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características mais abstratas e gerais dos objetos e dos fenômenos (Lalande,

20. O pensamento e suas alterações 1996).


Para a formação dos conceitos, são necessários dois passos fundamentais:
• Eliminação dos caracteres de sensorialidade. Esses caracteres ainda
marcam essencialmente as representações. Por exemplo, quando se
Eu sou, eu existo; isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o representa uma cadeira, ela ainda é visualizada mentalmente; imagina-se
tempo em que eu penso; pois poderia ocorrer que, se eu deixasse de pensar, uma cadeira preta, de madeira, bonita ou feia, pequena ou grande, etc. Essa
eu deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Agora eu nada admito que representação de cadeira ainda tem forte aspecto sensorial. Quando se
não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu não sou, conceitualiza cadeira como um objeto de quatro pés, móvel utilizado para
precisamente falando, senão uma coisa que pensa [...] sentar, suprime-se a dimensão sensorial (no caso, aqui, visual), ficando
apenas a dimensão puramente conceitual.
Descartes
• Generalização. Quando, por exemplo, se pensa em “cadeira” como
conceito, tal conceito é válido para qualquer tipo de cadeira, seja a usada em
Cabe alertar que este capítulo se sobrepõe e dialoga com os capítulos seguintes
casa, seja a cadeira de trabalho, a cadeira de criança, etc. Assim, o conceito
sobre o juízo de realidade/delírio e sobre a linguagem e suas alterações. O juízo
resulta da síntese, por abstração e generalização, de um número considerável
de realidade/delírio, embora seja um aspecto do pensamento, pela importância
de fenômenos singulares.
do delírio em psicopatologia, foi tratado em capítulo próprio.
A linguagem, embora distinta do pensamento, muitas vezes é sobreposta a Há um debate na psicologia moderna (Gazzaniga; Heatherton, 2005) sobre se
ele ou considerada sua simples e automática expressão. Isso não nos parece as representações são de fato imagens, como fotografias armazenadas na mente
adequado, pois, embora pensamento e linguagem se articulem muito humana, ou se são representações proposicionais. Nessa linha de raciocínio, a
intimamente no ser humano, há aspetos específicos e autônomos em cada um representação proposicional de uma mesa não seria a imagem-fotografia de uma
deles (para este debate, ver Pinker, 2008; Arendt, 2017). mesa genérica no cérebro, mas as proposições, quase sempre de natureza
linguística, associadas à ideia de mesa.
Assim, ao evocar a representação visual de uma cadeira (ou mesa, carro,
DEFINIÇÕES BÁSICAS etc.), não viria à mente uma massa visual neutra, sem sentido utilitário, mas um
Desde o tempo dos filósofos da Grécia antiga, os elementos propriamente objeto, quase sempre com um assento ou tampo plano, quatro ou três pés de
intelectivos do pensamento costumam ser divididos em três categorias básicas ou sustentação, de madeira, plástico ou ferro, ou seja, um objeto que é construído
componentes constitutivos do pensamento: os conceitos, os juízos e o raciocínio. culturalmente e que apresenta significado linguístico.
O conceito pode ser visto como o elemento estrutural básico do
Conceitos (ver Harky-Vallée, 2013) pensamento; nele se exprimem os caracteres essenciais dos objetos e os
fenômenos da natureza e da cultura. Como afirma Hardy-Vallée (2013, p. 16), “o
Os conceitos se formam a partir das percepções e representações.
conceito é a unidade primeira do pensamento e do conhecimento: só pensamos e
Diferentemente das percepções (e, em certo sentido, também das
conhecemos na medida em que manipulamos conceitos”.
representações), o conceito não apresenta elementos de sensorialidade, não
sendo possível contemplá-lo, nem imaginá-lo. O conceito é algo puramente Juízos
cognitivo, intelectivo, não devendo ter qualquer resquício sensorial. Não é
possível visualizá-lo, ouvi-lo ou senti-lo. Nos conceitos, exprimem-se as Como afirma o filósofo e lógico francês Robert Blanché (1898-1975), “um
conceito nunca está só. Sem falar da rede infinitamente complexa que o liga,
pouco a pouco, ao conjunto de outros conceitos”. Assim, os conceitos se ser B.
articulam com outros, próximos ou distantes, estabelecendo relações de 2. Princípio da causalidade. Esse princípio afirma que se A é causa de B, A
conjunção ou de negação (Blanché, 2012, p. 65). não pode ser ao mesmo tempo efeito de B; ou, dito de outra forma, se A é
A noção de juízo consiste, portanto, na articulação entre dois ou mais causa de B, então B não pode ser ao mesmo tempo causa de A. Também faz
conceitos ou termos (Lalande, 1996). Formar juízos é o processo que conduz ao parte do princípio da causalidade a regra segundo a qual, sendo as condições
estabelecimento de relações significativas entre conceitos. mantidas, as mesmas causas devem produzir os mesmos efeitos.
