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D. J. W E S P P U B L I C I D A D E L TO A

Rua Sananduva, 959

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Ver a Cruz CEP 99021b
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A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL

414 - I
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
Professor nas Universidades do Vale do Rio ·dos!Sfnos e Santa
�I Cruz do Sul (RS).

A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL


(Aspectos Políticos)

FORENSE
Rio de Janeiro
1978
1.ª edição - 1978

@ Copyright
Cezar Saldanha Souza Junior

A memória de
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte ALIOMAR BALEEIRO,
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. jurista, professor, magistrado, parlamentar
e político com as mais sólidas concepções
democráticas.
Sousa Júnior, Cesar Saldanha.
3697a A crise da democracia no Brasil: aspectos
políticos / Cezar Saldanha Souza Júnior. - Rio
de Janeiro : Forense, 1978.

Bibliografia
�:
1. Brasil - Direito constitucional 2. Direi­ yr'···
�.
to constitucional I. Titulo II. Titulo : Uma
contribuição para o aperfeiçoamento das institui­
ções democráticas brasileiras i Aos JOVENS PESTE PAÍS,
/ DO NORTE AO SUL,
CDU - 342
342(81) de cujo convívio nasceu este trabalho,
78-0224 /341. 2/ esperando que tenha expressado os ideais
de liberdade, justiça e amor que encontrei
em seus corações.

Reservados os direitos de propriedade desta edição pela


COMPANHIA EDITORA FORENSE
Av. Erasmo Braga, 299 - 1.0 e 2.º andares - Rio de Janeiro - RJ
Largo de São Francisco, 20, loja - São Paulo - SP
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
AGRADECIMENTOS

- Ao professor MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, pela inesti­


mável orientação prestada ao autor neste trabalho.

- Ao meu pai, pelo estímulo sem o qual este trabalho não


teria sido escrito.
SUMARIO
[;

INTRODUÇÃO • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • J • •• • • • • • 1
- A FRANcisco bswALi:>o NEVES DoRNELLES, Luís ROMERO PATURY
PR!MmIRA PARTE-,- O IDEAL DEMOCRATICO E .SUAS
AccIOLY, WAO::i{l!:i'PIRES DE OLIVEIRA e EiY SouTo DOS SANTOS,
VICISSITUDES ..................................... 11
pelo incentivo, compreensão e carinho com que cercaram o
trabalho.
Capítulo I - O ideal democrático ........ . ..... . .. 13
capítulo II - As vicissitudes do ideal democrático 27
- Aos universitários EDUARDO MAINERI CONCEIÇÃO, DARCY MANO,
JOSÉ UBIRATAN DE OLIVEIRA, VALNIR SOARES e SEBASTIÃO Luís
SEGUNDA PARTE - A DEMOCRACIA NO BRASIL ..... . 35
DE OLIVEIRA, pelas lições de dedicação e idealismo.
;
t
capítulo I - A crise da democracia ............. . 37

- Aos estudantes secundaristas do Paraná e do Rio Grande j' Capítulo II - As limitações atuais à democracia ins-
do Sul, especialmente a JOSÉ CLÁUDIO PEREIRA NETO, GILBERTO trumental .......................... 43
BARBOSA DE OLIVEIRA e ALFEU PEREIRA, pela amizade e pela capítulo III - O impasse político 53
confiança..
capítulo IV - A inadequação das instituições ..... . 59

TERCEIRA PARTE - AS INSTITUIÇÕES INADEQUADAS 77

Seção Primeira - A Presidência da República . . . ....... 79


Capítulo I - Distinções prévias .. .... . ........... . . 81
capítulo II - Problemas políticos ligados à organi-
zação da Presidência .... ........ .... 93

Seção Segunda - A divisão funcional do poder ........ 111


Capítulo III - O problema dos conflitos políticos. ... 113
Capítulo IV - A solução vigente .. .... .... ......... 125
VIII 0EZAR SALDANHA SoUZA JUNIOR

QUARTA PARTE - BASES DE UM MODELO POLíTICO


ADEQUADO .............................. ; .. .... . . . 133
Capítulo I - A reforma principal .......... ..... .. 135
Capítulo II - Resposta a dificuldades ....... ..... . 145
Capítulo III - As reformas complementares ........ 177
INTRODUÇÃO
CONCLUSÕES .......................................... 193
BIBLIOGRAFIA ......................................• , ... 197
Este trabalho trata da crise da democracia brasilei­
fNDICE DA MATÉRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .:' . . . ' 205
.. ra. Pretende analisar os seus aspectos políticos principais
para, em seguida, propor algumas linhas que, ao nível da
organização do Estado, contribuam para superá-la.
O seu desenvolvimento, vem dividido em quatro
partes:

1.ª - a conceituação do ideal democrático, onde se


procura, basicamente, definir os termos uti­
lizados no curso da dissertação;

2.ª - a caracterização da crise política da demo­


cracia brasileira;

3.ª - a análise dos principais fatores políticos da


crise; e

4.ª - a indicação das bases de um modelo brasi­


leiro que ajude a tornar viável a democracia
política.

A delimitação do tema exige algumas observações


introdutórias. A democracia que aqui se examina é, em
primeiro lugar, um regime de governo. Edificou-se, como
ideal de justiça, dentro da civilização dita ocidental.
Depende, para a sua efetivação, de muitos fatores, entre
2 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 3

-os quais se encontram os fatores especificamente políti­ sistemas políticos ou regimes de governo. 2 Podemos
.cos, que mais de perto nos interessam neste estudo. E, classificá-los, hodiernamente, em suas linhas mais geraiS,
enfim, supõe, no plano econômico e social, um sistema em dois grupos: ou o homem é colocado a serviço do.Es­
.que nem torne o homem escravo do capital, nem o absor­ tado, ou o Estado é posto a serviço do homem. No pri­
va no mecanismo burocrático do Estado. meiro caso temos os regimes totalitários; no segundo, os
1. Democracia e regimes de governo democráticos.
Todos os regimes de governo, além da forma política
Em sentido amplo, define-se o Estado como a socie­ pela qúal se expressam, pressupõem uma concepção de
1 i
! :1 dade política, vale dizer, aquela espécie de unidade social homem é de Estado: Assim, na democracia, o Estàdo é
i1'i (sociedade) que, globalizando séries diversas de formas concebido como um instrumento para servir o homem�
menores de vida associativa, em um determinado terri".' que, como Pessoa Humana, é anterior e superior ao pró­
'i,
'I tório, é governada por uma autoridade detentora, no prio Estado; Já no totalitarismo o homem - reduZido a
11
1
.âmbito de sua competência, de um poder soberano (isto sua dimensão social e a sua natureza material - é absor­
i/
.é, internamente superior e externamente independente), vido totalmente pelo Estado; que se volta para si mesmo
Geralmente aponta-se, no Estado, a presença de três ou se transforma em instrumento de classe, de partido;
.elementos: 1 de raça ou da nação abstratamente considerada.
1-º -:- seres humanos que, organizados em formas
associativas menores e ligados por um laço político co­ 2. Democracia, e . éivili?,ação ocidental
mum, formam um conjunto que podemos chamar de A concepção d� que o homem é uma Pessoa - ou
comunidade política ou povo; seja, um ser individual e social, màterial mas aberto ao
2.0 - território, a base física sobre a qual se esten­ transcendente pelo espírito, e, por isso mesmo, dotado de
de o poder do Estado; e dignidade e de direitos fundamentais a serem preserva-
j
- autoridade, o conjunto dos órgãos que diri­
3.0
,Í 2 MENEZES, Aderson de, Teoria Geral do Estado, Rio, Fo­
11,

.I
gem a sociedade, exercendo o poder soberano. rense, 1972, pp, 129-130.
O problema central da organização política reside Não há, no Brasil, uma terminologia técnica u:p.iforme
no modo de relacionamento entre o elemento humano e quanto à "tipologia" política. Neste trabalho utiHzar-:se-á, em
o poder do Estado. Em outras palavras: no modo segundo princípio, regime de governo, para a dicotomia "democracia­
o qual o poder do Estado se exerce em relação às pessoas -totalitarismo"; forma de governo; para os critérios que sepa­
que compõem a comunid.ade política. ram "monarquia" de "república"; e sistema de governo, para
"presidencialismo" e "parlamentarismo". Sobre o tema cfr.
Qs di,.ferentes modos que pode assumir o relaciona­ DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado,
mento homem-Estado constituem o que se denomi.na de
; ' . .
São Paulo, Saraiva, 1972, p. 194; e PANSARDI, Mário Artur, Ini­
, ·, ., .

ciação ao Estudo do Estado, Porto Alegre, Livraria Sulina Edi­


1 JELLINEK, Georg, Teoria General del Estado, Buenos Aires, tora, 1972, pp. 235-253. Tratando-se de "Federação" e "Unita".'
Editorial Albatroz, 1970, pp. 133 e 295-325. rismo", está consagrada a expréssão forma de Estado.
i!

4 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR


A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 5
dos e promovidos - foi o princípio ao redor do qual se
formou e se desenvolveu, na Europa, uma nova civiliza­ Pois foi - como não poderia deixar de ter sido -
ção, a que se convencionou chamar de "ocidental". E no contexto dessa nova civilização que se propôs, como
como a noção de Pessoa, que embasa essa civilização, foi ideal de organização política justa, aquela que coloca o
formulada e evidenciada com o Cristianismo, costuma-se Estado a serviço da dignidade e dos direitos da Pessoa.
acrescentar-lhe o qualificativo de "cristã". Assim, a democracia, enquanto regime de governo, surge
Essa adjetivação, no entanto, não significa que a n o seio da civilização ocidental, como um ideal de cons­
civilização ocidental seja uma civilização de santos, imu­ tante e perene aperfeiçoamento do convívio político no
ne às misérias, às falhas e às distorções que acompanham respeito da Pessoa.
a todas as obras humanas. Civilização de homens, não O Brasil, prolongamento dessa civilização, tem no
escapou - como observaram os seus críticos - às fta­ ideal democrático um dos traços marcantes de seu modo
quezas próprias da condição humana. "Civilização oci­ peculiar de ser. A democracia, portanto, não nos é mero
dental e cristã" indica, simplesmente, aquela civilização adorno, mas constitui uma vocação que se radica no
que, no ocidente europeu, ganhou forma sob o influxo próprio fundamento da civilização brasileira.'
dos valores próprios do Cristianismo. 3
3. Democracia e causalidade histórica

'
3 Assim egcreveu João Camlllo de Oliveira Torres, sobre
O funcionamento das instituições democráticas de­
"Ocidente": "Quando se critica o Ocidente, por seu egoísmo, por
sua libertinagem, pelas formas de opressão e miséria, refere-se a
l pende de uma série de fatores reais, estruturais e histó­
um ideal ocidental, o do valor essencial da Pessoa e, na reali­ ricos que sobre elas atuam, condicionando a atuação dos
dade, denuncia-se uma traição de povos ocidentais aos grandes ! homens que as dirigem. Se são os homens que fazem a
ideais nascidos à beira do Mediterrâneo. O essencial da civili­ História (causa eficiente), este agir está condicionado
zação ocidental, o que é a sua grandeza e que lhe dá um valor
de absoluta superioridade sobre as demais é o valor de liber­ pelos fatores geográficos, demográficos, econômicos, po­
dade pessoal. ou, antes, que todo homem é, como dizia SCHELER, líticos, religiosos e de ordem intelectual (causa material
um valor mais alto que o universo inteiro. O Oriente desconhe­ da História), que limitam a vontade humana criadora.
ce isto, e é por isso que todos os povos, hoje, se sentem infe­ Colocado desta forma o problema da causalidade
riorizados se não conseguem realizar o ideal ocidental de
supremacia do homem sobre o destino impessoal, sobre a mul­
histórica, cumpre desde logo afastar duas posições fal­
tidão anônima, sobre a natureza. O marxismo, no que tem de sas: a voluntarista e as materialistas históricas.
positivo, é uma denúncia da crise do Ocidente em nome destes A primeira reduz a História e, em matéria política;
valores - MARX era um filósofo alemão, afinal de contas. A o funcionamento das instituições democráticas, à causa
revolução soviética tem sido, acima de tudo, uma continuaçíl.o
de PEDRO, o Grande, uma ocidentalização da Rússia, substituin­
eficiente, à vontade livre dos homens. Assim, se a de­
do o cristianismo (que já possuía de forma grega, não latina), mocracia funciona mal, é porque os políticos "não pres-
por uma filosofia alemã, o marxismo. E Mao Tsé-Tung, de
certo modo, nada tem feito senão procurar ocidentalizar a do Ocidente está em suas máquinas, não no reconhecimento
China, substituindo Confúcio pelos europeus Marx e Lenine, do valor supremo do Homem." TORRES, J. e. de Oliveira, His­
achando porém algo ingenuamente que a única superioridade tória das Idéias Religiosas no Brasil, São Paulo, Editorial Gri­
jalbo Ltda., 1968, p. 271).

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1
I!
li:; 6 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 7

tam" ou "faliram", ou porque o povo "não está prepa­ somente nos demográficos, nem exclusivamente nos pc_:;
rado" ou "não tem formação" para a democracia. As líticos, mas no conjunto dos fatores que condicionam ó
dificuldades da democracia são imputadas, unicamente, agir humano que constrói a História, bem como na pró.:..
aos homens que votam, aos que estão no governo ou aos pria vontade livre do homem.
que fazem oposição. O voluntarismo histórico esquece
que a vontade dos homens que atuam na História não 4. Democracia e fatores de organiza,ção política
é absoluta, mas limitada pelos fatores integrantes da
causalidade histórica material e que estes, muitas vezes, Hoje está na moda a tendência, de feições marxistas.
têm mais força do que se supõe. a explicar toda a realidade, social-hjstóric;:i. exclusiva­
Já os materialismos históricos (o marxismo é apenas mente pela causalidade material econômica, ao mesmo,
uma de suas muitas modalidades), ao contrário, atri­ tempo em que se minimiza o papel das condições ligadas,
buem a um só dos fatores da causa material da História à organização política, relegada esta a simples epifenô-· ·
o papel de determinante do acontecer histórico. Deste meno determinado pelas relações de produção.
modo - exemplificando - os males da democracia se­ O que se tentará mostrar ;nesse trabalho é que há
riam explicados: (a) pelo materialismo histórico racis­ fatores de ordem política, ligados à organizaçijo do Fts+
ta, simplesmente como uma decorrência da raça ou das tado, que também influem. sobre o funcionamento- da·�
raças que formam a comunidade; (b) pelo materialismo instituições democráticas. E que t1;1.is fatores, embora
histórico geográfico, simplesmente pelas condições de esg_uecidos ou desprezados, apresentam uma certa prio­
solo, clima e paisagem do território; (c) pelo materia­ ridade (uma prioridade instrumental) em relação aos.
Hsmo histórico econômico, simplesmente como uma con­ demais fatores _de causalidade material. Ocorre que a
seqüência de fatores econômicos, por exemplo, o subde­ organização política, sendo um dos elementos da causa
senvolvimento, a renda per capita, ou o tipo vigente de material da História, quando instituída, torna-se tam..
relações de produção (este último para o materialismo bém causa instrumental, isto é, passa a ser o instru­
histórico marxista). mento, o veículo, da construção das demais situações
A posição mais aceitável, e que João Camillo de Oli­ históricas. Com efeito, é por meio das estruturas políti.,.
veira Torres denominava de "efetivismo histórico", 4 re­ cas que os homens atuam sobre as demais realidades,
conhece que a vontade livre é, de fato, a causa eficiente como a geográfica, a demográfica, a econômica etc ...
da História, mas não nega a importância da causalidade "Não houve", - escreveu João Camillo - "talvez,
material - aliás, de todos os seus fatores, e não apena,s prova mais brilhante desse primado da política na mar­
deste ou daquele. Para essa posição, as dificuldades da cha efetiva dos fatos históricos do que o trazido pelos
democracia numa determinada sociedade devem ser marxistas. Para Marx, o Estado não passaria de supe­
procuradas não apenas nos fatores econômicos, nem restrutura da organização econômica. Ora, os discípulos:
de Marx no poder fizeram do Estado um instrumento de
· · 4 TORRES, J. C. de Oliveira, Natureza e Fins da Sociedade
ação política. A destruição da estrutura econômica e
Política, Petrópolis, Vozes, 1968, pp. 11-15. cultural da China, sua transformação em. potência in-
r-•:•,'
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�1
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 9
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

.social do homem; e o solidarismo, que procura conciliar


dustrializada, por meio do Estado, para atingir fins po­
na organização social o duplo aspecto, individual e social,
líticos, constitui o mais extraordinário desmentido que
da Pessoa, fugindo aos unaliteralismos simplistas do in­
alguém já trouxe ao princípio fundamental do marxismo,
dividualismo e do socialismo.
pois significa depender a estruturação econômica da or­
Os sistemas econômicos - modelos básicos de orga­
ganização política". 5
nização da sociedade econômica - classicamente tam­
Assim, este trabalho apreciará a crise da democracia bém são três: a economia de mercado (geralmente
brasileira sob o ângulo dos fatores políticos que a con­ denominada de capitalismo), que pretende afastar, o má­
dicionam. Fique claro, porém, que com isso não se quer ximo possível, o Estado da átividade econômica; a eco­
desconhecer, nem diminuir, a importância dos fatores de nomia coletivista, que confere à sociedade, como um todo
outra natureza que também influem. e representada pelo Estado, a ação exclusiva na atividade
Duas razões recomendam o estudo específico dos econômica; e - podemos assim chamá-lo - o soli�aris­
fatores de organização do Estado. A primeira é a priori­ .
mo econômico, que propugna por uma orgamzaçao da
dade instrumental que assumem, no quadro global da economia que assegure um campo à ação privada, indi­
causalidade histórica. A outra é de ordem prática: de vidual e principalmente comunitária, reservando ao Es­
todos os fatores que dificultam a democracia entre nós, tado uma ação não só arbitral e supletiva, mas também
são eles os únicos que, para serem superados, não custam substitutiva, quando o bem comum o exigir.
dólares, não exigem investimentos de capital, nem agra­ o regime democrático, definido a pàrtir da noção de
vam o déficit do balanço de pagamentos. Basta uma Pessoa Humana, na verdade, não se compatibiliza com
tomada coletiva de consciência, interpretada, quem sabe, as posturas clássicas do individualismo e do socialismo.
li pelo talento e pela habilidade de um estadista. Em ambos ' a Pessoa e o bem comum, respectivamente .
fundamento e fim da democracia, sucumbem, ou ao in-
5. Democracia e solidarismo teresse exclusivamente individual, desagregador e anár­
A democracia é um sistema político e, portanto, não quico, ou ao interesse exclusivamente coletivo, opressor
pode ser confundida com os sistemas sociais e os siste­ e totalitário.
mas econômicos, embora com eles tenha relações. Da mesma forma, o capitalismo e o coletivismo clás­
sicos são também incompatíveis com a democracia. O
Os sistemas sociais - padrões de organização das primeiro, ao desconhecer os direitos da Pessoa no terreno
sociedades em geral - classicamente são três: o indivi­ social e econômico e as condições que o Estado deve as­
dualismo, que pretende organizar a sociedade em geral, segurar, neste setor, a todas às Pessoas, transforma a
tomando por princípio, exclusivamente, o aspecto indi­ democracia em mera forma ou técnica política, em pre­
vidual do homem; o socialismo, que toma por princípio
da organização da sociedade, exclusivamente, o aspecto
juízo de sua substância ou conteúdo human?. ? segun­
do ao excluir as Pessoas, individual e comumtariamente,
de' uma atuação autônoma na esfera econômica, tira­
5 TORRES, J. e. de Oliveira, Teoria Geral da História, Pe­ -lhes as condições que lhes possibilitariam assegurar as
trópolis, Vozes, 1963, p. 340.
414 -2
10 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

liberdades fundamentais frente a um Estado que, dificil·


mente, encontraria resistência para um avanço totalitá­
rio.
Afastadas as posições extremadas, a democracia
encontrará seu ambiente propício em uma organização
social e econômica que se aproxime do ideal solidarista
PRIMEIRA PARTE
do convívio humano no plano sócio-econômico. E é pre­
cisamente a democracia política que há de melhor res­
ponder à questão nuclear do grau que deve assumir, na O IDEAL DEMOCRÁTICO E SUAS
sociedade, num dado lugar e num determinado tempo, VICISSITUDES
a atuação do Estado frente à ação ou inação dos par­
ticulares. Vista sob este ângulo, a democracia política Esta primeira parte tem um caráter eminente­
se torna necessária à efetivação do solidarismo, eis que
,i passa a funcionar como o instrumento legítimo, capaz de
mente definitório. Pretende fazer o que os escolásticos
denominavam definitio terminorum: definir os con­
permitir à própria comunidade encontrar a forma mais ceitos e explicitar as premissas mais gerais emprega­
justa de conciliação entre o interesse individual e o in­ das no curso do trabalho. A justificação precisa e
teresse coletivo, entre a ação particular e a estatal, das aprofundada desses pressupostos concerne a uma in­
quais a integração harmônica constitui a essência do vestigação ética, político-filosófica ou jus-filosófica,
ideal solidarista. 6 razão pela qual escapa ao objeto específico que nos
propusemos a desenvolver. Entretanto, parece-nos
importante explicitar nosso "ponto de partida filosó-·
fico'\ pois toda a construção jurídico-constitucional
apóia-se, embora nem sempre de forma consciente,
em postulados de caráter não estritamente jurídicos.
Assim, o primeiro capítulo volta-se aos princípios que
embasam o idea,1 democrático. O segundo, enfoca as
suas vicissitudes: a negação totalitária da substân­
cia da democracia e a limitação autoritária dos ins­
trumentos democráticos.

o AvILA, Fernando Bastos de, Solidarisnw, Rio, Livraria


Agir Editora, 1965, especialmente p. 263.
CAPÍTULO l

O IDEAL DEMOCRATICO
6. A primeira aproximação
"Governo do povo, pelo povo, para o povo" -- eis a
mais conhecida definição de democracia, tal como ela é
concebida no mundo ocidental. A consideração de que a
democracia consiste no governo do povo, para o povo,
nos vem de Aristóteles. 1 Mas foi Lincoln quem, acres­
centando o elemento pelo povo,· compôs a fórmula clá.s:­·
1
JJ

il
sica. 2
Democracia é o "governo do povo, pelo povo". Não
1:1 se pense, porém, com isso, que na democracia o próprio
!1 povo possa governar a si mesmo. Não houve - mesmo
na cidade-estado grega antiga - nem haverá povo que
se governe. Nesse sentido, o governo do povo, é huma­
namente impossível e por uma razão óbvia: o fenômeno.

1 ARISTÓTELES, Politica, Livro III, Capítulo V.


Para o filósofo grego, democracia - que ele denomina dé
politeia - é o governo de todo o povo, para o interesse geral;
ou seja, para o bem comum (Cfr. CARRANZA, Ambrosio Romerô,
l:listoria del Derech o Político, Buenos Aires, Distribuidor Abele­
do Perrot, 1971, Tomo I, pp. 251-252, nota n.0 39).
2 Lincoln's Address at Gettysburg, pronunciado em 19 .11.

1863. In: Riverside Literature Series. Cambridge, The Riverstde


Press, p. 124. Apud: BONAVIDES, Paulo, Ci�ncia Política, Rio,
FGV, 1972, p. 322).
14 0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 15
'

do poder, em sua essência, não pode ser dissociado do � 7. Direitos da Pessoa


fato de que alguns mandem e os outros obedeçam. s
Por "governo do povo, pelo povo", entenda-se, isto A participação do povo no governo (governo do
sim, a participação, através do consentimento, dos cida­ povo,. pelo povo) se processa com o exercício dos direitos
ç �os no gov�r�o da sociedade política. Essa participa­ políticos reconhecidos pelo Estado aos membros da co­
çao deve existir, tanto em relação ao fundamento do munidade política. Tais direitos são os de participar do
poder estabelecido (governo do povo), quanto ao fun­ fundamento jurídico do poder, de expressar a opinião
cionamento desse poder (governo pelo povo). o con­ político-partidária, de votar e ser votado, de pertencer
sentimento dos cidadãos quanto ao fundamento do re­ a partido, de "fazer" política, em suma.
gime impõe duas exigências: (a) a adesão da comunidade O governo para o povo, por sua vez é o que procura,
à Constituição que organizou o Estado; e (b) a sujeição no maior grau possível, respeitar e promover os direitos
dos P?deres constituídos às normas dessa Constituição; fundamentais da Pessoa Humana. Respeito, quanto aos
ou seJa, o Estado-de-direito. O consentimento dos cida­ direitos denominados de liberdades públicas, que, opon­
dãos quanto ao funcionamento do regime implica em do limites à ação do Estado, asseguram às Pessoas uma
que o governo e a linha política por ele adotada depen­ esfera de autonomia própria (por exemplo, a liberdade
dam da aprovação dos cidadãos. individual, as liberdades da pessoa física, as liberdades
Mas dem�racia não é somente "governo do povo, de pensamento, as liberdades de atuação no campo eco­
pelo povo"; nao se reduz aos limites estreitos de uma nômico e social etc ... ) . Promoção, relativamente aos
técnica ou de um processo político. É mais, muito mais: direitos ditos econômicos e sociais, que constituem metas
é "�overno para o povo", vale dizer, governo que procura a serem alcançadas pelo Estado, visando proporcionar às
realizar o bem do povo, o bem comum, proporcionando Pessoas uma vida humana digna (por exemplo, os di­
as condições necessárias aos membros da comunidade' reitos relativos a alimentação, vestuário, saúde, habita­
para que tenham suas exigências básicas (= direitos ção, previdência, salário justo etc ... ) . 11
fundamentais) respeitadas e promovidas. 4 Desse modo, numa segunda aproximação, a demo­
cracia pode ser definida como o regime que reconhece,
3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves A Democracia Pos­ respeita e promove os direitos da Pessoa Humana (res-
sível. São Paulo, Saraiva, 1972, p. 23. Ensina o mestre: "é im­
possível que a maioria se governe a si própria e à minoria· é õ Para distinguir as liberdades públicas dos direitos eco­
i mpossível a Democracia entendida como governo pelo povo.' o nômicos e sociais: RIVERO, Jean, Les Libertés Publiques, Paris,
go ver�o é. sempre exercido por uma minoria, sempre é uma P.U.F., 1973, pp. 15 e segs. e 100 e segs.; e BURDEAU, Georges, Les
.
mmoria que governa enquanto a maioria não faz mais que obe­ Libertés Publiques, Paris, Librairie Générale de Droit e de Ju-,
decer." risprudence, 1972.
4 Na conceituação que propusemos a democracia inter­
pretando a fórmula lincolniana, estão todos os eleme�tos do dos cidadãos, como finalidade o bem comum do povo e como
�onceito elaborado por JoÃo CAMILLO, como segue: "democracia limite os direitos fundamentais do homem." TORRES, J. C. de
e o Estado em que todos os poderes estão sujeitos à Lei, e que Oliveira, Harmonia Política, Belo Horizonte, Editora Itatiaia,
tem como fundamento e condições de exercício o consentimento 1961, p. 114).
l
16 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 17

pectivamente, os direitos políticos, as liberdaqes públicas básicas: substancialidade, individualidade e racionalida­


e os direitos econômicos e sociais). 1
de, como a seguir se explicará. 7
Cabe agora distinguir os direitos fundamentais (li­ A Pessoa apresenta uma substância composta. É.
berdades públicas e direitos econômicos e sociais) dos matéria, constitui um corpo, e se insere no mundo da
direitos políticos. 6 O seguinte exemplo ajudará: um natureza. Mas não fica aí. A Pessoa se abre para o,
brasileiro que resida em Londres, tem seus direitos fun­ mundo do espírito. A pessoa é finitude, contingência,
damentais respeitados, como qualquer inglês ou qualquer imperfeição, mas, ao mesmo tempo, tem uma incoercível
estrangeiro que lá viva ou esteja. Todavia, o mesmo bra­ vocação para o infinito, o permanente, a perfeição. Essa.
sileiro, se e enquanto não adquirir a nacionalidade vocação do homem para o Absoluto transparece, mesmo,
inglesa, não terá direitos políticos, não podendo votar naquele que se amarra ao mundo material; por maior
nem ser votado, nem participar dos partidos políticos lá que seja a quantidade de bens materiais que acumule,,
existentes. O exemplo evidencia que os direitos funda­ não preenche a fome de ser que sente dentro de si; quan­
mentais (que a nossa Constituição no art. 153 resume to mais bens materiais.possui,maisdeseja;.não.sesacia.
como sendo os concernentes à vida, à liberdade, à segu­ Há, portanto, na Pessoa uma carência absoluta de ser
rança e à propriedade) decorrem diretamente da natu­ cme não se satisfaz com a finitude, mas · só se plenifica.
:l

reza humana, isto é, do fato de o homem ser homem, com o Absoluto. É a dimensão espiritual do homem que
independentemente de nacionalidade, sexo, raça, rique­ se une, substancialmente, à material.
za, confissão religiosa e de outras notas acidentais da A Pessoa é indivíduo. Tem uma individualidade
personalidade. Já os direitos políticos decorrem da Pes­ própria. Não se repete. É distinta das demais e indivi­
soa, através da sociedade política (em virtude da relação sível em outras. Mas não fica também aí. Somente
de cidadania que se estabelece entre a Pessoa e a socie­ abrindo-se para o outro, na comunidade, na sociedade,.
dade política a que pertence). no convívio com as demais pessqas, ela poderá desenvol­
8. Pessoa Humana ver suas qualidades, a semente de personalidade que traz.
no seu íntimo, o seu próprio ser. Duas posições falsas se
Vimos acima que se pode definir democracia como o colocam referentemente a essa característica da Pessoa:
regime que reconhece, respeita e promove os direitos da o iridividualismo, que reduz o homem a sua dimensão,
Pessoa Humana. De onde se conclui que o ideal demo­ individual; o socialismo, que o reduz a sua dimensão so­
crático repousa sobre a noção de Pessoa Humana. cial. A concepção verdadeira do homem e da sociedade
Pessoa Humana é uma concepção de homem. É é solidarista, enxerga no homem uma natureza solidá­
aquela concepção que vê no homem três características ria, isto é, ao mesmo tempo individual e social. s.

6 Para a distinção entre "direito de personalidade" e "di­ r GoNELLA, Guido, Bases de Uma Ordem Social, Petrópolis,
reitos de cidadão", consagradas essas expressões em nosso di­ Vozes, 1947, pp.11-16.
reito: LIMA, Ruy Cirne, Princípios de Direito Administrativo, s QUILES, Ismael, La Persona Hurnana, Buenos Aires, Espasa.
Porto Alegre, Livraria Sulina Editora, 1964, pp. 101 a 103. - Calpe Argentina, 1942, pp. 200-220.
18 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 19

A Pessoa é um ser racional: um ser singular que pos­ 9. Fins e instrumentos do Estado 9
sui consciência de si e é capaz de refletir sobre o mundo
A razão de ser do Estado é a realização integral da
que o cerca. Por isso se pode dizer que a Pessoa goza de Pessoa Humana. O Estado, porém, face à liberdade na­
liberdade. A liberdade da Pes�oa fundamenta-se na sua tur�l da Pessoa, não pode realizar a Pessoa de forma
racionalidade: Sendo racional, a Pessoa é essencialmen.: direta e imediata, como, por exemplo, faz um escultor
te livre; sendo livre, a Pessoa é responsável. A respon­ ao criar suas obras. O que o Estado pode e, mais, deve
sabilidade é a contraparte da liberdade, é o ônus que fazer é proporcionar às Pessoas condições (m�ios, opor­
acompanha todo o ato livre do homem. tunidades, recursos... ) para que elas próprias desenvol­
As características da Pessoa revelam, já no plano na­ vam integralmente suas personalidades. O conjunto
tural, a grandeza da dignidade humana. Por ser ao dessas condições que o Estado deve proporcionar às Pes­
mesmo tempo material e espiritual, individual e social, soas para que elas próprias se realizem é designado pelo
dotada de racionalidade e liberdade, a Pessoa possui um termo bem comum. Em resumo: a finalidade do Estado
é servir à Pessoa, isto é, voltar-se totalmente (absoluta­
valor incontrastável diante das demais criaturas. Daí
mente) à realização de sua dignidade e de seus direitos
porque todos os bens da natureza e todas as estruturas,
fundamentais (fim último ou mediato), proporcionando
sejam econômicas, sociais ou políticas, só têm sentido na
as condições sociais necessárias - o bem comum (fim
medida . em que estiverem ordenados ao bem da Pessoa próximo ou imediato).
Humana.
As condições que constituem o bem comum podem
Contemplada no plano sobrenatural, a dignidade da ser classificadas em duas espécies: as genéricas e as es­
Pessoa (que se pode descobrir, no plano natural, pelo pecíficas. 10 As primeiras são aquelas que atendem in­
uso reto da razão) confirma-se e completa-se, adquirindo distintamente e no mesmo grau a todos os membros da
um valor ainda maior. A Revelação nos mostra a Pessoa comunidade política. Tais condições são, basicamente, a
como imagem e semelhança de Deus, finalidade do mun­ Ordem, a Liberdade, a Justiça, a Segurança e o Pro­
do criado e destinatária da obra redentora, na qual Deus gresso. Formam os objetivos permanentes do Estado,
assume a natureza humana e chega ao Sacrifício su­ funcionando como fator de coesão e unidade social,
premo para reconduzir os homens à Felicidade. acima dos interesses específicos que dividem os grupos
no interior da sociedade. As condições específicas, por
Agora, numa terceira aproximação, podemos definir sua vez, são aquelas que atingem, em grau diferente, os
a democracia como o regime· de governo que tem na Pes­ diversos setores da sociedade política, beneficiando mais
soa Humana o seu valor fundamental, ou seja, que com­
preende a Pessoa como o princípio e o fim da organização 9 RODEE, ANDERSON, CHRISTOL, Introdução à Ciência Política,
Rio, Livraria Agir Editora, 1959, Tomo I, pp. 108-110.
politica. Numa frase: o regime onde a Pessoa Humana 10 TORRES, J. C. de Oliveira, Natureza e Fins da Sociedade
tem vez. Política, pp. 110-112 e 117.

i.
li
ill
20 0EZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 21

a uns do que a outros. Essas condições são ilimitadas Hzada em dois aspectos: enquanto concepção filosófica
em número: pontes, estradas, escolas, planos de alfabe­ a propósito dos fins do Estado e enquanto processo
tização, desenvolvimento da pesca etc . . . Formam o político. 12
que se pode chamar de objetivos atuais dos governos, eis Enquanto filosofia, a democracia é a concepção po­
que soem integrar as plataformas dos partidos que dispu·­ lítica que faz do Estado um meio natural e necessário
tam o governo no seio da sociedade política. para'kervir a Pessoa, em sua dignidade e nos seus direitos
Colocada, nestes termos, a finalidade do Estado, fundamentais, realizando o bem comum. É a democracia
chegamos a uma quarta aproximação do conceito de em seu aspecto substancial.
democracia. Democracia nada mais é do que a situação Enquanto processo político, a democracia é o prin­
política de um Estado que cumpre com o seu dever. É cípio de organização dos instrumentos políticos, pelo
o Estado que, em sua atividade, mantém-se fiel à sua qual os cidadãos devem participar, pelo consentimento,
natureza, à sua missão, aos seus fins. Ora, o saudoso do fundamento e do funcionamento do poder. O con­
li Professor Armando Câmara définia o valor como "a con­ sentimento, como fundamento do poder, se efetiva pelo
'i.
formidade do dinamismo do ser com os seus fins". 11 Po­ Estado-de-direito, isto é, pela adesão dos cidadãos à
lli
,i deríamos, assim, na trilha aberta pelo pensamento do Constituição que organizou o Estado e pela sujeição dos
1!
.,. mestre riograndense, sustentar que a democracia é. um poderes constituídos ao império dessa Constituição. O
valor, o valor político por excelência, assim definível: a consentimento dos cidadãos no funcionamento do poder
conformidade do dinamismo do Estado com os seus fins. ..
se efetiva pelo exercício dos direitos políticos. É a demo-
cracia em seu aspecto instrumental.
Por outro lado, o· Estado também necessita de ins­
trumentos para atingir seus fins. O aparelho instrumen. Na Grécia antiga, a democracia não passava de um
tal do Estado pode ser denominado de estrutura política processo político pelo qual os cidadãos participavam (e
ou de "governo" em sentido amplo. É através da utili­ diretamente) do governo da cidade-Estado. A "demo­
zação do mecanismo instrumental político que o Estado cracia dos antigos" era, assim, basicamente instrumen­
é dirigido para suas finalidades. Por isso se fala em po­ tal, uma vez que os gregos não tiveram consciência clara
lítica educacional, política econômica, política habita­ da existência dos direitos fundamentais da Pessoa Hu­
cional etc. mana e, muito menos, de que o Estado existe para pro-
12 Colocam, com clareza, esses dois aspectos da democra­
10. Duplo aspecto da democracia cia: como "filosofia" e "sistema de governo". RoDEE, ANDERSON e
A democracia - regime de governo, ou seja, modo CHRISTOL, op. cit., p. cit.; como "substância" (ou essência) e
"forma", SICHES, Luís Recasem,, Vida Humana, Sociedad y De­
de relacionamento homem-Estado - pode· ser visua- recho, Méjico, Ed. Fondo de Cultura Economica, 1945, p. 496;
como um sentido "substancial" e um sentido "formal" que se
11 CÂMARA, Armando Pereira da, Apostilas de Aula (Filoso­
completam, MALUF, Said, curso de Direito Constitucional, São
fia do direito), Porto Alegre, Faculdade de Direito, 1968: . Paulo, Sugestões Literárias S/A, 1970, v. 1.º, pp. 271 e 274.
22 0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 23

mover e realizar tais direitos. 18 A "democracia dos mo� damentais, no campo econômico e social, descobertos e
dernos", como vai se estruturando, no mundo ocidental, definidos sob o influxo das novas condições vigentes na
a partir do século XVII, além de participação dos cida­ sociedade industrial. 1º
dãos no Governo (democracia instrumental), significa,
antes de tudo, uma concepção filosófica de preordena­ 11. Relações entre democracia instrumental e
ção do Estado à Pessoa (democracia substancial) . 14 democracia substancial
Os dois aspectos da democracia ocidental sofreram Democracia substancial e democracia instrumental
o impacto da transformação do Estado liberal, não in­ não formam duas democracias, mas dois aspectos do
tervencionista, dos séculos XVIII e XIX, para o Estado único e mesmo ideal. Realização dos fins democráticos
social, intervencionista, de nossos dias. (o governo para o povo), através de instrumentos tam­
A democracia instrumental que, originalmente, s� bém democráticos (o governo do povo e pelo povo), eis
fundou no modelo da democracia pela representação, da o ideal democrático.
soberania dita nacional, do sufrágio restrito, da inde­ Cabe, aqui, enfatizar a relação que existe entre os
pendência do representante face ao eleitor e do primado dois aspectos da democracia. ..
do Parlamento, evoluiu, no século XX, ao modelo da
A negação da filosofia democrática, isto é, uma con­
democracia pelos partidos, ou seja, da soberania dita po­
cepção que coloque, como fim do Estado, não a Pessoa
pular, do sufrágio universal, da vinculação do represen­
Humana em sua dignidade, mas a grandeza da nação, o
tante aos eleitores e do primado dos partidos políticos. 15
domínio de uma classe ou a hegemonia universal, é in­
A democracia substancial, definida, na era liberal,. conciliável com a afirmação de direitos políticos e do
pelo respeito às liberdades públicas, no século XX am­ Estado-de-direito.
pliou seu conteúdo para abranger os novos direitos fun-
e_� Por outro lado, -uma limitação �permanent da de­
(t =

1s BoNAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal ao Estado Social, mocracia instrumental, isto é, dos direitos políticos ou
São Paulo, Saraiva, 1961, pp. 143 a 179. Analisa aprofundada­ do Estado-de-direito, tenderá a se refletir, mais cedo ou
mente a questão dos direitos do homem na antigüidade grega. mais tarde, numa subversão dos valores democráticos
11 CoNSTANT, Benjamin, Cours de Politique Constitution­ que fazem da Pessoa o princípio e o fim da vida política,
nelle, Paris, Librairie de Guillaumin et Cie, 1872, t. II, pp. 539-560. ou, pelo menos, numa perda de intensidade de efetiva­
Aí, pela primeira vez, se compara "a liberdade dos antigos" com
"a liberdade dos modernos", ou seja, direitos de participação no
ção dos fins democráticos (os direitos fundamentais da
poder com independência individual do homem diante do poder. Pessoa).
Ê. com base nessa comparação que BURDEAU distingue a "liber­ Na verdade, somente a filosofia democrática confere
dade-participação" da "liberdade-autonomia" (op. cit., pp. 9 sentido à democracia instrumental e esta é o instrumen­
a 12).
to mais adequado à efetivação daquela.
15 BURDEAU, Georges, A democracia, Lisboa, Publicações
Europa-América, 1969, O autor analisa as transformações da
democracia política liberal à democracia social. 16 BONAVIDES, Paulo, Do Estado Liberal. . . ' p. 231 a 234.

