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© SILAS KLEIN CARDOSO

© TRÊS UM TRÊS, 2016


Coordenação editorial
DOUGLAS NASSIF CARDOSO
Capa e projeto gráfico original
SILAS KLEIN CARDOSO
Primeira edição, 2016
TRÊS UM TRÊS
www. tresumtres.com.br
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C268 Cardoso, Silas Klein
Para ler a Bíblia: introdução e boas práticas hermenêuticas.
São Paulo: Três Um Três, 2016, viii +114 p.
ISBN (papel): 978-85-93144-00-4
ISBN (e-book): 978-85-93144-01-1
1. Hermenêutica Bíblica 2. Interpretação da Bíblia 3. Literatura
I. Cardoso, Silas Klein II. Título III. Três Um Três
CDU 22.06
Para Karina e Ana Helena, melhores partes de mim.
Índice
“Apresentação”

“Introdução”
“1. Sobre o intérprete e o interpretar”
“2. Micro-história da Hermenêutica”
“3. Da vida à vida: uma teoria da produção textual”

“4. A materialidade do texto em sua interpretação”


“5. A Natureza da Bíblia”
“6. Manual de boas práticas hermenêuticas”
“Perspectivas”
“Referências”
Apresentação
Tenho o prazer de apresentar ao estudioso da Bíblia o livro de Silas
Klein, Para Ler a Bíblia: Introdução e Boas Práticas Hermenêuticas. Esse
livro oferece ao leitor, de forma sucinta, didática e vibrante uma apresentação
de perspectivas e procedimentos para a leitura da Bíblia. As duas coisas
estão, portanto, presentes: procedimentos, formas de acercar-se ao texto e de
fazer-lhe perguntas para uma leitura produtiva, e perspectivas, abordagens
renovadoras da velha e desgastada hermenêutica bíblica. Talvez nesse último
aspecto tenhamos o ponto que merece destaque no trabalho de Silas Klein.
Ele nos convida a ampliarmos o foco da hermenêutica bíblica do canônico
para os apócrifos e para os grandes contextos, do passado distante para as
releituras no longo tempo, incluindo o nosso, e das disciplinas teológicas para
as ciências da linguagem. Essas mudanças no foco farão toda a diferença na
releitura bíblica que delas resultará: será mais competente para entender o
passado, nossos lugares de leitores hoje, as diversidades internas no judaísmo
e no cristianismo primitivo, em diferentes fontes.
Para o intérprete que estuda teologia com a finalidade de atender ao
trabalho em igrejas e comunidades religiosas esse manual será também de
grande serventia. Há uma saturação das hermenêuticas tradicionais, que
apenas repetem scripts de leitura de um modelo de cristianismo, de um dado
período. Refiro-me aqui às hermenêuticas enlatadas que chegaram ao Brasil
desde o começo do século XX, traduzidas e importadas do universo
evangélico norte-americano. Elas formaram gerações e gerações de pastores e
missionários, se estabeleceram como as hermenêuticas-padrão, como formas
estabelecidas e bem-sucedidas de ler a Escritura. Esses manuais envelhecidos
e as leituras que promoviam não eram capazes, no entanto, de responder aos
novos contextos históricos nos quais os leitores brasileiros e suas
comunidades estão inseridos. Essa situação criou uma espécie de
esquizofrenia interpretativa. Os métodos de ler a Bíblia eram os velhos
conhecidos do passado, enquanto que as perguntas levantadas pelas
comunidades, em seus renovados e diferentes contextos, se tornaram cada
vez inusitadas. Criou-se o velho problema já apontado pela Escritura:
conservar vinho novo em odres velhos. Em algum momento era necessário
que se tocasse na ferida e se apontasse para novas direções. Isso é o que uma
nova geração de intérpretes começa a fazer, e é isso que encontramos nesse
manual. Silas mostra ao estudioso da Bíblia – seja ele estudante de teologia
ou o já experiente intérprete em busca de novos ângulos de leitura –, com
clareza didática e competência acadêmica, que o quadro de referência e as
perguntas de partida com que se faz a leitura mudam todo o resultado da
interpretação. A Bíblia é um texto prenhe de sentidos potenciais que cada
geração tem que descobrir por si própria. Manter as leituras velhas, por meio
dos manuais velhos, ainda que pretensamente corretos, nos faz omitir nosso
papel de intérpretes para a nossa geração, na nossa sociedade. Por isso temos
que destacar a importância do fato que uma nova geração de estudiosos da
Bíblia esteja reformulando a ciência que é uma espécie de pedra de toque da
teologia: os estudos bíblicos. Esse é a tarefa a que se propõe o manual que
aqui temos o prazer de apresentar.
Paulo Augusto de Souza Nogueira
Pós-Graduação em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo
Introdução
Ler é se arriscar. É abrir mão da aparente firmeza dos dogmas e certezas
e aceitar a heterodoxia e inventividade dos mundos desconhecidos,
construídos com letras e emoldurados pela matéria-prima de nossa
imaginação. Entretanto, em nossa contemporaneidade a leitura da Bíblia foi
domesticada: na intenção de se “salvar o texto”, fugiu-se dele. Não há mais o
costume de se ler pontos de tensão e dúvidas, mas usa-se a tradição teológica
como trampolim, que nos leva além do texto, sem jamais passar por ele.
Comentários viraram regras de fé, enquanto a Bíblia foi esquecida. Nosso
livro tem pretensão de ajudar a Bíblia a ser (re)lida, com todas suas tensões,
verdades e horizontes. Disso se trata a Hermenêutica Bíblica, da
fundamentação teórica que nos ajuda a ler o texto contra nós mesmos,
aqueles causadores de tamanhas incompreensões.
Existem, nas livrarias, bibliotecas, internet etc, centenas de livros sobre a
temática. Qual a razão de escrever um novo texto, então? Porque não utilizar
um dos textos correntes? Qual a inovação deste texto frente aos outros? Para
responder, precisamos dizer que existem alguns enfoques no tema. Primeiro,
temos toda uma tradição de livros que fazem proposições teológicas ao
estudo da hermenêutica. Uma dificuldade, nessas propostas é que por vezes
acentua-se mais a pertença religiosa dos autores do que a própria leitura do
texto. Segundo, temos um agrupamento de livros que enfocam características
gramaticais dos idiomas bíblicos. Embora fundamentais e, geralmente, de
grande qualidade, tais textos lidam com um público diminuto e não trazem,
por vezes, questões teóricas que suportem também a leitura do povo comum.
A terceira vertente é de livros que lidam com proposições filosóficas dos
temas e, aqui, ausentam-se as particularidades dos textos bíblicos.
Nossa proposta se situar entre essas três vertentes: fornecermos um texto
que trata fundamentos e discussões teóricas da hermenêutica de forma
literária, não teológica, relembrando que o texto bíblico é, em primeiro lugar,
um texto, ou seja, é matéria tanto intelectual quanto material. Também
procuramos acentuar, com excursos, exemplos e discussões, o caráter prático
