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D. J. W E S P P U B L I C I D A D E L TO A
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414 - I
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
Professor nas Universidades do Vale do Rio ·dos!Sfnos e Santa
�I Cruz do Sul (RS).
FORENSE
Rio de Janeiro
1978
1.ª edição - 1978
@ Copyright
Cezar Saldanha Souza Junior
A memória de
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte ALIOMAR BALEEIRO,
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. jurista, professor, magistrado, parlamentar
e político com as mais sólidas concepções
democráticas.
Sousa Júnior, Cesar Saldanha.
3697a A crise da democracia no Brasil: aspectos
políticos / Cezar Saldanha Souza Júnior. - Rio
de Janeiro : Forense, 1978.
Bibliografia
�:
1. Brasil - Direito constitucional 2. Direi yr'···
�.
to constitucional I. Titulo II. Titulo : Uma
contribuição para o aperfeiçoamento das institui
ções democráticas brasileiras i Aos JOVENS PESTE PAÍS,
/ DO NORTE AO SUL,
CDU - 342
342(81) de cujo convívio nasceu este trabalho,
78-0224 /341. 2/ esperando que tenha expressado os ideais
de liberdade, justiça e amor que encontrei
em seus corações.
INTRODUÇÃO • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • J • •• • • • • • 1
- A FRANcisco bswALi:>o NEVES DoRNELLES, Luís ROMERO PATURY
PR!MmIRA PARTE-,- O IDEAL DEMOCRATICO E .SUAS
AccIOLY, WAO::i{l!:i'PIRES DE OLIVEIRA e EiY SouTo DOS SANTOS,
VICISSITUDES ..................................... 11
pelo incentivo, compreensão e carinho com que cercaram o
trabalho.
Capítulo I - O ideal democrático ........ . ..... . .. 13
capítulo II - As vicissitudes do ideal democrático 27
- Aos universitários EDUARDO MAINERI CONCEIÇÃO, DARCY MANO,
JOSÉ UBIRATAN DE OLIVEIRA, VALNIR SOARES e SEBASTIÃO Luís
SEGUNDA PARTE - A DEMOCRACIA NO BRASIL ..... . 35
DE OLIVEIRA, pelas lições de dedicação e idealismo.
;
t
capítulo I - A crise da democracia ............. . 37
- Aos estudantes secundaristas do Paraná e do Rio Grande j' Capítulo II - As limitações atuais à democracia ins-
do Sul, especialmente a JOSÉ CLÁUDIO PEREIRA NETO, GILBERTO trumental .......................... 43
BARBOSA DE OLIVEIRA e ALFEU PEREIRA, pela amizade e pela capítulo III - O impasse político 53
confiança..
capítulo IV - A inadequação das instituições ..... . 59
-os quais se encontram os fatores especificamente políti sistemas políticos ou regimes de governo. 2 Podemos
.cos, que mais de perto nos interessam neste estudo. E, classificá-los, hodiernamente, em suas linhas mais geraiS,
enfim, supõe, no plano econômico e social, um sistema em dois grupos: ou o homem é colocado a serviço do.Es
.que nem torne o homem escravo do capital, nem o absor tado, ou o Estado é posto a serviço do homem. No pri
va no mecanismo burocrático do Estado. meiro caso temos os regimes totalitários; no segundo, os
1. Democracia e regimes de governo democráticos.
Todos os regimes de governo, além da forma política
Em sentido amplo, define-se o Estado como a socie pela qúal se expressam, pressupõem uma concepção de
1 i
! :1 dade política, vale dizer, aquela espécie de unidade social homem é de Estado: Assim, na democracia, o Estàdo é
i1'i (sociedade) que, globalizando séries diversas de formas concebido como um instrumento para servir o homem�
menores de vida associativa, em um determinado terri".' que, como Pessoa Humana, é anterior e superior ao pró
'i,
'I tório, é governada por uma autoridade detentora, no prio Estado; Já no totalitarismo o homem - reduZido a
11
1
.âmbito de sua competência, de um poder soberano (isto sua dimensão social e a sua natureza material - é absor
i/
.é, internamente superior e externamente independente), vido totalmente pelo Estado; que se volta para si mesmo
Geralmente aponta-se, no Estado, a presença de três ou se transforma em instrumento de classe, de partido;
.elementos: 1 de raça ou da nação abstratamente considerada.
1-º -:- seres humanos que, organizados em formas
associativas menores e ligados por um laço político co 2. Democracia, e . éivili?,ação ocidental
mum, formam um conjunto que podemos chamar de A concepção d� que o homem é uma Pessoa - ou
comunidade política ou povo; seja, um ser individual e social, màterial mas aberto ao
2.0 - território, a base física sobre a qual se esten transcendente pelo espírito, e, por isso mesmo, dotado de
de o poder do Estado; e dignidade e de direitos fundamentais a serem preserva-
j
- autoridade, o conjunto dos órgãos que diri
3.0
,Í 2 MENEZES, Aderson de, Teoria Geral do Estado, Rio, Fo
11,
.I
gem a sociedade, exercendo o poder soberano. rense, 1972, pp, 129-130.
O problema central da organização política reside Não há, no Brasil, uma terminologia técnica u:p.iforme
no modo de relacionamento entre o elemento humano e quanto à "tipologia" política. Neste trabalho utiHzar-:se-á, em
o poder do Estado. Em outras palavras: no modo segundo princípio, regime de governo, para a dicotomia "democracia
o qual o poder do Estado se exerce em relação às pessoas -totalitarismo"; forma de governo; para os critérios que sepa
que compõem a comunid.ade política. ram "monarquia" de "república"; e sistema de governo, para
"presidencialismo" e "parlamentarismo". Sobre o tema cfr.
Qs di,.ferentes modos que pode assumir o relaciona DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado,
mento homem-Estado constituem o que se denomi.na de
; ' . .
São Paulo, Saraiva, 1972, p. 194; e PANSARDI, Mário Artur, Ini
, ·, ., .
'
3 Assim egcreveu João Camlllo de Oliveira Torres, sobre
O funcionamento das instituições democráticas de
"Ocidente": "Quando se critica o Ocidente, por seu egoísmo, por
sua libertinagem, pelas formas de opressão e miséria, refere-se a
l pende de uma série de fatores reais, estruturais e histó
um ideal ocidental, o do valor essencial da Pessoa e, na reali ricos que sobre elas atuam, condicionando a atuação dos
dade, denuncia-se uma traição de povos ocidentais aos grandes ! homens que as dirigem. Se são os homens que fazem a
ideais nascidos à beira do Mediterrâneo. O essencial da civili História (causa eficiente), este agir está condicionado
zação ocidental, o que é a sua grandeza e que lhe dá um valor
de absoluta superioridade sobre as demais é o valor de liber pelos fatores geográficos, demográficos, econômicos, po
dade pessoal. ou, antes, que todo homem é, como dizia SCHELER, líticos, religiosos e de ordem intelectual (causa material
um valor mais alto que o universo inteiro. O Oriente desconhe da História), que limitam a vontade humana criadora.
ce isto, e é por isso que todos os povos, hoje, se sentem infe Colocado desta forma o problema da causalidade
riorizados se não conseguem realizar o ideal ocidental de
supremacia do homem sobre o destino impessoal, sobre a mul
histórica, cumpre desde logo afastar duas posições fal
tidão anônima, sobre a natureza. O marxismo, no que tem de sas: a voluntarista e as materialistas históricas.
positivo, é uma denúncia da crise do Ocidente em nome destes A primeira reduz a História e, em matéria política;
valores - MARX era um filósofo alemão, afinal de contas. A o funcionamento das instituições democráticas, à causa
revolução soviética tem sido, acima de tudo, uma continuaçíl.o
de PEDRO, o Grande, uma ocidentalização da Rússia, substituin
eficiente, à vontade livre dos homens. Assim, se a de
do o cristianismo (que já possuía de forma grega, não latina), mocracia funciona mal, é porque os políticos "não pres-
por uma filosofia alemã, o marxismo. E Mao Tsé-Tung, de
certo modo, nada tem feito senão procurar ocidentalizar a do Ocidente está em suas máquinas, não no reconhecimento
China, substituindo Confúcio pelos europeus Marx e Lenine, do valor supremo do Homem." TORRES, J. e. de Oliveira, His
achando porém algo ingenuamente que a única superioridade tória das Idéias Religiosas no Brasil, São Paulo, Editorial Gri
jalbo Ltda., 1968, p. 271).
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1
I!
li:; 6 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 7
tam" ou "faliram", ou porque o povo "não está prepa somente nos demográficos, nem exclusivamente nos pc_:;
rado" ou "não tem formação" para a democracia. As líticos, mas no conjunto dos fatores que condicionam ó
dificuldades da democracia são imputadas, unicamente, agir humano que constrói a História, bem como na pró.:..
aos homens que votam, aos que estão no governo ou aos pria vontade livre do homem.
que fazem oposição. O voluntarismo histórico esquece
que a vontade dos homens que atuam na História não 4. Democracia e fatores de organiza,ção política
é absoluta, mas limitada pelos fatores integrantes da
causalidade histórica material e que estes, muitas vezes, Hoje está na moda a tendência, de feições marxistas.
têm mais força do que se supõe. a explicar toda a realidade, social-hjstóric;:i. exclusiva
Já os materialismos históricos (o marxismo é apenas mente pela causalidade material econômica, ao mesmo,
uma de suas muitas modalidades), ao contrário, atri tempo em que se minimiza o papel das condições ligadas,
buem a um só dos fatores da causa material da História à organização política, relegada esta a simples epifenô-· ·
o papel de determinante do acontecer histórico. Deste meno determinado pelas relações de produção.
modo - exemplificando - os males da democracia se O que se tentará mostrar ;nesse trabalho é que há
riam explicados: (a) pelo materialismo histórico racis fatores de ordem política, ligados à organizaçijo do Fts+
ta, simplesmente como uma decorrência da raça ou das tado, que também influem. sobre o funcionamento- da·�
raças que formam a comunidade; (b) pelo materialismo instituições democráticas. E que t1;1.is fatores, embora
histórico geográfico, simplesmente pelas condições de esg_uecidos ou desprezados, apresentam uma certa prio
solo, clima e paisagem do território; (c) pelo materia ridade (uma prioridade instrumental) em relação aos.
Hsmo histórico econômico, simplesmente como uma con demais fatores _de causalidade material. Ocorre que a
seqüência de fatores econômicos, por exemplo, o subde organização política, sendo um dos elementos da causa
senvolvimento, a renda per capita, ou o tipo vigente de material da História, quando instituída, torna-se tam..
relações de produção (este último para o materialismo bém causa instrumental, isto é, passa a ser o instru
histórico marxista). mento, o veículo, da construção das demais situações
A posição mais aceitável, e que João Camillo de Oli históricas. Com efeito, é por meio das estruturas políti.,.
veira Torres denominava de "efetivismo histórico", 4 re cas que os homens atuam sobre as demais realidades,
conhece que a vontade livre é, de fato, a causa eficiente como a geográfica, a demográfica, a econômica etc ...
da História, mas não nega a importância da causalidade "Não houve", - escreveu João Camillo - "talvez,
material - aliás, de todos os seus fatores, e não apena,s prova mais brilhante desse primado da política na mar
deste ou daquele. Para essa posição, as dificuldades da cha efetiva dos fatos históricos do que o trazido pelos
democracia numa determinada sociedade devem ser marxistas. Para Marx, o Estado não passaria de supe
procuradas não apenas nos fatores econômicos, nem restrutura da organização econômica. Ora, os discípulos:
de Marx no poder fizeram do Estado um instrumento de
· · 4 TORRES, J. C. de Oliveira, Natureza e Fins da Sociedade
ação política. A destruição da estrutura econômica e
Política, Petrópolis, Vozes, 1968, pp. 11-15. cultural da China, sua transformação em. potência in-
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A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 9
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
O IDEAL DEMOCRATICO
6. A primeira aproximação
"Governo do povo, pelo povo, para o povo" -- eis a
mais conhecida definição de democracia, tal como ela é
concebida no mundo ocidental. A consideração de que a
democracia consiste no governo do povo, para o povo,
nos vem de Aristóteles. 1 Mas foi Lincoln quem, acres
centando o elemento pelo povo,· compôs a fórmula clá.s:·
1
JJ
il
sica. 2
Democracia é o "governo do povo, pelo povo". Não
1:1 se pense, porém, com isso, que na democracia o próprio
!1 povo possa governar a si mesmo. Não houve - mesmo
na cidade-estado grega antiga - nem haverá povo que
se governe. Nesse sentido, o governo do povo, é huma
namente impossível e por uma razão óbvia: o fenômeno.
reza humana, isto é, do fato de o homem ser homem, com o Absoluto. É a dimensão espiritual do homem que
independentemente de nacionalidade, sexo, raça, rique se une, substancialmente, à material.
za, confissão religiosa e de outras notas acidentais da A Pessoa é indivíduo. Tem uma individualidade
personalidade. Já os direitos políticos decorrem da Pes própria. Não se repete. É distinta das demais e indivi
soa, através da sociedade política (em virtude da relação sível em outras. Mas não fica também aí. Somente
de cidadania que se estabelece entre a Pessoa e a socie abrindo-se para o outro, na comunidade, na sociedade,.
dade política a que pertence). no convívio com as demais pessqas, ela poderá desenvol
8. Pessoa Humana ver suas qualidades, a semente de personalidade que traz.
no seu íntimo, o seu próprio ser. Duas posições falsas se
Vimos acima que se pode definir democracia como o colocam referentemente a essa característica da Pessoa:
regime que reconhece, respeita e promove os direitos da o iridividualismo, que reduz o homem a sua dimensão,
Pessoa Humana. De onde se conclui que o ideal demo individual; o socialismo, que o reduz a sua dimensão so
crático repousa sobre a noção de Pessoa Humana. cial. A concepção verdadeira do homem e da sociedade
Pessoa Humana é uma concepção de homem. É é solidarista, enxerga no homem uma natureza solidá
aquela concepção que vê no homem três características ria, isto é, ao mesmo tempo individual e social. s.
6 Para a distinção entre "direito de personalidade" e "di r GoNELLA, Guido, Bases de Uma Ordem Social, Petrópolis,
reitos de cidadão", consagradas essas expressões em nosso di Vozes, 1947, pp.11-16.
reito: LIMA, Ruy Cirne, Princípios de Direito Administrativo, s QUILES, Ismael, La Persona Hurnana, Buenos Aires, Espasa.
Porto Alegre, Livraria Sulina Editora, 1964, pp. 101 a 103. - Calpe Argentina, 1942, pp. 200-220.
18 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 19
A Pessoa é um ser racional: um ser singular que pos 9. Fins e instrumentos do Estado 9
sui consciência de si e é capaz de refletir sobre o mundo
A razão de ser do Estado é a realização integral da
que o cerca. Por isso se pode dizer que a Pessoa goza de Pessoa Humana. O Estado, porém, face à liberdade na
liberdade. A liberdade da Pes�oa fundamenta-se na sua tur�l da Pessoa, não pode realizar a Pessoa de forma
racionalidade: Sendo racional, a Pessoa é essencialmen.: direta e imediata, como, por exemplo, faz um escultor
te livre; sendo livre, a Pessoa é responsável. A respon ao criar suas obras. O que o Estado pode e, mais, deve
sabilidade é a contraparte da liberdade, é o ônus que fazer é proporcionar às Pessoas condições (m�ios, opor
acompanha todo o ato livre do homem. tunidades, recursos... ) para que elas próprias desenvol
As características da Pessoa revelam, já no plano na vam integralmente suas personalidades. O conjunto
tural, a grandeza da dignidade humana. Por ser ao dessas condições que o Estado deve proporcionar às Pes
mesmo tempo material e espiritual, individual e social, soas para que elas próprias se realizem é designado pelo
dotada de racionalidade e liberdade, a Pessoa possui um termo bem comum. Em resumo: a finalidade do Estado
é servir à Pessoa, isto é, voltar-se totalmente (absoluta
valor incontrastável diante das demais criaturas. Daí
mente) à realização de sua dignidade e de seus direitos
porque todos os bens da natureza e todas as estruturas,
fundamentais (fim último ou mediato), proporcionando
sejam econômicas, sociais ou políticas, só têm sentido na
as condições sociais necessárias - o bem comum (fim
medida . em que estiverem ordenados ao bem da Pessoa próximo ou imediato).
Humana.
As condições que constituem o bem comum podem
Contemplada no plano sobrenatural, a dignidade da ser classificadas em duas espécies: as genéricas e as es
Pessoa (que se pode descobrir, no plano natural, pelo pecíficas. 10 As primeiras são aquelas que atendem in
uso reto da razão) confirma-se e completa-se, adquirindo distintamente e no mesmo grau a todos os membros da
um valor ainda maior. A Revelação nos mostra a Pessoa comunidade política. Tais condições são, basicamente, a
como imagem e semelhança de Deus, finalidade do mun Ordem, a Liberdade, a Justiça, a Segurança e o Pro
do criado e destinatária da obra redentora, na qual Deus gresso. Formam os objetivos permanentes do Estado,
assume a natureza humana e chega ao Sacrifício su funcionando como fator de coesão e unidade social,
premo para reconduzir os homens à Felicidade. acima dos interesses específicos que dividem os grupos
no interior da sociedade. As condições específicas, por
Agora, numa terceira aproximação, podemos definir sua vez, são aquelas que atingem, em grau diferente, os
a democracia como o regime· de governo que tem na Pes diversos setores da sociedade política, beneficiando mais
soa Humana o seu valor fundamental, ou seja, que com
preende a Pessoa como o princípio e o fim da organização 9 RODEE, ANDERSON, CHRISTOL, Introdução à Ciência Política,
Rio, Livraria Agir Editora, 1959, Tomo I, pp. 108-110.
politica. Numa frase: o regime onde a Pessoa Humana 10 TORRES, J. C. de Oliveira, Natureza e Fins da Sociedade
tem vez. Política, pp. 110-112 e 117.
i.
li
ill
20 0EZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 21
a uns do que a outros. Essas condições são ilimitadas Hzada em dois aspectos: enquanto concepção filosófica
em número: pontes, estradas, escolas, planos de alfabe a propósito dos fins do Estado e enquanto processo
tização, desenvolvimento da pesca etc . . . Formam o político. 12
que se pode chamar de objetivos atuais dos governos, eis Enquanto filosofia, a democracia é a concepção po
que soem integrar as plataformas dos partidos que dispu· lítica que faz do Estado um meio natural e necessário
tam o governo no seio da sociedade política. para'kervir a Pessoa, em sua dignidade e nos seus direitos
Colocada, nestes termos, a finalidade do Estado, fundamentais, realizando o bem comum. É a democracia
chegamos a uma quarta aproximação do conceito de em seu aspecto substancial.
democracia. Democracia nada mais é do que a situação Enquanto processo político, a democracia é o prin
política de um Estado que cumpre com o seu dever. É cípio de organização dos instrumentos políticos, pelo
o Estado que, em sua atividade, mantém-se fiel à sua qual os cidadãos devem participar, pelo consentimento,
natureza, à sua missão, aos seus fins. Ora, o saudoso do fundamento e do funcionamento do poder. O con
li Professor Armando Câmara définia o valor como "a con sentimento, como fundamento do poder, se efetiva pelo
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formidade do dinamismo do ser com os seus fins". 11 Po Estado-de-direito, isto é, pela adesão dos cidadãos à
lli
,i deríamos, assim, na trilha aberta pelo pensamento do Constituição que organizou o Estado e pela sujeição dos
1!
.,. mestre riograndense, sustentar que a democracia é. um poderes constituídos ao império dessa Constituição. O
valor, o valor político por excelência, assim definível: a consentimento dos cidadãos no funcionamento do poder
conformidade do dinamismo do Estado com os seus fins. ..
se efetiva pelo exercício dos direitos políticos. É a demo-
cracia em seu aspecto instrumental.
Por outro lado, o· Estado também necessita de ins
trumentos para atingir seus fins. O aparelho instrumen. Na Grécia antiga, a democracia não passava de um
tal do Estado pode ser denominado de estrutura política processo político pelo qual os cidadãos participavam (e
ou de "governo" em sentido amplo. É através da utili diretamente) do governo da cidade-Estado. A "demo
zação do mecanismo instrumental político que o Estado cracia dos antigos" era, assim, basicamente instrumen
é dirigido para suas finalidades. Por isso se fala em po tal, uma vez que os gregos não tiveram consciência clara
lítica educacional, política econômica, política habita da existência dos direitos fundamentais da Pessoa Hu
cional etc. mana e, muito menos, de que o Estado existe para pro-
12 Colocam, com clareza, esses dois aspectos da democra
10. Duplo aspecto da democracia cia: como "filosofia" e "sistema de governo". RoDEE, ANDERSON e
A democracia - regime de governo, ou seja, modo CHRISTOL, op. cit., p. cit.; como "substância" (ou essência) e
"forma", SICHES, Luís Recasem,, Vida Humana, Sociedad y De
de relacionamento homem-Estado - pode· ser visua- recho, Méjico, Ed. Fondo de Cultura Economica, 1945, p. 496;
como um sentido "substancial" e um sentido "formal" que se
11 CÂMARA, Armando Pereira da, Apostilas de Aula (Filoso
completam, MALUF, Said, curso de Direito Constitucional, São
fia do direito), Porto Alegre, Faculdade de Direito, 1968: . Paulo, Sugestões Literárias S/A, 1970, v. 1.º, pp. 271 e 274.
22 0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 23
mover e realizar tais direitos. 18 A "democracia dos mo� damentais, no campo econômico e social, descobertos e
dernos", como vai se estruturando, no mundo ocidental, definidos sob o influxo das novas condições vigentes na
a partir do século XVII, além de participação dos cida sociedade industrial. 1º
dãos no Governo (democracia instrumental), significa,
antes de tudo, uma concepção filosófica de preordena 11. Relações entre democracia instrumental e
ção do Estado à Pessoa (democracia substancial) . 14 democracia substancial
Os dois aspectos da democracia ocidental sofreram Democracia substancial e democracia instrumental
o impacto da transformação do Estado liberal, não in não formam duas democracias, mas dois aspectos do
tervencionista, dos séculos XVIII e XIX, para o Estado único e mesmo ideal. Realização dos fins democráticos
social, intervencionista, de nossos dias. (o governo para o povo), através de instrumentos tam
A democracia instrumental que, originalmente, s� bém democráticos (o governo do povo e pelo povo), eis
fundou no modelo da democracia pela representação, da o ideal democrático.
soberania dita nacional, do sufrágio restrito, da inde Cabe, aqui, enfatizar a relação que existe entre os
pendência do representante face ao eleitor e do primado dois aspectos da democracia. ..
do Parlamento, evoluiu, no século XX, ao modelo da
A negação da filosofia democrática, isto é, uma con
democracia pelos partidos, ou seja, da soberania dita po
cepção que coloque, como fim do Estado, não a Pessoa
pular, do sufrágio universal, da vinculação do represen
Humana em sua dignidade, mas a grandeza da nação, o
tante aos eleitores e do primado dos partidos políticos. 15
domínio de uma classe ou a hegemonia universal, é in
A democracia substancial, definida, na era liberal,. conciliável com a afirmação de direitos políticos e do
pelo respeito às liberdades públicas, no século XX am Estado-de-direito.
pliou seu conteúdo para abranger os novos direitos fun-
e_� Por outro lado, -uma limitação �permanent da de
(t =
1s BoNAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social, mocracia instrumental, isto é, dos direitos políticos ou
São Paulo, Saraiva, 1961, pp. 143 a 179. Analisa aprofundada do Estado-de-direito, tenderá a se refletir, mais cedo ou
mente a questão dos direitos do homem na antigüidade grega. mais tarde, numa subversão dos valores democráticos
11 CoNSTANT, Benjamin, Cours de Politique Constitution que fazem da Pessoa o princípio e o fim da vida política,
nelle, Paris, Librairie de Guillaumin et Cie, 1872, t. II, pp. 539-560. ou, pelo menos, numa perda de intensidade de efetiva
Aí, pela primeira vez, se compara "a liberdade dos antigos" com
"a liberdade dos modernos", ou seja, direitos de participação no
ção dos fins democráticos (os direitos fundamentais da
poder com independência individual do homem diante do poder. Pessoa).
Ê. com base nessa comparação que BURDEAU distingue a "liber Na verdade, somente a filosofia democrática confere
dade-participação" da "liberdade-autonomia" (op. cit., pp. 9 sentido à democracia instrumental e esta é o instrumen
a 12).
to mais adequado à efetivação daquela.
15 BURDEAU, Georges, A democracia, Lisboa, Publicações
Europa-América, 1969, O autor analisa as transformações da
democracia política liberal à democracia social. 16 BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal. . . ' p. 231 a 234.
1
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24 0EZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 25
r
414 -3
26 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
1:
''
As doutrinas totalitárias vêem o homem exclusiva
mente em seu aspecto social e como simples peça a ser
viço do mecanismo político, · sem direitos fundamentais
oponíveis e exigíveis frente ao Estado.
O século XX forneceu o clima favorável à concreti
zação dessas doutrinas, as quais, aliadas à utilização dos
avanços da ciência e da técnica, vão produzir as formas
mais opressivas de Estado que a História conheceu.
f
le plus sür moyen de les détacher de l'une; e quand on y serait
agrupação de homens explorados, para sua red�nção total." parvenit, on ne tarderait pas à leur ravir l'autre." (CONSTANT,
(CAMPOS, José Bidart, op. cit., p. 213. T. do A.)
Benjamin, op. cit., p. 555 do t. II.)
30 QEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 31
Em outras palavras: o processo político democrático, em Em segundo lugar há também que se considerar a
seu livre jogo, tem criado, com freqüência anormal, si inadequação do modelo político aos valores sócio-cultu
tuações de perigo à sobrevivência da própria substância rais históricos do País. Refere-se aqui a situação decor
da democracia. Eis a grave crise da democracia em nossos rente da importação de fórmulas políticas para realida
dias: por um lado, é cada vez mais difícil a realização do des bem distintas e às vezes até opostas à realidade em
governo para o povo mediante o governo do povo e pelo que foram geradas.
povo; e, por outro lado, não é possível o governo para o A inadequação das formas ·políticas à realidade a
povo com limitações permanentes ao governo do povo que se aplicam produz uma série de desajustes, de desar
e pelo povo. monias e· de dissensões que, sobre dificultar a realização
É certo, a crise da democracia tem causas econômi mais fácil e normal do bem comum, ainda facilita a .sua
cas e sociais, cujo estudo refoge ao âmbito deste trabalho. manipulação pelas forças interessadas na derrocada da
Mas devemos reconhecer que esta crise tem também filosofia democrática.
causas especificamente políticas, isto é, ligadas à própria
estruturação política do Estado. 15., Limitações à democracia instrumental e autorita
Em primeiro lugar, há a inadequação do modelo po rismo
lítico ao mundo atual. Grande parte dos Estados ainda Como enfrentar uma situação concreta de crise da
hoje mantém. uma organização política presa, em suas democracia, em que o processo político democrático
linhas básicas, ao modelo clássico setecentista, que não • ameace· conduzir a sociedade à anarquia, à desagregação
mais responde às exigências e aos desafios de um mundo e ao perecimento das condições genéricas do bem co
que mudou muito nos últimos duzentos anos. 5 Não só mum? Qual a regra de conduta política aplicável ao
a substância. democrática hoje impõe a realização da caso?
justiça social e dos direitos econômicos e sociais, mas as Se a democracia instrumental, em seu livre funcio
condições _da vida em sociedade são completamente namento, puser em perigo a democracia substancial
outras, brustando que se atente apenas para o fato de que (vale dizer, o bem comum) e se. a incompatibilidade esta
vivemos a era <:las massas, 6 com os gr�ndes conglome- belecida for de tal gravidade que exija um desate ime
rados urbanos, a difusão do consumo e. o encurtamento diato, pelo que se deve optar: pela manutenção da de
brutal das distâncias. mocracia instrumental, ainda que com o sacrifício da
democ· racia substancial, ou pela preservação da democra
5 "Um dos principais motivos de crise do Estado contem
porâneo é que o homem do século XX está preso a concepções cia substancial, ainda que para tanto se tenha que admi
do século XVIII, quanto à organização e aos objetivos de um tir a limitação da democracia instrumental?