Por exemplo, ao tomar-se o conceito cadeira e o conceito utilidade (ou seja, 3. Lei da parte e do todo. Esse princípio discrimina rigorosamente a parte do
qualidade de ser útil), pode-se formular o seguinte juízo: a cadeira é útil. Tal todo; se A é parte de B, então B não pode ser parte de A. Assim, se o Brasil é
juízo estabelece determinada relação entre dois (ou mais) conceitos, relação uma parte da América do Sul, então a América do Sul não pode ser uma
denominada cópula. Portanto, o juízo tem, por função básica, formular uma parte do Brasil.
relação unívoca entre um sujeito e um predicado. Na dimensão linguística, os
conceitos se expressam geralmente por palavras, e os juízos, por frases ou Esses princípios receberam tratamento crítico e, em certa medida, foram
proposições. questionados pelo desenvolvimento da dialética hegeliana. De acordo com o
filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831), as principais leis da dialética
Raciocínio que desafiam as limitações da lógica aristotélica são:
A função que relaciona conceitos e juízos formando uma narrativa ou 1. Lei da transformação da quantidade em qualidade.
argumentação recebe a denominação de raciocínio. O processo do raciocínio 2. Toda afirmação encerra em si mesma o princípio de sua negação.
representa o modo especial de ligação entre termos ou conceitos, de sequência 3. Tudo é, a um só tempo, causa e efeito de si mesmo.
de juízos, de encadeamento de conhecimentos, derivando sempre uns dos outros,
afirmando-os, negando-os ou confrontando-os. Assim como a ligação entre
conceitos permite a formação de juízos, a ligação entre juízos conduz à formação
de novos juízos. Dessa forma, o raciocínio e o próprio pensamento se
PENSAMENTO INDUTIVO E DEDUTIVO
desenvolvem (Lalande, 1996). Em termos de tipos de pensamentos relacionados à aquisição de conhecimentos,
foram propostos dois outros tipos de pensamento ou métodos de adquirir
conhecimentos: indutivo e dedutivo (Lalande, 1996).
PENSAMENTO LÓGICO O pensamento ou método indutivo parte da observação dos fatos
elementares, da experimentação e da comparação entre fenômenos para chegar a
O que caracteriza o pensamento normal é ser regido pela lógica formal e
conclusões e concepções mais gerais, a hipóteses explicativas e classificações
orientar-se segundo a realidade e os princípios de racionalidade da cultura na
mais amplas. O pensamento ou método dedutivo parte de esquemas, axiomas,
qual o indivíduo se insere. Nós, herdeiros das culturas ocidentais, tendemos a
definições e teoremas constituídos, já bem arquitetados, para, por meio de
valorizar a lógica e a racionalidade, pois esses são elementos fundamentais ao
demonstrações lógicas, assim deduzir a correção do pensamento. O método
longo da história das sociedades do Ocidente (ver Vietta, 2015).
dedutivo presta-se mais às ciências matemáticas, à lógica formal, a
Segundo a visão aristotélica, os princípios básicos do pensamento lógico-
conhecimentos teóricos. Já o método indutivo é mais utilizado nas ciências
formal que orientam o pensamento normal e maduro são:
empíricas, baseadas na investigação de fatos e objetos do mundo real. Aqui, tem-
1. Princípio da identidade. Também é denominado princípio da não se as ciências naturais (p. ex., física, química, biologia, geologia, etc.) e certos
contradição. Trata-se de princípio relativamente simples e essencial do aspectos das ciências humanas (p. ex., sociologia, economia, demografia,
pensamento lógico, o qual afirma que: se A é A, e B é B, logo, A não pode ciências políticas, antropologia, etc.).
O viés de confirmação diz respeito à busca ativa e seletiva que um sujeito
PENSAMENTO INTUITIVO faz no sentido de confirmar hipóteses (ou preconceitos) falsas ou sem
Define-se intuição ou pensamento intuitivo a apreensão de uma realidade mais fundamento e sem observar com cuidado os dados factuais da realidade. Há,
ou menos complexa de forma direta e imediata. Para o filósofo francês Henri assim, uma tendência relativamente comum de muitas pessoas em distorcer, de
Bergson (1859-1941), a intuição é uma forma de conhecimento, de apreensão modo inconsciente, os dados e as percepções da realidade para confirmar
direta da realidade vivida, oposta ao pensamento positivista, que abarca os hipóteses previamente formuladas no início de um raciocínio.
elementos especializados da realidade (Bergson, 1984). A intuição visa captar a O viés de salto para as conclusões (jumping to conclusions) se verifica
interioridade das coisas, inclusive aquelas dimensões muito difíceis de serem quando conclusões apressadas, sem base nas evidências factuais, são formuladas
expressas por palavras e pelo pensamento analítico. com grau de certeza incompatível com tais evidências. Tal viés é testado por
meio de métodos de pesquisa em psicologia experimental e cognitiva bem
estabelecidos (p. ex., o bead task). Esse viés foi investigado em 200 pessoas da
PENSAMENTO CRÍTICO população geral de Londres, sem transtornos mentais ou neurológicos.
Identificou-se que 20% delas apresentavam tal viés. Tais indivíduos tinham
Por fim, cabe assinalar a importância para a saúde mental do chamado também mais pensamentos de desconfiança e distorções perceptivas, mas não
pensamento crítico. Este é um modo de pensar no qual o indivíduo, em seu apresentavam transtornos do humor (Freeman et al., 2008).
processo pensante, está atento às possíveis falhas em seu raciocínio, falhas Assim, uma série de crenças preconceituosas, sociais ou pessoais, é criada e
decorrentes de tendências pré-fixadas, vieses sistemáticos e conclusões mantida de forma insistente por um número considerável de pessoas (Yager;
prematuras. Gitlin, 1995). Tudo isso torna difícil a diferenciação e delimitação entre
Deve haver um esforço nos projetos educacionais para que se desenvolva pensamento normal e patológico. Pelo fato de vieses de pensamento, assim como
essa forma de pensar, ou seja, um pensamento que busque ser amplo e distorções perceptivas, serem encontrados na população em geral, a noção de
aprofundado, aberto a visões de mundo divergentes, sistemático no seu proceder abrangência fenotípica das experiências psicóticas tem sido estendida, pois na
analítico e curioso em relação a novas possibilidades (Arendt, 2017). população geral haveria distorções semelhantes a psicose em até 7% das pessoas
O pensamento crítico busca um estado de maturidade no qual se admita que (van Os; Reininghaus, 2016).
há questões e problemas multifacetados, complexos, que aceite que há questões
que comportam mais de duas respostas (mais que “sim” e “não”) e que exigem
diferentes níveis e formas de análise e solução (Facione et al., 2000). O PROCESSO DO PENSAR
Outra forma de analisar o pensamento é distinguindo os seguintes aspectos do
PENSAMENTOS ERRÔNEOS E VIESES DE processo de pensar: o curso, a forma (ou estrutura) e o conteúdo (ou temática) do
pensamento.
