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Título:

SE A JUSTIÇA FALASSE...
© 2004 Booktree e Helder João Fráguas

Autor: Helder João Fráguas


e-mail: hjfraguas@hotmail.com
Internet: www.fraguasonline.com

Editado em língua portuguesa por:


BOOKTREE, Sociedade Editorial, Lda.
Av. Duque de Ávila, 23
1000-138 Lisboa – PORTUGAL
email: yg@booktree.pt / ib@booktree.pt
www.booktree.pt
Todos os direitos reservados

Data da 2.ª edição: Abril de 2004


ISBN 972-8718-89-6
Depósito Legal n.º 209900/04

Impresso em Portugal
por Impresse 4
PREFÁCIO

O Dr. Helder Fráguas oferece-nos um livro de interessantíssimas


crónicas a que deu o título
SE A JUSTIÇA FALASSE…
Agora é necessário escutar essa Justiça antes de lhe colocarem de
novo entraves às suas palavras, às suas decisões, às suas sentenças.
Aconselhável é igualmente e fundamental, retirar-lhe dos olhos,
totalmente, a malfadada venda, que nem sempre a deixou ver, com
clareza, as dúvidas que lhe apresentaram.
Já não falo das teimosas insistências com que tentaram
desequilibrar-lhe a balança, colocando, subrepticiamente, pesos no prato
da esquerda, ou da direita, para que o fiel penda para o lado que lhes
convém.
Não chega poder falar! Mais importante ainda que o falar é poder
agir com independência, de cabeça erguida, com a consciência de que as
suas decisões são justas e não devem ser contestadas pela opinião
pública, às vezes antes de serem conhecidas.
Aqueles que procuram devem confiar inteiramente nas suas
decisões, sem procurarem continuamente pressionarem-na com decretos,
com recursos e com dúvidas da sua constitucionalidade.
Agora, que a deixam falar, escutem com atenção tudo aquilo que
ela calou através dos tempo, num mutismo forçado, onde, contrariada,
teve de remeter-se ao silêncio.
Na verdade, foi pressionada por testemunhas falsas, por factos
adulterados, por provas forjadas para confundi-la, impedindo-a de ser
isenta e justa?
Agora que lhe devolveram a fala, só espera que a escutem,
respeitosamente e aceitem a independência das suas sentenças.
Sem a venda nos olhos, com a balança aferida nas convicções das
Leis, já pode usar a espada que durante tempos imemoriais, descansou no
seu regaço, apenas como imagemde imposição de terror, mas nem
sempre com ela, podendo… cortar a direito!

Artur Varatojo
CAPÍTULO I

O JUIZ

Reproduzem-se, neste capítulo, algumas das crónicas que tenho


publicado no “Correio da Manhã”.
Apenas ligeiras alterações foram introduzidas. Tiveram sobretudo em
vista actualizar algumas questões que entretanto tiveram novos
desenvolvimentos.
O ANIVERSÁRIO DO CANÍDEO

A sala de audiências de um tribunal é um lugar de emoções.


De uma forma geral, o ambiente é grave e sério.
No entanto, há duas semanas atrás, enquanto eu interrogava um
arguido, soltou-se uma gargalhada geral, incluída a minha, a da
procuradora, dos quatro advogados presentes e da funcionária judicial.
Perguntava eu ao arguido quando é que o acidente rodoviário tinha
ocorrido. Ele respondeu, com um ar muito determinado, que deveria ter
sido por volta de 2 de Setembro, pois o seu cão festejara o aniversário
alguns dias antes. Perdemos todos a compostura.
Quando terminei a licenciatura em Direito, inscrevi-me na Ordem dos
Advogados para realizar o estágio de advocacia, que viria a concluir
dezoito meses mais tarde.
Coube-me assistir a uma centena de julgamentos. Era uma das missões
a levar a cabo durante a segunda fase do tirocínio.
Nunca me aborreci e sempre pensei que tal actividade era ainda
melhor do que ir ao cinema ou ao teatro, com a vantagem de ser gratuita.
O que mais condimento trazia aos julgamentos eram as desculpas que os
arguidos apresentavam para os seus comportamentos. Aqui vão alguns
exemplos.
Um desenhador, funcionário público, era acusado de ter alterado uma
planta oficial, a troco de dois mil contos. A sua explicação foi esta: “Eu
não recebi dinheiro nenhum. Na verdade, alterei a planta, mas foi porque
estava bêbado e queria dar cabo do trabalho do meu colega”.
Um jovem foi detectado a conduzir sem carta, numa artéria de grande
movimento. No tribunal, disse que apenas o fez porque tinha de levar a
mãe ao hospital, em virtude de uma cólica renal. Como os polícias
testemunhassem que ele vinha sozinho na viatura, o arguido retorquiu:
“É que depois a minha mãe viu um táxi livre e resolveu apanhá-lo”.
Um homem dormitava no interior do seu automóvel, num parque de
estacionamento. Dois gatunos entraram no veículo e apontaram-lhe uma
navalha, exigindo-lhe dinheiro. Um guarda surgiu e conseguiu capturar
um dos indivíduos, deixando escapar o outro.
O único arguido presente no julgamento tinha uma justificação:
“Meritíssimo Juiz, eu fui enganado. O meu amigo disse-me que aquele
carro era dele próprio e que no interior estava lá um ladrão. Por isso é
que apontei uma faca àquele senhor, convencido de que ele roubara o
automóvel do meu companheiro”.
Curiosamente, segundo a vítima, o arguido presente é que lhe tinha
pedido a carteira.
A polícia foi chamada a um bairro degradado. Um morador queixara-
se de que um seu vizinho, trajando apenas um par de cuecas, o ameaçara
com uma faca.
O arguido reconheceu que tinha saído da cama em ceroulas, pois o
queixoso estava a ver televisão com um volume de som altíssimo.
Confessou também que a navalha era sua, mas negou qualquer ameaça.
Questionado porque razão tinha então exibido a faca, o acusado disse que
não a tinha sequer à vista, já que a mesma se encontrava no seu bolso.
Eis um caso único de cuecas com algibeira.
Um arguido respondia por ter insultado uma funcionária dos serviços
emissores do bilhete de identidade, usando expressões obscenas. Em
juízo, afirmou:
- Eu realmente disse essas palavras, mas não estava a falar com a
senhora. Estava a falar comigo mesmo.
Num estabelecimento comercial, um funcionário procedia à contagem
de dinheiro. Envergava um fato de bom corte. Enquanto contava o
numerário, pegou num monte de notas e meteu-as no bolso interior. As
câmaras de vigilância filmaram tudo. O homem foi detido e chamado a
prestar declarações. Explicou-se:
- É que eu sofro de uma alergia no sovaco e constantemente preciso de
me coçar. Quando estava a contar o dinheiro, deu-me uma comichão.
Tive imediatamente de abrir o casaco e coçar-me.
QUEIXAS DE PEDOFILIA

Nos crimes de natureza sexual, a regra é a de que só há julgamento se


a vítima quiser apresentar queixa. Caso uma senhora que tenha sido
violada preferir que o caso não seja apreciado pelo tribunal, a vontade
dela é soberana e nada se poderá fazer.
No que toca à pedofilia, esta é uma matéria de tratamento legislativo
recente.
Inicialmente, entendia-se que os pais da criança é que deveriam
decidir. Caso julgassem que o menor sofreria ainda mais com o processo
judicial, então o caso não era levado a julgamento.
O problema é que muitas vezes, o pedófilo pertence ao seio da própria
família. Pode tratar-se, por exemplo, de um tio que viola o sobrinho ou a
sobrinha. Os pais poderão proteger o criminoso, resolvendo não
apresentar queixa, deixando a situação impune.
Por esse motivo, a lei foi alterada recentemente. Permite-se agora que,
em certos casos, o Ministério Público avance com a investigação, mesmo
contra a vontade dos pais da vítima.
É claro que aqui tem de haver algum bom senso.
Imagine-se uma menina que é filha de um casal de professores
universitários. Em casa, a sexualidade é encarada com naturalidade.
Certo dia, a rapariga regressa a casa, vinda da escola, e é abordada por
um exibicionista. A polícia intervém, o homem é levado para a esquadra,
mas os pais da criança não se queixam. Entendem que o caso não foi
traumatizante e julgam que envolver a menina num julgamento seria
contraproducente. Ainda assim, o Procurador poderia resolver acusar o
indivíduo, obrigando a menor a comparecer no tribunal, enfrentando de
novo o exibicionista.
Os estudiosos e os políticos procuram constantemente aperfeiçoar a
legislação relativa a pedofilia.
Há ainda casos muito duvidosos.
Tomei conhecimento de uma situação que me deixou revoltado e que
foi discutida num fórum jurídico da Internet. Trata-se de um espaço onde
os juristas, através dos seus computadores, trocam impressões sobre
casos com que se deparam na sua vida profissional. Tenho por hábito
participar assiduamente.
O caso é real e ocorreu há pouco tempo em Portugal.
Uma menina de nove anos de idade encontrava-se a brincar num
jardim público. Um homem aproximou-se dela, agarrou-a à força e deu-
lhe um beijo na boca. Imediatamente, um jardineiro interveio e chamou a
Guarda Nacional Republicana.
O Ministério Público acusou o homem, pretendendo levá-lo a
julgamento.
O juiz estudou o processo a fundo e concluiu que no Código Penal não
há punição para casos como este. Inevitavelmente, o processo foi
arquivado.
A situação foi debatida no referido fórum da Internet e os juristas
participantes foram unânimes: não há possibilidade de condenar o
indivíduo.
As Faculdades de Direito devem debater a legislação sobre pedofilia
para que esta possa sofrer os necessários ajustes que são exigidos pela
multiplicidade de casos que infelizmente vão ocorrendo.
CONDENADO A 50 ANOS DE CADEIA

Leandro Andrade está preso na Califórnia, nos Estados Unidos, desde


1995. Cumpre uma pena de 50 anos.
Qual foi o crime que levou o juiz a impor uma pena tão pesada?
Homicídio? Tráfico de droga? Roubo violento? Violação? Agressão?
Pedofilia?
Não. Está preso porque entrou num supermercado e furtou nove
cassetes de vídeo, para oferecer às sobrinhas no Natal. Entre os filmes,
contava-se a Branca de Neve.
O problema é que ele já tinha cometido dois crimes de furto
anteriormente, o último dos quais em 1983.
Em todo o mundo, os reincidentes são punidos com maior severidade
do que aqueles que praticam um delito pela primeira vez. O Código
Penal Português não escapa à regra. No entanto, quando o crime anterior
foi cometido há mais de cinco anos, o arguido não pode ser condenado
como reincidente.
Na Califórnia, exageram. Neste estado, está em vigor a lei das três
cruzes. À terceira vez que um indivíduo é detectado a praticar um crime
do mesmo tipo dos anteriores, é condenado a uma pena que vai de 25
anos de prisão até perpétua.
Os estudiosos do Direito Penal defendem que toda a legislação deve
obedecer a dois princípios: a proporcionalidade e a necessidade. A
sanção deve ajustar-se à gravidade do crime. Por outro lado, não se deve
aplicar uma pena que seja desnecessária por não cumprir os seus
objectivos. É óbvio que no caso de Leandro Andrade estes princípios não
foram respeitados. Há uma enorme desproporção entre o crime que ele
cometeu e a pena que lhe foi infligida. Além disso, para reabilitá-lo, não
se afigura necessário fechá-lo numa cela por um período tão longo.
Por estes motivos, o advogado do criminoso decidiu recorrer para o
Supremo Tribunal de Justiça. O jurista argumentou que a lei das três
cruzes viola a Constituição dos Estados Unidos. É que este diploma
fundamental proíbe penas cruéis. Para o causídico, a sanção imposta ao
seu cliente assume essa característica.
Se o Supremo julgasse que efectivamente aquela lei é inconstitucional,
Leandro Andrade tornar-se-á um homem livre.
O Procurador do Ministério Público defendeu a manutenção da sanção
de cinquenta anos de prisão e disse que não sentia pena de Leandro
Andrade.
O Supremo Tribunal confirmou a pena de cinquenta anos de prisão.
Negou razão ao advogado de defesa.
Entretanto, foi formada uma associação contra a lei das três cruzes,
que tem presença na Internet em www.facts1.com. Nesta página pode
encontrar-se uma lista de dezenas de presos que cumprem penas iguais
ou superiores a 25 anos de prisão, com base nesta lei, alguns por petty
crimes como furtos de um pneu sobressalente, lâminas de barbear, uma
bicicleta, um aspirador, uma luva de baseball, dois gravadores de vídeo,
duas pilhas (no valor de € 2,60!) ou uma bomba de encher pneus.
As incertezas sobre a manutenção da lei das três cruzes vão crescendo.
De uma coisa não tenho dúvidas.
Se em Portugal vigorasse esta lei, eu recusava-me a ser juiz.
ARGUIDO E VÍTIMA FICAM AMIGOS

Quando se trata de pequenos crimes, a lei admite que a vítima retire a


queixa. Deste modo, o processo fica arquivado e não se realiza o
julgamento.
O Manuel, padrinho da minha filha mais velha, conheceu o Rogério de
um modo muito peculiar.
O meu grande amigo estava a jantar num restaurante e chegou a hora
de pedir a conta. A empregada de mesa estendeu-lhe um papel com um
determinado valor, sem que as parcelas correspondentes aos diversos
artigos estivessem discriminadas. O Manuel reclamou, gerou-se um
desentendimento entre ele e a funcionária. Rapidamente houve azedume
nas palavras trocadas. O pior é que o marido da empregada estava assistir
a tudo. Era o tal Rogério, uma imponente criatura com quase 1,90m de
altura. Pegou no meu amigo, assentou-lhe uns bons socos e deitou-o
escada abaixo.
A polícia foi chamada ao local e, já na esquadra, o Manuel apresentou
queixa contra o agressor.
O curioso é que o Rogério praticava desporto no mesmo ginásio que
eu frequentava.
À medida que o processo avançava no Ministério Público, o arguido
começou a ficar preocupado com o desfecho que o caso poderia ter.
Sabendo que eu era amigo da vítima, abordou-me e questionou se ele não
estaria disposto a perdoá-lo.
O Manuel já tinha apresentado um pedido de indemnização.
Reclamava o reembolso das despesas hospitalares, o valor de um fato de
caxemira feito à medida e que ficara irremediavelmente destruído na
contenda bem como uma quantia a título de danos morais.
Fomentei um almoço entre os dois desavindos e chegou-se a um
acordo. O Manuel desistia da queixa, mediante um pedido de desculpas,
que foi logo ali apresentado. A indemnização fixava-se em quinhentos
contos.
No próprio dia, os dois apresentaram-se no tribunal e formalizaram o
perdão. O processo foi arquivado.
Rapidamente, o Manuel e o Rogério tornaram-se amigos. Quando o
primeiro decidiu abrir um bar, convidou o segundo para gerente. Hoje,
dão-se muitíssimo bem.
Ainda há pouco tempo, tomei contacto com um caso semelhante.
Uma condutora pouco habilidosa pretendia estacionar a sua viatura em
cima do passeio. Aí encontrava-se uma senhora a conversar com uma
amiga. No decorrer da manobra, a roda dianteira do automóvel passou
por cima do pé da pessoa que estava tranquilamente no passeio. Os
ânimos exaltaram-se e, chegada a autoridade, a lesada resolveu queixar-
se contra a condutora.
Coube-me a mim realizar o respectivo julgamento por ofensa à
integridade física involuntária.
Os advogados de ambas as partes pediram para falar comigo
antecipadamente. Contaram-me, então, que agora as duas senhoras se
tinham tornado amigas e que a indemnização pedida iria ser paga
prontamente. A vítima retirou a queixa. Como se impõe, perguntei à
arguida - que, neste caso, era a condutora - se se opunha ou não à
desistência da queixa. Perante a negativa, arquivei o caso e não efectuei o
julgamento.
Também no caso de furtos simples, é possível a desistência da queixa.
Há uns tempos, furtaram a viatura da esposa de uma alta figura da
magistratura portuguesa. A queixa foi apresentada, o automóvel surgiu
abandonado e, através da recolha das impressões digitais, chegou-se ao
autor do crime. Era um toxicodependente, que, entretanto, fora preso por
outros motivos.
No dia do julgamento, a proprietária do veículo revelou um grande
sentido de humanismo. Tinha todo o direito a confrontar com a justiça o
indivíduo que lhe causara aqueles danos e incómodos. Mas ao vê-lo
rodeado de guardas prisionais, sabendo que ele dizia já não consumir
drogas e calculando que aquele julgamento poderia custar ao arguido
mais algum tempo de prisão, declarou perdoá-lo.
A DIFICULDADE DE RETIRAR QUEIXA

Recentemente, referi-me a vítimas que acabam por estabelecer


amizade com os criminosos.
Os casos são mais frequentes do que se possa pensar. O pior é que nem
sempre é possível retirar a queixa.
Nas situações de furto simples, existe sempre essa possibilidade. Mas
já é inviável desistir da queixa quando se trata de um roubo.
A diferença é a seguinte. Se houver violência, está-se perante um
roubo. Se a violência tiver estado ausente, o que existiu foi um furto.
Os roubos por esticão são considerados violentos e, como tal, nunca é
possível extinguir o procedimento criminal.
Tomei conhecimento de um caso curioso.
Um indivíduo encontrava-se no passeio e trazia debaixo do braço uma
bolsa com a carteira, o telemóvel, os óculos e os documentos pessoais.
Uma jovem abordou-o e perguntou-lhe as horas. Aproveitando um
momento de distracção, a rapariga retirou-lhe a bolsa e desatou a correr.
O homem apresentou queixa na esquadra e os agentes policiais não
tiveram dificuldade em identificar a criminosa, atendendo à descrição.
Tratava-se de uma conhecida toxicodependente, que não hesitava em
roubar quando sentia a falta da heroína.
Passados alguns dias, a vítima foi contactada pelo pai da rapariga. O
progenitor prontificou-se a pagar todos os prejuízos e informou que a
filha já se encontrava internada num centro de desintoxicação.
Perante tal situação, o indivíduo escreveu uma carta dirigida ao
tribunal, dizendo que se considerava ressarcido e que pretendia desistir
da queixa.
A resposta não tardou: tratava-se de um roubo por esticão, logo
violento. Era impossível arquivar o processo. O homem insistiu, dizendo
que não houvera esticão nenhum. A bolsa apenas tinha escorregado para
as mãos da ladra. Esta versão mais actualizada não vingou e o
julgamento teve mesmo de se realizar.
Todavia, o juiz foi particularmente brando e aplicou uma leve pena
suspensa.
Um dos casos mais conhecidos de amizade estabelecida entre vítima e
criminosos foi o de Patrícia Hearst, filha de um multimilionário norte-
americano. Em 1974, esta jovem, então com dezanove anos de idade, foi
raptada junto à sua casa de São Francisco.
Os raptores faziam parte de uma quadrilha intitulada Exército de
Libertação, que se dedicava a assaltos a bancos.
Durante dois meses, Patrícia foi mantida fechada num roupeiro, com
autorização para sair apenas para fazer uso da casa de banho. Foi violada
e torturada inúmeras vezes.
Com o decorrer do tempo, os criminosos aperceberam-se de que o pai
da raptada não iria pagar o pretendido resgate. Restava aniquilá-la. Um
dos membros do bando lembrou-se, porém, de perguntar a Patrícia se ela
não gostaria de aderir ao grupo. A resposta foi afirmativa.
Três meses depois do rapto, ela iniciou-se com um assalto ao Hibernia
Bank, em São Francisco. Os ladrões levavam a cara coberta, à excepção
de Patrícia. Obviamente, foi filmada e as imagens chocaram a América.
A filha de William Hearst estava viva e convertera-se à marginalidade.
Durante ano e meio, sucederam-se os assaltos, até que Patrícia e os
restantes membros da quadrilha foram capturados.
O juiz que ponderava aplicar à jovem uma pena de trinta e cinco anos
de prisão veio a falecer de ataque cardíaco e foi substituído por um
colega. Este, atendendo à coacção sofrida pela rapariga, condenou-a a
sete anos de cadeia.
MÉDICOS, JUÍZES E LOUCOS

O meu amigo Carlos é psiquiatra e tem imensa dificuldade em


compreender como é que eu, enquanto juiz, posso ordenar o
internamento compulsivo de um doente mental. Para ele, a decisão de
mandar internar alguém é um acto médico e a avaliação respectiva
compete a um psiquiatra. Um magistrado não se pode sobrepor a uma
análise clínica da situação. A questão parece-lhe tão absurda como um
médico poder mandar um criminoso para a cadeia.
O problema é delicado. Não é por acaso que nos regimes totalitários,
os internamentos forçados são usados como instrumentos de repressão
política. Ficarão conhecidos os hospitais psiquiátricos da União
Soviética, onde eram encerrados adversários do «establishment». No
Estado Novo, em Portugal, a expressão «medida de segurança» ficou
associada a um meio insidioso de aprisionar os indivíduos considerados
perigosos para o regime.
Um médico nunca deve dizer que manda internar uma pessoa, mas sim
que lhe propõe o internamento. Em, última análise, a decisão compete ao
paciente, que pode recusar-se a permanecer no hospital.
Todavia, mesmo nas democracias mais desenvolvidas, há que proteger
a sociedade de indivíduos que, não sendo criminosos, são doentes que se
recusam a submeter-se ao respectivo tratamento médico. A decisão de
internamento deve competir, nesses casos a uma entidade imparcial: o
juiz. Nalgumas situações, o que está em causa é até a protecção do
próprio paciente.
Recordo-me de um caso de um homem que não comia há quatro dias.
A irmã dirigiu-se, aflita, ao tribunal. Ele estava convencido de que o
queriam envenenar e, por isso, não ingeria absolutamente nada. A sua
vida corria perigo evidente. Sumariamente, apreciei o processo e mandei
de imediato passar os respectivos mandados de internamento compulsivo
com carácter urgente. Ao fim de uns dias, o doente já se encontrava
compensado e aceitou, de livre vontade, prosseguir o tratamento.
Os exemplos multiplicam-se.
Um indivíduo recusava lavar-se, pois, segundo ele, as torneiras
emitiam raios laser. Os filhos pediam o internamento. Considerei que o
caso não assumia absoluta urgência. Dei oportunidade de o homem ser
representado por advogado, que lhe nomeei oficiosamente para aquele
processo e determinei a realização de uma avaliação cínica. No fim,
cheguei à conclusão que os filhos tinham razão: justificava-se mesmo o
internamento.
Mas as cautelas previstas na lei fazem sentido: nalgumas
circunstâncias, poderão os filhos estar de má-fé e tentarem apenas ver-se
livres do progenitor.
Tomei igualmente conhecimento de um caso de cariz oposto a este.
Uma senhora tomava banho variadíssimas vezes ao dia. Mesmo assim,
julgava cheirar muito mal. Por isso, estava convencida que a queriam
matar, para colocarem termo àquele odor desagradável.
Uma outra senhora entretinha-se a atirar objectos do sétimo andar onde
vivia. O perigo era óbvio.
Uma estudante universitária vivia num quarto alugado situado num
apartamento que acolhia alunos de outras faculdades. A rapariga entrou
em conflito com o senhorio, que alegava que a rapariga gastava
demasiada electricidade e gás. Encontrando-se sozinha em casa, a jovem
regou os compartimentos com gasolina e ateou fogo, ausentando-se logo
de seguida. A conclusão foi de a moça não estava bem.
Um homem resolveu suicidar-se e disparou um tiro de pistola sobre a
própria cabeça. Felizmente, salvou-se. O pior é que a arma era ilegal e
ele não tinha licença de uso e porte da mesma. A polícia participou o
caso ao tribunal. O indivíduo sobrevivera, mas arriscava-se a ir parar à
cadeia. No entanto, o processo foi arquivado por se decidir que ele não se
encontrava de plena posse das suas faculdades mentais.
30 HOMICÍDIOS POR DIA

Em Washington, o lóbi mais poderoso é o da National Rifle


Association. Trata-se da associação de armas de fogo, que defende livre
acesso a armamento por parte de todos, incluindo indivíduos que já
demonstraram ter perturbações mentais.
O presidente da associação é Charlton Heston, que foi recentemente
entrevistado por Michael Moore, um polémico escritor e realizador, há
pouco tempo retratado no programa “60 Minutos”, transmitido em
Portugal pela SIC Notícias.
Moore questionou o líder do movimento:
- Porque é que a América é o país em que mais se mata com armas de
fogo?
Com efeito, nos EUA, são assassinadas 11127 pessoas por ano com
recurso a tais armas, por contraposição a 68 vítimas no Reino Unido.
A surpreendente resposta de Heston foi:
- É que nós temos uma maior mistura de etnias.
Os opositores da liberdade no acesso a armas ficaram atónitos com a
afirmação. Como é que uma pessoa pode pensar que o facto de várias
etnias conviverem no mesmo espaço justifica uma matança entre civis?
Os defensores da associação dizem que o jornalista explorou a idade
avançada do entrevistado.
Seja como for, uma semelhante concepção da sociedade é inaceitável.
Mas não deve ser exclusiva do Sr. Charlton Heston.
Há uns anos atrás, participei em Taiwan num encontro internacional de
juristas. Um advogado norte-americano defendia que a razão de ser dos
conflitos inter-raciais em Los Angeles residia no facto de grande parte
dos estabelecimentos comerciais pertencerem a coreanos.
Para os ocidentais e afro-americanos, a forma correcta e delicada de
um balconista dar o troco ao cliente é colocar-lhe as moedas na mão. O
coreano julga que deve pôr as moedas espalhadas em cima do balcão.
Deste modo, o cliente pode, através de um simples olhar, confirmar que a
demasia está correctamente contada. Como o lojista procede assim, o
cliente ocidental interpreta tal como uma falta de deferência, pois o
comerciante obriga-o a transferir as moedas uma a uma para a sua mão.
Daí uma latente conflitualidade entre coreanos e ocidentais naquela
cidade.
Ainda que tal corresponda à verdade, ninguém de bom senso poderia
pensar que a forma de resolver esse problema seria distribuir armas por
todos.
Com efeito, dificilmente se encontrará país mais liberal nesta matéria
do que os Estados Unidos. Visitei por diversas vezes as Filipinas, país
onde qualquer pessoa pode ser portador de pistolas ou revólveres.
Mesmo assim, na maior parte dos hotéis, os hóspedes ou visitantes
devem deixar as mesmas à entrada, ao cuidado de um dos seguranças.
Em Portugal, o acesso a armas de defesa é muito restrito e não é fácil
obter a respectiva licença de uso e porte. Quem não for taxista,
dificilmente consegue a licença.
Quanto às armas de caça, torna-se necessário lançar uma pedagogia
informativa no sentido de esclarecer que a respectiva licença apenas
permite o uso de tais espingardas para o exercício da caça. O bom
caçador sabe que a sua arma nunca se destina a servir para defesa
pessoal.
Infelizmente, nem sempre assim sucede. Na minha vida profissional,
vou-me deparando com casos de uso indevido de caçadeiras.
Uma jovem mãe solteira vivia sozinha numa habitação social de rés-
do-chão, em zona isolada. Quase todas as noites, um indivíduo chamava
por ela e batia-lhe nos estores, aterrorizando-a. Entretanto, a rapariga
começou a namorar com um outro senhor, tendo ambos passado a viver
juntos naquela casa. Nem assim, a jovem deixou de ser importunada.
Um dia, cansado de tudo aquilo, o namorado da rapariga pegou numa
caçadeira e disparou sobre o homem. Felizmente, a distância fez com que
os chumbos se dispersassem e apenas ferissem a vítima. O tiro de
caçadeira, quando disparado de perto, é altamente mortífero, pois os
grãos não chegam a espalhar-se, causando um grande orifício. Mas, para
bem de todos, não foi esse o caso.
OS MESTRES DO CRIME

Num canal de televisão norte-americano, passava em tempos um


programa semanal intitulado “Os criminosos mais estúpidos da
América”.
A ideia nasceu na cabeça do produtor depois de este verificar que os
seus filhos se entusiasmavam com séries do tipo “Mistérios por
resolver”, que retratam casos de crimes perfeitos, em que a polícia é
vencida.
Como contraponto, o profissional da televisão resolveu conceber um
espectáculo em homenagem aos criminosos menos hábeis.
Na realidade, a maior parte dos delinquentes não são profissionais ou
cérebros particularmente dotados. Muitos deles são alcoólicos ou
toxicodependentes, cuja violência é irracional, estando dispostos a tudo
para arranjar algum dinheiro. Outros são indivíduos perfeitamente
normais, que um dia fizeram o maior disparate da vida deles.
Como muitos estabelecimentos e até vias públicas são dotadas de
câmaras de vigilância com gravação, as respectivas cassetes de vídeo
permitiam fazer um divertido programa de televisão.
Eram inúmeros os casos de indivíduos que, apanhados com armas
proibidas ou droga no bolso, explicavam que, na verdade, as calças não
lhes pertenciam. Assim, desconheciam que aqueles objectos ali se
encontravam. Como se fosse muito vulgar pedir emprestado um par de
calças...!
Um matulão com cerca de um metro e noventa disse até que os jeans
que envergava pertenciam à namorada, que se encontrava ao seu lado. A
rapariga tinha uma cintura correspondente a menos de metade da dele.
Como o polícia chamou a atenção para o facto, o homem, sem perder a
calma, disse: “É que ela emagreceu !”. É de presumir que a jovem não o
tenha ido visitar muitas vezes à cadeia.
Aqui há tempos, deparei-me com um caso insólito.
Um indivíduo de 81 anos de idade vivia sozinho em casa. Às oito da
manhã, acordou e não ganhou para o susto. Debaixo da sua cama,
encontrava-se um assaltante a dormir, com uma meia de vidro enfiada na
cabeça.
O dono da casa telefonou para a polícia. Os agentes da autoridade não
conseguiram acordar o meliante, tão profundo era o seu sono. Levaram-
no ao colo para a viatura policial e só a caminho da esquadra é que ele
despertou.
O que é que se tinha passado? No dia anterior, o intruso estivera a
beber até ficar completamente embriagado. Decidiu então ir assaltar uma
casa. Quando já se encontrava lá dentro, ouviu o dono da mesma meter a
chave à porta. Imediatamente, escondeu-se debaixo da cama. O tempo
passou e a bebedeira convidou ao sono.
Interroguei-o e ele só me respondia que não se lembrava de nada.
Apenas se recordava de acordar quando ia a caminho da esquadra.
Perguntei-lhe como é que se introduzira dentro da habitação, já que
não havia sinais de arrombamento, fazendo presumir que ele recorrera a
chaves falsas. Disse que não fazia a mínima ideia e ainda sugeriu que
alguém o tivesse posto lá dentro de casa.
Abri um envelope e, com alguma repugnância, peguei na meia de
vidro que ele tinha envergado, ao mesmo tempo que lhe perguntava
porque razão a colocara na cabeça. Também me garantiu não saber para
que serviria a meia.
Ele há com cada um...
FOTOGRAFIAS SECRETAS

Acompanhei com interesse o desfecho do julgamento que opôs o actor


Michael Douglas e sua mulher Catherine Zeta-Jones à revista inglesa
“Hello!”.
O par casou-se em Novembro de 2000 numa cerimónia orçada em 1,9
milhões de euros, que decorreu num hotel em Nova Iorque. Reuniram-se
350 convidados, entre os quais se contava o Secretário-Geral das Nações
Unidas, Kofi Annan. Cada um deles assinou uma declaração na qual se
comprometia a manter confidencialidade sobre a cerimónia e a não
captar fotografias.
Apenas um fotógrafo foi autorizado a levar a sua máquina, sendo os
retratos vendidos à revista britânica “OK!” por 1,6 milhões de euros.
O diabo é que um intruso, filho de um conhecido político inglês,
penetrou no recinto da festa. Trazia escamoteada na cintura uma máquina
fotográfica e desatou a captar imagens, que foram publicadas pela
“Hello!”.
Numa das fotografias, via-se Michael Douglas a enfiar uma garfada de
bolo na boca da noiva. As más-línguas chamaram logo comilona à actriz:
Catherine “Eater” Jones.
A actriz intentou uma acção, num tribunal londrino, contra a revista.
Alegou que sofrera danos morais significativos devido ao desgosto e
aos comentários que a reportagem fotográfica clandestina provocara.
Exigia uma indemnização de 2,8 milhões de euros.
O julgamento teve momentos especiais.
O advogado da “Hello!” insistia que tudo não passava de uma questão
de dinheiro e que Catherine não teve nenhum sofrimento psicológico.
Referindo-se à quantia recebida pela outra revista, a actriz respondeu-
lhe em plena sala de audiências: “1,6 milhões de euros é muito dinheiro
para as pessoas que estão nesta sala, mas não é assim tanto para mim”.
Fez-se um profundo silêncio no tribunal.
A representante da revista também deu mostras de algum pedantismo.
A Marquesa de Varela, de ascendência uruguaia, admitiu saber que o
paparazzo iria infiltrar-se no decorrer da cerimónia.
Confrontada com a fraca qualidade das fotografias assim captadas,
quando comparadas com as imagens oficiais, a testemunha disse: “Não
se pode comparar a Armani com a Zara”.
O juiz Lindsay acabou por dar razão a Catherine Zeta Jones e
condenou a revista a indemnizá-la em montante ainda por determinar. O
mais natural é agora ser interposto recurso da decisão.
Em Portugal, recentemente ia-se gerando um imbróglio por causa do
casamento de uma conhecida apresentadora de televisão. Uns dias antes
da cerimónia, uma revista publicou na capa uma fotografia da
celebridade com o seu vestido de noiva. Afinal, tudo não passava de uma
montagem. Falou-se em processos judiciais, mas as partes acabaram por
se entender.
Nos tempos do Estado Novo, ocorreu um episódio curioso.
Em 1951, Coimbra acolheu o Congresso da União Nacional, a
associação cívica que apoiava o Governo.
Os organizadores decidiram que, na sala de entrada, deveria figurar
uma fotografia gigante de Salazar. Sendo o ditador professor
universitário daquela cidade, impunha-se que surgisse com as vestes
doutorais, de capelo e borla. Todavia, o Presidente do Conselho nunca
tinha sido fotografado com tal indumentária.
Resolveram então pedir ao delfim de Salazar, o Professor Marcello
Caetano, uma fotografia deste, de capelo e borla. Substituíram a cabeça
pela de Salazar e realizaram uma fotomontagem que parecia perfeita.
O único problema é que Salazar cultivava uma imagem de solteirão,
exclusivamente dedicado aos assuntos de Estado. Ora na enorme
fotografia, ele aparecia com uma aliança de casamento na mão esquerda:
a de Marcello Caetano.
CHRISTIANIA

Durante a guerra de 2003 no Iraque, que levou ao derrube de Saddam


Hussein, encontrava-me na Dinamarca. Estava a frequentar um curso de
preparação para regiões em crise. Diferentes atitudes perante a vida não
me surpreenderam, graças à prévia introdução que me foi feita pela
leitura do respectivo guia da Lonely Planet, colecção a que recorro
sempre que me desloco ao estrangeiro.
Como rotário cumpridor, visitei o Rotary Club local, o Copenhagen
Morning, que se reúne às quartas-feiras, ao pequeno-almoço. No dia em
que participei, o convidado de honra e palestrante era nem mais nem
menos do que o Rei da Pornografia da Dinamarca, produtor de filmes da
especialidade. Não era de estranhar. Afinal encontrava-me no país da
Europa que primeiro liberalizou a pornografia.
Uma das formadoras do curso que frequentei na Escola de
Administração Pública de Copenhaga era casada com outra senhora, o
que se compreende perfeitamente já que são legais os matrimónios entre
pessoas do mesmo sexo.
O mais original da Dinamarca é o Estado Livre da Christiania, em
plena Copenhaga.
Em 1971, um numeroso grupo de pessoas, incluindo hippies, freaks,
adeptos da macrobiótica, artistas e outros que buscavam modos de vida
alternativos ocuparam umas instalações militares desactivadas e
formaram uma comunidade com governo próprio.
Ao entrar em Christiania, ainda pude captar uma fotografia junto ao
pórtico que dá as boas vindas aos visitantes. Mas passando aquele ponto,
já não tive hipótese de utilizar a máquina fotográfica. Numerosos sinais
recordam que é proibido captar imagens.
Compreende-se porquê.
É que no recinto dos quiosques, encontram-se expostas para venda
barras de haxixe (a que em Portugal chamam sabonetes) e marijuana bem
como todo o material necessário ao consumo daquelas drogas. As
etiquetas identificam a origem do produto. Os consumidores dispõem de
bares onde podem apreciar os estupefacientes.
A transacção e o consumo de drogas duras está, porém banida.
O tráfico de estupefacientes não é lícito na Dinamarca. Mas as
autoridades não têm conseguido deter a sua venda em Christiania. Em
1992, a Polícia lançou uma operação envolvendo 70 homens tendo em
vista acabar com tal comércio. O braço-de-ferro com os habitantes durou
oito meses e terminou com a retirada dos agentes, após a intervenção dos
Ministros da Defesa e da Justiça.
Em Março deste ano, os vendedores de droga locais fizeram uma greve
e durante uma semana não traficaram estupefacientes em protesto pelo
projecto oficial de terminar com Christiania. Simultaneamente, os
residentes recolheram assinaturas de cidadãos favoráveis à manutenção
daquela comunidade.
Para além das casas dos habitantes, o Estado Livre conta com um
infantário, lojas, oficinas e fábricas bem como um sistema de recolha de
lixo próprio.
Frequentemente, são organizados concertos de música e exposições
abertos à população.
As decisões que afectam a comunidade, como admitir novos membros
ou autorizar a instalação de quiosques são tomadas por unanimidade.
Embora não existam leis, há quatro proibições básicas: utilização de
drogas duras, posse de armas, violência e comercialização de espaços
habitacionais.
SEM DINHEIRO PARA ADVOGADO

Nem toda a gente tem meios económicos para recorrer a um advogado.