Estado Democrático." (DALLARI, op. cit., p. 259). A regra moral para a solução desta incompatibili
6 O poder ·das forças da sociedade moderna, que fazem dos dade, quando inafastável por outros meios, nos indicá
homens massas ou multidões, é o maior dos desafios modernos o caminho do mal menor. E o mal menor está na última
à democracia (LINDSAY, A. D., O Estado Democrático Moderno
Rio, Zahar Editores, 1964, p. 239-240). hipótese: limitar a democracia instrumental para salva-
ii
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 33
32
por
guarda da substância democrática. Esse direito de limi ção" das li:md.tações à democracia instrumental, que,
uma
tação revolucionária da democracia política, porém, há definição, deveriam ser transitórias. Trata-se de
craci a pela limi
de corresponder a um dever imediato: o de corrigir os te ntativa de solucionar a crise da demo �
defeitos da organização política e as falhas da vida co tação, revolucionariamente "permanentizada", da demo
(pela
munitária que impedem a restauração da democracia cracia política. O regime, se não é ainda totalitário
da Pesso a um instr u
política sem problemas mais graves. 7 Por isso se sus ausência de uma ideologia que faça
é tamb ém ple
tenta, em doutrina política, a licitude moral da limitação mento sob o domínio do Estado), já não
ípio
da democracia política quando, necessária e transitória, namente democrático - uma vez que o seu princ
tiver por objetivo evitar o mal maior que representaria a político não é praticado. Estamos dian te de um sistema
que podemos chamar de autoritário.
9
destruição da substância democrática. 8
Pode ocorrer, no entanto, que os obstáculos que im o autoritarismo, nessa perspectiva, talvez açõe pudesse
s re
ser definido como a "permanentizaçã o" de limit
pedem a harmonização da democracia instrumental com o fund a
a democracia substancial não sejam superados desde volucionárias à democracia instrumental, sob da
iais
logo, pouco importa aqui se por impossibilidade real, por mento da preservação dos principias substanc
ignorância do modus faciendi ou por simples má-vonta filosofia democrática. 10
i
"lj!
,1
1' 1
34 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
SEGUNDA PARTE
A DEMOCRACIA NO BRASIL
Esta segunda parte busca analisar, em quatro
Capítulos, o caso particular brasileiro à luz dos prin
cípios e critérios definidos na primeira. A democracia
no Brasil tem sido acompanhada, em sua História,
de uma crise política constante (Capítulo I). Hoje,
no plano da organização do Estado, o sinal desta crise
está na existência de poderes excepcionais revolucio
nários que limitam a democracia instrumental, espe
cialmente quanto ao Estado-de-direito ( Capítulo II).
No entanto é daí o impasse em que se debate o País
- se a existência desses poderes limitam a democra
cia, a sua revogação pura e simples, sem a reforma das
bases da organização constitucional que nos tem re
gido desde 1891, não significará, nem garantirá, por
si mesma, o advento de uma democracia política es
tável e livre dos males que a têm comprometido no
correr de nossa História (Capítulo III). Ocorre que
as limitações revolucionárias não são a causa da crise,
mas uma conseqüência dela: a causa política é mais
Authoritarian Brazil, pela Yale University Press, em t973) con profunda e vai ser encontrada, isto sim, na inadequa
clui que o caso brasileiro é muito mais o de uma situação auto
ritária do que o de um regime autoritário. Para ele, a natureza
ção das instituições à realidade nacional ( Capí
do regime que pode vir a surgir ainda é bastante indefinida. A tulo IV).
existênqia de uma situação autoritária, muito mais que de um
regime autoritário é uma evidência das dificuldades que se
apresentam para a institucionalização desse tipo de regime.
A CRISE DA DEMOCRACIA
var-se na realidade, como se revela incapaz de por cobro uma fórmula que permita a democracia política, 2 a mais
ou dar remédio legal aos abusos, aos conflitos e às irres ampla possível, sem que a concepção democrática corra
ponsabilidades que naturalmente tendem a acompanhar () risco de submergir no embate dos conflitos e das crise.s
o exercício da liberdade política e que, muitas vezes,
ameaçam a conservação da substância democrática. 11. Raízes históricas da orise
A democracia brasileira tem vivido em constante Antes de prosseguir a análise, convém registrar que
crise, na medida em que não conseguiu conciliar a liber a crise da democracia brasileira . não tem suas raízes na
dade e a segurança que, nos limites do possível, a comu edição do Ato Institucional n.0 ,5, de 13 de dezembro de
nidade possui· o legítimo direito de aspirar. Não raro a. 1968, nem, muito menos, no moviménto de 31 de março
crise evolui para uma situação paradoxal: para salva de 1964. Foi, na verdade, a incapacidade das instituições
guardar os valores substanciais da democracia, ínsitos à políticas em possibilitar unia superação constitucional e
própria comunidade, suprime-se a democracia política, pacífica das crises e dos conflitos entre os poderes, que
recorrendo-se à limitação :revo.lucionária. do processo po levou as Forças Armadas ao caminho revolucionário. A
lítico democrático, que atinge o Estado de direito,,€) os crise é anterior a 1964 e a Revolução se fez, justamente,
direitos políticos. com o intuito de resolvê-la.
Na atualidade brasileira, talvez como em nenhum Essa particularidade é· importante porque nossas
outro momento anterior de nossa I{istória, viv&-se com elites têm se comportado com incrível imediatismo sem
tanta dramaticidade essa situação paradoxal. De um pre que, após as fases revolucionárias, se tratou de
lado o desejo, tantas vezes manifestado, dos mais eleva
2 Escrevia OLIVEIRA VIANNA em 1925, em palavras ainda
dos líderes do movimento re,volucionário, de instituir. um
carregadas de atualidade: "O presente regimen não deu satis
processo político democrático eficiente e estável. De fação às nossas aspirações democráticas e liberais: nenhuma
outro, as dificuldades para a realização dessa aspiração, delas conseguiu ter realidade dentro da organização política
justamente por não se ter chegado a um consenso sobre vigente. Estamos todos descrentes dela; todos sentimos que
precisamos sair dela para outra cousa, para uma novs, forma de
governo. Esta nova forma de governo, entretanto, ninguém
dizer, portanto, que a democracia, nesse sentido, .instituciona ainda pode dizer ao certo qual. deva ser. Não há nenhuma aspi
lizou-se no Brasil, cimentou-se graças ao consensus, que herda ração definitivamente cristalizada na consciência das. massas.
mos de Portugal e o conservamos como um bem precioso. ·se lhe Nenhum nódulo novo de crença se formou ainda no espírito das
faltam as características de institucionalização política, como nossas elites em torno de um princípio qualquer. Há;, sém dú
fundação duradoura; se as crises que a abalam, delatam que vida, várias tendências de gravitação em torno deste ou daquele
politicamente, ainda não acertamos de todo o rumo, não ponto; mas, ainda assim vagamente, indistintamente, de forma
querem esses sinais dizer que não palpite nos sentimentos do imprecisa e indeterminada. Há uma certa tendência de retorno
povo brasileiro, mais do que na sua classe política, a espécie ao regimen parlamentar. Há uma certa tendência de retorno ao
de democracia que se contém nos Evangelhos. (ScANTIMBURGo, Poder Moderador, exercido já agora por um Conselho vitalício".
João de, Tratado Geral do Brasil, São Paulo, Cia. Editora Na (OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de, O Ocaso do Império, Rio,
cional, 1971, p. 136-7). Livraria José Olympio Editora, 1959, 3.ª Edição, p. 98).
40 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 41
414 - 4
CAPÍTULO II
d cria ç. a o de o
seguinte do trabalho. proibi a "exigência
5 , te ;II e stabelece
tituição , no art1�0
a a
a vo ado na últi
t
o2el�it:ado 'que haj
de cinco por cen o � eputados, . distri-
r a a cA amara dos D ,
20. O bipartidariSmo
1e1·ção ge r l pa
ma e
Est do co m o mirumo de
Aponta-se, também, a circunstância de existirem, em se te ' . - , be m
bUl'dos pelo menos
a
E ssa cond1çao e
a s
me n te ao que previa
s
Em primeiro lugar, não se pode dizer, rigorosamente, tlv
a o
rigorosa rel
a
. nica d os Par-
0•
de 65 tínhamos mais de dez partido s que, por ocasião da co� o pode : par
ecer simplesmente a
princ ipa l a é siste
disputa dos pleitos e da partilha de posições, geralmente l. que, embor� mantido o
exigência constituciona É
n o
.'
cargo. É o empregado de mais alta categoria, o primeiro dos tido etimológico . do voc :plicaião objetiv .
funcionários, o incumbido dos serviços mais importantes e de distintas entre si, conf� o representantes das vár
ias
a
rme
superintender em toda a ativida de oficial. Por isso, uma lin me ns da con fia n � :o idéias,
tad os, ho . discutir s
dlvid�, �: terão de
a
o" A designa
a
análises de sociologia eleitoral, escritas em nossa língua", es ti:
itos, o pres1den
sentantes devem ser ele mento - a
ead
el�
nom
creveu: "A eleição do chefe do Estado por sufrágio popular requer ap ena s
um
transforma -se em um caso de plebiscito. Escolher presidente e ção dos representantes me smo' ser ex-
tores. Deve, por isiJO
escolher deputados não é a mesma operação, nem s equer ana- conf1' ança política dos lei
48 A CRISE DA DEMOCRACIA NO· BRASIL
ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
::tid.o.:;
ma eleitoral proporcional, o deslocamento da eleição do eleitores em favor de outro partido. Ambo.s o.s pa: a,
sabem que, nos termos em que está colocada a pugn
Presidente - o cargo político mais importante do sis ê-Ja.
eleitoral, é preferível ganhá-la unidos do que perd
tema político porque, além da ,chefia de Estado, lhe é
atribuída a chefia de governo e a chefia da Revolução-, separados
,
para · a esfera de um Colégio Eleitoral composto . de Resta cogitar do interesse da comunidade nacional
Nest e par
membros do Congresso Nacional e de delegados, das que está acima do interesse dos partidos.
des que,
Assembléias Legislativas dos Estados parece exercer uma ticular, o bipartidarismo mostrou algumas virtu
ica, deve riam ser leva
forte pressão no sentido da polarização partidária, eis numa eventual reorganização polít
para a últim a
que o grande objetivo dos partidos, na prática, passa a das em conta. Essa análise, porém, ficará
ser o da formação de uma maioria no Congresso Nacio parte desta dissertação.
nal e nas Assembléias Legislativas . Assim, contraria aos
interesses vitais, tanto da ARENA como do MDB, como 21. A nomeação de prefeitos municipais
um todo, perder ou deixar de conquistar membros e .A constituição vigente (art. 15, letra b, § 1. 0), con
clusivamente entregue ao povo, e só há de ser legítim�. quando fere ao Governador do Estado o poder de nomear, com a
no conjunto refletir a imagem perfeita da, opinião 'p'opular. prévia aprovação da Assembléia Le�sl�tiva, os �refoitos.
A escolha do chefe de estado é, pelo . contrário, niai's um ato .
das capitais dos Estados e dos Mumc1p1os cons1de� ados
de administração do que de soberania. É uma operação : que por lei estadual estâncias hidrominerais, e, com a apro
demanda trabalho prévio de ponderação e raciocínio, incon
vação prévia do Presidente da. República, os P�efeito5
dos Municípios declarados de interesse da s�gurança ::ª
ciliáveis com a imaleabilidade do sufrágio popular. A opinião
manifesta-se intransigentemente, e assim convém que· seja;
mas aos atos do governo deve corresponder o mais pr�nuncia cional por lei de iniciativa do Poder, Executivo da Umao.
do espírito de tolerância, e eleger presidente não é constituir o estudo deste tema jurídico-constitucional refoge
um representante, é fazer o primeiro dos funcionários públicos." a o âmbito do trabalho. Importa apenas mostrar que a
E, continua: "Não se confia ao arbítrio popular a nomeação nomeação de prefeitos determinada pela Constituição
dos juízes, nem a dos especialistas dos vários ramos dos servi
ços públicos; menos se lhe deve reconhecer competência p·ara levar por bem entendida utili.dade, não te1;�0 materi,almen�:
eleger o magistrado dos magistrados, o chefe de todos' os �er meio de discutir, deliberar, mudar de propos1to, consoante "-�
viços, o administrador supremo da coisa pública. É da nature conveniências públicas supervenientes - nunca · disporá de
elementos para fazer escolha razoável, ;de .. candidato$', A prm .
za do eleitorado popular que os seus movimentos sejam como
de um ser inarticulado. Há de manifestar-se por sim ou por cipal preocupação dos parti dos é vencer. A vitória, quando
não, pela única força da preponderância numérica, seja. estz. houver partidos equilibrados, só lh�s poder{J. ser dada. pelo ele
de um partido homogêneo, ou já de uma coligação. Não é p�e mento popular flutuante, que pende pará quem melhor o sab'"
ciso recordar que me refiro aos eleitorados que forem chamados atrair. Por isso, os partidos hão de levantar sempre �ornes de
a resolver uma dada questão de administração, como é. a no guerra, homens de opiniões extremas. e ,qualidades brilhantes,
meação de funcionários; não falo· dos que têm de eleger re desses que são excelentes para deslumbrar as turbas, mas, em
presentantes." E quando mais adiante o velho republicano regra, negativos para as funções práticas de gove:n�." (Ass�s
trata da seleção dos homens para o cargo afirma: "O sufrágio BRASIL J. F. de, Do governo presidencial 11,a Republica Brasi
universal, arrebatando-se mais por emoções do que deíxándo-se leira, ii:sboa, Cia. · Nacional Editora, 18'96,' ,p. 235/250) , ·. · ·
50 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL
liga-se ao problema d a extensão e do conteúdo do prin dos entre os quais o de decretar o recesso dos poderes
cípio da autonomia municipal e do rel acionamento, a Ieglslativos da União dos Estados e dos Municípios
nível de Poder Ex�utivo, da União e dos Estados com (art. 2.º), de suspender direitos políticos e cassar man
os Municípios. 2 Em si mesmo, nada tem a ver com a datos eletivos (art. 4.º), de decretar o confisco de bens
caracterização da democracia política . Trata-se, em ver (art. 8.º) e de autorizar a suspensão das liberdades de
dade, de elemento definidor da forma do Estado; não do reunião e associação, bem como a censura à imprensa
regime político de governo. (art. 9.º), são vistas, em geral, como restrições à demo-
Diga-se apenas de passagem que a ativid ade política, cracia política.
no âmbito dos municípios, deve ser repensada , inclusive o Ato Institucional de n. 0 5 não apenas reabriu, a
a bem do próprio princípio da a utonomia municipal. Se 13 de dezembro de 1968, o processo revolucionário que,
a autonomia municipa l se destina a prover a admini.stra no plano jurídico-constitucional se fechara a 15 de março
,ção própria, ou seja, o autogoverno, em tudo o que res de 1967 (com a entra da em vigor da nova Constituição),
peita ao peculiar interesse local (art. 15, II, da Consti como introduziu na organização politica brasileira um
tuição), por que condicionar-se obrigatoriamente as elei
sistema de poderes de responsabilização política, a fim
ções para os governos municipais a terem um caráter
de - como diz seu Preâmbulo - ensejar o comb ate à
partidário em bases políticas n acionais? Parece-nos um
despropósito total. Não vemos senão desvant agens na subversão e à corrupção. 3
partidarização n acional compulsóri a a que se submete Esses poderes são confia dos ao chefe do Movimento
completamente a atividade política nos Municípios. Não Revolucionário iniciado em março de 1964, na sua con
sendo da competência municipal senão a administra ção dição de comandante supremo das Forças Armadas. 4
relativa ao peculiar interesse local, aplicar compulsoria Adjetivamos os poderes consubstanciados no Ato
mente os critérios político-partidári os nacionais ao pro Institucional n.º 5 de "revolucionários" porque sua fonte
cesso político municipal não só tende a dividir a comuni direta foi um movimento revolucionário e não o poder
dade local sobre os problemas que não são os de sua constituinte instituído n a Constituição e dela derivado.
competência, mas da comunidade glob al, como t ambém, E os adjetivamos também de "excepcionais", primeiro,
face à partidarização nacional da política e dos políticos porque contidos em ato que, por definição da própri�
municipais, propicia o enfraquecimento do exercício da Constituição, é transitório; 5 e, seg�ndo, porqu�, desti
própria autonomia municipal. _
nando-se a combater situações de crise nao previstas no
regime de normalida de política d a Con�tituição, não
22. Poderes excepcionais revolueionários
estão sujeitos as limitações inerentes ao sistema �e go
A vigência de atos institucionais - especialmente verno nela estatuído, funcionando como suspensao de
do Ato Institucional n.0 5 - com os poderes nele inseri-
a FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. 3, p. 232.
2 F'ERREmA FILHO, M. Gonçalves, Comentários à Constitui 4 FERREmA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. cit., p. cit.
ção Brasileira, São Paulo, Saraiva, v. 1, 1972, ps. 145 e 146. r; FERREmA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. cit., P· cit.
52 ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
3.0 - a permanentização das restrições revolucio Daí o impasse político em que nos encontramos: não
nárias ao processo democrático dificulta a conservação se pode continuar indefinidamente com as restrições re
do consenso da comunidade em torno dos valores subs volucionárias à democracia política; no entanto, ,a revo
tanciais da democracia, sem o qual a própria democracia gação pura e simples dessas restrições não resolverá ..Q:
instrumental não é factível. Especialmente os setores nroblema político brasileiro..1 · r'
mais jovens da comunidade, de difícil integração no sis -�
tema, tornam-se mais facilmente condicionáveis a de =t_,. ;,,.��"07 ·� �2'1ttl
25. O país legal contra o país real
sacreditar nos valores da democracia substancial e a
aderir a posições extremistas totalitárias. O impasse em que estamos põe a nu o núcleo do
problema político brasileiro: o modelo de estruturação
24. Os poderes excepcionais revolucionários: constitucional que importamos dos Estados Unidos da.
revogá-los? América, quando aplicado à realidade brasileira, tem se
mostrado inepto para regular o processo democrático em
Conforme o que se analisou até aqui, a conservação consonância com os valores da democracia. Em outras
dos poderes excepcionais revolucionários, além de incon palavras: o modelo importado não logrou instituir pro
veniente à democracia, choca-se com a consciência de cesso político democrático que pudesse funcionar de for
mocrática. ma e.stável, sem fazer perigar a ordem, a liberdade, a
Mas, a pura e simples revogação desses poderes, com justiça, a segurança e o desenvolvimento.
a volta ao sistema constitucional de 1946 (mantido, aliás, Os liberais clássicos, fiéis ao modelo político ameri
.
em suas lmhas fundamentais pela Constituição de 1967 cano, culpavam os dirigentes políticos e o povo brasileiro
e pela Emenda n.0 1 de 1969), resolverá nossos proble pelo fracasso do regime. Realmente, "traço inegável do,
mas políticos? As crises políticas que, certamente, con
tinuarão a ocorrer, encontrarão remédio constitucional? 1 A constatação de que o puro e simples afastamento dos
Desaparecerá, por encanto, a possibilidade da corrupção poderes excepcionais revolucionários é insuficiente para resol
e da subversão? ver a crise da democracia brasileira tem levado muitos a con
cluir, a meu ver, errada e perigosamente, que não poderemos·
Evidentemente não. O simples afastamento dos po ter .Processo político democrático enquanto o Brasil, econômica
deres de responsabilização política existentes em instru� e socialmente, não se transformar para melhor. Essa preten
mentas revolucionários não trará solução duradoura à dida incompatibilidade entre democracia política ocidental e
crise da democracia brasileira. Ficaria, ainda, em aberto, nosso atual estágio econômico e social deflui, logicamente, da
uma lacuna no sistema constitucional que, desde 1891, visão marxista da história e da política. Curiosamente, pessoas
que confessadamente repudiam o marxismo, não vendo saida
tem sido ocupada, ou por uma prática constitucional democrática ao impasse politico a que chegamos, têm susten
totalmente divorciada do texto escrito, ou por poderes tado essa incompatibilidade. Lúcidas, a propósito, são as obser
revolucionários. Ademais, este espaço vazio, seguramen vações de um intérprete marxista, em estudo recente: "Não é
te, não tardaria a ser novamente preenchido por práti preciso ser nenhum gênio politico para perceber que no caso
latino-americano em quase todos os países inexistem condi
cas inconstitucionais ou por via revolucionária. ções para o funcionamento regular de um regime de partidos.
1' 1·1
�
�
� .
:56 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
11 _1�.
culo. a, uma democracia política estável Mas, para os O impasse político brasileiro, do ponto de vista po
liberais clássicos, o regime era perfeito: as dificuldades lítico, decorre assim, basicamente, da inadequação das
� <lre funcionamento eram atribuídas exclusivamente aos instituições à realidade que deveriam servir.
homens que o tinham de realizar, ou seja, ao despreparo É o que resta examinar.
do povo e à má vontade dos políticos ...
O melhor conhecimento da realidade sócio-política
brasileira, cujos estudos começam apenas com· Alberto
�
� Tbrres, iria identificar a causa. Nem o povo, nem os po
' j 1íticos, própriamente, são os responsáveis pelo mau fun-
""-' cionarnento do regime político. Ocorre que há algo que
J)
"""T'i
'' os liberais clássicos não levavam muito ·em conta: e que
,,
não consideraram devidamente quando tiveram de �e-
'.::) . a organização política em 1891: a realidade
compo:r . viva
\� cto ;w.ís histórica. socJªl,__g_conô:giica, poI!.1tÇ,� f
.. ..�-
a "Temos sido um país ao qual tem faltado organização
.,. .mh O modelo implantado . . . .
em 1891 e que - alterado em
( ...) política adaptada às condições do meio e à índole da
Ef:.1 gente" (TORRES, Alberto, o Problema Nacional Brasileiro, São
aspectos acidentais - permanece idêntico até �oje, é
-.!\ , , ''"""""
t?icional, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 157.
P<Lnó, "1'., Gonçalves, Cu,so de Dfreito Ca,i,t;- Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938, p. 275). A questão é reto
mada por OLIVEIRA VIANNA: o "desacordo entre o idealismo da
1 Constituição e a realidade nacional" é a "causa" do "fracasso"
representativo e democrático, e que, no mais das vezes, demo da ideologia da Constituinte de 1891 (O Idealismo da Consti
cracia-Uberal é a expressão ideológica da dominação olígár- tuição, Rio, Edição Terra do Sol, 1927, p. 40).
� 1·
?
f,
414- li
1
CAPÍTULO IV
r
belecido o poder ootatal, a população que vive no territó-
1PRÉLOT, Marcel, Institutions Politiques et Droit Consti
tutionnel, Paris, Dalloz,, 1972, p. 12.
60 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR r-1 A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 61
rio sobre o qual se estende a autoridade real, w
ad.quj / �� � �.;).g.� ���
-
rindo uma consciência nacional e se transforma em povo · A Inglaterra no seculo XVII, em plena revoluçao
� . comercial, enriquecia-se rapidamente. Aqueles que dis
De maneira oposta formGu-se um número reduzi- sentiam da religião do Rei e do sistema político que ele
díssimo de sociedades políticas: Estados Unidos, Suíça,
representava, juntaram recursos e, com as suas famílias,
Holanda e, em nosso século, Israel. Nesses Estados, de
em comunidades, emigraram para a América. Julga
certo modo, concretizou-se a hipótese teórico-política do
contrato social - tão ao gosto dos idealizadores do Es vam-se - ledores da Bíblia e profundamente religiosos
tado Liberal -, pela qual os homens, para a proteção de - novos judeus que fugiam à opressão em busca de uma
seus direitos, reúnem-se em sociedade através de um terra onde pudessem construir uma nova sociedade,
pacto, instituindo, destarte, o poder. religiosa, política e economicamente livre. 4 Nesse par-
/
ticular, é muito significativo o gesto dos primeiros po
Nos Estados onde houve o primado do poder, a au
voadores, que, antes de descerem ao solo, firmaram um
toridade reveste-se de atributos mágicos, tremendos e
fascinantes. Isto já não se passa nos Estados onde a pre contrato ("compact") destinado a reger a vida da co
cedência foi da nação, nas quais o titular do poder su munidade no novo território. Levas sucessivas de ingle-
perior não se sente uma figura sobrenatural, por mais ses, conscientes de seus direitos fundamentais e políticos,
poder que lhe seja dado: ele é um mero agente da co vão assim se estabelecendo num estreito território junto
munidade, um servidor do povo. 2 ao Atlântico, em 13 "colônias". Quando as comunidades
sentiram-se com força política e econômica suficiente
27. Formação política brasileira e norte-americana para a Independência, levantaram-se em arma� co:1-t�a
0 R.ei inglês. Obtida a vitória, reuniram-se em Flladelfla
Brasil e Estados Unidos tiveram uma formação po e, por meio de um Pacto Constitucional, fundaram os
lítica diametralmente oposta. Os Estados Unidos cons Estados Unidos da América.
tituem o caso clássico de anterioridade do povo ao poder. Já Portugal, embora pobre em recursos humanos,
O Brasil, por sua vez, representa o exemplo mais radical territoriais e econômicos, tornara-se, praticamente, o
de preexistência do poder: o poder precedeu o povo não primeiro Estado moderno. Tendo conseguido um chão
apenas no sentido político do termo, mas fisicamente.
Quando o primeiro governador-geral Tomé de Sousa 4 VrANNA Mooa, Bandeirantes e Pioneiros, Porto Alegre,
desembarcou, em 1549, com a máquina completa do Es Editora Globo, 1957, pp. 129-130, 137-138.
tado, não havia, a rigor, ninguém a ser governado. Não
Porto Alegre, Editora GlobO, 1951, p. 62). Este aspecto da foi:··
havia povo nem no sentido material da palavra. 3 mação brasileira vem desenvolvido em: TORRES, J. e. de 011-
2 Para uma veira Interpretação da Realidade Brasileira, pp. 21 e segs.
caracterização mais completa desses dois Este �utor registra as observações que, em 12 de julho de 1841,
tipos: TORRES, João Camillo de Oliveira, Natureza
e Fins . .. , foram proferidas por Bernardo Pereira de Vasconcelos ("as des
p. 139-142.
3 "A forma graças do país" vieram de "terem-se reformas políticas prece -'
T
ção política 'do Brasil fez-se de cima ps.ra dido às reformas sociais") e pelo sénador Vergueiro ("Todos
baixo" (MARTINS, Wilson, Introdução à Democracia
Brasileira ' sabemos bem que as agitações que têm havido entre nós pro-
�5���.��
( 62 CEzAR SALDANHA SoUZA JUNIOR
'
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 63
tropical na América para povoar e civilizar a coroa _ E na hora de "constituí-lo", 7 ou seja, de regulá-lo juridi
após a tentativa das Capitanias Hereditári�s, pela qual camente, é ainda o então Imperador, titular daquele
procurou movimentar um processo de povoamento nri ve lho poder preexistente, que se arvora em constituinte.
vado e espontâneo - decidiu-se por uma alternativ; de
caráter nitid�mente público.. Com a criação de um go 28. Conseqüência da diversidade de formação
verno-geral, implanta na América uma "filial" do poder
A diversidade de formação histórica, social e política
estatal português. Desde 1549 tínhamos já o poder _
o governo - sem que tivéssemos, ainda, um território explica o .diferente posicionamento político do povo nas
definido e um povo. sociedades políticas norte-americana e brasileira. Eis
al guns aspectos.
Esse poder preexistente formou, até 1750, o território
que, com muito poucas variações, corresponde ao que 1.º - Quanto à fonte real do poder.
temos hoje, mercê das bandeiras ( que não foram emnre No Brasil a força po lítica real não se enraíza no
endimentos meramente privados, eis que o bandeir�nte povo, mas na autoridade, nos órgãos estatais preexis
i� ao i�terior em nome do Rei), e da hábil política di tentes, ou se quisermos usar a expressão . de Raimundo
,
p10mat1ca que culminou, no reinado de Dom João v, Faoro, no estamento burocrático que domina e controla
com o Tratado de Madri. 5 Esse poder preexistente for a máquina governamental. 8 Daí por que o povo é poli
mou também o povo brasileiro, não só materialmente, ticamente fraco diante do poder estatal, do qual depende
pelo povoamento e pelo estímulo à miscigenação, mas como a criatura do criador.
também politicamente, pela presença de uma só autori r
dade no vasto território, lançando as bases de uma cons Nos Estados Unidos a fonte sócio-política do pode
de que "o
ciência nacional que se iria revelar, pela primeira vez, está no povo, na comun�dade. Lá a afirmação
cípio
em sua totalidade, no ano de 1822. :f:: esse mesmo poder poder emana do povo" não soa como simples prin
na Cons tituição, mas
estatal preexistente formador, legitimamente represen jurídico, um "dever-ser" inscrito
a form a
tado no Príncipe Dom Pedro, que - somando-se à von corresponde ao que foi, na realidade histórica,
litica,
tade do povo então nascente e expressando-a 6 - "cons ção americana. Conseqüentemente, o povo é po
ele próp rio
truiu" a sociedade pol ítica brasil eira independente. mente forte em re lação ao poder estatal que
criou.