PENSAMENTO EM PESSOAS SEM ALTERAÇÕES O curso do pensamento é o modo como o pensamento flui, sua velocidade e
PSICOPATOLÓGICAS seu ritmo ao longo do tempo. Já a forma do pensamento é sua estrutura básica,
O tipo e o estilo de pensamento de muitas pessoas da população em geral, sem sua arquitetura, preenchida pelos mais diversos conteúdos e interesses do
transtornos mentais, são apenas precariamente lógicos e coerentes, respeitantes indivíduo. Por sua vez, o conteúdo do pensamento pode ser definido como
da realidade factual. Na população sem transtornos mentais, vários erros e aquilo que lhe dá substância, seus temas predominantes, o assunto em si. Há
vieses, comuns e sistemáticos, têm sido identificados por estudos de psicologia tantos conteúdos de pensamento quantos são os temas de interesse do ser
cognitiva e neuropsicologia (Zawadzki et al., 2012). humano.
expressa por uma nova palavra. Na dimensão da linguagem, as desintegrações e
PSICOPATOLOGIA DO PENSAMENTO as condensações dos conceitos são designados neologismos patológicos. Estes
A tradição psicopatológica registra uma série de tipos alterados de pensamento diferem dos neologismos não patológicos, que decorrem da produção poética ou
mais comumente associados a estados mentais patológicos e transtornos mentais. literária ou de processos culturais e sociolinguísticos próprios da criação da
Infelizmente, os termos e conceitos relacionados à psicopatologia do pensamento linguagem normal.
revelam um campo semântico às vezes pouco claro, que causa dificuldades para
os estudantes. Alterações dos juízos
Ashley Rule (2005) realizou uma pesquisa em tratados de psiquiatria, Juízo deficiente ou prejudicado
dicionários de terminologia médica e artigos publicados sobre psicopatologia do É um tipo de juízo falso que se estabelece porque a elaboração dos juízos é
pensamento, em língua inglesa, desde 1979 até 2005, a fim de fazer um prejudicada por deficiência intelectual e pobreza cognitiva do indivíduo. Aqui,
levantamento dos construtos usados em psicopatologia nessa área. Ele os conceitos são inconsistentes, e o raciocínio, pobre e defeituoso. Os juízos são
identificou 68 termos relacionados a transtornos do pensamento e da linguagem, por demais simplistas, concretos e sujeitos à influência do meio social. Às vezes,
com não raras sobreposições entre os termos e ambiguidades na definição ou no é difícil diferenciar um juízo deficiente com muito material fantasioso de um
seu uso. delírio. De modo geral, os erros de juízo que não são delírios, mas produzidos
De toda forma, neste capítulo, é apresentado um esquema de transtornos do pela deficiência intelectual, tendem a não ser persistentes e irredutíveis,
pensamento o mais claro possível, a fim de que tais esquema e forma de mudando com certa frequência (diferentemente dos delírios, que tendem a ser
apresentação sejam de utilidade para estudantes e profissionais. mais contínuos) e tendo frouxa consistência interna.
Alterações dos conceitos, dos juízos e do raciocínio Juízos de realidade ou de existência
Desintegração e transformação dos conceitos As alterações do juízo de realidade em psicopatologia têm seu exemplo mais
paradigmático no delírio, ou ideias delirantes. Estas são, de fato, as alterações do
Ocorre quando os conceitos sofrem um processo de perda ou transformação
juízo mais relevantes em psicopatologia. Por sua importância e extensão, esse
radical de seu significado original. Segundo Paim (1986), os conceitos se
tema será tratado em capítulo específico.
desfazem, e uma mesma palavra passa a ter significados cada vez mais diversos.
A ideia de determinado objeto e a palavra que normalmente a designa passam a
não mais coincidir.
É comum, na desintegração dos conceitos, que o sujeito passe a utilizar as
TIPOS ALTERADOS DE PENSAMENTO (INCLUINDO
JUÍZO E RACIOCÍNIO)
palavras de forma totalmente pessoal e idiossincrática (no plano da linguagem,
isso é chamado neologismo patológico). Para um paciente de Paim (1986), a Pensamento mágico, pensamento dereístico e wishful
palavra “ateu” deixa de significar “descrente de Deus” para significar justamente
o seu oposto. O indivíduo subverteu o sentido comum de ateu, interpretando que thinking
significava “a teu comando”, ou seja, “a comando de Deus, crente”. A Esse grupo de tipos de pensamento se caracteriza por ferir frontalmente os
desintegração e a transformação dos conceitos são bastante características da princípios da lógica formal, bem como os indicativos e imperativos da realidade.
esquizofrenia e podem ocorrer também nas síndromes demenciais. Eles seguem os desígnios dos desejos, das fantasias e dos temores, conscientes
ou inconscientes, do sujeito, adequando a realidade ao pensamento, e não o
Condensação dos conceitos
contrário.