da hermenêutica bíblica, para que o texto funcione como um manual didático.
Nesse aspecto, é importante dizer que nossa proposta surgiu da prática de
ensino da matéria e da observação da necessidade dos alunos.
Para alcançar esses objetivos, fornecemos um texto em seis capítulos. Na
primeira etapa temos dois capítulos que abordam a natureza do esforço
interpretativo. O primeiro, chamado “sobre o intérprete e o interpretar”,
observa as bases do processo comunicativo, a formação da cultura, a
influência da cultura sobre o ser humano e a polissemia e criação de sentido
na leitura. Objetivamos, nele, concientizar os leitores de sua condição frente
ao texto. Em “Micro-história da Hermenêutica”, observamos brevemente as
variadas e divergentes formas de ser ler o texto bíblico no recorrer da história.
Nossa intenção última, neste tópico, é traçar os limites de três formas de
aproximação do texto e seus desdobramentos práticos.
Na segunda etapa, trabalhamos o texto na história e decorrências
hermenêuticas. A fundamentação básica foi a teoria de Severino Croatto, em
seu icônico livro Hermenêutica Bíblica. Assim, no capítulo “Da Vida à Vida:
uma teoria de produção textual”, dialogamos com a obra do autor,
compreendendo as três distanciações ocorridas entre a experiência religiosa e
a chegada dos textos em nossas mãos: (1) da experiência à fala; (2) da fala à
escrita; e (3) da escrita à (re)leitura. No sentido de melhor nos apropriar dos
conhecimentos e de dialogar com as implicações da teoria, fizemos pequenas
incursões, que chamamos desvios, sobre a constituição do olhar sobre o
mundo, distinções entre oralidade e escrita e a questão da intertextualidade,
intratextualidade e tradução como interpretação.
No capítulo intitulado “A Materialidade do texto em sua interpretação”,
escrevemos uma breve história do design dos livros. Ali, buscamos
demonstrar que a forma material dos textos altera sua interpretação e, por
isso, deve ser levada em conta no processo hermenêutico. Textos sagrados,
afinal, sempre foram protagonistas na evolução da materialidade dos textos:
os mesopotâmios antigos estabeleceram as tabuletas de argila como formato
primário entre o quarto e terceiro milênio aC; os egípcios, gregos e,
posteriormente, judeus estabeleceram o formato do rolo entre segundo
milênio aC e primeiro século dC; e, por fim, os cristãos ajudaram a formar a
cultura do códice, a partir do segundo século dC e que nos atinge até hoje.
Por vivermos numa nova revolução, da imaterialidade dos textos, i.e., livros
virtuais, onde os textos perdem sua função ritual de objeto sagrado, não
podemos deixar o tema desapercebido.
Em “A Natureza da Bíblia”, refutamos três afirmações anacrônicas,
pressupostas na leitura contemporânea da Bíblia: (1) a Bíblia é um Livro; (2)
a Bíblia é História; (3) a Bíblia sempre foi Bíblia. Primeiramente, afim de nos
opormos à primeira asserção, vemos os escritos bíblicos como objetos de
culto, artigos de luxo, textos para performance, fragmentos e produção de
escritores que não escreviam. Segundo, vemos em qual sentido a Bíblia é
História e em qual sentido não é, assumindo uma nova postura, que não é
simplesmente teológica e sem a pretensão de associá-la a uma historiografia
contemporânea. Em terceiro lugar, vemos a influência da canonização na
interpretação bíblica, observando-a como processo de clausura de sentido que
deve ser considerado na hermenêutica pastoral. Nosso objetivo, nesta etapa, é
traçar limites frente à uma leitura literalista, historicista e, portanto,
anacrônica.
No último capítulo, trazemos um apêndice que apresenta uma
metodologia exegética que contemple os fundamentos abordados.
Chamamos-no “Manual de Boas Práticas na Interpretação Bíblica”. Para
isso, fornecemos um método de sete passos de análise do texto: (1) leitura do
texto; (2) delimitação do texto; (3) estrutura do texto; (4) coesão do texto; (5)
estilo do texto; (6) semântica; (7) contexto. Também abordamos
problemáticas da atualização.
Por ser um livro-didático, que deve introduzir alunos e alunas numa nova
ciência, mantivemos notas de rodapé completas e visíveis na mesma página
de sua menção. Esperamos, com isso, exercitar os leitores tanto na arte da
pesquisa, demonstrando seu caráter de coletividade e diálogo, quanto
incentivá-los a se aprofundar nos temas e autores citados, fazendo uma leitura
crítica deste e dos demais textos. Infelizmente, uma prática que tem sido
recorrente em livros didáticos de nossa América Latina é omitir notas de
rodapé em detrimento de uma suposta “simplificação para o povo”. Em nossa
opinião, essa prática, ao invés de simplificar, tem iludido alunos e alunas, que
acreditam que tais textos trazem ideias isoladas de um determinado autor. As
consequências são graves, os alunos passam a reproduzir acriticamente um
modelo que só pode ser descrito como plágio. Nossa intenção é evitar essa
problemática.
É necessário ressaltar que o presente texto é resultado da pesquisa
realizada para a ministração de uma série de cursos de interpretação bíblica,
tanto sobre o Antigo quanto o Novo Testamento, ministrados no Instituto
Bíblico Kalleyano, seminário de tradição evangélica congregacional, entre os
anos de 2013 e 2016, além de dois cursos sobre “A história do Design do
Livro”, oferecidos no Colégio Marista Arquidiocesano no primeiro semestre
de 2015. Nossa tentativa, assim, foi de trazer um conteúdo preciso e
relevante, mas objetivo e de fácil compreensão, focalizando alunos de cursos
de graduação em Teologia e Ciências da Religião.
Nossa jornada não foi solitária, por isso, agradeço a paciência de alunas e
alunos, que partilharam momentos preciosos de reflexão sobre temas teóricos
exaustivos e em trabalhosos e exigentes exercícios práticos. Nos bastidores,
de igual modo, uma série de pessoas foram fundamentais durante este
processo. Meus professores e amigos Tércio Siqueira, Paulo Nogueira, Edson
de Faria Francisco, Suely Xavier, José Ademar Kaefer e Rui Josgrilberg nos
introduziram valiosos conceitos aqui apresentados. De igual modo, os
parceiros e parceiras de pesquisa, nos grupos de pesquisa “Oracula”,
“Arqueologia do Antigo Oriente Próximo” e “Rimago”, dentre eles, Denilson
Matos, Elcio Mendonça, Carlos Eduardo Araújo e Cecilia Toseli, que em sua
precisão acadêmica sempre nos incentivaram a buscar melhores referenciais e
formas de ensiná-los. Não é necessário dizer que a interpretação dos
conceitos e ideias aqui expressas é minha, assim como a total
responsabilidade sobre elas.
Silas Klein Cardoso
São Paulo, Setembro de 2016
1. Sobre o intérprete e o interpretar
Que está escrito na Lei? Como lês?