5 TORRES, J. C. de Oliveira, o Presidencialismo ..., p. 18-19.
cientista
"Um dos problemas prévios que se oferecem ao
6TORRES, J. C. a'e 011·ve1·ra A Democrnc·
· ... ia eoroacda, Pe- 7
ção entre o poder de
do "direito· público é o da precisa distin
trópolis, Vozes, 1964, pp. 52-54.
construir, o Estado e o poder de const ituí-l o (pode r estat al,
). (PONT ES. DE MIRANDA, F. Caval canti, Come n
poder constituinte
�éden: �e havermos antecipado a nossa organização política 1967, t. I,
a social ) . Tocaram nessa questão, igualmente, LIMA, Alceu de tários à Constituição de 1967, São Paulo, Edição RT,
Amoroso, (A Margem da História da República Rio 1924 p. 178).
s FAORO, Raymundo, Os donos do poder, Porto Alegre
, Edi-
T
p. 2�4 e :45) e OLIVEIRA VIANNA (Pequenos Estudos de Psi�olo;i�
Social, Sao Paulo, 1942, p. 172). tora Globo, 1958, passim.
i il: f1 iJ 1 i .
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ó j °""' SAWANHA SoUZA JumoR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 65
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o A sorte do Presidente Nixon, em razão do "Caso Water 10 FERREI A FILHO, M. Gonçalve1l,
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gate", ilustra as afirmações. n. 34. &
66 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 67
dita que possa fazer milagres e, portanto, tudo espera A Constituição americana foi o instrumento pelo
dele: apoio, obras, empregos... Quanto mais o chefe qual uma comunidade preexistente (a fonte de fato do
de Estado se aproximar da imagem paternal, mais con poder constituinte originário), mediante um consenso
quistará o coração do povo. 11 prévio sobre a organizaçiio do poder que pretendiam "es
O paternalismo no Brasil, antes de ser lamentado tatuir", criou o Estado (o objetivo).
ccmo um mal, deve ser considerado como um fato. Re No Brasil, as constituições provêm de outra fonte
f!exo da existência de um poder anterior e formador, e buscam objetivo diverso. A função constituinte decor
impôs-se como uma contingência do tipo de formação reu sempre - e não podia deixar de ser assim - do
histórica do Brasil. Se Getúlio Vargas tive:sse esperado órgão político mais poderoso do próprio Estado, ou di
que os trabalhadores pleiteassem direitos sociais, quando retamente (e temos as constituições outorgadas em 1824,
e como teria vindo a legislação trabalhista? Somente 1937 e 1969), ou indiretamente, caso em que o órgõ.o
dsblaterar contra o paternalismo não resolve. Conscien estatal confere a uma assembléia constituinte poderes
tes dessa tendência brasileira de visualizar na autoridade mais ou menos amplos para a elaboração constitucional
estatal uma natureza paternal, o que se faz necessário (Constituição de 1891, 1934, 1946 e 1967). O objetivo da
é neutralizar o mais possível o poder relativamente às atividade constituinte não é criar o Estado, ou "estatuir"
paixôes e às ambições político-partidárias, 12 de modo a um poder, pois eles já existem, mas limitá-los em favor
diminuir os riscos de sua manipulação em favor da de.. da comunidade, cujos direitos é o que a Constituição
magogia e do autoritarismo, tornando mais viável o seu busca "estatuir" e garantir. Paradoxalmente, foi a
exercício para a liberdade e o bem comum. Constituição de 1824, 13 através do poder moderador, a
que melhor soube realizar a limitação do poder supremo
'29. Constituição "estatuinte" e Constituição do Estado: amarrou-o à Constituição, cercando-o de
"estatuída" cautelas, esvaziou-o de funções propriamente governa
A diferente formação do Brasil e dos Estados Unidos, mentais e procurou, no maior grau possível, identificá-lo
que se vem analisando, apresenta um reflexo curioso, e com a Nação. A técnica das constituições posteriores,
ainda não devidamente enfatizado, no plano da Consti ignorando-o e expulsando-o da Constituição, não foi a
tuição escrita. melhor para garantir o Estado-de-direito e a democra
cia política. Nos momentos dramáticos das crises sem
11 A imagem paternal do chefe de Estado está associada solução, o poder estatal supremo tem sido retomado pelas
ao conceito do Estado-benfeitor. (Cfr. TORRES, J. e. de Oliveira,
Interpretação . .. , p. 35 e segs.). 13 "A Constituição de 1824, por uma dessas circunstâncias
12 A democracia em países do tipo do Brasil "exige a neu inesperadas e favoráveis que ocorrem, às vezes, na vida das
tralização da força mágica do poder supremo, impedindo-o de nações, tornou-se um documento de admi.rável flexibilidade, mo
atuar diretamente na política - transformando-a em magis deracão e sabedoria, o melhor documento constitucional da
tratura. Do contrário teremos o despotismo, tanto dos reis História política do Brasil". (FRANCO, Afonso Arinos de Mello,
absolutos, como dos ditadores republicanos." (TORRES, J. C. de Problemas Políticos Brasileiros, Rio, Livraria José Olympio Edi
Oliveira, A Natureza e Fins..., ps. 140-141. tora, 1975, p. 96).
68 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA .NO BRASIL 69
Forças Armadas, ao sabor dos sucessos revolucionários Is.so ilustra o grande objetivo da Constituição america
e das paixões da hora, sem qualquer limitação constitu na: "estatuir" ou "constituir" o poder, já que a comu
J .
com o poder constituinte originário. Em 1822, Dom Pe agigantamento da irresponsabilidade governamental ou $ ,j.
dro, como agente do poder preexistente formador, criou do autoritarismo estatal. Mas de nada adiantarão as� 1
ou fundou o Império. A tarefa constituinte, lógica e técnicas meramente "internas" de limitação do poder,� ''1
historicamente, teria de ficar para depois. Por isso, no
Brasil, a Constituição - porque posterior à existência
do Estado - dependerá sempre, em maior ou menor
grau, de um ato anterior do órgão estatal detentor do
poder preexistente. A própria constituinte de 1823, como
como a da divisão tripartida dos poderes, se não forem � �
criados instrumentos constitucionais que possibilitem 3 �
uma fiscalização dos poderes pela própria comunidade,� <.
suprindo a falta daqueles recursos sociais e jurídicos""?
encontráveis nos Estados Unidos e que permitem o fun- �.
I
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t
mais tarde as Assembléias de 1891, 1934 e 1946, foram
convocadas pelo poder e à sombra dele realizaram seus
cionamento razoável das suas instituições democráticas. ? J�
A Constituição de 1824, num rasgo de genialidade e ade- � �
trabalhos.
A Constituição americana não contém, no seu texto Supérfluas, porque a Constituição já continha proibições con-
J
i�
de 1787, uma declaração de direitos do homem, nem das
tra os bill of attainder e leis ex post facto e contra a suspen-
comunidades menores. Exatamente porque, preexistindo
os homens em comunidades politicamente conscientes,
são do direito de habeas corpus ( ... ) . E perigosas, porque as �
proibições�poderiam ser�ir logo de argu:11ento par� que o novo
. ou
t
esses direitos já gozavam de reconhecimento e de garan
governo tomasse para s1 poderes que nao lhe haviam sido
torgados ( ... ) . Agueles homens afirmavam veementemente
tia em instrumentos sociais e jurídicos nascidos do pró
prio direito vigente na comunidade (common law). 14
que a proteção dos direitos essenciais se estribava, não tanto]
f:
r
nas garantias escritas, como na mente e no coração de todos
e de cada um dos cidadãos da nação. ( CoRWIN e PELTAsoN, La
T
Constitución, Buenos Aires, Bibliografica Omeba, 1968, p. 119.
14 A Convenção Constituinte não havia incluído uma de Cfr.; (HAMILTON, ALEXANDER, o Federalista, Rio, Editora Nacio-
·��� ..,���� ll
claração de direitos por conceituá-las supérfluas e perigosas. nal de Direito, 1959, n.0 LXXXIV, pp. 345-349).
quação à realidade brasileira, fez do chamado poder tem condições para, ele próprio, fiscalizá-los, contê-los e
moderador muito mais do que o simples poder neutro limitá-los.
da doutrina européia. Tornou-o - como "delegação da O modelo americano, porque pressupõe um povo
Nação" - um instrumento da comunidade para, desde politicamente forte, haveria de fracassar completamen
cima, arbitrar as crises e responsabilizar os abusos dns te no Brasil, onde o povo é politicamente fraco e depen
poderes, uma vez que a comunidade ainda não tinha dente do poder. A organização constitucional de uma
força social e política para realizar essa função desde sociedade "de baixo para cima" não poderia mesmo ter
baixo. prosperado numa sociedade "de cima para baixo". Na
verdade, se é possível transplantar a forma das institui
30. O transplante e a rejeição ções, não é possível transmudar, de uma hora para ou
tra, o povo e a realidade social a que essas instituições
As elites brasileiras do final do século passado en
serão aplicadas.
cantaram-se com o progresso americano e - numa ati
tude bem brasileira 15 - atribuíram-no ao Estado, ou As instituições transplantadas pela Constituiçs.,o de
mais esp,ecificamerite, a sua forma de organizaçifo polí 1891, por inexeqüíveis, não lograram funcionamento re
tica. E de uma penada, pela Constituição de 1891, gular nos termos nela previstos. Por isso a história
adotaram as linhas mestras do modelo republicano, política do Brasil tem sido, desde então, a história dos
federativo e preiSidencial norte-americano. expedientes extraconstitucionais, que, distorcendo o con
teúdo constitucional inadequado à realidade, procuram
Ora, nos Estados Unidos houve uma notável identi
manter a aparência formal da Constituição. 16
ficação entre as instituições e a realidade. O sistema
político contido na Constituiçifo exprime a fórmula O regime de 1891 soment.e estabilizou-se quando foi
desfigurado em seu conteúdo regulatório pela "política
encontrada pelo consenso da comunidade, a partir da
sua tradição histórica, para construir um Estado. E o 10 LOEWENSTEIN, Karl, classificou "ontologicamente" as
Estado nasceu e evoluiu dentro dos contornos básicos Constituições - conforme a "concordância das normas com
pré-traçados na Constituição. Se lá o povo, pelos Esta titucionais com a realidade do processo político" - em três
dos, tornou-se o eleitor do Presidente, foi porque a União tipos: normativas (quando suas normas dominam o processo
político, que a elas se submete); nominais (quando suas normas
••
surgiu sob o mesmo impulso. Se a rígida partição fun carecem de realidade existencial, pois a dinâmica do processo
cional do poder em três ramos harmonicamente inde político não se adapta a elas: situações de fato, p. ex.: anal
pendentes e a cumulação no executivo de funções fabetismo, inexistência de classe média, não permitem a com- ·
estatais e governamentais não degeneraram em confli pleta integração das normas constitucionais na dinâmica da
tos e em abusos lesivos aos interesses nacionais e à in vida política); e semânticas (quando suas normas não passam
da formalização da existente situação do poder político em
tegridade da Constituição, foi porque, na realidade, o benefício exclusivo dos detentores do poder fático). "A Cons
povo, além de poder bem eleger os ocupantes dos poderes, tituição nominal" - prossegue - "encontra seu terreno natura!
naqueles Estados nos quais o constitucionalismo -democrático
15 TORRES, J. C. de Oliveira, Interpretação ... , p. 253. ocidental implantou-se, sem uma prévia incubação espiritual
72 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 73
dos governadores" e pelo "coronelismo", 17 recursos de o regime iniciado em 1930, nas diversas formas que
fato que, embora não democráticos, salvaram a unidade assumiu, esteve igualmente divorciado dos textos escri
nacional comprometida pela impraticabilidade real das tos, mesmo durante o período do "Estado Novo". 19 Pre
J.nstituições. 18 valeceu um outro expediente de fato, de base militar e
de fundo populista, centrado na figura de Getúlio Vargas.
11 O regime de 1891 condicionou, ele próprio, o apareci O regime de 1964 encontrou num sistema de poderes
mento do "coronelismo" que, se deturpou seu conteúdo norma extraconstitucionais o expediente capaz de criar um
tivo, garantiu-lhe a preservação nominal. Como escreveu o
autor do estudo clássico sobre o tema: "A superposição do re
equilíbrio político que permitiu manter formalmente a
gime representativo, em base ampla, a essa inadequada estru vigência da Constituição.
tura econômica e social, havendo incorporado à cidadania ativa Em todos esses 85 anos de experiência política cal
um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o cada no modelo americano, observa-se que os períodos
consciente desempenho de sua missão política, vinculou os de nos quais se tentou seguir à risca seus princípios (1922/
tentores do poder público, em larga medida, aos condutores
daquele rebanho eleitoral ( ...). O regime federativo também /1930 e 1946/1964) foram marcados por agitações, crises
contribuiu, relevantemente, para a produção do fenômeno: ao e revoluções, sinais evidentes de um nítido processo de
tornar inteiramente eletivo o governo dos Estados, permitiu a rejeição do "país legal" pelo "país real". No restante do
montagem, nas antigas províncias, de sólidas máquinas elei tempo, a conciliação da ordem pública com a vigência
torais ( ...). Por tudo isso, o fenômeno estudado é caracterís constitucional só foi alcançada ao preço de mecanismos
tico do regime republicano, embora diversos dos elementos que
ajudam a compor o quadro do "coronelismo " fossem de obser estranhos à C'onstituiç.ão que, garantindo a aparência
for��l _ desta, sacrificara�, em mai�r ou menor grau, a . .-J
S� �
vação freqüente durante o Império e alguns deles no próprio
período colonial." (LEAL, Victor Nunes, Coronelismo, Enxada efetiv1dade de seu conteudo normativo. -+ ,\ 3 2, 1
e Voto, São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1975, 2.ª ed., p. 253-254).
Sobre o tema Cfr. TORRES, J. e. de Oliveira, Estratificação Social 31. A alienação das elites
no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1965, pp. 82
a 150. A imitação das instituições políticas americanas re
1s O "coronelismo " cumpriu, porém, uma missão impor vela o fenômeno a que Oliveira Vianna 20 denominou de
tante. Diz AFoNso ARINOs: "O que surpreende ao observador "marginalização idealista" das elites brasileiras frente
isento é ( ...) o êxito com que (os dirigentes civis da nova Re
pública) conseguiram ( ...) superar, com a política dos gover aos valores propriamente nacionais.
nadores (autêntico 'modelo brasileiro', como se diz hoje), a
falta de partidos nacionais; ( ... ) manter a unidade nacional, 19 VIANNA, Hélio, História do Brasil, são Paulo, Melhora
apesar do federalismo, vencendo as resistências localistas, como mentos, 1967, p. 287, v. II.
a revolução de 1893 ( ...) ; instituir por fim um novo Poder 20 OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de, Instituições Polí
T
titutión, Barcelona, Ediciones Ariel, 1970 pp. 217 a .220), pública, com Washington Luís." (Problemas..., p. 145).
414 • 6
'
74 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 75
Essa "alienação" não está simplesmente na cópia Hoje nossas elites tomam consciência de que o Brasil
de um modelo político, mas na aceitação, como válidos legal deve embasar-se no Brasil real. Essa mudança de
e aplicáveis ao Brasil, dos valores políticos próprios à mentalidade tornava-se indispensável para a elaboração
cultura americana. 21 de um consenso sobre o modelo de uma "democracia
Assim, até bem pouco tempo, entre nossas elites, não possível" - para usarmos a expressão consagrada pelo
se concebia a possibilidade de organizar a democracia Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho - que atenda aos
de forma diferente daquela vigente nos Estados Unidos. ditames da realidade onde ela deverá ser praticada. 22
Se não se elegesse o Presidente da República, nem se
adotasse a divisão dos poderes, de forma pelo menos
semelhante à daquela Nação do Norte, não haveria de
mocracia. Se a divisão territorial do poder não obedecesse
aos parâmetros federativos norte-americanos, não have
ria federação. Erigida a organização norte-americana,
aprioristicamente, em padrão necessário da organização
sócio-político brasileira, tudo o que não correspondesse
àquele molde deixaria de ser democrático, ou federativo,
ou, pelo menos, conveniente.
Nesses termos, se as instituições funcionam mal a
culpa é dos homens, que não sabem ou não querem pra
ticar a democracia. Assim, essa alienação das elites leva
a atribuir exclusivamente ao "despreparo" do povo todas
as nossas dificuldades políticas. O povo não estaria "pre
parado" ou "maduro" para a democracia.
Ora, não é o povo - a comunidade - que deve
existir para as instituições, mas as instituições para a
comunidade. Cabe às elites, quando concretizam uma or
ganização do Estado, criar instituições que estejam à
altura da comunidade que as tem de praticar.
2 1 "Os valores colocados em posição de primazia pelas
elites brasileiras, principalmente intelectuais consideradas "pro
gressistas" ( ...) não coincidem" (no sentido de que estão em
oposição) "com os que a grande massa do povo considera como
dignos de igual projeção." (TORRES, J. e. de Oliveira, Interpre
tação ... , p. 148 e 149). 22 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit.
T
TERCEIRA PARTE
AS INSTITUIÇÕES INADEQUADAS
Esta terceira parte é dedicada ao estudo de dois
aspectos estruturais que consideramos os mais rele
vantes no condicionamento político da crise da demo
cracia brasileira: a organização da Presidência da Re
pública ( objeto da seção primeira) e a divisão fun
cional do poder ( tema da segunda seção). Sendo
instituições montadas com desatenção às peculiarida
des nacionais, mas seguindo os esquemé..s tradicionais
do sistema político norte-americano, nelas se escon
dem fatores de crise e de desarmonia que têm cons
pirado contra a normalidade democrática instrumen
tal. Conhecer esses fatores é indispensável à tarefa
de repensar um modelo político adequado ao Brasil.
SEÇÃO PRIMEIRA
A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
T 32.
DISTINÇÕES PRÉVIAS
Estado e Governo
Estado não é o mesmo que governo. Enquanto o pri
meiro é a sociedade política global - o todo-, governo
é um dos elementos do Estado, ou seja, o elemento dire
tor ou o conjunto de órgãos que detêm o poder na socie
dade política. E em sentido mais estrito - que será o
utilizado, de agora em diante, neste trabalho - governo
é o grupo que exerce, num determinado Estado e em
dado momento, a "função executiva".
Se o Estado, como unidade social, permanece no
tempo, os governos, ao contrário, passam, sucederr.·&�
uns aos outros. 1 Ademais, o Estado, como sociedade
global, não se identifica com raças, classes, regiões ou
partidos, mas os transcende; já os governos devem expri
mir, o melhor possível, a opinião político-partidária do
T
minante.
..1
de essencialmente boa - ao apontar as falhas em que góvernos não subvertam os objetivos permanentes do Es
incide um governo, colabora para que a função executiva tado.
seja melhor desempenhada-, é necessária à prnserva Integram, entre outras, a função de chefia de Go
ção da democracia política. verno as atribuições de:
a) "representar" a opinião política partidária do
35. Funções de chefia de Estado e de governo
minante, exprimindo as exigê�cias políticas prevalentes
Correspondendo à distinção entre Estado e Governo, no seio da comunidade;
e entre objetivos de Estado e obJetivos de Governo, pro b) comandar uma equipe de políticos que vai con
jetam-se no plano do direito constitucional duas espécies duzir a administração;
fundamentais de funções de direção política: a de chefia c) dirigir a política na comunidade, traçando e
de Estado e a de chefia de Governo. executando a linha de ação do poder executivo
A função de chefia do Estado consiste em zelar pela Enquanto a função de chefia de Governo é "at1va",
preservação dos objetivos permanentes do Estado, que eis que busca realizar diretamente o bem comum, a
em uma democracia, se identifica com as condições ge função de chefia de Estado é "defensiva", visto corno
néricas do bem comum, que já mencionamos: ordem, procura resguardar os objetivos permanentes do Estado
liberdade, justiça, segurança e desenvolvimento. A fun de lesão ou prejuízo sérios.
ção de chefia de governo, por sua vez, consiste em reali
Corno corolário dessa distinção, extrai-se que .Q[.
zar diretamente as condições específicas, atuais e concre
wocessos de preenchimento da chefia de Estado e da
tas do bem comum, e que assumem a feição de objetivos
chefia de Govern.CLnão podem s.�r.Jdênticos L mas d�v�
de governo. 10
se conformar à natureza.específica de '"9Q8 um,a. A forma
A função de chefia de Estado pertencem, entre ou de designação do titular da chefia de Estado deve pro
tras as atribuições de: piciar a escolha de alguém que seja, o máximo possível,
a) representar a comunidade política como um desvinculado das correntes partidárias disputantes do
todo, na. unidade de sua diversidade e em sua projeçã,o poder. 11 Já, ao contrário, a forma de indicação do
histórica de Nação; ocupante da chefia de Governo deve conduzir à escolha
b) comandar supremamente as Forças Armadas, de um líder de partido que esteja identificado com as
instituídas para defesa dos objetivos permanentes do
Estado; 11 "O caráter da função recomenda que na chefia de Es
c) fiscalizar ou "inspecionar" a realização direta tado somente seja investida pessoa cuja circunspeção e equi
do bem comum, em especial relativamente ao governo e líbrio esteja fora de dúvida. Por isso, pondo-se de parte o caso
das monarquias, nos Estados onde essa função não é fundida
à administração, de modo a que os objetivos atuais dos com outra, a escolha de seu titular costuma fazer-se por via
i direta (v. g. Alemanha), já que os dotes necessários para
10 V. a distinção do Prof. FERREIRA FILHO (Curso, pp. bem exercê-la não são os que conquistam votos nos comícios:
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104-105). populares". (FERREIRA FILHO, op. cit., p. 105).
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A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 89
aspirações da opinião política dominante. 12 Esses os cri sideradas mais estritamente como funções de chefia de
térios que nos devem orientar na busca da forma de Estado. 14 O "poder executivo" de Montesquieu tem muito
designação ou de eleição mais conveniente à sociedade pouco daquele poder que hoje, com o mesmo nome, reali
política, urna vez que a função de chefia de Estado exi�, ;a a administração pública e dirige a política de um
corno condição para bom exercício, a imparcialidade e Estado. A razão é simples: na época em que escreveu sua
a neutralidade partidárias, ao passo que a chefia de Go obra, não haviam surgido os controvensos problemas de
verno requer a condição de líder da comente partidária governo, que vão caracterizar, com a complexidade cres
prevaleceute. cente da sociedade, os séculos XIX e XX. Até o final do
Nomear o chefe de Estado segundo critérios político século XVIII, as atribuições governamentais, despidas de
-partidários não quer dizer democracia política, mas par maior complexidade e desvinculadas de questões parti·
cialização da suprema magistratura do Estado, aliás pe dárias (ainda não existiam partidos), 16 podiam, sem di
rigosíssima para a sobrevivência da democracia. Eleget ficuldades mais sérias, ser confundidas no órgão detentor
o chefe de Governo segundo critérios avessos à opinião
da chefia d.e Estado.
política, isto sim, é limitar ou negar o princípio demo
crático da participação popular no governo. No século XIX, porém, as mudanças econômicas,
sociais e políticas trazidas com a industrialização, com a
36. Formas de organização
14 "O ponto mais vulnerável da teoria de MONTESQUIEU diz
O exercício das funções de chefia de Estado e d,� respeito ao poder executivo, mal compreendido e mal caracte
Governo pode ser cometido a um único órgão, corno pode rizado, do que vêm resultando enormes dificuldades para quan
ser dissociado em órgãos distintos tos, na doutrina e na prática, desejam ater-se à tripartição
por ele enunciada". (DALLARI, Dalmo de Abreu, Da atualização
Até o século XVIII, nas monarquias modernas, as do Estado, São Paulo, 1963, p. 121).
duas funções eram exercidas, ao mesmo tempo; · pelos rn "Pour ri.pus, aujqrd'hui, le parti politique semble un
Reis. Montesquieu ao retratar, no "Espíritos das Leis", élement na.turel de tout systeme politique. Il est omni présent:
a Constituição inglesa, ainda não separa as funções de dans zes régimes autoritaires e dans les régimes libéraux, dans
Estado das de governo. Denomina ele de "poder executi les pays en voie de dévelopment comme dans les pays indus
vo" aquele que "faz a paz ou a guerra, envia ou recebe triel.s. On a peine à citer un État ou il n'y ait pas, au motins,.
embaixadores, estabelece a segurança e previne as inva nn parti politique. Pourtant cette situation est relativement
sões" (L. XI, Cap. VI, § 2.º). 13 Ora, corno se vê, Montes nouvelle. "En 1761 (en Grande-Bretagne), nous repelle Sir
Lewis Namier, aucune election au Parlament n'était le fait des
quieu denomina de função "executiva" atividades dife parti.s; en 1951 pas un seul candidat indépendant n'a été élu".
rentes daquelas que atualmente conceituamos rigorosa Non seuiernent les partis nont guere d'influence avant le deu
mente corno tal e que, em linguagem moderna, são con- xieme quart du x1xe siecle, mais ils n'existent pas, ou, si l.'on
1
prefere, ce qui en tient Zieu, la réalité que recouvre le mot de
12
FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., p. cit. "parti" n'a que de tres bintains rapports avec les partis tels
13 MONTESQUIEU, Oeuvres Completes, Paris, Chez Firmin que nous les connaissons maintenant". (CHARLOT, Jean, Les
Didot et Ge, Librairies, p. 265, (ed. 1877). Pnrtis Politiques, Paris, Librairie Armand Colin, 1971, p. 4).
414 - 7
90 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 91
centralização definitJv_a ·da administração e com'.<} apl::. não na fonte, mas na Constituição americana que é
recimento das ideologias e dos partidos políticos, trans ainda do século XVIII . . . 18
formaram a função proprJamente governamental. Esta Essa atribuição da chefia de Estado e de Governo a
ganhou uma expressão que não tiveri:t até então, bem uma mesma pessoa como vigora desde 1891, a par de
como passou a envolver opções partidárias e, até, ideoló representar uma violação ao principio da divisão do tra
gicas. 16 Ora, o Rei, porque hereditário, vitalício e irres balho e da especialização das funções, condiciona pro
ponsável, não mais .podia �xercer uma função q-µe parti blemas políticos muito graves e que se refletem negati
dariza necessariamente o titular, que deve ser .sensível vamente sobre o funcionamento da democracia no Brasil.
às flutuações e às críticas da opinião política e que exige É o que será analisado no capítulo seguinte.
a responsabilização política dos que a exercem;. É as.sim
que, na realidade européia do século XIX, surge a sepa
ração do exercício das funções de, chefia de Estado e de
governo em órgãos distintos, embora na Inglaterra o
fenômeno já fosse conhecid<;> em pleno século XVIII. 17
A organização pólítíca brásileira em 1891, involuin
do, nesse particular, diante da separação que vigorou no
segundo reinado, retornou à cumulação registrada no
primeiro reinado e na regência, somente que desta vez
segundo a -formulação clá,ssica de Montesquieu: haurida
T
torado.
Ora, o dilema surge claramente·:
a) se o Presidente se posiciona, com imparcialida
de, acima das correntes partidárias, terá condições de
atuar muito bem como chefe de Estado, na preservação,
como verdadeiro. magistrado, das regras do jogo político,
garantindo os princípios democráticos da supremacia da
1
Lei e da igualdade de oportunidades; no entanto, fi-
�
94 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 95
cará ipso facto preliudicada sua condição de líder o mais parcial, necessária, por sua vez, ao exercício de suas tare
proeminente do partido político dominante, eis que se fas arbitrais, fiscalizadoras e defensivas de chefe de
coloca, intencionalmente, à margem da atividade polí Estado.
tico-partidária; ktaiz do problema está em que ninguém pode ser,
b) se o Presidente, ao contrário, empenhar-se total ao mesmo tempo, partidário e suprapartidário, parcial e
mente na pugna política, vivenciando o papel de líder de imparcial, representante do todo e expressão da parte. 2
partido, estará exercitando legitima atividade de chefe Desse modo o Presidente ou atua como chefe de Estado
de governo;· à· a.ltura · de· suas responsabilidades; mas, na em po�ição arbitral, ou atua como chefe de governo, inte-
mesma medida· do seu engajamento partidário, estará ' ' .
prejudicando, irremediavelmente, a função indispensá 2 · A situação já fora vista por RAUL PILLA: "Com efeito,
vel de chefe de Estado, de representante da Nação, inde como· chéfe da Nação, deve o Presidente da Repúblicà estar
pendentemente ele credos, regiões e partidos. acima' dos· partidos e das ·suas competições; e éomo chefe do
poder éxecutivo, é necessariamente a expressão do partido ou
No Brasil, esse dilema é observável desde 1891 e pode da aliança de partidos que o. el�geu. Como se poderá ser órgão
ser documentado nos Anais recentes do Congresso Na de um partido e pôr-se, .ao mesmo. tempo, acima dele? São
cionaL 1 realmente duas coisas difíceis de .. conciUar. É como se, numa
partidà dé. futebol, a mesma pessoa fosse o árbitro e ó capitão
Se o Presidente optá por ser chefe de Estado parti de um dos bandos." (PILLA, Raul, catecismo Parlamentarista,
dariamente imparêià.l'- e isso tem sido necessário desde Porto Alegre, 1949, p. 18). Não a esqueceu de observar um
T
1
1964 justamenteparaa defesa dos objetivos· permanentes autor moderno. "A tudo isso (às tarefàs do Presidente da Re
ameaçados -,' corre o risco de perder a sustentação par pública 'como líder partidário e chefe dá administração federal) '
Üdária de seu governo, pela crise de liderança e pela acrescente-se o papel de líder nacional, representando o Estàdo
federal, interna e externamente, pàpel esse que, por se ·revestir
desorientação que' hão de mii1àr as bases que natural de características apolíticas, exige dele virtudes dé serenidade,
mente o apóiam. imparcialidade e desprendimento. Em resumo; considerando-se
Se o Presidente; para garantir o apoio partidário in o cargo do Presidente monista, num país como os Estados
dispensável.· a(> governo· que chefia, ingressar · na arena Unidos, ,pode-se dizer que ele exige, para o exercício. d.as fun
ções. de' Üi.l modo diversificadas, virtudes contraditórias e, tal
político-eleitoral,· perderá·
.
sua posição. de
.
magistrado. im- vez/ muthamente anulantes. Não é sem razão que HAROLD J.