1

24 0EZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 25

12. A democracia como ideal É,


por exemplo, o caso do comunismo. Para Marx, o
homem é capaz de construir uma sociedade perfeita,
Como temos insistido, a democracia é um ideal de sem classes, sem os instrumentos de poder que compõem
1 organização justa da sociedade política. Afirmar a de­
;1 o Estado. Basta para tanto que a estrutura econômica
mocracia -,- tanto em seu aspecto substancial, como em seja organizada de forma a acabar com o que ele definia
seu aspecto instrumental - como um ideal, é reconhe­ como a exploração dos trabalhadores pelos detentores
cer, humildemente, que, se o aperfeiçoamento constante dos bens de produção, mediante a transferência da pro­
das sociedades é possível e necessário, a perfeição com­ priedade desses bens para a coletividade (não propria­
p12ta é inatingível. 17 mente para o Estado, já que este deve desaparecer).
A marca da imperfeição e da contingência do ho­ Essa transformação da estrutura econômica teria, como
mem acompanha todas as suas expressões e a organiza­ conseqüência necessária, a superação -das classes sociais,
cão política é, também, expressão de homens. Aliás, se das religiões e do Estado. 18 Estaria, então, aberto o es­
é a capacidade do homem para o bem que torna possível paço para o aparecimento de uma sociedade perfeita,
a democracia (não pode haver democracia sem um mí­ onde as coisas administrar-se-iam por si próprias ... 111
nimo de respeito, compreensão e amor ao próximo), é a Na prática, a revolução comunista e a teoricamente
inclinação do homem para o mal que a torna necessária provisória ditadura do proletariado, não só não acarre­
(se os homens fossem perfeitos não seria preciso limitar taram a morte do Estado (nem das classes, nas religiões,
o poder, fazer eleições livres etc.). O próprio Estado, en­ como Marx previa, com critérios que julgava "cientifi-
tidade natural e necessário, destinada a promover o bem
comum, é sinal da contingência e das limitações hu­ 1s "A superação positiva da propriedade privada como
manas. apropriaÇ,ão da vida humana é por isso a superação positiva de
São desoladores os resultados práticos das utopias toda alienação, isto é, o retorno do homem da religião, da fa­
que acenam com a possibilidade de o homem construir mília, do Estado, etc., ao seu modo de existência humano, isto
uma sociedade perfeita nesta terra! Elas geralmente é, social." (MARX, Karl, Terceiro Manuscrito Econômico-Filosó­
sacrificam a relativa democracia existente, em nome das fico, in: Os Pensadores, v. XXXV, São Paulo, Abril Cultural,
1974, p. 15).
imperfeições que esta apresenta, na esperança do adven­ 10 "Um novo regime social nascerá, em que o Estado desa­
to de uma nova sociedade que, por tão perfeita, é
parecerá no sentido de poder público e somente subsistirá no
absolutamente impossível e, por isso mesmo, não raro, sentido de organização econômico-soci.al. O serviço público eco­
acabam degenerando em atrozes totalitarismos, opostos, nômico tornar-se-á o essencial; a defesa, a política não terão
inclusive, às inspirações que lhes presidiram a elabora­ senão um papel secundário. O Estado se apresentará como uma
ção. federação de serviços públicos, uma cooperação para satisfazer
necessidades coletivas. A sociedade será cada vez menos gover­
17 RODEE, ANDERSON, CHRISTOL, op. cit., p, cit.: "A demo­ nada e, cada vez mais administrada. Segundo a fórmula clás­
cracia ainda não foi atingida, mesmo nas nações democráticas sica de ENGELS, "ao governo dos homens suceder-se-á a admi­
mais adiantadas, a sua prática se encontra aquém dos seus nistração das coisas". (PRÉLOT, Marcel, Histoire des idées poli­
ideais". tiques, Paris, Dalloz, 1970, p. 621 (T. do A.).

r
414 -3
26 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

cos"), mas também - exatamente ao contrário - pro­


duziram um monstruoso Estado totalitário, controlado
ferreamente por um partido único e fechado, que, ao
monopólio do poder político, somou todo o poder eco­
nômico e todo o poder de domínio ideológico sobre as ..
consciências por ele formadas.
CAPÍTULO II

AS VICISSITUDES DO IDEAL DEMOCRÁTICO


13. A negação da democracia: o totalitarismo
O totalitarismo é a negação da substância democrá­
tica, ou seja, da concepção segundo a qual o Estado existe
absolutamente para a Pessoa HUIITlana.. "Asi como la de­
mocracia es un estilo de vida, una filosofia práctica, el

totalitarismo es el estilo y w filosofia opuestos, que absor­
ben la to.talidad del hombre y de su actividad privada y
social. Reivindica para el Estado la fuente originaria de
toda razón, de todo derecho, de toda moral; desconecta
al Estado de toda orden natural transcendente, y no
admite norma que lo limite; el propio Estado lo justifica
todo. Su mística la descubrimos en el fascismo: "Siempre
con el Estado que está por encima de todo y de todos." 1
1

1:
''
As doutrinas totalitárias vêem o homem exclusiva­
mente em seu aspecto social e como simples peça a ser­
viço do mecanismo político, · sem direitos fundamentais
oponíveis e exigíveis frente ao Estado.
O século XX forneceu o clima favorável à concreti­
zação dessas doutrinas, as quais, aliadas à utilização dos
avanços da ciência e da técnica, vão produzir as formas
mais opressivas de Estado que a História conheceu.

l 1 CAMPOS, José Bidart, Doctrina del Estado Democrático,


Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971, p. 212.
28 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 29

Três são os sistemas típicos de totalitarismo surgi­


dos na Europa: o fascismo, o nacional-socialismo e o co­ do "povo" que, teoricamente, não só detém, corno é o
munismo. Distinguem-se pelo fim desvirtuado que im­ próprio governo.
C'om essa identificação povo-governo quem lucra é o
põem ao Estado. O fascismo, fundado na Itália por Mus­ Estado. 3 Face ao domínio que o Estado adquire sobre a
solini, estabelecia como finalidade do Estado a realização massa, torna-se ele detentor de um poder absoluto, sem
da grandeza e da plenitude da Nação, que no fundo se limites e sem controle, o que lhe possibilita violar impune
reduzia à própria idéia de Estado. O nacional-socialismo e sistematicamente os direitos fundamentais da Pessoa.
na sua formulação hitlerista, imaginava o Estado como
o guardião da pureza da raça, para assegurar a sua per­
14. A crise da democracia
petuação e o seu triunfo.
O comunismo, enfim, somente justifica o Estado O ideal democrático consiste, como se viu, na har­
como o instrumento transitório destinado a construir monização interna do duplo aspecto da democracia: o
através da ditadura do proletariado, a sociedade comu� substancial - uma concepção filosófica relativa aos fins
nista.2 do Estado - e o instrumental, ou seja, um processo
Nos regimes totalitários modernos não há lugar para político de base popular.
a democracia instrumental, vale dizer, para o princípio As instituições políticas próprias à democracia ins­
da participação do povo no governo. É que o Estado tota­ trumental foram fundadas, no século XVIII, pelos libe­
litário, transformando-se em instrumento da Nação, de rais, sem dúvida como uma garantia a mais para que o
raça ou de classe, ao mesmo tempo que reduz o conceito Estado se mantivesse adstrito ao que entendiam eles de­
yeria ser sua finalidade: a preservação das liberdades
�e povo aos membros de um desses três grupos, identi­ públicas. 4
fica este "povo" com o próprio governo. Em suma, na
teoria do Estado totalitârio, não há distinção entre povo Hoje, porém, assistimos a um fenômeno paradoxal,
e governo, o governo pretende ser o próprio povo no cada vez mais freqüente: a democracia instrumental, no
poder e a vontade do governo é, supostamente, a vontade seu livre funcionamento, tem possibilitado o surgimento
do povo. O recurso político mais importante para rea­ de uma situação de conflitos, de abusos e de irresponsa­
lizar essa identificação é o partido único, monopolizador bilidades que ameaça a realização do bem comum e, con­
do processo de formação e de tomada das decisões. o seqüentemente, a preservação da democracia substancial.
partido único desempenha o papel de órgão da unidade
s BuRDEAU, Georges, A Democracia, p. 101.
2 "O Estado nacional supõe encarnar a comunidade em
,1 "La liberté individuelle, je le répéte, voilà la veritable
1, liberté moderne. La liberté politique en est la garantie; la liberté
forma política e empreende a marcha para sua plenitude; o
politique est par conséquent indispensable. Mais demander aux
Estado racista imagina ser guardião da pureza do sangue para
peuples de nos jours de sacrifier, comme ceux d'autrefois, la
assegurar a perpetuação e o triunfo da estirpe; o Estado de
totalité de leur liberté individuelle à leur liberté politique, c'est
classe sonha com reivindicações proletárias e se define como

f
le plus sür moyen de les détacher de l'une; e quand on y serait
agrupação de homens explorados, para sua red�nção total." parvenit, on ne tarderait pas à leur ravir l'autre." (CONSTANT,
(CAMPOS, José Bidart, op. cit., p. 213. T. do A.)
Benjamin, op. cit., p. 555 do t. II.)
30 QEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 31

Em outras palavras: o processo político democrático, em Em segundo lugar há também que se considerar a
seu livre jogo, tem criado, com freqüência anormal, si­ inadequação do modelo político aos valores sócio-cultu­
tuações de perigo à sobrevivência da própria substância rais históricos do País. Refere-se aqui a situação decor­
da democracia. Eis a grave crise da democracia em nossos rente da importação de fórmulas políticas para realida­
dias: por um lado, é cada vez mais difícil a realização do des bem distintas e às vezes até opostas à realidade em
governo para o povo mediante o governo do povo e pelo que foram geradas.
povo; e, por outro lado, não é possível o governo para o A inadequação das formas ·políticas à realidade a
povo com limitações permanentes ao governo do povo que se aplicam produz uma série de desajustes, de desar­
e pelo povo. monias e· de dissensões que, sobre dificultar a realização
É certo, a crise da democracia tem causas econômi­ mais fácil e normal do bem comum, ainda facilita a .sua
cas e sociais, cujo estudo refoge ao âmbito deste trabalho. manipulação pelas forças interessadas na derrocada da
Mas devemos reconhecer que esta crise tem também filosofia democrática.
causas especificamente políticas, isto é, ligadas à própria
estruturação política do Estado. 15., Limitações à democracia instrumental e autorita­
Em primeiro lugar, há a inadequação do modelo po­ rismo
lítico ao mundo atual. Grande parte dos Estados ainda Como enfrentar uma situação concreta de crise da
hoje mantém. uma organização política presa, em suas democracia, em que o processo político democrático
linhas básicas, ao modelo clássico setecentista, que não • ameace· conduzir a sociedade à anarquia, à desagregação
mais responde às exigências e aos desafios de um mundo e ao perecimento das condições genéricas do bem co­
que mudou muito nos últimos duzentos anos. 5 Não só mum? Qual a regra de conduta política aplicável ao
a substância. democrática hoje impõe a realização da caso?
justiça social e dos direitos econômicos e sociais, mas as Se a democracia instrumental, em seu livre funcio­
condições _da vida em sociedade são completamente namento, puser em perigo a democracia substancial
outras, brustando que se atente apenas para o fato de que (vale dizer, o bem comum) e se. a incompatibilidade esta­
vivemos a era <:las massas, 6 com os gr�ndes conglome- belecida for de tal gravidade que exija um desate ime­
rados urbanos, a difusão do consumo e. o encurtamento diato, pelo que se deve optar: pela manutenção da de­
brutal das distâncias. mocracia instrumental, ainda que com o sacrifício da
democ· racia substancial, ou pela preservação da democra­
5 "Um dos principais motivos de crise do Estado contem­
porâneo é que o homem do século XX está preso a concepções cia substancial, ainda que para tanto se tenha que admi­
do século XVIII, quanto à organização e aos objetivos de um tir a limitação da democracia instrumental?
Estado Democrático." (DALLARI, op. cit., p. 259). A regra moral para a solução desta incompatibili­
6 O poder ·das forças da sociedade moderna, que fazem dos dade, quando inafastável por outros meios, nos indicá
homens massas ou multidões, é o maior dos desafios modernos o caminho do mal menor. E o mal menor está na última
à democracia (LINDSAY, A. D., O Estado Democrático Moderno
Rio, Zahar Editores, 1964, p. 239-240). hipótese: limitar a democracia instrumental para salva-

ii
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 33
32

por
guarda da substância democrática. Esse direito de limi­ ção" das li:md.tações à democracia instrumental, que,
uma
tação revolucionária da democracia política, porém, há definição, deveriam ser transitórias. Trata-se de
craci a pela limi­
de corresponder a um dever imediato: o de corrigir os te ntativa de solucionar a crise da demo �
defeitos da organização política e as falhas da vida co­ tação, revolucionariamente "permanentizada", da demo
(pela
munitária que impedem a restauração da democracia cracia política. O regime, se não é ainda totalitário
da Pesso a um instr u­
política sem problemas mais graves. 7 Por isso se sus­ ausência de uma ideologia que faça
é tamb ém ple­
tenta, em doutrina política, a licitude moral da limitação mento sob o domínio do Estado), já não
ípio
da democracia política quando, necessária e transitória, namente democrático - uma vez que o seu princ
tiver por objetivo evitar o mal maior que representaria a político não é praticado. Estamos dian te de um sistema
que podemos chamar de autoritário.
9
destruição da substância democrática. 8
Pode ocorrer, no entanto, que os obstáculos que im­ o autoritarismo, nessa perspectiva, talvez açõe pudesse
s re­
ser definido como a "permanentizaçã o" de limit
pedem a harmonização da democracia instrumental com o fund a­
a democracia substancial não sejam superados desde volucionárias à democracia instrumental, sob da
iais
logo, pouco importa aqui se por impossibilidade real, por mento da preservação dos principias substanc
ignorância do modus faciendi ou por simples má-vonta­ filosofia democrática. 10

o autoritarismo possui um risco que não. Ou deve ser


de. Acontece, assim, muitas vezes, uma "permanentiza- o sis­
minimizado: o de descambar no totalitarismo ao
sobr e si mes mo,
7 "Mas onde o exercício dos direitos foi restringido por tema pode se fechar repressivamente
!' 1
certo tempo, em vista do bem comum, mudadas as circunstân­
cias, restitua-se q uanto antes a liberdade": esta a regra de 9 "Cuando se aplica ilimitadamente el término autorita­
j rismo a un sistema de gobierno y a un sistema de vida, se lo
moral politica, como formulada pelo Concílio vaticano II (Cons­
li. tituição Pastoral Gaudium et Spes, § 454; Documentos Pontifí­
cios n.0 155, Petrópolis, Vozes, 1967, p. 96).
puede contrastar por una parte con el totalitarismo y por otra
con la democracia. ( ... ) Tanto con respecto a los fines como
i a los medios, el autoritarismo difiere acentuadamente del tota­
8 Trata-se de uma aplicação da doutrina de moral polí­
tica que autoriza à comunidade, como último recurso, resistir litarisnw, según hemos apuntado. El gobierno autoritario aspira
- até ativamente - à autoridade ou ao regime injustos, quando principalmente a fiscalizar las actividades políticas del hombre
os males decorrentes do acatamento forem maiores aue os en contraste con el sistema totalitario que procura el domínio
advindos da resistência. Doutrina tradicional no pensa�ento de todos los aspectos de la vida, los apolíticos no menos que·
cristão, teve em Santo Tomás seu mais clássico defensor. "E zos políticos. En el sistema autoritario el ciudadano común goza
o bem comum é para Santo Tomás a medida e o limite do relativamente de libertad para ejercer sus activi.dades religiosas,
chamado direito de resistência. Para que se possa resistir aos familiares y domerciales, a condición de que no se mezcle en
governantes, é preciso que esses signifiquem um perigo para poZítica. De tal modo el autoritarismo ofrece al ciuda.dano U1!ª
o bem comum. Este, porém, não corporifica apenas Justiça, mas amplia esfera de vida privada en la que puede conservar aun
também, mais ainda talvez, ordem. O que procura Santo Tomás cierta dignidad y autoestima." (EBENSTEIN, William, El Totali­
tarismo, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1965, p. 33, 36 e 37) ,
10 o professor JUAN J. Linz (no estudo intitulado O futuro
salvaguardar, sobretudo, é o bem comum, ou melhor, o que
procura proteger é a ordem social conforme as exigências da
natureza humana". (PAUPÊRIO, A. Machado, O Direito Político de uma situação autoritária ou a institucionalização de um
de Resistência, Rio, Forense, 1962, p. 75). regime autoritário: o càso do Brasil, publicado na coletânea

i
"lj!
,1

1' 1
34 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

ponto de chegar à negação da própria substância demo­


crática, ou pode provocar uma reação totalitária que, a
pretexto de combater o autoritarismo, acabará condu­
zindo o Estado, de vez, ao regime totalitário.

SEGUNDA PARTE

A DEMOCRACIA NO BRASIL
Esta segunda parte busca analisar, em quatro
Capítulos, o caso particular brasileiro à luz dos prin­
cípios e critérios definidos na primeira. A democracia
no Brasil tem sido acompanhada, em sua História,
de uma crise política constante (Capítulo I). Hoje,
no plano da organização do Estado, o sinal desta crise
está na existência de poderes excepcionais revolucio­
nários que limitam a democracia instrumental, espe­
cialmente quanto ao Estado-de-direito ( Capítulo II).
No entanto é daí o impasse em que se debate o País
- se a existência desses poderes limitam a democra­
cia, a sua revogação pura e simples, sem a reforma das
bases da organização constitucional que nos tem re­
gido desde 1891, não significará, nem garantirá, por
si mesma, o advento de uma democracia política es­
tável e livre dos males que a têm comprometido no
correr de nossa História (Capítulo III). Ocorre que
as limitações revolucionárias não são a causa da crise,
mas uma conseqüência dela: a causa política é mais
Authoritarian Brazil, pela Yale University Press, em t973) con­ profunda e vai ser encontrada, isto sim, na inadequa­
clui que o caso brasileiro é muito mais o de uma situação auto­
ritária do que o de um regime autoritário. Para ele, a natureza
ção das instituições à realidade nacional ( Capí­
do regime que pode vir a surgir ainda é bastante indefinida. A tulo IV).
existênqia de uma situação autoritária, muito mais que de um
regime autoritário é uma evidência das dificuldades que se
apresentam para a institucionalização desse tipo de regime.
A CRISE DA DEMOCRACIA

16. A natureza instrumental da crise

O Brasil é uma nação historicamente e de firme


vocação democrática. Com isso se quer dizer que um dos
valores ma.is marcantes do patrimônio histórico-cultural
da comunidade brasileira é a concepção de que o Estado
existe para a Pessoa Humana, entendida. esta no sentido
posto em evidência pelo Cristianismo. Essa concepção foi,
inequivocamente, um dos pilares do consenso que levou
à fundação da sociedade política em 1822 e, �desde 1824,
tem sido consagrada em nossas Constituições, tanto em
suas bases e em seu espírito, como, em especial, nos ca­
pítulos dedicados aos direitos do homem. 1
O processo político democrático, porém, por deficiên­
cias que mais adiante se analisará, não tem sabido cor­
responder a essa vocação brasileira para a democracia. O
modelo político experimentado, pelo menos desde 1891,
nifo só parece esbarrar em sérias dificuldades para efeti-

1 ''Nação democrática, a brasileira, é governada sem espí­

rito totalitário. Nem mesmo nas fases em que a democracia,


como forma de governo, entrou em colapso no Brasil, durante
a vigência da Constituição de 1937, sob a presidência de Getúlio
vargas, o espírito democrático eclipsou-se de todo; conservou
as raízes, e dela brotou, de novo, a mesma árvore antiga, que
foi transplantada pela civilização portuguesa" ( ... ) . Podemos
lfi
,,1

CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 39


1
38

var-se na realidade, como se revela incapaz de por cobro uma fórmula que permita a democracia política, 2 a mais
ou dar remédio legal aos abusos, aos conflitos e às irres­ ampla possível, sem que a concepção democrática corra
ponsabilidades que naturalmente tendem a acompanhar () risco de submergir no embate dos conflitos e das crise.s
o exercício da liberdade política e que, muitas vezes,
ameaçam a conservação da substância democrática. 11. Raízes históricas da orise
A democracia brasileira tem vivido em constante Antes de prosseguir a análise, convém registrar que
crise, na medida em que não conseguiu conciliar a liber­ a crise da democracia brasileira . não tem suas raízes na
dade e a segurança que, nos limites do possível, a comu­ edição do Ato Institucional n.0 ,5, de 13 de dezembro de
nidade possui· o legítimo direito de aspirar. Não raro a. 1968, nem, muito menos, no moviménto de 31 de março
crise evolui para uma situação paradoxal: para salva­ de 1964. Foi, na verdade, a incapacidade das instituições
guardar os valores substanciais da democracia, ínsitos à políticas em possibilitar unia superação constitucional e
própria comunidade, suprime-se a democracia política, pacífica das crises e dos conflitos entre os poderes, que
recorrendo-se à limitação :revo.lucionária. do processo po­ levou as Forças Armadas ao caminho revolucionário. A
lítico democrático, que atinge o Estado de direito,,€) os crise é anterior a 1964 e a Revolução se fez, justamente,
direitos políticos. com o intuito de resolvê-la.
Na atualidade brasileira, talvez como em nenhum Essa particularidade é· importante porque nossas
outro momento anterior de nossa I{istória, viv&-se com elites têm se comportado com incrível imediatismo sem­
tanta dramaticidade essa situação paradoxal. De um pre que, após as fases revolucionárias, se tratou de
lado o desejo, tantas vezes manifestado, dos mais eleva­
2 Escrevia OLIVEIRA VIANNA em 1925, em palavras ainda
dos líderes do movimento re,volucionário, de instituir. um
carregadas de atualidade: "O presente regimen não deu satis­
processo político democrático eficiente e estável. De fação às nossas aspirações democráticas e liberais: nenhuma
outro, as dificuldades para a realização dessa aspiração, delas conseguiu ter realidade dentro da organização política
justamente por não se ter chegado a um consenso sobre vigente. Estamos todos descrentes dela; todos sentimos que
precisamos sair dela para outra cousa, para uma novs, forma de
governo. Esta nova forma de governo, entretanto, ninguém
dizer, portanto, que a democracia, nesse sentido, .instituciona­ ainda pode dizer ao certo qual. deva ser. Não há nenhuma aspi­
lizou-se no Brasil, cimentou-se graças ao consensus, que herda­ ração definitivamente cristalizada na consciência das. massas.
mos de Portugal e o conservamos como um bem precioso. ·se lhe Nenhum nódulo novo de crença se formou ainda no espírito das
faltam as características de institucionalização política, como nossas elites em torno de um princípio qualquer. Há;, sém dú­
fundação duradoura; se as crises que a abalam, delatam que vida, várias tendências de gravitação em torno deste ou daquele
politicamente, ainda não acertamos de todo o rumo, não ponto; mas, ainda assim vagamente, indistintamente, de forma
querem esses sinais dizer que não palpite nos sentimentos do imprecisa e indeterminada. Há uma certa tendência de retorno
povo brasileiro, mais do que na sua classe política, a espécie ao regimen parlamentar. Há uma certa tendência de retorno ao
de democracia que se contém nos Evangelhos. (ScANTIMBURGo, Poder Moderador, exercido já agora por um Conselho vitalício".
João de, Tratado Geral do Brasil, São Paulo, Cia. Editora Na­ (OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de, O Ocaso do Império, Rio,
cional, 1971, p. 136-7). Livraria José Olympio Editora, 1959, 3.ª Edição, p. 98).
40 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 41

reorganizar a democracia política. Assim, se


plenitude política democrática, nós agirmos
na busca da '\ alguns meses (de 1934 a 1937), inexistiu a democracia
como se os política, quer pela ausência do ��tado �e _direito,, �uer
nossos males políticos provenham da existênc
ia do Ato pela sonegação completa do exerc1c10 de direitos poht1cos.
Institucional n . 0 5 ou dos sucessos posteriores
mento de 1964, estaremos, de novo, organiza
ao movi­ O regime de 1946 nasceu sob o embalo das mais
ndo consti·· puras esperanças de que, enfim, encontraríamos um pro­
tucionalmente o Brasil, para, no máximo
, ' mais uma ou �esso político que realizasse, no plano do funcionamento
duas deca das. Somente uma reestruturação constitucio-
nal que leve em conta as raízes históricas da do poder, a irreprimível vocação brasileira à democracia.
tificando, para·suprimir, as suas causas polít
crise iden­ Mas a nossa elite, ainda presa demasiadamente aos pre­
fadada a permanecer.
icas, �stará conceitos constitucionais de 1891, desperdiçou, mais urna
Na verdade, a História política do Brasil dem ·vez, a oportunidade de criar um modelo novo, adequado
onstra à nossa realidade e que possibilitasse remédios constitu­
uma
.m p luta contínua, ainda não terminada' no sentido de cionais aos inevitáveis conflitos, abusos e crises, insepa­
� �antar um processo político ao mesmo tempo ráveis da vida política. E, ao sucumbir em 1964, a im­
cratico e estável. Mesmo durante o segundo demo-
onde - justiça lhe seja feita - o Brasil alca
reinado pressão que se teve foi a de que o regime ainda durara
alto grau de conciliação entre liberdade polí
nçou o mai� muito. Na verdade, nos dezoito anos incompletos assistiu,
tica
bilidade constitucional, havia problemas de orga e esta­ afora alguns levantes militares e a muitas agitações, a
nização pelo menos duas deposições presidenciais, e mais ao
�lítica que, inclusive, atuaram na transformação da suicídio de Vargas e à renúncia de Quadros.
cris,e de 15 de novembro numa revolução que
mudando a forma de governo e a forma de Esta
acabaria Portanto, a crise política da democracia brasileira,
do. de origem bem anterior a 1964, tem sido uma constante
Por sua vez, o regime estabelecido pela Cons tituição da História brasileira. 3 E, sem uma consciência clara
de 1891 nunca funcionou nos termos em que foi mod dessa dimensão histórica da crise, as recomposições cons­
ela­
do no papel. A Constituição, na prática, cham titucionais que forem tentadas apresentarão poucas pos­
ou-se
"Política dos Governadores" e "Coronelismo" vale
. , ' dize r' sibilidades de êxito.
�m sistema a�e. certo ponto feudal de organização polí-
tica, que perm1tm o predomínio da classe senhorial
. ente 3 A ligação da crise política da democracia no Brasil à
aquela do eixo São Paulo-Minas. Contra'
rural
estruturação política estabelecida em 1891 tem sido estabele­
especialm
esse sistema, desde 1922, vinham se acumulan
do as cida, de uma forma ou de outra, por um grande número de
queixas de que falseava o processo político democrá autores atuais, das mais diversas tendências, entre os quais:
O triunfo da revolução de 1930 representou, pelo
tico. BoNAVIDES Paulo A Crise Política Bras-ileira, Rio, Forense,
1969, pp. 68-75; FRANCO, Afonso Arinos de Mello, Evolução da
Crise Brasileira, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1965, p. 147
menos em parte, o reconhecimento da necessidade
de
buscarmos um regime político democrático, não apen
as a 166; sousA, J. P. Galvão de, Raízes Históricas da Crise Brasi­
na letra da Constituição, mas que se tornasse efetivo
no leira, Petrópolis, Vozes, 1965; ScANTIMBURGO, João de, A Crise
plano da realidade. No entanto, seguiu-se um perío da República Presidencial, São Paulo, Livraria Pioneira Editora,
15 anos, no qual, afora o breve interstício de três anos
do de 1969; TORRES, João Camillo de Oliveira, O Presidencialismo no
e Brasil, Edições O Cruzeiro, 1962.

414 - 4
CAPÍTULO II

AS LIMITAÇÕES ATUAIS A DEMOCRACIA


INSTRUMENTAL

18. U.m levantamento das limitações


No capítulo anterior concluiu-se pela existência, ao
nível da estruturação política do Brasil, de limitações à
democracia instrumental ou política. cumpre, agora,
examiná-las.
Geralmente se costuma invocar, como limitações, o
seguinte elenco:
1.° - a eleição "indireta" do Presidente da Repú-
blica;
2. 0 - o bipartidarismo;
3.0 - a nomeação de prefeitos municipais;
4.º - a existência de poderes excepcionais revolu­
cionários, cujo instrumento básico é o Ato Institucio­
nal n.0 5.
Nem todos os itens aí apontados constituem, efeti­
vamente, limitações à democracia política, não passando
de meros preconceitos políticos muito difundidos entre
nós. De modo que se impõe uma análise mais cuidadosa
da matéria. '.É o que tentaremos fazer a seguir.

19. A eleição indireta do Presidente da República


Dentre as pretendidas limitações à democracia ins­
trumental existentes na estrutura política atual ouve-se,
44 CEzAR SALDANHA SOUZA JUN
IOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 45
com muita insistência, a referênci
a ao fato de O Presi­ Entretanto - poder;-se-ia objetar .- no Brasil o
dente da República, hoje, ser
eleito de for.ma dita chefe de Estado acumula as funções de chefia de um ·
''indireta''
governo! Com efeito, é aí qu� reside.a falha verdadeir�­
<:orno já ensinava Assis Brasil, para enfren
q uestao tem-se que partir da nat tar a mente grave da organização da Presidência da Re_!)u­
_ ureza do cargo de Pre­ blica. Corno adiante se verá, essa acumulação de funçoes,
sidente da República. 1 Ora, o Pre
sidente é antes de tudo desapercebidamente, causa problemas muito sérios a
o chefe. de Estado, o represent
ante da comunidade na­ nossa democracia política. Mas o fato em si do chefe de
cional, a qual deve estar acima
dos partidos, das classes Estado ser eleito indiretamente nada tem com democra­
e d� peculiaridades regionais que
a compõem. Enquanto cia. Chefe de Estado eleito ou não eleito é o que define,
chefia de Estado, a Presidência
não é órgão representa­ respectivamente, república e monarquia: E t�n�o pode­
tivo de opinião política ou partidá
ria, mas da Nacão na mos ter monarquias democráticas ou dltatorrn1s, como
unidade de sua diversidade.
Por esta razão, o fato do Chefe repúblicas ditatoriais ou democráticas.
primeiro representante da Nação, de Estado, como Deste modo, no Brasil, o só fato de eleger-se "indi­
ser eleito diretamente retamente" o Presidente nada tem··. de desabonador do
ou indiretamente e, mesmo, nem
ser eleito, nada tem
a ver com democracia. sário assentá-la claramente para facilitar a compreensão .da
Tomemos o caso extremo, para natu reza do cargo, do modo de o prover e do espírito com q�e
bem esclarecer a deve ser exercido. Para ser completa e . exata, a express�o
situação. Na Inglaterra (e podería
ª.
brar Suécia, a Noruega, a Dinam
mos, igualmente, lem­
arca, a Holanda ... ) ,
representantes, quando al ude a deputados .e se1:a.�ores, devia
ser acomuanhada deste compl ement.o -:- da opimao. O con­
a chefia de Estado é exercida pel gresso n;cional, onde houver represe n tàçãó . verdadeira, deve
a Coroa, um órgão não
eletivo e vitalício. Seria absurdo rec
usar à Inglaterra e ser a miniatura do país político e social , i:co� ·t.o dos �s seus
ao.s demais Estados lembrados a con matizes salientes de opin ião; É um corpo co�etivo, a cu_J a for­
dição de democracias mação podem concorrer todos os partidos, tofü:s as variedades
só porque não elegem - nem mesmo
o chefe de Estado. A Inglaterra e os
indiretamente _ do pensa men to n acional, cada uma na proporçao. �as sua� for­
demais Estados que cas. Bem diverso é o caso do presidente. Este e autond�de
referimos não apenas são democracia
s, mas são das mais ;ingular, residindo em uma pessoa física, uma unida�e, �nfim,
perfeitas e estáveis que hoje se con
hece. que não :pode materialmente ser de todas a� proced�enci�s de
opinião ao mesmo tempo. Sem proporcionalld_ade, _ nao h� �e­
,· , _1 · Vale a pena trans
crever ·as lições deste que foi o gra presentação da opinião nacional, e a proporm�nalldade e. m­
teqnco do presidencialismo en tr nde conciliável com uma el eição singular. Se o presidente fosse u_:11
e nós., "O presidente da reo·ú­
blica é o chefe e primeiro repre
sen tan te da n açã,o, n
represent a nte da opinião política, só o pode:ia ser em rel�çao
de ser a autoridade política que o s�ntido ao partido qu e O elegeu . Mas, nesse caso, nao represe�tana a
mais visivelmen te exerce· 0
poder no interior e mais d ireta nação, que conta ainda no seu seio mu itos outros partidos, os
nome da soberania nacional . Ev
mente responde no exterior em
identemente não seri
a lícito
quais, somados, poderão mesmo exibir maior v?lume do que .º
c� ncluir daí que o pr siden te
� fosse um repres�ntante, na acep­ vencedor na eleição presidencial ( ...) . Sin tetizando, o �resi­
çao que toma este termo qu dente da república não é um representante: pela sua orige"':,
ando se refere- aos membros d
congresso n acional: A diferen ça o representaria a penas o partido que o levantou, o . q�e seria
é tão positiva quanto é neces-
inadmissível; pelo seu destino, não lhe compete servir mtere.s-
47
CIA NO BRASIL
A CRISE DA DEll,!!OCRA
46
pleitos e posi-
0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

is gr de s part'd 1 os que, na disputa de


processo político brasileiro. O problema é outro: está no do
em correntes menore s.
ções dividem-se - ,
an

, fato de o Presidente acumular a chefia de Estado e a a dificultada ;


nao e sta
'Em se�n d lug em bo r
chefia do governo. É isso que vamos examinar na parte -º . A Cons-
u:'ro s rêmios partidários
ar

d cria ç. a o de o
seguinte do trabalho. proibi a "exigência
5 , te ;II e stabelece
tituição , no art1�0
a a

a vo ado na últi­
t
o2el�it:ado 'que haj
de cinco por cen o � eputados, . distri-
r a a cA amara dos D ,
20. O bipartidariSmo
1e1·ção ge r l pa
ma e
Est do co m o mirumo de
Aponta-se, também, a circunstância de existirem, em se te ' . - , be m
bUl'dos pelo menos
a

E ssa cond1çao e
a s

atualmente, apenas duas organizações partidária s, como em c'ada dele "


sete po'r cent o . redação
e da n� item VII da
s

uma limitação à nossa democracia política . A questão xív el qu e a � s�a�


m is fle . 1: ��67 (art. 149)' embOra mais
não vem sendo bem colocada. d C n t1t mç ao e . a Le'1 n ·º 4 · 740 , de
orimn l
a

me n te ao que previa
s
Em primeiro lugar, não se pode dizer, rigorosamente, tlv
a o

rigorosa rel
a
. nica d os Par-
0•

a pr1m . e�ra Lei Orgâ


15 de julho de 1965 (
a
que existam apenas dois partidos. É sabido que cada uma - de um o utro
a

sível p olS a fundaçao -


das agremiações se divide em pelo me nos duas correntes, tidos). Não seria impos eres de expre.ssao, e m
sete
que se digladiam na busca da direção partidária . Aliás, de de qu e � lg uns líd
partido, sinceridade
e empenhassem com
tratando-s e de grupos humanos, é difícil compreender Est ados da Federaç ao, s
s

que um dia a uniformidade partidária venha a existir na tarefa. não


terceiro lugar, por que -
ou, mesmo, deva existir. A questão do número de par­ �abe,. então' inda.gar' em
tidos s e reveste de um cert o grau de relatividade: antes terceiro e u
quart o partido? A zao ra
se criara m _um
ro

de 65 tínhamos mais de dez partido s que, por ocasião da co� o pode : par
ecer simplesmente a
princ ipa l a é siste­
disputa dos pleitos e da partilha de posições, geralmente l. que, embor� mantido o
exigência constituciona É
n o
.'

compunham-se em duas grandes coligações ; h oje temos lin uagem costumeira em


prega
s,
logia exist� entre amb; r� ele:er. Eleger, eligere, é sempre
av
ses de grupos, mas os da nação. O caráter que predomina , pois, para os dois ca sos a pa s dermos atençã
o ao s en­
no presidente é o de empregado público. É o ocupante de um escolher, nomea r, des ig 1: r, s m, c ois as b em
abulo': ªie�: rime, poré Eleger depu­
a

cargo. É o empregado de mais alta categoria, o primeiro dos tido etimológico . do voc :plicaião objetiv .
funcionários, o incumbido dos serviços mais importantes e de distintas entre si, conf� o representantes das vár
ias
a
rme

superintender em toda a ativida de oficial. Por isso, uma lin­ me ns da con fia n � :o idéias,
tad os, ho . discutir s
dlvid�, �: terão de
a

opiniões em que �s� �e á


a
guagem aceita hoj e universalmente denomin a o presidente - de qu e po der
, arbitraq: os recurso s
o magistra do supremo da nação." Em seguida, após esclarecer fazer as leis ordmar�as plicação deles - é hip ótese
gov ern o e f1s caUzar a ncio-
que o Presidente, nas repúblicas democráticas, pode ser esco­ dispor o . dos fu
da de designar o mai·s alto
lhido de três modos (pela legisla tura, por eleitores de segundo completamente diversa . ao govern0 e à administraç ao e
presidir
grau ou pelo povo indiretamente), pa ssa a argumentar contra nários ; o que h,a de . erania nacional.
· . p tente titu lar do exe�c,1c10 da sob : "Os r epre­
a opção bra sileira da eleição direta. E, numa das mais "lúcidas ser o m is eu diri
al das pa .avras
Adotando o sentido usu
a a

o" A designa­
a
análises de sociologia eleitoral, escritas em nossa língua", es­ ti:
itos, o pres1den
sentantes devem ser ele mento - a
ead
el�
nom
creveu: "A eleição do chefe do Estado por sufrágio popular requer ap ena s
um
transforma -se em um caso de plebiscito. Escolher presidente e ção dos representantes me smo' ser ex-
tores. Deve, por isiJO
escolher deputados não é a mesma operação, nem s equer ana- conf1' ança política dos lei
48 A CRISE DA DEMOCRACIA NO· BRASIL
ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

