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Curso de Criminologia Crítica Brasileira: dimensões epistemológicas,


metodológicas e políticas (2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2023)

Book · April 2023

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1 author:

Salo Carvalho
Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ); Unilasalle (RS)
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Salo de Carvalho

Curso de Criminologia
Crítica Brasileira
(dimensões epistemológicas, metodológicas e políticas)

Editora Revan
Copyright @ 2022 by Editora Revan

Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma


parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos,
eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Revisão
Salo de Carvalho
Thais Weigert Bressan

Capa
Alexandre Gosi

Projeto gráfico e diagramação


Alexandre Gosi

Impressão e acabamento
(Em papel off-set 75g. após paginação eletrônica, em tipo Optane, c. 11/13,2)

Cip-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj
C328c
v. 27
Carvalho, Salo de
Curso de criminologia crítica brasileira : dimensões
epistemológicas, metodológicas e políticas / Salo de Carvalho. -
2. ed. - revisada - Rio de Janeiro : Revan, 2023.
624 p. ; 21 cm. (Pensamento criminológico ; 27)

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5604-013-4

1. Direito penal - Brasil. 2. Criminologia crítica - Brasil. I.


Título. II. Série.

22-79594 CDU: 343.9(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

24/08/2022 29/08/2022
Mari
Com você qualquer lugar é casa
Ipanema ou Trastevere; Quartier Latin ou Bom Fim
Porque a tua risada é antídoto contra o tédio
A tua inteligência é arma contra o obscurantismo
E o teu amor é vida contra qualquer forma de isolamento.
Sumário

Parte I: Criminologia Crítica: dimensões conceituais /15

Aula 1: Introdução à criminologia crítica


(conceitos operacionais) /17
1.1. Justificativas e objetivos: por que um “Curso de Criminologia
Crítica Brasileira”? /17
1.2. Falas criminológicas autorizadas (sobre paradigmas e poderes
nas ciências criminais) /22
1.3. Estrutura do curso /30
1.4. Criminologia tradicional: objeto, método e conceitos prelimi-
nares /32
1.5 Criminologia crítica: objeto, método e conceitos
preliminares /36
1.6. Bibliografia geral e específica /40

Aula 2: Criminologia tradicional e emergência da criminologia críti-


ca (panorama e problematização dos modelos causais) (com
André Giamberardino) /43
2.1. Criminologia etiológica: causa e causalidade /43
2.2. Liberdade e determinação /47
2.3. Causalidade e comportamento da vítima /49
2.4. Causas do crime: classificação dos modelos /51
2.5. Teorias etiológicas individuais /52
(a) Teorias biológicas /52
(b) Teorias psicológicas e psicanalíticas /55
(c) Teorias da aprendizagem /61
2.6. Teorias etiológicas socioestruturais /63
(a) Teoria da anomia /63
(b) Teorias das subculturas criminais /66
2.7. Teorias da rotulação /68
2.8. Criminologia crítica: abordagem introdutória /73
2.9. Limitações e parcialidades dos quadros de referência /79

Aula 3: Teoria tradicional e criminologia crítica /89


3.1. Teoria tradicional /89
3.2. Razão Jurídica, Razão Instrumental /92
3.3. Teoria crítica e questão penal /98

Aula 4: Criminologia crítica (dimensões,


significados e perspectivas) /103
4.1. A atualidade da crítica criminológica /103
4.2. Criminologia crítica: dimensões históricas /104
(a) Teoria da rotulação: crítica /105
(b) Teorias do conflito /107
(c) Quadros de referência: teoria do consenso, teoria
pluralista e teoria do conflito /112
4.3. Criminologia crítica: agenda negativa /116
4.4. Criminologia crítica: agenda positiva /123
4.5. Criminologia crítica como criminologia dos direitos humanos /129

Parte II: Criminologia Crítica: a construção do pensamento


contra-hegemônico marginal /141
Aula 5: A criminologia racista e o pensamento
contra-hegemônico no Brasil /143
5.1. A resistência às “criminologias enlatadas” /143
5.2. O defensivismo como permanência: a falsa oposição
liberalismo penal versus positivismo criminológico /150
5.3. O racismo no discurso e nas práticas criminológicas: a estética
do mal /155
5.4. Criminologia etiológica e irracionalismo inquisitivo
(crítica normativa: variável) /161
5.5. A criminologia racista brasileira: a “fórmula
Nina Rodrigues” /165

8
5.6. Criminologia e direito penal em Clovis Bevilaqua /174
5.7. “Medicalização do direito” e “desorientação epistemológica”: a
crítica de Tobias Barreto /179
5.8. “Nina Rodrigues, apologista do branco”: a crítica de Guerreiro
Ramos à antropologia racista /184
5.9. Positivismo e racismo nas Ciências Criminais /190
Aula 6: A criminologia socialista e a crítica anticarcerária de Rober-
to Lyra (com Lucas Vianna Matos) /199
6.1. Entre o direito penal normativo e o direito
penal científico /199
6.2. O “indisciplinado” positivismo sociológico de esquerda /203
6.3. Estatuto científico e conceito de crime /205
6.4. Criminalidade e questão racial /210
6.5. Crime e desigualdade social /212
6.6. Criminologia socialista: fundamentos e postulados /215
6.7. A crítica anticarcerária /222
6.8. Perspectivas do humanismo social /225
6.9. O legado da criminologia socialista e do rotulacionismo para a
criminologia crítica brasileira /227

