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FORMAÇÃO DE PROFESSORES E PERMANÊNCIA NA ESCOLA:

TENSÕES, HUMANA DOCÊNCIA E CICLO DE VIDA PROFISSIONAL

Dóris Maria Luzzardi Fiss, UFRGS, fiss.doris@gmail.com


Valéria da Silva Silveira, UFRGS, provaleria@gmail.com
Marcos Salmo Silva de Lima, UFRGS, salmo.socram.ms@gmail.com

Resumo: A formação de professores envolve tematização de assuntos que, tocando o


campo da didática, estão relacionados ao trabalho pedagógico e aos modos de
permanência dos docentes na escola. Esta discussão é realizada, aqui, em três
investigações nas quais os pesquisadores buscaram compreender como a educação é
significada, se colocando à escuta de professores da rede pública estadual do Rio
Grande do Sul. Fala-se sobre permanência docente desde sua relação com saberes,
identidades e ação pedagógica. A profissão docente, ainda que, por vezes, associada à
atividade sem prestígio social, é reconhecida como lugar de luta por sujeitos
incomodados com sua condição, mas atentos às responsabilidades assumidas. Discute-
se sobre a história dos professores como experiência de embate entre modos divergentes
de compreender tais responsabilidades e desenvolver a prática pedagógica que tem
oscilado entre educação crítico-reflexiva e educação neutra. A despeito das diferenças,
as falas analisadas indicam que a vinculação do magistério ao exercício do diálogo tem
contribuído para a sua ressignificação. Somado ao anseio por valorização surge um
sentido de que a profissão precisa passar por uma mudança que vise à invenção do
educar costurada a compromisso que implica perceber a escola como espaço de
produção de conhecimento cultural, político, ético e cidadão com gestos
transformadores das pautas políticas, sociais e culturais. Por fim, destacando a
pluralidade e temporalidade constitutivas dos saberes docentes, a carreira pedagógica é
entendida enquanto processo afetado por fatores históricos, sociais, políticos, culturais,
econômicos e de formação. Com estas pesquisas, espera-se estar contribuindo para o
processo de construção de conhecimento no campo da didática desde a tematização da
docência a partir dos movimentos protagonizados por sujeitos que flutuam entre
resistência e desistência, enunciando dificuldades e lutas, neste momento histórico em
que as instituições comprometidas com a formação de professores precisam marcar uma
posição enunciativa singular no cenário nacional.

Palavras-chave: Discurso pedagógico. Permanência e educação. Formação de


Professores.

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NARRATIVAS DOCENTES E PERMANÊNCIA NA ESCOLA:
NEGOCIAÇÕES, TENSÕES, RESISTÊNCIAS

Dóris Maria Luzzardi Fiss, UFRGS, fiss.doris@gmail.com

Resumo: Este artigo discorre sobre os modos de permanência dos docentes na escola. A
pesquisa em questão se justifica por constatações preliminares decorrentes de leituras
relacionadas aos novos desafios endereçados aos professores pela escola do século XXI,
que envolvem, a partir do que propõe António Nóvoa, desde a consideração efetiva das
matrizes culturais dos educandos para a produção do currículo até a incorporação de
linguagens vinculadas aos novos recursos tecnológicos na prática pedagógica.
Provocadas por Michel Pêcheux, Jacqueline Authier-Revuz e Homi K. Bhabha, foi
produzido um trabalho de interpretação de narrativas docentes. A análise de discurso,
principal referencial teórico-metodológico, constituiu-se como elemento mediador de
interpretação. Os sentidos que reverberam nos depoimentos docentes analisados
possibilitaram evidenciar que as professoras buscam, no exercício de sua profissão, as
razões para nela permanecer, demonstrando que, apesar de tudo, este é um espaço de
negociações, tensões e resistências do qual não desistiram.
Palavras-chave: Permanência. Trabalho docente. Análise de discurso.

1. OS PROFESSORES E A PESQUISA

Por que os professores conservam o vínculo com o magistério? Por que optam
pela escola, pelo aluno, pela educação? Como as ausências no espaço escolar
repercutem ou remetem aos sentidos de crise do/no magistério? Tentativas de responder
a tais indagações indicaram que os processos problematizados, quanto aos modos de
permanência dos docentes no magistério, são característicos de muitas escolas da rede
estadual desde um tempo anterior ao do início da investigação apresentada neste artigo,
final dos anos de 1990, até os dias de hoje, meados da segunda década do século XXI –
o que justifica dar continuidade a um estudo cujo ponto de partida data de vinte anos

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atrás. Da janela do presente, retornamos às narrativas produzidas pelos professores da
primeira escola com a qual convivemos como pesquisadores e, provocadas por Michel
Pêcheux (1994; 1999; 2009; 2010; 2014), Jacqueline Authier-Revuz (1982; 1990a;
1990b; 1994; 1998a; 1998b) e Homi K. Bhabha (1998), passamos a pensar a respeito
dos modos de permanência dos docentes na escola desde a opção por uma pesquisa
qualitativa que reconhece na análise de discurso seu principal referencial teórico-
metodológico.
A pesquisa em questão se justifica por constatações preliminares decorrentes de
leituras relacionadas aos novos desafios endereçados aos professores pela escola do
século XXI (NÓVOA, 2009). Eles apontam, talvez, para elementos que podem ajudar
no mapeamento dos modos de permanência do docente na escola bem como dos
sentidos que deles ressoam.

2. DISCURSOS CRUZADOS: OS REFERENCIAIS

Pêcheux (1999; 2010; 2014), ao longo de sua construção teórico-metodológica,


parece ter-se empenhado num projeto que busca acompanhar e, da mesma maneira,
promover um deslocamento da lógica binária através da qual os sentidos são
frequentemente construídos. O retorno a Pêcheux e a seus “esquecimentos” se
dissemina numa outra constatação – o sujeito não é dono de seu dizer. Uma vez
interpelado ideologicamente, filiado a determinada FD (formação discursiva), sob o
efeito da ilusão da transparência da linguagem, perde-se para o sujeito a dimensão
material e histórica do sentido – processos necessários para que tanto sujeito quanto
sentido se constituam. Esses processos são denominados por Pêcheux de
“esquecimentos implícitos” no desconhecimento da natureza ideológica do
reconhecimento, mesmo, efetuado pelo sujeito no processo de interpretação.
Se o sujeito não é sujeito-origem, mas é sujeito-(e)feito de linguagem, quem fala
por ele é o Outro. No campo do Outro, o sujeito se institui. Para o sujeito não existe
centro fora da ilusão (nas palavras de Pêcheux, dos esquecimentos). Consoante Authier-
Revuz, “[...] para um sujeito que é um ‘efeito de linguagem’, não existe, fora da ilusão -
aqui também necessária e normal - posição de exterioridade em relação à linguagem, de
onde o sujeito falante poderia tomar distância” (1998a, p. 60).

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Na esteira desses autores, Homi K. Bhabha (1998) pensa o sujeito a partir de um
estatuto outro que amplia as relações de lógica binária através das quais identidades de
diferença são frequentemente construídas: “[...] a passagem intersticial entre
identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a
diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (p. 22). Sobre esse ponto específico,
Authier-Revuz (1982, 1998a) sublinha a necessidade de não se tomar a divisão/cisão do
sujeito da enunciação como correspondendo à dualidade característica da lógica binária
redimensionada por Bhabha. O sujeito é percebido como constitutivamente
heterogêneo, a linguagem como híbrida e o discurso como temporalmente preso ao
acontecimento.
Dito de outra forma, é possível concluir (e dessa vez com o próprio Lacan) que o
sujeito se vê como é visto por seus semelhantes - o que se constitui na alienação
fundante do sujeito psíquico. No espaço do Outro se situa o ponto de onde o sujeito se
olha. O Outro é o lugar da palavra. Daí Lacan sustentar a ideia de que o sujeito se faz a
partir da linguagem - ideia, aliás, a que retorna Authier-Revuz (1998a) em suas
discussões.
Authier-Revuz, em relação à alteridade, no domínio simbólico, postula a relação
com o outro/interlocutor (heterogeneidade mostrada) e o
Outro/interdiscurso/historicidade (heterogeneidade constitutiva). Filia-se a debates
propostos pelo dialogismo bakhtiniano e na abordagem do sujeito e de sua relação com
a linguagem e com o inconsciente realizada por Freud e, depois, por Lacan. Da
psicanálise, duas concepções despontam: a de uma fala fundamentalmente heterogênea
e a de um sujeito dividido. Estamos inevitavelmente privados de qualquer compreensão
totalizadora da linguagem e somente podemos nos representar num sistema simbólico
que não “dominamos”. O que eu digo não é jamais o que imagino estar dizendo quando
digo. Portanto, como assinala a análise de discurso pêcheuxtiana, os sentidos não estão
onde supomos que eles estejam, porque sempre podem ser outros.
Authier-Revuz enfatiza esse só encontrar o sujeito onde não se supõe que esteja:
na falha, no lapso. Sentidos/Sujeitos que não estão onde esperávamos que estivessem -
estão sempre no outro, no Outro. Estão onde se “perdem” e onde estão “perdidos”
(originariamente, perdidos para sempre). O que se perde, então, parece ser também a
possibilidade de um encontro concreto com o eu graças a uma consciência plena de