Lc 10.261
As devolutivas de Jesus geralmente abrem uma imensidão de caminhos.
A partir da resposta ao doutor da lei poderíamos arguir qual seria o sentido de
Lei (νόμος) naquela situação descrita. Poderíamos também comentar as
implicações e o impacto sócio-cultural dessa lei ser escrita (γράφω), qual a
delimitação deste conceito e como o termo seria melhor compreendido e
traduzido para o nosso idioma, visto as práticas de escrita e leitura da época e
região serem consideravelmente distintas das nossas2. Entretanto, uma
questão que nos salta aos olhos nesse momento é a partícula interrogativa
“como” (πῶς), na segunda questão: Como lês? Jesus, com notável
simplicidade, demonstra que “ler”3 não é um simples exercício de
assentimento, mas existem múltiplas possibilidades de se compreender um
texto. A resposta pressupõe que o ato da leitura ajuda a criar significado no
texto. É verdade, pode-se dizer que algumas leituras podem ser consideradas
sadias ou doentias, causar bem ou mal. Mas, aos nossos propósitos, é mais
importante notar que não há apenas um meio para se compreender os textos,
como geralmente se assume popularmente na exclamação “mas é o que está
escrito!”. “Estar escrito” não fecha a discussão, apenas nos leva a um outro
estágio, que nos exige novas ferramentas e arsenal argumentativo.
A Hermenêutica habita justamente esse contexto. Ela tem incumbência
de pensar as formas de se interpretar. A própria etimologia da palavra nos diz
isso. O grego hermēneuō (ἑρμηνεύω) pode ser traduzido como “interpretar”,
“explicar”, ou mesmo “falar claramente”. A origem do termo remete ao deus
Hermes, o arauto dos deuses gregos, responsável por entregar mensagens dos
deuses aos humanos, como diz a Teogonia de Hesíodo (938-9). Platão
ressaltou que o nome de Hermes tem relação com o discurso (λόγος), que ele
era um mensageiro (ἄγγελος) e que sua atividade estava ligada ao “poder do
discurso” (λόγου δύναμίν). Tudo isso nos ensina que a hermenêutica trabalha
sobre distância e incompreensão e ocupa-se, resumidamente, no habilitar
leitores à compreensão de textos e pensar condições e possibilidades da
interpretação.
Existem diversas vertentes da Hermenêutica, com diferentes
instrumentos e aplicações: Hermenêutica Filosófica, Jurídica,
Fenomenológica, Ontológica, Literária etc. O recorte e objetivo último da
Hermenêutica Bíblica é o que o nome propõe: a interpretação dos textos
bíblicos. Tal interpretação pode partir dentre os diversos instrumentais
teóricos da Hermenêutica. Alguns autores partem da filosofia, outros das
ciências da linguagem e, ainda outros, constroem seus conceitos pela
semiótica. Isso lhes habilita a diferentes definições, das quais vale
considerarmos algumas: Alonso Schokel definiu hermenêutica como “a
reflexão teórica no entendimento e interpretação de textos”4, Paul Ricoueur
como a “teoria das operações da compreensão em sua relação com a
interpretação dos textos”5. Essas definições priorizam aspectos teóricos da
Hermenêutica. Anthony Thiselton, por sua vez, disse que a Hermenêutica
“explora como lemos, compreendemos e manipulamos os textos,
especialmente aqueles escritos em outro tempo ou num contexto de vida
diferente ao nosso”6 e Bernard Lategan disse que “em termos gerais, a
hermenêutica pode ser descrita como a ‘arte do entendimento”7. Severino
Croatto, por sua vez, procurou enfatizar as condições nas quais textos passam
a existir e seu impacto nos futuros leitores. Ele disse que “a leitura dos textos
bíblicos está circunscrita por dois momentos existenciais, ou seja, por dois
pólos históricos”8, que seria o momento do evento histórico e o momento da
leitura dos textos. O texto bíblico estaria entre esses dois pólos, unindo a
realidade daquele que experimentou o evento gerador do texto, daquele que
experimenta o texto em sua forma final, no cânon bíblico.
E aqui, dentre estas definições, precisamos optar por um caminho
metodológico que ilumine nossa jornada. Cabe nos perguntar, então, a razão
do estudo da Hermenêutica em nosso contexto. Nossa realidade não pede
uma interpretação por mera curiosidade acadêmica, nem tampouco uma
interpretação que vise desenvolver tratados teológicos. Este curso de
interpretação bíblica habita num contexto similar ao explorado por Klaus
Berger:
o problema da hermenêutica teológica não consiste no fato de existir uma Bíblia
necessitando de tradução, mas no fato de diante de Deus existirem pessoas que
necessitam de redenção em sentido amplo. [...] O ponto de partida é, antes, a
evidência do apelo resultante da situação [...] e a necessidade de agir que daí
procede.9