::tid.o.:;
ma eleitoral proporcional, o deslocamento da eleição do eleitores em favor de outro partido. Ambo.s o.s pa: a,
sabem que, nos termos em que está colocada a pugn
Presidente - o cargo político mais importante do sis­ ê-Ja.
eleitoral, é preferível ganhá-la unidos do que perd
tema político porque, além da ,chefia de Estado, lhe é
atribuída a chefia de governo e a chefia da Revolução-, separados
,
para · a esfera de um Colégio Eleitoral composto . de Resta cogitar do interesse da comunidade nacional
Nest e par­
membros do Congresso Nacional e de delegados, das que está acima do interesse dos partidos.
des que,
Assembléias Legislativas dos Estados parece exercer uma ticular, o bipartidarismo mostrou algumas virtu
ica, deve riam ser leva­
forte pressão no sentido da polarização partidária, eis numa eventual reorganização polít
para a últim a
que o grande objetivo dos partidos, na prática, passa a das em conta. Essa análise, porém, ficará
ser o da formação de uma maioria no Congresso Nacio­ parte desta dissertação.
nal e nas Assembléias Legislativas . Assim, contraria aos
interesses vitais, tanto da ARENA como do MDB, como 21. A nomeação de prefeitos municipais
um todo, perder ou deixar de conquistar membros e .A constituição vigente (art. 15, letra b, § 1. 0), con­
clusivamente entregue ao povo, e só há de ser legítim�. quando fere ao Governador do Estado o poder de nomear, com a
no conjunto refletir a imagem perfeita da, opinião 'p'opular. prévia aprovação da Assembléia Le�sl�tiva, os �refoitos.
A escolha do chefe de estado é, pelo . contrário, niai's um ato .
das capitais dos Estados e dos Mumc1p1os cons1de� ados
de administração do que de soberania. É uma operação : que por lei estadual estâncias hidrominerais, e, com a apro­
demanda trabalho prévio de ponderação e raciocínio, incon­
vação prévia do Presidente da. República, os P�efeito5
dos Municípios declarados de interesse da s�gurança ::ª­
ciliáveis com a imaleabilidade do sufrágio popular. A opinião
manifesta-se intransigentemente, e assim convém que· seja;
mas aos atos do governo deve corresponder o mais pr�nuncia­ cional por lei de iniciativa do Poder, Executivo da Umao.
do espírito de tolerância, e eleger presidente não é constituir o estudo deste tema jurídico-constitucional refoge
um representante, é fazer o primeiro dos funcionários públicos." a o âmbito do trabalho. Importa apenas mostrar que a
E, continua: "Não se confia ao arbítrio popular a nomeação nomeação de prefeitos determinada pela Constituição
dos juízes, nem a dos especialistas dos vários ramos dos servi­
ços públicos; menos se lhe deve reconhecer competência p·ara levar por bem entendida utili.dade, não te1;�0 materi,almen�:
eleger o magistrado dos magistrados, o chefe de todos' os �er­ meio de discutir, deliberar, mudar de propos1to, consoante "-�
viços, o administrador supremo da coisa pública. É da nature­ conveniências públicas supervenientes - nunca · disporá de
elementos para fazer escolha razoável, ;de .. candidato$', A prm­ .
za do eleitorado popular que os seus movimentos sejam como
de um ser inarticulado. Há de manifestar-se por sim ou por cipal preocupação dos parti dos é vencer. A vitória, quando
não, pela única força da preponderância numérica, seja. estz. houver partidos equilibrados, só lh�s poder{J. ser dada. pelo ele­
de um partido homogêneo, ou já de uma coligação. Não é p�e­ mento popular flutuante, que pende pará quem melhor o sab'"
ciso recordar que me refiro aos eleitorados que forem chamados atrair. Por isso, os partidos hão de levantar sempre �ornes de
a resolver uma dada questão de administração, como é. a no­ guerra, homens de opiniões extremas. e ,qualidades brilhantes,
meação de funcionários; não falo· dos que têm de eleger re­ desses que são excelentes para deslumbrar as turbas, mas, em
presentantes." E quando mais adiante o velho republicano regra, negativos para as funções práticas de gove:n�." (Ass�s
trata da seleção dos homens para o cargo afirma: "O sufrágio BRASIL J. F. de, Do governo presidencial 11,a Republica Brasi­
universal, arrebatando-se mais por emoções do que deíxándo-se leira, ii:sboa, Cia. · Nacional Editora, 18'96,' ,p. 235/250) , ·. · ·
50 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL

liga-se ao problema d a extensão e do conteúdo do prin­ dos entre os quais o de decretar o recesso dos poderes
cípio da autonomia municipal e do rel acionamento, a Ieglslativos da União dos Estados e dos Municípios
nível de Poder Ex�utivo, da União e dos Estados com (art. 2.º), de suspender direitos políticos e cassar man­
os Municípios. 2 Em si mesmo, nada tem a ver com a datos eletivos (art. 4.º), de decretar o confisco de bens
caracterização da democracia política . Trata-se, em ver­ (art. 8.º) e de autorizar a suspensão das liberdades de
dade, de elemento definidor da forma do Estado; não do reunião e associação, bem como a censura à imprensa
regime político de governo. (art. 9.º), são vistas, em geral, como restrições à demo-
Diga-se apenas de passagem que a ativid ade política, cracia política.
no âmbito dos municípios, deve ser repensada , inclusive o Ato Institucional de n. 0 5 não apenas reabriu, a
a bem do próprio princípio da a utonomia municipal. Se 13 de dezembro de 1968, o processo revolucionário que,
a autonomia municipa l se destina a prover a admini.stra­ no plano jurídico-constitucional se fechara a 15 de março
,ção própria, ou seja, o autogoverno, em tudo o que res­ de 1967 (com a entra da em vigor da nova Constituição),
peita ao peculiar interesse local (art. 15, II, da Consti­ como introduziu na organização politica brasileira um
tuição), por que condicionar-se obrigatoriamente as elei­
sistema de poderes de responsabilização política, a fim
ções para os governos municipais a terem um caráter
de - como diz seu Preâmbulo - ensejar o comb ate à
partidário em bases políticas n acionais? Parece-nos um
despropósito total. Não vemos senão desvant agens na subversão e à corrupção. 3
partidarização n acional compulsóri a a que se submete Esses poderes são confia dos ao chefe do Movimento
completamente a atividade política nos Municípios. Não Revolucionário iniciado em março de 1964, na sua con­
sendo da competência municipal senão a administra ção dição de comandante supremo das Forças Armadas. 4
relativa ao peculiar interesse local, aplicar compulsoria­ Adjetivamos os poderes consubstanciados no Ato
mente os critérios político-partidári os nacionais ao pro­ Institucional n.º 5 de "revolucionários" porque sua fonte
cesso político municipal não só tende a dividir a comuni­ direta foi um movimento revolucionário e não o poder
dade local sobre os problemas que não são os de sua constituinte instituído n a Constituição e dela derivado.
competência, mas da comunidade glob al, como t ambém, E os adjetivamos também de "excepcionais", primeiro,
face à partidarização nacional da política e dos políticos porque contidos em ato que, por definição da própri�
municipais, propicia o enfraquecimento do exercício da Constituição, é transitório; 5 e, seg�ndo, porqu�, desti­
própria autonomia municipal. _
nando-se a combater situações de crise nao previstas no
regime de normalida de política d a Con�tituição, não
22. Poderes excepcionais revolueionários
estão sujeitos as limitações inerentes ao sistema �e go­
A vigência de atos institucionais - especialmente verno nela estatuído, funcionando como suspensao de
do Ato Institucional n.0 5 - com os poderes nele inseri-
a FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. 3, p. 232.
2 F'ERREmA FILHO, M. Gonçalves, Comentários à Constitui­ 4 FERREmA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. cit., p. cit.
ção Brasileira, São Paulo, Saraiva, v. 1, 1972, ps. 145 e 146. r; FERREmA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. cit., P· cit.
52 ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

garan:ias da Const�tuição operada por instrumento ,que


lhe foi aposto por via revolucionária. .
Assim, esses poderes excepcionais revolucionários
realmente limitam a democracia política, não porque se
tratem de poderes, mas por serem "de exceção". ao Esta-­
. . ao
suJe1ç - do poder estatal
do de direito. Estado de direito, como o definimós é a
' CAPÍTULO III
à lei, lei que se fundamenta no
consenso da comunidade. Essa lei, nos sistemas jurídicos
escrit�s, é a Constituição. E a Constituição, ao prt}ver e O IMPASSE POLÍTICO
orgamzar o poder político, limita-o ao sistema a ela
própria imanente. Ora, os poderes excepcionais revolu­ 23. Os poderes excepcionais revolucionários:
cionários não apenas foram editados por via extracons­ conservá-los?
titucional, como foram colocados à margem do sistema
de limitação do poder estabelecido na Constituição. A existência, na ordem jus-política, de poderes ex­
cepciqnais revolucionários, na forma em que se acham
institµcionalizados, foi uma resposta imediata ao agra­
vamento da crise da democracia brasileira num deter­
minado. momento. A sua �rmanentização, contudo,
por excluir o Estado-de-direito, restringindo a democra­
cia instrumental,, é incompatível com a consciência de­
mocrática.
Más há outras razões que não recomendam a man­
tença indefinida dessa situação. Ei-las:
1.0 - a limitação da democracia política tende a
refletir-se numa perda de intensidade do aperfeiçoa­
mento efetivo da democracia substancial, vale dizer, dos
direitos fundamentais da Pessoa Humana;
, 2,0 - o autoritarismo revolucionário, por uma in­
clinação natural de seu dinamismo interno em fecl1ar-se
progressivamente sobre si mesmo, corre o perigo de con­
duzir o País ao totalitarismo, porque, despertando res­
sentimentos, estimula a organização e o desenvolvimen­
to de uma ação subversiva das forças totalitárias, sempre
prontas a destruir a essência da pemocracia ocidental;
54 CEzAR SALDANHA SoUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 55

3.0 - a permanentização das restrições revolucio­ Daí o impasse político em que nos encontramos: não
nárias ao processo democrático dificulta a conservação se pode continuar indefinidamente com as restrições re­
do consenso da comunidade em torno dos valores subs­ volucionárias à democracia política; no entanto, ,a revo­
tanciais da democracia, sem o qual a própria democracia gação pura e simples dessas restrições não resolverá ..Q:
instrumental não é factível. Especialmente os setores nroblema político brasileiro..1 · r'
mais jovens da comunidade, de difícil integração no sis­ -�
tema, tornam-se mais facilmente condicionáveis a de­ =t_,. ;,,.��"07 ·� �2'1ttl
25. O país legal contra o país real
sacreditar nos valores da democracia substancial e a
aderir a posições extremistas totalitárias. O impasse em que estamos põe a nu o núcleo do
problema político brasileiro: o modelo de estruturação
24. Os poderes excepcionais revolucionários: constitucional que importamos dos Estados Unidos da.
revogá-los? América, quando aplicado à realidade brasileira, tem se
mostrado inepto para regular o processo democrático em
Conforme o que se analisou até aqui, a conservação consonância com os valores da democracia. Em outras
dos poderes excepcionais revolucionários, além de incon­ palavras: o modelo importado não logrou instituir pro­
veniente à democracia, choca-se com a consciência de­ cesso político democrático que pudesse funcionar de for­
mocrática. ma e.stável, sem fazer perigar a ordem, a liberdade, a
Mas, a pura e simples revogação desses poderes, com justiça, a segurança e o desenvolvimento.
a volta ao sistema constitucional de 1946 (mantido, aliás, Os liberais clássicos, fiéis ao modelo político ameri­
.
em suas lmhas fundamentais pela Constituição de 1967 cano, culpavam os dirigentes políticos e o povo brasileiro
e pela Emenda n.0 1 de 1969), resolverá nossos proble­ pelo fracasso do regime. Realmente, "traço inegável do,
mas políticos? As crises políticas que, certamente, con­
tinuarão a ocorrer, encontrarão remédio constitucional? 1 A constatação de que o puro e simples afastamento dos
Desaparecerá, por encanto, a possibilidade da corrupção poderes excepcionais revolucionários é insuficiente para resol­
e da subversão? ver a crise da democracia brasileira tem levado muitos a con­
cluir, a meu ver, errada e perigosamente, que não poderemos·
Evidentemente não. O simples afastamento dos po­ ter .Processo político democrático enquanto o Brasil, econômica
deres de responsabilização política existentes em instru� e socialmente, não se transformar para melhor. Essa preten­
mentas revolucionários não trará solução duradoura à dida incompatibilidade entre democracia política ocidental e
crise da democracia brasileira. Ficaria, ainda, em aberto, nosso atual estágio econômico e social deflui, logicamente, da
uma lacuna no sistema constitucional que, desde 1891, visão marxista da história e da política. Curiosamente, pessoas
que confessadamente repudiam o marxismo, não vendo saida
tem sido ocupada, ou por uma prática constitucional democrática ao impasse politico a que chegamos, têm susten­
totalmente divorciada do texto escrito, ou por poderes tado essa incompatibilidade. Lúcidas, a propósito, são as obser­
revolucionários. Ademais, este espaço vazio, seguramen­ vações de um intérprete marxista, em estudo recente: "Não é
te, não tardaria a ser novamente preenchido por práti­ preciso ser nenhum gênio politico para perceber que no caso
latino-americano em quase todos os países inexistem condi­
cas inconstitucionais ou por via revolucionária. ções para o funcionamento regular de um regime de partidos.
1' 1·1


� .
:56 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

-caráter. nacional brasileiro é a falta de inclinação , para


a .vid!;!. cívica e associativa", 2 o que constitui um obstá-
Cll;t,a
�-r
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL

inadequado à realidade brasileira. Eis tudo: há uma


contradição entre o país legal e o país real. 3
57

11 _1�.
culo. a, uma democracia política estável Mas, para os O impasse político brasileiro, do ponto de vista po­
liberais clássicos, o regime era perfeito: as dificuldades lítico, decorre assim, basicamente, da inadequação das
� <lre funcionamento eram atribuídas exclusivamente aos instituições à realidade que deveriam servir.
homens que o tinham de realizar, ou seja, ao despreparo É o que resta examinar.
do povo e à má vontade dos políticos ...
O melhor conhecimento da realidade sócio-política
brasileira, cujos estudos começam apenas com· Alberto


� Tbrres, iria identificar a causa. Nem o povo, nem os po­
' j 1íticos, própriamente, são os responsáveis pelo mau fun-
""-' cionarnento do regime político. Ocorre que há algo que

J)
"""T'i
'' os liberais clássicos não levavam muito ·em conta: e que
,,
não consideraram devidamente quando tiveram de �e-
'.::) . a organização política em 1891: a realidade
compo:r . viva
\� cto ;w.ís histórica. socJªl,__g_conô:giica, poI!.1tÇ,� f
.. ..�-
a "Temos sido um país ao qual tem faltado organização
.,. .mh O modelo implantado . . . .
em 1891 e que - alterado em
( ...) política adaptada às condições do meio e à índole da
Ef:.1 gente" (TORRES, Alberto, o Problema Nacional Brasileiro, São
aspectos acidentais - permanece idêntico até �oje, é

-.!\ , , ''"""""
t?icional, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 157.
P<Lnó, "1'., Gonçalves, Cu,so de Dfreito Ca,i,t;- Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938, p. 275). A questão é reto­
mada por OLIVEIRA VIANNA: o "desacordo entre o idealismo da
1 Constituição e a realidade nacional" é a "causa" do "fracasso"
representativo e democrático, e que, no mais das vezes, demo­ da ideologia da Constituinte de 1891 (O Idealismo da Consti­
cracia-Uberal é a expressão ideológica da dominação olígár- tuição, Rio, Edição Terra do Sol, 1927, p. 40).

� 1·
?
f,

� � quico-burguesa. Em nome disso, alguns críticos da esquerda e


G;:_ , , ,os pensadores políticos conservadores ou direitistas se rejubi­ a crítica da democracia se torna apenas uma justificação es­
1am com a inviabilidade do modelo democrático no Continente púria para o surgimento de ideologias autoritárias, quando não
e exultam quando mostram as contradições entre os ideais po- totalitárias." (CARDOSO, Fernando Henrique, O Modelo Político

Ulcos exportados dos E. U. A. e a prática de sua.s relações Brasileiro, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973, p. 8).
econômicas com a América Latina. Perfeito. Entretanto, hoje Escrevemos o presente trabalho com o objetivo de mostrar: (a)
em dia, substitui-se a obsoleta (porque ligada à "oligarquiil,") que se não há condições no Brasil para o funcionamento re­
liberal.,.democracia por um autoritarismo que busca legitimar­ gular da democracia ocidental nos termos do modelo norte­
-se através da eficácia desenvolvimentista e que,. em regra, -americano, imitado desde 1891, (b) a organização política
sustenta estilos de desenvolvimento que concentram exPoien­ americana não é o único modelo válido de democracia: é pos­
cialmente a renda e propugnam por uma "participação" sim­ sível organizar uma democracia legitimamente ocidental, numa
bólica, que nem chega a atingir a etapa da "participação ex-,, fórmula adequada às nossas condições e, portanto, capaz de
pressiva:' (meetings, partidos mobilizadores etc.) por temor .a. funcionar regularmente. Há saída democrática para o impasse
toda ,a.Jonna de n,obilização e atuação das massas. Nes!;e.. caso, político brasileiro. Cumpre achá-Ia.

414- li
1
CAPÍTULO IV

A INADEQUAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES


26. Tipos de form.ação de sociedades políticas
As sociedades políticas, quanto à formação, podem
ser classificadas em dois tipos básicos : as "sociedades de � & (/,)J
� para cima", em que a comunidade nacional (o
povo) precedeu e formou o poder estatal, e as ':socied�--a, 72._�j)
des dfl cima para baixo", onde, inversamente, o poder - �.tq
-;=tatal antecipou-se à consciência nacional e ao povo, no
sentido político do termo, precedendo-os e formando-os.
A maioria dos Estados contemporâneos formou-se
"de cima para baixo", com a precedência da autoridade
sobre o surgimento da consciência nacional no seio da
população. Marcel Prélot observou que "o primado do
poder na formação do Estado se reproduz em todo o
curso de sua existência. Elemento formador, o poder é
também o fator permanente de coesão da sociedade po­
lítica". 1 Na Europa, onde vai aparecer o Estado moder­
no, o fenômeno é bem visível. Os reis das antigas mo­
narquias medievais fragmentadas pelo feudalismo, em
luta secular, vencem a toda-poderosa nobreza local e
instituem a administração centralizada. Os reis - o
poder preexistente - fundam a sociedade política, sub­
metendo toda a população ao seu poder soberano. Esta­

r
belecido o poder ootatal, a população que vive no territó-
1PRÉLOT, Marcel, Institutions Politiques et Droit Consti­
tutionnel, Paris, Dalloz,, 1972, p. 12.
60 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR r-1 A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 61
rio sobre o qual se estende a autoridade real, w
ad.quj­ / �� � �.;).g.� ���
-
rindo uma consciência nacional e se transforma em povo · A Inglaterra no seculo XVII, em plena revoluçao
� . comercial, enriquecia-se rapidamente. Aqueles que dis­
De maneira oposta formGu-se um número reduzi- sentiam da religião do Rei e do sistema político que ele
díssimo de sociedades políticas: Estados Unidos, Suíça,
representava, juntaram recursos e, com as suas famílias,
Holanda e, em nosso século, Israel. Nesses Estados, de
em comunidades, emigraram para a América. Julga­
certo modo, concretizou-se a hipótese teórico-política do
contrato social - tão ao gosto dos idealizadores do Es­ vam-se - ledores da Bíblia e profundamente religiosos
tado Liberal -, pela qual os homens, para a proteção de - novos judeus que fugiam à opressão em busca de uma
seus direitos, reúnem-se em sociedade através de um terra onde pudessem construir uma nova sociedade,
pacto, instituindo, destarte, o poder. religiosa, política e economicamente livre. 4 Nesse par-
/
ticular, é muito significativo o gesto dos primeiros po­
Nos Estados onde houve o primado do poder, a au­
voadores, que, antes de descerem ao solo, firmaram um
toridade reveste-se de atributos mágicos, tremendos e
fascinantes. Isto já não se passa nos Estados onde a pre­ contrato ("compact") destinado a reger a vida da co­
cedência foi da nação, nas quais o titular do poder su­ munidade no novo território. Levas sucessivas de ingle-
perior não se sente uma figura sobrenatural, por mais ses, conscientes de seus direitos fundamentais e políticos,
poder que lhe seja dado: ele é um mero agente da co­ vão assim se estabelecendo num estreito território junto
munidade, um servidor do povo. 2 ao Atlântico, em 13 "colônias". Quando as comunidades
sentiram-se com força política e econômica suficiente
27. Formação política brasileira e norte-americana para a Independência, levantaram-se em arma� co:1-t�a
0 R.ei inglês. Obtida a vitória, reuniram-se em Flladelfla
Brasil e Estados Unidos tiveram uma formação po­ e, por meio de um Pacto Constitucional, fundaram os
lítica diametralmente oposta. Os Estados Unidos cons­ Estados Unidos da América.
tituem o caso clássico de anterioridade do povo ao poder. Já Portugal, embora pobre em recursos humanos,
O Brasil, por sua vez, representa o exemplo mais radical territoriais e econômicos, tornara-se, praticamente, o
de preexistência do poder: o poder precedeu o povo não primeiro Estado moderno. Tendo conseguido um chão
apenas no sentido político do termo, mas fisicamente.
Quando o primeiro governador-geral Tomé de Sousa 4 VrANNA Mooa, Bandeirantes e Pioneiros, Porto Alegre,
desembarcou, em 1549, com a máquina completa do Es­ Editora Globo, 1957, pp. 129-130, 137-138.
tado, não havia, a rigor, ninguém a ser governado. Não
Porto Alegre, Editora GlobO, 1951, p. 62). Este aspecto da foi:··
havia povo nem no sentido material da palavra. 3 mação brasileira vem desenvolvido em: TORRES, J. e. de 011-
2 Para uma veira Interpretação da Realidade Brasileira, pp. 21 e segs.
caracterização mais completa desses dois Este �utor registra as observações que, em 12 de julho de 1841,
tipos: TORRES, João Camillo de Oliveira, Natureza
e Fins . .. , foram proferidas por Bernardo Pereira de Vasconcelos ("as des­
p. 139-142.
3 "A forma graças do país" vieram de "terem-se reformas políticas prece -'

T
ção política 'do Brasil fez-se de cima ps.ra dido às reformas sociais") e pelo sénador Vergueiro ("Todos
baixo" (MARTINS, Wilson, Introdução à Democracia
Brasileira ' sabemos bem que as agitações que têm havido entre nós pro-
�5���.��
( 62 CEzAR SALDANHA SoUZA JUNIOR
'
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 63

tropical na América para povoar e civilizar a coroa _ E na hora de "constituí-lo", 7 ou seja, de regulá-lo juridi­
após a tentativa das Capitanias Hereditári�s, pela qual camente, é ainda o então Imperador, titular daquele
procurou movimentar um processo de povoamento nri­ ve lho poder preexistente, que se arvora em constituinte.
vado e espontâneo - decidiu-se por uma alternativ; de
caráter nitid�mente público.. Com a criação de um go­ 28. Conseqüência da diversidade de formação
verno-geral, implanta na América uma "filial" do poder
A diversidade de formação histórica, social e política
estatal português. Desde 1549 tínhamos já o poder _
o governo - sem que tivéssemos, ainda, um território explica o .diferente posicionamento político do povo nas
definido e um povo. sociedades políticas norte-americana e brasileira. Eis
al guns aspectos.
Esse poder preexistente formou, até 1750, o território
que, com muito poucas variações, corresponde ao que 1.º - Quanto à fonte real do poder.
temos hoje, mercê das bandeiras ( que não foram emnre­ No Brasil a força po lítica real não se enraíza no
endimentos meramente privados, eis que o bandeir�nte povo, mas na autoridade, nos órgãos estatais preexis­
i� ao i�terior em nome do Rei), e da hábil política di­ tentes, ou se quisermos usar a expressão . de Raimundo
,
p10mat1ca que culminou, no reinado de Dom João v, Faoro, no estamento burocrático que domina e controla
com o Tratado de Madri. 5 Esse poder preexistente for­ a máquina governamental. 8 Daí por que o povo é poli­
mou também o povo brasileiro, não só materialmente, ticamente fraco diante do poder estatal, do qual depende
pelo povoamento e pelo estímulo à miscigenação, mas como a criatura do criador.
também politicamente, pela presença de uma só autori­ r
dade no vasto território, lançando as bases de uma cons­ Nos Estados Unidos a fonte sócio-política do pode
de que "o
ciência nacional que se iria revelar, pela primeira vez, está no povo, na comun�dade. Lá a afirmação
cípio
em sua totalidade, no ano de 1822. :f:: esse mesmo poder poder emana do povo" não soa como simples prin
na Cons tituição, mas
estatal preexistente formador, legitimamente represen­ jurídico, um "dever-ser" inscrito
a form a­
tado no Príncipe Dom Pedro, que - somando-se à von­ corresponde ao que foi, na realidade histórica,
litica,­
tade do povo então nascente e expressando-a 6 - "cons­ ção americana. Conseqüentemente, o povo é po
ele próp rio
truiu" a sociedade pol ítica brasil eira independente. mente forte em re lação ao poder estatal que
criou.
5 TORRES, J. C. de Oliveira, o Presidencialismo ..., p. 18-19.
cientista
"Um dos problemas prévios que se oferecem ao
6TORRES, J. C. a'e 011·ve1·ra A Democrnc·
· ... ia eoroacda, Pe- 7
ção entre o poder de
do "direito· público é o da precisa distin
trópolis, Vozes, 1964, pp. 52-54.
construir, o Estado e o poder de const ituí-l o (pode r estat al,
). (PONT ES. DE MIRANDA, F. Caval canti, Come n­
poder constituinte
�éden: �e havermos antecipado a nossa organização política 1967, t. I,
a social ) . Tocaram nessa questão, igualmente, LIMA, Alceu de tários à Constituição de 1967, São Paulo, Edição RT,
Amoroso, (A Margem da História da República Rio 1924 p. 178).
s FAORO, Raymundo, Os donos do poder, Porto Alegre
, Edi-

T
p. 2�4 e :45) e OLIVEIRA VIANNA (Pequenos Estudos de Psi�olo;i�
Social, Sao Paulo, 1942, p. 172). tora Globo, 1958, passim.
i il: f1 iJ 1 i .
t. 4 j;,4""}J:� ��$
)
i
ó j °""' SAWANHA SoUZA JumoR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 65

2. 0 Quanto à fiscalização e controle do, 3.º _ Quanto às transformações políticas e sociais


I\'>. ,�
� i ��f ��
-

governantes se nos Estados Unidos as grandes conquistas vie­


il as
A população brasileira, formada à sombra do poder, ram quase sempre de baixo para cima, no Bras
� i.
., � f viveu - pelo menos até 1930 - em sua imensa maioria,
·i5 insulada em extensas propriedades rurais e afastada principais transformações �olíticas e socia � i
através de movimentos de cupula, com outmga posterior
ocorr er �m

11 1[. � quase completamente de convívio urbano, razão pela


qual a vida comunitária é, entre nós, muito fraca. A
ausência de tradição associativa, de espírito público e de
às bases da sociedade: a própria Independência, a aboli
ção da escravatura, a Repúbli�a, a�Justi
secre to, a legisl açao
ça
traba
E � eitora
lhista
l,
, o sm­
.
­
os
. tudo o que daí, decorre, traduz-se naJnexistência de ins:-
votos feminino e
dicalismo, são exemplos desse fato.
��
·�. -lf f[,·trnm. gtos sociais que organizem uma o:ginião :Qública, os
� .t � bem como de canais que conduzam essa opinião ao nwl
o desenvolvimento econômico nos Estados Unidda
.,ilo pode;:. Por isso, os homens de partido que assumem se fez pela iniciativa privada, independentemente . .
ec nom 1co,
.�
a:: g a os primeiros lugares do Estado podem cometer toda a ação estat al. No Bras il o desen volvimen to ?
sorte de abusos, da corrupção à subversão, sem que a para que se torne realidade, teve de ser assumido como
tor-
comunidade seja capaz de fazer-se ouvir para contê-los a principal meta da ação governamental. O Estado Da1,
na-se o indutor e o promotor do desenvolvimento.
10
nos estritos limites legais e constitucionais. Somente por icipação d? Es�ado na
via revolucionária, em que as Forças Armadas, de fato, 0 vulto que toma no Brasil a part
con­
empalmam a representação da Nação, tem sido possível atividade econômica e social. É que o Brasil foi e .
as ellte s
tentar por cobro às irresponsabiildades e aos desmandos tinua sendo _ quer isto agrade ou não a noss
dos governos. - obra do Estado.
O povo americano, ao contrário, caracteriza-se por 4.º _ Quanto ao caráter sociopsicológico do povo
acendrada capacidade associativa e pela força dos gru­ u­
pos e das comunidades locais. De modo que lá existem sendo nos Estados Unidos a autoridade uma criat
rica­
instrumentos sociais espontâneos que organizam e ex­ ra, uma delegação da comunidade, repugna ao ame
pressam a opinião pública, bem como canais sociais efi­ no médio depender do poder. A expansão crescente das
cazes que conduzem essa opinião da base ao topo da atividades estatais e a intervenção da administração na
sociedade. Assim, os políticos colocados à frente do Es­ vida privada, quando não rejeitadas de plano são, pelo
menos vistas com muita desconfiança. Ocorre que o
tado são refreados, contidos e limitados pela força polí-
tica do povo e das unidades federadas representadas no 1 avanç� do poder é sentido como uma limitação à liber­
Congresso. Aqueles que ultrapassam as barreiras cons­
j dade e à autonomia originais da comunidade.
titucionais, escritas ou costumeiras, têm contra si o jul­ Já o brasileiro médio enxerga no Estado a figura de
gamento da opinião pública, cuja pressão pode, inclusive, ai criador e rotet()r. Ele venera o Esta�o!f��re- , L
apeá-los do poder. 9 ---· ,,,. �� v�A Democracia ... , p. 42,
--�
(.Qv-r" () �

�:'Y�� ��
o A sorte do Presidente Nixon, em razão do "Caso Water­ 10 FERREI A FILHO, M. Gonçalve1l,
' 0 �
gate", ilustra as afirmações. n. 34. &
66 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 67

dita que possa fazer milagres e, portanto, tudo espera A Constituição americana foi o instrumento pelo
dele: apoio, obras, empregos... Quanto mais o chefe qual uma comunidade preexistente (a fonte de fato do
de Estado se aproximar da imagem paternal, mais con­ poder constituinte originário), mediante um consenso
quistará o coração do povo. 11 prévio sobre a organizaçiio do poder que pretendiam "es­
O paternalismo no Brasil, antes de ser lamentado tatuir", criou o Estado (o objetivo).
ccmo um mal, deve ser considerado como um fato. Re­ No Brasil, as constituições provêm de outra fonte
f!exo da existência de um poder anterior e formador, e buscam objetivo diverso. A função constituinte decor­
impôs-se como uma contingência do tipo de formação reu sempre - e não podia deixar de ser assim - do
histórica do Brasil. Se Getúlio Vargas tive:sse esperado órgão político mais poderoso do próprio Estado, ou di­
que os trabalhadores pleiteassem direitos sociais, quando retamente (e temos as constituições outorgadas em 1824,
e como teria vindo a legislação trabalhista? Somente 1937 e 1969), ou indiretamente, caso em que o órgõ.o
dsblaterar contra o paternalismo não resolve. Conscien­ estatal confere a uma assembléia constituinte poderes
tes dessa tendência brasileira de visualizar na autoridade mais ou menos amplos para a elaboração constitucional
estatal uma natureza paternal, o que se faz necessário (Constituição de 1891, 1934, 1946 e 1967). O objetivo da
é neutralizar o mais possível o poder relativamente às atividade constituinte não é criar o Estado, ou "estatuir"
paixôes e às ambições político-partidárias, 12 de modo a um poder, pois eles já existem, mas limitá-los em favor
diminuir os riscos de sua manipulação em favor da de.. da comunidade, cujos direitos é o que a Constituição
magogia e do autoritarismo, tornando mais viável o seu busca "estatuir" e garantir. Paradoxalmente, foi a
exercício para a liberdade e o bem comum. Constituição de 1824, 13 através do poder moderador, a
que melhor soube realizar a limitação do poder supremo
'29. Constituição "estatuinte" e Constituição do Estado: amarrou-o à Constituição, cercando-o de
"estatuída" cautelas, esvaziou-o de funções propriamente governa­
A diferente formação do Brasil e dos Estados Unidos, mentais e procurou, no maior grau possível, identificá-lo
que se vem analisando, apresenta um reflexo curioso, e com a Nação. A técnica das constituições posteriores,
ainda não devidamente enfatizado, no plano da Consti­ ignorando-o e expulsando-o da Constituição, não foi a
tuição escrita. melhor para garantir o Estado-de-direito e a democra­
cia política. Nos momentos dramáticos das crises sem
11 A imagem paternal do chefe de Estado está associada solução, o poder estatal supremo tem sido retomado pelas
ao conceito do Estado-benfeitor. (Cfr. TORRES, J. e. de Oliveira,
Interpretação . .. , p. 35 e segs.). 13 "A Constituição de 1824, por uma dessas circunstâncias
12 A democracia em países do tipo do Brasil "exige a neu­ inesperadas e favoráveis que ocorrem, às vezes, na vida das
tralização da força mágica do poder supremo, impedindo-o de nações, tornou-se um documento de admi.rável flexibilidade, mo­
atuar diretamente na política - transformando-a em magis­ deracão e sabedoria, o melhor documento constitucional da
tratura. Do contrário teremos o despotismo, tanto dos reis História política do Brasil". (FRANCO, Afonso Arinos de Mello,
absolutos, como dos ditadores republicanos." (TORRES, J. C. de Problemas Políticos Brasileiros, Rio, Livraria José Olympio Edi­
Oliveira, A Natureza e Fins..., ps. 140-141. tora, 1975, p. 96).
68 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA .NO BRASIL 69

Forças Armadas, ao sabor dos sucessos revolucionários Is.so ilustra o grande objetivo da Constituição america­
e das paixões da hora, sem qualquer limitação constitu­ na: "estatuir" ou "constituir" o poder, já que a comu­
J .

cional. nidade se regula e se defende por sua própria força e


A Constituição americana pôde provir de uma con­ pela "lei comum". Igualmente, havendo canais sociais
venção constituinte sem qualquer dependência política e jurídicos de fiscalização e de limitação do poder, por­
anterior, destituída de qualquer tom de "outorga", jus­ que inscrevê-los na Constituição? Bastou a adoção do
tamente porque foi obra de um órgão pré-estatal, que, princípio da divisão interna do poder. O povo faria o
ao criar a Constituição, criava o Estado. Já no Brasil é resto.
impossível que as constituições sejam elaboradas da As constituições brasileiras não fundam o Estado, �
mesma forma, por mais que as elites alienadas tenham mas dele decorrem. São, quanto à existência do Estado, �
querido, ou ainda queiram, fazer o Brasil, na sua orga­ meramente declaratória.s. Daí porque, pu nossas consti- b..
nização política, semelhante aos Estados Unidos. O po­ .tl!ições estabelecem técnica eficazes de limitacão do !f
der criador do Estado (Pontes de Miranda chama de dos direitos do homem e da. comu- �
"poder estatal") não coincidiu, como nos Estados Unidos, nidades menore§.i_ ou estaremos fa adas a assistir o '? �
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pode ·

com o poder constituinte originário. Em 1822, Dom Pe­ agigantamento da irresponsabilidade governamental ou $ ,j.
dro, como agente do poder preexistente formador, criou do autoritarismo estatal. Mas de nada adiantarão as� 1
ou fundou o Império. A tarefa constituinte, lógica e técnicas meramente "internas" de limitação do poder,� ''1
historicamente, teria de ficar para depois. Por isso, no
Brasil, a Constituição - porque posterior à existência
do Estado - dependerá sempre, em maior ou menor
grau, de um ato anterior do órgão estatal detentor do
poder preexistente. A própria constituinte de 1823, como
como a da divisão tripartida dos poderes, se não forem � �
criados instrumentos constitucionais que possibilitem 3 �
uma fiscalização dos poderes pela própria comunidade,� <.
suprindo a falta daqueles recursos sociais e jurídicos""?
encontráveis nos Estados Unidos e que permitem o fun- �.
I


t
mais tarde as Assembléias de 1891, 1934 e 1946, foram
convocadas pelo poder e à sombra dele realizaram seus
cionamento razoável das suas instituições democráticas. ? J�
A Constituição de 1824, num rasgo de genialidade e ade- � �
trabalhos.
A Constituição americana não contém, no seu texto Supérfluas, porque a Constituição já continha proibições con-
J
i�
de 1787, uma declaração de direitos do homem, nem das
tra os bill of attainder e leis ex post facto e contra a suspen-
comunidades menores. Exatamente porque, preexistindo
os homens em comunidades politicamente conscientes,
são do direito de habeas corpus ( ... ) . E perigosas, porque as �
proibições�poderiam ser�ir logo de argu:11ento par� que o novo
. ou­
t
esses direitos já gozavam de reconhecimento e de garan­
governo tomasse para s1 poderes que nao lhe haviam sido
torgados ( ... ) . Agueles homens afirmavam veementemente
tia em instrumentos sociais e jurídicos nascidos do pró­
prio direito vigente na comunidade (common law). 14
que a proteção dos direitos essenciais se estribava, não tanto]
f:
r
nas garantias escritas, como na mente e no coração de todos
e de cada um dos cidadãos da nação. ( CoRWIN e PELTAsoN, La

T
Constitución, Buenos Aires, Bibliografica Omeba, 1968, p. 119.
14 A Convenção Constituinte não havia incluído uma de­ Cfr.; (HAMILTON, ALEXANDER, o Federalista, Rio, Editora Nacio-

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claração de direitos por conceituá-las supérfluas e perigosas. nal de Direito, 1959, n.0 LXXXIV, pp. 345-349).

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70 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 7l

quação à realidade brasileira, fez do chamado poder tem condições para, ele próprio, fiscalizá-los, contê-los e
moderador muito mais do que o simples poder neutro limitá-los.
da doutrina européia. Tornou-o - como "delegação da O modelo americano, porque pressupõe um povo
Nação" - um instrumento da comunidade para, desde politicamente forte, haveria de fracassar completamen­
cima, arbitrar as crises e responsabilizar os abusos dns te no Brasil, onde o povo é politicamente fraco e depen­
poderes, uma vez que a comunidade ainda não tinha dente do poder. A organização constitucional de uma
força social e política para realizar essa função desde sociedade "de baixo para cima" não poderia mesmo ter
baixo. prosperado numa sociedade "de cima para baixo". Na
verdade, se é possível transplantar a forma das institui­
30. O transplante e a rejeição ções, não é possível transmudar, de uma hora para ou­
tra, o povo e a realidade social a que essas instituições
As elites brasileiras do final do século passado en­
serão aplicadas.
cantaram-se com o progresso americano e - numa ati­
tude bem brasileira 15 - atribuíram-no ao Estado, ou As instituições transplantadas pela Constituiçs.,o de
mais esp,ecificamerite, a sua forma de organizaçifo polí­ 1891, por inexeqüíveis, não lograram funcionamento re­
tica. E de uma penada, pela Constituição de 1891, gular nos termos nela previstos. Por isso a história
adotaram as linhas mestras do modelo republicano, política do Brasil tem sido, desde então, a história dos
federativo e preiSidencial norte-americano. expedientes extraconstitucionais, que, distorcendo o con­
teúdo constitucional inadequado à realidade, procuram
Ora, nos Estados Unidos houve uma notável identi­
manter a aparência formal da Constituição. 16
ficação entre as instituições e a realidade. O sistema
político contido na Constituiçifo exprime a fórmula O regime de 1891 soment.e estabilizou-se quando foi
desfigurado em seu conteúdo regulatório pela "política
encontrada pelo consenso da comunidade, a partir da
sua tradição histórica, para construir um Estado. E o 10 LOEWENSTEIN, Karl, classificou "ontologicamente" as
Estado nasceu e evoluiu dentro dos contornos básicos Constituições - conforme a "concordância das normas com­
pré-traçados na Constituição. Se lá o povo, pelos Esta­ titucionais com a realidade do processo político" - em três
dos, tornou-se o eleitor do Presidente, foi porque a União tipos: normativas (quando suas normas dominam o processo
político, que a elas se submete); nominais (quando suas normas
••
surgiu sob o mesmo impulso. Se a rígida partição fun­ carecem de realidade existencial, pois a dinâmica do processo
cional do poder em três ramos harmonicamente inde­ político não se adapta a elas: situações de fato, p. ex.: anal­
pendentes e a cumulação no executivo de funções fabetismo, inexistência de classe média, não permitem a com- ·
estatais e governamentais não degeneraram em confli­ pleta integração das normas constitucionais na dinâmica da
tos e em abusos lesivos aos interesses nacionais e à in­ vida política); e semânticas (quando suas normas não passam
da formalização da existente situação do poder político em
tegridade da Constituição, foi porque, na realidade, o benefício exclusivo dos detentores do poder fático). "A Cons­
povo, além de poder bem eleger os ocupantes dos poderes, tituição nominal" - prossegue - "encontra seu terreno natura!
naqueles Estados nos quais o constitucionalismo -democrático
15 TORRES, J. C. de Oliveira, Interpretação ... , p. 253. ocidental implantou-se, sem uma prévia incubação espiritual
72 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 73

dos governadores" e pelo "coronelismo", 17 recursos de o regime iniciado em 1930, nas diversas formas que
fato que, embora não democráticos, salvaram a unidade assumiu, esteve igualmente divorciado dos textos escri­
nacional comprometida pela impraticabilidade real das tos, mesmo durante o período do "Estado Novo". 19 Pre­
J.nstituições. 18 valeceu um outro expediente de fato, de base militar e
de fundo populista, centrado na figura de Getúlio Vargas.
11 O regime de 1891 condicionou, ele próprio, o apareci­ O regime de 1964 encontrou num sistema de poderes
mento do "coronelismo" que, se deturpou seu conteúdo norma­ extraconstitucionais o expediente capaz de criar um
tivo, garantiu-lhe a preservação nominal. Como escreveu o
autor do estudo clássico sobre o tema: "A superposição do re­
equilíbrio político que permitiu manter formalmente a
gime representativo, em base ampla, a essa inadequada estru­ vigência da Constituição.
tura econômica e social, havendo incorporado à cidadania ativa Em todos esses 85 anos de experiência política cal­
um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o cada no modelo americano, observa-se que os períodos
consciente desempenho de sua missão política, vinculou os de­ nos quais se tentou seguir à risca seus princípios (1922/
tentores do poder público, em larga medida, aos condutores
daquele rebanho eleitoral ( ...). O regime federativo também /1930 e 1946/1964) foram marcados por agitações, crises
contribuiu, relevantemente, para a produção do fenômeno: ao e revoluções, sinais evidentes de um nítido processo de
tornar inteiramente eletivo o governo dos Estados, permitiu a rejeição do "país legal" pelo "país real". No restante do
montagem, nas antigas províncias, de sólidas máquinas elei­ tempo, a conciliação da ordem pública com a vigência
torais ( ...). Por tudo isso, o fenômeno estudado é caracterís­ constitucional só foi alcançada ao preço de mecanismos
tico do regime republicano, embora diversos dos elementos que
ajudam a compor o quadro do "coronelismo " fossem de obser­ estranhos à C'onstituiç.ão que, garantindo a aparência
for��l _ desta, sacrificara�, em mai�r ou menor grau, a . .-J­
S� �
vação freqüente durante o Império e alguns deles no próprio
período colonial." (LEAL, Victor Nunes, Coronelismo, Enxada efetiv1dade de seu conteudo normativo. -+ ,\ 3 2, 1
e Voto, São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1975, 2.ª ed., p. 253-254).
Sobre o tema Cfr. TORRES, J. e. de Oliveira, Estratificação Social 31. A alienação das elites
no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1965, pp. 82
a 150. A imitação das instituições políticas americanas re­
1s O "coronelismo " cumpriu, porém, uma missão impor­ vela o fenômeno a que Oliveira Vianna 20 denominou de
tante. Diz AFoNso ARINOs: "O que surpreende ao observador "marginalização idealista" das elites brasileiras frente
isento é ( ...) o êxito com que (os dirigentes civis da nova Re­
pública) conseguiram ( ...) superar, com a política dos gover­ aos valores propriamente nacionais.
nadores (autêntico 'modelo brasileiro', como se diz hoje), a
falta de partidos nacionais; ( ... ) manter a unidade nacional, 19 VIANNA, Hélio, História do Brasil, são Paulo, Melhora­
apesar do federalismo, vencendo as resistências localistas, como mentos, 1967, p. 287, v. II.
a revolução de 1893 ( ...) ; instituir por fim um novo Poder 20 OLIVEIRA VIANNA, Francisco José de, Instituições Polí­

ticas Brasileiras, São Paulo, Livraria José Olympio Editora,


ou maturidade política, numa ordem social de tipo colonial ou 1949, segundo volume, pp. 13 e segs.
feudal-agrário. ( ... ) Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Uru­
guai, México e Costa Rica persistem, embora com interrupções Moderador com a aliança mineiro-paulista, que vigorou, em con­
ocasionais, em um autêntico normativismo." (Teoria de la Cons­ junto, até depois do deperecimento orgânico da Primeira Re­

T
titutión, Barcelona, Ediciones Ariel, 1970 pp. 217 a .220), pública, com Washington Luís." (Problemas..., p. 145).