Para obviar a tal dificuldade, existe o apoio judiciário.
Este divide-se em três grandes áreas: informação jurídica, consulta
jurídica e patrocínio judiciário.
A informação é essencial. Se os cidadãos não conhecem os seus
direitos, nem sequer chegam a recorrer a uma consulta jurídica. Por
exemplo, é importante informar que no caso de haver uma falha de
fornecimento de electricidade e forem causados danos, o lesado tem o
direito de pedir uma indemnização à EDP (que, aliás, dispõe de um
seguro para o efeito). Imagine-se que se estraga carne congelada ou que
se avaria um aparelho eléctrico. O prejuízo deve ser compensado.
A consulta jurídica é o passo seguinte. Tendo noção de que lhe assiste
um direito, o particular deve consultar um advogado. Se não dispuser de
meios, tem direito a uma consulta jurídica gratuita. O jurista aconselhá-
lo-á sobre o caminho a adoptar.
Finalmente, importa assegurar o patrocínio judiciário. Quando há um
litígio em tribunal, a parte interessada deve ser representada por
advogado. Mais uma vez, se sofrer de carências económicas, deve ser
nomeado um causídico, cuja retribuição será assegurada pelo Estado.
Além disso, caso se justifique, deve o interessado ficar dispensado de
pagar a taxa de justiça.
Durante muito tempo, o apoio judiciário foi incipiente e praticamente
consistia na nomeação oficiosa de advogado ou advogado estagiário que
recebia uma remuneração absolutamente irrisória, chegando-se até ao
seguinte absurdo: no caso de o réu ser absolvido, o profissional do foro
nada recebia. A informação jurídica e a consulta jurídica eram miragens.
Em 1987, foi institucionalizado um sistema de apoio judiciário sólido,
que permitiu satisfazer as necessidades dos mais carenciados.
Algumas dificuldades foram-se fazendo sentir ao longo da vigência
deste sistema.
O apoio judiciário centrava-se em decisões do juiz da comarca. Perdia-
se tempo com averiguações e pedido de parecer ao Ministério Público. O
magistrado judicial acabava por desempenhar um papel que nada tem
que ver com a sua função, que é a de proferir decisões sobre litígios ou a
eventual prática de crimes.
O esquema de remunerações aos advogados era também complexo e
mais uma vez excessivamente dependente do critério do juiz, que
atribuía honorários dentro de certos limites, sem que realmente
dispusesse de elementos que lhe permitissem fazer um cálculo adequado.
Abria-se o flanco a críticas. Recordo-me de um advogado uma vez me
dizer que certo juiz conferia melhores remunerações a jovens e esbeltas
advogadas do que aos seus colegas do sexo masculino. A observação era
provavelmente injusta, mas demonstrava que os juízes se expunham
desnecessariamente em função de se verem forçados a tudo decidir em
matéria de apoio judiciário.
Em 2000, o sistema de apoio judiciário foi reformulado. Grande parte
dos pedidos de apoio judiciário passaram a ser tratados nos serviços da
Segurança Social, organismo com muito mais sensibilidade para aferir da
carência económica de um indivíduo.
Decorrido algum tempo sobre a criação do novo sistema, verificaram-
se algumas falhas, tendo assumido dimensões preocupantes os atrasos no
pagamento aos defensores.
Importava de novo repensar o esquema de apoio judiciário.
Em boa hora, foi decidido criar o Instituto de Acesso ao Direito, a
funcionar sob a égide da Ordem dos Advogados. A Segurança Social
continuará a apreciar se o cidadão se encontra em situação de carência
económica, mas todo o processo de apoio judiciário competirá a este
novo organismo, com vocação específica para o assunto.
Estou seguro de que quem, por necessidade económica, recorrer ao
novel Instituto de Acesso ao Direito será melhor servido.
CRIANÇAS E ARMAS DE FOGO

Nestas páginas já me referi a Michael Moore, o cineasta que ganhou


um Óscar para o melhor documentário pelo filme « Bowling for
Columbine », actualmente em exibição em Portugal.
A película começa com imagens de um episódio real: Moore vai a uma
agência bancária do North Country Bank, nos Estados Unidos, e abre
uma conta. Em vez de lhe oferecerem um telemóvel ou uma torradeira,
dão-lhe como prémio uma espingarda. A instituição anuncia nos jornais
esta promoção, com a qual procura atrair novos clientes.
Todo o filme se desenvolve em torno da facilidade com que um norte-
americano pode adquirir e legalmente possuir uma arma de fogo bem
como sobre o número recorde de homicídios ocorridos anualmente
naquele país.
Grande parte do documentário versa sobre a tragédia ocorrida na
escola secundária de Columbine. Em Abril de 1999, dois estudantes
abriram fogo sobre colegas, professores e funcionários, causando doze
mortes e dezenas de feridos.
Michel Moore junta-se a dois dos feridos, um dos quais ficou
paraplégico, movendo-se numa cadeira de rodas. O outro permanece com
sequelas definitivas, não suportando ficar de pé durante um longo
período. Ambos conservam os projécteis nos seus corpos.
As balas tinham sido compradas numa loja K-Mart, pertencente a uma
cadeia de retalho com mais de dois mil estabelecimentos, onde se
vendiam munições como quem comercializa pilhas para rádios.
Michel e os dois jovens deslocam-se à sede da K-Mart, pretendendo
simbolicamente devolver as balas com que foram atingidos. São
recebidos por uma funcionária, que vagamente promete estudar o
assunto.
Desanimados, os três dirigem-se à loja K-Mart mais próxima, onde
adquirem sem qualquer dificuldade todas as balas ali existentes para
venda. Acompanhados de um batalhão de repórteres e «cameramen»,
voltam á sede da organização para entregarem o que acabaram de
comprar.
Pouco tempo depois, Lori McTRavish, porta-voz da empresa, anuncia
publicamente que a companhia deixará de comercializar munições para
armas de defesa, no prazo de noventa dias.
São tocantes as cenas que relatam o triste episódio de uma mãe solteira
que é despejada de casa, por falta de pagamento de renda. Desesperada,
busca abrigo na casa de um irmão, onde se aloja com o filho se seis anos.
Enquanto se encontra sozinha, a criança apodera-se da pistola do tio e
mete-a na sua mochila. No dia seguinte, dispara sobre uma colega da
com a mesma idade, que vem a falecer.
O surpreendente é que a comunidade local dirige toda a sua raiva
contra o menino se seis anos, pretendendo que ele seja submetido a
julgamento como um adulto. Não lhes ocorre que o problema está na
facilidade com que as crianças podem aceder a armas.
Ao assistir a esta parte do documentário, recordei-me de um caso
dramático ocorrido há uns anos nos arredores de Lisboa. Um rapaz de
doze anos pegou na caçadeira do pai e resolveu pregar um susto à sua tia,
uma criança de onze anos de idade. Apontou-lhe a arma e,
inadvertidamente, accionou o gatilho. O resultado foi a morte da
rapariga.
«Bowling for Columbine» é um filme excepcional que reflecte sobre a
atitude dos norte-americanos quanto ao uso e porte de armas de fogo.
Quem se interesse por este tema não pode deixar de ver o
documentário, que para além do referido Óscar, foi galardoado com mais
de 21 prémios em todo o mundo.
VIZINHOS DESAVINDOS

O meu amigo Armando é advogado, mas também escritor. Para passar


momentos de lazer e dedicar-se à escrita, construiu uma magnífica casa
num local paradisíaco e aparentemente muito sossegado. O diabo foi
quando o dono do terreno vizinho resolveu instalar na sua propriedade
uma carreira de tiro aos pratos. Era uma barulheira infernal durante todo
o dia. Acabou-se a tranquilidade do Armando.
Conhecedor das leis, ele lembrou-se que lhe assistiam direitos de
personalidade, como seja o direito ao sossego. Pôs um processo em
tribunal contra o vizinho, pedindo a extinção do campo de tiro.
A acção judicial deu entrada, mas os seus trâmites não foram rápidos.
Certa vez, quando o Armando se encontrava no estrangeiro, uns
larápios penetraram no interior da sua residência e preparavam-se para
levar objectos de valor. A sorte foi que o dono da carreira de tiro deu por
tudo. Capturou os ladrões e entregou-os às autoridades.
O meu amigo ficou com uma dívida de gratidão para com o seu
vizinho e réu no processo judicial.
Claro que o Armando desistiu de prosseguir com a acção e pôs termo à
lide.
Acabou por vender a casa, deixando os praticantes de tiro em paz.
Nada me move contra os caçadores e os amantes de tiro desportivo.
Aliás, acabo de inscrever a minha filha mais velha, de seis anos, no
pentatlo moderno, que, como se sabe, inclui corrida, natação, hipismo,
esgrima e... tiro.
O que é fundamental é saber distinguir entre armas de defesa e aquelas
que se destinam à caça ou ao tiro desportivo. Estas nunca podem ser
encaradas como equipamento de defesa. No Canadá, existe uma forte
tradição de práticas venatórias, mas a taxa de homicídios é baixíssima.
Está inculcada a noção civilizada de que as armas de caça não servem
para defesa.
Enfatizo também a necessidade de alertar as crianças e adolescentes
para o perigo que pode representar uma arma de fogo.
Quem viu o programa “Hora Extra” de Conceição Lino, na SIC, sobre
o tema, apercebeu-se do fascínio que o armamento pode representar nos
mais jovens.
Foi exibida uma reportagem sobre um teste efectuado a adolescentes
nos Estados Unidos. Primeiro, foi-lhes ministrada uma acção de
formação numa esquadra policial, durante a qual se alertava para o que se
devia fazer caso se encontrasse uma arma de fogo. Basicamente,
importava convocar a autoridade policial.
Passadas umas semanas, cinquenta desses jovens são submetidos a
uma experiência. Um a um, são colocados isoladamente num armazém
de tintas, no âmbito de um programa de ocupação de tempos livres. O
que eles não sabiam é que estavam a ser filmados. O encarregado dá
instruções sobre a forma de arrumar os baldes e deixa o adolescente
sozinho. Ao transferir as latas, o jovem repara num saco de papel com
uma pistola lá dentro. Quase todos os rapazes tomam a mesma atitude:
fazem sua a arma e nada dizem ao encarregado quando ele regressa.
Quem se interesse sobre a relação perigosa entre armas de fogo e
crianças, não pode deixar de ver o filme brasileiro “Cidade de Deus”,
actualmente em exibição em Portugal. As cenas são passadas numa das
mais perigosas favelas do Rio de Janeiro e baseiam-se em factos reais. A
realização é de Fernando Meirelles e a película conta com a magistral
interpretação de dezenas de jovens actores.
ESCUTAS TELEFÓNICAS

Uma das minhas irmãs foi telefonista de uma companhia petrolífera,


durante algum tempo. Logo nos primeiros dias, aprendeu por si própria
que nunca deveria dizer “senhor” ou “senhora”.
Sucedeu-lhe algumas vezes pedir “aguarde um momento, minha
senhora” e obter como resposta: “sou um homem”. Noutras ocasiões
perguntava: “o senhor dizia-me o seu nome?”. Do outro lado da linha,
ouvia: “Maria da Conceição”.
Quer isto dizer que nem sempre um tom grave corresponde a uma voz
masculina. Também não é garantido que um timbre mais agudo
identifique uma senhora.
Como bem salientou um prestigiado criminologista, nas páginas do
Correio da Manhã, não deve causar estranheza alguém tratar por
“menina” outra pessoa que lhe fala ao telefone com voz grossa.
Ainda mais complicado é asseverar que uma voz gravada é realmente
de certa pessoa.
Aqui há alguns anos, actuava, nos arredores de Lisboa, uma poderosa
rede de tráfico de droga.
Foram realizadas escutas telefónicas que permitiram capturar uma
série de suspeitos.
O principal arguido era um homem abastado, que dizia ter enriquecido
graças ao seu negócio de artesanato. Para as autoridades policiais, aqulea
actividade não passava de uma fachada.
Foi-lhe logo apreendido um potente Mercedes, novinho em folha, que
ficou ao serviço de um Ministério.
As provas contra o indivíduo baseavam-se em gravações de conversas
telefónicas captadas através da intercepção de um telemóvel registado em
nome dele.
Eram quase diárias as encomendas de tapetes brancos e de tapetes
castanhos. A cifra era óbvia. Os primeiros respeitavam a transacções de
heroína e os outros a haxixe.
Em julgamento, a defesa do arguido assentou em algo de muito
simples. O telemóvel pertencia-lhe a ele realmente, mas a voz não era a
sua.
Foram pedidos exames a um estúdio de gravação lisboeta e a um
professor alemão de fonética. Os resultados foram inconclusivos. Não
era possível garantir que aquela fosse a voz do arguido.
O acusado foi absolvido e mandado em paz, depois de passar oito
meses em prisão preventiva.
Há pouco tempo, julguei o caso de uma empregada de um
estabelecimento comercial que era acusada de insultar, pelo telefone,
uma colega de outra loja. A expressão mais suave que dissera fora
“vaca”. Dispenso-me de reproduzir as restantes.
A vítima dizia que tinha atendido o telefonema com o sistema de alta
voz accionado. Para mais, o seu aparelho identificava no visor o número
chamador. Junto a ela, estavam a patroa e uma colega, que tudo ouviram,
tendo-se ainda apercebido que a chamada provinha da outra loja.
A arguida negou tudo, dizendo que nunca fizera tal ligação nem
dirigira à outra aqueles epítetos.
Mesmo dando crédito à patroa e à colega da ofendida, não pude
condenar a senhora. Nada me garantia que fora ela que fizera aquele
telefonema.
Em 1991, Cavaco Silva foi reeleito primeiro-ministro, com maioria
absoluta.
Logo na noite das eleições um bem humorado imitador, em
colaboração com um semanário, pôs-se a fazer telefonemas, convidando
ilustres personalidades para integrarem o executivo. Todos, sem
excepção, julgaram estar a conversar com o estadista.
Por tudo isto, na minha actividade profissional, tenho o máximo
cuidado em apreciar escutas telefónicas.
CONVERSAS ALHEIAS

O tema das escutas telefónicas tem sido muito debatido. Não há quem
falte a defender que este tipo de vigilância deveria ser proibido pura e
simplesmente.
Curiosamente, no tempo da ditadura salazarista, as escutas telefónicas
eram vedadas por lei. Em tribunal nenhum, podia a polícia exibir bobines
de gravações de conversas.
Mas, obviamente, a lei era violada, sem que disso se desse
conhecimento aos juízes. A polícia política, a PIDE, dispunha, no quarto
andar do edifício-sede da Rua António Maria Cardoso, de equipamentos
sofisticados para a época, ligados à estação dos Telefones de Lisboa e
Porto da Trindade.
Os primeiros aparelhos foram oferecidos pelos serviços secretos
franceses e os mais recentes pela CIA, com a contrapartida de a PIDE
efectuar escutas aos telefones da Embaixada de Cuba.
Eram milhares as pessoas que tinham o telefone sob escuta e o facto
não era desconhecido daqueles que se opunham ao regime. Muitas vezes,
as conversas começavam com avisos mútuos entre os interlocutores de
que havia que ter cuidado com o que se dizia. Mas pouco depois, através
de subentendidos e meias palavras, acabavam por falar em assuntos
confidenciais.
Não eram só matérias políticas que ficavam sob a alçada da PIDE.
O Inspector-Adjunto Óscar Cardoso conta um episódio curioso, num
interessante livro que escreveu em parceria com o jornalista Nuno Vasco
(ele próprio preso por aquela força policial).
Um oficial do exército que, segundo as suas próprias palavras, se
encontrava “no Ultramar a lutar pela pátria” deixara a esposa na
metrópole. À falta de cinto de castidade, queria confirmar a sua
fidelidade conjugal. As escutas realizadas pela PIDE deram razão à
desconfiança do militar, que mais tarde veio a comandar a Guarda
Nacional Republicana.
Após o 25 de Abril, o mais natural é que se tenham continuado a
realizar escutas de forma mais ou menos desordenada. A Comissão de
Inquérito às Escutas Telefónicas, então criada, reuniu todos os arquivos
respectivos no Forte de Caxias e, em 1975, declarou que “não se
considera possível que se tenham voltado a fazer, depois do 25 de Abril
de 1974, escutas telefónicas sistemáticas e generalizadas”. Mas tal não
parece muito crível.
Em Portugal, os telemóveis foram introduzidos pela TMN, que
operava na rede analógica. As autoridades não dispunham de
equipamento para realizar as respectivas escutas.
Pouco depois, popularizaram-se os aparelhos GSM e passaram a
funcionar três operadores.
Naturalmente, foram apenas adquiridos dispositivos de escuta para a
rede GSM.
Um pequeno grupo de clientes mantinha-se fiel ao velho telemóvel
analógico, apesar de o tarifário ser muito mais dispendioso. Eram
sobretudo os contrabandistas de tabaco de Setúbal, que, assim, falavam à
vontade sem receio de que as suas comunicações fossem interceptadas.
Em 2000, foi extinta a rede analógica.
Actualmente, as escutas telefónicas obedecem a um rigoroso sistema.
Apenas se podem realizar depois de autorizadas por um juiz e somente
no que toca a alguns crimes. As gravações são geralmente feitas em CD,
que deve ser de imediato levado ao magistrado. Este ordena a transcrição
ou a destruição do disco, consoante tenha sido colhido algo de interesse
ou não. Em princípio, não é possível interceptar as conversas entre o
arguido e o advogado.
COMO DEVE UM JUIZ VESTIR-SE

Um conceituado director de jornal elevou à importância de editorial


um comentário sobre o modo de vestir de certo juiz mediático.
Perguntava se era razoável que o magistrado aparecesse nas televisões
“em ténis, jeans e t-shirt, deixando cair uma ou outra palavra quando
devia estar calado? [...] Se nos tribunais se continuam a utilizar togas e a
respeitar um conjunto de formalidades destinadas a construir uma
imagem de severidade e respeito, não entenderá este juiz que deve
respeitar um mínimo de formalidade na forma como se veste?”.
Quem escreveu estas palavras foi José Manuel Fernandes, jornalista e
comentador de craveira e renome.
O assunto foi também tratado desenvolvidamente no Correio da
Manhã e debatido noutros órgãos de comunicação social.
Reconheço ser preferível que um juiz adopte no dia-a-dia uma
indumentária sóbria. Mas não se pode confundir um magistrado judicial
com um bancário, para quem a apresentação formal é obrigatória. Na sala
de audiências, deve-se ser absolutamente rigoroso e os intervenientes têm
de surgir paramentados, com as respectivas becas, togas e capas. Quanto
ao que se passa fora dela, encaro a forma de vestir como uma questão
lateral.
Por outro lado, não vejo que o juiz deva cultivar uma imagem de
severidade. Ou de benevolência. Deve deixar transparecer, sim, sentido
de justiça.
Já lá vão os tempos do Estado Novo salazarista, em que se defendiam
regras rígidas sobre o comportamento dos juízes.
O jurista Oliveira Guimarães redigiu, em 1937, um código de conduta
para os magistrados intitulado “Arte de Julgar”, no qual explicava como
deviam estes agir.
Dizia ele: “O magistrado não deve vestir-se nem tão mal que seja
notado pelo ridículo nem tão bem que seja notado pela afectação, e não
andará nem com passinhos leves de perdiz nem com a olímpica lentidão
de um coche”.
Também já passaram 22 anos desde que um juiz foi suspenso da sua
actividade pelo período de um ano, em virtude de frequentar bares de
homossexuais adultos, onde consumia bebidas alcoólicas em excesso.
Mesmo no interior da sala de audiências, a tendência moderna é para
reduzir o formalismo.
O ritual judiciário continua a ter alguma importância, embora
actualmente se dê mais valor à substância: fazer justiça.
Certos ritos ainda fazem sentido, por conferirem solenidade aos actos.
Muitas das regras nem sequer estão escritas, mas fazem parte dos
costumes. Quando o juiz entra na sala, todos se levantam. O arguido
permanece de pé enquanto é interrogado. Do mesmo modo, as
testemunhas prestam juramento de pé e só depois são autorizadas a
sentarem-se. O procurador e os advogados inquirem directamente as
testemunhas, mas invocam a “devida vénia”. Quando chega a hora de
apresentarem as suas alegações, podem fazê-lo sentados, mas muitos
usam da palavra após se levantarem e cumprimentarem o tribunal.
É sensato conservar estes hábitos, mas não se deve esquecer o
fundamental, que é proferir a decisão mais justa possível.
Antoine Garapon, juiz e filósofo francês, dissertou sobre a matéria no
seu magnífico livro “Bem Julgar”.
Diz o autor: “O século XX conheceu, primeiro no Estados Unidos, e
depois na Europa, uma vaga de desformalização da justiça. De facto, o
ritual era acusado de fazer depender uma decisão judicial de
considerações que lhe eram estranhas. O cerimonial não é favorável a
uma compreensão subtil do processo nem a uma exacta apreciação da
personalidade do sujeito que é preciso julgar”.
FÚRIA NA ESTRADA

Quem diria que um simples anúncio de televisão inspiraria um crime ?


Aqui há dois anos, passava um comercial de uma marca de pão de
forma. O condutor da carrinha de distribuição de pão segue
pachorrentamente na estrada, de modo alegre e bem disposto. Atrás dele,
um automobilista apressado, conduzindo um descapotável, apita
incessantemente e à primeira oportunidade, ultrapassa a camioneta.
Ao passar pelo condutor mais lento, grita-lhe: “Bimbo!”,
estabelecendo uma associação com a marca publicitada.
Prazenteiro, o distribuidor de pão replica: “Com muito gosto!”.
Pois na margem sul do Tejo, nos arredores de Lisboa, um condutor
ultrapassou um automóvel que seguia devagar e vociferou: “bimbo!”,
recordando-se do anúncio de televisão.
O ofendido levou a mal o epíteto. Mais adiante, ambos pararam junto a
um semáforo. Transtornado, o que seguia atrás saiu da viatura e disparou
um tiro de pistola sobre a cabeça do outro condutor, que o insultara.
Felizmente, este não veio a morrer, mas sofreu lesões irreversíveis.
Muitos de nós que levamos uma vida absolutamente normal,
transmutamo-nos quando estamos ao volante de um automóvel e somos
possuídos pela fúria da estrada, a que os anglo-saxónicos chamam “road
rage”. Quem estiver interessado em fazer um teste à capacidade de
resistir a este fenómeno, dispõe de um importante instrumento na
Internet, no site da American Automobile Association, em
www.aaafoundation.org.
Há uns meses, vinha eu a sair do almoço num restaurante, quando fui
abordado por dois jovens com muito bom aspecto. Educadamente,
perguntaram-me se sabia onde se situava o tribunal. Dei as indicações e
passados alguns minutos, estava a confrontar-me com eles na sala de
audiências. Os dois, que eram irmãos, encontravam-se sentados no banco
dos réus.
Aqueles dois moços de ar tão civilizado eram acusados de ter
espancado um automobilista, em virtude de um desentendimento de
tráfego.
Cheguei à conclusão que apenas um dos irmãos tinha realmente
agredido o condutor. Mesmo assim, apenas o condenei a uma leve multa
e determinei que a sentença não ficasse a constar do seu registo criminal,
para que não passasse a ser cadastrado. Não tenho grande complacência
para quem sofre de fúria da estrada, mas neste caso fui particularmente
compreensivo.
Em matéria de condução, nem tudo é crime, mas há contra-ordenações
que não merecem perdão.
Assim não deve entender concerteza Alcino Cruz, presidente da
Associação de Escolas de Condução e dono de vários estabelecimentos
de ensino do ramo. Foi apanhado a conduzir a 224 km/h.
Para ele, o seu automóvel dispõe de condições de segurança e a auto-
estrada em que seguia permitia-lhe circular àquela velocidade sem
perigo.
Diz ainda que, se fosse na Alemanha, não seria punido.
Por isso, recorreu hierarquicamente da sanção, sem sucesso. Agora
apresentou o caso ao tribunal, para que a questão aí seja apreciada.
Uma observação apenas: não é em toda a Alemanha que não há limites
de velocidade nas auto-estradas. Apenas nalgumas regiões deste país
vigora esse regime, sobretudo por forte pressão da indústria automóvel.
Ainda assim, nessas áreas, é rigorosamente fiscalizada a distância
mínima entre veículos. Os radares permitem detectar se os condutores
observam tal exigência, pelo que a condução a alta velocidade se torna
menos perigosa.
AS CADEIAS PORTUGUESAS

Em 1999, tive o prazer de colaborar com a Amnistia Internacional na


publicação do seu relatório anual em Portugal. O documento analisa a
situação dos direitos humanos em cada um dos países do mundo.
À data, eu leccionava, juntamente com a Profª Lara Duarte, a cadeira
de tradução jurídica no Instituto Superior de Línguas e Administração.
Aquela organização internacional solicitou-nos que procedessemos à
tradução do original em língua inglesa para português. Com a
participação dos alunos finalistas, metemos mãos à obra e rapidamente
terminámos a tarefa.
Verifiquei que, segundo os relatos daquela credível instituição, a
situação das prisões nos Estados Unidos da América, país tido por vezes
como campeão em matéria de direitos humanos, está longe de ser melhor
do que a portuguesa.
Acaba agora de ser editada a versão portuguesa do relatório de 2003.
O estado das coisas não é muito diferente.
Não se pode dizer que o sistema prisional português seja modelar. Por
isso, está em estudo a sua reforma, para o que se conta com a
participação do prestigiado Prof. Freitas do Amaral, que preside à
comissão respectiva. Mas têm-se feito apostas importantes na reinserção
social, acentuando mais esta vertente do que o carácter punitivo da
privação da liberdade.
Os principais problemas apontados pela Amnistia Internacional
respeitam à sobrelotação de algumas cadeias, ao deficiente acesso a
cuidados médicos, à propagação de doenças contagiosas e ao tráfico de
droga no interior das prisões.
Em contrapartida, as queixas sobre o sistema prisional dos Estados
Unidos da América são significativas.
Verifica-se que houve algumas melhorias nas hiperprisões, graças a
decisões de juízes que impuseram restrições, nomeadamente a proibição
de aplicar choques eléctricos aos detidos. Mas a Amnistia continua a
considerar que estes estabelecimentos oferecem um tratamento cruel e
desumano.
Também presos de cadeias mais pequenas têm condições muito
deficientes.
É mundialmente conhecida a prisão dirigida pelo xerife Joseph Arpaio,
em Phoenix, no Estado da Arizona.
O estabelecimento consiste num campo cercado onde se encontram
instaladas tendas do tipo militar, que servem para os prisioneiros
pernoitarem. Todos usam um uniforme às riscas pretas e brancas. Muitos
fazem a limpeza de ruas, enquanto estão acorrentados uns aos outros
pelos tornozelos.
Apenas são servidas duas pobres refeições por dia, gastando-se € 0,60
diariamente com a alimentação de cada recluso. O xerife Arpaio gaba-se
de despender mais dinheiro com a comida dos cães da cadeia.
Recentemente, a SIC Notícias emitiu uma reportagem sobre outra
prisão original, esta sita em Jacksonville, no Estado de Illinois.
Os reclusos passam lá quatro meses em condições duríssimas. Aqueles
que resistem são postos em liberdade ao fim desse tempo, não tendo de
cumprir a totalidade da pena. Assim, sanções de dois ou três anos de
prisão são comutadas em quatro meses, desde que atingidos todos os
objectivos. São os próprios detidos que se oferecem para participar no
programa.
São ensinados a obedecer cegamente às ordens dos guardas prisionais,
fardados de preto, a quem só podem responder: “Yes, Sir” ou “No, Sir”.
Estão sujeitos a constantes esforços físicos desnecessários. São
acordados às cinco da manhã. Dispõem de 30 segundos para fazer a
barba e tomam um duche frio enquanto os guardas contam até dez.
Muitos desistem ao final de uns dias ou semanas e são colocados numa
prisão normal, onde cumprem a totalidade da pena.
DINHEIRO DEITADO À RUA

Actualmente, é muito mais fácil carregar o saldo do telemóvel, numa


caixa multibanco.
Já não são necessários os números relativos à entidade e à referência.
Tudo o que há a fazer é escolher o operador e inscrever o número do
telefone.
A filha de um amigo meu pediu ao pai que lhe carregasse o saldo do
seu telemóvel. O problema é que passaram-se horas e não havia meio de
o saldo ficar actualizado.
Ele foi então confirmar o talão da caixa. Verificou que se tinha
enganado ao digitar um algarismo. Tinha feito um carregamento para
outro telemóvel, cujo dono, embora surpreendido, deve ter ficado todo
feliz.
O meu amigo ligou para a assistência ao cliente. Disseram-lhe que
nada havia a fazer. O lapso era imputável a ele e, portanto, era
impossível proceder a qualquer rectificação.
Ele contou-me o episódio acidentalmente e com ar resignado.
Eu expliquei-lhe que alguma coisa estava mal naquele procedimento.
Ao adoptarem este novo sistema de carregamento, os operadores já
deveriam ter previsto que a probabilidade de existir um erro aumenta
com a simplificação do procedimento.
Havia que dar formação adequada aos assistentes, ensinando-lhes o
que fazer nestas situações.
Admito que, no caso em apreço, tal não tenha sido realizado.
A assistente, que atendeu o meu amigo, terá decidido ela própria, por
auto recriação, que nada haveria a fazer nesse caso. Ao invés, deveria ter
tomado nota da reclamação e expô-la aos seus superiores.
Não quero acreditar que tenham existido algumas instruções, no
sentido de os assistentes informarem os clientes que, em caso de lapso,
não há solução.
É que, do ponto de vista legal, as coisas não se passam assim.
O que sucede é um erro na declaração de vontade por parte de quem
procede ao carregamento.
Para quem é beneficiado com o carregamento que não lhe era
destinado, existe um enriquecimento sem causa.
São tudo situações previstas no Código Civil, que consagra a justa
solução para o caso: a devolução do dinheiro a quem, por lapso, carregou
o telemóvel de outrem.
Espero que seja dada a devida atenção a casos futuros, salvaguardando
os direitos dos consumidores, que, felizmente, são cada vez melhor
defendidos.
Figuras como Beja Santos, Mário Frota, João Nabais ou Joaquim
Carrapiço têm dado um valioso contributo para que os clientes sejam
respeitados no que concerne às transacções em que diariamente estão
envolvidos. A Associação Portuguesa de Direito do Consumo, a DECO,
a Associação dos Consumidores de Portugal e o Instituto do Consumidor
são as principais entidades a quem podemos recorrer no caso de nos
sentirmos prejudicados.
Também a comunicação social tem desenvolvido um importante
trabalho, ao divulgar casos reais de empresas que não adoptam um
comportamento correcto, esclarecendo se o litígio foi ou não resolvido. É
o que faz, por exemplo, a revista “Mulher”, distribuída às sextas-feiras
com o Correio da Manhã, na rubrica “Os Seus Direitos”.
Do mesmo modo, na Internet existe um site utilíssimo, que se localiza
em www.queixas.co.pt. Aí são registadas as reclamações apresentadas
pelos consumidores e as eventuais respostas das empresas postas em
causa. Este instrumento é precioso para quem pretende apresentar uma
queixa, mas também para aqueles que querem avaliar a atitude dos
agentes económicos que actuam no mercado. Antes de fazer uma
compra, vale a pena fazer uma consulta e ver o que se diz a propósito da
firma com quem vamos negociar.
Muitos municípios contam com um relevante organismo na Câmara
Municipal, denominado Centro de Atendimento e Informação ao Público
(CAIP). Para resolução de pequenos litígios com entidades situadas na
nossa área de residência, este meio é ideal.
UM PAÍS SEM SUPREMO TRIBUNAL

Que me perdoem os leitores menos interessados em questões político-


constitucionais.
Todavia, gostaria de abordar o tema da separação de poderes.
Desde a revolução francesa de 1789, tem-se difundido, por todas as
democracias, a ideia de que deve haver uma divisão entre os poderes
legislativo, executivo e judicial.
Os deputados aprovam, no Parlamento, as leis. O Governo gere a
Administração Pública. Os juízes aplicam a lei.
Todos são independentes uns dos outros.
No que toca aos juízes, nem o Governo nem a Assembleia da
República podem interferir no exercício das suas funções. Em
contrapartida, aos magistrados judiciais está vedada a actividade político-
partidária, a não ser, claro, que peçam a suspensão do serviço.
O papel dos tribunais é controlado pelo Conselho Superior da
Magistratura, um órgão independente do Governo.
O recrutamento de juízes é realizado através de prestação de provas
públicas e aprovação num curso de formação. Os juízes não são
designados pelo Governo ou pela Assembleia da República. São
nomeados, com carácter permanente, pelo mencionado Conselho
Superior, o que dá garantias de independência. Não devem favores a
ninguém nem podem ser afastados do seu lugar por terem tomado
determinada decisão. São pouco susceptíveis de serem pressionados.
Está-se, portanto, muito distante da imagem paradigmática do Rei
Salomão, que fazia as leis, governava o país e ainda desempenhava o
papel de juiz.
O monarca ficou famoso pela sua decisão quanto ao bebé que era
disputado por duas alegadas mães. Salomão resolveu que a criança seria
cortada ao meio, ficando cada mulher com uma metade. Uma delas
aceitou. A outra disse preferir que poupassem a vida do bebé e que este
fosse dado por inteiro à sua adversária. Tornava-se claro quem era a
verdadeira progenitora e o Rei mandou entregar-lhe a criança.
Actualmente, semelhante mistura de papéis é dificilmente imaginável.
Contudo, numa das mais antigas democracias do mundo, as coisas
passam-se de forma algo duvidosa.
Por isso, Tony Blair, o primeiro-ministro inglês, quer implementar
uma reforma do sistema judicial do seu país.
No Reino Unido, não existe um Supremo Tribunal, para o qual os
cidadãos insatisfeitos possam recorrer. Os recursos são dirigidos para a
Câmara dos Lordes, que detém o poder legislativo, em conjunto com a
Câmara dos Comuns.
O objectivo é criar um Supremo Tribunal e abolir o cargo de “Lord
Chancellor”. Este é juiz, nomeia juízes, preside à Câmara dos Lordes e
participa no Conselho de Ministros.
É claro que há algumas resistências relativamente a fazer cessar esta
figura, que conta com 1400 anos de tradição.
Mas são muitos os Lordes de Lei que apoiam as propostas de Blair.
Eles pensam que não é compatível discutir propostas de lei e, ao mesmo
tempo, fazer julgamentos.
Mesmo outros aspectos considerados mais retrógrados do sistema
judicial estão agora a ser postos em causa.
Muitos defendem que juízes e advogados devem deixar de usar
cabeleira no decorrer dos julgamentos. A origem da utilização deste
adereço prende-se com a vontade de que os réus não reconhecessem os
magistrados quando estes andassem pela rua. A manutenção do seu uso
não parece fazer muito sentido, hoje em dia.
UM PRISIONEIRO VIP

Em Inglaterra, saiu da cadeia o multimilionário Lorde Jeffrey Archer.