Ocorre quando dois ou mais conceitos são fundidos; o paciente
involuntariamente condensa duas ou mais ideias em um único conceito, que se
O pensamento mágico (PM) pressupõe que a uma relação puramente seus sonhos, manifestando-se como um devaneio, no qual tudo é possível e
subjetiva de ideias corresponda uma associação objetiva de fatos. As associações favorável ao indivíduo. A pseudologia fantástica e a mitomania (discutidas no
fortuitas, ocasionais, entre ideias seriam equivalentes a relações realmente Cap. 21) implicam boa dose de PD.
causais entre os fenômenos (Montero, 1990). Por exemplo, porque vi um carro Na língua inglesa, utiliza-se o termo wishful thinking (WT) (pensamento
batido hoje cedo, concluo que meu pai irá morrer atropelado nos próximos dias. desejoso) para indicar a identificação errônea dos próprios desejos com a
Um dos fundadores da antropologia social, o antropólogo escocês James realidade, o conjunto de crenças adotadas pelo indivíduo que se baseia mais nos
George Frazer (1854-1941) estudou a magia e o PM em distintas culturas. desejos do que em fatos, ou seja, um aspecto do PD.
Embora suas teses antropológicas sejam atualmente criticadas, algumas de suas Portanto, em psicopatologia, os conceitos de PM, PD e WT são muito
definições são úteis do ponto de vista didático (Frazer, 1911/1982). Ele sugeriu próximos e usados, às vezes como sinônimos. De modo geral, esse grupo de
algumas leis e particularidades do ato e do pensamento mágico: tipos de pensamento pode ser observado em TPs (esquizotípica, histriônica,
borderline, narcisista, etc.), na esquizofrenia e, eventualmente, em crianças e
1. Lei da contiguidade. É a base da magia de contágio, que utiliza o preceito
adolescentes (e mesmo em adultos) sadios.
de que “coisas que estiveram em contato continuam unidas”. Assim, se o ato
mágico agir sobre um objeto que pertenceu a uma pessoa (roupa, adorno, Pensamento inibido
móvel, etc.), há a crença de que estará, de fato, agindo sobre a própria pessoa
(p. ex., ao queimar e destruir uma camisa do indivíduo, estará queimando e Aqui, ocorre a inibição do raciocínio, com diminuição da velocidade e do
destruindo a própria pessoa). número de conceitos, juízos e representações utilizados no processo de pensar; o
pensamento torna-se lento, difícil, rarefeito, pouco produtivo à medida que o
2. Lei da similaridade. É a base da chamada magia imitativa. Nesse caso,
tempo flui. Ocorre em quadros demenciais e em quadros depressivos graves.
domina a ideia de que “o semelhante produz o semelhante”. A ação ou o
pensamento mágico pensa produzir efeito desejado por imitação da ação real. Pensamento vago
Por exemplo, ao queimar e destruir um boneco com alguma semelhança com
um inimigo, estará queimando e destruindo o próprio inimigo. As relações conceituais, a formação dos juízos e a concatenação destes em
raciocínios são caracterizadas pela imprecisão. O paciente expõe um pensamento
O PM seria mais comum entre as crianças (embora nelas, de modo geral, muito ambíguo, podendo mesmo parecer obscuro. Não há propriamente o
também predomine uma visão realista). Também se pode eventualmente empobrecimento do pensamento, mas, antes, a marcante falta de clareza e
verificar a ocorrência de tal forma de pensar em alguns transtornos da precisão no raciocínio. O pensamento vago pode ocorrer em pessoas sem
personalidade (TPs), como nos TPs esquizotípica, histriônica, borderline e transtorno mental, mas também pode ser um sinal inicial de esquizofrenia ou
narcisista. Nos quadros obsessivo-compulsivos, alguns sintomas são permeados ocorrer em quadros demenciais iniciais e em TPs (p. ex., esquizotípica).
de PM, constatável em ideias e pensamentos obsessivos e rituais compulsivos
dominados, de forma mais ou menos direta pelas leis da magia. Também em Pensamento prolixo
alguns pacientes com esquizofrenia podem se encontrar, eventualmente, PMs. Aqui, o indivíduo não consegue chegar a qualquer conclusão sobre o tema de
O pensamento dereístico (PD), conceito em parte sobreposto ao de PM, é a que está tratando, a não ser após muito tempo e esforço. O paciente dá longas
descrição do tipo de pensamento que se opõe marcadamente ao pensamento voltas ao redor do tema e mescla, de forma imprecisa, o essencial com o
crítico e realista, o qual se submete à lógica e à realidade. Entretanto, pode não supérfluo. Há dificuldade em obter construção direta, clara e acabada, além de
haver aqui a dimensão mágica no pensamento. notável falta de capacidade de síntese.
O PD só obedece à lógica e à realidade naquilo que interessa ao desejo do A tangencialidade (pensamento tangencial) e a circunstancialidade
indivíduo, distorcendo a realidade para que esta se adapte aos seus anseios. Aqui (pensamento circunstancial) são tipos de pensamento prolixo.
o pensar volta-se muito mais para o mundo interno do sujeito, suas fantasias e
A tangencialidade ocorre quando o paciente responde às perguntas de forma pé da letra”. Não há distinção pormenorizada e precisa de categorias como
oblíqua e irrelevante, não sabendo discriminar o supérfluo do essencial. As essencial e supérfluo; necessário ou acidental; causa e efeito; o todo e as partes;
respostas apenas tangenciam aquilo que foi perguntado, nunca chegando ao o real e o imaginário; o concreto e o simbólico.
ponto central, ao objetivo final, sem jamais concluir algo de substancial. A compreensão e a explicação de fatos complexos da vida são difíceis, e o
A circunstancialidade descreve o raciocínio e a digressão do paciente como paciente apreende apenas a realidade de forma vaga e simplificada.