414 • 6

'
74 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 75

Essa "alienação" não está simplesmente na cópia Hoje nossas elites tomam consciência de que o Brasil
de um modelo político, mas na aceitação, como válidos legal deve embasar-se no Brasil real. Essa mudança de
e aplicáveis ao Brasil, dos valores políticos próprios à mentalidade tornava-se indispensável para a elaboração
cultura americana. 21 de um consenso sobre o modelo de uma "democracia
Assim, até bem pouco tempo, entre nossas elites, não possível" - para usarmos a expressão consagrada pelo
se concebia a possibilidade de organizar a democracia Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho - que atenda aos
de forma diferente daquela vigente nos Estados Unidos. ditames da realidade onde ela deverá ser praticada. 22
Se não se elegesse o Presidente da República, nem se
adotasse a divisão dos poderes, de forma pelo menos
semelhante à daquela Nação do Norte, não haveria de­
mocracia. Se a divisão territorial do poder não obedecesse
aos parâmetros federativos norte-americanos, não have­
ria federação. Erigida a organização norte-americana,
aprioristicamente, em padrão necessário da organização
sócio-político brasileira, tudo o que não correspondesse
àquele molde deixaria de ser democrático, ou federativo,
ou, pelo menos, conveniente.
Nesses termos, se as instituições funcionam mal a
culpa é dos homens, que não sabem ou não querem pra­
ticar a democracia. Assim, essa alienação das elites leva
a atribuir exclusivamente ao "despreparo" do povo todas
as nossas dificuldades políticas. O povo não estaria "pre­
parado" ou "maduro" para a democracia.
Ora, não é o povo - a comunidade - que deve
existir para as instituições, mas as instituições para a
comunidade. Cabe às elites, quando concretizam uma or­
ganização do Estado, criar instituições que estejam à
altura da comunidade que as tem de praticar.
2 1 "Os valores colocados em posição de primazia pelas
elites brasileiras, principalmente intelectuais consideradas "pro­
gressistas" ( ...) não coincidem" (no sentido de que estão em
oposição) "com os que a grande massa do povo considera como
dignos de igual projeção." (TORRES, J. e. de Oliveira, Interpre­
tação ... , p. 148 e 149). 22 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit.
T
TERCEIRA PARTE

AS INSTITUIÇÕES INADEQUADAS
Esta terceira parte é dedicada ao estudo de dois
aspectos estruturais que consideramos os mais rele­
vantes no condicionamento político da crise da demo­
cracia brasileira: a organização da Presidência da Re­
pública ( objeto da seção primeira) e a divisão fun­
cional do poder ( tema da segunda seção). Sendo
instituições montadas com desatenção às peculiarida­
des nacionais, mas seguindo os esquemé..s tradicionais
do sistema político norte-americano, nelas se escon­
dem fatores de crise e de desarmonia que têm cons­
pirado contra a normalidade democrática instrumen­
tal. Conhecer esses fatores é indispensável à tarefa
de repensar um modelo político adequado ao Brasil.
SEÇÃO PRIMEIRA

A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Seguem-se agora dois capítulos. No primeiro,


procura-se, através de distinções progressivas, fixar
certas noções de teoria política necessárias à compre­
ensão da natureza do cargo de Presidente da Repú­
blica no Brasil. No segundo analisam-se os principais
problemas políticos, relativamente à democracia, de­
correntes do sistema que cumula na Presidência fun­
ções de Estado e de governo.
CAPÍTULO l

T 32.
DISTINÇÕES PRÉVIAS
Estado e Governo
Estado não é o mesmo que governo. Enquanto o pri­
meiro é a sociedade política global - o todo-, governo
é um dos elementos do Estado, ou seja, o elemento dire­
tor ou o conjunto de órgãos que detêm o poder na socie­
dade política. E em sentido mais estrito - que será o
utilizado, de agora em diante, neste trabalho - governo
é o grupo que exerce, num determinado Estado e em
dado momento, a "função executiva".
Se o Estado, como unidade social, permanece no
tempo, os governos, ao contrário, passam, sucederr.·&�
uns aos outros. 1 Ademais, o Estado, como sociedade
global, não se identifica com raças, classes, regiões ou
partidos, mas os transcende; já os governos devem expri­
mir, o melhor possível, a opinião político-partidária do­

T
minante.
..1

1 "O Estado envolve a existência de mecanismo, organis­


mos, jurisdições, poderes e direitos. Consiste numa rede de
relaç.õe(s, sistemáticas. ( ... ) O Estado, porém, compreende outro·
c::mceito, ainda mais restrito, o de Governo. Todo Estado po�suí
um _Governo, o qual denota, especificamente, o conjunto de
peqSoas c:;ue detêm cargos oficiais e exercem autoridade em
nome· do · Estado. Na realidade, os Governos mudam, enquanto
o ES1\ado continua à existir.'' (LrPsoN, Leslie, os Grandes Pro­
blemas da Ciência Política, Rio, Zahar, 1967, p. 84).
82 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 83
1

Enfim, o Estado tem objetivos próprios que não se '


�·
vernamental, que admitem diferentes formas concretas
confundem com os objetivos próprios dos governos. 2 de efetivação; õ
d) geralmente de realização mediata; normalmen­
33. Objetivos de Estado te os objetivos do Estado não se efetivam de forma direta
Os objetivos de Estado são aqueles que unem a so­ e imediata, mas dependem de medidas concretas da al­
ciedade global, mantendo-lhe a coesão, apesar da diver­ çada dos governos;
sidade dos interesses regionais, raciais, econômicos e e) suprapartidários; eis que não constituem objeti­
políticos que internamente a dividam. vos de partido ou de facções políticas, mas da sociedade
A sociedade política compõe-se de um tecido extraor­ como um todo, que se situa acima dos partidos; 6
dinariamente variado de grupos sociais menores, cada f) objeto de um dever cívico de respeito, na medida
qual com seus interesses específicos que diferenciam uin em que são objetivos que dão sentido ao convívio social­
grupo do outro e, com freqüência, geram tensões e con­ -político, nenhuma sociedade poderá subsistir sem que
flitos. O que preserva a unidade da sociedade política são seus membros espontaneamente os respeitem. Portanto,
justamente os objetivos do todo social, posicionados da própria inserção de alguém numa sociedade política,
acima dos interesses seccionais divergentes. nasce-lhe o dever de respeitar os seus objetivos perma­
Os objetivos do Estado apresentam notas caracterís­ nentes. Não se esqueça, porém, que a força obrigatória
dos objetivos do Estado finca-se antes no consenso da
ticas que permitem qualificá-los como:
comunidade, ou seja, na aceitação espontânea pela ge­
a) genéricos, isto é, aproveitam indistintamente a neralidade dos membros da comunidade, do que na
todos os membros da comunidade política; esses objeti­ ameaça das armas.
vos, num Estado substancialmente democrático, nada A contrariedade aos objetivos próprios do Estado
mais são do que as condições genéricas do bem comum, vem a ser o que se denomina de subversão. Fazer subver­
de que já tratamos: a ordem, a liberdade, a justiça a são é atingir, por atos, os próprios objetivos permanentes
segurança e o progresso; 3 do Estado, que na democracia são as condições genéricas
b) permanentes, uma vez que acompanham neces­ do bem comum, como a ordem, a liberdade, a segurança.
sariamente, a existência da sociedade política; 4 A subversão, abalando o con.senso relativamente a esses
e) abstratos, no sentido de que são valores, ideais objetivos, além de fator desagregador da sociedade polí­
ou metas, orientadores do convívio social e da ação go- tica, dificulta - quando não impede ;_ a democracia
política. Em verdade, não poderá haver democracia, com
2DALLARI, Dalmo de Abreu, O Futuro do Estado, São Paulo, o amplo debate das questões internas a uma sociedade,
Saraiva, 1972, p. 85.
3 Sobre a enumeração dos objetivos do Estado: J. e. DE o. ó "Os fins do Estado, ou seja, a proteção, a ordem e a
TORRES, Harmonia... , pp. 111-114; LIPSON, op. cit., pp. 95-96. justiça, são atingidos através do Governo". (LIPSON, op. cit.,
4 M. G. FERREIRA FILHO denomina-os de "interesses pere­ p. 108).
nes", "valores tradicionais" (Curso. . . , p. 104). 6 TORRES, J. C. de Oliveira, Natureza... , pp. 148 e 149.
84
, '
;fE�R SALDANHA 'SOUZA JUNI�R I A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 85
/;Ih;;:, �:J(} Gt �J,e ��v-
em que haja a aceitação eswntâp���id� Estremam-se dos objetivos próprios de Estado porque
gos membros, de alguns objetiv�icos comun,s: pelo são:
menos, daqueles que, por serem vitais à manutenção a) específicos, aproximando-se das condições ditas
da convivência social-política, devem ficar acima de específicas do bem comum, aproveitam em graus dife�
discussão e de desacordo, sob pena de fragmentação da rentes aos membros da comunidade, beneficiando mais
sociedade. 7 A crise do consenso, provocada ou acirrada a uns que a outros; eisses objetivos são ilimitados em nú­
pela subversão, obrigando a defesa, pela força física, dos mero: construção de estradas, redes de telecomunicações,
objetivos básicos da sociedade política, exclui os pressu­ determinada política salarial, econômica, educacional
postos de tolerância, espontaneidade e liberdade, sem os etc ... 8
quais a democracia política plena não pode subsistir. b) atuais, isto é, objetivos que se impõem, pelas
situações concretas, para realização no momento pre­
34. Objetivos de governo sente. 9
Além dos objetivos próprios do Estado, valores que e) con0retos, vale dizer, definidos quanto à forma
conferem unidade e sentido à sociedade política, há toda d,e sua realização concreta;
uma série ilimitada de objetivos-intermediários ou obje­ d) de realização imediata, ou seja, objetivos-meios
tivos-meios que, constituindo opções concretas de cunho para a efetivação dos valores que constituem os objetivos
hoje partidário, traduzem-se em linhas de ação e cargos do Estado;
dos governos. Esses objetivos, nos Estados democráticos e) partidários uma vez que se tradu�em nas plata­
ocidentais de hoje, são formulados e submetidos à apro­ formas ou nos programas de ação de partidos e c1e go­
vação da opinião política através dos partidos políticos. vernos;
f) objeto de um direito de crítica: os objetivos
7 "Para ser viável, precisa a democracia de vigoroso sen­ próprios dos governos, situando-se no plano das vias con­
tido de unidade nos princípios, contrabalançada por grande cretas e múltiplas que se abrem aos governos para a
tolerância a respeito de tudo o que não concerne diretamente efetivação dos objetivos próprios do Estado, devem ser
a unidade. A democracia supõe, portanto, em vez de lealdade
a pessoas, lealdade a idéias morais, comuns a todos. A vontade passíveis de crítica e de contrariedade. Este, aliás, um dos
moral coletiva de viver em comunidade, com solidariedade p0istulados da democracia política.
mútua, deve ser em todos os grupos, tão forte que os seus inte­ A contrariedade aos objetivos próprios dos governos
resses antagônicos ( .. .) sejam s�mpre controlados pela von­ vem a ser o que se denomina de oposição. Fazer oposição
tade, moral mais forte, de viver em comunidade e, assnm,
é discordar da linha política de um governo, combatendo
�mpregar só os meios legais de reforma social e · política e
abster�se de apelar para a violência civil. Onde o antagonismo as medidas concretas por ele tornadas. A oposição, além
de grupos ou de classes tem mais peso que a vontade de viver
em comunidade, torna-se impossível a democracia, e suas' ins­ s TORRES, J. e. de Oliveira, Natureza, pp. 149-150, onde os
t'ítuições são fatores a contribuir diretamente para sua destrui­ objetivos de governo são chamados "interesses seccionais".
ção." (RoMMEN, Heinrich A., O Estado no Pensamento Católico, o O Prof. FERREIRA FILHO a eles se refere como "os objeti­
S. Paulo, Ed. Paulinas, 1967, p. 455). vos de cada dia" (Curso, p. 105).
86 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 87

de essencialmente boa - ao apontar as falhas em que góvernos não subvertam os objetivos permanentes do Es­
incide um governo, colabora para que a função executiva tado.
seja melhor desempenhada-, é necessária à prnserva­ Integram, entre outras, a função de chefia de Go­
ção da democracia política. verno as atribuições de:
a) "representar" a opinião política partidária do­
35. Funções de chefia de Estado e de governo
minante, exprimindo as exigê�cias políticas prevalentes
Correspondendo à distinção entre Estado e Governo, no seio da comunidade;
e entre objetivos de Estado e obJetivos de Governo, pro­ b) comandar uma equipe de políticos que vai con­
jetam-se no plano do direito constitucional duas espécies duzir a administração;
fundamentais de funções de direção política: a de chefia c) dirigir a política na comunidade, traçando e
de Estado e a de chefia de Governo. executando a linha de ação do poder executivo
A função de chefia do Estado consiste em zelar pela Enquanto a função de chefia de Governo é "at1va",
preservação dos objetivos permanentes do Estado, que eis que busca realizar diretamente o bem comum, a
em uma democracia, se identifica com as condições ge­ função de chefia de Estado é "defensiva", visto corno
néricas do bem comum, que já mencionamos: ordem, procura resguardar os objetivos permanentes do Estado
liberdade, justiça, segurança e desenvolvimento. A fun­ de lesão ou prejuízo sérios.
ção de chefia de governo, por sua vez, consiste em reali­
Corno corolário dessa distinção, extrai-se que .Q[.
zar diretamente as condições específicas, atuais e concre­
wocessos de preenchimento da chefia de Estado e da
tas do bem comum, e que assumem a feição de objetivos
chefia de Govern.CLnão podem s.�r.Jdênticos L mas d�v�
de governo. 10
se conformar à natureza.específica de '"9Q8 um,a. A forma
A função de chefia de Estado pertencem, entre ou­ de designação do titular da chefia de Estado deve pro­
tras as atribuições de: piciar a escolha de alguém que seja, o máximo possível,
a) representar a comunidade política como um desvinculado das correntes partidárias disputantes do
todo, na. unidade de sua diversidade e em sua projeçã,o poder. 11 Já, ao contrário, a forma de indicação do
histórica de Nação; ocupante da chefia de Governo deve conduzir à escolha
b) comandar supremamente as Forças Armadas, de um líder de partido que esteja identificado com as
instituídas para defesa dos objetivos permanentes do
Estado; 11 "O caráter da função recomenda que na chefia de Es­
c) fiscalizar ou "inspecionar" a realização direta tado somente seja investida pessoa cuja circunspeção e equi­
do bem comum, em especial relativamente ao governo e líbrio esteja fora de dúvida. Por isso, pondo-se de parte o caso
das monarquias, nos Estados onde essa função não é fundida
à administração, de modo a que os objetivos atuais dos com outra, a escolha de seu titular costuma fazer-se por via
i direta (v. g. Alemanha), já que os dotes necessários para
10 V. a distinção do Prof. FERREIRA FILHO (Curso, pp. bem exercê-la não são os que conquistam votos nos comícios:

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104-105). populares". (FERREIRA FILHO, op. cit., p. 105).

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A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 89

aspirações da opinião política dominante. 12 Esses os cri­ sideradas mais estritamente como funções de chefia de
térios que nos devem orientar na busca da forma de Estado. 14 O "poder executivo" de Montesquieu tem muito
designação ou de eleição mais conveniente à sociedade pouco daquele poder que hoje, com o mesmo nome, reali­
política, urna vez que a função de chefia de Estado exi�, ;a a administração pública e dirige a política de um
corno condição para bom exercício, a imparcialidade e Estado. A razão é simples: na época em que escreveu sua
a neutralidade partidárias, ao passo que a chefia de Go­ obra, não haviam surgido os controvensos problemas de
verno requer a condição de líder da comente partidária governo, que vão caracterizar, com a complexidade cres­
prevaleceute. cente da sociedade, os séculos XIX e XX. Até o final do
Nomear o chefe de Estado segundo critérios político­ século XVIII, as atribuições governamentais, despidas de
-partidários não quer dizer democracia política, mas par­ maior complexidade e desvinculadas de questões parti·­
cialização da suprema magistratura do Estado, aliás pe­ dárias (ainda não existiam partidos), 16 podiam, sem di­
rigosíssima para a sobrevivência da democracia. Eleget ficuldades mais sérias, ser confundidas no órgão detentor
o chefe de Governo segundo critérios avessos à opinião
da chefia d.e Estado.
política, isto sim, é limitar ou negar o princípio demo­
crático da participação popular no governo. No século XIX, porém, as mudanças econômicas,
sociais e políticas trazidas com a industrialização, com a
36. Formas de organização
14 "O ponto mais vulnerável da teoria de MONTESQUIEU diz
O exercício das funções de chefia de Estado e d,� respeito ao poder executivo, mal compreendido e mal caracte­
Governo pode ser cometido a um único órgão, corno pode rizado, do que vêm resultando enormes dificuldades para quan­
ser dissociado em órgãos distintos tos, na doutrina e na prática, desejam ater-se à tripartição
por ele enunciada". (DALLARI, Dalmo de Abreu, Da atualização
Até o século XVIII, nas monarquias modernas, as do Estado, São Paulo, 1963, p. 121).
duas funções eram exercidas, ao mesmo tempo; · pelos rn "Pour ri.pus, aujqrd'hui, le parti politique semble un
Reis. Montesquieu ao retratar, no "Espíritos das Leis", élement na.turel de tout systeme politique. Il est omni présent:
a Constituição inglesa, ainda não separa as funções de dans zes régimes autoritaires e dans les régimes libéraux, dans
Estado das de governo. Denomina ele de "poder executi­ les pays en voie de dévelopment comme dans les pays indus­
vo" aquele que "faz a paz ou a guerra, envia ou recebe triel.s. On a peine à citer un État ou il n'y ait pas, au motins,.
embaixadores, estabelece a segurança e previne as inva­ nn parti politique. Pourtant cette situation est relativement
sões" (L. XI, Cap. VI, § 2.º). 13 Ora, corno se vê, Montes­ nouvelle. "En 1761 (en Grande-Bretagne), nous repelle Sir
Lewis Namier, aucune election au Parlament n'était le fait des
quieu denomina de função "executiva" atividades dife­ parti.s; en 1951 pas un seul candidat indépendant n'a été élu".
rentes daquelas que atualmente conceituamos rigorosa­ Non seuiernent les partis nont guere d'influence avant le deu­
mente corno tal e que, em linguagem moderna, são con- xieme quart du x1xe siecle, mais ils n'existent pas, ou, si l.'on
1
prefere, ce qui en tient Zieu, la réalité que recouvre le mot de
12
FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., p. cit. "parti" n'a que de tres bintains rapports avec les partis tels
13 MONTESQUIEU, Oeuvres Completes, Paris, Chez Firmin­ que nous les connaissons maintenant". (CHARLOT, Jean, Les
Didot et Ge, Librairies, p. 265, (ed. 1877). Pnrtis Politiques, Paris, Librairie Armand Colin, 1971, p. 4).

414 - 7
90 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 91

centralização definitJv_a ·da administração e com'.<} apl::.­ não na fonte, mas na Constituição americana que é
recimento das ideologias e dos partidos políticos, trans­ ainda do século XVIII . . . 18
formaram a função proprJamente governamental. Esta Essa atribuição da chefia de Estado e de Governo a
ganhou uma expressão que não tiveri:t até então, bem uma mesma pessoa como vigora desde 1891, a par de
como passou a envolver opções partidárias e, até, ideoló­ representar uma violação ao principio da divisão do tra­
gicas. 16 Ora, o Rei, porque hereditário, vitalício e irres­ balho e da especialização das funções, condiciona pro­
ponsável, não mais .podia �xercer uma função q-µe parti­ blemas políticos muito graves e que se refletem negati­
dariza necessariamente o titular, que deve ser .sensível vamente sobre o funcionamento da democracia no Brasil.
às flutuações e às críticas da opinião política e que exige É o que será analisado no capítulo seguinte.
a responsabilização política dos que a exercem;. É as.sim
que, na realidade européia do século XIX, surge a sepa­
ração do exercício das funções de, chefia de Estado e de
governo em órgãos distintos, embora na Inglaterra o
fenômeno já fosse conhecid<;> em pleno século XVIII. 17
A organização pólítíca brásileira em 1891, involuin­
do, nesse particular, diante da separação que vigorou no
segundo reinado, retornou à cumulação registrada no
primeiro reinado e na regência, somente que desta vez
segundo a -formulação clá,ssica de Montesquieu: haurida

16 "O Executivo do século· XX é muito mais vasto que no

século XVIII ou, mesmo, no século XIX. Os ministros de


Luís XVIII só tinham que se preocupar com a polícia, a política
exterior, um pouco com o orçamento". (MIRKINE-GUETZÉVITCH,
18 Extraordinário trabalho de pesquisa recente mostrou
Bóris, Evolução Constitucional Européia (Ensaio Sintético).
Rio, José Konfino Editor, 1957, p. 41 e 42). que, apesar de a tendência mundial ser no sentido da separação
17 '' Ainda no primeiro quarto do século XIX, a figura do
da chefia de Estado em relação à chefia de governo, a reunião
dessas funções em um só órgão ainda sobrevive em 20% dos
Primeiro-Ministro (chefe de governo) era, (na Inglaterra), con­ Estados contemporâneos. Os demais 80%, independentemente
siderada inconstitucional e odiosa, embora já claramente aque­ de sistema, de regime ou de forma política, distinguem os dois
les que exerciam a liderança, e eram escolhidos para formar o papéis em órgãos específicos. A mesma pesquisa revelou que
Governo, a julgassem definitivamente aceita e agissem como "a forma menos modernizada de estruturação governamental
tal. Caberia a_ William Pitt (1759-1806), que liderou .o Governo ( ... ) com o mais elevado grau de fusão, entre os papéis, dentro
de 1783 a 1801, habituar a nação (inglesa) a essa figura e do subsistema do Poder Executivo e mesmo dentro do sistema
obter definitivamente o consenso geral em torno dessa institui­ político como um todo, encontra-se no� seguintes países: Brasil,
çãt>". (LIMA, Antonio Amílcar de . Oliveira, O poder exe.cutivo Colômbia, México, Suíça e Venezuela". (LIMA, Antônio Amílcar
nos Estados contemporâneos, Rio, Artenova, 1975, p. 44) ., DE OLIVEIRA, op. cit., pp. 37 e 231).
CAPÍTULO II

PROBLE.MAS POLÍTICOS LIGADOS À


ORGANIZAÇÃO DA PRESIDÊNCIA
37. O dilema dos Presidentes

Ninguém pode exercer bem, ao mesmo tempo, as


chefias de Estado ·e de governo.
O Presidente, para possuir ascendência moral sobre
os grupos políticos e regionais, e, assim, desempenl;ur
bem seu papel de cllefe de Esta(lo, precisa estar em
situação de neutralidade e de .imparcialidade frente às
correntes políticas em que se divide a opinião nacional.
Com efeito, o papel de representante, da Nação, de guar­
da dos valores permanentes da _sociedade política, e de·
comandante supremo das Forças Armadas,. é incompatí­
vel com o sectarismo partidário.
Por outro lado, um bom exercício da chefia de go­
verno requer liderança político-partidária .capaz de iden­
tificar-se, na dimensão concreta da realidade política,
econômica e social, m..m a parcela majoritária do elei­

T
torado.
Ora, o dilema surge claramente·:
a) se o Presidente se posiciona, com imparcialida­
de, acima das correntes partidárias, terá condições de
atuar muito bem como chefe de Estado, na preservação,
como verdadeiro. magistrado, das regras do jogo político,
garantindo os princípios democráticos da supremacia da
1
Lei e da igualdade de oportunidades; no entanto, fi-

94 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 95

cará ipso facto preliudicada sua condição de líder o mais parcial, necessária, por sua vez, ao exercício de suas tare­
proeminente do partido político dominante, eis que se fas arbitrais, fiscalizadoras e defensivas de chefe de
coloca, intencionalmente, à margem da atividade polí­ Estado.
tico-partidária; ktaiz do problema está em que ninguém pode ser,
b) se o Presidente, ao contrário, empenhar-se total­ ao mesmo tempo, partidário e suprapartidário, parcial e
mente na pugna política, vivenciando o papel de líder de imparcial, representante do todo e expressão da parte. 2
partido, estará exercitando legitima atividade de chefe Desse modo o Presidente ou atua como chefe de Estado
de governo;· à· a.ltura · de· suas responsabilidades; mas, na em po�ição arbitral, ou atua como chefe de governo, inte-
mesma medida· do seu engajamento partidário, estará ' ' .
prejudicando, irremediavelmente, a função indispensá­ 2 · A situação já fora vista por RAUL PILLA: "Com efeito,
vel de chefe de Estado, de representante da Nação, inde­ como· chéfe da Nação, deve o Presidente da Repúblicà estar
pendentemente ele credos, regiões e partidos. acima' dos· partidos e das ·suas competições; e éomo chefe do
poder éxecutivo, é necessariamente a expressão do partido ou
No Brasil, esse dilema é observável desde 1891 e pode da aliança de partidos que o. el�geu. Como se poderá ser órgão
ser documentado nos Anais recentes do Congresso Na­ de um partido e pôr-se, .ao mesmo. tempo, acima dele? São
cionaL 1 realmente duas coisas difíceis de .. conciUar. É como se, numa
partidà dé. futebol, a mesma pessoa fosse o árbitro e ó capitão
Se o Presidente optá por ser chefe de Estado parti­ de um dos bandos." (PILLA, Raul, catecismo Parlamentarista,
dariamente imparêià.l'- e isso tem sido necessário desde Porto Alegre, 1949, p. 18). Não a esqueceu de observar um

T
1

1964 justamenteparaa defesa dos objetivos· permanentes autor moderno. "A tudo isso (às tarefàs do Presidente da Re­
ameaçados -,' corre o risco de perder a sustentação par­ pública 'como líder partidário e chefe dá administração federal) '
Üdária de seu governo, pela crise de liderança e pela acrescente-se o papel de líder nacional, representando o Estàdo
federal, interna e externamente, pàpel esse que, por se ·revestir
desorientação que' hão de mii1àr as bases que natural­ de características apolíticas, exige dele virtudes dé serenidade,
mente o apóiam. imparcialidade e desprendimento. Em resumo; considerando-se
Se o Presidente; para garantir o apoio partidário in­ o cargo do Presidente monista, num país como os Estados
dispensável.· a(> governo· que chefia, ingressar · na arena Unidos, ,pode-se dizer que ele exige, para o exercício. d.as fun­
ções. de' Üi.l modo diversificadas, virtudes contraditórias e, tal­
político-eleitoral,· perderá·
.
sua posição. de
.
magistrado. im- vez/ muthamente anulantes. Não é sem razão que HAROLD J.
. . •.:·,'
LASKY aéentuava o caráter de solidão de que se re.vesté a Pre­

T
S
Bastante elucidativo do dilema dos Presidentes foi o sidêriéia nô Estados Unidos." (LiivIA, Antônio A. · de Oliveira,
1 1

debate travado na Sessão, do dia .24 de maio de 1976 do Senado op. cit;, p. 38-39) .
Federal entre os senadores PAULO BROSSARD (MDB-RS) e PE­
'·'

TRÔNIO PóRTELLA ·(Arena-PI), a respeito de um pronunciamento 1 uma facção. No momento em que ele o faz, deixa -de ser o
do Sr. Presidente da Repüblicà ERNESTO GEISEL na .cidade de chefe da Nação, deixa de ser o chefe de Estado. ( .. ,) Eu não
Gramado, RS, a Hdê;l'es da Arená local, durante a campanha poderia deixar passar sem os meus embargos, esta forma de
política ao pleito municipal,- no qual Sua Excelência, referindo­ tratar a Oposição, feita por aquela autoridade que deve ser o
-se à Oposição, teria, usado as expressões adversários e inimi­ Presidente · da Nação, de todos os brasileiros." Respondeu-lhe,
gos. Declarou o Senador gaúcho: "O chefe da Nação não pode com não· menor brilho, o Senador PoRTELLA: "A expressão do
r-olocar' seu cargo, o seu prestígio, a sua força, · a serviço de Senhor Presidente da República aos seus correligionários teve
96 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO B::tASIL

grado perfeitamente em partido político. O que não con­ A impossibilidade de o Presidente vivenciar simulta-·
seguirá é levar a bom ter.mo, conjuntamente, as duas neamen'te os papéis de chefe de governo e de chefe de
funções. 3 E se, para fugir ao dilema, tentar ser "meio" Estado desequilibra o processo político democrático, eis.
chefe de Estado e "meio" chefe de Governo, acabará que es'te supõe o exercício adequado de ambas as funções.
fracassando nas duas posições. Assim, se o Presidente der tônica aos objetivos par- (} pT
tidários, pautando sua atuação na linha de ch�fe de
38. "Anarquia" ou "autoritarismo" }
governo, a tenàência será a de sobrepor
. os objetivos
. que
A sociedade política, para conciliar os princípios da. �Wf�
seu partido propõe aos objetivos permanentes do Estado. l,�O
liberdade e da ordem, não pode se cont,entar com "meio" Nesse caso, os objetivos permanentes ficam sem d�fen;- M � CJ
chefe de governo: a democracia instrumental exige que sor, ou pelo menos terão diminuída sua força orientadora t,�
a direção político-governamental seja confiada a quem e disciplinadora do convívio social no rumo da democra-
melhor se identifica com a opinião predominante. E nem insensibilidade política do governo, a sua indiferença com a
com "meio" chefe de Estado: precisa de um órgão total'" vida partidária. Não faz muito, há ·seis dias, isso ouvimos,
mente dirigido aos valores substanciais da democracia, aqui, da parte do ilustre Líder da Minoria. E agora, qüaúdo o
capaz de, pelo menos, evidenciar-lhes a superioridade. Presidente da República se despe <le sua. função presklencial
e usa de fato a camisa do seu . partido, para dar o , conselho

t
3 Na campanha eleitoral de 1974 o Presidente GEISEL agiu providencial, há o reclamo, a . advertência, o protesto triais,
como verdadeiro magistrado, sob os encômios expressos dos solene." E conclui com uma pergunta: ·, "Será que em razão de
líderes da Oposição e sob o significativo silêncio dos arenistas. ser Presidente da República, afastando toda a n1áquina go-,
Agiu como bom chefe de Estado, mas mau chefe de governo. vernamental, Sua Excelência está proibido de se . expressar
Nas eleições de 1976, o Presidente "usou a camisa da Arena", politicamente e falar, como correligionário, ,a quantos militam
com o entusiasmo da Arena e os protestos do MDB. Agiu como nas hostes da Ali.ança Renovadora Nacional? E, quando assim
bom chefe de governo, mas prejudicou seu papel de chefe de o faz, não tem, exatamente, na outra trincheira adversários ou
Estado. inimigos? (Não é o inimigo contra quem se queira lançar os
tiros que importariam na sua morte. Não. É no sentido t:gu­
um sentido· de observar que .deve haver contenção entr{) eles, rado) ( .. ,). Se isso constitui abuso do poder, Sr. Pre;'lidente:

....
nas disputas municipais, sob a observação de que o adversário, - pelo menos da parte do chefe do governo -, diríamos que
o inimigo, está do outro lado. E quando Sua Excelência o .fez a Nação é feliz porque, ao invés de prejudicar os adversários,
não se dirigiu à Nação como Presidente da República no uso fazendo uso do poder contra eles; o Presidente prefere, cdemo­
e gozo de suas atribuições, mas simplesmente na posição de craticamente, fazer-se um homem de Partido, a uma agremia­
Presidente de Honra do Partido expressando a sua solidarie­ ção filiado, usando a linguagem coloquial de companhe;ro."'
dade e o testemunho do seu apreço a quantos integram a 1
Quem tem razão nesse debate? Seguramente os dois. Tem
Aliança Renovadora Nacional. Se isso importa em reparos razão BROSSARD: quando o Presidente, à diferença das elei,,�Õ<;;s;
maiores da Oposição, que ela nos perdoe. ( ...) Sua Excelência de 1974 onde agiu como magistrado, identifica-se na campa­
naquele momento estava dando uma demonstração de enga­ nha eieitoral com um dos Partidos, prejudica profundamente
jamento político tão sobejamente reclamado pelo Movimento sna função de chefe de Estado. Mas tem também razão
Democrático Brasileiro. Quantas vezes ouvi os mais vibrantes PoRTELLA: o Presidente, como homem de governo, que nec,ssita
oradores, daquela tribuna, reclamar contra o alheamento ,e a de apoio partidário, tem todo o direito (e, poderíamos até di-
:98 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 99

eia. A cons:eqüência será o enfraquecimento da coesão ds.o margem à volta do reino sem contraste do.s objetivos
social, o radicalismo partidário, o triunfo s�m limites dos tipicamente de governo. 4
interesses políticos inenQres. É o caminho dâ demagogia Já a especialização das atribuições de Estado e de
e da anarquia. governo em órgãos distintos' favorece o justo equilíbrio
Se o Presidente der tônica aos objetivos permanen­ entre os objetivos permanentes e os atuais, condição
tes, pautando sua atuação na linha de- chefe de .Estado, a sine qua non de uma democracia estável.
tendência será de esmagamento dos objetivos politicos
de partido. No caso, estes objetivos entram em crise, pre­
valecendo a imposição de uma linha governamental mais
39. . A participação das Forças Armadas

ou menos dogmática e independent.e do apoio e do con­ A função de chefia de Estado tem, entre as suas
.senso· de bases partidárias; É o caminho do autorita- atribuJções mais relevantes, o comando supremo das
1·isrno. Forças Armadas. .·
A semelhança de um pêndulo, a história política Ora, se a chefia de Estado é entregue a quem efeti­
dessa cumulação de funções na Presidência assinala uma e vamente exerce. a chefia do governo, cria-se um descom­
oscilação, de pólo a pólo, entre a tendência "anárquica" passo ..extremamente perigoso à democracia: um órgão
-e a ten_dência "autoritária". Assim, períodos de pronun­ parttciariamente imparclal e voltado apenas aos yalor_es
ciado 'predomínio dos objetivos partidários, tangentes à nacionais, sujeito ao comando .de> quem é homém de
.anarquia, são segµidos de períodos autoritários, de in­
fluência. militar bem caract.erística, em que imperam as
razões de Estado. Estes, por sua vez, completado o ciclo
zer, que tem o dever) de participar da campanha eleitoral,
f'
IS�a oscila�ão ·pendular. �.a polítkl!- brasileira - . sem a
�J devida fundamentação - já fora observada por alguns àutores.

Assim: ''.Tá é tempo, pois, de se reconhecer que o pêndulo do


presidencialismo brasileiro oscilou continuamente entre os ex­
tremos do despotismo e da anarquia." (REALE, Miguel, Parla­
pedindo votos para o seu Partido (e prestando contas de sua mentarismo Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2.ª ed. 1962, p. 79).
gestão). A falha está na Constituição que obriga o Presidente

i
� "L'anarchie ou la dictadure, tels sont les deux alternatives
da República a vivenciar, ao mesmo tempo os dois inconciliá­ . essentiels du régime presidentiel en A mérique Latine ( ... ) .

