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STONE, Sandy. O Império Contra-Ataca: Um Manifesto Pós-Transexual [1987].

Tradução Livre
da 4ª Edição do Texto. Bibliopreta, 2022. (Título Original: The Empire Strikes Back: A
Posttransexual Manifesto)
Esta é uma tradução livre Bibliopreta. Ela pode e deve ser circulada, compartilhada, citada e
revisada livremente. Notas da tradução são sempre indicadas como tal, as demais notas
são originais do texto. As referências bibliográficas foram mantidas no inglês original.
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TRADUÇÃO BIBLIOPRETA:

O IMPÉRIO CONTRA-ATACA: UM MANIFESTO


PÓS-TRANSEXUAL
SANDY STONE
SANDY STONE: FEMINISTA LÉSBICA, VAMPIRA TRANSEXUAL, DARTH VADER DA TEORIA
QUEER — APRESENTAÇÃO DA TRADUTORA
Angie Barbosa
Estamos no final dos anos 70, e Allucquére Rosanne “Sandy” Stone está envolvida
em uma das maiores controvérsias sobre os engajamentos feministas contemporâneos
com as transfeminilidades. Já graduada, com um jeito “tímido e acadêmico”, e tendo
trabalhado como produtora musical de figuras como Jimi Hendrix, Sandy iniciou sua
transição no início da década após se mudar para Santa Cruz, Califórnia. Ela foi parte do
programa clínico de Disforia de Gênero de Stanford nos anos 70, e foi uma das figuras
centrais para a revisão das diretrizes do programa. Em 1975, ela começa a trabalhar com o
coletivo separatista lésbico Olivia Records, uma gravadora feminista. Ela era uma das únicas
mulheres engenheiras de som na região, e as integrantes da Olivia, completamente cientes
de que se tratava de uma “transie”, a convidaram e acolheram prontamente.
Como costumava ser o caso entre as feministas separatistas, trabalhar na Olivia não
era meramente trabalhar, mas fazer parte de uma coletividade e de uma irmandade
profunda entre mulheres. Apesar de não ter entendido de início a ideia de uma “música de
mulheres”, Stone logo se viu como alguém que fazia “música de mulheres para mullheres
como um ato político de amor”1. Mas sua presença na Olivia logo se tornaria um enorme
problema: após algum tempo trabalhando com a gravadora feminista, Stone se tornou alvo
de um dos mais coordenados ataques feministas radicais trans-excludentes da sua época.
Janice Raymond, autora de The Transsexual Empire (1979) — livro fundador para o discurso
feminista radical trans-excludente contemporâneo — teria enviado para a Olivia um
rascunho de um dos capítulos do livro, entitulado “Sappho by Surgery”.
Entre muitas outras coisas, o argumento central do livro defendia que o
estabelecimento das Clínicas de Identidade de Gênero dos anos 50 e 60 representaria a
criação de um “Império Transexual” voltado para a construção cirúrgica de mulheres que
operariam como o fetiche supremo masculino — comparando esse império a uma “Solução
Final” nazista para as mulheres. Essa construção patriarcal de um corpo feminino que
incorpora o olhar masculino em sua essência mais profunda (afinal, é uma feminilidade
construída de homens para homens em corpos masculinos!) operaria como uma entidade
reguladora de gênero, perpetuando estereótipos e papéis que estimulariam um controle
masculino ainda mais violento sobre as mulheres. Mais do que isso — Raymond propôs que
a apropriação cirúrgica masculina do corpo feminino, o poder “ser mulher” sem o
consentimento das mulheres, representaria a realização mais completa do estupro.

1
Ver entrevista de Stone para a Trans Advocate em:
https://www.transadvocate.com/terf-violence-and-sandy-stone_n_14360.htm

1
Transexuais seriam, portanto, homens que invadem os corpos das mulheres ao se
tornarem mulheres, Buffalo Bill style.2
Se tratando de Stone, Raymond prontamente sugeriu, sem nenhum espaço para
dúvida, que a presença de uma transexual em um coletivo lésbico separatista era a
evidência mais que suficiente de que a transexualidade seria uma manifestação do
comportamento masculino, naturalmente invasivo. De acordo com Raymond, apenas um
homem poderia se infiltrar num coletivo lésbico feminista e tomar uma posição essencial e
“dominante” nele, causando uma inevitável discórdia entre as
mulheres-identificadas-mulheres. O livro de Raymond é marcado por ataques
assustadoramente pessoais contra Stone, embora Stone e Raymond nunca tivessem se
conhecido pessoalmente.
Por mais que as feministas realmente dedicadas a um projeto trans-excludente
fossem uma minoria na época, elas eram implacáveis, e muito bem organizadas. Sem que
ela mesma tivesse conhecimento disso, Stone era um dilema gigantesco para a
comunidade lésbica separatista. Segundo Stone, em um encontro de escritoras feministas
nos anos 70, o item “O que faremos sobre Sandy Stone?” já constava em uma lista dos “10
maiores problemas para a comunidade das mulheres”.3 Pouco depois do episódio com
Raymond, a Olivia começaria a receber inúmeras cartas de ódio com um modelo padrão:
elas começavam falando sobre como a última produção da gravadora era horrorosa, e
então mencionavam o conhecimento sobre a presença de uma transexual no grupo,
sugerindo que a péssima qualidade do trabalho teria a ver com um “estilo masculino” de
mixagem. As cartas começaram a chegar com cada vez mais frequência, e assumindo um
tom cada vez mais violento, até o ponto de conterem ameaças contra a segurança de Stone
e do grupo.
Mesmo enfrentando o assédio, as integrantes da Olivia Records não tinham ideia do
tamanho e da gravidade que esse debate já teria alcançado. Onde quer que elas fossem,
grupos furiosos de mulheres convencidas de que a presença de Stone era uma ameaça
para a comunidade das mulheres estavam prontos para recebê-las — e o diálogo não
parecia uma opção, pois toda e qualquer resposta de Stone ou das integrantes da Olivia
parecia incriminá-las ainda mais. As integrantes da Olivia, no entanto, defenderam Stone
insistentemente, ao ponto que a permanência de Stone no grupo quase gerou conflitos
físicos graves entre o grupo e as separatistas, que chegaram ao ponto de ameaçar Sandy
de morte. Após a onda de assédio, e contra a vontade do grupo, Sandy decidiu deixar a

2
Para uma análise crítica detalhada da obra de Raymond, ver: BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Discursos
transfeministas e feministas radicais: disputas pela significação da mulher no feminismo.
Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem Campinas, 2019.
3
Ver: GABRIEL, Davina Anne. Interview with the transsexual vampire: Sandy Stone's dark gift. In:
TransSisters: The Journal of Transsexual Feminism. no. 8, 1995 - p. 17.

2
gravadora em 1979. Mas o assédio não a deixaria em paz por muito tempo. A esse ponto, a
publicação de The Transsexual Empire e a amplitude da controvérsia na mídia teriam criado
o levante de um sentimento anti-trans irreversível nas comunidades feministas da época, e
embora as feministas trans-excludentes permanecessem uma minoria, agora elas se
tornavam um grupo cada vez mais estável e ativo — de fato, muitos dos espaços feministas
que passaram a excluir mulheres trans na década de 70 eram espaços inicialmente
inclusivos que foram alvos de intensas campanhas de assédio e ódio por parte de setores
minoritários de feministas anti-trans. No entanto, os primórdios de um movimento
transfeminista também começaram a se formar no fim dos anos 70.
De volta a Santa Cruz, ao longo da década de 80, Stone retornaria lentamente para
a academia. Ela começou a trabalhar com informática e se tornou uma programadora,
supervisora de engenharia e consultora reconhecida do Vale do Silício, o que marcou seu
interesse crescente pelas transformações tecnológicas e pela cultura virtual. No início da
década de 80, Sandy se tornou amiga de Donna Haraway, que se tornaria sua orientadora
em 1987. Naquele momento, Haraway estava no processo de escrita de seu “Manifesto
Ciborgue”, e seu pensamento influenciaria profundamente o trabalho de Stone. Foi no
início do seu doutorado, quase 10 anos depois do conflito com Raymond, que Stone viria a
produzir seu mais famoso ensaio, O Império Contra-Ataca: Um Manifesto Pós-Transexual (O
filme homônimo de Star Wars teria estreado em 1980). Embora o texto tenha sido
apresentado em 1987, ele só veio a ser oficialmente publicado no ano de 1991, na
antologia feminista Body Guards: The Cultural Politics of Gender Ambiguity. Nesse ensaio,
que é considerado fundador dos estudos críticos trans contemporâneos, Stone responde
simultaneamente às acusações de Raymond e às teorias da patologização trans mais
influentes do século XX. Mas esse texto não deve ser encarado como meramente uma
resposta. As formulações originais de Stone, embora informadas pelos conflitos e pela sua
experiência prática com os programas de Disforia de Gênero, partem do seu complexo e
sofisticado pensamento sobre cultura, interfaces, agência e linguagem. Stone acompanhou
não apenas o trabalho de Haraway, mas também o de precursoras dos estudos queer como
Gloria Anzaldúa (a primeira a trazer a palavra “queer” para o contexto acadêmico) e Teresa
de Lauretis; Ela acompanhou também o trabalho inicial de Judith Butler que teria levado à
publicação de 1990 de Problemas de Gênero. O trabalho de Stone se alimentou da extensa
tradição pós-estruturalista que inspirava os estudos de gênero e da sexualidade nas
décadas de 80 e 90.
O Manifesto de Stone inicia com uma dramática narrativa autobiográfica da
transexual Jan Morris. O fio condutor do texto se apoia nos complicados rituais
relacionados ao momento emblemático da “mudança de sexo” das transexuais, um
momento performativo onde homem se torna — ou deve se tornar — mulher: sem

3
arrependimentos, sem ambiguidade, sem traço de dúvida. Stone analisa também os relatos
biográficos, autobiográficos ou semi-autobiográficos das transexuais Hedy Jo Star,
Cannary Conn e Lili Elbe, junto a uma incisiva genealogia crítica do surgimento das clínicas
de disforia de gênero e seus principais discursos a partir dos anos 50 e 60.
Os anos 50 e 60 foram marcados por uma série de transformações centrais para as
relações de gênero: novas necessidades de regulação da força de trabalho após o aumento
exponencial do contingente de mulheres na indústria e em empregos formais durante a
Segunda Guerra que criaram imagens novas para a feminilidade do século XX; o
desenvolvimento da pornografia contemporânea pelo uso das imagens de pin-up girls em
tecnologias de guerra e a fundação da revista Playboy; a invenção, testagem e
comercialização da pílula anticoncepcional e dos esteróides anabolizantes; o
desenvolvimento de novas técnicas eficientes de vaginoplastia para redesignação sexual; a
transição acompanhada pela mídia de Christine Jorgensen; a invenção de John Money dos
conceitos de papel e identidade de gênero e o estabelecimento das primeiras Clínicas de
Disforia de Gênero; a publicação dos relatórios Kinsey de 1948 e 1953 que agitaram o
debate público sobre a sexualidade e permitiram a popularização das identidades
“heterossexual” e “homossexual”; a publicação da obra de Harry Benjamin The Transsexual
Phenomenon (1966), os levantes de Stonewall e a fundação do movimento da Liberação
Gay estadunidense. Com tantas transformações políticas e tecnológicas rápidas, mutantes
e em intenso diálogo com a Guerra, não é de se admirar que uma feminista já um tanto
suspeita enxergaria o nascimento de um verdadeiro “Império” onde a artificialidade do
gênero tomaria novas formas contra as mulheres. De fato, as primeiras clínicas acadêmicas
de Disforia de Gênero impunham sobre as mulheres transexuais critérios extremamente
patriarcais de feminilidade — e a única opção de muitas transexuais era se conformar com
essas narrativas. Mas Stone reconhece a rigidez desses critérios e a cumplicidade trans
com eles não como efeito de uma enorme conspiração falocrática entre médicos cis e
mulheres trans (embora essa seja, de verdade, uma narrativa muito divertida de ficção
científica), mas como um efeito de interesses de segurança profissional e controle social
por parte dos médicos, de acesso à saúde por parte de mulheres transexuais, e de uma
ansiedade geral de todas as pessoas envolvidas em buscar algum retorno à “Normalidade”
e à “Natureza” em um contexto de intensa transformação do gênero.
Talvez uma das características mais marcantes do Manifesto seja sua posição
radicalmente crítica que insiste em colocar em evidência a agência das mulheres
transexuais. Stone recusa simultaneamente a narrativa médica que considera as
transexuais como pessoas confusas, irracionais e incapazes de assumir uma agência e uma
subjetividade crítica, a narrativa feminista totalizante que as representa como agentes
patriarcais perigosas, irresponsáveis e unidimensionalizadas, e ao mesmo tempo uma

