada em 1809,
não diz que a masturbação provoca a insanidade. Em 1813, no entanto, Pinel está
14
ficando mais esclarecido: declara que a masturbação provoca a ninfomania.
Na Psiquiatria francesa, que desempenhou um papel tão decisivo na história
dessa disciplina, foi Esquirol quem aceitou a hipótese masturbatória, dando-lhe a
chancela de sua autoridade. Aqui, devemos lembrar que Esquirol foi também
responsável pela popularização da opinião de que as bruxas eram mentalmente
15
doentes. Quanto aos efeitos patogênicos da masturbação, Esquirol não pretendia ter
sido original na sua descoberta. Ao contrário, em 1816 fala de modo a dar a entender
que nenhuma autoridade médica séria pode duvidar dos males dessa prática: “A
masturbação é reconhecida em todos os países como uma causa comum de insanidade.”
Em 1822, escreve ele: “O onanismo é um sintoma grave na mania; se não for impedido
imediatamente, é um obstáculo insuperável à cura. Ao reduzir as capacidades de
resistência, reduz o paciente a um estado de estupidez, à tísica, ao marasmo e à
16
morte.” Essas opiniões são repetidas e ampliadas em seu manual clássico, Des maladies
mentales, publicado em 1838. Escreve que a masturbação “pode ser precursora de
mania, de demência e até de demência senil; leva à melancolia e ao suicídio; sua
consequências são mais sérias nos homens do que nas mulheres; é um grave obstáculo
para a cura naqueles insanos que frequentemente se utilizam dela durante sua
17
doença.”
Sustentada pela autoridade de homens como Rush e Esquirol, a “hipótese
masturbatória”, como a denomina Hare, logo se espalhou pelo mundo “civilizado”. A
primeira referência à masturbação como uma causa de insanidade aparece na Inglaterra
em 1828, e na Alemanha na década de 1830. Não demorou muito para que os poucos
críticos do mito da masturbação, e até os médicos que acreditavam que se exageravam
os seus prejuízos, fossem colocados na defensiva. Escreve um médico alemão em 1838:
“Espero não ser acusado de ter escrito uma apologia da masturbação; meu objetivo foi
simplesmente discutir a correção da opinião que diz que a masturbação é muitas vezes a
18
única ou a principal causa da perturbação mental. No entanto, segundo a observação
de Hare, nos meados do século XIX começaram a aparecer dúvidas e houve uma redução
geral das opiniões [sobre a masturbação como causa de insanidade] (...) entre os
alienistas do continente (...), mas estes ainda não encontravam correspondentes no

14
Ilza Veith, Hysteria, p. 179.
15
Ver capítulo 8.
16
Hare, p. 4.
17
Ibid.
18
Ibid., p . 5.
19
mundo de língua inglesa.” Na verdade, a Inglaterra e os Estados Unidos tiveram a honra
*
duvidosa de liderar a cruzada contra a insanidade masturbatória.
O trabalho pioneiro de Rush a respeito foi seguido por seu sucessor, igualmente
reverenciado, Isaac Ray considerava a “insanidade masturbatória” como uma forma de
“insanidade moral”, sendo seus aspectos específicos “uma tendência para demência,
perda de amor-próprio, uma disposição maldosa e perigosa, bem como um estado de
20
mente irritável e deprimido”.
Como exemplo da opinião médica americana, durante o século XIX, sobre a
masturbação, podemos considerar a posição aceita por um editorial no New Orleans
Medical and Surgical Journal (1854-1855). O editorialista começa por indicar que a
moralidade entre as mulheres americanas é muito mais elevada do que entre mulheres
de outros países, uma afirmação apoiada pela observação que a maioria das prostitutas
de New Orleans é de estrangeiras. Depois, passa para o assunto principal, a
masturbação, que descreve como “muito prejudicial à saúde de homens e mulheres”. O
editorialista observa que os homens às vezes admitem essa prática, mas não as
mulheres. “É inteiramente inútil pedir ou esperar informação de mulheres adultas a
respeito dessa prática, embora muitas de suas doenças, como leucorréia, hemorragia
uterina, queda do útero, câncer, perturbações funcionais do coração, irritação da
espinha, palpitação, histeria, convulsões, aparência macilenta, debilidade, mania —
muitos sintomas denominados nervosos — un triste tableau, têm sido ligados à
masturbação como causa. Mesmo que essas perturbações não decorram da
masturbação, sua prática certamente contribui para agravá-las.” O editorial conclui com
esta advertência de um médico francês: “Em minha opinião, nem a peste, nem a guerra,
nem a varíola, nem uma multidão de males semelhantes foram mais desastrosos para a
humanidade do que o hábito de masturbação: é o elemento destrutivo da sociedade
21
civilizada.”
A mesma opinião é apresentada em 1876 por Pouillet, um médico francês, que
escreve que “De todos os vícios e de todos os erros que podem ser adequadamente
denominados crimes contra a natureza, que devoram a humanidade, ameaçam sua
vitalidade física e tendem a destruir suas faculdades intelectuais e morais, um dos
22
maiores e mais difundidos — ninguém o negará — é a masturbação.”
O perigo da masturbação, que a ciência médica afirma ter confirmado
firmemente, era efetivamente avaliado em todas as nações ocidentais. No seu livro,
muito a propósito denominado The Sneaking Enemy (O Inimigo Secreto), publicado em

19
Ibid., p. 6.
*
Os psiquiatras do século XIX não acreditavam que a masturbação fosse a única nem a mais importante causa de insanidade.
Provavelmente a acentuavam tanto em seus trabalhos, sobretudo nos dirigidos aos leigos, porque pensavam que assim poderiam
exercer melhor controle sobre ela. A sífilis e a predisposição hereditária (ou constitucional) eram também explicações populares
da causa da doença mental.
20
Ibid.
21
Citado em John Duffy. “Masturbation and clitoridectomy”, J.A.M.A., 186: 246-248 (19 de out.), 1963; p. 246.
22
Citado em Hare, p. 23.
Estocolmo em 1887, E. J. Ekman adverte que a “masturbação” tende a transformar o
jovem numa “ruína gasta e emaciada, que caminha para o túmulo ou para a cela do
manicômio”, e fazer com que mergulhe na “noite escura e sem fim da insanidade”. Além
disso, a masturbação também faz com que “se interrompa o crescimento da criança,
enquanto se reduz ou se detém inteiramente o desenvolvimento do sistema muscular,
23
da voz, do crescimento da barba, da coragem e da energia”.
Podemos perguntar como é que homens instruídos e o público poderiam
acreditar nesse absurdo, claramente desmentido por observações fáceis de homens e
animais. Essa tendência humana para aceitar o erro coletivo — sobretudo, erro que
ameaça danos e provoca ação protetora específica — parece ser uma parte integrante
da natureza social do homem. Assim, quando o homem está diante de importantes
crenças de massa — como a crença em feitiçaria, o mal causado pela masturbação ou a
crença da doença mental — está mais interessado em preservar as explicações populares
que tendem a consolidar o grupo do que em fazer observações exatas que tendem a
dividir a opinião. É por isso que quase todos os homens de uma época aceitam apenas as
observações que confirmam as teorias aceitas em sua época, e rejeitam as que as
*
negam.
Por isso, é necessário, em qualquer período histórico, dar muita atenção à
interpretação predominante do mundo, através da qual os homens observam seu
ambiente físico, sua sociedade e a si mesmos. O século XIX foi uma época de
preconcepções físicas. Foi uma época em que, nas palavras de Wayland Young,
os conceitos de energia (...) colocaram, em forma física, o ascetismo de S. Agostinho, as
dúvidas e inibições teológicas de uma época anterior. Foi então que a possibilidade de
considerar o homem uma máquina se tornou uma parte normal das mentes dos homens, e
sob certos aspectos o novo modelo mecânico de homem se ajustava muito
adequadamente ao modelo teológico anterior (...) É fácil ver a analogia. Quanto mais
energia você tira de uma máquina, menos energia resta; você não deve sobrecarregá-la.
Quanto mais dinheiro você tira de uma firma ou de um banco, menos dinheiro resta; você
não deve gastar além do que tem. Portanto, quanto mais uma pessoa tem relações sexuais,
24
mais fraca ela fica.
Assim, a ideia religiosa de que o prazer sexual é pecaminoso se transformou
facilmente na ideia médica de que a perda de esperma é prejudicial. Vale dizer, “... a
perda de sêmen, seja em relações sexuais ou não, (...) é perda de vigor, saúde e,

23
Citado em Lars Ullerstam, The Erotic Minorities, p. 113.
*
Isso não é menos dramaticamente verdade para o erro do conceito de doença mental do que para o de insanidade masturbatória.
A Associação Nacional para Tratamento da Doença Mental, dos Estados Unidos, afirma, e os presidentes americanos aceitam,
que “a doença mental é como qualquer outra doença”. O fato é que os cidadãos americanos podem ser hospitalizados e tratados
contra sua vontade por doença mental, mas não por qualquer outra doença; podem alegar doença mental como desculpa para um
crime, mas não qualquer outra doença; e podem obter divórcio de cônjuges vitimados por doença mental, mas não por qualquer
outra doença. Apesar disso, tais fatos não enfraqueceram — na realidade, talvez tenham até fortalecido — a opinião psiquiátrica
e popular de que as “perturbações mentais” são doenças médicas que exigem tratamento por médicos em hospitais.
24
Wayland Young, Eros Denied, p. 204.
25
finalmente, sanidade mental”. A hipótese masturbatória é apenas a ética cristã
tradicional traduzida para a linguagem da Medicina moderna.
A interpretação da Psiquiatria americana quanto à masturbação, característica da
década de 1880, é exemplificada pelo manual de Spitzka sobre Insanidade, uma obra que
o autor caracterizou como “o primeiro tratado sobre a insanidade, publicado deste lado
26
do Atlântico, desde a época do imortal Rush”.
O abuso funcional do órgão sexual masculino [declara Spitzka] tem importância ainda
maior para o alienista do que suas doenças orgânicas. Desde um tempo imemorial se pensa
que um número excessivo de relações e a masturbação sejam causas diretas de insanidade.
Indiscutivelmente, exercem uma influência prejudicial no sistema nervoso, e podem
provocar insanidade, seja, em parte, através de sua influência direta nos centros nervosos,
seja, em parte, através do efeito de enfraquecimento na nutrição geral. (...) A melancolia, a
insanidade de estupor, a catatonia e a insanidade da puberdade são as formas mais
frequentemente encontradas nos masturbadores, e os seus caracteres essenciais podem
ser sempre encontrados sob tais circunstâncias. No entanto, são também reconhecíveis as
características comuns dos masturbadores. Assim, tais lunáticos são usualmente tímidos,
hipócritas, desconfiados, indolentes, mesquinhos e covardes. São simuladores, e
desenvolvem uma arte em esconder e praticar seu vício que apresenta um notável
contraste com sua estupidez, sua apatia e debilidade mental em outros domínios. O
prognóstico de psicoses associadas a masturbação nos homens é mau. Uma variedade de
deterioração marcada por perversão moral é observada em vítimas jovens do hábito, e que
* 27
é tratável se o hábito por eliminado.
No entanto, os britânicos não ficavam atrás. Aparentemente, foi o médico
escocês David Skae o primeiro a afirmar que havia um tipo específico de insanidade,
devido à masturbação. Este era o progresso científico: a masturbação não poderia
provocar qualquer tipo de doença mental, mas apenas um tipo específico! O fato de que
Skae não tivesse a menor prova disso não tinha importância; era suficiente que a ideia
parecesse cientificamente- mais sutil do que as anteriormente apresentadas.
Henry Maudsley, um notável psiquiatra britânico, muitas vezes considerado o pai
da Psiquiatria inglesa, deu uma importante confirmação para o mito da masturbação. Em
1867, escreveu: “O hábito de masturbação provoca, nos primeiros estádios, uma forma
específica e desagradável de insanidade, caracterizada por intensa autopercepção e

25
Ibid., p. 205.
26
E. C. Spitzka, Insanity: Its Classification, Diagnosis, and Treatment, p. 9.
*
Numa notável nota de pé de página, Spitzka conta como seus esforços para fabricar loucura num jovem foram detidos, quando
o jovem descobriu os planos para seu internamento. Um jovem “de maus antecedentes hereditários, que durante vários dias não
saíra da cama, e que em conseqüência desse hábito [escreve Spitzka] apresentava debilidade mental e perversão moral, estava a
ponto de ser levado para um manicômio pelo autor. No dia seguinte, desconfiado, o que é comum nessas pessoas, fez uma busca
e descobriu os papéis do internamento. Depois de exa- miná-los, imediatamente mudou de vida, passou a trabalhar na loja de seu
pai, fazia o melhor de que era capaz, abandonou seus maus hábitos e, até hoje, isto é, durante um período de quase dois anos, tem
um comportamento de acordo com sua capacidade média, sendo notável apenas por ser muito taciturno.” (Spitzka, p. 379). Em
outras palavras, quando esse jovem compreendeu que o médico não era seu aliado, mas seu inimigo, imediatamente ficou curado
de sua “doença mental”. Este episódio exemplifica uma das maneiras pelas quais os psiquiatras criam doença mental, e pelas
quais os indivíduos que aceitam o papel de doente mental ajudam a confirmar o psiquiatra em seu papel de psicodiagnosticador e
terapeuta.
27
Ibid., pp. 378-380.
vaidade, extrema perversão de sentimento e correspondente perturbação de
pensamento, e, em estádios posteriores, incapacidade da inteligência, alucinações notur-
28
nas, bem como tendências para suicídio e homicídio.” Um ano depois dedica um artigo
apenas a “esse tipo de insanidade provocada por masturbação”; nesse artigo, escreve:
Um estádio posterior e ainda pior a que chegam esses seres degenerados é o de
preocupação instável e distração, bem como perda extrema de capacidades mentais. São
rabugentos, quietos e não têm qualquer disposição para conversar (...) Nem é preciso dizer
que perderam todo sentimento humano sadio e todo desejo natural (...) Embora muitas
vezes sobrevivam por um período mais longo do que se imaginaria possível, finalmente se
arrastam para a morte através de completa prostração de todo o sistema, a não ser que
sejam levados antes por uma outra doença. Portanto, essa é a história da degeneração
física e mental provocada nos homens pela masturbação. É uma figura miserável da
degradação humana, mas não está sobrecarregada (...) Nada tenho a acrescentar quanto a
tratamento; uma vez formado o hábito, e uma vez que a mente tenha sofrido
positivamente com ele, a vítima é menos capaz de controlar o que é mais difícil controlar, e
haveria tanta esperança de ver um etíope mudar de pele, ou o leopardo perder suas
manchas, quanto de ver o paciente abandonar esse vício. Não tenho confiança no emprego
de meios físicos para controlar o que se tornou uma doença mental grave; quanto mais
cedo cair em seu repouso degradado, melhor para ele, e melhor para o mundo que se verá
29
livre dele. É uma conclusão má e triste, mas é também inevitável.

Hare, um psiquiatra inglês, parece acanhado ao lembrar seus leitores que o


grande Maudsley, cujo nome é o mais venerado na Psiquiatria inglesa, pudesse ter tais
opiniões. Observa Hare: “Este artigo [sobre a masturbação] não é um daqueles que os
seus admiradores gostariam de ler, mas pode ser lido, com proveito, como um exemplo
de advertência quanto a esse pecado de psiquiatras — uma tendência para confundir as
30
regras de saúde mental com as de moralidade.” No entanto, como tentei mostrar, e
como o exemplo de Maudsley torna extremamente claro, é Hare que está confundido, e
não Maudsley: como a Psiquiatria lida com conduta social e pessoal, e como essa
conduta não pode ser descrita, e muito menos avaliada, sem ligação com uma matriz de
valores, nada existe para confundir entre regras de saúde mental e regras de moralidade.
As duas são uma e a mesma coisa; são dois conjuntos diferentes de termos, duas
linguagens diferentes, para descrever as relações humanas e a conduta pessoal e nelas
31
influir.
Embora Maudsley condenasse a masturbação e dissesse as piores coisas dos
masturbadores, pelo menos não defendia intervenções médicas destrutivas, definidas
como “tratamentos” para essa “doença”. Isso é mais do que aquilo que pode ser dito a
respeito de seus sucessores. Na realidade, na segunda metade do século XIX, quando a
crença na loucura masturbatória estava diminuindo, aumentava a popularidade de
tratamentos cirúrgicos para essa condição. Isso está claramente ligado ao

28
Citado em Hare, p. 7.
29
Citado em Alex Comfort, The Anxiety Makers, pp. 107-108.
30
Hare, p. 24.
31
Thomas S. Szasz, “The Mental Health Ethic”, em Richard T. Der George (org.), Citado em Ethics and Society, pp. 85-110.
desenvolvimento de habilidades cirúrgicas e de técnicas ascéticas de operação, o que
permitia mutilações seguras de pacientes — não a qualquer indicação médica
recentemente descoberta para o tratamento de masturbação. Uma discussão da
insanidade masturbatória não estaria completa sem uma menção dos “tratamentos”
empregados, depois de 1850, para essa “doença”.
Para tratar a masturbação em moças e mulheres, o Dr. Isaac Baker Brown, um
eminente cirurgião londrino que depois se tomou presidente da Associação Médica de
Londres, introduziu, por volta de 1858, a operação de clitoridectomia. Para curar essa
“doença”, estirpou o órgão que ela “afeta” — pois acreditava, ou dizia que acreditava,
32
que a masturbação provocaria histeria, epilepsia e doenças convulsivas. A. J. Block,
cirurgião visitante no Charity Hospital de New Orleans, considerava a masturbação
feminina uma forma de “lepra moral”, e ainda em 1894 advogava a clitoridectomia para
33
sua cura. Aparentemente, nem ele nem seus colegas achavam que houvesse qualquer
coisa de errado, lógica ou moralmente, em tratar uma condição moral através de meios
cirúrgicos. Os masturbadores do sexo masculino não se saíam melhor. Por exemplo, J. L.
Milton, médico inglês, recomendava que eles usassem cintos de castidade fechados,
durante o dia, e com correntes trespassadas durante a noite, a fim de que fossem
*
acordados em caso de ereção noturna. O livro de Milton, The Pathology and Treatment
of Spermatorrhea (1887) teve doze edições — o que dá uma ideia mais ampla da
** 34
popularidade e da influência de obras desse tipo.
Em 1891, James Hutchinson, presidente do Royal College of Surgeons, publicou
um artigo Sobre a Circuncisão como Prevenção da Masturbação; nesse artigo, não
apenas defendia a circuncisão para o tratamento e prevenção desse “hábito
vergonhoso”, mas também propunha que “... se a opinião pública permitisse sua
adoção (...) algumas medidas mais radicais do que a circunscisão seriam (...) uma grande
35
caridade para muitos pacientes de ambos os sexos. “ Se Hutchinson vivesse alguns anos
depois, ele, e não Egas Moniz, poderia ter recebido o Prêmio Nobel pelo tratamento da
***
insanidade.

32
René A. Spitz, “Authority and masturbation: Some temarks on a bibliographical investigation”, Yearbook of Psychoanalysis,
Vol. 9, 113-145; p. 123.
33
Duffy, p. 248.
*
Ainda em 1897, o Governo americano concedeu uma patente — número 587.994 — a um tal Michael McCormick, de São
Francisco da Califórnia, para um “cinto de castidade masculino” que os pais colocariam em seus filhos adolescentes para impedir
a masturbação. (Playboy, dez., 1967, p. 79.)
**
Como Rush e outros médicos messiânicos, Milton também se opunha ao tabaco; em 1857, publicou um livro intitulado Death
in the Pipe (A Morte no Cachimbo). (Comfort, The Anxiety Makers, p. 97.)
34
Comfort, p. 97.
35
Hare, p. 22.
***
Na medida em que se aperfeiçoaram técnicas e habilidades cirúrgicas, foram criadas e empregadas operações cada vez mais
difíceis e mais, destrutivas, a fim de curar novas doenças iatrogênicas. A passagem da clitoridectomia para a colectomia e, daí,
para a lobotomia — como métodos de tratamento, não apenas para insanidade, mas também para muitas, outras doenças
iatrogênicas — exemplifica esse princípio. Portanto, podemos distinguir entre dois princípios básicos para a identificação de.
doenças e suas causas. Um, o empírico, se baseia na observação e, às vezes, na experimentação; por exemplo, a identificação da
sífilis e da gonorréia como doenças venéreas. O outro, o estratégico, se baseia na disponibilidade de meios plausíveis para a
intervenção médica; por exemplo, a persuasão moral e a purgação intestinal, quando estas eram as principais possibilidades de
terapia. Assim é possível construir uma teoria funcional — ou estratégica — de doenças iatrogênicas e tratamento desagradável.
Segundo essa teoria, os médicos descobrem doenças e as atribuem a causas que dependem da maneira pela qual gostariam de
Em 1895, T. Spratling, também cirurgião inglês, recomendava, para o tratamento
de masturbação “de homens adultos e loucos (...) o seccionamento dos nervos dorsais
do pênis” para as mulheres “nada que não seja a ovariotomia merecerá sequer o termo
36
de paliativo”.
Numa resenha crítica do mito da masturbação, Alex Comfort nota a popularidade
de tratamentos cirúrgicos básicos da masturbação no período aproximado de 1850 a
1900, e diz o seguinte a respeito:
Durante esse período, houve uma eclosão do que só pode ser denominado sadismo de
história em quadrinhos. A defesa dessas terapias bizarras; não se limitava a excêntricos.
Por volta de 1880, o indivíduo que desejasse, por razões inconscientes, prender, acorrentar
ou infibular crianças, sexualmente ativas ou doentes mentais — as duas audiências cativas
mais facilmente disponíveis — ou enfeitá-los com aparelhos grotescos, fechá-los num
emplastro de folhas, de couro ou borracha, amedrontá-los ou até castrá-los, cauterizar ou
retirar os nervos de seus órgãos genitais, poderia encontrar autoridade médica,
humanitária e respeitável para fazer isso sem sofrer dores de consciência. A insanidade
37
masturbatória era agora suficientemente real — estava atingindo os médicos.
A observação de Comfort é muito adequada. No entanto, classificar a insanidade
masturbatória como uma doença que atinge os médicos é o mesmo que dizer que Hitler
ou Stalin eram doentes mentais. Os médicos, como os líderes políticos, possuem certa
medida de poder social real. Realmente não importa — sobretudo para a vítima — saber
quem tem esse poder. O Papa ou um príncipe, um político ou um médico, todos eles
podem oprimir, perseguir e matar os que estão sujeitos a seu poder. Os políticos
desencadeiam guerra contra seus inimigos, c nesse processo sacrificam seu povo. Os
médicos desencadeiam guerra contra as doenças, e nesse processo muitas vezes
degradam, ferem e até matam pessoas que voluntariamente se submetem a eles como
pacientes, ou que, tal como ocorre na Pediatria e na Psiquiatria Institucional, são a eles
submetidos por suas famílias ou pelo Estado. Não existe uma diferença significativa entre
a perseguição anterior aos masturbadores e a perseguição atual aos homossexuais; nem
a clitoridectomia como tratamento para insanidade masturbatória é mais “bizarra”,
“sádica” ou “doentia” — os adjetivos são de Comfort — do que a lobotomia para a
esquizofrenia. A respeito, voltarei a apresentar outros argumentos.
Por volta do fim do século XIX começa um lento declínio na crença de que a
masturbação provoca psicose. Mas o mito da masturbação custa a morrer. Os psiquiatras
começam a argumentar que, embora a masturbação não provoque a insanidade,
provoca formas mais brandas de doença mental, isto é, neurose, bem como

intervir na vida do paciente. Assim, quando a autoridade moral era uma poderosa arma terapêutica, o médico; atribuía a
insanidade à masturbação e usava a sugestão para o seus tratamento; quando os recursos cirúrgicos estavam embrionários,
atribuía a doença à mesma causa, mas a tratava como circuncisão e clitoridectomia. Quando as habilidades cirúrgicas se
aperfeiçoaram, o médicos atribuía a insanidade ao cólon (anatomicamente perfeito) e o tratava com colectomia; quando as
técnicas neurológicas foram aperfeiçoadas, atribuía a doença a lobos frontais que não funcionariam adequadamente, tratando-a
com lobotomia. A moda atual de tratar as doenças mentais, com agentes psicofarmacológicos pode ser interpretada de forma
semelhante.
36
Ibid.
37
Comfort, p. 95.
homossexualidade. Por exemplo, por volta de 1895, Maudsley abandona suas opiniões
anteriores a respeito de insanidade masturbatória, mas passa a atribuir a essa prática
uma nova classe de doenças mentais; este, diz ele, “conservam alguns aspectos
razoavelmente distintos”, entre os quais pensamentos obsessivos, compulsões,
38
preocupações constantes e fobias. Kraepelin, o grande psiquiatra alemão, cujo Manual
foi talvez a obra psiquiátrica de maior influência na época, enumera a masturbação, na
sexta edição do livro, publicada em 1899, sob o título geral de “Condições Mentais do
Origem Constitucional”, e sob o subtítulo do “Anormalidades Sexuais”, onde é seguida
por outras doenças mentais como exibicionismo, fetichismo, masoquismo, sadismo e
39
homossexualidade.
Para avaliar integralmente o papel desempenhado pelos médicos na fabricação da
loucura masturbatória, citarei o conselho dado por uma médica americana, em 1903, a
mães, quanto à “educação sexual” de seus filhos. “Ensinem a seu filho”, exorta Mary
Melendy, “uma coisa de que vocês nunca devem se envergonhar, o que ele deve saber a
respeito dos órgãos que fazem com que seja um menino. Ensine a ele que são chamados
órgãos sexuais, que não são impuros, mas de importância imensa, feitos por Deus com
um objetivo definido (...) Mostrem a ele que se esses órgãos forem mal usados, ou se
forem usados para outro objetivo que não aquele para o qual Deus os fez — e Ele não
pretendia que fossem usados antes de um homem ser adulto — isso provocará doenças
* 40
e infelicidade dos que abusam e desobedecem às leis que Deus fez para governá-los.”
O movimento psicanalítico deu muito apoio à sobrevivência, embora sob forma
modificada, da hipótese masturbatória. Na verdade, Freud deu à hipótese uma nova
vida, exatamente quando geralmente se começava a aceitar que a masturbação não
provocaria a psicose, ao sustentar que causava a neurose! Como estavam preocupados
com a “etiologia” sexual das doenças mentais, os primeiros psicanalistas foram
fervorosos defensores da ideia de que a masturbação era uma atividade prejudicial.
Existem inúmeras referências à masturbação, e muitas discussões a respeito, na
obra de Freud. Alguns de seus comentários devem ser suficientes para indicar sua
posição. Em 1894, ao analisar os sintomas de “uma moça [que] sofria de obsessões de
auto-acusação”, apresenta a seguinte explicação: “As perguntas revelaram a fonte de
que surgia o seu sentimento de culpa. Estimulada por uma sensação voluptuosa casual,

38
Hare, p. 9.
39
Citado em Karl Menninger, The Vital Balance, p. 462.
*
Ao notar um conselho como esse apresentado por Mary Melendy, mas à distância muito cômoda de mais de meio século,
tendemos a supor que isso era um erro médico, feito na maior boa fé e sem intenção maliciosa. Mas podemos estar certos de que
isso fosse verdade? Ao contrário, não poderia ser uma mentira apresentada, com conhecimento pelo menos parcial, a fim de
provocar o comportamento desejado de mães e filhos? Esta última suposição é intensificada, no caso de Melendy, pelo fato de
seu conselho errado, não apenas a respeito da masturbação, mas também a respeito do controle de natalidade. Escreve ela: “É
uma lei da natureza que a concepção deva ocorrer aproximadamente na época da menstruação. (...) No entanto, pode-se dizer,
com certeza, que a partir de dez dias depois da cessação da menstruação até três dias antes de seu reinício, existe pouca
possibilidade de concepção, enquanto que o inverso é igualmente verdade.” (Os grifos são meus.) (Mary R. Melendy, Perfect
Wamanhood, pp. 263-265.) Melendy aqui declara que o período de maior fertilidade da mulher é o “período sem risco” e vice-
versa. Como ela reconhece que se opõe a controle de natalidade, pode-se perguntar se seus “fatos” aqui, como no caso da
masturbação, não são mentiras estratégicas.
40
Mary R. Melendy, Perfect Womanhood, pp. 32-33.
deixou-se levar por uma amiga e passou a masturbar-se, permanecendo nessa prática
por vários anos, inteiramente consciente de seu erro e do acompanhamento das
autocríticas mais violentas, mas, como é usual, ineficientes. Uma indulgência excessiva
depois de um baile provocou a intensificação que levou à psicose. Depois de alguns
* 41
meses de tratamento, e da mais rigorosa fiscalização, a moça curou-se.” (Os grifos
são meus.)
Em 1897, numa carta a Fliess, Freud escreve: “...agora me ocorreu que a
masturbação é um hábito fundamental, o ‘vício primário’, e que apenas como
substituição é que aparecem outros vícios — por exemplo, álcool, tabaco, morfina,
42
etc.” O fato de denominar a masturbação um “vício” na realidade não é muito
diferente de denominá-la um hábito mau ou pecaminoso: no primeiro caso, é condená-la
na linguagem da Medicina, no segundo, no da moralidade.
Na Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Freud narra o fato de ter sido
chamado por uma mãe que desejava que fosse à sua casa “para examinar um jovem”,
seu filho. Freud nota uma mancha nas calças do moço, e faz uma pergunta a respeito. O
moço responde que tinha espirrado clara de ovo nas calças. Evidentemente, Freud não
foi enganado: “quando sua mãe nos deixou sós, agradeci-lhe por ter tornado o meu
diagnóstico muito mais fácil, e sem outros comentários considerei como base para nossa
discussão sua confissão de que estava sofrendo com os problemas decorrentes da
43
masturbação.” Aqui, eu, observaria apenas que, a partir do pouco que Freud nos diz a
respeito do caso, seria necessário concluir que ele estava errado. O jovem não chamou
Freud, e não há razão para acreditar que ele estivesse sofrendo do que quer que fosse; a
pessoa que estava sofrendo era sua mãe, presumivelmente com a masturbação da
sexualidade do filho. É interessante que aqui Freud aceita a definição da situação dada
pela mãe, e trata o filho como um paciente “que sofria com os problemas decorrentes da
**
masturbação”.
Os comentários mais minuciosos de Freud sobre a masturbação estão em sua
contribuição a uma discussão sobre o assunto, realizada na Sociedade Psicanalítica de
Viena, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912. Nessas observações, ele
mostra que aceitava a opinião de que a masturbação é prejudicial, se não
somaticamente, pelo menos psiquicamente, e que provoca doença mental. Freud
escreve em suas “Observações Finais” que “todos concordamos quanto: ‘a) a

*
Aqui, Freud dificilmente passaria pelo libertino que os seus contemporâneos julgavam que fosse. Freud continuou a opor-se à
masturbação durante toda a sua vida. Até hoje, como veremos, as opiniões de outros psicanalistas continuam hesitantes e
ambivalentes.
41
Sigmund Freud, “The neuropsychoses of defence”, (1894), em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of
Sigfund Freud, Vol. III, pp. 41-61; pp. 55-56.
42
Sigmund Freud, Carta 79, 22 de dez. 1897, ibid., Vol. I, p. 272.
43
Sigmund Freud, “The Psychopathology of Everyday Life”, (1901), ibid., Vol. VI, pp. 199-200.
**
Freud logo aprendeu a não cometer esse erro. A Psiquiatria nunca aprendeu a lição, e muitos psicanalistas a estão esquecendo
rapidamente. O que desejo dizer aqui é que, quando uma pessoa não se queixa ao psiquiatria e, na realidade, deseja ficar em paz
consigo mesma, é ilógico e pouco prudente dizer que está sofrendo com doenças ou problemas, e que deseja “ajuda”. Nesses
casos, os que sofrem são as pessoas que esse “paciente involuntário” perturba. Assim, os viciados, os homossexuais, os
psicopatas, os delinqüentes juvenis e assim por diante não sofrem de qualquer coisa; fazem os outros sofrerem. Evidentemente,
essa afirmação não significa que eu aprove o seu comportamento; nem significa que eu o condene. Isso é outro problema.
importância das fantasias que acompanham o ato de masturbação ou que o
representam; b) a importância do sentimento de culpa, qualquer que seja sua origem,
ligado à masturbação e c) a impossibilidade de atribuir um determinante qualitativo aos
efeitos prejudiciais da masturbação.’ (Quanto a este último ponto, o acordo não é
44
unânime.)” Nem aqui nem em outros trabalhos, Freud menciona ou critica o fator
religioso ou médico da masturbação — isto é, o sentimento de culpa ou angústia a ela
ligado porque os sacerdotes dizem que é má e os médicos dizem que provoca a loucura.
Em vez disso, Freud baseia grande parte de sua teoria de “medo de castração” nas
angústias que encontra em seus pacientes, que ele prefere atribuir às suas fantasias e
não à atmosfera em que são criados.
A seguir, Freud se volta para “algumas diferenças não-solucionadas de opinião”, e
fala — a escolha de palavras é significativa — de uma “negação dos efeitos prejudiciais
45
da masturbação”. Depois, resume em poucas palavras sua opinião sobre a
masturbação. Talvez o mais interessante seja aquilo que não diz: “Dividi a masturbação
de acordo com a idade da pessoa em: 1) masturbação em bebês (...) 2) masturbação em
46
crianças (...) 3) masturbação na puberdade...” A masturbação em adultos não é
enumerada. No entanto, fica claro que Freud considera a masturbação adulta como uma
prática patológica e patogênica. Escreve o seguinte: “Sobre a relação entre masturbação
e ejaculações e a causação da chamada ‘neurastenia’, estou, como muitos dos senhores,
em oposição a Stekel (...) Sustento, contra ele, minhas opiniões anteriores [de que a
47
masturbação é prejudicial].”
Assim, Freud passa para o lado dos crentes verdadeiros no mito da doença mental
masturbatória. “Devo confessar que ainda aqui não consigo aceitar o ponto de vista de
Stekel (...) Segundo Stekel, o mal causado pela masturbação resume-se a um preconceito
sem sentido que, apenas em consequência de limitações pessoais, não estamos
dispostos a afastar inteiramente. No entanto, acredito que (...) a aceitação dessa opinião
contraria nossas opiniões fundamentais a respeito da etiologia das neuroses.
Fundamentalmente, a masturbação corresponde a atividade sexual infantil e a sua
48
retenção subsequente em idade mais madura.” Aí está. O sacerdote dizia que a
masturbação era má e que Deus puniria você com o inferno; os psiquiatras pré-
freudianos diziam que a masturbação deixaria você maluco e estavam dispostos a tratá-
lo com operações mutiladoras; Freud diz que é infantil, provoca “neuroses reais” —
como a neurastenia, a neurose de angústia e a hipocondria — e está disposto a fazer
com que você se envergonhe e a abandone. Esta progressão nos faz pensar nas
mudanças na severidade de castigos prescritos para alguns delitos na lei penal anglo-
americana. Por exemplo, era costume cortar as mãos dos batedores de carteira; depois,
eles passaram a ser condenados a longas penas com trabalhos forçados; agora, recebem

44
Sigmund Freud, “Contributions to a discussion on masturbation” (1912), ibid., Vol. XII, pp. 239-254; 245.
45
Ibid.
46
Ibid., p. 246.
47
Ibid., p. 248.
48
Ibid., pp. 250-251.
sentenças breves de prisão. Penso que e analogia é bem adequada. A redução gradual do
castigo para batedores de carteira não significa que o ato se tenha tornado aceitável. É
ainda considerado criminoso. Mudaram apenas nossas ideias quanto à severidade do
castigo justificado por esse ato. O mesmo ocorre com a masturbação. A redução gradual
de castigos pela masturbação — de enxofre e fogo do inferno para operações cirúrgicas
mutiladoras do pênis até diagnósticos psicanalíticos degradantes — indica que a atitude
com relação a masturbação, tanto especializada quanto popular, não passou por
mudança fundamental. Antes, era considerada uma atividade indesejável, e o mesmo
ocorre ainda hoje; mudaram apenas nossas ideias quanto à severidade do tratamento
que ela justifica.
A afirmação de Freud de que a masturbação é prejudicial parece curiosamente
insistente. Evidentemente, ele não tinha comprovação para ela. Ao contrário, suas
provas eram dadas por sua teoria da patogênese da neurose. Por isso, ao aceitar a
hipótese da masturbação, Freud estava, na realidade, defendendo sua reformulação —
certamente bem disfarçada — dessa teoria. Por maiores que fossem as realizações de
Freud, nesse caso estava, evidentemente, mais interessado em defender suas teorias do
que em defender seus pacientes. É interessante o tipo de provas que Freud apresentou
para confirmar sua opinião. Uma prova está em sua “experiência médica”: a partir dela,
diz que “não posso deixar de lado uma permanente redução de potência entre os
49
resultados da masturbação (...)”; outra está em seu “julgamento”: “No entanto, por
mais que possamos rastrear as coisas, nosso julgamento sobre a causação da doença
50
[neurose real] precisará continuar ligado a essa atividade [masturbação]”; um terceiro
reside numa “lesão física” ainda não descoberta: “A lesão orgânica pode ocorrer através
51
de algum mecanismo desconhecido.” A partir de provas tão frágeis — mas com os pés
firmados solidamente nas rochas da tradição psiquiátrica e da moralidade vitoriana —
Freud conclui que a masturbação é prejudicial (em vez de poderia ser): “Por isso, somos
levados de volta, mais uma vez, dos argumentos para a observação clínica, e por esta
52
somos advertidos a não eliminar o título ‘efeitos prejudiciais da masturbação’.” Freud
nunca abandonou essas ideias.
Os psicanalistas continuaram a condenar a masturbação, ainda que em termos
cada vez mais suaves. Por exemplo, em 1918 Ernest Jones ainda acreditava que “... a
neurastenia verdadeira... depende de onanismo excessivo ou ejaculações
53
involuntárias”. Em 1923, escrevia que “Sabe-se que as fantasias que precedem ou
acompanham a masturbação são predominantemente incestuosas, donde decorre um
54
sentimento de culpa a elas ligada (...)” — uma opinião, que estranhamente, ignora os
efeitos de ameaças médicas como uma fonte de angústia e culpa.

49
Ibid., p. 249.
50
Ibid., p. 251.
51
Ibid.
52
Ibid.
53
Citado em Comfort, p. 111.
54
Ernest Jones, “The nature of auto-suggestion”, em Papers on Psychoanalysis, pp. 273-293; p. 282.
Precisamos resumir nossa resenha dos aspectos psicanalíticos do mito da
masturbação e concluiremos com uma citação das opiniões de Otto Fenichel, cujo livro,
A Teoria Psicanalítica das Neuroses, é considerado o tratado moderno definitivo da
Psicanálise. Fenichel opõe-se muito menos à masturbação do que Freud. No entanto,
também apresenta os critérios morais atuais quanto às atitudes desejáveis e
indesejáveis, como se fossem critérios psicanalíticos científicos de comportamento
mentalmente sadio. Segundo Fenichel: “A masturbação é normal na meninice; e, nas
condições culturais atuais, é também normal na adolescência, e, mesmo na vida adulta,
como um substituto, quando não há disponibilidade de um objeto sexual (...) A
masturbação é certamente patológica sob duas circunstâncias: a) sempre que é
preferida, por pessoas adultas, à relação sexual; b) quando não é praticada
ocasionalmente para aliviar tensão sexual, mas com intervalos tão frequentes que revela
55
uma disfunção com relação à capacidade para satisfação sexual.”
Na ética sexual advogada por Fenichel, é desejável que uma pessoa tenha prazer
sexual. Se não o faz, é patológica; o fato de não masturbar-se pode ser também uma
anormalidade. “Se uma pessoa cujas atividades sexuais estão bloqueadas por
circunstâncias externas se recusa a utilizar essa saída” — uma frase que faz da
masturbação uma espécie de equivalente moral do aborto terapêutico — “a análise
sempre revela algum medo inconsciente ou algum sentimento de culpa como a fonte da
* 56
inibição.”
Nossa resenha da história da insanidade masturbatória está quase completa.
Resta apenas apresentar sua história recente e sua posição atual. Gradualmente, o mito
se atenua: o mal atribuído à masturbação se torna cada vez mais vago; a prática é
condenada em termos cada vez mais leves; ocasionalmente, mas muito raramente, é até
considerada como completamente inofensiva.
É espantoso verificar que até há pouco tempo a masturbação era considerada
uma “doença” que exigia “tratamento” por médicos. Num amplo estudo bibliográfico
sobre o tema, René A. Spitz verificou que ainda em 1926 um médico alemão, Werner
Villinger, num artigo publicado na Zeitschrift für Kinder-formschung, fala da masturbação
57
como “uma serpente que precisa ser sufocada”. Spitz também nota que, até a sua
edição de 1940, um dos manuais modelares americanos de Pediatria, Diseases of Infancy
and Childhood (Doenças da Infância e da Meninice), de Holt, condena a prática como

55
Otto Fenichel, The Psychoanalytic Theory of Neurosis, pp. 75-76.
*
A definição psicanalítica que Fenichel dá do que faz com que a masturbação seja “patológica” (isto é, “má”) indica com certeza
a verdadeira razão pela qual essa prática é condenada, principalmente em adultos. O pecado do auto-erotismo está apenas no fato
de que a pessoa que se masturba participa de um ato sexual em que consagra, como companheiro desejável, apenas o seu corpo.
O Don Juan, o homossexual, o perverso, até o necrófilo — esses e todos os outros que participam de práticas sexuais aloeróticas
— consagram como necessária e, portanto, como valiosa, uma pessoa diferente deles, ou, pelo menos, algum corpo diferente do
seu. Mas isso não ocorre com o masturbador: seu eu e seu corpo são, ou agem como se fossem, o par perfeito, satisfazendo-se
mutuamente. É a antítese mesma do ideal sexual contemporâneo, o amante delicado para quem o orgasmo do companheiro é
mais importante do que o seu. Em resumo, ao consagrar apenas a si mesmo, o masturbador implicitamente nega todos os outros.
Portanto, a masturbação simboliza a separação entre o indivíduo e o grupo, ou a rejeição deste. É por isso que, psicologicamente,
é o mais grave de todos os “crimes”. Suponho que disso também decorre sua notável ausência nas belles lettres.
56
Ibid., p. 75.
57
Citado em Spitz, p. 125.
prejudicial de um ponto de vista médico. Escreve Spitz: “Entre 1897, quando apareceu a
primeira edição da obra de Holt, e 1940, foram publicadas onze edições revistas dessa
obra padrão (...) Nas primeiras edições, o tratamento recomendado era coerção
mecânica, castigo corporal nos muito jovens, circuncisão nos meninos, ainda que não
haja fimose, ‘por causa do efeito moral da operarão’; nas meninas, separação entre a
capa prepucial e o clitóris, ou circuncisão completa, cauterização do clitóris; empolar a
parte interna das coxas, a vulva ou o prepúcio. Esta terapia é recomendada até a edição
58
de 1936, inclusive, mas o tom se torna cada vez mais inseguro.”
Outro manual americano padronizado da mesma época, Diseases of Infants and
Children (Doenças de Bebês e Crianças), de Griffith e Mitchell (segunda edição, 1938),
exprime opiniões semelhantes. Sob o título geral de “Perturbações Nervosas Funcionais”,
os autores dedicam quase três páginas à masturbação. Observam que “é notável
verificar como é pequeno o mal que parece decorrer, em alguns casos, mesmo na
masturbação em crianças pequenas, quando realizada em ponto extremo”. No entanto,
isso não os impede de dedicar toda uma página ao seu tratamento, e de recomendar,
entre outras medidas, a seguinte: “Em casos maus, e sobretudo se o ato ocorre durante
o sono, é preciso empregar algum instrumento que, mecanicamente, torne a fricção
impossível. É possível colocar um pequeno travesseiro entre as coxas, aplicando-se uma
atadura à sua volta; os joelhos podem ser conservados separados por uma corda que
termina em cada extremidade por um colar de couro apertado em torno da coxa,
exatamente acima do joelho (...) quando as mãos são empregadas, pode ser necessário
prendê-las, encanando-se os cotovelos, ou por outras formas (...) A circuncisão (...) é às
vezes eficiente em crianças maiores, por causa da ferida provocada pela operação, e pela
quebra subsequente do hábito (...) se necessário, [deve-se] fazer a circuncisão do
59
clitóris.”
Durante a Segunda Grande Guerra, a masturbação já não provocava insanidade
nos pacientes, mas ainda provocava perturbação nos médicos. Por exemplo, no Cecil's
Textbook of Medicine (Manual de Medicina de Cecil), quinta edição, 1942, um dos
manuais padrões usados em faculdades de Medicina dos Estados Unidos, há a afirmação,
com ambivalência típica, de que a masturbação é e não é uma perversão. Ao enumerar a
masturbação sob o título “perversões”, Israel S. Wechsler, professor de Neurologia
Clínica na Columbia University, e autor do capítulo sobre doenças nervosas, escreve o
seguinte: “A masturbação, embora em si mesma não seja uma perversão, pode vir a sê-
60
lo se praticada incontroladamente e como um fim em si mesma.” Este é um exemplo
da última racionalização das forças antimasturbatórias: a prática é normal se moderada,
*
mas o excesso — sempre indefinido — a torna patológica.

