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Para Ler A Bíblia
Para Ler A Bíblia
“Introdução”
“1. Sobre o intérprete e o interpretar”
“2. Micro-história da Hermenêutica”
“3. Da vida à vida: uma teoria da produção textual”
Lc 10.261
As devolutivas de Jesus geralmente abrem uma imensidão de caminhos.
A partir da resposta ao doutor da lei poderíamos arguir qual seria o sentido de
Lei (νόμος) naquela situação descrita. Poderíamos também comentar as
implicações e o impacto sócio-cultural dessa lei ser escrita (γράφω), qual a
delimitação deste conceito e como o termo seria melhor compreendido e
traduzido para o nosso idioma, visto as práticas de escrita e leitura da época e
região serem consideravelmente distintas das nossas2. Entretanto, uma
questão que nos salta aos olhos nesse momento é a partícula interrogativa
“como” (πῶς), na segunda questão: Como lês? Jesus, com notável
simplicidade, demonstra que “ler”3 não é um simples exercício de
assentimento, mas existem múltiplas possibilidades de se compreender um
texto. A resposta pressupõe que o ato da leitura ajuda a criar significado no
texto. É verdade, pode-se dizer que algumas leituras podem ser consideradas
sadias ou doentias, causar bem ou mal. Mas, aos nossos propósitos, é mais
importante notar que não há apenas um meio para se compreender os textos,
como geralmente se assume popularmente na exclamação “mas é o que está
escrito!”. “Estar escrito” não fecha a discussão, apenas nos leva a um outro
estágio, que nos exige novas ferramentas e arsenal argumentativo.
A Hermenêutica habita justamente esse contexto. Ela tem incumbência
de pensar as formas de se interpretar. A própria etimologia da palavra nos diz
isso. O grego hermēneuō (ἑρμηνεύω) pode ser traduzido como “interpretar”,
“explicar”, ou mesmo “falar claramente”. A origem do termo remete ao deus
Hermes, o arauto dos deuses gregos, responsável por entregar mensagens dos
deuses aos humanos, como diz a Teogonia de Hesíodo (938-9). Platão
ressaltou que o nome de Hermes tem relação com o discurso (λόγος), que ele
era um mensageiro (ἄγγελος) e que sua atividade estava ligada ao “poder do
discurso” (λόγου δύναμίν). Tudo isso nos ensina que a hermenêutica trabalha
sobre distância e incompreensão e ocupa-se, resumidamente, no habilitar
leitores à compreensão de textos e pensar condições e possibilidades da
interpretação.
Existem diversas vertentes da Hermenêutica, com diferentes
instrumentos e aplicações: Hermenêutica Filosófica, Jurídica,
Fenomenológica, Ontológica, Literária etc. O recorte e objetivo último da
Hermenêutica Bíblica é o que o nome propõe: a interpretação dos textos
bíblicos. Tal interpretação pode partir dentre os diversos instrumentais
teóricos da Hermenêutica. Alguns autores partem da filosofia, outros das
ciências da linguagem e, ainda outros, constroem seus conceitos pela
semiótica. Isso lhes habilita a diferentes definições, das quais vale
considerarmos algumas: Alonso Schokel definiu hermenêutica como “a
reflexão teórica no entendimento e interpretação de textos”4, Paul Ricoueur
como a “teoria das operações da compreensão em sua relação com a
interpretação dos textos”5. Essas definições priorizam aspectos teóricos da
Hermenêutica. Anthony Thiselton, por sua vez, disse que a Hermenêutica
“explora como lemos, compreendemos e manipulamos os textos,
especialmente aqueles escritos em outro tempo ou num contexto de vida
diferente ao nosso”6 e Bernard Lategan disse que “em termos gerais, a
hermenêutica pode ser descrita como a ‘arte do entendimento”7. Severino
Croatto, por sua vez, procurou enfatizar as condições nas quais textos passam
a existir e seu impacto nos futuros leitores. Ele disse que “a leitura dos textos
bíblicos está circunscrita por dois momentos existenciais, ou seja, por dois
pólos históricos”8, que seria o momento do evento histórico e o momento da
leitura dos textos. O texto bíblico estaria entre esses dois pólos, unindo a
realidade daquele que experimentou o evento gerador do texto, daquele que
experimenta o texto em sua forma final, no cânon bíblico.
E aqui, dentre estas definições, precisamos optar por um caminho
metodológico que ilumine nossa jornada. Cabe nos perguntar, então, a razão
do estudo da Hermenêutica em nosso contexto. Nossa realidade não pede
uma interpretação por mera curiosidade acadêmica, nem tampouco uma
interpretação que vise desenvolver tratados teológicos. Este curso de
interpretação bíblica habita num contexto similar ao explorado por Klaus
Berger:
o problema da hermenêutica teológica não consiste no fato de existir uma Bíblia
necessitando de tradução, mas no fato de diante de Deus existirem pessoas que
necessitam de redenção em sentido amplo. [...] O ponto de partida é, antes, a
evidência do apelo resultante da situação [...] e a necessidade de agir que daí
procede.9
O funcionamento da comunicação
Mais do que compreendermos que a interpretação é inerente ao ser
humano, é importante observarmos como se dá a comunicação, ambiente do
esforço interpretativo. E aqui temos diferentes papéis, que podem ser
ilustrados pela entrega de uma carta. Nesse esquema, aquele que envia a carta
é chamado remetente, o conteúdo da carta é chamada mensagem ou texto23, o
papel/envelope onde é entregada é chamado meio, enquanto o que a recebe é
chamado de destinatário. O emissor é responsável por codificar a mensagem,
com signos partilhados pelo destinatário, de modo que o destinatário, sob o
mesmo sistema simbólico, a decodifique. Esse esquema primário de
comunicação pode ser representado assim24:
Embora na representação visual o modelo pareça simples e óbvio, é
importante não se tomar o processo como linear e mecanicista. A
comunicação humana é complexa e não-linear, e não se dá num único
sentido. O remetente já foi destinatário e o destinatário também será
remetente, são “respondentes”.
Textos, portanto, são signos que foram feitos órfãos de seu contexto
original, tornando sua leitura difícil. Este é um problema ancestral, que a
hermenêutica bíblica tentou sanar na história.
Perspectivas
Neste primeiro capítulo observamos a hermenêutica como ciência
interpretativa que fundamenta teoricamente a interpretação de textos, estes
que podem ser textos sagrados. Assim, nos debruçamos inicialmente sobre a
compulsão humana ou antropológica de interpretar, no que dissemos: “é
impossível não interpretar”. Sendo o mundo mediado pela linguagem, que
percebe acontecimentos como signos, há necessidade de se interpretar os
eventos, pois os eventos não são algo em si mesmos. Essas informações, para
a interpretação de textos sagrados, são basilares, pois estes textos tendem a
superabundar em narrações e poetizações de eventos ou mitos significativos
ou fundacionais para determinada vertente religiosa.
Por esse motivo, apresentamos o modelo básico de comunicação, visto
que as diversas vertentes interpretativas, sejam científicas ou populares,
trabalham com compreensões mais ou menos engessadas de tal modelo.