4
narrativa que poderia representar a transexual como mera vítima dos sistemas
contemporâneos de gênero e dos estabelecimentos médico-legais. Ela localiza a agência
transfeminina nas tensões, pressões, cumplicidades, acordos, negociações e batalhas
travadas tanto com a clínica quanto com a rua e seus processos de reconhecimento. A
responsabilização que Stone insiste em impor às transexuais sobre suas próprias vidas e
seus engajamentos com o sistema de gênero é, na verdade, uma forma de recuperar o
poder e a autonomia transfeminina.
Rejeitando uma identidade monolítica e uma narrativa excessivamente binária para
as experiências transexuais, ela toma a corajosa decisão de se valer das mesmas suspeitas
que suas críticas feministas mais vorazes — afinal, mona, até nós temos nossas suspeitas
sobre as narrativas que contam sobre nós. Visualizando a confluência de momentos
narrativos, autoridades textuais e tecnologias de inscrição na clínica, Stone conceitualizará
as mudanças de sexo enquanto texto, e a condição trans enquanto um complexo gênero
textual, que, segundo sua definição, implica em um “aglomerado de códigos, às vezes
muito sutis e elusivos, que constroem nossas expectativas e sensibilidades em relação a
uma determinada estética”4. Criticando as contradições da literatura clínica, que exigem
das transexuais uma narrativa e experiência absolutamente não-ambíguas, sua afirmação
de que a atuação dos critérios diagnósticos para o transexualismo representam “uma
instância real do dispositivo de produção do gênero” antecipa fortemente o esforço
genealógico de Paul Preciado em seu Testo Junkie (2008). A definição da transgeneridade
enquanto gênero textual recusa os binarismos que obrigam a experiência trans a se
apagar/editar/ser editada biograficamente de um modo totalizante para se adequar a uma
narrativa inequivocamente masculina ou inequivocamente feminina desprovida de
ambiguidades. Uma posição radical contra a autoridade discursiva despótica da Natureza
sobre a dissidência sexual e de gênero — que viria a se tornar, muitos anos depois, a
definição da contrassexualidade de Preciado — também marca seu pensamento. Em uma
entrevista de 1993 sobre seu Manifesto, ela declara:

O que eu estou dizendo é que um dos modos pelos quais as


pessoas justificam a opressão de pessoas de qualquer gênero ou
sexualidade alternativa é dizendo que a norma social é natural. Isto é, que
ela se origina na autoridade da própria Natureza. Em outras palavras, ela
vem de Deus, uma autoridade para a qual não há apelo. Tudo isso é, de
fato, uma completa fabricação, uma construção. Não há nenhum “sexo
natural” pois o “sexo” mesmo como uma categoria médica ou cultural não

4
Gabriel, p. 24.

5
é nada mais do que o resultado momentâneo das batalhas sobre quem
controla os significados da categoria.5

A clínica de disforia de gênero é um espaço de disputa e controle desses


significados, onde o principal objetivo é a produção de “não simplesmente fêmeas
anatomicamente legíveis mas mulheres…ou seja, fêmeas generificadas”. A negação de
cuidados de saúde, a castração da sexualidade transfeminina e o terror psicológico
violento são ferramentas de adequação desses dispositivos. Contra a relação textualmente
violenta do corpo trans com a clínica, o pós-transexualismo de Stone é o gênero textual
que permite que a pessoa trans “se leia em voz alta”, aceitando radicalmente suas
ambiguidades, continuidades, contradições, interrupções, transformações e permanências:
“Naquela época, ‘pós-transexualismo’ significava para mim transexuais que reconhecem e
afirmam toda a sua história pessoal, todo o seu passado, desde o nascimento — o seu
masculino, seu feminino, seu Outro — tudo o que fizeram que fosse bom, mau ou
indiferente.”6 A pós-transexual, falando na glossolalia ciborgue de Haraway, seria a
engrenagem emperrada do sistema de gênero. O Império Transexual de fato contra-ataca:
a pós-transexual derrubaria com um superlaser da Estrela da Morte os pressupostos tanto
das jedis feministas trans excludentes anti-imperialistas quanto da classe médica sith
tecnocrata de gênero. Em um tempo em que “a essência do transexualismo é passar” — a
passabilidade aqui significando apagamento — Stone convida todas as transexuais a
abraçarem a possibilidade coletiva de tornarem-se visíveis. Para ela, a negação da mistura
e a busca da passabilidade excluem a possibilidade de uma vida autêntica. Ler-se em voz
alta a pós-transexual deve! Aceitando essa intertextualidade, a possibilidade de falar
múltiplas linguagens da identidade e da vida trans, “devemos começar a rearticular a
linguagem fundacional através da qual tanto a sexualidade quanto a transexualidade são
descritas”.

Agora, às vezes é útil compreender o mundo “lendo” ele, aplicando


técnicas de análise textual. O pressuposto aqui é que somos todos
narradores compulsórios, que toda a ação civilizada consciente pode ser
interpretada como a narrativa de uma história…prédios contam histórias
de riqueza relativa, carros contam histórias de velocidade e prestígio. E
corpos contam histórias muito complexas de desejo e aventura, fracasso e
conquista, dominação e submissão. [...] Agora se substituirmos “homem”,
“mulher”, “corpos” por “texto”, estamos falando dos tipos de violência
textual que eu sugeri. Quando construímos a história que nossos corpos

5
Gabriel, p. 21.
6
Gabriel, p. 22.

6
contam de um modo que perturba os mecanismos de significação, estamos
incorporando a violência textual.7

Stone revolucionou os estudos trans e lançou as bases para uma disputa queer das
gramáticas de gênero, mas seu nome parece estranhamente ausente das obras e
discussões queer contemporâneas.
Embora Stone tenha estado em um diálogo direto com Judith Butler, por exemplo,
ela nunca é citada em nenhuma das principais obras da “Butler do Gênero”. Gender Trouble
(1990), Bodies That Matter (1993/1996) e Undoing Gender (2004) são levados como
referências padrão para as discussões contemporâneas da academia queer sobre pessoas
trans, especialmente as discussões da academia queer brasileira sobre as travestis, mas
muitas discussões realizadas por Butler, especialmente aquelas realizadas no ensaio
“Desdiagnosticando o Gênero”, já tinham sido antecipadas pelo Manifesto de Stone. A
obra de Paul Preciado, embora cite brevemente o nome de Stone (sem maiores
comentários sobre suas contribuições ou mesmo quem ela é) no Testo Junkie, também não
parece tomar a articulação de Stone das teorias pós-estruturalistas, sua análise claramente
Harawayana das tecnologias de gênero e sua genealogia crítica das teorias trans do século
XX como uma referência digna de comentário.
Curiosamente, Stone parece existir para uma influente intelectual da academia
queer brasileira, mas com certas ressalvas: a obra de Berenice Bento A Reinvenção do Corpo
(2006), que trata das experiências trans que não se encaixam nos rígidos critérios
diagnósticos das teorias médicas contemporâneas, inclui o ensaio de Stone em suas
referências. Buscar onde ele está referenciado, no entanto, leva a um resultado
decepcionante: numa brevíssima menção em uma nota de rodapé à declaração de uma
feminista radical trans-excludente, na página 83, Stone é mencionada como uma
“conhecida teórica transexual norte-americana” que escreveu uma resposta para as
acusações de Janice Raymond em 1997 (a data de escrita e publicação do ensaio é
apontada incorretamente no livro). Nenhuma outra menção às contribuições de Stone para
a genealogia crítica das teorias clássicas do transexualismo é realizada no livro. Outro
artigo de Bento chega a incluir Stone em suas referências, mas nunca a cita, uma relação
muito emblemática, que marca a posição transfeminina nos planos de fundo das discussões
queer: conhecimento utilizado e referenciado, mas de modo que o tamanho ou a qualidade
da contribuição nunca são mencionados de fato. Essa relação contraditória das mulheres
trans e travestis com o queer parece ter uma fórmula: quando é referenciada, não é
citada/quando é citada, nunca é como referência. Em outro texto, Bento chega a realizar
uma breve citação de Stone, de que “a origem das clínicas de disforia de gênero é um olhar
7
Gabriel, p.23-24.

7
microcósmico para a construção dos critérios do gênero”, mas nenhuma outra discussão é
realizada sobre o seu texto. Ela também está ausente da obra da mais popular teórica
queer brasileira, Guacira Lopes Louro. O pensamento de Stone parece localizado
simultaneamente dentro e fora do queer. No incrível e polêmico ensaio Manifestações
Textuais (Insubmissas) Travesti (2020), das transfeministas Bruna Benevides, Megg Rayara
Gomes e Sara Wagner York, é mencionada uma “trilogia queer dos manifestos” que incluiria
o Manifesto Ciborgue (Haraway), o Manifesto Contrassexual (Preciado) e o Manifesto Gaga
(Halberstam); nosso Manifesto Pós-Transexual, infelizmente, permanece ausente.
Stone fará aparições ainda tímidas — mas que reconhecem em mais detalhes a
profundidade do seu pensamento — nas dissertações das transfeministas Viviane
Vergueiro (2015) e Beatriz Bagagli (2019), e conta com algumas menções no blog
transfeminismo.com.
Quem é essa “conhecida teórica transexual norte-americana” e porque o silêncio
queer sobre a sua presença e suas contribuições teóricas permanece tão ensurdecedor? Na
academia queer, Sandy Stone pode ter tido um nome e até mesmo uma reputação, mas
aparentemente nunca teve uma voz. No corpo e no pensamento de Sandy Stone, as
transformações tecnológicas vorazes do Capitalismo tardio, os novos regimes de produção
de subjetividade, a construção histórica das identidades trans no século XX, as viradas
anti-trans no feminismo e o início dos estudos queer se encontram com uma criatividade e
voracidade sem precedentes. Como uma presença transfeminina, no entanto, seu nome
permanece consideravelmente apagado e longe dos cânones da academia queer. Assim
como foi nos anos 70, estamos num novo momento emblemático e assustador, de um
ataque flagrante do Estado aos direitos trans, levantes TERFistas em expansão no
feminismo, e ressurgimento de tendências fascistas, mas as novas potências críticas
transfeministas não param de surgir. Como nos anos 90, estamos novamente de frente
para o geist de um novo tempo no transfeminismo. Traduzindo The Empire Strikes Back, só
posso esperar que Stone possa ter seu papel interpretando o Darth Vader para o Luke
Skywalker da Teoria Queer como interpretou o Darth Vader de Janice Raymond nos anos
80.