58
Ibid., p. 126.
59
J. P. Crozer Griffith e A. Graeme Mitchell, The Diseases of Infants and Children, 2.a ed., p. 872.
60
Israel S. Wechsler, “The Neuroses or the Psychoneuroses”, em Russell L. Cecil e Foster Kennedy (orgs.), A Textbook of
Medicine by American Authors, 5.a ed., pp. 1645-1664; p. 1651.
*
Kinsey indicou a mesma coisa. Segundo ele, na literatura médica e psiquiátrica contemporânea, “tornou-se usual admitir que as
primeiras teorias exageravam muito os possíveis prejuízos causados pela masturbação; no entanto, a conclusão a que se chegou é
que nenhum jovem masculino desejará aceitar esse hábito. (...) Diz-se ao menino que uma quantidade limitada de masturbação
não pode fazer-lhe mal, mas, em excesso, é algo que merece a atenção do médico. Como nunca se define o ponto em que começa
Um manual de higiene sexual do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos e o
61
Manual do Escoteiro, de 1945, convidam o jovem a não “perder” os seus fluidos vitais.
Os regulamentos médicos do Departamento da Marinha dos Estados Unidos, do ano de
1940, vão ainda mais longe, prescrevendo que os candidatos à Academia Naval de
Annapolis “devem ser rejeitados no exame médico (...) se houver provas de
62
masturbação”.
Escrevendo em 1953, René Spitz, um psicanalista, diz: “Nos círculos psicanalíticos
nem sempre se avalia a que extremos de crueldade foi levada a perseguição do
masturbador até hoje; nem se sabe que essas práticas sádicas encontram apoio de
médicos autorizados e que eram recomendados até a década passada em manuais
63
oficiais.” O comentário de Spitz é muito apropriado, mas, curiosamente, tira dos
psicanalistas a responsabilidade pela perpetuação da crença nos males causados pela
masturbação. Como os analistas não empregam intervenções médicas e cirúrgicas,
dificilmente podem merecer crédito por abandonar os métodos destrutivos de seus
colegas não-analistas no tratamento da; masturbação. Nem sua orientação
psicopatológica foi intelectualmente esclarecedora ou útil para os pacientes: assim como
Esquirol e Charcot tinham ignorado os caçadores de bruxas e tinham classificado as
bruxas como loucas, também Freud e os primeiros analistas ignoraram os médicos (que
perseguiam os “masturbadores” com torturas denominadas tratamentos), e
classificavam as vítimas como neuróticos (que sofriam de “angústia de castração”). Na
verdade, os que ainda se opõem à masturbação, a partir de fundamentos
psicopatológicos, são os psicanalistas.
Assim, Karl Menninger, talvez o psicanalista contemporâneo mais influente, na
masturbação vê agressão contra outros e contra si mesmo. Escreveu ele em 1938:
“Intimamente ligado ao motivo exibicionista no suicídio, há sua ligação com a
masturbação. Já se observou que as tentativas de suicídio às vezes se seguem à
interrupção das atividades auto-eróticas de um indivíduo. Essa interrupção pode
aparecer sob a forma de uma proibição com relação a forças externas ou da consciência
moral da pessoa. Em qualquer dos casos, é o mesmo o mecanismo pelo qual se precipita
o suicídio; a masturbação provoca um grande peso de culpa, pois na mente inconsciente
64
sempre representa uma agressão contra alguém.” (Os grifos são meus.) Esta é uma das
mais notáveis reformulações da hipótese masturbatória original: Menninger não afirma
que a masturbação seja fisicamente prejudicial; afirma, ao contrário, que é

o excesso, o menino consciencioso não sabe se o seu índice irá fazer mal, ou não (...) Muitas das pessoas responsáveis pelas
atitudes intermediárias, acima citadas, são médicos. Mesmo os psiquiatras não têm uma opinião uniforme a respeito (Alfred C.
Kinsey, Wardell B. Pomeroy e Clyde E. Martin, Sexual Behavior in the Human Male, pp. 514-515). A atitude crítica de Kinsey
com relação aos médicos por causa de suas opiniões anti-sexuais, apresentadas em termos médicos, pode ser em parte
responsável pela reação hostil de muitos psiquiatras e sua obra.
61
Citado em Emil A. Gutheil, “Sexual Dysfunctions in Men”, em Silvano Arieti (org.), American Handbook. of Psychiatry, Vol.
I, pp. 708-726; p. 711.
62
Alfred C Kinsey, Wardell B. Pomeroy e Clyde E Martin, Sexual Be- havior in the Human Male, p. 513.
63
Spitz, p. 125.
64
Karl A. Menninger, Man Against Himself, pp. 68-69.
psicologicamente prejudicial porque representa um ataque injustificado contra outra
pessoa, e, por isso, provoca culpa no autor.
Joseph B. Cramer, também psicanalista e professor de Psiquiatria Infantil no
Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, escrevendo no reputado American
Handbook of Psychiatry (1959), distingue dois tipos de “neurose infantil” — o tipo A e o
tipo B. Escreve: “O tipo A pode ser considerado como um tipo puro (...) Do ponto de vista
dos sintomas, este tipo se caracteriza principalmente por temores e fobias. A
65
masturbação, os pesadelos e a neurose são outros sintomas frequentes.” Aqui, a
masturbação é considerada um “sintoma” de “doença mental” das crianças.
Portanto, atualmente o mito da loucura masturbatória raramente é sustentado
de um modo que lembra sua forma original. Segundo o pensamento psiquiátrico
autorizado, os efeitos prejudiciais da masturbação não são devidos ao ato em si mesmo,
mas à preocupação quanto a “opiniões exageradas” sobre suas consequências. Segundo
a observação de Hares, “Por uma ironia da história, essa opinião — segundo a qual a
masturbação só é prejudicial se, por ignorância ou informação errada, o paciente se
preocupa com ela — é tudo o que hoje resta da hipótese masturbatória. Dois séculos de
doutrinação ensinaram ao público uma lição que ele consegue esquecer menos
rapidamente que seus professores; e, hoje, a principal preocupação dos autores médicos
é convencer o público de que são infundados seus temores das consequências da
66
masturbação”.
Como devemos interpretar a crença difusa no mal amedrontador causado pela
masturbação e a perseguição médica dos masturbadores que ela criava e justificativa?
Para Hare, em cujo excelente estudo me baseio, devia-se a um fracasso da lógica e da
ciência — uma explicação que na realidade não explicava. Comfort afasta a sugestão de
Hare como inadequada e apresenta outra explicação. Essa hipótese — que compara a
perseguição dos masturbadores à das feiticeiras — é aquela que não apenas compartilho
*
com Comfort, mas que, além disso, ampliei para abranger uma área muito maior. Ao
mesmo tempo, discordo de (...) perseguição aos masturbadores à doença mental dos
perseguidores. Comfort conclui que, “visto de nossa perspectiva atual, o aparecimento
da insanidade masturbatória (...) aproxima-se mais do padrão de caça às bruxas, uma
verdadeira reação paranoica endêmica, difundida por exemplo e propaganda, e não
67
detida por comentário mais sadio a não ser depois de ter cumprido sua fase”. (Os grifos
são meus.)
A paixão para interpretar como loucura aquilo de que discordamos parece ter
atingido as melhores mentes contemporâneas. Mesmo Comfort a considera “uma
reação paranoide endêmica”. Essa interpretação sofre dos mesmos vícios que a

65
Joseph B. Cramer, “Common Neuroses of Childhood”, em Arieti, pp. 797-815; p. 807.
66
Hare, pp. 9-10.
*
Em outras palavras, considero a relação psiquiatra-masturbador como um exemplo típico das relações sociais entre psiquiatras
institucionais e pacientes (involuntários), e esta última categoria inclui, não apenas indivíduos formalmente definidos como
pacientes, mas o público geral, sujeito à propaganda oficial do Movimento de Saúde Mental e enganado por ela.
67
Comfort, p. 111.
interpretação da Inquisição como expressão de loucura. Como tentei mostrar em todo
este livro, é tentador afastar, explicar os horrores das relações opressor-vítima ao
diagnosticar o primeiro (como o faz Comfort para a masturbação) ou o segundo como
doente mental, (como o faz Zilboorg para a feitiçaria). Rejeito isso como um tipo de
autoterapia, tanto para o autor quanto para seus leitores. Penso que o autor tem a
responsabilidade de dizer o que existe (ou existiu), e não de uma forma que possa
parecer mais seguro dos erros e pecados que está descrevendo; de forma semelhante, o
leitor tem a responsabilidade de ouvir o que ocorre (ou ocorreu), e não de uma forma
que lhe permita se sentir mais seguro diante dos erros e pecados a respeito dos quais
está; lendo.
Por não conseguir estabelecer uma ligação entre a história da insanidade
masturbatória e as práticas psiquiátricas atuais, Comfort acaba sendo vítima da mitologia
da doença mental. Escreve que “temos o sentimento incômodo da multiplicidade e
impossibilidade de controlar tais reações [como a dos médicos com relação à
masturbação, aqui resenhada] e a total incapacidade dos participantes para conseguir
mais do que uma compreensão muito limitada, e começamos a procurar o equivalente
da mania de feitiçaria e da angústia de masturbação em nossas irracionalidades públicas,
das quais todos, com a exceção de alguns observadores imparciais, estão totalmente
inconscientes em nossa época”. Em nosso mundo contemporâneo, Comfort vê várias
“irracionalidades” — na “Bomba, na corrida do espaço (...) e na Guerra Fria (...) Estas
também têm seus maníacos e seus charlatães patológicos, mas, tal como na perseguição
de feiticeiras, homossexuais, judeus ou masturbadores, é a difusão desse pensamento
68
para os humanitários e aparentemente equilibrados que se torna mais sinistra”. (Os
grifos são meus.)
Ao atribuir a “perseguição de feiticeiras, homossexuais, judeus e masturbadores
[a] irracionalidades”, Comfort deixa de lado os aspectos morais, políticos e sócio-
psicológicos decisivos desses fenômenos. Sustento que em cada uma dessas situações
persecutórias acima mencionadas, estamos diante de uma relação entre opressor e
oprimido; o opressor invariavelmente se vale de força e fraude para dominar e explorar
seu antagonista; frequentemente cria uma retórica terapêutica, justificando seu domínio
por afirmações de altruísmo e um desejo de ajudar a vítima; a crítica à prática opressiva
fica impossível por causa da perseguição do crítico como um traidor da ordem social
existente; finalmente, a ideologia da coerção útil é institucionalizada, estabilizando e
perpetuando as práticas persecutórias por longos períodos de tempo.
Portanto, Comfort e Spitz acentuam o esclarecimento do- psiquiatra
contemporâneo e o fato de estar acima dos erros do passado, sustento que a situação na
Psiquiatria atual é virtualmente a mesma em que se encontrava na época em que a
loucura masturbatória era um dogma dominante. É certo que a retórica mudou; as
palavras mágicas já não são “masturbação”, “mau hábito” e “insanidade”, mas, ao
contrário, “doença mental”, “não criticar os pacientes doentes” e “compreensão”; as

68
Ibid.. p. 112.
intervenções terapêuticas mudaram: o tratamento mágico já não é a clitoridectomia ou
corte dos nervos dorsais do pênis, mas eletrochoque ou torazina. Mas essas são apenas
mudanças na moda psiquiátrica; a estrutura social básica e a função da Psiquiatria
Institucional permaneceram iguais. (No entanto, sua amplitude e seu poder aumentaram
constantemente durante os últimos cem anos.) O resultado é que, um século depois da
burla cruel da insanidade masturbatória ter atingido seu ponto máximo, os psiquiatras
ainda empregam o mesmo tipo de retórica dessa época, e ainda conseguem a atenção, e
muitas vezes até a confiança, de um público que deseja ser conduzido — e enganado —
por psiquiatras que se fingem de cientistas médicos. Antes, o psiquiatra estava salvando
o “paciente” da masturbação, mesmo que este não desejasse ser salvo dela. Hoje, o
psiquiatra está salvando o “paciente” de vício em drogas, homossexualidade, suicídio e
um grande número de outras “doenças mentais” aterrorizantes, embora também aqui a
vítima deixe bem claro, por palavras e atos, que não deseja ser salvo.
Em resumo, as passagens da feitiçaria para a insanidade masturbatória, e da
insanidade masturbatória para o conceito moderno de doença mental, talvez possam ser
compreendidas como mudanças nas imagens e nos conceitos de maldade pessoal do
homem ocidental. Essa compreensão e essas imagens mutáveis do mal refletem, por sua
vez, as mudanças em condições culturais. Por exemplo, na Idade Média e no
Renascimento, a quinta-essência do mal era o pacto com Satã; seu símbolo era a
feiticeira numa vassoura voadora para celebrar o Sabá. Do Renascimento até o início do
século XX, a quinta-essência do mal era a masturbação; seu símbolo é o louco que se
masturba no manicômio. Assim como a heresia é uma ofensa contra a autoridade de
Deus e do sacerdote, a loucura é uma ofensa contra a Natureza e o médico. Com o
deslocamento, em nossa época, da autoridade de Deus e da Natureza, do sacerdote e do
médico, para a da opinião popular e do homem de massa, a quinta-essência do mal se
torna a autonomia pessoal, isto é, a conduta que desafia as vontades e as maneiras de
ser da “maioria esclarecida”; o símbolo do mal passa a ser o não-conformista que rejeita
a crença ou o costume. Portanto, o parceiro do homem no crime muda, durante um
período de tempo, do demônio para o seu pênis, e, depois, para o seu eu. Seu “delito” é
sempre uma espécie de “insulto contra si mesmo” — contra sua alma, seus órgãos
sexuais ou sua personalidade. Assim, o conceito de doença mental substituiu o demônio
e os órgãos sexuais como se a humanidade fosse incapaz de aceitar a realidade do
conflito humano. Nunca é apenas o homem que comete um delito contra seu
semelhante. Alguém ou alguma coisa — o demônio, a masturbação, a doença mental —
sempre intervém, para obscurecer, desculpar e atenuar a desumanidade do homem com
relação ao homem.
A história da insanidade masturbatória, que abrange toda a história da Psiquiatria,
exemplifica vários dos argumentos que apresentei neste livro. Como conclusão, desejo
resumi-los.
Em primeiro lugar, a invenção da hipótese da masturbação e de seus usos
médicos e, principalmente, psiquiátricos, exemplifica o espírito de messianismo e
imperialismo terapêuticos. Assim como o objetivo do missionário evangelizador é
conquistar número cada vez maior de almas para o Cristianismo, o objetivo do médico
evangelizador é conquistar um número cada vez maior de corpos para a Medicina. No
Cristianismo, isso é feito ao se definirem todos os homens como pecadores (a doutrina
do pecado original), cuja salvação só pode ser conseguida com o auxílio das Igrejas
cristãs; na Medicina, isso é feito através da definição de todos os homens como doentes
(a hipótese masturbatória, recentemente reformulada como a incidência de 100% de
doença mental), cuja cura só pode ser obtida com o auxílio dos médicos.
Em segundo lugar, a hipótese masturbatória exemplifica uma tática fundamental
do imperialismo médico e psiquiátrico. A fim de conquistar uma área da vida humana
para a especialização e a intervenção médicas, é necessário, inicialmente, definir seu
funcionamento normal como a manifestação da doença. Uma vez feito isso, pode-se dar
o passo seguinte: definir as intervenções destrutivas dos médicos como tratamento para
a saúde. O terceiro e último passo, típico da Psiquiatria, é a imposição de intervenção
destrutiva no paciente, contra a sua vontade. O êxito do imperialismo médico é
completo quando os leigos consideram, como doenças, funções físicas e mentais
normais, e as intervenções prejudiciais — mesmo contra a vontade do paciente — como
tratamentos.
Em terceiro lugar, a hipótese masturbatória — ou, mais precisamente, seu
tratamento por autoridades psiquiátricas — confirma a minha tese quanto ao papel da
mentira e da opressão no trabalho dos psiquiatras institucionais. Zilboorg, Alexander e
Menninger — para mencionar apenas três protagonistas influentes no Movimento de
Saúde Mental — têm sido prolíficos na história da Psiquiatria. Apesar disso, nesses
milhões de palavras, nem uma sequer é dedicada à insanidade da masturbação. Está
*
claro que esses autores conheciam essa “síndrome”. Portanto, o fato de não
conseguirem discuti-lo deve ser visto como um esforço para impedir que a Psiquiatria
seja humilhada. Suas histórias “consagradas” da Psiquiatria e que não mencionam
insanidade masturbatória podem ser comparadas à Constituição dos Estados Unidos,
que não menciona a escravidão negra. Essas histórias disfarçadas — que não advertem
as vítimas de sua relação de opressão quanto à sua situação de explorados, o que facilita
a degradação e as mentiras contínuas — servem apenas aos interesses dos opressores,
sejam sacerdotes, políticos ou psiquiatras.

*
A omissão da insanidade masturbatória no livro The Vital Balance, de Menninger, é muito significativa porque, no Apêndice, o
autor enumera o sistema de classificação psiquiátrica de David Skae, onde a “Insanidade de Masturbação” ocupa o quarto lugar.
Menninger não comenta isso nem inclui a “síndrome” no índice remissivo. (Menninger, The Vital Balance, p. 453.)
12
A FABRICAÇÃO DO ESTILO MÉDICO

Parpalaid: Você pode pensar que sou um defensor exagerado


de padrões morais, mas será que seu método não subordina
o interesse do paciente ao do médico?
Knock: Dr. Parpalaid, o senhor está esquecendo que existe
um interesse maior do que o dos dois. Parpalaid: E que
interesse é esse?
Knock: O interesse da Medicina. Sirvo a esse interesse, e
apenas a ele (...) O senhor me deu uma cidade habitada por
vários milhares de indivíduos neutros, indivíduos sem
orientação. Minha função é orientá-los, conduzi-los para
uma vida de Medicina. Eu os coloco na cama para ver o que
pode ser feito com eles: tuberculose, neurastenia,
arteriosclerose, o que quer que o senhor queira, mas alguma
coisa, pelo amor de Deus. Nada me torna tão nervoso
quanto essa nulidade indefinida denominada um homem
sadio.
1
Jules Romain

Hoje, os americanos vivem sob dois conjuntos de leis: um aplicável aos sadios, outro aos
doentes. Os regulamentos legais que se referem aos primeiros — quanto a
hospitalização por doença, casamento ou divórcio, processo por crime, privilégios de
carta de motorista ou exercício de uma profissão liberal — não se aplicam aos segundos.
Em resumo, os indivíduos classificados como mentalmente doentes trabalham sob as
limitações de um estigma que, através da Psiquiatria Institucional, lhes é imposto pelo
Estado.
Tal como ocorria com os processos anteriores de estigmatização e com a
legislação de discriminação neles baseada — por exemplo, a que autorizava a
perseguição de feiticeiras e judeus — a leis que discriminam contra as minorias
psiquiátricas não são impostas a um público independente por alguns tiranos intrigantes.
Ao contrário, o povo e seus líderes se sentem igualmente “levados” por uma exigência
histórica e social “irresistível” quanto a alguns tipos de leis “protetoras”. Em todas essas

1
Jules Romains, Kinock, pp. 59-60.
situações, os principais cruzados e as massas que, sucessivamente, acalmam, enganam e
dominam, têm a mesma explicação dupla para suas ações. Em primeiro lugar, negam que
a minoria atingida seja seriamente maltratada, e defendem a repressão “leve” que
reconhecem ao acentuar a necessidade de defesa social contra os malfeitores. Em
segundo lugar, orgulhosamente afirmam seu objetivo, que é destruir a minoria acusada,
e justificam isso a partir da defesa contra um adversário diabolicamente perigoso e
imensamente poderoso, disposto a destruir a estrutura da sociedade atual. Essas
imagens animaram aqueles que no passado lançaram guerras contra a heresia, e animam
os que hoje lançam guerras contra a doença mental. Como a heresia só poderia ser
destruída com a destruição dos heréticos, e como a doença mental só pode ser
controlada através do controle das pessoas que supostamente são doentes mentais, os
dois movimentos exigem a redução das liberdades ou a destruição das vidas dos
membros estigmatizados do grupo. O olhar mais superficial lançado às nossas leis de
higiene mental será suficiente para confirmar essa alegação. As leis que autorizam o
tratamento legal especial de “psicopatas sexuais” — e, mais recentemente, de “viciados
em drogas” — são os exemplos mais notáveis disso.
Já comentei a situação do homossexual e logo mais voltarei a falar nele.2 Quanto
ao chamado viciado, é o alvo de uma “guerra ao vício” básica, realizada por forças
poderosas, e em muitas frentes. No Estado de Nova York, uma nova lei contra tóxicos,
promulgada em 1967, autoriza o encarceramento, por um período que pode chegar a
cinco anos, não apenas de viciados reconhecidos, mas também de pessoas “em iminente
3
perigo de se tornarem dependentes de narcóticos”. Essa ampla repressão do viciado é
ainda aqui justificada a partir da ideia de que os viciados são “física e emocionalmente
doentes (...) e devem ser tratados como se fossem vítimas de uma doença contagiosa e
4
maligna”.
Existe uma semelhança fundamental entre a perseguição de indivíduos que
praticam atividade homossexual consentida, e em particular, e as que ingerem, injetam
ou fumam várias substâncias que influem em seus sentimentos e pensamentos — e a
perseguição tradicional de homens por sua religião, como os judeus, ou por sua cor de
pele, como os negros. O que todas essas perseguições têm em comum é que as vítimas
são perseguidas pela maioria, não porque participem de atos manifestamente agressivos
ou destrutivos, como roubo ou assassinato, mas porque sua conduta ou aparência
ofende um grupo intolerante com relação às diferenças humanas e é por estas
ameaçado.
Evidentemente, nada existe de novo na veneração, até por “intelectuais”, da
opinião pública ou da vontade das massas. O erro moral de aceitar equivocamente a
“vontade popular” como se fosse o certo, e o erro político de identificar essa vontade
com a liberdade ou a justiça, têm sido comentados por vários pensadores desde a
antiguidade, mas sobretudo desde a Revolução Francesa, por vários autores, tais como

2
Ver capítulo 10 e 13.
3
The Attack on Narcotics, p. 1.
4
Ibid.
Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Ortega y Gasset, e George Orwell. Há mais de cem
anos, Kierkegaard antecipou e viu claramente o que estava errado nos argumentos que
justificam a supressão “democrática” de conduta que não prejudica diretamente as
maiorias, mas que as ofende, como se pode exemplificar através de nossas leis de
higiene mental. Observando que por vários séculos os homens lutam contra a tirania de
papas e reis, de forma a associar a tirania a eles, Kierkegaard advertia que “não ocorre às
pessoas que as categorias históricas se transformam, que hoje as massas são o único
tirano e estão na raiz de toda corrupção. (...) Hoje, quando um homem é censurado por
algum erro insignificante, mas o é pelo rei, por alguém que tem autoridade, tem a
compreensão de todos, é um mártir. No entanto, quando um homem é,
intelectualmente falando, perseguido, maltratado, insultado dia sim e dia não pela
estupidez, pela curiosidade e pela impertinência da plebe, isso nada significa, supondo-
5
se que deva ser assim mesmo.”
A fim de exemplificar em profundidade as maneiras pelas quais a Psiquiatria serve
à função de estigmatização de indivíduos como mentalmente doentes, de forma a criar
bodes expiatórios psiquiátricos, vou resenhar alguns trabalhos médicos, jornalísticos,
jurídicos e psiquiátricos representativos sobre a natureza da doença mental, do
tratamento psiquiátrico e dos serviços de saúde mental. Começarei pelas opiniões de
uma autoridade importante na saúde pública, uma disciplina muitas vezes considerada
*
como o modelo de Psiquiatria moderna socialmente orientada, e caminharei até chegar
a contribuições especificamente psiquiátricas.
Milton I. Roemer, professor de saúde pública na Universidade da Califórnia, em
Los Angeles, exalta a “Medicina Social como a resposta a todos os problemas de saúde.
Escreve ele: “A importância do hospital (...) continuará a aumentar, num futuro
previsível, não porque tenha camas para os que estão gravemente enfermos, mas
6
porque é um local prático para a crescente organização de serviços de saúde em geral.”
Por “organização”, Roemer entende organização sob os auspícios do Estado, não de
grupos voluntários e em mútua competição. Pelo menos, Roemer é franco quanto ao
objetivo que procura: “Assim como os hospitais estão adquirindo a posição de serviços
de utilidade pública, toda a amplitude de força de trabalho de saúde é cada vez mais
reconhecida como um grupo essencial para o bem-estar público. Os médicos, os
dentistas, as enfermeiras, os farmacêuticos, os técnicos, os terapeutas e outros não são
vistos, apenas, como membros das artes de cura que vendem seus produtos aos
doentes. São vistos, cada vez mais, como empregados essenciais, exigidos pela sociedade
para o seu funcionamento eficiente — portanto, cada vez mais sujeitos a apoio público e
7
controle do público.” (Os grifos são meus.)

5
Alexander Dru (org.), The Journals of Kierkegaard (1835-1854), pp. 123-124.
*
“A Psiquiatria comunitária e a Psiquiatria de saúde pública são a mesma coisa. Especificamente, a última exige o emprego do
método de saúde pública para a solução de problemas de perturbação emocional e a sua premissa básica é que a amplitude de
perturbação emocional na população faz com que seja, essencialmente, um problema de saúde mental.” (Stephen E. Goldston
[org.], Concepts of Community Psychiatry, p. 201.)
6
Milton I. Roemer, “The future of social medicine in the United States”, The Pharos of Alpha Omega Alpha, 30: 42-50 (abril),
1967: p. 45.
7
Ibid., p. 46.
No entanto, Roemer não explicita as consequências morais e sociais da
sistematização que tão entusiasticamente apoia. Se o médico é “um empregado
essencial, exigido pela sociedade”, seu papel é comparável ao do policial ou do soldado;
como tal, seu dever é obedecer às ordens de seus superiores, tanto para matar quanto
para curar. Se, como Roemer, os médicos desejam revogar a ética hipocrática que até
agora governou a prática da Medicina nos Estados Unidos, será desejável — não,
certamente, para a realização de seus objetivos, mas para que um publico inteligente
8
pudesse avaliar os interesses em conflito — que o digam claramente. Muitos dos
*
defensores do coletivismo médico o fazem.
Donald Gould, um jornalista inglês que escreve no New Statesman, pede uma
9
revisão franca da definição do papel do médico. Ao comentar o problema do segredo
médico na administração do Serviço Nacional de Saúde, pergunta se “não podemos estar
dando valor excessivo ao direito dos cidadãos para uma vida secreta”? Responde — e
devemos lembrar que se trata de um inglês escrevendo numa revista liberal
independente — que “Certamente, numa sociedade ideal, formada por pessoas
inteiramente bem ajustadas, não haveria necessidade de segredos. A sua existência
demonstra a presença de inveja, medo, desigualdade, fraude ou qualquer uma de uma
longa lista de atitudes e atividades, todas universalmente reconhecidas como
10
propriedades do Demônio”. (Os grifos são meus.)
Não se sabe se devemos rir ou chorar. Gould, não tenhamos dúvida, está
integralmente decidido. Realmente ele acredita que saúde mental é a mesma coisa que
bom ajustamento; que uma sociedade formada por tais pessoas seria “ideal”; e que é
“universalmente reconhecido” que um desejo de segredo pessoal indica o mal. Os
editores do New Statesman devem considerar que essa opinião é respeitável, pois, caso
contrário, não dariam tanto espaço a ela. Portanto, esse artigo deve ser visto como um
sinal dos tempos.
Depois de ter estabelecido que todos os segredos pessoais são segredos maus,
Gould condena o confessionário da Igreja Católica: “O segredo do confessionário faz dos
11
sacerdotes conspiradores para que se ocultem inúmeros crimes.” Depois, volta sua ira
contra o segredo médico, exigido pelo juramento de Hipócrates. “Este princípio [do
segredo médico] está tão firmemente estabelecido, que nenhum médico com sentido de
autopreservação irá revelar confidências do consultório, mesmo num tribunal, a não ser

8
Ver Thomas S. Szasz, “Medical ethics: A historical perspective”, Med. Opin. Rev., 4: 115-121 (fev.), 1969.
*
Os coletivistas médicos hoje falam da vinda da Idade de Ouro da Medicina, e na qual a prática particular será abolida, e em que
todos, os serviços médicos serão dados pelo Estado, em termos idênticos aos que os marxistas e comunistas de há muito
empregam na Economia e na Política. Por exemplo, o Dr. Oscar Creech, Jr., professor e chefe do departamento de cirurgia do
Tulane Medical Center em New Orleans, antes de tomar-se seu diretor, “previu que [por volta de 1990], a prática particular da
Medicina, como os médicos conhecem hoje, já não existirá. Em vez disso, os médicos serão empregados em tempo integral de
centros médicos de comunidade ou do Governo federal (...) Essa não era uma visão idealizada, mas uma opinião do que deveria
ser”. (“Lofty career cut short at its peak”, Med. World News, 19 de jan., 1968, p. 30). Essa não era uma situação que Creech
apenas previsse, mas uma situação que também tentou provocar e cuja chegada ansiosamente previu.
9
Donald Gould, “To hell with medical secrecy!”, New Statesman, 3 de março, 1967.
10
Ibid.
11
Ibid.
que o juiz especificamente o obrigue a fazê-lo. Sugiro que essa reserva obsessiva por
parte dos médicos é pouco razoável, e que constitui uma dificuldade real no progresso
12
da saúde pública.” Como vemos, Gould não apenas aceita as crenças características do
coletivismo médico, mas também fala na sua linguagem; os médicos que desejem
proteger as confissões de seus pacientes são rotulados de “obsessivos” e “pouco
razoáveis”.
Continua Gould: “Não discutimos que uma apresentação mais ou menos
adequada de nossa situação financeira deve estar, a intervalos regulares, à disposição do
inspetor de impostos”. E pergunta: “Por que é que devemos nos revoltar diante da ideia
de que uma descrição completa, precisa e regular de nosso estado físico (e até mental),
deva ser dada a alguma autoridade central? (...) Idealmente, nosso registro médico
deveria ser enviado ao Ministério da Saúde, digamos, uma vez por ano, e toda a
informação aí contida deveria ser passada para um computador. Além disso, esses
cartões de registro (...) deveriam enumerar nossos empregos, passados e presentes,
nossas viagens, nossos parentes, se fumamos e bebemos, o que comemos e o que não
comemos, quanto ganhamos, que tipo de exercícios fazemos, quanto pesamos, qual a
nossa altura e, até, talvez, os resultados de testes psicológicos regulares, bem como um
13
grande número de outras minúcias íntimas.”
Como o inquisidor fanático, intoxicado com a glória de Deus e o bem supremo da
salvação do homem, para quem a liberdade pessoal era um valor secundário (ou talvez
um mal efetivo) — também o coletivista médico fanático, intoxicado com a glória da
Ciência e com o bem supremo da saúde do homem (física e mental, naturalmente)
considera a liberdade pessoal um valor secundário (e tal um mal efetivo).
“Os registros adequados, analisados por um computador”, conclui Gould num
arroubo de entusiasmo capaz de terrorizar todos os que não sejam crentes verdadeiros,
“...poderiam até revelar as pessoas que poderiam ou não ter o direito de dirigir um
carro, ou ter um lugar no Governo. E o que dizer da sagrada liberdade do indivíduo?
Liberdade, meu princípio. Sobrevivemos como comunidade ou não sobrevivemos, e hoje
os médicos são empregados do Estado, tanto quanto de seus pacientes. Lancemos fora a
mistificação, e reconheçamos que todos os segredos são maus. Já é tempo que nos
14
apresentemos como aquilo que somos — com verrugas e tudo o mais”. (Os grifos são
meus.)
“Verrugas” (warts) deve ser um erro de impressão. Gould certamente queria dizer
marcas (marks) de feitiçaria. E quem irá verificar se os aplicadores de testes psicológicos
e os intérpretes desses registros não têm maus segredos para esconder? Esta é uma
pergunta tola. Os médicos e psiquiatras contemporâneos são os intérpretes infalíveis da
Ciência e da Natureza, assim como os papas do Renascimento eram intérpretes da Bíblia
e de Deus.*

12
Ibid.
13
Ibid.
14
Ibid.
Num artigo posterior, Gould desenvolve seus conceitos do médico como um
15
agente, e do cidadão como a propriedade do Estado. E pergunta: “Até onde o Governo
deve assumir a responsabilidade de proteger seu povo de sua loucura, ou de decidir, em
16
benefício do cidadão individual, quando um risco é ou não justificável?” Suponha-se,
sugere Gould, que se verifique que as pílulas anticoncepcionais são prejudiciais à saúde.
“As; indicações de que dispomos dizem que finalmente se comprovará um risco real. E,
17
se se verificar que isso é verdade, que ação deve ter o Governo?” Gould pesa as
alternativas de informação dada pelo Governo em deixar liberdade para que as pessoas,
façam o que consideram melhor, ou proibir tais substâncias e “mandar para a prisão as
18
pessoas imorais que as usam”. Firmemente rejeita a primeira alternativa, que é uma
posição libertária clássica. Além disso, não o faz porque pense que o Estado, poderia,
apesar de toda a sua sabedoria científica, estar errado, ou porque o cidadão poderia
cuidar melhor de si mesmo do que o Estado; essas coisas nunca lhe ocorrem (ou, pelo
menos, não as menciona). Rejeita a proposição de que o cidadão possua o seu corpo,
porque acredita que “as pessoas fazem parte da riqueza da comunidade. A comunidade
emprega muito dinheiro com elas, através de educação, de subsídios para moradias,
para produtos agrícolas e sob muitas outras formas. Esse investimento só é recuperado
se as mulheres e os homens (...) vivem uma vida ativa e produtiva, com razoável
19
duração.”
Nem Marx nem Lênin foram tão longe. Aqui, Gould leva a lógica do estatismo
materialista (ou capitalismo do Estado) à sua conclusão inexorável, principalmente no
que se refere a questões médicas. O Estado possui tudo, até as pessoas. As pessoas são,
ao mesmo tempo, um investimento e um produto. O investimento é destinado aos
corpos jovens e não-sadios; o produto são os corpos maduros e sadios. Certamente,
esses corpos sadios não podem ter o direito de governar-se, ficar doentes, talvez até
matar-se. Isso seria destruir propriedade do Estado. E Gould conclui triunfalmente:
“Assim, será que o Estado não tem o direito — mais ainda, o dever (o grifo é dele) — de
fazer com que seus cidadãos permaneçam sadios, e de impedir, por lei [sic], que façam
coisas não-sadias? (...) já é tempo de enfrentar o problema, e que nossos chefes [sic]
cheguem a inventar alguma forma de regras quanto à sua responsabilidade pela maneira
através da qual governamos nossos corpos. Afinal de contas, são parte, tanto quanto as
20
usinas de aço, da riqueza nacional.”
Nossos corpos são como usinas de aço; são parte da riqueza nacional; pertencem
ao Estado e, por isso, devemos cuidar bem deles. Tudo isso parece conhecido. Nossos
corpos, segundo se dizia antes, são como templos; são partes do Grande Plano;
pertencem a Deus e, por isso, não devemos abusar deles. A visão de Gould é, portanto,
apenas um requentamento das doutrinas veneráveis e positivistas dos jacobinos, de

15
Donald Gould, “The freedom to be unfit”, New Statesman, 1.° de set., 1967.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Ibid.
20
Ibid.
21
Comte, dos liberais modernos e dos cientistas comportamentais. Quando tais métodos
e princípios burocráticos e totalitários são aplicados à organização e ao planejamento de
saúde mental — como realmente o são na Inglaterra e nos Estados Unidos — o médico
psiquiatra emerge como um evangelizador político, um ativista social e um déspota
médico. Seu papel é proteger o Estado do cidadão perturbador. Todos os meios
necessários para a realização disso são justificáveis pela grandiosidade do objetivo. A
situação na Alemanha nos apresenta uma imagem — horrível ou idílica, de acordo com
os nossos valores — da tirania política resultante, escondida atrás de representações de
doença, e justificada por uma retórica de terapia.
Devemos lembrar que os psiquiatras da Alemanha nazista desempenharam um
papel orientador na criação de câmaras de gás, cujas primeiras vítimas foram doentes
22
mentais. Mesmo nos territórios ocupados, onde os soldados eram usados para
assassinatos em massa de populações civis, os internados de hospitais psiquiátricos —
23
por exemplo, em Kiev — foram mortos por médicos. Apenas na Polônia,
24
aproximadamente 30.000 doentes mentais foram mortos. Tudo isso foi feito para
proteger a saúde dos membros sadios da população. No entanto, os nazistas não foram
inovadores apenas na criação de novas técnicas para a morte em massa, mas também —
e, aparentemente, isso foi em grande parte esquecido, se é que alguma vez sua
significação foi realmente avaliada — no aperfeiçoamento de uma nova retórica de
higiene para justificar seus programas. Por exemplo, Heinrich Himmler, chefe dos S.S.
nazistas, explicou que o “Anti-semitismo é exatamente a mesma coisa que catar piolhos.
25
Livrar-se da sujeira não é uma questão de ideologia, é uma questão de limpeza”. De
forma semelhante, Paul Otto Schmidt, chefe de imprensa do Serviço Exterior Nazista,
declarou que “a questão judaica não é uma questão de humanidade; não é uma questão
26
de religião; é apenas uma questão de higiene política”. No mundo de pós-guerra, essa
imagem foi invertida, de forma que, em lugar do judeu, é o anti-semita que é definido
como aquele que apresenta uma questão de higiene; e, em vez de ser encarcerado num
*
campo de concentração, é encarcerado num hospital psiquiátrico.

21
Ver, por exemplo, Floyd W. Matson, The Brohen Image, e Thomas S. Szasz, “Whither psychiatry”, Soc. Res. 33: 439-462
(outono); 1966.
22
Ver, Trials of War Criminais Before the Nurenberg Military Tribunais Under Control Council Law No. 10, Vol. I, pp. 794-
896: e Fredric Wertham, A Sign for Cain, capítulo 9.
23
Anatoly Kuznetsov, Babi Yar, p 236.
24
Adam Podgorecki, “Law and mental illness: Social engineering (Abstract)”, Sandoz Psychiat. Spectator, 4: 15-16 (set), 1967;
p 16.
25
Heinrich Himmler, num discurso em 1937; citado em Hannah Arendt, The Burden of Our Time, p 373.
26
Citado em Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, em Bernard Rosenberg, Irael Gerver e F William Howton
(orgs.), Mass Society in Crisis, pp. 272-310; p. 295.
*
A tendência atual para atribuir anti-semitismo e nazismo, na Alemanha Ocidental, a doença mental, difere pouco da tendência
anterior para atribuir o capitalismo e o comunismo a judeus. Segundo podemos ler no New York Times: “Num relatório sobre o
radicalismo de direita, o Sr. Lucker [Paul Lucke, Ministro do Interior da Alemanha] notou que houve 521 casos confirmados de
incidentes pró-nazismo ou anti-semitas na República Federal, no ano de 1965, em comparação com 171 casos no ano anterior.
(...) O ministro do Interior disse que grande parte da atividade de (...) direita poderia ser ligada a sintomas apolíticos — por
exemplo, bebidas e insanidade.” (Philip Shabecoff, “Rightist activity rises in Germany: Neo Nazi and anti-semitic action up
sharply in 65”, New York Times, 2 de março, 1966, p. 14.
Como acentuei em todo este livro, a desmoralização e a despolitização de
problemas sociais, bem como sua transformação em problemas de Medicina e
tratamento, é uma característica que os Estados totalitários modernos (tanto nacional-
socialista quanto comunista) compartilham com os Estados burocráticos
contemporâneos. Além disso, embora o grau e a orientação da destrutividade que essa
retórica terapêutica justificam possa variar de um sistema político para outro, o seu
objetivo essencial é sempre o mesmo: identificar, estigmatizar e controlar setores
determinados da população.
Na Alemanha, as imagens do judeu como um animal nocivo levou ao seu
extermínio nas câmaras de gás. Segundo Hilberg, “a mais dramática aplicação dessa
teoria [do judeu como inseto]”, levou “uma companhia alemã de fumigação, a Deutsche
Gesellshaft für Schädlingskämpfung, a dedicar-se a operações de morte, ao fornecer um
de seus produtos letais para a morte, pelo gás, de milhões de judeus. Assim o processo
27
de destruição também se transformou numa “operação de limpeza”.
Nos Estados Unidos, a justificação para o internamento, baseada na imagem do
doente mental como uma pessoa tão doente que nem sabe que está doente, se apoia
num retórica higiênica semelhante. Suas consequências são apenas um pouco menos
horríveis.
Um dos primeiros e mais esclarecedores paralelos estabelecidos entre o campo
nazista de concentração e o hospital psiquiátrico público americano foi o apresentado
por Harold Orlans, em 1948. Como pessoa que, por motivos religiosos, não podia ser
convocada para servir no exército, Orlans trabalhou, durante a guerra, num hospital
estadual para doentes mentais. Escreve Orlans: “é na morte, por negligência, de homens
velhos e decrépitos que, penso, se encontra a analogia mais próxima com as mortes em
campo de concentração. Os assassinos dos manicômios são passivos; os assassinos de
28
Auschwitz eram ativos (...) mas, sob outros aspectos, sua lógica é igual”. Aqui, podemos
notar que, atualmente, aproximadamente 40% dos pacientes nos hospitais psiquiátricos
estaduais de Nova York têm sessenta anos de idade ou mais. Numa correspondência com
Dwight MacDonald, Orlans observa que “A maneira indireta pela qual o manicômio mata
seus internados nos espanta, em primeiro lugar, como irracional (uma câmara de gás
seria mais eficiente); mas o conhecimento (ou conhecimento posterior) da sociedade
americana mostra que um processo mais curto não é, atualmente, possível; na realidade,
29
um caminho mais longo poderá ser adotado algum dia”. A tese básica de Orlans,
amplamente confirmada nos vinte anos que se passaram depois da publicação de seu
artigo, é resumida nestas sentenças: “...não afirmo que exista uma identidade entre o
hospício americano e o campo de morte alemão. Ao contrário, estou interessado por
algumas semelhanças entre os processos sociais das duas instituições, e minha tese é

27
Ibid., p 295.
28
Harold Orlans, “An American Death Camp”, em Rosenberg. Gerver e Howton (orgs), pp. 614-628, p. 626.
29
Ibid., p 627.
que o hospício americano manifesta, em forma embrionária, alguns dos mesmos
30
mecanismos sociais que na Alemanha chegaram até os campos de morte (...)”
Além disso, a retórica médica do nazismo não era apenas um ardil para o
assassinato dos judeus (assim como a retórica médica da Psiquiatria Institucional não é
apenas um ardil para o controle coercitivo de indivíduos indefesos e perturbadores). Ao
contrário, era uma parte integral da consciência de saúde da sociedade nazista
cientifista. Segundo Hannah Arendt, no caso de vitória, “eles [os nazistas] pretendiam
estender sua política de extermínio às fileiras dos alemães ‘desajustados’ (...)” Durante a
guerra, Hitler pensou na criação de uma Lei de Saúde Nacional. “Depois de um exame de
raios X, o Fuehrer receberá uma lista de pessoas doentes, sobretudo com doenças do
coração e do pulmão. Com base na nova Lei da Saúde do Reich (...), essas famílias não
mais poderão permanecer no seio do povo e não mais poderão ter filhos. O que
acontecerá com essas famílias será objeto de leis posteriores do Fuehrer.” Arendt
acrescenta que não haveria necessidade de muita imaginação para saber quais teriam
31
sido essas leis posteriores.
Portanto, o que aconteceu na Alemanha com os judeus e com os doentes mentais
antecipava o que deveria ocorrer com outras minorias. De forma semelhante, o que
aconteceu nos Estados Unidos com os negros e os doentes mentais antecipa o que
deveria acontecer com outras minorias, principalmente os doentes de um ponto de vista
médico, os velhos, os homossexuais e os viciados em drogas.
Ao contrário do que acontecia com os nazistas, os comunistas não exterminam os
seus doentes mentais; apenas fazem com que se comportem adequadamente. Numa
conferência no Centro Médico da Universidade de Oklahoma, B. A. Lebedev, antigo
diretor do Instituto Bekhterev de Pesquisa Psiconeurológica de Leningrado, e atualmente
médico da Organização Mundial de Saúde, disse o seguinte: “De modo geral, dado o
sistema social, na Rússia existe uma aceitação total do problema da doença mental.” Na
Rússia, a doença mental pode ser aceita, mas, como veremos, o doente mental não o é.
Lebedev explica que “A Rússia não tem o problema de educação do público que é
enfrentado pelos Estados Unidos (...) uma vez que a terapia recomendada e o
tratamento são obrigatórios.” Lebedev nota que “na Rússia se mantém num mínimo o
internamento de doentes”; no entanto, “quando recebe alta num hospital, um paciente
precisa voltar para o ambulatório (centro de saúde mental da comunidade) onde um
32
psiquiatra decide que tipo de tratamento médico receberá e com que frequência”. (Os
grifos são meus.) Aqui, a coerção do paciente pelo médico burocrático é aceita como o
sistema médico mais natural e mais adequado. A seguir, Lebedev passa a dizer que,
embora a Psicanálise freudiana não seja praticada na Rússia, “as medidas de tratamento
33
são geralmente do mesmo tipo das empregadas nos Estados Unidos”. Além disso, “a

30
Ibid., pp 614-615.
31
Arendt, pp 395-396.
32
Babs Fenwick, “Russians ahead on mental health?”, Daily OMahoman, 10 de março, 1967, pp. 1-2.
33
Ibid., p. 2.
estrutura social da Rússia permitiu que os psiquiatras fossem para as comunidades e
34
ativamente procurassem as pessoas com necessidade de tratamento (...)”
Essa adaptação às condições modernas dos médicos de caça às feiticeiras
desempenha um papel importante, não apenas na Psiquiatria russa, mas, como veremos
logo mais, também no Movimento de Saúde Mental Comunitária nos Estados Unidos. Na
verdade, em sua conferência, Lebedev acentuou que “os centros de saúde mental
comunitária começaram na Rússia em 1923. [Enquanto que] o conceito de centro de
saúde mental comunitária apenas nos últimos anos começou a vencer nos Estados
35
Unidos”. A respeito, convém notar que os médicos russos francamente reconhecem
que seu dever primário e sua lealdade se voltam para o Estado, não para o indivíduo.
Uma revista médica soviética, Meditstcinskaya Gazeta (Gazeta Médica) afirma que “o
médico soviético deve cooperar ativamente com o Governo, o Partido, o Komsomol, e as
organizações especializadas em medidas destinadas a salvaguardar a saúde da
36
população. Isso significa que não podemos ter segredos com relação ao Estado”, Esta,
como vimos, é precisamente a organização que Donald Gould defende para a Medicina
britânica.
Evidentemente, num sistema médico desse tipo não pode haver limites para o
uso de encarceramento psiquiátrico como método de controle social. Na verdade, na
Rússia não existe qualquer controle. Assim verificamos que as autoridades,
principalmente depois da morte de Stalin, usam frequentemente a Psiquiatria e os
hospitais psiquiátricos para desmoralizar e afastar indivíduos politicamente
perturbadores ou sob outros aspectos indesejáveis. No Ocidente, o escritor Valeriy Tarsis
37
é talvez a vítima mais conhecida. Mas existem muitos outros, entre eles o lógico-
matemático Aleksander Yesenin-Volpin, o pintor Yuri Titov, a poetisa escolar Yulia
38
Vishnevskaya e a intérprete Jenya Belov.
Apesar do caráter nitidamente político e repressivo da Psiquiatria russa, muitos
eminentes psiquiatras americanos já elogiaram, sem restrições, a Psiquiatria
comunitária, de estilo soviético. Um artigo de Lawrence C. Kolb, chefe do departamento
de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Columbia e diretor do
Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York, é um bom exemplo disso.
Kolb descreve o sistema de ambulatório do tratamento psiquiátrico na União
Soviética, sem mencionar a coerção do paciente, e conclui que “outras vantagens do
sistema soviético são as seguintes: a garantia de emprego para o paciente que recebe
alta; a exigência de que os hospitais paguem às famílias para que cuidem do paciente em