. . •.:·,'
LASKY aéentuava o caráter de solidão de que se re.vesté a Pre
T
S
Bastante elucidativo do dilema dos Presidentes foi o sidêriéia nô Estados Unidos." (LiivIA, Antônio A. · de Oliveira,
1 1
debate travado na Sessão, do dia .24 de maio de 1976 do Senado op. cit;, p. 38-39) .
Federal entre os senadores PAULO BROSSARD (MDB-RS) e PE
'·'
TRÔNIO PóRTELLA ·(Arena-PI), a respeito de um pronunciamento 1 uma facção. No momento em que ele o faz, deixa -de ser o
do Sr. Presidente da Repüblicà ERNESTO GEISEL na .cidade de chefe da Nação, deixa de ser o chefe de Estado. ( .. ,) Eu não
Gramado, RS, a Hdê;l'es da Arená local, durante a campanha poderia deixar passar sem os meus embargos, esta forma de
política ao pleito municipal,- no qual Sua Excelência, referindo tratar a Oposição, feita por aquela autoridade que deve ser o
-se à Oposição, teria, usado as expressões adversários e inimi Presidente · da Nação, de todos os brasileiros." Respondeu-lhe,
gos. Declarou o Senador gaúcho: "O chefe da Nação não pode com não· menor brilho, o Senador PoRTELLA: "A expressão do
r-olocar' seu cargo, o seu prestígio, a sua força, · a serviço de Senhor Presidente da República aos seus correligionários teve
96 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO B::tASIL
grado perfeitamente em partido político. O que não con A impossibilidade de o Presidente vivenciar simulta-·
seguirá é levar a bom ter.mo, conjuntamente, as duas neamen'te os papéis de chefe de governo e de chefe de
funções. 3 E se, para fugir ao dilema, tentar ser "meio" Estado desequilibra o processo político democrático, eis.
chefe de Estado e "meio" chefe de Governo, acabará que es'te supõe o exercício adequado de ambas as funções.
fracassando nas duas posições. Assim, se o Presidente der tônica aos objetivos par- (} pT
tidários, pautando sua atuação na linha de ch�fe de
38. "Anarquia" ou "autoritarismo" }
governo, a tenàência será a de sobrepor
. os objetivos
. que
A sociedade política, para conciliar os princípios da. �Wf�
seu partido propõe aos objetivos permanentes do Estado. l,�O
liberdade e da ordem, não pode se cont,entar com "meio" Nesse caso, os objetivos permanentes ficam sem d�fen;- M � CJ
chefe de governo: a democracia instrumental exige que sor, ou pelo menos terão diminuída sua força orientadora t,�
a direção político-governamental seja confiada a quem e disciplinadora do convívio social no rumo da democra-
melhor se identifica com a opinião predominante. E nem insensibilidade política do governo, a sua indiferença com a
com "meio" chefe de Estado: precisa de um órgão total'" vida partidária. Não faz muito, há ·seis dias, isso ouvimos,
mente dirigido aos valores substanciais da democracia, aqui, da parte do ilustre Líder da Minoria. E agora, qüaúdo o
capaz de, pelo menos, evidenciar-lhes a superioridade. Presidente da República se despe <le sua. função presklencial
e usa de fato a camisa do seu . partido, para dar o , conselho
t
3 Na campanha eleitoral de 1974 o Presidente GEISEL agiu providencial, há o reclamo, a . advertência, o protesto triais,
como verdadeiro magistrado, sob os encômios expressos dos solene." E conclui com uma pergunta: ·, "Será que em razão de
líderes da Oposição e sob o significativo silêncio dos arenistas. ser Presidente da República, afastando toda a n1áquina go-,
Agiu como bom chefe de Estado, mas mau chefe de governo. vernamental, Sua Excelência está proibido de se . expressar
Nas eleições de 1976, o Presidente "usou a camisa da Arena", politicamente e falar, como correligionário, ,a quantos militam
com o entusiasmo da Arena e os protestos do MDB. Agiu como nas hostes da Ali.ança Renovadora Nacional? E, quando assim
bom chefe de governo, mas prejudicou seu papel de chefe de o faz, não tem, exatamente, na outra trincheira adversários ou
Estado. inimigos? (Não é o inimigo contra quem se queira lançar os
tiros que importariam na sua morte. Não. É no sentido t:gu
um sentido· de observar que .deve haver contenção entr{) eles, rado) ( .. ,). Se isso constitui abuso do poder, Sr. Pre;'lidente:
....
nas disputas municipais, sob a observação de que o adversário, - pelo menos da parte do chefe do governo -, diríamos que
o inimigo, está do outro lado. E quando Sua Excelência o .fez a Nação é feliz porque, ao invés de prejudicar os adversários,
não se dirigiu à Nação como Presidente da República no uso fazendo uso do poder contra eles; o Presidente prefere, cdemo
e gozo de suas atribuições, mas simplesmente na posição de craticamente, fazer-se um homem de Partido, a uma agremia
Presidente de Honra do Partido expressando a sua solidarie ção filiado, usando a linguagem coloquial de companhe;ro."'
dade e o testemunho do seu apreço a quantos integram a 1
Quem tem razão nesse debate? Seguramente os dois. Tem
Aliança Renovadora Nacional. Se isso importa em reparos razão BROSSARD: quando o Presidente, à diferença das elei,,�Õ<;;s;
maiores da Oposição, que ela nos perdoe. ( ...) Sua Excelência de 1974 onde agiu como magistrado, identifica-se na campa
naquele momento estava dando uma demonstração de enga nha eieitoral com um dos Partidos, prejudica profundamente
jamento político tão sobejamente reclamado pelo Movimento sna função de chefe de Estado. Mas tem também razão
Democrático Brasileiro. Quantas vezes ouvi os mais vibrantes PoRTELLA: o Presidente, como homem de governo, que nec,ssita
oradores, daquela tribuna, reclamar contra o alheamento ,e a de apoio partidário, tem todo o direito (e, poderíamos até di-
:98 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 99
eia. A cons:eqüência será o enfraquecimento da coesão ds.o margem à volta do reino sem contraste do.s objetivos
social, o radicalismo partidário, o triunfo s�m limites dos tipicamente de governo. 4
interesses políticos inenQres. É o caminho dâ demagogia Já a especialização das atribuições de Estado e de
e da anarquia. governo em órgãos distintos' favorece o justo equilíbrio
Se o Presidente der tônica aos objetivos permanen entre os objetivos permanentes e os atuais, condição
tes, pautando sua atuação na linha de- chefe de .Estado, a sine qua non de uma democracia estável.
tendência será de esmagamento dos objetivos politicos
de partido. No caso, estes objetivos entram em crise, pre
valecendo a imposição de uma linha governamental mais
39. . A participação das Forças Armadas
ou menos dogmática e independent.e do apoio e do con A função de chefia de Estado tem, entre as suas
.senso· de bases partidárias; É o caminho do autorita- atribuJções mais relevantes, o comando supremo das
1·isrno. Forças Armadas. .·
A semelhança de um pêndulo, a história política Ora, se a chefia de Estado é entregue a quem efeti
dessa cumulação de funções na Presidência assinala uma e vamente exerce. a chefia do governo, cria-se um descom
oscilação, de pólo a pólo, entre a tendência "anárquica" passo ..extremamente perigoso à democracia: um órgão
-e a ten_dência "autoritária". Assim, períodos de pronun parttciariamente imparclal e voltado apenas aos yalor_es
ciado 'predomínio dos objetivos partidários, tangentes à nacionais, sujeito ao comando .de> quem é homém de
.anarquia, são segµidos de períodos autoritários, de in
fluência. militar bem caract.erística, em que imperam as
razões de Estado. Estes, por sua vez, completado o ciclo
zer, que tem o dever) de participar da campanha eleitoral,
f'
IS�a oscila�ão ·pendular. �.a polítkl!- brasileira - . sem a
�J devida fundamentação - já fora observada por alguns àutores.
i
� "L'anarchie ou la dictadure, tels sont les deux alternatives
da República a vivenciar, ao mesmo tempo os dois inconciliá . essentiels du régime presidentiel en A mérique Latine ( ... ) .
...
veis papéis. (V. Anais do Senado Federal, Brasília-DF, maio de Dans. les circonstances spécifiques de l'Amérique Latine tout
1976, v. II, pp. 213 a 216). Para termos uma idéia da tendência pouvoir fort signifie dictadure et tout affaiblissement de e e
de· nossas elites de achar que os homens é que estão errados, l pouvoir.. aboutit a l'anarchie." (Mirkine-Guetzevitch, apud:.
mas a Constituição sempre certa em sua estruturação do poder, JosÉ AUGUSTO, Presidencialismo versus Parlamentarismo, Bor-
leia-se a Coluna do Castello, dois dias após o debate: depois de soi, R1o, 1962, p. 10). "Com a regra de um chefe, armado de
trazer à tona usos e costumes · dos Estados Unidos, afirma o , poderes excepcionais, o Brasil tem oscilado do governo absolu
:notável jornalista, "cabe assinalar que, se o Senador BaossARD f to, confundido com o Estado, ao choque entre as representações
não colocou com a precisão habitual a questão, também não o � populares e o executivo, em várias fases - como a, da Consti-
.fez o Senador PoRTELLA" ! Para o experimentado analista po i tuição de 1946 -, de tal maneira críticas, que durante o · seu
lítico, o Presidente deve ser - J;,_omo se fossu�sív� - "meio" curso: se registraram várias crises, algúmas violentas, como a
chefe de Estado e "meio" chefe de governo. (Jornal do Brasil, que teve. epílogo no suicídio do presidente VARGAS." (ScANTIM
.Rio, Ed. de 26 de maio de 1976, Coluna do Castello, p. 2) . BURGO, João de, Trátado Geral. .. , p. 126 e, ainda, 176 e 182) .
100 CEZAR SALDANHA SOU'.&A JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 101
partido, titular de um poder destinado a realizar obje �� Só a neutralização partidária da chefia de Estado,
tivos atuais e específicos. C'om isso, as instituições nacio separando-a da chefia de governo, refletir-se-á sobre as
nais permanentes de defesa da Pátria e garantia dos Forças Armadas, proporcionando condições efetivas para
poderes constituídos ficam virtualmente subordinadas a afastá-la dos embates políticos que cercam a atividade
critérios partidários. especificamente governamental. Ligadas ao chefe de Es
A acumulação da chefia de Estado com a de governo tado> enquanto órgão suprapartidário de representaçã.o e
3
empurra, desta forma, as Forças Armadas para o campo fiscalização, encontrarão stfa sição natural de defen
po
das lutas partidárias, que, pela natureza delas, lhes deve sores da Pátria e garantia dos poderes constituídos,
ficar estranho. As Forças Armadas tornam-se, inclusive, acima das divisões partidárias da comunidade.
potencialmente utilizáveis, pelos líderes de partido que
detêm o governo, como instrumento de combate político,. 40. A distinção entre oposição e subversão
o que se apresenta como fatal à sobrevivência da demo Oposição e subversão, como já se analisou, na teoria
cracia política. 11 política distinguem-se nitidamente: oposição é ser contra
. Por outro lado, na hipótese de o chefe de govern0 o governo; subversão é ser contra o Estado.
ocupante da chefia de Estado, movido por interesses par A primeira é essencialmente boa e necessária à de
tidá1ios, desviar-se da ordem legal, as Forças Armadas mocracia. A segunda, além de má, destrói a democracia.
vêem-se num dilema: cumprir o seu dever constitucfonal Por isso se pode direr que a maior necessidade de uma
de obediência ao comandante supremo, abandonando az democracia política reside em distinguir claramente os
instituições à sua sorte, ou cumprir o seu dever consti dois campos, uma vez que a p.emocr�cia precisa de opa,.:_,
/ tuci nal de garantir as instituições, abandonanq.o . o, . sicão, mas não pode tolerar a subversão.
\ � ·
\"-.}'residente. Ora, no Brasil, uma só pessoa é, ao mesmo tempo,
Chefe de Estado e Chefe, de governo. Em virtude dessa
A partidarizaçào compulsória das Forças Armadas não
escapou à argúcia de Ht...'RMES LIMA: "A políticá presidencialista
. r,
cumulação, o destinatário da oposição - o chefe de go
brasileira jamais cessou de bater às portas do Exército·· ( ... ).
verno - e o destinatário da subversão - o chefe de
Através de todo o período republicano as classes armadas ja� Forças Armadas, segue-se que estas, irresistivelmente arrasta
c
mais foram deL'Cadas em paz pela política." (LIMA, Hém'les� das no torvelinho das paixões e dos interesses políticos, se di
Lições da Crise. Rio, Livraria José Olympio Editora, 1954, videm e se contrapõem (...). Este regime (sistema de estru
pp. 67-68. RAUL P1LLA, no final de sua extraordinária vida pú
turação do poder) poderá convir, e convém, a algum caudilho
blica, despertava para o problema: "li: mister que as Forças: político desgarrado no seio delas e interessado em utilizar a
Armadas não se vejam perturbadas no exercício de sua alta e
,tarda e a espada em proveito de sua ambição ( ...). Este de-
nobre missão, dela não sejam desviadas e não sejam arrastadas
terminismo do sistema não pode deixar de refletir-se desastro-
a intervir na vida política, pelos próprios desatinos dela (...). fsamente nas p ro ·prias Forças Armadas, que desde logo se vêem
Golpe de Estado, revolução, ditadura, passaram, pois, a .ser a
nossa desgraçada lei. Mas, como golpe de Estado não se dá, separadas em partidárias do governo e adversárias dele."
. .
revol.ução não se faz, ditadura não se estabelece sem a inter (PILi.A, Raul,
. Julgada, Porto Alegre, Livraria Lima
. Ltda., 1969, ps. 38, 3l4�). e
A Revolução
l. / ·
�°' 'iirvrI
venção, sem o concurso decisivo, sem a própria iniciativa .das r . O,,. \ . +-
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102
c:
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR J� A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL ,.103
Estado - se confundem na mesma pessoa. Disso resulta , mbyersiyO,&,_ ficam de mãos livres para, · sob a máscara
a inexistência de uma distinção objetiva entrf;l'Qpo,�ição da oposição, melhor atingirem seus propóslfos3issa con-
---..._;;�- ��=�=ata.= -
chefe de Estado, ou seja, o órgão superior àa sociedade político-partidários que caracterizam a atividade gover
política, o guarda dos objetivos permanentes do Estado, namental.
a encarnação viva da Nação. Ora, a confusão das chefias de Estado e de governo
A entrega das chefias de Estado e de governo a no mesmo órgão faz justamente o contrário, expondo o
pessoas diferentes consegue, em muitos casos, o milagre chefe de Estado, e os órgãos permanentes a elé ligados,
de adaptar um partido ideologicamente contrário à, de às contingências do jogo político. A oposição, mesmo a
mocracia ocidental ao processo político democrático mais legítima, embora critique apenas o governo, alcan
pluralista. Observe-se o caso italiano: o partido comu ca uma pessoa que é, também, o chefe da Nação e o
�i.sta, como segunda força eleitoral, tem sido oposicio comandante supremo das Forças Armadas. Coloca-se
nista, ou seja, contra o governo liderado pela democracia assim, na mira da oposição, pessoas e órgãos que, pela
cristã. Não se tem colocado contra o Estado em si, nem natureza das elevadas funções que exercem, deveriam
contra as Forças Armadas, representados pelo chefe da ser poupadas ao máximo possível de ataques e críticas.
Nação. Inclusive, na busca da hegemonia eleitoral, es A experiência histórica dos povos nos ensina que,
força-se por construir a imagem de um partido respeita quanto mais resguardados da crítica político-partidária
dor da ordem política democrática na Itália. De qual estiverem os órgãos nacionais permanentes, maiores
quer maneira, a distinção funcional entre Estado e serão as garantias dos direitos da oposição, inclusive o
Governo obtém algo que, para nós, pareceria impossível principal deles, que é o de tornar-se governo. Por�m,
à primeira vista: d;t'cunscrever o partido co1!!,_unista à quanto mais vulnerável forem os órgãos nacionais per
faixa da oposição, de modo a afastá-lo da subversão. manentes, mais difícil haverá de ser a preservação da
paz política e do convívio harmônico na comunidade,
41. A vulnerabilidade partidária dos órgãos nacionais condições sem as quais, repetimos, não é possível fun
Um Estado que pretenda um processo político de dar-se uma democracia instrumental estável. 8
mocrático precisa, como se viu, colocar acima de discus
são um núcleo mínimo de valores, precisamente aqueles 42. A radicalização ideológica
que, tornando possível o diálogo democrático, consti P�los ·problemas já até aqui levantados, pode com
tuem-se nos objetivos permanentes do Estado. preender-se o efeito que a atribuição de funções de
j
Por isso, é de toda conveniência que os órgãos na Estado e de governo ao mesmo órgão produz sobre a
cionais responsáveis mais diretamente pela formulação, radicalização da luta ideológica no seio da comunidade.
manutenção e guarda desses objetivos, como, por exem
plo, a chefia do Estado e as Forças Armadas, estejam s "Por surpreendente que pareça, uma democracia estável
colocados o máximo possível acima dos entrechoques requer a ,manifestação de conflito ou clivagem, de ·modo que
haja lu.ta pelas posições -dominantes, desafios aos partidos no
ingleses são súditos leais e fiéis de sua majestade; uns comba poder .e mudança de partidos ·no governo; mas sem consenso -
tem outros apóiam o governo." (TORRES, João Camillo de Oli um sistema- político que permite o jogo pacífico do poder,. a
veira, Harmonia ... , p. 143. adesão dos de fora às decisões tomadas pelos de dentro, · e o
414 - 8
106 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 107
T
chefia de Estado e as Forças Armadas, elevando-os a uma maior parte de seu poder, a democracia parece estar muito mais
posição de mediação imparcial e neutra - e se terá dado um garantida." (LIPSET, Seymour Martin, op. cit., p. 79). Volta
passo decisivo. mos ao tema na última parte.
108 ' · CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 109
sistema político. O abalo periódico de uma eleição presi fundamentalmente, o chefe de um governo, ou de uma
dencial, onde os candidatos tenderiam á uma caracteri "administração" - como lá se costuma dizer -, o que
zação ideológica bem marcada e cada vez mais extrema torna menos sensíveis as contradições que se observam
da. Em caso de vitória de um candidato comprometido em outras sociedades políticas, como a brasileira, decor
com a democracia de estilo ocidental, dar-se-ia a confu rentes da partidarização do primeiro lugar do Estado. 10
são entre a oposição e a subversão ao regime democráti A segunda peculiaridade estritamente americana
co, com todas as suas conseqüências desastrosas à prende-se à inexistência de partidos ideológicos, que se
harmonia política e à paz social. Ou; então, a possibili proponham a reformar e a transformar toda a ordem
dade, sempre renovada, de controle total do poder - política e social, inspirados em princípios filosóficos que
desde o governo e as Forças Armadas, aos demais órgãos impliquem uma concepção nova da sociedade e do )!:s,
permanentes - por um partido totalitário, que, não po tado. Sob esse prisma, os partidos republicano e demo,
dendo ser legal e eficazmente afastado antes de findo o crático são alas de um único e mesmo partido liberal. 1.l-'
prazo presidencial e sem necessidade de concessões e Os grandes partidos americanos são, em verdade, má
compromissos relativamente à opinião pública, terá con quinas eleitorais 12 que têm em mira galgar o poder a
dições bem mais facilitadas para tentar subverter o fim de lograr posições de mando para os seus dirigentes
T
regime democrático. Foi o que aconteceu com o Chile e vantagens materiais, sobretudo empregos públicos,
no Governo de Salvador Allende. para sua clientela. O fato de não haver partidos, ou
pelo menos partidos ideológicos e de rígida disciplina,
43. Atenuantes atenua nos Estados Unidos a posição partidária do
chefe de governo, permitindo-lhe exercer atividades de
Nos Estados Unidos, a fusão das chefias de Estado chefe de Estado sem os dilemas que se constatam nas
e de governo no mesmo órgão tem seus efeitos negativos sociedades onde existem partidos políticos verdadeiros,
atenuados em razão de duas peculiaridades da organi ou de cunho mais ideológico.
zação norte-americana. Em realidade, a cumulação das chefias de Esta.do
A primeira está na própria formação política da e <!,e governo só :pçderá funcionar sem ÍmilÔres pr�-,
sociedade americana, em que a comunidade precedeu e mas se, na comunidade, não houver partidos ou se estes-=
?
criou o Estado. Esta circunstância faz com que não • --· --•- -·- • --••r � .. •- - l';I!
haja, nos Estados Unidos, como na grande massa das 10 Se nos EUA a Presidência é antes de tudo, ou original
mente, uma "delegacia executiva" da comunidade (uma chefia
sociedades políticas, uma chefia de Estado representa de governo), no Brasil é um poder estatal preexistente for
tiva, símbolo. e expressão de um poder antecedente que mador, em linguagem figurada, um "trono". Daí o per,igo bem
f.
construiu a unidade política e que funcione como guar maior que representa à democracia no Brasil entregá-lo a um
homem de partido, sem cautelas que o "neutralizem".
f
da dos valores essenciais ao convívio democrático. Nos 11 DuvERGER, Maurice, As Modernas Tecnodemocracias,
Esiados
. Unidos, a própria comunidade diretamente tem Paz e Terra, 1975, p. 201; v., ainda, ps. 78 e segs., 177 e segs., 198
seus processos . de fiscalização dos poderes e de defesa e segs.
dos objetivos genéricos do Estado. Assim, o Presidente é, 12 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, A Democracia, p. 19.
..._
�(
110 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
J..
.L
CAPÍTULO III
1
Montesquieu, em pleno século XVIII. A fórmula embasa
-se no princípio antigo - e ainda hoje válido 2 -da con
veniência e da necessidade de dividir o exercício das
competências políticas, corno uma téc11ica de limitação do
poder pelo próprio poder; para garantia das liberdades
públicas diante do Estado. Como se sabe, o modelo polí
tico do célebre francês estava associado a uma classi
ficação tricotôrnica das funções políticas - legislativa,
1 JACQUES, Paulino, Curso de Direito Constitucional, Rio,.
Forense, 1970, pp. 155-158.
2 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, A Democracia, pp. 97-98.
114 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
·1. ,.
·,
l
ra da ordem constitucional.' administração, ou as de suprema instância política, refo
Êntre nós está demonstrada, à saciedade, a possibi gem p0r definição ao âmbito · da função jurisdicional. 7
lidade real das crises entre os poderes. Especialmente de �:rµ verdade, a . Constituição . não prevê ne:hl}.um
1946 a 1964, quando se tentou praticar, sem rebuços, o mecán.i'smo específico, nem, muito menos, um órgão es
sistema político que vinha da Constituição · de 1891, a pecializado para dirimir os conflitos entre os poderes. 8 A
história política brasileira foi um desenrolar contínuo Constituição não cogita sequer da possibilidade de os
de conflitos entre os órgãos políticos, especialmente entre poderes virem a conflitar-se. Ela é cega, surda �. canse-
o Presídente e o Congresso. is
.6 DóRIA, A. de Sampaio, op. cit., p. 295.
,
qüentemente, muda ao problema. Na realidade, os pode da atividade humana. Assim, se é na experiência inglesa
res têm o dever de tolerar-se, mesmo ao preço do imobi que ele vai buscar os "três poderes" - ou seja, o Rei, o
lismo, até que eleições futuras, g_uem sabe, ponham fim Parla:rp,ento e o Judiciário -, o papel de cada um e,
ao litígio presente. Até lá não existe um mecanismo cons mais, o relacionamento recíproco por ele proposto como
titucional capaz de repor a harmonia entre os poderes, ideal político, divorciam-se da realidade inglesa de seu
devolvendo à sociedade política a tranqüilidade perdida, tempo. 0 Estão comprometidos já com a sua postura
e nem capaz de antecipar uma intervenção do eleitorado político-filosófica.
tendente a resolver a crise. Ao tomar os três órgãos políticos, colocando-os em
Dispõe o art. 6.0 da Constituição: "São poderes da mesmo pé de igualdade um ao lado do outro, o que pre
União, o legislativo, o executivo e o judiciário, indepen tende é, justamente, armar um esquema que possa rea
dentes e harmônicos entre si". Mais nada. Ora uma de lizar seu ideal liberal de Estado, anulando, em prol da
claração, embora solene, de que os poderes são harmô liberdade-autonomia, o poder de autoridade inerente à
nicos, não tem o condão de fazê-los harmônicos entre sociedade política - visto este como um empecilho n
si. Os fatos desmentem aquela afirmação dogmática · e plena expansão dos direitos do homem. Dessa forma,
apriorística. Os poderes - especialmente o legislativo e a estrutura política que inventou não apenas limita o
•
o executivo - não são harmônicos e, por isso mesmo, poder;, como a própria ação do Estado, uma vez que o
precisam ser harmonizados para que possam funcionar relacionamento entre os poderes haveria de tender à
adequadamente. "inaçãp". 10 Na verdade, o modelo de Montesquieu limi
Na divisão do exercício do poder em três órgãos tava o poder, mas inibindo, por dentro, a própria ativi
políticos, adotada pela Constituição de 1891 e que e.m 1 dade do Estado, que, assim, via-se forçado a ficar reduzi,.
suas linhas fundamentais permanece até hoje, há por da, como queriam os liberais, ao mínimo da manutenção
tanto uma injustificável lacuna que se tornou mais da ordem interna e da segurança externa.
sensível com a crescente complexidade das tarefas admi Bem se vê porque esse esquema düicilmente vai se
nistrativas, com o agigantamento do executivo e com a ajustar a Estados historicamente intervencionista (as
1
partidarização cada vez maior da atividade política. sociedades de. çima para baixo. como o Brasil), e à re�/�
d.ade contemporânea do Estado-Providência (que é cha- ,·-:9
46. A explicação da lacuna mado a atuar no domínio econômico e social para \_
�
Essa lacuna - da qual Montesquieu teve consciên 9 . FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 98.
cia e que, de certa forma, é intencional -,- encontra 10 "Voici donc la Constitution fondamentale du gouver-
l-t·� �
perfeita explicação na lógica do seu pensamento político. nement dont nous parlons. Le corps législatif y étant compose 1,
Montesquieu é um liberal, identificado com as con de deux parties, l'une enchainera l'autre par sa faculté mu- �
cepções que tencionavam reduzir o poder do Estado a tuelle d'empêcher. Toutes les deux seront liêes par la puissance ;...
exécutrice, qui le sera elle-même par la législative. Ces trois _ '
T
um :rp,ínimo indispensável, para garantir aos particulares puissà:rices devraient former un repos ou une inaction." (MoN-
o máximo de liberdade-autonomia em todos os ,setores TESQUrnU, n, l'Esprit des Lots, Livre XI, Chap. VI, op. t. 2 { [
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118 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 119
promover o bem-estar e aumentar o nível de vida das � zação política no modelo clássico da divisão do exercício
populações) . do poder, e sob a inspiração liberal-clássica a mais abso
Contudo, Montesquieu parece sentir as críticas que, luta.
em nome da própria divisão que teorizou, lhe vão ser
endereçadas pelos neoliberais do século XIX, e princi 47. Soluções extraconstitucionais
palmente por Benjamin Constant, 11 sobre a inexistência Na experiência política brasileira, os conflitos entre
de mecanismos para prevenir e remediar os inevitáveis os poderes, não encontrando uma solução legal eficaz,
conflitos entre os poderes, os quais, indo além e contra transformam-se em crises políticas: o executivo e o legis
os propósitos do doutrinador, ameaçavam a sobrevivên .._
lativo paralisados; o princípio de autoridade enfraque
cia do próprio Estado - e, no caso, do Estado liberal. cido ou rompido pelas incertezas e agitações; e as
Além de acenar com o papel "moderador" de um instituições ameaçadas em sua sobrevivência. Por outro
Senado vitalício, ele responde com uma profissão de fé lado, as crises políticas tendem a deteriorar. a situação
no "naturalismo" ou no "mecanismo" que fundamenta nômico- ·nane · do País, a qual, por sua vez, agrava
va o liberalismo extremado do "século das luzes": · 'par . ainda mais a situação política.-;. 8� �
le mouvement nécessaire des choses, elles (os poderes) Quando a crise política torna-se insustentável pelos
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I
sont contraintes d'aller, elles seront forcées d'allet en 11
I.À/sérios prejuízos trazidos ao bem comum e faz-se impera
concert". 12 É o mesmo naturalismo que embasa a crença tivo� desate, � solução, face à lacuna .constitucional,
de Adam Smith na livre concorrência sem limites como .
tem vmdo por vias extracon.stitucionais: a intervenção
fator automático, necessário e compulsivo, dispensada das Forças Armadas. 1s
a intervenção estatal, do bem comum na atividade eco
� O processo de intervenção obedecia a uma linha
nômica. Assim como empresas concorrendo com plena Ql geral mais ou menos constante:
liberdade no mercado, sem nenhum controle de autori
a) o rompimento, pelas Forças Armadas, de sua
dade, levariam automaticamente a uma economia pro "ss"
�t�
gressista e harmônica, os três poderes, um ao J ado do ,5, vinculação constitucional subordinada aos poderes em
outro, COIID plena liberdade na sua esfera de competência � conflito, pela via revolucionária;
automaticamente seriam forçados pelo movimento natu � b) a auto-investidura, pelo comando militar, de um
ral das coisas a andar em harmonia. poder nacio�al suprem� de interv�nção arbitral para
.