Um caminho coerente, em nosso escopo, é aquele que é capaz de nos


oferecer subsídios à prática pastoral10. Nesse aspecto, a proposta de Severino
Croatto torna-se atraente, pois enxerga o texto como unificador existencial
entre duas realidades que nos são, ao mesmo tempo, tão distantes e tão caras:
o momento histórico que provocou a existência do texto e o momento
histórico no qual ele é (re)criado pela leitura. Com este panorama,
acreditamos que o texto possa ser “desengessado” o suficiente para iluminar
o momento atual, sem desrespeitar suas fundações e momentos históricos.
Alguns conceitos preliminares, entretanto, são necessários para
construirmos, posteriormente, uma compreensão do processo interpretativo
dos textos bíblicos. Nesta sessão veremos algumas bases que definem o que é
a cultura, comunicação e algumas consequências ao processo interpretativo.

Cultura, a segunda realidade humana


Entender a própria condição tem sido a grande jornada humana desde o
início dos tempos. Entretanto, muitas vezes confunde-se a condição biológica
humana com sua condição apre(e)ndida socialmente. Por isso, antes de entrar
em tópicos que remetam a particularidades sócio ou histórico-culturais, é
necessário compreender o que é cultura. Essa questão não é simples, tendo
feito surgir toda uma disciplina de estudos, a Antropologia. Assinalaremos
aqui algumas percepções básicas, apenas para provocar a reflexão do tema.
Partimos de sua origem. Uma série de antropólogos tem sugerido que tal
necessidade de compreender a própria condição, de atribuir significado
dentro de um contexto social específico, tenha se dado primeiro frente ao
advento da morte. A questão da permanência (sem vida?) ou partida (para
onde?) daqueles que corporalmente ainda estão entre nós evoca questões
como “quem somos?”, “o que fazemos aqui?”, “como nos percebemos?” etc.
A incompreensão do óbito, assim, teria levado o ser humano a imaginar.
Nesse processo houve a necessidade de se criar um arcabouço de imagens
que suprisse ausências. Nas palavras do antropólogo Christoph Wulf, “uma
imagem obtém o seu significado ao retratar algo ausente, algo que qua
absentia só pode estar presente como uma imagem e na imagem”11. A
ausência dos entes queridos teria feito com que seres humanos buscassem
presentificar seus mortos e lhes fez imaginar seu destino através de, por
exemplo, pinturas em caveiras12. Essa representação visual é extremamente
complexa, pois subentende uma percepção do que é o ser humano, uma
percepção que não está mais atrelada à condição biológica do homem, mas a
uma constituição mental do que é o humano, que lhe atribui presença na
ausência.
E isso representa, em sua forma mais pura, a cultura. Cultura, a grosso
modo, poderia ser definida como o que distingue o que é comum à toda
humanidade, como suas características biológicas, do que lhe é particular,
como hábitos, percepções, ritos e representações13. Essa segunda parte, é
apre(e)ndida num contexto social, é cultural. A cultura, a partir dessa
capacidade imaginativa, abriu uma segunda realidade, segundo Ivan
Bystrina. O mundo, afinal, não é compreendido a partir da percepção de
fenômenos físicos, químicos e relações exatas. Tudo, para nós, compreende
um significado mais profundo, a tudo atribui-se sentido. Essa realidade
cultural é moldada a partir de símbolos gerados da primeira realidade, a
realidade biológica ou física. E por isso, acredita-se, que o ser humano tende
a traduzir suas observações em termos simbólicos humanizados ou
antropomórficos, isto é, sob a forma humana. Emoções são atribuídas a
objetos inanimados (um belo dia), sentimentos são humanizados (a esperança
nasceu/morreu) e características humanas são atribuídas a elementos
inanimados (a rosa vive) etc.
Conceitos religiosos tiveram, se não uma importância fundamental, uma
grande influência nesse processo. Isto porque a religião surge na necessidade
de responder às questões mais profundas (e lacônicas) da existência humana.
Com isso, a tarefa de se interpretar textos religiosos sugere uma imersão nos
recônditos mais profundos das sociedades antigas. Não é acaso que grande
parte das palavras trazidas de outros idiomas mais antigos tem conotações
religiosas ou míticas, porque conceitos abstratos convivem bem com a
religião.
Com isso, podemos assinalar que com a visão de mundo humana sendo
moldada por símbolos culturais e intermediada pela linguagem, os “textos e
acontecimentos são”, ou passaram a ser, “signos que necessitam de
interpretação”14. Afinal, antes do texto ser religioso, ele é um texto e, como
tal, alguns princípios da ciência dos signos, a semiótica, são necessários.

