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22 de septiembre de 2015
O nível de contaminação variou de local para local, sendo maior onde a nuvem
radioativa foi levada pelo vento e a chuva caiu transportando o césio-137 para o capim e para o
solo. O potássio é um alimento importante para uma planta, e o césio o simula quimicamente,
por estar na mesma coluna da tabela periódica. Assim, o capim foi se contaminando ao absorver
o césio avidamente através da raiz, no lugar do potássio. Em alguns países próximos do reator
acidentado, houve a recomendação para não se alimentar as vacas com feno fresco
contaminado. Mas isso não aconteceu na Europa como um todo, e as vacas, ao comerem capim,
se contaminaram e passaram a produzir leite com césio-137.
No início de 1986, havia sido lançado no Brasil o Plano Cruzado, um plano econômico
que estabeleceu o congelamento de preços, pelo então ministro da Fazenda, Dílson Funaro, que
instituiu o cruzado como unidade monetária nacional, substituindo o cruzeiro. Com isso, os
produtores de leite preferiram dar o leite produzido pelas vacas aos bezerros e, em
consequência, começou a faltar leite no mercado nacional. A partir de agosto daquele ano,
houve a necessidade de importação do leite em pó. E o leite em pó importado foi o europeu,
entre outros, o leite irlandês, dos mais contaminados. As prateleiras de supermercados ficaram
lotadas de latas de leite em pó de vários países da Europa e começou a circular na mídia a
informação de que esses leites estavam contaminados com césio-137 e a população brasileira
ficou bastante assustada.
Naqueles dias, recebemos diariamente telefonemas com consultas sobre o mal que
tomar leite ou comer carne vindos da Europa poderiam causar. Algumas pessoas chegaram a
trazer latas de leite em pó da Holanda e até pote de creme para acne que havia sido adquirido na
Alemanha para analisarmos.
Esse era o panorama mundial, quando, no dia 1o de outubro de 1987, tomamos
conhecimento do acidente com a fonte de césio-137 na cidade de Goiânia, através do Jornal do
Brasil.
Um aparelho de radioterapia em desuso tinha sido levado no dia 13 de setembro por
dois catadores de papel, Wagner Mota Pereira e Roberto dos Santos Alves, do Instituto Goiano
de Radioterapia, então um prédio em abandono sem porta e sem janela. No quintal da casa do
Roberto, eles desmantelam a peça a marretadas até atingir a fonte de césio-137, que estava com
atividade de 1375 curies, ou 5,09×1013 becquerels em unidade no sistema internacional. A
massa do cloreto de césio era de 19,3g, e misturada a um aglutinante para compactação perfazia
92g, massa equivalente à de cerca de dois pãezinhos. Já nesse dia, ambos têm vômito, diarreia e
tonturas e começam a aparecer bolhas de queimadura nas mãos. Na foto do Jornal do Brasil,
Wagner mostra as enormes bolhas que se formaram em ambas as mãos. Conversando com
Roberto, Wagner diz que está mal, com forte diarreia e que ele acha que foi por ter comido
manga com coco, ao que Roberto retruca dizendo que ele também está com diarreia mas não
comeu nada disso. Eles estavam com a chamada síndrome aguda da radiação3-4, desenvolvida
em curto espaço de tempo, que é o conjunto de sintomas que resulta da exposição do corpo todo
à alta dose de radiação ionizante. No dia 23 de setembro, Wagner é internado no Hospital Santa
Rita, de onde, após quatro dias, é transferido para o Hospital de Doenças Tropicais. O Roberto,
por sua vez, teve que amputar seu antebraço direito, por ter desenvolvido necrose, no dia 14 de
outubro de 1987.
No dia 19 de setembro, Roberto e Wagner haviam vendido parte do equipamento por
1500 cruzados, equivalente a 25 dólares, a Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho. Uma
noite ele viu uma misteriosa luz azul saindo da fonte que havia adquirido. Ficou encantado com
essa luz e para poder observá-la melhor, levou-a para a sala de sua casa no dia 21 de setembro.
Em uma entrevista, Devair confessa que se apaixonou por essa luz. É aí que começa a tragédia
com o espalhamento da contaminação, pois ele começou a manipular o pó de cloreto de césio e
a presentear parentes e vizinhos com pequenos grãos do tamanho de grãos de arroz. Sua
sobrinha, Leide das Neves, filha do Ivo Ferreira das Neves, mexeu nesse pó enquanto comia pão
com ovo.