Se em economia, o modelo clássico há muito já foi, � _ superar a crISe: substitumdo o Presidente, dissolvendo o
em maior ou menor grau, banido da estruturação eco . Congresso, ou tocando eventualmente na composição do
nômica, em política o banimento não foi total. Há Esta Judiciário, mas sempre reprimindo os abusos havidos e
�- consertando a situação política;
t
dos, como o nosso, que ainda fundamentam sua organi-
e) enfim, restaurada a ordem (com o restao.ele
, cimento da.s condições propicias a um governo constitu-
11 BENJAMIN CONSTANT, op. cit., Tome Premier, pp, 18-29. �
l2 MONTESQUIEU, idem, op. cit., p. cit. ' 111 LIMA, Hermes, op. cit., pp. 69-70.
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120 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 121
cional), a retoma.da da vigência constitucional plena e lução. As Forças Armadas, ao empalmarem o poder su
a, volta das Forças Armadas à subordinação anterior. 14 premo, afastam a vigência da Constituição e evocam a
Nossas elites dirigentes, porém, após cada ciclo re si um poder constituinte originário. Por outro lado, o
volucionário, foram sempre incapazes de aprender, com encerramento de cada processo revolucionário implica
a História, quanto à necessidade de alterar o núcleo da em uma nova normação constitucional. Para que se
forma política, suprindo a evidente lacuna constitucio tenha uma idéia do número dessas intervenções, basta
nal· que se arrasta desde a primeira constituição repu atentar-se ao fato de que, desde 1891, tivemos seis Cons
blicana. Inalterado o esquema de poderes, novos conflitos tituições (incluída nesse número a Emenda Constitucio
·e novas crises sempre se sucederam. E: o quadro repetiu nal n. 0 1, de 1969) e, somente de 1964 para cá, dezessete
-se, monotonamente, até 1968: diante da paralisação do Atos Institucionais, os quais, emanações de poder cons
Estado e das lesões ao bem comum, e para desafogo da tituinte originário, funcionam como Constituições ou
comunidade, o chamamento às Forças Armadas para reformas constitucionais outorgadas.
intervirem; cumprida a tarefa de saneamento da crise Como as Constituições brasileiras, desde 1891, não
política, novamente o retorno à vinculação constitucio prevêem instrumentos legais para acabar com os confli
nalmente estabelecida, sem.que se criasse um mecanismo tos, os conflitos é que acabam com as Constituições. Esse
par� solucionar as previsíveis crises futuras. Em 1968, o triste destino das Constituições desadequadas à reali
com o Ato Institucional n.0 .5, houve uma mudança de dade política que pretendem disciplinar.
comportamento das Forças Armadas, como veremos nos ;'\J'J J f
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itens seguintes: elas assumiram, de novo, o poder nacio 48. O Ato Institucional n.0 5
nal supremo de intervenção arbitral, mas, desta vez, não O Ato Institucional n. 0 5 trouxe, como já deixamos
o largaram mais. Rompeu-se, então, a prática pela qual entrever, uma mudança substancial no tratamento
as Forças Armadas, uma·. vez superada a situação de extraconstitucional dos conflitos entre os poderes. O
erise determinante da revolução, voltavam à subordina estudo dessa mudança, de seu significado e de suas de
ção anterior. 15 ficiências, que começamos no presente item, será o
Cada intervenção militar, com a ruptura do sistema objeto de todo o Capítulo seguinte.
,constitucional, representa, no plano jurídico, uma revo-
1.0 - O que é um Ato Institucional.
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14 Este, em linhas gerais, o "modelo moderador das rela �· Todo Ato Institucional pressupõe uma revolução no
ções entre civis e militares", que dura até a revolução de 1964. alcance jurídico do termo, ou seja, um movimento que
(V. BTEPAN, Alfred, Os Militares na Política, Rio, Editora Arte- visa a conseguir determinados fins políticos mediante o
nova S.A., 1975, pp. 46-52) . afastamento, pela força, da vigência da Constituição. A
1
15 "Grande parte da mudança radical que ocorreu nas re- , revolução define-se, justamente, pela circunstâncfa de
, fações entre civis e mili�ares qo Brasil é explicável pe lo fato de
levantar-se contra a vigência da Constituição, aindâ que
est�ja voltada contra apenas. Uim ou alguns de seus dis
que os oficiais de nível médio rejeitaram o parlamentarismo e
o protecionismo e pretenderam. fundir a responsabilidade . e o
poder sob a égide militar." (STEPAN, Alfred, op. cit., p, 192) . J?')Sitivos. O triunfo da revolução importará na derru-
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122 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 123
bada, por imposição de fato, da ordem constitucional até poder executivo, diminuindo aquelas reservadas ao legis
então existente. lativo. Quanto ao mais, manteve a mesma estrutura de
Mas como, para dirigir uma sociedade, se faz neces poderes e não estabeleceu instrumentos adequados à
sária a existência de um ordenamento legal, o movimen superação das crises.
to vitorioso, com a mesma força que derrubou a Cons Por essa razão, ela não resistiu ao primeiro conflito,
tituição anterior, pode colocar outra em seu lugar. Ou, nem dos mais graves, entre o Presidente e o Congresso, a
acompanhada de eventuais alterações, restaurar aquela propósito de um pedido de licença para o Executivo
Constituição cuja vigência, para determinados fins, afas mover, perante o Supremo Tribunal Federal, processo de
tou. Pois, Ato Institucional é o instrumento pelo qual suspensão dos direitos políticos de um deputado, acusado
uma revolução vitoriosa repõe a Constituição que infrin de haver injuriado as Forças Armadas. A 13 de dezem
giu - naturalmente ressalvando a validade dos atos bro de 1968, o Presidente, fundado em sua condição de
praticados sem o seu amparo-, com ou sem alterações chefe efetivo das Forças Armadas, assume, por sobre a
em seu conteúdo normativo. Ato Institucional, destarte, Constituição, o supremo poder, outorga o Ato Institucio
é uma forma de expressão do poder constituinte origi nal n.º 5, e, com base nesse Ato, decretou o recesso do
nário de que se investe uma revolução triunfante. 16 Congresso Nacional, que só viria a ser levantado em
2.0 - Breve história do Ato Institucional n.0 5. outubro de 1969.
O Ato Institucional n.0 5, convém relembrar, apesar Seja como for, o AI n.0 5 expressou uma nova inter
do seu número, reabriu um novo processo revolucionário. vençs,o revolucionária das Forças Armadas no processo
O ciclo iniciado em março de 1964 encerrava-se, no p�ano político, provocada, como as outras, pela insuficiência do
jurídico-constitucional, a 15 de março de 1967, com a arsenal de medidas constitucionais para enfrentar as
cessação da vigência dos atos políticos excepcionais até crises entre os poderes.
então editados e a entrada em vi.gor de uma nova Cons 3.º _ A "incorporação" do Ato Institucional n. 0 5 à
tituição.
Constituição.
A Constituição de 1967, que fizera Fenascer as e,spe 9-
ranças de uma ordem constitucional estável e que pre Ainda naquele mês de outubro de 1911, por força do
tendera consagrar as conquistas políticas de 1964, na mesmo Ato Institucional, a Constituição sofreu a Emen
verdade, no tocante à forma de governo, não foi muito da n.º 1, que estabeleceu no art. 182, do texto Constitu
além do constitucionalismo brasileiro.de 1964. 17 As ino cional, a seguinte norma: "continuam em vigor o Ato
vações foram no sentido de reforçar as atribuições do Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, e os
demais Atos posteriormente baixados". Esse artigo incor
16
FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, Direito Constitucional porou o Ato Institucional entre as "Disposições Gerais
Comparado (I - O Poder Constituinte), São Paulo, José Bu e Transitórias" da Constituição, sem contudo lhe esta
shatsky, p. 77 e segs.
17 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, Comentários ... , v. I, belecer expressamente limites, condições ou critérios de
p. 29. exercício.
124 ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A SOLUÇÃO VIGENTE
Os poderes de arbitragem previstos são, no âmbito enfim, no reconhecimento, ainda que não de todo cons
federal, basicamente os seguintes: decretar o recesso do cientizado, por parcela ponderável das elites dirigentes,
Congresso Nacional e, posteriormente, "convocá-lo" (art. da necessidade de um mecanismo eficiente para trata
2.º); suspender direitos políticos e cassar mandatos ele mento legal e pacífico das crises e para uma fiscalização
tivos (art. 4.0); e demitir, remover, aposentar ou pôr em superior dos poderes, 2 que logre suprir uma fraqueza
disponibilidade os membros da magistratura (art. 6.0). histórica e congênita da comunidade brasileira em exer
Na verdade, tratam-se de poderes de responsabilização cer essa fiscalização de baixo para cima.
política, e utilizáveis, nos termos do preâmbulo, para Portanto, a pura e simples revogação dos poderes
combater a subversão e a corrupção e assegurar a "au de fiscalização e de arbitragem contidos, ainda que de
têntica ordem democrática", vale dizer, os valores essen forma tosca, no Ato Institucional n.0 5, sobre ser um
ciais à democracia ocidental, ameaçados pelas crises e retrocesso, não seria solução para o problema das crises
pelos abusos dos órgãos políticos. políticas. Se retornássemos ao esquema de poderes que
O exame da forma de como os poderes de arbitragem nos vem desde 1891, mantido inclusive na Carta de 1967,
foram instituídos nos leva a duas observações. Em pri não é preciso ser profeta para prever o que haverá de
meiro lugar, a responsabilização limita-se aos órgãos do ocorrer: novos conflitos e crises políticas, as quais, por
1€gislativo e do Judiciário. Não está prevista uma res não encontrarem solução legal e eficaz, acabarão provo
ponsabilização superior do Executivo, por sinal, a mais cando nova intervenção revolucionária das Forças de
necessária de todas. A causa da omissão deve ser buscada tentoras das Armas. Será a reabertura de novos ciclos
na circunstância de esses poderes de arbitragem estarem
confiados a alguém que os acumula com as funções de 2 A idéia de alterar a estruturação de poderes, para enfren
chefe do poder executivo. Em segundo lugar, a falta de tar o problema dos conflitos e dos abusos políticos tem quase
técnica com que se tentou dar tratamento às crises e a idade da República. Em sua Organização Nacional (obra já
criar uma "suprema inspeção" na órbita política. Basta citada, à p. 369 e segs.), cuja primeira edição data de 1914,
•
um exemplo: para combater a corrupção ou a subversão ALBERTO TORRES apresenta um "Projeto de Revisão Constitucio
no seio do Poder Judiciário, chega-se ao extremo de 1 nal", cuja inovação "principal" é a "criação do Poder Coorde
nador", que não é um "invento de imaginação"; JUAREZ TÁVORA,
declarar suspensas as garantias constitucionais da vita
na mesma linha prega um "órgão ordenador" ( Uma Política
liciedade e da inamovibilidade (art. 6.0). Isso se explica de Desenvolvimento para o Brasil, José Olympio Editora, 1962) ;
pela própria natureza do instrumento, nascido sob o (BORGES DE MEDEIROS, em 1933, já havia defendido um "Poder
calor de um processo revolucionário, e por uma certa Moderador na República Presidencial". Mas é a partir de 1964
inconsciência sobre o que se precisava instituir e o que 1 e, especialmente, a partir da edição do Ato Institucional n.0 5,
se estava, realmente, instituindo. que toma vulto, prenunciando um consenso, o reconhecimento
da necessidade de uma nova fórmula constitucional capaz de
Apesar das deficiências do sistema, como adiante ve dar tratamento adequado às crises políticas, envolvendo a insti
remos, o Ato Institucional n.º 5 significa, paradoxal tuição de um poder coordenador, ou moderador, ou de um Con
mente, um progresso no caminho da descoberta de insti selho de Estado - aliás, órgãos que não se excluem, pois se
tuições adequadas ao Brasil, na medida em que implica, completam.
128 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 129'
revolucionários, que se sabe corno começam, mas não exceção ... 3 De qualquer forma, a suspeição partidária.
se pode prever como acabarão. pelo menos dificulta a aceitação geral da autoridade a
quem cabe exercer a suprema instância política.
50. As deficiências do sistema Em quarto lugar, a concentração dos poderes de
arbitragem, no órgão do executivo, acentua ainda mais
A criação de poderes de fiscalização e arbitragem
a proeminência do governo relativamente aos demais
da atividade política em Ato Institucional apresenta, do
órgãos políticos, e que - todos reconhecem - já é
ponto de vista da democracia política, alguns defeitos
grande nos tempos atuais. O poder executivo fica armado
graves.
de tantas e tais atribuições que anula, na prática, os
Em primeiro lugar, esses poderes estão fora do siste objetivos limitadores da divisão do poder.
ma da Constituição. Embora o artigo 182 da Carta de Enfim, esse cúmulo de funções arbitrais e governa
1969 declara a continuidade da vigência do Ato Institu mentais, acaba prejudicando ou a uma ou a outra delas,
cional n.º 5, isso, por si só, não faz dos poderes de arbi
além de agravar as tensões decorrentes da confusão
tragem nele previstos peças integrantes do esquema
entre oposição e subversão, e de tornar, ainda mais de
constitucional da divisão do exercício do poder. Ao con
licada, a posição das Forças Armadas.
trário' eles funcionam como normas de exceção frente
às regras traçadas na Constituição e sem as limitaçoes
- · Resumindo: a conjugação, hoje existente em nossa
nela estabelecidas. ordem constitucional, de poderes limitados à Constitui
ção e poderes excepcionais ilimitados, ainda que amar
Em segundo lugar, poderes de necegsidade perma
rados entre si pelo cordão umbilical do artigo 182, gera
nente, não se compadecem com a natureza revolucion�
contradições desfavoráveis a um clima de harmonia e
ria e, portanto, transitória do instrumento em que estao
entendimento indispensáveis à democracia política. So
inseridos. Esse aspecto, que se completa com o anterior,
lução de emergência, válida a curto e médio prazos, não
põe em questão a existência, nesse particular, do Estado
reúne, face aos defeitos analisados, condições que acon
-de-direito.
selhem ou, mesmo, viabilizem a sua permanentização
Em terceiro lugar, os poderes contidos no Ato Insti como modelo político definitivo para o Brasil.
tucional n.0 5 são atribuídos a quem, por coincidência
de papéis, é o Chefe de Estado, mas que, por tragédia, é 51. O impasse e a saída possível
também o Chefe de governo. Essa peculiaridade torna
suspeita, aos olhos dos partidos de oposição e situação, a Revogar, pura e simplesmente, os poderes de arbi
autoridade que se utiliza desses poderes. Se o Presidente, tragem contidos no Ato Institucional n.0 5 não resolve,
de alguma forma, atingir a algum oposicionista, muitos como já observamos no início deste capítulo, o problema
hão de dizer que o Presidente, no fundo, quer ceroear o
direito de crítica dos que discordam de sua linha polí s A cassação, com base no AI n.O 5, do mandato de um
Senador do partido situacionista, em 1965, foi combatida por
tica; se atingir pessoa ligada à própria situação, então alguns integrantes da Oposição, que nela viram uma tentativa
é porque está querendo "popularizar" os instrumentos de do Presidente de "popularizar" o referido Ato Institucional.
130 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A C!USE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 131
das crises políticas. No entanto, não é possível - para revogação dos instrumentos excepcionais revolucionários,
o bem da democracia política - continuar permanente o que, obviamente, exclui a idéia de convivência da Cons
mente com o Ato Institucional n.º 5. Esse impasse polí tituição com o Ato Institucional n.0 5.
tico em que caiu o atual regime. Portanto, a saída desse impasse, a nosso ver, depen
Já transcorreram mais de dez anos sem que as de de uma reformulação global do sistema de governo
lideranças do movimento de março de 1964 tenham que vimos embalde experimentando desde 1891, objeti
encontrado uma saída. Daí uma tentação, perigosa: a de vando abrir um espaço na organização política dos po
deres, de modo a prever-se um órgão independente (ou
r
julgar-se impossível, hoje no Brasil, conciliar a democra
cia instrumental com a democracia substancial, vale seja, um outro poder), que desempenhe, como p,eça bá
e.,�Jé
dizer, liberdade no plano político, com ordem, segurança sica de um mecanismo de normalidade, a função de
e desenvolvimento. 4 -f> qJ.U. t\A,Lltv.... � �� resolver os conflitos entre os poderes, de fiscalizar-lhes as
O que este trabalho quer mostrar é a possibilidade atividades, e de garantir os objetivos permanentes do
� Estado. É do que se tratará na parte seguinte.
\ ue organizarmos uma democracia política, aqui e agora,
em que os valores essenciais à substância democrática,
Ü ntre eles a segurança e o desenvolvimento, sejam nega
ivamente afetados.
Tem-se apresentado, como solução, a "incorporação
do Ato Institucional n.0 5 à Constituição". Ora, a fór-
mula, além de vaga, é ambígua e, em certo sentido, con
traditória. Pois, se foi cunhada para significar a inclusão
na Constituição do Ato Institucional n.0 5 - preservado
em sua estrutura e concepção atuais -, a "incorpora
ção" já ocorreu com a Emenda Constitucional n.0 1, de
1969, no artigo 182 (e sem conseguir superar o impasse
político brasileiro. 5 Se a fórmula, porém, for utilizada
no sentido de previsão, na Constituição, de poderes aná
logos aos do Ato Institucional n.° 5 e de sua delegação
a órgão já existente ou a ser criado, com as cautelas
limitativas inerentes ao Estado-de-direito, então não há
falar, propriamente, em "incorporação do Ato Institu
cional à Constituição". Nessa hipótese, trata-se de uma
alteração da estrutura de poderes da Constituição, com
4 Ver a nota de n.º 1, da Segunda Parte, Cap. III.
5 Ver n.0 48 supra.
i QUARTA PARTE
A REFORMA PRINCIPAL
52. A linha básica: a instituição de um poder moderador
A linha de reformulação constitucional capaz de
proporcionar condições políticas à superação da crise da
d�mocracia brasileira está em reservar a chefia de Es
tado para um órgão especializado que, de uma posição
superior aos interesses meramente partidários e aos
objetivos próprios de governo, e exercendo o comando
militar supremo, tenha por finalidade:
1. 0 - solucionar os conflitos entre os poderes, ga
rantindo ou restabelecend0 a harmonia e o equilíbrio
que entre eles precisa existir;
2. 0 - zelar pela pr@servação dos objetivos perma
nentes do Estado, especialmente exercendo um controle
sobre os governos, de modo a prevenir e a impedir que,.
no exercício de sua competência, atentem contra aqueles
valores; e
3.0 - realizar uma ".suprema inspeção" sobre os;
órgãos políticos e a administração, como fiscal da lega
lidade e da moralidade administrativa. 1
1 A definição que propomos ao órgão político superior de·
Isto implica a instituição na Lei Maior de um ver poder árbitro superior coincidem com as de chefia de
dadeiro poder árbitro da atividade política, o mais possí Estado. A - chefia de governo, por sua vez, caberia ao
vel partidariamente imparcial e titular do comando órgão próprio do executivo em sentido estrito, vale dizer,
militar supremo, o que equacionaria simultaneamente, ao Ministério ou ao Gabinete, e seria ocupado pelos po
as duas séries de problemas analisados na Parte III deste líticos do partido que obtivessem o respaldo da maioria
trabalho. na Câmara representativa da opinião política.
Em primeiro lugar, teríamos um órgão com atribui Confiar a chefia do Estado a um órgão independente
ções para solver os conflitos entre os poderes políticos. dos poderes executivo (governo), legislativo (Congresso
Seria ele a peça básica de um mecanismo legal e eficaz, ou Parlamento) e judiciário, armado de atribuições de
em um regime de normalidade, para a solução das crises finidas e limitadas na Constituição para arbitrar os
entre os poderes, dispensando as periódicas intervenções inevitáveis conflitos entre eles, defender os obj�tivos
das Forças Armadas, que se têm registrado na História permanentes da comunidade e exercer uma suprema
da República, justamente pela ausência de instrumentos fiscalização política, equivale a erigi-lo em um; quarto
constitucionais ordinários. poder constitucional, que, como peculiaridade de nosso
Em segundo lugar, produziria a separação, em ór direito político, foi conhecido com o nome de poder mo
gã.os distintos, da chefia de Estado e da chefia de gover derador. 2
no, com todas as conseqüências positivas daí decorrentes
2 O poder moderador estava previsto, no texto de 1824, em
e que já foram analisadas. Na verdade, as funções desse
quatro artigos (do 98 a 101). O primeiro deles, definia o insti
como veremos, nos constitucionalistas clássicos do Império do tuto, estabelecendo fins e critérios: "O poder moderador é a
Brasil - coincide plenamente com as conclusões de um inves chave de toda a organização política e é delegado privativa-
tigador, aliás recente, do Direito Constitucional dos novos
Estados: el fin de moderar al govierno, arbitrar las fuerzas que operan
"La configuración arbitral y representativa de una Jefa e'n y través de la organización estatal, y defender la consb.itu
tura del Estado diferente de la del Gobierno, por obra ya de la 1
1
ción como orden de valores. A este fin, la constitución no sólo
mera convención constitucional, ya, en fase posterior, del pro atribuye una potestas, sino que configura d e tal manera la
prio derecho estricto, es fruto de un largo processo histórico magistratura en cuestión, que el ejercicio de aquélla esté ba
que no cabe reconstruir aqui. Baste sefíalar que la noción de sado en una auctoritas." (Como se vê, estão na ordem: 3.º, 1.0
Poder Moderador" (este o nome que o autor do estudo dá a e 2.0, os aspectos da finalidade do órgão, como explicitamos
essa chefia de Estado arbitral) "se acufía en los albores del neste trabalho. É, do nome ao conteúdo, a teoria que se pode
constitucionalismo con caráter polémico, bien para restringir elaborar acerca do poder moderador, com fundamento nos mais
los poderes de Monarca hereditario a un "reinar sin governar", abalizados comentadores da Constituição de 1824).
bien para potenciar sus funciones dándole intervención más E podemos concluir a citação: "Se trata, por lo tanto, de
allá de lo que parecería tolerar una interpretación estricta del una magistratura más de control que de decisión y, en conse
principio, instrumento polémico a su vez, de la Separaéión de cuencia, se superpone a las instituciones gubernamentales sin
Poderes". perjuicio de que, en caso de necessidad, pueda transformar-se
E acrescenta: "Atendiendo a su función, el Poder Mode en magistratura de gobierno." (MlNON, Miguel Herrero de,
rador podría definirse como aquella magistratura a la que se Nacionalismo y Constitucionalismo, Madrid, Editorial Tecnos,
-atribuyen determinadas competencias para que las ejerza con 1871, pp. 137-138).
414 - 10
138 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
J J&J Ae'\,d, ru u-.. -J;i;W �
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 13� �íJA, =.l)(i
cf.A.IL .! .
--�.
53. Atribuições e órgãos a ele ligados nomeação dos ocupantes dos cargos mais altos
da. magistratura;
Sem a pretensão de esgotá-las, podemos ar�olar, f)
concessão de indulto e comutação de penas;
como atribuições do órgão especializado da. chefia de
Estado (poder moderador), necessárias ao desempenho g) comando supremo· das Forças Armadas.
Havendo o devido consenso sobre a conveniência,
de suas funções, as seguintes: 3
poderão ser conferidas ao órgão do poder moderador, es
a) a representação da Nação, interna e externa pecificamente para as hipóteses de corrupção ou de
mente; subversão, comprovadas em processo definido em lei,
b) · nomeação e demissão, segundo os condiciona algumas outras atribuições de cunho repressivo, tai.s
mentos estabelecidos pela prática, do Chefe de. governo como:
(Primeiro-Ministro ou Presidente do Conselho de Mi a) cassação de mandatos de parlamentares e sus
nistros); pensão de direitos políticos;
l
e) dissolução da Câmara dos Deputados e convo b) suspensão de magistrados.
cação antecipada de novas eleições parlamentares; 1
.sidade tem sido, volta e meia, posta em evidência pelos ordinária prevista para funcionar como regra nas situa
nossos mais preclaros juristas. Assim, de um lado, um ções de normalidade (vale dizer, as situações de ordem
Conselho de Estado, 7 que teria por função precípua par concreta decorrentes da conduta espontânea global
ticipar, ao menos pela audiência obrigatória, das decisões mente adequada, dos membros da comunidade, ao direito
nas matérias reservadas privativamente ao chefe de Es estabelecido) . o
tado. De outro lado, possibilitaria o enquadramento Portanto, não se deve confundir a instituição jurí-
político-constitucional de uma instituição voltada intei dica do poder moderador com os "regimes de emergên
ramente à fiscalização da administração pública, em cia", ou seja, com os mecanismos que as Constituiçõe�.
r
todos os seus níveis e setores, ouvindo e investigando as em geral prevêem para enfrentar as situações de anor
queixas populares, qual seja o Ombudsman. 8 malidade (assim chamados aqueles fenômenos ou cir
cunstâncias previsíveis que podem ameaçar a eficácia da
54. Regimes de normalidade e regimes de emergência própria ordem constitucional, 10 tais como, nas expre�
sões consagradas pela Constituição vigente, a "guerra" e
A instituição constitucional de um poder moderador,
a "grave perturbação da ordem"). 11 É necessário frisar
que realize uma suprema inspeção política, hoje efeti esse aspecto porque, no afã de buscar soluções constitu
vada sem as Umitações do Estado-de-direito e sem condi cionais que dispensem o Ato Institucional de n.º 5, ge
ções objetivas de imparcialidade partidária através do ralmente apenas têm sido lembradas fórmulas de regimes
Ato Institucional de n.º 5, constitui peça de um regime
de emergência.
de normalidade. Isto é, o poder moderador - como
órgão especializado da chefia de Estado, devidamente Ora, não pretendemos negar a importância de a
munido de atribuições constitucionais para essa função Constituição estabelecer um sistema adequado à nossa
- representa um elemento da regulação constitucional época para as ocasiões de anormalidade. Mas a nossa
preocupação, no presente trabalho, não é com os regimes
7 DALLARI, Dalmo de Abreu, "O Conselho de Estado e o de emergência, mas com a organização de um regime
Contencioso Administrativo no Brasil", in Revista de Direito de normalidade que possa apresentar um desempenho
Público, n.0 11, p. 33-44. satisfatório.
s SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 299. Conforme explica
O AtJo Institucional de n.0 5, a nosso ver, além de
um especialista na matéria, o Ombudsman (o defensor do ci
dadão) apresenta três traços essenciais: (1.0) é um funcioná
incorporar o embrião de um regime de emergência, por
rio (ou um corpo de funcionários) independente e não influen exemplo, quando faculta a suspensão de garantias indi
ciado pelos partidos políticos, representante da legislatura etc., viduais (art. 5.º, in fine) e a decretação do estado de
em geral estabelecido na própria Constituição, que vigia a sítio (art. 7.0), sem as limitações da Constituição,
administração; (2.0) ocupa-se das queixas específicas do pú
blico em geral contra as injustiças e os erros administrativos;
o FERREmA FILHO, M. Gonçalves, O Estado de Sítio, São
e <3.0) tem o poder de investigar, criticar e dar publicidade as
Paulo, 1964, p. 12-13.
ações administrativas, porém não de revogá-las. (RoWAT, Do
10 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 13-14.
na! C., El Ombudsman (El defensor del ciudadano). México,
Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 39). 11 Constituição Federal, art. 155, itens I e II.
