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2023carvalho CursodeCriminologiaCrticaBrasileiraAula12aed
2023carvalho CursodeCriminologiaCrticaBrasileiraAula12aed
net/publication/369708115
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1 author:
Salo Carvalho
Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ); Unilasalle (RS)
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All content following this page was uploaded by Salo Carvalho on 01 April 2023.
Curso de Criminologia
Crítica Brasileira
(dimensões epistemológicas, metodológicas e políticas)
Editora Revan
Copyright @ 2022 by Editora Revan
Revisão
Salo de Carvalho
Thais Weigert Bressan
Capa
Alexandre Gosi
Impressão e acabamento
(Em papel off-set 75g. após paginação eletrônica, em tipo Optane, c. 11/13,2)
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5604-013-4
24/08/2022 29/08/2022
Mari
Com você qualquer lugar é casa
Ipanema ou Trastevere; Quartier Latin ou Bom Fim
Porque a tua risada é antídoto contra o tédio
A tua inteligência é arma contra o obscurantismo
E o teu amor é vida contra qualquer forma de isolamento.
Sumário
8
5.6. Criminologia e direito penal em Clovis Bevilaqua /174
5.7. “Medicalização do direito” e “desorientação epistemológica”: a
crítica de Tobias Barreto /179
5.8. “Nina Rodrigues, apologista do branco”: a crítica de Guerreiro
Ramos à antropologia racista /184
5.9. Positivismo e racismo nas Ciências Criminais /190
Aula 6: A criminologia socialista e a crítica anticarcerária de Rober-
to Lyra (com Lucas Vianna Matos) /199
6.1. Entre o direito penal normativo e o direito
penal científico /199
6.2. O “indisciplinado” positivismo sociológico de esquerda /203
6.3. Estatuto científico e conceito de crime /205
6.4. Criminalidade e questão racial /210
6.5. Crime e desigualdade social /212
6.6. Criminologia socialista: fundamentos e postulados /215
6.7. A crítica anticarcerária /222
6.8. Perspectivas do humanismo social /225
6.9. O legado da criminologia socialista e do rotulacionismo para a
criminologia crítica brasileira /227
9
Aula 8: Impactos da criminologia dialética na teoria do delito: esboço
de um modelo integrado crítico de ciências criminais /287
8.1. Normativo e empírico na teoria do direito e nas ciências
criminais /287
8.2. A dogmática penal e o conceito jurídico de delito /290
8.3. Teoria do direito e pluralismo jurídico /297
8.4. “Criminologia Dialética” e o(s) conceito(s) de delito /303
8.5. Analítica do crime: crítica à antijuridicidade formal /307
8.6. Analítica do crime: crítica à culpabilidade como juízo de
reprovação /315
8.7. Dogmática penal orientada pela criminologia (dialética) /326
10
10.3. Criminologia crítica e criminologia feminista: zonas de con-
vergência /384
(a) A ruptura crítica /385
(b) A ruptura feminista /389
10.4. Criminologia crítica e criminologia feminista: redefinições a
partir do rotulacionismo /394
10.5. Criminologia crítica e criminologia feminista: práxis antipo-
sitivista /399
11
12.6. Criminologia cultural: conceito em construção /473
12
14.6. A crise da crise da criminologia crítica /554
13
PARTE I: CRIMINOLOGIA CRÍTICA:
DIMENSÕES CONCEITUAIS
AULA 1
INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA CRÍTICA
(CONCEITOS OPERACIONAIS)
17
talvez com mais intensidade), na teoria do direito penal, é
quase um padrão que se apresente o estado da arte de deter-
minados institutos com ampla revisão de autores e correntes
dos países do Norte sem que se percorra minimamente o que
foi produzido em nossa margem Sul.