34
Ibid.
35
Ibid.
36
Citado em “Soviet MDs find state duties put profession in sccond place”, A M.A. News, May 10, 1965, p. 12.
37
Valeriy Tarsis, Ward 7.
38
Ver campanha de Zhenya Belov (cartas), Economist (Londres), 11 de dez., 1965, p. 4; e Peter Grose, “Tarsis, anti-Red writer,
is denounced- in Soviet as he flies to London”, New York Times, 9 de fev., 1966,. p. 16.
casa; a ligação dos psiquiatras com o ambulatório; a facilidade de decisões e ações
39
efetivas quanto à vida econômica, social, legal e vocacional do paciente.”
O inquisidor religioso, não nos esqueçamos, nunca queimava heréticos; “relaxava-
os” para as cortes seculares. De forma semelhante, o inquisidor psiquiátrico nunca
impõe conformismo ou castigo; toma “decisões eficientes e pratica ações (...) quanto à
vida (...) do paciente”. Em resumo, o que Kolb exalta são apenas as “vantagens” políticas,
tal como se vê, de uma ideologia coletivista com relação a uma ideologia individualista, e
de uma sociedade fechada com relação a uma sociedade relativamente aberta.
Num artigo paralelo, Isadore Ziferstein, psiquiatra pesquisador no Instituto de
Pesquisa Psiquiátrica e Psicossomática de Los Angeles, confirma e amplia as verificações
e opiniões de Kolh: “Os aspectos característicos dos psicoterapeutas soviéticos são:
40
informalidade, disponibilidade e atividade.” Mais uma vez, o poder com relação ao
paciente — francamente reconhecido pelos psiquiatras soviéticos — não é mencionado.
Aqui, será suficiente dar uma rápida descrição do que realmente faz um psiquiatra
soviético num “centro comunitário de saúde mental” da Rússia (o visitado por Ziferstein
foi o Instituto Bechterev, a mesma clínica em que trabalhava Lebedev); “Os psiquiatras
estão cada vez mais aceitando os deveres de funcionários de saúda pública psiquiátrica.
Entre esses deveres devem ser mencionados: a inspeção de fábricas e outros locais de
trabalho, eliminar quaisquer condições de trabalho que poderiam ter efeitos prejudiciais
41
na saúde mental.” Uma dessas “condições de trabalho (...) com efeitos prejudiciais
sobre a saúde mental” — segundo se supõe em outro estudo soviético — poderia ser o
42
fato de ter um chefe que frequenta a igreja.
A partir dessa discussão deve estar evidente que os princípios soviéticos de ética
médica são parte integrante da ética coletivista do comunismo, da mesma forma que os
princípios hipocráticos são parte integrante da ética individualista do Ocidente Livre.
Cada um desses códigos morais reflete uma solução diferente do eterno problema do
conflito entre o indivíduo e a sociedade. Cada um deles prescreve um código diferente
de conduta para o médico, sobretudo nos casos em que há conflito entre os interesses
do indivíduo e os do Estado. Por isso, nos países totalitários, o médico é muitas vezes
obrigado a agir como adversário do paciente, enquanto que, nos países livres, quase
43
nunca precisa fazer isso.
O crime dos médicos nazistas não era um delito, apenas da ponto de vista de uma
ética médica não-totalitária. Foi para reafirmar a primazia da relação paciente-médico
diante da relação Estado-médico que a versão de Genebra do Juramento Hipocrático foi

39
Lawrence C. Kolb, “Soviet psychiatric organization and the community mental health center concept”, Amer. J. Psychiat.,
123: 433-440' (out.), 1966; pp. 437-438.
40
Isadore Ziferstein, “The Soviet psychiatrist: His relationship to his. patients and to his society”. Amer. J. Psychiat., 123: 440-
446 (out.) „ 1966; p. 445.
41
Ibid.
42
Vincent J. Burke, “Soviet atheist’s life happier than believer’s, socio- logist reports”, Syracuse (N.Y.) Herald Journal, 2 de
dez., 1966, p. 28.
43
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, “The moral dilemma of psychiatry: Autonomy or heteronomy?”, Amer. J. Psychiat., 12:
521-528 (dez.), 1964: e “Medical ethics: A historical perspective”, Med. Opin. & Rev., 4: 115-121 (fev.), 1968.
apresentada logo depois dos julgamentos de Nuremberg. Este juramento, adotado pela
Organização Mundial de Saúde, explicitamente exige que o médico obedeça aos
seguintes princípios:
A saúde e a vida de meu paciente serão minha primeira preocupação. Guardarei como
segredo tudo o que o paciente me confiar (...) Não permitirei que considerações de raça,
religião, nacionalidade, partido,, política ou posição social intervenham entre meu dever e
meu paciente (...) Mesmo sob ameaça não usarei meus conhecimentos de forma contrária
às leis da humanidade. Faço livremente estas promessas, nelas empenhando minha
44
honra.
Na realidade, o Juramento Hipocrático, em sua forma original ou revista, é como
outras declarações de princípios morais; não é mais forte do que a vontade das pessoas
que os respeitam e aceitam. A Declaração da Independência dos Estados Unidos
proclamava que a liberdade é um direito humano inalienável; isso não impediu que os
americanos mantivessem o negro na escravidão. De forma semelhante, o Juramento
Hipocrático proclama que a lealdade básica do médico se refere ao paciente; isso não
impediu que os médicos traíssem essa lealdade — diante da Igreja na Idade Média,
diante do Estado no mundo contemporâneo. Portanto, na competição entre a ética
médica dos soviéticos e a dos ocidentais, as perspectivas para nosso lado não são
brilhantes. Evidentemente, nesse caso não podemos condenar um inimigo externo. Os
comunistas não estão impondo, pela força de armas, a sua ética médica. O conflito está
no interior de nossa sociedade, em nossa falta de vontade para aceitar as
responsabilidades de liberdade política e autonomia pessoal. Na realidade, a erosão da
ética médica individualista é anterior à Revolução Russa. Já em 1912, a propósito da
promulgação, na Inglaterra, da Lei de Seguro de Lloyd George (o primeiro programa
compulsório de seguro para operários britânicos), o Journal of the American Medical
Association notou que essa lei assinalava o início de uma nova era para a sociedade e
para os médicos. O médico moderno se tinha tornado “um funcionário de saúde do
Estado, trabalhando pelo bem geral, e não como um profissional liberal particular ou
45
como negociante”.
Além disso, a Psiquiatria Institucional — que sempre afirmou ser uma parte da
Medicina, e, por sua vez, foi aceita por ela como uma de suas especializações — foi
criada, e tem sido sempre uma empresa semitotalitária e coletivista, em que o médico
serve ao Estado, e não ao paciente. Assim como a instituição da escravidão negra tinha
corrompido a ética libertária da democracia americana, a Psiquiatria Institucional
corrompeu a ética individualista da Medicina ocidental. A Medicina aceitou essa ética
apenas quando servia a seus objetivos — isto é, quando o paciente voluntariamente
procurava os serviços do médico. Quando o suposto paciente se recusava a fazê-lo, e, em
vez disso, era entregue ao médico para “tratamento” pelo Estado — o médico aceitava
46
esse novo papel sem protesto. Evidentemente, essa é uma história encerrada. Hoje,

44
Citado em Alexander Mitscherlich e Fred Mielke, Doctors of Infamy, p. xxxviii.
45
Citado em Jeanne Brand, Doctors and the State, p. 240.
46
Michel Foucault, Madness and Civilization, especialmente cap. IX.
além do ímpeto dessa tradição, existem outras forças, que não precisamos discutir aqui,
que empurram a Medicina ocidental para uma direção coletivista. Deve ser suficiente
lembrar e advertir o leitor, como o observou Oliver Garceau, que “a lógica dos
acontecimentos vai claramente para a prática burocrática e não empresarial, com uma
amplitude cada vez menor de escolha pelo paciente ou pelo médico (...) A transformação
do médico de petit bourgeois em burocrata, é inevitável. (...) Numa sociedade com
organização centralizada, a moralidade da Medicina será inevitavelmente julgada em
termos diferentes dos empregados para as relações médico-paciente e médico-médico
47
dos códigos tradicionais de ética médica”.
A significação dessas considerações para nossa preocupação atual está no fato de
que “numa sociedade com organização centralizada” (o que na realidade é um
eufemismo para “sociedade totalitária” ou “burocrática”) o psiquiatra só pode ser o
agente do Estado. Por isso, suas opiniões sobre a saúde mental e a doença mental
dependerão do Governo que paga o seu salário. No entanto, sua participação posterior
em conflitos morais e políticos deve ser escondida, tanto para ele quanto para os outros.
Como já vimos, o vocabulário da Psiquiatria é singularmente útil para esse objetivo.
Embora muitos psiquiatras tenham suposto que o objetivo da Psiquiatria deve ser
o de substituir a moralidade por uma tecnologia da higiene mental, francamente
independente de valores, G. Brock Chisholm, antigo diretor geral dos serviços médicos
do Exército do Canadá, antigo dirigente da Federação Mundial de Saúde Mental e antigo
diretor da Organização Mundial de Saúde, apresentou isso tão clara e tão diretamente
que suas palavras merecem ser citadas: “O único mínimo denominador comum de todas
as civilizações é a moralidade, o conceito de certo e errado, a posição de há muito
48
descrita e considerada suspeita como “o fruto da árvore do bem e do mal”. Segundo
acredita, esse conceito deve ser psiquiatricamente destruído: “A reinterpretação e
erradicação final do conceito de certo e errado (...) são os objetivos finais de
49
praticamente toda psicoterapia eficiente.” Incrível? Será que é isso mesmo que
Chisholm quer dizer? Suas conclusões e recomendações não devem deixar dúvida no
leitor quanto à sua seriedade. Continua: “Para que a espcécie fique livre do peso
perturbador do bem e do mal, os psiquiatras devem assumir a responsabilidade original.
50
Esse é um desafio que precisa ser enfrentado.” Sua conclusão é a seguinte: “Com as
outras ciências humanas, a Psiquiatria precisa agora decidir qual deve ser o futuro
imediato da espécie humana. Ninguém mais pode fazer isso. E esta é a responsabilidade
51
fundamental da Psiquiatria.”
E qual deve ser o futuro da espécie humana, organizado pelos psiquiatras? Bem,
evidentemente isso dependerá de seus senhores. Sargent Shriver, antigo diretor do
Corpo de Paz, e depois diretor do Ministério de Oportunidade Econômica, diz: “Dêem-

47
Oliver Garceau, “The morais of medicine”, Ann. Acad. Pol. & Soa. Sei., 363: 60-69 (jan.), 1966; p. 68.
48
G. Brock Chiholm, “The re-establishment of peacetime society”,. Psychiat., 9: 3-11 (jan.), 1946; p. 7.
49
Ibid., p. 9.
50
Ibid.
51
Ibid., p. 11.
nos um mundo saudável, no sentido integral dessa palavra, e em todos os sentidos o
52
comunismo desaparecerá da Terra.” Este não é, evidentemente, o objetivo de Lebedev
e de seus empregadores soviéticos. Nem, como veremos, é o objetivo dos que trabalham
na saúde mental comunitária dos Estados Unidos. Na realidade, ao justapor as opiniões
de Shriver sobre a saúde mental e as de um psiquiatra chinês contemporâneo, veremos
que o que é “saúde” para um é “doença” para o outro.
Numa entrevista com o romancista italiano Goffredo Parise, o Professor Suh
Tsung-hwa, descrito como o principal psiquiatra da China comunista, diz o seguinte:
(...) aqui não há neuroses nem psicose, nem tampouco paranoia. No fundo dessas
neuroses, uma doença burguesa, encontramos o egoísmo. No Ocidente, o egoísmo é
necessário para a sobrevivência (...)
— Então, não há egoísmo na China? — [pergunta Parise].
— Evidentemente, existe, mas estamos lutando para destruí-lo. No entanto, eu diria que
na China, mesmo antes da libertação, era o privilégio de poucos (...) A família chinesa
sempre foi muito grande e muito complexa em sua estrutura hierárquica. O indivíduo
isolado tinha pouca possibilidade para exprimir seu egoísmo particular. A sua condição,
coletiva, juntamente com os ensinos de Confúcio, combatiam um conceito egoísta e
individualista de vida; esta deixou de existir na China quando os chineses começaram a
trabalhar, viver e a ser alimentados numa sociedade marxista, livre do sistema de classes. A
* 53
conclusão? Egoísmo igual a neurose igual a luta de classes.
Perturbado com a liquidação das “neuroses” e “psicoses”* através dos
pensamentos de Mao, Parise pergunta:
— Se, como o senhor diz, aqui não há neuroses, o que dizer da depressão?
A resposta do Professor Suh mostra como a orientação ideológica do psiquiatra —
nesse caso, para o coletivismo, no meu, para o individualismo — conforma a julgamento
54
do comportamento humano pelo psiquiatra.
— Existem algumas formas de depressão que poderiam ser denominadas remorso [Suh
responde]. Muitos operários, estudantes e camponeses sentem uma espécie de culpa com
relação à sociedade capitalista. Pensam que talvez não tenham dedicado suficiente fé e
energia revolucionárias à construção socialista da China. Por exemplo, me procuram para
dizer que “o Partido faz muito por mim, e eu faço muito pouco pelo Partido e pelos meus
colegas”. Esta ideia às vezes se torna obsessiva e, em alguns casos, uma mania. Nesse
ponto, pode ocorrer melancolia, que ainda não é uma neurose real.
Aqui já não me pude conter [escreve Parise].

52
Citado em Martin Gansberg, “Peace Corps sets world health aid'V New York Times, 16 de nov., 1964, p. 1.
*
A opinião de que o individualismo é “a doença do mundo ocidental” foi proposta pela primeira vez por August Comte (1791-
1857), fundador do positivismo e pai da Sociologia moderna. (Robert A. Nisbet, The Sociological Tradition, p. 273.) Maine de
Biran, contemporâneo de Comte, acreditava que “O indivíduo, o ser humano, não é nada: só existe a sociedade. É a alma do
mundo moral. Só ela tem realidade, enquanto os indivíduos são apenas fenômenos”. (Citado em Albert Salomon, The Tyrany of
Progress, p. 100.)
53
Goffredo Parise, “No neuroties in China”, Atlas, 13: 46-47 (fev.)* 1967; p. 46.
54
Thomas S. Szasz, “The Mental Health Ethic”, em Richard T. De- George (org.), Ethics and Society, pp. 85-110.
— As suas afirmações parecem paradoxais para um europeu. Para falar honestamente,
para mim é difícil acreditar nelas.
— Entendo perfeitamente. Mas, em primeiro lugar, devo dizer-lhe que, apesar de meu
passado científico e cultural na Europa, sou um chinês, um chinês marxista. Amo muito
mais o povo chinês do que a mim mesmo. Os pacientes são meus filhos e sou um pai para
* 55
eles.

O “mundo saudável” de Shriver e o de Suh Tsung-hwa não são evidentemente os


mesmos: no primeiro, o comunismo desaparece; no segundo, o capitalismo. No passado,
as guerras santas eram feitas com a retórica da salvação e com a ameaça da espada;
hoje, são feitas com a retórica da saúde mental e a ameaça da bomba. O progresso
científico na construção de armas é indiscutível; o progresso moral na retórica é
duvidoso.
É significativo que, embora Shriver e Suh não estejam se dirigindo um ao outro,
ambos igualam a promoção da saúde mental com a destruição de seu oponente político.
Vimos como Suh fez isso; vejamos agora como é que Shriver o faz. No discurso acima
citado, e que Shriver pronunciou no Albert Einstein College of Medicine, do Bronx,
ampliou sua observação da seguinte maneira: “Façamos com que a educação universal
se torne uma realidade, e os comunistas chineses não terão apenas uma dor de cabeça.
Não fazemos isso para que os comunistas fiquem doentes, mas para que as pessoas do
56
mundo fiquem bem.”
Como Shriver, também eu me oponho ao comunismo, chinês ou russo. Mas penso
que devemos resistir a ele como um mal moral e político, não como a uma doença
médica ou psiquiátrica; penso que devemos ampliar nossas convicções com sanções
econômicas, políticas e, se necessário, militares, e não com uma retórica psiquiátrica
destinada a nos enganar, mas que certamente fará com que nossos inimigos não sejam
atingidos e continuem sorrindo.
A ideologia de cruzada da reforma utópica, de há muito típica da Psiquiatria
Institucional, e exemplificada pelas opiniões de Chisholm, Shriver e Suh, agora animam
os proponentes do movimento em favor de centros comunitários de saúde mental. Seu
espírito se caracteriza por benevolência sem limite e fanatismo reformista, juntamente
com uma teimosa insistência no tratamento de doentes mentais, e às vezes até de
pacientes médicos, como objetos defeituosos que precisam de conserto por tecnocratas
onicompetentes. Assim, o suposto paciente é transformado de uma pessoa, que está
doente e que procura tratamento com um médico por ela escolhido, numa coisa, cujo
mau funcionamento é diagnosticado por especialistas nomeados e pagos pelo Estado.
Nessa perspectiva está implícita a exigência de que o médico tenha a mesma lealdade
indiscutida com relação ao Estado moderno que o sacerdote devia à Igreja medieval.
Sabemos que essa obediência já está sendo exigida dos médicos nos Estados totalitários;

*
Em seu “amor” pelo paciente como filho, o psiquiatra comunista chinês e seu colega americano, psiquiatra institucional, estão
no mesmo plano, isto é, no terreno comum do paternalismo.
55
Parise, p. 47.
56
Citado em Gansberg, p. 1.
o que devemos agora, segundo nos dizem, é aceitar essa obediência como um grande
passo na ética médica das sociedades livres. Segundo o argumento, apenas dessa forma
se pode garantir a “saúde” de toda a comunidade, e não apenas de uns poucos
57
“capitalistas”. Aqui, tocamos num grande O complexo problema histórico e social —
isto é, a tendência para a burocratização de todas as funções sociais nas sociedades
industrializadas contemporâneas, sejam do tipo “capitalista” ou “comunista”; tocamos
também nas consequências desse processo para os serviços médicos, principalmente
psiquiátricos. Quando os americanos encontram esse processo sob a égide do nacional-
socialismo ou do comunismo, afastam-no como um “totalitarismo desumanizador” e o
rejeitam friamente; no entanto, quando o encontram sob a égide da reforma social
democrática, são capazes de celebrá-lo como “liberalismo humanitário” e o aceitam
58
afetuosamente.
Tanto nas sociedades fechadas quanto nas abertas, o psiquiatra institucional de
há muito se encarrega de trancar os cidadãos divergentes, classificados como doentes
mentais. O movimento de centros comunitários de saúde mental pretende ampliar e
expandir esse tradicional poder policial do psiquiatra. Faz isso ao afirmar que aquele que
trabalha em saúde mental tem uma responsabilidade, não apenas diante do paciente
que vem pedir ajuda, mas também com relação aos que não vêm porque não se
consideram doentes, mas que, apesar disso, precisam receber tal “serviço”. Por exemplo,
Harold Visotsky, Comissário de Saúde Mental do Estado de Illinois, afirma que “um
médico benignamente agressivo deve ser usado para atingir e procurar as pessoas, em
vez de ficar sentado e esperar que venham através de [nossos] programas
59
[psiquiátricos]”. Gerald Caplan, professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da
Universidade de Harvard, declara que o psiquiatra comunitário “difere de seus colegas
tradicionais por precisar prestar serviços para um grande número de pessoas com as
quais não tem contato pessoal, e a respeito de quem não sabe nem a identidade nem a
localização. Não pode esperar que os pacientes o procurem, pois tem igual
60
responsabilidade pelos que não o procuram”. E Norman Lourie, secretário executivo do
Departamento de Bem-Estar Social da Pensilvânia, afirma que “os serviços de higiene
mental não podem depender apenas de pacientes que procuram ajuda. Os pacientes
potenciais devem ser procurados, a fim de que se consiga identificação precoce e
61
tratamento”. Não é exagero dizer que essas psicoburocracias modernas estão sendo
organizadas com o objetivo expresso de fabricar doentes mentais.
Esse pedido para aumento ainda maior dos já grandes poderes da Psiquiatria
Institucional para controle social são repetidos por todos os advogados desse barbarismo
psiquiátrico contemporâneo. Como exemplo disso podemos citar as palavras de Leopold

57
A esse respeito, ver Friedrich A. Hayek, The Counter-Revolution of Scietice.
58
Ver Szasz, “The Mental Health Ethic”, em De George (org.), Ethics and Society.
59
Harold Visotsky, “Social psychiatry rationale: Administrative and’ planning approaches”, Amer. J. Psychiat., 121: 433-441
(nov.), 1964; p. 434.
60
Gerald Caplan, “Community Psychiatry: Introduction and Overview” em S. Goldston (org.), Concepts of Community
Psychiatry, pp. 3-18; p. 4.
61
Citado em “MD’s role in mental health stressed”, A.M.A. News, 1º de março, 1967, p. 3.
Bellak, psicanalista, professor de Psiquiatria na Escola de Psiquiatria de Nova York, e um
dos principais defensores da Psiquiatria comunitária.
Bellak considera a Medicina de saúde pública como o modelo para a Psiquiatria
comunitária. Observa que “a comunidade de há muito reconhece a necessidade de
medidas legais que irão salvaguardar sua saúde física, e tais medidas foram tomadas (...)
No entanto, em muitos casos, as pessoas da comunidade que precisam de assistência
psiquiátrica se recusam a tal tratamento, e até agora não há meios para impor cuidado
62
psiquiátrico onde é mais necessário”. Depois, Bellak enumera medidas compulsórias de
saúde pública — por exemplo, denúncia de doenças contagiosas, vacina contra varíola,
inspeção sanitária de locais de refeição pública, e assim por diante — e sugere que
“certamente seria igualmente adequada uma legislação semelhante, destinada a
proteger a comunidade de contaminação emocional, dar a proteção mínima necessária
63
para muitos, com relação à doença mental grave de alguns poucos”. No entanto, como
a “doença mental” pode manifestar-se por várias coisas — por exemplo, aceitação de
comunismo, nazismo, anti-semitismo ou antinegrismo — são muito evidentes as
consequências políticas dessas medidas de saúde mental pública.
No entanto, como nunca se desvia da retórica de saúde e doença, Bellak pretende
que suas propostas sejam moral e politicamente independentes de valores. Escreve que
“assim, a imposição de medidas legais que permitiram o tratamento compulsório de
problemas de saúde física pública estabeleceu um precedente que pode servir de
modelo para nossos esforços para reduzir seus problemas psiquiátricos. (...) Se os que
trabalham em saúde pública conseguiram impor legislação que torna obrigatório o
tratamento de moléstias contagiosas, as dificuldades que encontramos em nossos
64
esforços paralelos para psicoterapia obrigatória não devem ser insuperáveis”.
Lembrando as definições e tratamentos de doença mental usados na Psiquiatria, parece-
me justo concluir, como fiz, que os “beneficiários” dessas “psicoterapias obrigatórias”
seriam na realidade os bodes expiatórios da sociedade — escolhidos, certamente, não
com fundamentos raciais, religiosos ou nacionais, mas com fundamentos psiquiátricos.
Além disso, Bellak não se satisfaz com a ideia de uma Psiquiatria comunitária que
se tornasse uma espécie de atividade de saúde pública. Deseja ser tuna parte mais
significativa de um sistema coletivista do Governo. Pede que os psiquiatras aceitem a
opinião de que “deve fazer parte de nossos instrumentos a possibilidade de tornar alheio
ao ego o que era sintônico do ego, e dar motivação onde não havia motivação. Uma
ordem do tribunal para a psicoterapia poderia ser uma motivação tão boa para o início
65
quanto qualquer outra. A psicoterapia imposta por lei tem um papel a desempenhar.”
(Os grifos são do original.)

62
Leopold Bellak, “Epilogue”, em Lepold Bellak (org.), Handbook of Community Psychiatry and Community Mental Health, pp.
458-460: p. 458.
63
Ibid., p. 459.
64
Ibid.
65
Ibid.
As premissas e os argumentos de Bellak, acima resumidos, o levam às seguintes
conclusões: “É possível que seja necessário criar um novo braço executivo do Governo e
que se ocupará com os problemas diários de educação de crianças, bem como com o
estado emocional da comunidade. Em base mais ampla, a consciência psiquiátrica
precisará entrar em considerações políticas e na adequação de legisladores e executivos
de uma forma que seria impróprio explicitar agora. No entanto, não há dúvida de que,
por grande amplitude de atividades, a Psiquiatria comunitária será cada vez mais capaz
de proteger a sociedade como um todo, e, ao mesmo tempo, assegurar a cada indivíduo
66
a maior probabilidade possível de felicidade.”
Evidentemente, nada há de novo em esquemas que pretendem fazer os homens
felizes. O Grande Inquisidor de Dostoyevsky diz que “há quinze séculos estamos lutando
com a liberdade, mas, agora, terminou e acabou de uma vez (...) Pois agora (...) pela
67
primeira vez se tornou possível pensar na felicidade do homem.” O Grande Inquisidor
moderno não cometeria o erro, como Bellak realmente cometeu, de empregar uma
palavra como “liberdade”.
É significativo que Bellak faça referência à Carta Magna. No entanto, não a
considera um contrato que protege o súdito do governante, mas como uma licença para
que este exerça autoridade ilimitada “em favor” do súdito. No seu Handbook of
Community Psychiatry (Manual de Psiquiatria Comunitária), Bellak escreve: “Os objetivos
declarados (...) do esclarecido programa que o Presidente Kennedy delineou
recentemente [em sua Mensagem sobre a Doença Mental e o Retardamento Mental, 5
de fevereiro de 1963] (...) são procurar e erradicar as causas da doença mental, bem
como aumentar o conhecimento e a mão-de-obra para manter o ataque. Assim, essa
medida poderia ser considerada como a Carta Magna da Psiquitria Comunitária, pois está
destinada a garantir e salvaguardar, num grau nunca antes sonhado, um direito humano
* 68
básico — o privilégio da saúde mental.” O Grande Inquisidor também sabia disso, e
disse melhor a mesma coisa: “Corrigimos tua obra, baseando-a tem milagre, mistério e
autoridade. E os homens ficaram alegres porque podiam ser novamente como carneiros,
e esse terrível presente [de liberdade] que lhes tinha dado tantos sofrimentos, foi,
69
finalmente, tirado de seus corações.” (Os grifos são do original.)

66
Ibid., p. 460.
67
Fyodor Dostoyevsky, The Brothers Karamazov, p. 298.
*
É incrível que uma autoridade jurídica tão eminente quanto Abe Fortas use a expressão “uma carta de direitos para a
Psiquiatria”. “Em minha opinião”, escreve ele, “a importância da decisão [Durham] não pode ser julgada por um exercício
semântico. Sua importância não se deve ao novo padrão que estabeleceu ao aceitar a defesa por insanidade. Durham não é uma
autorização de liberdade para os doentes mentais. Ao contrário, como irei mostrar, sua importância é que é uma carta, uma carta
de direitos, para a Psiquiatria, e um oferecimento de uma relação de participação limitada entre lei penal e Psiquiatria.” (Abe
Fortas, “Implications of Durham case”, Amer. J. Psychiat., 113:577-582 [jan.], 1967, p. 579.) Mas é o acusado, ou suposto
doente mental, e não o psiquiatra, que está como acusado no tribunal; é ele, e não seu adversário, que precisa de uma carta de
direitos. É difícil compreender como é que Fortas pôde esquecer esses fatos elementares. É mais provável que o faça por
considerar, como protetores, os que perseguem os doentes mentais. Através dessa deformação da lógica e dos fatos, maior poder
para o opressor se torna maior proteção para a vítima.
68
Leopold Bellak, “Introduction”, em Bellak, pp, 1-11; p. 11.
69
Dostoyevsky, p. 305.
Os trabalhos de Bellak exemplificam o espírito de cruzada da Psiquiatria
Comunitária. Está disposto a fazer guerra contra a “doença mental” e a “contaminação
emocional”; acredita que a Psiquiatria deve “proteger a sociedade” e, simultaneamente,
trabalhar pela felicidade do indivíduo, através de “psicoterapia imposta por lei”; o que é
revelador, dedica seu livro ao Presidente Kennedy, não porque tenha lutado pela
liberdade ou pela justiça, mas porque era “sadio”. Em sua dedicatória, Bellak escreve:
“Entre suas [de Kennedy] muitas contribuições, está a de ter dado aos Estados Unidos da
América uma Carta Magna de Saúde Mental da Comunidade. As campanhas de sua vida,
bem como a sua trágica morte, mostram que não podemos suportar loucura política de
70
qualquer tipo.”
Sem dúvida, o livro de Bellak tem pelo menos um elemento novo: deve ser a
primeira vez na história em que um livro ostensivamente científico é dedicado a um líder
*
político por causa da virtude de sanidade. A sugestão de que a morte do líder foi
provocada pela insanidade de seu assassino aumenta a glorificação psiquiátrica do líder,
bem como o aviltamento psiquiátrico de seu (suposto) assassino, de uma forma que
seria difícil de distinguir da morte de um cruzado cristão nas mãos de um bárbaro infiel.
Mas há uma diferença: o fato de ser morto por um homem doente mental tira qualquer
sentido da morte da vítima. Seria essa a ideia do Presidente Kennedy quanto à maneira
de apresentar os conceitos e métodos da Psiquiatria? Ou será que ele também foi
enganado — como de fato suponho que foi — pela ideologia e retórica da Cruzada pela
Saúde Mental?
Como Bellak, os psiquiatras comunitários geralmente buscam a saúde pública e a
medicina preventiva como modelo retórico de suas atividades e como justificação moral
de seu uso do poder policial do Estado. Por exemplo, diz Caplan: “Se o psiquiatra que
trabalha em tarefa preventiva [comunitária] pode convencer as autoridades médicas nas
clínicas de que suas operações são uma extensão lógica da prática médica tradicional,
71
seu papel será aceito por todos, inclusive por ele próprio.” Na realidade, no entanto, o
trabalho de saúde mental comunitária não é uma extensão da prática médica tradicional.
Isso fica evidente com a definição que Caplan dá da principal tarefa do psiquiatra
preventivo, que identifica com o fato de dar mais e melhores “recursos sócio-culturais”
às pessoas. E como é que se realiza isso? Oferecendo “consultas a legisladores e
administradores e colaborando com outros cidadãos para influir nas repartições
72
governamentais para mudar leis e regulamentos”. No jargão psiquiátrico, isso é prática
médica; em português simples, é tráfico de influência política em favor do Movimento de
Saúde Mental.
Stanley Yolles, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental, também apela para
o modelo de saúde pública como uma justificativa para os programas de saúde mental

70
Bellak, p. xi.
*
A primeira linha da dedicatória de Bellak é a seguinte: “A JOHN F. KENNEDY, Presidente dos Estados Unidos, que foi o raro
líder político capaz de escrever e de ser um intelectual, valente e sadio.” (Bellak, p. xi.)
71
Gerald Caplan, Principies of Preventive Psychiatry, p. 79.
72
Ibid., p. 56.
comunitária. Escreve ele: “Através de planejamento comunitário com bases amplas,
através de intervenção em crise e outros métodos, os especialistas em saúde mental
podem compartilhar com outros líderes da comunidade em manipulações ambientais
destinadas a eliminar os conhecidos elementos produtores de tensão — por exemplo,
favelas urbanas e áreas rurais pobres — terrenos potenciais para a doença mental. Todos
eles são métodos legítimos de tratamento (...) Esses são alguns dos métodos de saúde
73
pública que estão sendo adaptados para o programa de saúde mental comunitária.”
(Os grifos são meus.)
Mas o que ou quem poderiam ser os elementos produtores de tensão? Os
negros? Os judeus? Os comunistas? Os fascistas? Os membros da Ku Klux Klan ou da
Sociedade John Birch? Essas possibilidades não são gratuitas. Basta lembrarmos a
decisão marcante da Suprema Corte no caso da anti-segregação na escola, apresentada
74
em 1954. Essa opinião se baseou, em grande parte, nos efeitos supostamente
prejudiciais de escolas racialmente segregadas na saúde mental de crianças negras. A
Corte afirmou: “Separar (as crianças negras) de outras crianças de mesma idade e
qualificações apenas por causa da raça cria um sentimento de inferioridade quanto à sua
posição na comunidade que pode influir em seus corações e suas mentes de uma forma
que provavelmente não será ultrapassada (...) Qualquer que: tenha sido a amplitude de
conhecimento psicológico no momento da decisão Plessy V. Ferguson, essa verificação é
75
amplamente confirmada por autoridades contemporâneas.” (Os grifos são meus.)
Depois, os juizes citam alguns estudos bem conhecidos que mostram os efeitos
prejudiciais da segregação para os negros.
76
Nessa decisão, bem como no caso Boutilier, a ser discutido no capítulo seguinte,
a Corte Suprema mostra que está de acordo — o que talvez seja inevitável — com a
opinião pública americana. Também os juízes gostam de transformar problemas morais
em problemas médicos ou psicológicos; preferem fazer o que é “correto”, do ponto de
vista médico ou psicológico, e não o que é moralmente correto. Embora eu concorde
com os, objetivos da Corte na decisão Brown, e com a regra; discorda dos raciocínios
usados para justificá-la. A segregação racial e o sacrifício sistemático dos negros
americanos constituem um grave erro moral. Mas o que é que tem o “conhecimento
psicológico’”, não-existente na época da decisão Plassy (em 1896), com isso?' Será que
não sabíamos que a segregação era má para o negro, antes de Gunnar Myrdal ter escrito
77
a respeito disso em 1941? Em resumo, considero a confirmação psicológica
apresentada para a decisão como discutível de um ponto de vista moral: em sua
ordenação tácita de valores humanos, coloca os valores de saúde acima dos valores
morais. A Corte sustentou que, como a segregação era má para os “corações e mentes”
das crianças negras, as escolas segregadas não podem ser consideradas “separadas, mas

73
Stanlek Yolles, “Community mental health: Issues and policies”, Ame r. J. Psychiat., 122: 979-985 (mar.), 1966; p. 980.
74
Brown v. Board of Education, 347, U.S. 483, 1954; transcrito em Robert B. McKay, An American Constitutional Law Reader,
pp. 204-210.
75
Ibid., p. 208.
76
Boutilier v. Immigration and Naturalization Service, 387, U.S. 118, 1967; ver capítulo 14.
77
Gunnar Myrdal, An American Dilemma.
iguais”, e, portanto, são inconstitucionais. No entanto, suponhamos — como uma
espécie de experimento mental — que os psicólogos mostrassem, que, ao separar as
crianças negras de maus tratos e humilhações de crianças brancas, as escolas segregadas
poderiam ser melhores para seu desenvolvimento. Será que essa verificação faria com
que a escola segregada, imposta pela polícia ou pelo poder dos Estados, fosse
moralmente aceitável? Será que essa segregação seria menos imoral? Digo que não. Não
importa a maneira pela qual a segregação ou a integração influem na educação de
crianças nas escolas públicas. Essas escolas, mantidas por impostos, não devem —
apenas por princípios morais — fazer distinções entre crianças, a partir de fundamentos
religiosos ou raciais. No entanto, as escolas devem fazer tais distinções com
fundamentos educacionais. Mas isso é outra história.
Aqui, citei a decisão Brown como outro exemplo da maneira pela qual usamos as
explicações médicas para justificar e racionalizar nossos programas morais e sociais,
assim como nossos antepassados usavam explicações teológicas para justificar e
racionalizar os seus programas. Os que aprovam o fato de a Suprema Corte depender de
estudos sociológicos e psicológicos para a decisão Brown deveriam considerar as
consequências de estudos semelhantes, realizados por sociólogos soviéticos, e que
mostram os efeitos prejudiciais na saúde mental, não da segregação, mas da religião.
Num artigo intitulado “Personalidade e Religião”, o sociólogo russo A. Krasilov afirma
que “de modo geral, na União Soviética, o ateu leva uma vida mais feliz, ‘espiritualmente
satisfatória’, do que o crente”. Apoia sua conclusão com dados obtidos em estudos
empíricos que mostram que “entre camponeses, os que mostravam satisfação no
trabalho incluíam 75% de ateus, 64% de não-crentes, 58% dos que seguiam ritos
religiosos e apenas 39% de “crentes convictos”. Krasilov conclui que “a religião não dá
78
felicidade e consolo aos crentes, mesmo em sua vida pessoal e de família”.
O leitor americano talvez afaste esse tipo de estudo como basicamente
deformado: o pesquisador “descobre” o que inicialmente já pensava que fosse o certo, e
o que sabe que está de acordo com a ideologia dominante de sua sociedade. No entanto,
será que os estudos que mostram os benefícios da integração racial nas escolas
diferentes? Os sociólogos que, depois de Gunnar Myrdal, “descobrem” os males da
segregação, sentem a mesma hostilidade com relação ao preconceito racial que os
sociólogos soviéticos sentem com relação ao que poderiam denominar preconceito
religioso. Portanto, esses estudos sociológicos são venais ou estratégicos: apresentam
“dados” como munição para lutar numa batalha por alguns objetivos sociais. Isso é uma
forma de mostrar que as “Ciências Sociais” (ou, pelo menos, grande parte do que passa
por esse título) não são ciências. Os matemáticos e físicos americanos não hesitariam em
usar, em sua obra, dados obtidos por russos. Mas será que a Corte Suprema consideraria
isenção de impostos para as Igrejas inconstitucional porque estas facilitam doenças
mentais? Essa é uma pergunta absurda, evidentemente. Mas não é mais absurda do que

78
Burke, “Soviet atheist’s life happier than believer's sociologist reports”, Syracuse (N.Y) Herald-Journal, 2 de dez., 1966, p.
28.
os argumentos usados no caso Brown e em grande parte da legislação americana
baseada em considerações de saúde mental.
Finalmente, é na Psiquiatria forense que encontramos os melhores exemplos da
maneira pela qual a preocupação com a “saúde mental” de indivíduos ou grupos
sacrificados — negros, indivíduos acusados de crime, pessoas idosas — na realidade atua
em seu prejuízo, servindo apenas para confirmá-la em seus papéis degradados como
objetos defeituosos, e elevar seus guardas à posição elevada de pais amorosos. Já
79
discutimos esse assunto em outros trabalhos. Um rápido exame crítico das opiniões de
um dos principais expoentes do que denominei “justiça psiquiátrica” será suficiente.
Num ensaio revelador, intitulado “A Justiça Enfrenta a Ciência”, David L. Bazelon,
Presidente do Tribunal de Apelação do Distrito de Colúmbia, mostra como uma
jurisprudência com “informação” psiquiátrica tentaria “compreender” e lidar
80
“humanamente” com “o homem no banco dos réus”, Tentarei mostrar como, ao olhar
apenas para o homem no banco dos réus, e ao ignorar o homem no assento dos juízes,
Bazelon consegue autenticar o acusado como um bode expiatório psiquiátrico. Bazelon
começa por acentuar sua preocupação com a vítima: “...como juiz fico
fundamentalmente perturbado diante do homem no banco dos réus — quanto à
maneira pela qual as ciências do comportamento são usadas em nossos tribunais
81
penais”. Mas se, como sugeri, a pessoa acusada como mentalmente doente é um bode
expiatório, é dever da ciência comportamental humanística focalizar a atenção, não nele,
mas nos responsáveis pela sua colocação nesse papel. Isso exigiria que os juízes
examinassem o seu comportamento, e não o comportamento dos acusados,
supostamente com doença mental. Esta foi exatamente a lição que a Psicanálise tentou
ensinar à Psiquiatria, embora tenha fracassado. Para compreender o paciente, o
terapeuta precisa inicialmente examinar seu comportamento e seu papel; além disso,
para conseguir entender o paciente, o terapeuta precisa expulsar de seu comportamento
e de seu papel os elementos que interferem na compreensão ou que a tornam
completamente impossível. Mais importante ainda é o poder e a capacidade para
82
prejudicar o paciente. Nossa criminologia contemporânea, psiquiatricamente [por
suposição] esclarecida, não mostra a menor tendência para adotar essa postura de
autocrítica. Em vez disso, prefere a postura de benevolência condescendente ou
83
paternalismo moralizante.
Bazelon afirma que ele e seus colegas com ideias semelhantes no Direito e na
Psiquiatria “ficam perturbados ao castigar pessoas que sofrem de perturbações mentais
84
e emocionais”. Isso é pura retórica. Se fosse verdade, deveriam defender a abolição de
hospitalização involuntária em hospital psiquiátrico; para a pessoa, que é o único árbitro

79
Ver especialmente Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, t Psychiatric Justice.
80
David L. Bazelon, “Justice stumbles over Science”, Trans-action, 4: 8-17 (julho-agosto), 1967.
81
Ibid., p. 8.
82
Thomas S. Szasz, The Ethics of Psychoanalysis.
83
Ver, por exemplo, Seymour L. Halleck, Psychiatry and the Ditemmas of Crime.
84
Bazelon, p. 9.
nesses assuntos, esse confinamento é uma forma de castigo. Mas nada fazem quanto a
isso. Ao contrário, assiduamente fabricam um número cada vez maior de loucos, ao
retirar números cada vez maiores de indivíduos das prisões, onde cumprem sentenças
específicas, levando-os para os hospitais psiquiátricos, onde suas sentenças são
indefinidas.
Por acreditar que “Os cientistas hoje acreditam, de modo geral, que o
85
comportamento humano é causado, e não voluntário”, Bazelon pensa que resolveu o
problema da justiça: precisamos apenas de mais “fatos científicos” a respeito do
acusado. Nessa Nova Jerusalém, a justiça é aplicada, não com a imparcialidade cega, mas
com compreensão psicodinâmica e de bom coração. Bazelon explica que “Usualmente o
que se exige dos especialistas [psiquiátricos] é uma afirmação, em termos simples, a
respeito da maneira pela qual o acusado agiu como o fez — a psicodinâmica do seu
comportamento (...) Quando isso ocorre, sob a regra de Durham [estabelecida por
Bazelon], o acusado pode ser visto como pessoa doente e confinada num hospital para
86
tratamento, e não numa prisão, como castigo.” Esse é realmente o ponto fundamental:
no tribunal, quanto mais falamos sobre a “psicodinâmica” do acusado, mais chegamos à
conclusão de que é um “paciente doente”, que precisa de “tratamento”. O objetivo não
reconhecido, e, certamente, o efeito prático, dessa tática, é que a participação de
pessoas, além do acusa do, na criação de divergência social permanece oculta. Por
exemplo, se consideramos os viciados em drogas ou homossexuais como doentes, não
precisamos nos preocupar com o papel dos legisladores que proíbem certas drogas e a
participação em alguns tipos de conduta sexual; ou com o papel de acusadores que
preferem considerar os acusados como doentes mentais a defender sua causa no
tribunal; ou com o papel dos juízes, que preferem compreender os acusados a
*
compreender a si mesmos.
O resultado dessa perspectiva é que o juiz “psicodinamicamente orientado” que
julga delinquentes mentalmente doentes se exprime em termos inteiramente análogos
aos do juiz com orientação religiosa que julgava heréticos. O juiz do século XVI estava
imbuído da ideologia do Cristianismo e falava na retórica da salvação. O seu equivalente
contemporâneo está imbuído da ideologia da Medicina e fala na retórica do tratamento.
Segundo Bazelon, “Uma pesquisa séria sobre a responsabilidade criminal do acusado (...)
pode ser comparada a um exame post-mortem”. “O exame post-mortem não fará com
que o morto volte à vida; o julgamento não irá desfazer um ato abominável. No entanto,
87
nos dois casos podemos conhecer as causas do fracasso.”
Nada poderia ser mais característico do fanático médico: o tribunal é um
necrotério, o juiz um patologista, o acusado um cadáver! Mas não se imagina que o

85
Ibid., p. 13.
86
Ibid., p. 14.
*
Aqui, minha análise da autenticação mútua do eu e do outro deve muito as trabalhos de Jean-Paul Sartre. Para um resumo da
obra rica e complexa de Sartre, ver Robert Denoon Cumming, The Philosophy of Jean-Paul Sartre. Para uma aplicação de
algumas idéias de Sartre à Psiquiatria, ver Ronald D. Laing, The Politics of Experience and the Bird of Paradise, sobretudo o
capítulo 4.
87
Ibid., p. 17.
exame post-mortem dê vida aos mortos; nem o julgamento pode desfazer um ato
abominável. No primeiro, o patologista pode ou não ser capaz de determinar por que o
paciente morreu; no segundo, o júri pode ou não ser capaz de decidir se o acusado é
culpado. Mas mesmo esse paralelo é enganador, pois esconde a diferença crucial entre
os “objetos” respectivos que são examinados: no exame post-mortem, um cadáver; no
júri, um ser humano vivo. É aqui que o descuidado pode enganar-se: para o homem
morto e dissecado no necrotério, não interessa até que ponto o patologista é honesto ou
desonesto, competente ou estúpido, curioso ou indiferente. Mas isso não é verdade para
o homem acusado no tribunal: para ele, há uma diferença, às vezes entre a vida e a
morte, quanto à conduta de advogado de defesa, promotor, juiz, júri e testemunhas. Na
realidade, o resultado de um processo penal muitas vezes depende mais dessas dramatis
personae do que do acusado. M’Naghten e Durham foram considerados mentalmente
doentes porque aqueles que os julgaram declararam que isso era verdade. Não é mais
88
complicado que isso.
Ao continuar com sua metáfora, Bazelon fica apenas mais enrolado nela: “...no
julgamento, toda a comunidade pode aprender — e, assim, compreender mais
89
claramente sua responsabilidade pelo ato e pela redenção [sic] do ator.” Aqui, a
analogia entre o necrotério e o tribunal, entre o exame post-mortem e o processo penal,
entre o patologista e o público, desaparece completamente: o patologista usualmente
deseja “aprender”; mas isso não ocorre com o advogado de defesa, com o promotor,
com o júri ou com o público: eles desejam apenas absolver ou condenar.
Finalmente, ao falar da “redenção” do acusado, Bazelon mostra sua intenção:
considera o acusado uma espécie de herético que precisa ser “redimido” — a palavra
indica, uma vez mais, uma volta reveladora à retórica dos cruzados e dos tribunais para
feiticeiras. Podemos perguntar como é que Bazelon iria “redimir” alguns dos violadores
de leis como Ghandi, Nehru ou Thoreau — para não mencionar Jesus ou Sócrates. No
entanto, Bazelon nunca admite a possibilidade de que o acusado possa ser mais
“humano” ou mais “justo” do que seus acusadores ou seus juízes. Ao recusar-se a
identificar o acusado como uma pessoa de igual valor humano — que pode, e realmente
deve, julgar, mas que não pode, e na realidade não deve, refazer segundo sua imagem —
Bazelon revela seu compromisso com uma ordem social coletivista e paternalista em que
o conformismo é sinônimo de saúde mental, e em que o Estado é o irmão, o pai, o
amigo, o terapeuta do cidadão — tudo, menos seu adversário. Em resumo, Bazelon se
considera o Homem Justo e o acusado como o Outro, o Estranho.
Neste capítulo, tentei mostrar algumas das maneiras através das quais a
Psiquiatria Institucional constitui um sistema social cuja função é criar alguns tipos de
estigmas médicos e impô-los a algumas pessoas. Certamente, a Psiquiatria americana
atual abrange, como já notamos, mais do que apenas a Psiquiatria Institucional. No
entanto, isso tem sido verdade apenas a partir das primeiras décadas deste século. Em

88
Ver Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, pp. 127-137.
89
Bazelon, p. 17.
outros lugares, a Psiquiatria Institucional é ainda o único tipo de prática psiquiátrica
existente. E mesmo nos Estados Unidos, a amplitude e a significação da Psiquiatria
Institucional superam de muito — econômica, legal, política e socialmente — a da
Psiquiatria Particular ou de Contrato.
Um levantamento nacional recente, a respeito de 15.200 psiquiatras praticantes
nos Estados Unidos, revelou que, “ao contrário do que se pensa geralmente, a grande
maioria dos psiquiatras não passa uma parte grande de seu tempo em consultório
90
particular, e, na realidade, mais de um terço não tem quaisquer clientes particulares”.
Na realidade, apenas aproximadamente a metade dos psiquiatras americanos tem
alguma clínica particular; e, desses, 60% passam menos de 35 horas semanais nesse
trabalho. De todos os psiquiatras 39% passam algum tempo trabalhando para o Governo
estadual, 34% para organizações e entidades particulares, 19% para o Governo federal,
91
15% para o Governo local. (Alguns trabalham em mais de uma entidade ou repartição.)
Esses resultados demonstram a imensa dependência dos psiquiatras quanto a
emprego institucional. Em outros países ocidentais, onde as oportunidades econômicas e
as exigências sociais de serviço psiquiátricos particulares são muito menores do que nos
Estados Unidos, é ainda maior a proporção de psiquiatras que trabalham em hospitais
psiquiátricos e outras instituições. Na Grã-Bretanha, por exemplo, apenas 4,5% dos
psiquiatras passam mais do que a metade de seu tempo em trabalho de clínica
particular; 69% são empregados em tempo integral pelo Serviço Nacional de Saúde; 77%
passam pelo menos parte de seu tempo em tratamento de pacientes internados em
92
hospitais (o que ocorre com 51% dos psiquiatras americanos). Nos países comunistas,
toda psiquiatria, evidentemente, é Psiquiatria Institucional.
Em resumo, portanto, o conceito de doença mental constitui o estigma geral da
Psiquiatria Institucional, enquanto as categorias ou “entidades” específicas de
diagnóstico psiquiátrico — por exemplo, vício em drogas, personalidade psicopática,
esquizofrenia — servem como membros dessa classe.
A prova dessa tese deriva de três fontes principais: as opiniões dos principais
psiquiatras; as práticas de instituições sociais importantes, como universidades e
tribunais; os estudos empíricos de sociólogos.
A seguir, citarei os resultados de um estudo sociológico que mostra que as
pessoas não reconhecem a “doença mental” como uma condição de comportamento,
mas, que, ao contrário, inferem essa condição a partir da associação da pessoa com os
funcionários estigmatizadores. Isso mostrará que, assim como o homem comum na
Idade Médica não tinha recursos para saber quem era feiticeira, e a reconhecia apenas
através de sua identificação pelas inquisidores — também, em nossa época, o homem

90
Ver Robert F. Lockman, “Nationwide study yields profile of psycriatrists”, Psychiat. News, 1: 2 (jan.), 1966.
91
Ibid.
92
Ver Brian Cooper e Alexander C. Brown, “Psychiatric practice in Great Britain and America: A comparative study”, Brit. J.
Psychiat., 113: 625-636, 1967.
comum não pede saber quem é louco, e o reconhece apenas através de sua identificação
por funcionários de saúde mental.
O sociólogo Derek L. Phillips, empreendeu uma pesquisa a respeito da hipótese de
que “indivíduos com comportamento idêntico serão cada vez mais rejeitados, à medida
que são descritos como pessoas que não procuram qualquer auxílio [por doença mental],
utilizam um sacerdote, um médico, um psiquiatra ou um hospital para doentes
93
mentais”. Para pôr à prova a hipótese, Phillips preparou cinco resumos de casos
diferentes. “(A) era uma descrição de um esquizofrênico paranoide; (B) um indivíduo que
sofre de esquizofrenia simples; (C) uma pessoa angustiada e deprimida; (D) um indivíduo
94
fóbico, com aspectos compulsivos; (E) uma pessoa “normal”. Esses resumos de casos
era apresentados a 300 mulheres brancas, casadas, numa cidade do Sul da Nova
Inglaterra, com uma população de aproximadamente 17.000 habitantes. Os resumos
eram apresentados juntamente com informação a respeito do auxílio que a pessoa
estaria procurando (em outros casos, não havia essa procura): “1. Nada se acrescentava
à descrição do comportamento (...) 2. À descrição, acrescentava-se a afirmação: “Procura
regularmente seu sacerdote para ver como está passando.” 3. À descrição, acrescentava-
se a afirmação: “Vai ver regularmente o seu médico, para verificar como está passando.”
4. À descrição, acrescentava-se a afirmação: “Vai regularmente ver o psiquiatra, para que
este veja como está passando.” 5. À descrição, acrescentava-se a seguinte afirmação:
95
“Está num hospital para doentes mentais por causa da maneira como está passando.”
Phillips verificou que “Um indivíduo que apresenta determinado tipo de
comportamento passa a ser cada vez mais rejeitado quando é descrito como alguém que
não procura auxílio, como alguém que procura um sacerdote, um médico, um psiquiatra,
96
ou que está num hospital psiquiátrico”. Na realidade, as mulheres entrevistas
coerentemente identificaram a pessoa descrita no cartão como normal, mas que estava
num hospital, como portadora de grave doença mental; o esquizofrênico que não
procurava auxílio era identificado como normal. Além disso, Phillips verificou que “Não
apenas os indivíduos são cada vez mais rejeitados [como doentes mentais] quando são
descritos como pessoas que não procuram auxílio, procuram um sacerdote, um médico,
um psiquiatra ou um hospital para doentes mentais, mas são também
desproporcionalmente rejeitadas quando descritas como capazes de procurar as duas
últimas formas de auxílio. Isso confirma a sugestão de que os indivíduos que utilizam
psiquiatras e hospitais para doentes mentais podem ser rejeitados, não apenas porque
têm um problema de saúde, mas também porque o contato com o psiquiatra ou o
97
hospital para doentes mentais os define como ‘mentalmente doentes’ ou ‘insanos’.”