Ele esteve à beira de ser primeiro-ministro do seu país, até que rebentou
um escândalo sexual. Já reabilitado, foi designado candidato do Partido
Conservador à Presidência da Câmara de Londres, mas veio a desistir
devido a acusações de prática de crimes.
Mesmo a propósito, foi lançada a versão portuguesa do seu diário da
prisão, intitulado FF8282, o número de prisioneiro que lhe coube em
sorte.
Jeffrey Archer foi condenado a quatro anos de prisão. No dia 19 de
Julho de 2003, completou dois anos de cárcere, o que lhe permite gozar
de liberdade condicional, já concedida, por ter cumprido metade da pena.
Como o dia 19 calhou a um sábado, só lhe foram abertas as portas da
cadeia na segunda-feira seguinte.
A lei criminal portuguesa, de tradição humanista, é mais generosa. Se
o dia da libertação coincide com o fim-de-semana, o preso sai na sexta-
feira. Caso recaia no dia 24 ou 25 de Dezembro, é libertado a 23, de
manhã.
Archer começou a sua carreira política muito cedo. Aos 29 anos, era
dos deputados mais jovens da Grã-Bretanha. Em 1974, demitiu-se devido
à falência de uma empresa canadiana, da qual era accionista. Enquanto
esteve no Canadá, para depor em tribunal, foi detido por suspeita de furto
numa loja, embora nunca tivesse sido acusado formalmente.
Dedicou-se, então, a escrever romances, que totalizaram mais de cem
milhões de vendas em todo o mundo. As suas obras, excepcionalmente,
interessantes, têm sido publicadas em Portugal. Destacam-se “Caim e
Abel”, “O Quarto Poder” e “Erro Judicial”, que deveria ser lido por todos
os juristas. Archer fez fortuna com a sua actividade literária.
Em 1985, voltou a entrar na política, pela porta grande. Nos tempos
áureos de Margareth Thatcher, foi nomeado Vice-Presidente do Partido
Conservador. Já se sabia que, no futuro, ele iria substituir a dama de ferro
no cargo de primeiro-ministro.
Um ano depois, o jornal “Daily Star” publicou uma extensa
reportagem, relatando um encontro deste político com uma prostituta, a
quem ele teria pago para que ela se mantivesse em silêncio quanto ao
relacionamento entre ambos.
Jeffrey Archer demitiu-se de todos os cargos.
Mas processou o diário. No julgamento, o seu amigo Ted Francis
forneceu um alibi perfeito. Os dois tinham estado juntos à hora apontada
pelo jornal como sendo a do encontro com a prostituta. Archer recebeu o
equivalente a 340000 euros de indemnização.
Em 1992, foi agraciado com o título de Lorde.
Decorridos sete anos, preparava-se para concorrer ao cargo de
Presidente da Câmara de Londres, quando se descobriu que afinal o tal
alibi era falso. Francis, que entretanto cortara relações com o seu antigo
amigo, tinha mentido em tribunal.
O Lorde Jeffrey Archer foi condenado a quatro anos de prisão, pela
prática de dois crimes de perjúrio e um de obstrução à justiça. Para além
de ser obrigado a devolver a indemnização ao jornal, claro.
Agora, vai sair em liberdade condicional, apesar da sua permanência
na cadeia ter sido marcada por alguns incidentes.
Certa vez, na cantina, foram servidas salsichas com batatas cozidas.
Jeffrey Archer levantou-se e disse em voz alta, para que todos ouvissem:
- É isto o jantar? Onde é que está o caixote do lixo?
E deitou mesmo a comida fora.
Noutra ocasião, foi-lhe permitida uma saída precária para visitar a
família. Mas o preso aproveitou para participar numa luxuosa festa na
casa de um deputado.
A própria publicação do seu diário foi controversa. Os serviços
prisionais consideraram que tal constituía violação das regras dos detidos
e cancelaram-lhe algumas regalias de alimentação.
UM GOLPE DE MESTRE

Parece que a vida não está fácil para quem negoceia em imóveis.
Construtores civis, mediadores e simples particulares que pretendem
vender a sua casinha vêm-se aflitos para arranjar comprador a um preço
razoável.
Quando surge um potencial interessado, não se pode desperdiçar a
oportunidade.
Há quem tire partido desta ânsia de vender mais um andar, para dar
uma golpada.
Um grupo de pessoas do norte do país anda a percorrer o país,
exercendo uma actividade muito lucrativa. O patriarca controla tudo.
Chegam a uma localidade e fazem uma pesquisa em busca de prédios
novos, com andares à venda.
Quando encontram um edifício com um bom número de apartamentos
ainda por transaccionar, um dos elementos do grupo dirige-se ao
construtor. Mas, curiosamente, esse testa-de-ferro não é da família dos
restantes.
Pede para ver o imóvel e diz ter um primo distante, que é emigrante.
Esse seu parente tem uns dinheiritos, pelo que estará interessado em
adquirir uma das fracções autónomas de imediato, oferecendo um bom
sinal de 50000 euros, ou sejam, dez mil contos. A condição é que a chave
seja imediatamente entregue, ainda antes da escritura, sendo certo que o
remanescente será pago a pronto no prazo de 180 dias.
É logo ali assinado o contrato-promessa. O interessado age como
procurador do seu familiar, entrega o sinal e recebe a chave.
No dia seguinte, o andar é invadido por uma família numerosa, de três
gerações. Dia e noite fazem uma barulheira infernal, gritando e ouvindo
música num volume altíssimo. As crianças são ensinadas a irem urinar à
varanda, em direcção à rua. Conspurcam os elevadores e espalham sacos
de lixo pelos patamares. A entrada do prédio fica num estado lastimável.
Mas quando se empenham mais é nos momentos em que o vendedor
vai mostrar os andares disponíveis a eventuais interessados. Dão ao
máximo nas vistas, fazem ruídos infernais e esforçam-se por demonstrar
que serão vizinhos complicadíssimos. Quem é que desejaria comprar um
andar naquele prédio, por mais baixo que fosse o preço?
O construtor, que anda a pagar juros ao banco e está absolutamente
necessitado de obter algum dinheiro, começa a aperceber-se que não vai
conseguir vender os seus andares.
A única solução é correr com aquela família dali.
Eles não se importam de sair, mas exigem o estrito cumprimento da
lei. Quem falha com o contrato-promessa, é obrigado a devolver o sinal
em dobro. O dono do prédio está disposto a tudo e entrega-lhes os vinte
mil contos.
Assim se embolsam dez mil contos. Resta partir para outra cidade,
onde o esquema ainda não seja conhecido e facturar mais algum.
Não é fácil deitar a mão a estes engenhosos artistas.
RIQUEZA SEM TRABALHO

Recentemente, alertei para um esquema que uma família inteira anda a


aplicar, para ganhar bom dinheiro, simulando interesse na compra de
apartamentos.
Não estão sozinhos.
Há um espertalhão, intermediário na venda de imóveis, que se
entretém a ler os classificados de vendas de propriedades. Só lhe
interessam quintas e herdades de valor elevado.
Marca um encontro com o dono e visita o local. Diz que um conhecido
seu deseja adquirir uma propriedade exactamente como aquela. O
homem é rico e vai pagar a pronto. O melhor é nem discutir o preço. Para
a semana que vem, fecha-se o negócio. Como é evidente, o intermediário
quer, para ele, uma comissão de 5% sobre o preço da venda.
A retribuição não é baixa, mas afinal se o preço nem é posto em causa,
o vendedor não hesita. Venha o comprador que faz-se logo a transacção.
Intermediário e dono da propriedade não se conhecem e o primeiro
pede a assinatura de um contrato, para garantir o pagamento da sua
comissão. É uma exigência razoável.
O vendedor está tão entusiasmado que nem verifica que, no
documento por ele assinado, fica clausulada a exclusividade durante um
período de seis meses. Ou se chega a aperceber-se desse pormenor, nem
se preocupa muito, tal é a vontade de realizar dinheiro.
Chega-se, pois, a um acordo. O vendedor pagará uma comissão de 5%
ao intermediário, caso concretize a venda seja a quem for, no prazo de
seis meses a contar da celebração do contrato. E, no fundo, a
exclusividade até faz algum sentido. Se não fosse assim, o intermediário
arriscava-se a que comprador e vendedor negociassem directamente,
colocando-o à margem.
De posse do contrato, o intermediário despede-se e nunca mais dá
notícias.
Passam-se os dias e o dono da propriedade conclui que o melhor é
esquecer o assunto e continuar em busca de quem queira ficar com o seu
imóvel.
Decorridos os seis meses, o espertalhão do intermediário volta à
mesma localidade, mas desta vez dirige-se à Conservatória do Registo
Predial. Quer tomar conhecimento se a quinta foi vendida. No caso de
realmente ter sido feito o negócio, fica a saber a data da escritura, o nome
do comprador e o preço declarado.
Vai, então, conversar com o antigo dono, exigindo os seus 5%. Alega
que tem a lei do seu lado e que, se for preciso, põe o caso em tribunal.
Está seguro que vai ganhar a lide e a outra parte ainda tem de arcar com
as custas do processo.
Desta forma, vai embolsando belos montantes, quase sem esforço,
enquanto se passeia pelo país.
Tal como relativamente ao esquema que relatei anteriormente, também
neste caso, é muito difícil ao ludibriado dar a volta à situação.
São as consequências das dificuldades que se fazem sentir na venda de
imóveis. Os proprietários encontram-se cada vez mais dispostos a tudo
para procederem a uma transacção e há imaginativos artistas que se
aproveitam desta situação.
TESTEMUNHA EM RISCO DE VIDA

O Professor Germano Marques da Silva é um jurisconsulto e advogado


de carácter genial. Foi por isso que li com toda a atenção a entrevista que
concedeu a um semanário.
O causídico pronunciou-se sobre as declarações para memória futura.
Embora tenha presente a fundo a legislação sobre a matéria, Marques da
Silva disse não conhecer um único caso concreto deste tipo de prova.
Por força da minha actividade profissional, tive já contacto com várias
situações do género.
Em princípio, toda a prova deve ser apresentada no decorrer do
julgamento, quer ele dure uma hora ou meses a fio. Mesmo as pessoas
que já foram ouvidas são de novo convocadas para deporem perante o
juiz, no julgamento.
Todavia, há casos excepcionais em que uma testemunha pode prestar
depoimento antes de se iniciar o julgamento. É inquirida por um juiz,
sendo tudo gravado. Quando se proceder ao julgamento, ouvem-se as
cassetes em plena sala de audiências e perante todos.
A isso se chamam declarações para memória futura.
Apenas são admissíveis em dois casos.
Em situações de extrema urgência. Por exemplo, a testemunha vai-se
ausentar de Portugal ou sofre de doença grave, sendo concebível que
venha a falecer em breve.
São também possíveis quando estejam em causa crimes de natureza
sexual.
Já tive oportunidade de intervir nas várias perspectivas.
Inquiri pessoas que foram indicadas como testemunhas, mas que não
poderiam participar no julgamento.
Por exemplo, um emigrante que vivia na Austrália estava de férias em
Portugal. Tinha assistido a um acidente de viação. Dentro de dias, iria
partir para o seu país de acolhimento, desconhecendo quando regressaria.
Ouvi-o para que não se perdesse a sua versão dos factos. De igual modo,
inquiri uma senhora de noventa e dois anos de idade, de saúde débil, num
caso de burla com troca de escudos por euros.
Também, ao realizar um julgamento, ouvi cassetes de depoimentos
prestados por testemunhas que tinham deixado de viver em Portugal.
Tenho, pois, alguma experiência destas situações.
Por isso, não posso deixar de concordar com o Prof. Marques da Silva,
quando afirma que se trata de um pré-julgamento, em que têm de ser
dadas todas as garantias de defesa. Como diz o Mestre, ӎ preciso que o
advogado esteja habilitado com o conhecimento total do processo, para
saber como é que vai interrogar, que perguntas é que há-de fazer”.
Ora em casos de urgência, admito que se possa ouvir uma testemunha,
mesmo que ainda não exista uma acusação formal apresentada pelo
Ministério Público contra os arguidos.
Mas nas situações de crimes sexuais, não há nenhuma premência. A
pressa é aqui inimiga da perfeição.
O bom senso, as garantias dos arguidos, a igualdade de armas entre
defesa e acusação assim como o princípio do contraditório impõem que,
nesses casos, as declarações para memória futura só sejam colhidas
depois de conhecido o teor da acusação.
Nessas situações, ouvir as testemunhas antes de ser apresentada a
acusação e de os advogados terem acesso ao processo é agir contra a
Constituição. Esta, nos artigos 20º e 32º, consagra amplos direitos ao
arguido e ao seu defensor.
É certo que a lei diz que as testemunhas podem ser ouvidas no decurso
do inquérito, ou seja, antes de deduzida acusação. Mas há que realizar
interpretação conforme à Constituição ou, pura e simplesmente,
considerar esta norma inconstitucional nessa medida. O juiz de instrução
pode intervir mesmo depois de encerrado o inquérito. No despacho em
que profere acusação, o Ministério Público deve requerer a realização de
declarações para memória futura, que serão agendadas no decurso do
prazo para requerer a abertura de instrução. Caso o requerimento seja
apresentado antes, o juiz deve relegar a sua decisão para momento
posterior, mandando abrir conclusão oportunamente.
ROUBAR NO SUPERMERCADO

Os supermercados protegem-se cada vez mais dos criminosos que


surripiam bens, enquanto fazem compras de pequeno valor.
Há câmaras de video, vigilantes profissionais e dispositivos
electrónicos colocados junto às saídas.
Mas no mundo da criminalidade, os ladrões dão sempre um passo à
frente, à medida que a segurança aumenta.
No nosso país, há quem se tenha lembrado de comprar uma daquelas
bolsas que os turistas colocam à cintura, normalmente designadas por
“boom bag” ou “belt wallet”. O ladrão forra o interior com folha de
alumínio, do género da utilizada para embrulhar sandes.
Dirige-se ao supermercado e toca de colocar na bolsa uma boa
quantidade de caixas de Gillette Mach 3. Como o receptáculo está
protegido pelo alumínio, o alarme não é accionado à saída.
O negócio é rentável porque há sempre quem compre o material
furtado, para depois o revender.
O mesmo se passa com perfumes, Game Boys, DVD ou whisky Jack
Daniels, que facilmente encontram receptividade por parte de
negociantes desonestos.
Portugal não é dos países mais atingidos por furtos em superfícies
comerciais. No ano passado, o valor dos bens subtraídos foi de 21 euros
por habitante, o que constituiu o montante mais baixo da Europa.
Noutras sociedades, em que a febre consumista é mais significativa, os
números são muito superiores.
Em Hong Kong, ficou conhecido o caso de uma freira italiana, que
retirou sabonetes de um grande armazém de retalho. Foi apanhada,
condenada a uma pena suspensa e expulsa do território onde vivia há
mais de dez anos.
Naquela região administrativa, criou-se, entre as camadas juvenis, a
convicção de que não é muito grave subtrair bens das lojas.
As autoridades decidiram colocar junto à entrada dos principais
espaços comerciais a figura de um polícia em cartão, de tamanho natural,
juntamente com um cartaz onde se esclarece que roubar em lojas
significa praticar um crime: “shop-lifting is a crime”. O objectivo era
dissuadir aqueles que já entravam nas lojas com intenções criminosas.
O curioso é que um brincalhão decidiu roubar o polícia de cartão junto
de uma loja e levá-lo para um bar irlandês. Foi um pagode.
Em Portugal, há comerciantes que responsabilizam os empregados
pelos furtos ocorridos nos seus estabelecimentos.
Uma amiga minha trabalhou numa loja de malas de um centro
comercial. Se desaparecia um artigo, lá se ia quase metade do ordenado
de um mês.
Este método faz com que os funcionários se empenhem em prevenir os
crimes.
Num estabelecimento dos arredores de Lisboa, um indivíduo pediu
para ver um determinado telemóvel. Mal se viu com a caixa na mão,
pegou nele e desatou a correr. A jovem empregada seguiu no seu
encalço, agarrou-o e, demonstrando coragem, não o largou até chegar a
polícia.
Estava-se no final da manhã e o ladrão foi conduzido pela autoridade
ao tribunal.
O Magistrado do Ministério Público decidiu marcar o interrogatório
para o período da tarde.
Já não o pôde realizar.
Depois de tanto esforço da rapariga em capturar o criminoso, este
aproveitou um momento de distracção do polícia e pôs-se ao fresco.
Aqui há tempos, uma empregada de caixa de uma conhecida cadeia de
supermercados foi despedida por não ter detectado um furto.
A gerente de outro estabelecimento da mesma organização deslocou-se
a um supermercado perto daquele de que era responsável.
Pôs alguns produtos junto à caixa e propositadamente ocultou outros,
que não pagou. Estava a fazer um teste à funcionária.
A rapariga da caixa reconheceu-a, cumprimentou-a, registou os bens
colocados no tapete e não reparou nos restantes.
Pouco tempo depois, a empregada estava a receber a nota de culpa,
que implicava o despedimento, por não ter sido diligente e não ter
observado que a cliente levava consigo produtos que não pagara.
Com alguma razão, a visada defendeu-se, dizendo que nunca iria
imaginar que uma gerente da mesma cadeia de supermercados cometeria
um furto.
FUMO COM FOGO

Tenho uma profunda admiração pelos soldados da paz, sejam eles


profissionais ou voluntários.
Uma vizinha minha, que é médica, integra o corpo de bombeiros
voluntários locais, prestando assistência na sua área do saber. O filho
mais velho seguiu-lhe as pisadas e já faz parte igualmente da corporação.
O exemplo tem sido objecto de reportagens na televisão e na imprensa.
Mas como em todas as actividades, também neste domínio, há ovelhas
ronhosas.
Já não falo do clássico bombeiro incendiário, psicopata que ateia fogos
aos quais depois acorre para os extinguir, juntamente com os seus
colegas. Há casos registados por todo o mundo, incluindo no nosso país.
Vou-me referir a algumas situações mais comezinhas.
Um mecânico da margem sul andava a recuperar um BMW 2002, de
1973. Comprara-o em mau estado e por baixo preço, mas já tinha gasto
uma boa maquia em peças, na pintura e na cromagem. Isto sem falar das
horas de trabalho despendidas.
Quando a obra estava quase finalizada, o homem adoeceu com
pneumonia. Ficou em casa durante algumas semanas.
Como a sua oficina não era muito grande, o automóvel para restaurar,
que ainda não tinha volante, ficou estacionado na via pública, à porta da
garagem.
Assim que recuperou da maleita, o técnico voltou ao local de trabalho.
Já não estava lá o seu querido BM.
Indagou junto dos vizinhos se sabiam alguma coisa relativa ao
desaparecimento. Quem é que se lembraria de roubar um carro sem
guiador?
Deram-lhe uma pista: alguém vira o veículo a ser rebocado.
Os piores pensamentos vieram à cabeça do mecânico. Será que se
tinham lembrado de vender a viatura para a sucata?
Algumas visitas a compradores de ferro velho confirmaram-lhe as
suspeitas. Lá descobriu o seu amado clássico no meio de uma pilha de
carros velhos. Estava completamente amolgado, pronto a ser comprimido
e vendido a uma siderurgia espanhola. Não havia recuperação possível.
Contactado o sucateiro, este garantiu que nenhum veículo sem
documentos era por ele adquirido sem que o vendedor fosse devidamente
identificado através de exibição do bilhete de identidade. Antes de pagar
o preço - que consistiu nuns míseros cinquenta euros -, o negociante
tomara nota dos dados do pretenso dono do carro.
O ladrão vivia nas imediações. Era bombeiro e tinha uma empresa de
reboques. Quando o negócio andava fraco, dedicava-se a passear com a
camioneta em busca de veículos velhos. Pegava neles, acoplava-os ao
reboque e vendia-os ao sucateiro mais próximo. Como tinha esperança
de nunca vir a ser apanhado, não hesitava em mostrar o seu próprio
bilhete de identidade.
Também um estranho caso conduziu à detenção de outro bombeiro.
Um infeliz morreu num acidente de viação, ao qual acorreram
prontamente os soldados da paz.
O filho do falecido foi inteirar-se do saldo das contas bancárias do pai.
Havia levantamentos feitos em caixas multibanco após a morte.
Tratava-se um bombeiro que tinha retirado o cartão do casaco do
cadáver e entretinha-se agora a obter alguns proventos.
Também há outros honestíssimos, como a grande maioria, mas que
têm com cada azar.
Numa cidade ribatejana, a PSP recebeu uma chamada de um indivíduo
aflito. Dizia que lhe tinham acabado de roubar o telemóvel da mesa do
café, onde fora tomar a bica.
Rapidamente, dois polícias compareceram junto do local.
Na rua, passava a correr um bombeiro, à civil, que fora chamado para
acudir a um incêndio. Dirigia-se ao quartel.
Os agentes não hesitaram. Seguiram no seu encalço, agarraram-no e
depois de o algemarem, procederam à competente revista. Encontraram
dois telemóveis na posse do suspeito. O homem estava completamente
inocente. Nada tinha que ver com o roubo do telemóvel. Só se
encontrava a correr porque pretendia chegar mais cedo possível ao
quartel.
Os polícias meteram-no dentro da sua viatura de serviço. Não foi fácil
ao desgraçado do bombeiro explicar-lhes o equívoco. Segundo o soldado
da paz, foi levado a passear para um local isolado, onde não terá sido
bem tratado.
MENTIR AO JUIZ

Um colega meu diz que o tribunal é o sítio onde mais se mente. A


primeira mentira que as testemunhas dizem é afirmar: “Juro por minha
honra dizer a verdade”.
Outro juiz, que percorreu inúmeras comarcas de norte a sul do país,
desenvolveu determinadas teorias sobre as zonas de Portugal onde as
pessoas mais mentem.
Sou um pouco céptico quanto a estas generalizações, mas a verdade é
que grande parte do trabalho de um juiz é tentar descobrir quem está a
falar verdade e quem mente.
Aquele que for testemunha e mentir perante um juiz sujeita-se a pena
de prisão até três anos ou multa até trezentos e sessenta dias.
Raramente, remeto esses casos ao Ministério Público.
Mas já o fiz algumas vezes.
Numa ocasião, um indivíduo, ainda jovem, era acusado de conduzir
um automóvel, ter avistado a brigada de trânsito e parado a viatura uns
metros antes, junto à berma. Trocou de lugar com a mulher, que ia a seu
lado, e quando passaram pela autoridade, foram mandados parar. Os
agentes nem quiseram saber da senhora, que ia ao volante. Submeteram o
homem ao teste de alcoolemia e este revelou um valor altíssimo.
Em tribunal, os três agentes relataram, pormenorizadamente e com
toda a coerência, que tinham visto o arguido a conduzir o veículo.
Entrou depois a mulher dele, que se oferecera para testemunhar e que
não tinha escutado o depoimento dos guardas.
Alertei a senhora, como era meu dever, que ela não era obrigada a ali
estar, já que era casada com o arguido. Mas também a adverti de que,
caso pretendesse depor, teria de jurar dizer a verdade. Ela aceitou ser
testemunha.
Contou que sempre fora ela a condutora do automóvel e que o marido
não pegara no volante. O que ela dizia não oferecia a menor
credibilidade.
Eu compreendia o interesse dela em defender o arguido. O homem era
motorista profissional e caso ficasse com a carta apreendida,
provavelmente perderia o emprego.
Não tive outro remédio.
Mandei a testemunha sentar-se nas cadeiras destinadas ao público e
ditei a sentença.
Condenei o acusado a uma pena de multa e à proibição de conduzir
pelo período de três meses. Ao mesmo tempo, remeti para o Ministério
Público o caso do depoimento da sua mulher, que me parecia
corresponder a uma mentira.
A senhora baixou a cabeça e chorou convulsivamente.
Não só o marido iria ficar desempregado como ela teria um processo
criminal às costas por falso testemunho.
Têm sido feitos numerosos estudos sobre os sinais reveladores de
quem mente.
É preciso prestar muita atenção a cada palavra empregue.
Em 1995, dois filhos de um casal da Carolina do Sul, nos Estados
Unidos, desapareceram. Naquele momento de desespero, o pai disse:
“São ambas umas crianças maravilhosas”. A mãe afirmou: “Eles eram a
minha vida”. O tempo verbal empregue, reportando-se ao passado,
demonstrava que ela sabia que os meninos tinham morrido. Na realidade,
a progenitora, Susan Smith, tinha-os afogado e escondido num lago.
Quando alguém diz a verdade, existe harmonia entre as palavras, o
movimento das mãos, a expressão facial e o tom de voz. Uma
discrepância entre estes factores manifesta normalmente uma mentira. Os
movimentos musculares da testa e do canto interior das sobrancelhas são
vitais, pois dificilmente são controláveis voluntariamente.
Note-se que o arguido não sofre qualquer sanção se mentir. Nem isso
faria sentido. Imagine-se que ele nega ter praticado o crime, mas acaba
por ser condenado. Seria ilógico estar depois a penalizá-lo de novo por
não ter dito a verdade.
CONVENCER O JUIZ

Quando o julgamento está prestes a chegar ao fim e já se ouviram


todas as testemunhas, o juiz dá a palavra para alegações. Primeiro,
pronuncia-se o Magistrado do Ministério Público, que elabora a
acusação. Depois, fala o advogado do arguido. Cada um dispõe de uma
hora, podendo o outro replicar durante vinte minutos.
É o momento crucial, em que cada um expõe ao juiz a sua posição
sobre o que se passou no decorrer da audiência e procura explicar qual
seria a solução que julga mais adequada.
Enquanto fui docente universitário e formador na Ordem dos
Advogados, sempre chamei a atenção dos meus alunos para a
necessidade de se exprimirem bem e exporem as suas ideias de forma
convincente e clara.
Recordava-lhes que, muitas vezes, discutimos pontos de vista com
outra pessoa, explicamo-nos o melhor que podemos, mas acabamos por
ficar com a sensação amarga de não ter vencido.
Uma ou duas horas mais tarde, é que nos lembramos de determinados
argumentos que poderíamos ter utilizado e que teriam derrotado a visão
do nosso interlocutor. A sensação é terrível.
É, por isso, importante, conhecer algumas técnicas de argumentação,
para que as possamos utilizar em qualquer circunstância.
Um primeiro método consiste em afirmar que a opinião do nosso
adversário é demasiado radical. Toda a gente a aprecia o bom-senso e
reconhece que no meio é que está a virtude. Se conseguirmos convencer
que a posição contrária à nossa se situa fora desses limites, ganharemos
uma batalha.
Deste modo, depois de o Ministério Público se pronunciar, o advogado
de defesa poderá dizer:
- O Digno Procurador defende que o arguido deve cumprir dois anos
de prisão efectiva. Parece-me que é uma posição demasiado extremista e
fundamentalista. Em meu entender, o tribunal não deve ser tão radical.
Poderá dar uma oportunidade ao arguido e suspender-lhe a pena. Se ele,
depois, voltar a prevaricar, cumprirá a sua pena.
Uma outra alternativa é usar os números. A estatística é tida como
ciência exacta e, contra factos, não há argumentos. De um modo geral,
tendemos a pensar que a maioria tem razão. Se formos munidos de
dados, avançamos muito. Imagine-se que o magistrado do Ministério
Público, que é, por assim dizer, o advogado de acusação, afirma:
- Segundo uma sondagem recente, 72% dos portugueses pensam que é
mais grave cometer um crime de dano do que um furto. É que quem
furta, guarda o bem para si ou vende-o. Agora quem se limita a estragar
um objecto de outra pessoa, fá-lo por pura maldade. Portanto, o arguido
deve ser severamente punido.
Demonstrar que a posição do nosso adversário é insólita e invulgar é
um método que resulta quase sempre. “É a primeira vez, em quinze anos
de carreira, que ouço alguém defender que há legítima defesa quando a
agressão já tinha terminado”: são palavras poderosas.
Há outro modo de convencer que a opinião contrária não tem valor.
Trata-se de dizer que a conclusão a que o nosso interlocutor chegou parte
de um princípio que não é verdadeiro. A primeira ideia está errada e,
portanto, todos os outros raciocínios que se lhe seguem são falsos. Tudo
cai pela base. Ou seja: partiu-se de um pressuposto errado e chegou-se a
uma conclusão incorrecta.
Um advogado de defesa poderá alegar (embora a questão seja
legalmente duvidosa):
- O Ministério Público sabe bem que só pratica o crime de furto quem
subtrai um bem alheio. Ora o Digno Procurador parte do princípio de que
o automóvel retirado pelo arguido é alheio em relação a ele. E depois
conclui que foi cometido um crime. Mas parte de um pressuposto errado.
A viatura foi comprada quando o arguido e a queixosa eram casados.
Portanto, é um bem comum, que pertence a ambos. Não é, por isso, um
bem alheio. O arguido deve, pois, ser absolvido.
UM HOTEL NO LIMOEIRO

O Largo do Limoeiro, em Lisboa tornou-se num centro de grandes. As


instalações onde se situa o Centro de Estudos Judiciários foram
escolhidas como palco da sensível inquirição de testemunhas num caso
de pedofilia.
O Centro é a Escola de Formação de Juízes, que ali funciona desde a
sua fundação, em 1979. Tem desempenhado o seu papel de forma
exemplar e é reconhecida a qualidade excepcional da instituição. Sem
esquecer o trabalho de uma equipa de enorme valor, tem de se
reconhecer que os directores que por ali têm passado deixaram, todos
eles, marcas de uma obra verdadeiramente excelente.
Tive o grato prazer de exercer as funções de membro do Conselho de
Gestão do Centro de Estudos Judiciários.
Sem desprimor para ninguém, é meu dever salientar o excelso
desempenho do então director: o Juiz-Desembargador Pereira Batista.
Dotado de qualidades profissionais e humanas ímpares, era um
magnífico contador de histórias, fazendo recurso à sua vasta experiência
profissional. Quem me dera ter um por cento da sua capacidade de relatar
os mais interessantes episódios…
Passada uma vintena de anos sobre a sua criação, o Centro de Estudos
Judiciários carece evidentemente de novas instalações.
A meu ver, o Paço do Limoeiro deve ser transformado num hotel de
charme.
A localização é ideal. Situa-se entre a Sé de Lisboa e o Castelo de São
Jorge.
Diariamente, milhares de turistas por lá passam a pé ou tomando o
eléctrico número 28, referenciado por todos os guias turísticos.
Desfrutam da vista do miradouro e muitos visitam a cadeia do Aljube,
onde eram encarcerados os opositores do regime salazarista. A maior
parte faz compras nas lojas de artesanato e de antiguidades espalhadas
pela zona. Aproveitam depois para tomar uma refeição num dos
múltiplos restaurantes, especialmente destinados aos visitantes.
A vista do Limoeiro é simplesmente deslumbrante, recaindo sobre o
sudeste da cidade e o rio Tejo.
A adaptação a uma unidade hoteleira, por acordo com o Ministério da
Justiça, é muito simples. Permitirá dotar a capital de um local de grande
qualidade.
O espaço tem uma rica história.
Serviu de residência real desde o tempo de D. Afonso III, que reinou
entre 1248 e 1279. Aí viveu Inês de Castro.
Posteriormente, no século XIV, funcionou ali a Casa da Moeda.
Em 6 de Dezembro de 1383, foi assassinado o Conde Andeiro nesse
local, então conhecido por São Martinho.
No reinado de D. João II, o Paço foi transformado em cadeia e ganhou
a denominação de Limoeiro, devido a uma árvore ali plantada. No piso
inferior, situavam-se as celas. O tribunal ficava no andar de cima.
Em 1755, com o terramoto que assolou Lisboa, todos os reclusos
colocaram-se em fuga.
A prisão foi reconstruída, mas as condições eram deploráveis. A
comida não era servida em pratos. Uma certa quantidade de sopa era
atirada, pelo carcereiro, para uma cavidade existente nas celas. Os
detidos serviam-se como podiam.
Estiveram lá presos o poeta Pedro Correia Garção, o pintor Domingos
Sequeira e o escritor Almeida Garrett. Bocage também por lá passou. A
experiência foi horrível. Ao deixar a cadeia, o poeta sadino proferiu uma
frase que ficou famosa: “Já Bocage não sou…”.
O edifício conserva as características do estabelecimento prisional, que
ali existiu até Julho de 1974. O cárcere onde esteve Bocage mantém-se
intacto, servindo de sala de estudo. A maior parte das janelas ainda estão
dotadas das grossas grades originais.
MAIS ESPERTO QUE OS OUTROS

Há tempos, escrevi que enquanto fui docente universitário e formador


da Ordem dos Advogados, tinha uma preocupação constante. Alertava os
meus alunos para a necessidade de se exprimirem de forma correcta,
clara e convincente. Devem fazê-lo no discurso verbal e na linguagem
escrita.
Mas há pessoas que exageram. Julgam que estão a corrigir um erro do
seu interlocutor, mas na realidade estão eles próprios a cometer um
engano.
Em 1996, o ilustre advogado e escritor Mário de Carvalho redigiu uma
interessantíssima crónica sobre o tema.
Dava vários exemplos.
- Dê-me um copo de água, se faz favor – pede o cliente, no café.
O empregado, com ar trocista, replica:
- Um copo de água? Quer um copo com água, não é?
E riem-se todos muito.
Por essa lógica, dever-se-ia dizer “caixa com fósforos”.
No quiosque, o freguês solicita:
- Queria o jornal.
A menina que o atende não perde a oportunidade:
- Queria, mas agora já não quer?
Desconhece a existência do “imparfait de politesse”.
Há aqueles que insistem em destacar o “i” de medicina, em vez de
dizerem “medecina”, tal como poderiam pronunciar “pejama”, “vezinho”
ou “pescina”.
A este fenómeno chamam os linguistas hipercorrecção ou
ultracorrecção. É a falsa sabedoria, de quem se julga mais conhecedor do
que os outros.
No mundo das leis, também há muitos que sofrem desse mal.
Em 1988, Freitas do Amaral publicou, no Jornal de Letras, um artigo
em que se manifestava contra um projecto de acordo ortográfico.
Ironicamente, perguntava: Porque é que o Estado não decide alugar a
Torre de Belém?
Um leitor – provavelmente novato no campo do Direito – ficou todo
indignado.
Então o Distinto Professor esquecera-se do artigo 1023 do Código
Civil, segundo o qual alugam-se automóveis, mas arrendam-se casas?
Não se podia dizer que se aluga um imóvel. O autor do texto deveria ter
falado em arrendar a Torre de Belém.
É claro que, em linguagem corrente e absolutamente correcta, deve-se
afirmar que se aluga um prédio. Só em contratos, requerimentos judiciais
ou estudos jurídicos, faz sentido escrever que uma casa é arrendada.
Por vezes, o divórcio começa no tribunal, por iniciativa de um dos
cônjuges, que opta pela via contenciosa. Mas no decorrer do processo, os
esposos decidem terminar o casamento por acordo.
Deve-se pedir a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo
consentimento. Mas há quem queira parecer erudito e solicite a
“convolação”. Confunde processo civil com processo criminal.
Um eminente Professor da Universidade de Coimbra, recentemente
falecido, pecava pelo defeito da hipercorrecção, não obstante as suas
excepcionais qualidades de jurista e pedagogo.
Num certo mês de Setembro, apresentou-se à prova oral um aluno que
tinha reprovado na época normal. Era a sua última oportunidade de
completar a cadeira naquele ano lectivo.
O Mestre começou por uma conversa aparentemente coloquial:
- Que tal de férias? Onde esteve?
- Em São Martinho do Porto – respondeu o discente.
- Tem lá casa?
- Não. Os meus pais costumam alugar um andar.
- Terminou o seu exame. Volte cá para o ano que vem – afirmou o
docente, determinando o “chumbo” do discípulo.
Tudo porque o estudante tinha dito que os pais alugavam a casa, em
vez de afirmar que a arrendavam.
Ainda hoje se contam muitas histórias do género, ocorridas com o
mesmo Professor.
UM VENDEDOR NATO

Nestas páginas já prestei homenagem a paladinos dos direitos dos


consumidores, como Mário Frota, Joaquim Carrapiço, João Nabais e
Beja Santos, entre muitos outros, que vão denunciando práticas menos
correctas e fomentando um comércio justo. A Associação Portuguesa de
Direito do Consumo, o Instituto do Consumidor e a DECO são alguns
dos importantes órgãos que actuam neste domínio.
Na altura, referi-me ao assunto a propósito de um operador de
telemóveis que recusou devolver uma quantia indevidamente paga por
um amigo meu.
Por vezes, as atitudes mais estranhas surgem por parte de quem menos
se espera. Ainda recentemente, fui vítima de uma situação
particularmente desagradável por parte de uma conhecida multinacional
norte-americana, que opera em Portugal.
Mas felizmente, as práticas comerciais são cada vez mais leais.
Há dias, passou-se comigo algo de muito significativo no Fórum
Almada.
Neste centro comercial, desloquei-me a uma grande superfície, que
dispõe de um sector separado de electrodomésticos, informática e
telecomunicações.
Tinha como objectivo adquirir uma impressora para computador. O
funcionário que me atendeu foi incansável na prestação de informações.
Revelou grande disponibilidade, conhecimentos e honestidade.
Decidi-me por um determinado modelo, que custava € 219,00. O
empregado foi ao armazém e voltou com a notícia de que apenas existia
o exemplar exposto, que aliás tinha sido colocado havia pouco na
prateleira. As alternativas eram três: levar a impressora que estava em
exposição, encomendar uma encaixotada, aguardando alguns dias ou
pura e simplesmente não fazer a aquisição. Nenhuma delas me agradava
muito.
Com alguma hesitação e considerando a urgência que tinha, acabei por
optar em levar a impressora que se encontrava em exposição. Fi-lo
porque tinha visto exactamente o mesmo modelo noutra loja do centro
comercial por € 309,00. Imagine-se a diferença!
O empregado disse-me para esperar um pouco enquanto embalava o
material.
Eu aproveitei aqueles minutos para me dirigir ao outro
estabelecimento, onde o equipamento estava à venda por um valor muito
superior.
Fui atendido por uma eficiente empregada, que disse ter uma
impressora igual encaixotada, dispondo-se imediatamente a reduzir o
preço, de modo a vendê-la pelo montante praticado na grande superfície.
Regressei a esta. Apresentando as minhas desculpas ao funcionário,
disse já não querer a impressora, explicando-lhe os motivos porque
voltava atrás.
O empregado não se mostrou minimamente melindrado e colocou-se
ao meu dispor para algo mais de que eu necessitasse. Ajudou-me na
aquisição de alguns consumíveis de baixo valor. Por fim, agradeceu a
minha presença no estabelecimento. Admirei a sua classe e
profissionalismo.
Fiquei com excelente impressão de dois estabelecimentos e, em
particular, de dois colaboradores.
Por um lado, apreciei a categoria do funcionário da grande superfície.
Por outro, confirmei a qualidade da outra loja, que se prontificou a
igualar os preços da concorrência.
São pessoas como estas que cativam os clientes e fazem-nos regressar
às casas onde trabalham.
APRENDER A SER JUIZ

Embora faça muito esforço para não cometer injustiças no meu


quotidiano, sei que vou praticar uma neste preciso momento.
Referirei o nome de alguns dos professores que mais me marcaram na
Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Vão-me
escapar várias personalidades, que foram fundamentais na minha
formação enquanto jurista. Mas não se podem resumir cinco anos de
estudos numa crónica de jornal. Perdoem-se, pois, algumas omissões.
Recordo a capacidade intelectual e pedagógica de Jorge Miranda,
Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Guedes, Menezes Cordeiro,
Bracinha Vieira, Lebre de Freitas, Romano Martinez, Fernanda Palma,
Curado Neves, Rui Pereira e Raúl Soares da Veiga.
Não estranhe o leitor a falta de alusão a Freitas do Amaral, André
Gonçalves Pereira, Garcia Pereira ou José António Barreiros, de quem
não fui discípulo.
Um Mestre que se impõe mencionar é Saldanha Sanches, que me
ensinou Finanças Públicas e Direito Financeiro. Foi um enorme
privilégio ter sido seu aluno.
Mais conhecido como fiscalista, é também um comentador de gabarito
sobre os temas jurídicos em geral.
Há pouco tempo, referiu-se àquilo a que chamou o “bunker judicial”.
Se bem entendi as suas palavras, defendeu que se deve abandonar o
isolamento judicial, o corte com o exterior assim como o divórcio entre a
carreira dos juízes e as demais actividades jurídicas.
De acordo com a Constituição, os tribunais aplicam a lei em nome do
povo. Tal leva até muitos juízes a iniciar as suas sentenças, com a frase:
“Em nome do Povo Português, decido”.
Afirmou Saldanha Sanches: “Pobres do povo e dos tribunais se o povo
deixa de se reconhecer nas suas decisões judiciais”.
Concordo, de uma forma geral, com o que ele preconiza.
Mas talvez não seja tão pessimista quanto ao sistema actual.
A escolha dos candidatos a juízes é realizada de modo muito aberto,
através de um júri integrado por profissionais de diversas áreas.
Faz-se até uma entrevista psicológica, de carácter eliminatório. Certa
vez, uma psicóloga, que efectuou várias entrevistas, disse algo de
curioso. Deve ser difícil ser juiz quando, por falta de maturidade, ainda
nem sequer se está habituado a decidir entre beber água ou vinho.
É verdade que grande parte da formação é levada a cabo por
magistrados. Mas são realizadas acções com profissionais dos mais
diferentes campos do saber. Médicos, psicólogos, polícias, sociólogos,
quadros superiores da administração pública, jornalistas, professores e
contabilistas trocam impressões com os futuros juízes.
Reconheço que há aperfeiçoamentos a levar a cabo, nomeadamente no
domínio da formação de formadores. Para se ensinar, tem que se saber
como se faz a transmissão de conhecimentos e a troca de experiências.
Não é suficiente a boa vontade.
Antes de ser designado docente da Ordem dos Advogados, frequentei
um curso de formação de formadores da área jurídica, leccionado por
dois professores treinados nos Estados Unidos da América. Nunca me
sentiria capaz de dar aulas a advogados estagiários se não tivesse
recebido prévia instrução.
Este é um campo que importa desenvolver.
Por outro lado, diz Saldanha Sanches que algo está mal quando os
juízes não conseguem elaborar decisões com suficiente força convincente
para poderem gozar de um mínimo de acatamento.
Desconheço se isso sucede muitas ou poucas vezes. Sei que é
impossível agradar a gregos e a troianos e que as sentenças são sempre
susceptíveis de crítica. Mas é dever do juiz explicar por escrito os
motivos pelos quais tomou determinada decisão. Tem sido posta a maior
atenção nesse aspecto.
MÚSICA PORTUGUESA