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domínios, graças aos supostos poderes da consciência do Cogito, da racionalidade
cartesiana. O que está para sempre perdido parece ser o próprio eu num sentido mais
clássico. Um eu que, na psicanálise lacaniana, termina por se manifestar como algo
inalienável de si, mas, ao mesmo tempo, barrado pela alienação fundamental pelo outro
– daí se falar em sujeito dividido. Daí se pensar num sujeito que é, ao mesmo tempo,
falado e falante, sempre inscrito em processos de (des)constituição de si pelo olhar do
Outro. A autora acrescenta que, nos movimentos enunciativos do sujeito, impõem-se,
igualmente, esses outros sentidos, essas outras palavras que são a voz de um outro de
nós mesmos - “[...] lá, no lapso, a outra voz, de modo conflituoso, suplanta a primeira
ofuscando a sua coerência, e deixando facilmente o enunciador “sem voz” diante do que
disse” (AUTHIER-REVUZ, 1998b, p. 79).
Conclui-se, pois, que Authier-Revuz (1998a), ao buscar em Lacan um enlace
teórico, costurou sua perspectiva a uma abordagem não linguística a partir de pontos
que, reconhecendo a linguagem do desejo que fala no mecanismo da língua (a alíngua),
a divisão e o descentramento do sujeito, o discurso outro e o Outro do/no discurso,
propõem que se busque em tais elementos psicanalíticos os instrumentos para a
descrição dos mecanismos linguísticos do sujeito da enunciação. Instrumentos que não
são exclusivos, mas funcionam como mobilizadores de outras compreensões possíveis
acerca do sujeito e de seus modos de funcionamento.
A abordagem de Pêcheux (teoria do discurso e do interdiscurso como lugar que
escapa à intencionalidade do sujeito) e a de Lacan (teoria do sujeito produzido pela
linguagem e estruturalmente clivado pelo inconsciente) funcionam como “exteriores
teóricos que destituem o sujeito do domínio de seu dizer” – um dizer que, em não sendo
transparente ao enunciador, “escapa, irrepresentável, em sua dupla determinação pelo
inconsciente e pelo interdiscurso” (AUTHIER-REVUZ, 1998a, p. 17).
De tais construções teóricas também se aproxima Bhabha (1998), quando discute
a respeito dos “entre-lugares”. No cruzamento de suas ideias, com as de Pêcheux e
Authier-Revuz, se constituem elos, sobretudo, no que tange à divisão/descentramento
do sujeito e à relação entre heterogeneidade, discurso outro e atos interpretativos. Pode-
se acrescentar, a essa problemática, elementos pertinentes à formação da(s)
identidade(s) dos sujeitos nos entre-lugares exatamente em função de elas serem
tomadas/tocadas por processos ou momentos que se instauram a partir da articulação

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entre diferenças culturais (BHABHA, 1998), um sujeito que, assim, “habita a borda de
uma realidade “intervalar”. E a inscrição dessa existência fronteiriça habita uma
quietude do tempo e uma estranheza de enquadramento” (ibid., p. 35) que tangenciam
componentes tanto culturais quanto sociais e políticos.
É possível, portanto, supor alternativas de encontro entre as abordagens de
Bhabha e Pêcheux pelo retorno e confirmação de uma noção de sujeito dividido,
descentrado (não apenas dual) – o que significa, igualmente, que tais autores, assim
como Authier-Revuz, aceitam sua inscrição numa proposta que acolhe o heterogêneo e
a heterogeneidade de sujeitos e de sentidos os quais habitam/operam as bordas.
Igualmente, os argumentos dos três autores originam uma aproximação daquele objeto
que é de meu maior interesse – a escola em sua heterogeneidade e em sua diferença, as
professoras enquanto o seu mesmo e enquanto o outro delas mesmas. A aproximação
aponta para aquilo que imagino ser o desconforto mais evidente no trabalho de Bhabha,
as implicações sócio-políticas de sua condição hindu-britânica - entre-lugar e, ao mesmo
tempo, lugar de colonização. Segundo ele, a cor da pele se coloca como o significante
chave da diferença cultural e racial no estereótipo.
Se, para o hindu-britânico (como também para outros grupos étnicos e raciais), o
significante chave é a cor da pele, o que ocorre com as professoras? Como os lugares de
estabilização e desestabilização dos sentidos se inscrevem nelas? Como eles se
relacionam com os modos de permanência dos docentes? As questões que ora construo
têm como referência aquilo que é objeto dessa pesquisa e, ao mesmo tempo, demandam
destacar outros argumentos de Bhabha, deslocando o olhar para a própria escola.
Pêcheux (2014) fala em processos de identificação, ou melhor, em “tomadas de
posição reconhecidas como [...] efeitos de identificação assumidos e não negados” (p.
57). O autor, pensando nos processos discursivos a partir dos quais são manifestados
efeitos de sentidos, articula tais processos de identificação a filiações sócio históricas de
identificação que sofrem agitações ou mexidas, (des)constituindo sujeitos e sentidos.
Portanto, de uma maneira ou de outra, tanto Bhabha quanto Pêcheux indicam um
ponto de aproximação entre suas abordagens quando pensam num sujeito dividido. Se
tomar tais afirmações e analisá-las a partir das experiências de constituição de
identidade dos sujeitos-professores, será possível supor que elas se comprovam. Os

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sujeitos-professores, considerados enquanto grupo social, parecem acumular, ao longo
do tempo, identidades plurais.
Ao associar inquietações, referidas ao longo do texto por meio de
questionamentos, às concepções discutidas por Authier-Revuz, Bhabha e Pêcheux sobre
sujeito, linguagem, identidades, reiteramos uma atitude epistemologicamente curiosa
diante do principal assunto aqui discutido: a busca de compreensão dos modos de
permanência do professor na escola desde a consideração do sujeito como descentrado,
da linguagem como heterogênea, cruzando tais concepções com um modo intervalar de
pensar as identidades docentes possibilitado pela análise de discurso. O que se propõe,
nessa perspectiva, é examinar a permanência quanto à possibilidade (ou não) de ser
associada aos deslizamentos do sujeito, acompanhando os modos pelos quais ela se
relaciona (ou não) com saberes e identidades docentes.

3. AS VOZES DOS PROFESSORES

A partir da análise de discurso pêcheuxtiana se origina um processo constituído


por atos interpretativos que se propõem enquanto derivas articuladas por um movimento
que flutua da materialidade linguística (intradiscurso) para a exterioridade
(interdiscurso) e vice-versa, incluindo os movimentos que constituem os sentidos e o
modo como a linguagem engendra as negociações de sentidos entre e pelos sujeitos. A
interpretação termina por se constituir em processo que, atravessado por elementos da
ordem do social e do cultural, faz furo nos universos logicamente estabilizados,
desequilibrando a busca asséptica por sentidos manifestos de que estejam supostamente
ausentes o outro do discurso, o discurso outro, o equívoco, os outros de nós mesmos.
Os referenciais teórico-metodológicos mobilizados possibilitam revisitar os
depoimentos das professoras, tomando o discurso pedagógico como campo discursivo
de referência. Os recortes em análise consistem em depoimentos escolhidos a partir de
critérios que representam os propósitos da pesquisa.

3.1 AS ANÁLISES: “ASSIM” E O ENTRE-LUGAR

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Na SD1, “No básico, a coisa funciona assim: tem gente que faz do magistério
um emprego, tem gente que faz do magistério um bico”, a marca linguística “assim” se
traduz como marca de heterogeneidade mostrada da ordem dos processos reais de
representação, num discurso, de sua constituição. A necessidade indiciada, por meio do
funcionamento do “assim”, em Lia, de definir a si e ao seu trabalho com a maior
exatidão possível, acaba por revelar que algo está sempre a escapar, nesse caso, a
possibilidade mesma de uma definição exata da ação pedagógica.
O funcionamento de “coisa” (no caso, o trabalho docente) se combina com
magistério-emprego e com magistério-bico. O que surge aqui, então, nessas outras
palavras (“emprego”, “bico”)? O que surge como a voz de um outro, ou de outros, do
sujeito-professor? Lia, ao se pronunciar desse modo sobre o ser professor, possibilita
que se identifique um “isso” que fala, em outro lugar, antes e independentemente – o
que se articula ao interdiscurso enquanto “lugar de constituição de um sentido”
(AUTHIER-REVUZ, 1998a, p. 186) que, escapando à intencionalidade do sujeito, se
aproxima de uma concepção sobre a profissão docente segundo a qual ela tem sido
compreendida como atividade subsidiária (bico?) e não especializada, ou seja, como
uma atividade sem status privilegiado ou prestígio social – atividade realizada dentre
muitas outras, talvez, mais importantes.
A constatação de Lia faz com que ocorra um inesperado reviramento, visto que
ela, ao polarizar os modos de identificação dos professores com sua profissão, também
deixa escapar sentidos que, estando no além do magistério-emprego e do magistério-
bico, podem ser associados à permanência do professor. Ao falar que uns fazem da
docência um “emprego” e outros a encaram como um “bico”, Lia refere modos de
permanência do sujeito-professor no magistério relacionados a sentidos de acomodação,
desprestígio social e profissional e, também, de vínculos variados instituídos. Ela parece
querer significar que o magistério, ainda que seja uma escolha, é uma escolha não-
única. No entanto, ao adotar a palavra “emprego”, cria certa tensão com o sentido de
secundarização que ressoa de “bico”, impedindo a estabilização ou a dominância de um
sentido.
Falar em magistério-emprego e em magistério-bico não pode ser traduzido
apenas como polarização dos modos de permanência do professor. Isso quer significar,
também, as oscilações, perdas e conquistas experimentadas pelo professor ao longo de

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sua história. Ademais, Lia, antes de (d)enunciar a menor ou maior responsabilidade do
professor para com seu ofício, deixa escapar pelas suas palavras sentidos que indiciam a
complexidade das posições em confronto no universo pedagógico – posições que
revelam desdobramentos dos sentidos de permanência e dos possíveis modos de
significação da prática docente. Não se fala apenas do professor que assume a docência
como “emprego “e do professor que a assume como “bico”, mas dos muitos modos a
partir dos quais os sujeitos são/estão professores, permanecendo.
Mesmo reconhecendo o tom grave assumido por Lia quando define os
professores a partir dos pólos magistério-emprego e magistério-bico, não é possível
presumir que o sujeito-educador, na trama das malhas de sua prática, habite apenas um
desses pólos. Também o sentido de sua ação se constrói de modo processual. Seus
compromissos, decisões, escolhas, atitudes deslizam por entre tais pólos, talvez, na
busca mesma de ressignificação da imagem social que se tem do professor e que o
professor tem de si. O que indica um modo de permanência que, processual e intervalar,
revela que, por vezes, é na profissão que o docente se compensa e, desde a posição
assumida, procura compreender a sua condição.
Na SD2, “Eu acho que nós estamos atualmente esperando por alguma coisa
assim: algo misterioso, algo que vá resolver”, fala de Clarice, não apenas “alguma
coisa” se combina com “algo misterioso” (sentido de mistério) e “algo que vá resolver”
(sentido de solução), como também surgem, enquanto sentidos outros, a perplexidade
do sujeito-professor diante da longa espera de uma classe que tem ocupado,
historicamente, posições dominadas e ambíguas. Um grupo de pessoas que, ao admitir
sua espera, nomeia o que está esperando: alguma solução, alguma alternativa, alguma
saída para as questões que o tem afligido e desconcertado. Ao mesmo tempo, se
constitui num mistério tanto o tempo pelo qual ainda continuarão esperando quanto os
caminhos que conduzirão à solução de seus problemas. Ainda que um dos sentidos
manifestos esteja relacionado à situação de acomodação do sujeito-professor, ecoam
também sentidos relacionados à miséria da posição desse professor – o que Lia deixa
escapar pelas frestas de suas palavras quando, ao falar em magistério-emprego e
magistério-bico, silencia sobre magistério-trabalho, magistério-ofício.
A marca linguística “assim”, tanto na SD1 quanto na SD2, assinala a busca do
referente que as professoras querem designar, a tentativa de nomear, de entender a ação