...
veis papéis. (V. Anais do Senado Federal, Brasília-DF, maio de Dans. les circonstances spécifiques de l'Amérique Latine tout
1976, v. II, pp. 213 a 216). Para termos uma idéia da tendência pouvoir fort signifie dictadure et tout affaiblissement de e e
de· nossas elites de achar que os homens é que estão errados, l pouvoir.. aboutit a l'anarchie." (Mirkine-Guetzevitch, apud:.
mas a Constituição sempre certa em sua estruturação do poder, JosÉ AUGUSTO, Presidencialismo versus Parlamentarismo, Bor-
leia-se a Coluna do Castello, dois dias após o debate: depois de soi, R1o, 1962, p. 10). "Com a regra de um chefe, armado de
trazer à tona usos e costumes · dos Estados Unidos, afirma o , poderes excepcionais, o Brasil tem oscilado do governo absolu­
:notável jornalista, "cabe assinalar que, se o Senador BaossARD f to, confundido com o Estado, ao choque entre as representações
não colocou com a precisão habitual a questão, também não o � populares e o executivo, em várias fases - como a, da Consti-
.fez o Senador PoRTELLA" ! Para o experimentado analista po­ i tuição de 1946 -, de tal maneira críticas, que durante o · seu
lítico, o Presidente deve ser - J;,_omo se fossu�sív� - "meio" curso: se registraram várias crises, algúmas violentas, como a
chefe de Estado e "meio" chefe de governo. (Jornal do Brasil, que teve. epílogo no suicídio do presidente VARGAS." (ScANTIM­
.Rio, Ed. de 26 de maio de 1976, Coluna do Castello, p. 2) . BURGO, João de, Trátado Geral. .. , p. 126 e, ainda, 176 e 182) .
100 CEZAR SALDANHA SOU'.&A JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 101

partido, titular de um poder destinado a realizar obje­ �� Só a neutralização partidária da chefia de Estado,
tivos atuais e específicos. C'om isso, as instituições nacio­ separando-a da chefia de governo, refletir-se-á sobre as
nais permanentes de defesa da Pátria e garantia dos Forças Armadas, proporcionando condições efetivas para
poderes constituídos ficam virtualmente subordinadas a afastá-la dos embates políticos que cercam a atividade
critérios partidários. especificamente governamental. Ligadas ao chefe de Es­
A acumulação da chefia de Estado com a de governo tado> enquanto órgão suprapartidário de representaçã.o e
3
empurra, desta forma, as Forças Armadas para o campo fiscalização, encontrarão stfa sição natural de defen­
po

das lutas partidárias, que, pela natureza delas, lhes deve sores da Pátria e garantia dos poderes constituídos,
ficar estranho. As Forças Armadas tornam-se, inclusive, acima das divisões partidárias da comunidade.
potencialmente utilizáveis, pelos líderes de partido que
detêm o governo, como instrumento de combate político,. 40. A distinção entre oposição e subversão
o que se apresenta como fatal à sobrevivência da demo­ Oposição e subversão, como já se analisou, na teoria
cracia política. 11 política distinguem-se nitidamente: oposição é ser contra
. Por outro lado, na hipótese de o chefe de govern0 o governo; subversão é ser contra o Estado.
ocupante da chefia de Estado, movido por interesses par­ A primeira é essencialmente boa e necessária à de­
tidá1ios, desviar-se da ordem legal, as Forças Armadas mocracia. A segunda, além de má, destrói a democracia.
vêem-se num dilema: cumprir o seu dever constitucfonal Por isso se pode direr que a maior necessidade de uma
de obediência ao comandante supremo, abandonando az democracia política reside em distinguir claramente os
instituições à sua sorte, ou cumprir o seu dever consti­ dois campos, uma vez que a p.emocr�cia precisa de opa,.:_,
/ tuci nal de garantir as instituições, abandonanq.o . o, . sicão, mas não pode tolerar a subversão.
\ � ·
\"-.}'residente. Ora, no Brasil, uma só pessoa é, ao mesmo tempo,
Chefe de Estado e Chefe, de governo. Em virtude dessa
A partidarizaçào compulsória das Forças Armadas não
escapou à argúcia de Ht...'RMES LIMA: "A políticá presidencialista
. r,
cumulação, o destinatário da oposição - o chefe de go­
brasileira jamais cessou de bater às portas do Exército·· ( ... ).
verno - e o destinatário da subversão - o chefe de
Através de todo o período republicano as classes armadas ja� Forças Armadas, segue-se que estas, irresistivelmente arrasta­

c
mais foram deL'Cadas em paz pela política." (LIMA, Hém'les� das no torvelinho das paixões e dos interesses políticos, se di­
Lições da Crise. Rio, Livraria José Olympio Editora, 1954, videm e se contrapõem (...). Este regime (sistema de estru­
pp. 67-68. RAUL P1LLA, no final de sua extraordinária vida pú­
turação do poder) poderá convir, e convém, a algum caudilho
blica, despertava para o problema: "li: mister que as Forças: político desgarrado no seio delas e interessado em utilizar a
Armadas não se vejam perturbadas no exercício de sua alta e
,tarda e a espada em proveito de sua ambição ( ...). Este de-
nobre missão, dela não sejam desviadas e não sejam arrastadas
terminismo do sistema não pode deixar de refletir-se desastro-
a intervir na vida política, pelos próprios desatinos dela (...). fsamente nas p ro ·prias Forças Armadas, que desde logo se vêem
Golpe de Estado, revolução, ditadura, passaram, pois, a .ser a
nossa desgraçada lei. Mas, como golpe de Estado não se dá, separadas em partidárias do governo e adversárias dele."
. .
revol.ução não se faz, ditadura não se estabelece sem a inter­ (PILi.A, Raul,
. Julgada, Porto Alegre, Livraria Lima
. Ltda., 1969, ps. 38, 3l4�). e
A Revolução
l. / ·
�°' 'iirvrI
venção, sem o concurso decisivo, sem a própria iniciativa .das r . O,,. \ . +-
t� b4 G- �-. � •
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JJ.rv...� ,...Lu
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.0����,&J.�N� J�� }
102
c:
CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR J� A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL ,.103

Estado - se confundem na mesma pessoa. Disso resulta , mbyersiyO,&,_ ficam de mãos livres para, · sob a máscara
a inexistência de uma distinção objetiva entrf;l'Qpo,�ição da oposição, melhor atingirem seus propóslfos3issa con-
---..._;;�- ��=�=ata.= -

e subversão. fusão é ruim para a oposição e, conseqüentemente, para


Quem se opõe ao chefe do poder- exec"Utivp,. ao a democracia, porque suscita entre os bem intenciona­
homem de partido que . trata dos objetivos atuais dos dos o receio de serem considerados subversivos e, �ambém
governos, está acertando, em suas críticas e, em /seus porque exige dos oposicionistas um cuidado permanente
ataques, àquele que também é o chefe de Estado, ;o pri� de moderação e contenção que, em algumas circunstân­
meiro representante da Nação, o comandante :d�s Fprças cias, pode enfraquecer mesmo a oposição mais legítima.
Armadas, o intérprete dos objetivos permanentes. do· Mas essa situação é excelente para a subversão, que pode
Estado. O alvo da oposição - embora enquanto chefe de utilizar a capa do direito de oposição para golpear fundo �±
governo - é pessoalmente o mesmo da subversão. Qual,. o regime democrático. .,..� � �··<11t. ��
então, o limite objetivo entre oposição e subversão? Até Com a separação dos órgãos encarregados das. fun- .e ;�
que ponto alguém faz oposição e quando começa a fazer­ ções de Estado e das funções de governo, tanto nas� �
subversão? monarquias como nas repúblicas, qualquer cidadão pode �;Ji
i.
Se na teoria a distinção é clara, na prática, face à
fusão, de funções na :pessoa do Presidente, a distinção,
tranqüilamente discordar do. governo, sem o teIT,1Qr de t'.-?;n�
passar por subversivo. 6 Isso porque, na prática, ,fica. 2-X
·
pode se tornar extremamente difícil. clara e objetiva a distinção entr� oposição e subver são. o:·�
%i:.h :'
Determinada pessoa ou grupo de pessoas, ao criticar­ .
oposicionista é apenas .contra:oohefe de governo, .s�ndo-� ·�
ou combater o Presidente - e, por extensão, até algüns. -lhe possível, ao mesmo tempo, guardar e dempll,$trar� 'c(;J,,.
de seus Ministros -, está atingindo somente o chefe cie­ indiscutível fidelidade para com os objetivos perrnanen- --t�� �
governo ou está alcançándo o chefe de Estado? Estará tes ,da sociedade,. representados na pessoa do chefe de � �
no plano legal e lícito da oposição, ou pratica subversão­ Estado, seja ele um Rei ou um Pr�sidente. 7
. • � '/.;. tt
sancionável pela Lei de Segurança Nacional ou pela apli­ Para que a conduta de alguem seja caracterizada � � , �-
cação do AI n.º 5? A resposta dependerá basicamente como suversiva se faz necessário . que. invista contra o 'ir �
da intenção da critica ou do ataque, conforme se puder ------- 1:v
o A distinção objetiva e clarà entre oposição e subve·rsão
{ iria criar um clima favorável à sup eraçãô de uma série de pon­
concluir das circunstâncias. A distinção, portanto, não, �
. .
. .
(.
está. colocada em termos objetivos, mas planreada no
tos críticos a um convívio democrático .harmônico. Por exem­
plano da subjetividade de cada um. E o subjetivismo· plo: o Decreto-lei n.0 477. Em si mesmo, ele pune a conduta �l
nessa matéria é o caminho propício às incomp:r:�nsões, subversiva no seio na Universidade, pelo que ele não é· essen-
aos conflitos e às injustiças, enfim, à desarmonia po­ cialmente antidemocrático. O problema, sim, está em saber
lítica. quando uma conduta na Universidade é subversiva. Na im�
possibilidade, muitas vezes, de uma identificação objetiva,
cria-se a incerteza e com justiça o citado instrumento se torna
Fruto dessa dificuldade em distinguir objetivamente
as duas condutas, oposicionistas correm o risco de serem atacável como antidemocrático ...
tratados como subversivos e abre-se, aqui, margeITl a 1 A distinção torna, como diz Lord JENNINGS, fácil ao .ci-
l, dadão ser leal ao Estado e adversário do governo. Todos os
\
erros e a injustiças irremediáveis, enquanto verdadeiros

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104 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRA.CIA NO BRASIL 105

chefe de Estado, ou seja, o órgão superior àa sociedade político-partidários que caracterizam a atividade gover­
política, o guarda dos objetivos permanentes do Estado, namental.
a encarnação viva da Nação. Ora, a confusão das chefias de Estado e de governo
A entrega das chefias de Estado e de governo a no mesmo órgão faz justamente o contrário, expondo o
pessoas diferentes consegue, em muitos casos, o milagre chefe de Estado, e os órgãos permanentes a elé ligados,
de adaptar um partido ideologicamente contrário à, de­ às contingências do jogo político. A oposição, mesmo a
mocracia ocidental ao processo político democrático mais legítima, embora critique apenas o governo, alcan­
pluralista. Observe-se o caso italiano: o partido comu­ ca uma pessoa que é, também, o chefe da Nação e o
�i.sta, como segunda força eleitoral, tem sido oposicio­ comandante supremo das Forças Armadas. Coloca-se
nista, ou seja, contra o governo liderado pela democracia assim, na mira da oposição, pessoas e órgãos que, pela
cristã. Não se tem colocado contra o Estado em si, nem natureza das elevadas funções que exercem, deveriam
contra as Forças Armadas, representados pelo chefe da ser poupadas ao máximo possível de ataques e críticas.
Nação. Inclusive, na busca da hegemonia eleitoral, es­ A experiência histórica dos povos nos ensina que,
força-se por construir a imagem de um partido respeita­ quanto mais resguardados da crítica político-partidária
dor da ordem política democrática na Itália. De qual­ estiverem os órgãos nacionais permanentes, maiores
quer maneira, a distinção funcional entre Estado e serão as garantias dos direitos da oposição, inclusive o
Governo obtém algo que, para nós, pareceria impossível principal deles, que é o de tornar-se governo. Por�m,
à primeira vista: d;t'cunscrever o partido co1!!,_unista à quanto mais vulnerável forem os órgãos nacionais per­
faixa da oposição, de modo a afastá-lo da subversão. manentes, mais difícil haverá de ser a preservação da
paz política e do convívio harmônico na comunidade,
41. A vulnerabilidade partidária dos órgãos nacionais condições sem as quais, repetimos, não é possível fun­
Um Estado que pretenda um processo político de­ dar-se uma democracia instrumental estável. 8
mocrático precisa, como se viu, colocar acima de discus­
são um núcleo mínimo de valores, precisamente aqueles 42. A radicalização ideológica
que, tornando possível o diálogo democrático, consti­ P�los ·problemas já até aqui levantados, pode com­
tuem-se nos objetivos permanentes do Estado. preender-se o efeito que a atribuição de funções de

j
Por isso, é de toda conveniência que os órgãos na­ Estado e de governo ao mesmo órgão produz sobre a
cionais responsáveis mais diretamente pela formulação, radicalização da luta ideológica no seio da comunidade.
manutenção e guarda desses objetivos, como, por exem­
plo, a chefia do Estado e as Forças Armadas, estejam s "Por surpreendente que pareça, uma democracia estável
colocados o máximo possível acima dos entrechoques requer a ,manifestação de conflito ou clivagem, de ·modo que
haja lu.ta pelas posições -dominantes, desafios aos partidos no
ingleses são súditos leais e fiéis de sua majestade; uns comba­ poder .e mudança de partidos ·no governo; mas sem consenso -
tem outros apóiam o governo." (TORRES, João Camillo de Oli­ um sistema- político que permite o jogo pacífico do poder,. a
veira, Harmonia ... , p. 143. adesão dos de fora às decisões tomadas pelos de dentro, · e o

414 - 8
106 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 107

Se essa cumulação de funções no órgão "executivo"


-- como quase sempre acontece - vier combinada com
sua irresponsabilidade política perante a representação
da opinião e com sua eleição direta pelo universo do elei­
torado, como tínhamos entre nós no regime de 1946, a
obter o poder, embora sem o respaldo da opinião ma­
joritária.
Pode, então, ocorrer o seguinte absurdo: um político
de partido que - num sistema de responsabilidade do
governo perante o órgão representativo da opinião -
l
radicalização político-ideológica poderá chegar ao paro­ não teria condições sequer de permanecer como chefe ,, "'
xismo. de governo (por lhe faltar apoio político), além de man-
O que vai acirrar o extremis�o ideológico é a possi­ ter em suas mãos a chefia de governo, recebe gratuita­
bilidade real de um partido ou coligação, minoritários mente a chefia de Estado e, ainda, por um período fixo
na comunidade, graças às circunstâncias ocasionais e de tempo, sem que haja um mecanismo legal e eficaz
aleatórias que influem numa eleição presidencial direta, para destituí-lo antes de findo o prazo, no caso de abusos
cometidos. /
reconhecimento pelos de dentro dos direitos dos de fora - não Essa perspectiva de tamanho poder, sem que, para
pode haver democracia." (O grifo é nosso). "O estudo das
condições que encorajam o estabelecimento e manutenção da
tomá-lo ou preservá-lo, seja necessário o apoio da maio­
democracia deve, por conseguinte, focalizar as fontes tanto da ria da opinião política da comunidade, excita os grupos
clivagem como do consenso." Com essas palavras SEYMOUR ideológicos extremistas existentes na sociedade, além de
LIPSET começa o seu livro O Homem Político. E observa, numa submeter a comunidade, periodicamente, ao trauma de
crítica aos colegas, que "os sociólogos, até muito recentemente uma opção ideológica bipolarizante, radicalizante e ex­
preocuparam-se mais em estudar as condições que provocam
divergência ou cisão do que em determinar os · requisitos do
cludente de qualquer fórmula de compromisso. 9 Se um
consenso político." (LIPSET, Seymour Martin, o Homem Político, agrupamento totalitário consegue o poder, a sociedade
Rio, Zahar, 1967 pp. 21 e 24). E nós podemos estender a crítica estará posta entre o dilema da subversão, que haverá de
aos nossos políticos e nossos constituintes, de 1891 ao presente: ser tentada face aos poderes virtuais do Presidente, ou
preocuparam-se somente com as instituições (eleições e parti­ da revolução que contra ele for movida para impedi-lo.
dos, p. ex.) que, na democracia, expressam as divergências, e
não deram importância a instituições que possam possibilitar
Sem adiantar qualquer julgamento da atual forma
ou resguardar o consenso - também essencial à democracia. de governo italiana, imaginemos uma Itália sob esse
Se a democracia não pode existir sem eleições, partidos e
órgãos que exprimam os desacordos e os conflitos sociais, tam­ o o clima de radicalismo ideológico bipolarizante e exclu­
bém não pode subsistir· sem órgãos ou instrumentos que ope­ dente de compromisso impede a conciliação da democracia
rem para estabelecer e defender as condições básicas do con­ política (pluralista ou ocidental) , com as conquistas sociais. A
senso. Se inexistirem na sociedade mecanismos sociais, como radicalização faz impossível que as reformas e transformações
nos EUA, que, espontaneamente, provoquem o consenso, a sócio-econômicas ocorram com a preservação dos quadros de­
Constituição deve criá-los para suprir-lhes a falta. É difícil? mocráticos legítimos. Mostra-o LIPSET: "Contudo, se a posição
na verdade, basta separar, do governo e seu campo político­ dos principais grupos e símbolos conservadores não for amea­
-partidário, os órgãos genéricos do Estado, como, p. ex., o da çado durante esse período de transição, ainda que percam a

T
chefia de Estado e as Forças Armadas, elevando-os a uma maior parte de seu poder, a democracia parece estar muito mais
posição de mediação imparcial e neutra - e se terá dado um garantida." (LIPSET, Seymour Martin, op. cit., p. 79). Volta­
passo decisivo. mos ao tema na última parte.
108 ' · CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 109

sistema político. O abalo periódico de uma eleição presi­ fundamentalmente, o chefe de um governo, ou de uma
dencial, onde os candidatos tenderiam á uma caracteri­ "administração" - como lá se costuma dizer -, o que
zação ideológica bem marcada e cada vez mais extrema­ torna menos sensíveis as contradições que se observam
da. Em caso de vitória de um candidato comprometido em outras sociedades políticas, como a brasileira, decor­
com a democracia de estilo ocidental, dar-se-ia a confu­ rentes da partidarização do primeiro lugar do Estado. 10
são entre a oposição e a subversão ao regime democráti­ A segunda peculiaridade estritamente americana
co, com todas as suas conseqüências desastrosas à prende-se à inexistência de partidos ideológicos, que se
harmonia política e à paz social. Ou; então, a possibili­ proponham a reformar e a transformar toda a ordem
dade, sempre renovada, de controle total do poder - política e social, inspirados em princípios filosóficos que
desde o governo e as Forças Armadas, aos demais órgãos impliquem uma concepção nova da sociedade e do )!:s,­
permanentes - por um partido totalitário, que, não po­ tado. Sob esse prisma, os partidos republicano e demo,­
dendo ser legal e eficazmente afastado antes de findo o crático são alas de um único e mesmo partido liberal. 1.l-'
prazo presidencial e sem necessidade de concessões e Os grandes partidos americanos são, em verdade, má­
compromissos relativamente à opinião pública, terá con­ quinas eleitorais 12 que têm em mira galgar o poder a
dições bem mais facilitadas para tentar subverter o fim de lograr posições de mando para os seus dirigentes

T
regime democrático. Foi o que aconteceu com o Chile e vantagens materiais, sobretudo empregos públicos,
no Governo de Salvador Allende. para sua clientela. O fato de não haver partidos, ou
pelo menos partidos ideológicos e de rígida disciplina,
43. Atenuantes atenua nos Estados Unidos a posição partidária do
chefe de governo, permitindo-lhe exercer atividades de
Nos Estados Unidos, a fusão das chefias de Estado chefe de Estado sem os dilemas que se constatam nas
e de governo no mesmo órgão tem seus efeitos negativos sociedades onde existem partidos políticos verdadeiros,
atenuados em razão de duas peculiaridades da organi­ ou de cunho mais ideológico.
zação norte-americana. Em realidade, a cumulação das chefias de Esta.do
A primeira está na própria formação política da e <!,e governo só :pçderá funcionar sem ÍmilÔres pr�-,
sociedade americana, em que a comunidade precedeu e mas se, na comunidade, não houver partidos ou se estes-=
?

criou o Estado. Esta circunstância faz com que não • --· --•- -·- • --••r � .. •- - l';I!

haja, nos Estados Unidos, como na grande massa das 10 Se nos EUA a Presidência é antes de tudo, ou original­
mente, uma "delegacia executiva" da comunidade (uma chefia
sociedades políticas, uma chefia de Estado representa­ de governo), no Brasil é um poder estatal preexistente for­
tiva, símbolo. e expressão de um poder antecedente que mador, em linguagem figurada, um "trono". Daí o per,igo bem

f.
construiu a unidade política e que funcione como guar­ maior que representa à democracia no Brasil entregá-lo a um
homem de partido, sem cautelas que o "neutralizem".

f
da dos valores essenciais ao convívio democrático. Nos 11 DuvERGER, Maurice, As Modernas Tecnodemocracias,
Esiados
. Unidos, a própria comunidade diretamente tem Paz e Terra, 1975, p. 201; v., ainda, ps. 78 e segs., 177 e segs., 198
seus processos . de fiscalização dos poderes e de defesa e segs.
dos objetivos genéricos do Estado. Assim, o Presidente é, 12 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, A Democracia, p. 19.

..._
�(
110 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

uão tiverem conotações ideológica. O sistema de parti­


dos com idéias políticas, econômicas e sociais, que afinal
nasceu no seio das próprias sociedades democráticas
ocidentais como uma imposição dos fatos, exige uma
forma política que neutralize partidariamente, o máxi­
mo possível, a chefia de Estado. Manter a cumulação, SEçÃo SEGUNDA
diante da realidade dos partidos ideológicos é criar as
condições políticas favoráveis à radicalização ideológica,
à confusão insuperável entre oposição e subversão e à A DIVISÃO FUNCIONAL DO PODER
possibilidade de um partido extremista poder dominar
o governo e o Estado e sentir-se, então; tentado a trans­ Seguem-se igualmente dois capítulos. No pri­
formar o regime. :É, em suma, fazer impossível a demo­ meiro, coloca-se o problema dos conflitos entre os
cracia política. poderes e seus reflexos no campo do direito consti­
tucional. No segundo, desenvolve-se uma reflexão
sobre a solução intentada por via do Ato Institucio­
nal de n.0 5, seu significado político e suas deficiên­
cias, bem como sobre a necessidade de se encontrar
uma f.órmula ·Capaz. de proporcionar condições polí­
tica,s mínimas para a superação do impasse em que o
País se encontra.

J..
.L

CAPÍTULO III

O PROBLEMA DOS CONFLITOS POLÍTICOS

44. A realidade dos conflitos políticos


A Constituição de 1891 estabeleceu e as subseqüen­
tes mantiveram, em seus ·traços gerais, uma divisão do,
exercício das competências POlíticas, no plano federal,.
entre três órgãos distintos e reciprocamente indepen­
dentes: o órgão da direção política, a Presidência da
República com os Ministérios; o órgão da representação
política, ou seja, o Congresso Nacional; e o Judiciário,
formado pelos Jufaes e Tribunais. 1
· Em nosso direito público esses órgãos são chamados
de poder executivo, poder legislativo e poder judiciário,
respectivamente, o que denota a filiação dessa forma de
partilhar o poder ao arranjo institucional proposto por

1
Montesquieu, em pleno século XVIII. A fórmula embasa­
-se no princípio antigo - e ainda hoje válido 2 -da con­
veniência e da necessidade de dividir o exercício das
competências políticas, corno uma téc11ica de limitação do
poder pelo próprio poder; para garantia das liberdades
públicas diante do Estado. Como se sabe, o modelo polí­
tico do célebre francês estava associado a uma classi­
ficação tricotôrnica das funções políticas - legislativa,
1 JACQUES, Paulino, Curso de Direito Constitucional, Rio,.
Forense, 1970, pp. 155-158.
2 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, A Democracia, pp. 97-98.
114 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
·1. ,.
·,

A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 115

executiva e jurisdicional -, de duvidoso valor científico' �.


.Face à realidade dos conflitos entre os poderes, con­
e à teoria da "Separação dos Poderes" - já totalmente tingência que marca a democracia instrumental contem­
superada pelas exigências da sociedade contemporânea porânea, qual o órgão ou mecanismo que a Constituição
-, segundo a qual cada uma das funções deveria ser vigente prevê para dar-lhes a indispensável solução, res­
.confiada, com exclusividade, a um órgão especializado. 3 tabelecendo a harmonia política?
Os órgãos políticos acabariam tomando o nome da
função que, pela teoria, lhes cabia exercer. 45. A lacuna da Constituição
Ora, a divisão do poder entre órgãos reciprocamente
independente e num mesmo plano hierárquico .suscita a A função específica de prevenir os abusos e de arbi­
possibilidade da ocorrência de conflitos. Com efeito, o trar os conflitos políticos não é conferida pela Consti­
relacionamento entre os poderes políticos, especialmente tuição a nenhum dos três poderes. Nem o poderia ser,
Bntre o executivo e o legislativo, não está imune aos de­ por coerência ao modelo adotado: os três poderes devem
sacertos, desentendimentos e atritos, indissociáveis da permanecer num mesmo plano de independência um dos
condição humana. outros, sendo assim impensável que a um deles fosse
Se os conflitos que se estabelecerem entre os poderes dado decidir sobre os conflitos em que estivesse direta­
não encontrarem solução corts.titucional eficaz, apta a mente envolvido. 6 Nem se pense seria a arbitragem polí.:.
restaurar a harmonia politica, o agravamento da situa­ tica função peculiar ao judiciário. A esse cabe resolver
ção traduzir-se-á em crises extremamente sérias. Não definitivamente os conflitos de interesse entre partes, ou
apenas o poder, dividido contra si mesmo, será incapaz entre partes e o interesse público, em que haja questão
de enfrentar as questões cada vez mais complicadas de jurídica, ou seja, onde esteja em causa lesão de direito
governo; a paralisia do Estado abrirá campo às agitações individual. As questões eminentemente políticas, co:mo,
de toda ordem, à intranqüilidade geral e, enfim, à ruptu­ por exemplo, as de conveniência ou de inconveniência da

l
ra da ordem constitucional.' administração, ou as de suprema instância política, refo­
Êntre nós está demonstrada, à saciedade, a possibi­ gem p0r definição ao âmbito · da função jurisdicional. 7
lidade real das crises entre os poderes. Especialmente de �:rµ verdade, a . Constituição . não prevê ne:hl}.um
1946 a 1964, quando se tentou praticar, sem rebuços, o mecán.i'smo específico, nem, muito menos, um órgão es­
sistema político que vinha da Constituição · de 1891, a pecializado para dirimir os conflitos entre os poderes. 8 A
história política brasileira foi um desenrolar contínuo Constituição não cogita sequer da possibilidade de os
de conflitos entre os órgãos políticos, especialmente entre poderes virem a conflitar-se. Ela é cega, surda �. canse-
o Presídente e o Congresso. is
.6 DóRIA, A. de Sampaio, op. cit., p. 295.
,

F'ERREmA FILHO, M. Gónçalves, op. cit., p. cit.


3 7 GRINOVER, Ada Pelegrini, As Garantias Constitucionais
4 DóRIA, A de Sampaio, Direito Constitucional, São Paulo,
do Direito de, Ação, Editora RT, São Paulo, 1973, p. 143-146.
Max Limonad, 5.ª ed., v. I, t. I, pp. 295-296. -� 8 Teoricamente, restaria à comunidade (ao povo) dar a
5 SILVA, José Afonso da, curso de Direito Constitucional, ção f inal aos conflitos. {D6RIA, A.. de Sampaio, op. cit., pp.
São Paulo, Editora RT, 1976, pp. 48-49. 298-299).
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116 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 117

qüentemente, muda ao problema. Na realidade, os pode­ da atividade humana. Assim, se é na experiência inglesa
res têm o dever de tolerar-se, mesmo ao preço do imobi­ que ele vai buscar os "três poderes" - ou seja, o Rei, o
lismo, até que eleições futuras, g_uem sabe, ponham fim Parla:rp,ento e o Judiciário -, o papel de cada um e,
ao litígio presente. Até lá não existe um mecanismo cons­ mais, o relacionamento recíproco por ele proposto como
titucional capaz de repor a harmonia entre os poderes, ideal político, divorciam-se da realidade inglesa de seu
devolvendo à sociedade política a tranqüilidade perdida, tempo. 0 Estão comprometidos já com a sua postura
e nem capaz de antecipar uma intervenção do eleitorado político-filosófica.
tendente a resolver a crise. Ao tomar os três órgãos políticos, colocando-os em
Dispõe o art. 6.0 da Constituição: "São poderes da mesmo pé de igualdade um ao lado do outro, o que pre­
União, o legislativo, o executivo e o judiciário, indepen­ tende é, justamente, armar um esquema que possa rea­
dentes e harmônicos entre si". Mais nada. Ora uma de­ lizar seu ideal liberal de Estado, anulando, em prol da
claração, embora solene, de que os poderes são harmô­ liberdade-autonomia, o poder de autoridade inerente à
nicos, não tem o condão de fazê-los harmônicos entre sociedade política - visto este como um empecilho n
si. Os fatos desmentem aquela afirmação dogmática · e plena expansão dos direitos do homem. Dessa forma,
apriorística. Os poderes - especialmente o legislativo e a estrutura política que inventou não apenas limita o


o executivo - não são harmônicos e, por isso mesmo, poder;, como a própria ação do Estado, uma vez que o
precisam ser harmonizados para que possam funcionar relacionamento entre os poderes haveria de tender à
adequadamente. "inaçãp". 10 Na verdade, o modelo de Montesquieu limi­
Na divisão do exercício do poder em três órgãos tava o poder, mas inibindo, por dentro, a própria ativi­
políticos, adotada pela Constituição de 1891 e que e.m 1 dade do Estado, que, assim, via-se forçado a ficar reduzi,.
suas linhas fundamentais permanece até hoje, há por­ da, como queriam os liberais, ao mínimo da manutenção
tanto uma injustificável lacuna que se tornou mais da ordem interna e da segurança externa.
sensível com a crescente complexidade das tarefas admi­ Bem se vê porque esse esquema düicilmente vai se
nistrativas, com o agigantamento do executivo e com a ajustar a Estados historicamente intervencionista (as

1
partidarização cada vez maior da atividade política. sociedades de. çima para baixo. como o Brasil), e à re�/�
d.ade contemporânea do Estado-Providência (que é cha- ,·-:9
46. A explicação da lacuna mado a atuar no domínio econômico e social para \_

Essa lacuna - da qual Montesquieu teve consciên­ 9 . FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 98.
cia e que, de certa forma, é intencional -,- encontra 10 "Voici donc la Constitution fondamentale du gouver-

l-t·� �
perfeita explicação na lógica do seu pensamento político. nement dont nous parlons. Le corps législatif y étant compose 1,
Montesquieu é um liberal, identificado com as con­ de deux parties, l'une enchainera l'autre par sa faculté mu- �
cepções que tencionavam reduzir o poder do Estado a tuelle d'empêcher. Toutes les deux seront liêes par la puissance ;...
exécutrice, qui le sera elle-même par la législative. Ces trois _ '

T
um :rp,ínimo indispensável, para garantir aos particulares puissà:rices devraient former un repos ou une inaction." (MoN-
o máximo de liberdade-autonomia em todos os ,setores TESQUrnU, n, l'Esprit des Lots, Livre XI, Chap. VI, op. t. 2 { [
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118 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 119

promover o bem-estar e aumentar o nível de vida das � zação política no modelo clássico da divisão do exercício
populações) . do poder, e sob a inspiração liberal-clássica a mais abso­
Contudo, Montesquieu parece sentir as críticas que, luta.
em nome da própria divisão que teorizou, lhe vão ser
endereçadas pelos neoliberais do século XIX, e princi­ 47. Soluções extraconstitucionais
palmente por Benjamin Constant, 11 sobre a inexistência Na experiência política brasileira, os conflitos entre
de mecanismos para prevenir e remediar os inevitáveis os poderes, não encontrando uma solução legal eficaz,
conflitos entre os poderes, os quais, indo além e contra transformam-se em crises políticas: o executivo e o legis­
os propósitos do doutrinador, ameaçavam a sobrevivên­ .._
lativo paralisados; o princípio de autoridade enfraque­
cia do próprio Estado - e, no caso, do Estado liberal. cido ou rompido pelas incertezas e agitações; e as
Além de acenar com o papel "moderador" de um instituições ameaçadas em sua sobrevivência. Por outro
Senado vitalício, ele responde com uma profissão de fé lado, as crises políticas tendem a deteriorar. a situação
no "naturalismo" ou no "mecanismo" que fundamenta­ nômico- ·nane · do País, a qual, por sua vez, agrava
va o liberalismo extremado do "século das luzes": · 'par . ainda mais a situação política.-;. 8� �
le mouvement nécessaire des choses, elles (os poderes) Quando a crise política torna-se insustentável pelos
)(J

I
sont contraintes d'aller, elles seront forcées d'allet en 11
I.À/sérios prejuízos trazidos ao bem comum e faz-se impera­
concert". 12 É o mesmo naturalismo que embasa a crença tivo� desate, � solução, face à lacuna .constitucional,
de Adam Smith na livre concorrência sem limites como .
tem vmdo por vias extracon.stitucionais: a intervenção
fator automático, necessário e compulsivo, dispensada das Forças Armadas. 1s
a intervenção estatal, do bem comum na atividade eco­
� O processo de intervenção obedecia a uma linha
nômica. Assim como empresas concorrendo com plena Ql geral mais ou menos constante:
liberdade no mercado, sem nenhum controle de autori­
a) o rompimento, pelas Forças Armadas, de sua
dade, levariam automaticamente a uma economia pro­ "ss"

�t�
gressista e harmônica, os três poderes, um ao J ado do ,5, vinculação constitucional subordinada aos poderes em
outro, COIID plena liberdade na sua esfera de competência � conflito, pela via revolucionária;
automaticamente seriam forçados pelo movimento natu­ � b) a auto-investidura, pelo comando militar, de um
ral das coisas a andar em harmonia. poder nacio�al suprem� de interv�nção arbitral para
.
Se em economia, o modelo clássico há muito já foi, � _ superar a crISe: substitumdo o Presidente, dissolvendo o
em maior ou menor grau, banido da estruturação eco­ . Congresso, ou tocando eventualmente na composição do
nômica, em política o banimento não foi total. Há Esta­ Judiciário, mas sempre reprimindo os abusos havidos e
�- consertando a situação política;

t
dos, como o nosso, que ainda fundamentam sua organi-
e) enfim, restaurada a ordem (com o restao.ele­
, cimento da.s condições propicias a um governo constitu-
11 BENJAMIN CONSTANT, op. cit., Tome Premier, pp, 18-29. �
l2 MONTESQUIEU, idem, op. cit., p. cit. ' 111 LIMA, Hermes, op. cit., pp. 69-70.
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120 CEzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 121

cional), a retoma.da da vigência constitucional plena e lução. As Forças Armadas, ao empalmarem o poder su­
a, volta das Forças Armadas à subordinação anterior. 14 premo, afastam a vigência da Constituição e evocam a
Nossas elites dirigentes, porém, após cada ciclo re­ si um poder constituinte originário. Por outro lado, o
volucionário, foram sempre incapazes de aprender, com encerramento de cada processo revolucionário implica
a História, quanto à necessidade de alterar o núcleo da em uma nova normação constitucional. Para que se
forma política, suprindo a evidente lacuna constitucio­ tenha uma idéia do número dessas intervenções, basta
nal· que se arrasta desde a primeira constituição repu­ atentar-se ao fato de que, desde 1891, tivemos seis Cons­
blicana. Inalterado o esquema de poderes, novos conflitos tituições (incluída nesse número a Emenda Constitucio­
·e novas crises sempre se sucederam. E: o quadro repetiu­ nal n. 0 1, de 1969) e, somente de 1964 para cá, dezessete
-se, monotonamente, até 1968: diante da paralisação do Atos Institucionais, os quais, emanações de poder cons­
Estado e das lesões ao bem comum, e para desafogo da tituinte originário, funcionam como Constituições ou
comunidade, o chamamento às Forças Armadas para reformas constitucionais outorgadas.
intervirem; cumprida a tarefa de saneamento da crise Como as Constituições brasileiras, desde 1891, não
política, novamente o retorno à vinculação constitucio­ prevêem instrumentos legais para acabar com os confli­
nalmente estabelecida, sem.que se criasse um mecanismo tos, os conflitos é que acabam com as Constituições. Esse
par� solucionar as previsíveis crises futuras. Em 1968, o triste destino das Constituições desadequadas à reali­
com o Ato Institucional n.0 .5, houve uma mudança de dade política que pretendem disciplinar.
comportamento das Forças Armadas, como veremos nos ;'\J'J J f
r·�

itens seguintes: elas assumiram, de novo, o poder nacio­ 48. O Ato Institucional n.0 5
nal supremo de intervenção arbitral, mas, desta vez, não O Ato Institucional n. 0 5 trouxe, como já deixamos
o largaram mais. Rompeu-se, então, a prática pela qual entrever, uma mudança substancial no tratamento
as Forças Armadas, uma·. vez superada a situação de extraconstitucional dos conflitos entre os poderes. O
erise determinante da revolução, voltavam à subordina­ estudo dessa mudança, de seu significado e de suas de­
ção anterior. 15 ficiências, que começamos no presente item, será o
Cada intervenção militar, com a ruptura do sistema objeto de todo o Capítulo seguinte.
,constitucional, representa, no plano jurídico, uma revo-
1.0 - O que é um Ato Institucional.

['
14 Este, em linhas gerais, o "modelo moderador das rela­ �· Todo Ato Institucional pressupõe uma revolução no
ções entre civis e militares", que dura até a revolução de 1964. alcance jurídico do termo, ou seja, um movimento que
(V. BTEPAN, Alfred, Os Militares na Política, Rio, Editora Arte- visa a conseguir determinados fins políticos mediante o
nova S.A., 1975, pp. 46-52) . afastamento, pela força, da vigência da Constituição. A
1
15 "Grande parte da mudança radical que ocorreu nas re- , revolução define-se, justamente, pela circunstâncfa de
, fações entre civis e mili�ares qo Brasil é explicável pe lo fato de
levantar-se contra a vigência da Constituição, aindâ que
est�ja voltada contra apenas. Uim ou alguns de seus dis­
que os oficiais de nível médio rejeitaram o parlamentarismo e
o protecionismo e pretenderam. fundir a responsabilidade . e o
poder sob a égide militar." (STEPAN, Alfred, op. cit., p, 192) . J?')Sitivos. O triunfo da revolução importará na derru-
:.
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414- 9

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122 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 123

bada, por imposição de fato, da ordem constitucional até poder executivo, diminuindo aquelas reservadas ao legis­
então existente. lativo. Quanto ao mais, manteve a mesma estrutura de
Mas como, para dirigir uma sociedade, se faz neces­ poderes e não estabeleceu instrumentos adequados à
sária a existência de um ordenamento legal, o movimen­ superação das crises.
to vitorioso, com a mesma força que derrubou a Cons­ Por essa razão, ela não resistiu ao primeiro conflito,
tituição anterior, pode colocar outra em seu lugar. Ou, nem dos mais graves, entre o Presidente e o Congresso, a
acompanhada de eventuais alterações, restaurar aquela propósito de um pedido de licença para o Executivo
Constituição cuja vigência, para determinados fins, afas­ mover, perante o Supremo Tribunal Federal, processo de
tou. Pois, Ato Institucional é o instrumento pelo qual suspensão dos direitos políticos de um deputado, acusado
uma revolução vitoriosa repõe a Constituição que infrin­ de haver injuriado as Forças Armadas. A 13 de dezem­
giu - naturalmente ressalvando a validade dos atos bro de 1968, o Presidente, fundado em sua condição de
praticados sem o seu amparo-, com ou sem alterações chefe efetivo das Forças Armadas, assume, por sobre a
em seu conteúdo normativo. Ato Institucional, destarte, Constituição, o supremo poder, outorga o Ato Institucio­
é uma forma de expressão do poder constituinte origi­ nal n.º 5, e, com base nesse Ato, decretou o recesso do
nário de que se investe uma revolução triunfante. 16 Congresso Nacional, que só viria a ser levantado em
2.0 - Breve história do Ato Institucional n.0 5. outubro de 1969.
O Ato Institucional n.0 5, convém relembrar, apesar Seja como for, o AI n.0 5 expressou uma nova inter­
do seu número, reabriu um novo processo revolucionário. vençs,o revolucionária das Forças Armadas no processo
O ciclo iniciado em março de 1964 encerrava-se, no p�ano político, provocada, como as outras, pela insuficiência do
jurídico-constitucional, a 15 de março de 1967, com a arsenal de medidas constitucionais para enfrentar as
cessação da vigência dos atos políticos excepcionais até crises entre os poderes.
então editados e a entrada em vi.gor de uma nova Cons­ 3.º _ A "incorporação" do Ato Institucional n. 0 5 à
tituição.
Constituição.
A Constituição de 1967, que fizera Fenascer as e,spe­ 9-
ranças de uma ordem constitucional estável e que pre­ Ainda naquele mês de outubro de 1911, por força do
tendera consagrar as conquistas políticas de 1964, na mesmo Ato Institucional, a Constituição sofreu a Emen­
verdade, no tocante à forma de governo, não foi muito da n.º 1, que estabeleceu no art. 182, do texto Constitu­
além do constitucionalismo brasileiro.de 1964. 17 As ino­ cional, a seguinte norma: "continuam em vigor o Ato
vações foram no sentido de reforçar as atribuições do Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, e os
demais Atos posteriormente baixados". Esse artigo incor­
16
FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, Direito Constitucional porou o Ato Institucional entre as "Disposições Gerais
Comparado (I - O Poder Constituinte), São Paulo, José Bu­ e Transitórias" da Constituição, sem contudo lhe esta­
shatsky, p. 77 e segs.
17 FERREIRA FILHO, M. Gonçalves, Comentários ... , v. I, belecer expressamente limites, condições ou critérios de
p. 29. exercício.
124 ÜEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

Quanto ao mais, a Constituição de 1969, como tem


sido considerada a Emenda n.0 1/69, 18 da mesma forma
que as anteriores, não tocou na forma de governo, vale
dizer, no esquema de poderes. Limitou-se, nesse par­
ticular, a aumentar, ainda mais, as atribuições do poder
executivo diante de um Congresso cada vez mais enfra­ CAPÍTULO IV
quecido.