O que vou escrever vai contra a opinião de muitos músicos


portugueses. São personalidades por quem tenho grande admiração e me
proporcionam momentos agradáveis, ao escutar as suas composições.
No entanto, quero manifestar total antipatia pela ideia de ressuscitar a
lei que obriga as rádios a emitir uma determinada percentagem de música
nacional. Um prestigiadíssimo cantor nacional, de grande nível, até veio
dizer que “20% é pouco ambicioso”.
Em 1981, a Assembleia da República aprovou um diploma segundo o
qual as estações radiofónicas eram obrigadas a passar discos portugueses
durante metade do tempo de emissão musical.
As rádios pertenciam todas ao Estado, com excepção da Emissora
Católica. Viam-se, por isso, num especial dever de cumprir a lei.
Assim se deu o boom do rock português. As editoras discográficas
apostavam nas bandas nacionais. Não podiam limitar-se ao fado e à
música de intervenção política.
Ganharam grande divulgação nomes de qualidade elevada, como Rui
Veloso, UHF, Xutos e Pontapés, Heróis do Mar, Jáfumega,
Trabalhadores do Comércio, Roquivários, GNR, Salada de Frutas e Táxi.
Ainda hoje, o “Chico Fininho” é uma canção conhecidíssima, que dá
gosto ouvir.
Mas também apareceram, como meteoritos, trabalhos sem valor
algum. A campanha radiofónica estava garantida. Até foi fundada uma
empresa especializada em editar discos de qualidade menor. Era, afinal,
uma prestigiada casa discográfica que não pretendia associar o seu nome
a bandas sem categoria.
Com o passar dos anos, surgiram as rádios locais e outras estações
foram privatizadas. Iniciou-se a era da concorrência.
Era impossível cumprir a lei dos 50%. O diploma passou a ser
completamente ignorado.
Agora, na Assembleia da República, foi apresentada uma proposta de
lei, que é descrita como “mais realista”.
Pretende-se que as rádios passem 20% a 40% do seu tempo a emitir
música portuguesa. A quota exacta será fixada anualmente, em função
das vendas realizadas.
Somos seis mil milhões no mundo. A população portuguesa representa
0,016% da humanidade. Portugal é um dos mais de 150 países existentes.
A produção nacional é necessariamente pequena, em comparação com
o que se edita mundialmente. E querem-nos obrigar a ouvir entre 20% a
40% de música portuguesa?
Não vou ao ponto de afirmar que tal constitui uma forma de censura.
Contudo, recordo que deve haver poucos limites à liberdade de
expressão através das ondas hertzianas. Algumas restrições terão sempre
de existir, mas devem ser reduzidas ao mínimo.
Fundamentalmente, tem de haver uma ampla liberdade na escolha de
canais.
Quem prefira ouvir música clássica e sintonizar a Antena 2, deve fazê-
lo à vontade. Forçar a que as composições fossem executadas por
orquestras portuguesas seria bizarro.
Não se pode apoiar a música portuguesa por decreto, com ameaça de
pesadas multas. Deve-se, sim, conceder incentivos às rádios que mais
divulguem a produção nacional.
Senão, qualquer dia, ainda se lembram de estabelecer que 20% a 40%
dos livros expostos nas montras terão de ser de autores portugueses.
Imagine-se a dificuldade das casas especializadas em manuais técnicos
estrangeiros.
Ou então obriga-se a que, nos complexos de salas de cinema, 20% a
40% dos filmes em exibição sejam nacionais.
Os pintores portugueses não se esqueceriam de reivindicar a sua quota
nas galerias de arte.
Nunca diria que medidas destas “não lembram ao careca”,
parafraseando um Ilustre Professor de Direito. Mas afirmo claramente
que cheiram a proteccionisno e chauvinismo. O que não faz sentido
nenhum na época da aldeia global.
Caso essa lei fosse publicada, seria inconstitucional. Viola a liberdade
de expressão e a independência dos órgãos de comunicação social.
Atinge também a liberdade de criação cultural, que compreende a livre
divulgação das obras artísticas.
UMA CADEIA MUITO ESPECIAL

Aqui há uns tempos, o jornal inglês “The Guardian” publicou uma


interessante reportagem. Começava assim: “Eles mandam milhares de
pessoas para a cadeia anualmente, mas o que é que sabem sobre prisões?
A nossa repórter foi conversar com juízes”.
Um dos entrevistados disse humildemente e com humor:
- Confesso-me culpado. Nunca fui a uma penitenciária e já deveria tê-
lo feito.
Seria curioso saber o resultado de um trabalho idêntico realizado em
Portugal. Eu conheço vários colegas meus que nunca puseram os pés
num estabelecimento prisional.
É claro que uma visita de algumas horas nunca poderá fazer-nos
compreender completamente os sentimentos de quem se vê privado da
liberdade.
Não podemos penetrar na mente de um detido preventivamente e
imaginar o que ele pensa enquanto aguarda o julgamento, durante o qual
o juiz vai decidir se ele continua na cadeia e por quanto tempo. Também
é difícil calcular como é encarado o cumprimento da pena e a ansiedade
sobre o futuro após a libertação.
Nesse aspecto, torna-se mais proveitoso conversar com os directores,
os técnicos, os guardas e os reclusos, para termos uma vaga noção de
como é o dia-a-dia das mulheres e dos homens que mandamos para a
prisão.
A minha visita mais recente foi ao Estabelecimento Prisional de
Santarém.
É uma cadeia singular, em vários aspectos.
Foi nesse local que se realizaram as filmagens da série “Camilo na
Prisão” e onde várias equipas estrangeiras se deslocam frequentemente
para efectuarem produções semelhantes.
A sua construção data do século XIX e seguiu o esquema igualmente
adoptado pelo Estabelecimento Prisional de Lisboa, a velha Penitenciária
da Rua Marquês de Fronteira, onde se encontram alguns dos mais
mediáticos presos preventivos. Na semana passada, foi cenário de uma
libertação que mereceu grande destaque.
A arquitectura destas prisões baseia-se no modelo criado na
Pennsylvania, nos Estados Unidos.
O edifício toma o formato de uma estrela. Ao centro, ergue-se uma
torre, designada por “redondo”, que é coberta lateralmente de vidro. A
partir do redondo, surgem seis alas de celas. Cada ala tem um corredor
central e a extremidade mais próxima do centro está dotada de um portão
gradeado. De ambos os lados da ala, existem celas.
Este sistema permite que um guarda colocado no redondo tenha uma
visão total sobre cada uma das alas, bastando circular e colocar-se diante
do respectivo corredor.
Desde a porta de entrada, junto à rua, até à cela de um prisioneiro,
percorrem-se sete portas, todas elas bem trancadas. Daí nasceu a
expressão “fechado a sete chaves”.
A cadeia de Santarém, localmente conhecida como “Presídio”, foi
objecto de remodelação recente.
Destina-se em exclusivo a antigos elementos de forças policiais.
Em todo o mundo, colocam-se graves problemas para inserir polícias
que prevaricam e são detidos.
Os restantes presos têm uma atitude de rejeição semelhante à que se
verifica relativamente aos violadores. O raciocínio baseia-se no seguinte.
“Durante anos, este palerma andou a armar-se em esperto, a dizer que
combatia a criminalidade e a prender pessoas. Afinal de contas, ele é tão
criminoso como nós. Não passa de um fingido e hipócrita, que usava de
autoridade, mas também cometia delitos”.
Quando colocados em conjunto com outros presos, os ex-polícias são
discriminados e maltratados. Assim derivou a necessidade de isolá-los no
estabelecimento de Santarém.
A PROSTITUIÇÃO E A PUBLICIDADE

Leio semanalmente a revista norte-americana “Time”, desde a minha


adolescência.
Durante anos, dava-me até ao trabalho de recortar os artigos que
diziam respeito a Portugal. Para o bem ou para o mal, é importante que o
nosso país seja objecto de tratamento jornalístico naquela prestigiada
publicação.
Recordo-me de, nos anos oitenta, terem saído reportagens sobre os
salários em atraso e o trabalho infantil. Eram situações que não
orgulhavam ninguém. Mas essas referências não deixavam de ter valor.
Chamavam a atenção do mundo para problemas realmente existentes no
nosso país.
Ultimamente, a “Time” tem publicado anúncios de grande qualidade,
em duas páginas, promovendo a imagem de Portugal e do Euro 2004.
Agora, as autoridades nacionais decidiram cancelar o contrato de
publicidade. Já não haverá mais propaganda.
Esta atitude faz-me um pouco lembrar aquelas reacções quase pueris
de alguns executivos camarários. Deixam de publicar anúncios em
determinado jornal local, quando este insere uma notícia menos
simpática para a autarquia.
A quebra do contrato publicitário teve origem na notícia de capa de
uma edição recente. O artigo aborda, de modo profundo, o tema da
prostituição em Bragança. Ao que parece, este fenómeno atingiu
proporções significativas.
Se houver algo de falso na peça, que se procedam a desmentidos.
Agora se os relatos correspondem à verdade, o que há a fazer é procurar
soluções. Não há vantagem nenhuma em escamotear a questão.
Contudo, a postura oficial portuguesa foi a de amuar com a “Time”.
Acabou-se a publicidade ao Euro 2004.
O curioso é que, desde o dia em que foi colocada à venda a revista,
diminuiu drasticamente a frequência dos bares de alterne em Bragança.
Não sei se tal é ou não encarado como positivo pelo responsável da
decisão de terminar com os anúncios.
Entretanto, o Presidente do Grupo Time Fortune enviou uma carta a
Portugal, apresentando desculpas por não ter prevenido da publicação do
artigo. A publicidade foi reposta.
Salazar, com o poder de que os ditadores gozam, foi mais longe.
Em 22 de Julho de 1946, a “Time” colocou na capa a imagem do
estadista ao lado de uma maçã podre. Por baixo, figurava o título:
“Salazar, o deão dos ditadores”.
O correspondente da revista em Portugal, o italiano Sapotiri, relatava o
modo de vida normal do lisboeta comum: “A alguns quarteirões do
grandioso e limpo Rossio, os bairros pobres e sujos da velha cidade não
têm electricidade, água corrente ou esgotos”.
Quanto à organização política, afirmava-se que Salazar “exprimiu o
seu desprezo pelas tentativas democráticas e disse que um dos maiores
erros do século XIX era supor que a democracia inglesa se podia adaptar
a todos os povos europeus”.
Como resposta, o Presidente do Conselho passou a proibir a venda da
revista em todo o território nacional.
O Primeiro Secretário da Embaixada dos Estados Unidos escreveu
uma carta a Tavares de Almeida, Chefe do Secretariado da Propaganda
Nacional. Solicitava que a interdição fosse cancelada.
Simultaneamente, a empresa proprietária da “Time” fez uma jogada. A
revista “Life”, especializada em reportagens fotográficas, era também
editada pela mesma firma.
A “Life” inseriu uma fotoreportagem com bonitas imagens do nosso
país.
O assunto foi submetido a Salazar.
Em quatro páginas manuscritas, o ditador transmitiu a sua decisão ao
Chefe da Propaganda.
Salazar manteve a proibição de venda da “Time”, mas acrescentou:
“Quanto ao trabalho agora feito na Life relativamente a Portugal, deve
agradecer-se com as melhores palavras e elogiar-se a beleza das
fotografias”.
JUSTIÇA E COMUNICAÇÃO SOCIAL

A justiça tem sido alvo de tratamento mediático, com grande


intensidade.
Um juiz escreveu um interessante artigo publicado no “Expresso”, em
tom de fina ironia. Dizia ele: “todos os cidadãos foram estudar as leis nos
jornais […]. 99% conseguiram ser aprovados com distinção, preparando-
se para os julgamentos”.
A matéria da relação entre a justiça e a comunicação social é delicada.
Ultimamente, foram lançados livros de grande valor sobre o tema.
Arons de Carvalho, António Cardoso, João Figueiredo, Rodrigues da
Silva e José Silva Pinto são alguns dos autores que deram importantes
contributos para o debate do assunto.
Nessas obras, abordam-se vários exemplos concretos.
É o caso do semanário de grande tiragem que viola flagrantemente a
lei. Tal sucede quando alguém se sente atingido por uma notícia. Envia
para publicação um texto, ao abrigo do direito de resposta. Pois a réplica
é inserida na secção das Cartas ao Director. Não pode ser assim. A
resposta deve ser publicada exactamente em local idêntico ao da notícia
original.
Uma situação curiosa ocorreu há dez anos.
O director de um diário redigiu um editorial com palavras fortes sobre
um candidato autárquico: “nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas
do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente
mais grotesco e boçal”.
O candidato visado queixou-se nos meios judiciais. No tribunal de
primeira instância, perdeu. Mas houve recurso. O Tribunal da Relação de
Lisboa decidiu que as palavras do jornalista consistiam em insultos que
ultrapassavam os limites da liberdade de expressão.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi chamado a resolver o
litígio. Distintos juristas portugueses intervieram de um e outro lado.
O Tribunal Europeu considerou que a sentença da Relação era “uma
clara forma de intimidação dos jornalistas por via judicial”. E condenou
o Estado Português a indemnizar o director do jornal.
É importante que os temas processuais sejam objecto de discussão por
parte de todos os operadores judiciários. A palavra não deve pertencer
em exclusivo a advogados, representantes da respectiva Ordem,
professores de Direito e comentadores profissionais.
Durante algum tempo, pensava-se que os juízes não deveriam dar
entrevistas a órgãos de comunicação social.
Actualmente, esta ideia está um pouco ultrapassada.
De modo inteligente, em 1999, a Assembleia da República aprovou
uma lei que permite aos juízes pronunciarem-se sobre processos, para
assegurar o direito de acesso à informação. O essencial é que não se viole
o segredo de justiça.
Cabe a cada magistrado decidir se deve ou não falar sobre esta ou
aquela questão.
Por isso, não vejo inconveniente em que um juiz ou uma juíza preste
declarações a um canal de televisão, desde que não seja posto em causa o
segredo de justiça.
Neste domínio, importa ter presentes as palavras lapidares do Juiz
Rodrigues da Silva: “tanto o juiz como o jornalista são homens reais, de
carne e osso, com o seu carácter, a sua educação, a sua ideologia […].
Por isso, não se lhes pode exigir que não tenham pré-juízos decorrentes
do que são como homens. Exige-se-lhes, isso sim, que sejam capazes de
os ultrapassar”.
JULGAMENTOS À AMERICANA

Acabo de ler um interessantíssimo artigo publicado num jornal diário.


O texto termina deste modo: “Faço a descrição para quem quiser
comparar com o que se passa na maioria dos tribunais portugueses”.
A narração é de um julgamento de três alegados homicidas, nos
Estados Unidos da América. O relato está excepcionalmente bem feito.
Talvez eu esteja enganado. Mas aquele trecho final parece-me conter
um certo tom crítico.
Na primeira página, diz-se que o jornalista “compara os tribunais
portugueses com o luxo dos americanos”. Aqui o carácter depreciativo é
mais notório.
O autor da crónica é um dos mais qualificados profissionais da
comunicação social. Tenho profunda admiração por ele. Alia um rigor
jornalístico irrepreensível a uma enorme simpatia no diálogo com os
telespectadores. Ainda por cima, redige de forma muitíssimo atraente.
Trata-se de José Alberto Carvalho.
Contrariamente a ele, nunca tive o privilégio de assistir a um
julgamento nos Estados Unidos.
Nada sei, portanto, sobre os procedimentos respectivos e os meios de
que os operadores judiciários dispõem.
Apenas assisti, pela televisão, a partes do julgamento de O. J.
Simpson. Por outro lado, tenho lido relatos pormenorizados de
audiências.
Um dos mais interessantes encontra-se num livro recentemente
editado, intitulado “A Trial by Jury”.
Foi redigido por Graham Burnett, um historiador, que, por sorteio, foi
designado membro do júri de um caso de homicídio.
Todos os pormenores são descritos com o rigor próprio de uma pessoa
com aquela formação académica.
O réu era um jovem de 18 anos chamado Milcray. Através do
telemóvel, recorreu a um serviço de convívios (dating) e marcou um
encontro com uma rapariga loira, no apartamento dela, ao final do dia.
Afinal, tratava-se de um homem, que usava uma cabeleira feminina.
Randolph Cuffee, o indivíduo que se fizera passar por elemento do
sexo oposto, foi encontrado morto na sua residência. Estava totalmente
esfaqueado.
Rapidamente, a polícia chegou a Milcray, que entretanto recebera
tratamento hospitalar. Tal indiciava a sua participação numa luta.
Mediante análises, foi-lhe detectada presença de sangue da vítima.
O réu foi absolvido. O júri entendeu que ele agiu em legítima defesa,
tentando libertar-se de um homem que o pretendia forçar a manter um
relacionamento sexual.
Na crónica de José Alberto Carvalho e no livro de Burnett há dois
elementos comuns.
Ambos se referem às excelentes condições logísticas do tribunal.
Um televisor de plasma permite visionar imagens importantes para a
decisão.
Os advogados de defesa e de acusação têm à sua frente computadores,
onde vai surgindo a transcrição do depoimento das testemunhas.
Mas há um aspecto que merece reflexão.
Nos dois casos referidos, o juiz e os membros do júri assistiram,
através do tal televisor, aos interrogatórios feitos aos arguidos, na
esquadra da polícia. Em ambas as situações, houve confissão.
Uma situação deste tipo seria impensável em Portugal.
Quando vou realizar um julgamento, limito-me a ler a acusação
apresentada pelo Ministério Público. Consulto também os relatórios
médicos e periciais que a acusação pretende que sejam analisados.
Mas não me passa pela cabeça tomar conhecimento das declarações
prestadas pelo arguido aos agentes policiais.
No início do julgamento, informo o arguido que tem o direito de se
manter em silêncio, sem que isso o possa prejudicar. Caso tal advertência
não seja realizada, o julgamento é anulado e será repetido.
Se o acusado optar por não se pronunciar, o interrogatório policial não
pode ser considerado.
A sua leitura apenas é permitida em casos excepcionalíssimos e
sempre com prévia autorização do arguido e do seu advogado.
ESTRANHOS ENGANOS

Alguns leitores recordar-se-ão do episódio que relatei sobre o


bombeiro ribatejano, que ia a correr a caminho do quartel. Confundiram-
no com um ladrão de telemóveis e foi preso por dois polícias.
Aqui há uns anos atrás, uns agentes da Polícia de Segurança Pública
decidiram cumprir de forma muito zelosa um mandado de busca a um
apartamento de um bairro popular de Lisboa.
O melhor era ir pela fresquinha, pois seria mais provável que os
moradores lá se encontrassem. Por volta das sete da manhã, telefonaram
para a residência. Mal o telefone foi atendido, desligaram e deixaram a
dona da casa intrigada com o que se passara. Mas, assim, os residentes já
ficavam acordados e facilitava-se o trabalho.
Dirigiram-se para o pequeno prédio, que tinha apenas duas fracções: o
rés-do-chão e o primeiro andar.
Por alguma estranha razão, não leram com atenção o mandado, onde
se mencionava que a busca deveria ser realizada no primeiro andar.
Convenceram-se de que era para ser efectuada no rés-do-chão.
Uma mulher-polícia accionou a campainha do rés-do-chão e gritou:
“Telegrama!”. Sempre dava um ar mais inocente à coisa e a missão
tornava-se menos difícil.
A dona da casa abriu a porta. Estenderam-lhe uma cópia do mandado.
Nas respectivas camas, ainda se encontravam o marido e o filho do
casal, com dezasseis de anos de idade. Levantaram-se, enquanto os
agentes policiais percorriam os compartimentos da residência.
Os membros da família foram colocados a um canto de uma divisão. A
senhora pôs-se a ler o mandado e verificou que a rua e o número de
polícia coincidiam com os da sua morada, mas apercebeu-se de que se
mencionava o primeiro andar e não o rés-do-chão. Chamou a atenção dos
polícias, mas estes não fizeram caso.
Por mais que pesquisassem, os agentes pareciam não encontrar nada
de interesse.
Agarraram, porém, numa pequena caixa e seguiram para a esquadra,
juntamente com os três membros da família.
Após umas horas, um graduado aproximou-se dos visados e pediu-lhes
as maiores desculpas pelo engano. Devolveu-lhes a caixa e acompanhou-
os à porta da esquadra.
Entretanto, marido e mulher tinham perdido um dia de trabalho, não
sabendo como justificar a falta. O filho não tinha ido à escola.
Resolveram contactar um advogado, que processou o Estado, pedindo
uma indemnização. O causídico baseou-se numa antiga lei, de 1967,
ainda hoje em vigor. Ganhou a acção e os lesados foram devidamente
compensados.
Pior foi o caso de José Diaz, um advogado espanhol, que foi detido no
seu escritório, por suspeita de assaltar bancos à mão armada.
Consultada a sua agenda, o alegado ladrão tentou comprovar que se
encontrava em locais distantes das instituições bancárias, à hora dos
crimes. Mas os empregados dos bancos não hesitavam e reconheciam-no
como o autor dos assaltos.
Esteve cinco dias preso e convenceu-se de que só poderia tratar-se de
um sósia, que ainda por cima usava óculos semelhantes aos seus.
Sabendo que os roubos ocorriam sempre de manhã, o advogado
arranjou um esquema para provar a sua inocência.
Diariamente, à hora de abertura, ia a um cartório notarial e pedia um
certificado comprovativo de que lá tinha estado presente. Acumulou 118
atestados.
Mas não é que a polícia desconfiou do notário? Não seria ele um
cúmplice?
O advogado só teve descanso quando o verdadeiro criminoso foi
capturado em flagrante.
O meliante conhecia de vista o profissional do foro. Propositadamente,
copiava a sua forma de vestir e alguns gestos peculiares.
Na próxima semana, tenciono referir-me a dois casos semelhantes a
estes, mas com consequências bem mais dramáticas.
PRESO POR ENGANO

Referi-me já ao caso de uma família lisboeta, que viu o lar invadido às


sete da manhã, por uma brigada policial, que ia fazer uma busca à
procura de estupefacientes. Enganaram-se foi no andar do prédio e
colocaram de pantanas a residência de uns inocentes, que, entretanto,
foram conduzidos à esquadra. À hora do almoço, o equívoco estava
desfeito e o problema resolveu-se com uma indemnização.
Em Outubro de 2000, no Tennessee, nos Estados Unidos, ocorreu uma
situação semelhante, mas de consequências mais graves.
Um juiz ordenara uma busca a uma casa na Joseph Street, a ser levada
a cabo pela Unidade de Narcóticos. O número da porta era o 1120.
Por qualquer estranha razão, os agentes foram dar com o nº 70.
Bateram à porta. A dona da casa, Lorine Adams, não a abriu porque os
dois homens que ela avistava pelo óculo não se identificavam. Não
perdeu pela demora. A porta foi arrombada e a senhora foi
imediatamente algemada.
O marido, John Adams, sofrera uma trombose algum tempo antes.
Estava sentado no sofá a ver televisão. Sete polícias irromperam pela
casa dentro e dois deles dispararam várias vezes contra o homem. Este
chegou já sem vida ao hospital.
Morreu um inocente. Só por causa de uma confusão com números de
portas bem diferentes entre si.
Preocupante foi também o que se passou com Kerry Sanders, um
jovem de 27 anos, que sofria de esquizofrenia.
Em Outubro de 1993, foi encontrado a dormir num banco de jardim,
no Estado da Califórnia. A polícia conduziu-o para a esquadra, a fim de
ser identificado.
Por azar, Kerry nascera exactamente na mesma data que o nova-
iorquino Robert Sanders. Este Robert era um fugitivo, condenado a
prisão perpétua por tentativa de homicídio.
Foi rápida a conclusão dos agentes. O cartão da segurança social era
falsificado e ele estava a mentir quanto ao nome próprio.
Estenderam-lhe um papel para ser assinado. Aí, o detido declarava
que, na realidade, se chamava Robert Sanders.
Este homem, completamente inocente, passou dois anos na cadeia, até
que o verdadeiro criminoso foi capturado, por mero acaso, em Cleveland.
Durante todo este tempo, o defensor oficioso não se lembrou de pedir
uma comparação de impressões digitais ou de ADN. Nem sequer foram
confrontadas fotografias.
Também a ninguém ocorreu outro pormenor. Em Julho de 1993, o
verdadeiro Robert Sanders estava preso em Nova Iorque, em
cumprimento de pena. Nessa altura, Kerry fora detido por vaguear nas
ruas de Los Angeles. Logo, existiam realmente dois Sanders: um
chamado Robert e o outro Kerry.
Estes dois episódios, bem conhecidos de quem se movimenta nos
meios judiciais, são recordados por Michael Moore no seu magnífico
livro “Brancos Estúpidos”. Mais popularizado como cineasta, ele é
também um excelente escritor, a quem já me referi nestas páginas. Neste
livro, relata, de forma viva, impressionantes acontecimentos ocorridos
nos Estados Unidos da América. O tom é acentuadamente crítico. Trata-
se de uma obra de leitura altamente recomendável.
A FORMAÇÃO DOS JUÍZES

Quando sugeri que o Paço do Limoeiro fosse transformado em hotel


de charme, disse ser evidente que o Centro de Estudos Judiciários carece
de novas instalações, agora que decorreram mais de duas décadas desde a
sua fundação.
Foram várias as pessoas que me questionaram sobre os motivos de tal
necessidade. Perguntam-me porque causa deveria a Escola de Formação
de Juízes mudar de sítio.
Vou apenas apontar três razões, embora na minha mente consiga
elencar mais algumas.
Todos temos de fazer um esforço para evitar que se torne realidade a
previsão de que no ano de 2015, 45% da população portuguesa vai
residir em Lisboa. Urge fomentar a descentralização.
Não há nenhum fundamento para que a escola de formação de juízes
se situe na capital. Em França, por exemplo, localiza-se em Bordéus.
Anualmente, em média, são menos de 20% os candidatos a
magistrados oriundos de Lisboa. Curiosamente, por razões que
desconheço - mas que seria interessante estudar - a maior parte vem do
norte do país.
Haveria, pois, vantagem em situar o Centro de Estudos Judiciários fora
de Lisboa.
Há uma segunda razão. O Limoeiro é um excelente local para um
hotel. Mas não é o ideal para mais de uma centena de auditores de justiça
(assim se chamam os futuros juízes). A bolsa que auferem mensalmente
não é de valor muito elevado. Mas eles vêm-se forçados a alugar um
quarto ou a partilhar uma casa com outros colegas numa zona onde as
rendas são elevadíssimas e a qualidade de muitas das habitações deixa a
desejar. Grande parte do vencimento vai directamente para as mãos do
senhorio. Os restaurantes das imediações, essencialmente vocacionados
para turistas, também não praticam os preços mais baixos.
Vou indicar um último motivo.
Foram realizadas obras no edifício. Mas mesmo assim, as instalações
não oferecem as melhores condições para a formação, nos termos que
hoje são normalmente exigidos.
A biblioteca, que está dotada de existências significativas, teria a
ganhar com uma área especificamente concebida para o efeito. A sala de
estudo (a tal cela onde esteve encarcerado Bocage) é claramente exígua.
O departamento de informática, no qual o Centro tem apostado
fortemente, está dividido por dois pisos.
O auditório, apesar de instalado numa sala muito bonita, não garante
boa visibilidade e acústica.
Do mesmo modo, o bar situa-se numa área com alma e estética. Mas
carece de funcionalidade, impossibilitando a instalação de um verdadeiro
refeitório.
As salas de formação resultaram de adaptações, que não garantem
isolamento acústico. A maior parte dos formadores vêm-se forçados a
partilhar gabinetes com colegas, dada a falta de espaço.
Não existe ligação directa entre a biblioteca e a reprografia, que, aliás,
funciona de modo exemplar. Forçosamente, tem de se passar pelo
exterior. Em dias de chuva, torna-se complicado transportar fotocópias e
sombrinhas simultaneamente.
O novo Centro de Estudos Judiciários deve ser concebido à imagem do
Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais.
Deve localizar-se numa quinta longe da capital, sendo as instalações
construídas de raiz para o efeito.
As salas de formação e os auditórios poderão ser dotados dos mais
modernos equipamentos. Os formadores disporão de melhores condições
de trabalho.
Poder-se-á criar uma área para alojamento dos auditores de justiça e
dotar-se o Centro de um refeitório de qualidade.
Será também possível construir áreas de lazer e de prática de desporto.
A PENA DE MORTE

Um juiz colega meu manifestou, certa vez, uma opinião sobre a qual
vale a pena reflectir.
Dizia ele:
- As garantias conferidas ao arguido são importantíssimas. Por vezes,
valem tanto ou mais do que as próprias leis que estabelecem as sanções a
aplicar nos diversos tipos de crimes. A nós choca-nos muito mais a
execução de um condenado na China, após um julgamento sumário, do
que a pena de morte nos Estados Unidos da América. Aí, o arguido tem
todas as hipóteses de se defender e interpor os mais diversos recursos.
Estava-se numa conferência pública.
Uma professora de Direito Criminal disse logo discordar. Afirmou que
a aplicação da pena de morte era tão chocante na China como na
América.
Eu tendo a concordar com esta segunda posição. Sou opositor e ponto
final.
Mas reconheço que pouco sei sobre o que se passa nestes dois países,
em matéria penal.
Já li algumas obras sobre Direito Penal Chinês. Uma delas foi redigida
pelo Procurador Júlio Pereira. É o maior especialista português na
matéria. Fala e escreve fluentemente chinês. Nesse livro, desmistifica
alguns temas. Segundo ele, é falso que a família do condenado à morte
seja obrigada a pagar a bala com que o mesmo é executado.
Conheço casos ocorridos recentemente, nos Estados Unidos, que
deixam muitas dúvidas, como por exemplo o de Tommy Zeigler. Um dia
falarei desse assunto.
Todavia, admito que, na América, muito se terá evoluído em matéria
de garantias processuais dos acusados.
Longe vão os tempos do juiz Roy Bean. Este famoso profissional
forense nasceu em 1827 e veio a falecer em 1903, quando ainda exercia a
magistratura.
Ele começou por ser contrabandista.
Mas, em 1882, descobriu um negócio melhor. Mudou-se para o Texas,
numa área ocupada por operários que construíam a linha férrea.
Montou uma casa de madeira e baptizou a povoação com o nome de
Langtry. É que ele tinha uma paixão pela cantora Lilly Langtry. O
sentimento não era correspondido.
Nas suas instalações, o homem abriu um saloon. A venda de cigarros e
bebidas alcoólicas era próspera.
Sucede que Roy Bean possuía um livro: “Os Estatutos Revistos do
Texas”. Era a compilação das leis ali vigentes. Portanto, proclamou-se
juiz da “Lei a Oeste de Pecos”, uma ribeira situada ali perto. A posse
formal chegou a realizar-se com a sua eleição como juiz de paz.
Num raio de mais de quatrocentos quilómetros, exercia a sua
jurisdição.
Condenou milhares de pessoas à forca, a maior parte das quais ladrões
de gado e de cavalos.
Os julgamentos realizavam-se no próprio saloon de Roy Bean.
Centenas de pessoas assistiam ao julgamento. Para estabelecer a ordem,
o magistrado não usava um martelo, mas sim o colt do seu revólver. A
sentença dependia, em grande medida, do consumo efectuado pelos
amigos do arguido.
Para crimes menos graves, o juiz aplicava multas. A maior parte da
quantia revertia para os seus próprios bolsos.
Há um conhecido episódio tragicómico. O desgraçado de um operário
morreu, ao cair de uma altura de noventa metros. Roy Bean foi investigar
o caso. Revistou a roupa do cadáver. Encontrou um revólver e quarenta
dólares. Decidiu então julgar o morto. Considerou-o culpado de trazer
uma arma dissimulada e condenou-o ao pagamento de uma multa de
quarenta dólares.
Este magistrado tornou-se numa figura lendária do Far West. Por três
vezes, foi levado ao cinema. No domínio da ficção, Lucky Luke, o
cowboy solitário da banda desenhada, encontrou-se com Roy Bean, na
história “Le Juge”.
OS FUTUROS JUÍZES

Ultimamente, têm sido muito comentado o Centro de Estudos


Judiciários (CEJ). Trata-se do local onde os licenciados em Direito
adquirem formação para virem a ser juízes. É a escola que se situa na
antiga prisão do Limoeiro, em Lisboa.
O Professor Saldanha Sanches, emérito jurista, estudioso e
investigador de qualidades excepcionais, é profundamente crítico da
actividade do CEJ.
Agora, Saldanha Sanches acaba de propor algo de mais radical.
Defende a pura e simples extinção do Centro de Estudos Judiciários.
Em momentos históricos bem diferentes, foram extintas duas
entidades: a Polícia de Viação e Trânsito e a Junta Autónoma das
Estradas. Estas duas instituições tinham um desprestígio tal que se
impunha a sua erradicação. Era imperativo criar novas organizações, com
funções idênticas.
Com o Centro de Estudos Judiciários, passa-se precisamente o
contrário.
A Escola de Formação dos Juízes tem-se afirmado como um pólo de
formação com elevada qualidade. Cada um dos directores que por lá tem
passado deixa marcas de um trabalho valiosíssimo. Presentemente, o Juiz
Desembargador Mário Mendes está a desenvolver uma obra notável.
A reestruturação será útil e são necessários aperfeiçoamentos. Mas a
extinção equivaleria a matar um importante património adquirido ao
longo de duas décadas.
Como antigo membro do Conselho de Gestão do Centro de Estudos
Judiciários, disponibilizo-me para dar um modesto contributo, na medida
do que estiver ao meu alcance.
Fui docente universitário e formador na Ordem dos Advogados. Por
outro lado, frequentei inúmeras acções de formação em Portugal e no
estrangeiro, com os métodos mais diversos.
Sei que o ensino e a formação são realidades complexas. Há que
apostar na formação de formadores. A troca de experiências e a
transmissão de conhecimentos exige adequada preparação. Não se
compadece com amadorismos. É fundamental formar os formadores.
A preparação dos juízes tem passado por vários procedimentos.
Inicialmente, os licenciados em Direito começavam por desempenhar
funções no Ministério Público. Eram Delegados do Procurador da
República. Faziam o papel de advogados de acusação, nos processos
criminais. Após este período vestibular, poderiam ascender a juízes.
Entretanto, a carreira do Ministério Público foi autonomizada. Não
deve haver misturas entre procuradores e juízes.
Tal significou que os recém-licenciados em Direito podiam logo
candidatar-se a juízes, terminado o curso universitário. Com 22 ou 23
anos, era possível requerer a admissão ao CEJ.
Havia juízes muito jovens.
Alguns acusavam-nos de serem imaturos. E uma coisa é certa. A
maturidade não se aprende. Adquire-se com o tempo.
Tenho uma certeza. Para ser um bom juiz, é importante que se tenham
desempenhado previamente outras funções jurídicas.
Em 1998, a Assembleia da República aprovou uma nova lei, que se
encontra em vigor. Só se pode candidatar a juiz quem já se tiver formado
em Direito há mais de dois anos.
Ora isso não é solução. Um deputado que votou favoravelmente esta
lei disse-me, pouco tempo depois, que foi um erro.
Só por si, o facto de alguém se encontrar licenciado há mais de vinte e
quatro meses não significa nada.
Durante esse período mínimo de dois anos, tudo pode ter acontecido
na vida profissional do jurista. O indivíduo pode ter estado
desempregado, a realizar trabalhos que não revistam natureza jurídica ou
a dedicar-se a qualquer outra actividade.
A solução passa por uma sugestão que foi apresentada por um antigo
Procurador-Geral da República. Os futuros juízes devem começar a sua
carreira como referendários no tribunal, prestando assessoria aos
magistrados. Terminado esse período, pode-se dar início à formação para
a carreira de juiz.
UMA OFERTA IRRECUSÁVEL?

