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Homofobia e cis-heteroativismo:

uma crítica decolonial ao movimento brasileiro


Escola “sem” Partido
MATEUS APARECIDO DE FARIA*

Resumo: Esse artigo discute o uso de homofobia enquanto categoria e conceito


para compreender a organização Escola “sem” Partido. O modo de
funcionamento, as práticas discursivas e a atuação junto ao âmbito público
denotam que tal conceito pode não ser capaz de explicá-la. Desse modo, propõe-
se a utilização do cis-heteroativismo como ferramenta analítico-teórica para
mobilizar saberes acerca da Escola “sem” Partido e as violências que pratica
contra corpos e signos dissidentes da matriz cis-heteronormativa.
Palavras-chave: Escola Sem Partido; Violência; LGBT.
Homophobia and cis-heteroactivism: a decolonial criticism of the Brazilian
School “without” Party movement.
Abstract: This article discusses the use of homophobia as a category and concept
to understand the School "without" Party organization. Its mode of functioning,
discursive practices and performance in the public sphere denote that such a
concept may not be able to explain it. Thus, it is proposed the use of cis-
heteroactivism as an analytical-theoretical tool to mobilize knowledge about the
School "without" Party, and the violence it practices against dissident bodies and
signs of the cis-heteronormative matrix.
Key words: School "without" Party; Violence; LGBT.

*
MATEUS APARECIDO DE FARIA é Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou/
Fundação Oswaldo Cruz (MG).

161
Introdução normativas para proteção da comunidade
LGBTQIA+, criação do comitê para
Homofobia tem sido um termo recorrente
construção de uma política nacional de
na literatura científica, nos veículos de
saúde voltada para as especificidades
mídia audiovisual e nas práticas
dessa população, entre outros (BRASIL,
cotidianas de docência, de movimentos
sociais e demais esferas da vida social. 2004).
Atualmente, tal conceito está mais ligado Um desmembramento do Programa foi o
às violências contra pessoas que se projeto Escola sem Homofobia, que tinha
deslocam da matriz cis-heteronormativa, como objetivos a revisão, a formulação e
como a comunidade de lésbicas, gays, a implementação de políticas públicas
bissexuais, travestis, transexuais, queer, que focalizassem nas práticas
intersexuais, assexuais e outras homofóbicas identificadas dentro do
identidades (LGBTQIA+), envolvendo sistema educacional brasileiro e a
discriminações, procedimentos, comunicação em contextos educacionais
dispositivos normativos, teorias, que abordassem de modo justo e
argumentos de autoridades, emoções, consistente temáticas transversalizadas
crenças, etc. (SOBRAL; SILVA; pela diversidade sexual. De acordo com
FERNANDES, 2019). Vanessa Leite (2019; 2014), esse projeto
Uma resposta governamental à foi o estopim para que a expressão
neoconservadora, tanto no Congresso
homofobia manifesta em diversos
Nacional quanto em organizações da
espaços públicos, especialmente os de
sociedade civil, ganhasse força e
formação (SANTOS; CERQUEIRA-
notoriedade. Nesse mesmo período, o
SANTOS, 2020; TEIXEIRA-FILHO;
movimento Escola “sem” Partido foi
RONDINI; BESSA, 2011), foi o
criado1.
lançamento do Programa Brasil sem
Homofobia em 2004, o qual envolveu Este artigo tem por objetivo demonstrar a
diversas ações como formação ineficácia conceitual de homofobia
continuada para docentes, oferta de enquanto categoria de acusação política
cursos de especialização, apoio aos contra o movimento Escola “sem”
Centros de Referência de Direitos Partido, propondo que sejam focadas
Humanos, incentivo à publicação de criticamente, a partir de uma perspectiva

1
Optei por usar aspas (“”) na proposição “sem” em Escola “sem” Partido porque se trata de uma deliberada
tomada crítica no artigo que enfatiza a falácia da alegada neutralidade política e ideológica do movimento.