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pedagógica. As professoras visam encontrar a palavra mais adequada para traduzir o
que pensam sobre a ação do professor e sua condição no magistério, deslizando de um
significante para outro na tentativa de fixação de um determinado sentido que,
paradoxalmente, está sempre a escapar, não cessa de não se escrever, podendo ser
sempre outro. Não se dão por acaso os deslocamentos de “assim” para “bico” e
“emprego” em Lia e de “assim” para “algo misterioso” e “algo que vá resolver” em
Clarice. Além de esse deslocamento remeter a algo que estaria representando um objeto
desejável, fixado momentaneamente em certas palavras ou expressões – a necessidade
mesma de constituir uma designação para a profissão professor a partir de certos
paradigmas referidos diretamente, ou por silenciamento, pelas professoras –, o “assim”
se constitui como o “assim” da semiprofissão. Os professores esperam não apenas por
terem se acomodado à realidade de sua profissão, mas, sobretudo, porque estão
desprovidos de certezas no que se refere ao seu próprio destino pessoal e profissional.
É preciso lembrar que, independentemente de estabelecer um modo de
identificação com a docência que a percebe como bico, emprego, não profissão ou
semiprofissão, o professor está sobrecarregado de responsabilidades. Sua atividade foi
inflacionada, mas tal inflação de tarefas não provocou uma valorização de sua ação.
Pelo contrário, esse sujeito passa a maior parte do tempo a justificar-se, temendo
desvalorização ainda maior (FONTOURA, 2007).
Com relação às professoras, e parafraseando Lacan (1988), é possível cogitar
que elas não se satisfazem com aquilo que são, mas tudo o que elas são e tudo o que
vivem têm a ver com a satisfação. Elas não se contentam com sua condição, mas, ainda
assim, estando nessa condição que não lhes contenta, contentam-se, nela permanecendo.
A linguagem é permeada pelo desejo e o desejo é inconcebível sem a linguagem. As
professoras, no discurso que se constitui sobre os modos diferentes como se relacionam
com o magistério, deixam escapar, pelas frestas da linguagem, a busca de satisfação de
um desejo que surge, através do “assim”, como tentativa de designar o referente em que
se constitui para elas a ação pedagógica, lhes possibilitando, talvez, compreender o seu
ser/estar na escola, a sua permanência.

4. PARA NÃO CONCLUIR

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Os sentidos que reverberam nos depoimentos docentes possibilitaram uma
aproximação dos modos de permanência dos professores na escola, resultando na
evidenciação de um “entre-lugar” extremamente significativo. Através de sua
manifestação, fomos surpreendidos por um sujeito-professor que se inscreve em vários
lugares de sentidos, não necessariamente opostos, deslizando por mais de uma posição
de sujeito.
É possível, pois, falar em entre-lugar, porque a permanência rompe sentidos de
desistência ou acomodação do sujeito-professor que lança um contraolhar, isto é, um
olhar contra o discurso da desistência e da acomodação na medida em que escapam, por
suas palavras, a sua inquietude diante da condição do ser professor. As professoras estão
aborrecidas, mesmo que assumindo, por vezes, a perspectiva enunciativa dominante de
um discurso colonial. As redes de sentidos, com as quais se filiam, passam por
reviramentos. As professoras buscam, no próprio exercício de sua profissão, as razões
para nela permanecer, demonstrando que, apesar de tudo, este é um espaço de que não
desistiram.

REFERÊNCIAS

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meta-enunciativos (La non-coincidence interlocutive et ses reflets méta-
énonciatifs). Trad. por Alberto Oliveira. 1990a. Texto digitado. 15 pp.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio.


In: ORLANDI, Eni P. Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, São Paulo:
Editora da UNICAMP, 1994. Coleção Repertórios. p. 253-277.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de


Estudos Lingüísticos, Campinas, (19): 25-42, jul./dez. 1990b.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade


constitutiva: elementos para uma abordagem do “outro” no discurso
(Hétérogénéité montreé et hétérogénéité constitutive: elements pour une approche
de l’autre dans le discours). Trad. por Alda Scher & Elsa Maria Nitsche-Ortiz. 1998a.
Texto digitado. 72 pp.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Hétérogénéité montreé et hétérogénéité


constitutive: elements pour une approche de l’autre dans le discours.
Documentation et Recherche en Linguistique Allemande (D.R.L.A.V.), n. 26, p. 91-
151, 1982.

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AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer.
Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1998b.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

FONTOURA, Maria Madalena. Fico ou vou-me embora? In: NÓVOA, António. Vidas
de professores. 1. ed. Porto: Porto Ed., 2007. p. 171-197.

LACAN, Jacques. Do olhar como objeto a minúsculo. In: LACAN, Jacques. Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise - livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
p. 69-115.

NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD69). In: GADET, Françoise;


HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux. 4. ed. Trad. por Bethania Mariani et al. Campinas, SP: Editora da
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PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. 5. ed. Trad. por Eni P.


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PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. Gestos de
leitura: da história no discurso. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. p. 55-66.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória.
Trad. por José Horta nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999. p. 49-57.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed.


Campinas: Ed. da UNICAMP, 2009.

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HUMANA DOCÊNCIA E EDUCAÇÃO DIALÓGICA:
AFETO, PERTENCIMENTO E MUDANÇAS PEDAGÓGICAS

Marcos Salmo Silva de Lima, UFRGS, salmo.socram.ms@gmail.com

Resumo: Este artigo, derivado de pesquisa qualitativa que objetivou interpretar


discursivamente depoimentos de professores que participaram de formação pedagógica
realizada em julho de 2015 em escola da rede pública estadual localizada em Porto
Alegre (Rio Grande do Sul), discorre acerca de efeitos de sentidos surpreendidos em tais
enunciados que tanto estabilizam quanto atualizam a memória sobre a educação em
nosso país. A partir das análises produzidas, percebeu-se que o pertencimento do
professor à educação está intrinsecamente associado à relação de troca e às experiências
com seus colegas e com o alunado. Ainda que não de forma consensual, os docentes
destacaram a necessidade de lutar por um ensino que privilegie a humana docência, a
dialogicidade, compartilhando com crianças, jovens, adultos e idosos não
conhecimentos abstratos, mas conhecimento concretos, isto é, saberes, práticas e
experiências que se inserem em suas realidades e com estas se conectam, contribuindo,
dessa forma, para o repensar da prática de ensino pela problematização relacionada aos
princípios que a sustentam.
Palavras-chave: Permanência. Humana Docência. Dialogicidade.

1. INTRODUÇÃO
Onde e como se produz a docência e os discursos a respeito dela? A resposta
está longe de ser simples ou exata. Há uma enorme quantidade de variáveis que sofrem
influência direta do(s) sujeito(s), da história e da ideologia. Elementos preciosos para
uma abordagem enunciativo-discursiva. Tal abordagem é o instrumento principal neste
trabalho. Aqui, buscamos discorrer acerca dos efeitos de sentidos surpreendidos em
discursos produzidos por sujeitos inscritos na prática educacional, em especial, efeitos
de sentido de humana docência.
Para reforçar nossa proposta teórica, usaremos, como arcabouço teórico, dois
autores que contribuíram para o pensar sobre a relação aluno/a-professor/a, tendo em

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vista que suas teorias tomam como referente o/a sujeito-educador/a e o/a sujeito-
educando/a e suas interações. Os autores são: Paulo Freire, e sua teoria a respeito da
dialogicidade, e Miguel Arroyo, com sua perspectiva da docência humana.

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2. EFEITOS DE SENTIDO: PARÁFRASE E POLISSEMIA

A Análise do Discurso, disciplina de interpretação à qual estamos filiados,


envolve uma análise contextual das práticas discursivas. Em nosso caso, a prática
discursiva docente. O contexto histórico-político-social, em que os sujeitos estão
inseridos, determina diretamente as ideologias presentes em um discurso. Este, sendo
objeto primordial da análise do discurso, considera a linguagem em funcionamento, os
efeitos engendrados através do seu uso e o sentido social que se constrói, e este sentido
encontra-se sempre aberto à interpretação. Como afirma seu fundador, Michel Pêcheux
(2008),

Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de


si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para outro
[...]. Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente
descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de
deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que
pretende trabalhar a análise de discurso. (p. 53).

Todo processo da produção de sentidos está sujeitado à contingência: o sentido


escapa à sua estabilidade, acarretando em outro sentido. O acontecimento torna-se o
espaço da interpretação, da ideologia, da historicidade. O lugar da enunciação é aquele
no qual os sentidos são postos à prova (ORLANDI, 2012b). A interpretação sempre se
dá desde algum lugar da história e da sociedade e tem uma direção. Nela, o lugar
mesmo do movimento, do vestígio do possível, das plataformas movediças, é lugar
também do trabalho de estabilização. Dessa forma, como explana Orlandi (1996), ela
estabelece relação com o silêncio e a incompletude - a partir dela se processa a abertura
da linguagem (não há linguagem em si) e a abertura do simbólico (movimento de
significação entre a paráfrase/repetição e a polissemia/diferença). Portanto, o sentido
surge como uma questão aberta e sempre em curso. E a interpretação pode ser entendida
como exposição à opacidade do texto, compreensão/explicitação do modo como um
objeto simbólico produz sentidos ligados à ideia de que o sentido sempre pode ser outro.