Algumas tendem a tentar reduzir os ruídos a zero, buscando no texto o evento
“cru”, numa tentativa de historicização, enquanto outras percebem que os
textos relidos tornam-se mais significativos e profundos para a experiência de
fé. De uma forma ou outra, observamos que é na leitura que os textos surgem
e uma de suas características centrais é a polissemia, a multiplicidades de
interpretações possíveis, essa aprofundada pelo distanciamento entre evento
gerador do texto e leitura do texto contemporâneo.
Na sequência, faremos um breve passeio à história da hermenêutica,
tentando perceber como os leitores dos textos sagrados judaico-cristãos
tentaram superar as dificuldades de interpretação.
Pré-História da Hermenêutica
Interpretar é uma característica inerentemente humana. Por isso, é
importante dizer que a interpretação bíblica inicia tão cedo quanto a produção
dos textos bíblicos. Os autores bíblicos, por exemplo, utilizaram gêneros
literários de suas épocas para descrever os eventos que lhes marcavam. Essa
prática, amplamente reconhecida, não apenas emoldurava o que diziam, mas
também qualificava seus discursos, isto é, dava aos textos novos sentidos e
ampliava a capacidade comunicativa dos textos. No Antigo Testamento, por
exemplo, é comum ver temas recorrentes da literatura do Antigo Oriente
Próximo moldarem as aventuras de Israel: Ex 15.1-18; Sl 89.5-18; Is 51.9-11
trabalham o imaginário do Êxodo, mas o associam ao tema da batalha
cósmica de criação do mundo, que já estava presente em textos milenares
como Enuma Elish e Gilgamesh. Assim, o Êxodo ganha uma nova dimensão
e novos sentidos.
Essa característica, geralmente desapercebida do grande público, é
fundamental na história da interpretação, pois como veremos, cada povo, em
cada época, interpreta os textos bíblicos de acordo com suas necessidades
sociais e históricas, seja consciente ou inconscientemente. As repetições
presentes nos textos bíblicos nos dizem o mesmo. Existem temas que
repetem-se quase que prototipicamente, o que se chama de “tema da esposa
vendida como irmã”, por exemplo, surge nas histórias dos Patriarcas ao
menos três vezes, com diferentes detalhes presentes (cf. Gn 12.10-20; 20;
26.6-11)!1 Antes de pensar se um texto está “correto” ou outro está “errado”,
devemos entender que essas repetições mostram o ambiente ativo de
produção literária bíblica no próprio período de composição e, também, a
necessidade de se interpretar as tradições orais de acordo com as
contingências histórico-sociais. Por isso, nossa micro-história sempre parte
de problemáticas a serem resolvidas e como a interpretação se modificou para
alcançar essa nova contingência que se lançava.
Um primeiro exemplo é o da perda do uso do Hebraico como idioma
falado por parte dos judeus da diáspora. A inacessibilidade do idioma dos
textos bíblicos incentivou uma tradução para o novo idioma, o grego. A
primeira tradução foi intitulada Septuaginta (LXX), ainda no terceiro século
a.C., por uma lenda que rondou a tradução2. Enquanto a Torah (Pentateuco)
foi traduzido na LXX de forma mais literal, as expansões do cânon
veterotestamentário receberam tratamentos diferentes (messiânicos,
alegóricos etc), conforme necessidade do público de cada época.3 Aos nossos
propósitos é necessário destacar que traduções costumam atualizar o sentido
não apenas literal, mas simbólico para novos leitores e, assim, essa prática
deu novos traços interpretativos à Torah.
Quando o Templo foi destruído, houve necessidade de se rever a
interpretação bíblica no ambiente judaico, pois o símbolo do poder divino
fora destruído. A interpretação rabínica ganhou força neste contexto. Os
midrashim (de ִמ ְד ָרשׁ, estudar, inquirirׁ), variações orais dos escritos da Torah,
se tornaram a principal tônica. Rabis disputavam interpretações dos escritos
sagrados. Por exemplo, enquanto Rabbi Akiba, místico, favorecia a
interpretação criativa dos textos, Ishmael, de orientação filológica, dizia que a
Torah deveria ser interpretada conforme a tradição. Essas leis foram
coletadas e aplicadas a fontes como o Talmud (de תלמוד, ensino, c. 600 d.C.),
servindo às futuras gerações4, muitas das quais perduram ainda hoje.
No Cristianismo Antigo muitos métodos de interpretação foram
utilizados, mas duas vertentes que se destacaram foram a vertente antiocana e
a vertente alexandrina, que herdaram o ambiente de interpretação judaico,
herdando suas disputas. A primeira vertente é a escola de Antioquia, Síria,
que pretendia atingir o sentido “literal” dos textos, i.e., interpretar palavras
segundo a intenção original dos autores. A segunda linha era a de Alexandria,
Egito, que tentava captar o sentido detrás dos textos, o sentido profundo.5
Frances Young6, recentemente, demonstrou que a diferença entre as duas
escolas se dava pelos métodos com que examinavam os textos, a saber, a
concepção de methodikon (μεθοδικός, regrado, sistemático) e historikon
(ἱστορικός, exato, preciso), respectivamente as questões linguísticas presentes
nos textos e as questões histórico-contextuais de cada texto. Enquanto os
alexandrinos enfatizavam o methodikon, o que produzia uma interpretação
mais focada nos aspectos filosóficos-imaginativos do texto, os antiocanos
enfatizavam o historikon, que observava questões retóricas que envolviam o
texto. Essa diferença causava o que hoje se chama de “interpretação literal de
Antioquia” e “interpretação alegórica de Alexandria”.
Esse debate, se a interpretação deveria ser alegórica ou literal se
concentrou em algumas personalidades. Do lado alexandrino, Orígenes (c.
254 d.C.) defendeu o método alegórico, classificando a interpretação bíblica
entre literal, moral e espiritual, e distinguindo entre dois níveis de sentido: a
letra e o espírito. Cassiano, no quinto século, tomou a dupla definição de
Orígenes e desmembrou-a em três, a interpretação: (1) tropológica, moral; (2)
alegórica; (3) anagógica, futura.7 Do outro lado, os teólogos antiocanos
Diodorus de Tarsos (c. 394 d.C.), Teodoreto de Cirrus (c. 460 d.C.) e
Crisóstomo (c. 407 d.C.) criticavam o método alegórico. Agostinho de
Hipona (347-420 d.C.), africano, embora fosse contra o “abuso” do método
alegórico, parece que fez os dois métodos conviverem melhor, centrando-se
no texto e na sua estrutura gramatical.
No Judaísmo Medieval, os protagonistas foram Abraão ibn Ezra (1092-
1167 d.C.) e Moisés ben Maimon ou Maimônides (1135-1204 d.C.).
Enquanto Ibn Ezra combinou a filologia e métodos rabínicos clássicos,
Maimônides interpretou a Bíblia em categorias da metafísica de Aristóteles.
O Cristianismo Medieval, por sua vez, permaneceu atado em grande parte à
interpretação alegórica, como no trabalho de Gregório o Grande (540-604
d.C.). No séc. XII d.C., entretanto, a aproximação a Aristóteles tentou, na
academia, resgatar o sentido literal dos textos. Um dos protagonistas foi
Tomás de Aquino, que questionou a cientificidade da alegoria.8
O Renascimento e o advento do Humanismo, seguiu a linha da
interpretação filológica e sua ênfase nas quebras dos textos. Na Reforma, não
houve unidade nem grande inovação dos métodos interpretativos, além da
tradução da Bíblia ao vernacular. Os reformadores concordaram que o
conceito “Sola Scriptura” representava as fundações da fé cristã, mas cada
um interpretou o conceito à sua maneira.9 Após esses eventos, a grande
novidade foi o nascimento da Hermenêutica como ciência crítica, no século.