Aula 7: Criminologia dialética (fundamentos teóricos do humanismo


de Roberto Lyra Filho) /241
7.1. A construção da “Criminologia Dialética” /241
7.2. A estrutura da “Criminologia Dialética” /244
7.3. A dimensão empírica do crime /248
7.4. Microcriminologia: a imagem do homem /252
7.5. Macrocriminologia: sociologia criminal e sociologia jurídico-
penal /260
7.6. Pena e política criminal na “Criminologia Dialética” /266
7.7. “Criminologia Dialética” e humanismo /274

9
Aula 8: Impactos da criminologia dialética na teoria do delito: esboço
de um modelo integrado crítico de ciências criminais /287
8.1. Normativo e empírico na teoria do direito e nas ciências
criminais /287
8.2. A dogmática penal e o conceito jurídico de delito /290
8.3. Teoria do direito e pluralismo jurídico /297
8.4. “Criminologia Dialética” e o(s) conceito(s) de delito /303
8.5. Analítica do crime: crítica à antijuridicidade formal /307
8.6. Analítica do crime: crítica à culpabilidade como juízo de
reprovação /315
8.7. Dogmática penal orientada pela criminologia (dialética) /326

Parte III: Atualidade e perspectivas da criminologia crítica


no Brasil /335
Aula 9: Perspectivas metodológicas na criminologia crítica brasilei-
ra: diretrizes fundacionais e fontes de referência /337
9.1. A primeira fase da criminologia crítica brasileira /337
9.2. Perspectivas teóricas: do estilo ensaístico (Lyra Filho) à propo-
sição sistematizadora (Cirino dos Santos) /339
9.3. Perspectivas empíricas /341
9.4. Perspectivas de gênero e de raça /348
9.5. Perspectivas dogmáticas: o modelo integrado crítico de ciências
criminais /356
9.6. Diretrizes metodológicas e políticas /361

Aula 10: Criminologia feminista (com Mariana de Assis Brasil e


Weigert) /373
10.1 Unidade crítica antipositivista /373
10.2. Os direitos das mulheres sufocados pelo positivismo crimi-
nológico /376
(a) Feminicidas, estupradores e agressores domésticos /377
(b) A mulher delinquente /378
(c) A vítima nata /380

10
10.3. Criminologia crítica e criminologia feminista: zonas de con-
vergência /384
(a) A ruptura crítica /385
(b) A ruptura feminista /389
10.4. Criminologia crítica e criminologia feminista: redefinições a
partir do rotulacionismo /394
10.5. Criminologia crítica e criminologia feminista: práxis antipo-
sitivista /399

Aula 11: Criminologia queer /413


11.1. Ciência (teoria) e política (ativismo) queer /413
11.2. Pensamento queer, teoria feminista e resistência à heteronor-
matividade /416
11.3. Teorias feminista e queer: identidades /421
11.4. Lgbtfobia e ciências criminais: a mania classificatória e o ideal
patologizante /423
11.5. Três movimentos descontínuos de ruptura com a criminologia
ortodoxa /429
11.6. Possibilidades de uma criminologia queer: as contribuições da
teoria queer à criminologia /435
11.7. Possibilidades de uma criminologia queer: as contribuições da
criminologia à teoria queer /438
11.8. Criminologia queer e criminologia cultural /443

Aula 12: Criminologia cultural /451


12.1. Contexto: cultura e contracultura criminológica /451
12.2. Criminologia crítica e (contra)cultural /454
12.3. Do rotulacionismo à criminologia (contra)cultural: a reinter-
pretação das subculturas desviantes /459
12.4. Criminologia cultural: abordagens metodológicas /464
12.5. Criminologia cultural: problemas de pesquisa /466
12.6. Criminologia cultural: chaves de compreensão /469
(a) Crime /469
(b) Pena /472

11
12.6. Criminologia cultural: conceito em construção /473

Aula 13: Criminologia cultural: perspectivas e


recepção no Brasil (com Salah Khaled Jr. e José Antônio Ger-
zson Linck) /477
13.1. Criminologia cultural: percurso e engajamento político /477
13.2. Criminologia cultural no Brasil /479
13.3. Antropologia urbana brasileira e criminologia cultural: apro-
ximações históricas e conceituais /483
13.4. Engajamento político /488
13.5. Níveis de análise: estrutura triádica /492
(a) Nível Micro: plano fenomenológico e existencial
do crime /493
(b) Nível Intermediário (mezo): subculturas e construção
cultural do espaço /497
(c) Nível Macro: modernidade tardia, capitalismo global e
violências estrutural e institucional /499
13.6. Criminologia cultural e criminologias da ordem: o lugar
da crítica e as metodologias de pesquisa em tempos de
gerencialismo criminológico /503
13.7. Aberturas e hibridizações /508

Parte IV: Desafios da Criminologia Crítica no Brasil /517

Aula 14: A crise da crise da criminologia crítica no Brasil (desa-


fios epistemológicos, metodológicos e políticos) (com Lucas
Vianna de Matos) /519
14.1. A criminologia crítica na América Latina /519
14.2. Criminologia, teoria crítica e prática política /522
14.3. Criminologia crítica e método: observações desde a margem
brasileira /528
14.4. Crítica e autocrítica: epistemologia e política /536
14.5. Estratégias de alinhamento prático-teórico: pautas mínimas e
objetivos comuns /549