A SOLUÇÃO VIGENTE

49. Os poderes de fiscalização e arbitragem: revogá-los?


O Ato Institucional n.0 5, além de ter sido instru­
mento de intervenção revolucionária no processo polí­
tico, como os outros atos institucionais, apresenta uma
peculiaridade que o estrema dos demais: criou, por prazo
indeterminado, entre uma série de atribuições, um con­
junto de poderes destinados a uma fiscalização suprema
da atividade política e à resolução dos conflitos entre os
órgãos titulares de poder.
Essas atribuições são confiadas ao comandante su­
premo das Forças Armadas, como líder do movimento
revolucionário, e que, por estipulação do próprio Ato, é
o Presidente da República no sistema da Constituição. 1
O Ato Institucional n.0 5 representa, assim, o pri­
meiro ensaio no regime republicano de um mecanismo
eficiente para prevenir e resolver as crises políticas, até
agora desconhecido pelas Constituições. Solução de tran­
sição, por um lado, prenuncia uma nova modalidade de
divisão do exercício do poder, capaz de enfrentar o pro­
blema dos conflitos. Por outro lado, traz ainda a marca
do passado, quando as crises somente encontravam solu­
ção por via de intervenção revolucionária das Forças
Armadas.
1s SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 51. 1 Ver n.º 22 supra .
1.
r

126 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 127

Os poderes de arbitragem previstos são, no âmbito enfim, no reconhecimento, ainda que não de todo cons­
federal, basicamente os seguintes: decretar o recesso do cientizado, por parcela ponderável das elites dirigentes,
Congresso Nacional e, posteriormente, "convocá-lo" (art. da necessidade de um mecanismo eficiente para trata­
2.º); suspender direitos políticos e cassar mandatos ele­ mento legal e pacífico das crises e para uma fiscalização
tivos (art. 4.0); e demitir, remover, aposentar ou pôr em superior dos poderes, 2 que logre suprir uma fraqueza
disponibilidade os membros da magistratura (art. 6.0). histórica e congênita da comunidade brasileira em exer­
Na verdade, tratam-se de poderes de responsabilização cer essa fiscalização de baixo para cima.
política, e utilizáveis, nos termos do preâmbulo, para Portanto, a pura e simples revogação dos poderes
combater a subversão e a corrupção e assegurar a "au­ de fiscalização e de arbitragem contidos, ainda que de
têntica ordem democrática", vale dizer, os valores essen­ forma tosca, no Ato Institucional n.0 5, sobre ser um
ciais à democracia ocidental, ameaçados pelas crises e retrocesso, não seria solução para o problema das crises
pelos abusos dos órgãos políticos. políticas. Se retornássemos ao esquema de poderes que
O exame da forma de como os poderes de arbitragem nos vem desde 1891, mantido inclusive na Carta de 1967,
foram instituídos nos leva a duas observações. Em pri­ não é preciso ser profeta para prever o que haverá de
meiro lugar, a responsabilização limita-se aos órgãos do ocorrer: novos conflitos e crises políticas, as quais, por
1€gislativo e do Judiciário. Não está prevista uma res­ não encontrarem solução legal e eficaz, acabarão provo­
ponsabilização superior do Executivo, por sinal, a mais cando nova intervenção revolucionária das Forças de­
necessária de todas. A causa da omissão deve ser buscada tentoras das Armas. Será a reabertura de novos ciclos
na circunstância de esses poderes de arbitragem estarem
confiados a alguém que os acumula com as funções de 2 A idéia de alterar a estruturação de poderes, para enfren­
chefe do poder executivo. Em segundo lugar, a falta de tar o problema dos conflitos e dos abusos políticos tem quase
técnica com que se tentou dar tratamento às crises e a idade da República. Em sua Organização Nacional (obra já
criar uma "suprema inspeção" na órbita política. Basta citada, à p. 369 e segs.), cuja primeira edição data de 1914,


um exemplo: para combater a corrupção ou a subversão ALBERTO TORRES apresenta um "Projeto de Revisão Constitucio­
no seio do Poder Judiciário, chega-se ao extremo de 1 nal", cuja inovação "principal" é a "criação do Poder Coorde­
nador", que não é um "invento de imaginação"; JUAREZ TÁVORA,
declarar suspensas as garantias constitucionais da vita­
na mesma linha prega um "órgão ordenador" ( Uma Política
liciedade e da inamovibilidade (art. 6.0). Isso se explica de Desenvolvimento para o Brasil, José Olympio Editora, 1962) ;
pela própria natureza do instrumento, nascido sob o (BORGES DE MEDEIROS, em 1933, já havia defendido um "Poder
calor de um processo revolucionário, e por uma certa Moderador na República Presidencial". Mas é a partir de 1964
inconsciência sobre o que se precisava instituir e o que 1 e, especialmente, a partir da edição do Ato Institucional n.0 5,
se estava, realmente, instituindo. que toma vulto, prenunciando um consenso, o reconhecimento
da necessidade de uma nova fórmula constitucional capaz de
Apesar das deficiências do sistema, como adiante ve­ dar tratamento adequado às crises políticas, envolvendo a insti­
remos, o Ato Institucional n.º 5 significa, paradoxal­ tuição de um poder coordenador, ou moderador, ou de um Con­
mente, um progresso no caminho da descoberta de insti­ selho de Estado - aliás, órgãos que não se excluem, pois se
tuições adequadas ao Brasil, na medida em que implica, completam.
128 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 129'

revolucionários, que se sabe corno começam, mas não exceção ... 3 De qualquer forma, a suspeição partidária.
se pode prever como acabarão. pelo menos dificulta a aceitação geral da autoridade a
quem cabe exercer a suprema instância política.
50. As deficiências do sistema Em quarto lugar, a concentração dos poderes de
arbitragem, no órgão do executivo, acentua ainda mais
A criação de poderes de fiscalização e arbitragem
a proeminência do governo relativamente aos demais
da atividade política em Ato Institucional apresenta, do
órgãos políticos, e que - todos reconhecem - já é
ponto de vista da democracia política, alguns defeitos
grande nos tempos atuais. O poder executivo fica armado
graves.
de tantas e tais atribuições que anula, na prática, os
Em primeiro lugar, esses poderes estão fora do siste­ objetivos limitadores da divisão do poder.
ma da Constituição. Embora o artigo 182 da Carta de Enfim, esse cúmulo de funções arbitrais e governa­
1969 declara a continuidade da vigência do Ato Institu­ mentais, acaba prejudicando ou a uma ou a outra delas,
cional n.º 5, isso, por si só, não faz dos poderes de arbi­
além de agravar as tensões decorrentes da confusão
tragem nele previstos peças integrantes do esquema
entre oposição e subversão, e de tornar, ainda mais de­
constitucional da divisão do exercício do poder. Ao con­
licada, a posição das Forças Armadas.
trário' eles funcionam como normas de exceção frente
às regras traçadas na Constituição e sem as limitaçoes
- · Resumindo: a conjugação, hoje existente em nossa
nela estabelecidas. ordem constitucional, de poderes limitados à Constitui­
ção e poderes excepcionais ilimitados, ainda que amar­
Em segundo lugar, poderes de necegsidade perma­
rados entre si pelo cordão umbilical do artigo 182, gera
nente, não se compadecem com a natureza revolucion�­
contradições desfavoráveis a um clima de harmonia e
ria e, portanto, transitória do instrumento em que estao
entendimento indispensáveis à democracia política. So­
inseridos. Esse aspecto, que se completa com o anterior,
lução de emergência, válida a curto e médio prazos, não
põe em questão a existência, nesse particular, do Estado­
reúne, face aos defeitos analisados, condições que acon­
-de-direito.
selhem ou, mesmo, viabilizem a sua permanentização
Em terceiro lugar, os poderes contidos no Ato Insti­ como modelo político definitivo para o Brasil.
tucional n.0 5 são atribuídos a quem, por coincidência
de papéis, é o Chefe de Estado, mas que, por tragédia, é 51. O impasse e a saída possível
também o Chefe de governo. Essa peculiaridade torna
suspeita, aos olhos dos partidos de oposição e situação, a Revogar, pura e simplesmente, os poderes de arbi­
autoridade que se utiliza desses poderes. Se o Presidente, tragem contidos no Ato Institucional n.0 5 não resolve,
de alguma forma, atingir a algum oposicionista, muitos como já observamos no início deste capítulo, o problema
hão de dizer que o Presidente, no fundo, quer ceroear o
direito de crítica dos que discordam de sua linha polí­ s A cassação, com base no AI n.O 5, do mandato de um
Senador do partido situacionista, em 1965, foi combatida por
tica; se atingir pessoa ligada à própria situação, então alguns integrantes da Oposição, que nela viram uma tentativa
é porque está querendo "popularizar" os instrumentos de do Presidente de "popularizar" o referido Ato Institucional.
130 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A C!USE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 131

das crises políticas. No entanto, não é possível - para revogação dos instrumentos excepcionais revolucionários,
o bem da democracia política - continuar permanente­ o que, obviamente, exclui a idéia de convivência da Cons­
mente com o Ato Institucional n.º 5. Esse impasse polí­ tituição com o Ato Institucional n.0 5.
tico em que caiu o atual regime. Portanto, a saída desse impasse, a nosso ver, depen­
Já transcorreram mais de dez anos sem que as de de uma reformulação global do sistema de governo
lideranças do movimento de março de 1964 tenham que vimos embalde experimentando desde 1891, objeti­
encontrado uma saída. Daí uma tentação, perigosa: a de vando abrir um espaço na organização política dos po­
deres, de modo a prever-se um órgão independente (ou

r
julgar-se impossível, hoje no Brasil, conciliar a democra­
cia instrumental com a democracia substancial, vale seja, um outro poder), que desempenhe, como p,eça bá­

e.,�Jé
dizer, liberdade no plano político, com ordem, segurança sica de um mecanismo de normalidade, a função de
e desenvolvimento. 4 -f> qJ.U. t\A,Lltv.... � �� resolver os conflitos entre os poderes, de fiscalizar-lhes as
O que este trabalho quer mostrar é a possibilidade atividades, e de garantir os objetivos permanentes do
� Estado. É do que se tratará na parte seguinte.
\ ue organizarmos uma democracia política, aqui e agora,
em que os valores essenciais à substância democrática,
Ü ntre eles a segurança e o desenvolvimento, sejam nega­
ivamente afetados.
Tem-se apresentado, como solução, a "incorporação
do Ato Institucional n.0 5 à Constituição". Ora, a fór-
mula, além de vaga, é ambígua e, em certo sentido, con­
traditória. Pois, se foi cunhada para significar a inclusão
na Constituição do Ato Institucional n.0 5 - preservado
em sua estrutura e concepção atuais -, a "incorpora­
ção" já ocorreu com a Emenda Constitucional n.0 1, de
1969, no artigo 182 (e sem conseguir superar o impasse
político brasileiro. 5 Se a fórmula, porém, for utilizada
no sentido de previsão, na Constituição, de poderes aná­
logos aos do Ato Institucional n.° 5 e de sua delegação
a órgão já existente ou a ser criado, com as cautelas
limitativas inerentes ao Estado-de-direito, então não há
falar, propriamente, em "incorporação do Ato Institu­
cional à Constituição". Nessa hipótese, trata-se de uma
alteração da estrutura de poderes da Constituição, com
4 Ver a nota de n.º 1, da Segunda Parte, Cap. III.
5 Ver n.0 48 supra.
i QUARTA PARTE

BASES DE UM MODELO POLÍTICO


ADEQUADO
Esta quarta parte cogita das linhas básicas de
um projeto de democracia política para o Brasil. Con­
soante ao exposto até aqui, o problema central que
precisa ser enfrentado em primeiro lugar, por se cons­
tituir, a nível de estruturação política, no maior obs­
táculo a uma democracia instrumental estável, reside
na inadequação da forma pela qual a Constituição or-·
ganiza a Presidência da República e a divisão do po­
der. Somente depois de definida a solução mais ade­
quada a esse problema, é que se deveria cuidar de
uma recomposição coerente dos demais aspectos da
estruturação política. Fiel a esse princípio, propõe-se,
no primeiro capítulo, a reforma do sistema de pode­
res da Constituição, procurando-se, no capítulo se­
guinte, responder a dificuldades que contra ela podem
ser levantadas. Fica para o terceiro e último capítulo,
a título de reformas complementares, o delineamento
de um sistema partidário e eleitoral, bem como de um
tipo de federação, que possam harmonizar-se com a
reorganização de poderes sugerida.
CAPÍTULO I

A REFORMA PRINCIPAL
52. A linha básica: a instituição de um poder moderador
A linha de reformulação constitucional capaz de
proporcionar condições políticas à superação da crise da
d�mocracia brasileira está em reservar a chefia de Es­
tado para um órgão especializado que, de uma posição
superior aos interesses meramente partidários e aos
objetivos próprios de governo, e exercendo o comando
militar supremo, tenha por finalidade:
1. 0 - solucionar os conflitos entre os poderes, ga­
rantindo ou restabelecend0 a harmonia e o equilíbrio
que entre eles precisa existir;
2. 0 - zelar pela pr@servação dos objetivos perma­
nentes do Estado, especialmente exercendo um controle
sobre os governos, de modo a prevenir e a impedir que,.
no exercício de sua competência, atentem contra aqueles
valores; e
3.0 - realizar uma ".suprema inspeção" sobre os;
órgãos políticos e a administração, como fiscal da lega­
lidade e da moralidade administrativa. 1
1 A definição que propomos ao órgão político superior de·

chefia de Estado, inclusive com esse tríplice aspecto de sua.


finalidade - em teoria que se fundamenta, em última análise�
136 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 137

Isto implica a instituição na Lei Maior de um ver­ poder árbitro superior coincidem com as de chefia de
dadeiro poder árbitro da atividade política, o mais possí­ Estado. A - chefia de governo, por sua vez, caberia ao
vel partidariamente imparcial e titular do comando órgão próprio do executivo em sentido estrito, vale dizer,
militar supremo, o que equacionaria simultaneamente, ao Ministério ou ao Gabinete, e seria ocupado pelos po­
as duas séries de problemas analisados na Parte III deste líticos do partido que obtivessem o respaldo da maioria
trabalho. na Câmara representativa da opinião política.
Em primeiro lugar, teríamos um órgão com atribui­ Confiar a chefia do Estado a um órgão independente
ções para solver os conflitos entre os poderes políticos. dos poderes executivo (governo), legislativo (Congresso
Seria ele a peça básica de um mecanismo legal e eficaz, ou Parlamento) e judiciário, armado de atribuições de­
em um regime de normalidade, para a solução das crises finidas e limitadas na Constituição para arbitrar os
entre os poderes, dispensando as periódicas intervenções inevitáveis conflitos entre eles, defender os obj�tivos
das Forças Armadas, que se têm registrado na História permanentes da comunidade e exercer uma suprema
da República, justamente pela ausência de instrumentos fiscalização política, equivale a erigi-lo em um; quarto
constitucionais ordinários. poder constitucional, que, como peculiaridade de nosso
Em segundo lugar, produziria a separação, em ór­ direito político, foi conhecido com o nome de poder mo­
gã.os distintos, da chefia de Estado e da chefia de gover­ derador. 2
no, com todas as conseqüências positivas daí decorrentes
2 O poder moderador estava previsto, no texto de 1824, em
e que já foram analisadas. Na verdade, as funções desse
quatro artigos (do 98 a 101). O primeiro deles, definia o insti­
como veremos, nos constitucionalistas clássicos do Império do tuto, estabelecendo fins e critérios: "O poder moderador é a
Brasil - coincide plenamente com as conclusões de um inves­ chave de toda a organização política e é delegado privativa-
tigador, aliás recente, do Direito Constitucional dos novos
Estados: el fin de moderar al govierno, arbitrar las fuerzas que operan
"La configuración arbitral y representativa de una Jefa­ e'n y través de la organización estatal, y defender la consb.itu­
tura del Estado diferente de la del Gobierno, por obra ya de la 1
1
ción como orden de valores. A este fin, la constitución no sólo
mera convención constitucional, ya, en fase posterior, del pro­ atribuye una potestas, sino que configura d e tal manera la
prio derecho estricto, es fruto de un largo processo histórico magistratura en cuestión, que el ejercicio de aquélla esté ba­
que no cabe reconstruir aqui. Baste sefíalar que la noción de sado en una auctoritas." (Como se vê, estão na ordem: 3.º, 1.0
Poder Moderador" (este o nome que o autor do estudo dá a e 2.0, os aspectos da finalidade do órgão, como explicitamos
essa chefia de Estado arbitral) "se acufía en los albores del neste trabalho. É, do nome ao conteúdo, a teoria que se pode
constitucionalismo con caráter polémico, bien para restringir elaborar acerca do poder moderador, com fundamento nos mais
los poderes de Monarca hereditario a un "reinar sin governar", abalizados comentadores da Constituição de 1824).
bien para potenciar sus funciones dándole intervención más E podemos concluir a citação: "Se trata, por lo tanto, de
allá de lo que parecería tolerar una interpretación estricta del una magistratura más de control que de decisión y, en conse­
principio, instrumento polémico a su vez, de la Separaéión de cuencia, se superpone a las instituciones gubernamentales sin
Poderes". perjuicio de que, en caso de necessidad, pueda transformar-se
E acrescenta: "Atendiendo a su función, el Poder Mode­ en magistratura de gobierno." (MlNON, Miguel Herrero de,
rador podría definirse como aquella magistratura a la que se Nacionalismo y Constitucionalismo, Madrid, Editorial Tecnos,
-atribuyen determinadas competencias para que las ejerza con 1871, pp. 137-138).

414 - 10
138 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
J J&J Ae'\,d, ru u-.. -J;i;W �
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 13� �íJA, =.l)(i
cf.A.IL .! .
--�.
53. Atribuições e órgãos a ele ligados nomeação dos ocupantes dos cargos mais altos
da. magistratura;
Sem a pretensão de esgotá-las, podemos ar�olar, f)
concessão de indulto e comutação de penas;
como atribuições do órgão especializado da. chefia de
Estado (poder moderador), necessárias ao desempenho g) comando supremo· das Forças Armadas.
Havendo o devido consenso sobre a conveniência,
de suas funções, as seguintes: 3
poderão ser conferidas ao órgão do poder moderador, es­
a) a representação da Nação, interna e externa­ pecificamente para as hipóteses de corrupção ou de
mente; subversão, comprovadas em processo definido em lei,
b) · nomeação e demissão, segundo os condiciona­ algumas outras atribuições de cunho repressivo, tai.s
mentos estabelecidos pela prática, do Chefe de. governo como:
(Primeiro-Ministro ou Presidente do Conselho de Mi­ a) cassação de mandatos de parlamentares e sus­
nistros); pensão de direitos políticos;

l
e) dissolução da Câmara dos Deputados e convo­ b) suspensão de magistrados.
cação antecipada de novas eleições parlamentares; 1

Por ourto lado, no âmbito do poder. moderador, irão


d) sanção das leis; encontrar habitat constitucional umà. série de órgãos
menores que, até hoje, não conseguiram um posiciona­
s Compare-se a relação de atribuições que fizemos com a
mento institucional satisfatório, correspondente à digni::­
constante do art. 101 da Constituição do Império e com· o ar­
tigo 88 do Anteprojeto de Constituição da lavra de BORGES DE dade e à imparcialidade partidária de suas atribuições,
MEDEIROS. (BORGES DE MEDEIROS, A. A. o Poder Moderador na como,.· por exemplo, o . Ministério Público - que não
Repúbliça Presidencial, Recife, Editora Diário de Pernambuco, sendo órgão do judiciário, atua junto a ele na promoção
1933.) Curiosa é a relação de atribuições do Poder Coordenador ".do interesse público em que a justiça funcione" 4 - e
de ALBERTO TORRES (A Organ'hzação .. . , p. 490 a 493). o Tribunal de Contas - hoje instrumento de controle
mente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu financeiro não só do executivo, mas do legislativo e elo
primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a judiciário. 5 Ambos devem ser um instrumento ao serviço
manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais imparcial da lei e não à disposição dos governos e dos
poderes políticos." Definia-o, nestes termos, na linha aberta interesses político-partidários 6 marcados pelas "paixões
por PIMENTA BUENO, o ilustre PAULINO JOSÉ SOARES DE SOUZA: da hora".
"É a suprema inspeção sobre os poderes legislativo, executivo e
judicial, o alto direito que tem a nação de examinar como os Ademais, esse novo poder abriria um espaço jurídico­
poderes por ela delegados são exercidos, e de manter. a sua -constitucional onde caberiam órgãos novos, cuja neces-
independência, equilíbrio e harmonia; é essa suprema inspeção,
esse alto direito que a mesma Nação, não o podendo exercer 4 PONTES DE MIRANDA, op. cit., t. IV, p. 324.
por si mesma, delegou privativamente ao Imperador, revestin­ 5 PONTES DE MIRANDA, op. cit., t. III, p. 257; FERREmA FILHO,
do-o das atribuições do Poder Moderador." (SousA, Paulino, M. Gonçalves, Comentários, v. 2, p. 106. V. art. 70, § 3.0 da
José Soares de, Ensaio sobre o Direito Administrativo, , Rio, Constituição vigente.
Typographia Nacional, 1962, t. II, p. 61). 6 FERREmA FILHO, M. Gonçalves, op. cit., v. 2, p. 194.
140 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 141

.sidade tem sido, volta e meia, posta em evidência pelos ordinária prevista para funcionar como regra nas situa­
nossos mais preclaros juristas. Assim, de um lado, um ções de normalidade (vale dizer, as situações de ordem
Conselho de Estado, 7 que teria por função precípua par­ concreta decorrentes da conduta espontânea global­
ticipar, ao menos pela audiência obrigatória, das decisões mente adequada, dos membros da comunidade, ao direito
nas matérias reservadas privativamente ao chefe de Es­ estabelecido) . o
tado. De outro lado, possibilitaria o enquadramento Portanto, não se deve confundir a instituição jurí-­
político-constitucional de uma instituição voltada intei­ dica do poder moderador com os "regimes de emergên­
ramente à fiscalização da administração pública, em cia", ou seja, com os mecanismos que as Constituiçõe�.

r
todos os seus níveis e setores, ouvindo e investigando as em geral prevêem para enfrentar as situações de anor­
queixas populares, qual seja o Ombudsman. 8 malidade (assim chamados aqueles fenômenos ou cir­
cunstâncias previsíveis que podem ameaçar a eficácia da
54. Regimes de normalidade e regimes de emergência própria ordem constitucional, 10 tais como, nas expre�­
sões consagradas pela Constituição vigente, a "guerra" e
A instituição constitucional de um poder moderador,
a "grave perturbação da ordem"). 11 É necessário frisar
que realize uma suprema inspeção política, hoje efeti­ esse aspecto porque, no afã de buscar soluções constitu­
vada sem as Umitações do Estado-de-direito e sem condi­ cionais que dispensem o Ato Institucional de n.º 5, ge­
ções objetivas de imparcialidade partidária através do ralmente apenas têm sido lembradas fórmulas de regimes
Ato Institucional de n.º 5, constitui peça de um regime
de emergência.
de normalidade. Isto é, o poder moderador - como
órgão especializado da chefia de Estado, devidamente Ora, não pretendemos negar a importância de a
munido de atribuições constitucionais para essa função Constituição estabelecer um sistema adequado à nossa
- representa um elemento da regulação constitucional época para as ocasiões de anormalidade. Mas a nossa
preocupação, no presente trabalho, não é com os regimes
7 DALLARI, Dalmo de Abreu, "O Conselho de Estado e o de emergência, mas com a organização de um regime
Contencioso Administrativo no Brasil", in Revista de Direito de normalidade que possa apresentar um desempenho
Público, n.0 11, p. 33-44. satisfatório.
s SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 299. Conforme explica
O AtJo Institucional de n.0 5, a nosso ver, além de
um especialista na matéria, o Ombudsman (o defensor do ci­
dadão) apresenta três traços essenciais: (1.0) é um funcioná­
incorporar o embrião de um regime de emergência, por
rio (ou um corpo de funcionários) independente e não influen­ exemplo, quando faculta a suspensão de garantias indi­
ciado pelos partidos políticos, representante da legislatura etc., viduais (art. 5.º, in fine) e a decretação do estado de
em geral estabelecido na própria Constituição, que vigia a sítio (art. 7.0), sem as limitações da Constituição,
administração; (2.0) ocupa-se das queixas específicas do pú­
blico em geral contra as injustiças e os erros administrativos;
o FERREmA FILHO, M. Gonçalves, O Estado de Sítio, São
e <3.0) tem o poder de investigar, criticar e dar publicidade as
Paulo, 1964, p. 12-13.
ações administrativas, porém não de revogá-las. (RoWAT, Do­
10 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 13-14.
na! C., El Ombudsman (El defensor del ciudadano). México,
Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 39). 11 Constituição Federal, art. 155, itens I e II.
142 CEzAR SALDANHA SoUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 143

contém poderes de fiscalização e de arbitragem do jogo compõem e de enfraquecer o símbolo da unidade, pelo
político necessários a um regime de normalidade. Des­ qual melhor se exprime a representação suprema da
tarte, a só previsão· de um regime atualizado para en­ Nação. Por isso, a outra alternativa - a da delegação
frentar as situações de anormalidade não resolverá o unipessoal do poder moderador - parece a mais con­
problema constitucional brasileiro, uma vez que preci­ veniente, máxime se o seu exercício estiver condicionado
samos, antes de mais nada, encontrar uma fórmula à audiência obrigatória de um Conselho de Estado,
viável, que nos falta ainda, para a normalidade consti­ ainda que as deliberações deste não vinculem o chefe
tucional. de Estago em suas decisões.
Já na vigência da Constituição de 1824, o poder mo­ A segunda série de variáveis concerne, nos termos
derador coexistia com a forma clássica do regime de em que já indicava Pimenta Bueno, 14 às atribuições que
einerg·ência de legalidade especial, qual seja o estado de propriamente devam pertencer ao poder moderador e à
sítio. 12 Nada obsta a que uma Constituição que consagre amplitude das mesmas. Na linha a que já nos referimos
o poder moderador preveja uni regime de emergência neste capítulo, julgamos um · sinal de sabedoria deferir
clássico, ou algum outro mais atualizado, como, verbi em princípio, ao poder moderador, uma gama bem elás­
gratia, a solução criada pelo artigo 16 da Cons.tituição tica de atribuições fiscalizadoras e. arbitrais, . deixando
francesa. 13 No entanto, tal estudo refoge ao âmbito deste às praxes do sistema e ao progresso· evolutivo da cons­
trabalho, circunscrito apenas aos regimes de -normali­ ciênêia política da comunidade o balizamento de 'limites
dade. concretos às suas intervenções.·.··
· A terceira questão que se oferece versa sobre os cri­
55. Concreções possíveis térios para o preenchimento do cargo. Deixe-se, desde
já; bem claro - voltaremos ao assunto no capítulo se­
A concretização da idéia de um poder .moderador na guinte - que o poder moderador não se viabiliza apenas
organização dos poderes ofereceu, à opção do constituin­ com' a monarquia, a qual; importando na designação do
te, uma multipUcidade bastante ampla de formas. chefe de Estado ségundo o princípio da hereditariedade,
Em primei�o lugar, há a questão da titularidade pode realizar, em termos humanos, a mais absoluta
plural ou singular desse poder. Podem ser.· pensadas impârcialização partidária. Em uma república, a chefia
tj.iversas formas de composição colegiada dá chefia de dê Estado (Presidência da República) - embora eletiva
Estado, onde, basicamente, um conselho exerceria de e temporária - , pode ser preenchida mediante uma
modo coletivo o po.der mod.erador. Sé essa alternativa, técnica de eleição tal, que gáràntà ou, pelo ·meilosi con­
de um lado, proporciona maiores garantias de a�erto dicione a designação de um ocupante (o Presidente)
nas decisões, apresenta as desvantagens de diluir a res­

l
também capaz de situar-se em posição suprapartidária,
ponsabilidade do órgão na pluralidade de pessoas que o necessária ao exercício do poder moderador.
12 Constituição Política do Império do Brasil, art. 179, § 35. 14 PIMENTA BUENO, José Antônio, Direito Público Brasi­
Sobre legalidade especial, V. FERREIRA FILHO, op. cit., p.. . 63 e ss. leiro .e Análise da Constituição do Império, Rio, Typ. Imp. e
13 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 113-116. Const. de J. Villeneuve e C., 1857, p. 205..

[
144 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

Para tanto, o processo de eleição dita "direta", por


todo o eleitorado, é de longe o menos indicado, pois con­
duz à identificação dos candidatos com as correntes po­
líticas que os apóiam e, não raro, à radicalização políti­
co-partidária, que, se condizem com as funções de .chefia
de governo, não se coadunam com o bom exercício da

t
chefia de Estado. 15 Já a eleição do poder moderador CAPÍTULO II
pelo órgão da representação política (o Congresso), exi­
gido um quorum qualificado, 16 tem condições de resul­ RESPOSTA A DIFICULDADES
tar na designação de quem seja capaz de vivenciar um
papel político de árbitro entre as forças disputantes do 56. O parlamentarismo é inadequado ao Brasil
governo, mas parece reduzir sua independência diante
do órgão que o elegeu. A eleição do chefe de Estado por O poder moderador significa, em síntese, uma che­
um colégio eleitoral não muito numeroso, mais livre das fia de Estado escoimada de atribuições político-partidá­
injunções partidárias e distinto dos três poderes políti­ rias e implicará na existência de um poder executivo (o
cos, representa uma outra opção a ser considerada e, governo) independente dele, embora sujeito a sua ins­
quem sabe, a ser pensada. peção superior. Esse governo, quer se denomine Gabine­
Este colégio eleitoral do poder moderador - imagi­ te ou Ministério, há de depender também da fiscalização
nemos a título de sugestão - poderia ser o próprio do poder legislativo (o Parlamento), de onde lhe virá o
Conselho de Estado, composto de no máximo 15 membros, necessário apoio para a realização de seu programa de
designados pelo Senado Federal mediante proposta do ação. Em princípio, ocupará o governo - ou nele per­
chefe de Estado, com as mesmas garantias que a Cons­ manecerá - a liderança do partido ou da coligação que
tituição assegura à magistratura. Espirado o período faça - ou mantenha - maioria no órgão da represen­
presidencial - cuja duração não deveria ser inferior à tação política, proveniente do pronunciamento do elei­
do mandato de senador-, o Conselho de Estado elege­ torado.
ria o novo chefe do poder moderador, sem candidaturas Colocadas, nesses termos, as linhas mestras do. or­
previamente estabelecidas, excluída a possibilidade de 1
denamento político sugerido, vamos refletir sobre uma
eleição dos seus membros, mas permitida uma reeleição. primeira objeção possível: "o modelo é. parlamentarista;
e o parlamentarismo, embora teoricamente possa ser
melhor que o presidencialismo; não serve para o Brasil
porque o povo brasileiro não está preparado, ou não tem
15 v. supra n.0 19. maturidade suficiente, para praticá-lo". 1
Era o processo preferido por Assis BRASIL, que não o
10
julgava "indireto", mas "direto pelas câmaras", (op. cít., p. 245- 1 Tratando do tema relativo a reformas à Constituição que

-248. tornem desnecessário o AI n.0 5, o eminente jurista OsWALDO


+- CEZAR SALDANHA 8iiºVZA JuNI� ,
��cu t�;. � . ..i- ·• A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL
146 1 147
�ljA0,�1),2 () �,clf .1, �.-.V,� .

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De fato, julgo que o modelo proposto pode receber ÇfX} _r 1.ª -
o parlamentarismo "do poder decorativo",
l...,._:O rótulo de_"rarlamentarista". 2 0 parlamentarismo � que seria definível, somente, pela responsabilidade po­
importa em duas características fundamentais: (a) che- lítica do gabinete perante o parlamento, pois o chefe de
fia de governo desvinculada da pessoa de um chefe de Estado não passaria de simples figura decorativa, sem
Estado; (b) chefia de governo responsável perante à maiores responsabilidades no funcionamento do sistenia
Câmara. E o chefe de Estado só poderá ser verdadeiro (o Imperador ou o Presidente, como a Rainha da Ingla­
,órgão moderador com a realização desses dois caracteres. terra, -"não deveria fazer nada") ;
Cumpre, porém, distinguir, no plano da história das
2.ª - o parlamentarismo "do poder moderador'',
idéias políticas no Brasil, duas visões do parlamenta-
que além do elemento responsabilidade política do ga­
rismo: 3 �
binete perante o parlamento e, mesmo, antes deste,
2 Na verdade, essa primeira objeção peca por aquilo que funda-se em outro: a distinção pessoal entre a chefia
,o Prof. DALLARI denomina de "preocupação pelo nome" ( O Re­ de- Estado e a chefia de governo, erigida aquela em po­
:nascer do Direito, São Paulo, José Bushatsky Editor, p. 151, 175 der moderador, com atribuições de arbitragem definidas
e 176). Tal nominalismo,· além dos equívocos que propicia, tem
:servido, para alguns, de simples técnica de argumentação: n� Constituição.
·âtribui-se aprioristicamente um rótulo conhecido a um deter­ A primeira dessas concepções foi a que ficou ligada,
minado sistema político, para invo'cando preconceitos estabele­ no vocabulário político brasileiro, ao termo parlamenta­
•cidos e não revisados, negar-lhes serventia ou conve;niência. rismo, tanto para os adeptos, como para os descrentes do
Precisamos fugir do nominalismo. Por isso, o que nos interessa
,colocar neste trabalho é que a democracia política no Brasil s.istema. No Brasil, até bem recentemente, quando se
será· muito difícil, senão impossível, se a Constituição: (a) não falava em parlamentarismo, fazia-se .logo a idéia de um
•distinguir a· chefia de Estado da chefia de governo; eriginçlo a sistema "de poder decorativo" do chefe de Estado e de
·prilneira em poder árbitro (moderador) da atividade política; um primeiro-ministro dependente da maioria da Câmara
,e (b) não fizer a chefia de governo responsável perante o dos Deputados. Tão arraigada era a vinculação do ter­
chefe de Estado e perante o órgão da Representação ( especial­
mente, a Câmara dos Deputados). Ora, pouco nos importa o mo parlamentarismo a essa concepção, que Borges de
nome que se dê ao. sistema proposto: se parlamentarismo, pre­ Medeiros, quando em 1933 sugeriu um sistema de cunho
-sidencialismo, sistema misto ou etc ... Como, no entanto, pode :r;rltidamente parlamentarista, mas com a previsão ex­
ocorrer a tentação de rotular o sistema proposto de parlamen­ pressa do poder moderador, denomina seu livro de "O
taristà, justamente para contra ele despejar-se uma série de Poder Moderador na República Presidencial ... " 4
críticas • que se- faz ao dito "parlamentarismo puro" (ou seja l
lá o que, for), vamos aceitar, para argumentar, o rótulo, para _ O parlamentarismo "do poder decorativo" traduz a

mostrar as duas principais idéias de parlamentarismo que têm visão "liberal" do parlamentarismo no Brasil: "liberal",
-existido entre nós e a diferença profunda que há entre elas
sobre o papel da chefia de Estado. 4 .BORGES DE MEDEIROS, op. cit.
a. '..Essas duas . visões de parlamentarismo e a concepção
"presidencial" que, dos conservadores «puros" do Império, passou aos republicanos presidencialistas, estão muito bem ·es­
tudadas por JoÃo CAMILLO em Democracia Coroada (já citiida:,
TRIGUEIRO retomou essa objeção. (Entrevista ao jornal O Estado €Sp. no Cap. V da Segunda Parte) e em os Cànstrutorés do
de São Paulo de 11. 05; 75, p. 5). lrripêrio (São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1968, Cap. VII a IX>.
148 CEZAR SALDANHA SoUZA JUNIOR 1
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 149
r
no sentido de relativo ao pensamento político dos libe­ � ção entre as chefias de Estado e de Governo, com a ele­
rais do Império. Estes, em geral, defendiam uma estru­ vação da primeira a poder moderador, foi, durante o Im­
turação política em que o Presidente do Conselho (nome pério, a doutrina esposada pelos políticos moderados de
que se dava a nosso primeiro-ministro), retirado do par­ ambos os partidos, seguidores das lições de Pimenta Bue­
tido majoritário na Câmara e perante ela responsável, �o. U)lW:uai e Alves Branco 7 e que, afinal, prevaleceu
exercesse as funções de governo, com a maior autonomia na prática, sintetizando as contribuições conservadora
possível diante do Imperador. As interferências diretas (a defesa do poder do Imperador) e liberal (a defesa de
do monarca na dinâmica dos poderes, como poder mo­ um poder executivo ministerial responsável perante a
derador constitucional, eram mal vistas e foram feroz­ Câmara).
mente combatidas, sob a acusação de "poder pessoal". Esse parlamentarismo, por assim dizer "histórico",
Face a tais intervenções que, na verdade, não foram vem sendo, desde 1930, paulatinamente redescoberto.
muitas, 5 tornou-se comum negar autenticidade ao par­ Borges de Medeiros, em 1933, consagrou-o num projeto
lamentarismo do Império. de Constituição, de forma muito feliz. João Gamillo his­
" toriou-lhe a doutrina e a prática. Afonso Arinos, antigo
No extremo oposto, os conservadores puros" ou
radicais, interpretando literalmente a Constituição de defensor do presidencialismo, nestes últimos quinze anos,
1824, eram presidencialistas, entendendo que ao Impera­ compreendeu-lhe o alcance e a ele também aderiu. 8
dor era lícito reinar, governar e administrar, isto é, ser Analisadas as duas visões de parlamentarismo, resta
6 curio­
ao mesmo tempo chefe de Estado e de govern o. avaliar a que mais se conforma à realidade brasileira.
samente, na Constituição de 1891 triunfou a versão O conceito que as elites brasileiras faziam - e, tal­
presidencialista da corrente conservadora, se bem que vez, em grande parte ainda façam - de parlamentaris­
vazada em moldes republicanos: ao Presidente caberia mo corresponde à forma liberal de ver o sistema, deitando
presidir, governar e administrar. Essa organização pre­ suas raízes no velho partido luzia. Ele passou do Império
sidencial foi ferrenhamente preservada pela classe polí­ à República, onde teve em Raul Pilla O o seu mais incan­
tica, herdeiros políticos dos antigos saquaremas, oriun­ sável batalhador. Ora, visto deste ângulo, não é de es­
dos, via de regra, da mesma base social: as classes tranhar a imagem que se formou do parlamentarismo:
senhoriais rurais. sistema frágil, gerador de crises, sujeitos às instabilida­
A segunda forma de conceber o parlamentarismo, des das maiorias ocasionais, formadas na Câmara, mui­
que coloca como primeiro elemento do sistema a distin- tas vezes, sob a inspiração de interesses mesquinhos de
facção. De outro lado, esse sistema, onde o poder do
11DoM PEDRO II, Conselhos à Regente, Rio, Livraria São
A
José, 1958, p. 54; aliás, confirmado por JOAQUIM NABUCO. (N ­ 7 V. JoÃo CAMILLO, Os Construtores... , pp. 157-166.

,1 BUCO, Joaquim, Um Estadista do Império, S. Paulo, 1936, v. II, · s ARINos, Afonso, e PILLA, Raul, Presidencialismo ou Par­
!, p, 82) • lamentarismo, Rio, Livraria José Olympio Editora, 1958, v. Pre­
;!'. É do Visconde de Itaborai, chefe conservador, a célebre
.6 fácio.
'1 máxima: "O rei reina, governa e administra" (V. JoÃo CAMILLO, 'º PILLA, Raul, Catecismo . .. , passim. Não há no trabalho
Democracia . .. , p. 89 e seg.). referência ao Poder Moderador.
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150 CEZAR SALDANHA Souza JUNIOR l A ÜRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 15t.

chefe de Estado é inexpressivo, apagado, quase inútil, 1
1
plano suprapartidário e com atribµiç� para garantir
não pocleria ser do agrado do _grasileiro médio, IJ,cost,,�­ a Lei, a democracia política, o bem comum, é a possibi­
mado desde os remotos tem s da forma ão nacional, a lidade que o parlamentarismo histórico. abre ao País.•
ver na chefia de Estado um. comando firme, unif�or A experiência parlamentarista que perdurou de se­
e,.�e �ã�r, E_.�ter:g.al. Em suma: a�s�m .como tembro de 1961 a janeiro de 1963 não se presta para in­
não tem servido, ao Brasil, um sistema pollt1co onde validar a idéia de um parlamentarismo viável ao Brasil. 11:
inexiste, na lei, o poder moderador (presidencialismo) , Em primeiro lugar, o Ato Adicional de n.o 4 orientou.ase,
também não se adapta à realidade do País um sistema pela visão liberal do sistema parlamentar, no afã de re­
onde esse poder legal seja apenas decorativo (daí o fra­ duzir a um quase nada as atribuições do chefe de Estado
casso desse "parlamentarismo" entre nós). (o Presidente da República). Em segundo lugar, o chefe·
No entanto, encarado o parlamentarismo na pers­ de Estado, João Goulart, eleito para a vice-presidêriciá
em um quadro presidencialista - e, conseqüentementer

l
pectiva de poder moderador efetivo, ele se transfigura
num sistema estável de organização dos poderes políti­ um líder de partido -, não possuía as condições obje-
cos, pois institucionaliza um poder de arbitragem da
'11 V. o depoimento de um dos participantes
vida político-partidária e cria um órgão permanente com da elabora.:.
ção do Ato Adirional de n.0 4 (FRANCO; Afonso Arinos· de Mello,.
instrumentos efetivos para fazer possível a harmonia A Evolução ... ,
·
p. 143 e 144)..
· ·

entre os poderes, bem como para tutelar as libe;rdades


· públicas e a segurança nacional. Ademais, o parlamen­ "se ele soubesse o que está acontecendo, não ·o admitiria e res­
tabeleceria a justiça". li: um "mito do ·pai 1>rotetor", de que se
tarismo nesta dimensão atende aquelas exigências psi­ beneficiaria o presidente latino-americano, como, outrora, Ós·
co-sociais do povo brasileiro, de uma autoridade v1síve�, monarcas hereditários." ( ...)
definida e protetora, a qual, ausente no parlamentarismo E continua: "De fato, é ver.ossímil que populações habitua­
liberal, empurrou os intérpretes da alma brasileira ao •
das ao paternalismo, das quais parte estã ainda muito niar
integrada na nação, são levadas, mais do que outras a oferecer
sucedâneo defeituoso do presidencialismo. A opção bra­
. êlla- leal� -llm,Jlomem mais -�:dJJl_e a WE-ª Jnstituicã,o,��


sileira por este sistema, no fundo, tem representado o Porem, , o personalismo, ou se se preferir, o culto a personalidade
anseio nacional por um poder de autoridade superior e não parece limitado nem à América Latina, nem aos paises·
defensor, que a solução parlamentarista liberal preten­ subdesenvolvidos. Mesmo não contando a cruel experiência do·
dia, simplesmente, anular. 1° Colocar esse poder num (
hitlerismo e do mussolinismo, a do stalinismo, do maoísi:no e
muitas outras, os povos que se poderiam julgar .os mais apega­
10 JACQUES LAMBERT, analisando o "papel da personalização
dos ao governo da lei tendem a personalizar o poder sempre
que o regime o permita. São as democracias reais do tipo inglês·
do poder" na América Latina, ratifica amplamente essa nossa
que com maior habilidade se compuseram com a necessidadt!'
conclusão. Eis o que escreveu: "Povos muito evoluídos, dizem,
de. personalização do poder, derivanl:lo-.o em benefício de um

•r
podem conceber que o governo seja o da lei fundada sobre o
soberano que não detém esse poder senão simbolicamente."
consentimento da maioria; para populações analfabetas, para
índios ou mestiços, para camponeses atrasados, habituados ao (. , .. )
paternalismo de um patrão acessível, o governo é. necessar\a­ E, mais adiante: "Sem dúvida, na capacidade do regime·
mente o de um homem, a quem todos podem dirigir-se porque presidencialista em facilitar a personalização do poder, pode-se

J

+ 1i
152 0EzAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 153

tivas de suprapartidariedade indispensável a um poder 57. A . inexistência de poder moderador· nos Estados
moderador. Em terceiro lugar, o Presidente, que deveria Unidos
ser o primeiro a guardar fidelidade ao ordenamento po­
lítico vigente e a defendê-lo de seus adversários, a ele se O vezo. de erigir as instituições políticas norte-ame­
opunha e contra ele conspirava; julgando o sistema ado­ ricanas no ideal político brasileiro abica a uma segunda
tado um golpe contra seus plenos poderes presidenciais, objeção: o poder moderador não existe nos Estados �

4
tudo fez, desde o momento da posse, para revogá-lo e Unidos e nem por isso o regime democrático lá deixa de
para restabelecer o presidencialismo. Em quarto lugar, ser estável. Ficaria, assim, provado que a ausência do
a experiência não durou o tempo suficiente a uma apre­ poder moderador nada tem a ver com as dificuldades por
ciação objetiva sobre o sistema. que passa a democracia entre nós. �
Mas de tudo isso, . uma "verdade factual" parece, Não procede a objeção. Na verdade, há poder mo­
hoje, evidente, em favor da capacidade do sistema par­ derador nos Estados Unidos: só que ele é exercido dire­ �
lamentar em dar soluções legais às crises políticas: não tamente pela própria comunidade, a qual, anterior ao
fora a instituição do parlamentarismo em 1961 - em­ Estado, tem condições econômicas, sociais, culturais e �
bora os defeitos do sistema então implantado - e cer­ �
políticas para fiscalizar, de baixo, os poderes instituídos.
tamente o Brasil teria sido palco, na época, de uma
Se a comunidade delegou as funções de legislar, gover­ �
guerra civil ou, pelo menos, de uma revolução. 12 Quando