É impossível não comunicar e não interpretar


A semiótica trabalha sobre signos, o sentido e a comunicação15. E, para
resumir sua atuação, podemos citar Umberto Eco, que a define como “a
disciplina que estuda tudo quanto se possa ser usado para mentir”, pois “se
algo não pode ser usado para mentir, então não pode também ser usado para
dizer a verdade: de fato, não pode ser usado para dizer nada”16. Isso
demonstra que a semiótica opera sobre a operação dos signos e que ajuda a
pensar formas de produção de sentido.
Nesse aspecto, vale fazermos uma breve digressão para explicarmos o
que é signo. Signo é “alguma coisa que é reconhecida por alguém como
indicação de algo”17, é a combinação de significante (expressão, sons, letras)
e significado (conteúdo). Por exemplo, as letras “cão” são o significante do
que é o animal, que é o significado. A palavra não é o que representa, é um
código que é identificável a diferentes membros de um grupo, uma realidade
psíquica compartilhada. Não possuindo o repertório correto, essas
letras/códigos não significam absolutamente nada, que nos faria recorrer à
uma segunda representação do objeto (significado), por meio de outro
significante (fig. 1). A essas outras formas de chamar o significante
chamamos interpretante. Por exemplo: cão (representamen), dog (primeiro
interpretante), animal doméstico (segundo interpretante), nome do animal
(terceiro interpretante) etc. Isso forma uma cadeia de interpretantes, chamada
“semiose ilimitada”18.

Disso, dizemos que a semiótica funciona sobre um pressuposto chamado


primeiro axioma da comunicação, que afirma que “não é possível não
comunicar”19. Cada pessoa, objeto, natural ou não, emite informações ao
mundo que são passíveis de interpretação. Tudo tem sentido para nós. Isso
porque o ser humano, com sua capacidade simbólica, transformou-se
irremediavelmente. Como já mencionamos, Christoph Wulf disse que tal
capacidade de transformar o mundo em imagens e incorporá-las é
inerentemente humano. Para ele, a imaginação é “pré-condição para a
memória bem como projeções para o futuro e, portanto, também para a
história e a tradição, para a mudança histórica e cultural”20.
Rui Josgrilberg, pensando a partir da outra ponta do processo
comunicacional, defendeu que “é essencial no ser humano o ‘ser intérprete’”.
Para ele, o ser humano tem uma eterna inquietação em buscar e dar sentido21.
Sendo parte da condição humana e sua essência, torna-se igualmente
impossível não interpretar, sejam textos, palavras, ações, objetos etc.
Como disse Volli, “as coisas não nos parecem de forma abstrata, como
configurações geométricas ou psicológicas de estímulos, mas as vemos de
pronto segundo a sua utilidade, o seu risco, as ações que nos são exigidas:
cada coisa é para nós”22, ou seja, são interpretadas, tem sentido para nós. Não
é possível não interpretar, seja comunicação voluntária, involuntária, verbal
ou não-verbal.

O funcionamento da comunicação
Mais do que compreendermos que a interpretação é inerente ao ser
humano, é importante observarmos como se dá a comunicação, ambiente do
esforço interpretativo. E aqui temos diferentes papéis, que podem ser
ilustrados pela entrega de uma carta. Nesse esquema, aquele que envia a carta
é chamado remetente, o conteúdo da carta é chamada mensagem ou texto23, o
papel/envelope onde é entregada é chamado meio, enquanto o que a recebe é
chamado de destinatário. O emissor é responsável por codificar a mensagem,
com signos partilhados pelo destinatário, de modo que o destinatário, sob o
mesmo sistema simbólico, a decodifique. Esse esquema primário de
comunicação pode ser representado assim24:
Embora na representação visual o modelo pareça simples e óbvio, é
importante não se tomar o processo como linear e mecanicista. A
comunicação humana é complexa e não-linear, e não se dá num único
sentido. O remetente já foi destinatário e o destinatário também será
remetente, são “respondentes”.