Muito provavelmente por essa razão a reflexão de Emici-
da tenha me tocado de forma tão profunda, soando como um
alerta sobre o estado das ciências criminais no Brasil: parece
que não temos tradição, que não somos “parte do legado de
gerações anteriores”. Em alguns casos, sinto que certas aborda-
gens parecem partir de um grau zero de conhecimento, como
se nada tivesse sido produzido anteriormente. E essa amnésia,
voluntária ou não, mas sempre útil ao pensamento colonizador,
resulta sempre em afirmações temerárias, ditas em voz baixa
pelos corredores das Faculdades como: “não existe crimino-
logia no Brasil”, “não se faz pesquisa criminológica por estas
bandas”, “a criminologia crítica é um projeto esgotado”.
Algumas destas assertivas escutei pessoalmente. Lem-
bro de uma, em especial, em um jantar oferecido por um
querido amigo. Eu estava em uma determinada capital para
uma conferência e este amigo organizou uma confraterni-
zação em sua casa. Ao fazer o convite disse que chamaria
os membros do seu grupo de pesquisa e também um jovem
criminólogo, recentemente titulado em um centro de pesqui-
sa estrangeiro (do Norte). Referiu, em tom de blague, que
gostaria que eu escutasse o que ele tinha para dizer sobre a
criminologia nacional, em especial a crítica. Durante o en-
contro, o pesquisador afirmou, mui enfaticamente, que não
se fazia pesquisa criminológica no Brasil – referia-se espe-
cificamente à pesquisa empírica, reduzindo o “fazer pesqui-
sa” ao “fazer pesquisa empírica” – e que, em consequência,
em nossa academia tudo se resumia a especulações teóricas.
Um pouco antes um dos alunos presentes havia me dito, em
sussurro, que o docente também repetia em sala de aula que
“criminologia crítica não existe”.
18
Apesar de não ter muita paciência para entrar neste
tipo de discussão, propus para o interlocutor um exercício:
“vou referir alguns pesquisadores que trabalham em algumas
Universidades brasileiras, começando pelas instituições do
interior do Rio Grande do Sul e depois da capital, por força
da minha formação, e em seguida dos demais Estados, e
você me diz se conhece e já leu alguns dos trabalhos dos
colegas”. O professor acenou positivamente e iniciei rela-
tando as investigações de Luiz Antônio Bogo Chies e Mar-
celo Oliveira de Moura, sobre pena e questão penitenciária,
na Universidade Católica de Pelotas; as pesquisas de Daniel
Brod Rodrigues de Souza e Bruno Rotta Almeida, sobre po-
lítica criminal e encarceramento, na Universidade Federal
de Pelotas; os trabalhos de Salah Khaled Jr., sobre crimi-
nologia cultural, de Fabiane Simioni e Elisa Celmer, sobre
criminologia feminista, e de Raquel Fabiana Lopes Sparem-
berger, sobre crimes ambientais, na Universidade Federal de
Rio Grande; as pesquisas de Ângela Espíndola, sobre jurisdi-
ção penal e acesso à justiça, de Rosane Leal da Silva, sobre
adolescentes em conflito com a lei, e de Rafael Santos de
Oliveira, sobre movimentos sociais e ativismo em rede, na
Universidade Federal de Santa Maria. Disse que ainda te-
ríamos alguns importantes centros de pesquisas no interior
do Rio Grande do Sul, em Universidades privadas ou co-
munitárias, com consolidados programas de pós-graduação,
como os da Universidade de Passo Fundo, Universidade de
Caxias do Sul e Universidade de Santa Cruz do Sul, mas que
passaria para a região metropolitana da capital, visto serem
volumosas as pesquisas em ciências criminais na Unisinos
(São Leopoldo), LaSalle (Canoas), Pontíficia Universidade
Católica e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto
Alegre), para depois “começar a subir” para Santa Catarina e
Paraná e os demais Estados do Sudeste, Centro-Oeste, Norte
e Nordeste.