8
O IMPÉRIO CONTRA-ATACA: UM MANIFESTO PÓS-TRANSEXUAL
Sandy Stone

1. De sapos a princesas

As colinas verdejantes de Casablanca encaram as casas e lojas abarrotadas contra


ruas estreitas e tortuosas, cheias de odores de especiarias e merda. Casablanca é uma
cidade muito antiga, ignorada por Lawrence Durrell talvez apenas por um acidente
geográfico como o lagar do amor. No quarteirão mais moderno, localizado numa avenida
larga e ensolarada, está um prédio que não seria particularmente interessante, senão por
uma pequena placa de latão que o identificava como a clínica do Dr. Georges Burou. A
clínica é predominantemente dedicada à obstetrícia e ginecologia, mas por muitos anos
manteve outra reputação bastante desconhecida pelo mar de mulheres marroquinas que
passam pelas suas salas.
Dr. Burou está sendo visitado pelo jornalista James Morris. Morris está inquieto
numa antessala lendo Elle e Paris-Match com sem muita atenção, porque ele está em uma
tarefa de imenso valor pessoal. Finalmente, a recepcionista chama por ele, e ele é
apresentado ao santuário interno. Ele relata:

Eu fui levado por corredores e lances de escada para dentro das


instalações internas da clínica. A atmosfera se adensava conforme
seguíamos. As salas se tornavam mais pesadas em cortinas, mais
aveludadas, mais voluptuosas. Alguns retratos de bustos apareceram, e eu
acho que havia uma pitada de um perfume pesado. Logo eu vi, vindo em
minha direção pelas alcovas escuras daquele recinto, que me sugeriam
distintamente a sedução de um harém, uma figura não menos
reconhecivelmente odalisca. Era Madame Burou. Ela estava vestida em
uma longa túnica branca, com borlas, acho, na cintura, que sutilmente
conseguiam combinar o luxo de uma caftan com a higiene de um uniforme
de enfermeira, e ela mesma era loira, e cuidadosamente
misteriosa…Forças além do meu controle me trouxeram para a Sala 5 da
clínica em Casablanca, e eu não poderia fugir mesmo que eu quisesse…Eu
fui dizer adeus a mim mesmo no espelho. Nós nunca mais nos
encontraríamos, e eu queria dar àquele outro eu uma longa última troca
de olhares, e uma piscadela de boa sorte. Enquanto eu o fazia, um
vendedor de rua lá fora tocava um delicado arpeggio em sua flauta, um
som muito gentil e agradável que ele repetia, de novo e de novo, num

9
doce diminuendo rua abaixo. O vôo dos anjos, eu disse pra mim mesmo, e
então cambaleei…para minha cama, e para o esquecimento.8

Sai James Morris, entra Jan Morris, pela intervenção das práticas médicas do fim do
século XX nessa maravilhosa narrativa “oriental”, quase religiosa de transformação. A
passagem é de Conundrum, a história da “mudança de sexo” de Morris e as consequências
para a vida dela. Além da piscadela de boa sorte, há outra cerimônia obrigatória conhecida
para as transexuais male-to-female9, que é chamada “descabelar o palhaço”10, embora não
seja registrado se Morris também a realizou. Eu retornarei a esse rito de passagem em
mais detalhes posteriormente.

2. Fazendo história

Imagine agora uma rápida sequência indo dos becos agitados de Casablanca às
colinas verdejantes de Palo Alto. O Stanford Gender Dysphoria Program ocupa uma
pequena sala perto do campus em uma seção residencial quieta dessa comunidade
afluente. O programa, que é complementar à clínica de Georges Burou no Marrocos, foi
por muitos anos o foco acadêmico dos estudos da síndrome de disforia de gênero,
também conhecida como transexualismo, no Ocidente. Aqui determinam-se a etiologia, os
critérios diagnósticos e o tratamento.
O programa começou em 1968, e sua equipe de cirurgiões e psicólogos foi de
pronto buscar o máximo de história que houvesse disponível sobre a matéria do
transexualismo. Deixem-me pausar para apresentar um resumo breve dos seus resultados:
um transexual é uma pessoa que identifica a identidade de gênero dele ou dela com
aquela do gênero “oposto”. Sexo e gênero são questões bastante separadas, mas
transexuais frequentemente borram as distinções, confundindo o caráter performativo do
gênero com o “fato” físico do sexo, referindo-se à sua percepção de sua situação como a de
estar “no corpo errado”. Embora o termo transexual seja recente em sua origem, o
fenômeno não é. A menção mais antiga de algo que podemos reconhecer como
transexualismo ex post facto, à luz dos atuais critérios diagnósticos, foi a do rei Assírio
Sardanapalus, que tem relatos de ter se vestido em roupas de mulher e tecido com suas

8
Jan Morris, 1974. Conundrum. New York: Harcourt Brace Jovanovich. [155]
9
Nota da Tradução: o termo “Male-To-Female” (homem-para-mulher) tem sido, desde muito tempo,
uma maneira popular de descrever as experiências de transfeminilidade. Daqui pra frente, quando o
termo aparecer, será abreviado para a sigla MTF.
10
Nota da Tradução: no inglês, o termo original “wringing the turkey’s neck” pode ser traduzido
literalmente para algo como “torcer o pescoço do peru”. Para contextualizar a fala em uma expressão
popular brasileira, optamos pelo uso de “descabelar o palhaço”.

10
esposas.11 Instâncias posteriores de algo muito parecido com o transexualismo foram
relatadas por Filo da Judéia, durante o Império Romano. No século XVIII, o cavalheiro
d’Eon, que viveu por 39 anos no papel feminino, foi um rival de Madame Pompadour pela
atenção de Luís XV. O primeiro governador colonial de Nova Iorque, Lord Cornbury, veio da
Inglaterra totalmente vestido de mulher e assim permaneceu durante todo o seu tempo
de exercício do cargo.12
O transexualismo não recebeu o status de um “transtorno oficial” até 1980, quando
foi listado pela primeira vez no American Psychiatric Association Diagnostic and Statistic
Manual [Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais — DSM]. Como aponta
Maria Mehl, esse é um tipo de vitória Pírrica.13 Antes de 1980, muito trabalho já havia sido
feito na tentativa de definir critérios para um diagnóstico diferencial. Um exemplo dos
anos 70 é esse, do trabalho levado por Leslie Lothstein e relatado em Transsexualism and
Sex Reassignment, de Walters e Ross:14

Lothstein, em seu estudo com dez transexuais de idade [idade


média 52], descobriu que os testes psicológicos ajudavam a determinar a
extensão da patologia do paciente (sic)...[ele] concluiu que [transexuais,
como uma classe] eram indivíduos deprimidos, isolados, ariscos e
esquizóides com intensos conflitos de dependência. Além do mais, eles
eram imaturos, narcísicos, egocêntricos e potencialmente explosivos,
enquanto suas tentativas de obter [assistência profissional] eram
exigentes, manipulativas, controladoras, coercivas e paranóicas.15

Aqui outro:

Em um estudo com 56 transexuais os resultados das escalas de


esquizofrenia e depressão estavam acima do limite superior da faixa
normal. Os autores vêem esses perfis como refletindo os estilos de vida
confusos e bizarros dos sujeitos.16

11
Em Walters, William A.W., and Michael W. Ross, 1986. "Transsexualism and Sex Reassignment." Oxford:
Oxford University Press [2,1].
12
Essa história resumida é relatada na introdução da obra de Richard Docter "Transvestites and
Transsexuals: Toward a theory of cross-gender behavior", New York: Plenum Press, 1988. Ela também é
abordada por Judith Shapiro, e também por Janice Irvine.
13
Na introdução de Mehl a Betty Steiner [ed.], 1985. "Gender Dysphoria Syndrome: Development,
Research, Management." New York: Plenum Press.
14
Walters and Ross, op.cit.
15
Em Don Burnard and Michael W. Ross: "Psychosocial Aspects and Psychological Theory: What Can
Psychological Testing Reveal?" em Walters and Ross [58,2]
16
Walters and Ross [58,3]

11
Esses eram estudos clínicos, que representavam uma classe muito limitada de sujeitos.
Entretanto, esses estudos foram considerados suficientemente representativos para que
fossem reimpressos sem nenhum comentário crítico em coleções como as de Walters e
Ross. Mas posteriormente, em cada um dos artigos, descobrimos que cada investigador
invalida seus resultados em um breve aviso [disclaimer] que se parece com as letras miúdas
de um anúncio de cigarros: no primeiro, adicionando que “deve-se de admitir que os
sujeitos de Lothstein dificilmente poderiam ser considerados uma amostra típica, já que 9
dos 10 sujeitos estudados tinham sérios problemas de saúde física” (esse era um estudo
conduzido em uma clínica de saúde, não uma clínica de gênero), e, no segundo, com a
reflexão tardia de que “82% [dos sujeitos] eram prostitutos e eram atípicos em relação a
transexuais em outras partes do mundo.” Tais resultados poderiam ter sido considerados
marginais, restringidos como eram por marcadores de um método questionável ou
amostras excessivamente limitadas. Entretanto, eles vieram a representar transexuais na
literatura médico-legal/psicológica, com os avisos e tudo, quase até o momento presente.
Durante o mesmo período, as teóricas feministas desenvolviam suas próprias
análises. A questão rapidamente se tornou, e permanece, volátil e divisiva. Deixem-me
citar um exemplo:

O estupro...é uma violação masculinista da integridade corporal.


Todos os transexuais estupram os corpos das mulheres ao reduzir a forma
feminina a um artefato, apropriando esses corpos para si mesmos…O
estupro, embora seja normalmente feito à força, também pode ser feito
pela enganação.

Essa citação é da obra de 1979 de Janice Raymond, The Transsexual Empire: The Making of
The She-Male [O Império Transexual: a Construção do Traveco17] que ocasionou o título
desse texto. Eu li Raymond afirmar que transexuais são construções de um império
falocrático maligno e eram projetados [designed] para invadir os espaços das mulheres e se
apropriar do poder feminino. Embora Império tenha representado um momento específico
da análise feminista e prefigurado a apropriação da linguagem política liberal por uma
direita neoliberal, aqui em 1991, no décimo-primeiro aniversário de sua publicação, ele
ainda é a afirmação definitiva sobre o transexualismo por parte de uma acadêmica fêmea

17
A tradução do termo pejorativo “she-male” para o termo brasileiro “Traveco” foi sugerida uma vez
por Caia Maria Coelho. Embora os termos não sejam equivalentes, o valor simultaneamente sexual e
pejorativo permanece o mesmo.

12
genética.18 Para esclarecer meu posicionamento nessa discussão deixem-me citar mais uma
passagem de Império

O comportamento masculino é notavelmente intrusivo. É


significativo que as feministas lésbicas transexualmente construídas
tenham se inserido nas posições de importância e/ou performance na
comunidade feminista. Sandy Stone, o engenheiro transexual que está
com a Olivia Records, uma gravadora “só de mulheres”, ilustra bem isso.
Stone não é apenas crucial para o empreendimento da Olivia, mas também
exerce um papel bastante dominante lá. A visibilidade que ele atingiu após
a controvérsia da Olivia…só serve para realçar seu papel já dominador e
dividir as mulheres, conforme homens frequentemente fazem, quando
tornam as suas presenças necessárias e vitais para as mulheres. Como uma
mulher escreveu: “Eu me sinto estuprada quando Olivia faz o Sandy se
passar…por uma mulher de verdade. Depois de todo o privilégio
masculino dele, ele vai se beneficiar da cultura feminista lésbica também?”