Geralmente se diz que a falha do sistema é quando a mensagem não é


reproduzida (ou compreendida) com exatidão. Essa “falha” pode ser ilustrada
com a brincadeira “telefone sem fio”: existem forças que impedem que o
código seja corretamente decodificado pelo destinatário. Assim, o código
transforma-se num código secundário, não mais aquele que saiu do emissor.
No caso da carta, a corrosão de parte do papel ou a caligrafia do autor, no
caso da comunicação oral o timbre, pronúncia ou mesmo interrupções.
Também podemos assinalar a distância de contexto como fator complicador.
À dificuldade de transmissão, que distorce o significado original da
mensagem, chamamos ruído, que procura ser sanado com artifícios diversos,
como a redundância.

Ainda um elemento é importante: o contexto ou horizonte de


compreensão. Sem um mesmo ambiente - linguístico, cultural, social,
geográfico etc - a linguagem permanece com multiplicidade de sentidos,
polissêmica. Um idioma, por exemplo, é um sistema de linguagem, de
símbolos. Quando não se possui o mesmo código, idioma, a interpretação não
é possível e o conteúdo não significa nada para nós25, é mero ruído.
Iuri Lotman, entretanto, sugeriu que a avaliação do sistema pela entrega
correta da mensagem era incoerente, visto que tal transmissão exata, a não ser
por meios artificiais, é virtualmente impossível. Para isso, os dois
respondentes do processo precisariam ter um mesmo nível de conhecimento
sobre o assunto, um mesmo conjunto de códigos interpretativos, as mesmas
experiências visuais, os mesmos sentimentos, o mesmo ambiente cultural e
histórico etc. Assim, “aquilo que numa teoria clássica de informação
chamamos de ruído, [...] é na verdade o que constitui a função básica do
processo de comunicação”26. Lotman, dessa forma, sugeriu que o texto tem
três funções distintas27: (a) comunicar: para isso, o texto deve ser
monossêmico, pobre de sentido, para não dar abertura a novas interpretações;
(b) produzir mensagens, criar sentido: arte e religião são polissêmicas,
cada leitor tem um código diferente, que geram novos textos e leituras; (c)
gerar memória: o texto ganha dimensão histórica, ao evocar interpretações
passadas na leitura, aglutinando em seu redor múltiplos textos.
As diversas leituras bíblicas distinguem-se por diferentes panoramas e
concepções desse modelo comunicativo. Em um esquema que exija a
transmissão exata da mensagem, ele procurará um significado singular e se
esforçará por restaurar o sentido original da mensagem. Nesse primeiro
panorama, o pecado da comunicação são seus vários sentidos. Assim, haverá
esforços de clausura, para controlar e ocultar os diferentes sentidos do texto.
O esquema de Lotman, pelo contrário, observa a polissemia que o texto gera
por diferentes leituras com bons olhos e atentará não apenas para o sentido
original, mas para o crescimento de significado no decorrer do tempo.

Polissemia e criação de sentido na leitura


Por portar uma gama variada de códigos complexos, que se entrecruzam
na produção de uma mensagem, o texto se torna polissêmico. Tal polissemia
se agrava na distância do autor, que abandona a obra no momento que a
produz. Isto é o que se chama de desaparecimento do primeiro interlocutor e
a perda do horizonte do primeiro discurso. Podemos utilizar um texto bíblico
para exemplificar esta problemática:
Eis que abençoar te peguei; e abençoou, mas não farei retornar. Não olhei
injustiça em Jacó, e nem vi infortúnio em Israel; YHWH, o Deus dele, com ele, e
aclamação de rei nele. Deus o que os fez sair desde o Egito; como chifres de boi
selvagem dele. Porque não adivinhação em Jacó, e nem augúrio em Israel; como o
tempo será dito de Jacó e de Israel: que obrou Deus! Nm 23.20-2328

Nos esqueçamos, por um segundo, que este texto originalmente foi


escrito em caracteres paleo-hebraicos, depois interpretados em caracteres
hebraicos e, só então, foram devidamente traduzidos aos caracteres latinos no
idioma português. Mesmo que agora reconheçamos as palavras do texto,
estas literalmente traduzidas29, sua compreensão plena é improvável, visto
que expressões idiomáticas, traduzidas ao pé da letra, tornam-se obscuras e
sem sentido. A falta de um autor, destinatário e o distanciamento do contexto
prejudicam a compreensão. A própria formulação do texto é difícil, pois
possui uma outra forma de organização sintática, que só pode ser decifrada
com o conhecimento gramatical do idioma original. As imagens às quais o
texto remete, como “Jacó”, “chifres de boi selvagem”etc, dificilmente serão
compreendidas da mesma forma como o autor imaginou, visto que não
conhecemos como o autor imaginava tais conceitos ou, mesmo, o que
simbolizam. O autor se separou do texto, assim, sua interpretação pode
jamais ser recuperada.