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decolonial, as estratégias políticas e bem representada no Congresso Nacional
categóricas de normalização e parece ter acendido o alerta para que
universalização do cis-heteroativismo do houvesse uma onda neoconservadora a
movimento. Primeiramente, situaremos fim de agir pela manutenção de
tal organização no cenário brasileiro, privilégios. Alguns nomes surgem como
para então compreender como e por que personificações da moral e dos “bons”
sua atuação é classificada como costumes: Jair Bolsonaro, Magno Malta
homofóbica. Por fim, buscaremos e Anthony Garotinho são alguns
enfatizar o foco crítico decolonial em deputados que começaram a verbalizar,
relação às estratégias universalizantes da não apenas no palanque da Câmara dos
cis-heteronormatividade cultural, Deputados, mas também em canais de
educacional, política e institucional do televisão e em postagens na internet,
movimento Escola “sem” Partido. sobre os “perigos” daquele projeto, pois
“esses livros ensinam inclusive a fazer
De que parte foi Escola “sem” Partido
sexo anal”, “era um incentivo à prática do
O movimento político, supostamente homossexualismo” ou ainda que “estão
apartidário, chamado Escola “sem” criando cota para homossexuais”
Partido nasceu do incômodo de um (LEITE, 2019; BRITO, 2011;
procurador de justiça do estado de São MALTCHIK; WEBER; BRAGA, 2011).
Paulo por conta do relato de sua filha
sobre uma aula de história em 2003, cujo Por pressão política e queda de
docente utilizou exemplos de pessoas popularidade, a então presidenta Dilma
que abriram mão de tudo para seguir com Rousseff decidiu suspender o projeto em
suas ideologias, entre elas Che Guevara e maio de 2011; porém, o tema ficou em
São Francisco de Assis. Apesar das evidência nos meses que se seguiram, ao
movimentações provocadas dentro do passo que Escola “sem” Partido
referido estabelecimento de ensino não congregava posições importantes em
terem surtido o efeito desejado, tal várias instâncias e aumentava sua
procurador decidiu fundar uma capilaridade no interior brasileiro. Seu
associação, de forte inspiração fôlego chegou às eleições de 2012, em
estadunidense, que visava à proteção de que o projeto Escola sem Homofobia
estudantes contra “doutrinações” em sala havia se resumido – por meio de
de aula, defendendo uma inconsistente sucessivas veiculações falaciosas de
ideia de educação neutra (BEDINELLI, informações dos apoiadores de Escola
2016). “sem” Partido – ao suposto “kit gay”,
prédica que foi usada como arma para
Entre 2004 e 2011, Escola “sem” Partido ataques aos seus apoiadores, como o
ainda não tinha alcance nacional, então ministro Fernando Haddad, ao se
permanecendo entre as redes sociais mais candidatar à prefeito de São Paulo.
ligadas ao seu criador e restrito a São
Paulo, com apoiadores esparsos em Findas as eleições, Escola “sem” Partido
outras regiões, até que conseguisse teve novo alvo: os planos nacionais,
ancoradouro político nos debates acerca estaduais e municipais de educação entre
dos resultados do projeto Escola sem 2013 e 2014. A alcunha “ideologia de
Homofobia, apresentados em novembro gênero” aparece nesse período para
de 2010 para o poder legislativo federal embasar a pressão sobre e por
brasileiro. A presença da comunidade legisladores para retirarem as expressões
LGBTQIA+ discutindo e disputando “gênero” e “orientação sexual” dos
espaços de poder com a elite hegemônica documentos legais (LEITE, 2019). A

