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Segundo o relatório publicado pelo IDMC, Cynthia destaca que o país tem uma
apenas as chuvas de janeiro no Estado de sociedade xenofóbica e altamente racista,
Minas Gerais e as de maio, em Pernambuco, portanto há uma resistência na sociedade e
motivaram, respectivamente, cerca de 107 e nas próprias instituições na acolhida a
determinados povos. “Essa legislação sua pesquisa incluiu autores de diversas
securitista, que coloca o Estado como nacionalidades.
destinatário e o estrangeiro como uma
ameaça, existe no Brasil desde a década de Os refugiados ao longo da história
1920. Apesar da gente ter uma legislação
recente, de 2017, que muda o paradigma para Além da bibliografia decolonial, Thaynara
uma acolhida, isso acabou reforçando baseou-se em documentos internacionais
durante todas essas décadas uma resistência relacionados aos refugiados. Ela explica que a
da sociedade brasileira em relação aos Segunda Guerra Mundial criou um grande
imigrantes e aos refugiados. Principalmente contingente de refugiados e isso deu origem à
àqueles que vêm do Oriente Médio, da Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto
América Latina, que têm um fenótipo dos Refugiados (1951), primeiro tratado
indígena, de povos originários, aqueles que internacional sobre o refúgio. O documento,
vêm da África, que são o principal fluxo no entanto, só considerava refugiadas as
migratório atual. E nós percebemos que existe pessoas de origem europeia, ignorando os
esse racismo estrutural nas instituições. As impactos que a própria Europa causou em
instituições brasileiras no município não outros países com a colonização e o
estão preparadas para esse recebimento”, imperialismo. Começaram a surgir, então,
aponta ela. questionamentos do Sul Global sobre esse
tratado, que não atendia às suas
Pesquisa propõe olhar decolonial e intelectual necessidades. Eles iam ao encontro de
para a questão dos refugiados teorizações que mais tarde dariam corpo a um
No mundo acadêmico, as referências mais referencial decolonial. Em 1967, foi criado o
utilizadas e conhecidas são as obras de Protocolo Sobre o Estatuto dos Refugiados
autores europeus. Porém, o estudo de como uma resposta a esses questionamentos.
intelectuais de nacionalidades diversas, como O novo documento passou a abranger pessoas
do continente africano e da América Latina, é de outras nacionalidades dentro do conceito
essencial para analisar, por exemplo, a de refugiados, mas não possuía poder
questão dos refugiados. Essa foi a conclusão suficiente para obrigar todos os países a
da dissertação de mestrado em Ciência adotar seu conteúdo.
Política intitulada O regime internacional
para refugiados a partir da perspectiva
Por causa disso, a África e a América do Sul,
decolonial: contribuições do Sul Global,
que sofriam os efeitos do imperialismo,
desenvolvida por Thaynara de Lima Alves, da
formularam, respectivamente, a Convenção
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
da Organização da Unidade Africana (OUA),
Humanas (FFLCH) da USP.
em 1969, e a Declaração de Cartagena, em
1984, contemplando diversas causas para o
A pesquisadora concentrou sua análise no Sul
deslocamento forçado. A criação dessas
Global, composto basicamente por países que
convenções representou uma tentativa de
estão fora do eixo Europa-Estados Unidos e
quebrar os resquícios coloniais.
que costumam ser descritos como “menos
desenvolvidos”. Mais especificamente,
Thaynara estudou os refugiados sudaneses no Mas a Convenção de Genebra e o Protocolo
Egito e os venezuelanos no Brasil e na Sobre o Estatuto dos Refugiados não
América do Sul. Existe uma série de adotaram os tratados do Sul Global. De
estereótipos e paradigmas em relação aos acordo com Thaynara e com o referencial
migrantes do Sul Global e, de acordo com a teórico que ela utilizou, os países europeus
pesquisadora, o uso de referências decoloniais “têm o poder, devido a sua posição geopolítica,
(o termo refere-se à resistência ao de diminuir outras convenções e chamá-las de
colonialismo e à perpetuação da regionais e de localizadas, como se elas não
colonialidade) é importante para quebrar representassem o que é internacional e o que
esses preconceitos. Por isso, a bibliografia da deve ser seguido pelo resto do mundo. Apenas
padrões europeus são vistos como manutenção da colonialidade – isto é, dos
conhecimentos válidos e universais”. resquícios do pensamento e da prática
colonial na modernidade. As ideias
eurocêntricas estão presentes até hoje em
diversas esferas da sociedade. São
O reconhecimento legal dos refugiados por principalmente os países do eixo
parte do Estado garante seu acesso aos Europa-Estados Unidos que constroem o
serviços públicos e à devida documentação. É conhecimento, as convenções e as legislações,
por isso que o Sul Global luta para ampliar a além de perpetuar estereótipos e
definição de refugiados nas convenções – pois preconceitos. É nítido, também, que as
não querem estar em situação irregular grandes potências têm poder de barganha e
perante o Estado. influência muito mais fortes do que outros
países no cenário internacional.