93
Derek L. Phillips, “Rejection: A possible consequence of secking help for mental disorders”, Amer. Sociol. Rev., 28: 963-972
(dez.), 1963; p. 965.
94
Ibid., p. 966.
95
Ibid.
96
Ibid., p. 968.
97
Ibid., pp. 968-969.
Esse estudo demonstra algumas das diferenças socialmente pragmáticas entre
doença física e doença mental. Embora influenciadas por julgamento médico, as pessoas
comuns têm seus conceitos próprios e autênticos de doença física; mas não têm tais
conceitos de doença mental, e sua opinião é inteiramente baseada na posição do sujeito
como ocupante de um papel de doente. Sempre que uma pessoa normal é apresentada
como alguém que procura auxílio “psiquiátrico”, é percebida como possuidora de grave
doença mental. Segundo Phillips, “Apesar de a pessoa ‘normal’ ser mais um ‘tipo ideal’
do que uma pessoa normal, quando é descrita como alguém que ficou num hospital
psiquiátrico, é mais rejeitada do que um indivíduo psicótico que foi descrito como
alguém que não procura ajuda ou procura um sacerdote, e mais rejeitada do que um
neurótico deprimido que procura um sacerdote. Mesmo quando a pessoa normal é
descrita como alguém que visita um psiquiatra, é mais rejeitada do que um
esquizofrênico simples que não procura ajuda, e mais rejeitada do que um indivíduo
98
fóbico-compulsivo que não procura ajuda ou procura um sacerdote ou um médico”.
Na realidade, está claro que as pessoas são rejeitadas, não porque procurem
certos tipos de “ajuda”, mas porque, ao fazê-lo, se tornam identificadas como mais ou
menos loucas, e são rejeitadas por isso. Essa interpretação foi especificamente verificada
por Phillips. Numa pesquisa sobre as reações de uma amostra de população às
descrições de comportamento considerado como típico de doença mental, verificou que
“os que identificavam um indivíduo como mentalmente doente o rejeitavam mais do
que aqueles que não faziam esse julgamento”, e conclui que seus resultados “não
confirmam as conclusões [de autores anteriores] de que a capacidade das pessoas para
identificar doença mental representa um passo adiante nas atitudes públicas com
99
relação ao mentalmente doente”. Os resultados de Phillips confirmam minha afirmação
de que o vocabulário dos diagnósticos psiquiátricos é na realidade uma retórica
justificadora e pseudo-médica de rejeição. Em resumo, os psiquiatras são os fabricantes
de estigma médico, e os hospitais psiquiátricos são suas fábricas para a produção em
massa desse produto.
Segundo Goffman, “O termo estigma refere-se a um atributo que é
100
profundamente desmoralizador (...)” O fato de ser considerado ou rotulado como
perturbado — anormal, maluco, louco, psicótico, doente, pois não importa a variação
usada — é a classificação mais profundamente desmoralizador a que hoje pode ser
imposta a uma pessoa. A doença mental coloca o “paciente” fora da ordem social, da
mesma forma que a heresia colocava a “feiticeira” fora da sociedade medieval. Esse é, na
realidade, o objetivo dos termos estigmatizadores. Nas palavras de Goffman. “Por
definição, naturalmente, acreditamos que a pessoa com um estigma não é bem humana.
Com essa suposição, exercemos várias discriminações, através das quais efetivamente,
ainda que muitas vezes involuntariamente, reduzimos suas possibilidades de vida.

98
Ibid., p. 969.
99
Derek L. Phillips, “Identification of mental illness: Its consequences for rejection”, Community Ment. Health J. 3: 262-266
(outono), 1967; pp. 265-266.
100
Erving Goffman, Stigma, p. 3.
Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar sua inferioridade e
explicar o perigo que representa, às vezes racionalizando uma animosidade baseada em
101
outras diferenças — por exemplo, as de classe social.” A Psiquiatria fornece a teoria de
estigma para a doença mental, assim como a inquisição fornecia a teoria de estigma para
a feitiçaria.
Acredito que os dados até aqui apresentados mostram as semelhanças básicas
entre a situação social de feiticeiras e a dos pacientes mentais involuntários. Ao mesmo
tempo, embora, como bodes expiatórios e vítimas, as feiticeiras e os loucos se
assemelhem a judeus e negros, existem algumas diferenças importantes entre eles, e
que merecem alguns rápidos comentários.
A principal diferença entre judeus e negros, de um lado, e feiticeiras e doentes
mentais involuntários, de outro, é que a participação nos primeiros grupos usualmente
não é definida, e na prática não precisa ser verificada, pela maioria que escolhe os bodes
expiatórios ou por seus agentes especiais; a participação nos outros grupos é
usualmente definida, e na prática precisa ser verificada, pela maioria que escolhe os
bodes expiatórios ou por alguns de seus agentes especiais. Os traficantes de escravos e
os donos de escravos não criaram a categoria denominada “negro”; nem precisavam
empregar especialistas para verificar quem era e quem não era negro. Portanto, os que
desejavam escravizar um negro podiam começar com uma categoria naturalmente pré-
fabricada; tudo o que precisavam fazer era impor o papel de escravo a alguns ou a todos
os membros desse grupo.
Se os “sinais de estigma” do negro são físicos, os dos judeus são
102
comportamentais. Entre os cristãos, o judeu é facilmente identificado por sua religião
e seu comportamento social, assim como o negro o é pela cor de sua pele. Por isso, os
que desejam perseguir o judeu podem também começar com uma categoria social pré-
fabricado; precisam apenas impor o papel de inimigo interno (“usurário”, “banqueiro
internacional”, “comunista”, etc.) a alguns ou a todos os membros desse grupo. Em
resumo, os negros que vivem entre homens brancos, os judeus que vivem entre cristãos,
podem ser separados como divergentes por sinais manifestos, ou estigmas manifestos.
Isso não é verdade no caso de feiticeiras e doentes mentais. O cristão fiel que
caçava bruxas e o dedicado funcionário de saúde mental que procura casos não
descobertos de doença mental precisam depender de sinais ocultos ou estigmas
escondidos, de feitiçaria ou doença mental. Os supostos sinais não são evidentes para
*
pessoas comuns, ou mesmo para a pessoa que supostamente apresenta o sinal. É isso o
que justifica, e realmente exige, o emprego de especialistas — caçadores de bruxas e

101
Ibid., p. 5.
102
Ibid., pp. 43-62.
*
Como exemplo de sinais manifestos e sinais ocultos de doença mental, considera-se a seguinte afirmação de Karl Menninger:
“Precisamos distinguir uma tendência inconsciente numa direção homossexual, que pode ser muito manifesta para outras pessoas
— pelo menos para psiquiatras — embora não seja conhecida por quem a possui, de um desejo consciente e uma preferência por
contato homossexual.” (Em The Vital Balance, p. 196.) Grande parte da literatura clínica apresentada por psiquiatras,
psicanalistas e outros psicólogos, se refere a sinais ocultos de depressão, esquizofrenia e outras doenças mentais.
diagnosticadores de Psiquiatria — para descobrir heréticos e loucos na comunidade. O
resultado é que, tanto na Inquisição quanto na Psiquiatria Institucional, o bem-
intencionado precisa, inicialmente, conseguir autorização social para sua “busca”, antes
de ter licença para praticar sua “terapia”.
O médico, na clínica particular, precisa conseguir o consentimento do sujeito
antes de poder tratá-lo como paciente. De forma semelhante, o inquisidor e o psiquiatra
institucional precisam conseguir o consentimento da Igreja e do Estado antes de
poderem tratar seus sujeitos como heréticos ou como loucos. O caçador de bruxas é um
agente devidamente autorizado pelo Estado Teológico; seu cliente é a Igreja e sua
agência é a Inquisição. É por isso que pode, e na verdade precisa, acusar pessoas de
feitiçaria, provar que são feiticeiras, e finalmente salvar suas almas ao queimar seus
corpos. O psiquiatra institucional é um agente devidamente autorizado pelo Estado
Terapêutico; seu cliente é o Estado e sua agência é a Psiquiatria Institucional. É por isso
que pode, e na realidade deve, acusar pessoas de doença mental, provar que são insanas
*
e finalmente curar suas mentes ao aprisionar os seus corpos.
Em resumo, os sinais de estigma que identificam judeus e negros não são
inventados por donos de escravos ou por anti-semitas; os que identificam feiticeiras e
doentes mentais são inventados pelos inquisidores e pelos psiquiatras institucionais.
Mas, independentemente do fato de os sinais de estigma serem características humanas
reais (por exemplo, pele com pigmentação escura ou a prática de religião judaica) ou
fabricações de especialistas (por exemplo, marcas de feiticeira ou os sintomas de
insanidade masturbatória), sua função é a mesma; justificar a maioria na rejeição e na
perseguição de uma minoria.
Tais diferenças — entre sinais de estigma manifestos ou ocultos — explicam a
não-existência de uma classe de especialistas encarregados de escolher as vítimas da
escravidão negra e do anti-semitismo organizado, bem com a extraordinária significação
desses especialistas na identificação das vítimas de caças às bruxas e de movimentos de
saúde mental. Os judeus convertidos e os negros que passam as linhas religiosas e de cor
constituem vítimas de um tipo intermediário. A presença desses bodes expiatórios
potenciais em situações em que também seriam perseguidos exige uma nova classe de
“especialistas”, como os nazistas especializados em “problemas judaicos”. A sociedade
patrocina esses “especialistas” que fingem possuir a competência para distinguir entre
cristãos “puros” e os “manchados por sangue judeu”. Os psiquiatras que distinguem
acusados doentes mentais e os que são sadios desempenham um papel semelhante.
Qualquer processo penal em que se apresente a alegação de insanidade demonstra isso.
A fraude evidente da representação não prejudica seu valor social e, por isso, é um
argumento ineficiente para sua interrupção. Era por isso também que, como vimos, a
fraude da representação do caçador de bruxas não tinha efeito destrutivo sobre a

*
Evidentemente, qualquer um podia acusar qualquer pessoa de ser feiticeira, e efetivamente havia esse tipo de acusação; mas
apenas os especialistas em feitiçaria — os inquisidores — poderiam fazer o diagnóstico aceitável. De forma semelhante,
qualquer pessoa pode, e muitas vezes isso ocorre, acusar qualquer outra de ser mentalmente doente; mas apenas os especialistas
em doença mental — os psiquiatras institucionais — podem fazer um diagnóstico aceitável.
popularidade da crença na feitiçaria e no perigo das bruxas. Diante do perigo cósmico
apresentado por inimigos diabólicos, como feiticeiras e doentes mentais, que importa
*
uma pequena mentira? O Homem Justo do século XV sempre podia dizer a si mesmo
que quase todos os padres eram, afinal de contas, homens honestos; e o Homem Justo
do século XX pode dizer a mesma coisa da maioria dos psiquiatras.
Além disso, assim como se acreditava que a ideia de bruxaria indicava a
“essência” da personalidade da bruxa, também a ideia de doença mental indica, segundo
se crê, a “essência” da personalidade do doente mental. Esse é um aspecto distintivo de
todos os conceitos usados para definir a identidade do bode expiatório: um herético, um
judeu, um negro ou um psicótico não são também um erudito, um físico, um atleta, ou
um poeta; ao contrário, cada um deles é reduzido ao seu papel como malfeitor
transcendente, o Mau. Hoje, os chamados doentes mentais são os principais bodes
expiatórios oficiais da sociedade. Evidentemente, sua posição como bodes expiatórios é
inteiramente legal; portanto, isso está imune a ataques lançados de dentro das regras
aceitas para o jogo. Na verdade, ao aceitar a mitologia oficial de doença mental, os que
poderiam, a partir de fundamentos humanitários, opor-se à discriminação contra os
doentes mentais, se tornam impotentes para fazê-lo; no passado, os que poderiam
desejar opor-se à discriminação contra as feiticeiras também se tornavam impotentes ao
aceitar a mitologia oficial da feitiçaria.
São claras as consequências, para a ação social, desse ponto de vista. Podemos, e
na realidade devemos, escolher entre duas posturas mutuamente exclusivas. De um
lado, podemos definir algumas pessoas como impotentes, e que exigem tratamento
especial do Estado; os que estão nas “profissões de auxílio” poderão banhar-se na glória
de sua benevolência, enquanto que os que são ajudados serão estigmatizados. De outro
lado, podemos buscar a criação de uma sociedade em que o Estado, sobretudo ao impor
controles sociais através de leis penais, não reconheça nem o estigma nem símbolos de
status ou categorias; a fabricação, com a aprovação do Estado, de classes e indivíduos
estigmatizados, por degradadores profissionais, cessaria, e, como cidadãos sujeitos ao
controle do Estado, todos os homens seriam iguais.
Isso não precisa ser o fim da caridade ou da decência. Ao contrário, seria o seu
início. Pois apenas nesse caso a caridade estaria livre da coerção, e a decência do
domínio.

*
O uso “terapêutico” da fraude — por sacerdotes, médicos ou políticos — tem sido satirizado pelas maiores figuras da literatura
ocidental. Por exemplo, Voltaire coloca as seguintes palavras na boca do faquir Bambabef: “Confesso que lhes ensinamos erros;
mas é para seu bem. Fazemos com que acreditem que, se não comprarem nossos cravos sagrados, se não expiarem seus pecados
dando dinheiro, em outra vida serão transformados em cavalos, em cães e lagartos; isso os intimida, e se tornam pessoas
decentes.” (Voltaire, Philosophical Dictionary, p. 280.)
13
O BODE EXPIATÓRIO MODELAR DA
PSIQUIATRIA — O HOMOSSEXUAL

É mais fácil ser aceito, por nossa sociedade, como assassino,


do que como homossexual.
1
Abby Mann

A nossa sociedade secular teme a homossexualidade da mesma forma e com a mesma


intensidade com que as sociedades teológicas de nossos antepassados temiam a heresia.
A qualidade e a extensão dessa aversão são reveladas pelo fato de que a
2
homossexualidade é considerada um crime e uma doença.
Por definição legal, todo ato homossexual é um “crime sexual”. Portanto, o
homossexual está sujeito às penalidades das chamadas leis de psicopata sexual, e pode
ser condenado a encarceramento indefinido numa instituição para doentes mentais ou
num local especial, para “criminosos sexuais”. Embora esse castigo seja suportado por
proporção muito pequena de homossexuais, isso não nega seu alcance moral nem sua
significação prática.
Por definição médica, todo ato homossexual é o sintoma de uma “doença
mental”. Assim, o homossexual está sujeito também às penalidades de leis de higiene
mental e pode ser confinado, contra a sua vontade, num hospital psiquiátrico. Por
exemplo, no Estado de Massachusetts, uma pessoa é considerada indicada para
hospitalização psiquiátrica involuntária se se comportar de uma “forma que viole
3
claramente a moralidade, as leis, os regulamentos e convenções da comunidade”.
Embora os homossexuais raramente sejam detidos apenas por sua conduta sexual, isso
não desmente a intenção da legislação que autoriza essa detenção nem sua significação
social. Em resumo, o homossexual está sujeito à legislação repressiva como membro,
não apenas da classe de delinquentes, mas também da classe dos mentalmente doentes.
Como veremos, é o bode expiatório modelar da Psiquiatria.
As leis dos estados americanos proíbem o comportamento homossexual, mais ou
menos como as leis da Espanha do século XV proibiam a prática da religião judaica. Os

1
Abby Mann, citado em Vincent Canby, “On the set here, a man and his entourage: Sinatra starts work in city on filming of
“Detective”, New York Times, 18 de out., 1967, p. 37.
2
Ver Thomas S. Szasz, “Legal and Moral Aspects of Homosexuality”, em Judd Marmor (org.), Sexual Inversion, pp. 124-139.
3
Mass. Ann. Laws, cap. 123, par. I, 1957; citado em Frank T. Lindman e Donald M. Mclntyre, Jr. (orgs.) , The Mentally
Disabled and the Law, p. 18.
resultados são também análogos. Na Espanha, o número de pessoas que admitiam que
eram judias declinou extraordinariamente, mas grandes números de indivíduos,
denominados “judaizantes”, praticavam em segredo a sua religião proibida. De forma
semelhante, embora existam poucos homossexuais confessos em nossa sociedade,
muitas pessoas praticam em segredo suas atividades sexuais proibidas. Usualmente se
calcula que pelo menos 10% de homens e mulheres dos Estados Unidos são
homossexuais. Além disso, supõe-se que haja muitos outros que gostariam de participar
da prática herética, mas que se contêm porque temem as consequências e preferem o
conformismo.
A razão para o não-reconhecimento da identidade do homossexual reside nas
penalidades que resultam dessa revelação. O serviço nas Forças Armadas, o emprego em
indústria governamental ou particular, a admissão numa escola ou na universidade —
essas e outras oportunidades para a sobrevivência econômica são usualmente negadas
*
ao homossexual reconhecido. Num artigo a respeito de uma Liga Estudantil Homofila na
Universidade de Colúmbia, Stephanie Harrington nota corretamente que “essa minoria
está trancada... num círculo vicioso (...). Enquanto o Governo federal e os Governos
estaduais acharão difícil ignorar as exigências de direitos civis e liberdades civis para um
movimento organizado cujos participantes estão dispostos à identificação, a maioria dos
homossexuais tende a não se identificar, pelo menos até que suas liberdades civis e seus
direitos civis sejam firmemente estabelecidos. Sob as circunstâncias atuais, são muito
grandes os riscos para a reputação, as carreiras e as famílias. Mesmo alguns
participantes heterossexuais das organizações, homofilas relutam quanta à sua
4
identificação por temerem ser considerados homossexuais por associação”.
No entanto, é equívoco comparar a discriminação atual contra homossexuais à
que se faz contra os negros. O negro, embora antes prejudicado, é hoje reconhecido
como um ser integralmente humano, com um direito incondicional à sua pele escura. O
homossexual, ao contrário, não tem esse status nem o direito às suas práticas e seus
interesses sexuais. Em vez disso, o homossexual é considerado como um objeto
defeituoso — um homem “vítima” de uma doença à qual não tem mais direito do que o
**
heterossexual de ser atingido pela peste.

*
Para documentação a respeito, ver Donald Webster Cory, Homosexuality: A Cross-Cultural Approach, principalmente pp. 394-
406; e The Homosexual in America, principalmente pp. 267-299. O Documento n.° 2, Employment of Homosexuals and Other
Sex Perverts in Government, publicado em 1951 pela U . S . Civil Service Commission, diz, num trecho: “No Governo dos
Estados Unidos, não há lugar para pessoas que violam os padrões aceitos de moralidade (...) os que participam de atos de
homossexualidade ou outras atividades de perversão sexual não são adequadas para emprego pelo Governo Federal”. (Cory, The
Homosexual in America, p. 275.)
4
Stephanie Harrington, “Homosexual sortie; An anonymous crusade”, Village Voice, 25 de maio, 1967, pp. 9-10; p. 9.
**
Esta comparação exige algumas restrições. O fato de ter uma pele com com pigmento escuro é uma condição biológica. O fato
de participar de conduta homossexual é um ato pessoal. Este último exige uma escolha, enquanto que isso não acontece no
primeiro caso. Em outras palavras, os homens brancos podem ou não reconhecer o negro como um ser humano e como ser
politicamente igual; mas o negro não tem escolha quanto à pele negra. De forma semelhante, os heterossexuais podem ou não,
reconhecer o homossexual como ser humano, politicamente igual; no entanto, o homossexual pode escolher participar ou não de
conduta sexual proibida. Em resumo, o homossexual faz uma escolha — escolha divergente — e a sociedade se vinga ao declarar
que é ele “mentalmente doente” e, por isso, incapaz de fazer uma escolha “real”! Se pudesse escolher “livremente” —
“normalmente” — ele escolheria, como todo mundo, ser heterossexual. Esta é a lógica que está atrás de grande parte da retórica
psiquiátrica. O comportamento do paciente é o produto de impulsos e compulsões irresistíveis; o do psiquiatra, de decisões
Aqui está outro paralelo entre a situação do homossexual nos Estados Unidos de
hoje e a do judeu na Espanha do século XV. Assim como o homem com religião judaica
não era considerado inteiramente humano, pois não era cristão — também o
homossexual não é considerado inteiramente humano, pois não é heterossexual. Nos
dois casos, o indivíduo não pode ter o reconhecimento como um ser humano em sua
identidade autêntica e em seu eu — e pelas mesmas razões: os dois destroem as crenças
e os valores do grupo dominante. O judeu, em virtude de seu Judaísmo, se recusa a
autenticar Jesus como o Filho de Deus, e a Igreja Católica Romana como a representante
indiscutível de Deus na Terra. O homem homossexual, em virtude de sua
homossexualidade, se recusa a autenticar a mulher como o objeto sexual desejável, e o
heterossexual como a corporificação indiscutível da normalidade. É por isso que o
homossexual não é reconhecido como possuidor dos mesmos direitos do heterossexual
— assim como o judeu não era reconhecido como integralmente humano em muitas
sociedades cristãs, e os mentalmente doentes não são assim reconhecidos na sociedade
americana atual. Essa injustiça está sendo lentamente reconhecida, como se pode ver
por uma demonstração da Liga Estudantil Homofila “para protestar contra o fato de que
os direitos da Declaração de Independência ainda não foram dados aos cidadãos
5
americanos que são homossexuais”.
O homossexual que procure emigrar para os Estados Unidos verificará que não é
bem-vindo. Examinarei uma decisão de 1967 da Corte Suprema dos Estados Unidos, que
decidiu quanto ao direito de deportar um estrangeiro apenas por ser homossexual, pois
essa decisão comprova a minha tese de que a homossexualidade é uma espécie de
heresia secular (sexual).
O caso é de Clive Michael Boutilier, cidadão canadense, que foi deportado pelo
6
Serviço de Imigração e Naturalização. Como a ordem de deportação foi mantida nas
cortes inferiores, Boutilier apelou para a Corte Suprema. Numa decisão de seis votos a
três, a Corte manteve a ordem.
Boutilier foi admitido nos Estados Unidos, pela primeira vez, em 22 de junho de
1955, com a idade de vinte e um anos. Sua mãe, seu padrasto e três de seus irmãos e
irmãs vivem nos Estados Unidos. “Em 1963, pediu para adquirir a cidadania americana e
apresentou, ao Examinador de Naturalização, uma declaração em que admitia ter sido
preso em Nova York em outubro de 1959, com a acusação de sodomia, mais tarde
7
reduzida a ataque simples e, depois, abandonada por ausência do querelente.”
Até aqui, portanto, Boutilier não tinha sido identificado, de acordo com a lei,
como um homossexual. No entanto, foi suficientemente tolo — pelo menos do ponto de
vista da obtenção de admissão permanente nos Estados Unidos — para admitir que era
homossexual. “Em 1964, o requerente, a pedido do Governo, apresentou outra

livres. A estrutura cognitiva dessa explicação esconde o fato de que suas imagens servem apenas para degradar o paciente como
insano, e exaltar o psiquiatra como sadio.
5
Ibid., p. 10.
6
Boutilier v. Immigration and Naturalization Service, 387 U.S. 118, 1967.
7
Ibid., p. 19.
declaração em que revelava a história completa [sic] de seu comportamento sexual
* 8
anômalo.” Nessa declaração, Boutilier admitia que sua primeira experiência
homossexual ocorrera quando tinha quatorze anos de idade, e que, entre dezesseis e
vinte e um anos “tinha tido relações homossexuais, numa média de três ou quatro vezes
por ano”. Boutilier também afirmava que “antes de sua entrada nos Estados Unidos
tinha tido relações heterossexuais em três ou quatro oportunidades”.
Evidentemente, essa era uma frequência insuficiente de atividade heterossexual
para satisfazer o Governo dos Estados Unidos. Por isso, em 1964 o Governo submeteu
uma declaração “ao Serviço de Saúde Pública quanto à sua opinião a respeito de que o
requerente deve ser excluído, por qualquer razão, no momento de sua entrada nos
9
Estados Unidos”. A razão legal para esse pedido era o parágrafo 212 (a) (4) da Lei de
Imigração e Nacionalização de 1952 (66 Stat. 182, U.S.C. 8, parágrafo 1182 [a] [4]), que
especifica que “os estrangeiros com personalidade psicopática, epilepsia ou deficiência
mental (...) devem ser impedidos de admissão aos Estados Unidos”. A questão proposta
ao Serviço de Saúde Pública era saber se a homossexualidade constitui “personalidade
psicopática”.
O Serviço de Saúde Pública, depois de submeter Boutilier a exame por seus
médicos, emitiu um certificado “declarando que, na época de sua admissão, o
requerente, na opinião dos médicos que o subscrevem, tinha uma condição de classe A,
10
isto é, personalidade psicopática, perversão sexual”. Aceitando esse julgamento dos
médicos e das cortes inferiores, a Corte Suprema observou que “a história da
promulgação da lei indica, sem uma sombra de dúvida, que o Congresso pretendia que a
11
expressão ‘personalidade psicopática’ incluísse os homossexuais como o requerente”.
Como “o Governo verificou que o requerente era homossexual na época de seu ingresso
12
nos Estados Unidos”, segundo a maioria dos juízes sua exclusão está de acordo com as
exigências da lei e deve ser mantida.
Em sua petição à Corte Suprema, Boutilier afirmava, entre outras coisas, que a
seção sob a qual estava sendo excluído “é constitucionalmente deficiente, pois não o
advertiu, no momento de seu ingresso no país, que seu problema sexual poderia levar à
13
sua deportação”. A Corte não aceitou esse argumento. Afirmou que “a exigência
constitucional de advertência razoável não é aplicável a padrões como os estabelecidos
no parágrafo 212 (a) (4) para a admissão de estrangeiros nos Estados Unidos”. De há
muito se aceita que o Congresso tem poder pleno para estabelecer regras para a
admissão de estrangeiros e excluir os que possuem as características que o Congresso

*
Não nos dizem como é que o Governo sabia que essa era realmente a história completa da homossexualidade de Boutilier.
8
Ibid.
9
Ibid., p. 120.
10
Ibid.
11
Ibid.
12
Ibid., p. 122.
13
Ibid., p. 123.
proibiu. Ver o Caso Exclusão de Chinês, U.S. 130, 581 (1899). Aqui, o Congresso
14
determinou que os homossexuais não devem entrar no país”.
O caso de Exclusão de Chineses, aqui citado pela opinião da maioria, tratava de
um apelo à Corte Suprema, discutindo a validade de um Ato do Congresso que proibia a
entrada de trabalhadores chineses nos Estados Unidos. Nessa decisão, a Corte
estabeleceu que “o poder do ramo legislativo do Governo para excluir estrangeiros dos
15
Estados Unidos é um incidente de soberania. (...)”.
Os juízes que apresentaram a opinião no caso da Exclusão dos Chineses citam, e
aprovam, as palavras do Presidente da Corte Suprema, Marshall, que afirmou que “a
16
Jurisdição da nação em seu território é necessariamente exclusiva e absoluta”; e as
palavras de William Leonard Marcy, Secretário de Estado, do Presidente de Pierce, que
afirmou que “toda sociedade possui o direito indiscutível de determinar quem comporá
seus quadros, e esse direito é exercido por todas as nações, tanto na paz quanto na
17
guerra”.
Portanto, pode haver pouca dúvida de que a opinião da maioria da Corte Suprema
no caso Boutilier é legalmente correta. É impossível sustentar que o Congresso não tem
o direito “de excluir estrangeiros do país sempre que, em seu julgamento, o interesse
18
público exija essa exclusão. (...)”. Ao estabelecer quem deve ser excluído de entrada
nos Estados Unidos, no entanto, o Congresso mostra sua inclinação moral. No passado,
depois de ter excluído os trabalhadores chineses, ao mesmo tempo que favorecia o
ingresso de imigrantes ingleses e irlandeses, exprimia sua prevenção contra povos de
cor. As mesmas considerações valem, evidentemente, para as leis de imigração que
*
excluem anarquista, comunistas, bígamos — e homossexuais.
O fato de que a identificação de Boutilier como homossexual exigisse a assistência
de especialistas merece um comentário especial. Será que o médico, nessa situação, tem
o dever moral de informar o sujeito da natureza e do objetivo do exame, bem como das
obrigações do médico diante de seu empregador? Nas sociedades ocidentais, o médico
ocupa uma importante posição de confiança. Ao contrário do que ocorre com o policial,
o inspetor de impostos, ou o promotor público, o médico é considerado como um aliado
19
do indivíduo doente — e não como o agente de um Estado poderoso.

14
Ibid., p. 124.
15
Chinese Exclusion case, 130 U.S. 581, 1889; p. 581.
16
Ibid., p. 604.
17
Ibid., p. 607.
18
Ibid., p. 606.
*
Portanto, é precisamente o emprego do direito soberano de uma nação para estabelecer quem deve compor os seus quadros que
melhor revela o caráter moral e político da nação. Quando, por exemplo, foi formada a República Americana, a nação retirou a
cidadania dos seus habitantes de cor negra e de cor vermelha, atribuindo-a- aos primeiros em 1865 e, aos outros, apenas em
1924. Certamente, existe uma importante diferença entre a situação do índio americano ou do negro em 1776 e a do estrangeiro
homossexual em 1967. Num caso, trata-se de definir critérios para participação num grupo recentemente organizado; no outro,
estabelecer regras para a admissão num grupo já estabelecido. Especificamente, no caso Boutilier, trata-se de conceder cidadania
a um imigrante. O que desejo notar aqui é que, quando um país tem um programa bem definido de imigração, seus regulamentos
formam uma espécie de “teste projetivo” moral e político de seu caráter nacional; mostrarão que tipo de pessoas deseja
acrescentar ao seu corpo político, e que tipo deseja excluir dele.
19
Ver Thomas S. Szasz, Psychiatric Justice, especialmente pp. 56-82 e 264-272.
Disso decorre, portanto, que sempre que o médico represente um interesse
diverso do interesse da pessoa que examina, esta será enganada, a não ser que se
corrijam suas suposições a respeito da situação. Em outras palavras, os médicos que
examinaram Boutilier para o Governo tinham uma escolha ao dizer a ele que: 1) eram
agentes do Governo, encarregados de verificar se Boutilier era ou não homossexual; 2)
se Boutilier fosse homossexual, deveriam informar ao seu empregador; 3) se dissessem
que Boutilier era homossexual, este seria impedido de entrar nos Estados Unidos; 4) se,
considerando essas circunstâncias, Boutilier desejasse incriminar-se, poderia fazê-lo.
Evidentemente, não sei se os médicos deram, ou não, essas opções a Boutilier. Se não o
fizeram, enganaram seu “paciente”.
Deixando de lado a imoralidade desse tipo de exame “médico”, é importante
notar que o exame de Boutilier por médicos do Serviço de Saúde Pública e seu relatório
20
eram apenas gestos num ritual pseudocientífico. Em primeiro lugar, o exame não
poderia ter um objetivo racionalmente válido: Boutilier já tinha admitido que era
homossexual; como é que o seu “exame médico” poderia revelar outra coisa? Em
segundo lugar, o relatório apenas autenticava, com uma assinatura oficial, médica, o que
a Corte já sabia: a homossexualidade já tinha sido definida como “perversão sexual” e
“personalidade psicopática” pelas repartições adequadas no Governo dos Estados
Unidos; como é que os “médicos examinadores” poderiam relatar outra coisa?
Apesar disso, pode-se argumentar que, tal como ocorre com a febre tifoide, a
homossexualidade é um diagnóstico médico, e que a responsabilidade moral do médico
para o uso desse diagnóstico é a mesma que para qualquer outro cidadão. Não posso
concordar com essa opinião. É o médico, e não o cidadão leigo, que faz o diagnóstico;
por isso, sua responsabilidade pelo seu uso, como o do policial pelo uso de uma arma, é
infinitamente maior do que a do observador.
O argumento de que a homossexualidade é um diagnóstico médico é errado
ainda de outro ponto de vista. Os médicos que examinaram Boutilier não foram
chamados para dar um diagnóstico, mas para identificar uma pessoa que poderia ser
deportada. Essa não é apenas minha opinião pessoal: é também a interpretação dos
juízes que deram a opinião da maioria na Corte. Opondo-se aos que sustentariam que
personalidade psicopática é um termo muito vago, a Corte sustentou que: “É possível
que, como sustentam alguns, ‘personalidade psicopática’ seja um termo médico
ambíguo, incluindo várias e distintas doenças (...). Mas o que se examina aqui é o que o
Congresso pretendeu, não o que diferentes psiquiatras possam pensar. O Congresso não
estava estabelecendo um exame clínico, mas um padrão de exclusão que declarou incluir
21
os que têm características homossexuais e de perversão.” (Os grifos são meus.)
Portanto, não se esperava que os médicos que examinaram Boutilier e relataram
seus resultados ao Governo fizessem um diagnóstico, mas, ao contrário, decidissem se se
ajustava a um “padrão de exclusão”, estabelecido pelo Congresso. Será que essa é uma

20
Ver este capítulo, p. . . ., e capítulo 14, especialmente pp.
21
Ver este capítulo, p. 283 e capítulo 14, especialmente pp. 303-306.
atividade legítima para médicos? Se, como parece, apenas rubricaram uma decisão
tomada por pessoal não-médico, qual era sua função real? A resposta a esta pergunta
lança maior luz sobre o status degradado do homossexual perante a lei americana.
Num estudo jurídico sobre o status do estrangeiro homossexual, Byrne e
22
Mulligan analisam os exames médicos desses indivíduos e concluem que são
perfunctórios. O que deixam de perceber, no entanto, é que esses exames não
pretendem descobrir fatos novos; em resumo, não são atos técnicos, mas rituais
*
simbólicos. Por isso, não percebem a posição real e social do estrangeiro homossexual
diante de seus examinadores médicos. Byrne e Mulligan explicam que “nos processos de
deportação, os funcionários de exames especiais muitas vezes exigem pessoal médico do
Serviço de Saúde Pública para dar uma opinião quanto ao fato de um estrangeiro ter
‘personalidade psicopática’ por ocasião do ingresso no país. Essa “opinião” pode ser
baseada, não em exame médico, mas apenas em provas, admitidas ou descobertas, de
comportamento homossexual antes do ingresso no país. Em tais casos, equivale à
23
ausência de qualquer exame médico”. (Os grifos são meus.)
Naquilo que aqui dizem Byrne e Mulligan, está implícita a suposição de que a
homossexualidade é uma doença. Afinal, apenas se for uma doença é razoável sustentar
que há necessidade de médicos para seu diagnóstico. Ao afirmar que em “tais casos” —
isto é, no exame de imigrantes considerados homossexuais — o exame psiquiátrico
apenas pela história do indivíduo equivale à ausência de exame, Byrne e Mulligan
tacitamente reconhecem que o exame por outros métodos psiquiátricos pode constituir
um exame adequado. Rejeito tanto a suposição de que a homossexualidade seja uma
doença médica quanto a opinião de que os métodos aceitos de exame psiquiátrico sejam
uma espécie de exame médico. O conceito de doença da homossexualidade foi
24
examinado criticamente em outro capítulo. Quanto à natureza dos exames
psiquiátricos, devemos lembrar que, na medida em que consistem apenas em ouvir uma
pessoa denominada “paciente” e falar com ela ou em aplicar testes psicológicos, nunca
são suficientes para verificar se uma pessoa tem ou não uma doença física; nem são
adequados para verificar, para objetivos legais, se a pessoa pratica ou não certo tipo de
25
conduta. Evidentemente, a pessoa pode admitir, por exemplo, que é homossexual; mas
isso não é prova de que o seja, assim como o fato de negá-lo não é prova de que não o
seja. Em qualquer exame de pessoa inferior por uma autoridade superior, devemos
supor que a primeira possa modelar suas respostas de acordo com as expectativas do
segundo; em resumo, que possa mentir.
Na medida em que acreditamos que a homossexualidade seja uma doença,
devemos exigir médicos para seu diagnóstico- oficial. Byrne e Mulligan citam opiniões

22
Thomas R. Byrne, Jr., e Francis M. Mulligan, “Psychopathic personality and ‘sexual deviation’: Medical terms or legal catch-
alls. Analysis of the status of the homosexual alien”, Temple Law Quart., 40; 328-347 (primavera-verão), 1967.
*
A distinção entre ações técnicas e rituais é discutida integralmente no capítulo 14.
23
Ibid., p. 335.
24
Ver capítulo 10.
25
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz. The Ethics of Psychoanalysis, especialmente pp. 11-45.
jurídicas para indicar que essa é a suposição fundamental do Direito. Por exemplo, um
homem chamado LeBlanc foi deportado porque havia “um atestado de médicos do
Serviço de Saúde Pública que não o examinaram pessoalmente, mas que se valeram
26
apenas de um relatório militar daquilo que era confessado pelo requerente”. O tribunal
distrital, a que LeBlanc apelou, sustentou, penso que ironicamente, “que a lei de
deportação supostamente exigia um exame médico pessoal [sic] dos requerentes e
também que esse exame era necessário para obedecer aos padrões mínimos do
27
processo legal”. Por isso, LeBlanc teve o seu “direita constitucional” de ser
pessoalmente examinado antes de ser deportado! Esse tipo de ênfase no processo
formal devido esquece completamente o caráter ritualista do exame que apresenta para
a proteção de dignidades e direitos individuais.
Suponha-se que o Congresso aprovasse uma lei que impedisse a imigração de
pessoas que sofressem da doença mental denominada “feitiçaria”. Será que os tribunais
ficariam satisfeitos com a exigência de processo legal desde que o indivíduo fosse
diagnosticado, por um médico, como feiticeiro? Faria alguma diferença o fato de esse
diagnóstico ser baseado no reconhecimento da pessoa ou em “exame pessoal” por
médicos? Evidentemente, é absurdo ter preocupação quanto ao que constitui processo
legal para identificar feiticeiros sem examinar a categoria de feitiçaria. Acredito que seja
igualmente absurdo considerar o que constitui o processo legal para identificar
homossexuais (ou qualquer tipo de “doente mental”) sem examinar a categoria de
homossexualidade (ou doença mental). O fato de não examinar essas categorias só pode
significar que os que participam de sua utilização social — como legisladores, juízes e
psiquiatras — as consideram como cognitivamente válidas, aprovam seus usos
estratégicos, ou ambas as coisas. Portanto, o observador deve escolher entre aceitar,
como válida, a categoria de “homossexual psicopata”, como o fazem Byrne, Mulligan e a
maioria dos especialistas contemporâneos em Direito e Psiquiatria, e procurar métodos
fidedignos para identificar tais pessoas, ou, como eu, rejeitar a categoria como não-
válida, e recusar aplicar esse rótulo ;a quem quer que seja.
Embora a lei que justificou a deportação de Boutilier não se aplique à conduta
posterior ao ingresso nos Estados Unidos (de outra forma, a heterossexualidade nos
Estados Unidos seria uma defesa adequada contra a deportação, o que não é verdade),
Byrne e Mulligan acentuam, muito corretamente, que “o Serviço de Naturalização e
Imigração não pergunta a todos os estrangeiros que entram no país se tiveram conduta
28
homossexual antes de chegarem”. Ao contrário, o Serviço se vale de atividade posterior
ao ingresso no país como forma de identificar homossexuais. “Como a atividade depois
do ingresso no país desempenha um papel tão importante no processo de deportação”,
Byrne e Mulligan sugerem que “o processo adequado exigiria que o estrangeiro fosse

26
Byrne e Mulligan, p. 336.
27
Ibid.
28
Ibid., p. 342.
advertido de que o comportamento homossexual nos Estados Unidos pode levar à
29
deportação”.
Essa parece uma proposta razoável. Na verdade, é bem evidente: se o Governo
dos Estados Unidos desejasse saber se os estrangeiros imigrantes são homossexuais,
deveria perguntar isso a eles, e não espioná-los. Ao apresentar sua solução de senso
comum, Byrne e Mulligan demonstram sua incompreensão fundamental do problema
que enfrentam: consideram o homossexual, ou o indivíduo assim considerado, como
uma pessoa, enquanto que o Governo o considera como uma coisa. Isso fica claro
através da maneira pela qual as autoridades de imigração tratam o indivíduo suspeito de
homossexualidade. Armam uma cilada — mais ou menos como o Deus dos antigos
hebreus armou uma cilada para os homossexuais de Sodoma — e, depois de apanhá-lo,
tratam dele como se ele fosse uma ameaça que justificasse qualquer método de
repressão. Se as sugestões de Byrne e Mulligan fossem seguidas, o Governo precisaria
tratar o homossexual da mesma forma que trata qualquer outro ser humano. Mas nesse
caso teria desaparecido o fundamento mesmo para a sua expulsão do país.
Qual seria o efeito da advertência aos imigrantes de que, nos Estados Unidos, a
conduta homossexual pode levar à deportação? Em primeiro lugar, poderia impedir que
alguns indivíduos apresentassem essa conduta. Evidentemente, os nossos legisladores
não desejam estimular isso. Em segundo lugar, poderia fazer com que alguns indivíduos
que apresentam comportamento homossexual deixassem de fazê-lo em locais públicos
ou de outras formas se denunciassem diante das leis que governam o comportamento
sexual. Evidentemente, os nossos legisladores também não desejam estimular isso. Em
terceiro lugar, como o notam Byrne e Mulligan, “se os estrangeiros que desejam vir para
os Estados Unidos são advertidos de que podem ser deportados [por conduta
30
homossexual], podem decidir ficar em seus países ou emigrar para outro lugar”.
Evidentemente, isso também é alguma coisa que os nossos legisladores não desejam. A
conclusão inevitável é que desejam perseguir o homossexual. Em primeiro lugar, não os
desestimulam para ingressar no país, pois não os advertem; depois, perseguem o
homossexual, ao invadir a sua intimidade, e o degradam ao lançar rótulos que o
estigmatizam; finalmente, castigam-no, ao expulsá-lo do país. Não se pode duvidar que o
*
castigo assim imposto seja demasiadamente severo. Boutilier, por exemplo, tinha
morado nos Estados Unidos durante dez anos — praticamente toda a sua vida adulta —
antes de: ser deportado. Tocados por esse mau tratamento, Byrne e Mulligan notam que
“se, durante sua residência no país, Boutilier soubesse que sua conduta antes de vir para
os Estados Unidos, poderia provocar sua deportação, poderia ter evitado a deportação,
saindo antes do país e, assim, teria mais tempo para ganhar a vida em outro lugar.
Poderia ter continuado a residir nos Estados Unidos, vivendo uma vida que não o exporia