Tommy Zeigler está preso na Florida, nos Estados Unidos da América,


desde 1975. Aguarda que seja executada a pena de morte a que foi
condenado. Está na “death row”.
Antes de ser detido, levava uma bela vida. Tinha 30 anos e era um
empresário de sucesso. Geria um armazém de móveis. Morava numa
luxuosa mansão. Tinha automóveis dos melhores e frequentava
restaurantes finos.
Ultimamente, passa a maior parte do seu tempo numa exígua cela e
limita-se a ver televisão, ler e conversar com outros prisioneiros.
Há uns meses atrás, recebeu a visita de um Procurador do Ministério
Público. O jurista fez-lhe uma proposta:
- Você está preso há vinte e oito anos. Basta confessar, por escrito, que
praticou o crime. Imediatamente, será colocado em liberdade condicional
e regressará a casa. A condenação à morte será revogada.
A resposta de Tommy Zeigler foi impressionante:
- Nunca. Não admitirei a prática de um crime que não cometi. Não sou
um assassino. Não fui eu quem matou a minha mulher. Prefiro ficar
preso e eventualmente ser executado.
Imagine-se o drama deste homem, se ele estiver a falar verdade.
Ficou viúvo. Perdeu a linda esposa de 29 anos e acabou preso, acusado
de a ter assassinado. Depois, ouviu a sentença: pena de morte.
Entretanto, deixou o conforto a que estava habituado, aguardando a
execução. A sua mãe faleceu enquanto ele se encontrava na cadeia. Até
lhe falta dinheiro para comprar selos e enviar cartas. Uma vida
estragada…
Era véspera de Natal. No dia 24 de Dezembro de 1975, Tommy, a sua
mulher e os sogros encontravam-se no armazém de móveis, prontos para
irem a uma festa natalícia.
Mas Tommy telefonou, em tom de grande aflição a um amigo,
dizendo-lhe:
- Entraram aqui uns assaltantes, que dispararam sobre todos nós.
Acode-nos.
Quando as ambulâncias chegaram ao local, apenas Zeigler se
encontrava vivo, embora seriamente ferido. A sua mulher, Eunice, e os
pais dela já tinham perdido a vida, atingidos por balas.
Tommy Zeigler foi assistido no hospital e submetido a várias
intervenções cirúrgicas.
Entretanto, a polícia dava início a investigações.
Eunice Zeigler tinha feito um seguro de vida. Em caso de morte, o
beneficiário seria o seu marido, que receberia uma fortuna.
A hipótese de se estar perante um assalto simulado começava a surgir.
Talvez Tommy tivesse morto todos os seus familiares e, para disfarçar,
dado um tiro sobre ele próprio.
O juiz Maurice Paul condenou à pena de morte.
Vários factores levam a pensar que o arguido está inocente.
Tommy prestou serviço militar como paramédico. A bala alojada no
seu corpo encontrava-se no abdómen. Se disparasse sobre ele próprio,
nunca o faria desse modo. Sabia que corria sério risco de perder a vida.
Quando chegaram os socorros, o sangue na camisa de Zeigler
encontrava-se seco. Tal significa provavelmente que ele foi o primeiro a
ser atingido.
O Dr. Gleason, o médico que o operou, verificou que Tommy fora
agredido na nuca. Ora isso sugere que o agressor foi um terceiro.
Depois, não há explicação para o suspeito ter decidido matar a sua
mulher, num momento em que os pais dela se encontravam presentes,
tendo de os assassinar igualmente. Se ele queria matar Eunice, teria
inúmeras oportunidades de o fazer quando os dois se encontrassem
sozinhos.
Há uma pessoa que tem o poder de colocar termo a esta situação.
Quando quiser, pode libertar Tommy Zeigler.
Trata-se de Jeff Bush, irmão do Presidente dos Estados Unidos da
América. É Governador do Estado da Florida. Basta que ele assine um
decreto a determinar a revogação da pena de morte.
Tal como George W. e o mediático Neil, que costuma surgir nas
colunas sociais, Jeff é filho de Barbara e George Bush, que foi Presidente
da República entre 1988 e 1996.
Muitos observadores consideram que Jeff é um político mais brilhante
do que o seu irmão que se encontra na Casa Branca.
Sabem que ele não está insensível ao caso de Tommy Zeigler.
Mas pensam que o Governador aguarda se esgotem todos os recursos
judiciais em tribunal. Segundo essa opinião, ele preferia que fossem os
juízes a libertar Zeigler. Só no caso de tal não suceder, é que admitiria
uma intervenção pessoal.
A VINGANÇA SERVE-SE FRIA

Sempre que troco de automóvel, mantenho o seguro contra todos os


riscos. O mediador pergunta-me se eu quero incluir a protecção de
vandalismo e fenómenos de natureza, o que encarece a anuidade. Eu
pergunto-lhe a opinião, porque não sou muito dado a fatalismos. Tenho
sempre a esperança de que não aconteça nada de mau. Em todo o caso,
acabo por seguir o conselho dele:
- Dada a sua profissão, penso que é melhor garantir, pelo menos, o
vandalismo.
Felizmente, o mediador tem-se enganado. Nunca me apareceu o mais
pequeno risco na viatura.
Reconheço que devo fazer alguns inimigos com as minhas sentenças.
Mas nunca fui ameaçado nem vítima de qualquer tipo de vingança.
Certa vez, um colega meu ordenou a prisão de um indivíduo. O
homem estava perdido de bêbado. Pegou no pé do microfone e
arremessou-o em direcção ao juiz. Ao mesmo tempo, disse:
- Seu filho da p… Vais matar a minha mãe de desgosto.
O acto custou-lhe mais uns meses de cadeia.
Presencialmente, nunca fui insultado de modo directo. Sei que nas
minhas costas muito se diz.
Numa ocasião, realizei o julgamento de um polícia reformado e de
uma agente feminina, que era a sua nora. Ela estava a tratar do divórcio.
Entretanto, houve um desentendimento com o sogro.
Os dois apresentaram queixa e surgiram perante mim como arguidos.
Ela estava disposta a desistir do caso, se o sogro também o fizesse. Mas
ele mostrou-se irredutível: queria que o julgamento fosse avante.
Calculei a jogada. Ele estava reformado e não tinha muito a perder.
Mas a senhora encontrava-se no activo. Ficar com cadastro criminal
poderia prejudicá-la na carreira policial.
Acabei por condenar o homem ao pagamento de uma multa. Absolvi a
arguida.
Na sala de audiências, ele mostrou-se correctíssimo e ouviu a sentença
com grande compostura.
Mas depois contaram-me o se passou à saída do tribunal. Ele baptizou-
me com os mais variados nomes. São todos eles insusceptíveis de
reproduzir aqui.
Numa outra situação, um arguido espancou brutalmente um indivíduo
que lhe devia uma quantia inferior a mil euros e recusava pagar.
Condenei o agressor a uma pesada multa e a indemnizar a vítima num
montante ainda mais elevado do que a dívida. Ou seja: ele ficou a perder
com a tareia que deu ao caloteiro. Mas eu quis ensinar-lhe que não se
pode fazer justiça pelas próprias mãos.
O arguido saiu da sala de audiências empurrado pelo seu próprio
advogado. Não parava de fazer ameaças. Não eram bem dirigidas a mim.
O que dizia era:
- Agora é que ele vai levar das grandes. Vou parti-lo todo.
Costumava levar o meu automóvel a uma oficina situada junto ao
escritório da minha mulher. Noutro dia, surgiu-me como arguido um dos
mecânicos. Não sei se lá voltarei com a viatura…
Aqui há uns tempos, sucedeu-me algo de curiosíssimo. Uns amigos
meus percorreram mais de cem quilómetros para virem ao meu encontro
e almoçarmos juntos. Já tínhamos mesa marcada num conhecido
restaurante.
Às 9h30m, dei início a um julgamento por agressão.
Considerei o arguido culpado. Tinha de decidir se o mandava para a
cadeia, por um período de um mês a três anos. Ou se lhe aplicava uma
multa, de dez a trezentos e sessenta dias.
Ele não tinha cadastro e a investida não tinha sido muito violenta.
Optei pela multa. Ora o valor diário desta baseia-se nas condições
económicas do arguido.
Coloquei-lhe, portanto, algumas questões sobre a sua profissão.
A resposta foi surpreendente: ele era o dono do restaurante onde
tínhamos marcado mesa para o almoço.
Quando lhes contei o que se tinha passado, os meus amigos levaram-
me a tomar a refeição noutro estabelecimento.
Em tom de mera brincadeira, disseram:
- Não queremos que morras envenenado.
A LOIRA E O ANEL

Há dias, conversava com um distinto profissional de televisão, que


entrou para a RTP nos seus primórdios.
Lamentei-me por não existir actualmente um bom programa sobre
criminalidade, transmitido no horário nobre.
Já tivemos os “Casos de Polícia”, conduzido com grande categoria por
Conceição Lino. Tenho imensa pena que tenha desaparecido.
Júlia Pinheiro oferece-nos um interessante programa, mas
completamente fora de horas.
O “Bombástico” tornou-se problemático e houve reacções muito
negativas.
No Brasil, esta temática é objecto de muito interesse. O “Cidade
Alerta” da TV Record é um êxito e tem qualidade.
O britânico “Crime Watch” é outro caso de sucesso.
Recentemente, neste último programa, foi relatado um caso
curiosíssimo. A burlona, uma esperta inglesa, ainda não foi apanhada.
Provavelmente, nunca o será. Rapidamente fez fortuna e deixou a
actividade.
É uma loira de meia-idade, muito bem arranjada.
No aeroporto de Heathrow, apanhava um avião com destino a uma
grande cidade europeia: Paris, Roma, Florença, Viena, Frankfurt…
Aproximava-se da montra de uma prestigiada joalharia. Fotografava o
anel mais valioso. Imediatamente, mandava executar uma réplica em
material barato, utilizado em bijutaria.
Depois, a senhora instalava-se num dos melhores hotéis: Ritz, Hilton,
Westin ou Hyatt.
Efectuava uma chamada telefónica para a joalharia e mostrava-se
interessada em fazer umas compras. Mas pedia que o gerente do
estabelecimento comercial lhe telefonasse de volta para o hotel, a fim de
marcar uma hora para o atendimento. Assim, ficavam a saber que ela
estava realmente alojada naquela unidade hoteleira.
Um pouco antes da hora marcada, fazia-se transportar numa limousine
do hotel.
A elegante madame chegava em grande estilo à joalharia.
Pretendia sempre dar a ideia de ser pessoa abastada.
Era atendida com a máxima das atenções.
Dizia pretender adquirir um anel.
Quando confrontada com aquele que ela tinha fotografado, mostrava-
se particularmente interessada. Experimentava-o várias vezes. Estendia a
mão e admirava-o. Perguntava a opinião ao empregado.
Dava-se então o grande momento do golpe.
A senhora retirava o anel do dedo e simulava ter vontade de tossir.
Levava a mão direita à boca e engolia o cachucho. Ao mesmo tempo,
pigarreava.
Unindo as duas mãos, passava para o lado direito a réplica que
previamente mandara executar. Colocava-a no lugar onde estivera o
original.
Continuava a demonstrar interesse pela peça. Dizia que o mais
provável era vir a adquiri-lo. Mas iria visitar outras lojas.
Nunca mais dava sinal de vida.
Dias depois, recuperava o preciso anel no penico.
Só muito mais tarde, os empregados da joalharia se apercebiam da
troca.
Durante mais de um ano, a inglesa loira aplicou este golpe em diversas
cidades.
Entretanto, desapareceu de circulação.
Como usava nomes falsos nos hotéis, nunca foi capturada.
CARTAS ANÓNIMAS

Tem-se comentado o valor das cartas anónimas incorporadas em


processos judiciais.
Uma das opiniões mais consideradas foi a do Professor Costa
Andrade.
Fui seu aluno no curso de mestrado.
É uma mente brilhante e um criminalista de qualidades excepcionais.
Publicou livros importantíssimos. Muito tenho aprendido com ele.
Destacou-se também como político de renome. Foi o deputado que
mais tempo esteve ao serviço ininterruptamente no Parlamento. Exerceu
o cargo entre 1975 e 1995.
O Mestre reconhece que as cartas anónimas, em princípio, devem ser
consideradas para efeitos criminais.
A Procuradoria-Geral da República (em rigor, o Ministério Público)
deve receber todas as denúncias anónimas e accionar um processo
criminal.
O que interessa é o conteúdo da denúncia. Não importa muito saber
quem é o seu autor.
Em muitos casos, a carta é anónima por um mau motivo. A pessoa que
a redige está a relatar mentiras, a difamar e a caluniar. Mas também pode
não querer identificar-se por outras razões. Por exemplo, terá receio de
represálias.
A Linha SOS Criança aceita denúncias anónimas. O mesmo fazem
quase todas as instituições.
Até aqui entendo e penso que toda a gente acompanha o raciocínio de
Costa Andrade.
Mas o Professor acrescentou algo, se bem compreendi as suas
palavras.
Caso o procurador responsável pelo processo julgue que a carta
anónima não tem qualquer interesse, deve deitá-la para o caixote do lixo.
Esta opinião é que já não consigo aceitar.
Numa fase inicial de investigações, o processo é dirigido por um
procurador do Ministério Público. Trata-se do inquérito. Termina com
acusação ou arquivamento.
Mas não é só o procurador que intervém.
Em casos importantes de conflitos de interesses, o juiz de instrução
criminal é que toma as decisões.
A vítima pode participar como assistente ou apresentar um pedido de
indemnização.
Ao arguido ou suspeito cabem direitos.
Os respectivos advogados têm um papel próprio.
Portanto, o Ministério Público não é soberano durante esta fase de
inquérito. Aliás, os seus actos são susceptíveis de impugnação.
O procurador pode afirmar que, a seu ver, a carta anónima não tem
qualquer interesse. Mas não tem o direito de atirá-la para o cesto dos
papéis. Deve mantê-la no processo. Se a carta foi enviada para ser
integrada nele, deve manter-se aí.
A vítima ou o arguido podem ter outra opinião sobre a importância da
carta. É possível que a considerem útil.
Os homens grandes e honrados que sejam difamados por uma carta
anónima não se preocupam muito. Estão de consciência tranquila. Pura e
simplesmente desprezam a calúnia. Por vezes, até preferem nem
comentar o assunto. Se um dia se descobrir o autor da injúria, poderão
agir judicialmente contra ele.
A atitude de deitar fora a carta anónima revelaria grande inabilidade.
Julgo que os visados - vítimas da calúnia – não gostariam que isso
acontecesse.
É que se a carta for lançada para o lixo, o seu autor não vai desistir.
Enviará mais missivas para todo o lado, afirmando que o Ministério
Público não colocou a carta no processo. Maldosamente, poderá até
aproveitar para verter outras calúnias. Dirá que os visados exerceram
pressões para que a carta não fosse integrada no processo.
INTENÇÃO DE COMETER O CRIME

Em matéria de crimes, há um factor essencial. É essencial que o


arguido tenha tido a intenção de praticar aquele acto.
São poucos os casos em que uma pessoa pode ser condenada apenas
por falta de cuidado.
Até 1982, era punível o dano negligente. Se um indivíduo, por falta de
cuidado, partisse o farolim de outro automóvel, podia ser condenado e
ficar com cadastro criminal. Bastava que o lesado apresentasse queixa.
Actualmente, são raros os casos em que é punida a omissão de cautela.
Tal sucede no homicídio e nas agressões. Quem matar ou agredir
alguém sem intenção, mas com falta de prudência, é condenado. Pode até
ir para a cadeia. Sucede normalmente em acidentes de viação ou de
trabalho.
Também deve ser punido como receptador aquele que não tinha a
certeza de que o bem adquirido era roubado. Mas tinha razões para
suspeitar. Pelo preço, pelas condições de venda ou pelo tipo de vendedor.
Se um toxicodependente nos propõe a venda de um valioso relógio por
vinte e cinco euros, num beco, podemos não ter a certeza de que o
objecto foi furtado. Contudo, há motivos para desconfiar.
Igualmente, a condução em estado de embriaguez é sancionada mesmo
que não seja propositada.
De uma forma geral, o juiz deve assegurar-se de que o arguido tinha a
intenção de praticar o crime.
É uma tarefa difícil.
Não se pode entrar na mente do alegado criminoso. É impossível abrir-
lhe o cérebro e verificar se ele agiu propositadamente. Ou seja, se actuou
ou não com dolo.
Nas acusações, o Ministério Público alega sempre: o arguido agiu
livre, deliberada e conscientemente.
O problema está em provar que assim sucedeu.
Por isso, já absolvi muito boa gente que objectivamente praticou factos
que constituem crime. Mas talvez não houvesse intenção.
Recordo-me de um homem que conduzia uma motorizada. Tinha uma
daquelas velhas licenças de velocípedes com motor emitidas pela
Câmara Municipal. Não a trocou por uma nova dentro do prazo legal.
Portanto, não era titular de carta de condução. Aquele documento não era
válido. Mas eu fiquei com dúvidas se ele sabia disso.
Um empregado de uma imobiliária foi entregar uma declaração de IRS
à Repartição de Finanças, com valores alterados. Era uma prática comum
naquela agência mediadora. Sempre que os compradores de uma casa
não auferiam rendimentos razoáveis, procedia-se assim. Enganava-se o
banco, para obter o empréstimo. Era algo de vulgar e que resultava das
instruções dos donos da empresa. Não tive a certeza de que o arguido
queria aldrabar alguém.
SUICÍDIO NAS PRISÕES

Recentemente, as autoridades comunicaram a um casal norte-


americano o seu filho se tinha suicidado na prisão.
Após o funeral, os pais receberam um telefonema do prisioneiro, que
julgavam morto. Informou que o falecido não era ele. Tinha trocado de
cela com um colega. Os guardas prisionais estabeleceram uma confusão
e informaram erradamente os familiares.
O suicídio nas cadeias é um fenómeno que tem sido muito estudado. O
risco é muito superior ao da população em geral.
Um colega meu decretou, certa vez, a prisão de um indivíduo que
cometeu um acto hediondo.
Era empregado num pequeno restaurante. Os patrões não tinham
parentes. Ele planeou ficar com o estabelecimento para si. Matou o casal
proprietário do restaurante. Esquartejou os corpos e lançou-os ao mar.
Alguns dos pedaços deram à costa. Os corpos foram identificados.
No decurso da investigação policial, acabou por confessar o
homicídio. Disse mais: uns vinte anos antes, já tinha cometido outro
assassinato. Esse tinha ficado impune.
O meu colega juiz interrogou-o. Decidiu que ele iria aguardar o
julgamento em prisão preventiva.
Mas advertiu os agentes policiais:
- Muito cuidado. Este arguido é o género de pessoa que não se quer
confrontar com o mal que fez. Ele vai tentar suicidar-se. Não quer
confrontar-se com o mal que fez. Não tem coragem de enfrentar a
pressão que resulta de ter sido apanhado.
Assim sucedeu.
Dias depois, o prisioneiro surgiu enforcado. Deixou uma carta,
destinada a todos os jovens. Exortava-os a não enveredarem pelo crime.
Há vários factores que levam um recluso a suicidar-se.
O primeiro é esse mesmo: a dificuldade em enfrentar a justiça e a
sociedade perante o crime que se cometeu.
A colocação num estabelecimento prisional distante da família
aumenta os riscos.
A falta de ocupação profissional ou de ensino é outra causa
importante.
A agressividade por parte de outros prisioneiros pode também
despoletar um suicídio.
O rompimento de um relacionamento afectivo e o afastamento dos
filhos são circunstâncias decisivas.
Depois, há uma série de momentos que criam situações de stress. São
as deslocações ao tribunal, visitas ansiosamente esperadas que não se
concretizam, exigência de pagamento de dívidas por parte de outros
presos, recusa de liberdade condicional ou saída precária, medidas
disciplinares, aniversários (do nascimento, da data de detenção ou do
crime), morte de um familiar, o suicídio de outro colega prisioneiro e a
própria leitura da sentença condenatória, claro. É necessário ter muita
atenção nestas fases críticas.
As primeiras horas de detenção são também muito importantes. Por
isso, a Inspecção da Administração Interna realiza visitas às zonas
prisionais das esquadras.
É fundamental que ao detido sejam retirados o cinto e os atacadores
assim como qualquer outro objecto que possa servir ao enforcamento. As
grades das celas devem estar protegidas por uma malha fina. Assim, não
se permite que uma corda seja ali suspensa.
O prisioneiro suicida mais famoso foi Rudolf Hess.
Em 1946, o dirigente nazi foi condenado a pena perpétua. Recolheu à
cadeia de Spandau, propositadamente construída para criminosos de
guerra.
Vinte anos mais tarde, viu partir Albert Speer e Baldur Schirach. Os
seus últimos companheiros foram colocados em liberdade.
Hess tornou-se o único prisioneiro de Spandau. Dezenas de guardas
vigiavam o enorme complexo, que se mantinha em funcionamento
apenas para um recluso. Passou a ser conhecido como o homem mais
solitário do mundo.
Rudolf Hess tentou inúmeras vezes pôr termo à vida. Mas a segurança
era apertadíssima.
Em 1987, um técnico foi fazer reparações à cadeia e abandonou um
pedaço de cabo eléctrico.
Aos 93 anos, Hess escreveu uma carta de despedida. Enrolou o fio à
volta do pescoço e deixou o mundo dos vivos.
Em condições normais de encarceramento, o risco de suicídio já é
elevado.
Em cadeias que conferem maior sofrimento, obviamente, as
probabilidades aumentam.
Há uns anos, visitei a tristemente célebre prisão S-26, em Phnom Penh,
no Camboja.
Foi criada por Pol Pot em 1975, para encarcerar os seus adversários
políticos.
Era um antigo liceu, edificado ainda no tempo da colonização
francesa.
Algumas salas de aulas foram divididas em minúsculas celas. Outras
albergavam centenas de presos.
As torturas e os interrogatórios eram quase diários.
As varandas estavam cobertas de arame farpado. A finalidade era só
uma: impedir que os prisioneiros se lançassem para a morte.
No decorrer da segunda guerra mundial, vários prisioneiros de Dachau
tocavam em fios eléctricos, a fim de morrerem electrocutados.
Na prisão de Guantanamo, um grupo de cerca de oitenta talibans
tentaram o suicídio em massa.
Nenhum dos arguidos que mandei para a cadeia veio a suicidar-se.
No entanto, passou-se um caso curioso.
Julguei um homem que tinha sido condenado várias vezes por
conduzir embriagado.
Tudo apontava para que ele tivesse de cumprir uma pena de prisão.
Resolvi reflectir. Marquei a leitura da sentença para uma semana mais
tarde.
Com a ajuda do Instituto de Reinserção Social e da Prevenção
Rodoviária Portuguesa, encontrei uma alternativa. Era uma solução mais
criativa e provavelmente de maior eficácia.
Mas na véspera da leitura da sentença, vieram-me contar, enquanto
tomava café:
- O Carvalho anda a dizer que no caso de o Sr. Dr. Juiz o mandar para
a cadeia, ele mata-se.
Se o objectivo dele ao espalhar aquela informação era pressionar-me,
tal não resultou. A minha decisão já estava tomada.
JUSTIÇA E VASOS PARTIDOS

Há uns tempos, coube-me julgar um curioso caso que envolvia marido


e mulher. Ambos viviam juntos, mas faziam vidas separadas. Cada um
tinha o seu quarto e praticamente não se falavam. Eram pessoas muito
modestas, a aproximarem-se dos sessenta anos de idade. Nenhum deles
queria ou podia deixar a humilde casa de rés-do-chão que habitavam.
A queixa fora apresentada pela senhora. Ela tinha uma grande
quantidade de vasos com bonitas plantas que enfeitavam a residência.
Um dia, quando ela chegou a casa, envolveu-se em discussão com o
marido. Ele pegou nos vasos um a um e lançou-os para o quintal,
desfazendo-os em mil pedaços. No total, perderam-se dezenas de vasos.
Entretanto, o marido ainda teve oportunidade de insultar a senhora,
chamando-lhe nomes que tiveram de ser reproduzidos em audiência e
que envergonharam até o próprio arguido.
A prova funcionou toda a favor da mulher. Ela teve o cuidado de
captar fotografias onde se viam as sua lindas plantas deitadas por terra,
junto às quais jaziam os cacos dos vasos.
De resto, o homem confessava ter realmente quebrado aqueles
objectos. Negou ter proferido algumas das expressões mais ofensivas.
Mas o filho do casal depôs, sem que fosse obrigado a tal, pois um
descendente só é testemunha num processo contra o pai se assim o
desejar fazer. Sob juramento, disse que o pai tinha realmente insultado a
mãe. Uma vizinha confirmava a versão.
De modo que tudo apontava para uma condenação do arguido. Se eu
fosse muito duro para com ele, poderia sujeitá-lo a três anos e três meses
de prisão, em cúmulo jurídico.
Eram dois os crimes que estavam em causa.
Em primeiro lugar, havia a considerar o dano, que consiste na
destruição de algo. Os juristas de todo o mundo são pouco tolerantes em
relação a quem pratica o crime de dano. Aquele que rouba, fá-lo para se
apoderar de um bem, que lhe passa a pertencer, vendendo-o ou fazendo
uso dele. Mas o que procede a uma destruição, fá-lo com o espírito de
apenas retirar a coisa a outra pessoa, prejudicando-a, sem que obtenha
nenhum benefício para si. Para não fugir à regra, o Código Penal
Português não é complacente para este tipo de criminosos.
Depois, tinha que se apreciar a questão do crime de injúria. As
palavras que o homem dirigira à sua esposa eram claramente insultuosas.
A lei protege a honra das pessoas e quem a ofender está sujeito a uma
pena.
Tudo se conjugava, portanto, contra o arguido.
Acabei por não lhe aplicar pena nenhuma.
Com efeito, o desenrolar da audiência de julgamento fez com que
tomasse essa decisão.
O arguido explicou que sofria de asma. Exibiu até um relatório médico
comprovativo. A existência de plantas em casa prejudicava-o seriamente.
A mulher só tivera este súbito interesse pela floricultura desde que as
relações entre ambos tinham azedado. Ao que tudo levava a crer,
mantinha as plantas apenas para irritar o marido e ver se corria com ele
para fora de casa. Um amigo comum do casal testemunhou, dizendo que
o arguido lhe tinha pedido para interceder junto da senhora, de modo a
que esta deixasse de ter as plantas espalhadas pela habitação.
Segundo o acusado, um dia enervou-se e desatou a quebrar os vasos,
depois de ter feito várias tentativas para que a sua esposa o libertasse
daquele sofrimento. Os insultos tinham sido produto da exaltação do
momento e gerados em consequência da inflexibilidade da senhora.
Na minha mente, criou-se a firme convicção de que não se estava
perante um caso de violência doméstica. Aliás, o homem não era acusado
de ter agredido ninguém. Tudo o que havia era desavenças e, segundo
parecia, a mulher tinha usado um meio insidioso para prejudicar a saúde
do marido.
Cabia-me agora reflectir sobre a decisão que melhor se adequasse ao
caso.
Eles ainda eram casados, apesar de já não partilharem grande coisa,
tirando a casa. O regime de bens era o da comunhão de adquiridos.
Portanto, os vasos não pertenciam apenas à mulher. Eram também
propriedade do marido. Ora quem destrói uma coisa que lhe pertence não
pode ser punido. A questão é algo polémica nos casos em que o bem
pertence a mais do que uma pessoa. Mas segui o entendimento de que
não se verifica crime nestas situações. Quanto ao crime de dano - o mais
grave -, o problema estava resolvido. Impunha-se a absolvição do
arguido.
Relativamente à injúria, a questão era mais delicada. O homem tinha
mesmo cometido o crime, mas não me parecia justo condená-lo a uma
pena, mesmo que optasse pela simples multa. Afinal de contas, ele estava
de cabeça perdida e tinha sido vítima de uma provocação constante por
parte da mulher.
Lembrei-me, então, da existência de um artigo algo escondido no
Código Penal. Prevê-se que o juiz pode dispensar o arguido da pena
quando a pessoa que foi insultada tiver provocado o outro. Foi o que
decidi fazer: declarei o senhor culpado do crime de injúria, mas
dispensei-o da pena.
No dia da leitura da sentença, reparei que a mulher se sentara entre os
membros do público. Certamente, ficou desagradada com a minha
sentença. Mas manteve-se impávida e serena.
CAPÍTULO II

O ADVOGADO

Durante o período em que exerci advocacia, redigi inúmeras crónicas.


Foi um espaço de tempo em que as coisas foram sucedendo a um ritmo
alucinante. Reuni alguns desses artigos, que revelam uma outra faceta da
minha vida profissional.
UMA PROPOSTA INDECENTE

É um lugar-comum dizer que ao ser-se pai, nasce um sentimento de


responsabilidade superior. Pensa-se mais no futuro e, em grande medida,
vive-se em função dos filhos.
Só soube o que significava ser pai aos trinta anos de idade.
Aos nossos 28 anos, a minha mulher e eu entendemos chegada a altura
de termos filhos.
Nunca mais chegava o bebé. Começámos a ter aqueles sentimentos de
ansiedade próprios de quem teme alguma questão de infertilidade.
Decidimos consultar uma reputada ginecologista, formada em França e
especializada na matéria.
Segundo a médica, as probabilidades de existir algum problema eram
exactamente iguais em relação ao marido e à mulher.
Os testes ao homem eram do mais simples possível: uma mera análise
ao esperma.
Para a Teresa, já era tudo mais complicado. Passava por um registo
diário de temperaturas durante um mês e depois por um doloroso exame.
Rapidamente, fui absolvido. Não padecia de infertilidade.
Iniciaram-se, então, as pesquisas para apurar se havia algo com a
minha mulher.
Ainda passámos por uma peripécia interessante.
Meteram-se as férias pelo meio, enquanto ela efectuava a medição da
temperatura.
Na altura, ainda se usavam geralmente os termómetros de mercúrio.
Somente alguns médicos e enfermeiros já dispunham de aparelhos
electrónicos, que se colocavam no ouvido.
Estávamos a descansar na ilha de Mindoro, nas Filipinas, alojados num
bungalow em plena praia.
A Teresa deixou cair o termómetro e este desfez-se em mil pedaços,
espalhando o mercúrio uniformemente pelo chão. Vieram-me à memória
episódios de infância, em que eu quebrava propositadamente o
termómetro só para brincar com aquele metal.
Na recepção do hotel, não havia uma única caixa de primeiros
socorros. Nem sequer um termómetro. Escusado será dizer que em toda a
ilha não existia nenhuma farmácia.
Socorri-me do centro de saúde, instalado numa casa de madeira. O
médico só vinha uma vez por semana.
A enfermeira estava lá para o que fosse preciso.
Perguntei-lhe se não me poderia dispensar um valioso termómetro. Ela
disse-me que o centro de saúde apenas dispunha de um daqueles
dispositivos e não me poderia cedê-lo.
Passados alguns segundos, o termómetro estava na minha mão, a troco
de uma bela maquia paga em pesos.
Lá continuámos os registos diários da temperatura em papel
milimétrico.
Regressados a casa, apresentámos as medições à médica e marcámos
um dia para o penalizante exame à Teresa.
Não sei se foi do susto ou se foi algum prodígio destinado a poupá-la
ao sacrifício. Mas a verdade é que, por assombro, soubemos que iríamos
ser pais, uns dias antes da data marcada para o teste.
O certo é que desde que me tornei pai, passei realmente a ter aquela
diferente atitude perante a vida. Um sentimento de responsabilidade em
grau mais elevado foi crescendo. Já olhava para os mediadores de
seguros e vendedores de PPRs com outra seriedade.

Algo de muito curioso sucedeu com o nascimento das minhas duas


filhas.
Sem ter grande consciência disso, fui abandonando os desportos
radicais.
Adquiri um certo fascínio pelas actividades mais extremas desde que
frequentei um curso da Life Spring, uma empresa norte-americana
dedicada ao desenvolvimento pessoal.
Durante uma semana, estivemos num campo de treino. Éramos
indivíduos de todas as nacionalidades.
Os monitores eram imensamente activos e levavam-nos até à exaustão,
de manhã à noite.
Um dos primeiros exercícios consistiu em colocar-me num terraço
situado a três metros de altura. Aproximei-me da extremidade e olhei
para baixo. Estavam lá doze colegas, prontos a ampararem-me o salto. A
dificuldade era a seguinte. Tinha de me colocar de costas para eles,
fechar os olhos, abrir os braços e deixar-me cair, “firme e hirto”, como
diz o mediático hipnotizador. Acreditem que não é fácil. De baixo, ouvia
vozes encorajadoras: “Atira-te, estamos aqui para te segurar!”. Lancei-
me. O objectivo era criar um espírito de confiança entre o grupo.
Seguiram-se uma série das mais variadas iniciativas.
Trepei a uma árvore com vinte metros de altura e lancei-me para um
trapézio.
Fizemos um exercício conjunto, cujo objectivo era transpor um muro
de quatro metros sem o auxílio de nenhum instrumento. Não havia uma
única corda que nos ajudasse.
Os primeiros a saltarem fizeram-no sem dificuldade. Pusemo-nos às
cavalitas uns em cima dos outros. Com arranhões e pisadelas, lá fomos
passando para o outro lado. O problema era trazer o último elemento
para cima do muro. Tivemos de fazer uma cadeia humana. Agarrámo-nos
firmemente uns aos outros. Três tiveram a coragem de se debruçar do
muro, agarrados pelos pés. Ficaram de cabeça para baixo. Permitiram,
assim, que o membro que restava escalasse, através deles, até atingir o
topo.
Esta experiência da Life Spring despertou em mim uma paixão pelos
desportos radicais e actividades extremas.
Pratiquei bungee jumping. De uma altura de cinquenta metros, atirava-
me com um elástico amarrado aos pés.
Fiz de bala humana, que é exactamente o processo inverso do bungee
jumping. O indivíduo é projectado de um canhão e aterra numa cama
elástica.
Pratiquei karting.
Conduzi jeeps em subidas de inclinação acentuadíssima.
Guiei buggies na praia.
Fiz descidas em caiaques.
Estive ao leme de inúmeras embarcações, incluindo um rebocador de
quarenta toneladas.
Participei em sessões de parques de cobras e peguei nas mais variadas
espécies, incluindo uma venenosa.
Certa vez, num espectáculo com elefantes, ofereci-me como
voluntário. Éramos quatro deitados no chão, com todo o público a
assistir. O elefante colocou a pata em cima de mim, com toda a leveza,
fazendo-me sentir apenas uma ligeira pressão. Não voltaria a fazer o
mesmo. Pouco tempo depois, transmitiram imagens impressionantes na
televisão. Mostravam um elefante que se enfureceu repentinamente e
matou o voluntário que se tinha oferecido, tal como eu.
Só lamento não ter mergulhado e nadado junto de tubarões. Dizem que
é um acontecimento marcante e inolvidável.
Mas também já não o farei.
Como disse, fui deixando este tipo de actividades com o surgimento
das minhas filhas. Não foi uma opção tomada deliberadamente. Houve
um certo desinteresse, talvez motivado pelo desejo de levar uma vida
mais segura.
Quando a Ana Rita, a minha filha mais velha, tinha quase um ano de
idade, a Teresa e eu planeámos uma viagem à Tailândia. Decidimos não
nos separar da miúda. Iam, por isso, ser umas férias totalmente
diferentes. Dentro de um espírito de família. Nada de actividades
radicais.

Pouco tempo antes de partir, recebi no meu escritório de advogado


uma visita inesperada.
Estava a chegar quase ao seu termo um processo judicial que opunha
duas empresas: uma fábrica têxtil e uma firma que se dedica à venda de
caixas de cartão. Esta última era minha cliente e reclamava da primeira
uma dívida de cerca de doze mil contos, pelo fornecimento de caixotes.
O julgamento estava prestes a ser marcado, quando me surgiu no
escritório um indivíduo franzino, que eu conhecia vagamente do café.
Sem saber ao que ele vinha, mandei-o entrar para o meu gabinete e
dispus-me a ouvi-lo. Vinha com uma proposta incrível.
– Eu sei que o Sr. Dr. vai passar férias com a família toda.
Não me preocupou muito que o homem soubesse da minha vida. Aliás,
aquilo não era segredo para ninguém. Contudo, não compreendia onde
queria ele chegar com aquela conversa.
Mas depois o homem explicou-se
– Lembra-se daquele processo contra uma fábrica têxtil, por causa de
uma dividazita? Eu sou amigo do dono dessa fábrica e tenho uma
proposta a fazer-lhe a si, Sr. Dr. Veja lá se consegue que a sua cliente
perca o processo. Em contrapartida, tem as suas férias completamente
pagas, por conta do dono da fábrica têxtil. Tudo dentro da maior
confidencialidade, claro. Basta o Sr. Dr. entregar o rol de testemunhas
fora do prazo. Depois, alega que foi um lapso de um mensageiro seu. A
acção fica automaticamente perdida para o seu cliente. Ganha o Dr. e
ganha o meu amigo, que é dono daquela fábrica têxtil.
Fiquei furioso. A minha vontade era correr com o homem. Procurei
acalmar-me. Levantei-me da cadeira e disse, enquanto o olhava nos
olhos:
– O magazine da nossa Ordem costuma publicar notícias sobre as
punições aplicadas a advogados capazes de trair clientes. Felizmente, são
poucos os que caem nessa tentação. Eu, pela minha parte, seria incapaz
de praticar um acto tão vil e nojento. Nunca seria capaz de fazer um
cliente meu perder um processo, mesmo que me pagassem muito
dinheiro para isso. Prefiro pagar as férias do meu bolso e servir o meu
cliente com toda a dedicação e saber.
Espero que ele tenha dado o recado lá ao seu amigo, dono da fábrica
têxtil.
O facto é que a minha cliente ganhou o processo e nem foi necessário
executar a sentença. A fábrica têxtil pagou logo a dívida, certamente com
receio de juros de mora.
UM CASAMENTO TERMINADO

Toda a gente sabe que há duas formas de uma pessoa se divorciar. A


primeira é através do mútuo consentimento. Nem é preciso ir a tribunal.
Trata-se de tudo na Conservatória do Registo Civil.
O pior é se um dos cônjuges não concorda com o divórcio.
Então, aquele que está interessado em pôr termo ao matrimónio, tem
de intentar uma acção de divórcio litigioso. É necessário invocar razões
sérias que justifiquem a dissolução do casamento. Além disso, é preciso
fazer prova, nomeadamente através de testemunhas.
Em qualquer dos casos, após o divórcio, pode colocar-se um problema.
Se o casal tinha bens, há que proceder à respectiva partilha. Este ponto
é muito importante. Contrariamente ao que muita gente pensa, não é
durante o processo de divórcio que se partilham os bens. É claro que se
pode começar logo a fazer combinações para o futuro e até vender alguns
bens. Mas verdadeiramente a partilha só pode legalmente ter lugar depois
de consumado o divórcio. Aliás, os conhecidos contratos-promessas de
partilha são ilegais.
A partilha dos bens dos ex-cônjuges pode ser feita de forma amigável.
Então basta ir ao Cartório Notarial e outorgar a respectiva escritura.
Aquele que ficar beneficiado deve pagar ao outro uma quantia
compensatória a título de tornas.
No caso de não existir acordo quanto à partilha dos bens, é necessário
proceder-se a um inventário judicial. Nesse caso, os dois ex-cônjuges são
convocados para uma conferência perante o juiz e são abertas licitações
relativamente a cada um dos bens.
UMA DESGRAÇA NUNCA VEM SÓ

Há uns bons anos, entrou-me no escritório de advogado um antigo


cliente. Era pessoa habitualmente calma, incapaz de fazer mal a uma
mosca. Naquele dia, porém, vinha furioso. Disse-me ao que vinha:
– Meti-me num negócio com um vigarista de primeira. Ele está-me a
dever mais de oito mil contos e eu tenho uma letra que comprova a
dívida, mais uma declaração assinada por ele. Sempre pensei que nunca
haveria problema nenhum, porque ele tinha casa própria, aliás, uma bela
casa. No caso de ele não me pagar, eu poderia pedir a penhora e venda
judicial da casa dele. Estava garantido. Mas agora aconteceu uma grande
desgraça. A casa já não está em nome dele. Deram-me essa informação
há alguns dias. O pior é que ele não está mesmo na disposição de me
pagar a dívida. E não tem outros bens!!! É a minha ruína, Sr. Dr. !
Pedi ao meu cliente que tivesse calma. A situação era grave. Mas
tínhamos de analisar todos os pormenores antes de entrar em desespero.
Disse-lhe então:
– O primeiro passo é irmos os dois à Conservatória do Registo Predial.
Vamos lá ver exactamente em nome de quem é que a casa está agora.
Assim fizemos. Umas semanas antes, o homem tinha vendido a casa a
uma senhora. Fomos saber quem ela era. Afinal de contas, tratava-se da
pessoa com quem ele vivia maritalmente, em união de facto. Eles não
eram casados, mas viviam juntos, como tal. O meu cliente não parava de
se lamentar:
– É a minha desgraça! Eu sei que eles vivem juntos, mas não são
casados. É como se fossem dois estranhos. Pronto, ele pôs a casa em
nome dela e eu agora não posso fazer nada. Às vezes, até penso em pôr
termo à vida.
Naquele momento, eu sabia que talvez houvesse uma salvação. Abri o
Código Civil no artigo 609.º e expliquei ao meu cliente:
– Sabe, ainda há uma réstia de esperança. Há um processo especial que
se chama impugnação pauliana. Talvez seja esta a forma de salvar a
situação. Para isso, temos de provar duas coisas em tribunal. Em
primeiro lugar, temos de demonstrar que ao vender a casa, o seu devedor
colocou-se propositadamente numa situação de ficar sem bens para pagar
aos credores. Depois, há que provar que quem comprou a casa está de má
fé e só aceitou a venda, para prejudicar terceiros. Como ela é
praticamente mulher dele, será relativamente fácil de provar que ela está
de má fé.
Foi o que fizemos. Pusemos em tribunal uma impugnação pauliana.
Conseguimos testemunhas que depuseram correctamente e com verdade
em tribunal. Disseram que o devedor não tinha outros bens. Confirmaram
que a tal senhora que era agora a dona da casa na realidade vivia
maritalmente com o indivíduo que era o antigo proprietário.
O juíz deu-se por satisfeito com as provas. Anulou a escritura notarial
de venda da casa. O imóvel passou outra vez a estar em nome do
devedor.
Em seguida, a dívida foi prontamente paga, pois o homem temia que
agora se procedesse à penhora e venda judicial da casa.
O meu cliente ficou todo satisfeito e até chegou a perdoar parte dos
juros que o outro lhe devia. Tudo graças ao processo de impugnação
pauliana. Uma vez que o encontrei casualmente, disse-me:
– Nunca mais me esqueci daquele nome: impugnação pauliana.
QUANDO UMA CRIANÇA MATA OUTRA

Há cerca de dez anos, fui confrontado com um caso dramático.