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negação em considerar necessário o organização. Passemos, então, por um
debate sobre diversidade de breve debate sobre o termo na
sexualidades, afetividades e corpos cis- bibliografia científica e, em seguida,
heterodivergentes nos currículos apresentarei a minha proposta conceitual
institucionalizados da Educação Básica para a análise crítica das ações e ideias
brasileira se articulou com proposições neoconservadoras de Escola “sem”
igualmente conservadoras na economia: Partido.
“um projeto político de Estado mínimo,
de desmonte das universidades públicas Homofobia enquanto conceito e
categoria
e da educação pública em todos os seus
níveis, de ataques constantes aos Há uma produção científica considerável
sistemas públicos de saúde, de perda de sobre o conceito homofobia, sendo
direitos trabalhistas, enfim, de direitos possível adentrar em suas origens,
sociais de forma mais ampla” (LEITE, análises e críticas em diferentes campos.
2019, p. 134). Escola “sem” Partido teve Cunhado pelo psicólogo estadunidense
papel fundamental nessa articulação, Kenneth Smith e popularizado pelo
pois se apresentou como movimento colega de profissão George Weinberg na
apartidário, sem vínculos com entes década de 1970, tal neologismo serviu
federativos e, portanto, defensor dos para nomear uma doença, manifestada
direitos dos pais contra a dita doutrinação em pessoas não-homossexuais por meio
dos filhos nas escolas. Tal feito levou à de atitudes de total aversão a relações
sua formalização, em 2015, como porta- com corpos designados do mesmo sexo.
voz (portadora e veiculadora de clichês) As causas descritas por Weinberg
contra o comunismo, contra a alegada perpassavam o cristianismo, o medo de
“ditadura gay” e outros espantalhos ser homossexual, recalque, percepção de
discursivos. ameaça a valores pessoais e o medo da
morte – aspecto este motivado pela ideia
Em diversos momentos, durante as
de que pessoas homossexuais não
resistências frente às ações da Escola
poderiam ter descendentes de primeiro
“sem” Partido, movimentos sociais,
grau, portanto, não haveria continuidade
parlamentares e outras associações civis
familiar (WEINBERG, 1973; SILVA;
acusaram tal organização de ser
FRANÇA, 2019).
homofóbica por expor as relações
homoafetivas como afrontas ao direito a Fernandes (2012) apresenta, por outro
uma educação moral e religiosa que lado, que homofobia aparece, na década
chamava de “lavagem cerebral de 1960, nos movimentos sociais e senso
2
ideológica” o fato de estudantes falarem comum estadunidense. O campo psi se
em respeito às diversidades. No entanto, apropria da temática e ganha destaque ao
parece que homofobia, enquanto construir suas teorias explicativas. A
categoria de acusação contra Escola retomada do uso do termo acontece nos
“sem” Partido, é um conceito que não anos 1990, por conta dos avanços das
alcança a complexidade das relações e teorias queer e da epidemia de Síndrome
alegações constituídas por aquela de Imunodeficiência Adquirida (AIDS).
2
Uma apresentação na Câmara dos Deputados do temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-7180-
criador da Escola “sem” Partido é um exemplo 14-valores-de-ordem-familiar-na-
dos principais argumentos da organização. Notas educacao/documentos/notas-
taquigráficas disponíveis em taquigraficas/5Reunio140217.pdf>, acessado em
<https://www2.camara.leg.br/atividade- 06 de janeiro de 2021.
legislativa/comissoes/comissoes-

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No Brasil, o termo homofobia aparece “sem” Partido, o projeto Escola sem
por meio de movimentos sociais e, Homofobia visava a interferir na
posteriormente, por veículos midiáticos, prerrogativa da educação moral(-
em especial através da atuação do religiosa) dos pais sobre os filhos e,
antropólogo Luiz Mott e do Grupo Gay portanto, seria uma ameaça à
da Bahia (GGB), que há anos divulga democracia. Por esse viés, a
informações relevantes acerca da morte e obrigatoriedade de temas ligados às
vida da comunidade LGBTQIA+. Nos diversidades culturais, étnicas,
anos 2000, a homofobia ganha destaque religiosas, identitárias e de gênero no
em artigos, teses e dissertações currículo das escolas interferia no direito
nacionais, tendo um crescimento à escolha da educação moral dos filhos
acentuado durante a década de 2010, com pelos pais. Disso decorreu a ampla
tendência à manutenção do crescimento difusão do espantalho retórico “ideologia
nas próximas décadas (SOBRAL; de gênero” como categoria acusatória
SILVA; FERNANDES, 2019), com contra o projeto Escola sem Homofobia,
destaque para as áreas de Educação e como se não fosse ideológico aquilo que
Psicologia. Escola “sem” Partido universalizava
como normal, válido e universal: o
Desde seu primeiro uso até os momentos cristianismo cis-heteronormativo
atuais, o termo homofobia foi sendo patriarcal.
definido de distintas maneiras. As
ponderações de Daniel Borillo ganharam O termo homofobia carrega consigo, em
destaque, na virada para o Século XXI, sua origem, um risco de patologização
ao reposicionar a homofobia em dois das relações sociais. Afinal, a homofobia
aspectos principais: a sua dimensão não está no mesmo lugar da claustrofobia
pessoal, de natureza afetiva, que se ou da agorafobia, ou outras patologias
manifesta na rejeição aos homossexuais; fóbicas (COSTA; NARDI, 2015). A
e a sua dimensão cultural, de natureza patologização da homofobia pode gerar
cognitiva, em que o objeto da rejeição atenuantes jurídicos sobre algo
não é o homossexual enquanto indivíduo, construído nas relações sociais. Daí, para
mas a homossexualidade enquanto se entender a importância do projeto
fenômeno psicológico e social Escola sem Homofobia e não ceder a
(BORILLO, 2010; p. 22). Neste caso, a espantalhos retóricos de Escola “sem”
pessoa homossexual seria tolerada e, às Partido, seria necessário ampliar a
vezes, objeto de simpatia e amizade, mas compreensão de homofobia como
seria inaceitável qualquer política problema social causado pela cis-
pública de igualdade em âmbitos heteronormatividade patriarcal, com ou
institucionais (BORILLO, 2000). sem viés religioso.