XVIII d.C.
Uma resposta era necessária e ela veio não muito depois. Martin
Heidegger (1889-1976), a partir de Edmund Husserl (1859-1938), modificou
o eixo interpretativo para os leitores [intentio lectoris]. Utilizando-se da
fenomenologia filosófica, percebeu que “se cada leitor lê com seus próprios
olhos e projeta o sentido a partir de como a consciência coloca objeto, então a
pluralidade de leituras de um mesmo texto está teoricamente legitimada”14. A
novidade estava em notar a “historicidade do sujeito interpretante”. Foram
estes estudos que deram origem à “Estética da Recepção”, que vê como os
textos foram compreendidos no decorrer da história, partindo do pressuposto
que “a história é a história dos erros de leitura”15.
Da hermenêutica filosófica e fenomenológica, dois expoentes foram
Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. Gadamer defendeu que “a verdade não
pode residir na tentativa do leitor de voltar ao sentido do autor, pois esse ideal
não pode ser realizado tendo em vista que cada intérprete tem um
conhecimento novo e diferente do texto no próprio momento histórico do
leitor” e listou quatro afirmações16: (1) o preconceito (pré-entendimento) não
pode ser evitado; (2) o significado do texto vai além do autor; (3) a
explicação da passagem é uma fusão de horizontes do intérprete e perspectiva
histórica do texto, a compreensão das duas é contida numa terceira
alternativa17; (4) significados passados não podem ser reproduzidos no
presente, o passado não pode tornar a ser no presente.
Já Paul Ricoeur defendeu que a escrita altera a natureza da
comunicação18: (1) um texto é semioticamente independente da intenção do
autor; (2) gêneros literários formam um caminho de interpretação do texto;
(3) ao ser escrito, o significado do texto não é determinado pelos leitores
originais, mas cada público lê sua realidade no texto; (4) ao ser escrito o
significado do texto é libertado dos seus limites situacionais.
Essa perspectiva focada na literatura e no leitor, entretanto, não foi (e
ainda não é) bem aceita pela maioria dos biblistas. William Dever, por
exemplo, foi um dos que se opôs a alguns novos movimentos interpretativos,
que focavam na estrutura do texto. Embora seu “manifesto” seja direcionado
a um público maior, contemplando também outras linhas, seus apontamentos
são sintomáticos. Segundo ele, há pontos questionáveis das novas abordagens
(pós-modernas?), que dizem que19: (1) o texto é interpretado independente de
seu autor; (2) a intenção do autor é uma ilusão criada por leitores; (3)
linguagem é infinitamente instável; (4) todos os textos devem ser resistidos;
(5) a convicção do autor não pode ser confundida com expressões teológicas,
éticas e narrativas; (6) outras leituras legítimas são tão boas quanto as nossas.
As novas vertentes, ele reclama, dizem que: (1) textos são obras de arte e
não deveriam ser usadas para entender história; (2) não há sentido singular
para um texto; (3) como um texto “significa” é tão importante quanto o que
ele “significa”; (4) existem muitas, quase ilimitadas abordagens a um texto,
que podem ser legítimas e produtivas; (5) textos não tem sentido intrínseco,
os sentidos dependem da resposta do leitor, do contexto e conhecimento
social do autor e dos leitores; (6) ler além das fronteiras originais do texto
não é só possível, mas desejável; (7) o único teste de autenticidade do texto é
a aceitação dos leitores. Sua crítica também envolveu alguns slogans
didáticos do movimento que, segundo ele, dizem: (1) leia o texto “contra suas
exigências”; (2) considere o texto como um “como um todo inteligível e
coerente, independente de seu autor”; (3) leia o texto “politicamente”, como
“representação de poder”; (4) livre-se da noção antiquada de que “literatura é
reflexo da realidade”.
Para ele: (1) textos são produtos de um tempo, lugar, cultura, língua e
devem ser postos no seu contexto para compreensão; (2) um texto é escrito
por um autor, com objetivo específico, para uma audiência específica; (3) um
sentido “original” é inerente e expresso na linguagem e, por isso, é
inteligível; (4) o leitor deveria ser o mais objetivo possível e se abrir ao
sentido original do texto; (5) metodologicamente, o domínio da língua e
contexto é fundamental; (6) desde que existam fatores subjetivos na
interpretação de textos antigos, eles devem ser reconhecidos e utilizados na
interpretação, com uma “imaginação educada” e empatia; (7) preocupações
teológicas devem ser separadas de preocupações históricas.
O protesto de Dever ensina três lições. Primeiro, ele ilustra o grande
drama do abandono da intenção do autor, que é a leitura não pela história,
mas pelo prazer literário/religioso. Segundo, demonstra as tensões e disputas
que cercam a hermenêutica contemporânea. E, por fim, assinala as
dificuldades de se reconstruir a história por textos, pois, em muitos casos,
nossa leitura, mesmo que acadêmica e filológica, não passa de uma tentativa
de acessar um fato que não se recuperará.
Cada referencial, com seu conjunto de métodos, tem seu limite e função
e, portanto, não devem ser demonizados por si. Cada vertente tende a revisar
seus referenciais constamente, buscando lhes fazer mais precisos a seus
propósitos.27 Por isso, cabe ao intérprete aplicar métodos pelas necessidades
da pesquisa.
Perspectivas
Traçamos, em nossa jornada inicial, um caminho onde: vimos a natureza
da linguagem e da capacidade do imaginar; observamos que a natureza
humana implica em ser intérprete, visto que é impossível não comunicar;
assistimos ao funcionamento da comunicação humana, em seus primórdios e
funcionamentos; atentamos à leitura como criação de sentido e a polissemia
dos textos; e, por fim, aportamos sobre uma micro-história da hermenêutica e
alguns pontos de destaque, fundamentais ao ofício do hermeneuta.
Nessa trilha, acolhemos tópicos importantes: (a) a mediação da
linguagem nos torna intérpretes por excelência; (b) a postura frente ao
processo comunicativo transforma a expectativa de interpretações,
especialmente no ruído como ganho de sentido ou perda do sentido original;
(c) a leitura é criação de sentido; (d) a história da hermenêutica passou de
uma hermenêutica do autor para uma hermenêutica do leitor; (e) que, além
desses dois paradigmas, existe a intentio operis, que é a intenção do texto; (f)
enxergamos o que é uso e interpretação de textos para Umberto Eco; (g)
vimos que os biblistas brasileiros tem tentado desenvolver o método
histórico-crítico para superar os limites do método.
Nesse ínterim, colocamos as bases de nossa proposta hermenêutica, que
inicia-se na leitura do texto independente de seu autor28 como parte de um
processo comunicativo que perdeu seus referenciais históricos, mas
permanece ligado a um contexto histórico discernível. Os métodos histórico-
críticos são usados, nesse aspecto, como aproximações do texto, mas
procuramos reconhecer suas limitações. Em suma, assumimos o texto e a
intenção do texto como centrais no processo hermenêutico, desde que se
respeite a natureza e distanciamentos históricos, sociais e linguísticos do
texto bíblico, que abordaremos nos próximos capítulos.