29
Ibid.
30
Ibid., p. 343.
*
Numa decisão de 1951, o Juiz Jackson exprimiu a opinião de que a deportação eqüivalia a um processo criminal. Caracterizou a
deportação como “uma sentença de exílio pelo resto da vida” e “uma penalidade selvagem”. (Byrne e Mulligan, “Psychopathic
personality” and sexual deviation”: Medicai terms or legal carch-alls”, Temple Law Quart. 40: 328-347 [primavera-verão], 1967;
p. 347.)
ao exame oficial. Em vez disso, não sabendo que poderia ser deportado, requereu
31
naturalização”. Parece improvável que o Congresso que promulgou a lei sob a qual os
homossexuais são deportados não soubesse disso. Dizer aos legisladores americanos que
são severos com os homossexuais parece o mesmo que dizer aos inquisidores, que são
severos com os heréticos. Evidentemente o são. Acreditam que esse é seu dever médico-
patriótico.
A incompreensão bem-intencionada de Byrne e Mulligan quanto à posição real e
quanto à categoria do homossexual aparece no último parágrafo de seu artigo. Escrevem
que “o fato de o contrato social entre soberania e estrangeiros que vêm para o país
precisar ser o mesmo, ou não, que o aplicado a cidadãos comuns deve depender de uma
avaliação cuidadosa de prioridades de valor, onde se incluem justiça, bem-estar nacional,
tratamento recíproco de cidadãos americanos no estrangeiro, etc. No entanto, o menos
que se pode exigir é que os estrangeiros que chegam ao país tenham uma observação
32
tão específica quanto possível dos termos de seu contrato”.
O fato é que o estrangeiro que chega ao país tem uma observação dos termos de
seu contrato, e a respeito de todos os aspectos, menos um: não são especificadas as
consequências exatas do fato de violar a ética de saúde mental dos Estados Unidos.
Através da “Informação Geral para os Imigrantes”, sabe que não deve ter uma doença
contagiosa, ou uma doença ou deficiência mental; não ser viciado em drogas, nem ser
*
membro do Partido Comunista, e assim por diante. O que não fica sabendo é que deve
ser um dedicado heterossexual, a fim de não ser classificado como homossexual
psicopata; que deve acreditar na realidade social tal como esta é verificada pelos
psiquiatras, para não ser classificado como psicótico. No entanto, quantos americanos
natos conhecem esse aspecto de sua relação com seu Governo? Além disso, que tipo de
“observação específica (...) sobre os termos de seu contrato” quanto a
“homossexualidade” e “personalidade psicopática” poderiam receber os estrangeiros
que chegam aos Estados Unidos? Na verdade, precisariam saber que a lei americana só
reconhece pessoas “mentalmente sadias” como seres humanos, e por isso restringe suas
obrigações a ser governado por contrato — onde se inclui esse grande contrato chamado
Constituição — a essas pessoas; além disso, que considera e trata indivíduos
“mentalmente doentes” — onde se incluem homossexuais, psicopatas e, na verdade,
quem quer que possa receber um rótulo psiquiátrico — como semi-humanos, seres
infantis, incapazes de atuar como pessoas responsáveis numa relação social.
A opinião da Corte Suprema no caso Boutilier reflete um ponto de vista, quanto
aos perigos que as “personalidades psicopáticas”, e principalmente os “homossexuais”,

31
Ibid., p. 344.
32
Ibid., p. 347.
*
“O objetivo geral da Lei de Imigração e Nacionalidade é proteger a saúde, o bem-estar e a segurança dos Estados Unidos. A lei
americana proíbe a concessão de vistos a quem quer que tenha doença contagiosa, por exemplo, tuberculose; que tenha tido
doença ou deficiência mental; seja viciado em drogas ou traficantes; tenha cometido um ato criminoso, onde se incluem alguns
delitos contra a moral pública; tenha sido membro ou colaborador do Partido Comunista ou de qualquer organização a este
ligada; seja analfabeto; tenha probabilidade de tornar-se um encargo social.” (Dept. of State, Foreign Service of the United
States, Gen. Inf. Sheet for Immigrants [Form DSL-852, jan., 1964]).
supostamente representam para a nossa sociedade, que é muito semelhante aos antigos
pontos de vista sobre os perigos que bruxas e judeus representariam para sociedades
33
mais antigas. Se essa opinião da maioria é provinciana, a opinião dissidente dos Juízes
Douglas e Fortas o é ainda mais. Isso não é surpreendente. Tanto Douglas quanto Fortas,
em suas opiniões judiciais anteriores e em seu trabalho jurídico, apresentaram opiniões
muito semelhantes às do Movimento Americano de Saúde Mental. Fortas foi designado,
pelo Tribunal, como defensor no célebre caso Durham, onde se estabeleceu o
34
precedente de padrão “amplo” de irresponsabilidade criminal. Douglas apresentou
uma opinião semelhante no caso Robinson v. Califórnia, onde sustentou que o vício em
drogas era uma doença e defendeu a hospitalização psiquiátrica involuntária de
35
viciados.
Ironicamente, no caso Boutilier, Douglas e Fortas fundamentam sua divergência
na proposição de que “a expressão personalidade psicopática é uma expressão pérfida,
como comunista e, antes disso, bolchevista. Um rótulo desse tipo, quando usado sem
crítica, só pode indicar uma pessoa pouco aceita. É excessivamente vaga, pelos padrões
36
constitucionais, para a imposição de penas ou castigo”. Portanto, Douglas e Fortas
admitem e reconhecem que “personalidade psicopática” é um rótulo com o qual os
psiquiatras podem sujar a reputação de uma pessoa; dizem que “personalidade
37
psicopática é tão amplo e vago que dificilmente pode ser mais do que um vitupério”.
Certamente, “personalidade psicopática” é uma expressão “ampla” e “pérfida”.
Mas será que é mais pérfida ou ampla, para a definição, do que outras expressões — por
exemplo, “doença mental” e “vício”? A noção de “doença mental”, fundamental para a
regra de Durham, e aceita por Fortas, é certamente mais pérfida e vaga do que o
38
conceito de homossexualidade. De forma semelhante, a noção de “vício”, fundamental
no caso Robinson, e aceita por Douglas, é também mais pérfida e vaga do que o conceito
*
de homossexualidade.
Douglas e Fortas são também incoerentes em seu conceito de castigo.
Consideram o fato de impedir uma pessoa de imigrar para os Estados Unidos como um
castigo — embora a Corte Suprema tenha sustentado, e Donglas e Fortas não discordem

33
Ver capítulos 2 e 4; também Jack C. Landau, “GI justice: A 2d class system”, Syracuse (N.Y.) Hetald-American, 10 de set.,
1967, p. 69, e “30,000 GI’s 'branded’ by 'less than honorable’ discharges”, Syracuse (N.Y.) Hetald-Journal, 14 de set., 1967, p.
39.
34
Abe Fortas, “Implications of Durham's case”, Amer. J. Psychiat. 133: 577-582 (jan.), 1957.
35
William O. Douglas, “Concurring opinion”, em Robinson v. Califórnia, 370 U.S. 660, 1961; pp. 668-678.
36
Boutilier v. Immigration and Naturalization Service, p. 125.
37
Ibid., p. 132.
38
Ver, por exemplo, Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness, ou capítulo 8 deste volume.
*
Toda a decisão Robinson, mas principalmente a opinião concordante de Douglas, pode ser lida como a réplica moderna e
“científica” da opinião de um tribunal medieval num processo de bruxaria. O vício em drogas não é definido, mas, apesar disso,
é considerado uma doença, cujo tratamento adequado pode exigir, e integralmente justificar, a prisão indeterminada. Segundo
Douglas, “o viciado é uma pessoa doente. Evidentemente, pode ser detido para tratamento ou para a proteção da sociedade. O
castigo cruel e extraordinário resulta, não da detenção, mas da condenação do viciado por um crime (...) uma acusação por vício,
com o estigma resultante e o dano irreparável ao bom nome do acusado, não pode ser justificado como um meio de proteger a
sociedade onde uma detenção civil seria equivalente (...) Se os viciados podem ser castigados por seu vício, também os doentes
mentais podem ser castigados por sua doença. Cada um deles tem uma doença e cada um deve ser tratado como pessoa doente”.
(Robinson v. Califórnia, p. 674.).
explicitamente disso, que “o poder do Legislativo para excluir estrangeiros dos Estados
39
Unidos é um incidente da soberania”. Ao mesmo tempo, não consideram como castigo
o encarceramento de um cidadão americano inocente num hospital psiquiátrico, ainda
que por toda a vida — pois esse confinamento “pretende” ajudar o suposto paciente!
Depois de se recusarem a enfrentar as realidades sociais de hospitalização
psiquiátrica involuntária, os Juízes Douglas e Fortas passam a apresentar um argumento
totalmente desfocado contra a decisão Boutilier. Escrevem que “todos sabem que, neste
século, os homossexuais se salientaram em nosso serviço público — tanto no Congresso
quanto no Executivo — e apresentaram serviços distintos. Portanto, não é crível que o
Congresso tenha pretendido deportar todos os que apresentem um desvio sexual,
independentemente da lisura de sua conduta social, de seu trabalho criativo e do valor
40
de sua contribuição para a sociedade.”
No entanto, não é verdade que os judeus espanhóis e alemães ascenderam no
serviço público e nas atividades econômicas e profissionais — e, apesar disso, foram
perseguidos por serem judeus? Não é verdade que freiras e bispos tiveram vidas
virtuosas — e apesar disso foram queimados por sua heresia? E não é verdade que os
negros americanos tiveram vidas irrepreensíveis, ajudando a construir seu país — e,
apesar disso, foram linchados por sua negritude? Em cada uma dessas situações, e em
outras semelhantes, a vítima não é perseguida porque seja perigosa ou inferior; ao
contrário, o agressor declara que é perigosa ou inferior a fim de justificar sua agressão
*
como autodefesa.
A história da Inquisição e do anti-semitismo sistemático não deixa dúvida de que
os bodes expiatórios oficiais da sociedade são perseguidos, não porque tenham
cometido atos proibidos, ou sequer porque possam cometer tais atos, mas porque são
considerados “inimigos internos”. A destruição desses inimigos internos é um dever
patriótico e um ato moralmente tão meritório quanto destruir inimigos externos e opor-
se a eles. Portanto, é mais do que apenas fútil — absurdo ou até pior — tentar provar o
valor moral ou a utilidade social de determinadas pessoas, uma vez que se verifique que
são participantes de uma classe de bodes expiatórios oficialmente indicados. Heinrich
Heine e Albert Einstein não melhoraram a posição dos judeus na Alemanha nazista;
quando nada, chegaram a piorá-la. Os perseguidores às vezes lidam impiedosamente
com uma vítima indecisa e cheia de culpa, que se humilha diante de seus opressores; o
que não podem perdoar é uma vítima inatacável e virtuosa, cuja inocência é uma ofensa
intolerável aos seus atormentadores e que, por isso, precisa ser destruída
impiedosamente. Em resumo, os homens obedecem à Lei, ou não obedecem a ela.

39
Chinese Exclusion Case, p. 581.
40
Boutilier v. Immigration and Naturalization Service, p. 129.
*
Os argumentos que Douvlas e Fortas apresentam em seu esforço mal orientado para proteger “bons” homossexuais equivalem
ao argumento trágico dos judeus alemães que procuraram livrar-se do anti-semitismo nazista a partir de patriotismo judaico
comprovado durante a Primeira Grande Guerra ou de outras contribuições judaicas à cultura alemã. Esses argumentos não são
práticos nem morais. Na realidade, não conseguem proteger a vitima, e, talvez, aumentem ainda mais as paixões contra ela.
Eticamente, são inadequados, pois, ao defender homossexuais "criativos" ou judeus patrióticos, tacitamente afirmam que é
adequado perseguir homossexuais "não-criativos" ou judeus não-patrióticos.
Senão obedecem a ela, a vítima é castigada, não por aquilo que fez, mas por aquilo que
é. Nossas práticas de saúde mental representam uma retomada maciça desse princípio
coletivista e sádico de controle social.
Essa decisão da Corte Suprema é significativa, não apenas pela maneira através da
qual simbolicamente abriga o homossexual como o bode expiatório da sociedade, mas
também pelo tipo de “confirmação” científica que utiliza para fazer isso. Muitas
autoridades eminentes se manifestaram a respeito da homossexualidade; apesar disso,
nesse espectro de opiniões disponíveis, a Corte Suprema escolheu os julgamentos de
empregados médicos e psiquiátricos do Governo dos Estados Unidos, isto é, que já são
parte na ação colocada diante dos juízes. Se um caso a ser julgado pela Corte se referisse
a liberdade de religião ou de imprensa, a Corte poderia ter procurado autoridades de
todos os tipos, vivas e mortas, americanas e estrangeiras. Podemos apenas perguntar,
especulativamente, por que não o fez nesse caso. Talvez tivesse medo do que poderia
encontrar; especificamente, talvez tivesse medo de não poder esconder, atrás de uma
retórica de diagnóstico psiquiátrico, que não está sendo chamada para avaliar um
homem do ponto de vista médico, mas para desumanizá-lo legalmente.
Se a Corte procurasse sua informação a respeito de homossexualidade em
Lindner, e não no Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, poderia descobrir que
em nossa sociedade “...o não-conformismo e a doença mental se tomaram sinônimos
(...)”. Por isso, o rebelde, e protestante — em resumo, o não-conformista — é
considerado doente e sujeito a todas as artes que a ciência pode reunir ou inventar para
curá-lo de sua “doença” (...) Portanto, declarar o homossexual mentalmente doente o
coloca no âmbito dessa opinião regressiva e na amplitude de todas as “terapias”
inventadas para assegurar seu conformismo. Pode aparecer disfarçada como uma dádiva
para o invertido c um modificação humanitária de ódios e preconceitos muito antigos; na
realidade, é apenas outra forma de conseguir o conformismo — agora na área do
comportamento sexual — exigido por instituições em perigoso processo de
41
petríficação.
Ou tivesse a Corte procurado em Sartre, teria encontrado que “relações humanas
são possíveis entre um homem e uma mulher. Os homossexuais podem amar, dar, elevar
outros e elevar a si mesmos. Certamente é melhor ir para a cama com um namorado do
42
que viajar para a Alemanha nazista quando a França foi derrotada e estrangulada”.
Mas opiniões como as de Lindner ou Sartre não teriam confirmado a decisão da
maioria da Corte em seu conceito do homossexual como um psicopata socialmente
perigoso, nem a da minoria em seu conceito do homossexual como um homem doente,
que sofre de uma doença amedrontadora.
A decisão da Corte Suprema no caso Boutilier exemplifica a opinião de Sartre de
que “o homossexual precisa continuar um objeto, uma flor, um inseto, um habitante da

41
Robert Lindner, Must You Conform?, p. 65.
42
Jean-Paul Sartre, Saint Genét: Actor and Martyr, p. 225.
antiga Sodoma ou do planeta Urano, um autômato que dança na luz da ribalta — tudo o
que você quiser, menos meu semelhante, menos minha imagem, menos eu mesmo.
Afinal, é preciso escolher: se cada homem é um homem integral, essa ovelha negra deve
43
ser apenas uma pedra, ou sem eu”. É obsceno falar do homossexual como de uma
pessoa doente que estamos tentando ajudar, enquanto, ao tratá-la como coisa
defeituosa, demonstramos através de nossas ações que desejamos que seja um objeto
útil, e não incômodo, para nós; e que, portanto, não iremos tolerar que deseje ser uma
pessoa autêntica para si mesma.
A história da lei que justificou a deportação de Boutilier dá mais confirmação para
a opinião de que o homossexual é um bode expiatório. A opinião divergente na Corte
afirmou que “a determinação para exclusão de pessoas com personalidade psicológica
[sic] substituiu a seção da Lei 39 de 1917, reg. 875, que determinava a exclusão de
44
pessoas com inferioridade psicopática constitucional”. O propósito dessa cláusula era
impedir a entrada de “pessoas com traços médicos que prejudicariam o povo dos
Estados Unidos se tais traços fossem acrescentados aos que, em nosso país, têm a
45
infelicidade de sofrer com eles”. Esta afirmação, que nossos legisladores e juízes
discriminam contra homossexuais, na crença de que estão aplicando os resultados de
uma ciência psiquiátrica moderna e liberal na criação de um programa para o bem-estar
nacional, faz disso um erro ainda mais monstruoso.
No entanto, é possível que eu esteja usando inadequadamente a palavra “erro”.
Existem razões para acreditar que aqueles que estabelecem esse tipo de legislação e
aqueles que a impõem sabem muito bem o que é que estão fazendo. Quando a lei de
imigração com a qual Boutilier foi expulso do país estava sendo examinada no
Congresso, em resposta ao “pedido da Casa quanto à sua opinião sobre o novo
regulamento”, o Serviço de Saúde Pública observou que: “as condições classificadas no
grupo de personalidades psicopáticas são, na realidade, perturbações da personalidade
(...) os indivíduos com essa perturbação podem manifestar uma perturbação de
tendências básicas de personalidade, ou são pessoas fundamentalmente doentes quanto
46
à sociedade e à cultura predominante”. (Os grifos são meus.)
Suponho que tudo isso seja um reconhecimento manifesto de que o não-
conformismo social é considerado uma doença; que os médicos empregados pelo
Governo dos Estados Unidos têm o poder de fazer diagnósticos dessa doença; que o
Congresso pode impor castigos específicos para pessoas que sofrem dessa doença; que a
Corte Suprema irá legitimar a constitucionalidade dessa legislação discriminatória,
isolando para a repressão indivíduos “que sofrem” de doença específica ou são assim
considerados. Em resumo, esse é um tipo de caça médica às feiticeiras, onde os médicos
perseguem os “pacientes” por causa de suas supostas ou reais heresias médicas.
Portanto, o médico substituiu o sacerdote, e o paciente substituiu a feiticeira, no drama

43
Sartre, p. 587.
44
Boutilier v. Immigration and Naturalization Service, p. 133.
45
Ibid.
46
Ibid., pp. 134-135.
da perpétua luta da sociedade para destruir precisamente as características humanas
que, ao diferenciar os homens de seus semelhantes, identificam as pessoas como
indivíduos e não como participantes do rebanho.
14
A EXPULSÃO DO MAL

As perversões do princípio do sacrifício (purgação por bode


expiatório, congregação por segregação) são a constante
tentação das sociedades humanas* cujas ordens são
construídas por uma espécie de superioridade animal
versada nas formas de ação simbólica.
1
Kenneth Burke

Sustentei que tanto a feiticeira medieval quanto o doente mental contemporâneo são os
bodes expiatórios da sociedade. Ao sacrificar alguns de seus membros, a comunidade
procura “purificar-se” e assim manter sua integridade e sua sobrevivência. Nessa tese
está implícita a premissa de que as comunidades humanas muitas vezes precisam
exprimir suas frustrações nos bodes expiatórios. Qual a prova para esta suposição? E
quais são as funções sociais e psicológicas preenchidas pela destruição dos bodes
expiatórios? Neste capítulo, apresentarei algumas respostas a estas perguntas.
A destruição ritual de homens e animais é um costume muito difundido em povos
primitivos. Segundo Frazer, “a noção de que podemos transferir nossa culpa e nossos
sofrimentos a algum outro ser que os suportará é conhecida pela mente selvagem.
Decorre de uma confusão muito evidente entre o físico e o mental, entre o material e o
imaterial. Como é possível passar uma carga de madeira, de pedras ou de qualquer outra
coisa, de nossas costas para as costas de outra pessoa, o selvagem imagina que é
igualmente possível passar o peso de suas dores e sofrimentos para outra pessoa, e que
esta os sofrerá em seu lugar. Age do acordo com essa ideia, e disso resulta um sem-
número de recursos inamistosos para lançar sobre outro um problema que um homem
2
não deseja enfrentar”.
As descrições antropológicas apresentam muitos desses “recursos inamistosos”.
Um costume dos antigos hebreus é um dos mais conhecidos exemplos do ritual de
*
transferência de culpa pessoal para um bode expiatório. Refiro-me à cerimônia do Yom
Kippur, o maior dia santo hebraico. Quando havia o templo em Jerusalém, o bode

1
Kenneth Burke, “Interaction: III. Dramatism”, em David L. Sills (org.), International Encyclopedia of the Social Sciences, Vol.
7, pp. 445-452; p. 451.
2
James George Frazer, The Golden Bough, p. 539.
*
O termo inglês scapegoat significa que, por seu intermédio, o homem foge da culpa e do pecado; o termo é uma contração de
“escape goat”. (Wilfred Funk, Word Origins, p. 276.) [Em português, o sentido é mais direto: expiar significa como em latin,
sofrer, purificar — bode expiatório é o que sofre por nós.]
expiatório era um bode real. Seu dever era ser a corporificação, o símbolo, de todos os
pecados que o povo de Israel tinha cometido no ano anterior, e levar esses pecados para
fora da comunidade. Lemos no Levítico que “havendo pois acabado de expiar o
santuário, e a tenda da congregação, e o altar, então fará chegar o bode vivo; e Aarão
porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ele confessará todas as
iniquidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, segundo todos os seus
pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um
homem designado para isso. Assim aquele bode levará sobre si todas as iniquidades
3
deles à terra solitária; e ele enviará o bode ao deserto”.
O mesmo tema se repete — mas com a variação significativa de que o bode
expiatório é uma pessoa, não um bode — em Isaías: “Quem deu crédito ao que nós
ouvimos? E a quem foi revelado o braço do senhor? E ele cresceu como arbusto perante
ele, e como raiz que sai de uma terra sequiosa; ele não tem beleza nem formosura, e
vimo-lo, e não tem parecença do que era, e por isso não fizemos caso dele. Ele era
desprezado, e o mais indigno dos homens, um homem de dores, e experimentado nos
sofrimentos; e como um de quem os homens escondiam o rosto era desprezado, e não
fizemos dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e
as nossas dores levou sobre si (...) e foi ferido pelas nossas transgressões, pulverizado
pelas nossas iniquidades; o castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre ele, e pelas suas
pisaduras fomos sarados. Todos nós andamos desgarrados como ovelhas; e o Senhor fez
4
cair sobre ele a iniquidade de nós todos”.
Tais passagens indicam a ética cristã, pregada mas não praticada, de que é melhor
sofrer um erro do que praticá-lo, é melhor ser vítima do que agressor. Prenunciam a
5
lenda de Jesus; o mais ilustre bode expiatório da humanidade, que sofreu por todos e
*
redimiu todos os homens por todos os tempos. Estas imagens dos homens bons
sofrendo pelos maus, embora sem dúvida elevadas em seus objetivos, provavelmente
fizeram pouco bem, e talvez muito mal para a humanidade. É inútil exortar os homens ao
auto-sacrifício. Na verdade, quanto mais o bode expiatório sofre e quanto mais culpa
aceita para si, mais culpa pode criar naqueles que testemunham o sofrimento, e mais
penosa a tarefa que impõe aos que desejam justificar seu sacrifício. Assim, o Cristianismo
exige do homem mais do que aquilo que pode dar. Em alguns poucos inspira santidade;
**
em muitos, frequentemente desenvolve a intolerância. O objetivo moral do

3
Levítico, 16: 20-22.
4
Isaías, 53: 1-6.
5
Ver também Isaías, 53: 7-12.
*
Esta passagem das Escrituras também antecipa o destino dos judeus, què escolheram o papel de bode expiatório e foram
colocados nele. O sionismo pode talvez ser visto como, entre outras coisas, uma rejeição judaica coletiva do papel de bode
expiatório — assim como a conversão pode ser vista como a sua rejeição individual.
**
Voltaire observou que “de todas as religiões, o Cristianismo deveria naturalmente inspirar maior tolerância, mas até agora os
cristãos têm sido os mais intolerantes entre todos os homens”. (Voltaire, Philosophical Diptionary, p. 485.) Mutatis mutandis, o
mesmo deveria acontecer com a Psiquiatria, mas hoje os psiquiatras são tão intolerantes quanto os sacerdotes o eram. Como
exemplo disso, pode ser citado o seguinte trecho de um dos mais importantes psiquiatras judiciários dos Estados Unidos e um
dos que receberam o prestigioso prêmio Isaac Ray: “Considera-se como vontade da maioria que muitos dos que apresentam
perversões sexuais ( . . . ) sejam indefinidamente privados de sua liberdade e mantidos pelo Estado. Eu prontamente aceito esse
julgamento.” (Manfred S. Guttmacher, Sex Offenses, p. 132.)
Cristianismo é promover a identificação com Jesus, visto como modelo; seu efeito é,
muitas vezes, inspirar ódio por aqueles que fracassam — por causa de suas origens ou
suas crenças — ao apresentar a reverência adequada com relação a Ele. As imagens
judaico-cristãs do bode expiatório — do ritual de Yom Kippur à crucificação de Jesus
como o Redentor — não conseguem criar compaixão e simpatia pelo Outro. Os que não
podem ser santos, e que não podem transcender essas imagens terríveis; são muitas
vezes levados, em parte por uma espécie de autodefesa psicológica, a identificar-se com
*
o agressor. Se o homem não pode ser bom ao transferir a culpa para os outros, pode ser
bom, pelo menos, ao culpar os outros. Através do mal atribuído ao Outro, o perseguidor
se autentica como virtuoso.
Evidentemente, o tema do bode expiatório não se limita à religião e aos costumes
judaicos e cristãos. Práticas semelhantes são descritas em outras épocas e em outros
lugares. Frazer nos diz que entre os cafres da África do Sul, por exemplo, “os nativos às
vezes adotam o costume de levar um bode à presença de um homem doente, e
confessam os pecados da aldeia para o animal. Às vezes se faz com que algumas gotas de
sangue do homem doente caiam na cabeça do bode, que depois é levado para uma parte
6
desabitada da estepe”. Na Arábia, “quando se manifesta a peste, as pessoas às vezes
levam um camelo por todas as partes da cidade, a fim de que o animal pegue sobre si a
pestilência. Depois o degolam num local sagrado e imaginam que se livraram, ao mesmo
7
tempo, do camelo e da peste”. Essas cerimônias são, ao mesmo tempo, religiosas e
médicas; procuram garantir a harmonia espiritual e a proteção contra doenças.
A destruição cerimonial de bodes expiatórios com objetivos “terapêuticos” era
também uma prática comum na Grécia antiga. Juntamente com os costumes judaicos,
tais rituais constituem a origem de muitas práticas e crenças médico-morais posteriores
no Ocidente. No século VI a.C., na Grécia, o costume do bode expiatório era o seguinte:
“quando uma cidade sofria com peste, fome ou outra calamidade pública, uma pessoa
feia ou deformada era escolhida para receber sobre si todos os males que afligiam a
comunidade. Era levada para um local adequado, onde em suas mãos se colocavam figos
secos, um pão de cevada e queijo. Ela comia isso. Depois, seus órgãos genitais eram
surrados sete vezes com cebolas (...) enquanto as flautas tocavam um tom especial.
8
Depois, era queimado numa pira (...)”.
No século I da era cristã, na Grécia, o costume do bode expiatório era de dois
tipos. Um foi registrado por Plutarco (c. 46-120) e é descrito da seguinte forma por
Harrison: “A pequena cidade de Queronéia, na Beócia, terra natal de Plutarco, repetia
ano após ano um estranho e antigo cerimonial. Era chamado “A Expulsão da Fome”. Um
escravo doméstico era retirado de casa com cordas de agnus castus, uma planta

*
Acredito que egoísmo inteligente, autocontenção conscienciosa e identificação simpática com os outros criariam menos
tendência para o ódio do que os ensinamentos religiosos tradicionais, baseados na premissa da redenção através do sacrifício do
bode expiatório.
6
Frazer, p. 540.
7
Ibid.
8
Ibid., p. 579.
semelhante ao salgueiro, e à sua frente se pronunciavam as palavras: “Fora com a Fome,
9
para dentro com a Saúde e a Riqueza”. Quando Plutarco ocupou o posto de magistrado-
chefe em sua cidade natal, realizou essa cerimônia, e registrou a discussão que depois
provocou.
Havia uma outra forma, mais tenebrosa, dessa prática, e descrita por Frazer.
Sempre que uma localidade importante era assaltada pela peste, “um homem das
classes mais pobres costumava oferecer-se como bode expiatório. Durante um ano era
mantido à custa do povo, sendo alimentado com os melhores alimentos que escolhia. No
fim do ano, era vestido com roupas sagradas, enfeitado com ramos sagrados, e levado
por toda a cidade, enquanto se diziam preces para que todos os males da cidade caíssem
sobre sua cabeça. Era depois expulso da cidade ou apedrejado até a morte pelas
10
pessoas, fora dos muros da cidade”. Em Atenas, a prática era institucionalizada. Os
atenienses sustentavam “alguns seres inúteis e degradados à custa do povo; quando
qualquer calamidade (...) atingia a cidade, sacrificavam dois desses bodes expiatórios
11
proscritos”. Uma das vítimas era sacrificada em benefício dos homens, a outra em
benefício das mulheres. Às vezes a vítima sacrificada em benefício das mulheres era uma
*
mulher.
Além disso, tais sacrifícios não se limitavam a ocasiões extraordinárias, mas se
transformaram em cerimônias religiosas regulares, semelhantes ao Yom Kippur judaico.
Segundo nos diz Frazer, todos os anos “no festival da Targélia, em maio, duas vítimas,
uma para os homens e outra para as mulheres, eram levadas para fora de Atenas e
apedrejadas até a morte. A cidade de Abdera, na Trácia, era purificada uma vez por ano,
e um dos habitantes da cidade, separado com esse objetivo, era apedrejado até a morte
como bode expiatório ou sacrifício vicário para a vida de todos os outros; seis dias antes
de sua execução, era excomungado, a fim de que só ele pudesse pagar os pecados de
12
todos”.
Tais exemplos serão suficientes para mostrar as origens antigas dos sacrifícios de
**
bodes expiatórios e de sua grande significação social. Lembram, também, gravemente,
o subterrâneo tenebroso da Grécia clássica. Na democracia grega antiga, o berço das

9
Jane Ellen Harrison, Epilegomena to the Study of Greek Religion and Themis, p. xvii.
10
Frazer, pp. 578-579.
11
Ibid., p. 579.
*
Os atenienses mantinham um estábulo de pessoas que deveriam ser usadas nessas emergências; mantemos um estábulo de
palavras (e papéis). Quando a calamidade de um crime muito horrível atinge nossa sociedade, procuramos nosso estábulo de
palavras (e papéis) e, em vez de enfrentar o problema moral proposto pela crise, sacrificamos o Ofensor Simbólico que pode ser
chamado “louco”, "esquizofrênico”, “paranóico homicida” ou “delinqüente sexual”. Embora tais sacrifícios sejam muito
ineficientes para lidar com os problemas que afligem a sociedade, são fervorosamente aceitos, são eficientes, pelo menos, para
acalmar as angústias sociais, ainda que apenas temporariamente.
12
Ibid.
**
Muitos autores consideram um sinal de progresso moral o fato de o homem deixar de usar seu semelhante e passar a usar
animais coma bodes expiatórios. Para a vítima, isso é sem dúvida verdade; para o perseguidor, no entanto, pode não ocorrer. Os
motivos para o sacrifício humano e o animal são os mesmos. Os indivíduos que usam tais práticas apresentam a mesma
incapacidade ou ausência de vontade para suportar a responsabilidade moral por sua conduta. Portanto, a significação psicológica
da substituição de bodes expiatórios humanos por sacrifícios animais; geralmente foi exagerada. Enquanto o homem participar
de destruição cerimonial de inimigos simbólicos — animais, povos estrangeiros, ou indivíduos que antes pertenciam ao grupo —
não estará livre de seus; semelhantes predadores.
liberdades ocidentais, não havia apenas a polis, com seus grandes oradores, seus
filósofos e teatrólogos; na Grécia havia também escravidão, misoginia e o sacrifício
cerimonial de seres humanos. Tais crenças e práticas, não menos do que outras de que
temos mais orgulho, herdamos deles e adaptamos aos nossos usos.
Os gregos antigos perseguiam bodes expiatórios por razões* que, segundo eles,
eram religiosas; fazemo-lo por razões que, segundo nós, são médicas. As diferenças
entre essas duas perspectivas, uma teológica e a outra terapêutica, são ideológicas e
semânticas, mais do que operacionais ou sociais. Na verdade, as semelhanças entre elas
— que acentuei neste volume ao comparar a Inquisição com a Psiquiatria Institucional,
feiticeiras, com loucos, justificativas religiosas com justificativas médicas para a violência
— são demonstradas pela excelente análise que Harrison faz das funções sociais da
expulsão do mal. Escolhendo como paradigma a cerimônia da “Expulsão da Fome”,
praticada por Plutarco, pois “exprime com singular franqueza e simplicidade (...) a
intensidade e o núcleo da religião primitiva”, Harrison identifica o objetivo final do ritual
13
com “a conservação e a promoção da vida”. Esse fim, segundo essa autora, “pode ser
atendido de duas formas, uma negativa, e uma positiva, pelo afastamento do que é
concebido como hostil e pela ampliação: do que é considerado favorável à vida. Os ritos
religiosos são, fundamentalmente, de dois tipos, e de dois apenas, o de expulsão e o de
14
impulsão”.
O que é considerado bom deve ser incluído no corpo, na pessoa, na comunidade;
o que é considerado mau, deve ser excluído deles. Quando os valores médicos
substituem os religiosos, o mesmo princípio continua a atuar: tudo o que promove a
saúde — bom alimento, boa hereditariedade, bons hábitos — deve ser incorporado ou
cultivado; tudo o que provoca doença — veneno, micróbios, hereditariedade deficiente,
maus hábitos deve ser eliminado ou rejeitado. Os antigos rituais religiosos são assim
restaurados em novas cerimônias psiquiátricas de inclusão e exclusão, validação e
invalidação, exaltação e degradação. O que é considerado bom, agora definido como
mentalmente sadio, é aceito; o que é considerado mau, agora definido como
mentalmente doente, é repudiado.
Nas palavras de Harrison, a fim de que possa viver, “o homem primitivo tem
diante de si a antiga e dupla tarefa de livrar-se do mau e conseguir o bom.
Evidentemente, o mau para ele é principalmente fome e aridez. O bom é alimento e
15
fertilidade. A palavra hebraica para ‘bom’ originalmente significava bom para comer”.
com a mudança das condições culturais, a sobrevivência física e social passa a depender
de coisas diferentes: coragem na batalha, obediência à autoridade, ascetismo sexual;
estes se tornam, então, valores morais predominantes, e seus opostos se tomam
pecados mortais.

13
Harrison, p. xvii.
14
Ibid.
15
Ibid.
Nessa perspectiva, as funções religiosas, sociais e psiquiátricas do ritual de bode
expiatório se fundem num único esquema conceituai. Para Plutarco, diz Harrison, o rito
de Queronéia era “religioso, embora não contivesse e supusesse um deus. O rito
semelhante em Atenas, a expulsão do bode expiatório, se tomou associado à adoração
16
de Apoio, mas Apoio não era parte integrante dele”. No uso que Harrison aqui faz do
conceito de religião, esta não exige uma divindade. O Budismo, por exemplo, é
universalmente reconhecido como uma religião, embora não tenha deuses. “O fato de o
ritual de Queronéia não ter deus nem sacerdote é muito claro. O funcionário civil, o
arconte (ou magistrado) expulsa o escravo e pronuncia a expulsão da Fome e a vinda da
17
Saúde e da Riqueza (...). A ação é o que denominamos “mágica”. Nesse uso, “religião” é
uma atividade coletiva, e “magia” uma atividade individual de um tipo cerimonial ou
não-técnico.
É importante compreender claramente a natureza desse tipo de ação ritual, e não
confundi-lo com a ação técnica. Se não for assim, correremos o grave risco de acreditar
— como realmente muitas vezes acreditamos — que nosso comportamento social, a
menos que explicitamente rotulado como religioso, é sempre técnico. Nada poderia
estar mais longe da verdade.
Até as últimas décadas, grande parte da prática médica se compunha de uma
*
série de atos mágicos. Isso era ainda mais verdade no caso da Psiquiatria. Até o início do
século XX, a pratica psiquiátrica era uma mistura de atos cerimoniais e atos técnicos, e os
primeiros predominavam com relação aos segundos como a carne de cavalo com relação
à carne de coelho no proverbial cozido húngaro, feito de porções iguais de cavalo e
coelho: uma de cada. O que era médico, era cerimonial; o que, era punitivo, era técnico.
Freud mudou as proporções, mas não, o caráter básico da mistura: ampliou o técnico às
custas do cerimonial. Ao mesmo tempo, acrescentou novos rituais aos da prática
psiquiátrica tradicional — por exemplo, o divã, a associação livre, a viagem pelas
**
“profundezas” do inconsciente, e assim por diante.
O fundamental desta discussão é acentuar novamente que a Psiquiatria
Institucional é, em grande parte, cerimônia e magia médicas. Isso explica porque a
rotulação de pessoas — como mentalmente sadias ou doentes — é uma parte tão
decisiva da prática psiquiátrica. Constitui o ato inicial de invalidação e validação social,

16
Ibid., p. xxi.
17
Ibid.
*
Segundo a observação do famoso fisiologista Lawrence J. Henderson (1878-1942), da Universidade Harvard, foi somente a
partir de 1910 e 1912 “que, neste país, um paciente aleatório, com uma doença aleatória, ,consultando um médico escolhido
aleatoriamente, pela primeira vez na história da humanidade, tinha uma probabilidade acima de meio a meio ,de ganhar alguma
coisa com esse encontro”. (Citado em Maurice B. Strauss [org.], Familiar Medical Quotations, p. 302.)
**
Minha análise da distinção entre atos rituais e atos técnicos segue bem de perto a opinião aceita na Antropologia. Ver,
principalmente, Bronislaw Malinowski, Magic, Science, and Religion. O antropólogo inglês Radcliffe-Brown apresenta isso da
seguinte forma: “Em qualquer atividade técnica, uma apresentação adequada do objetivo de qualquer ato específico ou de
qualquer série de atos constitui, em si mesma, uma explicação suficiente. No entanto, os atos rituais diferem dos atos técnicos
por terem, em todos os casos, algum elemento simbólico ou expressivo (...) Minha opinião é que os rituais positivos e negativos
dos selvagens existem e persistem porque fazem parte do mecanismo pelo qual uma sociedade ordenada se mantém em
existência, pois servem para estabelecer alguns valores sociais fundamentais.” (A. R. Radcliffe-Brown, “On Taboo”, em Talcott
Parsons et al. [orgs.], Theories ,of Society, Vol. II, pp. 951-959; pp. 954-958.) Para uma discussão da distinção entre ação técnica
e ação ritual na Psicanálise, ver T. Szasz, The Ethics of Psychoanalis, principalmente pp. 9-77.
pronunciado pelo sacerdote de religião científica e moderna, o psiquiatra; justifica que o
bode expiatório do sacrifício, o doente mental, seja expulso da comunidade. Estão
destinadas ao fracasso as tentativas para compreender essa realização como um ato
técnico — por exemplo, analisar em termos lógicos e racionais por que os estrangeiros
rotulados de homossexuais devem ser excluídos da cidadania nos Estados Unidos, ou
18
quais os critérios que devem governar essa rotulação. Na realidade, ao confundir atos
técnicos e atos rituais, tais esforços nos afastam de um confronto franco com os
problemas morais que nossos rituais psiquiátricos criam e nos propõem.
O ritual é o produto da repressão moral. O objetivo da análise do ritual é recriar o
problema moral “resolvido” por ele; portanto, essa análise está destinada a criar
angústia social e tende a ser mal recebida. Quando as sociedades “adiantadas” insistem
em manter a ficção de que não praticam atos rituais; ou, mais limitadamente, que
alguma realização sua, categorizada como ritual por seus críticos, é na realidade técnica
— atuam como indivíduos “benevolentes” que insistem em manter a ficção de que não
praticam atos prejudiciais, ou, mais limitadamente, que algum comportamento seu,
classificado como prejudicial por suas vítimas, é, na realidade, benéfico para elas. Tal
como ocorre com os indivíduos, os grupos preferem analisar e mudar outros, em vez de
mudar a si mesmos. Isso é mais fácil para seu amor-próprio, e também causa menos
problema.
Portanto, o fundamental da interpretação do ritual dada por Harrison é que, ao
expulsar o mau e ao incorporar o bom, protege e perpetua a vida. O bode expiatório é
necessário como um símbolo de mau que é conveniente eliminar da ordem social e que,
por sua existência, confirma como bons os outros membros da comunidade. É também
compreensível que o homem — o animal que se distingue por sua capacidade para criar
símbolos, imagens e regras — deve empregar essa prática. Para o animal predador na
floresta, a regra da vida é: matar ou ser morto. Para o ser humano predador na
sociedade, a regra é: estigmatizar ou ser estigmatizado. Como a sobrevivência do
homem depende de sua posição na sociedade, precisa manter-se como membro
aceitável do grupo. Se não consegue fazer isso, arrisca-se a ser colocado no papel de
bode expiatório — será excluído da ordem social, ou será morto. Vimos de que forma
essa regra era imposta na Idade Média, na Idade da Fé; bem como a maneira pela qual é
imposta no mundo moderno, na Idade da Terapia. A classificação religiosa no primeiro
caso, e psiquiátrica, no segundo, formam à base para processos de inclusão social
(validação) e exclusão (invalidação); para métodos de controle social (exílio, prisão) o
pura justificativas ideológicas para a destruição de diferenças humanas (“pecado”,
“doença mental”).
Já tivemos ocasião de ver o que o homem fez para o homem ao invalidá-lo a partir
de fundamentos religiosos, como enfeitiçado (ou não-batizado), ou a partir de
fundamentos psiquiátricos, como louco (ou psicologicamente desajustado). De acordo
com o esquema antropológico de Frazer e Harrison, que apresenta as sociedades (e

18
Ver capítulo 13.
indivíduos) como capazes de introjetar o bom, e expelir o mau, a luta dos (bons) cristãos
os (maus) judeus se toma a dinâmica essencial do anti-semitismo. Isso não é apenas uma
hipótese ou uma metáfora; é realidade histórica. Na Idade Média, o Deus dos europeus
*
era cristão; seu demônio era judeu. No mundo moderno, a fonte de segurança do grupo
se deslocou de Deus e do Papa para a nação e o líder, da religião para a ciência; seus
símbolos de insegurança passaram, também, de feitiçaria e judeu, para traidor e louco. O
judeu continua a ser um bode expiatório, não porque seja anticristo, mas porque foi
rediagnosticado como traidor (tal como ocorreu com o anti-semitismo francês durante a
questão Dreyfus), e como ameaça higiênica (tal como ocorreu com o moderno anti-
semitismo alemão). Como antes, ao lutar valentemente contra o outro como Ofensor
Simbólico, o Homem Justo se valida como bom.
Sartre interpreta o anti-semitismo como eu interpreto a perseguição de feiticeiras
e loucos. Sua análise auxiliará a aprofundar nossa compreensão das relações opressor-
vítima em geral, e da relação psiquiatra-paciente involuntário, especificamente.
19
No conto de Sartre intitulado “A Infância de um Líder”, encontramos Lucien,
filho único de um rico industrial, que lutava para encontrar orientação e sentido em sua
vida. Encontra Lemordant, um jovem de convicções firmes. Lemordant sabe quem ele é,
e isso encanta Lucien. Logo Lemordant introduz Lucien no anti-semitismo — sua
ideologia, sua literatura, seus crentes fervorosos — assim como um homem mais velho
poderia introduzir um mais jovem na homossexualidade ou na heroína. O resultado é
uma “cura” na crise de identidade de Lucien. Nas palavras de Sartre, “Lucien estudou-se
mais uma vez; pensou: Sou Lucien! Alguém que pode enfrentar os judeus.
Frequentemente tinha pronunciado essa sentença, mas hoje era diferente. (...)
Evidentemente, era uma afirmação simples, como se alguém tivesse dito ‘Lucien não
gosta de ostras’ ou ‘Lucien gosta de dançar’. Mas não havia dúvida: o amor à dança
poderia ser encontrado num pequeno judeu que não valia mais do que uma mosca; tudo
o que você precisaria seria olhar para um maldito judeu para saber que seus gostos e
aversões se ligam a ele como seu odor, como o reflexo de sua pele, (...) mas o anti-
semitismo de Lucien era de um tipo diferente: incansável e puro (...). ‘É sagrado’,
20
pensava ele”.
O anti-semitismo de Lucien faz com que ele se sinta bem, da mesma forma que a
guerra à doença mental faz com que os defensores do Movimento de Saúde Mental se
sintam bem. Os juristas, os legisladores, os médicos, as matronas da sociedade — os
pilares da sociedade — dão sentido às suas vidas; evidentemente, fazem-no à custa dos
porto-riquenhos desempregados e viciados em heroína, negros analfabetos que

*
Satã era um demônio explicitamente judeu, muitas vezes representado com um chapéu judaico ou uma faixa amarela. Para um
sutil estudo histórico de Satã como judeu, e dos judeus como os discípulos do demônio, ver Joshua Trachtenberg, The Devil and
the Jews. Como acreditava na realidade, não apenas de Cristo, mas também na do anticristo, a mente medieval, segundo
Trachtenberg, chegou ao máximo nesse paralelo ao fazer do último “o filho de uma união entre o demônio e uma prostituta judia
— um contraste intencional com o outro, filho de Deus e de uma virgem”. (Ibid., p. 35.) Trachtenberg: reproduz várias gravações
dos séculos XV, XVI e XVII, onde as figuras satânicas são identificadas com a faixa judaica. (Ibid., Frontispício e pp. 30, 195.)
19
Jean-Paul Sartre, “The Childhood of a Leader”, em Intimacy and Other Stories, pp. 81-159.
20
Ibid., p. 156.
cometem pequenos crimes, dos pobres de todos os tipos que bebem demais — e que
consideram mentalmente doentes.
Em seu livro O Anti-Semita e o Judeu, Sartre observa, corretamente, que o papel
do ódio do anti-semitismo pode ser facilmente superestimado: “O anti-semitismo não é
apenas a alegria de odiar; também dá prazeres positivos. Ao tratar o judeu como um ser
inferior e pernicioso, ao mesmo tempo afirmo que pertenço à elite. Essa elite, ao
contrário do que ocorre com as dos tempos modernos que se baseiam em mérito ou
trabalho, se assemelha muito a uma aristocracia de nascimento. Nada do que eu possa
fazer serve para merecer minha superioridade; também não posso perdê-la. É dada de
21
uma vez para sempre”. Encontramos a mesma superioridade no mentalmente sadio
com relação ao mentalmente doente. Uma vez que um assistente do Presidente seja
desmoralizado como homossexual e Ezra Pound como louco, mesmo o mais baixo dos
homens “normais” pode sentir-se superior a eles. Na verdade, os homens
desmoralizados pelas cerimônias de degradação da Psiquiatria moderna são como os
mortos: os sobreviventes se congregam no cemitério e secretamente se congratulam por
estarem vivos, enquanto o pobre e desventurado “amigo” já morreu.
Para o anti-semita autêntico, não pode haver bom judeu. Sartre observa
agudamente que “o judeu está livre para fazer o mal, mas não o bem; tem apenas o
livre-arbítrio necessário para assumir responsabilidade integral pelos crimes que
22
praticou; não livre-arbítrio para conseguir a reforma”. (Os grifos são do original.) Para o
que trabalha conscientemente na saúde mental não pode haver doença mental útil para
o paciente ou a sociedade, nem qualquer doente mental capaz de conseguir sua auto-
transformação. Isso justifica a desmoralização de todas as pessoas rotuladas como
doentes mentais, e a imposição de tratamento a qualquer delas por autoridades (exista
ou não esse “tratamento”).
Outra das funções do bode expiatório é ajudar o Homem Justo (segundo a
denominação que Sartre dá à pessoa que poderíamos denominar o Homem Normal) a
evitar o confronto com o problema do bem e do mal. Segundo Sartre, “se tudo o que ele
[o anti-semita] precisa fazer é afastar o mal, isso significa que o bom já foi dado. Não
precisa procurá-lo angustiadamente, prová-lo na ação, verificá-lo por suas
23
consequências, ou, finalmente, aceitar a escolha moral que fez”. O mesmo ocorre com
aquele que trabalha pela saúde mental: tudo o que precisa fazer é converter o viciado
em ex-viciado, o homossexual em heterossexual, o agitado no tranquilo — e aí estará a
Boa Sociedade.
Como o anti-semita luta contra o mal, a sua bondade e a bondade da sociedade
pela qual está lutando não podem ser discutidas. Isso lhe permite usar os métodos mais
ignóbeis, justificados pelos fins que almeja. Nas palavras de Sartre, “o anti-semita lava

21
Jean-Paul Sartre, Anti-semite and Jew, pp. 26-27.
22
Ibid., p. 39.
23
Ibid., p. 44.
24
suas mãos em esterco”. O psiquiatra institucional que trata pacientes involuntários
também está participando de uma tarefa cuja bondade é considerada tão evidente que
justifica os meios mais vis. Engana, coage e prende suas vítimas, dá-lhes remédios que as
reduzem a um estado de torpor, dá-lhes choques que ameaçam a sua integridade
cerebral. Será que isso diminui a bondade de seu trabalho? De forma alguma. Ele está
lutando contra o mal.
O combate ao mal também ajuda a reunir os combatentes num grupo
harmonioso e coeso. Assim, todos os homens solitários e incompetentes e que levam
uma vida monótona, podem ser admitidos, “ao repetir com ansiosa emulação que o
judeu é prejudicial ao país (...) ao aconchego da energia e da afetividade social. Nesse
25
sentido, o anti-semitismo conservou algo da natureza do sacrifício humano”. Hoje, nos
Estados Unidos, o anti-semitismo não será aceito nessa energia e nessa afetividade
social; mas isso pode ocorrer com a magia solene de algumas frases feitas — por
exemplo, “A saúde mental é o maior problema de saúde do país” ou “A doença mental é
*
como qualquer outra doença”.
Será que o problema do anti-semitismo pode ser resolvido pela conversão dos
judeus ao Cristianismo? (Ou o da saúde mental ao restaurar a saúde mental dos loucos?)
Na tradição clássica do humanismo, Sartre sustenta que essa solução não é muito diversa
da proposta pelo anti-semita: ambas têm como resultado a destruição dos judeus! Ao
identificar o defensor da conversão judaica como “o democrata”, Sartre escreve: “(...)
talvez não haja tanta diferença entre o anti-semita e o democrata. O primeiro deseja
destruir o judeu como homem, e nada deixar nele além do judeu, o pária, o intocável; o
outro deseja destruí-lo como judeu e nada deixar nele além do homem, o abstrato e
26
universal sujeito dos direito do homem e dos direitos do cidadão”. Na Psiquiatria,
encontramos uma oposição entre essas duas mesmas tendências, como se nenhuma
outra pudesse ser concebível.