Comparativamente, em rede social, A pretensão de universalidade da cis-


muitos apoiadores de Escola “sem” heteronormatividade é consequência de
Partido rechaçavam a acusação de um conjunto hegemônico de valores,
homofobia porque não aceitavam a estruturas, mecanismos, sistemas e
perseguição contra homossexuais. E disposições sociais que operam
repetiam que não eram contra subalternização e/ou exclusão das
homossexuais, mas contra a “apologia à diversidades humanas, tal como já o
homossexualidade” nas escolas. fizeram o antissemitismo ou o racismo
Segundo os muitos espantalhos retóricos (JUNQUEIRA, 2007). Quando
veiculados pelo movimento Escola deslocamos o foco crítico para a

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problematização das cis- meticulosa e estratégica, transbordando
heteronormatividades e suas da abordagem individualizante da
consequências homofóbicas, a homofobia para algo que também está na
homofobia deixa de estar focada apenas esfera social e institucional.
na violência letal imediata a indivíduos,
Escola “sem” Partido pode ser
para se tornar uma categoria sociológica
considerado como exemplo abrangente
que se refere à banalização de condutas
desse heteroativismo no Brasil. Um
interindividuais e institucionais que
primeiro aspecto que demonstra tal
provocam discriminação, hierarquização
afirmação é a atuação de Escola “sem”
e preconceitos, gerando várias dimensões
Partido nas instâncias republicanas:
de vulnerabilidade e subalternização
candidaturas foram e continuam sendo
social (FERNANDES, 2012, p. 100).
construídas com sua bandeira
A tomada de consciência de que a (SIQUEIRA, 2020); projetos de lei têm
pretensão à universalidade da cis- tramitado com certa facilidade nas
heteronormatividade define fronteira câmaras e assembleias (PEIXOTO,
sobre humanidade válida e não válida 2020); programas governamentais locais,
desloca o seu padrão de homofobia com especial dedicação do Poder
(tácito ou explícito) para nossa agenda Executivo Federal, têm operado sob sua
crítica decolonial. Nesse sentido, lógica (ISTOÉ, 2019); e a intervenção
entendemos que cis-heteroativismo seja nos planos de educação para extirpação
uma categoria analítica que dê conta das de “conteúdos ideológicos” (CÉSAR;
recentes movimentações políticas e DUARTE, 2017).
consequências institucionais de Escola
As reivindicações de Escola “sem”
“sem” Partido, explicitando as nuances
Partido buscam legitimidade no
de seus padrões sociais, institucionais e
argumento da não doutrinação de
culturais de violências fóbicas, muito
espaços escolares. Por “não
mais do que a mobilização acusatória da
doutrinação”, entendem o silêncio a
categoria homofobia.
questões de violências contra pessoas
Cis-heteroativismo LGBTQIA+, além de qualquer signo que
possa ser associado a essa comunidade,
Em publicações recentes (BROWNE;
como orientação, sexo e arco-íris
NASH, 2017; 2020; NASH; GORMAN-
(GONÇALVES, 2018). Tudo isso é
MURRAY; BROWNE, 2019), o termo
possível por meio de estratégias
heteroativismo tem sido utilizado para
discursivas que tentam se afastar da
denominar resistências hegemônicas que
acusação de homofobia, principalmente
se baseiam na promoção da
após seu status de prática criminosa no
heteronormatividade como caminho para
país (STF, 2019). Assim, Escola “sem”
o “sucesso” na sociedade. Tal conceito é
Partido disfarça a violência que
utilizado como ferramenta analítico-
hierarquiza validade para seres humanos
conceitual para encarar novas formas que
com reivindicações democráticas em
poderiam ser chamadas de homofóbicas,
nome do direito ao credo, à expressão
porém operam de maneiras menos
religiosa, à liberdade de expressão e ao
óbvias, mas tão mais eficazes para
cuidado de crianças por parte de seus
manutenção das desigualdades nas
responsáveis.
relações com e entre sexualidades cis-
heterodivergentes. Os modos Tal como os neoconservadores europeus
heteroativistas são debatidos, elaborados, e estadunidenses têm feito desde finais da
teorizados e pesquisados de forma década de 1990, a Escola “sem” Partido