142 CEzAR SALDANHA SoUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 143
contém poderes de fiscalização e de arbitragem do jogo compõem e de enfraquecer o símbolo da unidade, pelo
político necessários a um regime de normalidade. Des qual melhor se exprime a representação suprema da
tarte, a só previsão· de um regime atualizado para en Nação. Por isso, a outra alternativa - a da delegação
frentar as situações de anormalidade não resolverá o unipessoal do poder moderador - parece a mais con
problema constitucional brasileiro, uma vez que preci veniente, máxime se o seu exercício estiver condicionado
samos, antes de mais nada, encontrar uma fórmula à audiência obrigatória de um Conselho de Estado,
viável, que nos falta ainda, para a normalidade consti ainda que as deliberações deste não vinculem o chefe
tucional. de Estago em suas decisões.
Já na vigência da Constituição de 1824, o poder mo A segunda série de variáveis concerne, nos termos
derador coexistia com a forma clássica do regime de em que já indicava Pimenta Bueno, 14 às atribuições que
einerg·ência de legalidade especial, qual seja o estado de propriamente devam pertencer ao poder moderador e à
sítio. 12 Nada obsta a que uma Constituição que consagre amplitude das mesmas. Na linha a que já nos referimos
o poder moderador preveja uni regime de emergência neste capítulo, julgamos um · sinal de sabedoria deferir
clássico, ou algum outro mais atualizado, como, verbi em princípio, ao poder moderador, uma gama bem elás
gratia, a solução criada pelo artigo 16 da Cons.tituição tica de atribuições fiscalizadoras e. arbitrais, . deixando
francesa. 13 No entanto, tal estudo refoge ao âmbito deste às praxes do sistema e ao progresso· evolutivo da cons
trabalho, circunscrito apenas aos regimes de -normali ciênêia política da comunidade o balizamento de 'limites
dade. concretos às suas intervenções.·.··
· A terceira questão que se oferece versa sobre os cri
55. Concreções possíveis térios para o preenchimento do cargo. Deixe-se, desde
já; bem claro - voltaremos ao assunto no capítulo se
A concretização da idéia de um poder .moderador na guinte - que o poder moderador não se viabiliza apenas
organização dos poderes ofereceu, à opção do constituin com' a monarquia, a qual; importando na designação do
te, uma multipUcidade bastante ampla de formas. chefe de Estado ségundo o princípio da hereditariedade,
Em primei�o lugar, há a questão da titularidade pode realizar, em termos humanos, a mais absoluta
plural ou singular desse poder. Podem ser.· pensadas impârcialização partidária. Em uma república, a chefia
tj.iversas formas de composição colegiada dá chefia de dê Estado (Presidência da República) - embora eletiva
Estado, onde, basicamente, um conselho exerceria de e temporária - , pode ser preenchida mediante uma
modo coletivo o po.der mod.erador. Sé essa alternativa, técnica de eleição tal, que gáràntà ou, pelo ·meilosi con
de um lado, proporciona maiores garantias de a�erto dicione a designação de um ocupante (o Presidente)
nas decisões, apresenta as desvantagens de diluir a res
l
também capaz de situar-se em posição suprapartidária,
ponsabilidade do órgão na pluralidade de pessoas que o necessária ao exercício do poder moderador.
12 Constituição Política do Império do Brasil, art. 179, § 35. 14 PIMENTA BUENO, José Antônio, Direito Público Brasi
Sobre legalidade especial, V. FERREIRA FILHO, op. cit., p.. . 63 e ss. leiro .e Análise da Constituição do Império, Rio, Typ. Imp. e
13 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 113-116. Const. de J. Villeneuve e C., 1857, p. 205..
[
144 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
t
chefia de Estado. 15 Já a eleição do poder moderador CAPÍTULO II
pelo órgão da representação política (o Congresso), exi
gido um quorum qualificado, 16 tem condições de resul RESPOSTA A DIFICULDADES
tar na designação de quem seja capaz de vivenciar um
papel político de árbitro entre as forças disputantes do 56. O parlamentarismo é inadequado ao Brasil
governo, mas parece reduzir sua independência diante
do órgão que o elegeu. A eleição do chefe de Estado por O poder moderador significa, em síntese, uma che
um colégio eleitoral não muito numeroso, mais livre das fia de Estado escoimada de atribuições político-partidá
injunções partidárias e distinto dos três poderes políti rias e implicará na existência de um poder executivo (o
cos, representa uma outra opção a ser considerada e, governo) independente dele, embora sujeito a sua ins
quem sabe, a ser pensada. peção superior. Esse governo, quer se denomine Gabine
Este colégio eleitoral do poder moderador - imagi te ou Ministério, há de depender também da fiscalização
nemos a título de sugestão - poderia ser o próprio do poder legislativo (o Parlamento), de onde lhe virá o
Conselho de Estado, composto de no máximo 15 membros, necessário apoio para a realização de seu programa de
designados pelo Senado Federal mediante proposta do ação. Em princípio, ocupará o governo - ou nele per
chefe de Estado, com as mesmas garantias que a Cons manecerá - a liderança do partido ou da coligação que
tituição assegura à magistratura. Espirado o período faça - ou mantenha - maioria no órgão da represen
presidencial - cuja duração não deveria ser inferior à tação política, proveniente do pronunciamento do elei
do mandato de senador-, o Conselho de Estado elege torado.
ria o novo chefe do poder moderador, sem candidaturas Colocadas, nesses termos, as linhas mestras do. or
previamente estabelecidas, excluída a possibilidade de 1
denamento político sugerido, vamos refletir sobre uma
eleição dos seus membros, mas permitida uma reeleição. primeira objeção possível: "o modelo é. parlamentarista;
e o parlamentarismo, embora teoricamente possa ser
melhor que o presidencialismo; não serve para o Brasil
porque o povo brasileiro não está preparado, ou não tem
15 v. supra n.0 19. maturidade suficiente, para praticá-lo". 1
Era o processo preferido por Assis BRASIL, que não o
10
julgava "indireto", mas "direto pelas câmaras", (op. cít., p. 245- 1 Tratando do tema relativo a reformas à Constituição que
/
De fato, julgo que o modelo proposto pode receber ÇfX} _r 1.ª -
o parlamentarismo "do poder decorativo",
l...,._:O rótulo de_"rarlamentarista". 2 0 parlamentarismo � que seria definível, somente, pela responsabilidade po
importa em duas características fundamentais: (a) che- lítica do gabinete perante o parlamento, pois o chefe de
fia de governo desvinculada da pessoa de um chefe de Estado não passaria de simples figura decorativa, sem
Estado; (b) chefia de governo responsável perante à maiores responsabilidades no funcionamento do sistenia
Câmara. E o chefe de Estado só poderá ser verdadeiro (o Imperador ou o Presidente, como a Rainha da Ingla
,órgão moderador com a realização desses dois caracteres. terra, -"não deveria fazer nada") ;
Cumpre, porém, distinguir, no plano da história das
2.ª - o parlamentarismo "do poder moderador'',
idéias políticas no Brasil, duas visões do parlamenta-
que além do elemento responsabilidade política do ga
rismo: 3 �
binete perante o parlamento e, mesmo, antes deste,
2 Na verdade, essa primeira objeção peca por aquilo que funda-se em outro: a distinção pessoal entre a chefia
,o Prof. DALLARI denomina de "preocupação pelo nome" ( O Re de- Estado e a chefia de governo, erigida aquela em po
:nascer do Direito, São Paulo, José Bushatsky Editor, p. 151, 175 der moderador, com atribuições de arbitragem definidas
e 176). Tal nominalismo,· além dos equívocos que propicia, tem
:servido, para alguns, de simples técnica de argumentação: n� Constituição.
·âtribui-se aprioristicamente um rótulo conhecido a um deter A primeira dessas concepções foi a que ficou ligada,
minado sistema político, para invo'cando preconceitos estabele no vocabulário político brasileiro, ao termo parlamenta
•cidos e não revisados, negar-lhes serventia ou conve;niência. rismo, tanto para os adeptos, como para os descrentes do
Precisamos fugir do nominalismo. Por isso, o que nos interessa
,colocar neste trabalho é que a democracia política no Brasil s.istema. No Brasil, até bem recentemente, quando se
será· muito difícil, senão impossível, se a Constituição: (a) não falava em parlamentarismo, fazia-se .logo a idéia de um
•distinguir a· chefia de Estado da chefia de governo; eriginçlo a sistema "de poder decorativo" do chefe de Estado e de
·prilneira em poder árbitro (moderador) da atividade política; um primeiro-ministro dependente da maioria da Câmara
,e (b) não fizer a chefia de governo responsável perante o dos Deputados. Tão arraigada era a vinculação do ter
chefe de Estado e perante o órgão da Representação ( especial
mente, a Câmara dos Deputados). Ora, pouco nos importa o mo parlamentarismo a essa concepção, que Borges de
nome que se dê ao. sistema proposto: se parlamentarismo, pre Medeiros, quando em 1933 sugeriu um sistema de cunho
-sidencialismo, sistema misto ou etc ... Como, no entanto, pode :r;rltidamente parlamentarista, mas com a previsão ex
ocorrer a tentação de rotular o sistema proposto de parlamen pressa do poder moderador, denomina seu livro de "O
taristà, justamente para contra ele despejar-se uma série de Poder Moderador na República Presidencial ... " 4
críticas • que se- faz ao dito "parlamentarismo puro" (ou seja l
lá o que, for), vamos aceitar, para argumentar, o rótulo, para _ O parlamentarismo "do poder decorativo" traduz a
�
mostrar as duas principais idéias de parlamentarismo que têm visão "liberal" do parlamentarismo no Brasil: "liberal",
-existido entre nós e a diferença profunda que há entre elas
sobre o papel da chefia de Estado. 4 .BORGES DE MEDEIROS, op. cit.
a. '..Essas duas . visões de parlamentarismo e a concepção
"presidencial" que, dos conservadores «puros" do Império, passou aos republicanos presidencialistas, estão muito bem ·es
tudadas por JoÃo CAMILLO em Democracia Coroada (já citiida:,
TRIGUEIRO retomou essa objeção. (Entrevista ao jornal O Estado €Sp. no Cap. V da Segunda Parte) e em os Cànstrutorés do
de São Paulo de 11. 05; 75, p. 5). lrripêrio (São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1968, Cap. VII a IX>.
148 CEZAR SALDANHA SoUZA JUNIOR 1
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 149
r
no sentido de relativo ao pensamento político dos libe � ção entre as chefias de Estado e de Governo, com a ele
rais do Império. Estes, em geral, defendiam uma estru vação da primeira a poder moderador, foi, durante o Im
turação política em que o Presidente do Conselho (nome pério, a doutrina esposada pelos políticos moderados de
que se dava a nosso primeiro-ministro), retirado do par ambos os partidos, seguidores das lições de Pimenta Bue
tido majoritário na Câmara e perante ela responsável, �o. U)lW:uai e Alves Branco 7 e que, afinal, prevaleceu
exercesse as funções de governo, com a maior autonomia na prática, sintetizando as contribuições conservadora
possível diante do Imperador. As interferências diretas (a defesa do poder do Imperador) e liberal (a defesa de
do monarca na dinâmica dos poderes, como poder mo um poder executivo ministerial responsável perante a
derador constitucional, eram mal vistas e foram feroz Câmara).
mente combatidas, sob a acusação de "poder pessoal". Esse parlamentarismo, por assim dizer "histórico",
Face a tais intervenções que, na verdade, não foram vem sendo, desde 1930, paulatinamente redescoberto.
muitas, 5 tornou-se comum negar autenticidade ao par Borges de Medeiros, em 1933, consagrou-o num projeto
lamentarismo do Império. de Constituição, de forma muito feliz. João Gamillo his
" toriou-lhe a doutrina e a prática. Afonso Arinos, antigo
No extremo oposto, os conservadores puros" ou
radicais, interpretando literalmente a Constituição de defensor do presidencialismo, nestes últimos quinze anos,
1824, eram presidencialistas, entendendo que ao Impera compreendeu-lhe o alcance e a ele também aderiu. 8
dor era lícito reinar, governar e administrar, isto é, ser Analisadas as duas visões de parlamentarismo, resta
6 curio
ao mesmo tempo chefe de Estado e de govern o. avaliar a que mais se conforma à realidade brasileira.
samente, na Constituição de 1891 triunfou a versão O conceito que as elites brasileiras faziam - e, tal
presidencialista da corrente conservadora, se bem que vez, em grande parte ainda façam - de parlamentaris
vazada em moldes republicanos: ao Presidente caberia mo corresponde à forma liberal de ver o sistema, deitando
presidir, governar e administrar. Essa organização pre suas raízes no velho partido luzia. Ele passou do Império
sidencial foi ferrenhamente preservada pela classe polí à República, onde teve em Raul Pilla O o seu mais incan
tica, herdeiros políticos dos antigos saquaremas, oriun sável batalhador. Ora, visto deste ângulo, não é de es
dos, via de regra, da mesma base social: as classes tranhar a imagem que se formou do parlamentarismo:
senhoriais rurais. sistema frágil, gerador de crises, sujeitos às instabilida
A segunda forma de conceber o parlamentarismo, des das maiorias ocasionais, formadas na Câmara, mui
que coloca como primeiro elemento do sistema a distin- tas vezes, sob a inspiração de interesses mesquinhos de
facção. De outro lado, esse sistema, onde o poder do
11DoM PEDRO II, Conselhos à Regente, Rio, Livraria São
A
José, 1958, p. 54; aliás, confirmado por JOAQUIM NABUCO. (N 7 V. JoÃo CAMILLO, Os Construtores... , pp. 157-166.
,1 BUCO, Joaquim, Um Estadista do Império, S. Paulo, 1936, v. II, · s ARINos, Afonso, e PILLA, Raul, Presidencialismo ou Par
!, p, 82) • lamentarismo, Rio, Livraria José Olympio Editora, 1958, v. Pre
;!'. É do Visconde de Itaborai, chefe conservador, a célebre
.6 fácio.
'1 máxima: "O rei reina, governa e administra" (V. JoÃo CAMILLO, 'º PILLA, Raul, Catecismo . .. , passim. Não há no trabalho
Democracia . .. , p. 89 e seg.). referência ao Poder Moderador.
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150 CEZAR SALDANHA Souza JUNIOR l A ÜRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 15t.
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chefe de Estado é inexpressivo, apagado, quase inútil, 1
1
plano suprapartidário e com atribµiç� para garantir
não pocleria ser do agrado do _grasileiro médio, IJ,cost,,� a Lei, a democracia política, o bem comum, é a possibi
mado desde os remotos tem s da forma ão nacional, a lidade que o parlamentarismo histórico. abre ao País.•
ver na chefia de Estado um. comando firme, unif�or A experiência parlamentarista que perdurou de se
e,.�e �ã�r, E_.�ter:g.al. Em suma: a�s�m .como tembro de 1961 a janeiro de 1963 não se presta para in
não tem servido, ao Brasil, um sistema pollt1co onde validar a idéia de um parlamentarismo viável ao Brasil. 11:
inexiste, na lei, o poder moderador (presidencialismo) , Em primeiro lugar, o Ato Adicional de n.o 4 orientou.ase,
também não se adapta à realidade do País um sistema pela visão liberal do sistema parlamentar, no afã de re
onde esse poder legal seja apenas decorativo (daí o fra duzir a um quase nada as atribuições do chefe de Estado
casso desse "parlamentarismo" entre nós). (o Presidente da República). Em segundo lugar, o chefe·
No entanto, encarado o parlamentarismo na pers de Estado, João Goulart, eleito para a vice-presidêriciá
em um quadro presidencialista - e, conseqüentementer
l
pectiva de poder moderador efetivo, ele se transfigura
num sistema estável de organização dos poderes políti um líder de partido -, não possuía as condições obje-
cos, pois institucionaliza um poder de arbitragem da
'11 V. o depoimento de um dos participantes
vida político-partidária e cria um órgão permanente com da elabora.:.
ção do Ato Adirional de n.0 4 (FRANCO; Afonso Arinos· de Mello,.
instrumentos efetivos para fazer possível a harmonia A Evolução ... ,
·
p. 143 e 144)..
· ·
-·
sileira por este sistema, no fundo, tem representado o Porem, , o personalismo, ou se se preferir, o culto a personalidade
anseio nacional por um poder de autoridade superior e não parece limitado nem à América Latina, nem aos paises·
defensor, que a solução parlamentarista liberal preten subdesenvolvidos. Mesmo não contando a cruel experiência do·
dia, simplesmente, anular. 1° Colocar esse poder num (
hitlerismo e do mussolinismo, a do stalinismo, do maoísi:no e
muitas outras, os povos que se poderiam julgar .os mais apega
10 JACQUES LAMBERT, analisando o "papel da personalização
dos ao governo da lei tendem a personalizar o poder sempre
que o regime o permita. São as democracias reais do tipo inglês·
do poder" na América Latina, ratifica amplamente essa nossa
que com maior habilidade se compuseram com a necessidadt!'
conclusão. Eis o que escreveu: "Povos muito evoluídos, dizem,
de. personalização do poder, derivanl:lo-.o em benefício de um
•r
podem conceber que o governo seja o da lei fundada sobre o
soberano que não detém esse poder senão simbolicamente."
consentimento da maioria; para populações analfabetas, para
índios ou mestiços, para camponeses atrasados, habituados ao (. , .. )
paternalismo de um patrão acessível, o governo é. necessar\a E, mais adiante: "Sem dúvida, na capacidade do regime·
mente o de um homem, a quem todos podem dirigir-se porque presidencialista em facilitar a personalização do poder, pode-se
J
'·
+ 1i
152 0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 153
tivas de suprapartidariedade indispensável a um poder 57. A . inexistência de poder moderador· nos Estados
moderador. Em terceiro lugar, o Presidente, que deveria Unidos
ser o primeiro a guardar fidelidade ao ordenamento po
lítico vigente e a defendê-lo de seus adversários, a ele se O vezo. de erigir as instituições políticas norte-ame
opunha e contra ele conspirava; julgando o sistema ado ricanas no ideal político brasileiro abica a uma segunda
tado um golpe contra seus plenos poderes presidenciais, objeção: o poder moderador não existe nos Estados �
4
tudo fez, desde o momento da posse, para revogá-lo e Unidos e nem por isso o regime democrático lá deixa de
para restabelecer o presidencialismo. Em quarto lugar, ser estável. Ficaria, assim, provado que a ausência do
a experiência não durou o tempo suficiente a uma apre poder moderador nada tem a ver com as dificuldades por
ciação objetiva sobre o sistema. que passa a democracia entre nós. �
Mas de tudo isso, . uma "verdade factual" parece, Não procede a objeção. Na verdade, há poder mo
hoje, evidente, em favor da capacidade do sistema par derador nos Estados Unidos: só que ele é exercido dire �
lamentar em dar soluções legais às crises políticas: não tamente pela própria comunidade, a qual, anterior ao
fora a instituição do parlamentarismo em 1961 - em Estado, tem condições econômicas, sociais, culturais e �
bora os defeitos do sistema então implantado - e cer �
políticas para fiscalizar, de baixo, os poderes instituídos.
tamente o Brasil teria sido palco, na época, de uma
Se a comunidade delegou as funções de legislar, gover �
guerra civil ou, pelo menos, de uma revolução. 12 Quando
7.1
o grupo que detinha o executivo forçou e obteve, em nar e prestar jurisdição, a órgãos· políticos que atuam
1963, a volta às condições estruturais políticas sob as
em seu nome, reservou para si a de conter os poderes
quais não teria ocorrido a posse de Goulart, estava ca nos limites da lei e arbitrar os conflitos entre o Presi
vando o fim político do Presidente e do regime de 1946. dente e o Congresso, fazendo pender a balança ora para
�
E o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, que decidiu ore um lado, ora para outro.
torno ao presidencialismo, abriu as portas ao 31 de mar No Brasil, outra é a realidade. A comunidade não
ço de 1964. tem condições para exercer suficientemente bem a fis- JJ
calização dos poderes. Assim, se a função moderadora 1.
.12 AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO, op. cit., p. 143.
também for delegada a um órgão adequado - o de
ver um defeito desse regime; essa a razão, perfeitamente legí chefia de Estado-, este há de se transformar num in� �
tima, pela qual os que consideram possível evitar a personali trumento da própria comunidade, justamente para su � �
zação do poder e julgam ser necessário fazê-lo para conservar
a democracia, não confiam no regime presidencialista. Porém, plementar ou suprir sua reduzida expressão política,
se se pensar que, quaisquer que sejam seus inconvenientes, a como fiscalizadora e controladora dos detentores do po-
-personalização do poder é uma necessidade imperiosa (no caso der, na correção de crises e abusos.
<ia América Latina), a capacidade do regime presidencialista
em satisfazer essa necessidade atribui-lhe uma superioridade
A comparação nos mostra que o presidencialismo
l
sobre o regime parlamentarista" (e, completamos nós) do poder clássico, à americana, onde a função moderadora per
,estatal decorativo. (LAMBERT, Jacques, América Latina, São manece inteiramente na comunidade, só pode mesmo
Paulo, Cia. Editora Nacional, 1971, pp. 415, 416 e 417). funcionar nos Estados em que esta tiver sido anterior
I· 414 • 11
.!
'154 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 155
ao poder e, as.sim, com forte ascendência sobre os ór executivo, legislativo e judiciário, de um poder neutro
gãos do governo. 13 capaz de harmonizá-los. 14
,Tá o parlamentarismo - porque, implica na dele A resposta a essa dificuldade requer se distinga a
gç1.ção, em maior ou menor grau, da função moderadora forma jurídica do poder moderador de seu conteúdo po
a um órgão suprapartidário de chefia de Estado - lítico. Enquanto forma jurídica, não há negar a influên
adapta-se melhor às comunidades fracas, diante da pos cia do constitucionalismo europeu, especialmente da obra
sibilidade de ação fiscalizadora supletiva ou suplemen de Benjamin Constant, na Carta de 25 de março. Sob
tar, de parte do poder moderador, frente aos que domi esse ângulo, o poder moderador aí aparece como um po
nam o governo. der arbitral, cuja função precípua é a de "velar inces
santemente sobre a manutenção da independência, equi
58. A origem exógena do poder moderador iíbrio e harmonia dos mais poderes políticos".
A reflexão anterior nos leva a discutir urna terceira No entanto, os constitucionalistas do Império não
objeção que, como já começamos a ver, não pode igual ficaram aí. Foram mais longe, construindo uma autên
mente prosperar: o poder moderador, introduzido em tica "doutrina brasileira do poder moderador", onde a
nosso direito pela Constituição de 1824, teria represen fórmula jurídica francesa veste uma solução política de
tado simples adesão, destituída de qualquer originali alcance bem mais amplo que a imaginada pelos figuri
dade, ao princípio teórico, importado da doutrina cons nistas europeus. 1-0
afíos. Ni las urnas ni la prensa - los dos controles tradiciona mação das idéias de Constant. Engana-se quem tomar a função
les de los abusos gubernamentales contra los ciudadanos - se moderadora unicamente qual se acha ela definida à primeira
vista, com toda aparência de fidelidade ao pensamento do pu
blicita francês. ( . .. ) O poder moderador do constitucionalismo
consideraban adecuados ya en el siglo pasado, y mucho menos
nencial y la complejidad de la actividad estatal." (NADER, brasileiro do Império exorbitava assim, em teoria, da função
Ralph, "Ombudsmen para los Gobiernos Estatales", in El Om meramente corregedora de poder neutro que lhe fora traçado
ahora, como no sea por otra razón que el crescimiento expo
budsman, organizada por RowAT, e já cit., p. 318 e seg.; na 1 pela concepção teórica de Constant, de que era um poder poli
mesma coletânea, Cfr. os trabalhos de REUss, Henry, Estados ticamente militante."
Unidos, p. 259, e de HABRAHAM, Henry J., La Necessidad de un
Ombudsman en los Estados Unidos, p. 306 a 313).
l E, analisando a prática do órgão, parece que o mestre
cearense começa a compreender-lhe. "A experiência do Império
156 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 157
1
O problema enfrentado pelos construtores do Brasil �· zação e as alterações políticas de que a comunidade, di
Independente pode ser assim resumido: como fazer-fun retamente, por si mesma, era incapaz. É, afinal, o que
cionar, numa comunidade de bases sociais nitidamente nos ensina o autorizado Pimenta Bueno: "O poder mo
feudais (população esparsa num imenso territórío, clãs derador ( ... ) é a suprema inspeção da nação, é o alto
patriarcais, ausência de cidades e de eleitorado indepen direito que ela tem, e que não pode exercer p<Yr si mesma,
dente etc ... ), instituições políticas democráticas libe de examinar o como os diversos poderes políticos, que
rais - entre as quais avultam a divisão de poderes e ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos.
eleições - e que pressupõem a existência de uma co ( ... ) Este poder ( ... .) incontestavelmente existe na
munidade politicamente mais evoluída, com populações nação, pois que não é possível nem por um momento
urbanas, eleitorado independente e opinião pública? 16 A supor que ela não tenha o direito de examinar e reco
outra alternativa - montar no Brasil um sistema de nhecer como funcionam os poderes que ela instituiu para
cunho absolutista, sem parlamento, nem partidos, nem o seu serviço, ou que não tenha o direito de providenciar,
liberdade política-, se mais condizente com a estrutu de retificar sua direção, de neutralizar seus abusos. Exis
ração econômica e social da época, horrorizava o espírito te, e é distinto não só do poder executivo, como de todos
modernizado dos nossos estadistas, que queriam sincera os outros; não pode ser exercido, como já indicamos,
mente um regime civilizado, como exigia a consciência pela nação em massa, precisa ser delegado" (o grifo é
democrático-liberal formada na admiração dos povos nosso). 17
mais adiantados da América do Norte e da Europa.
· Esta, a original doutrina 18 brasileira do poder mo
A solução por eles encontrada foi inserir, no seio da
derador: não simplesmente um poder arbitral, m&� um
organização dos poderes, um órgão que, como os demais
poder subs,idiário da comunidade. Ou seja: não somente
delegado pela comunidade, pudesse promover a fiscali-
um fator de equilíbrio do sistema político, mas uma ver
16 JOÃO CAMILLO, Interpretação... , ps. 30-31 e 32. dadeira delegação nacional que, envolta em neutralidade
partidária, supre, dentro da lei, as deficiências de um
porém foi surpreendente em mostrar como o instrumento jurí eleitorado ainda muito fraco em força política, na me
t
;1 dico-constitucional, posto que escorado nas vigas de uma con dida dessa fraqueza e enquanto as condições econômicas,
cepção do poder que em muitos pontos traspassava formal
1
mente os artigos da doutrina liberal, logrou todavia acolher sociais e mesmo políticas não lhe permitam uma atua
com flexibilidade usos políticos, que acabaram configurando ção mais efetiva.
um novo direito constitucional de assentamento costumeiro,
bastante apartado da rigidez do texto formal, e a cuja sombra,
por exemplo, prosperavam com desenvoltura o bipartidarismo 17 PIMENTA BUENO, op. cit., ps. 204-205. V. a definição do
político do Império (liberais e conservadores), à forma sui Visconde do Uruguai, nota supra n.0 2, p. 130.
generis de governo parlamentar e enfim o funcionamento 1 s Escreveu PONTES DE MIRANDA que o Poder Moderador
mesmo do Poder Moderador, no Segundo Reinado, com perfil "constitui, doutrinariamente, inovação memorável na história
autônomo." (BoNAVIDES, Paulo, Reflexões Políticas e Direito,
constitucional do Brasil" e que os estadistas do Império tinham
Fortaleza, Imprensa Universitária da Universidade Federal do
Ceará, 1973, p. 230-233). plena consciência da originalidade. (Op. cit., tomo I, p. 272).