19
Como a situação já estava bastante constrangedora, o
pesquisador me interrompeu mediante algumas “escusas ab-
solutórias” (técnicas de neutralização): “pois é, fiquei muito
tempo fora do país, talvez eu precise conhecer um pouco
mais do que se está produzindo por aqui”. Ainda tentei aler-
tar sobre o que significava a subordinação do pensamento a
um conjunto de ideias alóctones e sobre o impacto da filoso-
fia da liberação na criminologia latino-americana como con-
dição de se pensar crime e controle social em nossa margem
(autóctone), mas a turma do “deixa disso” mudou o rumo da
conversa. Indaguei, ainda, se o “jovem criminólogo” tinha
lido algum trabalho de Roberto Lyra Filho. Com a negativa,
sugeri fortemente a leitura de “Carta Aberta a um Jovem Cri-
minólogo” (1980), muito provavelmente um dos mais impor-
tantes textos da criminologia brasileira.
Quando retornei ao Rio de Janeiro, na época já lecio-
nava na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), contei o epi-
sódio para a Mari, que prontamente me interrompeu: “Salo,
sei que os debates foram bons, mas sinceramente não estou
interessada em discutir preconceitos da colonização etno-
centrista na mesa de jantar; acho que temos coisas muito
mais interessantes e divertidas para conversar”. Argumentos
irrefutáveis.
Naquela mesma semana, contatei o querido amigo
Thiago Fabres de Carvalho, mencionei o ocorrido e o convi-
dei para escrevermos um pequeno artigo sobre o “complexo
de vira-lata” que se consolidou nas ciências criminais do
Brasil. O convite ocorreu porque já havíamos conversado
sobre esse tema em razão de situação idêntica presenciada
por Thiago em um evento nacional de sociologia jurídica:
um metodólogo, então recentemente titulado no exterior,
manifestava espanto pela ausência de pesquisa criminológi-
ca no país e pela forte presença de “críticos” nas instituições
de ensino – como se o positivismo não fosse o mainstream
20
na academia e nas agências do sistema penal. A morte pre-
matura de Thiago impossibilitou concluir o projeto, embo-
ra tenha sido a inspiração para a discussão travada sob o
título “a resistência às ‘criminologias enlatadas’”, presente
na quinta aula do Curso (“A Criminologia Racista e o Pensa-
mento Contra-Hegemônico no Brasil”).
Neste contexto, a motivação principal da escrita do
“Curso de Criminologia Crítica Brasileira” foi (objetivo geral)
a de demonstrar a atualidade e a urgência da criminologia
crítica em nossa margem. Os objetivos específicos são (pri-
meiro) tentar mapear os discursos contra-hegemônicos pro-
duzidos pela criminologia brasileira, ou seja, as perspectivas
criminológicas que não se tornaram discurso oficial (mains-
tream), em especial o pensamento antipositivista; e (segun-
do) apresentar a construção, a consolidação, a crise e a crise
da crise da criminologia crítica brasileira.
O trabalho procura seguir e honrar os caminhos aber-
tos por alguns pensadores que considero meus maestros e
que tiveram um papel fundamental no desenvolvimento do
pensamento crítico em criminologia na América Latina (em
ordem alfabética): Afrânio Silva Jardim, Agostinho Rama-
lho Marques Neto, Alessandro Baratta, Alberto Guerreiro
Ramos, Amilton Bueno de Carvalho, Ana Lucia Sabadell,
Antônio Carlos Wolkmer, Augusto Thompson, Carlos Alber-
to Elbert, Cezar Bitencourt, Cristina Rauter, Eduardo Novoa
Monreal, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Ester Kosowski,
Eugenio Raúl Zaffaroni, Geraldo Prado, Gizlene Neder, He-
leno Claudio Fragoso, Jacinto Coutinho, João Mestieri, José
Geraldo de Souza Júnior, Juarez Cirino dos Santos, Juarez
Tavares, Julita Lemgruber, Lenio Streck, Lola Aniyar de Cas-
tro, Luiz Alberto Warat, Luiz Luisi, Maria Lucia Karam, Mas-
simo Pavarini, Ney Fayet de Souza, Nilo Batista, Ricardo
Timm de Souza, Roberto Aguiar, Roberto Bergalli, Roberto
Lyra, Roberto Lyra Filho, Rosa del Olmo, Rosa Maria Car-
21
doso Cunha, Sérgio Salomão Shecaira, Tobias Barreto, Vera
Andrade, Vera Malaguti Batista, Wanda Capeller, Yolanda
Catão, Zahidé Machado Neto.