Em 2005, o Egito recebeu imigrantes
sudaneses, que não eram reconhecidos A pesquisadora afirma que a transformação
legalmente como refugiados. Para lutar por do olhar eurocêntrico e a quebra dos
seus direitos, alguns desses imigrantes paradigmas em relação aos imigrantes são
passaram a se autorreconhecer como complexas e enfrentam muitos desafios
refugiados e elaboraram um manifesto, burocráticos. Porém, a questão dos refugiados
obtendo apoio do grupo de estudos sobre pode ser tratada com mais cidadania por meio
migrações da Universidade do Cairo. Esse foi de um olhar decolonial e intercultural.
um “exercício da decolonialidade na prática”,
segundo Thaynara. Mortes em viagens migratórias estão ligadas
à omissão e falta de segurança
A pesquisadora estudou, ainda, o tratamento
brasileiro ao fluxo de venezuelanos no País No último mês de novembro, a Organização
durante o governo Temer. Ela afirma que Mundial para Migrações (OIM) relatou que
faltava suporte a esses refugiados, que foram ocorreram mais de 50 mil mortes em viagens
recebidos no Brasil com recursos temporários migratórias desde 2014. O Projeto de
em vez de soluções duradouras. Os Migrantes Desaparecidos busca coletar
venezuelanos, por sua vez, estavam em informações sobre pessoas que perderam a
situação de grave violação dos direitos vida no processo de migração para um destino
humanos em seu país de origem, com carência internacional e expor a situação dessa crise
de necessidades básicas, como alimentação. que atinge todo o globo.
Nesse contexto, Thaynara analisou também a A maioria das mortes ocorreu em rotas com
atuação do Alto-Comissariado das Nações direção à Europa: só na região do Mar
Unidas para os Refugiados (Acnur), órgão da Mediterrâneo foram registradas mais de 25
ONU responsável pela questão do refúgio. O mil mortes. Afeganistão, Síria e Mianmar
Acnur permitiu que o Brasil e os demais ocupam o topo da lista dos países de origem e
países do Sul Global que recebiam os têm em comum os conflitos internos e a
venezuelanos adotassem a convenção insegurança presente no território.
latino-americana ou a africana, mas não
fizeram a mesma recomendação na Europa. Jameson Vinicius Martins da Silva,
Os países europeus continuaram seguindo especialista em migrações e doutorando do
suas convenções antigas, demonstrando, mais programa de Saúde Global e Sustentabilidade
uma vez, seu poder de moldar a identidade e da Faculdade de Saúde Pública da USP,
os direitos da população mundial, de acordo comenta que as mortes em viagens
com a pesquisadora. migratórias possuem relação direta com a
dificuldade de as pessoas acessarem o
Atualmente, Thaynara explica que, segundo território de destino almejado. As restrições
seus referenciais de estudo, há uma
impostas pelos países que recebem os racistas e xenofóbicos, com o elemento
imigrantes são determinantes nesse processo. identitário muito presente.
Estão chegando refugiados não só da América Durante o ano de 2021, o Conselho Nacional
do Sul e Central, mas também da Europa e de Refugiados analisou 70.933 solicitações
Oriente Médio. A recente guerra na Ucrânia de refúgio, sendo esse o maior volume da
fez com que um grande número deles viesse década até o momento: 72,2% dessas
para o Brasil. solicitações foram registradas nas unidades
federativas que compõem a região Norte do
Os refugiados afegãos fogem do regime País e são resultado principalmente da
implantado pelo Talibã desde agosto de 2021, migração de pessoas vindas da Venezuela
quando tropas americanas deixaram o país para Roraima.
depois de 20 anos. O governo atual se baseia
no fundamentalismo islâmico, cujas normas Levando em conta apenas 2021, quando
sociais se baseiam na religião. Mulheres, 29.107 migrantes solicitaram refúgio no
sobretudo, perderam direitos e são as que Brasil, o acréscimo é de 208 solicitações se
mais sofrem com as sanções. Recentemente comparado ao ano de 2020, momento em que
um grupo ficou morando no saguão do o País recebeu 28.899 refugiados.