7.1
o grupo que detinha o executivo forçou e obteve, em nar e prestar jurisdição, a órgãos· políticos que atuam
1963, a volta às condições estruturais políticas sob as
em seu nome, reservou para si a de conter os poderes
quais não teria ocorrido a posse de Goulart, estava ca­ nos limites da lei e arbitrar os conflitos entre o Presi­
vando o fim político do Presidente e do regime de 1946. dente e o Congresso, fazendo pender a balança ora para

E o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, que decidiu ore­ um lado, ora para outro.
torno ao presidencialismo, abriu as portas ao 31 de mar­ No Brasil, outra é a realidade. A comunidade não
ço de 1964. tem condições para exercer suficientemente bem a fis- JJ
calização dos poderes. Assim, se a função moderadora 1.
.12 AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO, op. cit., p. 143.
também for delegada a um órgão adequado - o de
ver um defeito desse regime; essa a razão, perfeitamente legí­ chefia de Estado-, este há de se transformar num in� �
tima, pela qual os que consideram possível evitar a personali­ trumento da própria comunidade, justamente para su­ � �
zação do poder e julgam ser necessário fazê-lo para conservar
a democracia, não confiam no regime presidencialista. Porém, plementar ou suprir sua reduzida expressão política,
se se pensar que, quaisquer que sejam seus inconvenientes, a como fiscalizadora e controladora dos detentores do po-
-personalização do poder é uma necessidade imperiosa (no caso der, na correção de crises e abusos.
<ia América Latina), a capacidade do regime presidencialista
em satisfazer essa necessidade atribui-lhe uma superioridade
A comparação nos mostra que o presidencialismo

l
sobre o regime parlamentarista" (e, completamos nós) do poder clássico, à americana, onde a função moderadora per­
,estatal decorativo. (LAMBERT, Jacques, América Latina, São manece inteiramente na comunidade, só pode mesmo
Paulo, Cia. Editora Nacional, 1971, pp. 415, 416 e 417). funcionar nos Estados em que esta tiver sido anterior
I· 414 • 11

.!
'154 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 155

ao poder e, as.sim, com forte ascendência sobre os ór­ executivo, legislativo e judiciário, de um poder neutro
gãos do governo. 13 capaz de harmonizá-los. 14
,Tá o parlamentarismo - porque, implica na dele­ A resposta a essa dificuldade requer se distinga a
gç1.ção, em maior ou menor grau, da função moderadora forma jurídica do poder moderador de seu conteúdo po­
a um órgão suprapartidário de chefia de Estado - lítico. Enquanto forma jurídica, não há negar a influên­
adapta-se melhor às comunidades fracas, diante da pos­ cia do constitucionalismo europeu, especialmente da obra
sibilidade de ação fiscalizadora supletiva ou suplemen­ de Benjamin Constant, na Carta de 25 de março. Sob
tar, de parte do poder moderador, frente aos que domi­ esse ângulo, o poder moderador aí aparece como um po­
nam o governo. der arbitral, cuja função precípua é a de "velar inces­
santemente sobre a manutenção da independência, equi­
58. A origem exógena do poder moderador iíbrio e harmonia dos mais poderes políticos".
A reflexão anterior nos leva a discutir urna terceira No entanto, os constitucionalistas do Império não
objeção que, como já começamos a ver, não pode igual­ ficaram aí. Foram mais longe, construindo uma autên­
mente prosperar: o poder moderador, introduzido em tica "doutrina brasileira do poder moderador", onde a
nosso direito pela Constituição de 1824, teria represen­ fórmula jurídica francesa veste uma solução política de
tado simples adesão, destituída de qualquer originali­ alcance bem mais amplo que a imaginada pelos figuri­
dade, ao princípio teórico, importado da doutrina cons­ nistas europeus. 1-0

14 Nossos autores de direito constitucional modernos, tra­


tando sempre, em geral, rapidamente do poder moderador,
titucional francesa do início do século XIX, sobre a

deixam-nos a idéia de que ele teria sido simples transplante


necessidade, no ordenamento político, além dos poderes
13 Mesmo nos EUA, onde o povo é forte, a grande expan­
são da burocracia e a sua crescente complexidade, fruto das da concepção política de BENJAMIN CoNsTANT. Assim, p. ex.,
responsabilidades sociais, econômicas e militares sem preceden­ PAULINO JACQUES, op. cit., p, 155; FERREIRA, Luís Pinto, Curso
tes assumidas pelo governo nessas últimas décadas, tem trazido de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 1974, p. 164).
dificuldade sempre crescentes à comunidade para controlá-lo 15 Embora ainda muito duro em suas críticas ao poder
e responsabilizá-lo. Daí estar se criando "a conciencia de la moderador, não escapou a PAULO BoNAVIDES a originalidade do
poder moderador brasileiro: "a teoria do poder moderador, no
la rnala conducta de los funcionarias (que) data de muchos contexto da Carta outorgada, consagra em verdade uma defor­
necesidad de establecer canales para la exposición pública de

afíos. Ni las urnas ni la prensa - los dos controles tradiciona­ mação das idéias de Constant. Engana-se quem tomar a função
les de los abusos gubernamentales contra los ciudadanos - se moderadora unicamente qual se acha ela definida à primeira­
vista, com toda aparência de fidelidade ao pensamento do pu­
blicita francês. ( . .. ) O poder moderador do constitucionalismo
consideraban adecuados ya en el siglo pasado, y mucho menos

nencial y la complejidad de la actividad estatal." (NADER, brasileiro do Império exorbitava assim, em teoria, da função
Ralph, "Ombudsmen para los Gobiernos Estatales", in El Om­ meramente corregedora de poder neutro que lhe fora traçado
ahora, como no sea por otra razón que el crescimiento expo­

budsman, organizada por RowAT, e já cit., p. 318 e seg.; na 1 pela concepção teórica de Constant, de que era um poder poli­
mesma coletânea, Cfr. os trabalhos de REUss, Henry, Estados ticamente militante."
Unidos, p. 259, e de HABRAHAM, Henry J., La Necessidad de un
Ombudsman en los Estados Unidos, p. 306 a 313).
l E, analisando a prática do órgão, parece que o mestre
cearense começa a compreender-lhe. "A experiência do Império
156 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 157
1

O problema enfrentado pelos construtores do Brasil �· zação e as alterações políticas de que a comunidade, di­
Independente pode ser assim resumido: como fazer-fun­ retamente, por si mesma, era incapaz. É, afinal, o que
cionar, numa comunidade de bases sociais nitidamente nos ensina o autorizado Pimenta Bueno: "O poder mo­
feudais (população esparsa num imenso territórío, clãs derador ( ... ) é a suprema inspeção da nação, é o alto
patriarcais, ausência de cidades e de eleitorado indepen­ direito que ela tem, e que não pode exercer p<Yr si mesma,
dente etc ... ), instituições políticas democráticas libe­ de examinar o como os diversos poderes políticos, que
rais - entre as quais avultam a divisão de poderes e ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos.
eleições - e que pressupõem a existência de uma co­ ( ... ) Este poder ( ... .) incontestavelmente existe na
munidade politicamente mais evoluída, com populações nação, pois que não é possível nem por um momento
urbanas, eleitorado independente e opinião pública? 16 A supor que ela não tenha o direito de examinar e reco­
outra alternativa - montar no Brasil um sistema de nhecer como funcionam os poderes que ela instituiu para
cunho absolutista, sem parlamento, nem partidos, nem o seu serviço, ou que não tenha o direito de providenciar,
liberdade política-, se mais condizente com a estrutu­ de retificar sua direção, de neutralizar seus abusos. Exis­
ração econômica e social da época, horrorizava o espírito te, e é distinto não só do poder executivo, como de todos
modernizado dos nossos estadistas, que queriam sincera­ os outros; não pode ser exercido, como já indicamos,
mente um regime civilizado, como exigia a consciência pela nação em massa, precisa ser delegado" (o grifo é
democrático-liberal formada na admiração dos povos nosso). 17
mais adiantados da América do Norte e da Europa.
· Esta, a original doutrina 18 brasileira do poder mo­
A solução por eles encontrada foi inserir, no seio da
derador: não simplesmente um poder arbitral, m&� um
organização dos poderes, um órgão que, como os demais
poder subs,idiário da comunidade. Ou seja: não somente
delegado pela comunidade, pudesse promover a fiscali-
um fator de equilíbrio do sistema político, mas uma ver­
16 JOÃO CAMILLO, Interpretação... , ps. 30-31 e 32. dadeira delegação nacional que, envolta em neutralidade
partidária, supre, dentro da lei, as deficiências de um
porém foi surpreendente em mostrar como o instrumento jurí­ eleitorado ainda muito fraco em força política, na me­

t
;1 dico-constitucional, posto que escorado nas vigas de uma con­ dida dessa fraqueza e enquanto as condições econômicas,
cepção do poder que em muitos pontos traspassava formal­
1

mente os artigos da doutrina liberal, logrou todavia acolher sociais e mesmo políticas não lhe permitam uma atua­
com flexibilidade usos políticos, que acabaram configurando ção mais efetiva.
um novo direito constitucional de assentamento costumeiro,
bastante apartado da rigidez do texto formal, e a cuja sombra,
por exemplo, prosperavam com desenvoltura o bipartidarismo 17 PIMENTA BUENO, op. cit., ps. 204-205. V. a definição do
político do Império (liberais e conservadores), à forma sui Visconde do Uruguai, nota supra n.0 2, p. 130.
generis de governo parlamentar e enfim o funcionamento 1 s Escreveu PONTES DE MIRANDA que o Poder Moderador
mesmo do Poder Moderador, no Segundo Reinado, com perfil "constitui, doutrinariamente, inovação memorável na história
autônomo." (BoNAVIDES, Paulo, Reflexões Políticas e Direito,
constitucional do Brasil" e que os estadistas do Império tinham
Fortaleza, Imprensa Universitária da Universidade Federal do
Ceará, 1973, p. 230-233). plena consciência da originalidade. (Op. cit., tomo I, p. 272).
158 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE, DA DEMOCRACIA NO BRASIL 1 59

59. Excrescência absolutista democracia política não significa ausência de poder de


autoridade- isso seria anarquia-, mas poder de au­
Chegamos, agora, a uma quarta objeção: um poder toridade limitado à Lei. Preconceito que herdamos do
moderador, como vem sendo aqui desenhado, acima dos liberalismo- já superado em doutrina econômica, po­
demais poderes e armado de atribuições efetivas de in­ rém ainda presente nos registros de idéias políticas que
tervenção no processo político, seria urna excrescência aceitamos sem maior análise - considera a liberdade
absolutista a consagrar o arbítrio e a anular a própria simplesmente como ausência de limitações exteriores e
democracia política. 19 enxerga no princípio de autoridade uma virtual negação
Esta era a acusação que, no segundo reinado, sob o
epíteto de "poder pessoal", o sectarismo partidário le­ 'J;II' da liberdade.
vantava contra o poder moderador, quando liberais ou Esse preconceito não tem razão de ser. Em verdade,
a democracia política pressupõe o binômio liberdade-au­
conservadores viam-se por ele afastados do poder. O
toridade. Liberdade sem autoridade conduz à anarquia.
poder moderador - clamava-se, nesses momentos, ª par­
. Autoridade sem liberdade, ao arbítrio. Por essa razão, a
tir de determinada época - era o elemento que retirava
a autenticidade de nossas instituições democráticas re­ instituição de um poder moderador (poder de autorida­
presentativas, subjugando-as à vontade incontrastável de) , na harmonização e fiscalização dos órgãos políticos
do Imperante. de governo (poderes de liberdade) , não fere a democra­
Na raiz das críticas, aliás exageradas, que sempre cia, desde que previsto e limitado em seus objetivos e em
suas condições de exercício, a urna Lei que expresse o
cercaram as intervenções corretivas de D. Pedro II, ha­
via - como ainda há - urna incompreensão generali­ consenso da comunidade. 21
zada da função de chefia de Estado numa democracia 21 PONTES DE MmANDA; com clareza, põe a questão: "A
política. Para tentar vencer essa incompreensão, vamos fonte (do poder moderador da Constituição de 1824) fora BEN­
enfatizar dois aspectos que julgamos importantes. JAMIN CoNSTANT ( .. .) Criara-se na pessoa do rei aquele poder
Em primeiro lugar, o poder moderador não se cons­ neutro ( ...) preservativo e reparador, sem ser hostil. Ainda
titui, enquanto poder de autoridade, em instrumento quando vimos o papel do Chefe de Estado, na Alemanha pluri­
' partidária de 1919, como defensor da Constituição, e a idéia
necessariamente opressor e antidemocrático. 20 E que do Conselho Federal, tantas vezes proposta para a Constituição

1
brasileira de 1934, sorrimos das críticas que entusiastas e co­
19 os comentadores da Constituição de 1891 e nossos cons­
mentadores superficiais da Constituição de 1891 acerbamente
tituciomdistas posteriores, em geral, vêem no poder moderador faziam à Constituição monárquica" (op. cit., t. I, p. 271).
"excrescência constitucional", "enxertia absolutista", idéia in­
teiramente antidemocrática ..." (FRANCO, Afonso Arinos de ),
de autoridade", não pode ser omitido numa revisão que se faça
Mello, curso de Direito Constitucional Brasileiro, Rio, Forense,
a uma nova classificação dos poderes políticos. Não é outra a
1960, p. 94; BONAVIDES, Paulo, A crise ... , p. 25; SALDANHA,
conclusão de um belo estudo, atualíssimo, sobre a matéria:
'I Nelson Nogueira, História das Idéias Políticas no Brasil, Recife, "Para anticipar conclusiones, diré que la citada trilogia (poder
Universidade Federal de Pernambuco, 1963, p. 111). executivo, legislativo e judiciário) debe ser al menos sustituida
20 o poder moderador nada mais é que o órgí'io da chefia por una serie quinaria más adecuada para describir la realidad
de Estado separado de órgão governamental. Autêntico "poder de nuestro tiempo. Buscando también conjuntar la designación
160 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 161

Em segundo lugar, a atuação do poder moderador Segunda Guerra, respectivamente, só a presença da Co­
só s e justifica, na doutrina brasileira, dentro dos lindes roa ou do Presidente, estremando os órgãos nacionais do
do princípio da subsidiariedade, que iluminá a doutrina domínio partidário, já faz com que tudo funcione nor­
política democrática. Segundo ele, cumpre ao · poder malmente, na conformidade das regras do jogo político
moderador intervir na fiscalização e na limitação dos democrático. Portanto, em uma comunidade politica­
órgãos políticos, quando a comunidade não puder de­ mente forte, que efetivamente influa no processo político,
sempenhar, por si mesma e pel, os canais a seu alcance, a função do chefe de Estado reduz-se a um mínimo
essas funções. O poder moderador existe não para aba- quase invisível de atuação, eis que basta a separação das
far a comunidade, mas - como delegação deia - para chefias de Estado e de Governo - com a conseqüente
'\. J suprir suas eventuais deficiências no exercício do con-
neutralização partidária dos órgãos máximos do Estado
� trole democrático dos governos.
- para que a paz política esteja garantida. 22
t ó)
Destarte, compreende-se a flexibilidade que pode
assumir, ria prática, o sistema parlamentar de poder mo-
Em suma: o poder moderador não fere a democra­

�'tt
cia política. A questão da extensão maior ou menor de
? derador explícito, numa democracia política. Em uma
J �

�- � comunidade dependente do poder e de expressão política


deficiente ou nula, abre-se ao chefe de Estado um campo
vil muito amplo· de ação. Foi o que ocorreu, por exemplo,
22 Ouve-se, com freqüência, que o chefe de Estado distinto

�•
no segundo reinado, onde o Imperador agia decidida-
do chefe de governo, mesmo nos países de comunidade evoluída,
não faz nada (seria uma peça meramente decorativa), citan­
mente contra os abusos dos políticos, :p.o combate às
q, '
�.
do-se normalmente como . exemplo o monarca inglês.
f.Qligarquias e à utilização do poder para satisfacão de Em primeiro lugar, se se diz hoje que a Rainha "não faz
: ... � f). interesses menos digno§. Porém, à medida que a comu-
.
nada", foi porque já fez: na Inglaterra vitoriana, ao contrário
' munidade cresce em força política, tendem a diminuir, do que pensavam nossos velhos liberais, a Rainha influía na
� �l. progressivamente, as exigências de intervenção ost�ns�­
direção do Estado. Um tratadista moderno, Sir W. Ivor Jen­

va do chefe de Estado, até chegar-s,e, por exemplo, a si­


nings, escreve: "Pelos documentos agora vindos a público se
mostra que a concepção liberal da monarquia e que prevaleceu
tuação da Inglaterra ou da Alemanha Ocidental. 'Lá, em meados do século passado, e que era justificada por Ba­
desde o reinado da Rainha Vitória e desde o fim da gehot, não concordava totalmente com os fatos. Se o Soberano
aceitava, em última análise, as decisões do governo, exercia,
sencilla y la suficiente prrecisión, propongo estos conaepitos porém, considerável influência em tais decisões." (JENNINGS, W.
para esa serie: "Poder de Autoridad" (para a instituição da Ivor, The Cabinet Government, Cambridge, 1951, p. 303). O que
chefia de Estado, na linguagem de BURDEAU, uma "magistra­ os nossos liberais desejavam nem na Inglaterra havia ...
tura de influência"), "Poder de Dirección" (para o governo), (TORRES, J. C. O., Democracia..., nota p. 96).
"Poder Deliberante" (para os Parlamentos), "Poder Judicial" Em segundo lugar, se diz que a Rainha "não faz nada'\
(para os órgãos jurisdicionais) y "Poder de Ejecución (para mas, na verdade, pode fazer: "O soberano inglês guarda ainda
a administração, "con mayúscula"). (VALVERDE, José Zafra, uma · grande dose de poderes de reserva que tem usado nos
Poder y Poderes. Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra, momentos de crise, em situações de emergência no país ou de.
1975, ps. 150 e 151 e segs.). perplexidade e conflitos insanáveis no interior do próprio Go-
1-

1,62 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 163


'
suas atribuições dependerá, basicamente, do grau de organizar e presidir o Conselho de Ministros; o Presi­
evolução política menor ou maior da comunidade. A am­ dente do Conselho nomearia os Presidentes de Província
plitude das intervenções ostensivas do poder moderador, e o chefe de Polícia; estes nomeariam os delegados de
em princípio, será inversamente proporcional à força da polícia; e estes fariam - no sentido material do verbo
comunidade em fiscalizar, de baixo, os órgãos de governo. "fazer" - as eleições, as quais, inexoravelmente, resul­
tariam na indicação de uma Câmara de Deputados
60. O artificialismo de nossas instituições políticas quase unânime em favor do partido do Presidente do
Conselho. O poder moderador alternava, periodicamente,
Poder-se-ia, ainda, objetar que a recriação de um na Presidência do Conselho, os partidos, os quais -
poder moderador no Brasil redundaria, como no segundo fabricando as eleições - alcançavam invariavelmente,
reinado, em um sistema parlamentar artificial, em que cada qual a sua vez, confortável maioria na Câmara. 23
Em resumo, l!,S alterações @líticas processavam-:-se ao,:1
1
os demais poderes ficariam praticamente anulados pelas
intervenções do chefe de Estado. Todos conhecemos o J?_artir do Imperador. Era o parlamentarismo funcionan-
retrato que o Senador Nabuco de Araújo traçou do par­ do de cabeça para baixo. 24

r
lamentarismo vigorante no segundo reinado: o Impe­ � 1..
A crítica liberal mais radical, primeiro, considerava <S
rador indicava alguém, conservador ou liberal, para esse funcionamento do sistema um mal, por desfigurar

r
o próprio parlamentarismo. E, segundo, atribuía a culpa ,- ·
vemo. ( . .. ) E, embora seja um poder m ais potencial do que
real, está longe de ter sido menosprez ado pelos Governos, 2s O discurso do Senador é, no fundamenta l, o seguinte:
quaisquer que fossem as suas orienta ções doutrinárias e seus "Ora, dizei-me: não é uma f arsa? Não é isso um verdadeiro
programas políticos e administr ativos". (LIMA, A. A. de Oli­ absolutismo, no est ado em que se a cham as eleições em nos so
veir a, op. cit., p. 207) . País? Vede esse sorites fatal, esse sorites que acaba com a
E, enfim, se diz que a Rainha "não faz nada", mas, na existência do sistema representativo: - o poder moderador
prática, f az: já vimos os benefícios decorrentes d a separ a ção pode chamar a quem quiser p a ra organizar Ministérios ; esta
entre chefia de Estado e chefia de governo. Porém, não é só: pessoa faz a eleição, porque há de f azê-Ia, esta eleição faz a
"O Mona rca inglês t ambém tem oc asião, se quiser, e o tem maioria. Eis a í está o sistem a representativo do nos so País".
feito de ser av ali ador de medidas e polític as governamentais e (NABUCO, Joaquim, op. cit., V. II, p. 81).
pode remeter questões, requerer respostas e tentar intervir no 2-1 TORRES, J. C- DE o., Democracia, p. 97. "Não havendo
processo governamental. O Monarc a é normalmente informado opinião pública org aniz ada, nem meios de penetração ideoló­

t
de todas as questões discutidas no Gabinete. Diariamente, re­
cebe um informe sintético das principais ocorrências governa­
gica em gr andes m assas do nosso povo, nem condições mate-
riais e espirituais p ara eleições livres - D. Pedro II, usando
1
mentais e pa rl amentares, sobretudo, no que se relaciona com de sua função de Poder Moderador, de fiel de bal ança, subs ti-
a política extern a. Conforme lembra IvoR JENNINGs: "The tuía-se ao povo e d ava vitóri a à oposição. Is to sem contar com
Queen is better informed than the average Cabinet ministers as vitórias efetivas da oposição nascida das condições f avorá-

"'iTJ i
on rnatters which are brought before the Cabinet. ln some veis ao sis tema , que nos últimos anos do reinado de D. Pedro II - _. _
funcionava a contento, se compar a rmos com o que se fazia, �

1J::JJ
respects, notably on foreign affairs and on matters dealing
ais países . E, principalmente, com o qu
,
with the Commonwealth, she may be better informed than
the Prime Minister. (Idem, idem, p. 208). ;i:�:º·a:;:i��:11

ç­
r--
1

164 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 165


1
desse funcionamento "falseado" ao poder moderador, � segundo lugar, os fatores desse parlamentarismo. de
visto corno um "poder pessoal". cabeça para baixo não eram, simplesmente, as atribui-
Os historiadores contemporâneos têm colocado
a questão de outra forma. Em primeiro lugar, esse fun­ inca:\)az de mudar a face das coisas, os resultados serão dife­
rentes para os dois sistemas: no presidencial, tornar-se-á ind��
cionamento do parlamentarismo não foi em si um mal, finida a duração do mesmo partido no poder; no parlamenta­
más uma contin ência: diante da inexistência de um rismo, a rotação se fará sempre, mas unicamente ao arbítrio
eleitórado independente e capaz de exprimir urna von- do chefe de Estado. Não se trata de saber qual destas duas
· " tade política, não havia, fora essa, outra maneira de o situações é a melhor, porque ambas são más; o que se pode é
� parlamentarismo funcionar. Sem um poder supraparti­ verificar qual é a pior."
Após essas colocações lapidares, ninguém de nós hoje va­
dário que alternasse, de cima, os grupos no poder, tería­ cilaria em apontar qual a solução pior tanto para � dese�vol­
..;-mos assístiã.o - corno de fato nos comprova a República vimento político da comunidade como para a harmonia polí­

11
r
Velha - a instalação no poder, ao nível federal e esta- tica e, ainda, para a evolução das conquistas sociais e elevação
dual, de oligarquias políticas conservantistas que só das populações marginalizadas. Mas aí faltou a Assrs BRASIL o
que, talvez, não poderia saber no século passado: o conheci­
revolucionariamente puderam ser desalojadas. 25 Em mento prático do que significa, para a democracia o mono­

+
partidarismo. Assim, ele responde a sua questão:

25 vamos agora transcrever um trecho, praticamente des­ "O governo presidencial resolve melhor do que o parla­
)..- conhecido, de Assrn BRASIL, onde o político gaúcho revela toda mentar o conflito dos partidos. Nem é maior nele do que no
a estatura de verdadeiro precursor da ciência política entre SE_:U rival a probabilidade de revoluções inspiradas pela ambi­
, çao do mundo. As monarquias parlamentares as. têm tido em
nos:
número e qualidade tais, que nenhuma dúvida deixam dobre
"Teoricamente, não há dúvida quanto ao critério que deve 1 o caso. Quanto ao mal da longa residência de um partido no
determinar a subida de um partido ao poder e a retirada do
poder é menos importante do que parece. O que é mais neces­
que o estava ocupando: tal mudança deve dar-se quando a
sário é que os mesmos homens se não eternizem."· (Assis BRAsrL,
maioria da nação quiser. Não há infelizmente meio infalível
op. cit., pp. 332-333, e pp. 337-338.)
de avaliar a vontade da maioria da nação; mas as duas dou­
trinas representativas, a parlamentar e presidencial, estão de Pudesse ele prever as conseqüências econômicas e sociais
do controle do governo e do Estado por um partido único de
acordo em que só ela pode determinar legitimamente a rotação
base senhorial rural, teria prognosticado e, quem sabe, até des­
dos partidos. Entretanto, os meios de realizar esse pensamento
crito, com antecipação, o fenômeno da "Política dos Governa­
pelos dois sistemas políticos são bem diversos: no parlamentar,
dores" e do "Coronelismo", que caracterizou toda a República
a despedida de um partido e a chamada de outro são pronun­
Velha, e que só veio a receber o devido tratamento científico
ciadas pelo chefe do Estado; no presidencial, pelo próprio povo,
n� década de 1940, principalmente com a obra clássica, já
falando nas urnas."
citada, de NUNES LEAL. Abolido um órião superior que, alternan-
E continua: "Admitindo que a opinião pública seja vigo- � os partidos, dava chance a que a oposição liberal, d�aco�
rosa, independente e livre, não há superioridade de um sobre eleitorado �ois fund �da nas nossas ralas classes médias urba-
o outro desses métodos de solver o conflito dos partidos: o nas de entao, tambem compartilhasse, pela metade do tempo, \ �
chefe de Estado parlamentar não há de decretar a mutação o poder, um partido único, de base social rural, aboletou-se no
sem que o partido que está governando tenha sido derrotado governo e no Estado, e só revolucionariamente pôde ser afas­
pela · opinião e, pois, a substância da coisa será idêntica ao t�do. (V. a análise de JoÃo CAMILLO, em Estratificação . . . , op.
que se dá no presidencialismo. Mas, se a opinião for débil e c1t., passim.) . . · .
166 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 167

ções constitucionais do poder moderador, mas, antes, as naturalmente na evolução do processo político iniciado
no século XVI? 29
condições sócio-econômicas da sociedade brasileira, as
quais ainda não haviam propiciado o surgimento de co­ Em resposta a essa objeção, tentaremos mostrar que
municações mais fáceis, de populações urbanas e de um o poder moderador da Constituição de 1824 foi uma
mínimo de industrialização, sem o que nãõ· se podia forma de constitucionalização do poder estatal preexis­
formar um eleitorado independente. E, então, o poder tente formador do Brasil; um poder político-social, emer­
moderador se substituía a um eleitorado inexistente. 26 gente do mundo dos fatos, que foi transformado em
instituto jurídico-constitucional.
Em resumo: ao poder moderador não cabe a res­
Já acentuamos neste trabalho o primado do poder
ponsabilidade pelo artificialismo de nossas instituições
na formação da sociedade política brasileira. No princí­
democráticas. 27 Este decorre basicamente da precedência pio houve o poder. E o poder formou o Brasil: territorial,
havida entre nós, do Estado ao povo, do Parlamento e populacional e politicamente.
dos partidos ao eleitorado, da federação aos Estados­
Ora, a genialidade do constituinte de 1824 residiu
-membros, das escolas superiores à alfabetização e das
em ter reconhecido a realidade sócio-política desse poder
últimas novidades político-ideológicas a uma evolução preexistente formador. Mais: em ter intuído que sua
sócio-econômica correspondente. 28 Pelo contrário, ten­ missão política não tinha terminado, poi.s havia muito
tando interpretar e expressar a vontade inarticulada da por fazer: a consolidação da unidade nacional, a defesa
comunidade, de uma posição superior e independente da ordem e da liberdade, e a guarda da integridade terri­
relativamente aos interesses conflitantes, o poder mode­ torial. Enfim: em ter lhe dado uma forma jurídica de
rador tornou possível a subsistência das instituições de­ expressão, colocando-o na Lei Maior acima dos demais
mocráticas formais, apesar de as condições sociais e eco­ poderes políticos, com a nomen juris de poder moderador.
1:
1' nômicas lhes terem sido adversas. A legalização do poder estatal preexistente forma­
dor obedeceu, a nosso ver, a duas exigências: uma de
61. O fundamento histórico do poder moderador "autoridade", proporcionando ao chefe de Estado a
Mas o poder moderador, enquanto órgão político, faculdade de intervir no processo político; e outra de
teria sido uma criação cerebrina, sem raízes na história "liberdade", ao limitar essa intervenção aos casos, ccm­
do Brasil? Simples invenção da int,eligência ou se insere dições e critérios estabelecidos na Carta Imperial.
As constituições republicanas ignoraram, solene­
20 LIRA, Heitor, História de D. Pedro II, São Paulo, 1939, mente, o poder estatal preexistente formador. Isso não
'!. 2, 521 s. impediu que, revolucionariamente, volta e meia, ele con­
27 LI:MA, Hermes, "Urn Perfil de D. Pedro II", in Carta tinuasse a se manifestar; mas, infelizmente, foi o bas-
Mensal, abril/76, n.0 253, ps. 48 e segs.
29 Já alguém escreveu, há quase 20 anos: "o Poder Mode­
2s Cfr. Capítulo sobre a "Contradição entre as ideologias
políticas adiantadas e as estruturas sociais atrasadas", LAM­ rador em uma instituição muito mais livresca do que histórica"
BERT, Jacques, op. cit., p. 153. (FRANCO, Afonso Arinos de Mello, Curso, p. 94) .
168 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 169
''
tante para livrá-lo dos liames racionais da norma jurí­ 62. Poder moderador e monarquia
dica, ao capricho dos fastos revolucionários. Resultado:
Os monarquistas costumam fazer uma objeção à
continuou a ser utilizado pelos detentores do poder, mas
tese central deste trabalho: o poder moderador só seria
revolucionariamente, o que quer dizer, sem as limitações
realizável numa monarquia. Isto é, só um chefe de
do direito.
Estado hereditário e vitalício reuniria as condições de
Vamos nos permitir uma imagem. A normação pos­ neutralidade partidária indispensável a um verdadeiro
terior a 1889 destruiu o corpo jurídico-constitucional do
· poder moderador. Este seria, pois, inconciliável com o
poder moderador. Mas não conseguiu matar-lhe a alma,
princípio da eletividade de chefe de Estado, que define a
mi seja, o poder preexistente formador em sua nua e
forma republicana, porquanto toda eleição partidariza­
crua expressão político-social. Desde então, este poder
ria seu titular.
sócio-político, desencarnado da Lei, passou a vagar nos
domínios extrajurídicos da atividade política. De quando Trata-se de_ um argumento em prol da monarquia:
em vez, passou a ser invocado, revolucionariamente, somente a monarquia poderia criar um centro estável de
pelas Forças Armadas, para intervenções saneadoras poder, superior aos entrechoques eleitorais e desligado
dos desvios de nosso processo político. 30 E, a 13 de de­ do domínio partidário, agindo como fiador da síntese
zembro de 1968, ele se encarnou, também revoluciona­ entre a democracia política e os avanços sociais, entre
riamente, no Ato Institucional de n.0 5. a tradição ocidental e as reformas da sociedade exigida
O Ato Institucional de n.º 5 - frise-se bem __;. não pelo progresso. E envolve uma crítica à república, que
é poder moderador. Falta-lhe, para tanto, o corpo jurí­ seria incapaz de neutralizar partidariamente o centro
dico-constitucional adequado, destruído em 1891. Este do poder, com as conseqüências negativas daí advindas.
Ato, na verdade, consiste num instrumento revolucioná­ Curiosamente, alguns republicanos extremamente
rio, que incorpora o substrato sociológico do poder pre­ apegados ao modelo presidencialista da tripartição dos
existente formador. Não é o poder moderador repetimos. poderes, inimigos do poder moderador, no afã de com�
Mais parece - perdoem-me o símile - a sua "alma bater a idéia de um poder moderador na república, não
penada". se constrangem em apelar para o argumento monár­
quico. Realmente - dizem eles - os monarquistas têm
30 Parece dever-se a EUGÊNIO GUDIN a vulgarização da
razão: · o poder moderador só pode existir numa monar­
idéia de que, na República, as Forças Armadas passaram a
exercer de fato o poder moderador que, no Império, o Impera­ quia. E, como nos é impraticável voltar à monarquia -
dor exercia de direito. Essa conclusão, de alguma forma, é todos queremos preservar a república -, não há porque
aceita hoje com bastante generalidade. Foi a razão pela qual pensar em estabelecer no Brasil um poder moderador. 31
AI.FRED STEPAN escolheu a palavra "moderador" para o seu
padrão de relações entre civis e militares de 1945 a 1964 (Cfr.,
STEPAN, Alfred, op. cit., p. 52). Ao analisar a presença militar 31 Cfr. Assis BRASIL, op. cit., p. 132-133, onde se lê essa
na política, LAMBERT usa da expressão "poder moderador" (LAM­ afirmativa: "Uma república, pois, nunca será verdadeiramente

r
BERT, Jacques, op. cit., p. 301). parlamentar" (p. 132).

414 - 12
r
1
170 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 171

Essa pretendida incompatibilidade entre república -, ou por um outro colégio eleitoral não muito nume­
e poder moderador, cunhada pelos monarquistas, não ; roso, distinto dos três poderes políticos e constituído
pode ser invocada, por republicanos, contra o poder mo­
f

mais longe das injunções político-partidárias.


derador, eis que acaba voltando-se contra a própria re­ Enfim: se - como querem alguns presidencialistas
pública. 32 Se nas repúblicas não fosse possível delimitar clássicos - é impossível, por via de eleição, escolher
uma área suprapartidária onde se processe a combina­ alguém para vivenciar, com imparcialidade, apenas a
ção da democracia política com as conquistas sociais chefia de Estado, de que modo será possível eleger
(solidarismo ou "socialismo"), chegaríamos ao absurdo alguém para ser, ao mesmo tempo, chefe de Estado e
inaceitável de a "social democracia" tornar-se um privi­ chefe de governo?

i
légio das monarquias.
Com efeito, fora dos radicalismos monárquico e pre­ 63. A fiscalização do poder moderador
sidencialista, nada obsta a que também as repúblicas
façam da chefia de Estado um poder moderador, com Não há como esconder que o poder moderador -
atribuições mais ou menos extensas, conforme requei­ gão a ser dirigido por seres humanos - esteja também
ram o estágio evolutivo da sociedade e os compromissos jeito a falhas, erros e abusos. Então, para prevenir tais
do consenso. Isso não é difícil, como demonstra a expe­ situações passíveis de ocorrer também com tão elevado
riência atual da maioria das repúblicas parlamentares, poder, não seria o caso. de deixar a estruturação política·
desde que se adote unia fórmula de preenchi,metito do nos termos em que tem. sido p:i:evista em nossas consti­·
cargo que o liberte, o mais possível, de partidarismos pre­ . tuições republicanas, com os três poderes políticos num
cmiéebidos. 33 mesmo plano de igualdade e independência? 34
· · Comó já indicamos no capítulo anterior, a eleição U:i;na reflexão sobre o importante problema da fisca-
dita "direta", por todo o eleitorado, nos parece a menos lizaçJ�o e do controle do poder político vai nos ajudar
indicada, pois favorece, demasiadamente, a identificação no deslinde dess.a dificuldade. Trata-se de um aspecto
dos candidatos com os partidos que os apóiam. O mesmo da ,problemática que envolve a célebre questão de "quem
já não se pode dizer da eleição pelo órgão da representa­ guarda o guarda". 35 De fato, existe uma área superior
ção política - desde que exigido um "quorum" qualifi­
34 É o argumento de BARBALHo: "Mas tal criaç§,o (do
cado de votos (maioria absoluta ou 2/3 de votos da Casa) poder moderador) era uma concepção que acusava dificuldade
do problema da constituição orgânica dos poderes divisos e
32 "Realmente o argumento provaria demais. Seria reco­ contrapostos; mas não o resolvia e em nada aproveitava, desde
nhecer a incompatibilidade da república com os mais perfeitos que esse fis13al dos outros poderes ficava sem fiscalização. Quis
mecanismos democráticos... Concluiríamos (com esse argu­ custodiet custodem? (BARBALHO, João, Constituição Federal
mento) que a democracia é característica das monarquias e não Brasileira (Comentários), Rio, Briguiet Editores, 1924, 2.ª ed.,
das repúblicas". (PILLA, RAUL, Catecismo . . . , p. 54). p. 15). Aliás, está em BARBALHO a denominação do poder mode­
33 MINON, Miguel Herrero de, admite - suas pesquisas a rador como "excrescência" (op. cit.).
revelaram - a possibilidade prática da eleição do chefe de s5 A proverbial indagação está nas Sátiras de Juvenal
Poder Moderador (op. cit., p. 139 e ss.). trc� (Lipson, Leslie, op. cit., p. 109).