Um rapaz de treze anos encontrava-se montado numa bicicleta. Fazia
troça de outros dois que se encontravam à porta de uma casa de jogos
vídeo.
Do estabelecimento saiu um grupo de dez crianças. Eram amigos dos
meninos que estavam a ser alvo de comentários pouco favoráveis.
Fizeram o trocista descer da bicicleta e desataram-lhe aos pontapés.
Quando pararam, a vítima já não tinha vida.
O mais novo dos agressores tinha nove anos e o mais velho catorze.
No dia seguinte, foram remetidos ao juiz. Dada a gravidade da
situação e a extrema violência com que os rapazes tinham reagido
perante meras provocações verbais - muito próprias daquela idade – o
magistrado decidiu submetê-los a internamento institucional.
Os pais de um deles – com dez anos de idade – foram visitá-lo em
seguida.
Do filho ouviram muitas queixas.
O Instituto não tinha a melhor fama. Pouco tempo antes, o director
tinha sido demitido. Nos jornais, tinham surgido notícias de abusos
sexuais por parte de um monitor. O casal veio consultar-me. Informei-os
de que nem tudo estava perdido.
Ainda tínhamos alguns dias para recorrer da sentença.
Dei entrada ao requerimento do recurso e simultaneamente pedi que o
menor aguardasse em casa, ao cuidado dos pais, o resultado da decisão
final.
Assim aconteceu. O menor foi imediatamente posto em liberdade.
Nas alegações de recurso, argumentei que a decisão judicial tinha sido
tomada algo precipitadamente.
Por um lado, não se tinham investigado totalmente as condições em
que decorrera a trágica morte do rapaz. Os factos deveriam ter sido
melhor apurados.
Por outro lado, dever-se-ia ter feito um cuidadoso inquérito às
condições de vida familiar do meu pequeno cliente, para se concluir se
era justificável o seu internamento.
O próprio Procurador da República reconheceu que eu tinha razão e
que o julgamento devia ser anulado.
E assim foi. O Juiz Conselheiro relator afirmou que o tribunal tinha
reduzido “a um nível inadmissível a matéria de facto em que se apoiou”.
Consequentemente, o julgamento foi anulado.
O cliente mais jovem que alguma vez tive rejubilou de alegria. Nunca
mais se meteu em nenhuma embrulhada.
UM MENOR QUE NÃO OUVE OS CONSELHOS DOS PAIS

De uma mãe angustiada recebi uma longa carta. Expõe-me em detalhe


problemas que a têm afligido. Coloca-me algumas questões que
pretendia ver respondidas. A principal pergunta é a seguinte que resumo
assim:
- O meu filho de dezasseis anos, juntamente com outros indivíduos,
participou num assalto a uma loja de pronto-a-vestir. O juiz libertou-o
mediante apresentações semanais na esquadra da polícia. O julgamento
vai realizar-se em breve. Eu gostaria que ele tivesse como advogado um
amigo nosso, que é de muita confiança e extremamente competente. O
meu filho prefere, no entanto, ser representado pelo mesmo advogado
dos outros dois que com ele fizeram o assalto. Como ele é menor, não
deve seguir a opinião dos pais?

Em discurso directo, aqui vai a resposta:


A partir dos dezasseis anos de idade, um indivíduo é considerado
imputável. Isto é: qualquer comportamento que seja considerado crime
implica responsabilidade penal e pode levar a uma pena de prisão. Antes
dos dezasseis anos, os menores são tidos como inimputáveis. Apenas
estão sujeitos a medidas de prevenção. Em casos extremos, estas medidas
podem assumir a forma de internamento em instituição adequada.
O seu filho é, portanto, plenamente responsável pelo acto que
cometeu. Apenas beneficia do regime especial para jovens com menos de
vinte e um anos de idade, o que lhe pode eventualmente vir a valer uma
atenuação especial da pena.
Quanto à escolha do advogado, surge um problema. O seu filho é
menor. Temos que esclarecer se ele beneficia da faculdade de outorgar
uma procuração a favor de um advogado.
A resposta é afirmativa. Para constituir um mandatário, basta possuir o
necessário discernimento. Ora é manifesto que um jovem imputável e
plenamente responsável do ponto de vista penal é dotado de
discernimento suficiente para constituir advogado. Nada impede, assim,
que ele nomeie o profissional do foro que entender, ainda que tal escolha
seja contra a vontade dos pais. Porém, aconselhe o seu filho a reflectir
cuidadosamente sobre a questão. Ele já fez uma grande asneira e é tempo
de ouvir os conselhos dos pais. Diga-lhe também que deve discutir com o
advogado a possibilidade de existir incompatibilidade entre a defesa dos
vários acusados. Quer dizer, pode haver arguidos que prejudiquem os
restantes com a sua versão dos factos. Sendo este o caso, não devem ser
representados pelo mesmo causídico.
Uma nota adicional a talhe de foice. No tribunal, é comum surgirem
trabalhadores menores de dezoito anos com processos contra a entidade
patronal. Coloca-se o mesmo problema. Terá o menor direito a escolher
o advogado ou serão os pais que o devem fazer? A questão é controversa
e há sentenças de tribunais de trabalho em diversos sentidos. Entendo
que igualmente neste caso, é o menor que tem o direito de escolher o
advogado. Assim o determina o artigo 127.º do Código Civil.
O PAI QUE NÃO SE PREOCUPA COM O FILHO

Há casos em que uma pessoa é atropelada por um veículo automóvel.


O condutor, sem quaisquer escrúpulos, foge. A vítima, atordoada ou até
inconsciente, não tem oportunidade de se aperceber do número da
matrícula. Não há testemunhas. A polícia não tem meios de encontrar o
criminoso.
Quem é que nesses casos paga as despesas médicas de tratamento da
vítima?
É o Fundo de Garantia Automóvel. Por cada prémio de seguro que os
automobilistas pagam à sua companhia, uma pequena percentagem é
deduzida e entregue directamente a este fundo. Assim, em caso de
necessidade, as vítimas de acidente em que não se consegue apurar o
responsável, podem recorrer ao Fundo de Garantia Automóvel. São
reembolsados das quantias gastas com tratamentos médicos.
O mesmo acontece se o causador do acidente não era titular de seguro
válido à data do acidente. Como nós sabemos, anda por aí muito boa
gente a conduzir automóveis ou motos sem que os veículos estejam
cobertos pelo seguro obrigatório. A situação é ilegal e os prevaricadores
arriscam-se a ser apanhados pela polícia. Mas infelizmente, a situação
não é tão rara como se poderia pensar.
Se um desses condutores sem seguro causar um acidente e provocar
danos pessoais em alguém, não há apólice de seguro para cobrir a
respectiva responsabilidade. Mais uma vez, é o Fundo de Garantia
Automóvel que irá suportar as despesas hospitalares.
Em 2000, entrou em funcionamento o Fundo de Garantia dos
Alimentos Devidos a Menores.
Infelizmente, não há apenas condutores sem escrúpulos.
Também há pais sem escrúpulos.
Quando um casal se separa, os filhos ficam a cargo de um dos
progenitores. Na maior parte dos casos, permanecem com a mãe.
Naturalmente, não deve ser ela a suportar sozinha as despesas com os
menores. Por isso, o tribunal determina que o pai deve pagar
mensalmente uma determinada quantia aos filhos. Este montante
denomina-se alimentos ou pensão de alimentos.
Nalguns casos, o dinheiro é directamente descontado do salário. Mas
há casos em que tal não é possível. Se o pai é trabalhador por conta
própria, por exemplo. Ora acontece, por vezes, que os pais se recusam a
pagar. É para tais casos que foi criado o Fundo de Garantia dos
Alimentos Devidos aos Menores.
No caso de o pai não pagar o que deve aos filhos, a mãe pode recorrer
ao fundo que lhe disponibiliza directamente a pensão de alimentos.
Posteriormente, o fundo pode vir a processar o pai e pedir-lhe o
reembolso dessas quantias. Mas entretanto, os filhos já foram recebendo
aquilo a que tinham direito e que era necessário para o dia-a-dia.
UMA MORTE TRÁGICA

Quando morre alguém, coloca-se logo o problema de saber para quem


ficam os bens do falecido. Dinheiro, automóveis, casas, mobiliário,
estabelecimentos comerciais: tudo tem de ser repartido entre os
herdeiros.
Se o falecido era casado e deixou viúva, a primeira coisa a fazer é
saber se o casamento ocorreu antes ou depois de 1 de Abril de 1967.
Se casaram antes desta data, quase de certeza que o regime de bens era
o da comunhão geral. Todos os bens pertenciam ao marido e mulher em
partes iguais. Todos os bens são bens comuns. Só não será assim se,
antes de casarem, os dois se tenham deslocado ao notário e declarado que
não pretendiam adoptar aquele regime.
Em caso de dúvida, basta pedir uma certidão de casamento. Depois,
verifica-se se houve ou não convenção antenupcial. Se não tiver existido,
confirma-se que o regime era o da comunhão geral. Se tiver havido
convenção antenupcial, a certidão de casamento mencionará qual o
regime de bens adoptado.
Se o casal contraiu matrimónio após 1 de Abril de 1967, nesse caso o
regime de bens será o da comunhão de adquiridos. Só não será assim se
tiver havido convenção antenupcial (o que é raro) ou se um deles já tinha
sessenta anos ou mais quando ocorreu o casamento. Mais uma vez, em
caso de dúvida, deve requerer-se uma certidão de casamento. Vigorando
o regime de comunhão de adquiridos, os bens que tiverem sido obtidos
antes do casamento são próprios. São igualmente próprios os que tiverem
sido herdados. Os restantes são comuns.
Portanto, quando morre alguém, metade dos bens comuns do casal
pertencem logo por direito próprio ao viúvo ou viúva. É o que se chama
a meação do cônjuge sobrevivo.
Deste modo, metade fica logo para o viúvo ou viúva. Mas só é assim
quanto aos bens comuns. Se houver bens próprios, como uma casa
herdada dos pais ou adquirida antes do casamento, a situação é diferente.
Aí, o cônjuge sobrevivo apenas recebe o seu quinhão hereditário.
Feita a divisão em metade dos bens comuns, resta partilhar entre os
herdeiros a metade que pertencia ao falecido.
Se restaram até três filhos, divide-se a referida metade em partes iguais
entre os filhos e a viúva.
Suponhamos que o falecido deixara dois filhos e os bens resumiam-se
apenas a uma casa comprada depois do casamento. A viúva fica
automaticamente com metade. A outra metade é dividida em três partes
iguais: uma para ela e as outras duas para cada um dos filhos. Quer dizer
que à viúva cabe metade mais uma sexta parte. Os dois filhos recebem
um sexto cada um.
Tratando-se de uma conta bancária no valor de seis mil euros, a
herança seria dividida da seguinte forma. Três mil euros cabiam logo à
viúva, por tratar-se da sua meação. O restante seria dividido em três
partes. No final, caberiam quatro mil euros ao cônjuge sobrevivo e mil
euros a cada um dos filhos.
Agora imaginemos outra situação.
O falecido tinha comprado um terreno antes de casar. Após o
matrimónio, havia comprado uma casa e um automóvel. Além disso, uns
tempos antes de morrer, tinha herdado dos pais três mil euros em
obrigações do tesouro. Consideremos que o falecido tinha casado depois
de 1 de Abril de 1967. Portanto, o regime de bens seria o de comunhão
de adquiridos.
A viúva teria direito a metade da casa e do automóvel, visto que eram
bens comuns. A outra metade dividir-se-ia em três partes.
Quanto ao terreno e às obrigações do tesouro, tratava-se de bens
próprios do falecido. Portanto, são repartidos em três pela viúva e pelos
dois filhos, de forma igual.
A situação modifica-se se houver mais de três filhos. Nesse caso, o
cônjuge sobrevivo recebe a sua meação e a outra metade é dividida em
partes desiguais. Uma quarta parte dessa metade fica para a viúva. O
restante é repartido irmamente pelos filhos.
Suponhamos que o falecido deixa viúva e seis filhos, existindo como
herança uma conta bancária no valor de seis mil euros. À viúva é
atribuída metade, ou sejam três mil euros. Depois ela tem direito a uma
quarta parte da outra metade, isto é, setecentos e cinquenta euros. O
restante é dividido em seis partes. Portanto, cada filho fica com trezentos
e setenta e cinco euros. No total, à viúva couberam seis mil setecentos e
cinquenta euros.
Importa deixar um esclarecimento.
Estes cálculos só são válidos se o falecido não tiver deixado
testamento. A maior parte das pessoas não o faz. No entanto, se houver
testamento, este tem que ser levado em consideração.
Caso exista testamento, a situação altera-se e pode complicar-se
substancialmente.
Com muita frequência, acontece que os familiares têm a impressão de
que o falecido chegou a lavrar um testamento. as não sabem exactamente
o seu teor nem onde se encontra o mesmo.
O primeiro passo consiste em fazer uma busca aos cofres, gavetas ou
estantes onde o decesso costumava guardar os documentos mais
importantes.
Aí pode-se localizar uma cópia do testamento, com menção do cartório
onde se acha guardado o original. Depois, basta deslocarmo-nos a tal
cartório e pedir uma certidão do testamento. Trata-se de uma fotocópia
certificada de todo o testamento. Ficaremos então a saber como o finado
pretendia que os bens fossem partilhados.
No entanto, pode suceder que a busca no domicílio seja infrutífera.
Então poderíamos indagar junto do cartório notarial da área de residência
do falecido se ele lavrou ou depositou aí algum testamento. Mas mesmo
que não o encontremos deste modo, pode muito bem ter acontecido que
ele haja lavrado o testamento noutra localidade qualquer, por exemplo,
enquanto se encontrava de férias.
A forma mais segura de saber se existe ou não testamento é
deslocarmo-nos à Conservatória dos Registos Centrais, em Lisboa. Aí
encontra-se a menção de todos os testamentos que determinada pessoa
tenha outorgado (cada um de nós poderá realizar mais do que um).
Há que considerar um factor muito importante. Os registos levam
meses a ser efectuados. Portanto, é aconselhável que esta busca apenas
seja efectuada algum tempo depois de o indivíduo ter falecido. É que
pode dar-se o caso de ele ter realizado um testamento poucos dias antes
de morrer. Nesse caso, na Conservatória ainda não constará a sua
existência. Caso se deseje, poder-se-á fazer uma consulta logo após a
morte do indivíduo e outra posteriormente, para confirmação.
Agora muito cuidado. Quem saiba da existência de um testamento, é
obrigado a dar conhecimento de tal facto a todos os familiares e aos
beneficiários, mesmo que isso resulte em prejuízo próprio. A sanção para
quem ocultar um testamento é terrível: o infractor já não poderá receber
nada do que pertencia ao falecido. Se já estiver na posse de alguns bens,
é obrigada a devolvê-los. O seu quinhão reverterá a favor dos outros
herdeiros, dividido na respectiva proporção.
Uma vez na posse de cópia do testamento, efectua-se a sua leitura.
Neste momento, tem de se levar em linha de conta que em Portugal
vigora o regime da sucessão legitimária ou de herança forçada. Não
existe total liberdade quanto ao que se deixa em testamento.
Em princípio, um indivíduo só pode deixar em testamento até uma
terça parte dos seus bens. Caso as deixas testamentárias excedam esta
quota disponível, serão reduzidas proporcionalmente.
No entanto, se o falecido apenas deixou mulher e não tinha filhos,
então já poderia dispor de metade dos bens. O mesmo acontece se não
tiver deixado cônjuge sobrevivo e apenas tiver um filho. A situação é
também idêntica se não tiver deixado mulher nem filhos, mas sim apenas
os seus pais.
Se apenas sobreviverem tios ou primos, pode-se deixar em testamento
até dois terços da totalidade dos bens.
VIZINHOS DESAVINDOS

Há uns bons anos, surgiu-me no escritório um indivíduo que era


administrador de um prédio com mais de trinta anos de existência. Não
vinha muito animado. Começou por me dizer:
– Este ano calhou-me a mim a vez de ser o condómino administrador.
Só têm aparecido problemas.
Explicou-me que se tratava de um pequeno prédio de quatro pisos. O
terceiro era recuado relativamente aos restantes.
– Ora sucede que o vizinho do terceiro andar dispõe de um terraço
uma vez que o andar dele é recuado. Esse terraço por sua vez serve de
cobertura ao segundo andar. O pavimento do terraço está degradado e
deixa passar água da chuva para o andar de baixo. O condómino do
segundo andar queixa-se de que a casa está repleta de infiltrações e
precisa que sejam feitas obras o mais rapidamente possível.
Era compreensível, pensei eu.
Mas o meu cliente começou a contar-me as complicações:
– O pior é que o homem do terceiro andar não quer arcar sozinho com
as despesas da obra. Diz que têm de ser todos os condóminos a dividir a
conta. Ele diz que leu num livro qualquer sobre propriedade horizontal
que o terraço é uma parte comum, mesmo que se destine ao uso
exclusivo de um só condómino. Portanto, como é parte comum, devem
ser todos a pagar.
Para desfazer quaisquer dúvidas, perguntei-lhe quem tinha acesso ao
terraço.
– Só o vizinho do terceiro andar é que tem acesso ao terraço, porque é
uma espécie de varanda muito grande com entrada pela sala dele.
Abri o meu Código Civil. Exibi o artigo 1414º, ao mesmo tempo que
dizia:
– Sr. Mateus, a lei não podia ser mais clara.
Com efeito, lê-se naquele artigo: as despesas relativas às partes
comuns que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a
cargo dos que delas se servem.
É claro que o único responsável pelas obras era o proprietário do
terceiro andar. A pedido do administrador do prédio, visitei o prédio.
Elaborei um parecer escrito sobre a questão concreta. Foi o suficiente
para o condómino do terceiro andar abrir os cordões à bolsa e pagar o
que lhe competia.
MUITO CUIDADO AO ASSINAR UM CONTRATO-
PROMESSA

Um casal de pequenos empresários assinou um contrato-promessa para


a compra de uma loja, onde pretendiam instalar um restaurante. Pagaram
um sinal de dois mil contos.
A escritura ficava para dali a três meses e, nessa altura, os dois
compradores pagariam o remanescente.
Chegado o dia aprazado para a escritura, o dono da loja recusou-se a
vendê-la ao casal, tal como havia prometido. E disse-lhes:
– Lamento muito, mas surgiu uma outra pessoa interessada e o
máximo que eu posso fazer é devolver-lhes os dois mil contos de sinal.
Os promitentes compradores ficaram furiosos. Disseram que já tinham
falado com um advogado. Se era assim, então só aceitavam quatro mil
contos, pois era aquilo a que tinham direito.
O proprietário da loja, preocupado, contactou-me.
Expliquei-lhe, efectivamente, se o promitente vendedor não cumpre o
contrato, é obrigado a devolver o sinal em dobro.
Pedi-lhe, então, para me exibir a cópia do documento assinado pelas
partes e fiquei espantadíssimo. Nunca tinha visto uma coisa assim.
O contrato-promessa tinha todas as cláusulas bem redigidas, mas não
identificava correctamente a loja. Apenas mencionava o nome da rua.
Não indicava o número da porta, nem que se tratava do rés-do-chão.
Peguei no meu Código Civil e, após uma breve leitura, expliquei ao
meu consulente:
- Sr. Vasco, parece que está com sorte. O contrato-promessa não indica
qual o objecto. A fracção autónoma tem de estar completamente descrita,
sem falhas. Bem sei que o senhor e o casal tinham em mente aquela loja
e sempre a terão mencionado verbalmente. Mas o contrato-promessa não
pode ser verbal. Tem de ser outorgado por escrito. Este documento não é
válido. É nulo. Ora a nulidade do contrato-promessa implica que este não
tem qualquer valor. No entanto, como foi entregue um sinal de dois mil
contos, você tem de devolver essa quantia, porque a recebeu por força de
um contrato nulo. Mas apenas tem de devolver os dois mil contos em
singelo e não em dobro. Nem sequer tem de pagar juros.
O homem saiu radiante do meu escritório e pediu-me que escrevesse
uma carta ao casal que lhe tinha pago o sinal.
Os indivíduos recusaram receber apenas os dois mil contos e levaram
o caso para tribunal. Perderam na primeira instância e recorreram, tendo
também, em sede de recurso, vencido o meu cliente. Após quase três
anos e na impossibilidade de mais recursos, lá se conformaram e
receberam apenas os dois mil contos que tinham pago antes.
Foi uma situação peculiar, em que o meu cliente venceu, embora com
um prejuízo relativamente elevado para a outra parte.
Para todos, restou uma lição: muito cuidado ao assinar um contrato-
promessa. Deve-se sempre verificar se o prédio (ou a fracção) está
devidamente identificado.

São os seguintes os elementos básicos de um contrato-promessa de


compra e venda de um imóvel, seja ele um terreno, um prédio, um andar,
uma loja ou uma garagem.
1. Relativamente ao vendedor e ao comprador, deve indicar-se: nome
completo, estado civil, nome completo do cônjuge (quando exista),
número de contribuinte, número de bilhete de identidade, data e local de
emissão deste e morada. O regime de bens do casamento deve ficar a
constar. No caso de uma das partes ser uma empresa, deve indicar-se a
denominação da mesma, o capital social, matrícula, inscrição e sede.
Além disso, deve mencionar-se a identificação completa do gerente ou
gerentes que assinam o contrato-promessa, em representação da
sociedade. Se algum dos contraentes for solteiro, indica-se se é maior de
dezoito anos. Caso seja menor, redige-se a identificação completa dos
pais e são estes que assinam o contrato-promessa.
2. Identificação completa do imóvel: concelho, freguesia, rua, número
da porta, andar (incluindo indicações como “esquerdo”, “direito”,
“frente”, “A”, etc.), descrição e inscrição na Conservatória, bem como
inscrição na matriz.
3. Preço total do imóvel.
4. Montante do sinal que é pago na data da assinatura do contrato-
promessa. Deve também fazer-se expressa menção de que “o promitente-
vendedor dá quitação”, isto é, que realmente recebeu essa quantia.
5. Data e local (qual o cartório) para assinatura da escritura pública.
Não é obrigatório indicar uma data exacta. Por exemplo, pode estipular-
se que a escritura será outorgada quando for passada a licença de
utilização. Pode também estabelecer-se que a escritura será assinada num
cartório à escolha de uma das partes, bastando avisar a outra com uma
certa antecedência. É essencial determinar quem deve marcar a escritura
e como deve avisar a outra parte (por exemplo, por carta registada).
6. Indicação de quem irá suportar as despesas de escritura, registo e
pagamento da sisa.
7. Data de assinatura do contrato-promessa.
8. De preferência, os números mais relevantes devem ser redigidos em
algarismos e por extenso.
Estes são os elementos mínimos que todo e qualquer contrato-
promessa deve conter obrigatoriamente. Tudo o mais nunca é demais.
Pode indicar-se o número de telefone das partes, a sua filiação e a
profissão, por exemplo. Há também a possibilidade de referir o número
do cheque que serviu para pagamento do sinal. Pode igualmente indicar-
se a área do imóvel ou juntar uma planta rubricada pelas partes.
É possível estipular que, caso o comprador queira, indicará outra
pessoa à sua escolha para celebrar a escritura pública em vez dele, sem
que perca com isso o sinal já pago. Este procedimento permite poupar o
pagamento do imposto. Caso contrário, teria de ser liquidado duas vezes.
É que pode bem suceder que o promitente-comprador deixe de ter
interesse naquela casa: por motivos económicos, porque descobriu outra
melhor ou porque alguém lhe oferece uma boa quantia por ela. Basta-lhe
encontrar outra pessoa interessada na compra e avisar antecipadamente o
promitente-vendedor. Este esquema é também utilizado por
intermediários especuladores ou por quem não queira dar a cara na fase
inicial.
Podem acordar-se determinadas formas de pagamento faseado ou
reforços de sinal.
Por vezes prevê-se que, em caso de litígio, as partes concordam em
submeter o assunto a determinado tribunal em detrimento de qualquer
outro.
Pode também indicar-se o tipo de acabamentos pretendidos. Por
exemplo, pode estabelecer-se que a venda da casa inclui certos
electrodomésticos, móveis ou outros equipamentos extra. Note-se que
mesmo em casas usadas, os electrodomésticos devem ser entregues em
perfeito estado de funcionamento, salvo se no contrato se indicar que
algum ou alguns se encontram avariados. Um cliente meu comprou uma
moradia em segunda mão, incluindo uma antena parabólica. Todavia,
esta não funcionava. O antigo dono viu-se obrigado a pagar a reparação.
Nos casos em que ainda não exista licença de utilização, pode
mencionar-se que um dos contraentes (normalmente o vendedor) fica
obrigado a tratar de todas as formalidades inerentes.
Pode indicar-se que a casa se encontra arrendada, mencionando-se a
renda, o prazo do contrato e o nome do arrendatário.
Por vezes, estabelece-se que a casa é logo entregue com o pagamento
do sinal. Na maior parte dos casos e se nada for dito, a chave só é
entregue mais tarde, quando for outorgada a escritura.
Pode referir-se quem fica responsável pelo pagamento das despesas de
condomínio até à data da escritura.
Em casos mais raros, é também possível estabelecer condições. Por
exemplo, combinar que o comprador pode desistir e reaver o sinal se não
for autorizada a instalação de uma oficina de automóveis no local a
adquirir.
Quaisquer outros acordos e combinações podem e devem redigir-se no
contrato-promessa.

«Oferta das despesas da escritura». Costuma ler-se esta frase em


alguns anúncios de casa para venda. É um factor a ter em consideração.
Ainda podem significar uns milhares de euros a menos na totalidade dos
encargos a suportar por quem decide adquirir uma habitação.
Assim, o comprador já sabe. Quando for ao Cartório Notarial assinar a
escritura quem paga as despesas é o vendedor. Já não tem que se
preocupar em colocar de parte aquela quantia. Ou se a separou, sempre
pode a mesma servir para ajudar a mobilar a casa. Agora um aviso
importante. Essa menção tem de constar obrigatoriamente do contrato-
promessa de compra e venda.
Muitos advogados incluem uma cláusula relativa às despesas com a
escritura, nos contratos-promessas. É claro que na maior parte dos casos,
quem as paga é quem compra o imóvel. Mas há situações em que o
vendedor aceita suportar esse encargo. Nesse caso, é absolutamente
imprescindível referir tal circunstância no contrato-promessa assinado
por ambas as partes.
Em grande parte dos contratos-promessa, as pessoas nem sequer se
preocupam em mencionar quem irá pagar esse tipo de montantes.
Quando assim acontece – o que é muito frequente – é aplicável o artigo
878.º do Código Civil. Esta regra é de uma clareza evidente: «Na falta de
convenção em contrário, as despesas do contrato e outras acessórias
ficam a cargo do comprador». Ou seja: não existindo clausulado em
contrário, quem paga esse tipo de encargos é quem compra. Esta norma
jurídica é a típica norma supletiva. Não é obrigatória automaticamente.
Só é válida se o contrato for omisso. Isto é, se as partes não combinarem
nada, aplica-se aquela norma. Caso exista algum acordo prévio, então a
norma jurídica não se considera e vale a combinação efectuada.
Grande parte das normas que regulam as relações entre particulares
são deste tipo: supletivas. Tudo é possível fazer e acordar desde que não
seja expressamente proibido por lei. O que não é proibido é permitido.
No caso de não existir acordo expresso, aplicam-se as regras supletivas,
que são aos milhares e prevêem uma infinidade de situações.
Regressando à oferta das despesas da escritura. Caso pretenda
beneficiar de uma proposta deste género, não se esqueça de confirmar se
a mesma consta claramente do contrato-promessa. Se não estiver lá
escrito, já sabe. É aplicável a tal norma supletiva: quem paga é quem
compra.
De nada servirá depois exibir anúncios publicados em jornais ou
folhetos nos quais o vendedor prometa pagar as despesas com a escritura.
É que tais textos não assumem a natureza de proposta contratual.
CAPÍTULO III

OUTROS CASOS

As minhas actividades como jurista implicaram um constante


relacionamento com colegas.
Sempre tive um enorme prazer em ouvir relatos de casos ocorridos
com pessoas mais vividas e com maior experiência profissional.
Ilustres Juristas dispuseram-se a relatar alguns episódios curiosíssimos.
GUILHERME DA PALMA CARLOS

Com mais de quarenta anos de carreira, Guilherme da Palma Carlos


é um prestigiadíssimo advogado.
Daqueles causídicos cujos clientes se orgulham de afirmar
permanentemente que recorrem aos seus serviços. Sei de pessoas que,
em tom veladamente intimidatório, dizem algo como: “olhe que eu levo o
caso para tribunal e lembre-se que o meu advogado é o Dr. Guilherme
da Palma Carlos”.
É filho do saudoso Professor Adelino da Palma Carlos, da Faculdade
de Direito de Lisboa. Adelino da Palma Carlos destacou-se como
docente universitário, Primeiro-Ministro, advogado de renome e
bastonário da respectiva Ordem.
No Carnaval, quando Guilherme tinha cinco anos de idade, o pai
ofereceu-lhe uma toga em miniatura. Foi a sua máscara de advogado,
naquela tenra idade. Era o prenúncio de um desempenho excepcional na
barra dos tribunais.
Guilherme da Palma Carlos ocupou o cargo de Presidente do
Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
Presentemente, é um dos dezassete membros do Conselho Superior de
Magistratura. Foi designado pelo Presidente da República.
Durante o meu estágio de advocacia, gozei do enorme privilégio de ter
como patrono o Dr. Guilherme da Palma Carlos. Ficou meu Mestre
para sempre.
O causídico oferece-nos uma prosa interessantíssima, que assim
intitula: “Da velha medalha, o reverso”.
Relata casos curiosíssimos.
Alguns relacionados com acidentes de viação, dada a sua vasta
experiência enquanto advogado de companhias de seguros.
Um outro, interessantíssimo, de ofensa a Salazar, então Presidente do
Conselho.
Para o final, guardou um episódio divertidíssimo.
Frequentemente, colocam-se dúvidas quanto ao pai de certa criança
recém-nascida.
Em muitos casos, é instaurado um processo em tribunal: a acção de
investigação de paternidade.
Hoje, as coisas estão simplificadas com os exames de ADN e o
elevado grau de fiabilidade dos exames hematológicos, resultantes da
análise ao sangue.
Eu nasci em 1966. Sou de um tempo em que o Professor Lesseps dos
Reis ensinava, nas aulas de medicina legal, que as análises sanguíneas
deixavam sempre um rasto de dúvida. E recordo-me de um juiz que dava
mais valor à fisionomia do que aos relatórios médicos. Colocando lado a
lado o menor e o pretenso progenitor, dizia: “então não se está mesmo a
ver que são pai e filho?”.
Pois Guilherme da Palma Carlos conta-nos, mesmo no final, um
singular caso de investigação de paternidade bovina. Envolve algo de
sedução ou violação de carácter animal.
Em pleno Ribatejo, a Companhia das Lezírias mantinha nobres vacas
charolezas. Ali perto, encontravam-se toiros de lide pertencentes a
Manuel dos Santos, então empresário do Campo Pequeno. Fêmeas e
machos estavam bem separados. Mas a vedação foi derrubada. As
consequências traduziram-se em vitelos. A paternidade era atribuída aos
distintos toiros.
Vejamos pois o que nos relata o distinto advogado.

Da velha medalha, o regresso


Há muito tempo que germinava em mim a ideia de recordar algumas
peripécias que me ocorreram ao longo de, valha-me Deus, quási
cinquenta anos de advocacia de barra.
Isto irá bastante ao arrepio das tradicionais abordagens recordatórias,
geralmente assentes nos aspectos penosos ou glorificantes da nossa vida
forense.
Normalmente, tendemos a invocar sacrifícios, incertezas, angustiantes
esperas por incertas decisões, ambientes hostis, incidentes mais ou
menos desagradáveis com magistrados ou colegas e outras situações
análogas.
Foi nesta perspectiva que meu Pai escreveu certo dia uma frase, hoje
quási clássica, sobre os advogados:
“Seus momentos de triunfo são fugazes, vivem-se e logo se esquecem,
pois não passam de relâmpagos a quebrar a escravidão duma constante
luta”.
Não será, essa a vertente que vou seguir. Pelo contrário, como
contraponto inusitado, tentarei apenas recordar alguns aspectos mais
risonhos a provar que, apesar dos pesares, a profissão tem o seu lado
humorístico.
Desde muito cedo que a faceta risonha das coisas sérias me fascinou. E
a minha idade já permitirá a confissão de que me divertia mais a ler
livros de cronistas judiciários franceses, que comentavam peripécias
ocorridas nos juízos correccionais de Paris do que os livros que
bisonhamente descreviam idênticas situações no seu rigor judiciário. De
todos havia na biblioteca de meu Pai e a minha opção era claramente
pouco científica.
Relembro livros de Geo London, como "Quand la Justice s´occupe
d´amour", "Comedies et Vaudevilles judiciaires" e "Mon Président, Je
vous le jure".
Dos livros de crónicas judiciárias, ilustradas, mordazes e até
pedagógicas, recordo também o de Jules Moinaux, "Les Tribunaux
Comiques", relatando seis dezenas de audiências de pequenas causas
criminais, "fait divers" mas todas eivadas de humor e utilizando o patois
das classes menos eruditas de Paris dessa época.
Seria impossível resumir suas linhas gerais, tão diversas eram as
situações, mas não posso deixar de aludir uma, de ofensas corporais entre
dois indivíduos, mutua e reconvencionalmente queixosos, um, Loupy,
pobre e andrajoso, outro, Ducardon, mais rico e elegante, que
apresentaram suas provas e razões contraditórias. Conclusão: "Le
Tribunal met fin a ces pennes, en condamnent Loupy et Ducardon
chacun à 25 francs d´amende".
Loupy – Vous v´la bien avancé, Monsieur Ducardon.
Ducardon – Je m´en fiche, j´ai le moyen de payer, moi.
Loupy – Moi, je m´en fiche bien plus; j´ai pas le moyen».
Isto significa que a essência de velhas questões, subsiste por resolver.
Forma e conteúdo, problemas esses que, porventura, estão na génese das
reformas, a partir do social para o sistema e não vice-versa, visão que
parece não se a prioritária dos reformistas.
Estou, porém, a afastar-se do tema. Desculpem os meus infelizes
leitores.

Para situar a época que invoco, devo acrescentar outra insólita


confissão. Na minha juventude universitária, e até depois, vivia-se na
bem conhecida redoma repressiva de pudicicia e hipocrisia. Qualquer
publicação mais ousada era de imediato proibida e sancionada. A coisa
era tão rígida, que sem acesso às então bem pudicas revistas estrangeiras,
tipo “Playboy”, logo apreendidas em qualquer circunstância para
preservar a moral e os bons costumes, a leitura mais erótica a que havia
acesso legal era “A Vida Sexual”, do Prof. Egas Moniz, editada pela
década de 20, cuja 6ª edição, que tantas horas de pecaminosos e impuros
pensamentos me permitiu, guardo religiosamente.
Foi ainda nesse clima autoritário que comecei a advogar.
E, feliz ou infelizmente, desde o início que a minha actividade era
principalmente na barra, parte por ter sido a saudosa Companhia de
Seguros “Tagus”, hoje AXA, a minha primeira cliente, depois seguida
pela “Tranquilidade”, constituindo um ponto de orgulho a circunstância
de ainda hoje continuar a exercer o respectivo patrocínio, quarenta e tal
anos decorridos.
Nesse tempo, os então chamados “advogados de seguros” defendiam
penalmente os próprios segurados, pois ainda não havia as acções
“enxertadas”, que a pouco e pouco transformaram quási todos os
acidentes em acções na alçada do Supremo Tribunal de Justiça, por obra
da fantasia e criatividade de muitos dos lesados e do indiscriminado
aproveitamento de um generoso, mas nada selectivo, apoio judiciário.
Isto permitia intenso contacto com os tribunais correccionais onde se
assistia à pulsão da sociedade de então, felizmente diversa da
actualmente existente.
Ora parte das historietas que recordo ocorreram nesse clima, bem mais
solene e repressivo do que aquele que hoje existe nos tribunais, o que é
preciso ter em conta, sem o que se perderá um pouco o apimentado de
certas situações. Finalmente, acrescento que, tantos anos passados, não
me é possível seguir a cronologia dos casos, pois recordo-os por si, mas
não os consigo situar na sua relatividade temporal.
Comecei, aliás, o ofício de aprendiz de advogado de seguros duma
forma bem movimentada. Com efeito, fui acompanhar meu Tio Manuel
João a um julgamento em que a parte contrária era representada pelo Dr.
Ramada Curto. Como na época havia tempo para ter tempo, o Tribunal,
presidido pelo Dr. Garcia da Fonseca, resolveu deslocar-se ao local do
atropelamento, ali para os lados de Santos, frente ao terraço da
Embaixada de França. A vítima, uma peixeira típica, foi convidada a
ocupar na faixa de rodagem o lugar em que estaria quando foi atropelada
por um táxi. E assim fez. O pior é que nesse momento sobreveio outro
táxi que por muito pouco não derrubou a contumaz ofendida que,
furibunda, se foi embora proferindo genéricos e indiscriminados
impropérios quanto aos operadores judiciários (horrível expressão) em
geral e recusando-se a continuar presente na diligência. Como se verá, foi
auspicioso o meu início nesta matéria...
Outra vez, anos depois, estava a defender um taxista no 6º Juízo
Correccional, sito nos soturnos corredores da Zona Térrea da Boa-Hora e
sabia que o meu representado não tinha testemunhas (na altura podiam
ser apresentadas no próprio julgamento). Foi, pois, com surpresa que o
Oficial de Diligência anunciou a presença duma testemunha do réu.
Entrou então, solenemente, na sala uma figura típica dessa época:
cidadão de mais de meia idade, impecavelmente vestido com um
jaquetão, completamente no fio mas de irrepreensível engomado,
colarinhos rígidos, gravata saliente, enorme lenço de pontas gomadas,
chapéu à diplomata, de abas viradas e luvas na mão. Aliás, cidadãos
análogos eram frequentadores habituais das audiências. Mas aqui é que
surge a bizarria: perguntei ao solene cavalheiro o que sabia ele do
acidente ou do réu e então, perante o pasmo geral, a “testemunha” virou-
se para o juiz, aliás magistrado solene e algo distante, o Dr. Correa
Barreto e, com voz tunitruante declarou:
“Meritíssimo Juiz: Este homem, sentado no banco da
ignomínia, está inocente. E eu, de o ver ali, não posso conter
a indignação e as lágrimas, repetindo - está inocente!”

Nesta altura o Juiz interrompeu-o e convidou-o a sair, antes de


maiores desastres, o que ele fez, saudando e retirando-se em passo digno,
mas continuando, corredor fora, o seu discurso em alta voz. O
Magistrado, ainda perplexo, perguntou então ao acusado quem era aquela
testemunha, ao que este respondeu, ainda mais perplexo, que não
conhecia aquele senhor de parte alguma. O Oficial de Diligências,
questionado sobre tão insólita aparição, contou que, no corredor, tinha
perguntado se estava presente alguma testemunha do réu, e um senhor
que ia a passar, ao ouvir a pergunta logo declarou “Testemunha? Sou
eu!”, posto que avançou como ficou referido.
Uma outra vez defendi um condutor realmente dotado para ter
problemas. O caso era simples: tinha atropelado um cidadão de etnia
cigana (como agora se diz) em frente ao antigo campo de futebol da
fábrica das loiças de Sacavém, que constituía ao tempo o itinerário
Lisboa-Porto. O atropelamento foi ligeiro, mas uma horda de
companheiros da vítima irrompeu pela estrada e o infeliz condutor teve
de correr à frente deles, do local do acidente até ao antigo posto da
Polícia de Viação e Trânsito em Sacavém. Disto resultou que o
atropelador, abalado com o susto, acabou por ter um período de doença
superior ao do atropelado. Mas não se ficou por aqui: no julgamento o
Juiz Alves Pinto, perguntou-lhe se já tinha respondido anteriormente por
crime e ele responde que apenas estivera uma vez no tribunal que
localizou no Porto, e que correspondia aos juízos cíveis. Ficou, assim,
exarada resposta negativa, mas quando veio a certidão, constava um
processo, o que lhe valeu nova acusação por falsas declarações.
Verificou-se, entretanto, que houvera uma curta época em que os juízos
correccionais do Porto estiveram temporariamente instalados nos locais
do cível por força de obras. O que lhe valeu foi que o Dr. Alves Pinto se
recordava do caso e ofereceu-se, honra lhe seja, para testemunhar,
juntamente comigo, que não houvera falsas declarações, mas inexacta
interpretação do que dissera. Só nisso o cidadão acabou por ter sorte...
Em Setúbal, com o inesquecível Juiz Dr. Pinheiro Farinha, rigoroso e
formal, defendi outro condutor que tinha atropelado um peão, nas
loucuras das festas de Santiago. O estranho é que o peão atravessava a
rua, acompanhado de dois outros, que nada sofreram, um dos quais era
cego.
Este último apareceu arrolado como testemunha de acusação e, quando
foi ouvido, enviei ao delegado, meu Amigo e colega de curso, o Saudoso
João António Leitão Ribeiro Tristão, um bilhete discreto com a seguinte
quadra:

“Torpíssimo Acusador
Nesta causa que renego,
De testemunha de vista
Até me trazes um cego!”