aeroporto internacional de Guarulhos, em São
Paulo. Novo recorde mundial de refugiados reflete
desigualdades estruturais entre nações
Diferentemente do que se imagina, é função
do governo federal dar suporte e assistência
humanitária a esses afegãos justamente em egundo recente relatório divulgado pela
função de acordos políticos internacionais Organização das Nações Unidas (ONU), o
feitos antes mesmo da chegada desses grupos mundo atingiu um novo recorde de
ao País. deslocamentos forçados em 2022. Cerca de
108 milhões de indivíduos encontram-se
Fluxo migratório deve aumentar nessa situação — com um aumento de 19
milhões de pessoas em comparação com o
Fernandes explica que o futuro do fluxo ano anterior. Entre os diferentes motivos para
migratório deve aumentar de forma o aumento exponencial desses valores se
substancial em todo o mundo. Esse encontram a guerra da Ucrânia, a atualização
deslocamento da população deve ocorrer em de informações sobre os refugiados afegãos e
função de guerras e conflitos sociais que a eclosão de novos conflitos, como o presente
devem ser intensificados na próxima década. no Sudão.
Além disso, o “refugiado ambiental” é a bola
da vez, em função de mudanças climáticas Os novos dados revelam que, entre todos os
com desastres naturais e escassez de recursos indivíduos que foram deslocados
nessas regiões. forçadamente, cerca de 35 milhões
precisaram sair de seus países de origem para
garantir sua sobrevivência, enquanto 62
milhões tiveram que realizar algum
deslocamento interno. O Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)
revelou também que a expectativa para os Além disso, a problemática apresenta relação
dados de 2023 não é positiva, uma vez que o direta com questões econômicas,
número de refugiados já ultrapassou os 110 movimentando ainda mais esses indivíduos
milhões na metade deste ano. que buscam melhores condições e meios
básicos de sobrevivência.
Jameson Martins, pesquisador em Saúde
Global pela Faculdade de Saúde Pública da Origem e destino
USP com foco em Políticas de Saúde para
Migrantes Internacionais, explica que fatores O relatório destaca, entre diferentes
que fazem as pessoas migrarem são informações sobre o perfil dos grupos
complexos e pensar em soluções para a deslocados, a origem e o destino final desses
questão deve ser nos âmbitos local e sujeitos. Assim, nota-se que 70% das pessoas
internacional. em movimentação forçada são abrigadas em
países vizinhos e 76% se encontram em países
Deslocamento forçado de média ou baixa renda. Nota-se, portanto,
uma correspondência geográfica nesses
Para compreender a movimentação forçada casos, exemplo disso pode ser observado pelo
de indivíduos é essencial o entendimento a fato de a Síria ser listada como o país com o
respeito de suas condições. Desde 1951, com o maior número de refugiados (6 milhões) e a
estabelecimento do Estatuto do Refugiado, Turquia, seu país vizinho, ser o que recebeu o
todos os indivíduos que estão fora de seu país maior número de pessoas (3,6 milhões).
de origem “devido a fundados temores de
perseguição relacionado a questões de raça, Além da Turquia, os países que mais
religião, nacionalidade, pertencimento a um receberam esses grupos foram: Irã (3,4
determinado grupo social ou opinião política, milhões), Colômbia (2,5 milhões), Alemanha
como também devido à grave e generalizada (2,1 milhões), e Paquistão (1,7 milhão).
violação de direitos humanos e conflitos Observa-se também que 52% dos refugiados
armados” são considerados refugiados. são originários de apenas três países: Síria
(6,5 milhões), Ucrânia (5,7 milhões) e
Entre os diferentes motivos para o Afeganistão (5,7 milhões). “Ao contrário do
deslocamento forçado de pessoas, Martins que pode fazer parecer a cobertura midiática,
explica que os conflitos armados a enorme maioria dos países desenvolvidos e
configuram-se como um fator preponderante mais ricos, com mais recurso para fazer esse
para forçar as pessoas a empreenderem essas acolhimento, não concentra a maioria dos
rotas migratórias. “No mundo complexo em refugiados do mundo”, reflete Martins. A
que vivemos, nós temos outros fatores Alemanha é uma das poucas exceções ao
forçando as pessoas a se deslocarem. Um caso, já que, por decisões políticas e pela
deles é a ausência de meios de subsistência, influência da União Europeia, vem facilitando
particularmente em países muito pobres que o trânsito de ucranianos em direção aos
estão sendo afetados diretamente pelos países do bloco econômico.
fenômenos da crise climática”, comenta.