2.1 ESTABILIDADE E MOVÊNCIA TEÓRICA: EFEITOS DO SER/ESTAR


DOCENTE NA ESCOLA

16
A condição de produção discursiva docente é o lugar que, segundo Pêcheux,
abriga a história, dito de outra forma, a história do magistério, isso quer dizer que o
acontecimento dos fatos do dia a dia, do cotidiano da carreira docente é o lugar de
produção de sentidos da identidade docente. É no acaso da relação entre os sujeitos-
professores/as que a história se constitui e que os/as constitui. A história, então, como
acontecimento situado, específico, surge na luta de classes, na luta dos dominados
contra os dominantes, na segregação, na exploração econômica, na desigualdade étnica,
cultural e social. A história do/a professor/a surge na luta entre práticas pedagógicas
divergentes, entre professor/a passivo/a e professor/a ativo, entre uma educação crítico-
reflexiva e uma educação neutra, entre uma compreensão vertical e uma compreensão
horizontal das relações político-pedagógicas.
Pensamos que o ser/estar docente se configura borrifado por um sentimento
humano que se efetiva na experiência do afeto, da reciprocidade solidária, do
relacionamento simétrico entre educador(a) e educando(a), enfim, na compreensão do
ser humano desde a consideração amorosa do outro, como nos mostram Freire (2017) e
Arroyo (2013). Dito isto, percebemos linhas de pensamentos ou, como a análise de
discurso aborda, movimentos de sentidos parafrásticos entre os referidos autores.
Paulo Freire (2017), desde a teoria da dialogicidade, trabalha a educação como
um instrumento de transformação, problematizando o mundo, criticando-o e refletindo
sobre ele e nele. Ele toma o diálogo como condição principal em sua reflexão,
considerando-o fenômeno inteiramente humano. A palavra surge, pois, não como
simples meio de interação, mas como necessidade na busca dos elementos que
constituem o diálogo, a saber: ação e reflexão. Segundo Freire, “[...] não há palavra
verdadeira que não seja práxis” (p.107). Pela palavra verdadeira, o sujeito é capaz de
transformar o mundo. Quando ambas, ação e reflexão, não trabalham conjuntamente,
ela, a palavra, é inautêntica, não podendo ser elemento de transformação da realidade: a
palavra fica oca, não operando na denúncia do mundo, “[...] pois que não há denúncia
verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação” (p.108). Destaca,
também, um elemento importantíssimo para se pensar a ação dialógica, elemento que,
também para nós, é primordial: o amor. Para ele, “[...] porque é um ato de coragem,
nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. [...] Se não amo o mundo, se
não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (p.111).

17
Ainda para ele, a ação dialógica deve estar repleta de amor, de amor ao próximo,
ao mundo, a si mesmo; de maneira conjunta, devemos (voltar a) amar humanamente,
pois, sem este sentimento, nunca conseguiremos pronunciar a palavra verdadeira, nunca
dialogaremos, pensaremos no outro com interesse que não será amoroso, prejudicando a
ação e reflexão, estagnando o transformar do homem pelo mundo e por ele mesmo.
Sobre a humana docência, Miguel Arroyo (2013) vai dizer que

No convívio com a infância popular percebemos que algo falta em nosso


ensinar, que esperam mais de nós e do seu tempo de escola, um tempo tão
difícil de segurar diante das pressões da sobrevivência. Descobrimos os
educandos, as crianças, adolescentes e jovens como gente e não apenas
como alunos. Mais do que contas bancárias, onde depositamos nossos
conteúdos. Vendo os alunos como gente fomos redescobrindo-nos também
como gente, humanos, ensinantes de algo mais do que nossa matéria. Fomos
revitalizando os conteúdos, repensando-os e selecionando-os em função do
educandos, de sua formação, de sua educação. Nesse processo de redefinir o
saber escolar, as funções sociais, políticas e culturais da escola em função de
projetos de sociedade e de ser humano, de cidade e de cidadania, não
perdemos a centralidade nem do conhecimento, nem de nosso oficio de
ensinar. Nos redescobrimos em horizontes, intencionalidade e significados
mais abertos. Reaprendemos que nosso oficio se situa na dinâmica histórica
da aprendizagem humana, do ensinar e aprender a sermos humanos. Por aí
reencontramos o sentido educativo do nosso oficio de mestre, docentes.
Descobrimos que nossa docência é uma humana docência. (grifo nosso) (p.
53)

Assim, tomando como suporte o que diz Arroyo sobre a humana docência e
Freire sobre a dialogicidade na educação, empreendemos analisar depoimentos de
docentes da educação básica.

3. ANÁLISES

Consideramos, para fins de interpretação, algumas sequências discursivas


produzidas em formação pedagógica realizada em 21 de julho de 2015, colocando à
prova nossa hipótese de que os efeitos de sentido de permanência do/da professor/a
estão inseridos num sentimento da docência humana ou “humana docência” que afeta a
memória sobre a educação, portanto, também os campos da didática e da formação de
professores. As SDs analisadas são: “Uma segunda família, um segundo lar que possa
ser unida e onde possamos nos sentir felizes [...]” (SD1) e “[...] é necessário humanizar
o conteúdo, ser afetivo e ser honesto de modo que o conhecimento corresponda a um
instrumento de transformação social” (SD2).

18
As SDs escolhidas surgiram como respostas ao questionamento “Que escola
queremos?”. Elas remetem a um sentido que reforça a permanência. Seguindo as
operações de observação do corpus propostas por Ernst-Pereira e Mutti (2011), o que
nos causou estranhamento, em virtude do seu excessivo uso, foi a palavra ser que se
encontra em todas as SDs. Como a gramática de Celso Cunha (2017) aponta, o verbo de
ligação serve para estabelecer a união entre duas palavras ou expressões de caráter
nominal, funcionando como um elo entre o sujeito e o seu predicado. Ele pode
expressar estado permanente, transitório, mudança de estado, continuidade de estado e
aparência de estado.
Na SD1, “Uma segunda família, um segundo lar que possa ser unida e onde
possamos nos sentir felizes [...]”, o verbo ser é o principal e está auxiliado pelo verbo
poder, de acordo com Celso Cunha (2017), agregando um valor de aparência de estado.
Nesse caso, trata-se da escola e do desejo de que ela seja mais parecida com uma
família, possuindo todas as características que, segundo os professores, esta deve ter:
uma família deve ser unida, segura, aconchegante, devemos nos sentir muito felizes
nela.
Já na SD2, “[...] é necessário humanizar o conteúdo, ser afetivo e ser honesto de
modo que o conhecimento corresponda a um instrumento de transformação social”, o
significado do verbo ser no enunciado “é necessário humanizar o conteúdo [...]” está
revestido de um sentido de mudança de estado, de tornar a ser, de modificação, de
transformação. Envolve transformar uma escola conteudista, que assume como
preocupação preponderante os conteúdos escolares, em uma escola mais humana, que
toma para si o compromisso de articulação entre conteúdos escolares e conteúdos de
vida. E, nos enunciados “[...] ser afetivo, ser honesto [...]”, temos um sentido de estado
permanente, atribuído à escola ou aos/às agentes que a formam. A instituição
educacional corresponde ao elemento formador de um cidadão que precisa encontrar,
em seu lugar de formação, de constituição, um espaço para onde possa olhar com
sentimento de união, familiar, um local em que haja sentidos de felicidade.
Ao analisar as SDs, inferimos que há uma memória discursiva que clama um
sentido de afetividade manifesto nas materialidades discursivas. Os/As professor/as, ao
se sentirem parte constituinte da organização escolar, apostam numa visão curricular
que vá além de uma educação bancária. Se olharmos atentamente, perceberemos um

19
efeito parafrástico: as SDs são diferentes e foram produzidas por sujeitos diferentes,
mas compartilham “o mesmo sentido”. Pêcheux (2009) alerta para isso quando se refere
à construção do sentido. De acordo com ele,
De modo correlato, se se admite que as mesmas palavras, expressões e
proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma
outra, é necessário também admitir que as palavras, expressões e
proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação
discursiva dada, “ter o mesmo sentido” o que [...] representa, na verdade, a
condição para que cada elemento (palavra, expressão ou proposição) seja
dotado de sentido. (p.148) (grifos do autor).

Assim, como sentido que surge, a partir de saberes e práticas compartilhadas, de


uma rede de filiação em que os sujeitos estão inscritos, rede a qual eles constituem e de
que são constituídos, evidenciamos, no objeto simbólico ser, um anseio por respeito,
por mais valorização na/para docência. Mas também, esse mesmo verbo ser surge com
um sentido de que a docência deve passar por uma mudança pedagógica que vise à
valorização de educar com um sentido de afetividade, um sentido não somente
financeiro, mas, principalmente, de relação que encontre na humana docência uma
aposta e um compromisso que implica olhar para o/a educando/a como um sujeito em
processo de se tornar humano, de se “genteficar”, de ver na escola um espaço
constituído por pessoas unidas em torno de afetos e objetivos comuns. Também
constatamos que o sentido de pertencimento do/da docente está intrinsecamente
associado à relação de troca e às experiências com os seus colegas e com o alunado.
Nesta ótica, consideramos que os/as sujeitos-educadores/as estão filiados a um
saber e uma prática docente inseridos em uma formação social brasileira que, apesar de
organizada a partir de um modelo hierárquico que investe na divisão de classes, de
saberes e de poderes, eles não temem transgredir. Filiados a saberes educacionais,
surpreendemos, em SD1 e SD2, sentidos que indicam modos e finalidades da luta a
ressoarem não somente em ser e é, mas também em outros itens lexicais que fazem
parte dessa trama – sentir felizes, humanizar, honesto sendo designados por nós como
efeito de sentido de docência humana. Seria dizer que o sujeito-professor se filia a
sentidos que derivam de discursos sociais os quais abrigam certas memórias sobre a
docência, mas, ao mesmo tempo que se sujeita a elas, provoca uma mexida nas mesmas.
Orientados pelos enunciados, percebemos que os sujeitos-professores,
identificados com a posição-sujeito professor-luta, ao produzi-los, remetem a um