Eu dava-me muito bem com o saudoso Dr. Pinheiro Farinha, mas


conhecendo-lhe o temperamento, por vezes imprevisível, fiquei um tanto
aterrado quando o João Leitão, com ar impávido, remeteu a minha nota
para o juiz. O que então aconteceu, sempre com a maior pompa e
circunstância, foi o Dr. Pinheiro Farinha se me dirigir: “Queira V. Exa.
esclarecer se está em causa uma contradita à testemunha?” Ao que
respondi, solene, que de forma alguma, prosseguindo o julgamento sem
que ninguém, dos de fora se tivesse apercebido deste interlúdio.
Que saudades dos Magistrados dos meus verdes anos, alguns dos quais
só encontro em cerimónias no Supremo Tribunal de Justiça! E de outros
que, infelizmente, já não poderei tornar a encontrar...

Já vai longa esta prosa... Por isso, só descrevo mais um caso, este
ocorrido no velho Tribunal de Sintra, mourisco e turístico. Antes do
julgamento que ali me levara, havia um outro em que o réu era acusado
de injúrias ao então Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar.
Acusação grave, na época. Segundo os autos, o réu entrara na sede da
Associação dos Ferroviários da Linha de Sintra, em Mem Martins, onde
a televisão emitia um dos raros discursos do Chefe do Governo. Da
acusação constava que ele teria então dito, em alta voz, “estás aí, meu
bandido”, ou coisa semelhante. Saíra e passado pouco tempo, regressaria
dizendo “ainda aí estás, meu bandido?”. Estas expressões tinham
impressionado o denunciante, evidentemente informador da PIDE, que se
apressou a participar tão nefanda actuação, que teria de ser apreciada em
juízo.
O Juiz Dr. Barros de Sequeira, com quem me dava muito bem e veio
depois a ser Chefe de Gabinete de meu Pai na sua efémera passagem pela
Presidência do 1º Governo Provisório, ao ver-me na sala disse que eu
seria o indicado para a defesa oficiosa do réu. E o julgamento não
poderia ter corrido melhor. Aconselhei-o a manter-se em silêncio e
interroguei o denunciante, que era a peça chave duma acusação que
incomodava toda a gente. Limitei-me a perguntar-lhe se havia muitos
espectadores na sala da televisão, ao que respondeu que sim. Depois, se o
réu tinha pessoalizado o destinatário das frases. Respondeu que dissera
apenas o que constava dos autos. Então, conclui, sofisticamente, que
quem injuriava o senhor Presidente do Conselho era ele próprio, uma vez
que entendia que uma expressão ofensiva não direccionada e proferida na
presença duma pluralidade de pessoas só podia ter em vista o Dr.
Oliveira Salazar.
O Ministério Público e o Juiz inseriram-se nesta argumentação, que
obtinha um manifesto apoio de todos os circunstantes e o Réu, algo
atónito, saiu gloriosamente absolvido, enquanto que o denunciante se
perguntaria, provavelmente, se o seu insucesso como “bufo” não viria a
ser-lhe penalizante.

Não devo tornar mais logo este texto que, provavelmente, só


interessará a mim próprio, desculpem os hipotéticos leitores. Claro que
houve muitos outros casos, desde chegar, num dia de cheias, ao Tribunal
da Golegã em barco a remos, tipo gôndola, para passar o submerso
“Dique dos Doze”, com um oficial de diligências, no outro lado, à minha
espera no seu carro. Outro, em que num acidente de trabalho “in itinere”,
por alegada negligência da vítima ao transitar pela via férrea, tive um
comboio por testemunha, uma vez que apitou com a antecedência que eu
invocava ser norma e destruiu assim a tese do aparecimento súbito e
inesperado. Também uma vez houve uma troca de duas pastas, então na
moda, estilo James Bond, e levei a de um agrónomo, em vez da minha,
tendo de referir ao tribunal que sobre os autos pouco poderia dizer, pois
não tinha o processo. Porém, estaria em condições de dissertar sobre a
genética das vacas de raça charoleza, uma vez que na pasta que levava
por engano havia um tratado sobre tal matéria.

E já agora, uma vez que estou a falar de vacas, recordo um processo


insólito em que representei a Companhia das Lezírias, que se tornou um
misto de inquérito cível sobre hipóteses de violação, sedução e
investigações de paternidade. Foi o caso de estarem em parcelas vedadas
da lezíria, separadas por vedações, nobres vacas charolezas e toiros de
lide do saudoso matador Manuel dos Santos, ao tempo empresário da
Praça do Campo Pequeno.
Por força de alguma insídia sentimental ou de apelo da natureza, o
certo é que a vedação foi derrubada e alguns toiros e vacas entregaram-se
a ilícitos devaneios, dos quais resultaram alguns estranhos bastardos. Ao
Tribunal de Vila Franca foi cometida a ciclópica tarefa de averiguar
quem seduzira quem e dos danos decorridos nas estirpes profanadas, o
que, como era previsível, excedeu a capacidade investigatória da Justiça.

Um outro caso invulgar que tive correspondeu a um julgamento de um


banal choque de camiões na área de Castelo Branco. Isto nada teria de
invulgar, mas o que tornou inesquecível o caso foram duas circunstâncias
cumulativas. A primeira resultou de ter havido a nacionalização e
agrupamento das seguradoras, do que resultou eu estar a representar ao
mesmo tempo a Autora e a Ré. A segunda foi ter-se constatado que os
danos sofridos no veículo transportador de um carregamento de bolachas
tinham sido inferiores ao do próprio carregamento, já que durante a noite
estas foram repartidas por alguém que ali passou – e se serviu...
Podia ainda relembrar, com mais pormenor um julgamento no
Tribunal Plenário, o primeiro na Primavera Marcelista, cheio de
expectativas e de tensões, em que o meu sempre saudoso Amigo António
Carqueijeiro pediu ao Desembargador Presidente para, no autorizado
interrogatório directo aos seus representados, manter o tratamento por tu
que era o habitual, uma vez que companheiros da equipa de rugby de
Direito, privilégio esse que logo aproveitei, face ao precedente, uma vez
que o Juiz, atónito com o pedido, o deferiu sem ponderar a pública
cumplicidade que assim se estabeleceu. Foi um momento bonito, que
aliás chocou o então Bastonário, que me disse que tal atitude lhe parecia
inadequada, tendo-lhe respondido que, pelo contrário e dada a natureza
política do processo, tinha sido uma postura com muita importância
desmistificadora e dessacralizadora.
ANTÓNIO MARIA PEREIRA

António Maria Pereira tem uma longa e brilhante carreira. Iniciou-se


na advocacia em 1950. Desde logo, evidenciou qualidades excepcionais.
Permitiram-lhe atingir um estatuto ímpar na profissão. É dirigente da
A. M. Pereira, Sáragga Leal, Oliveira Martins, Júdice & Associados,
prestigiado escritório de advogados que dispensa apresentação.
Destacou-se na actividade política, particularmente como deputado à
Assembleia da República.
É coleccionador de arte, possuindo obras valiosíssimas.
Desempenha cargos directivos em Câmaras de Comércio e no
American Club.
É muito conhecido pelo seu activismo na defesa dos direitos dos
animais.
Verdadeiro gentleman à moda antiga, cultiva genuína modéstia.
Talvez por isso, relata um delicioso episódio ocorrido no início da sua
carreira. Designou-o por “julgamento das bananas”. Bon appétit…

O julgamento das bananas


Passou-se nos anos 50. Tinha acabado de me formar e de me inscrever
na Ordem dos Advogados e eis que, por milagre, consigo o meu primeiro
cliente: o dono de um restaurante da rua do Ouro, que ainda lá existe,
onde eu ia com frequência e cujo dono, sabendo que eu já era advogado,
me procura pedindo assistência jurídica.
Como ainda não tinha escritório a consulta fez-se numa das mesas do
restaurante.
Tratava-se de uma acusação deduzida pela antiga Intendência Geral
dos Abastecimentos (actualmente Inspecção Geral das Actividades
Económicas) por especulação no preço de venda de bananas.
Aceitei, orgulhosíssimo, este meu primeiro caso profissional e pus-me
imediatamente em acção. A primeira medida foi mandar fazer uma toga à
costureira da minha mãe. Todos os trabalhos de costura que ela tinha em
curso foram suspensos perante a exaltante tarefa de confeccionar o traje
profissional para o Dr. António, que ela quase tinha visto nascer.
Seguiu-se o delineamento da estratégia de defesa. Como o crime
consistia na venda de bananas a preço superior aos praticados
correntemente no mercado, conclui que se pudesse demonstrar que os
preços praticados pelo meu cliente não ultrapassavam os correntes teria
conseguido desfazer a acusação.
Como obter essa prova? Pareceu-me que se apresentasse no
julgamento testemunhas exibindo recibos de contas pagas noutros
restaurantes nas quais viessem descriminados os preços das bananas
consumidas, superiores ao preço das bananas objecto da incriminação,
teria conseguido o meu objectivo.
Essa estratégia obrigou-nos, a mim e ao meu cliente, a jantar em vários
restaurantes nos quais sistematicamente pedíamos como sobremesa
bananas. Coleccionadas umas dúzias de facturas, seleccionei as que na
rubrica “bananas” apontavam preços superiores aos praticados pelo meu
cliente. Assim consegui organizar um dossier de defesa que me pareceu
imbatível.
Aproximava-se entretanto o temeroso dia do julgamento. Nas
vésperas, o stress tomou conta de mim. A concentração tornava-se-me
cada vez mais difícil e o meu sono era irregular e frequentado por
pesadelos em que me via em situações desesperadas na audiência,
expulso pelo juiz, esquecido do discurso, acusado pelo cliente, eu sei lá
que mais horrores...
Na noite que precedeu o julgamento praticamente não consegui pregar
olho. Mas o dia começou e lá me arrastei, mais stressado que nunca, para
o antigo Tribunal Correccional no Calhariz. Visto a toga e ocupo a
secretária destinada aos advogados, aguardando a chegada do
meritíssimo e do Delegado do Ministério Público.
Passados uns minutos, estes chegam, envergando as suas becas negras
e sentam-se nos lugares respectivos. O escrivão grita: “todos de pé!”
Após o que me aproximei dos magistrados para os cumprimentar.
Todo este ritual acentuava a solenidade do momento, que para mim era
uma iniciação histórica.
Aberta a audiência, o oficial de diligências foi buscar o réu e indicou-
lhe a cadeira que lhe era destinada. Seguiram-se as perguntas da praxe e
passou-se à inquirição da primeira testemunha a qual, mostrando um
recibo, confirmou que o preço das bananas que ela havia comprado no
mercado era superior ao praticado pelo meu cliente. O mesmo aconteceu
com a segunda e terceira testemunhas. Tudo corria portanto, tal como
previsto, da melhor maneira. Ao ponto de me parecer vislumbrar através
do modo como o juiz interrogava as testemunhas e ouvia os seus
depoimentos, que ele estava a aderir à tese da defesa.
Eis senão quando...
Eis senão quando, vindo do fundo da sala e avançando a passos largos
em direcção a secretária do juiz, o oficial de diligências interrompe
abruptamente a inquirição da testemunha e anuncia, excitado, com voz
cavernosa:
“Senhor Dr. juiz, desculpe interromper, mas está lá dentro uma
testemunha a ofender V. Exa.!”
Perante o insólito da situação, há uma perplexidade geral. O
interrogatório pára e o juiz, estupefacto, pergunta:
- “O que é que o senhor está para aí a dizer?”
A resposta veio de imediato, peremptória:
- “É uma testemunha do réu que está lá dentro a ofender gravemente
V. Exa.!”
- “O que é que o Sr. quer dizer com isso”, pergunta de novo e já
agastado o juiz.
A nova resposta agravou a situação:
- “Não posso dizer mas é uma ofensa muito grave a V. Exa.”
Perdendo de vez a paciência o juiz increpa o funcionário:
- “Explique-se lá, homem, o que é que aconteceu?”
Perante o tom peremptório do juiz o oficial de diligências, não
podendo arrastar mais a situação, explicou-se finalmente:
- “Então se o Sr. Dr. juiz manda eu digo: é a testemunha Nascimento
que anda lá dentro a dizer em voz alta que o Sr. Dr. juiz antes de julgar
as bananas, devia levar uma banana pelo cu acima!!!...
Foi como se um raio tivesse caído na sala de audiências. Risinhos e
murmúrios preencheram os momentos de grande tensão e confusão que
se seguiram a esta insólita declaração. Até que o juiz retomou o controle
da situação: “Está suspensa a audiência por duas horas” – decretou – “e
os autos vão de imediato ao Ministério Público para dedução da acusação
pelo crime de injúria a magistrado contra a testemunha Nascimento,
seguindo-se o seu julgamento. Só após prosseguirá o presente
julgamento. Nomeio o Sr. Dr. António Maria Pereira defensor oficioso
do réu Nascimento.”
Senti que o universo desabava sobre mim. A extrema ansiedade de que
estava possuído naquela minha fatídica estreia duplicava perante o
catastrófico desenvolvimento dos acontecimentos. Que ia eu fazer em tão
angustiante emergência?

Mas antes de relatar o que seguiu, façamos um passo atrás para


explicar o que tinha sucedido na sala onde as testemunhas – incluindo o
Sr. Nascimento – aguardavam ser chamadas a depor.
Era um compartimento escuro, com banquetas em madeira e ali as
testemunhas tinham aguardado durante toda a manhã para serem
chamadas a depor, o que as tinha deixado mal dispostas. O Sr.
Nascimento, ajudante de notário, que era um homem extrovertido e
apoplético, de faces coradas, tinha acabado de almoçar. Como era seu
hábito, comera bem e bebera melhor. Já tinha perdido a manhã inteira na
sala das testemunhas e tudo indicava que teria de aguardar mais algum
tempo até ser chamado a depor. Para quebrar a incómoda monotonia da
situação, o Sr. Nascimento começou, em voz alta, a dizer graçolas sobre
bananas – tema central do julgamento. As outras testemunhas riam e
contavam, também elas, outras histórias de bananas.
Eis senão quando, em plena euforia bananal, intervém o oficial de
diligências com um ríspido: “pouco barulho, estão a prejudicar os
trabalhos do tribunal”.
Vai daí o Sr. Nascimento que, como ajudante de notário que era, não
estava habituado a esse tratamento, antes pelo contrário, insurge-se e
exclama: “O Sr. não manda em mim, eu falo quando quero!”
“Não fala não senhor” responde em tom desabrido o oficial de
diligências, “olhe, que eu vou fazer queixa do Sr. ao juiz...”
Cada vez mais furioso e ainda sob os efeitos do vinho copiosamente
ingerido ao almoço, o Nascimento sobe a parada: “Vá lá fazer queixa à
vontade e diga a seu juiz que para perceber de bananas devia era meter
uma pelo cu acima!!!”

Explicado o incidente e fazendo das tripas coração tentei defender o


que era quase indefensável. Comecei por falar com o Sr. Nascimento
convencendo-o a entrar na ordem pedindo desculpa ao juiz e explicando
que se tinha excedido por que tinha bebido um pouco de mais ao
almoço...
Reaberta a audiência, procedeu-se ao primeiro julgamento, do Sr.
Nascimento, arguido do crime de injúria a magistrado. Graças à
atenuante da embriaguez foi condenado a 4 meses de prisão com pena
suspensa. Seguiu-se a continuação do julgamento do meu cliente das
bananas que foi absolvido por não se ter provado o crime de especulação.
Depois desta angustiante estreia profissional contraí uma tal alergia às
bananas que a sua simples visão me provocava enjoos. A alergia durou
algum tempo mas hoje já me considero curado...
ANTÓNIO PIRES DE LIMA

Durante o triénio de 1999-2001, António Pires de Lima exerceu as


nobres funções de Bastonário da Ordem dos Advogados.
Foi eleito pelos seus pares com larguíssima vantagem. Não foi grande
a surpresa.
O Bastonário António Pires de Lima vinha advogando com grande
sucesso e brilhantismo. Digo Bastonário, porque não é inteiramente
correcta a expressão “antigo bastonário” e muito menos “ex-
bastonário”. Os advogados que ascendem a essa elevada posição
conservam o título, mesmo depois de concluído o seu mandato.
Pires de Lima tinha já adquirido grande notoriedade por obter ganho
de causa em importantes matérias de difícil resolução. Foi advogado nos
mais importantes processos. Tornou-se famoso pela lealdade, extrema
competência e profundo saber.
Não surpreendeu, por isso, que a esmagadora maioria dos advogados
o quisessem como seu bastonário.
António Pires de Lima é conhecido como o pai da arbitragem em
Portugal.
Muitos conflitos, por vezes envolvendo elevadíssimas quantias, não
são levados a tribunal.
As partes em conflito preferem que o litígio seja resolvido através de
um conjunto de árbitros. Estes apreciam a questão. Chegam a uma
decisão que tem o valor de sentença.
Têm sido inúmeros os importantíssimos casos apreciados por Pires de
Lima.
Muitos deles assumiram particular relevância pelos montantes
pecuniários em causa.
Mas do ponto de vista humano, julgo que o processo de arbitragem de
maior valia terá sido o “caso dos hemofílicos”.
A propagação da SIDA ainda se encontrava no seu início. As defesas
eram reduzidas. A esperança de vida dos infectados era curta.
Como infelizmente sucedeu noutros países, em Portugal muitos
hemofílicos receberam transfusões com sangue contaminado.
O Estado não se furtou à responsabilidade. Assumiu o pagamento de
indemnizações. O problema era apurar o quantitativo para cada um dos
casos.
Se a matéria fosse levada a julgamento no tribunal, as sentenças
seriam proferidas após o falecimento das malogradas vítimas. Era quase
certo. Entretanto, os doentes suportavam o sofrimento e os tratamentos.
António Pires de Lima meteu mãos à obra. Liderou uma organização
de arbitragem. Em tempo recorde, foram atribuídas e pagas as
indemnizações aos infectados. Hoje, desgraçadamente eles já não se
encontram entre nós. Mas devem a este brilhantíssimo causídico o facto
de se ter feito a justiça possível, com enorme rapidez.
Como Bastonário, exerceu as funções com elevada determinação e
sempre em defesa da realização da justiça. Nunca encarou o Ordem
como o sindicato ou o lóbi dos advogados. Reconheceu aos seus pares o
papel primordial que desempenham. Mas nunca esqueceu que a máquina
da justiça pressupõe a coordenação entre todos os agentes nela
envolvidos.
Entre as inúmeras obras que deixou na Ordem, destaco o
desenvolvimento da formação dos advogados estagiários.
Foi durante o seu mandato que foram criados os patronos-
formadores. São advogados experientes que, na comarca onde exercem,
acompanham o trabalho de todos os estagiários ali inscritos.
Dotado de rara habilidade, Pires de Lima assegurou que os encargos
com esta importante função sejam suportados pelo Ministério da Justiça.
É que esta inovação permitiu melhorar em muito as defesas oficiosas.
Todos ficam a ganhar com uma melhor formação dos candidatos à
advocacia.
As suas intervenções públicas assumem sempre um peso enorme. É
uma autoridade que todos ouvem com a máxima atenção.
Tive o enorme prazer de trabalhar com António Pires de Lima no
Conselho de Gestão do Centro de Estudos Judiciários, que ambos
integrávamos. Eram ainda dele membros Cardona Ferreira, Presidente
do Supremo Tribunal de Justiça, Cunha Rodrigues, Procurador-Geral
da República, Jorge Lacão, Deputado, Silva Paixão, Juiz Conselheiro,
Pereira Batista, Juiz Desembargador e Figueiredo Dias, Professor da
Universidade de Coimbra.
António Pires de Lima dá-nos a conhecer três situações.
Ao primeiro, o autor chama-lhe “um caso de justiça”. Eu diria: um
caso de humildade, própria dos profissionais mais competentes.
Terminou com a libertação do arguido.
Denominou o segundo como “caso de injustiça”. Eu pugno que o
advogado cumpriu o seu papel da melhor forma.
O último recebeu a designação de “sucesso ou progresso do
processo”. É um bom exemplo de como a persistência, perspicácia e
poder de argumentação do advogado pode vencer a lentidão da justiça.

“Um caso de justiça”


Ao tempo o furto de uso de viatura dava lugar a prisão preventiva.
O caso era o de um menor que, numa brincadeira de mau gosto
resolveu utilizar a viatura estacionada na via pública. Não a arrombou. O
proprietário esquecera as chaves. Era a oportunidade para que o rapaz
demonstrasse aos amigos que sabia conduzir um carro.
Tirou-o do local, avançou uns duzentos metros e voltou ao ponto de
partida. Uma condução perfeita, hábil e que faria inveja a muitos
experimentados condutores.
Ao aplauso dos amigos juntou-se o par de algemas de uns policiais que
haviam ocorrido ao apelo do proprietário.
Então a prisão preventiva durava umas semanas porque o investigador,
além de competente, revelava uma grande preocupação pelos direitos do
cidadão, especialmente do que se presumia inocente – era o tempo que
alguns barbudos de bolsos cheios de Europa chamavam de fascismo: Por
aquilo (não, por isto), umas semanas depois o Colectivo reunia para o
julgamento.
Apresentei a contestação, uma extensa peça, fruto de longa ponderação
sobre qual seria a melhor defesa para o arguido.
Concluída a prova e produzidas as alegações, o Senhor Juiz Presidente
determinou que me aproximasse conjuntamente com o representante do
M. Público. Ouviu-o perguntar: o Senhor Advogado não preferiria
substituir esta contestação por um “oferecia o merecimento dos autos” ou
“peço justiça”?
Estendi a folha que levava comigo.
No decorrer da audiência já tinha concluído que me excedera nos
argumentos.
Evitou-se uma condenação.
E muitas se evitam quando o defensor oficioso em vez de fantasiar,
limita a sua intervenção àquilo que pretende: que se faça justiça.

“Um caso de injustiça”


O acidente ocorreu na 24 de Julho, em Lisboa.
Para a definição da responsabilidade era essencial apurar qual o local
do embate e isto pela diferente visibilidade entre as viaturas, conforme as
diversas versões que se confrontavam.
A audiência foi longa, conflituosa, mas culminou com absolvição do
meu representado.
Este, mostrava-se emocionado e grato, e revelou o motivo:
é que prevalecera a minha convicção de que o acidente fora
em local que culpava o terceiro, mas a verdade é que o acidente
tinha ocorrido em outro local.

“Um sucesso ou o progresso do processo”


A acção foi intentada por uma entidade reparadora de elevadores que
pretendia cobrar o preço dos serviços prestados ao proprietário do
edifício que tinha prometido vender a quase totalidade das fracções
autónomas, já habitadas pelos promitentes compradores. E, por isso,
requereu a intervenção destes, entre eles um personagem que, ao tempo,
exercia de Ministro de um dos múltiplos Governos de Portugal pós 25 de
Abril.
Para a sua citação foi indicado o Ministério e a sua localização no
Terreiro do Paço.
A certidão negativa é um privilégio da eficácia:
Tendo-me deslocado ao Ministério X, no Terreiro do Paço, e
perguntado aí pelo Sr. A... foi-me dito que não era conhecido,
nem mesmo no serviço para onde se diligenciou apurar da sua
localização.
Insisti que o Diário da República data e estampa diplomas que traziam
a assinatura do citando e que, das duas uma: ou a publicação era de
confiar ou o Ministério Público deveria averiguar de quem usurpava as
funções.
A citação concretizou-se.
LUÍS LAUREANO SANTOS

Não hesito em afirmar que Luís Laureano Santos foi o meu primeiro
Mestre de Introdução ao Direito.
Eu tinha dezasseis anos de idade. Não era sequer aprendiz da matéria.
Considerava-me um curioso pelo mundo das leis, há muito determinado
em ingressar na Faculdade de Direito.
Os ensinamentos de Laureano Santos vinham através da televisão.
Ele era já um advogado de renome. Tornara-se conhecido não só pela
extrema habilidade na barra dos tribunais, em defesa dos seus clientes.
As suas frequentes aparições televisivas e o modo como se exprimia de
forma tão clara e didáctica tornaram-no extremamente popular.
Júlio Isidro convidou-o para organizar uma rubrica semanal,
integrada num programa de grande audiência: “Festa é Festa”.
Simulava-se um julgamento. Duas partes em litígio colocavam-se
perante um juiz. Cada um deles esgrimia os seus argumentos. No final,
era proferida a sentença, determinando quem tinha razão. Laureano
Santos explicava tudo de maneira acessível a qualquer leigo.
O formato era semelhante ao posteriormente adoptado pelo programa
“O Juiz Decide”, conduzido com grande êxito pelo Juiz Desembargador
Ricardo da Velha.
Luís Laureano Santos ocupou o cargo de Vice-Presidente da Ordem
dos Advogados.
É palestrante e conferencista de renome.
Conta-nos um episódio repleto de humor. No meio, surge uma
situação que não é assim tão rara nas audiências de julgamento.
Tal como sucede nas salas de cinema, há quem não resista aos
poderes de Morfeu em pleno tribunal.
Certa vez, eu tive de interromper uma audiência. De modo muito
educado e discreto, o procurador informou-me que necessitava de se
aliviar.
Noutra ocasião, tinha à minha frente seis arguidos, todos da mesma
família. O julgamento foi, naturalmente, longo. A dada altura,
inesperadamente, um deles, já de idade, decidiu levantar-se. Dirigia-se à
porta de saída. Perguntei-lhe onde ia. A resposta veio da esposa,
sentada no banco dos réus:
- Tem de ir ao urinol. É que senão ele faz mesmo aqui.
Na assistência, a contenção dos risos foi difícil.
O caso de Laureano Santos ocorreu no tribunal militar, em ambiente
austero.

O estalo
Corriam, já adiantados, os tempos do PREC (os do Processo
Revolucionário Em Curso). Tão adiantados que, depois de um período
em que valeu quase tudo, já era então possível instruir e levar a
julgamento processos de natureza criminal contra alguns protagonistas
do mesmo PREC, em razão de excessos no exercício de funções.
Um desses excessos traduziu-se em busca e apreensão manifestamente
ilegais, com danificação e destruição de património num hotel de Lisboa,
tendo ficado lesado um cidadão estrangeiro.
Talvez por isso, por ser estrangeiro, o cidadão achou por bem ter a
ousadia de se queixar, o que não era fácil nesses tempos. E fez bem,
porque o processo chegou a julgamento. Em tribunal militar, pois claro,
porque a queixa fora apresentada contra dois oficiais, um muito
conhecido como comandante do PREC e que ordenara a operação (ou
talvez não, o julgamento logo diria) e outro, por sinal de patente superior
ao primeiro - a hierarquia, durante o PREC, ganhou lógica própria -, que
comandara, por ordem do primeiro (ou talvez não) a respectiva execução.
O tribunal militar, ou melhor, aquele tribunal militar, não estava
instalado em Santa Clara. Funcionava num segundo andar de um edifício
um pouco mais abaixo, para os lados do Tejo. Sala comprida mas
apertada, com acusação e defesa separadas por escassos dois ou três
metros, frente a frente. O banco dos réus (então os arguidos eram réus)
era ao fundo, logo a seguir às bancadas de acusação e defesa, estando os
lugares reservados aos membros do tribunal no lado oposto, a nível
ligeiramente superior.
O anúncio do julgamento dera algum brado na comunicação social.
Quando se iniciou audiência, sala cheia e muitos jornalistas, assumiu-se
um ambiente de evidente tensão e circunstância.
Como advogado do Assistente, ao lado do Promotor (não a par: um
estrado, também ali, separava ambos por alguns centímetros de altura)
estava o autor destas linhas, representando o cidadão estrangeiro
pretensamente lesado. Na defesa, dois ilustres advogados, um deles
particularmente conhecido, com histórico de grandes e reconhecidamente
meritórias intervenções cívicas.
Cabe aqui dizer que este último Colega, Dr. X..., era (era, porque a lei
da vida já o levou) uma pessoa encantadora e profundamente solidária.
Com um senão: facilmente irascível, quando se irritava tendia a querer
levar tudo à sua frente e a tudo querer esmagar com o que lhe parecia ser
a força da sua razão. À irascibilidade somava uma voz grave, possante,
daquelas que, baixinho, mesmo tão só a esboçar um segredo, se ouvem
ao fundo das salas. Até sem querer. E tinha uma outra característica: era
frequente, sem alheamento, adormecer tranquilo em qualquer lado,
mesmo em circunstâncias menos informais.
A sessão iniciou-se com os rituais do processo. Passando por libelo e
contestações, ouviram-se os réus e passou-se à inquirição das
testemunhas. Pelo meio algumas picardias leves entre acusação e defesa,
ou melhor, entre o advogado do Assistente e o seu colega Dr. X..., da voz
possante.
A certo passo, o advogado do Assistente entendeu ser altura de
formular um requerimento. Concedida a palavra, ditou para a acta. E foi
manifesto o incómodo que o que estava a ser dito causava à defesa.
O advogado Dr. X..., num sussurro irritado e incontido, segredou,
baixinho, baixinho, para o Colega que estava a seu lado: “ainda dou dois
pares de estalos a este tipo”.
O vozeirão, baixinho, baixinho, ouviu-se praticamente em toda a sala.
Ouviu o advogado que estava a ditar... ouviu o Promotor... ouviram os
membros do tribunal... e ouviu, aí talvez menos bem, uma parte da
assistência. O Advogado no uso da palavra parou. Fez pausa e fixou o
Colega à sua frente. Criou expectativa, respirou fundo e interpelou o
Secretário do tribunal: “quer fazer o favor de me ler o último
parágrafo?”. O secretário leu. O advogado do Assistente continuou:
“exactamente a seguir à última palavra que escreveu ponha um traço.
Sim, um traço. E a seguir ao traço escreva: e embora correndo o risco
de levar dois pares de estalos, já anunciados, do Colega Dr. X... que
representa o Réu F...., novo traço, requer o que antes tinha em mente
requerer e que era....”.
O ambiente desconcertou-se, entre sorrisos de conveniência. O do
Colega Dr. X..., porventura a dar para o amarelo esbatido, mas ainda
assim um sorriso.
Continuou o julgamento.
Com o correr do tempo pela tarde fora, testemunha atrás de
testemunha, aconteceu o inevitável: o Dr. X...., em plena audiência de
julgamento... adormeceu. Mão a apoiar o queixo, cotovelo assente na
bancada, cara voltada para os réus (e, assim em disfarce, para o lado
oposto ao da bancada dos Juízes), nada o atraiçoaria se não fosse...
também ressonar.
Todos fizeram de conta não dar importância de maior ao embaraço.
Estatuto é estatuto e o Dr. X... merecia, justamente, consideração e
estima de toda a gente.
O advogado do Assistente interrogava uma testemunha. O depoimento
decorria pacificamente.
Com naturalidade o advogado levantou-se para exibir um documento
do processo e parou encostado à bancada de defesa, atrás da qual o Dr.
X... passava pelas brasas.
De súbito, sem mais aquelas, de mão aberta – PAM! -, deu uma
tremenda palmada na bancada da defesa e, virado para a testemunha (de
costas para o Dr. X ...) elevou a voz e disse, com quase gritada
indignação: “isso não é verdade!”
A testemunha apanhou um susto, por nada ter dito que pudesse ter
provocado tamanha reacção. Mas o Dr. X...., despertado pela sonora
palmada na bancada e pela agitação do braço que nesta se apoiava, deu
um salto – mas que salto! - e despertou, olhos abertos, balbuciando
qualquer coisa que nem ele percebeu o que era.
“Meu colega” – disse o advogado do Assistente, afastando-se da
bancada – “desculpe ter perturbado o que sonha de sua justiça....”.
Os sorrisos desdobraram-se e o tribunal achou por bem fazer um
intervalo na audiência. Que todos aproveitaram para, em conjunto,
tomarem o café que era praxe estar disponível nos tribunais militares.
Pelo caminho alguém disse: “...tenha paciência, mas não pode
provocar-me desta maneira!”. E em resposta, uma voz tranquila: “...
provocar, eu!? Vamos mas é ao cafezinho, p’ra tirar o sono...”.
LUÍSA NOVO VAZ

Luísa Novo Vaz é conhecida a nível nacional como excelente colunista


de referência. A sua experiência como advogada de sucesso, aliada às
qualidades literárias, permitem-lhe redigir crónicas admiráveis, que os
leitores muito apreciam.
Goza de grande prestígio em Viana do Castelo, onde possui escritório.
Como se não lhe bastasse dar vazão à clientela que a procura em
razão da sua competência, ainda tem outras actividades.
É presidente da delegação da Ordem dos Advogados em Viana do
Castelo.
Em cada comarca, existe uma representação da Ordem. Compete-lhe
manter devidamente apetrechadas as salas dos advogados existentes nos
tribunais. Presta apoio logístico aos causídicos que se encontram de
serviço. Organiza as escalas de defensores para indivíduos que são
detidos e sujeitos a interrogatório. Em muitos casos, são realizadas
palestras e confraternizações.
É necessário empenho para presidir à delegação. Não é qualquer um
que se disponibiliza para tal missão, exercida em regime de
voluntariado.
Ainda assim, Luísa Novo Vaz assumiu esse encargo na sua Cidade.
Fá-lo com muito êxito.
Dirige ainda o Gabinete de Consulta Jurídica local, destinado a
providenciar aconselhamento a pessoas carenciadas.
A denominação que deu ao seu caso é sintomático: “Graciana e o
desgosto”.
A viúva pede uma indemnização pelo sofrimento causado com a perda
do marido num estúpido acidente de viação.
Atribuir compensações por estragos materiais é muito simples: basta
analisar recibos ou mandar proceder a avaliações.
Mas a vida de um juiz complica-se muito quando se trata de reparar
danos morais ou não patrimoniais. É muito difícil calcular o grau de
sofrimento, amargura, dor e angústia.
Soube de um caso de atropelamento de uma jovem.
O advogado afirmou, por escrito, que antes do acidente, ela
apresentava umas pernas bem feitas, das quais se orgulhava. Tinha
muito gosto em usar mini-saia. Por causa das cicatrizes e demais
sequelas, tinha deixado de usar tal peça de vestuário. Estimava os danos
numa considerável quantia.
No processo encontravam-se várias fotografias da senhora em corpo
inteiro, captadas antes do sinistro. Embora seja matéria subjectiva, a
opinião generalizada era de que o causídico tinha toda a razão quanto
aos factos.
Não deve ter sido tarefa fácil para o juiz decidir a causa no
respeitante à indemnização pedida.
Há especialistas que formulam tabelas. Consideram as dores físicas e
a mágoa psicológica. Dizem que uma fractura na rótula dói cinco vezes
mais do que um golpe na mão. Ou que a morte de um filho é dez vezes
pior do que a perda do emprego. Mas neste domínio, julgo que a
aritmética nunca será muito exacta.
Presume o Código Civil que o desaparecimento de um familiar
corresponde à perda de um ente querido. Contudo, o caso da viúva
Graciana dá que pensar…

Graciana e o desgosto
Ouviu o seu nome gritado no átrio entre um rumor de vozes.
Respondeu “presente”, levantando timidamente a mão. Como se ainda
andasse na escola e não tivessem passado trinta anos sobre a sua vida.
A funcionária continuou a chamada. O átrio foi-se esvaziando de gente
e de vozes e Graciana, ali, pregada à parede como um retrato. A preto e
branco.
A funcionária perguntou:
- A senhora é testemunha?
- Sou a viúva.
- Não lhe perguntei o estado civil.
Graciana respondeu que estava ali por causa da audiência da morte do
marido, que não vira o acidente, que...
Levou-a para uma sala e disse-lhe:
- Sente-se aí – apontou-lhe um banco corrido - e levante-se quando
entrar o juiz.
Graciana nunca tinha visto um juiz ao vivo e decidiu, à cautela, ficar
de pé. Olhou para a advogada que lhe sorriu, não percebendo que os
olhos dela gritavam por socorro. Falavam entre si, os advogados.
Era cedo ainda, não lembra a hora, mas lembra-se de ter lavado um
tanque de roupa, de ter feito o almoço para o marido levar para a fábrica,
de ter dado de comer às galinhas e ao cão, de ter feito as camas. As
miúdas estavam na cozinha a tomar o pequeno almoço feito de pão e de
uma água de cevada. Só.
Foi o patrão que lhe trouxe a notícia.
- Houve um acidente. O Honório pegou na carrinha e caiu pela
ribanceira abaixo. Não lhe pude valer. Uma desgraça.
Graciana olhou para o cão, deitado ao seu lado, com o focinho entre as
patas.
- Aquela mania de querer ser motorista - desculpava-se o patrão -
matou-o.
A voz parecia-lhe longe. Mania, essa e muitas outras. Ali, na sua
frente, a notícia de Honório. Um torpor a subir-lhe o corpo e um silêncio
a tomar conta da casa. Graciana poucos filmes tinha visto na sua vida.
Sem saber explicar, via-se numa cena de filme, cuja fita, de repente,
encravara.
- Levantem-se!
Todos se levantaram. O filme recomeçar, agora com outro registo. Era
alto, o juiz - pensou Graciana. Podem sentar-se. E todos se sentaram.
Vieram as testemunhas, uma a uma. O Ribeiro, colega de Honório,
disse que o falecido pegou na carrinha com ordem do patrão. O Mendes
não viu nada, o Guerreiro, polícia reformado, viu o veículo estatelar-se
contra o penedo no fundo da ravina, a Fernanda sabia da paixão do
Honório por automóveis. Joaquim garantiu ao tribunal que Honório tinha
prática na condução, que os travões da carrinha é que eram fracos. E
disse da sua razão de ciência: era o mecânico da empresa.
Graciana olhava a pintura que estava por detrás do juiz: Moisés, o seu
povo e as doze tábuas da lei. Lembrou-se do livro da doutrina que tinha
uma imagem parecida.
A advogada alegava no processo que Graciana e Honório se davam
bem, eram felizes um com o outro. Que era imenso o desgosto de
Graciana com a morte do marido e incerto agora o futuro económico da
família.
Passou-se à fase da inquirição das vizinhas que vinham depor a essa
matéria, de prova fácil, claro.
- Davam-se bem a Graciana e o Honório? Era amigo dela
e das filhas?- perguntou a advogada.
- A senhora doutora acha que aquilo era dar-se bem? Uma mulher
apanhar desde que se levanta até que se deita? Com o que ele tivesse à
mão? Acha?
- Lá teriam os seus desentendimentos... como é natural...
- Olhe, senhora doutora, chame-lhe o que quiser. Pois o que tenho a
dizer - a testemunha virou -se para o juiz - é que , no dia da morte, o
desgraçado atirou-a contra a parede, chamou-lhe nomes que eu não digo
diante de V. Exª e que se não fosse o meu homem ir lá acudir quem
estava agora no cemitério era ela. Aquilo foi sempre uma pouca
vergonha.
- Mudemos de assunto. Apesar de tudo, ele era o sustento da família,
não era?
A testemunha deu uma gargalhada A oficial de justiça fez-lhe sinal. O
juiz, lá no alto, ouvia.
- Gastava tudo em vinho. A coitada da mulher ainda tinha que lhe dar
do pouco que ganhava "ao jornal" para o tabaco.
A advogada deu por findo o interrogatório. Entrou outra testemunha.
- Parece que eles não se dariam lá muito bem, que teriam os seus
desentendimentos... apesar de tudo isso, Graciana sofreu desgosto com a
morte do marido, não sofreu?
- Isso de sentimentos cada um sabe de si, mas que agora ela está num
céu isso está. Olhe, senhora doutora, ela está agora muito melhor, ela e as
filhinhas. O Honório não lhes fez falta nenhuma.
Foi então que o juiz olhou para Graciana: serena, longe dali.
AGUIAR PEREIRA