Agradeço, em especial, aos professores Nilo Batista e
Vera Malaguti Batista pela inspiração e pelo incentivo, bem
como aos editores da Revan pela pronta recepção do projeto.
22
pesquisa fixado pelo mainstream: “um paradigma é aquilo
que os membros de uma comunidade científica partilham.
E, inversamente, uma comunidade científica consiste em ho-
mens que compartilham de um paradigma” (Khun, 1991, p.
219). O que se diz científico, portanto, é fundamentalmente
aquilo que um grupo de pessoas com autoridade diz que é
científico: “um paradigma governa, em primeiro lugar, não
um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes da ciên-
cia” (idem, p. 224). Não há uma ciência em essência, mas
disputa de poder (disputa pela fala autorizada) daquilo que
se pode dizer científico. Na proposição de Khun, a partir do
momento em que um paradigma se consolida na comunida-
de científica, passa a ser irrefletidamente reproduzido pelos
pesquisadores da área, configurando uma “ciência normal”.
Trata-se de um autêntico processo de divisão do traba-
lho científico, de um modo de produção do conhecimento,
no qual se estabelecem hierarquias em relação à autoridade
do saber. A ciência normal fixa os parâmetros da produção
do conhecimento, estabelece as fronteiras epistemológicas e
metodológicas do que é lícito e do que é ilícito pesquisar. O
paradigma dominante determina “(...) as formas e os campos
possíveis do conhecimento” (Foucault, 1991, p. 30).
Há crise de paradigmas quando a comunidade cientí-
fica identifica estranhamentos: limitação do objeto, insufici-
ência de métodos, novos temas e problemas, incongruência
entre meios e fins ou inadequação dos próprios fins. A crise é
comumente deflagrada por uma “ciência extraordinária” que
identifica essas inadequações, que aponta elementos exter-
nos não absorvidos ou internos desconfortantes. Trata-se de
uma atividade eminentemente subversiva desde a perspecti-
va da ciência normal. Há crise paradigmática neste momento
intermediário em que o paradigma vigente não satisfaz mais
a comunidade científica e o novo modelo (ciência extraordi-
nária) ainda não alcançou plena aceitação (consenso).
23
O objetivo de uma ciência extraordinária é o de impor
novos limites, métodos e fins à ciência, isto é, instaurar-se
como o novo paradigma dominante (ciência normal). O pro-
cesso é definido por Khun como revolução científica e é o
que permitiria o constante aperfeiçoamento do conhecimen-
to. Importante dizer, porém, que a crise não resulta necessa-
riamente na substituição do paradigma vigente, pois o velho
modelo pode readequar-se às novas demandas e relegitimar-
-se perante a comunidade científica.
Entendo que o modelo proposto por Khun não é plena-
mente aplicável à criminologia. Devido à sua configuração
interdisciplinar, coabitam no campo criminológico distintas
tradições, com temas e problemas próprios, e com dispu-
tas internas bastante nítidas. Assim, talvez seja equivocado
dizer que, p. ex., o paradigma da reação social se coloca
como substituto do paradigma etiológico. Embora a crítica
do rotulacionismo ao positivismo seja insuperável – e mais
ainda após a sua incorporação pela criminologia crítica –, é
nítido como os modelos etiológicos se reinventaram e per-
manecem vigentes e operacionais (Andrade, 1996).