“rodando em volta do tema”, sem entrar nas questões essenciais e decisivas. A memorização de determinados conteúdos ou temas (números telefônicos,
Entretanto, eventualmente, o indivíduo alcança o objetivo de seu raciocínio. Em nomes de pessoas, ruas, tipos de carros, etc.) pode, eventualmente, ser muito
alguns casos, a conversa torna-se uma “massa de parênteses e cláusulas extensa e numerosa, porém é mecânica e rígida. Esse fenômeno de extensa
subsidiárias” (Sims, 1995). memorização mecânica é denominado ilhotas de memória e ocorre geralmente
Esses tipos de pensamento podem ocorrer em alguns pacientes com TPs, em em pessoas com deficiência intelectual e naquelas com autismo. Em função de
indivíduos com lesões cerebrais, em algumas pessoas com deficiência intelectual terem tais habilidades, essas pessoas são designadas savant.
ou naquelas com inteligência limítrofe, em pacientes que se encontram no início
de um processo esquizofrênico e em alguns daqueles com quadros obsessivo- Pensamento demencial
compulsivos, que, devido ao excesso de detalhes e atalhos colaterais, não Trata-se também de pensamento pobre, porém tal empobrecimento é desigual,
conseguem desenvolver adequadamente suas ideias. diferentemente do que ocorre no pensamento deficitário, no qual o
empobrecimento é mais homogêneo. Em certos pontos, o pensamento demencial
Pensamento concreto ou concretismo pode revelar elaborações mais ou menos sofisticadas, embora de forma geral seja
Trata-se de um tipo de pensamento no qual não ocorre a distinção entre a imperfeito, irregular, sem unidade ou congruência.
dimensão abstrata, simbólica e a dimensão concreta, imediata, dos fatos. O Em relação aos conceitos abstratos e aos raciocínios diferenciados e
indivíduo não consegue entender ou utilizar metáforas; o pensamento é muito complicados, podem-se observar seus resquícios no pensamento demencial,
aderido ao nível sensorial da experiência e às coisas concretas. embora, com o progredir da síndrome demencial, vá predominando cada vez
É relativamente comum que faltem, em pessoas com pensamento concreto, mais o pensamento pobre e desorganizado.
aspectos mais desenvolvidos e sutis do pensar, como a metáfora, a ironia, o É frequente o indivíduo com demência, nas fases iniciais, tentar dissimular
subentendido, o duplo sentido, bem como categorias abstratas e simbólicas de suas dificuldades cognitivas. Ao se deparar com a dificuldade em encontrar as
modo geral. Tanto os indivíduos com deficiência intelectual como os pacientes palavras (aspecto do início das demências), procura termos mais genéricos, evita
com esquizofrenia grave podem apresentar pensamento concreto e concretismo. os adjetivos e os substantivos específicos. Por exemplo, “Não consigo encontrar
aquela coisa, o meu... (batom), aquilo para passar aqui (indica a boca com o
Pensamento deficitário (relacionado à deficiência dedo)...”; “Vou pedir ao... àquele homem (o guarda), que me ajude a atravessar...
intelectual) aqui (a rua)”.
É um pensamento de estrutura pobre e rudimentar. O indivíduo tende a Pensamento confusional
apresentar raciocínio concreto; os conceitos são escassos e utilizados em sentido
mais literal que abstrato ou metafórico. A abstração apenas ocorre com Verifica-se, devido ao rebaixamento e à turvação da consciência, um pensamento
dificuldade, sem consistência ou grande alcance. incoerente, de curso tortuoso. O indivíduo está impedido de apreender de forma
Não há falta, porém, da generalização e da utilização da memória, sempre clara e precisa os estímulos ambientais e não consegue processar seu raciocínio
vinculadas às necessidades mais imediatas do sujeito. Há pouca flexibilidade na adequadamente. Há marcante dificuldade em estabelecer vínculos entre
aplicação de regras e conceitos aprendidos; o indivíduo tende a tomar tudo “ao conceitos e juízos devido às alterações do nível de consciência, da atenção e da
memória imediata e de trabalho, impedindo a formação adequada do raciocínio.
Ocorre principalmente nas síndromes confusionais agudas (delirium). ALTERAÇÕES DO PROCESSO DE PENSAR (DO
CURSO, FORMA OU CONTEÚDO)
Pensamento desagregado
Trata-se de pensamento marcadamente incoerente, no qual os conceitos e os Alterações do curso do pensamento
juízos não se articulam minimamente de forma lógica. O paciente produz um As principais alterações do curso do pensamento são a aceleração, a lentificação,
pensamento que se manifesta como uma mistura aleatória de palavras, que nada o bloqueio e o roubo do pensamento.
comunica ao interlocutor. A linguagem correspondente é o que se denomina
Aceleração do pensamento
“salada de palavras”, ou esquizofrasia. Ocorre nas formas graves e
marcadamente desorganizadas de esquizofrenia. O pensamento flui de forma muito acelerada, com uma ideia se sucedendo à
outra rapidamente, podendo até ser difícil acompanhar o ritmo do indivíduo.