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no Brasil assume um posicionamento gerações. Ora, a rigor, a consequência
absoluto perante essas garantias deste argumento seria um movimento de
fundamentais da democracia em desescolarização. No entanto, em nome
detrimento de minorias que escapam à da democracia, a Escola “sem” Partido
matriz cis-heteronormativa. Entenda-se pretende interferir na educação pública
que os neoconservadores são expressões obrigatória, retirando do currículo as
localizadas de estratégias de cis- pautas das diversidades raciais, sociais,
heteroativismo em contextos de políticas, morais, religiosas, econômicas,
democracia liberal, mas, em si mesmo, o identitárias, institucionais, étnicas e de
cis-heteroativismo não tem uma origem gênero. Por este viés, o currículo que
espaço-temporal única. Ocorre em toda importa é o que ratifique a
cultura ou sociedade que codifica algum inevitabilidade histórica e o valor
tipo de cis-heteronormatividade regente e modelar da cis-heteronormatividade
regulatória que hierarquiza validade de cristã, branca e neoliberal.
direitos para a vida humana a partir da
maior ou menor aproximação a seu Tal posicionamento é chamado de
código regente de “normalidade”. Por reconstrucionismo cristão (SOUZA,
meio de dispositivos democráticos, os 2019) que, quando atua sobre a agenda
neoconservadores criam alvos de política pública, busca manter
extermínio civil de direitos hegemônicos os valores
fundamentais, tácitos ou explícitos. neoconservadores. O principal objetivo
nessa primeira característica que inscreve
O neoconservadorismo cis-heteroativista Escola “sem” Partido como uma
em Escola “sem” Partido está organização cis-heteroativista é a
intimamente ligado à combinatória de sobreposição ideológica que visa a tornar
racismo, capitalismo e patriarcalismo “natural” ações excludentes, racistas,
como expressões sócio-institucionais unidimensionais e moralizantes nas
com potenciais consequências instituições públicas em geral, sendo a
exterministas seletivas que negam as tentativa de hegemonia moral sobre o
lutas sociais pelo aperfeiçoamento da ensino público apenas uma das frentes de
igualdade civil de minorias na história do ação.
Brasil. Tudo em nome do direito A pluralidade na educação, resguardada
individual dos pais neoconservadores de pela Constituição Federal, é rechaçada
educarem moralmente seus filhos. pela organização à medida que localiza o
direito de educação em pais e sua
O fundamento religioso de Escola “sem”
moralidade, o que mais uma vez torna
Partido se aloja na concepção moral de
inconsistente sua posição institucional,
autoridade soberana, una e legítima das
porque Escola “sem” Partido não
famílias e sua igreja para a educação das
reivindica a desescolarização (o direito
crianças. Para isso, é importante a
de os pais garantirem, em casa, a
minimização do Estado e de seus
educação básica de seus filhos, sem que
agentes, o que pode ser visto no projeto
isso gere problemas com a justiça), mas a
de lei divulgado no site oficial da
intervenção de sua moral particular cis-
organização: “o direito dos pais sobre a
heteronormativa na instituição escolar
educação religiosa e moral de seus
pública. Ainda que se declare como não
filhos” é algo a ser (e que precisa ser)
religiosa, Escola “sem” Partido possui
defendido, uma vez que as instituições
tendências religiosas fundamentalistas
estatais não possuem autoridade moral
(SOUZA, 2019).
para validar a educação das novas