Na criminologia (ou, de forma mais ampla, nas ci-
ências criminais), creio que é perceptível a existência de
eixos autônomos de disputa pela autoridade da fala cien-
tífica. Assim, ao invés de visualizar a história das ideias
criminológicas como uma linha horizontal que se inicia
com o paradigma racionalista, sucedido pelo paradigma
etiológico, posteriormente superado pelo paradigma da
reação social, que é, em seguida, incorporado e reorga-
nizado pela criminologia crítica; talvez seja mais eviden-
te a coexistência de modelos. Não é difícil visualizar, p.
ex., um desdobramento autônomo do racionalismo desde
a Escola Clássica ao garantismo; da Escola Positiva às neu-
rocriminologias; do rotulacionismo à criminologia cultu-
ral; e da criminologia crítica à nova crítica criminológica.
24
Cada eixo marcado por várias e distintas intercorrências
desde o século passado.
O que eu gostaria de sublinhar nesta aula introdutória,
porém, é que existe uma espécie de “vontade de verdade”
inerente aos paradigmas que deriva uma postura arrogan-
te de imposição do que é lícito produzir cientificamente.
Neste sentido, p. ex., é que as reflexões estilo theoreti-
cal criminology são desqualificadas por não apresentarem
“dados empíricos”, como se o empírico, por si só, atestasse
a validade do conhecimento; pior, como se a pesquisa
empírica revelasse de forma mágica a realidade ao pesquisa-
dor sem a intermediação de categorias teóricas. Por incrível
que pareça, em pleno século XXI, a crítica ainda deve retor-
nar aos seus primórdios para alertar que não há objetividade
na ciência e que o pesquisador nunca será neutro.
Recomendo, portanto, para aqueles que se aventurarem
neste Curso, alguns textos fundamentais (sugestão de leitura
prévia). São trabalhos que já se tornaram clássicos e que,
exatamente por isso, ainda são extremamente relevantes
para pensar o agora. Reflexões profundas de pensadores bra-
sileiros que, na sequência, apresento em forma de excertos.
Sobre a pureza e a objetividade das ciências, em “O
Mito da Neutralidade Científica”, de Hilton Japiassu (1975,
p. 10ss):
“Uma coisa nos parece certa: não existe definição ob-
jetiva, nem muito menos neutra, daquilo que é ou não
a ciência (...). Em outros termos, não há ciência ‘pura’,
‘autônoma’ e ‘neutra’, como se fosse possível gozar do
privilégio de não se sabe que ‘imaculada concepção’.
Espontaneamente, somos levados a crer que o cientis-
ta é um indivíduo cujo saber é inteiramente racional e
objetivo, isento não somente das perturbações da sub-
jetividade pessoal, mas também das influências sociais
(...). Isso significa que, em matéria de ciência, não há
objetividade absoluta. Também o cientista jamais pode
25
dizer-se neutro, a não ser por ingenuidade ou por uma
concepção mítica do que seja ciência (...). A produção
científica se faz numa sociedade determinada que con-
diciona seus objetivos, seus agentes, seu modo de fun-
cionamento”.
Sobre a imparcialidade e a absorção neutra do conhe-
cimento, em “Crítica da Razão Tupiniquim”, de Roberto Go-
mes (1986, p. 39ss):
“Há uma ilusão: a de que possamos, imparcialmente, usu-
fruir benefícios das mais diversas reflexões estrangeiras,
delas retirando o ‘melhor’. Desde sempre visamos extrair
do pensado por outros aquilo que poderá nos ser útil – e
isto constitui o mito da imparcialidade (...). Assim, nos
falseamos, nada sendo. E nada assimilamos. A condição
mínima de assimilação é a existência prévia de uma estru-
tura que assimile. Não existe assimilação neutra, na qual
só a objetividade bruta do conhecido importe. Exige-se
a presença do fator originante do conhecimento: a posi-
ção do sujeito. É pretensão ingênua querer tudo assimilar,
dissolvendo oposições, extraindo de cada um o ‘melhor’.