Tal indivíduo, sobre isso, constrói imagens interiores, que Wulf classifica
em: (1) imagens como moduladores de comportamento, aquelas que nos
fazem agir de tal forma em determinado contexto; (2) imagens de orientação,
as públicas, que ensinam os jovens a tomarem direções aceitáveis na
sociedade; (3) imagens de desejo, aquelas que traçam um horizonte almejado
aos homens, os sonhos; (4) imagens de intenção, aquelas que projetam-nos à
ação; (5) imagens mnemônicas, a seleção de memórias, que nos ajuda a
formatar8 nossa história; (6) imagens miméticas, modelos pré-existentes de
imitação; (7) imagens arquetípicas, o repertório de mitos e símbolos que
formatam nosso agir. A imaginação é mimética9, enquanto interioriza o
mundo externo, criando uma versão interna, controlada. O próprio
aprendizado se daria nessa dimensão.
As ideias de Wulf sobre as imagens interiores e as formas de
ver/contemplar, tornam-se valiosas aos estudos bíblicos na dimensão da
interpretação do acontecimento que deu origem a fala. Elas demonstram que
nossa forma de ver o mundo é condicionada socialmente, sendo uma mescla
entre cultura e experiência vital e acaba por servir à própria inserção social,
quando da produção de discurso10. Ao analisarmos os textos bíblicos temos
que estar conscientes da condição formativa do olhar, que altera
substancialmente a interpretação de eventos. As Crônicas, por exemplo, não
podem e jamais serão iguais aos livros de Reis/Samuel, pois o novo
paradigma cultural, associado às distintas imagens da biografia dos que o
escreveram, fomentaram uma nova interpretação daquele evento com
considerável reserva-de-sentido: a monarquia em Israel.
Para Croatto, toda leitura é releitura, afinal, a primeira leitura dos textos
se dá na interpretação dos eventos pelos espectadores originais. Quanto maior
a distância, maiores os acréscimos aos sentidos presentes no texto. Aqui, dois
conceitos são caros a Croatto: ex-egese, a saída do texto com um sentido
extraído; e eis-egese, a entrada no texto, com perguntas diversas do que as
propostas pelo autor original. Esses dois atos são interdependentes:
A exegese crítica procura compreender a produção dos textos, enquanto que a
leitura teológica que se faz a partir da experiência de fé se concentra no texto
produzido, explorando sua “reserva-de-sentido” linguística como “palavra de
Deus”. No entanto, também aquela se pratica a partir de um determinado lugar
(social, teológico) ou seja, a partir de uma concepção da realidade, e, então, a
exegese é, ao mesmo tempo, eisegese. A releitura teológica de base, por outro lado,
está condicionada pela estrutura, os códigos, a polissemia do texto (não qualquer
polissemia!) que se deve explorar incansavelmente. Desta vez eisegese é exegese.19
Intertextualidade e intratextualidade
Tradutor, traidor
Perspectivas
Nessa sessão observamos que a primeira distanciação é a língua que se
reduz à fala, numa clausura que ativa sentidos específicos. A segunda está na
transformação da fala para texto oral ou escrito e a terceira está na releitura
do texto. Observamos, também, que desde a primeira distanciação,
enclausuramentos e reservas-de-sentido são criadas pela própria essência
interpretativa do ser humano que, para fazer prevalecer sua interpretação,
canoniza e, para comunicar, expande os sentidos. Observamos também que
diversos fatores influem em cada um dos momentos: (1) a forma de ver o
mundo interfere na interpretação; (2) a transposição da oralidade para a
escrita modifica a mensagem; (3) a intertextualidade geral e stricto sensu
amplia sentidos; (4) a tradução cria novos textos.
Em nossa jornada, porém, uma pergunta permanece: como interpretar? O
que significa atualizar a mensagem? Croatto sugere que tornemos eficaz o
querigma bíblico para nossas situações34 e sugere que o façamos aplicando o
conhecimento linguístico associado à percepção do acontecimento que se faz
palavra. A proposta é a recriação da mensagem bíblica, através das novas
informações. Isso sugere mais perguntas que respostas: como relacionar a fé
com conteúdos históricos distintos? Como respeitar o Primeiro Testamento,
sem pensá-lo como antigo, negativamente? Caminharemos para a resposta
dessa questão. Mas, antes, é necessário compreender o que significa “livro”,
que usamos de forma tão leviana nos estudos bíblicos. Só assim, poderemos
nos questionar sobre a natureza dos escritos bíblicos e em práticas de
interpretação.
1 Por “cultura escrita”, entendemos culturas com sistemas gráficos que ultrapassam os
sistemas mnemônicos primitivos. Eles teriam surgido na China ou Mesopotâmia em
4.000 aEC. Cf. LEMAIRE, A. “Writing and Writing Materials”. In: FREEDMAN, D.N.
The Anchor Yale Bible Dictionary. New York: Doubleday, 1992; FISCHER, S.R. A
History of Writing. London: Reaktion Books, 2001 [ebook]
2 CHARTIER, R. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.
30
3 MCKENZIE, Bibliography and the Sociology of Texts
4 CHARTIER, R. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa
Oficial/Unesp, 1998, p. 8
5 FISCHER, A History of Writing
6 WILAMOWITZ apud TOORN, Karel Van Der. Scribal Culture and the Making of the
Hebrew Bible. Cambridge: Harvard, 2007
7 FINKELSTEIN, D.; MCCLEERY, A. An Introduction to Book History. London:
Routledge, 2005 [ebook]
8 KALLENDORF, C. “Ancient Book”. In: SUAREZ, M F.; WOUDHUYSEN, H. R.
(eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford University Press, 2013 [ebook]
9 Cf. LEMAIRE, Writing and Writing Materials
10 Um manuscrito de Qumrã de Isaías. Cf. deCLAISSÉ-WALFORD, N. L. “Papyrus”. In:
FREEDMAN, D. N.; MYERS, A. C.; BECK, A. B. Eerdmans dictionary of the Bible.
Grand Rapids: Eerdmans, 2000
11 KALLENDORF, Ancient Book
12 CHARTIER, A Aventura do Livro, p. 24
13 "Cada logos, a partir do momento em que foi escrito, rola para todos os lados, tanto na
direção dos que o compreendem quanto na daqueles com os quais nada tem a ver, não
sabendo a quem deve ou não deve falar. [...] Se o logos escrito for vítima de vozes
dissonantes ou se for injustamente atacado, precisará sempre da ajuda do pai; ele, na
verdade, não é capaz de repelir um ataque ou de defender-se sozinho." (Fedro 275)
14 KALLENDORF, Ancient Book
15 cf. WILSON, N. G. “The History of Book in Byzantium”. In: SUAREZ, Michael F.;
WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
16 Cf. DE HAMEL, Christopher. “The European Medieval Book”. In: SUAREZ, Michael
F.; WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
17 CHARTIER, A mão do autor e a mente do editor, p. 111-112
18 É creditada também a criação da pensa em 1403 dC, por impressores coreanos. Cf.
FISCHER, A History of Writing.