Esse é um problema que já era discutido na Grécia Antiga. Platão, em


seu livro Fedro, disse que “cada logos (discurso), a partir do momento em
que foi escrito, rola para todos os lados, tanto na direção dos que o
compreendem quanto na daqueles com os quais nada tem a ver, não sabendo
a quem deve ou não deve falar”. Ele defendia que o texto não fosse lido sem
a presença do autor pois, naquela época, o texto era apenas suporte para a
fala. Ele já reconhecia, desde a época, a dificuldade de se interpretar um texto
sem o autor.
Croatto30 demonstra que a leitura é, por si, produção de sentido, pois toda
leitura produz um discurso, um sentido, a partir do texto. Não se lê o sentido,
mas um texto, com códigos entrecruzados. A busca do sentido do texto deve,
obrigatoriamente, partir dos signos no texto. O código do destinatário, por
vezes, é distinto do código do remetente, o que gera novas possibilidades.
Mesmo que, supostamente, haja ausência de ambiguidade no texto, os texto
tornam-se polissêmicos pela combinação de códigos, o que dá margem à
novos sentidos, como observamos nas funções do texto de Lotman. E, ainda
que os códigos fossem assimilados facilmente, ainda teríamos a questão da
entoação31, por exemplo, entre outros elementos, que impossibilitariam a
transmissão integral do sentido do autor aos receptores do processo
interpretativo.
Aqui podemos citar um exemplo, que explica o ônus da perda do
contexto inicial de um texto. Umberto Eco32 conta que, antes de uma
conferência, o presidente americano Ronald Reagan disse: em poucos
minutos darei ordem para bombardear a Rússia. Se tomarmos o texto como
literal, as consequências seriam gravíssimas. Entretanto, o ambiente era
informal e a entoação da frase foi feita em tom irônico: era uma brincadeira!
Tomar uma interpretação literal da fala criaria uma confusão interpretativa e
sérios problemas.

Textos, portanto, são signos que foram feitos órfãos de seu contexto
original, tornando sua leitura difícil. Este é um problema ancestral, que a
hermenêutica bíblica tentou sanar na história.

Perspectivas
Neste primeiro capítulo observamos a hermenêutica como ciência
interpretativa que fundamenta teoricamente a interpretação de textos, estes
que podem ser textos sagrados. Assim, nos debruçamos inicialmente sobre a
compulsão humana ou antropológica de interpretar, no que dissemos: “é
impossível não interpretar”. Sendo o mundo mediado pela linguagem, que
percebe acontecimentos como signos, há necessidade de se interpretar os
eventos, pois os eventos não são algo em si mesmos. Essas informações, para
a interpretação de textos sagrados, são basilares, pois estes textos tendem a
superabundar em narrações e poetizações de eventos ou mitos significativos
ou fundacionais para determinada vertente religiosa.
Por esse motivo, apresentamos o modelo básico de comunicação, visto
que as diversas vertentes interpretativas, sejam científicas ou populares,
trabalham com compreensões mais ou menos engessadas de tal modelo.
Algumas tendem a tentar reduzir os ruídos a zero, buscando no texto o evento
“cru”, numa tentativa de historicização, enquanto outras percebem que os
textos relidos tornam-se mais significativos e profundos para a experiência de
fé. De uma forma ou outra, observamos que é na leitura que os textos surgem
e uma de suas características centrais é a polissemia, a multiplicidades de
interpretações possíveis, essa aprofundada pelo distanciamento entre evento
gerador do texto e leitura do texto contemporâneo.
Na sequência, faremos um breve passeio à história da hermenêutica,
tentando perceber como os leitores dos textos sagrados judaico-cristãos
tentaram superar as dificuldades de interpretação.