158 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE, DA DEMOCRACIA NO BRASIL 1 59
1
brasileira de 1934, sorrimos das críticas que entusiastas e co
19 os comentadores da Constituição de 1891 e nossos cons
mentadores superficiais da Constituição de 1891 acerbamente
tituciomdistas posteriores, em geral, vêem no poder moderador faziam à Constituição monárquica" (op. cit., t. I, p. 271).
"excrescência constitucional", "enxertia absolutista", idéia in
teiramente antidemocrática ..." (FRANCO, Afonso Arinos de ),
de autoridade", não pode ser omitido numa revisão que se faça
Mello, curso de Direito Constitucional Brasileiro, Rio, Forense,
a uma nova classificação dos poderes políticos. Não é outra a
1960, p. 94; BONAVIDES, Paulo, A crise ... , p. 25; SALDANHA,
conclusão de um belo estudo, atualíssimo, sobre a matéria:
'I Nelson Nogueira, História das Idéias Políticas no Brasil, Recife, "Para anticipar conclusiones, diré que la citada trilogia (poder
Universidade Federal de Pernambuco, 1963, p. 111). executivo, legislativo e judiciário) debe ser al menos sustituida
20 o poder moderador nada mais é que o órgí'io da chefia por una serie quinaria más adecuada para describir la realidad
de Estado separado de órgão governamental. Autêntico "poder de nuestro tiempo. Buscando también conjuntar la designación
160 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 161
Em segundo lugar, a atuação do poder moderador Segunda Guerra, respectivamente, só a presença da Co
só s e justifica, na doutrina brasileira, dentro dos lindes roa ou do Presidente, estremando os órgãos nacionais do
do princípio da subsidiariedade, que iluminá a doutrina domínio partidário, já faz com que tudo funcione nor
política democrática. Segundo ele, cumpre ao · poder malmente, na conformidade das regras do jogo político
moderador intervir na fiscalização e na limitação dos democrático. Portanto, em uma comunidade politica
órgãos políticos, quando a comunidade não puder de mente forte, que efetivamente influa no processo político,
sempenhar, por si mesma e pel, os canais a seu alcance, a função do chefe de Estado reduz-se a um mínimo
essas funções. O poder moderador existe não para aba- quase invisível de atuação, eis que basta a separação das
far a comunidade, mas - como delegação deia - para chefias de Estado e de Governo - com a conseqüente
'\. J suprir suas eventuais deficiências no exercício do con-
neutralização partidária dos órgãos máximos do Estado
� trole democrático dos governos.
- para que a paz política esteja garantida. 22
t ó)
Destarte, compreende-se a flexibilidade que pode
assumir, ria prática, o sistema parlamentar de poder mo-
Em suma: o poder moderador não fere a democra
�'tt
cia política. A questão da extensão maior ou menor de
? derador explícito, numa democracia política. Em uma
J �
�•
no segundo reinado, onde o Imperador agia decidida-
do chefe de governo, mesmo nos países de comunidade evoluída,
não faz nada (seria uma peça meramente decorativa), citan
mente contra os abusos dos políticos, :p.o combate às
q, '
�.
do-se normalmente como . exemplo o monarca inglês.
f.Qligarquias e à utilização do poder para satisfacão de Em primeiro lugar, se se diz hoje que a Rainha "não faz
: ... � f). interesses menos digno§. Porém, à medida que a comu-
.
nada", foi porque já fez: na Inglaterra vitoriana, ao contrário
' munidade cresce em força política, tendem a diminuir, do que pensavam nossos velhos liberais, a Rainha influía na
� �l. progressivamente, as exigências de intervenção ost�ns�
direção do Estado. Um tratadista moderno, Sir W. Ivor Jen
r
lamentarismo vigorante no segundo reinado: o Impe � 1..
A crítica liberal mais radical, primeiro, considerava <S
rador indicava alguém, conservador ou liberal, para esse funcionamento do sistema um mal, por desfigurar
r
o próprio parlamentarismo. E, segundo, atribuía a culpa ,- ·
vemo. ( . .. ) E, embora seja um poder m ais potencial do que
real, está longe de ter sido menosprez ado pelos Governos, 2s O discurso do Senador é, no fundamenta l, o seguinte:
quaisquer que fossem as suas orienta ções doutrinárias e seus "Ora, dizei-me: não é uma f arsa? Não é isso um verdadeiro
programas políticos e administr ativos". (LIMA, A. A. de Oli absolutismo, no est ado em que se a cham as eleições em nos so
veir a, op. cit., p. 207) . País? Vede esse sorites fatal, esse sorites que acaba com a
E, enfim, se diz que a Rainha "não faz nada", mas, na existência do sistema representativo: - o poder moderador
prática, f az: já vimos os benefícios decorrentes d a separ a ção pode chamar a quem quiser p a ra organizar Ministérios ; esta
entre chefia de Estado e chefia de governo. Porém, não é só: pessoa faz a eleição, porque há de f azê-Ia, esta eleição faz a
"O Mona rca inglês t ambém tem oc asião, se quiser, e o tem maioria. Eis a í está o sistem a representativo do nos so País".
feito de ser av ali ador de medidas e polític as governamentais e (NABUCO, Joaquim, op. cit., V. II, p. 81).
pode remeter questões, requerer respostas e tentar intervir no 2-1 TORRES, J. C- DE o., Democracia, p. 97. "Não havendo
processo governamental. O Monarc a é normalmente informado opinião pública org aniz ada, nem meios de penetração ideoló
t
de todas as questões discutidas no Gabinete. Diariamente, re
cebe um informe sintético das principais ocorrências governa
gica em gr andes m assas do nosso povo, nem condições mate-
riais e espirituais p ara eleições livres - D. Pedro II, usando
1
mentais e pa rl amentares, sobretudo, no que se relaciona com de sua função de Poder Moderador, de fiel de bal ança, subs ti-
a política extern a. Conforme lembra IvoR JENNINGs: "The tuía-se ao povo e d ava vitóri a à oposição. Is to sem contar com
Queen is better informed than the average Cabinet ministers as vitórias efetivas da oposição nascida das condições f avorá-
"'iTJ i
on rnatters which are brought before the Cabinet. ln some veis ao sis tema , que nos últimos anos do reinado de D. Pedro II - _. _
funcionava a contento, se compar a rmos com o que se fazia, �
1J::JJ
respects, notably on foreign affairs and on matters dealing
ais países . E, principalmente, com o qu
,
with the Commonwealth, she may be better informed than
the Prime Minister. (Idem, idem, p. 208). ;i:�:º·a:;:i��:11
ç
r--
1
11
r
Velha - a instalação no poder, ao nível federal e esta- tica e, ainda, para a evolução das conquistas sociais e elevação
dual, de oligarquias políticas conservantistas que só das populações marginalizadas. Mas aí faltou a Assrs BRASIL o
que, talvez, não poderia saber no século passado: o conheci
revolucionariamente puderam ser desalojadas. 25 Em mento prático do que significa, para a democracia o mono
+
partidarismo. Assim, ele responde a sua questão:
�
25 vamos agora transcrever um trecho, praticamente des "O governo presidencial resolve melhor do que o parla
)..- conhecido, de Assrn BRASIL, onde o político gaúcho revela toda mentar o conflito dos partidos. Nem é maior nele do que no
a estatura de verdadeiro precursor da ciência política entre SE_:U rival a probabilidade de revoluções inspiradas pela ambi
, çao do mundo. As monarquias parlamentares as. têm tido em
nos:
número e qualidade tais, que nenhuma dúvida deixam dobre
"Teoricamente, não há dúvida quanto ao critério que deve 1 o caso. Quanto ao mal da longa residência de um partido no
determinar a subida de um partido ao poder e a retirada do
poder é menos importante do que parece. O que é mais neces
que o estava ocupando: tal mudança deve dar-se quando a
sário é que os mesmos homens se não eternizem."· (Assis BRAsrL,
maioria da nação quiser. Não há infelizmente meio infalível
op. cit., pp. 332-333, e pp. 337-338.)
de avaliar a vontade da maioria da nação; mas as duas dou
trinas representativas, a parlamentar e presidencial, estão de Pudesse ele prever as conseqüências econômicas e sociais
do controle do governo e do Estado por um partido único de
acordo em que só ela pode determinar legitimamente a rotação
base senhorial rural, teria prognosticado e, quem sabe, até des
dos partidos. Entretanto, os meios de realizar esse pensamento
crito, com antecipação, o fenômeno da "Política dos Governa
pelos dois sistemas políticos são bem diversos: no parlamentar,
dores" e do "Coronelismo", que caracterizou toda a República
a despedida de um partido e a chamada de outro são pronun
Velha, e que só veio a receber o devido tratamento científico
ciadas pelo chefe do Estado; no presidencial, pelo próprio povo,
n� década de 1940, principalmente com a obra clássica, já
falando nas urnas."
citada, de NUNES LEAL. Abolido um órião superior que, alternan-
E continua: "Admitindo que a opinião pública seja vigo- � os partidos, dava chance a que a oposição liberal, d�aco�
rosa, independente e livre, não há superioridade de um sobre eleitorado �ois fund �da nas nossas ralas classes médias urba-
o outro desses métodos de solver o conflito dos partidos: o nas de entao, tambem compartilhasse, pela metade do tempo, \ �
chefe de Estado parlamentar não há de decretar a mutação o poder, um partido único, de base social rural, aboletou-se no
sem que o partido que está governando tenha sido derrotado governo e no Estado, e só revolucionariamente pôde ser afas
pela · opinião e, pois, a substância da coisa será idêntica ao t�do. (V. a análise de JoÃo CAMILLO, em Estratificação . . . , op.
que se dá no presidencialismo. Mas, se a opinião for débil e c1t., passim.) . . · .
166 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 167
ções constitucionais do poder moderador, mas, antes, as naturalmente na evolução do processo político iniciado
no século XVI? 29
condições sócio-econômicas da sociedade brasileira, as
quais ainda não haviam propiciado o surgimento de co Em resposta a essa objeção, tentaremos mostrar que
municações mais fáceis, de populações urbanas e de um o poder moderador da Constituição de 1824 foi uma
mínimo de industrialização, sem o que nãõ· se podia forma de constitucionalização do poder estatal preexis
formar um eleitorado independente. E, então, o poder tente formador do Brasil; um poder político-social, emer
moderador se substituía a um eleitorado inexistente. 26 gente do mundo dos fatos, que foi transformado em
instituto jurídico-constitucional.
Em resumo: ao poder moderador não cabe a res
Já acentuamos neste trabalho o primado do poder
ponsabilidade pelo artificialismo de nossas instituições
na formação da sociedade política brasileira. No princí
democráticas. 27 Este decorre basicamente da precedência pio houve o poder. E o poder formou o Brasil: territorial,
havida entre nós, do Estado ao povo, do Parlamento e populacional e politicamente.
dos partidos ao eleitorado, da federação aos Estados
Ora, a genialidade do constituinte de 1824 residiu
-membros, das escolas superiores à alfabetização e das
em ter reconhecido a realidade sócio-política desse poder
últimas novidades político-ideológicas a uma evolução preexistente formador. Mais: em ter intuído que sua
sócio-econômica correspondente. 28 Pelo contrário, ten missão política não tinha terminado, poi.s havia muito
tando interpretar e expressar a vontade inarticulada da por fazer: a consolidação da unidade nacional, a defesa
comunidade, de uma posição superior e independente da ordem e da liberdade, e a guarda da integridade terri
relativamente aos interesses conflitantes, o poder mode torial. Enfim: em ter lhe dado uma forma jurídica de
rador tornou possível a subsistência das instituições de expressão, colocando-o na Lei Maior acima dos demais
mocráticas formais, apesar de as condições sociais e eco poderes políticos, com a nomen juris de poder moderador.
1:
1' nômicas lhes terem sido adversas. A legalização do poder estatal preexistente forma
dor obedeceu, a nosso ver, a duas exigências: uma de
61. O fundamento histórico do poder moderador "autoridade", proporcionando ao chefe de Estado a
Mas o poder moderador, enquanto órgão político, faculdade de intervir no processo político; e outra de
teria sido uma criação cerebrina, sem raízes na história "liberdade", ao limitar essa intervenção aos casos, ccm
do Brasil? Simples invenção da int,eligência ou se insere dições e critérios estabelecidos na Carta Imperial.
As constituições republicanas ignoraram, solene
20 LIRA, Heitor, História de D. Pedro II, São Paulo, 1939, mente, o poder estatal preexistente formador. Isso não
'!. 2, 521 s. impediu que, revolucionariamente, volta e meia, ele con
27 LI:MA, Hermes, "Urn Perfil de D. Pedro II", in Carta tinuasse a se manifestar; mas, infelizmente, foi o bas-
Mensal, abril/76, n.0 253, ps. 48 e segs.
29 Já alguém escreveu, há quase 20 anos: "o Poder Mode
2s Cfr. Capítulo sobre a "Contradição entre as ideologias
políticas adiantadas e as estruturas sociais atrasadas", LAM rador em uma instituição muito mais livresca do que histórica"
BERT, Jacques, op. cit., p. 153. (FRANCO, Afonso Arinos de Mello, Curso, p. 94) .
168 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 169
''
tante para livrá-lo dos liames racionais da norma jurí 62. Poder moderador e monarquia
dica, ao capricho dos fastos revolucionários. Resultado:
Os monarquistas costumam fazer uma objeção à
continuou a ser utilizado pelos detentores do poder, mas
tese central deste trabalho: o poder moderador só seria
revolucionariamente, o que quer dizer, sem as limitações
realizável numa monarquia. Isto é, só um chefe de
do direito.
Estado hereditário e vitalício reuniria as condições de
Vamos nos permitir uma imagem. A normação pos neutralidade partidária indispensável a um verdadeiro
terior a 1889 destruiu o corpo jurídico-constitucional do
· poder moderador. Este seria, pois, inconciliável com o
poder moderador. Mas não conseguiu matar-lhe a alma,
princípio da eletividade de chefe de Estado, que define a
mi seja, o poder preexistente formador em sua nua e
forma republicana, porquanto toda eleição partidariza
crua expressão político-social. Desde então, este poder
ria seu titular.
sócio-político, desencarnado da Lei, passou a vagar nos
domínios extrajurídicos da atividade política. De quando Trata-se de_ um argumento em prol da monarquia:
em vez, passou a ser invocado, revolucionariamente, somente a monarquia poderia criar um centro estável de
pelas Forças Armadas, para intervenções saneadoras poder, superior aos entrechoques eleitorais e desligado
dos desvios de nosso processo político. 30 E, a 13 de de do domínio partidário, agindo como fiador da síntese
zembro de 1968, ele se encarnou, também revoluciona entre a democracia política e os avanços sociais, entre
riamente, no Ato Institucional de n.0 5. a tradição ocidental e as reformas da sociedade exigida
O Ato Institucional de n.º 5 - frise-se bem __;. não pelo progresso. E envolve uma crítica à república, que
é poder moderador. Falta-lhe, para tanto, o corpo jurí seria incapaz de neutralizar partidariamente o centro
dico-constitucional adequado, destruído em 1891. Este do poder, com as conseqüências negativas daí advindas.
Ato, na verdade, consiste num instrumento revolucioná Curiosamente, alguns republicanos extremamente
rio, que incorpora o substrato sociológico do poder pre apegados ao modelo presidencialista da tripartição dos
existente formador. Não é o poder moderador repetimos. poderes, inimigos do poder moderador, no afã de com�
Mais parece - perdoem-me o símile - a sua "alma bater a idéia de um poder moderador na república, não
penada". se constrangem em apelar para o argumento monár
quico. Realmente - dizem eles - os monarquistas têm
30 Parece dever-se a EUGÊNIO GUDIN a vulgarização da
razão: · o poder moderador só pode existir numa monar
idéia de que, na República, as Forças Armadas passaram a
exercer de fato o poder moderador que, no Império, o Impera quia. E, como nos é impraticável voltar à monarquia -
dor exercia de direito. Essa conclusão, de alguma forma, é todos queremos preservar a república -, não há porque
aceita hoje com bastante generalidade. Foi a razão pela qual pensar em estabelecer no Brasil um poder moderador. 31
AI.FRED STEPAN escolheu a palavra "moderador" para o seu
padrão de relações entre civis e militares de 1945 a 1964 (Cfr.,
STEPAN, Alfred, op. cit., p. 52). Ao analisar a presença militar 31 Cfr. Assis BRASIL, op. cit., p. 132-133, onde se lê essa
na política, LAMBERT usa da expressão "poder moderador" (LAM afirmativa: "Uma república, pois, nunca será verdadeiramente
r
BERT, Jacques, op. cit., p. 301). parlamentar" (p. 132).
414 - 12
r
1
170 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 171
Essa pretendida incompatibilidade entre república -, ou por um outro colégio eleitoral não muito nume
e poder moderador, cunhada pelos monarquistas, não ; roso, distinto dos três poderes políticos e constituído
pode ser invocada, por republicanos, contra o poder mo
f
i
légio das monarquias.
Com efeito, fora dos radicalismos monárquico e pre 63. A fiscalização do poder moderador
sidencialista, nada obsta a que também as repúblicas
façam da chefia de Estado um poder moderador, com Não há como esconder que o poder moderador -
atribuições mais ou menos extensas, conforme requei gão a ser dirigido por seres humanos - esteja também
ram o estágio evolutivo da sociedade e os compromissos jeito a falhas, erros e abusos. Então, para prevenir tais
do consenso. Isso não é difícil, como demonstra a expe situações passíveis de ocorrer também com tão elevado
riência atual da maioria das repúblicas parlamentares, poder, não seria o caso. de deixar a estruturação política·
desde que se adote unia fórmula de preenchi,metito do nos termos em que tem. sido p:i:evista em nossas consti·
cargo que o liberte, o mais possível, de partidarismos pre . tuições republicanas, com os três poderes políticos num
cmiéebidos. 33 mesmo plano de igualdade e independência? 34
· · Comó já indicamos no capítulo anterior, a eleição U:i;na reflexão sobre o importante problema da fisca-
dita "direta", por todo o eleitorado, nos parece a menos lizaçJ�o e do controle do poder político vai nos ajudar
indicada, pois favorece, demasiadamente, a identificação no deslinde dess.a dificuldade. Trata-se de um aspecto
dos candidatos com os partidos que os apóiam. O mesmo da ,problemática que envolve a célebre questão de "quem
já não se pode dizer da eleição pelo órgão da representa guarda o guarda". 35 De fato, existe uma área superior
ção política - desde que exigido um "quorum" qualifi
34 É o argumento de BARBALHo: "Mas tal criaç§,o (do
cado de votos (maioria absoluta ou 2/3 de votos da Casa) poder moderador) era uma concepção que acusava dificuldade
do problema da constituição orgânica dos poderes divisos e
32 "Realmente o argumento provaria demais. Seria reco contrapostos; mas não o resolvia e em nada aproveitava, desde
nhecer a incompatibilidade da república com os mais perfeitos que esse fis13al dos outros poderes ficava sem fiscalização. Quis
mecanismos democráticos... Concluiríamos (com esse argu custodiet custodem? (BARBALHO, João, Constituição Federal
mento) que a democracia é característica das monarquias e não Brasileira (Comentários), Rio, Briguiet Editores, 1924, 2.ª ed.,
das repúblicas". (PILLA, RAUL, Catecismo . . . , p. 54). p. 15). Aliás, está em BARBALHO a denominação do poder mode
33 MINON, Miguel Herrero de, admite - suas pesquisas a rador como "excrescência" (op. cit.).
revelaram - a possibilidade prática da eleição do chefe de s5 A proverbial indagação está nas Sátiras de Juvenal
Poder Moderador (op. cit., p. 139 e ss.). trc� (Lipson, Leslie, op. cit., p. 109).
. ��k)(Jv 1 1�k���l�-
0��0��������-�
"""'""'°' :.o-, lAJJvt,�o,, �"iJ\,n)), t".Lo .,Ju,k du_ if_,;.:J-��
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL i73
172 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
de ação dos órgãos políticos mais altos que se revela, na moderador, órgão, ademais, sem atribuições político
prática, insuscetível de controle efetivo. Quem fiscaliza -partidárias de governo, propicia, por ser um só o órgão-
o fiscal? Se criarmos, para essa tarefa, um fiscal supe -chave, o estabelecimento de um sistema mais eficiente
rior, quem fiscalizará o fiscal do fiscal? de cautelas que visem, por via indireta, condicionar sua
atuação sempre para o bem comum. 36
Nesse ponto parece residir a contingência de todas o presidencialismo, de poderes tripartidos, onde o
as formas de organização dos poderes. Por mais aperfei chefe de Estado é, na prática, irresponsável ( o im
çoada e cuidadosa que ela pretenda ser, haverá sempre peachment não funciona), 37 estende essa irresponsabi
um "ponto cego" infiscalizável e incontrolável, mesmo lidade às atividades político-partidárias de chefia de go
quando se tratar de comunidade forte e consciente de �. verno, que também estão afetas àquele mesmo e único
seus direitos face ao Estado. Talvez aqui se encontre órgão. Já no parlamentarismo que sugerimos, a irres
a prova mais cabal da imperfeição das sociedades huma ponsabilidade prática do chefe de Estado terá conse
nas no campo do político e que radica, afinal, na imper- qüências menos negativas: não alcançará a chefia de
feição do próprio homem: não existe forma de governo governo, entregue a órgão distinto e, hierarquicamente,
cptrfeita, pois é materialmente
. .impossível criar um sis inferior.
v tema absolutamente llvre de crises, de abusos e de con
?· 1
--J· 1�
�,flitos. Por melhor estruturada que seja a organização 64. A missão do poder moderador
política, sempre haverá um campo onde a vontade dos
dirigentes prevalece livre dos mecanismos de controle, Os historiadores, em geral, reconhecem a obra civi
lizatória realizada pelo poder moderador durante o Im
à para o bem ou para o mal. A missão dos modeladores de
"' ·"· � instituições políticas, assim, não consiste em buscar uma pério, no caso, sob a forma monárquica. Fez a unidade
1 � forma de governo perfeita, mas a. menos imperfeita, ou nacional 3s - o mais consagrado dos seus títulos -,
tomou possível o funcionamento de instituições liberais
� seja, aquela que, reduzindo ao mínimo possível a esfera
l:l,
:,.,_. numa sociedade praticamente feudal e proporcionou à
de conduta política irresponsável, possa, ainda, oondi- comunidade um clima de ordem, segurança e paz .
,.,
� · cioná-la ao bem comum, através da previsão de cautelas Mas hoje restaria, ainda, algo por fazer, ou sua
e de conciições adequadas. missão se esgotou com o fim do Império? 39
�" Cumpre, então, questionar sobre o que é menos im-
1 3o "As atribuições do poder moderador são de natureza
.� � perfeito: três poderes políticos na prática irresponsáveis, tal que um abuso, quando se quisesse admitir que abuso pu
face à ausência de um poder superior de controle e fis desse ser cometido, não seria tão fatal aos interesses nacio
- calização (e, mais, situados, como já se analisou, em po- nais ... (RODRIGUES, José Carlos, Constituição Política do lmpé
sição geradora de conflitos aos quais não se dá solução rzo ·ão Brasil Rio, Editores Laemmert, 1863, p. 69).
:i·/ v. a' notável monografia de BROSSARD, Paulo, O lm
� legal)? Ou reduzir essa irresponsabilidade prática do pedc'hment, Porto Alegre, Livraria do Globo, 1965, passim.
poder supremo apenas ao órgão da chefia de Estado? · 38 JAGUARIBE, Hélio, Desarrollo Económico y Desarrollo Po
Nesse quadro, parece menos ruim a última forma: líticb, Buenos Aires, EUDEBA, p. 149. (1973, 4.ª ed.).
39 Idem, ibidem, p. cit.
além de restringir a área da irresponsabilidade ao poder
174 CEZAR SALDANHA SOUZA. JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 175
Temos razões para crer que, ao poder moderador, experiência diária, assistimos ao desvio de parcela pon
mesmo fora dos quadros clássicos da monarquia, in derável da inteligência e dos esforços da comunidade
cumbe um papel insubstituível no atual momento histó para os problemas políticos institucionais, que já deviam
rico: o de presidir a uma evolução política, econômica ter sido resolvidos há muito tempo. O equacionamento
e social do Brasil, que pretenda manter-se fiel a nossa dessas questões básicas da nossa organização política
vocação ocidental fundada nos valores permanentes do permitiria que concentrássemos, na batalha pelo desen
p.umanismo personalista cristão. volvimento, todas as energias e todo o tempo hoje útili
Assim, no plano político, como se viu nesse trabalho, zados - ou desperdiçados - nos combates, lutas e
o poder moderador p(?de contribuir, e muito; na cada discussões decorrentes desses desajustes·de
· · ordem mera-
vez mais urgente tarefa de construção de uma democra mente instrumental.
cia política de bases mais estáveis. 4º Neutralizando par No plano da justiça, especialmente a social, não
tidariamente o poder supremo garantidor da ordem, da será menor a importância do poder moderador. As refor
liberdade e da segurança, possibilita que o poder de go mas sociais e econômicas tornam-se muito tumultuadas
verno seja conquistado pela oposição ou pelo partido quando, num mesmo órgão, misturam-se os objetivos de
que ganhar as eleições parlamentares, sem quebra da governo e os objetivos de Estado. Isso porque fica mais
continuidade do regime democrático. Se isso se conse fácil, quer aos inimigos das reformas, como aos inimigos
guiu no segundo reinado, hoje não será tão difícil: do regime democrático, semear a confusão entre o
apesar das conhecidas deficiências, já há um eleitorado status quo econômico�social (matéria de governo) e o
e os partidos já encontram pontos de apoio na sociedade. conjunto dos valores básicos da democracia (matéria de
No plano do processo de desenvolvimento, o poder Estado) : os primeiros, para impedir as reformas em
moderador atende à necessidade de uma certa continui nome da democracia; e os outros, para destruir a demo
dade na condução de sua estratégia, minimizando a cracia em nome das reformas. O poder moderador, sig
tendência dos governos em anular a política dos ante nificando a separação da chefia de Estado, partidaria
riores para começarem outra, que, por sua vez, há de mente imparcializada, da chefia de governo, faz bem
ser renegada pelos posteriores. Por outro lado, como ex mais tranqüilo o encaminhamento das reformas econô
pressão nacional suprapartidária, opera como um cana micas e sociais, pois o regime democrático dificilmente
lizador das energias da comunidade para a realização será envolvido e entrará em questão. 41 Explicando me
das metas fundamentais a serem alcançadas. Em nossa lhor: as alterações do status quo econômico e social hão
de variar conforme a evolução da realidade e da opinião
político-partidária e serão questões afetas ao governo e
10 Propõe JAGUARIBE: "O regime (atual do Brasil) necessita aos partidos que o apóiam ou que lhe movem oposição;
assumir sua realidade, durante e para os fins do período de já a preservação dos valores fundamentais do convívio
transição, regulando o Poder Moderador, eventualmente sob a
forma de um Conselho de Estado, e dispondo sobre suas atri 41 "Aliás, é preciso que se saiba que homens se pegam,
I
buições". (JAGUARIBE, Hélio, Brasil, Crise e Alternativas, Rio, de preferência, por palavras. Uma reforma profunda, mas obje
Zahar, 1974, p. 111.) tiva, resolvendo problemas concretos, deixando de pé as estru-
176 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
possível um governo estável. Qbipartidarismo automa esta belece um mecanismo endopartidário espontâneo de
ticamente gera uma., maioria :e,arlamentar apta a su_.§ contenção dos radica lismos. Com efeito, gs exaltados
tenta r um governo e, ao mesmo tem�o, unifica a opo- de ambos os lados serão, ainda que indiretamente, po:.