19 FINKELSTEIN; MCCLEERY, An Introduction to Book History.
20 GAUR apud FISCHER, A History of Writing.
21 CHARTIER, A mão do autor e a mente do editor, p. 110-112
22 FINKELSTEIN; MCCLEERY, An Introduction to Book History.
23 VERA, E. R. “The History of the Book in Latin America (including Incas and Aztecs)”.
In: SUAREZ, M. F.; WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New
York: Oxford University Press, 2013 [ebook]
24 LEONEL, J. “O Jornal Imprensa Evangélica e a formação do leitor protestante
brasileiro no século XIX”. In: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 35, p. 65-81,
set/dez 2014
25 Cf. GARDINER, E.; MUSTO, R. G. “The Electronic Book”. In: In: SUAREZ, M. F.;
WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
26 CHARTIER, R. Os Desafios da Escrita. São Paulo: Unesp, 2002
5. A Natureza da Bíblia
As últimas etapas nos foram necessárias para formatar uma compreensão
do processo interpretativo. Enxergar o homem como intérprete por
excelência, situá-lo no processo comunicativo e compreender as tensões de se
ter um texto em mãos, fornecem-nos um panorama das dificuldades
interpretativas que precisamos superar na tarefa hermenêutica. Poderíamos
dizer que, até o momento, estudamos o termo hermenêutica de nossa matéria.
Agora é momento de passarmos ao que classifica e distingue nosso curso de
outras hermenêuticas gerais, a questão bíblica. Assim, antes de nos
aventurarmos na interpretação, precisamos compreender a natureza da Bíblia.
Não podemos assumir que ela seja um livro igual aos demais. A Bíblia possui
características distintas da literatura contemporânea que merecem ser
observadas para não cairmos em anacronismos1.
Portanto, a partir dessas questões levantadas, nossa apresentação será
fundamentada com vistas a combater três afirmações anacrônicas de
compreensão da Bíblia na atualidade: (1) a Bíblia é um livro; (2) a Bíblia é
História; (3) a Bíblia sempre foi Bíblia. Demonstraremos, portanto, que a
Bíblia não é um livro, não contém história e não pode ser enxergada numa
totalidade desde sua escrita. Ao utilizarmos tais termos, não negamos a Bíblia
ou sua mensagem, mas queremos demonstrar que tais conceitos de livro e
história não existiam no tempo de criação da Bíblia e, da mesma forma, seus
textos não foram escritos para compor uma coleção sagrada de escritos, um
cânon. Acreditamos que, através dessas considerações, seremos capazes de
eliminar alguns ruídos hermenêuticos que tem surgido nos corredores mais
extremados da fé que compartilhamos.
Entretanto, se não havia capacidade de leitura, que era para uma seleta
parcela da população da qual nem mesmo reis se incluíam, o que era o livro
para o povo? Acreditamos que o objeto de leitura era um ícone de culto, tema
que desenvolvemos em outro local5. Toorn demonstra que os livros sagrados
tinham função semelhante aos ídolos babilônicos: (1) juramentos eram feitos
diante deles; (2) acompanhavam o exército em suas incursões; (3) eram feitas
procissões para mostrá-los ao povo; (4) eram enterrados, jamais destruídos;
(5) eram considerados pré-existentes a partir de uma imagem ideal criada
pelos deuses. Tem-se notícia, nesse aspecto, num documento antigo, que o rei
que mandou traduzir a LXX teria se ajoelhado sete vezes frente ao livro, pois
representava Deus6.
Não queremos menosprezar a leitura do livro, mas esclarecer que era
uma literatura para poucos e que, na visão popular, esse livro tornou-se
objeto de adoração e devoção, muitas vezes não sendo ligado à textualidade
ou leitura. Talvez a relação com o livro, para muitos, mantenha-se a mesma.
No analfabetismo funcional de grande parcela de nossa população brasileira,
o livro tem sido elevado à objeto de adoração. Assim, a informação que pode
nos libertar do gramaticalismo e do fundamentalismo literário, também pode
nos levar a posturas equivocadas frente ao texto.
A escrita da Bíblia
Até agora, afirmamos que a Bíblia não compõe uma história e que seria
melhor estudada nas categorias de memória. Observamos que os textos
bíblicos não se contentariam com uma reprodução de fatos imparcial, como
esperariam os historiadores contemporâneos. Pelo contrário, tais textos “tem,
em relação aos seus ouvintes ou leitores, uma determinada intenção para a
qual os eventos relatados proporcionam o material e os exemplos”32. Assim,
os escritos não constroem uma forma de anal histórico, com uma pretensa
objetividade, mas tem principalmente a função de gerar sentido de vida nos
leitores, ou seja, tem função hermenêutica de atualização da mensagem na
vida daqueles que o recebiam, nos determinados tempos em que foram sendo
escritos. Para melhor evidenciar tal questão observemos os gêneros que
originaram o texto bíblico.
Perspectivas
Não podemos então pensar: na Bíblia como um livro; a Bíblia como
História; e na Bíblia como Bíblia; no sentido moderno que carregamos estas
palavras. Ela é fruto de processos históricos independentes de diversos tipos
de literatura, que ganharam contornos finais e foram, num processo
hermenêutico, compiladas como regra de fé para diversas comunidades.
Dessa forma, precisamos estar conscientes de que: entre a disposição que
tenta ser unívoca e a fragmentariedade dos textos; entre sua concepção como
ícone e como textualidade; entre sua concepção como história, teologia ou
memória; os escritos bíblicos ganham novas dimensões interpretativas, que
operam diretamente sobre nossas comunidades, que recebem sentido a partir
de tais perspectivas. Temos que optar em qual direção seguiremos, sabendo
quais malefícios e benefícios tais perspectivas trouxeram ou trarão à nossa
família na fé.
1 Anacrônico (ana = sobre, contra + cronos = tempo + ico = relativo a) seria algo fora de
tempo. Quando tomamos algo de um tempo e o inserimos numa época distinta, à qual
esse algo não pertence. Se, por exemplo, dissermos, na temática bíblica, “Jesus foi à
igreja”, cometemos um anacronismo, pois não existiam igrejas no tempo de Jesus.
Haviam templos e sinagogas, que inspiraram a futura criação de igrejas. Assim, chamar
uma sinagoga de igreja é dotar a palavra de um significado que não possuía no momento
ao qual nos referimos.
2 WILAMOWITZ apud TOORN, Scribal Culture, p. 25
3 SCHMID, Konrad. História da literatura do Antigo Testamento: uma introdução. Trad.
Uwe Wegner. São Paulo: Loyola, 2013, p. 57-58
4 TOORN, Scribal Culture and the making of Hebrew Bible, p. 10
5 CARDOSO, Silas Klein. A imagem se fez livro: a materialidade da Torá e a invenção do
aniconismo pós-exílico. São Bernardo do Campo: Umesp, 2015. Dissertação (Mestrado,
Ciências da Religião), 153 p.
6 TOORN, Karel Van Der. The Image and the book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise
of Book Religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters, 1997, p. 243-244
7 TOORN, Scribal Culture and the making of Hebrew Bible, p. 16-19
8 KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, v1. Trad. Euclides Calloni. São
Paulo: Paulus, 2005, p. 106
9 TOORN, Scribal Culture and the making of the Hebrew Bible, p. 12
10 SCHWANTES, Milton. Leituras históricas da Bíblia. Teologia antenada, Faculdade
Unida de Vitória, Maio 2010. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?
v=WMMWaFZBBgM>. Acesso em: 28 de Fevereiro de 2014.