Pensamento obsessivo Pode ocorrer nos quadros de mania, em alguns pacientes com esquizofrenia,
eventualmente nos estados de ansiedade intensa, nas psicoses tóxicas (sobretudo
Aqui, predominam ideias ou representações que, apesar de terem conteúdo
por anfetamina e cocaína) e na depressão ansiosa.
absurdo ou repulsivo para o indivíduo, se impõem à consciência dele de modo
persistente e incontrolável. Isso determina uma luta constante entre as ideias Lentificação do pensamento
obsessivas, que voltam de forma recorrente à consciência, e o indivíduo, que se Nesse caso, o pensamento progride lentamente, de forma lenta e dificultosa. Há
esforça para bani-las de sua consciência, gerando um estado de angústia certa latência entre as perguntas formuladas e as respostas. Ocorre
constante. Com certa frequência, em pacientes gravemente obsessivos, aspectos principalmente em pacientes gravemente deprimidos, em alguns casos de
do PM também estão presentes (p. ex., “Se eu tocar na roupa de uma pessoa no rebaixamento do nível de consciência, em certas intoxicações (por substâncias
ônibus, ficarei contaminado” ou “Se eu repetir a palavra santo cinquenta vezes, sedativas) e em quadros psico-orgânicos que afetam estruturas subcorticais.
impedirei que meu pai morra”).
Bloqueio ou interceptação do pensamento
Ruminações ou pensamento ruminativo perseverativo Verifica-se o bloqueio do pensamento quando o indivíduo, ao relatar algo, no
Muito próximas e, às vezes, sobrepostas ao pensamento obsessivo, as meio de uma conversa, brusca e repentinamente interrompe seu pensamento,
ruminações são formas de pensamento repetitivo que implicam preocupações e sem qualquer motivo aparente. O paciente pode relatar que, sem saber por que,
pensamentos negativos recorrentes, vivenciados de forma passiva. As “o pensamento para”, é bloqueado. Trata-se de alteração quase exclusiva da
ruminações correm em pacientes com quadros de ansiedade, depressão, esquizofrenia.
transtorno bipolar (TB), no comer e/ou beber compulsivo (binge eating e binge Roubo do pensamento
drinking) e em pessoas que se automutilam (skin picking e/ou cutting). São É uma vivência, frequentemente associada ao bloqueio do pensamento, na qual o
pensamentos com conteúdos negativos, relacionados sobretudo ao futuro e, indivíduo tem a nítida sensação de que seu pensamento foi roubado de sua
eventualmente, ao passado (Ruscio et al., 2011; Ghaznavi; Deckersbach, 2012). mente, por uma força ou ente estranho, por uma máquina, uma antena, etc. O
Pré-adolescentes e adolescentes em fase inicial de transtornos do humor roubo do pensamento é um tipo de vivência de influência (ver descrição também
apresentam com certa frequência as ruminações (em torno de 10% dos na seção sobre delírio de influência). Trata-se de uma alteração característica da
adolescentes estudados). Elas podem anteceder a eclosão de transtornos de esquizofrenia.
ansiedade, depressão e compulsões (Hilt; Pollak, 2013).
Fuga de ideias
É uma alteração do fluxo e da estrutura do pensamento secundária a acentuada das associações; descarrilhamento, dissociação e incoerência do pensamento; e
aceleração do pensamento, na qual uma ideia se segue a outra de forma desagregação do pensamento.
extremamente rápida, perturbando-se as associações lógicas entre os juízos e os
Afrouxamento das associações
conceitos. A fuga de ideias pode ser classificada como alteração do curso ou
como alteração formal do pensamento. Nesse caso, embora ainda haja concatenação lógica entre as ideias, nota-se já o
Na fuga de ideias, as associações entre as palavras deixam de seguir uma afrouxamento dos enlaces associativos (Nobre de Melo, 1979). As associações
lógica ou finalidade do pensamento e passam a ocorrer por assonância (p. ex., parecem mais livres, não tão bem articuladas. Manifesta-se nas fases iniciais da
amor, flor, cor... ou cidade, idade, realidade...), e as ideias se associam muito esquizofrenia e em TPs (sobretudo TP esquizotípica).
mais pela presença de estímulos externos contingentes (as pessoas que estão Descarrilhamento do pensamento
presentes na entrevista, os móveis e os quadros da sala de entrevista, um ruído O pensamento passa a extraviar-se de seu curso normal, toma atalhos colaterais,
incidental, alguém que entra na sala, etc.). Segundo Nobre de Melo (1979), na desvios, pensamentos supérfluos, retornando aqui e acolá ao seu curso original.
fuga de ideias, há o progressivo afastamento da ideia diretriz ou principal, sem Geralmente está associado a marcante distraibilidade. Se o descarrilhamento for
prejuízo manifesto, contudo, para a coerência final do relato. Tal noção de muito acentuado, e os desvios, muito frequentes e longos, pode-se não mais
preservação da coerência nessa condição não é, entretanto, aceita por todos os captar a sequência lógica do pensamento. O descarrilhamento é observado na
autores. A fuga de ideias é uma alteração muito característica dos quadros esquizofrenia e, eventualmente, nos transtornos maníacos.
maníacos do TB.
Dissociação e incoerência do pensamento
Alterações formais do pensamento (ver Radanovic et É a designação cunhada por Eugen Bleuler (1911/1985) para o tipo de
al., 2013) desorganização do pensamento (Beziehungslosigkeit, perda ou afrouxamento das
relações associativas) de importância central na esquizofrenia. Em geral, quando
Tais alterações do pensamento geralmente implicam psicopatologia significativa
o afrouxamento das associações se acentua, os pensamentos passam
e têm impacto negativo na vida das pessoas. Elas se correlacionam com
progressivamente a não seguir uma sequência lógica e bem organizada, e os
dificuldades nas funções executivas frontais, com pior desempenho em “teoria
juízos não se articulam de forma coerente uns com os outros. De início, a
da mente” e em “tomada de perspectiva” (Ziermans et al., 2017).