12
14.6. A crise da crise da criminologia crítica /554

Aula 15: Criminologia crítica, abolicionismo e justiça restaurativa:


linhas de fuga (com Daniel Achutti) /571
15.1. Crises da criminologia tradicional: hipóteses conclusivas /571
15.2. Alternativas possíveis (ou linhas de fuga): um modelo crítico
de justiça restaurativa /577
(a) Justiças restaurativas: modelos conservadores (tradicionais) e
críticos /577
(b) Justiça restaurativa crítica: fundações (Christie e Hulsman) /580
(c) Justiça restaurativa crítica: eixos estruturantes /584
15.3. Abolicionismo e autofagia crítica: reflexões finais /588
Bibliografia geral do curso /598

13
PARTE I: CRIMINOLOGIA CRÍTICA:
DIMENSÕES CONCEITUAIS
AULA 1
INTRODUÇÃO À CRIMINOLOGIA CRÍTICA
(CONCEITOS OPERACIONAIS)

Plano da aula: Justificativas e objetivos: por que um “Curso


de Criminologia Crítica Brasileira”? Falas criminológicas auto-
rizadas (sobre paradigmas e poderes nas ciências criminais);
Estrutura do curso; Criminologia tradicional: objeto, método e
conceitos preliminares; Criminologia crítica: objeto, método e
conceitos preliminares; Bibliografias geral e específica.

1.1. Justificativas e objetivos: por que um “Curso de


Criminologia Crítica Brasileira”?
Emicida (2022), em entrevista sobre a produção do dis-
co da intérprete Maria Fortuna, cantora de 86 anos, faz uma
provocativa afirmação sobre a música popular brasileira: “às
vezes, parece que a música contemporânea do Brasil nasceu
de chocadeira, não tem mãe, não tem pai, não tem avô,
todo mundo nasceu pronto e ninguém é parte do legado das
gerações anteriores. Isso é triste e suicida, porque quem lida
mal com seu passado não vai saber lidar com seu futuro, se
tiver sorte de conseguir chegar lá”. O rapper refere “uma
relação problemática com a memória na cultura brasileira”
que oculta e não reconhece grandes heróis e heroínas.
Tenho a impressão de que parte significativa do am-
biente criminológico brasileiro, inclusive algumas vertentes
(acadêmicas) e movimentos (sociais) emancipatórios, pade-
ce desta mesma relação problemática com a memória. Não
é incomum, infelizmente, ler trabalhos acadêmicos (teses,
dissertações, artigos científicos) que relegam os fundadores
da criminologia brasileira ao ostracismo. De igual forma (e

17
talvez com mais intensidade), na teoria do direito penal, é
quase um padrão que se apresente o estado da arte de deter-
minados institutos com ampla revisão de autores e correntes
dos países do Norte sem que se percorra minimamente o que
foi produzido em nossa margem Sul.
Muito provavelmente por essa razão a reflexão de Emici-
da tenha me tocado de forma tão profunda, soando como um
alerta sobre o estado das ciências criminais no Brasil: parece
que não temos tradição, que não somos “parte do legado de
gerações anteriores”. Em alguns casos, sinto que certas aborda-
gens parecem partir de um grau zero de conhecimento, como
se nada tivesse sido produzido anteriormente. E essa amnésia,
voluntária ou não, mas sempre útil ao pensamento colonizador,
resulta sempre em afirmações temerárias, ditas em voz baixa
pelos corredores das Faculdades como: “não existe crimino-
logia no Brasil”, “não se faz pesquisa criminológica por estas
bandas”, “a criminologia crítica é um projeto esgotado”.
Algumas destas assertivas escutei pessoalmente. Lem-
bro de uma, em especial, em um jantar oferecido por um
querido amigo. Eu estava em uma determinada capital para
uma conferência e este amigo organizou uma confraterni-
zação em sua casa. Ao fazer o convite disse que chamaria
os membros do seu grupo de pesquisa e também um jovem
criminólogo, recentemente titulado em um centro de pesqui-
sa estrangeiro (do Norte). Referiu, em tom de blague, que
gostaria que eu escutasse o que ele tinha para dizer sobre a
criminologia nacional, em especial a crítica. Durante o en-
contro, o pesquisador afirmou, mui enfaticamente, que não
se fazia pesquisa criminológica no Brasil – referia-se espe-
cificamente à pesquisa empírica, reduzindo o “fazer pesqui-
sa” ao “fazer pesquisa empírica” – e que, em consequência,
em nossa academia tudo se resumia a especulações teóricas.
Um pouco antes um dos alunos presentes havia me dito, em
sussurro, que o docente também repetia em sala de aula que
“criminologia crítica não existe”.