Para extrair o ‘melhor’, é necessário seletividade – e esta
envolve um critério. Logo, uma posição. O vazio nada
assimila. E o que determinaria o ‘melhor’?”.
Sobre a função mitológica da neutralidade no positivis-
mo e os condicionamentos histórico-sociais dos discursos
científicos, em “As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de
Münchhausen“, de Michael Löwy (1994, p. 18):
“O axioma da neutralidade valorativa das ciências so-
ciais conduz, logicamente, o positivismo, a negar – ou
melhor, a ignorar – o condicionamento histórico-social
do conhecimento. A própria questão da relação entre
conhecimento científico e classes sociais geralmente não
é colocada: é uma problemática que escapa ao cam-
po conceitual e teórico do positivismo. Ele só analisa
os fundamentos sociais do pensamento pré-científico:
26
pensamento mágico etc.; mas a própria ciência social
nele aparece soberanamente livre de vínculos sociais.
Em outras palavras: uma sociologia do conhecimento
(científico), uma análise da relação entre o saber e as
classes sociais são contraditórias com o quadro meto-
dológico fundamental do positivismo. Para compreender
a significação específica e as implicações da doutrina
positivista sobre a objetividade/neutralidade científico-
-social, é preciso examinar, por um lado, a sua gênese
histórica e o seu desenvolvimento e, por outro, a sua
relação com o conjunto da problemática positivista en-
quanto visão de mundo coerente, da qual esta doutrina
é apenas um aspecto”.
Sobre o burocratismo acadêmico, os equívocos da dico-
tomia entre conhecimento prático e teórico e o ódio ao pen-
sar, em “Filosofia Prática”, de Marcia Tiburi (2014, p. 277ss):
“A expressão ‘filosofia’ prática é velha, mas soa – antes
de mais nada, em nossa época, acostumada a defender
uma prática isolada da teoria – como um paradoxo.
Tornou-se lugar-comum dizer entre nós que a filosofia
é abstrata. Que a filosofia é teoria sem relação com a
chamada ‘prática’ (...). Nessa linha, uma ‘filosofia práti-
ca’ ou não seria filosofia, ou não seria prática. Mais que
um paradoxo, uma ‘filosofia prática’ seria até mesmo um
contrassenso, um despropósito, um equívoco (...). Con-
tra o burocratismo acadêmico pretendo que haja uma
filosofia mais suja da vida, mais viva, mais crítica, mais
aberta. Uma filosofia que se encanta e se enfrenta com o
lado sujo da vida, o cotidiano, ele mesmo ‘não pensável’
(...). Neste sentido, toda teoria está contida na prática,
muito mais do que o contrário; ao mesmo tempo, uma
prática que não se relacione à teoria é aquilo que po-
deremos, com pesar, definir como prática cega. Ela é
vivida entre nós como prática mistificada, aquela que se
propõe como independente de algo como ‘teoria’ e que,
ao mesmo tempo, apenas mostra que sua teoria é a do
ódio à teoria ou outro tipo qualquer de negação do ato
27
de teorizar que é, ele mesmo, prático. Ato prático que
acompanha tudo que somos, pensamos, fazemos”.