Esse artigo, O Império Contra-Ataca, é sobre contos morais e mitos de origem,


sobre contar a “verdade” do gênero. Sua premissa é que “as artes técnicas sempre são
imaginadas como subordinadas à ideia artística dominante, ela mesma autoritariamente
enraizada na própria vida da Natureza.”19 Ele é sobre a imagem, e a real definição mútua
que fazemos uns dos outros através das inscrições práticas de leitura do capitalismo
tardio. É sobre pós-modernismo, e (se eu ouso dizer), pós-transexualismo. Todo o texto
tem uma grande dívida com o trabalho de Donna Haraway.

3. “Toda a realidade na cultura do Capitalismo tardio almeja tornar-se uma


imagem para sua própria segurança”20

Vamos nos voltar para as considerações das próprias transexuais. Durante esse
período, virtualmente todas as considerações publicadas foram escritas por MTFs. Eu
quero considerar brevemente quatro relatos autobiográficos de transexuais MTF, para ver

18
Há alguma esperança de que o trabalho de Judith Shapiro venha a substituir o de Raymond como
uma afirmação tão definitiva. As considerações de Shapiro parecem excelentemente equilibradas, e
ela está ciente de que há outras considerações de acadêmicas transexuais que não entraram no
discurso.
19
Essa maravilhosa frase é do texto de Donna Haraway: "Teddy Bear Patriarchy: Taxidermy in the
Garden Of Eden, New York City, 1908-1936", em Social Text 11, 11:20.
20
Haraway, op.cit. O caráter anedótico dessa seção é baseado em anotações de campo que não
tinham ainda sido organizadas e codificadas. Uma versão mais definitiva e talvez etnográfica desse
artigo, com citações apropriadas de profissionais e seus pacientes, aguarda tempo e financiamento de
pesquisa.

13
o que podemos aprender sobre o que elas pensam estar fazendo. (Eu considerarei
transexuais FTM em outro texto).
O relato parcialmente autobiográfico mais antigo de que se tem notícia é o de Lili
Elbe no livro de Niels Hoyer, Man Into Woman [De Homem a Mulher] (1993).21 O primeiro
livro inteiramente autobiográfico foi I Changed My Sex! [Eu Mudei meu Sexo!] (não
exatamente um título quieto e contemplativo), escrito pela artista de striptease Hedy Jo
Star em meados dos anos 50.22 Christine Jorgensen, que passou pela cirurgia no início dos
anos 50 e é discutivelmente a mais conhecida das transexuais recentes, não publicou sua
autobiografia até 1967; em vez disso, o livro de Star surfou na onda de publicidade em
torno da cirurgia de Jorgensen. Em 1974, Conundrum foi publicado, escrito pela popular
jornalista Inglesa Jan Morris. Em 1977, teve Canary, pela musicista e performer Canary
Conn.23 Além disso, muitas transexuais mantém algo que elas chamam pela gíria “O.T.F”: o
Obrigatory Transsexual File [Arquivo Transexual Obrigatório]. Esse arquivo normalmente
contém artigos de jornal e recortes de entradas proibidas de diários sobre
comportamentos “inapropriados” de gênero. Transexuais também colecionam literatura
autobiográfica. De acordo com o Stanford Gender Dysphoria Program, as clínicas médicas
não fazem isso, por considerar as considerações autobiográficas definitivamente não
confiáveis. Por causa disso, e já que uma grande porcentagem da literatura é invisível para
muitos sistemas de bibliotecas, essas coleções pessoais são a única fonte desse tipo de
informação. Eu tenho a sorte de ter algumas delas ao meu dispor.
Que tipo de sujeito é constituído nesses textos? Hoyer (representando Jacobson
representando Elbe, que está representando Wegener que representa Sparre)24, escreve:

Um único vislumbre desse homem a retirou toda a sua força. Ela


sentiu como se toda a sua personalidade tivesse sido esmagada por ele.
Com um único olhar, ele a extinguiu. Algo nela se rebelou. Ela sentiu-se
como uma menina em idade escolar, que acabara de ser ignorada por um
professor idealizado. Ela estava consciente de uma fraqueza peculiar em
todos os seus membros…foi a primeira vez que seu coração de mulher
tremeu diante de seu senhor e mestre, diante do homem que constitui-se

21
O sexólogo britânico Norman Haine escreveu a introdução, fazendo do livro de Hoyer, portanto,
uma contribuição semi-médica.
22
Hedy Jo Star [Carl Rollins Hammonds], 1955. I Changed My Sex! [de um OTF.] O livro de Star está
disponível na Amazon, embora sem notação sobre a editora, e em quantidade limitada.
23
Houve ao menos mais um outro livro publicado nesse período, “Second Serve”, de Renee Richards,
que não foi tratado aqui.
24
Niels Hoyer era o pseudônimo de Ernst Ludwig Hathern Jacobson; Lili Elbe foi o nome feminino
escolhido pelo artista Einar Wegener, cujo nome de batismo era Andrea Sparre. Essa profusão lexical
tem ricas implicações para os estudos dos limites do eu. Ver: Allucquére Rosanne Stone, 1992, "Virtual
Systems", in ZONE 6: Incorporations. New York: Urzone (MIT).

14
como seu protetor, e ela entendeu porque, então, ela se submeteu tão
completamente a ele e à sua vontade.25

Podemos impor a esse trecho todas as questões comuns: não por quem, mas para
quem Lili Elbe foi construída? Sob qual olhar o texto dela caía? E, consequentemente, que
histórias aparecem e desaparecem nesse tipo de sedução? Não será nenhuma surpresa que
todos os relatos que eu narrar aqui sejam similares em sua descrição da “mulher” como um
fetiche masculino, como réplica de um papel socialmente imposto, ou como constituída
por um gênero performativo. Lili Elbe desmaia na presença de sangue.26 Jan Morris, uma
jornalista de classe mundial já muito experiente, ainda descreve seu senso de si mesma em
relação a maquiagem e vestimenta, em relação a estar à mostra, e se agrada quando os
homens abrem portas pra ela:

Eu me sinto pequena, e arrumadinha. Eu não sou pequena de fato,


tampouco sou muito arrumada, mas a feminilidade conspira em me fazer
sentir assim. Minha blusa e saia são claras, brilhantes e frescas. Meus
sapatos fazem meus pés parecerem mais delicados do que são, além de
me darem…uma sugestão de vulnerabilidade que eu gosto muito. Minhas
pulseiras brancas e vermelhas me dão um ar vigoroso, minha bolsa
combina com meus sapatos e me faz me sentir bem organizada…Quando
eu saio na rua eu me sinto conscientemente pronta para a apreciação do
mundo, de um modo que eu nunca me senti como um homem.27

Hedy Jo Star, que foi uma stripper profissional, diz em I Changed My Sex!: "Eu queria
a sensualidade da lingerie se esfregando contra a minha pele, eu queria iluminar meu rosto
com cosméticos. Eu queria um homem forte para me proteger." Aqui em 1991 eu também
encontrei alguns homens que têm a coragem de ecoar esse sentimento para eles mesmos,
mas em 1955 essa era uma posição de propriedade feminina.
Fora a óbvia implicação desses relatos numa definição masculina branca ocidental
de um gênero performativo, as autoras também reforçam um modelo binário e oposicional
de identificações de gênero. Elas vão de serem homens sem ambiguidades, embora
homens infelizes, para mulheres sem ambiguidades. Não há nenhum território no meio.28
Ainda mais, cada uma constrói um momento narrativo específico quando a sua

25
Hoyer [163]
26
Hoyer [147]
27
Morris [174]
28
Em Conundrum, Morris descreve, sim, um período em sua jornada do masculino ao feminino [de
alguns anos antes da cirurgia para o momento logo depois dela] no qual o gênero dela era percebido,
por ela e por outras pessoas, como ambíguo. Ela é completamente inequívoca, no entanto, sobre o
momento de transição de homem para mulher.

15
identificação sexual pessoal mudou de homem/macho [male] para mulher/fêmea
[female].29 Esse momento é o momento da neocolporrafia — ou seja, da cirurgia de
redesignação de gênero ou “cirurgia de mudança de sexo”.30 Jan Morris, na noite da
véspera da sua cirurgia, escreveu: “Eu fui dizer adeus a mim mesmo no espelho. Nunca mais
nos veríamos, e eu queria dar a aquele outro eu uma última piscadela de boa sorte…”31
Canary Conn escreve: “Eu não sou um muchacho…eu sou uma muchacha
agora…uma menina (sic).”32
Hedy Jo Star escreve: “No instante em que eu acordei do anestésico, eu percebi
que finalmente tinha me tornado uma mulher.”33
Até Lili Elbe, cujo texto é de segunda-mão, usou os mesmos termos “De repente,
ocorreu a ele que ele, Andreas Sparre, estava provavelmente se despindo pela última vez.”
Imediatamente ao acordar do primeiro estágio da cirurgia (castração, no relato de Hoyer),
Sparre escreve uma nota. “Ele olhou para o papel e não reconheceu a escrita. Era a letra de
uma mulher.” Inger leva a nota ao médico: “O que você pensa disso, doutor? Um homem
não poderia ter escrito?” “Não,” disse o médico atônito, “não, você está realmente certo…”
— uma conversa que exige que o leitor se esqueça de que a caligrafia é uma habilidade
adquirida. O mesmo ocorre com a voz de Elbe: “o estranho é que sua voz mudou
34
completamente…Você tem uma voz soprano esplêndida! Simplesmente estonteante”.