18
Apesar de não ter muita paciência para entrar neste
tipo de discussão, propus para o interlocutor um exercício:
“vou referir alguns pesquisadores que trabalham em algumas
Universidades brasileiras, começando pelas instituições do
interior do Rio Grande do Sul e depois da capital, por força
da minha formação, e em seguida dos demais Estados, e
você me diz se conhece e já leu alguns dos trabalhos dos
colegas”. O professor acenou positivamente e iniciei rela-
tando as investigações de Luiz Antônio Bogo Chies e Mar-
celo Oliveira de Moura, sobre pena e questão penitenciária,
na Universidade Católica de Pelotas; as pesquisas de Daniel
Brod Rodrigues de Souza e Bruno Rotta Almeida, sobre po-
lítica criminal e encarceramento, na Universidade Federal
de Pelotas; os trabalhos de Salah Khaled Jr., sobre crimi-
nologia cultural, de Fabiane Simioni e Elisa Celmer, sobre
criminologia feminista, e de Raquel Fabiana Lopes Sparem-
berger, sobre crimes ambientais, na Universidade Federal de
Rio Grande; as pesquisas de Ângela Espíndola, sobre jurisdi-
ção penal e acesso à justiça, de Rosane Leal da Silva, sobre
adolescentes em conflito com a lei, e de Rafael Santos de
Oliveira, sobre movimentos sociais e ativismo em rede, na
Universidade Federal de Santa Maria. Disse que ainda te-
ríamos alguns importantes centros de pesquisas no interior
do Rio Grande do Sul, em Universidades privadas ou co-
munitárias, com consolidados programas de pós-graduação,
como os da Universidade de Passo Fundo, Universidade de
Caxias do Sul e Universidade de Santa Cruz do Sul, mas que
passaria para a região metropolitana da capital, visto serem
volumosas as pesquisas em ciências criminais na Unisinos
(São Leopoldo), LaSalle (Canoas), Pontíficia Universidade
Católica e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto
Alegre), para depois “começar a subir” para Santa Catarina e
Paraná e os demais Estados do Sudeste, Centro-Oeste, Norte
e Nordeste.

19
Como a situação já estava bastante constrangedora, o
pesquisador me interrompeu mediante algumas “escusas ab-
solutórias” (técnicas de neutralização): “pois é, fiquei muito
tempo fora do país, talvez eu precise conhecer um pouco
mais do que se está produzindo por aqui”. Ainda tentei aler-
tar sobre o que significava a subordinação do pensamento a
um conjunto de ideias alóctones e sobre o impacto da filoso-
fia da liberação na criminologia latino-americana como con-
dição de se pensar crime e controle social em nossa margem
(autóctone), mas a turma do “deixa disso” mudou o rumo da
conversa. Indaguei, ainda, se o “jovem criminólogo” tinha
lido algum trabalho de Roberto Lyra Filho. Com a negativa,
sugeri fortemente a leitura de “Carta Aberta a um Jovem Cri-
minólogo” (1980), muito provavelmente um dos mais impor-
tantes textos da criminologia brasileira.
Quando retornei ao Rio de Janeiro, na época já lecio-
nava na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), contei o epi-
sódio para a Mari, que prontamente me interrompeu: “Salo,
sei que os debates foram bons, mas sinceramente não estou
interessada em discutir preconceitos da colonização etno-
centrista na mesa de jantar; acho que temos coisas muito
mais interessantes e divertidas para conversar”. Argumentos
irrefutáveis.
Naquela mesma semana, contatei o querido amigo
Thiago Fabres de Carvalho, mencionei o ocorrido e o convi-
dei para escrevermos um pequeno artigo sobre o “complexo
de vira-lata” que se consolidou nas ciências criminais do
Brasil. O convite ocorreu porque já havíamos conversado
sobre esse tema em razão de situação idêntica presenciada
por Thiago em um evento nacional de sociologia jurídica:
um metodólogo, então recentemente titulado no exterior,
manifestava espanto pela ausência de pesquisa criminológi-
ca no país e pela forte presença de “críticos” nas instituições
de ensino – como se o positivismo não fosse o mainstream

20
na academia e nas agências do sistema penal. A morte pre-
matura de Thiago impossibilitou concluir o projeto, embo-
ra tenha sido a inspiração para a discussão travada sob o
título “a resistência às ‘criminologias enlatadas’”, presente
na quinta aula do Curso (“A Criminologia Racista e o Pensa-
mento Contra-Hegemônico no Brasil”).
Neste contexto, a motivação principal da escrita do
“Curso de Criminologia Crítica Brasileira” foi (objetivo geral)
a de demonstrar a atualidade e a urgência da criminologia
crítica em nossa margem. Os objetivos específicos são (pri-
meiro) tentar mapear os discursos contra-hegemônicos pro-
duzidos pela criminologia brasileira, ou seja, as perspectivas
criminológicas que não se tornaram discurso oficial (mains-
tream), em especial o pensamento antipositivista; e (segun-
do) apresentar a construção, a consolidação, a crise e a crise
da crise da criminologia crítica brasileira.
O trabalho procura seguir e honrar os caminhos aber-
tos por alguns pensadores que considero meus maestros e
que tiveram um papel fundamental no desenvolvimento do
pensamento crítico em criminologia na América Latina (em
ordem alfabética): Afrânio Silva Jardim, Agostinho Rama-
lho Marques Neto, Alessandro Baratta, Alberto Guerreiro
Ramos, Amilton Bueno de Carvalho, Ana Lucia Sabadell,
Antônio Carlos Wolkmer, Augusto Thompson, Carlos Alber-
to Elbert, Cezar Bitencourt, Cristina Rauter, Eduardo Novoa
Monreal, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Ester Kosowski,
Eugenio Raúl Zaffaroni, Geraldo Prado, Gizlene Neder, He-
leno Claudio Fragoso, Jacinto Coutinho, João Mestieri, José
Geraldo de Souza Júnior, Juarez Cirino dos Santos, Juarez
Tavares, Julita Lemgruber, Lenio Streck, Lola Aniyar de Cas-
tro, Luiz Alberto Warat, Luiz Luisi, Maria Lucia Karam, Mas-
simo Pavarini, Ney Fayet de Souza, Nilo Batista, Ricardo
Timm de Souza, Roberto Aguiar, Roberto Bergalli, Roberto
Lyra, Roberto Lyra Filho, Rosa del Olmo, Rosa Maria Car-

21
doso Cunha, Sérgio Salomão Shecaira, Tobias Barreto, Vera
Andrade, Vera Malaguti Batista, Wanda Capeller, Yolanda
Catão, Zahidé Machado Neto.
Agradeço, em especial, aos professores Nilo Batista e
Vera Malaguti Batista pela inspiração e pelo incentivo, bem
como aos editores da Revan pela pronta recepção do projeto.