20
sentido de escola que visa ensinar e aprender com a relação humana, relação que Arroyo
chama de humana docência e que Freire chama de diálogo. Considerando uma questão
histórica que envolve o magistério, afetada pela memória discursiva acerca dos docentes
segundo a qual suas práticas e seus ensinamentos eram vistos como simples vocação,
fruto da facilidade de lidar com crianças, enfim, um magistério que não precisava de
muito estudo, formação e qualificação, magistério que tem como representação
histórico-social ainda bastante presente a feminização do trabalho e o vínculo com a
maternidade, o enunciador assume a posição-sujeito professor-luta e, ao fazê-lo, rompe
com tal memória, atualizando-a. De certa forma, agrega sentidos outros às memórias
discursivas da docência que acolhem novos sentimentos relativamente à prática docente
e à própria constituição da identidade profissional do/a educador/a. Expressões como
sentir felizes (SD1), humanizar o conteúdo e conhecimento corresponda a
instrumento de transformação social (SD2) remetem a um reviramento da rede de
sentidos, da memória discursiva, propondo o magistério não como resultado de
competência inata ou de inspiração, mas como trabalho rigoroso a ser realizado por
um/a professor/a protagonista e comprometido/a com atividades que extrapolam o
cuidado maternal dos/as aluno/as ou a transmissão de conteúdos sem propósitos sociais
maiores.
Paulo Freire (1967) foi (e ainda é) um dos educadores que produziu e
transformou a prática docente, preocupando-se com uma educação libertadora e uma
pedagogia democrática na qual os sujeitos, homens e mulheres, ao ensinarem e
aprenderam a cultura, a política, a ética etc., pudessem contribuir para uma sociedade
menos desigual e seletista, para uma formação humana mais crítica, se posicionando
com autoridade e conhecimento diante de determinada ideologia. Para ele, a “educação
é um ato político”, um instrumento educativo de igualdade social e, segundo tal
pensamento, os/as alunos/as precisam ter consciência de seu lugar na sociedade, o lugar
de oprimido/a, e a educação teria um papel fundamental de libertar o/a sujeito de sua
opressão e revelar seu local de oprimido/a. Os sentidos de genteficação das relações
pedagógicas, de quebra das hierarquias nos espaços escolares, de problematização da
docilização do outro, de empoderamento, de luta por justiça, de educação como
revolução ressoam nas concepções defendidas por Paulo Freire e, assumidos pelo
enunciador desde sua posição-sujeito professor-luta, apontam para a mobilização da

21
memória da docência desde um movimento de estabilização-desestabilização de
sentidos.
Construindo, a partir desta nova visão, a prática docente, e consequentemente
sua identidade profissional, os/as próprios/as professores/as em suas experiências e
práticas passam a abordar um ensino mais local, isto é, começam a enxergar a realidade
sociocultural do alunado. Claro que estas abordagens não alcançam todas as escolas, é
um trabalho difícil. Levará ainda alguns anos para que os/as professores/as olhem para
seu público, não como sujeitos-alunos/as passivos/as para o quais o conhecimento é
transmitido sem nenhuma reflexão crítica, mas como um(a) sujeito-aluno/a ativo/a que
age sobre o conhecimento, produzindo sentido a partir dele/a.
A valorização cultural, financeira, de formação do/da professor/a, a constituição
de sua identidade, o bem-estar docente, seu papel e sua função social estão todos
relacionados à permanência do/da docente. Todavia, as dificuldades com que o/a
professor/a se depara na sua vida docente: a diversidade social e cultural dos alunos/das
alunas dentro de sala de aula, a indisciplina e falta de respeito, a desvalorização salarial,
as condições precárias da escola, o abandono da educação pelos governos, os problemas
de saúde em virtude de uma sala lotada, de excessivas burocracias, enfim, tais
dificuldades também são modos de permanecer.
De certa forma, os docentes, ao se pronunciarem da forma como o fizeram nas
SD1 e SD2, parecem estar chamando a atenção para a necessidade de lutar por um
sentido de ensino que privilegie a humana docência, a dialogicidade, apresentando às
crianças, aos jovens, aos adultos e aos idosos não conhecimentos abstratos, mas
conhecimentos concretos, isto é, saberes, práticas e experiências que se inserem em suas
realidades e com estas se conectam.
Ao trabalharmos com AD, constatamos que, ao mesmo tempo que há um sentido
no dito, há também um outro no não-dito. No momento em que os sujeitos-professores
produzem seus enunciados, carregados de uma memória discursiva feita de algo que foi
dito antes e em outro lugar, se manifesta também o que não foi dito, mas que,
igualmente, ressoa. Neste caso, assim como evidenciamos sentidos de docência
humana, sentidos de uma prática docente que compreende o/a discente como um ser em
pleno desenvolvimento, na própria SD em análise, surpreendemos, como não-dito,
sentidos associados a práticas e princípios conteudistas, pois, ao olharmos a história do

22
magistério, constataremos que, em sua prática docente, era incentivada uma forma de
ensino com pouca ou nenhuma relação de afeto entre os/as agentes envolvidos.
O efeito de sentido conteudista, que surge no espaço do não-dito, do silêncio que
significa, para nós, está associado a uma prática educacional na qual a educação é vista
como um objeto de ensino e instrução sem reflexão, comprometida apenas com a
criação de operários para o mercado de trabalho, ou seja, a educação passa a ser apenas
transmissão dos padrões, normas e modelos das classes dominantes, e os conteúdos da
escola são separados da realidade social dos/as alunos/as, sendo impostos como verdade
absoluta num contexto em que somente o/a docente tem razão, baseando-se na
memorização, o que contribui para uma aprendizagem mecânica, passiva e repetitiva. A
filiação a tais sentidos se agrega às práticas ideológicas dominantes, dividindo o
alunado em sujeitos que merecem uma educação privilegiada, com acesso à informação,
aos bens culturais e sociais; e sujeitos que não a merecem, que não tem acesso a esta
informação e a estes bens, esquecendo que este/a sujeito-aluno/a, mais do que “conta
bancária”, é um ser humano em desenvolvimento, construindo-se na/pela relação com o
outro nos espaços escolares e não-escolares.
Diante da prática ideológica dominante, Arroyo (2013) considera que os
docentes podem se ver preparados, dominando e trasmitindo conteúdos bem
organizados e planejados à aula, inter e transdiciplinar e em qualquer ano de ensino, e
independente da idade, alimentando, assim, uma imagem neutra, sem paixão, amor ou
ódio, enfim, sem emoção e motivação, não direcionando ao fundamental que é
humanizar o corpo discente.
A partir das práticas docentes, percebemos que os efeitos de sentido associados à
permanência estão relacionados com o/a sujeito-educador/a e com a história da (sua)
docência. Tudo isso, atravessado por uma memória discursiva que se configura no
batimento do repetível e do novo. As posições ideológicas que estes docentes assumem
no seu dizer, ao enunciarem que desejam ter “[...] uma segunda família, um segundo lar,
que possamos ser unidos e onde possamos nos sentir felizes” e que “[...] é necessário
humanizar o conteúdo, ser afetivo e ser honesto [...]”, são processos ideológicos, na
base linguística, que produzem efeitos de sentidos de uma relação mais humana entre os
agentes envolvidos no ato de educar. Efeitos que ressoam, como dito antes, nas

23
expressões ser unidos, sentir felizes, humanizar o conteúdo, ser afetivo e ser
honesto.
Há um interdiscurso que atravessa esse intradiscurso, visando mostrar um
compromisso destes/as professores/as com a educação transformadora, uma práxis –
ação-reflexão. Uma educação que seja ferramenta contra a alienação, enfim, uma
educação que intervenha no mundo contra os domínios da ideologia dominante que tem
como eficácia educacional um mascaramento da divisão, da segregação, da seleção de
quem pode e quem não pode possuir uma vida social, econômica, profissional digna.
Do mesmo modo, ressoa nos dizeres analisados o fato, contemporâneo a nós, de
que as várias formas de educar e suas diferentes perspectivas pedagógicas hoje estão em
conflito. Sob a ótica da AD, a tensão entre estas práticas está coadunada com processos
ideológicos que estão a todo tempo se contradizendo, pois, ainda que todos os
enunciados constituam uma mesma rede de saberes, os sentidos são instáveis e os
sujeitos deslizam de uma posição para outra. Posições que, às vezes, estabelecem
relação de conflito entre si. Os/As docentes, que reproduzem/transformam diferentes
pedagogias, estão inseridos cada um em uma prática, um saber, um ritual que é
ordenado, organizado, controlado pela ideologia à qual o sujeito se assujeita. De modo
mais claro, a rede de formulações e de efeitos de sentidos aponta para um
acontecimento histórico que faz parte do campo do desejo dos docentes, mas ainda não
aconteceu em sua radicalidade. Um acontecimento histórico que não está vinculado à
desescolarização da sociedade, mas ao abandono de concepções e princípios sustentados
por um paradigma epistemológico e social que tem feito da escola uma promotora,
principalmente, de educação bancária da qual afetos são apartados dos sujeitos e dos
saberes. Um acontecimento histórico que, antecipado nA escola que queremos, talvez
reclame sentidos outros, sentidos ainda não ditos ou ditos em parte, ditos e encobertos
por certa quietude do dizer, por certo silêncio do dizer que significa. De certa forma, os
enunciadores, ao deslizarem de uma posição-sujeito para outra, retomam o estabilizado
e o atualizam, se inscrevendo no repetível histórico a partir do dito, do não-dito, do já-
dito.
Segundo nossa percepção, ao se inscreverem, por identificação, em determinado
saber, alguns discursos são permitidos; outros, não. Mas isso não significa que não se
façam presentes, pela ausência, no silêncio que significa e a partir do qual o sujeito

24
significa o seu dizer e se significa. Ao reverberarem sentidos de docência humana com
os quais se ligam outros tantos sentidos que falam sobre uma escola que faça sentido
porque integrada à vida dos sujeitos que, então, passam a vivê-la com desejo de saber,
no não-dito, que também ressoa, surpreendemos efeitos de sentidos que apontam para
uma prática ideológica e elitista que não está a serviço das classes sociais menos
privilegiadas.