29
Nota da Tradução: a ambiguidade dos termos “Male” e “Female”, no inglês, tem um importante
papel no texto de Stone. A palavra Male pode ser usada tanto para descrever homens, enquanto
gênero, e numa visão mais reducionista biológica, pessoas do sexo masculino/”machos”. O mesmo para
o termo Female em relação a mulheres/fêmeas. Para manter essa ambiguidade conceitual, escolhemos
usar os termos “homem/macho” e “mulher/fêmea”, onde apareceriam as palavras Male e Female, num
contexto ambíguo.
30
Redesignação de gênero é o termo disciplinar correto. No atual discurso médico, o sexo é
entendido como um fato físico natural que não pode ser mudado. — Comentário de Tradução:
embora tenha sido essa a terminologia utilizada na época de Stone, o termo “Redesignação Sexual”
retornou ao vocabulário político trans-travesti por dois motivos: (1) a problematização da ideia de
”redesignação de gênero” ou “atenção em saúde para afirmação de gênero”, sobretudo a partir da
perspectiva de que os gêneros de pessoas trans-travestis não precisam ser afirmados cirurgicamente
ou por outras tecnologias de saúde; (2) a popularização, nos estudos de gênero e nas ciências
humanas, do paradigma que compreende o “sexo”não como realidade biológica, mas como fenômeno
de inscrição cultural e interpretações históricas do corpo segundo as relações de gênero.
31
Morris [115]. Eu me lembrei desse relato nas vésperas da minha própria cirurgia. Caramba, eu pensei
que naquela ocasião, seria interessante se tornar magicamente outra pessoa daquela maneira binária
e definitiva. Então eu tentei — ir ao espelho e dizer adeus à pessoa que eu via ali — e infelizmente
não funcionou. Alguns dias depois, quando eu pude me ver no espelho de novo, a pessoa me olhando
de volta ainda era eu. Eu não entendo o que fiz errado.
32
Canary Conn, 1977. Canary: The story of a transsexual. New York: Bantam [271]. Conn teve a cirurgia
dela na clínica de Jesus Maria Barbosa na Tijuana. Nesse trecho, ela está falando com uma enfermeira
Mexicana; por isso os termos Mexicanos.
33
Star, op.cit.
34
Eu admito ter ficado tão atônita quanto o bom Doutor, já que exceto no relato de Hoyer, não há
nenhum outro registro de mudança no timbre ou tom de voz após a administração de hormônios ou
cirurgia de redesignação de gênero. Se as transexuais MTF conseguem mudar suas características
vocais, elas o fazem gradualmente e com muita dificuldade. Mas há problemas mais do que
suficientes na História Real de Lili Elbe, e não é o menor deles a cena onde Elbe finalmente “se torna
uma mulher” em virtude da implantação que seu médico fez de um par de ovários humanos em sua

16
Talvez tão estonteante agora quanto foi na época, mas por razões diferentes, já que à luz
dos conhecimentos contemporâneos sobre os efeitos (mais precisamente, os não-efeitos)
da castração e dos hormônios, nada disso poderia ter acontecido. Nenhuma das duas
coisas tem qualquer efeito sobre o timbre de voz. Por isso, incidentalmente, o olhar
suspeito com o qual a clínica considera os relatos históricos.
Deixando de lado a discussão de se Hoyer mistura ou não realidade e fantasia ou se
ele produz caricaturas dos seus sujeitos (“Simplesmente estonteante!”), que lições
podemos tomar de Man Into Woman? Em partes, o que emerge do livro é como Hoyer
utiliza a estratégia de construir barreiras em um único sujeito, estratégias que ainda são
amplamente usadas hoje. Lili desloca o Eu masculino disruptivo, ainda ameaçadoramente
presente nela, para a figura endeusada de seu cirurgião/terapeuta Werner Kreutz, a quem
ela chama de “O professor”, ou “O milagreiro”. O Professor é Aquele Que Molda, e Lili é
aquilo que é moldado:

O que O professor está fazendo agora com Lili é nada menos que
uma modelagem emocional, que precede a modelagem física em mulher.
Até então, Lili tem sido como uma argila que outros prepararam e a qual O
Professor deu forma e vida…com um único olhar O Professor acordou seu
coração para a vida, uma vida com todos os instintos de mulher.35

A mulher/fêmea é imanente, a mulher/fêmea é profunda até os ossos, a


mulher/fêmea é instinto. Com a cumplicidade ardente de Lili, O Professor constrói um
enorme abismo entre o masculino e o feminino nela. Nessa passagem, reminiscente da
qualidade “oriental” da narrativa de Morris, o homem/macho deve ser aniquilado ou ao
menos negado, mas a mulher/fêmea é aquilo que existe para ser continuamente
aniquilado:

Pareceu para ela que ela não tinha mais nenhuma


responsabilidade por ela mesma, por seu próprio destino. Pois Werner
Kreutz havia a aliviado de tudo isso. Tampouco ela tinha qualquer vontade
própria…não haveria mais passado para ela. Tudo no passado pertencia a
uma pessoa que…estava morta. Agora, havia apenas uma mulher

cavidade abdominal. A atenção dada pela mídia na última década aos transplantes de coração e às
doenças do sistema imunológico tornaram o público leigo mais consciente do funcionamento das
respostas imunes humanas, mas mesmo em 1936 o relato de Hoyer teria sido reconhecido pela
comunidade médica como questionável. A rejeição de tecidos e o sonho de mitigá-la já eram tópicos
de especulação na ficção e na ficção científica mesmo na década de 20, por ex: a droga miraculosa
“Collodiansy” em One Leg Too Many de W. Alexander [1929, provavelmente em Amazing Stories,
embora haja alguma discussão sobre qual é a publicação original].
35
Hoyer [165]

17
perfeitamente humilde, que estava pronta para obedecer, que estava feliz
em se submeter à vontade de outro…seu mestre, seu criador, seu
Professor. Entre [Andreas] e ela, estava Werner Kreutz. Ela se sentiu
segura e recuperada.36

Hoyer tem os mesmos problemas com a pureza e a negação da mistura que é


recorrente em muitas narrativas autobiográficas transexuais. Os personagens em sua
narrativa existem em um período histórico de enorme repressão sexual. Como alguém
mantém a divisão entre o eu “homem/macho”, cujo objeto apropriado de desejo é a
Mulher, e o eu “mulher/fêmea”, cujo objeto de desejo apropriado é o Homem?

“Como um homem, você sempre me pareceu inquestionavelmente


saudável. Eu vi, inclusive, com meus próprios olhos, que você atrai as
mulheres, e essa é a prova mais clara de que você é um rapaz genuino.” Ele
pausou, e então colocou sua mão sobre os ombros de Andreas. “Você não
me levaria a mal se eu te fizer uma pergunta franca?...Em nenhum
momento você se interessou pelo seu próprio tipo? Você sabe o que quero
dizer.”
Andreas balançou sua cabeça calmamente. “É minha palavra nisso,
Niels; nunca na minha vida. E eu posso dizer que essas criaturas nunca
mostraram nenhum interesse em mim.”
“Boa, Andreas! Exatamente como pensei.”37

Hoyer precisa separar a subjetividade de “Andreas”, que nunca sentiu nada por
homens, e “Lili”, que, ao longo da narrativa, deseja casar-se com um. Esse procedimento de
separação torna o mundo seguro para “Lili” ao erguer e manter uma barreira impenetrável
entre ela e “Andreas”, reforçada de novo e de novo de maneiras como diferentes
caligrafias e duas vozes diferentes. A força de um imperativo — um estado natural para o
qual todas as coisas tendem — de negar as potencialidades da mistura, age para preservar
a identidade de gênero “pura”: no alvorecer do flerte Nazista com a pureza, nenhuma
dessas “criaturas” tentará Andreas a transgredir limites com seu “próprio tipo”.

“Eu vou confessar honestamente e claramente para você, Niels,


que eu sempre me senti atraído pelas mulheres. E hoje em dia, tanto
quanto sempre fui. Uma confissão muito banal!”38

36
Hoyer [170]. Para uma discussão extendida de textos de BDSM não-tradicional que transmutam a
submissão em realização pessoal ver Sandy Stone [no prelo], “Sweet Surrender: Gender, Spirituality, and
the Ecstasy of Subjection; Pseudo-transsexual fiction in the 1970s".
37
Hoyer [53]
38
Ibid.

18
— banal apenas enquanto a pessoa dentro do corpo de Andreas, que dá voz a ele, é
Andreas, não Lili. Há muito trabalho sendo feito nesse trecho, um microcosmo do trabalho
necessário para manter as mesmas personas polarizadas na sociedade como um todo. Mais
que isso, cada um desses escritores constrói seu relato como uma narrativa de redenção.
Há um forte elemento de drama, a sensação de luta contra enormes probabilidades, de
superar obstáculos perigosos, e a crescente admiração e mistério conforme se aproxima a
apoteose final da Transformação Proibida. Nossa, mona.

A primeira operação…foi bem sucedida além de todas as


expectativas. Andreas deixou de existir, eles disseram. Suas glândulas
germinativas — ah, palavras místicas — foram removidas.39

Ah, palavras místicas. O mysterium tremendum da identidade mais profunda flutua


em torno de um locus físico; todo o complexo do engendramento masculino, o poder
misterioso do Homem-Deus, habita as “glândulas germinativas” do mesmo modo que
pensava-se que a alma habitava a glândula pineal. A masculinidade está nas…você sabe.
Por falar nisso, também está a ontologia do sujeito; e portanto Hoyer pode demonstrar do
modo mais grosseiro que a feminilidade implica na falta:

A operação que foi realizada aqui (isto é, castração) me permite


entrar na clínica para mulheres (exclusivamente para mulheres).40

Por outro lado, tanto Niels quanto Lili podem se constituir num ato de insinuação, o
que o Novo Testamento chama de endeuein, ou o “revertir-se de Cristo”, a inserção do
corpo físico numa concha de significação cultural:

Andreas Sparre…estava provavelmente se despindo pela última


vez…Durante toda a sua vida essas camadas de casacos e coletes e calças
o encobriram.41 Agora é Lili que escreve para vocês. Eu estou sentada na
minha cama, em uma camisola de seda com bordas de renda, cabelos
cacheados, com pó no rosto, uma pulseira, colar e anéis…42

39
Hoyer [134]
40
Hoyer [139]. A mudança de sexo de Lili Elbe se deu em 1930. Nos Estados Unidos hoje, a perspectiva
jurídica sobre uma mudança de sexo MTF bem sucedida ainda se baseia na falta; ex: um homem é uma
mulher quando “os órgãos generativos masculinos foram totalmente e irrevesívelmente destruídos”.
[De um laudo médico autorizando a mudança de nome em um passaporte, 1980].
41
Hoyer [125]
42
Hoyer [139]. Chamo a atenção em ambas as passagens anteriores para o verbo grego koiné endeuein
(ένδέυειν), referindo-se ao momento do batismo, quando o batizado reveste-se e é preenchido pela
Palavra; endeuein pode ser traduzido como "entrar em", mas também "colocar, insinuar-se, como uma

19
Todas essas autoras replicam a narrativa estereotípica masculina da constituição da
mulher: Vestidos, maquiagem, e delicados desmaios na presença de sangue. Cada uma
dessas aventureiras passa diretamente de um polo da experiência sexual para o outro. Se
há qualquer espaço intermediário no continuum da sexualidade, ele é invisível. E ninguém
nunca menciona descabelar o palhaço.
Não admira que as teóricas feministas tenham as suas suspeitas. Mona, até eu
tenho minhas suspeitas.
Como esses relatos conversam com os textos médicos/psicológicos? Em um tempo
em que mais interações ocorrem através de textos, conferências virtuais e mídias
eletrônicas do que por contato pessoal — o findar da era mecânica e o início da virtual, na
qual a multiplicidade e a comunicação social prostética são comuns — e
consequentemente num tempo onde a subjetividade individual pode ser constituída pela
inscrição mais frequentemente do que pela associação pessoal, ainda há momentos de
uma “verdade natural” corporificada que não podem ser evitados. Na época da maior parte
desses livros o mais crítico desses momentos era a triagem da clínica de disforia de gênero,
quando os doutores, que eram todos homens, decidiam se a pessoa era ou não elegível
para a cirurgia de redesignação de gênero.
A origem das clínicas de disforia de gênero é um olhar microcósmico para a
construção dos critérios do gênero. A ideia fundacional para as clínicas de disforia de
gênero era, primeiro, estudar uma aberração humana interessante e potencialmente
financiável; segundo, providenciar ajuda, como eles entendiam esse termo, para um
“problema corrigível”.
Algumas das primeiras clínicas não-acadêmicas de disforia de gênero faziam
cirurgias sob demanda, o que significa dizer que o faziam independente de qualquer
julgamento por parte da equipe clínica em relação ao que veio a ser chamado de uma
escolha de gênero adequada. Quando as primeiras clínicas acadêmicas de disforia de
gênero foram fundadas numa base experimental nos anos 60, a equipe médica se recusava
a realizar as cirurgias sob demanda, por causa dos riscos profissionais envolvidos na
realização de cirurgias experimentais em “sociopatas”. Nessa época não haviam critérios
diagnósticos oficiais; “transexuais” eram, ipso facto, quaisquer pessoas que se
inscrevessem para receber assistência. Profissionalmente, essa era uma situação arriscada.
Foi necessário construir a categoria “transexual” segundo as linhas tradicionais e práticas
de costume, para construir critérios plausíveis de aceitação numa clínica.

luva"; vide "Aquele [sic] que é batizado em Cristo terá se revestido de Cristo". Nesta intensa veia
homoerótica em que ambos os sexos estão presentes mas colapsados no corpo
sacrificado/santificado cf. exemplos como a descrição de Fray Bernardino de Sahagun de rituais
durante os quais o padre oficiante veste a pele esfolada de uma jovem (em Frazer [589-91]).