Manuel José Aguiar Pereira é um reputado juiz de círculo em


Santarém.
O cargo corresponde ao do antigo juiz corregedor.
Sempre que a pena aplicável ao arguido pode vir a exceder os cinco
anos de prisão, ele é julgado por um colectivo de três juízes.
Daí que Aguiar Pereira realize julgamentos em Santarém, Almeirim,
Coruche e Cartaxo. São as quatro comarcas do círculo ribatejano.
Para demonstrar o carácter humano deste emérito jurista, vou relatar
um caso curioso.
Enquanto desempenhei funções de juiz no tribunal de Almeirim,
coube-me o processo de uma poderosa rede de tráfico de droga. A maior
parte dos arguidos estava em prisão preventiva. Entre eles, contava-se
uma senhora. Era conduzida da cadeia de Tires até Almeirim, nos vários
dias em que decorreu o julgamento. A assistência era tão numerosa que
eu tinha de pedir à GNR para cortar o trânsito na rua.
As penas aplicáveis eram pesadas. O julgamento tinha de ser
realizado em tribunal colectivo.
Eu era um dos três juízes que compunha o colectivo, tal como Aguiar
Pereira.
Chegou o dia da derradeira sessão. Ouvimos as alegações do
Procurador, dos Advogados e as últimas declarações dos arguidos.
A matéria era complexa. A sentença nestes casos denomina-se
acórdão, por ser elaborada por vários juízes.
Competia-nos recolher à sala de reuniões e deliberar sobre o destino
dos arguidos. A sentença só seria lida uma semana mais tarde, data em
que os arguidos voltariam ao tribunal.
Mas havia uma certeza. Não se tinha feito prova de que a arguida
presa em Tires estivesse implicada na rede criminosa.
Ainda na sala de audiências, Aguiar Pereira demonstrou a sua
rapidez de raciocínio. Virou-se para mim e para o outro juiz. Usando um
baixo tom de voz, disse:
- Colegas, parece-vos que teremos de absolver a arguida detida, não
é?
Concordámos imediatamente.
A natureza excepcionalmente humana deste juiz veio ao de cima:
- Nesse caso, não se justifica que ela permaneça mais uma semana na
cadeia. Vamos determinar de imediato a sua libertação. Revoga-se a
prisão preventiva. À cautela, não nos comprometemos quanto à decisão
final. Depois, ela ouve a leitura da sentença já em liberdade. Votam
favoravelmente?
Claro que assim sucedeu. A arguida foi de imediato colocada em
liberdade.
Diz-se que a actividade do juiz é solitária. É verdade. Na hora de
decidir, estou sozinho.
Mas é possível discutir matérias duvidosas de interpretação da lei.
Abro o meu Código Penal e reflicto em conjunto com outro jurista.
Foi o que sucedeu enquanto residi no Ribatejo.
Muito aprendi com o saber de Aguiar Pereira. Foram inúmeras as
lições que ele me ensinou. Esteve sempre disposto a perder o seu tempo
para conversar comigo.
Aguiar Pereira é o Presidente da Associação Forense de Santarém.
Trata-se de uma importante organização famosa entre os juristas de
todo o país. É composta por juízes, magistrados do Ministério Público,
advogados e funcionários judiciais.
Com frequência, são organizados debates, seminários e conferências.
É notável a elevada participação de pessoas de todos os cantos de
Portugal.
A Associação tem ainda a virtude de promover a confraternização
entre juristas. São organizados torneios desportivos, rallies paper e
encontros.
Aguiar Pereira é também muito conhecido por integrar encontros
internacionais de magistrados, onde representa Portugal com grande
distinção.
Conta-nos o caso de um suposto empresário, homem de negócios ou
“businessman”.
São palavras frequentemente deturpadas. Abarcam imensas
actividades dos mais diversos ramos. De modo que há quem se aproveite
destas expressões para descrever a sua área de actuação, mesmo
quando ela é algo obscura.
Mostra-nos também que, para esse tipo de indivíduos, as negociatas
não param mesmo quando se encontram presos.

Negócios na cadeia
Na zona da floresta central e albufeiras, onde, apesar dos incêndios,
sempre existiu uma das mais extensas manchas florestais de pinheiro da
Europa, florescem também, como é normal, os negócios relacionados
com as transacções de madeira.
Nem sempre claros.
Fernando, madeireiro, de profissão e de sobrenome dela derivado,
homem corpulento e figura típica na região e na profissão, acabara, por
causa de negócios mal conduzidos ou demasiado ambiciosos, por ir parar
à prisão.
Mário, sem profissão conhecida – para além de “empresário” de vários
ramos – era homem de muitos e variados expedientes que singrara na
vida à custa de um bom casamento e de alguns negócios bem sucedidos.
Perante a proximidade da adesão do país à União Europeia e com o
auxílio de um gerente bancário amigo, Mário decidiu fazer um
investimento vultuoso na construção de uma fábrica de transformação de
cobre.
Mundos e fundos são fáceis de remover para quem se apresenta como
pessoa séria e sabe aproveitar os entusiasmos alheios. Os fundos
necessários à construção da fábrica chegaram.
Mas como a situação financeira de Mário era já então muito precária,
da fábrica só o projecto se viu.
Os fundos não chegaram para pagar os muitos e avultados cheques
devolvidos pelos bancos e cujos portadores batiam já à sua porta.
De tal sorte – ou falta dela – que Mário acabou por ir parar à mesma
prisão em que estava o Fernando, madeireiro da região do pinhal.
Antes de ser preso Fernando orientara pessoalmente o corte e
preparação para queima de madeira de oliveira e sobreiro que tinha
adquirido.
À falta de melhor local, a madeira ficou depositada numa sua
propriedade, ao ar livre, à beira de um caminho, por sinal próximo do
local para onde estava projectada a construção da fábrica de
transformação do cobre.
Na cadeia, Mário foi ganhando a confiança dos restantes reclusos, a
que não era certamente estranho o estatuto social de que gozava
anteriormente à sua prisão. Gradualmente foi também ganhando a
confiança dos guardas prisionais e do Director da prisão.
Com boas maneiras, afável e parecendo permanentemente disposto a
ajudar a resolver qualquer problema, cedo se tornou uma espécie de
consultor comunitário daquele pequeno estabelecimento prisional.
Estávamos à beira do Inverno.
O Estabelecimento Prisional dispunha de uma caldeira para
aquecimento alimentada a gasóleo mas as habituais dificuldades
orçamentais impediam o funcionamento desse equipamento.
A alternativa, logo sugerida pelo recluso Mário ao chefe dos guardas,
era a de comprar lenha, mais barata e fácil de encontrar na região na
quantidade suficiente para aquecer as salas de convívio.
Aliás, ele próprio tinha lenha de oliveira e sobreiro, seca e pronta a
utilizar, que se dispunha a vender, a preço amigo, ao Estabelecimento
Prisional.
O Director do Estabelecimento Prisional concordou, agradecendo tão
providencial colaboração.
Depois de terem sido tomadas as necessárias medidas de segurança, o
próprio Mário se dirigiu, acompanhado pelo Director e por cinco guardas
prisionais, ao exacto local onde se encontrava a lenha por ele vendida ao
Estabelecimento Prisional.
A lenha foi carregada pelos guardas prisionais e transportada até à
cadeia.
Até aqui a mais perfeita normalidade.
Na cadeia foi pedida a colaboração de vários reclusos para descarregar
e guardar a lenha.
Fernando, madeireiro, saudoso do cheiro e do toque da madeira
dispôs-se a ajudar.
Porém, ao avistar a lenha susteve o gesto e disse, sinceramente
surpreendido: “Mas... mas esta lenha é minha!!!!”
Mário viria a ser julgado, além do mais, pelo crime de furto da lenha
que vendeu ao Director da Prisão em que aguardava julgamento.
JOEL TIMÓTEO RAMOS PEREIRA

Joel Timóteo Ramos Pereira é juiz no Tribunal de Oliveira de


Azeméis.
Anteriormente, tinha exercido funções docentes no domínio do Direito
do Trabalho.
É muito considerado como magistrado e enquanto conferencista. Tem
proferido várias palestras. Sobretudo em duas áreas: informática e
julgados de paz.
Redigiu diversos livros de Direito, que têm constituído grandes
sucessos de vendas. São obras de carácter prático. Escritas em
linguagem acessível, abordam os temas jurídicos mais recentes. No
campo editorial, Joel Pereira está sempre um passo à frente. Entre os
seus livros, contam-se os títulos “Julgados de Paz”, “Direito da Internet
e Comércio Electrónico” e “Prontuário de Formulários e Trâmites”.
Para além disso, é autor de artigos de divulgação em publicações
periódicas.
Joel Timóteo Ramos Pereira dinamiza uma obra de enorme valia.
Trata-se de um famoso site na Internet, denominado Verbo Jurídico
(www.verbojuridico.net).
É de extrema utilidade. Contém a legislação mais importante,
devidamente compilada e actualizada. Permite o acesso a sentenças
proferidas nos mais diversos tribunais. Possui uma base de dados com
informações extremamente úteis para juristas. Inclui ainda um directório
de juristas portugueses, com os respectivos contactos.
Este instrumento na Internet é totalmente concebido e suportado
financeiramente por Joel Pereira. Conta com a cooperação de outros
juristas. Mas todo o trabalho de planeamento e manutenção é por ele
realizado.
O elevado número de utilizadores revela a importância deste site.
O caso por ele relatado contém mensagens importantes.
Fala de um homem que se endividou e arruinou a sua vida devido ao
terrível vício do jogo. Desapareceu de circulação para não enfrentar os
processos por cheques sem provisão. Quando nada fazia esperar,
espontaneamente dá notícias vindas do outro lado do Atlântico.
Enquanto exerce a sua função, o juiz está obrigado a nunca esquecer
o seu lado humano.
Joel Timóteo Ramos Pereira recorda este dever, no texto que
denominou “o frequentador de casinos contumaz”.
Mas começa com uma citação de um emérito Professor alemão.

O frequentador de casinos contumaz

“O direito não é uma pura teoria. É uma força viva”


JHERING, Der Kampf Um’s Recht
O que dá vida, interesse e fascínio ao direito é a materialidade, a
acção, a eficácia e as circunstâncias de facto que estão na base de cada
processo. Ainda que reduzida, a minha vida profissional já foi assaltada
por diversos episódios, uns tristes, outros jocosos, emergentes todos eles,
dos processos  que não são meros papéis cosidos entre si, mas
vivências de quem espera ou de quem se procura furtar à Justiça.
Um desses episódios foi protagonizado por um jovial cidadão, amante
da noite, dos seus prazeres e encantos, mas também dos seus terríveis
vícios. Vamos chamá-lo de “António”.
O António era um prosélito subserviente do jogo. Passava horas a
jogar com os amigos durante o final da tarde e na busca incessante de um
prazer que só os seus amantes sabem descrever, deslocava-se à noite a
salas de jogo e a casinos para assim satisfazer esse seu vazio existencial.
Porque o salário do seu trabalho era insuficiente para solver as suas
dívidas de jogo  salário esse que iria em breve cessar pela declaração
de falência da sua entidade patronal , recorreu aos seus companheiros
mais próximos, argumentando com promessas e apelando à emoção e ao
sentimento de quem por ele nutria amizade, a fim de obter, através de
empréstimos, a proporção do dinheiro extra que permitia a continuidade
da sua libertinagem.
Em contrapartida, entregava cheques, não só do valor do empréstimo,
como também de chorudos juros, sempre apetecíveis por quem lhe fazia
o favor de emprestar o capital. Era inevitável e os cheques começaram a
vir devolvidos por falta de provisão, pois as interpelações para
pagamento dos seus amigos era inúteis e estes, apresentando os cheques
em desconto ao banco, constataram o óbvio – a inexistência de fundos
suficientes que permitissem solver os seus créditos.
Nessa altura, porém, os cheques sem provisão constituíam a prática de
um ilícito criminal. Um dos seus credores, desesperado, veio a um (dos
mais de uma dezena) dos processos requerer em linguagem poética:

“Manuel…, triste e sem dinheiro


Vem requerer a passagem de mandados de captura
Contra o António, grande trapaceiro
Alegre e frequentador de casino.
O requerente está convicto
Que após a sua prisão, pagará tudo
E finalmente terá tino”.

Os mandados de detenção foram emitidos, porém o António havia


desaparecido de vista. Nem nos casinos, nem nos bares, nem nos locais
que constituíam o seu domicílio secundário. O que não era de estranhar,
já que com o dinheiro dissipado, sem crédito bancário, sem trabalho,
dificilmente poderia satisfazer o seu vício.
O tempo decorreu e em virtude do desconhecimento do seu paradeiro,
foi declarado contumaz. Finalmente, estava judicialmente declarada a
proibição do António em obter quaisquer documentos oficiais, a
realização de quaisquer registos junto de quaisquer autoridades públicas.
E, obviamente, a anulabilidade de quaisquer negócios jurídicos de
natureza patrimonial que fossem celebrados pelo mesmo (cfr. art.º 337.º,
n.º 1 do Código de Processo Penal).
Porém, antes que fosse cumprido o arresto dos bens do António, veio a
sua esposa, mediante processo cível, que por força do destino também
nos foi distribuído, requerer o suprimento do consentimento do seu
marido (que estava declarado contumaz). O António e a sua esposa eram
proprietários de uma quota-parte num determinado prédio e a esposa
pretendia vender as respectivas quotas-partes, mas para o efeito era
necessário o consentimento do António, que por não poder prestá-lo por
força da sua contumácia, deveria tal consentimento ser suprimido por
declaração judicial.
Questão curiosa e inédita, esta, já que para recorrer ao suprimento
judicial de consentimento, não basta que tenha havido recusa de
consentimento necessário ou ausência de determinada pessoa que torne
inviável a obtenção do referido consentimento. Antes, é necessário que a
possibilidade de suprimento judicial se encontre expressamente prevista
no direito substantivo, in casu, a lei civil por ser esta a lei reguladora do
acto jurídico para cujo consentimento a esposa do António instaurou a
referida acção. Sem entrar na apreciação técnica da questão, a decisão de
procedência da acção de suprimento do consentimento implicava a
negação do próprio instituto da contumácia, pois estaria aberta a porta
para que a anulabilidade dos negócios jurídicos, estatuída ope legis no
art.º 337.º do CPP e passível de arguição pelo Ministério Público,
enquanto defensor da legalidade, ficasse desprovida de qualquer sentido
útil, considerando a unidade do sistema jurídico. A sentença assim
proferida propiciaria a prática de actos inválidos e estaria desde a sua
prolação em expressa violação dos efeitos de validade exigíveis de uma
decisão judicial. Razão por que foi tal pretensão julgada improcedente.
Mas o encontro processual com o António não terminou aqui.
Passaram-se os anos. Passamos a exercer funções noutro Tribunal.
Por força do “destino”, para quem nele acredite, voltamos a encontrar
o António, num processo judicial de inventário dos seus pais. Agora,
estava ele no Brasil e era um dos interessados directos. Devidamente
citado para os termos do inventário, remeteu um requerimento,
manuscrito. Aos nossos olhos, uma escrita de um homem benemérito,
filantropo. Já não o alegre e habitual frequentador de casinos contumaz,
mas um homem extremamente religioso... Eis alguns extractos dessa sua
carta:
«Através desta carta na qual escrevo por minhas próprias mãos e
lucidez perfeita, faço algumas observações abaixo […]. Não tenho
recursos para ir a Portugal resolver esse problema, para mim seria até
um sonho, mas como diz o ditado, é sonhando que se vive. É meu desejo
que essa quantia, seja ela grande ou pequena seja doada a um orfanato
de crianças abandonadas. Também pedia ao Mmo. Juiz que na hora da
entrega fosse feita uma oração em nome dos meus pais falecidos. Eles
não tiveram a coragem de criar uma família unida, pois é nela que todos
devem participar das alegrias e das tristezas, da fartura e da pobreza.
Com esta carta vai um Xerox da minha identidade, seja ela necessária».
De facto, um homem mudado.
Estes episódios mostram os valores e os princípios com os quais o
Tribunal e, maxime, o Juiz enfrenta diariamente. Particularmente, o da
ética, que se estrutura num autêntico referencial os valores básicos que
orientam o comportamento do homem em sociedade. A ética serve para
relevar os valores e os princípios que devem nortear a existência humana,
servindo em termos práticos, para aprimorar e desenvolver o sentido da
moral e influenciar as condutas, em face da realidade. Há circunstâncias
na vida, atrozes por natureza, que permitem um reflectir da forma de
comportamento pessoal e social. O alegre frequentador de casinos terá,
após um período de desgraça e perseguição judicial, encontrado um rumo
para a sua vida. Esse é também um dos fins da justiça. Saibamos
administrá-la em conformidade.
GIL TEIXEIRA

Gil Teixeira, conhecido advogado da praça lisboeta, tem-se destacado


em vários domínios do Direito.
É profundo conhecedor do Direito Comercial e Empresarial. Tornou-
se grande perito na matéria.
Mas não se furta a assumir a defesa de um arguido em processo penal,
em casos complicados.
Recordo-me de uma intrincada situação. Envolvia uma senhora, que
se afirmava completamente inocente. Estava-se no âmbito de um alegado
crime económico. O julgamento prolongou-se ao longo de vários dias. A
produção de prova por Gil Teixeira, que representava a arguida, foi
completamente convincente. A tal ponto que o próprio Procurador pediu
também ele a absolvição. E foi a senhora mandada em paz pelo juiz.
Gil Teixeira tem sido cronista em vários jornais. Não limita a sua
coluna ao campo jurídico. Adopta um estilo frontal e corajoso, a par de
grande clareza no modo como escreve. Não receia dizer o que pensa.
Aqui não nos conta um caso. Relata uma sucessão de infelizes
episódios, com um happy end, em torno de um indivíduo cujo nome
verdadeiro não descortina. Previne que apenas descreve um décimo dos
infortúnios sofridos pelo desgraçado.
Várias lições se podem retirar dos “Azares de Custódio”, nome
escolhido para a narração.
Nunca se deve subestimar a existência de um processo judicial no
tribunal. Há que assegurar um constante acompanhamento. Uma certa
incúria marca o início dos azares do protagonista.
A franqueza e disponibilidade para colaborar com a justiça
normalmente resultam em benefício do arguido. A candura e sinceridade
de Custódio conduzem a um final feliz.
Em tom ligeiramente crítico, direi que Gil Teixeira se excedeu na
modéstia. Não revela quem é a outra personagem que permitiu esse
desfecho: o advogado que aceitou o caso.

Os azares de Custódio
Os azares que vou contar, à parte o nome da personagem que não é
verdadeira, como é de norma, tudo o resto, para se descobrir a verdade,
deve ser multiplicado por dez. Também é das normas que o nome
utilizado seja o mais vulgar, Zé ou da Silva. Dado que Zé é um nome
nacional, preferi utilizar outro menos conhecido, no caso Custódio. Fica-
se a saber, portanto, que o nome Custódio não corresponde à verdade,
sendo-o todo o resto da história, melhor a verdadeira história está nove
décimos além do que fica escrito. Isto para que a aritmética fique certa.
A escolha do nome também não foi inocente. Trata-se de uma
homenagem a um Colega de trabalho, quando fui manga-de-alpaca
contrafeito e que quando chegou da guerra do Ultramar, porque
entretanto tinham chegado outros, antes do 25 de Abril, foi despedido
porque não havia lugar para ele. Isto embora a lei da altura dissesse que
os mancebos que fossem defender a pátria em terras que não eram deles
tinham que ser reintegrados nos seus postos de trabalho. A solução, na
altura, era fácil. O mancebo era admitido no seu posto de trabalho por
uma ou duas semanas e depois era despedido. Sem processo disciplinar.
A história dos processos disciplinares é uma moda que vem mais tarde.
Contemos a história do Custódio que o não é. Custódio, na sua
juventude, era conhecido como “pacífico”. Incapaz de participar numa
disputa, ainda que fosse para defender os seus interesses. Em situação de
conflito preferia sempre dar o que era dele do que discutir com alguém.
Uma boa alma, como se costuma dizer. Quase ingénuo, trabalhador,
amigo da família. Natural do Norte. Franzino, mas rijo. Experimentou
quase todas as profissões. Até fotógrafo para o que possui um jeito muito
especial. Está relacionado com a sua sensibilidade.
Um dia, depois de ter feito a tropa, estava num café e alguns
desconhecidos envolveram-se numa acalorada discussão que acabou com
uns copos e umas cadeiras partidas. Custódio, o pacífico, amigo de toda a
gente, resolve intervir. Desaparta-os. A custo consegue acabar com a
contenda. Como é óbvio o dono do estabelecimento não gostou dos
estragos e chamou a autoridade. Quando os beligerantes pressentem a
chegada da autoridade dão às de vila Diogo, fogem. O dono do
estabelecimento relaciona o bom do Custódio com os maus que lhe
causaram estragos e aquele é indiciado como co-autor do crime de dano.
O auto é levantado e o processo corre o seu curso.
Custódio, o bom, mais tarde, porque as coisas não estavam bem por cá,
como agora, resolve emigrar para a Suiça. Parte sem problemas.
Esquece-se do processo, quem não deve não t(r)eme. Na Suiça, a mãe
um dia escreve-lhe e diz-lhe que há um problema qualquer com o
Tribunal. Tem de pagar uma indemnização, embora lhe tenham dito, à
mãe, que não era nada de importância. O Custódio pacífico diz à mãe
que não tem nada a ver com o Tribunal. Pergunta-lhe quanto é que “eles”
querem. A mãe informa-o. O Custódio faz contas. Não deve nada a
ninguém, primeiro. Porém, há o custo das passagens e a possibilidade de
perder o emprego quando regressar da viagem a Portugal. A
“indemnização” é menor do que o preço das passagens. Pondera. É uma
injustiça. Estão a aproveitar-se dele. Tem de decidir. Decide. Resolve,
contrafeito, pagar a quantia que sente que lhe é extorquida. Acontece
que o Custódio, sem saber, é julgado à revelia, ou seja pensou que
pagando a “indemnização” tudo seria arquivado. Não foi, quer dizer, o
Custódio, o pacífico deixou de o ser, quer dizer passou a ter cadastro, à
revelia, é verdade. Uma pequena coisa, que se transformaria numa
desgraça. Anos depois, essa “pequena coisa” haveria de ajudá-lo a levá-
lo à cadeia. Como? Um azar nunca vem só.
Custódio, o pacífico, que sem saber já não o era, regressou a Portugal.
Jovem, com iniciativa, facilmente consegue encontrar emprego. Deita a
mão a qualquer coisa. Continua para seu bem e mal a ser o ingénuo,
desfasado do mundo cão. Custódio além de ser pacífico por natureza é
extremamente religioso. Aberto, é verdade, mas um verdadeiro crente em
Deus. É católico dos que vão à missa e não se esquecem dos sermões e
da prática entre segunda-feira e sábado. Pratica efectivamente.
Possuidor de todas as qualidades que vão rareando nos mortais, o
Custódio foi convidado por um senhor dizendo-se industrial de carnes
para seu empregado. Custódio pacífico aceita. O patrão, pessoa
“honesta”, convence o Custódio a abrirem uma conta em conjunto
porque em caso de necessidade também poderia assinar cheques.
Custódio não vê nada de mal no assunto, antes pelo contrário, era uma
prova de confiança do patrão.
A conta é aberta. “Por acaso” o Custódio nunca chega a ter em seu
poder nenhum cheque. O patrão, um belo dia, desaparece da circulação.
O Custódio que confia em todos é forçado a mudar de ares. Parte para o
Sul, do outro lado do rio Tejo. Facilmente encontra outro emprego. É
dinâmico, tem iniciativa. Começam os azares de Custódio.
Tem um irmão e uma irmã que adora. Adora os sobrinhos, adora a
mulher. Todos gostam do Custódio. Fatidicamente o irmão do Custódio
sofre um acidente de trabalho e falece em circunstâncias trágicas. Deixa
mulher e dois filhos menores adoráveis. O Custódio não suporta a morte
do irmão e entra em profundo estado depressivo. Perde a combatividade,
a alegria, a força de vencer. Começa a ficar afectado psicologicamente.
Além dos dois sobrinhos, filhos do irmão tragicamente falecido, tem
outro sobrinho filho da irmã por quem tem uma predilecção muito
especial. Custódio não tem filhos, de modo que os filhos dos seus irmãos
são os seus filhos. Ainda o cadáver do irmão estava quente, recebe outra
notícia não menos trágica. O filho da irmã teve um acidente de
motorizada e ficou em estado de coma. Espera-se o pior. Custódio, esse
coração bom, não aguenta mais esta tragédia, com uma agravante. Fora
ele, Custódio que oferecera a motorizada ao sobrinho em estado de coma
em consequência do acidente. Moralmente sente-se culpado do
acontecido. Se o sobrinho viesse a falecer ou ficasse inválido teria sido
ele o responsável.
Custódio vive dias de angústia e de sofrimento moral. É neste quadro
que um dia é notificado por outro Tribunal com a acusação de ter
passado cheques sem cobertura de elevado montante. A pena, em
abstracto, antes da condenação seria elevada e como tal promovia-se a
sua prisão. Os cheques tinham sido passados pelo seu “amigo” patrão
industrial de carnes, o qual, para o efeito, falsificara a assinatura do
Custódio. A tragédia não iria ficar por aqui. A sua depressão psicológica
aumenta.
O bom do Custódio, sem culpa, é agrilhoado na cadeia de Setúbal
durante alguns meses. Atormentado decide separar-se da vida. Um dia o
seu amigo Luís, amigo do seu amigo, entretanto falecido, pede a um
advogado para tomar conta do caso. Este aceita. O julgamento dos
cheques falsificados e sem provisão é feito na linda terra de Ovar. A
assistência é muita. Custódio, humilde e digno, revela em público toda a
sua destroçada vida. A emoção percorre a sala do Tribunal. O queixoso,
como é óbvio, não reconhece o arguido Custódio. O povo percebe que há
um inocente sentado no banco dos réus. Soluços incontidos perturbam o
ambiente tenso. Uma onda de solidariedade espalha-se em redor do
Custódio. As alegações do advogado acolhem o sentimento colectivo. O
Tribunal reage e interrompe a audiência, retirando-se para conferenciar.
Dez minutos depois o Colectivo profere o veredicto, o Custódio pode ir
em paz como um homem livre, devolvendo-lhe a vida que fora
injustamente aprisionada.
MIGUEL REIS

Miguel Reis, nascido em 1951, é originário de Coimbra. Aí formou-se


em Direito.
Todavia, tem exercido advocacia um pouco por todo o lado.
A sede da sua sociedade é em Lisboa. Mas tem escritórios e
correspondentes noutros locais do país e no estrangeiro. O próprio
Miguel Reis encontra-se inscrito como advogado no Brasil.
A actividade é, portanto, internacionalizada.
Granjeou prestígio em duas vertentes. Junto das comunidades lusas
noutros países e entre os estrangeiros residentes em Portugal.
Uma das suas colaboradoras do escritório de Lisboa é russa e domina
a língua portuguesa. Trata-se de um factor importantíssimo para a
comunidade de imigrantes oriundos daquelas paragens.
Não admira, por isso, que Miguel Reis me tenha oferecido uma
crónica, relatando um caso entre um português e um russo. Abarca, no
meio, um elemento do sexo feminino.
A Teresa, minha mulher, é também advogada.
Já teve alguns casos envolvendo imigrantes de leste.
O mais delicado começou por uma consulta de um casal, grandes
amigos de meus pais. Os consulentes são pessoas da alta sociedade
algarvia.
A filha mais nova é engenheira civil. Acabara de se divorciar, ficando
com a guarda do único descendente de três anos de idade.
Nos meios profissionais, a jovem tinha conhecido um ucraniano. À
falta de melhor, ele encontrava-se a trabalhar como pedreiro. Era culto,
delicado e certamente sedutor. Os dois iniciaram um relacionamento
afectivo. Rapidamente, passaram a viver juntos, em união de facto.
O imigrante era casado. A mulher e os filhos mantinham-se no país de
origem, para onde ele ia enviando uma certa quantia mensalmente.
Na perspectiva de melhorar a vida profissional do companheiro, a
recém-divorciada decidiu constituir uma empresa de construções para o
ucraniano gerir. Gastou dinheiro a rodos.
Os pais estavam incomodadíssimos com a situação. Era realmente
algo de muito de sensível.
Consultaram a Teresa. O objectivo era fazer tudo para que terminasse
a relação entre o imigrante e a filha.
Não havia código ou lei que se aplicasse à matéria.
A engenheira era maior e vacinada. O ucraniano residia e trabalhava
legalmente no país.
O papel de advogada terminava ali.
A Teresa só podia tentar ajudar como amiga da família.
Mas voltemos ao caso de Miguel Reis. Esse deu origem a um processo
criminal. O advogado chama-lhe “amores e suspeições na antecâmara
de um caso penal”.

Amores e suspeições na antecâmara de um caso penal


Lubov tem 40 anos. Nasceu no distrito de Vinhetza, na parte oeste da
Ucrânia, já à beira da Polónia e vive com seu marido Mikai em Aveiras
de Cima.
Mikai é mestre de obras e trabalha numa oficina de automóveis; ela
limpa automóveis na mesma oficina.
António, português, de 40 e tal anos de idade era, ate há poucos dias,
amigo da família. Tão amigo que jantava lá em casa com frequência,
tendo Mikai chegado ao limite do que um homem pode fazer por outro
homem.
Foi mesmo assim. Num belo dia António disse a Mikai:
- A Lubov é uma óptima cozinheira. Adoro as comidas que ela faz.
E respondeu-lhe Mikai:
- Se gostas assim tanto dela, podes levá-la para tua casa.
António despediu-se de Lubov, a maneira portuguesa, com um beijo
na face dela, coisa que… nunca, mesmo nunca, nenhum ucraniano lhe
fizera, porque nunca Mikai o consentiria.
- Agora, porque já a beijaste, vais mesmo levá-la António. Mas já
agora deixa-me beijar-te também...
E enfiou-lhe um beijo na boca, à boa maneira ucraniana. Não há
melhor maneira de humilhar um homem do que beijá-lo na boca...
Tradições são tradições. Os ucranianos não deixam beijar a mulher e
os portugueses não gostam de ser beijados por homens na boca.
António partiu sem Lubov. Mas tudo se alteraria no dia seguinte.
Naquela noite disse-lhe Mikai:
- Eu sei que gostas dele; até deixas ser beijada. E ele gosta de ti; até
diz bem da tua comida, que se normalizam, igual há que me fazes há
vinte anos. O melhor é ires viver com ele. Vai dizer-lhe amanhã, levas as
tuas coisas que eu até te ajudo a levá-las. Afinal sou amigo do António.
Mal se levantou, Lubov foi a procura de António.
- E melhor eu ir viver com António que me parece homem de bem e
gosta de mim e dos meus cozinhados. Nunca ouvi um elogio destes do
Mikai. O Mikai também é um homem de bem. Era o melhor da nossa
aldeia mas... Ele já não quer viver comigo, porque se o quisesse não me
dava ao António. Ah, mas eu até já estou cansada do bem e mal que
passei com ele. Foi a prosperidade no princípio, mas depois veio a
perestroika e a fome... Vou mesmo viver com António. Novo país vida
nova... Pelo menos esse bebe menos... Não se embebeda aos sábados.
E lá foi dizendo que queria viver em paz, à procura de António, a
quem contou toda a história e a quem jurou um amor ingénuo até ao fim
da vida.
Ao fim da tarde, depois da jornada de trabalho, António levou-a no seu
carro, para irem buscar as coisas a casa do amigo Mikai.
- Concordo; fico com a tua mulher, como foi combinado. Vimos
buscar as coisas...
Ela ficou calada, olhando para ambos e fixando-se no olhar turvo de
Mikai, que mudou toda aquela bondade do dia anterior para um raiva
turva.
Depois do sol que brilhara para aquelas duas almas veio a tempestade.
Mikai perdera a memória, assegurando que tudo aquilo que lhe
contavam era um sonho. Ou então António perdera o juízo, se não
ocorrera, ao invés coisa nefasta para um ucraniano como seria a simples
hipótese de a sua mulher ser ter apaixonado por outro homem.
Mikai transformou-se num toiro bravo, como os que, ali perto,
pastavam na lezíria. E António não tinha jeito para toureiro.
- Levares a minha mulher? E as nossas coisas? Levas é as tuas coisas
que ela não precisa delas porque eu ganho o suficiente para lhe dar
presentes.
Nisto agarrou no vaso de flores que António ofereceu a Lubov com
tanto carinho na Páscoa passada e entregou-lho, pedindo que ele saísse
pela porta.
António sentiu-se enganado. Para ele tinha havido um contrato que
Mikai estava a violar.
- Ou és homem de palavra ou és um porco. Melhor: és um cabrão, um
cornudo, que eu já dormi com a tua mulher cinco vezes.
Mikai empurrou-o até à porta mas António não queria ir embora.
Forçou a porta com a intenção de lhe roubar a esposa e o obrigar a
cumprir o contratado.
Quando a porta cedeu caíram ambos nos braços um do outro
enrolando-se numa luta de galos com a galinha a ver, embevida no seu
orgulho. Todas as mulheres gostam que os homens lutem por elas e todas
escolhem o vencedor.
O Mikai venceu e Lubov ficou, talvez a pensar que aquele António
que tinha a coragem de beijar na cara a frente do marido não era tão forte
como esse gesto mostrava.
ÍNDICE

Prefácio .............................................................................................................. 3

CAPÍTULO I – O JUIZ
Prólogo ............................................................................................................... 4

O aniversário do canídeo ................................................................................... 5


Queixas de pedofilia .......................................................................................... 6
Condenado a 50 anos de cadeia ......................................................................... 9
Arguido e vítima ficam amigos ....................................................................... 11
A dificuldade de retirar queixa ........................................................................ 13
Médicos, juízes e loucos .................................................................................. 15
30 homicídios por dia ...................................................................................... 17
Os mestres do crime......................................................................................... 19
Fotografias secretas ......................................................................................... 21
Christiania ........................................................................................................ 23
Sem dinheiro para advogado ........................................................................... 25
Crianças e armas de fogo ................................................................................. 27
Vizinhos desavindos ........................................................................................ 29
Escutas telefónicas ........................................................................................... 31
Conversas alheias............................................................................................. 33
Como deve um juiz vestir-se ........................................................................... 35
Fúria na estrada ................................................................................................ 37
As cadeias portuguesas .................................................................................... 39
Dinheiro deitado à rua ..................................................................................... 41
Um país sem Supremo Tribunal ...................................................................... 43
Um prisioneiro VIP.......................................................................................... 45
Um golpe de mestre ......................................................................................... 47
Riqueza sem trabalho ....................................................................................... 49
Testemunha em risco de vida .......................................................................... 51
Roubar no supermercado ................................................................................. 53
Fumo com fogo ................................................................................................ 55
Mentir ao juiz ................................................................................................... 57
Convencer o juiz .............................................................................................. 59
Um hotel no Limoeiro ..................................................................................... 61
Mais esperto que os outros .............................................................................. 63
Um vendedor nato............................................................................................ 65
Aprender a ser juiz ........................................................................................... 67
Música portuguesa ........................................................................................... 69
Uma cadeia muito especial .............................................................................. 71
A prostituição e a publicidade ......................................................................... 73
Justiça e comunicação social ........................................................................... 75
Julgamentos à americana ................................................................................. 77
Estranhos enganos ........................................................................................... 79
Preso por engano.............................................................................................. 81
A formação dos juízes ..................................................................................... 83
A pena de morte ............................................................................................... 85
Os futuros juízes .............................................................................................. 87
Uma oferta irrecusável? ................................................................................... 89
A vingança serve-se fria .................................................................................. 92
A loira e o anel ................................................................................................. 94
Cartas anónimas ............................................................................................... 96
Intenção de cometer o crime ............................................................................ 98
Suicídio nas prisões ....................................................................................... 100
Justiça e vasos partidos .................................................................................. 103

CAPÍTULO II – O ADVOGADO
Prólogo ........................................................................................................... 106

Uma proposta indecente ................................................................................ 107


Um casamento terminado .............................................................................. 112
Uma desgraça nunca vem só ......................................................................... 113
Quando uma criança mata outra .................................................................... 115
Um menor que não ouve os conselhos dos pais ............................................ 117
O pai que não se preocupa com o filho ......................................................... 119
Uma morte trágica ......................................................................................... 121
Vizinhos desavindos ...................................................................................... 125
Muito cuidado ao assinar um contrato-promessa .......................................... 127

CAPÍTULO III – OUTROS CASOS


Prólogo ........................................................................................................... 132

Guilherme da Palma Carlos ........................................................................... 133


António Maria Pereira ................................................................................... 143
António Pires de Lima ................................................................................... 148
Luís Laureano Santos .................................................................................... 153
Luísa Novo Vaz ............................................................................................. 157
Aguiar Pereira ................................................................................................ 161
Joel Timóteo Ramos Pereira .......................................................................... 165
Gil Teixeira .................................................................................................... 170
Miguel Reis .................................................................................................... 175

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