11 Sobre a questão: BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. Trad.
Fredericus Antonius Stein. São Paulo: Loyola, 1998; SILVA, Metodologia de Exegese
Bíblica, pp. 187-229; WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal, Paulus, 1998, pp.165-229; SCHNELLE,
Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo:
Loyola, 2004, pp.85-108; SIMIAN-YOFRE. H.; GARGANO, I.; SKA, J. L.; PISANO,
S. (orgs.). Metodologia do Antigo Testamento. Trad. João Rezende. São Paulo: Loyola,
2000, pp. 93-108
12 Além das exposições introdutórias em cada um desses textos, uma introdução pode ser
dada, por exemplo, no livro de SILVA, Metodologia de Exegese Bíblica, pp. 38-65.
13 Existe uma pequena indução no livro para que o leitor associe-o ao apóstolo Paulo, o
que o colocaria como pseudoepigráfico. Entretanto, o autor não expressa isso
claramente. Cf. Hb 13.22-25
14 KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v2, p.2-4
15 Característica patente no apocalipsismo é a pseudoepigrafia. P. ex., os apocalipses de
Daniel, João, Pedro, Enoque, Moisés etc.
16 Linguajar e contextos históricos são distintos do tempo queretratarm. Parece-nos que a o
objetivo era projetar a vida comum em personagens famosos, gerando identificação e
ensinando a lidar com dificuldades da época. Assim, Daniel ajuda a “digerir” o exílio,
Jonas a situação dos judeus da diáspora e Jó a teologia da retribuição, que aprisionava os
pobres à “vontade de Deus” pregada pelos sacerdotes.
17 TOORN, Scribal culture and the making of the Hebrew Bible, p.37
18 P.ex., veja a abordagem de Bart D. Ehrman sobre o tema: EHRMAN, Bart D. Quem
escreveu a Bíblia? Porque os autores da Bíblia não são quem pensamos que são. Rio de
Janeiro: Agir, 2013
19 Se é que cabe tal divisão. A divisão disciplinar parte do pressuposto que, na linearidade
do conhecimento, se descobre o todo na parte. Cf. MORIN, E. & LE MOIGNE, J-L. A
inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo: Ed. Peirópolis,
2000
20 Objetividade como imparcialidade na narração de histórias.
21 Firmamos-nos principalmente sobre: WHITE, Hayden. The Content of the Form:
narrative discourse and historical representation. Baltimore and London: John Hopkins
University Press, 1987
22 Para White, o relato narrativo é aquele que dispõe os fatos numa sequência horizontal,
sem necessariamente aderir a um enredo. O narrativizante, por sua vez, agrega o enredo,
que regularia e ordenaria a realidade de acordo com o tema ou uma moral.
23 WHITE, The Content of the Form, p. 24
24 Um excelente livro de introdução à temática, que funciona como roteiro de viagem
pelos sítios arqueológicos israelitas é: KAEFER, J.A. Arqueologia das terras da Bíblia.
São Paulo: Paulus, 2012.
25 Questões citadas no livro: FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha
razão. São Paulo: A Girafa, 2003.
26 Não podemos deixar de citar o crime cometido na tradução do nome da obra, que
passou de “A Bíblia desenterrada” (The Bible Unearthed) para “A Bíblia não tinha
razão”. Outro exemplo de que traduzir é, no mínimo, trair os propósitos da escrita.
27 LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. Trad. Orlando Soares
Moreira. São Paulo: Paulus/Loyola, 2008
28 SMITH, M. S. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no
Antigo Israel. Trad. Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo: Paulus, 2006, p. 234
29 Sem considerar que a imparcialidade jornalística, em si, é falácia.
30 SMITH, O memorial de Deus, p.185
31 Agrupamos aqui 3 e 4. Cf. SMITH, O memorial de Deus, p. 190-201
32 RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Trad. Monika Otterman.
Santo André: Academia Cristã, 2009, p.28
33 RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. Trad. Bertholdo Weber. 7 ed.
São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 8-12
34 KONINGS, J. A palavra se fez livro. São Paulo: Loyola, 1999, p.40-44
35 CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. Trad. Bertholdo Weber. 12ed.
rev. São Leopoldo: Sinodal, 2012, p. 90
36 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 41
37 Cf. KONNINGS, Johan. "Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica". In: REIMER,
Haroldo; SILVA, Valmor da (orgs.). Hermenêuticas Bíblicas: Contribuições ao I
Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo/Goiânia: Oikos, UCG, 2006, p.
85
38 Cf. KONNINGS, Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica, p. 79-81
39 ZENGER, Erich (et all.). Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São
Paulo: Loyola, 2003, p. 39
40 Primeiro bloco depois do bloco da Torá.
41 Isaías 2.1-5 funciona como abertura programática canônica do bloco.
42 ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p. 42
43 Seguimos KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.2, p. 6-10
44 KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.2, p. 12
45 KONNINGS, Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica, p. 81
46 GERSTENBERGER, Erhard. Teologias no Antigo Testamento: pluralidade e
sincretismo da fé em Deus no Antigo Testamento. Trad. Nelson Killp. São Leopoldo:
Sinodal/CEBI, 2007, p. 23
6. Manual de boas práticas hermenêuticas
A pergunta de Jesus, lida no primeiro capítulo, continua ressoando: como
lês? Observamos, até o momento, que existem variadas formas de se
enxergar e compreender o texto, que se alteram a partir dos olhares com que
partimos ao texto e pelos métodos e pressupostos que nele aplicamos. Em
suma, até o instante, nos limitamos a discutir pressupostos teóricos. Disso
trataria a hermenêutica. E, neste aspecto, podemos recapitular alguns dos
tópicos já dispostos: a essência interpretativa do ser humano; o processo
comunicativo; o alcance hermenêutico de alguns métodos exegéticos; as
distanciações do texto até nós; a “natureza” e materialidade dos textos etc.
Cada um desses aspectos nos legou obrigações por coerência, para com
nossa interpretação bíblica. Lembremos, por exemplo, a questão do uso ou
interpretação de textos, quando definimos que nossa meta traria uma
interpretação, por respeitar aos limites e intenções do texto, não do autor ou
leitor. Assim, cabe sugerirmos um método interpretativo que tente pautar-se
pelos limites que nos impusemos. Sabemos que a hermenêutica não consiste
de métodos, mas da teoria e pressupostos interpretativos, entretanto, seria
irresponsável sugerir perguntas à prática pastoral, sem sombra das respostas,
ainda que levem a mais dúvidas. Assim, explicaremos resumidamente uma
coleção de métodos, em oito passos: (1) leitura do texto; (2) delimitação do
texto; (3) estrutura do texto; (4) coesão do texto; (5) estilo do texto; (6)
estudo semântico do texto; (7) contexto do texto; e, separadamente, (8)
atualização.
Nossos passos são aproximações do texto que ajudam, do estudo
sistemático, ler os textos com uma atenção que se perde pela familiaridade
que temos com os escritos bíblicos. Assim, nos levam para uma sensação de
“estranhamento”, esta útil aos estudos e verificação dos significados do texto.
O resultado final, dessa compilação de passos, deve ser uma lista de
aprendizados sobre o texto, que podem culminar em um comentário do texto,
para servir à atualização para a prática pastoral. Esse último passo, a
atualização, também recebe, por vezes, o nome hermenêutica e age
particularmente em favor do tópico que já discutimos, a fusão de horizontes,
do horizonte do texto e de nossa comunidade de fé.