1.2. Falas criminológicas autorizadas (sobre paradig-


mas e poderes nas ciências criminais)
Ambos os episódios relatados acima, experimentados
por mim e por Thiago (e outros presenciados por um número
expressivo de colegas críticos), falam de um ambiente moti-
vado por um certo “clima de desconfiança” sobre o que se
tem produzido de conhecimento criminológico. Em realida-
de, o que os “jovens criminólogos” – a referência é, eviden-
temente, ao texto de Lyra Filho – expuseram é uma tentativa
bastante comum de se pautar aquilo que desde os seus mar-
cos teóricos traduzidos deveria ser a criminologia brasileira:
pragmatismo utilitarista, gerenciamento do controle social,
empirismo metodológico; em última análise, redução de
qualquer possibilidade de conhecimento criminológico crí-
tico (saber) a uma ciência instrumental à autoridade (poder).
Khun (1991), ao elaborar a teoria dos paradigmas cien-
tíficos, demonstra inexistir “a” ciência como atividade ho-
mogênea para todas as épocas e sociedades. Para o autor, a
construção, a produção e a reprodução daquilo que se no-
mina ciência estão sempre restritas ao conjunto de compro-
missos teóricos (e políticos, acrescentamos) estabelecido por
uma determinada comunidade científica. Assim, há ciência
apenas quando se estabelece um consenso da comunidade
científica (pesquisadores comprometidos com um determi-
nado paradigma) sobre o objeto, os métodos e os fins a se-
rem alcançados pelo seu saber (modelo vigente). Os inves-
tigadores, em realidade, se adequam (ou não) ao modo de

22
pesquisa fixado pelo mainstream: “um paradigma é aquilo
que os membros de uma comunidade científica partilham.
E, inversamente, uma comunidade científica consiste em ho-
mens que compartilham de um paradigma” (Khun, 1991, p.
219). O que se diz científico, portanto, é fundamentalmente
aquilo que um grupo de pessoas com autoridade diz que é
científico: “um paradigma governa, em primeiro lugar, não
um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes da ciên-
cia” (idem, p. 224). Não há uma ciência em essência, mas
disputa de poder (disputa pela fala autorizada) daquilo que
se pode dizer científico. Na proposição de Khun, a partir do
momento em que um paradigma se consolida na comunida-
de científica, passa a ser irrefletidamente reproduzido pelos
pesquisadores da área, configurando uma “ciência normal”.
Trata-se de um autêntico processo de divisão do traba-
lho científico, de um modo de produção do conhecimento,
no qual se estabelecem hierarquias em relação à autoridade
do saber. A ciência normal fixa os parâmetros da produção
do conhecimento, estabelece as fronteiras epistemológicas e
metodológicas do que é lícito e do que é ilícito pesquisar. O
paradigma dominante determina “(...) as formas e os campos
possíveis do conhecimento” (Foucault, 1991, p. 30).
Há crise de paradigmas quando a comunidade cientí-
fica identifica estranhamentos: limitação do objeto, insufici-
ência de métodos, novos temas e problemas, incongruência
entre meios e fins ou inadequação dos próprios fins. A crise é
comumente deflagrada por uma “ciência extraordinária” que
identifica essas inadequações, que aponta elementos exter-
nos não absorvidos ou internos desconfortantes. Trata-se de
uma atividade eminentemente subversiva desde a perspecti-
va da ciência normal. Há crise paradigmática neste momento
intermediário em que o paradigma vigente não satisfaz mais
a comunidade científica e o novo modelo (ciência extraordi-
nária) ainda não alcançou plena aceitação (consenso).

23
O objetivo de uma ciência extraordinária é o de impor
novos limites, métodos e fins à ciência, isto é, instaurar-se
como o novo paradigma dominante (ciência normal). O pro-
cesso é definido por Khun como revolução científica e é o
que permitiria o constante aperfeiçoamento do conhecimen-
to. Importante dizer, porém, que a crise não resulta necessa-
riamente na substituição do paradigma vigente, pois o velho
modelo pode readequar-se às novas demandas e relegitimar-
-se perante a comunidade científica.
Entendo que o modelo proposto por Khun não é plena-
mente aplicável à criminologia. Devido à sua configuração
interdisciplinar, coabitam no campo criminológico distintas
tradições, com temas e problemas próprios, e com dispu-
tas internas bastante nítidas. Assim, talvez seja equivocado
dizer que, p. ex., o paradigma da reação social se coloca
como substituto do paradigma etiológico. Embora a crítica
do rotulacionismo ao positivismo seja insuperável – e mais
ainda após a sua incorporação pela criminologia crítica –, é
nítido como os modelos etiológicos se reinventaram e per-
manecem vigentes e operacionais (Andrade, 1996).
Na criminologia (ou, de forma mais ampla, nas ci-
ências criminais), creio que é perceptível a existência de
eixos autônomos de disputa pela autoridade da fala cien-
tífica. Assim, ao invés de visualizar a história das ideias
criminológicas como uma linha horizontal que se inicia
com o paradigma racionalista, sucedido pelo paradigma
etiológico, posteriormente superado pelo paradigma da
reação social, que é, em seguida, incorporado e reorga-
nizado pela criminologia crítica; talvez seja mais eviden-
te a coexistência de modelos. Não é difícil visualizar, p.
ex., um desdobramento autônomo do racionalismo desde
a Escola Clássica ao garantismo; da Escola Positiva às neu-
rocriminologias; do rotulacionismo à criminologia cultu-
ral; e da criminologia crítica à nova crítica criminológica.