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Outra característica de Escola “sem” subordinação cultural e proselitismo
Partido vinculada ao cis-heteroativismo religioso de crianças nas escolas por
pode ser vista em entrevistas, postagens conta desta lei (MOURA; ARAUJO,
e discursos de agentes políticos, 2018). No entanto, constatamos que os
influenciadores digitais e pessoas percalços práticos da Lei 10.639/2003
LGBTQIA+ apoiando explicitamente não diminuíram em nada, por exemplo, o
uma educação “neutra”, como foi o caso avanço do fundamentalismo religioso
do vereador Fernando Holiday (CRUZ; cristão nas escolas públicas das periferias
VASCONCELOS, 2019), eleito com do Rio de Janeiro por conta da
48.055 votos nas eleições municipais de obrigatoriedade do Ensino Religioso,
2016, sendo o primeiro homossexual implantado durante a gestão do então
assumido a ocupar o cargo de vereador governador (proselitista) Anthony
da cidade de São Paulo. É uma estratégia Garotinho (CAPUTO, 2012).
de esvaziamento das acusações de
Desse modo, percebe-se a flutuação do
homofobia.
cis-heteroativismo por diferentes
A centralidade dessa estratégia é interseccionalidades, uma vez que busca
deslegitimar as dissidências críticas levantar a bandeira do que é normal e do
contra Escola “sem” Partido por parte que não pode ser considerado dentro da
dos movimentos sociais das minorias que norma. Para o movimento Escola “sem”
exigem representatividade e acesso nas Partido, uma visão de mundo neoliberal,
instituições públicas, o que inclui a cisgênere, heterossexual e
descolonização do imaginário no fundamentalista cristã não tem viés
currículo escolar. Desse modo, o ideológico, não é proselitista e nem
movimento Escola “sem” Partido se provoca subordinação cultural das
apresenta como apoiador de pautas mais crianças periféricas pretas.
amplas e, quando convém, focam em Considerações finais
alguns indivíduos LGBTQIA+
considerados exemplares porque se É óbvio o viés ideológico do movimento
afastam da alegada promiscuidade das Escola “sem” Partido, com sua
lideranças LGBTQIA+. programática violência institucional, ora
explícita, ora velada, contra minorias
A interseccionalidade do cis- “em nome da democracia”: o que se
heteroativismo é explicitada nas ações normatiza como “neutro” é o que se
racistas de Escola “sem” Partido que se impõe hegemonicamente como
traduzem na seletividade da religiosidade “normal”. O “normal” é aquilo que se
socialmente válida. Existe a alegação de disfarça de “universal”, contra o qual
que crianças estariam sendo doutrinadas levantamos uma perspectiva crítica
nas escolas nas bases religiosas africanas decolonial. O esforço neste artigo foi
– i.e., trata-se do ataque de Escola “sem” problematizar a homofobia enquanto
Partido à obrigatoriedade do Ensino de conceito político acusatório eficaz no
História e Cultura Afro-Brasileira e combate às estratégias de hegemonia
Africana (Lei 10.639/2003) como uma institucional e ideológica do movimento
das bases da Educação das Relações Escola “sem” Partido. Preferimos focar
Étnico-Raciais no Brasil. não no que categoriza as vítimas
Pelo viés categórico acusatório de Escola preferenciais do movimento, mas no que
“sem” Partido, tal lei ensinaria nas as explicita como consequências sociais
escolas candomblé e umbanda, ou seja, o do colonialismo normativo do cis-
movimento alegava que estaria havendo heteroativismo do movimento.