4. CONCLUSÃO

A preocupação e o compromisso com o humano precisa ser a principal


peculiaridade da prática docente, do ofício de professor, dotado de emoção, empatia e
vontade de transformar a educação, visando à aprendizagem que se faz por meio de
relação recíproca entre educando/a e educador/a, priorizando o universo social, político,
econômico e cultural do alunado. Para Freire, só haverá um verdadeiro diálogo se
houver um pensamento verdadeiro. Um pensar crítico, onde não reconheça a dicotomia
homem-mundo, aceitando entre eles uma inquebrável reciprocidade. Assim, quando se
pensa criticamente, nos incomodamos, nos movimentamos, tornamo-nos seres inquietos
e inquietantes, diferente do pensar ingênuo. Conforme Freire, pensar ingenuamente é
agarrar-se a um espaço já garantido, ajustando-se a ele e, negando a temporalidade,
negar-se a si mesmo; é somente pelo diálogo que este espaço sai da inércia, podendo
assim gerá-lo.
É, então, no devir que compreendemos que a luta contra a ideologia dominante é
mostrada. A partir da reunião com os/as professores/as da escola pública estadual, a
partir do que eles disseram e não disseram, construímos as análises teórico-
metodólogicas, quebrando os sentidos cristalizados nas marcas linguísticas. O sujeito,
ao produzir seu discurso, o faz afetado pela ideologia e pelo inconsciente, inscreve-se
num determinado saber/conhecimento/prática, inscreve seu dizer num repetível
histórico. Este repetível nos faz interpretar que os/as educadores/as criam e praticam
estratégias para continuar na docência, nesta profissão que, segundo sua história, passa
por enormes mudanças que se confrontam, experimenta conflitos e lutas a fim de
derrubar os efeitos de sentidos enraizados na memória social segundo os quais, para ser
docente, basta saber lidar com crianças, gostar delas, ser babá, ou mesmo, que ser

25
professor/a é a única forma mais acessível de sair da vida miserável da população
brasileira. Em outras palavras, seria dizer que o sujeito não apenas inscreve seu dizer
num repetível histórico, mas, ao retomar as formulações, as devolve, atualizadas, para
este repetível, provocando mexidas na memória discursiva que podem apontar para o
que ainda está por ser inventado na educação, para uma história da docência e da
permanência que está a reclamar sentidos outros.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. – 15º Ed. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2013.

ERNST-PEREIRA, Aracy; MUTTI, Regina Maria Varini. O analista de discurso em


formação: apontamentos à prática analítica. Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n. 3, p.
817-833, set./dez. 2011. Disponível em:
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/18486/14344

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra LTDa,
exemplar: 1405, 1967.

ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

ORLANDI, Eni P. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. –4ª Edição,
Pontes Editores, Campinas, SP, 2012.

PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni P. Orlandi.


5. e. Campinas, SP: Pontes Editores, 2008.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Tradução Eni Pulcinelli Orlandi (et al). 4. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2009.

26
DISCURSO DOCENTE: SABERES,
CICLO DE VIDA PROFISSIONAL E PERMANÊNCIA

Valéria da Silva Silveira, UFRGS, provaleria@gmail.com

Resumo: Este trabalho está associado a estudo sobre o ciclo de vida profissional
docente e a permanência na educação, considerando conversa ocorrida em reunião de
planejamento de que participaram quatro professoras e a supervisora educacional de
escola localizada no litoral norte do Rio Grande do Sul no ano de 2015. Ele visa
compreender os sentidos da docência que reverberam nos enunciados docentes.
Baseando-se em Michel Pêcheux, Michael Huberman e Maurice Tardif, reconhece a
complexidade da carreira docente na atualidade, visto que os docentes vivem em um
espaço carregado de afetos, sentimentos e conflitos. Percebe, a partir da análise
discursiva dos depoimentos docentes, as posições assumidas pelas docentes, indicando
traços difusos e contaditórios de mal-estar que se associam, contraditoriamente, à opção
declarada de manter o vínculo com o magistério, não desistindo da profissão professora.
Palavras-chave: Ciclo de vida profissional docente. Permanência. Discurso
pedagógico.

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo, apresento resultados de investigação qualitativa que objetivou


compreender sentidos de docência que reverberam em enunciados de quatro professoras
de ensino fundamental (séries finais) desde a consideração dos ciclos de vida
profissional dos professores e da permanência na educação. Como caminho teórico,
sigo, na qualidade de principal base referencial, a Análise de Discurso de tradição
francesa fundada por Michel Pêcheux desde estudos desenvolvidos por ele e,
igualmente, por Eni Orlandi. Importante esclarecer que o termo “ciclo de vida docente”
está sendo utilizado no sentido que Michael Huberman (2000) e Maurice Tardif (2012)
conferem a ele, dois autores igualmente importantes para a investigação apresentada
aqui.
Os objetivos pretendidos neste estudo resultam de inquietações que assumem a
forma de questões de pesquisa assim enunciadas: Que relações podem ser estabelecidas
entre o ciclo de vida profissional docente e os modos de permanência na escola? Como

27
elas reverberam nos dizeres dos docentes? Que efeitos de sentidos sobre os modos de
ser docente na escola ressoam no discurso pedagógico? O que eles revelam sobre o ciclo
de vida docente? Tais perguntas são fundamentais para a análise dos depoimentos,
considerando a relevância do tema para compreenção das identidades, da permanência
docente e da relação entre identidades, permanência e trabalho docente.

2. REFERENCIAIS
2.1 CICLO DE VIDA PROFISSIONAL DOCENTE EM HUBERMAN

Segundo Michael Huberman (2000), pensar sobre o ciclo de vida docente


enquanto algo a ser estudado remete logo às pesquisas de Henry Murray, Gordon
Allport, Freud e Erikson que, com a Teoria Psicossocial do Desenvolvimento (1950),
indica oito fases da vida, e a famosa obra Estudos de Vidas (1952) de Robert White,
sem esquecer que, depois deles, outros pesquisadores também deram contribuições
importantes. Ainda cabe referir que, antes de Huberman, H. Becker (1970) fez uma
tentativa de aplicar as abordagens psicossociais ao estudo sobre professores, pois, até os
anos 60, havia uma ausência de pesquisas sobre a carreira docente. A maioria dos
debates, naquela época, tratava apenas da formação inicial e do princípio da carreira, do
professor iniciante.
Há diversas maneiras de estruturar o ciclo de vida profissional. Segundo
Huberman (2000), por vezes, ele foi delimitado em “sequências” ou “maxiciclos”,
contudo, eles não são necessariamente vividos em uma mesma ordem nem há garantia
de que sejam experienciados por todas as pessoas de uma dada profissão. Para
exemplificar, o autor faz referência ao trabalho Coming of age in Middletown: Careers
in the making, de D.E. Super (1985), no qual é destacado que há pessoas que
“estabilizam” cedo, outras que o fazem mais tarde, outras que não o fazem nunca e
outras ainda que estabilizam para desestabilizar em seguida. O desenvolvimento de uma
carreira é, assim, um processo e não uma série de acontecimentos1.
Em seu trabalho, Huberman se propõe a analisar o ciclo de vida profissional dos
professores a partir da perspectiva “clássica” de carreira. Ele estuda a carreira, aqui
chamada de “vida profissional”, atentando para o que designa como “carreira

1
Ressalto, aqui, que acontecimento, para Huberman, corresponde a fato da vida linearmente marcado.

28
pedagógica”. Essa análise permite uma abordagem psicológica e sociológica sobre o
percurso de uma pessoa numa organização, e compreensão sobre como as características
dessa pessoa exercem influência sobre essa organização e, ao mesmo tempo, são
influenciadas por ela. Assim, optou por estudar apenas a vida profissional daqueles que
exercem a docência e, atuando em sala de aula, vivem diferentes momentos
profissionais. Dessa maneira, o autor lançou questionamentos a partir dos quais
estabeleceu uma tipologia relacionada a momentos do docente em sua carreira, a saber:
qual o ciclo de vida profissional dos docentes? O que é possível saber das “fases” ou
dos “estádios” de vida dos docentes? Huberman propõe uma sequência de fases:
Figura 1 – Percurso esquemático do ciclo de vida docente

Anos de carreira Fases da carreira

1-3 Entrada

4-6 Estabilização

7 - 25 Diversificação Questionamento

25 - 35 Serenidade Conservantismo

35 - 40 Desinvestimento

Fonte: HUBERMAN (2000, p. 47).

Há, com certeza, outros percursos e subgrupos de docentes que seguem


diferentes caminhos. Para Huberman, a identificação destes percursos, chamados de
“subfamílias”, teria mais significação do que a identificação de um percurso geral, pois
assim não sacrificaria um número considerável de particularidades essenciais.

2.2 SABERES ESTRUTURANTES E TEMPORALIDADES EM TARDIF

Assim como Michael Huberman, o pesquisador canadense Maurice Tardif


considera o docente ao longo de sua carreira profissional e das demandas surgidas nesse
tempo. No entanto, ao fazê-lo, explora os saberes docentes e, em certa medida,
apresenta uma “tipologia” de saberes a partir dos quais os docentes podem ser
compreendidos levando em consideração fatores históricos, sociais, politicos, culturais,

29
econômicos e de formação. Oferece, assim, complementações para a pesquisa de
Michael Huberman e contribuições para a investigação apresentada neste estudo.
Tardif alerta que não se deve cair no sociologismo, pois este tende a eliminar a
contribuição dos atores na construção do saber, tratando como produção social em si e
por si mesmo, independentemente da contextualização do trabalho dos professores. Para
compreender a natureza dos saberes dos professores, é preciso colocá-los em relação
com os docentes, com seus espaços, suas opiniões e falas, pois, como dito
anteriormente, trata-se de um saber social, ao mesmo tempo que preza pelas
individualidades, haja vista “social” não querer dizer “supraindividual”, e sim produzido
na relação, na interação.
Além disso, o pesquisador aponta para a pluralidade e a temporalidade
constitutivas dos saberes dos professores. A pluralidade dá-se pela composição
heterogênea do próprio exercício do trabalho, uma vez que o conhecimento e as
experiências provêm de fontes variadas. Os diversos saberes dos docentes estão longe
de serem produzidos exclusivamente por eles e\ou serem originários apenas do seu
trabalho cotidiano. Alguns professores são filhos de famílias de docentes ou sofreram
influências da escola onde ocorreu a formação, da sua cultura, sendo seus saberes
provenientes desses contextos; outros saberes estão marcados pelas experiências vividas
na universidade ou em outro tipo de instituição formadora, se relacionando a programas,
regras e princípios pedagógicos; outros saberes provêm dos pares, dos cursos de
formação. Assim, Tardif (2012) afirma que o saber profissional está na confluência de
vários saberes oriundos da sociedade, da instituição escolar, de outros atores
educacionais, das universidades e\ou outras agências de formação.
Quanto à temporalidade, é importante considerar que o saber do professor é
adquirido no contexto de uma história de vida e de uma vida profissional. Ensinar
implica em aprender a ensinar. Assim, precisam também ser consideradas as
experiências familiares e escolares anteriores à formação inicial para o exercício do
magistério.
As primeiras imagens do que é ser professor surgem quando se é aluno ainda.
Uma vez que assuma a docência como escolha profissional, o sujeito já sabe, por causa
da sua história escolar, o que é educação, ensino, aprendizagem, pois já teve um
primeiro encontro com os conhecimentos didáticos a serem estruturados na docência.