24
Ibid., p. 45.
25
Ibid., p. 51.
*
É difícil pegar um jornal ou revista médica, sem encontrar expressões com essa tendência. Eis um exemplo recente: “depois de
um quarto de século em que a Neurologia e a Psiquiatria seguiram caminhos diferentes ( . . . ) as fronteiras entre elas estão
ficando menos nítidas”. (Melvin Yahr, “Neurology” [resenha anual], Med. World News, 12 de jan., 1968, p. 129.) O Dr. Yahr é
professor de Neurologia e diretor associado do College of Physicians and Surgeons da Columbia University. Não nos dizem por
que essa confusão de fronteiras entre Neurologia e Psiquiatria deve ser uma coisa boa: deve ser evidente. O caráter cerimonial
dessas afirmações se torna claro quando pensamos que são feitas, sempre, por aqueles que afirmam mais vigorosamente que a
Psiquiatria é uma especialização médica como qualquer outra. Evidentemente, ninguém diria que as fronteiras entre a
Proctologia e a Oftalmologia, ou a Ginecologia e a Neurocirurgia, “estão ficando menos definíveis”, ou ficaria orgulhoso com
isso. Fundamentalmente, aqui estamos diante de uma confusão profunda, ou negativa para distinguir, entre afirmações
descritivas e afirmações valorativas, entre o que é e o que deve ser, entre ter informação a respeito de alguma coisa e receber
ordem para fazer alguma coisa. Em várias obras discuti a importância dessa distinção para a Psiquiatria; ver, por exemplo,
Thomas S. Szasz, The Myth of Mental Illness, sobretudo páginas 133-163. Hannah Arendt identificou a incapacidade ou negativa
para fazer uma distinção entre essas duas classificações e formas lingüísticas como uma característica importante de ideólogos
totalitários, e, principalmente, nazistas. Diz a autora: “Sua superioridade consiste na capacidade para dissolver imediatamente
qualquer afirmação de fato numa declaração de intenção. Ao contrário das pessoas da massa que, por exemplo, precisam de
alguma demonstração da inferioridade da raça judaica para que possam aceitar um pedido para matar judeus, os grupos de elite
compreendem a afirmação “todos os judeus são inferiores” como se quisesse dizer “todos os judeus devem ser mortos (...)".
(Hannah Arendt, The Burden of Our Time, p. 372.)
26
Ibid., p. 57.
Assim como o anti-semita deseja resolver o problema judaico ao destruir o judeu,
também o psiquiatra nazista tenta resolver o problema da saúde mental ao destruir o
mentalmente doente. Numa revolta moral contra isso, o democrata, segundo a
designação de Sartre (ou o liberal, como poderíamos falar em nosso jargão psiquiátrico-
político contemporâneo), deseja resolver o primeiro problema pela conversão, e o
segundo pelo tratamento. Assim, como o liberal define alguns indivíduos ou grupos
como doentes, não quer dizer que tenham o direito de ser doentes — da mesma forma
que, aos olhos do anti-semita, o judeu não tem o direito de ser judeu. Na realidade, o
diagnóstico é apenas uma alavanca semântica para justificar a eliminação da (suposta)
*
“doença”. Nos dois casos, o opressor se recusa a reconhecer e a aceitar as diferenças
humanas. O que a pessoa fanática não pode tolerar é a inação diante do mal. “Viver e
deixar viver” é, para ela, não uma recomendação para relações humanas dignas, mas um
pacto com o Demônio.
A interpretação existencialista que Sartre dá do anti-semitismo se aproxima muito
27
da interpretação sociológica da divergência: nos dois casos, o divergente — bode
expiatório ou vítima — é considerado como a criação, pelo menos em parte, de seus
perseguidores. Embora Sartre reconheça que o judeu existe, no mesmo sentido em que
existem homossexuais ou pessoas deprimidas, afirma que “o judeu é aquele que outros
homens consideram judeu; esta é a verdade simples de que devemos partir (...). É o anti-
28
semita que cria o judeu”. Ora, evidentemente, Sartre sabe tão bem quanto qualquer
um que os judeus podem existir sem anti-semitas. Ao dizer que o anti-semita “cria” o
judeu, quer dizer o judeu qual objeto social em que o anti-semita pretende agir em seu
interesse pessoal. Não é possível exagerar esse aspecto quando se fala em doença
mental. Uma coisa é um observador dizer que alguém está triste e que pensa em matar-
se — e nada fazer a respeito; outra coisa, muito diferente, é descrever essa pessoa como
“suicida” e “perigosa para si mesma” — e trancá-la num hospital (para curar a doença de
depressão, de que as ideias de suicídio seriam apenas um sintoma). No primeiro sentido,
pode-se dizer que a doença mental existe sem a intervenção do psiquiatra; no segundo,
é criada pelo psiquiatra. Além disso, tal como ocorre no caso do anti-semitismo, o
psiquiatra cria doentes mentais como objetos sociais sobre os quais pode atuar por seu
interesse pessoal. O fato de esconder seu interesse pessoal como altruísmo não precisa
ser discutido aqui, pois é apenas uma justificação “terapêutica” da coerção interpessoal.
Na medida em que as pessoas têm características que as separam de outras, a
atitude realmente humanística e liberal com relação a tais diferenças só pode ser a de
**
aceitação. Sartre descreve isso em termos também aplicáveis aos chamados doentes

*
O que é verdade para o ideólogo comunista ou fascista, é válido também para o ideólogo psiquiátrico. Este compreende a
afirmação “John Doe está mentalmente doente” com o sentido de “prenda John Doe num hospital psiquiátrico” (ou “tire sua
carta de motorista, seu emprego, seu direito de ser julgado, etc.”). Todas as privações de direitos humanos de que são vítimas os
chamados doentes podem ser rastreadas até essa origem.
27
Ver capítulo 15.
28
Sartre, Anti-semite and jew, p. 69.
**
No entanto, essa tolerância quanto às diferenças, e os conflitos que provocam, é contrária à ordem das sociedades humanas,
pelo menos na medida em que as conhecemos. Kenneth Burke acredita que “o princípio de sacrifício da vítima (o “bode
expiatório”) é intrínseco à sociedade humana”. Resume da seguinte maneira seu argumento a respeito: “Se existe ordem (social),
mentais: “Nas sociedades em que as mulheres votam, não são solicitadas a mudar seu
sexo quando entram na cabina eleitoral (...). Quando se trata dos direitos legais do
judeu, e dos direitos mais obscuros, mas igualmente indispensáveis que não estão
colocados em qualquer código, ele precisa gozar desses direitos, não como um cristão
em potencial, mas, exatamente, como um judeu francês. Precisamos aceitá-lo com seu
29
caráter, seus costumes, seus gostos, lua religião (se a tiver)”. Aplicar essa atitude aos
chamados doentes mentais não é uma tarefa fácil. A sociedade americana atual não
mostra sequer o menor interesse em ver o problema dessa forma, muito menos em
resolvê-lo. Prefere o modelo da conversão e da cura: assim como Benjamin Rush
procurou a solução da negritude no vitiligo, procuramos a solução de medo e futilidade,
*
cólera e tristeza nos Centros Comunitários de Saúde Mental.
O impulso básico do homem para resolver problemas é, ao mesmo tempo, a fonte
de sua glória e de sua vergonha. Se ele não pode resolver seus problemas através de
meios instrumentais e técnicos, tenta realizações institucionais e cerimoniais. Assim
como o carrinho de mão não é necessário para o primeiro, o bode expiatório é
necessário para o segundo. Os artefatos ou instrumentos técnicos podem ser vistos
como os símbolos dos problemas que o homem tentou resolver; e o mesmo é verdade
para os sacrifícios humanos e animais. Quais são esses problemas? Um deles é a doença,
que ameaça a sobrevivência do corpo biológico; o outro é o pecado, que ameaça a
sobrevivência do corpo político. Em suas manifestações concretas, tais ameaças
apresentam problemas amplos e quase insolúveis. Talvez por isso, em toda a história os
homens tentaram simplificar suas tarefas ao estabelecer ligações inexistentes entre
saúde e virtude, doença e pecado. Tudo se passa como se os homens não pudessem
aceitar, e ainda não possam aceitar, que homens bons podem ser doentes e homens
maus ser sadios; ou que homens sadios possam ser maus, homens doentes ser bons. A
mesma intolerância de complexidade moral e diferenças humanas levou os homens a
rejeitarem a imagem de uma divindade justa, que ama igualmente todas as suas
criações: judeus e cristãos, brancos e negros, homens e mulheres, sadios e doentes. Ao
reprimir o pluralismo intrínseco nessa visão do mundo, os homens criaram, em seu lugar,
a imagem de um universo ordenado, governado de maneira hierárquica por Deus e seus
representantes na Terra; ou, se não por Deus, por homens que dirigem em nome do bem
comum. Imersos nessa perspectiva, os homens naturalmente chegam a valorizar a

existe culpa; se existe culpa, existe necessidade de redenção; mas qualquer “pagamento” desse tipo é fazer vítimas.” Ou, se
existe ação, existe drama; se existe drama, existe conflito; se existe conflito, existem vítimas.” (Kenneth Burke, “Interaction: III.
Dramatism”, em D. L. Sills [org.], Int. Etic. Soc. Sci., Vol. 7, p. 450.) A convicção profunda de que as vítimas devem, de algum
modo, ser culpadas e merecedoras de seu destino — em outras palavras, que, porque foram castigadas, devem ter sido culpadas
da perturbação da ordem social — é exemplificada por Hannah Arendt, quando observa que “O senso comum reagiu aos
horrores de Buchenwald e Auschiwitz com o argumento plausível de que ‘que crime essas pessoas devem ter cometido para que
se fizessem tais coisas com elas!’ ” (Arendt, The Durden of Our Time, p. 418.)
29
Ibid., pp. 146-147.
*
Há não muito tempo atrás, quando os críticos da Psiquiatria diziam que seu objetivo era o conformismo social, os psiquiatras
negavam essa acusação, definindo o objetivo de sua “ciência” como a promoção da saúde mental ou bem-estar do ser humano.
Isso já não é verdade. Os psiquiatras institucionais hoje reconhecem claramente que seu objetivo é ajustar o dente da engrenagem
à máquina social. “A preocupação da Psiquiatria é ajustar as pessoas ao ambiente social” — é essa a maneira de apresentar o
problema que encontramos em John Downing, diretor do San Mateo County Mental Health Services e proeminente figura no
movimento comunitário de saúde mental. (Citado em Leo Litvak, “A trip do Esalen Institute: Joy is the prize”, New York Times
Magazine, 13 de dez., 1967, pp. 8, 21-28; p. 8.)
unidade diante da diversidade, o controle do outro, e não o autocontrole; e constroem
métodos adequados para estabilizar essa “realidade social”. A validação de si mesmos
através da invalidação dos outros, como se aprende nas mitologias religiosas e nacionais,
sancionadas pelas leis, é um desses métodos. No passado, as sociedades davam aos seus
sacerdotes o direito de impor esse mecanismo social para validação e invalidação; hoje,
encarregam disso os psiquiatras.
Além disso, como os métodos mágicos são mais fáceis do que os técnicos, não é
surpreendente que o homem tenha mostrado grande inventividade ao deslocar
problemas materiais para o plano espiritual, e os problemas espirituais para o plano
material — tratando cada um deles institucional e cerimonialmente, e não instrumental
e tecnicamente. Durante séculos, o homem atribuiu a doença ao pecado, e tentou livrar-
se da doença através de sua conduta moral. Hoje, atribui o pecado à doença, e tenta
livrar-se do mal ao cuidar de sua saúde.
Quando estava no poder, a Igreja era venerada por prometer, através de seus
falsos profetas, os sacerdotes, a vida perpétua nos céus. Quando perdeu o poder, foi
criticada por ter retardado o progresso médico. Hoje, a Medicina é venerada por
prometer, através de seus falsos profetas, os psiquiatras, a tranquilidade moral na Terra.
Quando cair do poder, penso que será também criticada por ter retardado o progresso
moral. Mas, como o retardamento do progresso moral, enquanto está efetivamente
ocorrendo, é invariavelmente proclamado como progresso moral, o progresso autêntico
em nossa espiritualidade deve depender de solução adequada de problemas sociais e
psicológicos que sequer enfrentamos, e muito menos dominamos. Enquanto isso,
devemos julgar todos os Grandes Programas Morais, sobretudo se defendidos pelo
poder das Igrejas ou dos Estados, de acordo com o inverso da regra de acusados que
estão sendo julgados: imorais, enquanto não se provar o contrário.
15
A LUTA PELO AMOR-PRÓPRIO

Metade do mal praticado neste mundo


Se deve a pessoas que desejam ser importantes.
Não pretendem fazer o mal — mas o mal
[não as interessa.
Ou não o vêem, ou então o justificam
Pois estão absortas na luta infindável
Para pensar bem de si mesmas.
1
T. S. Eliot

Nas relações de antagonismo, muitas vezes não há lugar para os neutros: os


participantes precisam ser vistos como inimigos ou amigos, como agressores ou vítimas.
Por exemplo, se descrevemos os homossexuais ou doentes mentais como divergentes,
ou se dizemos que estão doentes, supomos que estejam fazendo alguma coisa errada
para alguém, até para si mesmos. Inversamente, se os descrevemos como bodes
expiatórios, supomos que as outras pessoas estejam fazendo alguma coisa errada para
eles.
Voltaire compreendeu bem esse dilema. Descreveu-o, com ironia característica,
em seu Dicionário Filosófico, sob o título “Liberdade de Pensamento”, apresentado
através de um diálogo entre Lorde Boldmind, um general inglês, e o Conde Medroso, um
nobre espanhol. Cito apenas um trecho da apresentação de Voltaire:
Boldmind: — Então o senhor é funcionário dos dominicanos? É um negócio sórdido o que o
senhor realiza.
Medroso — É verdade; mas prefiro ser seu empregado a ser sua vítima, e prefiro a
2
infelicidade de queimar meu vizinho à infelicidade de ser assado.

A situação do Conde Medroso não se extinguiu com a Inquisição. Ao contrário,


muito frequentemente o homem moderno precisa enfrentar o mesmo dilema doloroso.
Será que deve escolher o domínio, apenas para evitar a submissão? Não, diz Camus:
“Mesmo os que estão saciados de moralidade devem compreender que é melhor sofrer
3
algumas injustiças do que cometê-las. (...)”.

1
T. S. Eliot, The Cocktail Party, p. 111.
2
Voltaire, Philosophical Dictionacy (1764), p. 353.
3
Albert Camus, Prefácio a Reportagens Argelianas, em Resistance, Rebetlion, and Death, p. 114.
Tradicionalmente, o louco tem sido considerado como um perigoso inimigo da
sociedade, um agressor efetivo ou potencial; de forma correspondente, a sociedade e
seu psiquiatra-policial têm sido considerados como vítimas efetivas ou potenciais. Essa é
uma solução do dilema de “doença mental” do tipo da encontrada pelo Conde Medroso:
destruir o indivíduo identificado como o “paciente”, antes que ele destrua você. Isso é
tão ignóbil para um médico quanto o era para um sacerdote.
Se precisamos escolher entre assar e ser assado — uma escolha a que poucos
homens capazes de refletir podem escapar, e que surge com especial frequência na
carreira de um psiquiatra — acredito que devemos aspirar à solução de Albert Camus e
não à do Conde Medroso. No entanto, muitas vezes é possível, e até desejável, evitar
essa escolha ao rejeitar a dimensão de domínio-submissão. O médico que decide ser um
psiquiatra institucional se coloca, ainda que de início apenas involuntariamente, na
posição de Conde Medroso: deve escolher entre assar — isto é, ser um agente do
Estado, que estigmatiza indivíduos inocentes como malfeitores — ou ser assado — isto é,
ser um agente do doente mental perseguido, arriscando-se a ser classificado por seus
colegas como divergente, incapaz de cooperação, irresponsável como médico, ou até
como louco. De outro lado, o psiquiatra que decide trabalhar como um terapeuta
particular, como o fazem por exemplo alguns psicanalistas, podem superar esse dilema,
ao escolher, como Abraham Lincoln, a dimensão de igualdade e não-coerção. Nas
palavras de Lincoln, “assim como não seria escravo, também não seria senhor. Isso
exprime minha ideia de democracia. Tudo o que difere disso, e na medida em que o faz,
4
não é democracia.”
É porque tento seguir esse princípio — pois rejeito, como fundamentalmente
imoral, todas as formas de mentira e coerção “terapêuticas” — que classifico o
psiquiatra institucional como opressor, e o paciente mental involuntário como vítima.
Essa escolha pode ser facilmente defendida, não apenas a partir de fundamentos éticos,
segundo a orientação já apresentada, mas também a partir de fundamentos históricos e
políticos.
A história da Psiquiatria, como suponho ter demonstrado neste livro, é em grande
parte uma descrição de teoria e prática de violência psiquiátrica, colocada na linguagem
*
de auto-aprovação de tratamento e diagnóstico médico. Sob esse aspecto, assemelha-
se à história religiosa tradicional e à história do nacionalismo, que apresenta a violência
de líderes impiedosos e famintos de poder numa série de lutas altruístas por Deus ou

4
Abraham Lincoln, De uma carta (1858); citado em Christopher Morley e Louella D. Everett (orgs.), [Barfíeff's] Familiar
Quotations, p. 455.
*
Como exemplo recente, apresento o documento intitulado “Direitos dos Pacientes”, preparado pela Comissão para a
Recodificação da Lei de Higiene Mental de Nova York, e que começa com a seguinte declaração: “É axiomático que toda a Lei
da Higiene Mental se refere aos direitos dos pacientes, sobretudo aos direitos de ser tratado e ter cuidados adequados.” (Institute
of Public Administration, Patients Rights: Third Draft of Legislation and Analysis (Research Memorandum N.° 41), dezembro
de 1967 [Mimeografado: circulação particular].) De forma semelhante, um inquisidor espanhol poderia ter dito que “é
axiomático que toda a legislação da Inquisição se refere aos direitos dos fiéis, principalmente aos direitos à salvação e à crença
verdadeira”. Na realidade, a afirmação da Comissão é uma falsidade. A preocupação fundamental de qualquer lei de higiene
mental é dar aos médicos o direito de aprisionar cidadãos inocentes e a eles impor intervenções aparentemente médicas, contra
sua vontade. Como se poderia esperar, na Comissão de Orientação para a Recodificação da Lei de Higiene Mental de Nova
York, estão um comissário e dois assistentes do comissário do Departamento de Higiene Mental do Estado de Nova York.
pela Nação. (Na linguagem comunista, a luta se faz em nome dos trabalhadores ou das
massas.) A temida violência do louco pode ser entendida, portanto, como sendo em
grande parte uma projeção, na vítima, da violência real de seu perseguidor. A agressão
da sociedade, em geral, e de seu agente-médico, em particular, contra o chamado
insano, começa no século XVII, com a masmorra, as correntes, a tortura física e a fome;
continua nos séculos XVIII e XIX, com o manicômio, as surras, as sangrias e as camisas-
de-força físicas, chamadas coletes; expande-se no século XX, com o seu imenso hospital
psiquiátrico estadual (que abriga até 15.000 internados), a máquina de choques, o
leucótomo (o bisturi para separar o lobo frontal do resto do cérebro) e as camisas-de-
força químicas, chamadas tranquilizantes. Como todas as formas sistemáticas e
popularmente aceitas de agressão, a violência psiquiátrica é autorizada por importantes
instituições sociais, e nelas incorporada, além de ser sancionada pela lei e pela tradição.
As principais instituições sociais que participam de teoria e prática da violência
psiquiátrica são o Estado, a família e a profissão médica. O Estado autoriza o
encarceramento involuntário de doentes mentais “perigosos”; a família aprova e usa
essa regra; a profissão médica, através da Psiquiatria, administra a instituição e presenta
5
as justificativas necessárias para ela.
Os fundamentos políticos para a oposição à Psiquiatria Institucional são os
tradicionalmente invocados pelos libertários — de John Stuart Mill a Isaiah Berlin — para
a oposição a práticas sociais despóticas de todos os tipos. Em resumo, o argumento é o
seguinte. Para o grupo, é mais fácil proteger-se da acusação de que transforma em
vítimas alguns dos seus membros do que o indivíduo proteger-se da acusação de que
ofende a comunidade. Numa disputa entre o Estado e o cidadão, tal como em qualquer
conflito entre partes desiguais, as incertezas a respeito de desrespeito às regras devem
ser resolvidas a favor do lado mais fraco. Por quê? Porque a parte mais fraca é, por
definição, menos capaz de defender-se do que seu adversário. Se desejamos que
sobreviva e continue no jogo, devemos fazer com que isso lhe seja possível.
A violência potencial de alguns evidentemente não justifica a violência efetiva de
muitos. Apesar disso, essa é a justificativa que hoje invocamos em nome da saúde
mental, assim como antes a invocávamos em nome do Cristianismo. Dizemos que o
doente mental pode ser perigoso; tiramos o seu bom nome e sua liberdade, submetemo-
lo a torturas denominadas “tratamentos”. Evidentemente, o suposto doente mental é
considerado perigoso porque é percebido como “mentalmente diferente”, uma pessoa
estranha e alienada cuja conduta, ao contrário do que ocorre com as normais, é
imprevisível. Em resumo, é considerado como um tipo determinado de divergente — um
divergente que viola as regras interpessoais e linguísticas mais fundamentais da
sociedade.
No entanto, é importante notar que a divergência não é, ao contrário do que
erroneamente se acredita, um defeito apresentado por uma personalidade de um ator
individual, ou nela contida (e, por isso, frequentemente atribuída a doença mental ou

5
A esse respeito, ver Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, especialmente pp. 149-158.
física); ao contrário, é uma consequência inevitável, e realmente parte integrante da
construção de conjuntos ou grupos sociais. Os sociólogos da divergência conhecem bem
isso. Por exemplo, Howard S. Becker, escreve que “os grupos sociais criam a divergência
ao criar regras cuja infração constitui divergência, e ao aplicar essas regras a
determinadas pessoas ou ao rotulá-las de marginais. Desse ponto de vista, a divergência
não é qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação, por
outros, de regras e sanções ao ‘transgressor’. O divergente é uma pessoa a quem se
aplicou eficientemente esse rótulo; comportamento divergente é o comportamento
6
assim considerado pelas pessoas”. (Os grifos são do original.)
Comumente, as pessoas rotuladas de divergentes realmente violaram alguma
regra (legal, religiosa, ou social) — por exemplo, os “hippies” ou os homossexuais;
frequentemente, no entanto, não violaram tais regras e são classificadas como
divergentes apenas porque autoridades respeitadas os colocam nesse papel — por
exemplo, cidadãos inocentes rotulados de comunistas pelo Senador Joseph McCarthy, ou
pessoas eminentes, como o Senador Barry Goldwater, rotulado de mentalmente doente
por psiquiatras. Becker acentua, corretamente, que “algumas pessoas podem ser
rotuladas de divergentes, ainda que na realidade não tenham violado uma regra (...) A
divergência não é uma qualidade que esteja no comportamento, mas na interação entre
7
a pessoa que comete um ato e os que respondem a ele”.
Disso decorrem duas importantes conclusões. Uma é que, uma vez que a
divergência é desobediência às regras, é ao mesmo tempo um fator perturbador e
estabilizador na sociedade; apenas ao apresentar publicamente o que não é
comportamento aceitável os membros do grupo podem aprender, e lembrar, o que é
aceitável. Sem a obediência a regras, não pode haver vida social’, mas sem
desobediência às regras, não pode haver identidade pessoal. A característica distintiva
do homem é que ele tanto obedece quanto desobedece às regras!
A outra conclusão é que, como a doença médica (no sentido de divergência com
relação a normas biológicas, e não sociais) não desempenha o tipo de papel na vida
social e pessoal que é representado pela divergência social, esta não pode ser “tratada”
ou eliminada da mesma forma que a divergência biológica. As campanhas fanáticas para
o combate à divergência, comparadas a combater doenças contagiosas — e hoje
lançadas com apoio popular contra o alcoolismo, o vício em drogas e “doença mental”
de modo geral — estão destinadas, não apenas ao fracasso, mas contribuem para a
desumanização do homem tão violentamente rebaixado por aqueles que lutam por
melhor “saúde mental”.
Os bodes expiatórios, como vimos, são um tipo de divergentes; são indivíduos (ou
grupos) perseguidos por sua divergência real ou suposta. No capítulo anterior, as ideias
de Sartre sobre o anti-semitismo nos ajudaram a compreender o problema da luta da
sociedade para expulsar o mal; neste, vamos seguir alguns de seus pensamentos sobre o

6
Howard S. Becker, Outsiders, p. 9.
7
Ibid., pp. 9, 14.
bode expiatório, a fim de que nos ajudem a compreender nossa atitude com relação ao
8
doente mental. Para isso, vamos examinar seu livro sobre, Genet.
Ainda aqui, o ponto de partida de Sartre é a premissa de que o homem médio
deseja sentir que é bom e virtuoso. “Aquele que faz o mal é o Outro (...) Portanto, é
durante a guerra que o homem Bom tem a consciência mais clara (...) Infelizmente, não
podemos estar sempre lutando. De vez em quando, é preciso que haja paz. Para o tempo
de paz, a sociedade, em sua sabedoria, criou o que poderíamos denominar os
malfeitores profissionais. Esses homens maus são tão necessários aos homens bons
quanto as prostitutas às mulheres decentes. Por isso, são muito cuidadosamente
9
recrutados. Precisam ser malvados de nascença e não ter esperança de mudança.”
Tentei mostrar como os malvados “doentes mentais” são recrutados em nossa
sociedade contemporânea. A mobilização maciça de mão-de-obra no Movimento de
*
Saúde Mental pode ser entendida como uma tentativa para aumentar o número de
doentes mentais “encontrados” na sociedade. Assim como os donos de minas empregam
mais mineiros para tirar mais cobre das entranhas da terra, os Governos estaduais e o
federal, bem como suas subdivisões, além de organizações particulares e filantrópicas,
estão empregando mais psiquiatras, mais psicólogos e assistentes sociais para que
retirem mais loucos das entranhas da sociedade. E em benefício de quem? A única
resposta possível é a seguinte: em benefício dos que os empregam, que definem sua
tarefa, e, que, evidentemente, os pagam. É por isso que é tão importante a
transformação do papel de médico, que deixa de curar o indivíduo doente para ser
funcionário civil ou burocrata. As consequências desse processo são importantes
**
principalmente para a Psiquiatria.
E onde, pergunta Sartre, o Homem Justo encontrará o mal? No mesmo lugar em
que o Homem Normal encontra a doença mental. Escreve Sartre: “Assim como o Mal é
negação, separação e desintegração, seus representantes naturais serão procurados
entre os separados e os separatistas, entre os inassimiláveis, os indesejáveis, os

8
Jean-Paul Sartre, Saint Genet.
9
Ibid., p. 30.
*
O número de psiquiatras nos Estados Unidos está crescendo duas vezes, mais do que a população — 3% contra 1,5%,
anualmente. (Psychiat. Progress, Vol. 4 [jan.-fev.], 1966, p. 1.) Esse índice de crescimento é muito significativo porque o
número de médicos, de cujos quadros são recrutados os psiquiatras, mal está acompanhando o aumento da população. Como os
médicos não podem atender ao apetite gargantuesco da nova Inquisição, não é surpreendente verificar que o número total de
"funcionários de saúde mental” está aumentando num índice muito mais rápido do que o número de psiquiatras. “Entre 1960 e
1965, o número do psiquiatras, psicólogos e outros funcionários de saúde mental aumentou em 44% nos Estados Unidos.” (U.S.
News and World Report, 6 de nov de 1967, p. 48.)
**
Esta perspectiva não é nova para a Psiquiatria. Aplicada à família, esteve por algum tempo na moda, principalmente entre
psicanalistas e sociólogos. Uma de suas conseqüências foi a concepção em que um •dos pais, ou ambos, eram “patógenos” na
família, criando doença mental em seus filhos. A expressão “mãe esquizofrenogênica” é testemunha desse ponto de vista. Para
um exemplo desse ponto de vista, aplicado à explicação da psicose infantil, ver Jules Henry, Culture Against Man, pp. 321-388;
para outro exemplo, aplicado à explicação de delinqüência juvenil, ver Ruth S. Eissler, “Scapegoats of Society”, em Kurt R.
Eissler [org.], Searchlights on Delinquency, pp. 288-305. É absurdo limitar esta perspectiva aos exames de relações na família.
Os mais poderosos fabricantes de bode expiatórios na sociedade moderna são o Estado e a profissão psiquiátrica; por isso é tão
urgente chamar a atenção para eles, e não apenas para os indivíduos. No entanto, o exame das relações entre o profissional liberal
e o cliente na Psiquiatria cria problemas para os psiquiatras, enquanto que o exame das relações na família não o faz. A
Psiquiatria organizada, ao buscar as “causas da doença mental”, nos faz pensar no bêbedo que procura a chave da casa debaixo
da lâmpada da rua, não porque aí tenha perdido, mas porque aí está mais claro. A respeito, ver também o capítulo 12.
reprimidos, os rejeitados. Entre os candidatos estão os oprimidos e explorados em cada
categoria, os operários estrangeiros, as minorias étnicas e nacionais. Mas esses não são
ainda os melhores recrutas. Essas pessoas às vezes se organizam e se tornam conscientes
de sua raça ou de sua classe. Então descobrem, através do ódio, o sentido da
reciprocidade, e para eles o opressor passa a personificar o Mal, assim como
representam o Mal para o opressor. Felizmente, em nossa sociedade existem os
produtos de desassimilação, os enjeitados: crianças abandonadas, ‘os pobres’, burgueses
que perderam sua posição, ‘lumpenproletariat’, desclassificados de todos os tipos, em
resumo, todos os miseráveis. Com estes estamos tranquilos. Não podem unir-se com
qualquer grupo, pois ninguém os quer (...) É por isso que geralmente lhes damos nossa
10
preferência”.
Alexander e Zilboorg se encarregaram de conquistar esses membros marginais e
miseráveis da sociedade para a Psiquiatria; Menninger e Bazelon afastaram os últimos
traços de resistência. Tem sido sempre assim. A Psiquiatria e a Jurisprudência que a
“esclareceu” não inovaram nesse caso. Se o Homem Justo escolhesse alguém de seu
tamanho como a vítima de suas depredações com disfarce terapêutico, poderia
encontrar resistência, e até rebelião. Isso precisa ser evitado a todo custo. Pois o que
aqui está em jogo não é uma simples escaramuça, nem sequer uma batalha
fundamental; é a guerra global contra o mal e o privilégio de definir as regras do jogo.
Segundo a observação de Sartre, “mesmo ao escolher bodes expiatórios, a sociedade do
11
justo teve o cuidado de eliminar seus meios de união”.
Uma vez que o Justo tenha sua presa, o resto é consequência. Já vimos o que se
fazia com as feiticeiras. Sartre mostra como isso foi feito com Genet: “(...) ele não podia
12
falar, a não ser na confissão”. Também o doente mental involuntário não pode falar, a
não ser para condenar-se como mentalmente doente. Não existe diálogo humano entre
o psiquiatra do hospital e seu paciente preso: em vez disso, a fala do paciente é
“material clínico”. O doente mental é um cadáver vivo, as palavras que enuncia são
exudações semânticas de sua doença, que devem ser examinadas, não ouvidas. Os
psiquiatras se referem à fala do paciente como “produções”, como se suas palavras
fossem cuspe: a palavra é gravada em fita magnética, atomizada em trechos e pedaços
linguísticos, e essa gravação é tocada diante de estudantes que a ouvem como se vissem
bacilos de tuberculose num microscópio. Esses são os passos essenciais na
transformação do homem em doente mental; e este é seu objetivo essencial, o mandato
social básico, da Psiquiatria Institucional. O ponto mais alto da obscenidade ocorre
quando a sociedade finge — como o fazemos hoje, e nossos ancestrais fizeram durante a
Inquisição — que ao definir o Outro como o mau, nós o ajudamos a tomar-se bom.
O objetivo ao definir o Outro como estranho, ou como pessoa alienada, só pode
ser colocá-lo fora da ordem do homem normal que constitui o grupo e que pertence a
ele. A denominação de alienista era correta: ele era um alienador. Certamente, os

10
Ibid., pp. 30-31.
11
Ibid., p. 118.
12
Ibid., p. 278.
homens sempre tiveram seus métodos para criar divergentes, inimigos, seres humanos
sub-humanos. Mas apenas no mundo contemporâneo a denúncia do outro se tornou
exaltada como a prova suprema de lealdade ao grupo. Como sabemos, a denúncia de
pais, amigos e colegas como “subversivos” tornou-se o sinal do Estado totalitário. Na
realidade, a lógica da ética coletivista diz que a disposição para denunciar os outros deve
ser considerada como a prova final da lealdade de uma pessoa ao grupo. A cena final de
13
tortura do 1984 de Orwell, e a transformação de Winston Smith, que deixa de amar
Júlia para amar o Grande Irmão, dá um exemplo magnífico desta tese.
No confronto que aqui nos interessa, O’Brien está “tratando” Smith, cuja
“doença” é o fato de amar mais a Júlia do que ao Grande Irmão. O “tratamento” está de
acordo com a melhor tradição da Inquisição e da Psiquiatria Institucional. É uma ameaça
de violência por uma autoridade afetuosa, que procura fazer com que o herético volte ao
rebanho. A ameaça de O’Brien — muito semelhante à de Rush — é uma morte horrível
através de tortura. O’Brien explica: “Quando eu apertar esta alavanca, a porta da jaula
vai levantar-se. Esses animais famintos passarão por ela como balas. Você já viu um rato
voar pelo ar? Os ratos pularão em sua face e se fixarão nela. Às vezes atacam antes os
14
olhos. Às vezes passam pelo rosto e devoram a língua”.
Smith fica paralisado de medo. Como é que pode salvar-se? O que é que pode
fazer? Escreve Orwell: “Tudo ficara negro. Por um instante, estava insano, gritando como
15
um animal. Apesar disso, veio da escuridão com uma ideia”.
É essa ideia que nos interessa aqui. Ao apresentá-la como o faz, Orwell revela a
compreensão segura da significação, para a vida coletiva que conhecemos, da disposição
do homem para sacrificar o Outro, a fim de salvar-se. Apenas ao participar da destruição
ritual do Outro, apenas ao cometer o canibalismo existencial, o homem pode passar a
participar do Estado moderno.
Havia um e apenas um meio de salvar-se [escreve Orwell]. Deve interpor outro ser
humano, o corpo de outro ser humano, entre ele e os ratos (...)
A máscara estava se fechando em sua face. O fio raspava seu rosto. E então — não, não era
alívio, apenas esperança, um pequeno fragmento de esperança. Muito tarde, talvez tarde
demais. Mas tinha compreendido [sic] repentinamente que no mundo todo havia apenas
uma pessoa para quem poderia transferir o castigo — um corpo que poderia colocar entre
si e os ratos. E ele estava gritando desesperadamente, e repetindo:
— Façam isso com Júlia! Façam isso com Júlia! Não eu! Júlia! Não me importa o que façam
16
com ela. Arranquem sua face, comam sua carne até os ossos. Não comigo!
Smith se salva. Ou salva o que ainda restava dele. Logo depois ele e Júlia se
encontram pela última vez.

13
George Orwell, Nineteen Eighty-Four.
14
Ibid., p. 288.
15
Ibid., p. 289.
16
Ibid.
— Eu o denunciei — diz ela, cruamente.
— Eu também denunciei você — diz ele...
— Às vezes, ameaçam você com alguma coisa (...) alguma coisa que você não pode
suportar, e em que não pode pensar. E então você diz: “Não façam isso comigo, façam isso
com outra pessoa, façam isso com fulano. (...) Você pensa que não há outro meio de salvar-
se, e você está disposto a salvar-se dessa forma. Você deseja que aquilo aconteça com
outra pessoa. Você não se importa com o que ela sofra. Você só se importa com você (...) E
depois disso, você já não sente a mesma coisa pela outra pessoa.
17
— É, você não sente a mesma coisa.
Amar o Outro como você ama a si mesmo é o pecado original, o crime
imperdoável numa sociedade dominada pela ética tribal. Você deve amar apenas o
grupo, o coletivo que abrange tudo. Orwell torna isso terrivelmente claro no penúltimo
parágrafo: “Smith fixou os olhos na face enorme. Tinha precisado de quarenta anos para
aprender que tipo de sorriso estava oculto atrás de seu bigode escuro. Oh,
incompreensão cruel e desnecessária! (...) Mas estava certo, tudo estava certo, a luta
* 18
tinha terminado. Tinha vencido a luta contra si mesmo. Amava o Grande Irmão”.
A tendência (talvez devêssemos denominá-la “reflexo”) para sacrificar um bode
expiatório para impedir a desintegração do grupo e, por isso, salvar o Eu de dissolução é
evidentemente básica para a natureza social do homem. Disso se segue que a recusa do
homem para sacrificar bodes expiatórios — e sua disposição para reconhecer e suportar
a responsabilidade e a situação de seu grupo no mundo — deve ser um passo básico em
seu desenvolvimento moral, comparável, talvez, à sua rejeição do canibalismo. Na
verdade, acredito que na rejeição, ou superação, do princípio do bode expiatório, está o
maior desafio para o homem moderno. De sua solução pode depender o destino de
nossa espécie. Quero esquematizar rapidamente o que pretendo dizer com isso.
O tigre come sua presa; o canibal, a sua vítima. Sabemos, no entanto, que a
semelhança entre essas duas refeições é enganadora. O canibal incorpora o corpo da
vítima, não por seu valor como alimento, mas por seu valor como sentido. Poderia
alimentar seu corpo de outras formas; mas não o seu espírito. O canibal, ao ingerir a
carne de sua vítima, na realidade se delicia com sua alma. Segundo Frazer, “a carne e o
sangue de homens mortos são comumente comidos e bebidos para inspirar bravura,
sabedoria e outras qualidades pelas quais os homens são notáveis, ou que, segundo se
19
supõe, se localizam na parte comida”.

17
Ibid., pp. 294-295.
*
Num artigo interessante, Shengold apresenta uma interpretação exclusivamente psicológica — despida de considerações morais
e políticas — das imagens de tortura com o rato no 1984 de Orwell. Sua análise psicológica, e minha análise social, da tortura e
da conversão de Smith na realidade se completam mutuamente. Ver Leonard Shengold, “The effects of over-simulation: Rat
people”, Int. J. Psycho-Anal., 48: 403-415, 1967. Evidentemente, existem importantes paralelos entre as relações da criança com
os pais na família, e as relações do adulto com o Estado na sociedade. Penso que ao elucidar essas semelhanças, e não ao
“analisar” figuras públicas notáveis ou degradantes, é que a Psicanálise poderia contribuir mais adequadamente para as Ciências
Sociais.
18
Ibid., p. 300.
19
James George Frazer, The Golden Bough, p. 497.
Embora a renúncia ao canibalismo físico ou literal tenha sido uma grande
realização moral do homem, não eliminou nem reduziu seu canibalismo simbólico ou
existencial. O ato de compartilhar a carne da vítima era uma ocasião cerimonial,
constituindo a execução ritual através da qual se realizava esse ato duplo de canibalismo.
A descrição, feita por Linton, das práticas religiosas dos astecas, pode servir como
exemplo disso: “Para os astecas, os sacrifícios [humanos] eram uma expressão de
verdadeiro sentimento religioso. Os deuses precisavam ser fortalecidos, e nada mais
nutritivo do que o coração humano, ainda gotejante, que o sacerdote oferecia ao deus,
nos altares de pedra. As vítimas não sofriam as humilhações e as torturas com que a
Inquisição espanhola da época tratava os heréticos. Muitos dos cativos dedicados aos
deuses eram tratados com honra, recebiam aposentos luxuosos com criadas para servi-
los, e comiam e bebiam. A morte cerimonial, executada diante de multidões de
espectadores eletrizados, frequentemente provocava êxtase religioso também na vítima,
pois a morte no altar lhe assegurava um lugar no céu mais alto. Mesmo o conhecimento
de que seu corpo rolaria pelos degraus, e seria carregado para um banquete cerimonial,
não era uma humilhação, pois a carne era consumida na crença de que os que a comiam
estavam estabelecendo uma união mais próxima ao deus. Era um conceito religiosa não
muito diferente da comunhão cristã, embora os astecas a apresentassem de maneira
20
dolorosamente literal”.
A abolição desse tipo de cerimônia não aboliu a cobiça do homem para roubar
seu vizinho do sentido que deu à sua vida. Ao contrário, livres das limitações do método
que exigia o sacrifício efetivo e a ingestão de seres humanos, aumentou a voracidade
para conquistar a alma do semelhante; como a morte da alma foi separada da morte do
corpo, o canibalismo simbólico podia desenvolver-se, sem limitações de proibições
*
quanto a assassinato. Em resumo, nossos ancestrais foram, e continuamos a ser,
canibais existenciais ou espirituais. Geralmente, retiramos o sentido que os outros dão às
**
suas vidas, validando nossa humanidade ao invalidar a deles. Se isso é verdade, a
pergunta mais importante para o homem como um ser moral passa a ser a seguinte:
Será que podemos superar nosso canibalismo existencial? Será que podemos criar
significação para nossas vidas sem aviltar as vidas dos outros? Sem tentar responder a
esta pergunta, quero esquematizar rapidamente o problema e apresentar algumas
observações a respeito.
Como animal carnívoro, o homem aprende a tirar a vida de outros animais.
Também aprende, como a maioria dos animais, a não matar membros de sua espécie
para conseguir alimento. Ao renunciar à carne humana como alimento, o homem deu
um grande salto no seu desenvolvimento moral.