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Consideramos o movimento Escola bifobia, transfobia, etc. – têm sido
“sem” Partido um ataque claro a signos e utilizadas quando se deseja focalizar em
valores de matriz africana e indígena na grupos cujos marcadores sociais são
sociedade brasileira, sendo marcado por diferentes, mesmo dentro da comunidade
atravessamentos religiosos-moralistas (FARIA, 2018). Tal uso pode ser
católicos que apresentam níveis importante por possibilitar a explicitação
diferenciados de incorporação dos padrões e focos recorrentes de
estratégica de lideranças que possam violências subjetivas e estruturais
espelhar, no movimento, legitimidade enfrentadas pelas diferentes vítimas,
referencial perante algumas minorias e, deslocando a centralidade do homem-cis-
deste modo, o movimento tentou aturdir gay-branco de classe média.
acusações de ser fascista, homofóbico,
Contudo, por vezes, o seu padrão crítico
ginofóbico, transfóbico e racista.
acusatório não deu conta das estratégias
Um fluxo de poder consequente do cis- flexíveis de legitimação do movimento
heteroativismo do movimento Escola Escola “sem” Partido, que pôde
“sem” Partido é a não problematização incorporar seletivamente pessoas
das condições econômicas e sociais que LGBTQIA+ e de outras minorias à sua
forçam corpos designados como agenda de “educação [pública] neutra”
femininos a um lugar estável, fixo, menor centrada na responsabilidade exclusiva
e tutelado em relação ao modelo cis- dos pais na educação moral dos filhos,
homem-patriarcal, com o reforço social como se a centralidade referencial cis-
de uma educação centrada na dualidade hétero não fosse responsável, em
moral para homens e mulheres, a qual contextos capitalistas, pela exposição do
ratifica e naturaliza o entendimento do público LGBTQIA+ à violência
que lhes seria binariamente próprio em estrutural e subjetiva.
termos de capacidades, limitações,
Então, ao centrarmos decolonialmente no
papéis, empregos, modos, roupas, cores,
cis-heteroativismo do movimento Escola
jeitos, tons, humores, afetos,
“sem” Partido, explicitamos as suas
inteligências e comportamentos.
estratégias de manutenção de poder e de
As suas agendas de interdição de definição dos modelos, meios e fatores
conteúdos e atividades curriculares no válidos de reprodução da vida social. Em
ensino público que iriam contra “valores outras palavras, o cis-heteroativismo é
e crenças dos pais” são, de fato, exposto e desnaturalizado como uma
estratégias de legitimação da intervenção convenção social localizada que disputa
moralista-privatista cristã em instituições hegemonia categórica e referencial na
públicas que visam a selecionar sociedade e nas instituições para afirmar
curricularmente o que pode ser dito e ideologicamente apenas uma condição
reproduzido na sociedade, com válida de humanidade, alçada como
privilégios assegurados para uma padrão ou meta universal.
formação educacional com foco
O movimento Escola “sem” Partido é,
tecnicista-produtivista-reprodutivista (e
portanto, uma expressão histórica
cis-heterobinário) útil à manutenção
localizada de cis-heteroativismo. A sua
institucional, biológica e ideológica de
visibilidade pública expôs, em quadro
bases patriarcais cristãs do
extremo, o que infelizmente é corriqueiro
neoliberalismo periférico no Brasil.
nas condutas de representantes políticos
A homofobia e outras denominações (e representados!) que formaram a base
semelhantes – LGBTQfobia, lesbofobia, de apoio do presidente eleito em 2018. É

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com articulação planejada e _____. Heteroactivism: Beyond anti-gay.
aparelhamento institucional-ideológico – ACME: An International Journal for Critical
Geographies, v. 16, n. 4, p. 643-652, 2017.
e não como ímpeto inconsciente – que
sua violência se perpetua estruturalmente CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos
impune contra vidas e corpos Terreiros – e como a escola se relaciona com
LGBTQIA+. crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
Ainda que hoje o movimento Escola
CESAR, M. R. A.; DUARTE, A. M.
“sem” Partido tenha suspendido suas Governamento e pânico moral: corpo, gênero e
atividades enquanto organização, o seu diversidade sexual em tempos sombrios.
núcleo ideológico continua embasando Educação em revista, n. 66, p. 141-155, 2017.
atuações legislativas, judiciárias e
COSTA, Â. B.; NARDI, H. C. Homofobia e
executivas federais e locais desde 2018. preconceito contra diversidade sexual: debate
Daí, focar e expor decolonialmente o que conceitual. Temas em Psicologia, v. 23, n. 3, p.
há de contraditório e localizado nas 715-726, 2015.
formas cis-heteroativista de fazer política
CRUZ, M. T.; VASCONCELOS, C. Gays à
desloca a atenção para a violência direita: por que eles não levantam bandeira.
estrutural que suas condutas normativas Ponte, 2019. Disponível em
promovem enquanto se declaram https://ponte.org/gays-a-direita-por-que-eles-
“neutras”, “normais”, “universais” ou nao-levantam-bandeira/. Acesso em 20.11.2020.
“garantidoras da democracia”. FARIA, M. A. A luta é coletiva, mas a
resistência é individual? Violências
vivenciadas e estratégias de enfrentamento
Referências construídas pela comunidade universitária de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
BEDINELLI, T. O professor da minha filha
transexuais e outras identidades. 2018. 188 f.
comparou Che Guevara a São Francisco de Assis.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) –
Caderno Atualidades, El País, 26 de junho de
Instituto René Rachou/Fundação Oswaldo Cruz,
2016. Disponível em
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