Devair Alves Ferreira apresentou perda total de cabelo e ficou com a pele muito escura
por causa da queimadura, por ter recebido uma dose altíssima de 7,1Gy, porém fracionada. Ele
morreu após 7 anos, em 1994, de cirrose hepática, com 43 anos, e seu irmão Ivo, que recebeu
uma dose mais baixa de 3Gy, de enfisema pulmonar em 2003.
Em fevereiro de 1988, o governo do estado de Goiás criou a Fundação Leide das Neves
Ferreira, cujo Departamento Médico estabeleceu protocolos de atendimento aos pacientes e os
classificou em grupos de I a III, avaliando se o paciente havia se contaminado e/ou irradiado
direta ou indiretamente e o nível de dose. Essa Fundação foi substituída pela Superintendência
Leide das Neves Ferreira (SuLeide) em 1999, que foi desmembrada em duas unidades: o Centro
de Assistência ao Radioacidentado e o Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos
Leide das Neves Ferreira5 em 2011.
Vigilância Sanitária
A primeira vez que estivemos na cidade de Goiânia para coleta de material contaminado
para pesquisa foi em 1999. Nessa ocasião, fomos à Vigilância Sanitária para obter alguma
informação, visto que a fonte de contaminação havia sido levada para lá, mas infelizmente
ninguém soube nos dizer nada. Entretanto, em agosto de 2007, encontramos um artigo6
publicado na Revista da Universidade Federal de Goiás: “O acidente com o césio 137 sob o
olhar dos trabalhadores de vigilância sanitária, no Setor Aeroporto à Rua 16-A”. Nesse artigo,
as autoras relatam que o saco com a fonte foi levada por um casal à Divisão de Cadastro no dia
28 de setembro de 1987 e colocado sobre uma mesa da Divisão de Alimentos, onde ficou até o
dia seguinte, quando foi mudado para o pátio e colocado sobre uma cadeira. Durante os dois
dias, vários funcionários (81 ao todo) foram ver a peça, abriram o saco e cheiraram. Desses, 12
foram enquadrados no grupo I e os 69 restantes no grupo III. Dos 81, dez haviam falecido até a
data da publicação do artigo, seis com diagnóstico de câncer de garganta, rins, pulmão, cérebro,
esôfago e mama, e três por outras causas que não câncer. Dos 22 funcionários restantes, lotados
na Vigilância Sanitária, dois estavam com câncer e outros 20 apresentavam problemas de saúde
diversos.
Em 2011, foi realizada pelo Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide
das Neves Ferreira5 e pela Universidade Federal de Goiás uma pesquisa para avaliar a saúde
dos radioacidentados. Constatou-se que eles sofrem com a persistência de problemas
psicossociais e 42,5% dos indivíduos da amostra apresentam sintomas depressivos. Muitos
indivíduos do grupo I e filhos de pessoas dos grupos I e II foram a óbito por doença pulmonar
obstrutiva crônica, homicídio, infarto agudo do miocárdio, insuficiência hepática e septicemia; e
entre os do grupo III, por acidente de trânsito, insuficiência cardíaca congestiva, infarto agudo
do miocárdio, hipertensão arterial, e acidente vascular cerebral. Há ainda, nesse grupo, 15 casos
de óbitos decorrentes de neoplasias (cânceres de mama, de boca, de laringe, de colo de útero, de
fígado, de língua, de amígdala).
Notas
1. IAEA. The radiological accident in Goiânia. Vienna, 1988.
2. Okuno, E. Radiação: efeitos, riscos e benefícios. São Paulo: Harbra, 1988.
3. Okuno, E. “Efeitos biológicos das radiações ionizantes. Acidente radiológico de Goiânia”.
Estudos Avançados, 27 (77), 2013, p.185-199.
4. Okuno, E.; Yoshimura, E. M. Física das radiações. São Paulo: Oficina de Textos, 2010.
5. http://www.cesio137goiania.go.gov.br/index.php?idEditoria=3800. Acesso em 2/09/2015.
6.Silva Batista, I.R. e Borges Nascimento, M.G. “O acidente com o césio 137 sob o olhar dos
trabalhadores de vigilância sanitária”, Revista da UFG, Agosto 2007, ano IX, no 1.