24
Cada eixo marcado por várias e distintas intercorrências
desde o século passado.
O que eu gostaria de sublinhar nesta aula introdutória,
porém, é que existe uma espécie de “vontade de verdade”
inerente aos paradigmas que deriva uma postura arrogan-
te de imposição do que é lícito produzir cientificamente.
Neste sentido, p. ex., é que as reflexões estilo theoreti-
cal criminology são desqualificadas por não apresentarem
“dados empíricos”, como se o empírico, por si só, atestasse
a validade do conhecimento; pior, como se a pesquisa
empírica revelasse de forma mágica a realidade ao pesquisa-
dor sem a intermediação de categorias teóricas. Por incrível
que pareça, em pleno século XXI, a crítica ainda deve retor-
nar aos seus primórdios para alertar que não há objetividade
na ciência e que o pesquisador nunca será neutro.
Recomendo, portanto, para aqueles que se aventurarem
neste Curso, alguns textos fundamentais (sugestão de leitura
prévia). São trabalhos que já se tornaram clássicos e que,
exatamente por isso, ainda são extremamente relevantes
para pensar o agora. Reflexões profundas de pensadores bra-
sileiros que, na sequência, apresento em forma de excertos.
Sobre a pureza e a objetividade das ciências, em “O
Mito da Neutralidade Científica”, de Hilton Japiassu (1975,
p. 10ss):
“Uma coisa nos parece certa: não existe definição ob-
jetiva, nem muito menos neutra, daquilo que é ou não
a ciência (...). Em outros termos, não há ciência ‘pura’,
‘autônoma’ e ‘neutra’, como se fosse possível gozar do
privilégio de não se sabe que ‘imaculada concepção’.
Espontaneamente, somos levados a crer que o cientis-
ta é um indivíduo cujo saber é inteiramente racional e
objetivo, isento não somente das perturbações da sub-
jetividade pessoal, mas também das influências sociais
(...). Isso significa que, em matéria de ciência, não há
objetividade absoluta. Também o cientista jamais pode

25
dizer-se neutro, a não ser por ingenuidade ou por uma
concepção mítica do que seja ciência (...). A produção
científica se faz numa sociedade determinada que con-
diciona seus objetivos, seus agentes, seu modo de fun-
cionamento”.
Sobre a imparcialidade e a absorção neutra do conhe-
cimento, em “Crítica da Razão Tupiniquim”, de Roberto Go-
mes (1986, p. 39ss):
“Há uma ilusão: a de que possamos, imparcialmente, usu-
fruir benefícios das mais diversas reflexões estrangeiras,
delas retirando o ‘melhor’. Desde sempre visamos extrair
do pensado por outros aquilo que poderá nos ser útil – e
isto constitui o mito da imparcialidade (...). Assim, nos
falseamos, nada sendo. E nada assimilamos. A condição
mínima de assimilação é a existência prévia de uma estru-
tura que assimile. Não existe assimilação neutra, na qual
só a objetividade bruta do conhecido importe. Exige-se
a presença do fator originante do conhecimento: a posi-
ção do sujeito. É pretensão ingênua querer tudo assimilar,
dissolvendo oposições, extraindo de cada um o ‘melhor’.
Para extrair o ‘melhor’, é necessário seletividade – e esta
envolve um critério. Logo, uma posição. O vazio nada
assimila. E o que determinaria o ‘melhor’?”.
Sobre a função mitológica da neutralidade no positivis-
mo e os condicionamentos histórico-sociais dos discursos
científicos, em “As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de
Münchhausen“, de Michael Löwy (1994, p. 18):
“O axioma da neutralidade valorativa das ciências so-
ciais conduz, logicamente, o positivismo, a negar – ou
melhor, a ignorar – o condicionamento histórico-social
do conhecimento. A própria questão da relação entre
conhecimento científico e classes sociais geralmente não
é colocada: é uma problemática que escapa ao cam-
po conceitual e teórico do positivismo. Ele só analisa
os fundamentos sociais do pensamento pré-científico:

26
pensamento mágico etc.; mas a própria ciência social
nele aparece soberanamente livre de vínculos sociais.
Em outras palavras: uma sociologia do conhecimento
(científico), uma análise da relação entre o saber e as
classes sociais são contraditórias com o quadro meto-
dológico fundamental do positivismo. Para compreender
a significação específica e as implicações da doutrina
positivista sobre a objetividade/neutralidade científico-
-social, é preciso examinar, por um lado, a sua gênese
histórica e o seu desenvolvimento e, por outro, a sua
relação com o conjunto da problemática positivista en-
quanto visão de mundo coerente, da qual esta doutrina
é apenas um aspecto”.
Sobre o burocratismo acadêmico, os equívocos da dico-
tomia entre conhecimento prático e teórico e o ódio ao pen-
sar, em “Filosofia Prática”, de Marcia Tiburi (2014, p. 277ss):
“A expressão ‘filosofia’ prática é velha, mas soa – antes
de mais nada, em nossa época, acostumada a defender
uma prática isolada da teoria – como um paradoxo.
Tornou-se lugar-comum dizer entre nós que a filosofia
é abstrata. Que a filosofia é teoria sem relação com a
chamada ‘prática’ (...). Nessa linha, uma ‘filosofia práti-
ca’ ou não seria filosofia, ou não seria prática. Mais que
um paradoxo, uma ‘filosofia prática’ seria até mesmo um
contrassenso, um despropósito, um equívoco (...). Con-
tra o burocratismo acadêmico pretendo que haja uma
filosofia mais suja da vida, mais viva, mais crítica, mais
aberta. Uma filosofia que se encanta e se enfrenta com o
lado sujo da vida, o cotidiano, ele mesmo ‘não pensável’
(...). Neste sentido, toda teoria está contida na prática,
muito mais do que o contrário; ao mesmo tempo, uma
prática que não se relacione à teoria é aquilo que po-
deremos, com pesar, definir como prática cega. Ela é
vivida entre nós como prática mistificada, aquela que se
propõe como independente de algo como ‘teoria’ e que,
ao mesmo tempo, apenas mostra que sua teoria é a do
ódio à teoria ou outro tipo qualquer de negação do ato

27
de teorizar que é, ele mesmo, prático. Ato prático que
acompanha tudo que somos, pensamos, fazemos”.
Sobre o jogo das objetificações e a instrumentalidade
do saber no positivismo, em “Crítica da Razão Idolátrica”,
de Ricardo Timm de Souza (2020, p. 213):
“O fato é que suas derivações [do positivismo] nos envol-
vem com uma peculiar despersonalização da realidade,
transformada em fórmula de si mesma, na realização do
sonho moderno e sempre reatualizado da mathesis uni-
versalis. O esforço monumental de objetivação da razão
científica conduz a esse estado de coisas, como vimos
anteriormente: máquinas que geram máquinas, e pesso-
as que pensam e agem como máquinas. Tudo em nome
de uma objetividade elevada ao nível de ideal de razão,
de ideia reguladora do pensar e do agir. A razão teórica,
que conquistou seu espaço ao longo dos séculos, graças à
confiança irrestrita em seu potencial de desenvolvimento
que lhe devotaram aqueles para quem o essencial da vida
humana consiste em sublimar tudo o que não seja teori-
zável exatamente numa teoria, transforma-se – como Ber-
gson bem notou – em ‘metafísica’. Uma metafísica pos-
sivelmente inconsciente, porém, não inocente. No jogo
das objetivações, não há espaço para ingenuidades, mas
apenas para sua própria lógica – e essa lógica, nem sem-
pre facilmente inteligível, tem muitas vezes razões que
aqueles que a cultivam como critério máximo de verdade
ignoram, ou fingem, ou pretendem, ignorar”.
A valoração (qualificação ou desqualificação) de um
modo de produção científica ocorre sempre desde um de-
terminado paradigma teórico e envolve, inequivocamente,
disputa pelo lugar da fala autorizada. Afirmar, p. ex., que
“não existe pesquisa criminológica no Brasil” é nada mais
do que revelar o desconforto de certa comunidade científica
com formas distintas de condução da reflexão criminológica;
é não reconhecer como legítimo um estilo de pesquisa dife-

28
rente só porque não é aquele compartilhado pelo seu grupo
de (auto)referência. Nunca, porém, esse juízo será objetivo;
nunca partirá de um local neutro – e se a deslegitimação
se autoproclamar neutra é porque a sua teoria informadora
tornou-se ideologia.1 Trata-se de um julgamento enunciado
desde o interior de um paradigma que, ao se autoconferir au-
toridade (“superioridade científica”), não reconhece outros
paradigmas como válidos (“científicos”).
Inevitável, pois, perceber os ambiciosos jogos de po-
der e os interesses, muitas vezes econômicos, inclusive, que
envolvem essa disputa pelo locus da fala científica, sobre o
que se pode ou não se pode dizer Criminologia, no caso.
Foucault (1986, p. 170) sublinha que a imposição de um sa-
ber sempre relega as demais possibilidades de interpretação
sobre o mesmo fenômeno ao posto de saberes dominados:
“saberes desqualificados como não competentes ou insufi-
cientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamen-
te inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conheci-
mento ou cientificidade”. Não por outro motivo, alerta que
temos de “admitir que o poder produz saber (e não simples-
mente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque
é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que
não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1991, p. 30).

1
Nos termos propostos por Marcia Tiburi (2015, p. 19): “Não
existe prática sem teoria. Nem teoria sem algum efeito prático.
E se a teoria não está evidente em alguma prática que tomamos
como natural é sinal de que não podemos confiar nela. Ela se
tornou ideologia e a ‘prática’ natural é tão somente uma espécie
de cortina de fumaça que permanece onde está porque nunca
tentamos atravessá-la”. No campo criminológico, idênticas as
conclusões de Gómez Jaramillo/Silva García (2015, p. 31ss).