20
Profissionalmente falando, era necessário um teste ou diagnóstico diferencial para o
transexualismo que não dependesse de algo tão simples e subjetivo quanto o sentimento
de que se estava no corpo errado. O teste precisava ser objetivo, clinicamente apropriado,
e passível de repetição. Mas mesmo após uma considerável quantidade de pesquisa,
nenhum teste simples e não-ambíguo para a disforia de gênero pôde ser desenvolvido.43
A clínica de Stanford estava no negócio de ajudar pessoas, junto com suas outras
intenções, conforme os membros entendiam o termo. Portanto, as decisões finais de
elegibilidade para a redesignação de gênero eram tomadas pela equipe com base em um
sentimento individual de “adequação do indivíduo à sua escolha de gênero”. A clínica
assumiu o papel adicional de “clínica de arrumação [grooming]” ou “escola de Charme”
porque, de acordo com o julgamento da equipe, os homens que se apresentavam como
pessoas que queriam ser mulheres nem sempre “se comportavam” como mulheres.
Stanford reconheceu que os papéis de gênero podiam ser aprendidos (até certo ponto). O
envolvimento deles com as clínicas de arrumação era um esforço para produzir não
simplesmente fêmeas anatomicamente legíveis mas mulheres…ou seja, fêmeas
generificadas. Como comentou Norman Fisk “eu agora admito muito francamente…nas
fases iniciais estávamos declaradamente buscando candidatas que teriam as maiores
chances de sucesso.”44 Na prática isso significava que as candidatas para cirurgia eram
avaliadas com base em suas performances do seu gênero de escolha. Os critérios
constituíam uma definição inteiramente aculturada e consensual do gênero, e no espaço
de sua atuação podemos localizar uma instância real do dispositivo de produção do
gênero.
Isso levanta uma série de perguntas complicadas, as duas principais sendo: quem
conta a história pra quem, e como os narradores diferenciam entre a história que eles
contam e a história que eles ouvem?
Uma resposta é que eles diferenciam com grande dificuldade. Os critérios que os
pesquisadores desenvolveram e então aplicaram foram definidos recursivamente através
de uma série de interações com as candidatas. O cenário funcionava assim: Inicialmente, o
único livro acadêmico sobre o assunto do transexualismo era o trabalho definitivo de Harry

43
A evolução e o gerenciamento desse problema merecem um artigo só para isso. A questão é
discutida resumidamente em Donald R. Laub e Patrick Gandy [orgs.], 1973: "Proceedings of the Second
Interdisciplinary Symposium on Gender Dysphoria Syndrome." Stanford: Division of Reconstructive and
Rehabilitation Surgery, Stanford Medical Center, e em Janice M. Irvine, 1990: "Disorders Of Desire: Sex and
gender in modern American sexology." Philadelphia: Temple University Press.
44
Em Laub e Gandy [7]. As considerações completas de Fisk dão uma excelente descrição dos
objetivos e procedimentos do grupo da Stanford durante os anos iniciais, e as tensões de intenções
conflitantes e as várias tentativas de resolução estão implícitas no seu relato. Para mais relatos, cf.
tanto Irvine quanto Shapiro, já citados.

21
Benjamin The Transsexual Phenomenon (1966).45 (Nota-se que o livro de Benjamin é
posterior a I Changed My Sex! em cerca de 10 anos). Quando as primeiras clínicas foram
constituídas, o livro de Benjamin era a referência padrão do pesquisador. E quando as
primeiras transexuais foram avaliadas para sua elegibilidade para a cirurgia, seu
comportamento atendia gratificantemente aos critérios de Benjamin. Os pesquisadores
produziram artigos que relataram isso, e que foram usados como bases para
financiamento de projetos.
Levou um tempo surpreendentemente longo — vários anos — até que os
pesquisadores se dessem conta de que a razão dos perfis comportamentais das candidatas
atenderem tão bem às descrições de Benjamin era que as candidatas, também, tinham lido
o livro de Benjamin, que foi passado de mão em mão na comunidade transexual, e elas
estavam apenas muito felizes em demonstrar o comportamento que as levaria à aceitação
para as cirurgias.46
Esse reposicionamento cuidadoso criou problemas interessantes. Entre eles estava
a determinação da faixa de expressões permissíveis da sexualidade física. Essa era uma
grande área cinza nas apresentações das candidatas de si mesmas, porque os sujeitos de
Benjamin não falavam sobre nenhum sentido erótico de seus próprios corpos.
Consequentemente, ninguém mais que foi às clínicas falou disso também. Pela autoridade
textual, pessoas fisicamente homens, que viviam como mulheres e se identificavam como
transexuais, em oposição aos travestis masculinos para quem a sensação erótica do pênis
era permissível, não podiam experienciar o prazer peniano. Na década de 80, não havia
uma única transexual MTF da qual se tinham dados que experienciasse prazer sexual

45
Harry Benjamin, 1966. The Transsexual Phenomenon. New York: Julian Press. O artigo que foi o
fundamento do livro foi publicado como "Transsexualism and Transvestism as Psycho-somatic and
Somato-Psychic Syndromes" no American Journal of Psychotherapy (8:219-30 [1954]). Um artigo muito
anterior de D. O. Cauldwell, "Psychopathia transexualis", em Sexology (16:274-80 [1949]), não parece
ter tido o mesmo efeito no campo, embora John Money ainda o homenageie ao reter a grafia com um
único s [transexual em vez de transsexual] de Claudwell no termo. Em documentos iniciais de outros
pesquisadores, é possível às vezes traçar a influência de Cauldwell ou Benjamin conforme a grafia da
palavra.
46
Laub e Gandy [8, 9 passim.]

22
genital enquanto vivia em seu “gênero de escolha”.47 A proibição continuou
pós-operativamente em uma forma interessantemente transmutada, e se manteve tão
absoluta que nenhuma transexual operada admitiria experienciar algum prazer sexual pela
masturbação. O pertencimento pleno ao gênero assignado seria conferido pelo orgasmo,
real ou fingido, alcançado através da penetração heterossexual.48 “Descabelar o palhaço”,
o ritual de masturbação peniana logo antes da cirurgia, era a mais secreta das tradições
secretas. Reconhecer um desejo tão natural seria arriscar um “pouso forçado”; isto é, uma
“inadequação dos papéis”, levando à desqualificação."49
Era necessário se retrair. Os dois grupos, de um lado os pesquisadores e de outro as
transexuais, estavam fazendo pressão por objetivos distintos. Os pesquisadores queriam
saber o que era essa coisa que eles chamavam de síndrome de disforia de gênero. Eles
queriam uma taxonomia dos sintomas, critérios para o diagnóstico diferencial,
procedimentos de avaliação, tratamentos confiáveis, e acompanhamento completo. As
transexuais queriam cirurgia. Elas tinham intenções muito claras em sua relação com os
pesquisadores, e consideravam os critérios de avaliação dos médicos como apenas mais um
obstáculo em seu caminho — algo a ser superado. Nisso, elas expressavam sem
ambiguidade o critério original de Benjamin em sua forma mais simples: o sentimento de
estar “no corpo errado”.50

47
O problema aqui é com a ontologia do termo “genital”, particularmente em relação à sua definição
para atividades como masturbação pré e pós-operatória. O endengramento ontologiza a economia
erótica da superfície corporal; como aponta Judith Butler, o engendramento policia quais partes do
corpo têm seus componentes eróticos ligados ou desligados. Os conflitos emergem quando as
mesmas partes se tornam multivalentes; ex: quando porções da uretra (fisicamente masculina) são
usadas para construir porções do neoclitóris (generificado de modo feminino no corpo fisicamente
masculino). Eu sugiro que usemos essa ideia vertiginosa como um exemplo de modos nos quais
podemos reconfigurar a multivalência como uma intervenção na constituição de posições de sujeito
binariamente generificadas; em uma economia erótica binária, “Quem” experiencia a sensação erótica
associada com essas áreas? (Em “Body Guards”, a antologia na qual “The Empire Strikes Back” foi
originalmente publicado, Judith Shapiro levantou uma questão similar em seu texto "Transsexualism:
Reflections on the Persistence of Gender and the Mutability of Sex". Eu escolhi um lugar
geograficamente muito próximo daquele que ela descreve, mas espero que mais ambíguo, e portanto
mais dissonante nesses discursos nos quais a dissonância pode ser uma intervenção poderosa e
produtiva).
48
Esse ato na fronteira da posição de sujeito sugere uma categoria ausente no trabalho de Marjorie
Graber "Spare Parts: The Surgical Construction of Gender", em Differences (1:137-59 [1990]); é uma
intervenção na assimetria entre “fazer um homem” e “fazer uma mulher” que Garber descreve. Até
certo ponto, isso descreve um colapso dessas categorias no imaginário transexual, embora pareça
razoável concluir que essa versão de uma história de amadurecimento ainda é predominantemente
masculina — os pacientes e médicos do sexo masculino contando uns para os outros as histórias
sobre o que a Natureza significa para Homem e Mulher. Geralmente pacientes do sexo feminino
(FTM) contam as mesmas histórias de um outro lado.
49
Os termos "wringing the turkey's neck" [descabelar o palhaço] (masturbação masculina), "crash
landing" [pouso forçado] (rejeição por parte de um programa clínico), e "gaff" [aquendação] (uma
vestimenta íntima usada para esconder as genitais em transexuais não operadas), variam levemente a
depender da região geográfica, mas são comuns o suficiente para serem reconhecidas em diferentes
lugares.
50
Com base nas considerações de Norman Fisk em Laub e Gandy [p. 7], assim como minhas próprias
anotações. Parte da dificuldade, como eu discuto nesse texto, é que os investigadores (isso sem

23
Isso parece a receita pronta para uma relação difícil e conflituosa, e foi. Continua a
ser, embora com o passar do tempo tenha havido um diálogo considerável entre os dois
campos. Em partes, isso foi tornado possível pelo reconhecimento por parte da
comunidade médica e psicológica de que os critérios esperados para um diagnóstico
diferencial nunca emergiram. Considerem esse trecho de um artigo de Marie Mehl, escrito
em 1986:

Não há teste mental ou psicológico que tenha sucesso em


diferenciar o transexual da população dita normal. Não há mais
psicopatologia na população transexual do que na população como um
todo, embora a resposta social ao transexual traga sim alguns problemas
inevitáveis. Os históricos psicodinâmicos de transexuais não carregam
nenhuma característica consistente de diferenciação do resto da
população.51

Essas duas considerações, a afirmação de Mehl e a de Lothstein, na qual ele conclui


que transexuais são deprimidos, esquizóides, manipulativos, controladores e paranóicos
coexistem em uma faixa de menos de dez anos. Com a conquista de uma categoria
diagnóstica em 1980 — uma categoria que, após anos de pesquisa, não envolve muito mais
que o sentido original de “estar no corpo errado” — e a consequente aceitação pela polícia
corporal, isto é, o estabelecimento médico, histórias clinicamente “boas” de transexuais
agora existem em áreas tão dispersas quanto a Austrália, Suécia, Tchecoslováquia, Vietnã,
Cingapura, China, Malásia, Índia, Uganda, Sudão, Taiti, Chile, Bornéu, Madagascar e
Aleutas.52 (Essa não é uma lista completa). É um exagero completo encaixar todas elas em
alguma teoria plausível. Haveriam técnicas diagnósticas não descobertas ou não
experimentadas que teriam diferenciado transexuais da população normal? Seriam os
critérios errados, limitados, ou teoricamente míopes? A conclusão de que esses critérios
não estavam emergindo simplesmente apareceu naturalmente como um resultado do
“progresso científico” ou haveriam outras forças em jogo?
Um banquete tão grande de dados cria seus próprios problemas. Concomitante à
conquista duvidosa de uma categoria diagnóstica está a inevitável confusão das fronteiras
conforme uma consideração vastamente heteroglóssica da diferença, até então invisível
para as profissões “legítimas”, subitamente alcança a canonização e simultaneamente se

mencionar as transexuais) falharam em problematizar o termo “corpo errado” como uma categoria
descritiva adequada.
51
Em Walters e Ross, op.cit.
52
Eu uso a palavra “clínica” aqui e em outros lugares enquanto me mantenho consciente da “Vitória
Pírrica” da qual falou Marie Mehl. Agora que o transexualismo tem a legitimidade desconfortável de
uma categoria diagnóstica no DSM, como começamos o processo de tirar ela do livro?