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A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL i73
172 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

de ação dos órgãos políticos mais altos que se revela, na moderador, órgão, ademais, sem atribuições político­
prática, insuscetível de controle efetivo. Quem fiscaliza -partidárias de governo, propicia, por ser um só o órgão-
o fiscal? Se criarmos, para essa tarefa, um fiscal supe­ -chave, o estabelecimento de um sistema mais eficiente
rior, quem fiscalizará o fiscal do fiscal? de cautelas que visem, por via indireta, condicionar sua
atuação sempre para o bem comum. 36
Nesse ponto parece residir a contingência de todas o presidencialismo, de poderes tripartidos, onde o
as formas de organização dos poderes. Por mais aperfei­ chefe de Estado é, na prática, irresponsável ( o im­
çoada e cuidadosa que ela pretenda ser, haverá sempre peachment não funciona), 37 estende essa irresponsabi­
um "ponto cego" infiscalizável e incontrolável, mesmo lidade às atividades político-partidárias de chefia de go­
quando se tratar de comunidade forte e consciente de �. verno, que também estão afetas àquele mesmo e único
seus direitos face ao Estado. Talvez aqui se encontre órgão. Já no parlamentarismo que sugerimos, a irres­
a prova mais cabal da imperfeição das sociedades huma­ ponsabilidade prática do chefe de Estado terá conse­
nas no campo do político e que radica, afinal, na imper- qüências menos negativas: não alcançará a chefia de
feição do próprio homem: não existe forma de governo governo, entregue a órgão distinto e, hierarquicamente,
cptrfeita, pois é materialmente
. .impossível criar um sis­ inferior.
v tema absolutamente llvre de crises, de abusos e de con­
?· 1

--J· 1�
�,flitos. Por melhor estruturada que seja a organização 64. A missão do poder moderador
política, sempre haverá um campo onde a vontade dos
dirigentes prevalece livre dos mecanismos de controle, Os historiadores, em geral, reconhecem a obra civi­
lizatória realizada pelo poder moderador durante o Im­
à para o bem ou para o mal. A missão dos modeladores de
"' ·"· � instituições políticas, assim, não consiste em buscar uma pério, no caso, sob a forma monárquica. Fez a unidade
1 � forma de governo perfeita, mas a. menos imperfeita, ou nacional 3s - o mais consagrado dos seus títulos -,
tomou possível o funcionamento de instituições liberais
� seja, aquela que, reduzindo ao mínimo possível a esfera
l:l,
:,.,_. numa sociedade praticamente feudal e proporcionou à
de conduta política irresponsável, possa, ainda, oondi- comunidade um clima de ordem, segurança e paz .
,.,
� · cioná-la ao bem comum, através da previsão de cautelas Mas hoje restaria, ainda, algo por fazer, ou sua
e de conciições adequadas. missão se esgotou com o fim do Império? 39
�" Cumpre, então, questionar sobre o que é menos im-
1 3o "As atribuições do poder moderador são de natureza
.� � perfeito: três poderes políticos na prática irresponsáveis, tal que um abuso, quando se quisesse admitir que abuso pu­
face à ausência de um poder superior de controle e fis­ desse ser cometido, não seria tão fatal aos interesses nacio­
- calização (e, mais, situados, como já se analisou, em po- nais ... (RODRIGUES, José Carlos, Constituição Política do lmpé­
sição geradora de conflitos aos quais não se dá solução rzo ·ão Brasil Rio, Editores Laemmert, 1863, p. 69).
:i·/ v. a' notável monografia de BROSSARD, Paulo, O lm­
� legal)? Ou reduzir essa irresponsabilidade prática do pedc'hment, Porto Alegre, Livraria do Globo, 1965, passim.
poder supremo apenas ao órgão da chefia de Estado? · 38 JAGUARIBE, Hélio, Desarrollo Económico y Desarrollo Po­

Nesse quadro, parece menos ruim a última forma: líticb, Buenos Aires, EUDEBA, p. 149. (1973, 4.ª ed.).
39 Idem, ibidem, p. cit.
além de restringir a área da irresponsabilidade ao poder
174 CEZAR SALDANHA SOUZA. JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 175

Temos razões para crer que, ao poder moderador, experiência diária, assistimos ao desvio de parcela pon­
mesmo fora dos quadros clássicos da monarquia, in­ derável da inteligência e dos esforços da comunidade
cumbe um papel insubstituível no atual momento histó­ para os problemas políticos institucionais, que já deviam
rico: o de presidir a uma evolução política, econômica ter sido resolvidos há muito tempo. O equacionamento
e social do Brasil, que pretenda manter-se fiel a nossa dessas questões básicas da nossa organização política
vocação ocidental fundada nos valores permanentes do permitiria que concentrássemos, na batalha pelo desen­
p.umanismo personalista cristão. volvimento, todas as energias e todo o tempo hoje útili­
Assim, no plano político, como se viu nesse trabalho, zados - ou desperdiçados - nos combates, lutas e
o poder moderador p(?de contribuir, e muito; na cada discussões decorrentes desses desajustes·de
· · ordem mera-
vez mais urgente tarefa de construção de uma democra­ mente instrumental.
cia política de bases mais estáveis. 4º Neutralizando par­ No plano da justiça, especialmente a social, não
tidariamente o poder supremo garantidor da ordem, da será menor a importância do poder moderador. As refor­
liberdade e da segurança, possibilita que o poder de go­ mas sociais e econômicas tornam-se muito tumultuadas
verno seja conquistado pela oposição ou pelo partido quando, num mesmo órgão, misturam-se os objetivos de
que ganhar as eleições parlamentares, sem quebra da governo e os objetivos de Estado. Isso porque fica mais
continuidade do regime democrático. Se isso se conse­ fácil, quer aos inimigos das reformas, como aos inimigos
guiu no segundo reinado, hoje não será tão difícil: do regime democrático, semear a confusão entre o
apesar das conhecidas deficiências, já há um eleitorado status quo econômico�social (matéria de governo) e o
e os partidos já encontram pontos de apoio na sociedade. conjunto dos valores básicos da democracia (matéria de
No plano do processo de desenvolvimento, o poder Estado) : os primeiros, para impedir as reformas em
moderador atende à necessidade de uma certa continui­ nome da democracia; e os outros, para destruir a demo­
dade na condução de sua estratégia, minimizando a cracia em nome das reformas. O poder moderador, sig­
tendência dos governos em anular a política dos ante­ nificando a separação da chefia de Estado, partidaria­
riores para começarem outra, que, por sua vez, há de mente imparcializada, da chefia de governo, faz bem
ser renegada pelos posteriores. Por outro lado, como ex­ mais tranqüilo o encaminhamento das reformas econô­
pressão nacional suprapartidária, opera como um cana­ micas e sociais, pois o regime democrático dificilmente
lizador das energias da comunidade para a realização será envolvido e entrará em questão. 41 Explicando me­
das metas fundamentais a serem alcançadas. Em nossa lhor: as alterações do status quo econômico e social hão
de variar conforme a evolução da realidade e da opinião
político-partidária e serão questões afetas ao governo e
10 Propõe JAGUARIBE: "O regime (atual do Brasil) necessita aos partidos que o apóiam ou que lhe movem oposição;
assumir sua realidade, durante e para os fins do período de já a preservação dos valores fundamentais do convívio
transição, regulando o Poder Moderador, eventualmente sob a
forma de um Conselho de Estado, e dispondo sobre suas atri­ 41 "Aliás, é preciso que se saiba que homens se pegam,

I
buições". (JAGUARIBE, Hélio, Brasil, Crise e Alternativas, Rio, de preferência, por palavras. Uma reforma profunda, mas obje­
Zahar, 1974, p. 111.) tiva, resolvendo problemas concretos, deixando de pé as estru-
176 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

democrático permanecerá acima de discussão, ao nível


do que há de mais genérico e estável na sociedade polí­
tica e afeta diretamente à chefia de Estado - órgão do
poder moderador.
O poder moderador, no Império, cumpriu, afinal,
seu papel num Estado liberal, como o organizado pela
CAPÍTULO III
Constituição de 1824: garantiu a unidade do corpo polí­
tico, as instituições liberais e o Estado-de-direito. Na
República, poderá ajudar a construir o Estado social­ AS REFORMAS COMPLEMENTARES
-democrático, em que a justiça social se faz, cada vez
mais, uma realidade efetiva, sem o sacrifício dos valores 65. A organização partidária
da democracia ocidental. Aliás, não devemos esquecer
que, no Império, foi o poder moderador, como instituição Entendemos que a reforma das instituições políticas.
política a mais independente da opinião partidária e dos brasileiras tem de começar pela Presidência da Repú­
grupos sociais dominantes, quem levantou, num meio blica e divisão do poder. Somente depois de obtido um
político escravagista; o tema da libertação dos escravos, consenso sobre a melhor forma de estruturá-las é que
conduzindo-o até a Lei do Ventre Livre, e quem provo­ se deve tratar das reformulações partidária, eleitoral e
cou, em 1888, a abolição imediata: e, até 1930, o nosso federativa, capazes de se ajustarem à reforma principal.
calendário das conquistas sociais ainda marcava 13 No ponto de partida, nos definimos pelo sistema
de maio ... 42 parlamentar. E este, como mostra a experiência, funcio­
na mais adequadamente quando acoplado com o dua­
42 "A verdade sociológica sobre o advento da República lismo de partidos. O multipartidarismo, ao contrário,
é outra: movimento reacionário para evitar o "socialismo" dos tende a instabilizar o sistema parlamentar. Não s,e pen­
estadistas jovens do Império". (PONTES DE MIRANDA, op. cit.,
V. III, p. 384.) se, porém, que dualismo partidário ou bipartidarismo
signifique literal e rigidamente a existência de apenas
turas gerais, conservando a ordem de valores tradicionais, dois partidos - como ocorre hoje no Brasil. O dualismo
costuma geralmente passar sem protestos. O slogan é o pior não implica necessariamente na proibição de que vários
inimigo da reforma. Cria, geralmente, o medo da mudança partidos concorram às urnas; e, sim, numa estrutura­
na ordem geral dos valores - os homens não se importam
que seus modos de vida sejam alterados: querem que as pa­
ção que possibilita, a somente dois partidos, condições
lavras sejam mantidas nos seus velh,os significados ... (TORRES, efetivas de acesso ao poder.1
J. e. DE o., Natureza e . .., p. 30) . A idéia de um sistema de A principal virtude do bipartidarismo, e que o leva
domínio do Parlamento (sistema de assembléia ) , por · outro a afinar-se com o parlamentarismo, 2 é a de tornar
lado, é considerada por alguns como condicionante de conser­
vadórismo sócio-econômico, por um pretendido "caráter con­
servador dos Parlamentares, em decorrência de sua composição."
1 BONAVIDES, Paulo, Ciência Política . ..' p. 450.
· ·
(DAÚ:,ARI, Dalmo de Abreu, o Renascer, p. 162.) 2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso . .., p. 126.
178 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 179

possível um governo estável. Qbipartidarismo automa ­ esta belece um mecanismo endopartidário espontâneo de
ticamente gera uma., maioria :e,arlamentar apta a su_.§­ contenção dos radica lismos. Com efeito, gs exaltados
tenta r um governo e, ao mesmo tem�o, unifica a opo- de ambos os lados serão, ainda que indiretamente, po:.
. sição, o;portunizando-lhe_], tõníãda do poder guango liciados por suas alas mais moderadas,_o que favorece
.ocorrer a primeira guinada eleitoral. De qualquer modo, bastante a harmonia e a modera ção políticas, indispen­
o partido que ganhe as eleições terá ma ioria pa ra go­ sáveis à plenitude da democracia instrumental.
vernar, ,independentemente de foncessôes a interesses) Já o presidencia lismo, a o contrário do parlamenta­
fü'íenores) que podem se impor nas coligações e nas rismo, só poderá funcionar, sem maiores problemas,
alianç as. O multipa rtidarismo, em 'virtude das iµmita­ onde inexistirem partidos políticos, ou onde eles forem
das combinações que admite, torna imprevisível a com­ demasiadamente fra cos em virtude da sua exagerada
posição de um governo e instável a sua permanênc.ia no multiplica ção, ou ainda onde forem meras máquinas de
poder. 3 Não nos esqueçamos que, no Brasil, o atua l conquista do poder, sem qualquer conotação ideológica ,
bipartidarismo não surgiu de teorias a bstratas, más de ou enfim onde - pelo menos na prática - imperar um
uma necessidade pr:ática: oferecer ao Presidente Castello partido único. 4 É que a existência de partidos políj;icos
Branco maiorià estável no Congresso, com a qual pu­ de massa , organizados e fortes, máxime quando em
desse governar, já que a multiplicidade dos partidos não número de dois, agrava ao paroxismo as contradições
favorecia a aprovação, pelo órgão legislativo, de seu latentes na cumulação, no mesmo órgão, das chefias de
plano de soerguimento econômico do país. E a mesma Estado e de governo, c omo já estudamos na terceira
necessidade que, a título provisório, exigiu o bipartida­ pa rte, secção primeira. Não deve, pois, causar espécie
rismo em 1965 preservou-o até hoje. o fato de os velhos teóricos do presidencia lismo entre
Além dessa v antagem, o bipartidarismo apresenta , nós revelarem-se ferozes inimigos dos partidos políticos,
em confronto com o multipartidarismo, m ais duas, de instituições que julgavam próprias do parla mentarismo
alguma forma encontráveis na espécie que estamos ex­ monárquico. 5
perimentando no Brasil há pouco mais de dez anos. Em
4 Sobre a dificuldade de um sistema de partidos ideológi­
primeiro lugar, o dualismo permite ao eleitorado alterar
cos, ou bipartidário, no presidencialismo, ver João Camillo
ele mesmo as situações políticas, votando na oposição. Harmonia Política ..., pp. 250-251.
.Na multiplicidade partidária, onde houver quatro, cinco 5 Além de Assis BRASIL, que mesmo assim não via mal
ou ma is forças, .� forma ção do gabinete não decorrerá. nenhum no predomínio de um só partido no poder por muito
..diretamente do voto. popular, mas dependerá de um ·tempo, todos os demais teóricos do presidencialismo eram aves­
sos aos partidos políticos, como, por exemplo, os positivistas
.acordo inter;eartidário posterior ao plei�, onde o.s pe­ Carlos Peixoto Filho e João Pinheiro. (ASSIS BRASIL, op. cit.,
quenos pa rtidos - com as suas conveniências - terão
p. cit.; TORRES, J. e. o., Presidencialismo, p. 220 e 221; Idem.
enorme poder de barganha. Em segq.ndo lugar, numa Formação do Federalismo no Brasil, São Paulo, Cia. Editora Na­
época de marcado tono ideológico, o bipartida rismo cional, 1961, p. 223 e 224; DUARTE, Manoel, Carlos Peixoto e seu
Presidencialismo, Rio, Tip. do Jornal do Comércio, 1918,
s Idem, idem, ps. 125 e 127. p. 26 a 39).
180 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 181

E essa é uma das contradições do sistema político Ora, não houve em nosso passado rupturas ou
brasileiro vigente: a combinação entre um bipartidaris­ condições especiais que determinassem o surgimento de
mo rígido e o presidencialismo. Isso mostra que, em partidos "históricos" (p. ex., de católicos, de protestan­
matéria de organização política, somos muito pouco tes, de separatistas etc . .. ), que permanecessem no
conseqüentes. Na verdade, ou optamos pelo presidencia­ tempo pela tradição, fazendo impossível a assimilação
lismo mesmo e, então, rejeitamos o modelo da "demo­ das correntes políticas em duas organizações partidárias
cracia pelos partidos" - do qual o bipartidarismo predominantes. A história do Brasil, desde o Império,
rígido é a espécie a mais radical - ou, se realmente demonstra existir, também entre nós, essa tendência
optamos pelo bipartidarismo, tenhamos a corage� de natural, observada pelo mestre francês, 8 ao dualismo,
adotar o sistema parlamentar. Na verdade, a conv1ven­ A
ou seja, de agruparem-se as forças políticas em duas
cia hoje entre o bipartidarismo e o presidencialismo só frentes: a dos que defendem e a dos que combatem o
se mantém porque o Presidente da República - en­ governo. Os exemplos são muitos: conservadores X li­
quanto chefe de uma revolução - está armado de berais, no Império; PSD X UDN, no Brasil em geral,
poderes supremos de arbitragem, o que, em certo sen­ após 1946; republicanos X federalistas e, mais tarde,
tido, instituiu, camufladamente, um "parlamentarismo.
PTB X PSD, no Rio Grande do Sul.
de fato".
Nossas estruturas sócio-econômicas, igualmente, não
o que torna o bipartidarismo entre nós antipático são daquelas que tendam a desaguar no multipartidaris­
e assim resistente a uma aceitação mais ampla e gene­ mo. No Brasil, até 1930, tivemos basicamente duas
ralizad�, são os critérios legais rígidos da Constituição forças sociais: as classes senhoriais rurais (normalmen­
e da Lei Orgânica dos Partidos, destinados a conter, de te a base social do partido conservador do Império) e as
cima para baixo, a proliferação partidária. 6 Essa rigi­ classes médias urbanas (base social do partido liberal).
dez legal é que precisa ser, pelo menos, sensivelmente Era o censo, relativamente elevado da Constituição de
atenuada. Mas aí se põe, realmente, a questão: pode­ _1]24, que equilibrava o eleitorado em favor dos liberai.a. 9
mos ter bipartidarismo sem uma quase compulsoriedade os guais, com o açlvento do sufrági<Luniversal e a aoo­
legal da cúpula para as bases? liçã.o do wçle:r- !llOd�rador, fo�m,. duqtp.te _ � �pú�a
Duverger vê quatro grupos de fatores a condicionar, V..elha, literalII1ente esmagados pela máqui�itoJJ!:_l
numa sociedade política, o aparecimento de um biparti­ .do coronelisrn,,2,i. estabelecendo-se, assim, o domíni9J>J>.=
--====="""'=��-==-- �- -"-..-- -""- ,�-..�·
darismo - diríamos nós - espontâneo, ou de baixo
pàra' cima: fatores históricos peculiares a cada socie­ s Idem, idem, p. 250.
dade, sócio-econômicos, ideológicos e técnicos. 7 o o fato de a Constituição do Império exigir do eleitor uma
determinada renda anual para que fosse eleitor, beneficiava
, ' ll , Entre eles coloco as condições para a criação de novos o partido liberal. Este, cuja base social era, em princípio, as
partidos, o instituto da fidelidade partidária, o voto vinculado. classes médias urbanas, podia equilibrar-se com o partido con­
servador, que, forte nas áreas rurais, a maior parte de seus
'1 DuVERGER, Maurice, os Partidos Políticos, Rio, Zahar,
possíveis eleitores não alcançava o censo constitucional (NUNES
1970, p. 239-240. LEAL, op. cit. passim) .
182 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 183

�jca das classes senhoriais. De 1930 para cá, os fatores �e para princípios abstratos de doutrin� Temos já,
sócio-econômicos parecem, também, desenhar dois cam­ até aqui, mais da metade do necessário a um bipartida­
pos políticos: um campo mais "conservador", de base rismo espontâneo ...
rural, com apoio nos estamentos economicamente mais Restam os fatores técnico-político, também impor­
bem situados da sociedade, e outro campo de cunho tante no condicionamento do bipartidarismo ou do mul­
"trabalhista", fundado no eleitorado urbano, entre o tipartidarismo, e estudados carinhosamente por Duver­
operariado e a baixa classe média. ger: os sistemas eleitorais. Veremos a seguir como uma
Quanto aos fatores ideoiógicos, cumpre lembrar um simples reforma eleitoral pode conduzir o nosso sistema
dos traços mais típicos do caráter brasileiro e que Fer­ partidário a um bipartidarismo natural, espontâneo e
nando Carneiro chamava de "falta de convicção". 10 É flexível, sem se precisar recorrer a uma legislação rígida
esta falta de coerência do brasileiro, observável por que o imponha, artificialmente, de cima para baixo.
exemplo em religião e em política, decorrente, a nosso
ver, do ceticismo - quase desconfiança - com que en­ 66. O sistema eleitoral
caramos os sistemas de idéias prontos e absolutos, pelos
quais os homens devam até, se for o caso, matar ou Duverger mostrou que sistema de partidos e 'Siste­
morrer. O brasileirp descrê da existência de um mundo ma eleitoral são duas realidades indissoluvelmente liga""
j.e.s' idéias, da razão== ou da l?;ur.a abstração, para crer na das, o.escrevendo, de forma hoj� clássica, a inflq.ência
_vida; nos sentimentos, nas concrecões - ainda quando da. foi:ma de escrutínio sobre o número e a caracteriza�
rêvestidas do "manto diáfano da fantasia". Ao lado de ção. dos partidos. 12 ,Assim, a representação proporçjf}Jia�
co.n:�eqüências negativas facilmente perceptíveis, i .�sse (o si�tema eleitoral "em que ·os lugares a preencher são
a:S: ecio d� psicologia do brasileiro traz re tado p,asi:- repartidos entre as listas . disputantes proporcionâlmen.�
-tivos em pou 1ca: a rejeição dos radicalismos e dos �x� te ao número de votos que hajam obtido", "de moq.o·,�
t!imismos; o espírito de conciliação; o desamor P§lós assegurar às diversas opiniões, entre as quais se repar­
princípios ideológicos enquanto tais; a preferência maioi:, tem os eleitores, um número de lugares proporciorial às
,JlO·exerCÍCÍO do voto, p€10S homens do que pelos progra­ suas respectivas forças") 13 tende a estabelecer um 'sis.:.
pla,s° de idéias; e mn2 relativa facilida�e em mudar de tema de partidos múltiplos, independentes e estáveis.
gpinião, ae.:'"p:utido etc,. . . .Isso tudo, afinaL acaba J!l,� Jj o sistema majaritár�eu.resen.taçãQ, também Co­
vorecendo - p&a o_ bem Eª democracia - a formaç_ã..o nhecido no Brasil com o nome de sistema de '�o
:de partidos nãg_ ideológicos e voltãd��-màis iii!:��­ distrital" (pelo qual se divide o território eleitoral �
tantas circunscrições eleitorais quantos forem os lugares
cessidades políticas 11 concretas do homem em socieda,<:le,
ou mandatos a preencher, sendo eleito, em cada circuns­
10 CARNEIRO, José Fernando, Psicologia do Brasileiro e crição, o candidato que obtiver o maior número de vo-
Outros Estudos, Rio, Livraria Agir Editora, 1971, ps. 50-52.
11
Sobre as "necessidades políticas" V. TORRES, J. e. O.,
12 DUVERGER, Maurice, Partidos . .. ' p. 241.
Harmonia..., ps. 245-247. 13 BONAVIDES, Paulo, Ciência... , p. 297.
184 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 185

tos), 14 especialmente quando a eleição se faz mediante Qra.. aí está maiis uma de nossas incoerências polí­
um turno único e decisivo, tende a produzir um sistema ticas· 12reterule-se conciliar_o bi:gartidarisrrÍ.o com _ a
partidário dualista, com alternância de grandes partidos �resentação prop�rcio�al! Se é sincera a nossa opção
independentes. pelo dualismo partidário, temos que partir para um
Não é difícil de compreender o mecanismo gerador sistema de voto distrital. Se, porém, quisermos conservar
dessas duas tendências opostas. Na representação pro­ o sistema proporcional em toda a sua pureza, não pode­
porcional os votos são computados em primeiro plano à mos continuar illlsistindo com o bipartidarismo, pois
nessas circunstâncias ele só será factível mediante a
legenda (ao partido) e, somente num momento poste­ rígida imposição legal, de cima para baixo, que temos
rior, ao candidato; a&.sdm, nenhum voto é perdido, pois, hoje.
ainda que insuficiente para eleger determinado candi­ Como nos decidimos neste trabalho pelo parlamen­
dato, vai engrossar a votação do partido a que este tarismo, o sistema de partidos mais indicado para com
pertence. Na representação distrital, vota-se direta­ ele se compor é o do bipartidarismo, o qual, para reali­
mente no candidato à vaga a ser preenchida e, secun­ zar-se de forma espontânea e natural, pressupõe, como
dariamente, na legenda, de modo que, se o candidato vimos, um sistema eleitoral em bases majoritárias. Isso
não for eleito, os votos são perdidos tanto em relação revela que uma reforma política não pode ser casuísta,
ao candidato, como em relação ao partido. Por isso, a respondendo apenas a aspectos parciais do sistema po­
representação proporcional, valorizando em termos de lítico global.
legenda a todos os votos, conduz à proliferação dos par­ Na verdade, numa análise objetiva, os dois sistemas
tidos, ao passo que à votação distrital, valorizando ape­ eleitorais apresentam vantagens e desvantagens farta­
nas os votos vitoriosos em cada distrito, força a ttgluti­ mente estudadas pelos politicólogos. As vantagens que
nação dos eleitores em dois pólos, efeito esse que vai se apontam à representação proporcional têm, em geral,
Jefletir-se na dualidade de partidos. um cunho mais teórico: seria o sistema eleitoral mais
No Brasil tem vigorado, desde a reforma de 1934, o justo, pois, nele não havendo voto perdido, o resultado
sistema de representação proporcional. Confirmando a da eleição acabará exprimindo com proporcionalidade as
lei de Duverger, esse sistema eleitoral, posto efetiva­ diversas opiniões políticas existentes no seio da comu­
mente em prática a partir de 1946, provocou um sistema nidade, conferindo, destarte, representatividade às mi­
de partidos múltiplos. Doze eram, em 1965, os partidos, norias. Ao sistema do voto distrital imputam-se vanta­
quando sobreveio o Ato Institucional de n. 0 2 que os gens de cunho mais prático: @cada distrito em que
extinguiu. 15 Foram então criadas as duas organizações se divide o território eleitoral teria necessariamente o
partidárias atuais, mantendo-se, todavia, o sistema elei­ seu representante, o que nem sempre acontece na re­
toral. presentação proporcional; @a decisão do eleitor seria
mais consciente, emprestando assim mais autenticidade
H Idem, idem, p. 294. à representação, porque tomada em um círculo eleitoral
l5 SCANTIMBURGO, João de, Tratado ..., ps. 148-149. à sua medida, onde se torna possível um conhecimento
414 -13
186 CEZAR SALDANHA Souza JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 187

mais próximo e direto dos candidatos, fato esse que tência: a do poder central A forma federativa, ao
muitas vezes não se dá no sistema proporcional, visto contrário, caracteriza-se pela coexistência, na mesma
como o candidato, conforme a sua disponibilidade eco­ sociedade política, de duas ou mais ordens de poderes
nômica, pode buscar votos em todo o território eleitoral· autônomos, dotados de competência legislativa, admi­
@o eleitor vota diretamente no candidato, elegendo-� nistrativa e financeira própria estabelecida em uma
ou não; na representação proporcional, o voto cedido a Constituição que esteja acima do poder ordinário de
um candidato de nossa confiança, que pode nem ser legislar. 17
eleito, irá aproveitar a outros candidatos, os quais talvez A federação ressurgiu na história moderna das ins­
não quiséssemos ver como representantes - trata-se o tituições políticas, coerentemente com a origem etimo­
sistema proporcional, no fundo, de uma forma de elei­ lógica do termo (do latim, foederatio, que significa
ção indireta. "aliança", "união"), como uma fórmula jus-política para
Cbntudo, o que deve realmente importar na opção unir Estados independentes, ·que renunciam a sua sobe­
por um ou por outro dos sistemas eleitorais é a consi­ rania para constituírem um novo Estado, preservando,
deração do conjunto do sistema político que se pretende no entanto, uma esfera autônoma de competência po­
ver instalado no País. Se queremos continuar com o lítica assegurada no pacto constitucional. Assim nasceu,
presidencialismo, que estamos sem sucesso tentando em 1787, a federação norte-americana, com o nítido es­
praticar desde 1891, o melhor é a opção pelo sistema de copo de unificar ou de agregar, em torno de um governo
partidos múltiplos e, conseqüentemente, pelo sistema federal comum, Estados antes separados.
eleitoral da representação proporcional. Se, no entanto, Com o tempo, o ideal de federação foi se difundindo_
estivermos dispostos a mudar nossa organização política e mesmo Estados já unificados foram tentados a ver na
para uma forma de parlamentarismo, o mais adequado fórmula federativa uma solução a ser adotada visando
é o dualismo partidário e, portanto, um sistema eleito­ à descentralização político-administrativa em bases ter­
ral majoritário de turno único, ainda que se faça, quanto ritoriais. 18 Em alguns casos, chegou-se até a querer
ao último, algumas concessões ao princípio da propor­ imitar o tipo clássico de federação. Esse o caso do Brasil
cionalidade, na linha do que vige na Alemanha Oci­ que, em 1891, numa alegada busca de descentralização,
dental. 16 seguiu o mais que pôde o tipo de federação criado nos
Estados Unidos.
67. A forma de Estado Foge aos propósitos deste trabalho o estudo dos in­
trincados problemas políticos e jurídicos que afetam as
Unitarismo e federalismo são as formas clássicas de federações em geral e, em especial, a brasileira, mor-
distribuição territorial do poder em uma sociedade po­
lítica. A forma unitária é aquela em que, ao nível da 11 DuRAND, Charles, El Estado Federal en el nerecho Po­
Constituição, há apenas urna única esfera de compe- sitivo, in El Federalismo, Madrid, Editorial Tecnos, 1965, p. 180.
1s Sobre a distinção dos dois tipos básicos de federalismo

--
16 CoTTERET, Jean-Marie, Les Systemes Électoraux, Paris, (por agregação e por segregação) ver FERREIRA FILHO, M.G., A
PUF, 1973, ps. 81-83. Democracia... , ps. 112-113.
188 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 189

mente numa época de intervenção do Estado e de pla­ ficação superior dos Estados-membros ou das Províncias
nejamento econômico cada vez mais acentuados, bem - está misturada de forma indissociável com o governo
como de intensa expansão dos meios de comunicação federal ou central. Essa circunstânci a de estarem con­
social, arrasadora das barreiras internas de uma socie­ fundidos, no centro do poder, o aspecto n acional ou
dade. Por isso nos limitaremos a tocar apen as alguns global da União, com o seu aspecto governamental-fe­
aspectos do relacionamento entre forma de governo e deral, tem gerado uma "ditadura" deste sobre aquele.
forma de Estado. Ou sej a, no presidenci alismo, o aspecto "governo-federal"
Diga-se de início, que não mais subsiste hoje a ar­ empolga e domina a União, inclusive naquilo que ela
gumentação teórica referente a uma pretensa incompa­ tem de nacional (ou seja, de "iransfederal" e de "trans­
tibilidade entre federação e parlamentarismo. 19 Os estadual"). O que isso produz não é difícil de co�
exemplos bem sucedidos de federações parlamentares tatar: um predomínio cada vez mais sufocante do gQ:
como, por exemplo, a Alemanha Ocidental, Canadá e
, verno federal sobre as autonomias locais e a imposição
Austrália, desfazem qualquer interesse da discussão, que
já teve alguma importância em nosso meio. de uma política centralizadora a toda a comunidade.
E neste momento de preocupação quanto à sorte da No parlamentarism?,$"cialrueq,te aquele de poder
federação no Brasil, devorada por um centralismo cada moderador explícito, distinguem-se =bem claramente'
vez mais absorvente, é importante mostrar que a fe­ "essas duas faces da União: _,sua face . nacional (isto é,
deração, qu ando as§.Og?AA; ao 2stema _parlawentar, ga­ "transfederal" e "transestadual"), que é t ambém su­
<nha mais em descentralização do gw.:se combinada ªº" pr apart!!lária e supra-regional, vinculada_à chefja dç__
12resid�ciaJisÍÕ.o (assim, por exemplo, o Canadá e a "Estado· e sua face overna tal-federal, li à che­
Austrália, relativamente ao Brasil). Aliás, o fenômeno cfia de gmrerno. Essa transcendência da nião enquanto
é observável também nos Estados unitários: o presiden­ elemento de unificação superior,)ivre do contrw�ver­
cialismo tende a levá-los à centralização (por exemplo, namental-federal, tende a ser,,. um _Eonto de "ª'poio e .J!e
os Estados unitários l atino-americanos, em geral); o :W:rantia às aütonomias..-::-locais diante .do _governo �­
,
parlamentarismo, à descentralização (por exemplo, os jial-21 _Am;t)-se, no vértice superior""êía sociedade pohtica,
Estados unitários europeus como a Itália, França uma área neutra no tocante ao cg11vívio federati�o,
etc ... ). 20 .criando-se um a espécie de nistância suprema que previ-
Tal tendência, a nosso ver, teria uma explicação.
_.No ;presidencialisl!lo a. União - enquanto traço de uni- 21 Discursou Nabuco na Sessão de 8 de agosto de 1888:
"Ora, eu pretendo e digo que apenas com o laço monárq�ico
19 Quem primeiro levantou a pretensa incompatibilidade entre elas, as províncias do Império teriam maior (muito maior)
entre Parlamentarismo e Federalismo foi Assis BRASIL, op. cit., proteção e muito maior garantia para o desenvolvimento da
p. 133-146, e não Ruy como se diz, normalmente (PILLA, Raul, sua autonomia, do que se fossem organizadas sob a forma repu­
Presidencialismo ou Parlamentarismo, op. cit.) . blicana, porque necessariamente pelas lutas e competições pro­
20 Esse fenômeno é tocado por TORRES, J. C. Oliveira, For­
vinciaís a república tenderia a ser unitária ... " (PILLA, Raul;
mação . .., ps. 65-69 e 139-151. op. Cit., VIII, "k") .
A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 191
190 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

funções específicas de primeiro-ministro, sairiam da�


ne invasões injustificadas do governo central nas�­
qades locais. Assim, cria-se um espaço para estabeleci­ Assembléias Legislativas, das bancadas que, detendo a1
mento e atuação de órgãos regionalmente imparciais a maioria, presumivelmente possuam atrás de si a opi­
(por exemplo, um Conselho Federativo), capazes de nião majoritária em cada Estado.
harmonizar os conflitos intrafederativos, tutelando os
estatutos da autonomia local.
Não é complicada a reforma da estrutura política
dos Estados-membros para adaptá-los à introdução, em
âmbito nacional, de um parlamentarismo de poder mo­
derador explícito. Para tanto bastaria que se distin­
guisse, também na· esfera estadual, a chefia de Estado
da chefia de governo. A primeira, caberia o exercício da
função moderadora relativamente aos assuntos esta­
duais, como um prolongamento do órgão nacional do
poder moderador. A segunda, tocaria a direção da po­
lítica e da administração estaduais, função essa de
cunho partidário.
O titular da função moderadora nos Estados pode­
ria, inclusive, ser indicado pelo Presidente da República
(chefe nacional do poder moderador). Poderia ser o caso
de pensar-se até na criação de uma carreira de "Presi­
dentes dos Estados", à semelhança da carreira diplo­
mática, que cuidasse da seleção e do preparo desses altos
servidores públicos. Entre suas atribuições estaria fun­
damentalmente a de nomear os juízes estaduais e os
membros dos Tribunais dos Estados, fiscalizar os chefes
dos executivos estaduais, resolver os conflitos destes com
as Assembléias Legislativas, sancionar as leis, comandar
supremamente as Forças Públicas e conceder indultos.
A eles estariam ligados os órgãos suprapartidários clás­
sicos como o Ministério Público e os Tribunais de Contas
estaduais. Enfim, poderiam chefiar uma instituição de
tipo Ombudsman, para controle externo da administra­

l
ção estadual. Já os chefes de governo dos Estados, com
CONCLUSÕES
I - No conjunto dos fatores que condicionam a crise de
democracia no Brasil, numa visão "efetivista" da cau­
salidade histórica, não se pode esquecer, nem desprezar,
a influência dos fatores de ordem política ligados à
estruturação do poder no Estado; se esses fatores, por
si sós, são insuficientes para explicar todas as facetas
da crise da democracia, sem o equacionamento deles,
não se conseguirá superá-la.
II - A democracia consiste em um ideal de organização da
sociedade, envolvendo a conjugação de dois aspectos
básicos: .
1if)uma filosofia política que concebe o Estado como
um meio natural e necessário para servir à
Pessoa Humana, em sua dignidade e em seus di­
reitos fundamentais, através da realização do bem

{r9
comum; e
um processo político em que os cidadãos partici­
pam, pelo consentimento, do fundamento (Esta­
do-de-direito) e do funcionamento (direitos po­
líticos) do poder.
III - Totalitarismo e autoritarismo não se confundem:
é!) o primeiro é a negação dos valores fundamentais
da filosofia democrática e, por via de conseqüên­
cia, de um autêntico processo democrático;
rfij)o segundo é a limitação "permanentizada" do
processo político inerente à demoCl'acia, sob a
justificativa da necessidade de defender os valores
que consubstanciam a filosofia democrática.
IV ......,. A vocação democrática da comunidade política brasi­
leira - decorrência de filiar-se o Brasil à civilização
194 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA NO BRASIL 195

ocidental - tem esbarrado, especialmente a partir de (e) a impossibilidade de compor os obJetivos perma­
1891, na dificuldade de estabelecer um processo político nentes do Estado com os objetivos atuais dos go­
democrático estável e responsável. vernos e a atuação própria de um chefe de Estado
V - O regime político vigente parece assumir uma forma com a atuação própria de um chefe de governo.
autoritária não institucionalizada, pois, se preserva os IX - Uma segunda série de obstáculos ao funcionamento
priJ.noípios fundamentais da filosofia democrática, de uma democracia política estável no Brasil reside
contém um sistema de poderes excepcionais revolucio­ no esquema tripartido de divisão funcional do poder
nários que limita o processo democrático, em especial, adotado em 1891 e mantido até hoje, porque, além de
no referente ao Estado-de-direito. favorecer o surgimento de conflitos entre os poderes,
VI - A situação política atual chegou a um impasse: de um não lhes prevê solução legal e eficaz, nem um mecanis­
lado, a consciência democrática exige a revogação dos mo de fiscalização superior dos órgãos políticos.
instrumentos revolucionários de exceção, basicamente X - A linha principal de um modelo de normalidade cons­
do Ato Institucional n.º 5; no entanto, a revogação titucional adequado à realidade brasileira está na
pura e simples desse instrumento, se entendida como
transformação do órgão de chefia de Estado em um
volta à plenitude do sistema de governo das Consti­
poder político independente e superior, em relação aos
tuições de 1946 ou de 1967, não basta para fundar um
p\rocesso político democrático, livre de instabilidade, poderes executivo, legislativo e judiciário, para desem­
demagogia e irresponsabilidade. penhar uma tríplice função:
(a) prevenir e solucionar os conflitos entre os po­
VII - A causa política das dificuldades da democracia no deres;
Brasil reside na inadequação das instituições d reali­
(b) efetuar incessantemente uma "suprema inspeção"
dade que devem reger: a sociedade brasileira formou­
-se "de cima para baixo", e, não obstante, adotamos sobre os órgãos políticos e a administração em
um sistema de governo inventado sob medida para geral;
uma sociedade "de baixo para cima" (os Estados (c) zelar pelos objetivos permanentes do Estado, que
Unidos). constituem, aliás, os valores básicos da demo­
cracia.
VIII - A cumulação da Chefia de Estado e da Chefia de Go­
verno no órgão unipessoal da Presidência da República XI - Um sistema de divisão funcional do poder, que atribua
acarreta uma primeira série de obstáculos gravíssimos explicitamente ao chefe de Estado o exercício privativo
à harmonia política no Brasil e, conseqüentemente, ao de funções moderadoras, pode ser denominado de
estabelecimento de um processo democrático estável, "parlamentarismo"; à questão - que muitas vezes se
entre os quais: coloca, da extensão de suas intervenções - responde-se
(a) a dificuldade em distinguir-se objetivamente a com a seguinte regra: a atuação ostensiva, maior ou
oposição da subversão; menor, do poder moderador deverá ser inversamente
(b) a radicalização político-ideológica das correntes à capacidade de comunidade em, por sua direta inicia­
que disputam o poder; tiva, fiscalizar e conter nos limites da lei os órgãos
(cJ a inevitável partidarização das Forças Armadas; políticos instituídos.
(d) a posição de vulnerabilidade interna, aos ata­ XII - Uma reforma política, recriando no Brasil um poder
ques partidários, a que são expostos os órgãos moderador explícito, recomenda a efetivação de três
nacionais permanentes; refor1nas complementares:

l-
i
196 CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR

(a) a separação da chefia de Estado da chefia de


governo também no âmbito dos Estados-membros
(o que virá a fortalecer o princípio federativo e
a propiciar uma maior descentralização);
(b) a alteração do sistema de partidos para retirar,
do bipartidarismo vigente, sua conotação rígida
e quase compulsória; e,
BIBLIOGRAFIA
(c) para viabilizar um bipartidarismo espontâneo, a
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ÍNDICE DA MATÉRIA

sumário ................ '. •.. . . .. • . .... . .. . . . . .. ..... . ... VI


INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . ·-· · . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1. Dem.ocracia e regimes �e governo . .. . . . . . . .... .. . .. 2
2. Democracia e civilização ocidental ... . . . .... .. . . .. . 3
3. Democracia e causalidade histórica .... .... ......... 5
4. Democracia e fatores de organização política ... .... '1
.5. Democracia e solidarismo . .. .. . . . .. .. .. . ... . . ... ... . 8

PRIMEIRA PARTE: O IDEAL DEMOCRATICO E SUAS


VICISSITUDES ....... . ................ ... ....... . . . 11
�.
Capítulo I
O ideal democrático
6. A· primeira aproximação ................. ; . ... .... . 13
7. Direitos da Pessoa ... . ... ..... ........... . .......... 15
8. Pessoa Humana ......., ........ . ..................... 16
9. Fins e instrumentos do Éstado ........ . ........ . ... 19
10. Duplo aspeçto da democracia .............. ........ 20
11. Relações entre democracia instrumenta] e democra-
cia substancial . ; •.....• , ... . ..... . . . . . . . . . ... • . . . . . . . 23
12. A democracia como. Weal . . ... . • . . ...... ... . . . . . ... . .. 24

Capítulo · II
As vicissitudes do ideal denJ,OCrático
�3. A negação da democracia: o totalita:t;ismo , . . . . . . . . . 27

f
14. Á crise da democracia . .. . . . . .. . .... .. .. . . ... . . .... 29
15. Limitações.à democracia instrumental e autoritarism.o .. 3l,
206 CE'z:AR SALDANHA SOUZA JUNIOR A CRISE DA DEMOCRACIA No. BRASIL ,207

SEGUNDA PARTE: A DEMOCRACIA NO BRASIL 35 Capítulo I


Distinções prévias
Capítulo I
32. Es.tado e governo ..... ........... .. ....... ........... . 81
A crise da democracia 33. Objetivos de Estado . , . .. .......................... . 82
34. Objetivos de governo .. ...... .... ................... 84
16. A natureza instrumental da. crise ... .• ............. 37 35. Funções de chefia de Estado e de governo ... .. . ..... 86
17. Raízes históricas da crise .......................... 39 36. Formas de organização ...... ............ .......... . 88

Capítulo ·II Capítulo II


As limitações atuais à democracia instrumental Problemas políticos ligados à organização da Presidência

18. Um levantamento das limitaçõés ........... ........ 43 37. O dilema dos Presidentes ......... ......... ........ 93
19. A eleição indireta do Presidente da República ...... 43 38. "Anarquia" ou "autoritarismo" ........ ........... . . 96
20. O bipartidarismo ................................... 46 39. A partidarização das Forças Armadas . ..... ........ 99
40. A distinção entre oposição e subversão ...... .... .. lOi
41. A nomeação de prefeitos municipais ......, ......... 4.9
22. Poderes excepcionais revolucionários ................ 50 41. A vulnerabilidade partidária dos órgãos nacionais . . 104
42. A radicalização ideológica ..... .................... . 105
43. Atenuantes ........ ........... ..... ................. 108
Capítulo III
Seção segunda: A divisão funcional do poder 111
o impasse político
Capítulo III
23. Os poderes excepcionais revoluckm�rios: conservá-las? 51
24. Os poderes excepcionais revolucionários: revogá-los? 54 O problema dos conflitos entre os poderes
25': O país legal contra o país real .......... ............ 55
44. A realidade dos conflitos políticos ... ... ... ....... 113
45. A lacuna da Constituição ................·....... . .. 115
Capítulo IV 46. A explicação da lacuna .......... ............. ..... . 116
17. Soluções extraconstitucionais ....................... 119
A inadequação das instituições 48. O Ato Institucional n.o 5 .......................·.... 121
26. Tipos de formação de sociedades políticas ........ .. 59 Capítulo IV
27. Formação política brasileira e norte-americana .... 60
28. Conseqüência da diversidade de formação .......... 63 A solução vigente
29. Constituição "estatuinte"· e Constituição "estatuída" 66
30. O transplante e a rejeição .......................... 70 49. Os poderes de fiscalização e de arbitragem: revogá-los? 125
31. A alienação das elites ....................... ....... 73 50. As deficiências do sistema ......... ........ ........ . 128
51. O impasse e a saída possível ............. .......... 129
TERCEIRA PARTE: AS INSTITUIÇÕES INADEQUADAS .. 77
QUARTA PARTE: BASES DE UM MODELO POLíTICO
Seção primeira: A Presidência da República . .. . .......... 79 ADEQUADO ......, ... , ......� ...., ................... 133

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