incoerência pode ser discreta, ainda sendo possível captar aquilo que o indivíduo
Segundo a proposta de Nancy Andreasen (1979), as alterações formais do
quer comunicar. Com o agravamento do processo patológico, o pensamento pode
pensamento (formal thought disorder – FTD) seriam divididas em negativas,
tornar-se totalmente incoerente e incompreensível.
positivas ou desorganizadas. As alterações negativas incluem pobreza do
discurso e do conteúdo do pensamento, assim como bloqueio deste. As Desagregação do pensamento
alterações positivas incluem pressão para falar, verbosidade. Já as alterações Nesse caso, há profunda e radical perda dos enlaces associativos, total perda da
desorganizadas incluem perda do pensamento objetivo (tangencialidade), coerência do pensamento. Sobram apenas “pedaços” de pensamentos, conceitos
descarrilhamento, pensamento idiossincrático, incoerência e ilogicidade. e ideias fragmentados, muitas vezes irreconhecíveis, sem qualquer articulação
Como assinalado anteriormente, as FTD utilizadas nos trabalhos publicados racional, sem que sejam detectadas uma linha diretriz e uma finalidade no ato de
em língua inglesa contêm muitas denominações sobrepostas, tornando um tanto pensar. Trata-se de alteração típica de formas avançadas de esquizofrenia e de
confuso o cenário. Consideramos mais lógico separar as alterações da forma ou quadros demenciais.
estrutura do pensamento das alterações do conteúdo. Nesse sentido, primeiro
veremos as alterações formais e, depois, as alterações do conteúdo do Valor diagnóstico das alterações formais do pensamento
pensamento. As alterações formais a serem apresentadas incluem: afrouxamento Na esquizofrenia, de modo geral, o progredir da desestruturação do pensamento
segue esta sequência (em ordem de gravidade): afrouxamento das associações,
descarrilhamento do pensamento, dissociação e incoerência do pensamento e, alterações do juízo de realidade. Quando um indivíduo acometido por uma
por fim, desagregação do pensamento. Entretanto, tal sequência, embora lógica, psicose afirma que “os vizinhos preparam um complô para matá-lo”, o conteúdo
não é necessária, podendo essas alterações surgirem nas mais diversas é de perseguição, mas o que está patologicamente alterado é a atribuição de
combinações e sequências. realidade absoluta a esse pensamento, ou seja, o modo como o juízo de realidade
Cabe lembrar que as formas mais leves de alteração da forma do pensamento se constitui. De modo similar, uma pessoa com um cargo político, em um
podem ser encontradas, de modo ainda incipiente, em parentes de primeiro grau contexto político tenso e muito conflitivo, pode viver pensando que querem
de pessoas com esquizofrenia (Catts et al., 1993). prejudicá-la, querem “armar contra ela”. Seus conteúdos de pensamento são
Acreditava-se que os transtornos formais do pensamento eram específicos da basicamente de desconfiança e possível perseguição; entretanto, ela não está
esquizofrenia. Entretanto, tem-se verificado que pacientes com transtornos necessariamente delirando.
afetivos (mania ou depressão, psicóticas ou não psicóticas) também os A observação clínica indica que os principais conteúdos que preenchem os
apresentam. No entanto, quanto mais bizarra for a estrutura do pensamento, sintomas psicopatológicos são:
maior é a probabilidade de se tratar de esquizofrenia (Marengo; Harrow, 1987).
1. persecutórios
Nos transtornos do espectro autista, sobretudo naqueles com alto
funcionamento, pode haver o que alguns autores denominam “alterações 2. depreciativos, de ataque à autoestima
negativas do pensamento”, o que inclui empobrecimento em relação às ideias. 3. de poder, riqueza, grandeza ou missão
Recentemente, também têm sido relatadas no autismo alterações “positivas do 4. religiosos, místicos, mágicos
pensamento”, como afrouxamento das associações e incoerência. Tanto na 5. eróticos, sexuais, de ciúmes
esquizofrenia como no autismo, há marcante associação entre essas alterações do 6. de culpa
pensamento e pior desempenho em funções frontais executivas (como memória 7. conteúdos hipocondríacos
de trabalho, inibição de respostas, realização de tarefas sequenciais, flexibilidade
cognitiva) (Ziermans et al., 2017). As razões pelas quais tais conteúdos, e não outros, são os mais prevalentes
Os transtornos formais do pensamento, nas psicoses (sobretudo na são certamente complexas. A importância desses conteúdos tem a ver com a
esquizofrenia), são indicadores da gravidade do quadro. Os aspectos de constituição social e histórica do indivíduo, com o universo cultural no qual ele
empobrecimento e de desorganização do pensamento indicam pior prognóstico, se insere, assim como com a estrutura psicológica e neuropsicológica do Homo
sendo que os de empobrecimento predizem com mais força desfechos ruins sapiens, como espécie. A seguir, são apresentadas algumas hipóteses acerca dos
(Roche et al., 2015). motivos pelos quais esses conteúdos são frequentes na psicopatologia.
A persecutoriedade (ou vivências de perseguição) é provavelmente muito
Alterações do conteúdo do pensamento importante, pelo fato de a sobrevivência em um mundo potencialmente
O conteúdo do pensamento é aquilo que preenche a estrutura do processo de ameaçador ser tema onipresente em quase todos os grupos sociais. A
pensar. Embora muitos autores classifiquem os delírios como alterações do sobrevivência e a segurança do indivíduo e, em consequência, o seu oposto, ou
conteúdo do pensamento, isso nos parece incorreto. O conteúdo do pensamento seja, a possibilidade de ser atacado e destruído, são elementares tanto na
apenas preenche uma forma, uma estrutura. Nesse sentido, corresponde à perspectiva biológica como na psicológica e na sociocultural.
temática do pensamento. Assim, não se pode falar propriamente em alterações Os conteúdos depreciativos, de menos-valia, vergonha e desvalorização são
patológicas do conteúdo do pensamento. Há tantos conteúdos quanto são os frequentes, pois estados afetivos depressivos são muito prevalentes em
temas de interesse ao ser humano. praticamente todos os grupos sociais.