20
Ralph Linton, The Tree of Culture, pp. 644-645.
*
Como sabemos, as religiões cristãs acentuam muito a crença no canibalismo simbólico e o seu valor. Dessa forma, inibem os
esforços do homem para independência espiritual e retardam o desenvolvimento de instituições e práticas sociais favoráveis à
criação livre, e não o roubo imitativo do sentido da vida. Aqui estamos diante de um assunto complexo, que merece ser tratado
mais amplamente em outra oportunidade.
**
Sem dúvida, essa é uma das razões pelas quais a pessoa criativa — o cientista ou o artista realmente inovador — é admirada e
valorizada: ao superar o canibalismo simbólico, aprende a dar sentido à sua vida, sem roubar dos outros o sentido que dão às suas
vidas. “Cria” mais sentido do que o sentido que “consome”.
No entanto, como ser humano, o homem é um tipo peculiar de animal: um animal
social. Como tal, sempre é membro de um grupo, nunca um indivíduo solitário. As
condições de sua participação no grupo em grande parte definem o tipo de pessoa que
vem a ser. Para continuar a ser membro do grupo, o homem muitas vezes precisa atacar
e sacrificar os que não são membros do seu grupo. Tradicionalmente, as guerras contra
inimigos externos levaram os indivíduos a desempenhar esse papel, o que fazia com que
se integrassem ainda mais nos seus grupos. Além disso, o homem também converte, em
não-membros, Os membros de seu grupo, de forma que então podem ser atacados o
sacrificados. Estas são as guerras contra os inimigos internos, e que os membros dos
grupos precisam empreender, ou arriscar-se à alienação. A que outro objetivo esse
comportamento serve, a não ser autêntica autodefesa (cuja autenticidade talvez só
raramente possa ser verificada com exatidão por indivíduos ou grupo* que se sentem
ameaçados)?
O conceito de agressão, inata ou adquirida, de há muito é uma explicação muito
21
aceita. Mas esse conceito nada explica. Um instinto de agressão nada explica de guerra
e perseguição, da mesma forma que um impulso para o poder não explica a competição
econômica ou a liderança política. Precisamos de conceitos mais específicos e mais
funcionais para explicar o comportamento social do homem. A análise aqui apresentada,
que acentua a autovalidação do homem como bom através de sua negação do inimigo
como mau, indica o que é talvez uma sugestão nova para a incrível destrutividade do
homem com relação a seu semelhante. A chave pode estar no duplo canibalismo do
homem, acima descrito.
A prova da rapacidade do homem como um canibal existencial é indiscutível.
Geralmente, confirmamos nossa lealdade ao grupo ao afirmar a deslealdade de outros
(dentro ou fora do grupo); portanto, compramos a participação na comunidade através
da exclusão de outros. Esta parece ser uma das regras básicas e invariáveis do
comportamento social. Por isso, o bode expiatório é a vítima indispensável de
sociedades não-canibalistas.
Nas sociedades “primitivas”, o homem não apenas come a carne humana por
causa de suas características mágico-simbólicas, mas também atribui aos animais
qualidades humanas e sobrehumanas. Nas sociedades “modernas”, os homens fazem o
inverso: não comem carne humana, mas dão às pessoas qualidades sub-humanas e
animais (por exemplo, feiticeiras, judeus, loucos, etc.).
O canibal incorpora sua vítima para conseguir virtude; expelimos nossas vítimas
para conquistar inocência. O nosso crime não é apenas mais complexo, mas talvez seja
também mais grave. E é o crime que todos nós, como sociedade, exigimos mutuamente.
A recusa a perseguir o bode expiatório socialmente aceito é interpretada como um
ataque à sociedade. Isso ficou claro durante a Inquisição, na Alemanha nazista, e no
Litoral do Pacífico dos Estados Unidos, no período entre Pearl Harbor e a derrota do
Japão. É igualmente verdade, hoje, para o louco. Defender os direitos dos supostos

21
Ver, por exemplo, Konrad Lorenz, On Aggression.
doentes mentais é sentido como ataque à integridade da sociedade. A tendência é
colocar o defensor no papel de um advogado insensato (ou pior) dos “direitos” dos
“tarados sexuais” para incomodar meninas, ou de “maníacos suicidas” para atacar seus
vizinhos. O fato de que se comete mais violência contra os doentes mentais do que
aquela que estes cometem contra os outros não importa. A ação da tribo, ou do coletivo,
do Estado, é sentida como correta; a do indivíduo independente, como errada. Kenneth
Burke estava certo ao concluir que “o princípio de sacrificar (“o bode expiatório”) é
22
intrínseco à reunião humana”. Por isso, devemos — como o sugeriu Burke — perguntar
“não como os motivos de sacrifícios revelados nas instituições de magia e religião
poderiam ser eliminados de uma cultura científica, mas quais as novas formas que
23
apresentam”.
Neste livro, tentei apresentar as formas através das quais o princípio perene do
bode expiatório se manifesta no mundo moderno. Para isso, rastreei a transformação de
ideias medievais a respeito de bruxas e sua perseguição por sacerdotes até nossas ideias
contemporâneas a respeito de loucos e sua perseguição por médicos. Assim, vimos que,
sempre que os homens desejam degradar, explorar, oprimir ou matar o Outro, declaram
que este não é “realmente” humano. Isso tem sido um aspecto característico de
conquistas, escravizações e assassinatos em massa, em toda a história. Na realidade, o
opressor precisa sempre saber se a vítima é ou não um ser (integralmente) humano. Este
foi o problema básico no anti-semitismo sistemático na Espanha e na Alemanha; nas
caças às bruxas na Europa; na escravidão negra nos Estados Unidos; e na perseguição
moderna, praticamente em todo o mundo, do mentalmente doente. Afinal, se a vítima
não é integralmente humana, se não é uma pessoa, disso decorre que, tal como um
gato, um cão ou qualquer outro ser não-humano, não pode aspirar aos direitos
enumerados na Declaração da Independência, na Declaração dos Direitos do Homem, ou
na Constituição. Segundo as palavras de Frederick Douglass, em 1895, a linguagem da
Constituição diz “Nós, o povo — não o povo branco, nem mesmo nós, os cidadãos, nem
nós, as classes privilegiadas, nem nós, os altos, nem nós, os baixos, mas nós, o povo (...)
nós, os habitantes humanos; e, se os negros são pessoas, estão incluídos nos benefícios
24
que a Constituição dos Estados Unidos ordenou e estabeleceu”.
Sugiro que aquilo que Douglass disse a respeito dos negros seja agora ampliado e
aplicado aos chamados doentes mentais; se são pessoas, também estão incluídos nos
benefícios que a Constituição dos Estados Unidos ordenou e estabeleceu. E, se não são
pessoas, o que é que são?

22
Kenneth Burke, “Interaction: III. Dramatism”, em David L. Sills (org.), International Encyclopedia of the Social Sciences,
Vol. 7, pp. 445-452; p. 450.
23
Ibid., p. 451.
24
Frederick Douglass, “The anti-slavery movement” (Conferência pronunciada em Rochester, Nova York, 1885); citado em
Civil Liberties, N.° 214 mar., 1964, p. 1.
EPÍLOGO: “O PÁSSARO PINTADO”

Para o homem que pensa estereotipadamente, estar só e


estar errado são a mesma coisa (...)
1
Jean-Paul Sartre

O tema unificador deste livro — que ocorre em vários tópicos aparentemente diversos
aqui discutidos e que os liga — é a ideia do bode expiatório e da sua função no
metabolismo moral da sociedade. Especificamente, tentei mostrar que o homem social
teme o Outro e tenta destruí-lo; mas que, paradoxalmente, precisa do Outro e, se
necessário, pode criá-lo, de forma que, ao negá-lo como mau, pode confirmar-se como
bom.
Essas ideias são apresentadas com habilidade artística extraordinária por Jerzy
Kosinski em seu livro O Pássaro Pintado. O título refere-se a este tema: “O Pássaro
Pintado” é o símbolo do Outro perseguido, do “Homem Manchado”.
A história é uma narrativa angustiante do que ocorre com um menino de seis
anos de idade, morador “de uma cidade grande da Europa Oriental [que] nas primeiras
semanas da Segunda Grande Guerra (...) foi enviado por seus pais, como milhares de
2
outras crianças, para o abrigo de uma vila distante”. Para proteger o filho das
destruições da guerra na capital, seus pais, pessoas de classe média, o colocam sob os
cuidados de uma camponesa. Dois meses depois da chegada do menino, a protetora
morre. Os pais não ficam sabendo disso, e a criança não tem recursos para estabelecer
contato com eles. Fica vagando num mar de uma humanidade, às vezes indiferente,
muitas vezes hostil, raramente protetora.
Durante suas peregrinações pelos campos da Polônia devastada pela guerra, a
criança vive, durante algum tempo, sob a proteção de Lekh, um jovem gigantesco,
solitário, mas digno, e que ganha a vida como caçador. É este episódio que descreve de
maneira comovente o tema de que, para a tribo, o Outro é um estranho perigoso, o
membro de uma espécie hostil que precisa ser destruído.
Lekh ama uma mulher, Ludmila, com quem tem apaixonadas relações sexuais.
Ludmila foi violentada quando menina e, quando aparece no romance, tem um desejo
sexual furioso. Os camponeses a chamam “Ludmila Burra”. O episódio que aqui nos
interessa ocorre depois de um período de separação entre Lekh e Ludmila. Vou citar o
trecho todo.

1
Jean-Paul Sartre, Saint Genet: Actor and Martyr, p. 24.
2
Jerzy Kosinski, The Painted Bird, p. 1.
Às vezes, durante dias seguidos Ludmila não aparecia na floresta. Lekh ficava dominado
por uma raiva silenciosa. Fixava os olhos, solenemente, nos pássaros colocados nas gaiolas,
resmungando alguma coisa para si mesmo. Finalmente, depois de um demorado exame,
escolhia o pássaro, mais forte, prendia-o ao seu pulso, e preparava tintas malcheirosas de
diferentes cores, que misturava com os componentes mais variados. Quando as cores o
satisfaziam, Lekh virava o pássaro e começava a pintar suas asas, sua cabeça e seu peito
com tons de arco-íris, até que se tomasse mais saliente e vivo do que um buquê de flores
do campo*
Depois, íamos até a parte mais fechada da floresta. Quando chegávamos a esse ponto,
Lekh retirava o pássaro e me pedia para segurá-lo em minha mão e comprimi-lo
levemente. O pássaro começava a chilrear e atraía um bando da mesma espécie que voava
nervosamente sobre nossas cabeças. Nosso prisioneiro, ao ouvi-los, se voltava para eles,
gritando mais alto, enquanto seu coração, trancado num peito recentemente pintado,
batia violentamente.
Quando um número suficiente de pássaros se reunia sobre nossas cabeças, Lekh me dava
um sinal para libertar o prisioneiro. O pássaro levantava voo, feliz e livre, um ponto de
arco-íris num fundo de nuvens; e depois mergulhava no bando que o esperava. Durante
um instante, os pássaros ficavam confusos. O pássaro pintado voava de um extremo a
outro do bando, em vão tentando convencer sua espécie de que era um deles. Mas,
fascinados por suas cores brilhantes, eles voavam à sua volta, não-convencidos. O pássaro
pintado era empurrado para um ponto cada Voz mais distante do bando, embora
desesperadamente tentasse entrar nas suas fileiras. Logo depois, um pássaro depois de
outro o atacava violentamente. Em muito pouco tempo a forma de muitas cores perdia seu
lugar no céu e caía ao chão. Esses incidentes ocorriam muitas vezes. Quando depois
encontrávamos os pássaros pintados, estes quase sempre estavam mortos. Lekh
examinava atentamente o número de bicadas que os pássaros tinham recebido. O sangue
3
escorria de suas penas pintadas, diluindo a tinta e sujando as mãos de Lekh.
Apesar disso a Ludmila Burra não volta. Para gastar sua cólera frustrada, Lekh
prepara outro sacrifício de pássaro. Esta é a descrição de Kosingki.
Um dia, caçou um corvo grande; pintou as suas asas com tinta vermelha, o peito com verde
e a cauda com azul. Quando um bando de corvos apareceu sobre nossa cabana, Lekh
soltou o pássaro pintado. Logo que este se juntou ao bando, a batalha começou. Foi
atacado por todos os lados. Penas negras, vermelhas, verdes e azuis começaram a cair aos
nossos pés. Os pássaros voavam enfurecidos nos céus, e repentinamente o corvo pintado
caiu ao solo arado. Ainda estava vivo, abria o bico e fazia uma tentativa inútil para mover
as asas. Seus olhos tinham sido arrancados, e o sangue quente corria por suas penas
pintadas. Fez ainda uma tentativa para levantar voo da terra pegajosa, mas já não tinha
4
forças para isso.
O Pássaro Pintado é o símbolo perfeito do Outro, do Estranho, do Bode
Expiatório. Com habilidade inimitável, Kosinski nos mostra as duas faces do fenômeno:
se o Outro é diferente dos membros do rebanho, é expulso do grupo e destruído; se é
como eles, o homem intervém e faz com que pareça diferente, de forma que possa ser
expulso do grupo e destruído. Assim como Lekh pinta seu corvo, os psiquiatras tiram a

3
Ibid., pp. 43-44.
4
Ibid., pp. 44-45.
cor de seus pacientes, e a sociedade como um todo mancha seus cidadãos. Esta é a
estratégia maior de discriminação, invalidação e formação de bode expiatório. O homem
busca, cria e atribui diferenças, a fim de que possa alienar o outro. Ao eliminar o Outro, o
Homem Justo se engrandece e exprime sua cólera frustrada de uma forma aprovada por
seus semelhantes. Para o homem, o animal do rebanho, assim como para seus ancestrais
não humanos, a segurança reside na semelhança. Por isso o conformismo é bom, a
divergência é má. Emerson compreendeu isso muito bem. Advertiu que “por toda parte
a sociedade conspira contra o valor de cada um de seus membros. A virtude mais exigida
5
é o conformismo. A confiança em si mesmo é sua aversão”.
Quem quer que valorize a liberdade individual, a diversidade humana e o respeito
por pessoas não pode deixar de ficar consternado diante desse espetáculo. Para quem
acredita, como eu acredito, que o médico deve ser um protetor do indivíduo, mesmo
quando este está em conflito com a sociedade, é mais consternador que, em nossa
época, pintar pássaros se tenha tomado “uma atividade médica aceita, e que, entre as
cores usadas, os diagnósticos psiquiátricos sejam os mais em moda.

5
Raph Waldo Emerson, “Self-reliance” (1841), em Eduard C. Líndeman (org.), Basic Selections from Emerson; pp, 53-73; p. 53.
APÊNDICE:
UMA HISTÓRIA SINÓPTICA DAS
PERSEGUIÇÕES POR FEITIÇARIA E
DOENÇA MENTAL

Marat exclama: “Discutem meu direito ao título de


filantropo. Que injustiça! Quem é que não vê que desejo
cortar algumas cabeças para salvar um grande número
delas? (...) Naturalmente — todas as ações históricas cobram
um preço pela sua realização. Mas Marat, ao fazer seus
cálculos finais, afirmava ter derrubado duzentas e setenta e
três cabeças. Mas comprometeu o aspecto terapêutico da
operação ao gritar durante o massacre: “Queimem-nos com
ferros quentes, cortem seus dedos, arranquem suas línguas”!
1
Albert Camus
O objeto da Psiquiatria é o conflito humano. Mas o conflito precisa ser arbitrado,
controlado, solucionado. Por isso, o homem sempre achou necessário empregar vários
métodos para lidar com antagonismos interpessoais e sociais. Todos esses métodos têm
uma coisa em comum: o uso da força. No entanto, talvez porque os homens são homens
e não animais, não podem apenas coagir, oprimir ou exterminar seus semelhantes;
precisam também explicar e justificar a destruição.
Nos três últimos séculos, o homem ocidental encontrou essa explicação e essa
justificação da opressão na ideologia da ciência, principalmente na Medicina, na
Psiquiatria e nas Ciências Sociais. Durante os quatro últimos séculos, a religião — através
das Escrituras, as Igrejas e a Inquisição — serviu a esse objetivo. Essa dialética de
opressão e liberação constitui, evidentemente, o objeto da história.
Os temas da feitiçaria e da doença mental, da Inquisição e da Psiquiatria
Institucional, constituem dois fios distintos que podem ser puxados do tapete da história
cultural do homem ocidental e examinados separadamente. Foi isso o que tentei fazer
neste livro. Para colocar, em seu contexto histórico, as ideias e os acontecimentos aqui
examinados, e para dar ao leitor uma visão ampla, embora fragmentária, do tecido de
que foram tirados esses fios, reuni, neste Apêndice, uma história sinóptica de datas,
acontecimentos, homens e opiniões que, segundo penso, exemplificam a extensão desse
aspecto de nossa história, e lhe dão significado.

1
Albert Camus, The Rebel, p. 126.
1204 Termina a última grande Cruzada.
1209 O Papa Inocêncio III ordena a Cruzada contra os albigenses, uma seita
herética no Sul da França. Por volta dos meados do século XIV,
aproximadamente meio milhão de franceses suspeitos de pertencer à seita
tinham sido mortos.
1215 O Rei João concede a Carta Magna.
1215 O Papa Inocêncio III ordena a convocação do Quarto Concilio de Latrão, em
Roma, para considerar o problema de punição de heréticos e judeus. “Por
ordem do Concilio de Latrão, os judeus não podiam ter emprego público
nem criados cristãos. Não podiam cobrar taxas altas de juro para
empréstimo de dinheiro, e os cruzados foram liberados de todos os
pagamentos. Foram indicados severos castigos para os convertidos que
fossem negligentes em sua nova fé (...) Foi decretado que todos os judeus
deviam ter uma roupa especial ou uma faixa especial para distingui-los de
2
outros homens.”
1226 Luís VIII estabelece a lei do lazareto na França. O número de leprosários na
França atinge mais de 2.000, com 43 só em Paris.
1245 A cidade de Montségur cai nas mãos da Inquisição: 200 cátaros são
queimados num dia.
1298 Os judeus de Röttingen, na Francônia, são acusados da profanação de uma
3
hóstia sagrada. Toda a comunidade judaica é queimada viva.
1348 A confissão de Agiment, judeu de Genebra, tal como foi descrita por Jacob
von Königshofen (1346-1420), historiador alemão de Estrasburgo:
“Agiment pegou um pacote cheio de veneno e o levou até Veneza, e
quando aí chegou jogou uma parte desse veneno numa cisterna de água
fresca (...) a fim de envenenar o povo (...) Confessou, além disso, ter
4
colocado parte desse veneno na fonte publica da cidade de Toulouse (...)
C. 1350 A peste bubônica varre a Europa. Um terço da população morre na
epidemia. Os judeus são acusados de causar a peste; na Alemanha, muitos
são exterminados; os outros fogem para a Polônia e a Rússia.
C. 1375 Os cátaros e os valdenses são exterminados. A Inquisição se volta contra a
feitiçaria como heresia.
1377 O Bethlehem Hospital em Londres é usado para abrigar doentes mentais;
daí se origina o termo “Bedlam” [em inglês, significa hospício],
1400-1492 Em grandes números, os judeus espanhóis são convertidos ao Catolicismo.

2
Abram Leon Sachar, A History of the Jews, p. 194.
3
Ibid., p. 198.
4
Citado em Arnold A. Rogow (org.), The Jew in a Gentile World, pp. 93-94.
1400-1500 A lepra desaparece da Europa.
1412 As leis contra os judeus e os mouros se tomam uma parte aceita da
sociedade espanhola. Segundo o conselho de um santo valenciano
fanático, Vincent Ferrer, e do chanceler de Castela, o Bispo Pablo de Santa
Maria, que era judeu convertido, decreta-se que os judeus e os mouros
devem usar faixas distintivas, ser privados do direito de ter cargos ou
possuir títulos, e não mudar seu domicílio; além disso, são excluídos de
várias profissões, são proibidos de ter armas, e não podem comer, beber
5
ou sequer falar com cristãos.
1444 O primeiro carregamento de escravos negros chega a Portugal.
C. 1450 Johann Gutenberg inventa a imprensa.
1468 A Igreja declara a feitiçaria um crimen excepta (crime excepcional); por
isso, nos processos de feiticeiras são suspensas as regras e garantias
comuns (por ex., admitem-se todas as provas de acusação; a tortura para
obrigar à confissão é permitida e até estimulada ).
1478 Estabelece-se a Inquisição espanhola. Seu objetivo é examinar a
autenticidade da fé dos judeus convertidos.
1484 A Bula do Papa Inocêncio VIII: “Desejando com a mais profunda angústia
(...) que toda a depravação herética seja afastada das fronteiras e limites
dos fiéis, Nós alegremente proclamamos e até reafirmamos os meios e
métodos peculiares pelos quais Nosso piedoso desejo pode conseguir o
6
efeito almejado...
1485 Num auto-da-fé organizado pela Inquisição espanhola em Toledo,
cinquenta e duas pessoas são queimadas vivas pela heresia de praticar
7
ritos judaicos.
1486 Jacob Sprenger e Heinrich Krämer publicam o Malleus Malleficarum (O
Martelo das Bruxas); esta obra tem pelo menos 16 edições alemãs, 11
francesas, 2 italianas e várias inglesas; afirma que “a crença de que há
bruxas é uma parte tão essencial da fé católica, que sustentar
8
teimosamente a opinião oposta tem, claramente, o odor de heresia”.
1492 Fernando e Isabel ordenam a expulsão dos judeus da Espanha.
1492 Primeira viagem de Colombo à América. “É notável que, sem as finanças
dos conversos, a primeira viagem de Colombo não teria sido realizada; os
aragoneses protegeram e financiaram a expedição; na tripulação havia

5
Henry Kamen, The Spanish Inquisition, p. 19.
6
Citado em Jacob Sprenger e Heinrich Kramer, Malleus Maleficarum, p. xix.
7
Kamen, p. 122.
8
Sprenger e Krämer, p. 1.
judeus e conversos, entre os quais um intérprete judeu; há a possibilidade
de que Colombo fosse descendente de uma família de conversos da
9
Catalunha.”
1517 Martinho Lutero prega, na porta da igreja do castelo Wittenberg, suas
noventa e cinco teses contra as indulgências.
1518 Heinrich Cornelius Agrippa de Nettesheim, doutor em Teologia e Medicina,
luta contra a crença na feitiçaria e contra a Inquisição. Numa carta a um
juiz, em que defendia uma jovem senhora acusada de feitiçaria, e
referindo-se ao Malleus Malleficarum. escreve o seguinte: “Oh, notório
sofisma! É assim que em nossa época fazemos teologia? Será que mentiras
10
como essas nos levam a torturar mulheres inocentes?”
1543 Martinho Lutero publica seu panfleto anti-semita, Dos Judeus e Suas
Mentiras. Acusa os judeus de envenenarem fontes e assassinarem crianças
cristãs, e pede que os príncipes destruam as sinagogas judaicas e
confisquem as propriedades dos judeus. Num de seus últimos sermões,
denuncia os médicos judeus por “conhecimento da arte de envenenar”
seus pacientes e conclui com a advertência: “Finalmente, como
concidadão, digo que, se os judeus se recusarem à conversão, não
11
devemos suportá-los ou admiti-los por* mais tempo”.
1545 Calvino lidera uma campanha contra a feitiçaria em Genebra; 31 pessoas
são executadas como feiticeiras.
1553 Michael Servetus, médico nascido na Espanha e descobridor da circulação
pulmonar, é queimado vivo como herético em Genebra. O primeiro livro
de Servetus, De Trinitatis Erroribus (Do Erro da Trindade), publicado em
1531, em que discute a tripersonalidade de Deus e a vida eterna de Jesus,
faz dele um herético, seja aos olhos dos protestantes, seja dos católicos.
1557 O Papa Paulo IV provoca, através da Inquisição de Roma, a publicação do
Index Librorum Próhibitorum (Índice de Livros Proibidos). O nome
completo do índice é o seguinte: Index Auctorum et Librorum qui Tanquam
Haeretici aut Suspecti aut Perversi ah Officio S. R. Inquisitionis Reprobantur
et in Universita Christiana Republica Interdictur (Índice de Autores e Livros
Condenados como Heréticos ou Suspeitos de Heresia ou de Serem
Prejudiciais pelo Ofício da Santa Inquisição Romana, Sanctae Romanae, e
São Proibidos em Todos os Países Cristãos). “Aparecer no índice Romano
era quase prova de distinção intelectual, e a lista completa serviria como

9
Kamen, p. 28.
10
Citado em Gregory Zilboorg, History of Medical Psychology, p. 205.
11
Citado em Sachar, p. 229.
12
um índice suficiente na história intelectual da Europa.” O índice foi
abolido, em 1966, pelo Papa Paulo VI.
1563 Johann Weyer publica, na Basiléia, De Praestigiis Daemonum (Os Enganos
do Demônio): “Mas quando aparecer o grande pesquisador de corações, de
quem nada se esconde, os vossos atos maus serão revelados, vós, tiranos,
juízes sanguinários, carniceiceiros, torturadores, e ladrões ferozes, que
13
desprezastes vossa humanidade e não conheceis perdão,” O livro foi
colocado no Index.
1586 A Inquisição espanhola declara herética toda a população da Holanda
14
condenando-a à morte.
1572 O Massacre do Dia de São Bartolomeu (24 de agosto): calcula-se que
30.000 huguenotes (protestantes franceses, seguidores de Calvino) foram
mortos num único dia.
1572 A feitiçaria é declarada crime grave na Saxônia luterana.
1580 Jean Bodin publica De la Démonomcinie des Sorders (A Demonomania de
Feiticeiros), opúsculo destinado a ajudar juízes no combate à feitiçaria;
define a feiticeira como “alguém que, conhecendo a lei de Deus, tenta
15
provocar algum ato através de um acordo com o Demônio”.
1596 Nicholas Rémy, promotor-geral de Lorena, gaba-se de ter queimado 900
pessoas, como bruxas, entre os anos de 1581 e 1591. Afirma que “tudo o
que é desconhecido reside (...) no amaldiçoado domínio da demonologia;
pois não há fatos inexplicados. Tudo o que não é normal é devido ao
16
Demônio”.
1598 Henry de Navarra proclama o Edito de Nantes: promete-se liberdade
religiosa e política aos huguenotes.
1600 Giordano Bruno, filósofo italiano e ex-monge dominicano, é queimado vivo
por defender a teoria copernicana.
C. 1600 “O envenamento lento” se toma um crime popular. No ano de 1659 deu-se
a conhecer, ao Papa Alexandre VII, que muitas mulheres jovens tinham
dito, em confissão, que envenenaram os maridos com veneno lento. O
clero católico, que geralmente considera sagrado o segredo da confissão,
17
ficou chocado e alarmado com a extraordinária difusão do crime.
1605 Francis Bacon publica The Advancement of Learning.

12
Herbert J. Muller, Freedom in the Western World, p. 274.
13
Citado em Rossel Hope Robbins, The Encyclopedia of Witchcraft and Demonology, p. 540.
14
Herbert J. Muller, p. 173.
15
Citado em Robbins, p. 54.
16
Ibid., p. 408.
17
Charles Mackay, Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds, p. 578.
1610 Ultima execução por bruxaria na Holanda.
1618-1648 A Guerra dos Trinta Anos, última grande guerra religiosa na Europa. A
conquista nacional substitui à conversão religiosa como objetivo militar.
Gradualmente, a lealdade do indivíduo se transfere da Igreja para o
Estado.
C. 1620 Abertura da Casa de Correção (Zuchthaus) em Hamburgo, o que assinala o
início de um grande sistema de tais instituições, para assistência e castigo,
semelhante aos hôpitaux généraux franceses.
1621 Francisco Suarez, S.J., teólogo e filósofo espanhol, publica o livro Sobre os
Meios que Podem Ser Usados para a Conversão e Coerção de Descrentes
que não São Apóstatas: “...os ritos dos descrentes não devem ser
tolerados; pois são supersticiosos e injuriosos a Deus, e os príncipes desses
reinos devem fazer progredir a verdadeira crença desses homens (...) A
familiaridade com os judeus é de modo geral proibida (...) é
especificamente proibido viver na mesma casa com judeus (...) No caso de
doença, os cristão são proibidos de chamar judeus; pelo menos, são
proibidos de fazê-lo para tratamento (...) a verdadeira razão dessa
discriminação contra os judeus é, segundo se pensa, o fato de que as
relações com os judeus apresentam maior perigo porque estes são mais
18
pertinazes e têm ódio à religião cristã”.
1631 Friedrich von Spee, padre jesuíta, publica Cautio Criminalis (Precauções
para Acusadores) uma tentativa básica para deter a maré crescente da
caça às feiticeiras. “Existe uma frase muito frequente, usada por juízes,
segundo a qual a acusada confessou sem tortura e, portanto, é
indiscutivelmente culpada. Pensei nisso e fiz uma investigação; verifiquei
19
que, na realidade, tinham sido torturadas (...)” Explicava seus cabelos
prematuramente brancos dizendo: “A dor embranqueceu meus cabelos —
20
dor pelas feiticeiras que acompanhei até as fogueiras”.
1632 Galileu publica Um Diálogo Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo. É
processado pela Inquisição. Seu livro ficou no Index Librorum Proibitorum
por mais de 200 anos.
1633 O Padre Urbain Grandier de Loudun é acusado de feitiçaria. O Dr. Claude
Quillet, um médico da cidade, identifica a fraude no exorcismo público em
que o Padre Grandier foi acusado e deseja dar seu testemunho diante da
comissão; é preso e só se salva fugindo para a Itália. O Padre Grandier é
21
queimado em 1634.

18
Citado em Rogow, pp. 116, 119-121, 123.
19
Citado em Robbins, p. 484.
20
Ibid., p. 479.
21
Ibid., p. 314.
1650 Herman Loher, funcionário do tribunal de Rheinbach, foge para Amsterdã,
torna-se cidadão holandês, e denuncia os processos de bruxas. Escreve que
cair nas mãos de um juiz de bruxas “equivale a colocar a pessoa condenada
numa situação em que precisa lutar por sua vida com leões, ursos e lobos,
22
e em que não pode se proteger, pois está sem armas de qualquer tipo”.
C. 1650 Depois de a câmara de Hall, em Württemtierg, ter dado alguns privilégios a
médicos judeus, o clero protesta, dizendo que “seria melhor morrer com
23
Cristo do que ser curado por um judeu auxiliado pelo Demônio “.
1656 Luís XIII decreta a fundação do Hôpital Général de Paris. “Em seu
funcionamento ou em seus objetivos, o Hôpital Général nada tinha a ver
com conceitos médicos (...) alguns anos depois de sua fundação, o Hôpital
Général de Paris tinha seis mil pessoas, ou aproximadamente um por cento
24
da população”.
1657 Cria-se, em Florença, a Academia del Cimento, com Borelli, Galileu e
Torricelli entre seus fundadores. É dissolvida em 1667. Vários de seus
sócios são perseguidos pela Inquisição.
1662 Estabelece-se a Real Academia de Londres, que conta com Boyle, Hooke e
Newton entre seus fundadores.
1666 Funda-se a Académie des Sciences de Paris
1676 Luís XIII decreta a fundação de um hôpital général em todas as cidades do
reino. “Confinavam os devassos, os pais perdulários, os filhos pródigos, os
blasfemos, os homens que ‘procuram destruir-se’, libertinos (...) Cabe à
arqueologia médica verificar se um homem era internado no hospital por
ser doente criminoso ou insano, por ‘perturbação de moral’ ou porque
25
tinha ‘maltratado sua mulher’ e tentado várias vezes matar-se”.
1684 Última execução por feitiçaria na Inglaterra.
1685 Luís XIV revoga o Edito de Nantes: os huguenotes fogem do país, e muitos
se estabelecem nas colônias americanas.
1687 Newton publica Mathematicál Principies of Natural Philosophy.
1689 Cotton Mather publica Memorable Providences Relating to Witchcrafts and
Possessions, mostrando que “há um Deus e um Demônio e Feitiçaria”, e
estabelecendo as condições para as caças às bruxas de Salem e os
processos contra as bruxas.
1692 Processos das bruxas em Salem, Massachusetts.

22
Ibid., p. 308.
23
Citado em Andrew Dickson, White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, p. 329.
24
Michel Foucault, Madness and Civilization, pp. 40, 55.
25
Ibid., pp. 65-66.
1693 Cotton Mather publica Wonders of the Invisible World. Escrito para
justificar os processos contra as bruxas de Salem, o livro é apresentado
26
como “uma descrição dos males que a feitiçaria causa ao país”.
1696 Cotton Mather escreve em seu Diário: “Hoje, no pó, onde me prostro
diante do Senhor, levanto meu grito: pela conversação da nação judaica, e
para que eu tenha a felicidade, em algum momento, de batizar um judeu,
27
que, pelo meu ensino, seja levado ao Senhor”.
1700 Um comerciante de Boston, Robert Calef, publica More Wonders of the
Invisible World, uma resposta a Wonders of the Invisible World, de Cotton
Mather. Por causa da censura exercida por Increase Mather, pai de Cotton,
e que era então presidente do Harvard College, o livro de Calef foi
publicado em Londres. Alguns exemplares do livro foram queimados
publicamente em Boston.
1711 A Corte-Geral de Massachusetts revoga as penas de morte civil de 22 das
31 pessoas condenadas como bruxas em Salem em 1692.
1716 Surge a teoria de que a masturbação provoca a insanidade, com a
publicação, em Londres, de Onania, or the Heinous Sin of Self-Pollution
(autor incerto). O livro foi traduzido para muitas línguas e, em 1764, está
a
em sua 80 edição.
1721 Cotton Mather, amargurado por ter sido repetidamente preterido na
candidatura para a presidência de Harvard, persuade Elihu Yale,
comerciante londrino, a fundar uma universidade calvinista sob sua
orientação, em New Haven, Connecticut.
1728 Daniel Defoe, romancista e jornalista inglês: “Isto me leva a clamar contra
a prática vil, hoje tão em voga entre os de melhor classe, como são
chamados, mas, lia realidade da pior classe, isto é, mandar suas mulheres
para hospícios, por qualquer capricho ou desafeto, de forma que possam
estar mais seguros c à vontade em suas libertinagens (...) Se elas não são
loucas no momento em que vão para essas amaldiçoadas Casas, logo se
tornam loucas por causa dos costumes bárbaros de que são vítimas (...)
Será que não é suficiente, para que alguém fique louco, ser
repentinamente esbofeteado, despido, surrado, mal alimentado e usado?
E tudo isso, sem ter razão determinada para esse tratamento, não ter
28
crime indicado e nem acusadores para enfrentar?”
1736 As leis penais contra a feitiçaria são revogadas na Inglaterra. “Para os
crentes (religiosos) a abolição das leis penais (contra a feitiçaria) era um
ato perigoso e anti-religioso, que desrespeitava a regra bíblica de que

26
Citado em Robbins, p. 341.
27
Citado em Rogow, p. 228.
28
Citado em Richard Hunter e Ida Macalpine, Three Hundred Years of Psychiatry, 1535-1860, pp. 266-267.
nenhuma bruxa deveria ficar viva. Mesmo um homem tão sábio e tão
delicado como John Wesley denunciou esse ato, dizendo que abandonar a
29
feitiçaria era abandonar a Bíblia.”
1745 Ultima execução por feitiçaria na França.
1750 Frederico II da Prússia, popularmente conhecido como Frederico, o
Grande, lança sua Lei para os Judeus da Prússia: “Aqui estabelecemos,
regulamos e ordenamos vigorosamente que, no futuro, nenhum judeu
30
deve ousar participar de qualquer profissão manual”.
1752 Abre-se o Pennsylvania Hospital em Filadélfia, a primeira instituição nos
Estados Unidos a receber doentes mentais. “O tratamento pelo Estado”,
no sentido de doentes mentais sob a tutela do Estado era princípio aceito
31
nos Estados Unidos desde meados do século XVIII.
1758 Simon-André D. Tissot publica, em Lausanne, o livro Onanismo, ou um
Tratado sobre as Doenças Provocadas pela Masturbação. Esse livro
apresenta muitas opiniões médicas respeitáveis para justificar o conceito
de “insanidade masturbatória”. “Os perigos que Tissot vê na masturbação
32
são aterrorizantes: é o inferno na Terra, mas um inferno sem purgatório.”
1764 Em Genebra, publica-se o Dictionaire Philosophique (Dicionário Filosófico)
de Voltaire.
1765 Chevalier de la Barre, jovem admirador de Voltaire, recusa-se a tirar o
chapéu e a ajoelhar-se na presença de uma procissão religiosa. É
torturado, sua língua é arrancada e é decapitado. Seu corpo é queimado, e
na fogueira os executantes colocam também um exemplar do Dicionário
33
Filosófico de Voltaire.
1772 A escravidão é abolida na Inglaterra.
1772 O Reverendo Edwart Massey, teólogo inglês, prega contra a vacina
antivariólica. Publica um sermão intitulado A Prática Perigosa e
Pecaminosa da Vacina, em que declara que a doença de Jó era varíola; que
tinha sido inoculado pelo demônio; que as doenças são enviadas pela
Providência para castigo dos pecados; que a tentativa de impedir a varíola
34
é “uma operação diabólica”.

29
Christina Hole, Witchcraft in England, p. 197.
30
Citado em Rogow, p. 136.
31
Nina Ridenour, Mental Health in the United States, p. 77.
32
René A. Spitz, “Authority and masturbation: Some remarys on a bibliographical investigation”, The Yearbooh of
Psychoanalysis, Vol. 9, pp. 113-145: p. 117.
33
Wade Baskin, “Foreword”, em Voltaires Philosophical Dictionary, p. 3.
34
White, p. 339.
1773 Abre se o Asilo Williamsburg, na cidade do mesmo nome, na Virgínia,
primeira instituição americana destinada exclusivamente ao cuidado do
mentalmente doente.
1775 Começa a Guerra Revolucionária dos Estados Unidos.
1776 Declaração de independência das colônias americanas.
1784 Constrói-se, em Viena, o Narrenturm. É a primeira instituição, na Europa,
destinada exclusivamente “ao tratamento do insano”. Em 1843 é descrita
como “uma prisão descuidada e suja, fechada e mal ventilada, com cheiro
insuportável; os pacientes estão desesperados, acorrentados, e muitos
35
deles estão nus”.
1787 Redação da Constituição dos Estados Unidos.
1789 Começa a Revolução Francesa. Declaração dos Direitos do Homem.
1791 A Declaração de Direitos é acrescentada à Constituição.
1792 A guilhotina — aperfeiçoada pelo Dr. Joseph Ignace Guillotin, médico e
participante da Assembléia Revolucionária — se toma o instrumento oficial
de execução na França. A primeira máquina é montada no Hospital Bicêtre,
um dos hôpitaux généraux, ou asilos de insanos, de Paris. É experimentada
inicialmente com carneiros vivos, depois com três cadáveres de Bicêtre.
Guillotin escreveu em seu testamento: “É difícil fazer o bem aos homens
36
sem provocar em si mesmo algum desprazer”.
1793 Ultima execução por feitiçaria na Polônia.
1793 Luís XVIII é guilhotinado.
1798 Um grupo de sacerdotes e médicos de Boston forma uma Sociedade
Contra a Vacinação. Denunciam a vacinação contra a varíola como “desafio
aos céus, até à vontade de Deus”, e declaram que “a lei de Deus proíbe sua
37
prática”.
1801 Philippe Pinel publica seu Traité médico-philosophique sur Valienalion
mentale, ou la manie (tradução inglesa aparece em 1806). Embora se
opusesse ao acorrentamento de paciente, Pinei defendia vigorosamente
sua coerção e repressão, o que denominava “tratamento moral”. “No
entanto, se [o louco] enfrenta uma força evidente e convincentemente
superior, submete-se sem oposição ou violência. Este é um grande e
38
valioso segredo na direção de hospitais bem administrados.” “Nos casos
anteriores de insanidade, notamos os efeitos satisfatórios de intimidação,

35
Citado em Zilboorg. History of Medical Psychology, p. 575.
36
André Soubiran, The Cood Doctor Guillotin and His Strangt Device, pp. 141, 214.
37
White, p. 342.
38
Philippe Pinel, A Treatise on Insanity (1801), pp. 27-28.
39
sem severidade; de opressão, sem violência; e de triunfo, sem excessos.”
Elogia um “sistema de administração (...) num estabelecimento monástico
no Sul da França. Um dos inspetores visitava cada quarto, pelo menos uma
vez por dia. Se verificava que um dos maníacos estava se comportando de
maneira extravagante, provocando brigas ou tumultos, fazendo objeções a
seus mantimentos, ou se recusando a ir para a cama à noite, o inspetor lhe
dizia, de modo calculado para aterrorizá-lo, que se não obedecesse
imediatamente, na manhã seguinte receberia dez chicotadas, como castigo
40
por sua desobediência”. “Seria igualmente ridículo e desaconselhável
aplicar com uniformidade nossos princípios de tratamento moral, a
maníacos de qualquer caráter e condição na sociedade. Um camponês
russo, ou um escravo da Jamaica devem, evidentemente, ser dirigidos por
máximas diferentes das que se aplicariam exclusivamente no caso de
franceses irritáveis e bem educados, não acostumados com a coerção e
41
revoltados diante da tirania.”
C. 1803 Johann Christian Reil: “É um espetáculo revoltante ver um médico
brincando com seu doente mental (...) Pobre de quem cair em tais
42
mãos!”
1805 Cria-se o sistema de hospital psiquiátrico alemão. O Príncipe Karl August
von Hardenberg declara que “O Estado deve ocupar-se das instituições
para os que têm suas mentes perturbadas (...) Neste importante e difícil
domínio da Medicina, apenas esforços incansáveis nos permitirão chegar a
progressos para o bem da humanidade sofredora. Só nessas instituições se
43
poderá conseguir a perfeição”.
1808 O Parlamento britânico declara ilegal o tráfico de escravos.
1811 Theodoric Romeyn Beck, da cidade de Nova York, publica Dissertação
Inicial sobre a Insanidade: “O controle moral (...) consiste em tirar os
pacientes de sua residência e levá-los para algum hospício adequado (...)
Adota-se um sistema de vigilância humanitária. As regras mais adequadas
são as seguintes: convencer os lunáticos de que o poder do médico e do
guarda é absoluto (...) se forem desobedientes, devem ser isolados dos
outros, ser colocados em camisa-de-força, confinados a uma sala escura e
44
quieta.”

39
Ibid., p. 63.
40
Ibid., p. 65.
41
Ibid., p. 66.
42
Citado em Emil Kraepelin, One Hundted Years of Psychiatry, p. 69.
43
Ibid., p. 152.
44
Theodric Romeyn Beck, An Inaugural Dissertation on Insanity, pp. 27-28; citado em Norman Dain, Concepts of Insanity, pp.
12-13.
1812 Benjamin Rush publica suas Pesquisas e Observações Médicas sobre as
Doenças da Mente, o primeiro manual americano de Psiquiatria. Declara
que “o terror atua intensamente no corpo, através da mente, e deve ser
empregado na cura da loucura; que masturbação provoca “fraqueza do
sêmen, impotência, disúria, tabes dorsalis, tuberculose pulmonar,
dispepsia, fraqueza de visão, vertigem, epilepsia, hipocondria, perda de
45
memória, manalgia, imbecilidade e morte”.
1812 Sob o impulso das leis napoleônicas francesas, publica-se o edito prussiano
“A Igualdade Civil dos Judeus”.
1813 A Corte de Cadiz decreta, por um voto de noventa contra sessenta, que a
Inquisição é “incompatível com a Constituição”. Ruiz Padron declara:
“Povos futuros, nações que um dia entrarão no seio da Igreja, gerações
futuras — será que acreditareis que uma vez existiu na Igreja Católica um
46
tribunal intitulado Santa Inquisição?” No entanto, esse decreto não tem
força legal para abolir formalmente a Inquisição.
1814 Fernando VII restaura oficialmente, por decreto real, todos os
instrumentos da Inquisição espanhola.
1814 A Câmara dos Comuns, do Parlamento britânico, indica uma comissão para
pesquisar as condições desumanas nos hospícios.
1816 John Reid publica seus Ensaios sobre Insanidade, Hipocondria e outras
Doenças Nervosas: “Uma grave responsabilidade pesa sobre os que
dirigem ou trabalham nos hospícios de doentes mentais. Pouco se sabe
sobre as injustiças cometidas, ou quanto sofrimento inútil e irresponsável é
suportado nessas enfermarias para o intelecto perturbado, ou antes,
cemitérios para o intelecto morto (...) Muitos dos depósitos para a
escravidão de inválidos intelectuais podem ser vistos apenas como escolas
47
ou fábricas de loucura (...)”
1816 Jean Esquirol afirma que a masturbação “é reconhecida em todos os países
como uma causa comum de insanidade”. Em 1838 acrescenta epilepsia,
48
melancolia e suicídio como condições provocadas por masturbação.
1820 Fernando VII revoga a Inquisição espanhola. Apesar disso, a Inquisição
sobrevive até que é extinta por um decreto formal, assinado pela Rainha
Cristina, em 1834.
1826 Ultimas execuções na Espanha, por heresia religiosa. Um quacre, um
49
marrano e um deísta são mortos.