24
torna homogeneizada para satisfazer as limitações da categoria. De repente o velho conto
moral da verdade do gênero, contado por um patriarca gentilmente branco de Nova Iorque
em 1966, se torna pancultural nos anos 80. As polivocalidades emergentes da experiência
vivida, nunca representadas no discurso mas ao menos potencialmente presentes,
desaparecem; o berdache e a stripper, a dona de casa rica e o mujerado, as mah’u e o rock
star, são todos a mesma história no fim das contas, se apenas tentarmos o suficiente.

3. De quem é essa história, mesmo?

Eu desejo apontar as similaridades mais amplas que essa justaposição peculiar


sugere com aspectos do discurso colonial com os quais nós talvez estejamos familiares: O
fascínio inicial com o exótico, estendendo-se a investigadores profissionais; a negação da
subjetividade e a falta de acesso ao discurso dominante; seguidos de uma espécie de
reabilitação.
Levantar essas questões complicou a vida nas clínicas.
“Fazer” a história, seja ela autobiográfica, acadêmica ou clínica, é em partes uma
tentativa de ancorar um relato em alguma inevitabilidade natural. Corpos são telas nas
quais vemos projetadas as estabilizações momentâneas que emergem das lutas
constantes em torno das crenças e práticas nas comunidades acadêmicas e médicas. Essas
lutas se dão em arenas muito distantes do corpo. Cada uma é uma tentativa de conquistar
uma vantagem que é profundamente moral em seu caráter, de produzir uma explicação
final e autoritária para o modo como as coisas são e consequentemente para o modo como
elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada um desses relatos e considerações é a
cultura falando com a voz de um indivíduo. As pessoas que não têm voz nessa teorização
são as próprias transexuais. Assim como os homens teorizando sobre as mulheres desde o
início dos tempos, teóricos e teóricas do gênero têm visto as transexuais como possuidoras
de algo menos que agência. Assim como as mulheres genéticas, as transexuais são
infantilizadas, consideradas muito ilógicas e irresponsáveis para alcançar uma
subjetividade verdadeira, ou são clinicamente apagadas por critérios diagnósticos; ou
então, como foram construídas por algumas teóricas feministas radicais, são
representadas como robôs de um patriarcado ameaçador e insidioso, um exército
alienígena desenhado e construído para infiltrar, perverter e destruir as “verdadeiras”
mulheres. Com essa construção, também, as transexuais foram definitivamente cúmplices
ao falharem em desenvolver um contradiscurso efetivo.
Aqui nas fronteiras de gênero no final do século XX, com a desestabilização da
hegemonia falocrática e a aparição presunçosa de mitos de origem heteroglóssicos,
vemos as epistemologias da prática médica branca masculina, a fúria das teorias feministas

25
radicais e o caos da experiência vivida do gênero se encontrando no campo de batalha do
corpo transexual: um espaço vigorosamente disputado de inscrição cultural, uma máquina
de significado para a produção de tipos ideais. Representação em toda a sua magia, o
corpo transexual é uma memória aperfeiçoada, inscrita com a história “verdadeira” de
Adão e Eva como o relato ontológico da diferença irredutível, uma biografia essencial que
é parte da natureza. Uma história que a cultura conta para si mesma, o corpo transexual é
uma política tátil de reprodução constituída através da violência textual. A clínica é uma
tecnologia de inscrição.
Dada essa circunstância na qual um discurso minoritário se ancora no físico, um
contradiscurso é crítico. Mas é difícil gerar um contradiscurso quando se está programada
para desaparecer. O grande propósito da transexual é apagar ela mesma, desaparecer na
população “normal” o mais rápido possível. Parte desse processo é conhecido como a
construção de um histórico plausível — aprender a mentir efetivamente sobre o próprio
passado. O que se ganha é a aceitabilidade social. O que se perde é a habilidade de
representar autenticamente as complexidades e ambiguidades da experiência vivida, e
portanto se perde aquele aspecto da “natureza” que Donna Haraway teoriza como o
Coiote — o animal espiritual Nativo-Americano que representa o poder da transformação
contínua que é o coração da vida engajada. Em vez disso, a experiência autêntica é
substituída por um tipo particular de história, um que confirma as construções já
estabelecidas.
Isso tem um preço alto, e profundamente desempoderador. Independente dos seus
desejos, as transexuais não crescem do mesmo modo que as “GGs” ou as “naturais”
genéticas.53 As transexuais não têm o mesmo histórico das “naturais” genéticas, e não
compartilham uma opressão em comum que precede a mudança de gênero. Eu não estou
sugerindo um discurso compartilhado. Eu estou sugerindo que no histórico apagado da
transexual podemos encontrar uma história desestabilizadora para os discursos aceitos
sobre o gênero, que se origina dessa própria minoria de gênero e que pode construir uma
causa em comum com outros discursos oposicionais. Mas a transexual atualmente ocupa
uma posição que não é lugar nenhum, que é fora das oposições binárias do discurso
generificado. Para uma transexual, como uma transexual, gerar um contradiscurso
verdadeiro, efetivo e representacional significa falar de fora dos limites do gênero, além
dos polos oposicionais construídos que foram predefinidos como as únicas posições a
partir das quais o discurso é possível. Como pode, então, a transexual falar? Se a transexual
falasse, o que ela diria?

53
O significado de “GG”, uma gíria transexual feminina, é “genuine girl (sic)” [garota genuína], também
chamadas de “genny”.

26
4. Um manifesto pós-transexual

Tentar ocupar um lugar como sujeito falante no paradigma tradicional de gênero é


se tornar cúmplice do discurso que se deseja desconstruir. Em vez disso, podemos usurpar
a violência textual inscrita no corpo transexual e transformá-la em uma força
reconstrutiva. Deixem-me sugerir um exemplo mais familiar. Judith Butler aponta que as
categorias lésbicas “butch” e “femme” não são simples assimilações da lesbianidade de
volta aos termos da heterossexualidade. Em vez disso, Butler introduz o conceito de
inteligibilidade cultural, e sugere que a “masculinidade” contextualizada e ressignificada
da butch, vista contra um corpo “feminino/fêmea” culturalmente inteligível, invoca uma
dissonância que tanto gera uma tensão sexual quanto constitui o objeto do desejo. Ela
aponta que esse modo de pensar sobre os objetos generificados do desejo admite uma
complexidade muito maior do que o exemplo sugere. A butch e a femme lésbicas tanto
lembram a cena heterossexual quanto simultaneamente a deslocam. A ideia de que butch
e femme são “réplicas” ou “cópias” das trocas heterossexuais subestima o poder erótico da
dissonância interna.54 No caso da transexual, as variedades do gênero performativo, vistas
contra um corpo generificado culturalmente inteligível que é em si mesmo uma violência
textual medicamente constituída, geram novas e imprevisíveis dissonâncias que implicam
todo o espectro do desejo. Na transexual como texto podemos encontrar o potencial de
mapear o corpo refigurado sobre o discurso convencional do gênero e portanto
desestabilizá-lo, tirando vantagem das dissonâncias criadas por esse tipo de justaposição
para fragmentar e reconstruir os elementos do gênero em novas e inesperadas
geometrias. Eu sugiro que comecemos por levar a acusação de Raymond de que
“transexuais dividem as mulheres” além dela mesma, e a transformemos em uma força
produtiva para multiplicativamente dividir os velhos discursos binários do gênero — assim
como o próprio discurso monista de Raymond. Para trazer à frente as práticas de inscrição
e leitura que são parte dessa invocação deliberada de dissonância, eu sugiro constituir as
transexuais não como uma classe ou um “terceiro gênero” problemático, mas como um
gênero textual — um conjunto de textos corporificados cujo potencial para a
desestabilização de sexualidades e espectros do desejo estruturados ainda está por ser
explorada.
Para conseguir isso efetivamente, o gênero textual das transexuais visíveis deve se
expandir ao recrutar membros da classe das invisíveis, aquelas que desapareceram em
seus “históricos plausíveis“. A coisa mais crítica que uma transexual pode fazer, a coisa que
constitui o sucesso, é “passar.”55 Passar significa viver com sucesso no gênero de escolha,

54
Judith Butler, 1990. "Gender Trouble". New York: Routledge.
55
O oposto de passar, “ser lida”, provocativamente invoca as práticas de inscrição às quais me referi.

27
ser aceita como um membro “natural” daquele gênero. Passar significa negar a mistura. A
mesma coisa que passar é a obliteração do papel anterior de gênero, ou a construção de
um histórico plausível. Considerando que a maior parte das transexuais escolhem a
redesignação em sua terceira ou quarta década de vida, isso significa apagar uma porção
considerável das suas experiências pessoais. Defendo que esse processo, no qual tanto a
transexual quanto o estabelecimento médico-legal/psicológico são cúmplices, exclui a
possibilidade de uma vida ancorada nas possibilidades intertextuais do corpo transexual.
Para negociar as múltiplas permeabilidades problemáticas e produtivas das
posições e limites de subjetividade que a intertextualidade implica, devemos começar a
rearticular a linguagem fundacional através da qual tanto a sexualidade quanto a
transexualidade são descritas. Por exemplo, nem os investigadores nem as transexuais
tomaram nenhum passo para problematizar o “corpo errado” como uma categoria
descritiva adequada. De fato, o “corpo errado” tornou-se, virtualmente como padrão, uma
definição da síndrome.56
É muito compreensível, eu penso, que uma frase cuja lexicalidade sugere o caráter
falocêntrico e binário da diferenciação de gênero deveria ser examinada com uma suspeita
mais profunda. Então enquanto nós, sejamos acadêmicas, clínicos ou transexuais,
ontologizarmos tanto a sexualidade quanto a transexualidade dessa forma, nós teremos
excluído a possibilidade de analisar o desejo e a complexidade motivacional de uma
maneira que descreva adequadamente as múltiplas contradições da experiência vivida
individual. Precisamos de uma linguagem analítica mais profunda para a teoria transexual,
uma que permita os tipos de ambiguidades e polivocalidades que já tão produtivamente
informaram e enriqueceram a teoria feminista.
Judith Shapiro aponta que “Para aqueles…que podem estar inclinados a
diagnosticar o foco do transexual nas genitais como obsessivo ou fetichista, a resposta é
que eles estão, de fato, simplesmente se conformando aos critérios de suas culturas para a
assignação de gênero” (ênfase minha). Essa afirmação aponta para funcionamentos mais
profundos, para discursos ocultos e pluralidades experienciais dentro do monolito
transexual. Eles não são ainda clinicamente ou academicamente visíveis, e com razão. Por
exemplo, na busca de um diagnóstico diferencial, uma pergunta às vezes feita para um(a)
possível transexual é “Suponha que você possa ser um homem (ou mulher) em tudo menos
nos seus genitais; você se contentaria?” Há várias respostas possíveis, mas apenas uma é
clinicamente correta.57

56
Estou sugerindo um ponto de partida, mas é necessário ir muito mais além. Precisaremos
questionar não apenas como o corpo é definido nesses discursos, mas examinar mais criticamente
quem pode dizer o que “corpo” significa.
57
Caso a leitora não tenha certeza, deixe-me dizer a resposta clinicamente correta: “não”.