30
Trata-se de um saber herdado da experiência como aluno, algo que persiste através do
tempo, capaz de não ser alterado pela formação universitária. Contudo, as
temporalidades de que também são feitos os saberes docentes existem não somente em
função da história escolar ou familiar dos professores, mas resultam igualmente da
carreira profissional devido à socialização com colegas e alunos, às fases de
transformação, às continuidades e às rupturas que ocorrem.
Os saberes desenvolvidos no cotidiano escolar e no conhecimento do meio
docente são chamados de saberes experienciais. São incorporados na experiência
individual e coletiva na forma de habilidades de saber-fazer e saber-ser que ressoam na
articulação formação-produção de saberes sociais. Seria dizer que, desde a compreensão
de Tardif (2012), o saber docente não é constituído somente pela formação técnica, mas
também pela prática diária que vai moldando a atuação do profissional do docente. No
cotidiano da sala de aula, encontra-se esse saber-fazer personalizado que está em
articulação com as ciências da educação, os embasamentos didáticos e a experiência
adquirida na relação sociocultural.

2.3 ENCONTROS POSSÍVEIS2


Respeitadas as singularidades de cada trabalho, ambos os autores revelam
preocupação em compreender as relações estabelecidas entre o docente e a escola. Um
segundo ponto convergente diz respeito à necessidade de consideração de um conjunto
de fatores no estudo sobre modos de ser/estar docente na escola. Huberman (2000), ao
apresentar, a tipologia do ciclo de vida profissional dos docentes, esclarece que se trata
de modelo que não pode ser tomado como universal e invariável uma vez que a
consideração apenas de critérios etários e cronológicos (tempo na carreira) é
insuficiente. Há uma infinidade de fatores não fisiológicos, não biológicos e não
psicológicos que influem sobre o docente: fatores sociais, históricos, condições de vida
e de trabalho. Tardif (2012), por sua vez, ao pensar sobre os saberes docentes, parece
complementar o estudo de Huberman na medida em que esclarece sobre fatores outros
os quais precisam ser considerados, porque constitutivos dos modos de ser/estar

2
Serão considerados, para esta análise comparativa, duas produções: HUBERMAN, Michael. O ciclo de
vida profissional dos professores. In: NÓVOA, António (org.). Vidas de Professores. 2. ed. Porto: Porto
Editora, 2000. p. 31-61; e TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 14. ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2012.

31
professor na escola, associando tais fatores outros a um conjunto de saberes que
designa, como dito anteriormente, por: profissionais, disciplinares, curriculares e
experienciais.
Outro ponto convergente diz respeito à abordagem das relações entre uma
determinada categoria profissional, os professores, e sua carreira como elemento
importante para a comprensão da docência e do\da docente. Huberman (2000) opta pela
investigação do ciclo de vida profissional dos professores a partir de sua carreira
pedagógica com o reconhecimento de que não é suficiente pensá-la apenas a partir de
estádios ou etapas supostamente lineares em função dos muitos fatores que afetam cada
docente e da maneira diferente como vivem a experiência da docência. Tardif (2012, p.
19-20) revela (re)conhecimento de que o saber dos professores é adquirido “[…] no
contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional” a partir das quais o
docente herda modos de pensar a educação que remontam à sua experiência escolar
como aluno e, ao mesmo tempo, se atualiza quanto aos seus modos de ser e fazer(-se)
em função das condições em que se dá sua ação e da natureza relacional da mesma.
Inclusive Tardif cita os estudos desenvolvidos por Huberman, enfocando,
especificamente, a temporalidade considerada desde a carreira pedagógica do docente.
A título de quarto ponto convergente, mencionamos a importância que ambos
conferem às representações dos docentes acerca de si, de seu trabalho, de sua atuação,
da organização na qual desenvolvem esse trabalho.

3. DOCÊNCIA EM DISCURSO

Os discursos analisados aqui foram produzidos durante uma reunião pedagógica


realizada em escola pública de cidade do litoral norte do Rio Grande do Sul, no mês de
julho do ano de 2015. Estavam presentes quatro professoras de ensino fundamental
(séries finais) e eu, supervisora educacional. A reunião tinha por objetivo principal a
elaboração de um projeto didático pedagógico sobre incentivo à leitura. Debatendo
sobre a educação e relatando experiências já vividas, em determinado momento, as
professoras, de maneira espontânea, problematizaram, em suas falas, o que, para elas, “é
ser professor hoje”. Sendo assim, é importante destacar que as enunciadoras foram
quatro professoras que estão em um ciclo de vida etária e docente diferente. Neste

32
artigo, as chamarei de P1, P2, P3 e P4. A seguir, apresento o perfil das enunciadoras
seguido de parte de seus depoimentos.

P1 – Professora de 60 anos de idade e 30 anos de docência: “Eu me sinto psicóloga, psiquiatra, assistente
social, mãe e até pai, pois, de vez em quando, tem que dar conselho para os “barbados” como se fosse pai
deles, engrossando a voz e subindo o tom e tudo. Me sinto tudo, menos professora, eu não, faço tudo isso
e não me sinto professora, é brabo”.
P2 – Professora de 40 anos de idade e 15 anos de docência: “Hoje...ser professor, hoje, é um desafio, tá
muito tumultuado, muito desvalorizado, a gente é qualquer coisa menos professor, parece que, às vezes,
trabalhamos em uma casa de apoio, fazemos de tudo e no mínimo do tempo... damos aula, ou tentamos”.
P3 – Professora de 31 anos de idade e 9 anos de docência: “Hoje eu estou muito cansada, sem voz e
trabalhando. Eu vejo que fazemos muito, mas parece pouco, sempre é pouco. Vou dizer bem a verdade, o
que faz eu continuar aqui é a segurança financeira, a estabilidade. Cada ano que passa parece que, sei lá ...
é mais complicado entrar em uma sala de aula, hoje para entrar em uma sala é preciso coragem, são vários
problemas para uma professora só. E isso é uma pena, uma pena...”.
P4 – Professora de 28 anos de idade e 2 anos de docência: “Eu percebo que desde que eu comecei a dar
aula aprendi muito. Na prática ser professor é mais difícil do que eu pensava. Não sei se é a sociedade que
mudou, mas não era assim na minha época de aluna. É estranho como agora a escola é vista, assim... são
muitas obrigações, muitas competências colocadas aqui. Sabe, eu... eu gosto de ser professora, mas
quando tu entras na sala, muitas outras exigências entram contigo, e assim tu vai levando...”.

A partir da leitura desses depoimentos, realizei recortes, ou seja, seleção de falas


cujas análises possibilitassem atingir o objetivo do estudo. Nesses recortes foram
destacadas marcas linguísticas a partir das quais foi possível compreender o
funcionamento do discurso. Sobre as marcas linguísticas, foram realizados gestos de
análise dos quais decorreu a evidenciação de movimentos ou movência dos sentidos.

3.1 VOZES DOCENTES


A Análise de Discurso francesa proposta por Michel Pêcheux, como o nome diz,
trata do discurso, sendo ele prática de linguagem, palavra em movimento (ORLANDI,
2012). Estuda o discurso, considerando diferentes e heterogêneos processos de
significação articulados aos modos de constituição dos sujeitos e dos sentidos. Na busca
de desenvolver um trabalho sobre os sentidos que ecoam no discurso praticado por
quatro docentes de escola pública, considerando o funcionamento discursivo
parafrástico e polissêmico, tomo seus depoimentos como corpus analítico.
As condições de produção (CP) do corpus analítico incluem o contexto sócio-
histórico e ideológico e a situação na qual o discurso irrompeu ou, dito a partir de
Pêcheux (2010), a posição dos protagonistas do discurso e formações imaginárias bem
como o referente (contexto, situação na qual aparece o discurso). Nesses termos, é
importante considerar o tempo de regência de classe de cada uma das professoras, já

33
que se posicionam a partir de ciclos de vida profissional diferentes no magistério.
Temos assim, conforme os estudos de Huberman: P4 no estádio da entrada na carreira,
onde ocorre o que ele chama de “sobrevivência”, “descoberta”, “choque do real”; P3 no
estádio da estabilização, ou seja, a fase do “comprometimento definitivo”, lugar onde há
um estilo próprio que se afirma e uma relativização dos insucessos; P2 no estádio da
diversificação, fase de múltiplas facetas que pode caminhar da motivação ao
desencanto, devido a fatores internos e externos à docência; e, finalmente, P1 no estádio
da preparação para a aposentadoria onde percebe-se a presença de dois perfis distintos
de docência: serenidade e distanciamento afetivo.
Pelo fato de estarem entre colegas em uma reunião cuja pauta incluía apenas
assuntos pedagógicos, espontaneamente discutindo a respeito da identidade docente, as
relações instituídas nesses discursos estabelecem-se pelas formações imaginárias de
todos presentes na reunião. São consideradas, portanto, representações constituídas a
partir do modo como as docentes e a supervisora (e pesquisadora) projetam as relações
instituídas entre elas e o lugar de cada uma nessas relações de professor/colega,
professor/supervisor, supervisor/professor