45
Benjamin Rush, Medical Inquiries and Observations upon The Diseases of the Mind (1812), pp. 211, 347.
46
Citado em Kamen, p. 271.
47
Citado em Hunter and Macalpine, pp. 724-725.
48
Citado em Alex Comfort, The Anxiety Makers, p. 76.
1828 Samuel William Nicoll, escrivão de Doncaster e York, publica Uma Pesquisa
sobre o Estado Atual de Visita, em Hospícios para os Insanos: “O guarda
precisa ser guardado. Se não for observado e punido, um hospício tende a
ser pouco mais do que uma alternância de violência recíproca entre o
50
prisioneiro e o guarda”.
1833 Emancipação de escravos nos domínios britânicos.
1837 Isaac Ray publica seu Treatise on the Medical Jurisprudence of Insanity
(Tratado sobre a Jurisprudência Médica de Insanidade).
1837 Robert Gardiner Hill, do Lincoln Asylum da Inglaterra, elimina o uso de
grilhões e de encarceramento. John Conolly, em Hanwell, na Inglaterra, faz
o mesmo, em 1839.
1837 O Dr. Amariah Brigham, superintendente do Hospício Estadual de Utica,
em Nova York, escreve: “E satisfatório poder afirmar que nenhum fato
relativo à insanidade parece mais seguro do que a certeza geral de sua
51
cura nos estágios iniciais”.
1840 O sexto recenseamento dos Estados Unidos revela que os negros livres do
Norte têm incidência muito maior de insanidade do que a população
branca da nação ou do que os negros escravos do Sul. Os críticos do
recenseamento afirmam que, em algumas cidades, o número de negros
arrolados como doentes mentais é superior ao número total de negros que
52
aí vivem.
1840 O Dr. Samuel B. Woodward, superintendente do Hospital Estadual de
Worcester, em Massachusetts, afirma que “as curas em casos recentes (...)
53
atingiram o ponto extraordinário de 90%”.
1840-1860 “Grandes somas de dinheiro foram destinadas a hospitais psiquiátricos.
Infelizmente, a maior parte desses fundos foi usada para encher os bolsos
de contratantes politicamente bem colocados, e para construir fachadas
extraordinariamente ornamentadas, segundo a tradição vitoriana, dando-
se pouca atenção a ambientes adequados ou à utilidade de medo geral.
Esses hospitais públicos passaram a ser conhecidos como ‘palácios de
54
pobres’ ou ‘catedrais da insanidade’.
1841 Dom Guéranger: “O espetáculo de todo um povo colocado sob maldição
por ter crucificado o Filho de Deus dá o que pensar aos cristãos (...) Este

49
Sachar, p. 287; Kamen, p. 282.
50
Citado em Hunter e Macalpine, p. 792.
51
Citado em Albert Deutsch, The Mentally Ill in America, p. 151.
52
Dain, pp. 104, 239.
53
Citado em Deutsche, p. 150.
54
Ibid., p. 142.
imenso castigo por um crime infinito deve continuar até o fim do
55
mundo”.
1842 O Dr. Thomas S. Kirkbride, superintendente do Hospital da Pensilvímia para
Doentes Mentais, escreve: “Deve-se considerar como inteiramente
provada (...) a proposição geral de que casos realmente recentes de
insanidade são comumente bem curáveis.” Comenta Albert Deutsch: “A
crença (...) de que a insanidade era facilmente curável se fosse tratada
cedo, rapidamente chegou ao público e aos círculos profissionais, e logo
atingiu o plano de dogma provado e imutável. Mas o que dizer da profissão
psiquiátrica como um todo? Será que apresentou objeções à difusão desse
engano? Ao contrário: com a exceção de poucos casos, não apenas
subscreveu entusiasticamente as concepções erradas então correntes, mas
56
as estimulou e fortaleceu tanto quanto pôde”.
1842 C. F. Lallemand, médico francês, adverte, em seu tratado de três volumes
sobre “ejaculações involuntárias”, que se a masturbação se tornasse mais
comum “ameaçaria o futuro das sociedades modernas; por isso, é
urgentemente necessário que tentemos extirpar essa calamidade
57
pública”.
1843 Daniel M’Naghten, acusado de atirar em Edward Drummond, secretário de
Sir Robert Peel, é libertado como “não culpado, por causa de insanidade”.
Depois de libertado, M’Naghten é encarcerado, primeiro no Bethlehem
Hospital, e depois no Manicômio Judiciário Bradmoor, onde morre em
1865. O seu caso estabelece um precedente, como a regra M’Naghten:
“(...) para fazer uma defesa com base em insanidade, é preciso provar
claramente que, no momento em que cometeu o ato, o acusado estava
agindo sob uma tal deficiência da razão, de doença de mente, de forma
que não sabia qual a natureza do ato que estava praticando; ou, se o sabia,
58
não sabia que o que estava fazendo era errado”.
1843 Dorothea L. Dix dirige-se à legislatura de Massachusetts, a fim de solicitar a
construção de hospitais psiquiátricos estaduais: “Venho apresentar os
pedidos da humanidade sofredora. Venho apresentar, diante do legislativo
de Massachusetts, a condição dos infelizes, dos abandonados, dos
proscritos. Venho como advogada dos impotentes, dos esquecidos, dos
insanos e idiotas, homens e mulheres (...) de seres desgraçados de nossas
prisões, e mais desgraçados em nossas casas de caridade (...) Falarei, tão
delicadamente quanto puder, de todos os guardas, diretores e outros
funcionários responsáveis, acreditando que a maioria errou, não por

55
Citado em Jules Isaac, The Teaching of Contempt, p. 112.
56
Deutsch, pp. 150-151.
57
Citado em E. H. Hare, “Masturbatory insanity: The history of an idea”, J. Ment. Sci., 108: 1-25 (jan.), 1962; p. 23.
58
Citado em Abraham S. Goldstein, The Insanity Defense, p. 45.
dureza de coração e crueldade intencional, mas por ausência de habilidade
59
e conhecimento (...)”.
1844 Fundação da Associação de Superintendentes Médicos das Instituições
Americanas para os Insanos. Sua primeira proposição oficial é a seguinte:
“Decidiu-se, pelo sentido unânime desta convenção, que a tentativa para
abandonar inteiramente o uso de todos os meios de coerção pessoal não é
60
justificada pelos verdadeiros interesses do insano”. Em 1921, essa
organização se transformou na Associação Americana de Psiquiatria.
1844 James M’Cune Smith, um negro livre nortista, desmente, em três longas
cartas ao New York Tribune, a afirmação de que os negros livres sejam
especialmente predispostos à insanidade: “É opinião difundida que a
emancipação fez dos negros livres surdos, mudos, cegos, idiotas, insanos,
etc. (...) A liberdade não nos deixou loucos; fortaleceu nossas mentes ao
exigir que usemos nossos recursos, e nos ligou às instituições americanas
61
com uma firmeza que apenas a morte poderá romper”.
1850-1900 A doutrina psiquiátrica de que a masturbação provoca insanidade atinge o
seu ponto máximo. “Por volta de 1880, o indivíduo que, por qualquer razão
inconsciente, desejasse amarrar, acorrentar ou infibular sexualmente
crianças ativas ou doentes mentais — as duas audiências cativas mais
facilmente disponíveis — enfeitá-los com instrumentos grotescos, fechá-
los em gesso, couro ou borracha, amedrontá-los ou até castrá-los,
cauterizar ou cortar os nervos dos órgãos genitais, poderia encontrar
autoridade médica e humanitária respeitável para fazê-lo sem dor de
consciência. A insanidade masturbatória se tinha tornado muito real —
62
estava influindo na profissão médica.”
1851 O estatuto de internamento do Estado de Illinois foi convertido em lei. “As
mulheres casadas (...) podem ser internadas ou detidas no hospital (no
hospício estadual de Jacksonville) segundo pedido do marido da mulher
63
(...) sem as provas de insanidade exigidas em outros casos.”
1854 O Presidente Franklin Pierce veta um projeto de lei, inspirado por Dorothea
Dix, e aprovado pelo Congresso, e que destinaria 12.500.000 acres de terra
64
pública para o “insano indigente”.
1854 A Comissão de Insanidade de Massachusetts apresenta o Relatório sobre a
Insanidade e a Idiotia em Massachusetts: “A insanidade é, portanto, parte

59
Dorothea L. Dix, Memorial to the Legislature of Massachusetts, 1843, p. 2.
60
Citado em Ridenour, p. 76,
61
Citado em Dain, p. 107.
62
Confort, p. 95.
63
Citado em Deutsch, p. 424.
64
Associação Nacional de Doença Mental, Calendar for 1968 (maio); e Dain, p. 176.
essencial da pobreza; e, sempre que a pobreza inclui um número
65
considerável de pessoas, manifesta-se essa doença”.
1855 O legislativo do Estado de Nova York autoriza a construção de instituições
66
separadas para insanos criminosos.
1855 Um editorial do New Orleans Medical and Surgical Journal afirma que:
“...nem a peste, nem a guerra, nem a varíola, nem uma multidão de males
semelhantes, foram mais desastrosos para a humanidade do que o hábito
67
da masturbação; é o elemento destrutivo da sociedade civilizada”.
1856 Nasce Sigmund Freud.
1856 Nasce Emil Kraepelin.
1858 Para rebater argumentos abolicionistas, o superintendente do Hospício do
Estado de Luisiana, em Jackson, declara que “(...) muito raramente os
nossos escravos ficam insanos (...) não se pode negar que a grande isenção
dos escravos com relação à insanidade se deve à sua situação, a proteção
que a lei lhes garante, à limitação de um estado suave de servidão, à
liberdade com relação a todas as angústias ligadas a seus desejos
presentes e futuros, à inexistência (em grande parte) de todas as bebidas
68
alcoólicas, e todas as formas de excessos em que caem os negros livres”.
1859 Heinrich Neumann, psiquiatra alemão que sustenta que não há vários tipos
de doença mental, mas apenas uma, declara: “Finalmente, chegou o
momento de deixarmos de procurar a planta, o sal ou o metal que (...) irão
curar a mania, a imbecilidade, a insanidade, o furor ou a paixão. Nunca
serão descobertos a não ser que se descubram pílulas que transformem
uma criança desobediente numa criança de boas maneiras, um homem
ignorante num artista hábil, um camponês grosseiro num cavalheiro gentil.
Podemos esfregar os pacientes com óleos do mártir até (...) descobrir mais
mártires do que a Inquisição espanhola — e ainda estaremos diante do
fato de que não estamos sequer um passo mais perto da cura da
insanidade. As atividades psíquicas do homem se transformam, não por
69
remédios, mas por hábito, instrução e esforço”.
1859 John Stuart Mill publica o livro A Liberdade: “O único objetivo que permite
o exercício do poder com relação a qualquer pessoa da comunidade,
contra a sua vontade, é impedir que faça mal a outros. O seu bem, físico ou

65
Massachusetts, Comissão sobre Loucura, 1854, Report on Insanity and Idiocy in Massachusetts, p. 55; citado em Dain, p. 68.
66
Associação Nacional de Doença Mental, Calendar for 1968 (abr.).
67
Citado em John Duffy, “Masturbation and clitoridectomy”, J.A.M.A. 186: 246-248 (19 de out.), 1963; p. 246.
68
Citado em Dain, p. 106.
69
Citado em Kraepelin, pp. 69-70.
moral, não é justificativa suficiente (...) Cada pessoa é o guardião de sua
70
saúde, física ou mental e espiritual”.
1861 Florence Nightingale observa que “os pacientes fazem aquilo que se espera
71
que façam”.
1863 Lincoln apresenta a Proclamação da Emancipação.
1863 David Skae, um médico escocês, introduz a expressão “insanidade
masturbatória” para indicar a insanidade que, segundo se supõe, é
72
causada pelo onanismo.
1864 Abre-se a Instituição Broadmoor para o Insano Criminoso. Entre os
primeiros internados está Daniel M’Naghten, transferido para o local
depois de 21 anos no Bethlehem Hospital.
1865 A Décima Terceira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, abolindo a
escravatura, é aprovada.
1865 Ignaz Semmelweis, descobridor da natureza da febre puerperal, morre
73
num hospital psiquiátrico particular.
1865 O Boston Times Messenger caracteriza o Hospital McLean como o
“divertimento dos aristocratas de Boston”, e como um local em que
pacientes sadios, injustamente confinados, são incapazes de obter uma
audição. O hospital é descrito como “uma bastilha para o encarceramento
74
de algumas pessoas incômodas para seus parentes”.
1867 Henry Maudsley publica Fisiologia e Patologia da Mente, considerada, por
75
Aubrey Lewis, “um marco na Psiquiatria inglesa”.
1868 Henry Maudsley: “Um estádio posterior e ainda pior a que chegam esses
seres degenerados (os masturbadores) é de auto-absorção soturna e
insociável, e de perda extrema de capacidades mentais (...) Ficam
intratáveis, quietos, etc. (...) Essa é, portanto, a história natural da
degeneração física e mental provocada nos homens pela masturbação. É
um quadro triste de degradação humana (...) Não tenho confiança em
meios físicos para deter o que se tornou uma doença mental grave; quanto
mais cedo cair para seu repouso degradado melhor para ele, e melhor para
o mundo que se livra dele. Esta é uma conclusão limitada e triste, mas
76
também inevitável”.

70
John Stuart Mill, On Liberty (1859), pp. 13, 18.
71
Citado em Hare, p. 18.
72
Ibid., p. 6.
73
William J. Sinclair, Semmetweis, His Life and Hil Doctrine, especialmente pp. 267-270.
74
Citado em Dain, p. 197.
75
Citado em Franz G. Alexander e Sheldon T. Selesnick, The History of Psychiatry, p. 154.
76
Citado em Comfort, pp. 107-108.
1869 John Stuart Mill publica seu ensaio sobre a Submissão das Mulheres: “Mas
será que já houve algum domínio que não parecesse natural aos
dominadores? (...) A generalidade do sexo masculino não pode tolerar a
ideia de viver com um ser igual (...) Hoje, o poder usa uma linguagem mais
suave, e, seja a quem for que oprima, sempre finge fazê-lo em benefício do
77
oprimido...”.
1869 Karl Ludwig Kahlbaum, um psiquiatra alemão famoso por ser um dos
primeiros a classificar as doenças mentais, dá o nome de “catatonia” a uma
síndrome que, segundo acreditava, “seria causada principalmente por
78
masturbação prolongada ou excessiva”.
1872 Emancipação dos judeus em todo o território do Império Alemão.
1876 T. Pouillet, médico francês, começa seu tratado “médico-filosófico” sobre a
masturbação com as seguintes palavras: “De todos os vícios e de todos os
erros que podem, corretamente, ser denominados crimes contra a
natureza, que devoram a humanidade, ameaçam sua vitalidade física e
tendem a destruir suas faculdades intelectuais e morais, um dos maiores e
79
mais difundidos — ninguém o negará — é a masturbação”.
1882 Richard von Krafft-Ebing, professor de Psiquiatria, da Universidade de
Viena, e um dos mais notáveis psiquiatras de seu tempo, publica a
Psychopathia Sexualis, o que o torna o fundador da moderna sexologia
psiquiátrica. Acredita ele que a masturbação pode levar à
80
homossexualidade. Havelock Ellis descreve o período do domínio do
campo do sexo por Krafft-Ebing, a partir de 1882, como “uma vasta clínica,
onde não eram possíveis atividades úteis ou progressivas. Para a maioria, a
ciência sexual significava uma subdivisão da Psiquiatria; a vaga doutrina da
‘degeneração’ (...) era considerada como a única chave para abrir todas as
portas, enquanto que a psicologia normal do sexo era afastada — se é que
81
era mencionada — em algumas linhas”. Em 1896, presidindo a reunião da
Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, onde Freud lê seu artigo
sobre “A Etiologia da Histeria”, Krafft-Ebing despreza a apresentação como
82
“um conto de fadas científico”.
1883 Emil Kraepelin publica seu Psychiatrie, Ein Lehrbuch (Um Manual de
Psiquiatria). Sistematiza a Psiquiatria com um novo esquema diagnóstico;
define as duas psicoses mais importantes — a insanidade maníaco-

77
John Stuart Mill, The Subjection of Women, pp. 229, 266.
78
Hare, p. 21.
79
Citado em Hare, p. 23.
80
Ibid., p. 9.
81
Citado em Aron Krich, “Introduction: The Humanization òf Sex”, em Aron Krich (org.), The Sexual Revolution, Vol. 1,
Pioneer Writings on Sex, p. 10.
82
Ibid., p. 14.
depressiva, que tende a melhorar e a repetir-se espontaneamente, e a
demência precoce, que tende para a progressiva deterioração.
C. 1885 Em Paris, a histeria é tratada através de extração física do ovário; em
Londres e Viena, através da extirpação cirúrgica do clitóris; em Heidelberg,
através da cauterização do clitóris.
1886 O Rei Luís II da Baviera é deposto. O Dr. Bernard von Gudden, professor de
Psiquiatria, da Universidade de Munique, chefia uma equipe de psiquiatras
que declara que Luís II é vítima de uma “doença mental bem conhecida
pelos psiquiatras e denominada paranoia”. Luís é colocado sob custódia e
83
sob-observação psiquiátrica; mata o Dr. Gudden e comete suicídio.
1890 Jonathan Hutchinson, presidente do Royal College of Surgeons, trata a
masturbação através de circuncisão, e defende a ideia de que “medidas
mais radicais do que a circuncisão, se a opinião pública permitisse sua
adoção, seriam uma real caridade para muitos pacientes de ambos os
84
sexos”.
1892 Anton Pavlovich Chekhov: “Doze mil pessoas são burladas por ano; todo o
negócio de hospitais (psiquiátricos) se baseia, exatamente como há vinte
anos atrás, em roubo, escândalo, difamação, nepotismo, charlatanismo
grosseiro e, como antes, o hospital é uma instituição imoral,
85
extremamente prejudicial à saúde dos internados.”
1894 Alfred Dreyfus, um oficial judeu do Estado-Maior Francês, é acusado e
preso por espionagem em favor da Alemanha. O anti-semitismo se difunde
pela França. Em 1898, Émile Zola publica o J’Accuse, denúncia da prisão
injusta de Dreyfus; é processado por calúnia ao exército; é preso, e foge
para a Inglaterra. Em 1906 — um ano depois de a Igreja e o Estado se
separarem na França — a sentença de Dreyfus é anulada e ele é liberado
de todas as acusações.
1895 O judaísmo é reconhecido como uma religião legal na Hungria. São
reconhecidos os direitos de cidadania integral dos judeus húngaros.
1897 O livro De Praestigiis Daemonum, de Johann Weyer, aparece pela última
vez no Index Librorum Prohibitorum.
1900 Sigmund Freud publica A Interpretação dos Sonhos.
1903 O Conde Sergey Yulievich Witte, estadista russo, falando a Theodor Herzl,
fundador do sionismo: “Eu costumava dizer ao finado Imperador Alexandre
III: Majestade, se fosse possível afogar os seis ou sete milhões de judeus da

83
Werner Richter, The Mad Monarch, p. 250; ver também Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, pp. 48-53.
84
Citado em Comfort, p. 108.
85
Anton Pavlovic Chekhov, “Ward N.° 6” (1892), em Seven Short Stories by Chekhov, pp. 106-157; p. 126.
Rússia no Mar Negro, eu estaria inteiramente a favor da medida. Se isso
86
não é possível, devemos deixar que continuem a viver”.
1903 O livro Os Protocolos dos Sábios de Sião é publicado na Rússia. Foi escrito
por Sergei Nilus, um monge ortodoxo, disso encarregado pelo Czar Nicolau
II. Pretende ser um documento, rascunhado por um grupo de judeus
conspiradores, conhecidos como os Sábios de Sião, a respeito de seu plano
para conquistar o mundo. Seu objetivo era inflamar as paixões dos
camponeses russos e fazer com que se voltassem contra os judeus. Este
documento forjado se transformou numa importante fonte na literatura
87
anti-semita do século XX.
1904 O Relatório Anual do Hospital dos Amigos, em Filadélfia, registra que “é um
prazer verificar o fato de que, nos últimos anos, a Medicina Mental está
ingressando numa nova era, e em consequência disso houve considerável
88
mudança no espírito do hospício(...)
1905 Bernard Sache, eminente psiquiatra de Nova York e autor de um Tratado
sobre Doenças Nervosas das Crianças, recomenda o tratamento da
89
masturbação, por cauterização da espinha e dos órgãos genitais.
1908 Clifford Whittingham Beers inicia a fundação da Sociedade de Higiene
Mental de Connecticut, a primeira associação estadual de seu tipo, e início
do movimento organizado de saúde mental nos Estados Unidos.
Publicação do livro de Beers, Um Espírito que se Encontrou: Uma
Autobiografia: “Um homem insano é um homem insano, e, enquanto
90
insano, deve ser colocado numa instituição para tratamento”.
1909 Fundação da Comissão Nacional de Higiene Mental. A primeira atividade
oficial da Comissão, em 1912, é adotar uma resolução “pedindo ao
91
Congresso que exija exame mental adequado dos imigrantes”. A
Comissão também pede “o princípio de cuidado estatal completo, isto é, as
instituições para doentes mentais devem ser de propriedade dos Governos
92
estaduais e por estes dirigidas”.
1910 Charles Binet-Sanglé publica A Loucura de Jesus: “Em resumo, a natureza
das alucinações de Jesus, tal como descritas nos Evangelhos ortodoxos, nos
permite concluir que o fundador da religião cristã sofria de paranoia
93
religiosa”.

86
Adolf Leschnitzer, The Magic Background of Modern Anti-Semitism, p. 193.
87
Max I. Dimont, Jews, Cod, and History, p. 321.
88
Citado em Dain, p. 137.
89
Spitz, p. 123.
90
Cliford Whittingham Beers, A Mind That Found Itself, p. 218.
91
Ridenour, p, 77.
92
Ibid.
93
Citado em Albert Schweitzer, The Psychiatric Study of Jesus, p. 44.
1911 Eugen Bleuler cunha o termo “esquizofrenia”.
1911 A Psiquiatria alemã pode gabar-se de 225 hospitais particulares para
doentes mentais, 187 hospitais psiquiátricos públicos, 85 instituições para
alcoólatras, 16 clínicas universitárias, 11 enfermarias para doentes mentais
em prisões, 5 enfermarias para doentes mentais em hospitais militares;
num único ano 143.410 pessoas são internadas nessas instituições. O
94
número de “alienistas” praticantes é de 1.376.
1912 William Hirsch, psiquiatra, americano, publica Conclusões de um Psiquiatra,
em que afirma que Jesus sofria da doença mental conhecida como
paranoia. “Tudo o que sabemos a seu respeito se ajusta tão perfeitamente
ao quadro clínico da paranoia que é difícil supor que as pessoas possam
95
sequer discutir a exatidão do diagnóstico.”
1913 Albert Schweitzer publica sua dissertação médica intitulada A Sanidade do
Jesus Escatológico. Seu objetivo era refutar as afirmações de alguns
psiquiatras, segundo os quais Jesus seria insano, e provar que era
mentalmente sadio. “Neste livro, procurei examinar integralmente a
conjetura (...) de que Jesus (...) deve ser considerado como, de algum
modo, psicopático. (...) O fato de que tenho a imparcialidade necessária
para essa empresa pode ser comprovada, acredito, por meus estudos
anteriores sobre a vida de Jesus (...) Os únicos sintomas [de Jesus] que
podem ser aceitos como históricos e talvez discutidos de um ponto de vista
psiquiátrico — a elevada opinião que Jesus tinha a seu próprio respeito e
talvez também a alucinação no batismo — estão longe de provar a
96
existência de doença mental.”
1917 Emil Kraepelin: “A grande guerra em que agora estamos empenhados nos
obrigou a reconhecer o fato de que a ciência poderia forjar, para nós, um
grande número de armas efetivas para uso contra um mundo hostil.
Poderia ser diferente se estamos lutando contra um inimigo interno [isto é,
doença mental] que procura destruir a estrutura de nossa existência? (...)
Por isso, devemos notar, com orgulho e satisfação, que para nós, na
Alemanha, foi possível, no meio de uma guerra, dar o primeiro passo para
a criação de um instituto de pesquisa cujo objetivo é verificar a natureza
das doenças mentais e a descoberta de técnicas efetivas para sua
prevenção, alívio e cura. Todos os que contribuíram para o êxito desse
grande empreendimento, sobretudo Sua Majestade o Rei (...) merecem
nossos agradecimentos mais cordiais (...) Já se preparou o terreno para

94
Kraepelin, pp. 106-107.
95
Citado em Schwitzer, p. 40.
96
Ibid., pp. 27-28, 72.
novos métodos que nos permitirão conseguir uma vitória diante da mais
97
terrível doença que pode atormentar o homem”.
1918 Ernest Jones, um dos pioneiros da Psicanálise inglesa, sustenta que
“verificar-se-á que a neurastenia verdadeira (...) depende de onanismo
98
excessivo ou ejaculações involuntárias”.
1919 A Décima Oitava Emenda (Proibição de Bebidas Alcoólicas) é acrescentada
à Constituição dos Estados Unidos. É revogada em 1933.
1924 Forma-se a Associação Ortopsiquiátrica Americana. A organização é
iniciada por Karl Menninger, que envia uma carta a vinte e seis notáveis
psiquiatras americanos, convocando-os para formar um novo grupo “de
99
representantes da interpretação neuropsiquiátrica ou médica do crime”.
1925 Adolf Hitler publica Mein Kampf: “Por sua aparência externa é possível
verificar que eles [os judeus] não são amigos da água, e, para nosso mal-
estar, podemos saber disso com os olhos fechados. (...) Muitas vezes eu
ficava com o estômago virado ao sentir o odor desses homens vestidos
com cafetãs. A isso se acrescentavam suas roupas sujas e sua aparência
não-heróica. Tudo isso dificilmente seria atraente, mas se tomava
positivamente repulsivo quando se descobria, além de sua sujeira física, as
manchas morais desse ‘povo eleito’ (...) Haveria uma só forma de sujeira
ou devassidão, sobretudo na vida cultural, sem que pelo menos um judeu
que participasse dela? (...) Hoje, acredito que estou agindo de acordo com
a vontade do Senhor: ao me defender do judeu, estou trabalhando pela
100
obra de Deus.”
1928 Ladislau Joteph von Meduna, de Budapeste, introduz o choque de
metrazol na Psiquiatria.
1929 Franz Alexander e Hugo Staub publicam O Criminoso, o Juiz e o Público: “O
criminoso neurótico (...) é uma pessoa doente (...) Se curável, deve ser
encarcerado durante o período de tratamento psiquiátrico, enquanto
representar uma ameaça para a sociedade. Se incurável, deve ficar no
101
hospital tanto quanto os que são incuráveis”.
1930 Karl Menninger publica The Human Mind, “... que ciência ou cientista estão
102
interessados pela justiça? Será que a pneumonia é justa? E o câncer?”
1930 Realiza-se o Primeiro Congresso Internacional de Higiene Mental
(Washington, D.C.)

97
Kraepelin, pp. 152-154.
98
Citado em Hare, p. 9.
99
Ridenour, p. 39.
100
Citado em Rogow, pp. 195, 202.
101
Franz Alexander e Hugo Staub, The Criminal, the Judge, and the Public, p. xiii.
102
Karl A. Menninger, The Human Mind, p. 428.
1933 Adolf Hitler toma-se Chanceler da Alemanha.
1933 Louis Thomas McFadden, congressista do Estado da Pensilvânia, num
discurso pronunciado na Câmara dos Representantes, afirma: “Sr.
Presidente, na Alemanha não há perseguição real aos judeus (...) mas tem
havido uma suposta perseguição porque há 200.000 comunistas
indesejáveis na Alemanha, em grande parte judeus da Galícia (...) e a
Alemanha está ansiosa por livrar-se desses judeus comunistas específicos
(...) Estão dispostos a manter os judeus ricos, como Max Warburg e Franz
103
Mendelsohn”.
1933 Manfred Sakel, de Viena, introduz o tratamento de choque de insulina na
Psiquiatria.
1935 Egas Moniz, de Lisboa, introduz a lobotomia pré-frontal na Psiquiatria.
1935 São promulgadas as Leis de Nurembergue. A lei proíbe relações sexuais
entre alemães e judeus.
1938 U. Cerletti e L. Bini, de Roma, introduzem o tratamento de choque elétrico
na Psiquiatria.
1938 Os nazistas proíbem o tratamento de arianos por médicos judeus, sob pena
104
de grave castigo para o paciente e o médico.
1938 Karl Bonhoeffer, professor de Psiquiatria, da Universidade de Berlim, lidera
uma equipe de psiquiatras alemães que, com um grupo de militares,
planejam tirar Hitler do poder, prendendo-o, declarando-o mentalmente
doente e intemando-o num hospital psiquiátrico. O “golpe psiquiátrico”
105
não é executado.
1938 Harry F. Anslinger, comissário de narcóticos nos Estados Unidos: “A Seção
de Narcóticos reconhece o grande perigo da maconha, pois nitidamente
prejudica a mentalidade e o seu uso contínuo leva diretamente ao asilo de
106
alienados”.
1939 Com o início da guerra, Hitler ordena a aplicação do “programa de
eutanásia” do Partido Nacional Socialista: “As pessoas com moléstias
incuráveis devem ter a mercê da morte.” As primeiras câmaras de gás são
construídas em hospitais psiquiátricos e começa a morte por gás de
doentes mentais (e algumas outras pessoas com doenças crônicas).
Durante os dois anos seguintes, aproximadamente 50.000 alemães (não-
judeus) são mortos com gás de monóxido de carbono em quartos de

103
Citado em Rogow, p. 321.
104
Leschnitzer, p. 49.
105
Terene Prittie, Germans Against Hitler, pp. 61-63.
106
Citado em Antoni Gollan, “The great marijuana problem”, Nat. Rev., 30 de jan., 1968, pp. 74-80; p. 74.
morte, disfarçados, como mais tarde o foram em Auschwitz, como salões
107
de chuveiros e banheiros.
1940 Edward E. Strecker, em sua Conferência Thomas Salmon, diz que
“indiscutivelmente, o mundo está doente — mentalmente doente (...) O
oportunista político oferece panaceias de comunismo, fascismo e
totalitarismo (...) que atuam ao tentar provocar nacionalismo intenso.
Dificilmente a higiene mental pode considerá-los como realidades que
apresentem muito incentivo para a cura. Ao contrário, pareceriam
psicopatologias de massa (...) Entre as ideologias e práticas políticas
existentes, a democracia é a que mais se aproxima de um atendimento dos
108
ideais de higiene mental de pensamento maduro e independente”.
1941 George H. Stevenson, presidente da Associação Psiquiátrica Americana,
declara que “este desafio [para impedir a ocorrência de guerras] nos cabe
por causa da estreita relação entre os fatores etiológicos, tal como são
vistos na psicose individual e na psicose internacional — na guerra (...)
Sabemos que há muitos fatores psicopatológicos que constantemente
levam para a guerra, que, como psiquiatras, somos capazes de avaliar mais
adequadamente do que outros grupos que não têm nosso tipo de
formação ou experiência (...) Quando a história de nosso segundo século
for escrita, pode-se registrar que a Associação Psiquiátrica Americana foi
em grande parte responsável pela eliminação da psicose internacional — a
109
guerra”.
1941 A morte por gás de doentes mentais na Alemanha é interrompida, e
começa a morte por gás de judeus no Leste europeu. Os homens
encarregados desse programa são “da Chancelaria de Hitler ou do
Departamento de Saúde do Reich (...). As fábricas de morte de Auschwitz,
Chelmno, Majdanek, Belzek, Treblinka e Sobitor são oficialmente intitulada
110
“Fundações de Caridade para Cuidado Institucional”.
1943 Os líderes judeus enganam seu povo quanto à existência de fábricas de
morte em alguns campos de concentração porque, como o disse, por
exemplo, o Dr. Leo Baeck, antigo rabino-chefe de Berlim, “o fato de viver
na expectativa de morte por gás apenas aumentaria o sofrimento”. Por
isso, “os judeus se apresentavam como voluntários para a deportação de
Theresienstadt (onde não havia câmaras de gás) para Aüschwitz (onde
havia essas câmaras), e denunciavam os que tentavam lhes dizer a verdade
111
como “não sadios”.

107
Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem, p. 95.
108
Edward A. Strecker, Beyond the Clinical Frontiers, p. 180.
109
George H. Stevenson, “Presidential address; The psychiatric public health aspects of war”, Amer. J. Psychiat., 98; 1-8 (julho),
1941, pp. 3, 8.
110
Arendt, p. 96.
111
Ibid., p. 105.
1945 Albert Deutsch empreende “(...) um levantamento jornalístico de hospitais
psiquiátricos estaduais (...) A maioria estava localizada nos grandes centros
de cultura de nossos estados mais ricos, ou perto deles — por exemplo,
Nova York, Michigan, Ohio, Califórnia, e Pensilvânia. Em algumas das
enfermarias havia cenas que poderiam ser comparadas aos horrores dos
campos de concentração dos nazistas — centenas de doentes mentais nus,
entulhados em enfermarias imensas, semelhantes a estrebarias, cheias de
sujeira, em todos os graus de deterioração, não atendidos nem tratados,
despidos de qualquer vestígio de dignidade humana, muitos em estádios
112
de semi-inanição”.
1945 Ezra Pound, acusado de traição, é declarado mentalmente incapaz de
enfrentar o processo. É confinado no St. Elizabeths Hospital, em
Washington, D.C., durante treze anos. Em 1958, é libertado, como
“incuravelmente insano, mas não perigoso”. O Juiz Bolitha J. Laws diz as
seguintes palavras ao júri que declarou Pound insano: “(...) num caso deste
tipo, em que o Governo e o representante da defesa se uniram numa
opinião clara e unívoca quanto à situação, suponho que os senhores não
tenham dificuldade para decidir”. Em três minutos, o júri apresentou o
113
veredicto de “mente perturbada”.
1946 O Presidente Harry S. Truman sanciona a lei da Saúde Mental Nacional. A
lei autoriza a expansão das funções da Divisão de Higiene Mental do
Serviço de Saúde Pública.
1946 Brock Chisholm, diretor dos Serviços Médicos Gerais do Exército
Canadense durante a Segunda Grande Guerra, e secretário geral da
Organização Mundial de Saúde das Nações Unidas: “Juntamente com as
outras ciências humanas, a Psiquiatria precisa agora decidir qual deve ser o
futuro imediato da espécie humana. Ninguém mais pode fazer isso. E esta
114
é a responsabilidade fundamental da Psiquiatria”.
1949 A Divisão de Higiene Mental do Serviço de Saúde Pública dos Estados
Unidos é reorganizada e se torna o Instituto Nacional de Saúde Mental.
1950 O movimento americano de saúde mental se expande rapidamente: a
Fundação Psiquiátrica, a Fundação Nacional de Saúde Mental e a Comissão
Nacional de Saúde Mental se fundem para formar a Associação Nacional
de Saúde Mental.
1952 Os tranquilizantes são introduzidos na prática psiquiátrica; dão um novo
método químico para controlar os pacientes em hospitais psiquiátricos.
Tais medicamentos provocam o aparecimento de uma nova disciplina,

112
Deutsch, pp. 448-449.
113
Citado em Thomas S. Szasz, Law, Liberty, and Psychiatry, pp. 202-203.
114
G. Brock Chisholm. “The psychiatry of enduring peace and social progress”, Psychiat. 9: 3-11 (jan.), 1946; p. 11.
chamada Psicofarmacologia, isto é, o estudo de medicamentos úteis no
tratamento de doenças mentais e sua aplicação na prática clínica. O uso
desses agentes farmacológicos confirma a crença de que as perturbações
psiquiátricas são doenças médicas, curáveis com medicamentos
específicos.
1952 O Congresso promulga a Lei McCarran que, entre outras coisas, diz que “os
estrangeiros que tenham: a) personalidade psicopática não devem ser
115
admitidos nos Estados Unidos”. A partir de então, os imigrantes
homossexuais são imediatamente classificados como “personalidades
psicopáticas”, e, se entraram no país depois da promulgação da lei, são
116
deportados.
1954 Promulga-se a Lei de Serviços de Saúde Mental Comunitária do Estado de
Nova York, a primeira legislação de saúde mental desse tipo.
1954 Monte Durham, um homem acusado de violação de domicílio, é absolvido
como “não culpado, em razão de insanidade”, e confinado no St. Elizabeths
Hospital. Seu caso estabelece precedente legal como a regra Durham: “A
regra que hoje aceitamos (...) diz simplesmente que um acusado não é
criminalmente responsável se seu ato contrário à lei foi o produto de
117
doença mental ou deficiência mental”.
1955 Egas Moniz recebe o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pelo
tratamento de esquizofrenia por lobotomia pré-frontal.
1957 Abe Fortas, advogado de defesa indicado pelo tribunal no caso Durham v.
United States e, depois, Juiz Associado da Corte Suprema dos Estados
Unidos: “Qual, é, então, a significação básica do caso Durham? Sugiro que
seja a seguinte: o Direito reconheceu a Psiquiatria contemporânea. Notou
as descobertas da Psiquiatria e agiu de acordo com elas — de acordo com
as descobertas da grande amplitude, da complexidade e da diversidade de
perturbações mentais e de sua profunda influência no comportamento
humano (...) A Psiquiatria foi admitida [no tribunal] por seus próprios
méritos, e por causa de sua competência para ajudar na classificação dos
que devem ser criminalmente responsáveis e dos que devem ser tratados
como psicológica ou emocionalmente perturbados (...) Durham é um
118
privilégio, uma lei de direitos para a Psiquiatria (...)”.

115
Immigration and Nationality Act of 1952 par. 212 (a) (4), 8 U.S.C., par. 1182 (a) (4), 1964; popularmente conhecida como Lei
McCarran.
116
Thomas R. Byrne Jr., e Francis M. Mulligan, “Psychopathic personality and sexual deviation; Medical terms or legal catch-
alls-Analysis of the status of the homosexual alien”, Temple Law Quarf., 40; 328-347 (primavera-verão), 1967.
117
Durham v. United States, 214 F. 2d, 862 (D.C. Circ.), 1954; pp. 874-875.
118
Abe Fortas, “Implications of Durham's case”, Amer. J. Psychiat., 113: 577-582 (jan.), 1957; pp. 581, 579.
1957 A Comunidade de Massachusetts revoga a extinção dos direitos civis dos
condenados como feiticeiras em Salem, mas não abrangidos pela lei de
1711.
1957 O Tribunal de Apelação do Distrito de Colúmbia declara que “se (...) [o
acusado] tem uma doença mental que torna provável a prática de outros
atos violentos depois de cumprida sua sentença, a prisão- não é um
remédio. Não apenas seria errado encarcerá-lo, mas o encarceramento
não garantiria a comunidade contra repetições de sua violência. De outro
lado, a hospitalização serviria ao duplo propósito de dar um tratamento
exigido por sua doença e mantê-lo confinado até que seja seguro libertá-
119
lo”.
1960 A 3 de julho, George Lincoln Rockwell, comandante do Partido Nazista
Americano, é detido em Washington, D.C., ao fazer uma reunião ao ar
livre. A pedido da promotoria, é detido, durante trinta dias, para
observação psiquiátrica, no Hospital Geral do Distrito de Colúmbia. Parte
do relatório do psiquiatra-chefe ao Tribunal é o seguinte: “Em minha
opinião, ele [Rockwell] tem uma personalidade paranoide (...) [No entanto]
aceitar um depoimento psiquiátrico que pode ser considerado como
interferência em seu direito de liberdade de palavras e seu afastamento da
sociedade por causai de uma diferença de ideologia política dará
descrédito à profissão psiquiátrica e favorecerá a causa; de Rockwell”. Em
agosto, Rockwell foi declarado* mentalmente capaz de enfrentar o
processo, considerado culpado de conduta perturbadora e recebeu uma
120
multa de cem dólares.
1961 George Lincoln Rockwell: “A resposta espantosa ao enigma judaico é que
os judeus são loucos. Como raça, os judeus são paranoides. Esse povo
doente precisa ser detido antes de carregar o mundo com ele”. Em 1965,
Rockwell desenvolveu sua tese da seguinte maneira: “[Os judeus]
constituem um povo único, que se distingue do resto da Família Branca de
Pessoas. As massas judaicas sofrem de sintomas de paranoia: delírios de
grandeza, delírios de perseguição. Os judeus acreditam que são o ‘povo
121
escolhido’ de Deus, e eternamente se queixam de ‘perseguição’ ...”
1961 Adolf Eichmann, ao ser processado em Jerusalém, é examinado por seis
122
psiquiatras e considerado normal. Robert Servatius, um advogado de
Colônia que defendia Eichmann, procurou inocentar seu cliente das
acusações de responsabilidade por “esqueletos, esterilizações, mortes por
gás e outros assuntos médicos. O juiz-presidente interrompe: “Dr.

119
Williams v. United States, 250 F. 2d, 19 (1957); p. 26.
120
A. M. Rosenthal e Arthur Gelb, One More Victim, pp. 119-120.
121
Citado em ibid., p. 235.
122
Arendt, p. 22.
Servatius, suponho que o senhor cometeu um lapso quando disse que a
morte por gás era um assunto médico”. Servatius responde: “Era
realmente um assunto médico, pois era preparada por médicos; e era uma
123
questão de matar, e matar também é um assunto médico”.
1961 A Subcomissão dos Direitos Constitucionais da Comissão do Judiciário do
Senado dos Estados Unidos realiza investigações sobre “Os Direitos
Constitucionais do Mentalmente Doente”. Francis J. Braceland diz: “É
característica de algumas doenças que as pessoas não conheçam a sua
doença. Em resumo às vezes é necessário, durante algum tempo, proteger
124
as pessoas de si mesmas (...)” Jack Ewalt: “O objetivo básico [do
internamento] é ter a certeza de que seres humanos doentes estão
125
recebendo tratamento adequado às suas necessidades (...)”
1962 A Corte Suprema dos Estados Unidos declara que o vício em narcótico é
uma doença, não um crime, e que “um Estado poderia estabelecer um
programa para o tratamento compulsório para os viciados em narcóticos.
Esse programa de tratamento poderia exigir períodos de confinamento
126
involuntário”.
1963 O Presidente John F. Kennedy apresenta sua “Mensagem ao Congresso
sobre a Doença Mental e a Retardação Mental”: “Proponho um programa
nacional de saúde mental destinado a auxiliar o início de uma acentuação
inteiramente nova, bem como um método inteiramente novo para o
cuidado com o doente mental. Esse método se baseia fundamentalmente
em novo conhecimento e novos medicamentos conseguidos e
desenvolvidos nos últimos anos, e que permitem que a maioria dos
doentes mentais seja tratada de modo adequado e logo se recupere (...)
Precisamos de um novo tipo de recursos para tratamento de saúde, um
tipo de recursos que leve o tratamento para saúde mental de volta para a
127
principal corrente da Medicina americana (...)”
1963 O Presidente John F. Kennedy é assassinado em Dallas, no Texas. Lee
Harvey Oswald é acusado do assassinato. Na cadeia, é assassinado por Jack
Ruby. Tanto Oswald quanto Ruby são geralmente considerados loucos, e
os crimes são desculpados como a violência sem sentido de dois lunáticos.
“John F. Kennedy foi morto por um lunático, Lee Oswald, que
momentaneamente se tinha identificado com o paranoide Fidel Castro, de
Cuba. E Oswald foi, por sua vez, dentro de dois dias, morto por outro

123
Ibid., p. 64.
124
Constitutional Rights of the Mentally Ill, p. 64.
125
Ibid., p. 75.
126
Robinson v. Califórnia, 370 U.S. 660, 1962; p. 665.
127
John F. Kennedy, mensagem do Presidente dos Estados Unidos relativa à doença mental e à retardação mental, 88.°
Congresso, l.a sessão, 1963, Câmara de Representantes, Doc. n.° 58, p. 2.
128
louco, Jack Ruby.” “Se Oswald tivesse recebido auxílio psiquiátrico
129
quando jovem, John Kennedy poderia estar vivo hoje.”
1964 1.189 membros da Associação Psiquiátrica Americana declaram o Senador
Barry Goldwater “psicologicamente incapaz de servir como Presidente dos
Estados Unidos”. Muitos dos psiquiatras que sustentam essa opinião
diagnosticam, no Senador Goldwater, a esquizofrenia paranóide ou uma
condição afim: exemplo de diagnóstico, apresentado por um psiquiatra
anônimo, no Centro Médico de Cornell: “O Senador Goldwater me parece
uma personalidade paranoide ou esquizofrênica, de tipo paranoide (...) É
130
um homem potencialmente perigoso”.
1964 Sargent Shriver, diretor da Divisão de Oportunidade Econômica: “Dêem-
nos um mundo saudável — no sentido integral da palavra — e o
131
comunismo finalmente desaparecerá da Terra”.
1965 Um colunista de jornal diz que a imprensa comunista considera o
132
Presidente Johnson “(...) doente, tanto física quanto mentalmente”.
1966 O Presidente Lyndon B. Johnson declara que o “alcoólatra sofre de uma
133
doença”. A União Americana das Liberdades Civis pede que os indivíduos
acusados de intoxicação pública sejam tratados como pacientes, e não
como criminosos.
1967 Suh Tsung-hwa, principal neuropsiquiatra da China Comunista: “...Aqui não
134
existem as neuroses e as psicoses, nem a paranoia”.
1967 Um editorial do Journal of the American Medical Association declara que
“o médico contemporâneo vê o suicídio como manifestação de doença
emocional. Raramente o considera em contexto diferente do da
135
Psiquiatria”.
1967 Numa “Declaração sobre a Posição Quanto ao Problema da Adequação de
Tratamento”, a Associação Psiquiatria Americana declara que “as coerções
podem sem impostas [ao paciente] tanto internamente, através de meios
farmacológicos, como através de fechamento de uma porta de enfermaria.

128
Theodore H. White, The Meking of the President, p. 29.
129
Abraham Ribicoff, “Why I proposed a commission to study the problem of childhood mental illness”, Psychiat. News, jan.,
1966, p. 6.
130
“The unconscious of a conservative: A special issue on the mind of Barry Goldwater”, Fact, Vol. 1, No. 5 (set.-out.), 1964; p.
55.
131
Citado em Martin Cansberg, “Peace Corpus sets world health aid, New York Times, 16 de nov. 1964. p. 1.
132
Citado em William F. Buckley, Jr., “LBJ is getting it in the neck unfairly, Syracuse (N.Y.) Hetald-American, 18 de julho,
1965, p. 17.
133
Citado em Ruth Fox, “Alcoholism in 1966”, Amer. J. Psychiat., 123: 337-338 (set.), 1966; p. 337.
134
Citado em Goffredo Parise, “No neurotics in China”, Atlas, 13: 46-47 (fev.), 1967; p. 47.
135
Editorial: “Changing concepts of suicide”, J .A.M ,A., 199: 162 (mar.) (6), 1967.
Qualquer dessas imposições pode ser componente legítimo de um
136
programa de tratamento”.
1967 Harvey J. Tompkins, presidente da Associação Psiquiátrica Americana, diz
em seu discurso de posse na presidência: “Estamos nos aproximando de
uma população de mais ou menos 20.000 psiquiatras, mais ou menos
quatro vezes mais do que há duas décadas atrás. Esse crescimento tão
satisfatório não poderia ter ocorrido sem subsídios governamentais que
foram encaminhados para a educação de profissões liberais (...) Cabe-nos,
agora, caminhar com razoável rapidez para a auto-aceitação e a projeção
de uma imagem diferente de nós mesmos — uma imagem que reflita mais
adequadamente as correntes sociais, intelectuais, políticas e econômicas
que, segundo o demonstra a história, têm tanto impacto no caráter de
137
nossa prática quanto o acúmulo de novo conhecimento”.
1967 George Stevenson, antigo presidente da Associação Psiquiátrica
Americana: “Para nós, na APA, a guerra deve ser um programa de saúde
pública psiquiátrica ... Uma solução para o problema talvez ainda esteja
muito longe, mas não há razão para que continuemos a ignorá-lo, ou
deixá-lo apenas aos políticos ou aos propagandistas da extrema esquerda
ou da extrema direita (...) o comportamento de guerra resulta,
138
basicamente, de perturbação emocional”.
1967 Dick Gregory, comediante negro: “Esta nação [os Estados Unidos] é a
139
nação mais racista do mundo. O país está... doente e louco”.
1968 O romancista Norman Mailer: “Penso que a sociedade americana está-se
140
tornando progressivamente louca (...)”
1968 Herbert Marcuse, professor de Filosofia, da Universidade da Califórnia:
“[Numa sociedade democrática adequada, deve haver] negação de
tolerância quanto à palavra e reunião de grupos e movimentos que (...) se
opõem à ampliação de serviços públicos, seguro social, serviços médicos,
etc. (...) Na medida em que esta sociedade [dos Estados Unidos] dispõe de
recursos maiores do que em qualquer momento anterior, e, ao mesmo
tempo, deforma, estraga e perde tais recursos mais do que em qualquer
141
momento anterior, considero que esta sociedade está louca (...)”

136
Conselho da Associação Psiquiátrica Americana, “Position statement on the question of adequacy of treatment”, Amer. J.
Psychiat., 123: 1458-1460 (maio), 1967; p. 1459.
137
Harvey J. Tompkins, “The presidentíal address: The physician in contemporary society”, Amer. J. Psychiat., 124: 1-6 (julho),
1967; P 3.
138
George Stevenson, “Psychopathology of international behavior” (Carta à Redação), Amer. J. Psychiat., 124: 166-167 (nov.),
1967.
139
Citado em William F. Buckley, Jr., “Reagan and Yale”, Syracuse (N.Y.) Post-Standard, 26 de dez., 1967, p. 5.
140
Citação em “Democracy has/hasn’t a future... a present”, Neto York Times Magazine, 26 de maio, 1968, pp. 30-31, 98-104; p.
101.
141
Citado em ibid., pp. 98, 102.
1968 Drew Pearson, jornalista: “Pela primeira vez em 192 anos de história dos
Estados Unidos, um homem com doença mental definida é candidato à
Presidência dos Estados Unidos. Segundo o disse o Senador Wayne no
Senado, os registros oficiais mostram que o Governador Wallace (...) em
junho de 1946 requereu e em dezembro desse ano obteve compensação
por incapacidade de psiconeurose, resultante de serviço, para a qual se
atribuiu uma avaliação de 10% (...) Alguns observadores que têm
acompanhado a ginástica mental da atual campanha dizem que os médicos
142
fizeram avalição modesta”.
1968 A ordem de 1492, decretada por Fernando e Isabel, e pela qual os judeus
foram expulsos da Espanha, é declarada nula pelo Governo espanhol. No
mesmo dia [16 de dezembro de 1968], abre-se a primeira sinagoga
143
construída no país, depois de 600 anos.
1968 Howard P. Rome, conselheiro de Psiquiatria da Clínica Mayo, e antigo
presidente da Associação Psiquiátrica Americana, diz: “Hoje, no entanto
(...) notamos que em qualquer sentido real, a sociedade também pode ser
doente (...) Na realidade, o mundo todo é uma área de contágio para a
Psiquiatria atual, e esta não deve aterrar-se diante da magnitude dessa
144
tarefa”.

142
Drew Pearson, “Wallace’s mental record”, Syracuse (N.Y.) Post- Standard, 16 de out., 1968, p. 11.
143
Richard Eder, “1492 ban on Jews is voided by Spain”, New York Times, 17 de dez., 1968, pp. 1, 14.
144
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