28
Não impressiona, então, que tantos desses discursos girem em torno da frase
“corpo errado”. Sob o mito de origem falocrático e binário através do qual corpos e
sujeitos Ocidentais são autorizados, apenas um corpo por sujeito generificado é “correto”.
Todos os outros corpos estão errados.
Conforme os clínicos e as transexuais continuam a se encarar no campo de batalha
diagnóstico que esse cenário sugere, as transexuais para as quais a identidade de gênero é
algo diferente de e talvez até irrelevante para as genitais são ocultadas por aquelas para as
quais o poder dos estabelecimentos médicos/psicológicos e sua habilidade policiar as
normas culturais é a autoridade final para o que conta como um corpo culturalmente
inteligível. Essa é uma área traiçoeira, e se os grupos silenciados conquistassem uma voz,
poderíamos muito bem encontrar, como as teóricas feministas afirmaram, que as
identidades de sujeitos corporificados individuais estão muito menos implicadas em
normas físicas, e muito mais diversamente espalhadas ao longo de uma rica e complexa
estruturação do desejo e da identidade do que é possível expressar agora.58
E ainda assim, em alguns dos melhores debates atuais, a atitude padrão é de uma
totalização implacável. Considerem o exemplo mais claro nesse texto, o impressionante
“todas as transexuais estupram os corpos das mulheres” de Raymond (e se ela tivesse dito,
por exemplo, que “todos os negros estupram os corpos das mulheres”?): Por toda a
flagrante e indesculpável transfobia,59 a linguagem do livro dela é apenas marginalmente
menos totalizante do que o “transexuais…adotam um papel feminino exagerado e
estereotipado” de Gary Kate, ou o “transexuais tentam esquecer a sua história masculina”
de Ann Bolin. Os estudos de Bolin e Kate são na maioria dos aspectos trabalhos
excelentes, e foram publicados na mesma coleção que uma versão anterior desse ensaio;60
mas ainda não há sujeitos nesses discursos, apenas objetos homogeneizados e totalizados
— fractalmente replicando histórias anteriores de discursos minoritários como um todo.
Então quando eu falo da palavra esquecida, ela talvez traga memórias de outros debates.
A palavra é algumas.
Transexuais que passam parecem capazes de ignorar o fato de que ao criar
identidades totalizadas e monistas, renunciar à intertextualidade física e subjetiva, elas

58
É tão útil quanto gratificante considerar que desde que a primeira versão desse ensaio apareceu em
1991, muitos grupos de coalizão, um dos quais é apropriadamente chamado de Transgendered Nation,
começaram a trabalhar ativamente para trazer a rica diversidade nas comunidades transgenerificadas
para a atenção pública. A ação do coletivo na conferência de 1993 da American Psychological
Association, que estava debatendo se era apropriado continuar a incluir a transexualidade na próxima
edição do manual diagnóstico oficial (DSM), foi corajosa e em um bom tempo. Claro, muitas prisões
(de protestantes trans, não psicólogos) se sucederam.
59
Nota da Tradução: a palavra original utilizada no texto é “Bigotry”, que significa
preconceito/discriminação, mas, havendo uma palavra mais precisa para isso no nosso vocabulário
político contemporâneo, o termo foi substituído por “transfobia”.
60
Esses ensaios apareceram em Kristina Straub e Julia Epstein (orgs.), 1991: "Body Guards: The Cultural
Politics of Gender Ambiguity". New York: Routledge.

29
excluíram a possibilidade de ter relações autênticas. Sob o princípio da passabilidade,
negando o poder desestabilizador de ser “lida”, as relações começam como mentiras — e
passar, é claro, não é uma atividade restrita às transexuais. Isso é familiar para a pessoa de
cor cuja a pele é clara o suficiente para passar como branca, ou para o gay ou lésbica no
armário…ou para qualquer um que tenha escolhido a invisibilidade como uma solução
imperfeita para a dissonância pessoal. Essencialmente, eu estou rearticulando um dos
argumentos pela solidariedade que tem sido desenvolvido por gays, lésbicas e pessoas de
cor. A comparação se estende mais além. Desconstruir a necessidade de passar implica que
as transexuais devem assumir a responsabilidade por todo o seu histórico, para começar a
rearticular suas vidas não como uma série de apagamentos a serviço de uma espécie de
feminismo concebido a partir de um paradigma tradicional, mas como uma ação política
iniciada pela reapropriação da diferença e a reivindicação do poder do corpo refigurado e
reinscrito. As desestabilizações dos velhos padrões de desejo que as múltiplas
dissonâncias do corpo transexual implicam produzem não uma alteridade irredutível mas
uma miríade de alteridades, cujas justaposições não antecipadas carregam o que Donna
Haraway chamou de as promessas dos monstros — fisicalidades de figuras
constantemente mutantes e um campo que excede o paradigma de qualquer
representação possível.61
A essência do transexualismo é o ato de passar. Uma transexual que passa está
obedecendo ao imperativo Derridiano: “Gêneros não se misturam. Eu não misturarei
gêneros [textuais]”.62 Eu não poderia pedir para uma transexual nada mais inconcebível
que renunciar à passabilidade, ser conscientemente “lida”, ler-se em voz alta — e através
dessa leitura problemática e produtiva, começar a se escrever nos discursos através dos
quais se foi escrita — efetivamente, então, tornar-se (cuidado — eu ousaria dizer de novo?)
uma pós-transexual.63
Ainda assim, as transexuais sabem que o silêncio pode ser um preço muito alto a se
pagar pela aceitação. Eu quero falar diretamente com os irmãos e irmãs que talvez
leiam/”leiam”64 isso e dizer: eu peço a todes nós que usemos a força que nos trouxe para o

61
Para uma elaboração desse conceito, cf. Donna Haraway, 1990, "The Promises Of Monsters: A
Regenerative Politics for Inappropriate/d Others", em Paula Treichler, Cary Nelson, e Larry Grossberg
[orgs.]: Cultural Studies.
62
Jacques Derrida, 1980. La Loi Du Genre/The Law Of Genre (trad. Avital Ronell). In Glyph 7:176 (French)
[176]; 202 (English) [202].
63
Eu também chamo atenção para a teoria de Gloria Anzaldúa da Mestiza, um sujeito ilegível vivendo
nas fronteiras entre culturas, capaz de um discurso parcial em cada mas apenas parcialmente
inteligível para cada. Trabalhando na contramão dessa posição, a “nova Mestiza” de Anzaldúa tenta
superar a ilegibilidade parcialmente ao tomar o controle da fala e da inscrição e ao escrever-se no
discurso. O impressionante “Borderlands” é o caso em questão. cf. Gloria Anzaldúa, 1987,
Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters/Aunt Lute.
64
Nota da Tradução: em inglês, o termo “read” [literalmente: ler] é uma gíria trans da cultura
ballroom que significa algo próximo de “gongar”, no pajubá.

30
esforço de reestruturar a identidade, e que também nos permitiu viver no silêncio e na
negação, para uma revisão de nossas vidas. Eu sei que vocês sentem que muito desse
trabalho está atrás de vocês, e que o preço da invisibilidade não é grande. Mas, embora a
mudança individual seja o fundamento de todas as coisas, ela não é o fim de todas as
coisas. Talvez, tenha chegado a hora de começar a fazer o trabalho de base para a próxima
transformação.

Posfácio (2000)

No breve período, ou assim parece, desde que esse ensaio foi escrito pela primeira
vez, a situação tanto na rua em relação a articular uma posicionalidade especificamente
transgenerificada e dentro da academia vis-a-vis com a teoria mudou profundamente, e
continua a evoluir. Se o ensaio original de Império teve o privilégio de ser um sinal
afortunado em um bom momento ou se ele evocou com sucesso o princípio
build-it-and-they-will-come é um mistério, mas os resultados não são nem um pouco menos
gratificantes na ausência desse conhecimento. A teoria transgênero (ou, por falar nisso,
pós-transgênero) parece estar se engajando com sucesso nos discursos nascentes da
Teoria Queer em muitos aspectos graciosos e mutuamente produtivos, e isso é razão para
comemoração. Desnecessário dizer, no entanto, que os começos são os períodos mais
críticos e delicados nos quais, enquanto as pedras sustentadoras ainda estão expostas, é
necessário prestar uma atenção excepcional aos detalhes. Para essa autora, é um
momento mais promissor e interessante para se estar viva e escrevendo.

Agradecimentos
Agradeço a Gloria Anzaldua, Laura Chernaik, Ramona Fernandez, Thyrza Goodeve, e
John Hartigan por seus comentários valiosos nos rascunhos iniciais desse texto, Judy Van
Maasdam e Donald Laub do Stanford Gender Dysphoria Program pela sua ajuda
desconfortável; Wendy Chapkis; Nathalie Magnan; o coletivo Olivia Records, pois sou
profundamente grata ao seu cuidado em tempos difíceis; Janice Raymond, por interpretar
o Luke Skywalker do meu Darth Vader; Graham Nash e David Crosby; e a Christy Staats e
Brenda Warren pela sua firmeza. Especialmente, eu agradeço a Donna Haraway, cujo
insight e encorajamento seguem a iluminar esse trabalho

Referências (em Inglês)


1. Anzaldua, Gloria, 1987. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco:
Spinsters/Aunt Lute.

31
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28. Stone, Allucquére Rosanne, 1992. Virtual Systems. In ZONE 6: Fragments for a
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30. Walters, William A.W., and Michael W. Ross, 1986. Transsexualism and Sex
Reassignment. Oxford: Oxford University Press.

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Sandy Stone (86) é uma teórica pós-transexual, feminista, programadora, engenheira de
som, artista da performance e professora universitária norte-americana. Além de The
Empire Strikes Back, ela é autora de “The War of Desire and Technology at the Close of the
Mechanical Age”, e figura central para o transfeminismo internacional.

Bibliopreta é um projeto anarcofeminista de universidade livre e difusão de conhecimento


coordenado por feministas negras, bichas e travestis. O projeto promove a produção e
circulação de teoria crítica através de acervos virtuais, bibliotecas autônomas, ações de
assistência, mentoria acadêmica, aulas públicas, traduções livres e outras frentes. Contato:
bibliopreta@gmail.com

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