. sição, o;portunizando-lhe_], tõníãda do poder guango liciados por suas alas mais moderadas,_o que favorece
.ocorrer a primeira guinada eleitoral. De qualquer modo, bastante a harmonia e a modera ção políticas, indispen
o partido que ganhe as eleições terá ma ioria pa ra go sáveis à plenitude da democracia instrumental.
vernar, ,independentemente de foncessôes a interesses) Já o presidencia lismo, a o contrário do parlamenta
fü'íenores) que podem se impor nas coligações e nas rismo, só poderá funcionar, sem maiores problemas,
alianç as. O multipa rtidarismo, em 'virtude das iµmita onde inexistirem partidos políticos, ou onde eles forem
das combinações que admite, torna imprevisível a com demasiadamente fra cos em virtude da sua exagerada
posição de um governo e instável a sua permanênc.ia no multiplica ção, ou ainda onde forem meras máquinas de
poder. 3 Não nos esqueçamos que, no Brasil, o atua l conquista do poder, sem qualquer conotação ideológica ,
bipartidarismo não surgiu de teorias a bstratas, más de ou enfim onde - pelo menos na prática - imperar um
uma necessidade pr:ática: oferecer ao Presidente Castello partido único. 4 É que a existência de partidos políj;icos
Branco maiorià estável no Congresso, com a qual pu de massa , organizados e fortes, máxime quando em
desse governar, já que a multiplicidade dos partidos não número de dois, agrava ao paroxismo as contradições
favorecia a aprovação, pelo órgão legislativo, de seu latentes na cumulação, no mesmo órgão, das chefias de
plano de soerguimento econômico do país. E a mesma Estado e de governo, c omo já estudamos na terceira
necessidade que, a título provisório, exigiu o bipartida pa rte, secção primeira. Não deve, pois, causar espécie
rismo em 1965 preservou-o até hoje. o fato de os velhos teóricos do presidencia lismo entre
Além dessa v antagem, o bipartidarismo apresenta , nós revelarem-se ferozes inimigos dos partidos políticos,
em confronto com o multipartidarismo, m ais duas, de instituições que julgavam próprias do parla mentarismo
alguma forma encontráveis na espécie que estamos ex monárquico. 5
perimentando no Brasil há pouco mais de dez anos. Em
4 Sobre a dificuldade de um sistema de partidos ideológi
primeiro lugar, o dualismo permite ao eleitorado alterar
cos, ou bipartidário, no presidencialismo, ver João Camillo
ele mesmo as situações políticas, votando na oposição. Harmonia Política ..., pp. 250-251.
.Na multiplicidade partidária, onde houver quatro, cinco 5 Além de Assis BRASIL, que mesmo assim não via mal
ou ma is forças, .� forma ção do gabinete não decorrerá. nenhum no predomínio de um só partido no poder por muito
..diretamente do voto. popular, mas dependerá de um ·tempo, todos os demais teóricos do presidencialismo eram aves
sos aos partidos políticos, como, por exemplo, os positivistas
.acordo inter;eartidário posterior ao plei�, onde o.s pe Carlos Peixoto Filho e João Pinheiro. (ASSIS BRASIL, op. cit.,
quenos pa rtidos - com as suas conveniências - terão
p. cit.; TORRES, J. e. o., Presidencialismo, p. 220 e 221; Idem.
enorme poder de barganha. Em segq.ndo lugar, numa Formação do Federalismo no Brasil, São Paulo, Cia. Editora Na
época de marcado tono ideológico, o bipartida rismo cional, 1961, p. 223 e 224; DUARTE, Manoel, Carlos Peixoto e seu
Presidencialismo, Rio, Tip. do Jornal do Comércio, 1918,
s Idem, idem, ps. 125 e 127. p. 26 a 39).
180 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 181
E essa é uma das contradições do sistema político Ora, não houve em nosso passado rupturas ou
brasileiro vigente: a combinação entre um bipartidaris condições especiais que determinassem o surgimento de
mo rígido e o presidencialismo. Isso mostra que, em partidos "históricos" (p. ex., de católicos, de protestan
matéria de organização política, somos muito pouco tes, de separatistas etc . .. ), que permanecessem no
conseqüentes. Na verdade, ou optamos pelo presidencia tempo pela tradição, fazendo impossível a assimilação
lismo mesmo e, então, rejeitamos o modelo da "demo das correntes políticas em duas organizações partidárias
cracia pelos partidos" - do qual o bipartidarismo predominantes. A história do Brasil, desde o Império,
rígido é a espécie a mais radical - ou, se realmente demonstra existir, também entre nós, essa tendência
optamos pelo bipartidarismo, tenhamos a corage� de natural, observada pelo mestre francês, 8 ao dualismo,
adotar o sistema parlamentar. Na verdade, a conv1ven A
ou seja, de agruparem-se as forças políticas em duas
cia hoje entre o bipartidarismo e o presidencialismo só frentes: a dos que defendem e a dos que combatem o
se mantém porque o Presidente da República - en governo. Os exemplos são muitos: conservadores X li
quanto chefe de uma revolução - está armado de berais, no Império; PSD X UDN, no Brasil em geral,
poderes supremos de arbitragem, o que, em certo sen após 1946; republicanos X federalistas e, mais tarde,
tido, instituiu, camufladamente, um "parlamentarismo.
PTB X PSD, no Rio Grande do Sul.
de fato".
Nossas estruturas sócio-econômicas, igualmente, não
o que torna o bipartidarismo entre nós antipático são daquelas que tendam a desaguar no multipartidaris
e assim resistente a uma aceitação mais ampla e gene mo. No Brasil, até 1930, tivemos basicamente duas
ralizad�, são os critérios legais rígidos da Constituição forças sociais: as classes senhoriais rurais (normalmen
e da Lei Orgânica dos Partidos, destinados a conter, de te a base social do partido conservador do Império) e as
cima para baixo, a proliferação partidária. 6 Essa rigi classes médias urbanas (base social do partido liberal).
dez legal é que precisa ser, pelo menos, sensivelmente Era o censo, relativamente elevado da Constituição de
atenuada. Mas aí se põe, realmente, a questão: pode _1]24, que equilibrava o eleitorado em favor dos liberai.a. 9
mos ter bipartidarismo sem uma quase compulsoriedade os guais, com o açlvento do sufrági<Luniversal e a aoo
legal da cúpula para as bases? liçã.o do wçle:r- !llOd�rador, fo�m,. duqtp.te _ � �pú�a
Duverger vê quatro grupos de fatores a condicionar, V..elha, literalII1ente esmagados pela máqui�itoJJ!:_l
numa sociedade política, o aparecimento de um biparti .do coronelisrn,,2,i. estabelecendo-se, assim, o domíni9J>J>.=
--====="""'=��-==-- �- -"-..-- -""- ,�-..�·
darismo - diríamos nós - espontâneo, ou de baixo
pàra' cima: fatores históricos peculiares a cada socie s Idem, idem, p. 250.
dade, sócio-econômicos, ideológicos e técnicos. 7 o o fato de a Constituição do Império exigir do eleitor uma
determinada renda anual para que fosse eleitor, beneficiava
, ' ll , Entre eles coloco as condições para a criação de novos o partido liberal. Este, cuja base social era, em princípio, as
partidos, o instituto da fidelidade partidária, o voto vinculado. classes médias urbanas, podia equilibrar-se com o partido con
servador, que, forte nas áreas rurais, a maior parte de seus
'1 DuVERGER, Maurice, os Partidos Políticos, Rio, Zahar,
possíveis eleitores não alcançava o censo constitucional (NUNES
1970, p. 239-240. LEAL, op. cit. passim) .
182 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 183
�jca das classes senhoriais. De 1930 para cá, os fatores �e para princípios abstratos de doutrin� Temos já,
sócio-econômicos parecem, também, desenhar dois cam até aqui, mais da metade do necessário a um bipartida
pos políticos: um campo mais "conservador", de base rismo espontâneo ...
rural, com apoio nos estamentos economicamente mais Restam os fatores técnico-político, também impor
bem situados da sociedade, e outro campo de cunho tante no condicionamento do bipartidarismo ou do mul
"trabalhista", fundado no eleitorado urbano, entre o tipartidarismo, e estudados carinhosamente por Duver
operariado e a baixa classe média. ger: os sistemas eleitorais. Veremos a seguir como uma
Quanto aos fatores ideoiógicos, cumpre lembrar um simples reforma eleitoral pode conduzir o nosso sistema
dos traços mais típicos do caráter brasileiro e que Fer partidário a um bipartidarismo natural, espontâneo e
nando Carneiro chamava de "falta de convicção". 10 É flexível, sem se precisar recorrer a uma legislação rígida
esta falta de coerência do brasileiro, observável por que o imponha, artificialmente, de cima para baixo.
exemplo em religião e em política, decorrente, a nosso
ver, do ceticismo - quase desconfiança - com que en 66. O sistema eleitoral
caramos os sistemas de idéias prontos e absolutos, pelos
quais os homens devam até, se for o caso, matar ou Duverger mostrou que sistema de partidos e 'Siste
morrer. O brasileirp descrê da existência de um mundo ma eleitoral são duas realidades indissoluvelmente liga""
j.e.s' idéias, da razão== ou da l?;ur.a abstração, para crer na das, o.escrevendo, de forma hoj� clássica, a inflq.ência
_vida; nos sentimentos, nas concrecões - ainda quando da. foi:ma de escrutínio sobre o número e a caracteriza�
rêvestidas do "manto diáfano da fantasia". Ao lado de ção. dos partidos. 12 ,Assim, a representação proporçjf}Jia�
co.n:�eqüências negativas facilmente perceptíveis, i .�sse (o si�tema eleitoral "em que ·os lugares a preencher são
a:S: ecio d� psicologia do brasileiro traz re tado p,asi:- repartidos entre as listas . disputantes proporcionâlmen.�
-tivos em pou 1ca: a rejeição dos radicalismos e dos �x� te ao número de votos que hajam obtido", "de moq.o·,�
t!imismos; o espírito de conciliação; o desamor P§lós assegurar às diversas opiniões, entre as quais se repar
princípios ideológicos enquanto tais; a preferência maioi:, tem os eleitores, um número de lugares proporciorial às
,JlO·exerCÍCÍO do voto, p€10S homens do que pelos progra suas respectivas forças") 13 tende a estabelecer um 'sis.:.
pla,s° de idéias; e mn2 relativa facilida�e em mudar de tema de partidos múltiplos, independentes e estáveis.
gpinião, ae.:'"p:utido etc,. . . .Isso tudo, afinaL acaba J!l,� Jj o sistema majaritár�eu.resen.taçãQ, também Co
vorecendo - p&a o_ bem Eª democracia - a formaç_ã..o nhecido no Brasil com o nome de sistema de '�o
:de partidos nãg_ ideológicos e voltãd��-màis iii!:�� distrital" (pelo qual se divide o território eleitoral �
tantas circunscrições eleitorais quantos forem os lugares
cessidades políticas 11 concretas do homem em socieda,<:le,
ou mandatos a preencher, sendo eleito, em cada circuns
10 CARNEIRO, José Fernando, Psicologia do Brasileiro e crição, o candidato que obtiver o maior número de vo-
Outros Estudos, Rio, Livraria Agir Editora, 1971, ps. 50-52.
11
Sobre as "necessidades políticas" V. TORRES, J. e. O.,
12 DUVERGER, Maurice, Partidos . .. ' p. 241.
Harmonia..., ps. 245-247. 13 BONAVIDES, Paulo, Ciência... , p. 297.
184 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 185
tos), 14 especialmente quando a eleição se faz mediante Qra.. aí está maiis uma de nossas incoerências polí
um turno único e decisivo, tende a produzir um sistema ticas· 12reterule-se conciliar_o bi:gartidarisrrÍ.o com _ a
partidário dualista, com alternância de grandes partidos �resentação prop�rcio�al! Se é sincera a nossa opção
independentes. pelo dualismo partidário, temos que partir para um
Não é difícil de compreender o mecanismo gerador sistema de voto distrital. Se, porém, quisermos conservar
dessas duas tendências opostas. Na representação pro o sistema proporcional em toda a sua pureza, não pode
porcional os votos são computados em primeiro plano à mos continuar illlsistindo com o bipartidarismo, pois
nessas circunstâncias ele só será factível mediante a
legenda (ao partido) e, somente num momento poste rígida imposição legal, de cima para baixo, que temos
rior, ao candidato; a&.sdm, nenhum voto é perdido, pois, hoje.
ainda que insuficiente para eleger determinado candi Como nos decidimos neste trabalho pelo parlamen
dato, vai engrossar a votação do partido a que este tarismo, o sistema de partidos mais indicado para com
pertence. Na representação distrital, vota-se direta ele se compor é o do bipartidarismo, o qual, para reali
mente no candidato à vaga a ser preenchida e, secun zar-se de forma espontânea e natural, pressupõe, como
dariamente, na legenda, de modo que, se o candidato vimos, um sistema eleitoral em bases majoritárias. Isso
não for eleito, os votos são perdidos tanto em relação revela que uma reforma política não pode ser casuísta,
ao candidato, como em relação ao partido. Por isso, a respondendo apenas a aspectos parciais do sistema po
representação proporcional, valorizando em termos de lítico global.
legenda a todos os votos, conduz à proliferação dos par Na verdade, numa análise objetiva, os dois sistemas
tidos, ao passo que à votação distrital, valorizando ape eleitorais apresentam vantagens e desvantagens farta
nas os votos vitoriosos em cada distrito, força a ttgluti mente estudadas pelos politicólogos. As vantagens que
nação dos eleitores em dois pólos, efeito esse que vai se apontam à representação proporcional têm, em geral,
Jefletir-se na dualidade de partidos. um cunho mais teórico: seria o sistema eleitoral mais
No Brasil tem vigorado, desde a reforma de 1934, o justo, pois, nele não havendo voto perdido, o resultado
sistema de representação proporcional. Confirmando a da eleição acabará exprimindo com proporcionalidade as
lei de Duverger, esse sistema eleitoral, posto efetiva diversas opiniões políticas existentes no seio da comu
mente em prática a partir de 1946, provocou um sistema nidade, conferindo, destarte, representatividade às mi
de partidos múltiplos. Doze eram, em 1965, os partidos, norias. Ao sistema do voto distrital imputam-se vanta
quando sobreveio o Ato Institucional de n. 0 2 que os gens de cunho mais prático: @cada distrito em que
extinguiu. 15 Foram então criadas as duas organizações se divide o território eleitoral teria necessariamente o
partidárias atuais, mantendo-se, todavia, o sistema elei seu representante, o que nem sempre acontece na re
toral. presentação proporcional; @a decisão do eleitor seria
mais consciente, emprestando assim mais autenticidade
H Idem, idem, p. 294. à representação, porque tomada em um círculo eleitoral
l5 SCANTIMBURGO, João de, Tratado ..., ps. 148-149. à sua medida, onde se torna possível um conhecimento
414 -13
186 CEZAR SALDANHA Souza JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 187
mais próximo e direto dos candidatos, fato esse que tência: a do poder central A forma federativa, ao
muitas vezes não se dá no sistema proporcional, visto contrário, caracteriza-se pela coexistência, na mesma
como o candidato, conforme a sua disponibilidade eco sociedade política, de duas ou mais ordens de poderes
nômica, pode buscar votos em todo o território eleitoral· autônomos, dotados de competência legislativa, admi
@o eleitor vota diretamente no candidato, elegendo-� nistrativa e financeira própria estabelecida em uma
ou não; na representação proporcional, o voto cedido a Constituição que esteja acima do poder ordinário de
um candidato de nossa confiança, que pode nem ser legislar. 17
eleito, irá aproveitar a outros candidatos, os quais talvez A federação ressurgiu na história moderna das ins
não quiséssemos ver como representantes - trata-se o tituições políticas, coerentemente com a origem etimo
sistema proporcional, no fundo, de uma forma de elei lógica do termo (do latim, foederatio, que significa
ção indireta. "aliança", "união"), como uma fórmula jus-política para
Cbntudo, o que deve realmente importar na opção unir Estados independentes, ·que renunciam a sua sobe
por um ou por outro dos sistemas eleitorais é a consi rania para constituírem um novo Estado, preservando,
deração do conjunto do sistema político que se pretende no entanto, uma esfera autônoma de competência po
ver instalado no País. Se queremos continuar com o lítica assegurada no pacto constitucional. Assim nasceu,
presidencialismo, que estamos sem sucesso tentando em 1787, a federação norte-americana, com o nítido es
praticar desde 1891, o melhor é a opção pelo sistema de copo de unificar ou de agregar, em torno de um governo
partidos múltiplos e, conseqüentemente, pelo sistema federal comum, Estados antes separados.
eleitoral da representação proporcional. Se, no entanto, Com o tempo, o ideal de federação foi se difundindo_
estivermos dispostos a mudar nossa organização política e mesmo Estados já unificados foram tentados a ver na
para uma forma de parlamentarismo, o mais adequado fórmula federativa uma solução a ser adotada visando
é o dualismo partidário e, portanto, um sistema eleito à descentralização político-administrativa em bases ter
ral majoritário de turno único, ainda que se faça, quanto ritoriais. 18 Em alguns casos, chegou-se até a querer
ao último, algumas concessões ao princípio da propor imitar o tipo clássico de federação. Esse o caso do Brasil
cionalidade, na linha do que vige na Alemanha Oci que, em 1891, numa alegada busca de descentralização,
dental. 16 seguiu o mais que pôde o tipo de federação criado nos
Estados Unidos.
67. A forma de Estado Foge aos propósitos deste trabalho o estudo dos in
trincados problemas políticos e jurídicos que afetam as
Unitarismo e federalismo são as formas clássicas de federações em geral e, em especial, a brasileira, mor-
distribuição territorial do poder em uma sociedade po
lítica. A forma unitária é aquela em que, ao nível da 11 DuRAND, Charles, El Estado Federal en el nerecho Po
Constituição, há apenas urna única esfera de compe- sitivo, in El Federalismo, Madrid, Editorial Tecnos, 1965, p. 180.
1s Sobre a distinção dos dois tipos básicos de federalismo
--
16 CoTTERET, Jean-Marie, Les Systemes Électoraux, Paris, (por agregação e por segregação) ver FERREIRA FILHO, M.G., A
PUF, 1973, ps. 81-83. Democracia... , ps. 112-113.
188 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 189
mente numa época de intervenção do Estado e de pla ficação superior dos Estados-membros ou das Províncias
nejamento econômico cada vez mais acentuados, bem - está misturada de forma indissociável com o governo
como de intensa expansão dos meios de comunicação federal ou central. Essa circunstânci a de estarem con
social, arrasadora das barreiras internas de uma socie fundidos, no centro do poder, o aspecto n acional ou
dade. Por isso nos limitaremos a tocar apen as alguns global da União, com o seu aspecto governamental-fe
aspectos do relacionamento entre forma de governo e deral, tem gerado uma "ditadura" deste sobre aquele.
forma de Estado. Ou sej a, no presidenci alismo, o aspecto "governo-federal"
Diga-se de início, que não mais subsiste hoje a ar empolga e domina a União, inclusive naquilo que ela
gumentação teórica referente a uma pretensa incompa tem de nacional (ou seja, de "iransfederal" e de "trans
tibilidade entre federação e parlamentarismo. 19 Os estadual"). O que isso produz não é difícil de co�
exemplos bem sucedidos de federações parlamentares tatar: um predomínio cada vez mais sufocante do gQ:
como, por exemplo, a Alemanha Ocidental, Canadá e
, verno federal sobre as autonomias locais e a imposição
Austrália, desfazem qualquer interesse da discussão, que
já teve alguma importância em nosso meio. de uma política centralizadora a toda a comunidade.
E neste momento de preocupação quanto à sorte da No parlamentarism?,$"cialrueq,te aquele de poder
federação no Brasil, devorada por um centralismo cada moderador explícito, distinguem-se =bem claramente'
vez mais absorvente, é importante mostrar que a fe "essas duas faces da União: _,sua face . nacional (isto é,
deração, qu ando as§.Og?AA; ao 2stema _parlawentar, ga "transfederal" e "transestadual"), que é t ambém su
<nha mais em descentralização do gw.:se combinada ªº" pr apart!!lária e supra-regional, vinculada_à chefja dç__
12resid�ciaJisÍÕ.o (assim, por exemplo, o Canadá e a "Estado· e sua face overna tal-federal, li à che
Austrália, relativamente ao Brasil). Aliás, o fenômeno cfia de gmrerno. Essa transcendência da nião enquanto
é observável também nos Estados unitários: o presiden elemento de unificação superior,)ivre do contrw�ver
cialismo tende a levá-los à centralização (por exemplo, namental-federal, tende a ser,,. um _Eonto de "ª'poio e .J!e
os Estados unitários l atino-americanos, em geral); o :W:rantia às aütonomias..-::-locais diante .do _governo �
,
parlamentarismo, à descentralização (por exemplo, os jial-21 _Am;t)-se, no vértice superior""êía sociedade pohtica,
Estados unitários europeus como a Itália, França uma área neutra no tocante ao cg11vívio federati�o,
etc ... ). 20 .criando-se um a espécie de nistância suprema que previ-
Tal tendência, a nosso ver, teria uma explicação.
_.No ;presidencialisl!lo a. União - enquanto traço de uni- 21 Discursou Nabuco na Sessão de 8 de agosto de 1888:
"Ora, eu pretendo e digo que apenas com o laço monárq�ico
19 Quem primeiro levantou a pretensa incompatibilidade entre elas, as províncias do Império teriam maior (muito maior)
entre Parlamentarismo e Federalismo foi Assis BRASIL, op. cit., proteção e muito maior garantia para o desenvolvimento da
p. 133-146, e não Ruy como se diz, normalmente (PILLA, Raul, sua autonomia, do que se fossem organizadas sob a forma repu
Presidencialismo ou Parlamentarismo, op. cit.) . blicana, porque necessariamente pelas lutas e competições pro
20 Esse fenômeno é tocado por TORRES, J. C. Oliveira, For
vinciaís a república tenderia a ser unitária ... " (PILLA, Raul;
mação . .., ps. 65-69 e 139-151. op. Cit., VIII, "k") .
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 191
190 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
l
ção estadual. Já os chefes de governo dos Estados, com
CONCLUSÕES
I - No conjunto dos fatores que condicionam a crise de
democracia no Brasil, numa visão "efetivista" da cau
salidade histórica, não se pode esquecer, nem desprezar,
a influência dos fatores de ordem política ligados à
estruturação do poder no Estado; se esses fatores, por
si sós, são insuficientes para explicar todas as facetas
da crise da democracia, sem o equacionamento deles,
não se conseguirá superá-la.
II - A democracia consiste em um ideal de organização da
sociedade, envolvendo a conjugação de dois aspectos
básicos: .
1if)uma filosofia política que concebe o Estado como
um meio natural e necessário para servir à
Pessoa Humana, em sua dignidade e em seus di
reitos fundamentais, através da realização do bem
{r9
comum; e
um processo político em que os cidadãos partici
pam, pelo consentimento, do fundamento (Esta
do-de-direito) e do funcionamento (direitos po
líticos) do poder.
III - Totalitarismo e autoritarismo não se confundem:
é!) o primeiro é a negação dos valores fundamentais
da filosofia democrática e, por via de conseqüên
cia, de um autêntico processo democrático;
rfij)o segundo é a limitação "permanentizada" do
processo político inerente à demoCl'acia, sob a
justificativa da necessidade de defender os valores
que consubstanciam a filosofia democrática.
IV ......,. A vocação democrática da comunidade política brasi
leira - decorrência de filiar-se o Brasil à civilização
194 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 195
ocidental - tem esbarrado, especialmente a partir de (e) a impossibilidade de compor os obJetivos perma
1891, na dificuldade de estabelecer um processo político nentes do Estado com os objetivos atuais dos go
democrático estável e responsável. vernos e a atuação própria de um chefe de Estado
V - O regime político vigente parece assumir uma forma com a atuação própria de um chefe de governo.
autoritária não institucionalizada, pois, se preserva os IX - Uma segunda série de obstáculos ao funcionamento
priJ.noípios fundamentais da filosofia democrática, de uma democracia política estável no Brasil reside
contém um sistema de poderes excepcionais revolucio no esquema tripartido de divisão funcional do poder
nários que limita o processo democrático, em especial, adotado em 1891 e mantido até hoje, porque, além de
no referente ao Estado-de-direito. favorecer o surgimento de conflitos entre os poderes,
VI - A situação política atual chegou a um impasse: de um não lhes prevê solução legal e eficaz, nem um mecanis
lado, a consciência democrática exige a revogação dos mo de fiscalização superior dos órgãos políticos.
instrumentos revolucionários de exceção, basicamente X - A linha principal de um modelo de normalidade cons
do Ato Institucional n.º 5; no entanto, a revogação titucional adequado à realidade brasileira está na
pura e simples desse instrumento, se entendida como
transformação do órgão de chefia de Estado em um
volta à plenitude do sistema de governo das Consti
poder político independente e superior, em relação aos
tuições de 1946 ou de 1967, não basta para fundar um
p\rocesso político democrático, livre de instabilidade, poderes executivo, legislativo e judiciário, para desem
demagogia e irresponsabilidade. penhar uma tríplice função:
(a) prevenir e solucionar os conflitos entre os po
VII - A causa política das dificuldades da democracia no deres;
Brasil reside na inadequação das instituições d reali
(b) efetuar incessantemente uma "suprema inspeção"
dade que devem reger: a sociedade brasileira formou
-se "de cima para baixo", e, não obstante, adotamos sobre os órgãos políticos e a administração em
um sistema de governo inventado sob medida para geral;
uma sociedade "de baixo para cima" (os Estados (c) zelar pelos objetivos permanentes do Estado, que
Unidos). constituem, aliás, os valores básicos da demo
cracia.
VIII - A cumulação da Chefia de Estado e da Chefia de Go
verno no órgão unipessoal da Presidência da República XI - Um sistema de divisão funcional do poder, que atribua
acarreta uma primeira série de obstáculos gravíssimos explicitamente ao chefe de Estado o exercício privativo
à harmonia política no Brasil e, conseqüentemente, ao de funções moderadoras, pode ser denominado de
estabelecimento de um processo democrático estável, "parlamentarismo"; à questão - que muitas vezes se
entre os quais: coloca, da extensão de suas intervenções - responde-se
(a) a dificuldade em distinguir-se objetivamente a com a seguinte regra: a atuação ostensiva, maior ou
oposição da subversão; menor, do poder moderador deverá ser inversamente
(b) a radicalização político-ideológica das correntes à capacidade de comunidade em, por sua direta inicia
que disputam o poder; tiva, fiscalizar e conter nos limites da lei os órgãos
(cJ a inevitável partidarização das Forças Armadas; políticos instituídos.
(d) a posição de vulnerabilidade interna, aos ata XII - Uma reforma política, recriando no Brasil um poder
ques partidários, a que são expostos os órgãos moderador explícito, recomenda a efetivação de três
nacionais permanentes; refor1nas complementares:
l-
i
196 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
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ÍNDICE DA MATÉRIA
Capítulo · II
As vicissitudes do ideal denJ,OCrático
�3. A negação da democracia: o totalita:t;ismo , . . . . . . . . . 27
f
14. Á crise da democracia . .. . . . . .. . .... .. .. . . ... . . .... 29
15. Limitações.à democracia instrumental e autoritarism.o .. 3l,
206 CE'z:AR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA No. BRASIL ,207
18. Um levantamento das limitaçõés ........... ........ 43 37. O dilema dos Presidentes ......... ......... ........ 93
19. A eleição indireta do Presidente da República ...... 43 38. "Anarquia" ou "autoritarismo" ........ ........... . . 96
20. O bipartidarismo ................................... 46 39. A partidarização das Forças Armadas . ..... ........ 99
40. A distinção entre oposição e subversão ...... .... .. lOi
41. A nomeação de prefeitos municipais ......, ......... 4.9
22. Poderes excepcionais revolucionários ................ 50 41. A vulnerabilidade partidária dos órgãos nacionais . . 104
42. A radicalização ideológica ..... .................... . 105
43. Atenuantes ........ ........... ..... ................. 108
Capítulo III
Seção segunda: A divisão funcional do poder 111
o impasse político
Capítulo III
23. Os poderes excepcionais revoluckm�rios: conservá-las? 51
24. Os poderes excepcionais revolucionários: revogá-los? 54 O problema dos conflitos entre os poderes
25': O país legal contra o país real .......... ............ 55
44. A realidade dos conflitos políticos ... ... ... ....... 113
45. A lacuna da Constituição ................·....... . .. 115
Capítulo IV 46. A explicação da lacuna .......... ............. ..... . 116
17. Soluções extraconstitucionais ....................... 119
A inadequação das instituições 48. O Ato Institucional n.o 5 .......................·.... 121
26. Tipos de formação de sociedades políticas ........ .. 59 Capítulo IV
27. Formação política brasileira e norte-americana .... 60
28. Conseqüência da diversidade de formação .......... 63 A solução vigente
29. Constituição "estatuinte"· e Constituição "estatuída" 66
30. O transplante e a rejeição .......................... 70 49. Os poderes de fiscalização e de arbitragem: revogá-los? 125
31. A alienação das elites ....................... ....... 73 50. As deficiências do sistema ......... ........ ........ . 128
51. O impasse e a saída possível ............. .......... 129
TERCEIRA PARTE: AS INSTITUIÇÕES INADEQUADAS .. 77
QUARTA PARTE: BASES DE UM MODELO POLíTICO
Seção primeira: A Presidência da República . .. . .......... 79 ADEQUADO ......, ... , ......� ...., ................... 133