Optou-se, aqui, consequentemente, por não incluir o importante tema dos Os conteúdos de poder, riqueza, grandeza ou missão têm conexão com a
delírios no item “conteúdo do pensamento”, mas no capítulo referente às dimensão de segurança, mas também se relacionam a questões narcísicas e de
Quadro 20.1 | Semiotécnica do pensamento
negação das dificuldades, limites e sofrimentos da vida cotidiana.
Os temas religiosos e místicos também são muito comuns na psicopatologia, Perguntas para verificar o desenvolvimento e a estrutura global do pensamento
o que se justifica pelo fato de não haver cultura ou grupo social humano em que (verificar a capacidade de abstração e de generalização e o grau de sofisticação das respostas):
• Que diferença há entre a mão e o pé? Entre o boi e o cavalo? Entre a água e o gelo? E entre o cristal e a madeira?
a religião não desempenhe papel central na organização da representação do • Entre 1 kg de chumbo e 1 kg de palha, o que pesa mais? Que diferença há entre falar uma coisa errada e dizer uma mentira? E entre a
mundo, na articulação de formas de compreensão da origem e do destino do ser admiração e a inveja? E entre ser uma pessoa econômica e ser uma pessoa mesquinha, um “pão-duro”?
• Que semelhanças há entre o carro, o trem e o avião?
humano, dos valores ético-morais, da compreensão do sofrimento e dos modos 1. Resposta precária e concreta: “São coisas”.
de constituição da subjetividade. 2. Resposta correta, mas ainda concreta: “Servem para a gente andar”.
3. Resposta com bom nível de generalização: “São veículos ou meios de transporte”.
A sexualidade e a vida erótica, por sua vez, apesar de secularmente • Que semelhança há entre o martelo, a enxada e o trator? (Mesmo tipo de interpretação)
reprimidas em muitas sociedades, nunca deixaram de ser temas de primordial
interesse ao ser humano. Freud e o desenvolvimento de sua psicanálise Ao longo da entrevista, verificar o curso do pensamento:
Como flui o pensamento do paciente, seu curso (velocidade, ritmo), forma e conteúdos? O pensamento é lento e difícil ou rápido e fácil? O
trouxeram à luz da sociedade vitoriana e conservadora a grande importância da raciocínio alcança seu objetivo, chega a um ponto final, ou fica “orbitando” em temas secundários?
Verificar as formas e os tipos de pensamentos:
sexualidade e da vida erótica para a esfera mental e social do ser humano. Tal O pensamento é coerente e bem compreensível? Ou é vago, com trechos incompreensíveis? O pensamento é predominantemente
importância se relaciona tanto a fatores instintivo-biológicos (sobrevivência da incompreensível, muito incoerente? Há associações por assonância? Há fuga de ideias? É concreto ou revela capacidade de abstração e uso de
símbolos e categorias de generalização? O pensamento respeita a realidade ou segue os desígnios dos desejos e temores do paciente?
espécie) como a fatores psicológicos, pois, paralelamente ao desenvolvimento Caso se trate de pensamento desorganizado, incoerente, verificar:
das relações afetivas, há a erotização dessas relações (amar é, ao mesmo tempo, Tal desorganização é do tipo confusional (alteração da consciência), demencial (alteração da cognição) ou deficitário (pobreza homogênea)?
Estão presentes alterações características da esquizofrenia (afrouxamento, descarrilhamento, desagregação)?
um fenômeno afetivo e erótico). Há ideias ou pensamentos do tipo obsessivo?
Quais são os conteúdos, os temas, mais recorrentes e marcantes no discurso do paciente?
Os temas hipocondríacos e de preocupações somáticas revelam a
importância que o corpo tem na experiência humana. Toda a nossa vivência é
corporificada (embodied); o corpo é central para nós, é nosso limite, fonte de A Scale for the Assessment of Thought, Language, and Communication
prazer e de dor, estejamos saudáveis ou doentes. Também estão implicados com (TLC) é uma escala que abarca 18 tipos de transtornos do pensamento, a qual,
essas questões o narcisismo relacionado às vivências corporais, o desejo de bem- pela influência dos trabalhos de Nancy Andreasen, se tornou uma referência nas
estar físico, os temores relacionados ao risco permanente que todo ser humano pesquisas (Andreasen, 1986).
tem de adoecer fisicamente, sofrer e falecer. Também são utilizados o Thought Disorder Index (TDI), o Thought and
Pessoas com quadros de ansiedade generalizada e depressão ansiosa tendem Language Index (TLI) e o Assessment of Bizarre-Idiosyncratic Thinking (BIT).
a expressar em seus pensamentos conteúdos sobre eventos futuros negativos Todas essas escalas devem ser utilizadas por pessoas com conhecimentos
(Wu, 2015). clínicos. Até o momento, esses instrumentos não foram validados para uso no
Brasil.

SEMIOTÉCNICA DO PENSAMENTO E
INSTRUMENTOS PADRONIZADOS PARA
AVALIAR ALTERAÇÕES DO PENSAMENTO
No Quadro 20.1, são apresentadas sugestões para a avaliação clínica do
pensamento. São utilizados para pesquisa os instrumentos de avaliação de
transtornos do pensamento (cujo foco central na literatura científica de língua
inglesa são as FTDs) descritos a seguir.

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