Sobre o jogo das objetificações e a instrumentalidade
do saber no positivismo, em “Crítica da Razão Idolátrica”,
de Ricardo Timm de Souza (2020, p. 213):
“O fato é que suas derivações [do positivismo] nos envol-
vem com uma peculiar despersonalização da realidade,
transformada em fórmula de si mesma, na realização do
sonho moderno e sempre reatualizado da mathesis uni-
versalis. O esforço monumental de objetivação da razão
científica conduz a esse estado de coisas, como vimos
anteriormente: máquinas que geram máquinas, e pesso-
as que pensam e agem como máquinas. Tudo em nome
de uma objetividade elevada ao nível de ideal de razão,
de ideia reguladora do pensar e do agir. A razão teórica,
que conquistou seu espaço ao longo dos séculos, graças à
confiança irrestrita em seu potencial de desenvolvimento
que lhe devotaram aqueles para quem o essencial da vida
humana consiste em sublimar tudo o que não seja teori-
zável exatamente numa teoria, transforma-se – como Ber-
gson bem notou – em ‘metafísica’. Uma metafísica pos-
sivelmente inconsciente, porém, não inocente. No jogo
das objetivações, não há espaço para ingenuidades, mas
apenas para sua própria lógica – e essa lógica, nem sem-
pre facilmente inteligível, tem muitas vezes razões que
aqueles que a cultivam como critério máximo de verdade
ignoram, ou fingem, ou pretendem, ignorar”.
A valoração (qualificação ou desqualificação) de um
modo de produção científica ocorre sempre desde um de-
terminado paradigma teórico e envolve, inequivocamente,
disputa pelo lugar da fala autorizada. Afirmar, p. ex., que
“não existe pesquisa criminológica no Brasil” é nada mais
do que revelar o desconforto de certa comunidade científica
com formas distintas de condução da reflexão criminológica;
é não reconhecer como legítimo um estilo de pesquisa dife-
28
rente só porque não é aquele compartilhado pelo seu grupo
de (auto)referência. Nunca, porém, esse juízo será objetivo;
nunca partirá de um local neutro – e se a deslegitimação
se autoproclamar neutra é porque a sua teoria informadora
tornou-se ideologia.1 Trata-se de um julgamento enunciado
desde o interior de um paradigma que, ao se autoconferir au-
toridade (“superioridade científica”), não reconhece outros
paradigmas como válidos (“científicos”).
Inevitável, pois, perceber os ambiciosos jogos de po-
der e os interesses, muitas vezes econômicos, inclusive, que
envolvem essa disputa pelo locus da fala científica, sobre o
que se pode ou não se pode dizer Criminologia, no caso.
Foucault (1986, p. 170) sublinha que a imposição de um sa-
ber sempre relega as demais possibilidades de interpretação
sobre o mesmo fenômeno ao posto de saberes dominados:
“saberes desqualificados como não competentes ou insufi-
cientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamen-
te inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conheci-
mento ou cientificidade”. Não por outro motivo, alerta que
temos de “admitir que o poder produz saber (e não simples-
mente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque
é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que
não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1991, p. 30).
1
Nos termos propostos por Marcia Tiburi (2015, p. 19): “Não
existe prática sem teoria. Nem teoria sem algum efeito prático.
E se a teoria não está evidente em alguma prática que tomamos
como natural é sinal de que não podemos confiar nela. Ela se
tornou ideologia e a ‘prática’ natural é tão somente uma espécie
de cortina de fumaça que permanece onde está porque nunca
tentamos atravessá-la”. No campo criminológico, idênticas as
conclusões de Gómez Jaramillo/Silva García (2015, p. 31ss).
29
1.3. Estrutura do curso
Ao iniciar a organização do Curso, lembrei das pala-
vras introdutórias de Roberto Lyra Filho no “Compêndio de
Direito Penal” (1973, p. 13), quando refere que pretendia
apresentar uma memória da “melhor doutrina” em formato
de guia para o exercício da atividade docente. Estilo que
lembrava muito o “esforço vertical de ordem, síntese e sim-
plicidade”, de Roberto Lyra (pai) (1953, p. 14), em “Expres-
são mais simples do Direito Penal”.
