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As bruxas do passado e do presente

Hoje vistas como símbolo de maldade e representadas por imagens assustadoras,


essas mulheres já foram consideradas guardiãs da vida e da morte, com papel
essencial nas comunidades camponesas europeias da Idade Média.
Bruxa. Que imagem vem à sua mente quando você lê essa palavra?

Não é raro imaginarmos a bruxa como uma mulher mais velha, dotada de um grande e
enverrugado nariz, trajando roupas surradas e chapéu pontudo, ao lado de seu gato preto
e seu caldeirão e, inevitavelmente, ligada à maldade. Mas, afinal, de onde vem essa
peculiar figura? Será que toda bruxa se assemelha à que você pensou? Talvez você se
surpreenda em saber que as bruxas existiram, sim, no mundo real. Mas elas não eram
exatamente como descrevemos.
As três bruxas de Macbeth (1783), do pintor suíço Johann Füssli. A imagem, inspirada na peça
do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616), ilustra três bruxas com traços similares
aos de outras bruxas da cultura popular.
Crédito: Wikipedia Commons
Para a população camponesa europeia da Idade Média, as mulheres reconhecidas como
‘bruxas’ eram membros fundamentais da comunidade. Elas eram normalmente mais
velhas, acumulavam muitos anos de experiência e dominavam os saberes necessários
para lidar com a vida e a morte: a dose correta para curar uma doença, o procedimento
preciso na hora do parto, as plantas capazes de promover abortos, as ervas que
causavam alívio durante o falecimento. Como define o historiador francês Jules
Michelet (1798-1874): “A ela se pede a vida, a morte, remédios, venenos”.

É justamente daí que vem a imagem da bruxa como uma idosa, tendo o caldeirão como
companheiro inseparável (onde se misturavam os ingredientes dos seus preparados).
Nas suas comunidades, elas não eram vistas como más ou perversas por natureza; eram
chamadas de ‘mulheres sábias’ em várias línguas, e participavam ativamente da vida
comum. Em alguns casos, cobravam pequenos valores pelos seus feitiços; em outros,
apenas os faziam enquanto membro da comunidade que cumpre o seu papel. Seja como
for, entre as populações campesinas da Europa, elas eram as médicas, as conselheiras,
as guardiãs da vida e da morte.

Você pode se perguntar: Se as bruxas eram mulheres reais e tinham trabalhos dignos,
por que houve figuras como Circe, a feiticeira que transforma os homens em porcos
na Odisseia, do poeta grego Homero (928 a.C – 898 a.C), e tantas outras mulheres más
e assustadoras?
O estudioso de mitologia e religião norte-americano Joseph Campbell (1904-1987)
explica que, desde as épocas mais remotas da história, a mulher é vista como força
mágica e misteriosa da natureza, e esse poder feminino acabou despertando uma das
maiores preocupações do ser masculino: como quebrá-lo, controlá-lo e usá-lo para seus
próprios fins.

Conhecimento que empodera e incomoda


Durante dez séculos de hegemonia do Cristianismo no Ocidente, a Igreja tolerou
práticas consideradas ‘pagãs’ em toda a Europa, de modo que as crenças tradicionais de
diversos povos permaneceram vivas e, em muitos casos, sincretizadas ao Catolicismo.
Porém, no final do século 14 e meados do século 15, houve severa investida contra tudo
que contrariasse os dogmas cristãos – e as mulheres sábias se tornaram um alvo
preferencial da ira dos então chamados inquisidores.

As tensões já existentes entre masculino e feminino desaguaram em uma das mais


terríveis turbulências sociais na Europa medieval. A caça às bruxas, como ficou
conhecida, foi amparada por uma série de justificativas teóricas inventadas por padres
em toda a Europa. O mais famoso guia para esse intento foi O martelo das
feiticeiras (Malleus Maleficarum), primeiro manual inquisitorial endossado pelo papa,
publicado em 1486. Nele, as ‘mulheres sábias’ deixavam de ser membros fundamentais
da sociedade para serem entendidas como agentes de Satã na Terra. O livro defendia
que a feitiçaria era resultado direto de um pacto com o demônio, era típica da mulher, de
qualquer idade, pois ela seria ‘sexualmente insaciável’ e, por isso, mais frágil diante do
diabo. Portanto, sua prática era maléfica por natureza.

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