1: Leitura do texto
Um primeiro tópico deveria ser a escolha do texto. Como escolher um
texto a ser pregado? Aqui, não podemos descartar toda a subjetividade da
escolha. Perguntas da comunidade, interesses por pontos específicos de
leituras devocionais poderiam orientar nossa decisão, assim como um evento
social ou midiático que relembram-nos de leituras já feitas. A leitura do
Lecionário Comum, também pode ajudar-nos a definir um texto. De qualquer
forma, as decisões pelas quais optamos pelo texto, não são tão importantes
para nossa matéria quanto a forma que os interpretaremos, por isso,
passaremos direto à leitura do texto, com uma pequena ressalva: faça, antes
do processo interpretativo e da leitura do texto, uma análise do motivo pelo
qual escolheu tal texto. Ela será valiosa à prática pastoral, mesmo não sendo
abordada aqui.
2: Delimitação do texto
O segundo passo, depois da escolha e leitura do texto é conferir sua
delimitação. Nossas Bíblias usualmente já vem com trechos delimitados, que
no mundo evangelical chamamos passagens e no mundo acadêmico
chamamos perícopes. Perícope significa “cortado ao redor”. Isso significa
que interpretamos os textos a partir de suas pequenas unidades. A razão para
as utilizarmos são basicamente três: (1) a dificuldade de se interpretar
profundamente textos longos; (2) a natureza fragmentária dos textos, que
tratam de núcleos de memória acoplados; (3) a falta, em muitos textos
bíblicos, de títulos ou divisões de capítulos, como nos livros modernos. A
delimitação não pode ser feita irresponsavelmente, mas deve seguir as dicas
que o texto nos fornece sobre sua própria unidade, ou seja, a intenção do
texto, lembrando que recortes distintos produzem sentidos distintos ao texto.
A delimitação, assim, nada mais é que o recorte de um sentido completo do
texto, ou seja, precisa ter começo, meio e fim e passar uma mensagem.
Os textos bíblicos nos trazem indícios dessas unidades menores, que
compõe seu todo. Devemos observar onde começa e onde termina cada
texto1. Algumas das indicações de início em narrativas são evidentes e, na
leitura passageira do texto podem ser compreendidas, como mudança de: (1)
tempo, como em Mc 2.1, quando o texto traz a anotação de “dias depois...”;
(2) espaço, como em Mc 2.15, que fala de um novo cenário, a “casa de Levi”;
(3) personagens, como em Mc 7.1, onde são introduzidos na narrativa
“fariseus e escribas vindo de Jerusalém”; (4) tema/argumento, como em 1Co
12.1, que passa a falar dos “dons espirituais”, explicitamente; (5) linguagem,
Mt 7-8, que modifica um discurso à narração.
Sobre as indicações de término, por vezes o texto expõe rupturas, além
das mudanças acima mencionadas: (6) ação terminal, como partida ou
término, como em Mc 8.13 e Mt 9.8, que finalizam um tópico narrativo; (7)
ruptura do diálogo, como em At 8.24; (8) comentário conclusivo, como em Jo
2.24-25; (9) sumário narrativo, como surge em Lc 3.18.
Algumas formas literárias também cooperam na divisão de perícopes,
como nos inícios: “depois destes fatos” (Gn 22.1); “Esta é a história de X”
(Gn 6.9); “Aconteceu a palavra de Deus dizendo” (Ezequiel) etc, e, nos
finais: “E o lugar se chamou X até o dia de hoje”; “por isso existe tal
costume”; “foi para seu próprio país”; “e sabei que eu sou o Senhor vosso
Deus”; “palavra do Senhor”. Com isso temos a perícope delimitada e
podemos pensar no significado.
Um segundo e terceiro passo nesse estágio é a percepção da relação da
unidade delimitada com as unidades posteriores e anteriores, além da relação
com a unidade maior como um todo. A intenção dessa análise é perceber em
qual contexto literário (trataremos posteriormente do contexto histórico)
estamos interpretando nosso texto. Aqui vale atentarmos para o aparecimento
dos personagens, tempo, espaço e tema nas diferentes unidades e vermos
como o texto em questão se relaciona com eles. Se fossemos, por exemplo,
observar a relação do texto da aparição de Deus para Abraão em Mamre e da
promessa de Isaque à Sara em Gn 18, com os textos anteriores e posteriores,
perceberíamos que ele se liga por antítese temática ao capítulo 17, que firma
aliança com Ismael e se liga por personagens ao capítulo 19, da destruição de
Sodoma. Também, num nível maior, perceberíamos que o tema da promessa
de filiação é recorrente na história, assim como as aparições em Mamre, e a
própria presença de Abraão. Estes temas, fazem parte de uma unidade maior,
Gn 12-25. Assim, nossa perícope deveria ser interpretada pensando nesse
contexto literário, de Gn 12-25.
3: Estrutura do texto
Depois de observarmos o começo e fim de nosso texto, temos em mão
uma unidade completa. Tal unidade comporta-se logicamente, através dos
temas, personagens, espaço, tempo e, também, pelos artefatos linguísticos.
Nos manuscritos originais, geralmente não existem divisões entre frases,
vírgulas, títulos etc. Assim, para um maior entendimento do texto, devemos
subdividi-lo em parágrafos, tentando decifrar a lógica de sua composição.
Alguns pontos podem auxiliar nesse texto, como, por exemplo, o estudo de
termos que se repetem, por exemplo, os termos “melhor” ou “bom” (hebr.