O “Curso de Criminologia Crítica Brasileira” foi estrutu-
rado a partir de alguns ensaios que cometi para organizar a
sequência das minhas aulas de “Criminologia Crítica”, disci-
plina eletiva no curso de graduação da Faculdade Nacional
de Direito/UFRJ, e de “Teoria Crítica da Sociedade e Sistema
Punitivo”, tópico que ofereço no programa de pós-graduação
em “Direito e Sociedade” da Unilasalle/RS. Em ambas as ins-
tituições de ensino também desenvolvo projetos de pesquisa
sobre os sentidos, a formação e a atualidade da criminologia
crítica no Brasil – “Criminologia Crítica: sentidos e signi-
ficados”, FND/UFRJ; “Atualidade e Fontes da Criminologia
Crítica Brasileira”, Unilasalle.
Assim, nos últimos anos, procurei escrever alguns en-
saios que visavam suprir algumas lacunas que entendia rele-
vantes na história do pensamento criminológico crítico bra-
sileiro. Ensaios que, junto com outros textos mais antigos,
acabaram compondo o programa das referidas disciplinas.
Como entendi que havia um eixo no debate e uma certa
sequência lógica no desenvolvimento da matéria, resolvi
reunir o material e apresentá-lo em forma de Curso. Os tra-
balhos mais antigos (e mesmo alguns mais recentes) foram
atualizados e revisados, sobretudo para que não houvesse
sobreposição de temas.
No entanto, como algumas “aulas” do Curso foram pu-
blicadas de forma autônoma em periódicos da área, foi ine-
30
vitável que alguns temas (e inclusive algumas citações) se
repetissem. Procurei reduzir ao máximo essas sobreposições.
Todavia, em alguns casos, entendi que seria pertinente man-
ter o texto mais próximo do original, mesmo que o debate
estivesse presente em outra “aula”, porque reforça o argu-
mento. Ao lembrar que o processo de aprendizado também
ocorre por acúmulo e revisão, abandonei a minha obsessão
de evitar a repetição e procurei deixar fluir o texto, como se
efetivamente estivesse em sala de aula dialogando com meus
alunos.
Lembro, também, que muitos artigos foram publicados
em coautoria com queridos colegas que autorizaram expres-
samente a inclusão do material no Curso. A troca acadêmi-
ca com André Giamberardino (segunda aula), Lucas Vianna
Matos (aulas sexta e décima quarta), Mariana de Assis Bra-
sil e Weigert (aula décima), Salah Khaled Jr. e José Antônio
Gerzson Linck (aula décima terceira) e Daniel Achutti (aula
décima quinta) foi essencial para o amadurecimento de al-
gumas discussões.
O Curso está organizado em quatro partes e quinze aulas
(contando essa aula introdutória). A primeira parte, intitula-
da “Criminologia Crítica: dimensões conceituais”, apresenta
o contexto da criminologia crítica no âmbito das ciências
em geral e da criminologia em particular. Procura, sobre-
tudo, localizar a criminologia crítica como desdobramento
da teoria crítica (Escola de Frankfurt) nas ciências criminais
e identificar o seu estatuto prático-teórico em oposição às
teorias e criminologias tradicionais (positivistas). A segun-
da parte, nominada “Criminologia Crítica: a construção do
pensamento contra-hegemônico marginal”, centra o debate
no contexto nacional, objetivando (primeiro) identificar o
pensamento criminológico contra-hegemônico (mesmo em
vertentes positivistas) e (segundo) demarcar os autores, os
temas e os problemas enfrentados no período de construção
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da criminologia crítica brasileira. Na terceira parte, “Atuali-
dade e perspectivas da criminologia crítica no Brasil”, tra-
balho algumas correntes criminológicas atuais (criminologias
feminista, queer e cultural) que entendo serem igualmente
desdobramentos da teoria crítica da sociedade no campo
criminológico e que se alinham à criminologia crítica na re-
flexão sobre as violências interpessoal, institucional, estrutural
e simbólica. Na parte final, “Desafios da Criminologia Crítica
no Brasil”, procuro enfrentar o que se convencionou chamar
de “crise da criminologia crítica”, demonstrar a relevância da
crítica criminológica e apontar algumas linhas de fuga possí-
veis que podem orientar a ação (criminologia da práxis).
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