29
1.3. Estrutura do curso
Ao iniciar a organização do Curso, lembrei das pala-
vras introdutórias de Roberto Lyra Filho no “Compêndio de
Direito Penal” (1973, p. 13), quando refere que pretendia
apresentar uma memória da “melhor doutrina” em formato
de guia para o exercício da atividade docente. Estilo que
lembrava muito o “esforço vertical de ordem, síntese e sim-
plicidade”, de Roberto Lyra (pai) (1953, p. 14), em “Expres-
são mais simples do Direito Penal”.
O “Curso de Criminologia Crítica Brasileira” foi estrutu-
rado a partir de alguns ensaios que cometi para organizar a
sequência das minhas aulas de “Criminologia Crítica”, disci-
plina eletiva no curso de graduação da Faculdade Nacional
de Direito/UFRJ, e de “Teoria Crítica da Sociedade e Sistema
Punitivo”, tópico que ofereço no programa de pós-graduação
em “Direito e Sociedade” da Unilasalle/RS. Em ambas as ins-
tituições de ensino também desenvolvo projetos de pesquisa
sobre os sentidos, a formação e a atualidade da criminologia
crítica no Brasil – “Criminologia Crítica: sentidos e signi-
ficados”, FND/UFRJ; “Atualidade e Fontes da Criminologia
Crítica Brasileira”, Unilasalle.
Assim, nos últimos anos, procurei escrever alguns en-
saios que visavam suprir algumas lacunas que entendia rele-
vantes na história do pensamento criminológico crítico bra-
sileiro. Ensaios que, junto com outros textos mais antigos,
acabaram compondo o programa das referidas disciplinas.
Como entendi que havia um eixo no debate e uma certa
sequência lógica no desenvolvimento da matéria, resolvi
reunir o material e apresentá-lo em forma de Curso. Os tra-
balhos mais antigos (e mesmo alguns mais recentes) foram
atualizados e revisados, sobretudo para que não houvesse
sobreposição de temas.
No entanto, como algumas “aulas” do Curso foram pu-
blicadas de forma autônoma em periódicos da área, foi ine-

30
vitável que alguns temas (e inclusive algumas citações) se
repetissem. Procurei reduzir ao máximo essas sobreposições.
Todavia, em alguns casos, entendi que seria pertinente man-
ter o texto mais próximo do original, mesmo que o debate
estivesse presente em outra “aula”, porque reforça o argu-
mento. Ao lembrar que o processo de aprendizado também
ocorre por acúmulo e revisão, abandonei a minha obsessão
de evitar a repetição e procurei deixar fluir o texto, como se
efetivamente estivesse em sala de aula dialogando com meus
alunos.
Lembro, também, que muitos artigos foram publicados
em coautoria com queridos colegas que autorizaram expres-
samente a inclusão do material no Curso. A troca acadêmi-
ca com André Giamberardino (segunda aula), Lucas Vianna
Matos (aulas sexta e décima quarta), Mariana de Assis Bra-
sil e Weigert (aula décima), Salah Khaled Jr. e José Antônio
Gerzson Linck (aula décima terceira) e Daniel Achutti (aula
décima quinta) foi essencial para o amadurecimento de al-
gumas discussões.
O Curso está organizado em quatro partes e quinze aulas
(contando essa aula introdutória). A primeira parte, intitula-
da “Criminologia Crítica: dimensões conceituais”, apresenta
o contexto da criminologia crítica no âmbito das ciências
em geral e da criminologia em particular. Procura, sobre-
tudo, localizar a criminologia crítica como desdobramento
da teoria crítica (Escola de Frankfurt) nas ciências criminais
e identificar o seu estatuto prático-teórico em oposição às
teorias e criminologias tradicionais (positivistas). A segun-
da parte, nominada “Criminologia Crítica: a construção do
pensamento contra-hegemônico marginal”, centra o debate
no contexto nacional, objetivando (primeiro) identificar o
pensamento criminológico contra-hegemônico (mesmo em
vertentes positivistas) e (segundo) demarcar os autores, os
temas e os problemas enfrentados no período de construção

31
da criminologia crítica brasileira. Na terceira parte, “Atuali-
dade e perspectivas da criminologia crítica no Brasil”, tra-
balho algumas correntes criminológicas atuais (criminologias
feminista, queer e cultural) que entendo serem igualmente
desdobramentos da teoria crítica da sociedade no campo
criminológico e que se alinham à criminologia crítica na re-
flexão sobre as violências interpessoal, institucional, estrutural
e simbólica. Na parte final, “Desafios da Criminologia Crítica
no Brasil”, procuro enfrentar o que se convencionou chamar
de “crise da criminologia crítica”, demonstrar a relevância da
crítica criminológica e apontar algumas linhas de fuga possí-
veis que podem orientar a ação (criminologia da práxis).

1.4. Criminologia tradicional: objeto, método e con-


ceitos preliminares
Pavarini (1994; 2008) identificava uma espécie de “ten-
tação suicida” da ciência criminológica. O fato de a crimi-
nologia, em inúmeros momentos e nas mais diversas tendên-
cias, negar-se como disciplina seria decorrência de variáveis
de ordem epistemológica e metodológica que, desde a sua
invenção, colocam em dúvida o seu estatuto científico. Den-
tre as principais variáveis, Pavarini (1994, p. 44; 2008, p.
28) destaca a inerente interdisciplinaridade que conduz à
elaboração de um “saber confuso, sintético, predatório de
outros saberes”. Em realidade, os horizontes de investigação
da criminologia são múltiplos e inexiste qualquer consenso
no mainstream acadêmico sobre o seu objeto – “território
de fronteiras confusas, transdisciplinar por excelência”, se-
gundo Vera Malaguti Batista (2011, p. 15). Por isso é que a
criminologia se caracterizaria como “saber predatório” que,
de forma recorrente, viola as fronteiras de outras disciplinas
(Pavarini, idem).
As indefinições sobre o objeto, que se desdobram ime-
diatamente nas imprecisões quanto aos métodos, estariam

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