Assim, países como Somália, Etiópia e Conflitos
Paquistão vêm passando por fenômenos de
desertificação e chuvas torrenciais que geram A guerra da Ucrânia é apresentada como um
um volume importante de refugiados. dos principais conflitos atuais e o seu
encerramento não parece contar com um fim
O especialista reflete ainda que, apesar da próximo. Segundo Jameson Martins, há uma
existência de aparatos jurídicos para o série de aspectos geopolíticos estratégicos
acolhimento desses indivíduos, quando o que parecem bloquear um horizonte previsível
debate fundamenta-se nas questões de cessação do conflito armado.
climáticas, não há uma legislação específica
para a proteção internacional dessas pessoas.
É importante notar também que, apesar de com relação aos países mais desenvolvidos.
ser protagonizada no território ucraniano, a Tornou-se comum a criação de mecanismos
guerra apresenta dimensões políticas que se de afastamento e de impossibilidade de
expandem para além dessa área. “A gente está entrada de refugiados, como a terceirização
falando de uma influência fortíssima dos de fronteiras. Dessa forma, Estados ricos
interesses dos países da União Europeia e dos delegam a outros países o recebimento desses
Estados Unidos em fazer frente a um sujeitos. Martins explica que uma
expansionismo da Rússia e a Rússia se consequência direta dessa contenção e de
justificando em termos de se sentir ameaçada outras burocracias institucionais é o aumento
pelo avanço geopolítico do Ocidente no Leste do risco de vida por meio da busca por rotas
Europeu”, discorre o pesquisador. alternativas.
Martins analisa que, no momento, pensar nas “Quando você impede que as
consequências desse conflito para os pessoas cheguem ao território e
refugiados é essencial. Dessa forma, foi tenham a possibilidade de fazer a
possível observar que, para os ucranianos, a solicitação do pedido de refúgio,
garantia de acolhimento foi feita de forma você está violando a regra da não
assertivamente positiva. “Você vê uma recusa (non refoulement)”,
política de dois pesos da União Europeia. declara. Para além do recebimento
Quando se trata dos fluxos de países de fora desses grupos em países
da Europa nota-se uma série de barreiras para signatários é também importante
a migração e para a possibilidade de trânsito”, avaliar as condições de
explica. Isso não significa que o tratamento tratamento, sendo necessário o
dado aos refugiados ucranianos foi indevido, acesso aos meios básicos para
mas que o mesmo procedimento deveria ser uma vida com dignidade.
garantido para outros grupos que procuram o
mesmo tipo de proteção. Assim, nota-se que a
situação dos refugiados amplia-se também A criação de leis para a normalização do
para outros debates a respeito da garantia de trânsito dessas pessoas é primordial para
direitos humanos e políticas uma melhora nas condições presentes.
internacionalmente estabelecidas. Juntamente com elas, Martins explica que é
importante o fornecimento de um acesso
Futuro facilitado com saúde, alimentação,
saneamento, educação, empregabilidade etc.
Em um cenário ideal, a redução do número de “A gente também poderia pensar que, mais
refugiados no mundo seria estabelecida por adiante, a gente pode ter um mundo
meio da redução do número de conflitos economicamente mais equilibrado, de modo
armados, contudo, o especialista explica que, que as pessoas não seriam forçadas a migrar,
nos últimos tempos, estes estão aumentando mas poderiam simplesmente escolher”,
em decorrência de diferentes aspectos finaliza o pesquisador.
políticos, históricos, culturais e econômicos.
Assim, pensar e avaliar as formas como os Cerca de 67% de todos os refugiados do
refugiados estão sendo tratados deve se mundo são da Síria, do Afeganistão e do
tornar o centro de debates sobre a temática. Sudão do Sul
“Havendo conflitos e riscos à integridade
física das pessoas, o que a gente deveria O número assusta: 70,8 milhões de pessoas
esperar são políticas migratórias, foram forçadas a deixar seus locais de origem
principalmente dos países mais ricos”, por diferentes tipos de conflito no ano
esclarece o pesquisador. passado. Desses, 25,9 milhões são refugiados
e outros 3,5 milhões solicitaram
Nos últimos anos, um posicionamento reconhecimento da condição de refugiados e
contrário a esse é o que vem sendo observado aguardam decisão.
Os dados são do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Síria,
Afeganistão e Sudão do Sul são responsáveis
por cerca de 67% de todos os refugiados do
mundo. Na outra ponta, Turquia, Paquistão e
Uganda são os países que mais acolheram
refugiados. Na América Latina, os países com
maior movimento migratório nos últimos
anos são El Salvador, Guatemala, Honduras,
Haiti e Venezuela.