3.2 MAL-ESTAR, RESISTÊNCIA E PERMANÊNCIA

Neste texto, apresento análises das marcas “muito”, “coisa” e “tudo”, por terem
provocado estranhamento em mim devido à ambiguidade com que são empregadas. O
vocábulo “muito” é uma marca encontrada nos depoimentos produzidos por P2 e P3:
“Hoje...ser professor, hoje, é um desafio, tá muito tumultuado, muito desvalorizado
[...]” (P2) e “Hoje eu estou muito cansada, sem voz e trabalhando. Eu vejo que fazemos
muito, mas parece pouco, sempre é pouco” (P3). O sentido dicionarizado associa
“muito” a três classes de palavras: substantivo, advérbio e pronome. No caso em análise
aqui, trata-se de um advérbio de intensidade. Assim, o advérbio “muito” atua sobre os
adjetivos “tumultuado”, “desvalorizado” e “cansada”, e sobre o verbo “fazemos”,
intensificando o conteúdo deles haja vista afetar o significado do elemento sobre o qual
incide em função de ser um advérbio modificador de intensidade (ou intensificador). Se
mesclarmos as informações obtidas no dicionário àquelas disponíveis na gramática,

34
poderemos propor substituições da palavra “muito” por sinônimos com preservação dos
sentidos estabilizados:

P2 – “Hoje...ser professor, hoje, é um desafio, tá muito tumultuado, muito desvalorizado [...]”.

extremamente extremamente

P3 – “Hoje eu estou muito cansada, sem voz e trabalhando. Eu vejo que fazemos muito, mas parece
pouco, sempre é pouco”.
extremamente abundantemente, em que há exagero ou excesso

Analisar a palavra “muito” como advérbio modificador permite identificar que,


nos enunciados, estão estabilizados sentidos que remetem à intensidade das relações
estabelecidas entre os docentes e suas condições de trabalho: P2 e P3 estão bastante
cansadas, se sentem extremamente desvalorizadas e consideram que as demandas às
quais precisam atender são exageradas. Agora, se pensados desde o âmbito discursivo,
que efeitos de sentidos reverberam em tais enunciados? Especulo que “muito” também
indica efeitos de sentido de “desvalorização”, precarização e crise, em um jogo
estabelecido desde a posição em que as docentes estão, nesse caso, posição de professor
de ensino fundamental em escola pública num tempo histórico em que este profissional
é questionado quanto às suas competências e tem sua sobrevivência colocada em risco
por políticas que não priorizam a educação de modo muito evidente. Esses sentidos são
associados, pelos professores, às condições adversas de produção de docência, de onde
decorre sofrimento físico e psíquico com risco de degeneração do trabalho e do
investimento no mesmo. O sentido de excesso permanece, mas se derrama sobre
relações sociais se a palavra “muito” for considerada a partir de sua conversa com
elementos do interdiscurso que têm, de modo recorrente, falado sobre o professor como
alguém que, conquanto desenvolva atividades de menor valor por não afetarem de modo
tão direto e rápido a economia, precisa assumir muitas responsabilidades – o que ecoa,
sobretudo, no dizer de P3 quando desabafa: “[...] fazemos muito, mas parece pouco,
sempre é pouco”. Parece pouco para quem? É pouco para quem? Para a mídia? Para a
comunidade escolar? Para as quatro professoras com quem conversei? Não tenho como
afirmar, mas posso arriscar que as intenções de P3 se movam pelas margens de tais
sentidos, reiterando um sentido de excesso que se articula a um provável sentido de
mal-estar inclusive físico – P3 está tão cansada que sua voz falha. Contraditoriamente, o

35
sentido de excesso se coaduna a um sentido de falta, de escassez, ao que falta ao
professor – condições de trabalho minimamente razoáveis. E essa falta, essa escassez
resulta, contraditoriamente, de excessos: excesso de desvalorização, excesso de
trabalho, excesso de exigências.
No enunciado de P2, “Hoje...ser professor, hoje, é um desafio, tá muito
tumultuado, muito desvalorizado, a gente é qualquer coisa menos professor, parece que,
às vezes, trabalhamos em uma casa de apoio, fazemos de tudo e no mínimo do tempo...
damos aula, ou tentamos”, outra palavra chama a atenção: a palavra “coisa”. No sentido
dicionarizado, a marca “coisa” é entendida como denominador de objetos não
identificados, estando associada a outros significados também. Conquanto Neves (2000)
classifique a palavra "coisa" como substantivo, adjetivo ou advérbio, no enunciado em
análise, aparece na condição de substantivo em função de nomear algo sem definição:
um troço, algo que não se quer, ou não se consegue, designar pelo nome. P2 reforça
uma utilização recorrente desse item lexical desde uma vez que ele substitui qualquer
outro que não ocorre a quem fala, ganhando os usos mais diversos. A palavra “coisa”
funciona como uma espécie de muleta, que ampara o falante quando este não encontra a
palavra exata para exprimir a ideia pretendida. Quando P2 enuncia que “a gente é
qualquer coisa”, ela denuncia a dificuldade para designar o docente ou qualificá-lo de
modo mais claro, preciso, sendo possível qualquer palavra para se referir aos
trabalhadores em educação. Em “a gente é qualquer coisa menos professor”, P2 permite
evidenciar que “coisa” recebe as cargas semânticas mais diversas. Contudo, com um
limitador: “menos professor”. P2 admite que está assumindo muitas responsabilidades,
tantas que não consegue enumerar, mas que tais compromissos estão distantes daqueles
que precisariam ser tomados para si.
Associada ao pronome “qualquer”, no enunciado “a gente é qualquer coisa
menos professor”, reverberam efeitos de sentido de precarização da docência, de
desqualificação, de desidentificação do ser professor com o que é próprio ao seu ofício.
Quanto ao ciclo de vida docente consoante a compreensão de Huberman (2000), P2
integra o grupo de professores que está numa fase na qual eles podem deslizar da
motivação para o desencanto, devido a fatores internos e externos à docência como, no
caso em análise, a inflação de tarefas experimentada pelos docentes e os efeitos das
opções e omissões políticas feitas no que se refere à educação. O depoimento de P1

36
reitera isso, mostrando a “desidentificação” docente com o que presume ser próprio ao
seu ofício uma vez que, como esclarece Lima (2017, p. 43), a docência foi, e ainda é,
vista como uma vocação, uma atividade que envolve “maternagem”, representando
trabalho pouco valorizado socialmente e financeiramente. Assim diz P1: “Eu me sinto
psicóloga, psiquiatra, assistente social, mãe e até pai, pois, de vez em quando, tem que
dar conselho para os “barbados” como se fosse pai deles, engrossando a voz e subindo o
tom e tudo. Me sinto tudo, menos professora, eu não, faço tudo isso e não me sinto
professora, é brabo”.
A marca linguística “tudo”, encontrada na fala de P1, é gramaticalmente
classificada como pronome indefinido e entendida, no sentido dicionarizado, como a
maior quantidade possível, o estado de ser completo, inteiro, totalidade, aquilo que é
excessivamente importante (FERREIRA, 2013). De certa forma, “coisa”, ou “qualquer
coisa”, e “tudo” estão próximos quanto à indefinição a que remetem. Pensando em
termos de processos discursivos, pelo menos duas hipóteses são possíveis. Quando P1
fala “Me sinto tudo, menos professora”, esse “tudo” reverbera por processos
polissêmicos que, ao se fazerem a partir da estabilização do sentido de indefinição
captado no dicionário e na gramática, revelam fissuras e fragmentações que
predominam no trabalho pedagógico em decorrência da necessidade de acolher funções
outras como aquelas que se espera fossem desempenhadas por “psicóloga, psiquiatra,
assistente social, mãe e até pai”. Na palavra “tudo” ecoam sentidos de nadificação,
reificação, coisificação do professor, de produção da docência como não-lugar, lugar
com o qual P1 talvez já não constitua relações potentes. Se considerarmos que P1 se
situa numa fase de preparação para a aposentadoria, os efeitos de sentido identificados
talvez apontem para certo distanciamento afetivo em relação aos alunos por conta,
também, de conflitos geracionais. Contudo, para além do que Huberman estabiliza em
seu modo de compreensão do ciclo docente, as palavras de P1 parecem atualizar essa
memória: mais do que conflitos geracionais apenas, P1, e também P2, P3 e P4, referem
elementos outros que correspondem a dificuldades que precisam administrar – o
professor é instado a assumir funções outras (“psicóloga, psiquiatra, assistente social,
mãe e até pai”), a escola ganha significados outros (“uma casa de apoio”).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

37
A partir das análises feitas, percebo, nas posições assumidas pelas quatro
professoras que contribuíram com essa pesquisa, traços difusos e contraditórios do mal-
estar docente. Sentidos e sujeitos deslizam, na movência, entre excesso e falta,
indefinição, conflitos. Os sentidos dominantes compõem um entendimento de mal-estar
que representa o modo como os professores são falados numa sociedade em que as
políticas públicas investem menos na educação pública. Todavia, outros sentidos
também aparecem, o que me autoriza a especular sobre um sentido de resistência, que se
conflite com aquele de mal-estar: as professoras enunciam dificuldades e desânimos,
mas, independentemente do estádio em que se encontram segundo a classificação
proposta por Huberman (2000), elas mantêm o vínculo com o magistério. Elas não
desistiram totalmente. Procuram significados para permanecer. Entre o evadir e o
pertencer, a resistência relaciona-se com o ser/estar professor, com pertenciamento e
(re)identificação, apropriação de si, reconhecimento do outro.

REFERÊNCIAS

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed.


Curitiba: Positivo, 2013.

HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA,


António (Org.). Vidas de professores. Lisboa: Porto Editora, 2000.

LIMA, Marcos Salmo Silva. Discurso e docência: efeitos de sentido da permanência


docente em uma escola pública. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2017.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática dos usos do português. São Paulo:
Editora UNESP, 2000.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD69). In: GADET,


Françoise; HAK, Tony (orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2010. p. 61-162.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 14. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2012.

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