tov) em Ec 7, que funciona como termo estruturante da perícope, a dividindo
em frases menores. Também, podemos observar a divisão lógica temática de
alguns textos como, por exemplo, a divisão entre “a natureza como criação de
Deus” e a “Torá como criação de Deus” em Sl 19. A composição de uma
forma gráfica para o texto pode cooperar na sua compreensão. Leia o texto de
1Sm 9.15-25 e, depois, confira um exemplo de estruturação:
Encontro de Samuel com Saul (1Sm 9.15-25)
1. Nó: Revelação de YHWH a Samuel (15-17)
2. Ação transformadora: Saul encontra Samuel (18-21)
3.Desenlace: Saul ganha lugar de honra (22-24a)
4.Situação final: Saul e Samuel comem (24b-25)
Essa divisão segue o enredo do texto, percebido em um esquema
narrativo quinário, isto é, percebe o movimento dos personagens e sua
relação de causalidade, com os momentos: situação inicial (S.I.), nó (N.),
ação transformadora (A.T.), desenlace (D.) e situação final (S.F.)2. Esse texto
é interessante como exemplo, pois é uma narrativa compósita, isto é, foi
formada a partir de diversos textos menores e compilada de forma mais
conservadora, sem tantos ajustes editoriais. Assim, ela tem ao menos quatro
enredos:
I. S.I.: “sistema tribal” corrupto (1Sm 8.1-3)
II. N.: necessidade de um rei (1Sm 8.4–22)
1. Os anciãos pedem um rei (1Sm 8.4-5)
2. Primeira reação ao pedido de um rei (1Sm 8.6-9)å
3. Exposição dos direitos do rei (1Sm 8.10-18)
4. Reação aos direitos do rei (1Sm 8.19-20)
5. Segunda reação: povo às tendas (1Sm 8.21-22)
III. A.T.: YHWH escolhe líder (1Sm 9.1-10.16)
1. Jornada pelas jumentas (9.1-5)
a) S.I.: apresentação de Saul (9.1-2)
b) Nó: extravio das jumentas (9.3)
c) A.T.: busca das jumentas (9.4-5)
i. Jornada ao Homem de Deus: presente (9.6-10)
a) S.I.: Notificação do Homem de Deus (9.6)
b) N.: presente para o Homem de Deus (9.7)
c) A.T.: jovem tem prata (9.8)
** Nota explicativa: Videntes em Israel (9.9)
d) S.F.: Início da Jornada ao Homem de Deus (9.10a)
ii. Jornada ao Vidente: (9.10b-14)
a) Procura pelo vidente na cidade (9.10b-14a)
b) Adendo vinculante entre as duas narrativas (9.14b)
iii. Encontro de Samuel com Saul (9.15-25)
a) N.: Revelação de Deus a Samuel (v.15-16)
b) A.T.: Saul encontra Samuel (v. 18-21)
c) D.: Saul ganha lugar de honra (v.22-24a)
d) S.F.: Saul comeu com Samuel (v.24b-25)
iv. Samuel unge Saul (9.15-25)
a) Unção privativa de Saul (9.26-10.8)
b) Sinais para confirmação (10.9-12)
d) D.: Saul volta ao lugar alto e fala com o tio (10.13-15)
e) S.F.: jumentas são ditas encontradas (10.16)
IV. D.: um rei é escolhido (1Sm 10.17-24)
1. Retorno de Samuel: volta e discurso (1Sm 10.17-19)
2. Sorteio para o rei: Saul (1Sm 10.20-24)
V. S.F.: percepções sobre o rei (1Sm 10.25-27)
Geralmente, em textos poéticos trataremos com repetições e
paralelismos, característica de textos hebraicos. Tais repetições fornecem
indícios de onde se iniciam novas estrofes, que são unidades menores. Em
textos narrativos, trataremos com ações de personagens, diálogos e temas.
Todos esses aspectos nos auxiliam na compreensão da estrutura do texto, que
formam-se como uma espécie de “esqueleto” daquela composição literária.
Os comentários exegéticos e boa parte das pregações se organizam a partir da
estrutura do texto, por ela trazer uma compreensão lógica da composição
textual, que nos ajuda didaticamente em sua explicação.
4: Coesão do texto
A coesão do texto existe para verificar se a unidade delimitada é uma
unidade com um fio condutor. Ela reavalia a delimitação do texto e a
estrutura. Enquanto na estruturação nos dividimos o texto em partes menores
observando a lógica de sua composição, na coesão nos veremos se há algo
que perpassa toda a perícope mantendo unidade. Tal fio condutor por vezes
será temático, como a expressão de uma teologia, outras vezes se manifestará
em repetições de expressões pertencentes a um mesmo campo de sentido (ou
semântico) e, por outras, estará ligada pelo protagonismo de um personagem.
Alguns critérios são comumente usados contra a unidade dos textos: (1)
presença de duplicações ou repetições, que podem ser justificadas ou não
pelo texto; (2) presenças de tensões não explicáveis no texto; (3) diversos
campos semânticos não relacionados; (4) mudança do fundo histórico no qual
se trabalha o texto; (5) mudança linguística dos termos do texto etc. Por
vezes, os passos exegéticos nos levam a novas avaliações do texto e de
passos precedentes. No caso da descoberta da não unidade da perícope e na
falta de um fio condutor, delimitação e estruturação devem ser refeitas.
5: Estilo do texto
Nessa etapa, começaremos a procurar as maneiras próprias do texto se
expressar. A análise do estilo do texto passa por dois momentos: (1) análise
do estilo literário; e (2) análise do gênero literário. Na primeira etapa,
observamos as características próprias da escrita da unidade literária que
estamos trabalhando. No caso de Gn 18, que utilizamos por exemplo,
analisaríamos como o texto desenvolve os temas, como utiliza as palavras,
qual seu uso de verbos de ação, se ele tem preferência por certos lugares para
desempenhar determinadas ações etc. Tudo isso faríamos dentro da unidade
de Gn 12-25. Podemos enxergar, utilizando outro exemplo, diferenças
estilísticas em cada um dos evangelhos sinóticos, que revelam acentos e
terminologias diferentes para cada uma das narrativas.
A segunda etapa depende de um arcabouço de conhecimento que
provavelmente fuja da prática comum3. Ela pretende analisar o gênero
literário e enxergar suas particularidades que influem no texto analisado. Um
gênero literário nada mais é que uma “abstração linguística que permite
associar na mesma categoria os textos que possuem forma literária
semelhante”4. Essa análise do gênero ajuda-nos a enxergar convergências e
divergências dos textos. Se observássemos, por exemplo, o gênero literário
carta, saberíamos que contém, usualmente: (1) remetente; (2) destinatário; (3)
ações de graças; (4) corpo da carta; (5) bênção. Esse enlistamento faz-nos
perceber a intenção da carta aos Gálatas que, propositadamente, omite as
ações de graças. Também perceberíamos as várias despedidas na carta aos
Romanos (cf. Rm 15.30-33; 16.20, 24, 25-27), que podem significar mais de
uma carta compilada e não uma única carta, o que altera substancialmente o
sentido da última etapa. Com estilo e gênero definidos, passamos ao
conteúdo.
7: Contexto do texto
Quanto mais sabemos do contexto histórico do texto, mais saberemos de
sua significação5. E tal contexto pode ser provido pelo estudo semântico
aliado aos estudos prévios que já foram feitos no mundo acadêmico6. É
importante que esse estudo do contexto seja feito após o estudo semântico e,
depois, que seja revisto e reavaliado o estudo semântico. Isso porque, às
vezes, a descrição do contexto antes do estudo do texto, leva a analogias
anacrônicas dos textos.
Dito isso, dizemos que no contexto temos mais dois passos, que
poderíamos chamar de análise macro-estrutural e micro-estrutural. Na análise
macro-estrutural nosso esforço é descobrir as correntes de pensamento, sejam
religiosas, políticas, econômicas e/ou sociais que apresentam-se no texto. Isso
nos ajuda a enxergar o ambiente cultural no qual o texto foi elaborado e nos
ajuda também a enxergar reflexos desse contexto cultural no nosso texto. O
segundo passo é uma análise micro-estrutural, que tenta exergar práticas
cotidianas daquelas que experimentaram os eventos descritos no texto. Isso
nos ajuda a ouvir a voz, em expectativas, e esperanças, ilusões e desilusões
daqueles que viveram o evento que gerou o texto.
A nível de exemplo, dois bons estudos que relacionam o texto ao
contexto e cotidiano se encontram no livro Experiência Religiosa e Crítica
Social no Cristianismo Primitivo, de Paulo Augusto de Souza Nogueira,
especialmente no capítulo 4 e, também, no livro Dimensões sociais da Fé do
Antigo Israel, organizado por José Ademar Kaefer e Haidi Jarschel,
especialmente no capítulo entitulado “‘Há uma doença debaixo do sol’. Uma
introdução ao livro de Coélet”, que trata do contexto de Eclesiastes. Os dois
reconstroem, a partir do texto bíblico, um panorama a partir do estudo
semântico e sociológico, que ajudam a esclarecer a mensagem de textos
bíblicos.