1 As citações bíblicas serão da Bíblia de Jerusalém, salvo quando indicado. Textos de


outros idiomas serão traduzidos e, quando necessário, serão apresentados em caracteres
estrangeiros entre parênteses.
2 Walter Ong disse que culturas “manuscritas”, como no Cristianismo Primitivo, tendem a
manter-se com alto grau de oralidade. ONG, W. Orality and Literacy: The
Technologizing of the World. 30yrs edition. New York: Routledge, 2007; Cf. também
DEWEY, J. (ed.).. “Orality and Textuality in Early Christian Literature”. In: Semeia 65,
1994
3 Que aqui surge com o termo ἀναγινώσκω, que poderia ser traduzido por “interpretar”,
“conhecer” ou, ainda, “perceber” um texto.
4 SCHOKEL, L. A.; BRAVO, J.M. Manual of Hermeneutics. Trad. Liliana M. Rosa.
Sheffield: Sheffield, 1998, p. 19
5 RICOUEUR apud CROATTO, Severino J. Hermenêutica Bíblica: para uma teoria da
leitura como produção de significado. Trad. Haroldo Reimer. São Paulo/São Leopoldo:
Paulinas/Sinodal, 1986, p. 9
6 THISELTON, A. C. Hermeneutics: An Introduction Grand Rapids/Cambridge:
Eerdmans, 2009, p.1, tradução nossa.
7 LATEGAN, B.C. “Hermeneutics”. In: FREEDMAN, D. N. (Org.). The Anchor Yale
Bible Dictionary. New York: Doubleday, 1992, V. 3, p. 149
8 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 9
9 BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. Trad. Nélio Schneider. São
Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 14
10 Que não compreendemos na simples (e, talvez, pejorativa) oposição “clero vs laico”,
mas no resultado da missão do cristão comum.
11 WULF, C. Homo Pictor: imaginação, ritual e aprendizado mimético no mundo
globalizado. São Paulo: Hedra, 2013, p. 27. É importante ressaltar que “imaginação”
para Wulf não é apenas visual, mas interfere nos outros sentidos humanos. Para ele a
herança etimológica gerou o preconceito etimológico. Cf. p. 41, 42.
12 P.ex.: <http://goo.gl/ZQvfuV>. Acesso: 4 de fevereiro de 2014.
13 Cf. p.ex., as interpretações de: GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. LTC: São
Paulo, 2015; LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 24ed. São Paulo:
Zahar, 2009
14 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 17
15 VOLLI, U. Manual de Semiótica. São Paulo: Loyola, 2007, p. 13
16 ECO, U. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 4
17 VOLLI, Manual de Semiótica, p. 31
18 Exemplo de VOLLI, Manual de Semiótica, p. 37. Para saber mais: ECO, Tratado Geral
de Semiótica, p. 58-62
19 A “impossibilidade de não comunicar” é tema dos axiomas da comunicação de Paul
Watzlawick. Cf. MATTELART, A; MATTELART, M. Historia de las teorías de la
comunicación. Traducción Antonio López Ruiz y Fedra Egea. Buenos Aires: Paidós,
1997, pp. 49-50
20 WULF, Homo Pictor, p. 41
21 JOSGRILBERG, R. S, “Hermenêutica fenomenológica e a tematização do sagrado”. In.
NOGUEIRA, P.A.S. (org.). Linguagens da Religião. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 31
22 VOLLI, Manual de Semiótica, p. 18
23 Texto aqui tem a conotação de “unidade de informação” e não unidade literária. A
distinção é importante por também se aplicar a esquemas não literários, i.e., emissão de
informações via múltiplos meios.
24 Este modelo nasceu com a teoria de informação de Shannon e, depois de ser criticado,
chegou a essa forma com Roman Jakobson. Bakhtin utilizou o esquema enfatizando a
resposta dos atores das duas extremidades no processo comunicativo, chamando-os
“respondentes”. Isso pois o mero falar, segundo ele, não apenas pressupõe o esquema da
língua, mas enunciados anteriores. Cf. BARROS, D. P. “A comunicação humana”. In:
FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística: 1. Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto,
2015, p. 25-53; BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2011, p. 261-306
25 Na semiótica sausseriana há uma distinção entre “língua” (langue) e “fala” (parole), cuja
primeira seria o código e a segunda seria o texto. Enquanto a língua é potencialidade, o
sistema de regras que rege a língua, a fala é a expressão que utiliza-se dessa
potencialidade e sistema. O problema levantado por Eco da semiótica de Saussure é que
não compreendia a comunicação involuntária. Para ler mais Cf. ECO, Tratado Geral de
Semiótica, p. 9-10
26 NOGUEIRA, Paulo A. S., “Religião como texto: contribuições da semiótica da cultura”
em NOGUEIRA, Linguagens da Religião, p. 18
27 Cf. LOTMAN, Iuri M. “As três funções do texto” em Por uma teoria semiótica da
cultura. Traduzido por Fernanda Mourão. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008, p.13-26
28 Tradução literal de FRANCISCO, E. F. Antigo Testamento Interlinear Hebraico-
Português, vol 1, Pentateuco. Barueri, SP: SBB, 2012
29 O conceito de “literalidade” talvez seja impreciso. Cf. capítulo 3
30 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 23-24
31 Bakhtin assinala que a entoação é característica do discurso cotidiano e carece do
contexto extraverbal com: (1) horizonte espacial dos interlocutores; (2) conhecimento e
compreensão comun da situação pelos interlocutores; (3) avaliação comum. O enunciado
verbal artístico por sua vez, independe do extraverbal.
32 ECO, U. Os limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 9-11
2. Micro-história da Hermenêutica
A hermenêutica não é recente. Aristóteles, em 350 a.C., escreveu um
texto sobre a temática, Sobre a Interpretação (Peri Ermēneias, Περι
Ερμηνειας), pensando na mecânica interpretativa de seu idioma. O mesmo
ocorreu com a hermenêutica bíblica, antes de ser uma ciência crítica, no séc.
XVIII dC, já era praticada com características particulares em cada época.
Neste capítulo, faremos uma brevíssima incursão à história da
interpretação bíblica, demonstrando caminhos de continuidade e
descontinuidade desde a escrita dos textos bíblicos até chegar aos nossos
dias. No final, trataremos dos três focos de interpretação do texto: (a) autor;
(b) leitor; e (c) texto.

Pré-História da Hermenêutica
Interpretar é uma característica inerentemente humana. Por isso, é
importante dizer que a interpretação bíblica inicia tão cedo quanto a produção
dos textos bíblicos. Os autores bíblicos, por exemplo, utilizaram gêneros
literários de suas épocas para descrever os eventos que lhes marcavam. Essa
prática, amplamente reconhecida, não apenas emoldurava o que diziam, mas
também qualificava seus discursos, isto é, dava aos textos novos sentidos e
ampliava a capacidade comunicativa dos textos. No Antigo Testamento, por
exemplo, é comum ver temas recorrentes da literatura do Antigo Oriente
Próximo moldarem as aventuras de Israel: Ex 15.1-18; Sl 89.5-18; Is 51.9-11
trabalham o imaginário do Êxodo, mas o associam ao tema da batalha
cósmica de criação do mundo, que já estava presente em textos milenares
como Enuma Elish e Gilgamesh. Assim, o Êxodo ganha uma nova dimensão
e novos sentidos.
Essa característica, geralmente desapercebida do grande público, é
fundamental na história da interpretação, pois como veremos, cada povo, em
cada época, interpreta os textos bíblicos de acordo com suas necessidades
sociais e históricas, seja consciente ou inconscientemente. As repetições
presentes nos textos bíblicos nos dizem o mesmo. Existem temas que
repetem-se quase que prototipicamente, o que se chama de “tema da esposa
vendida como irmã”, por exemplo, surge nas histórias dos Patriarcas ao
menos três vezes, com diferentes detalhes presentes (cf. Gn 12.10-20; 20;
26.6-11)!1 Antes de pensar se um texto está “correto” ou outro está “errado”,
devemos entender que essas repetições mostram o ambiente ativo de
produção literária bíblica no próprio período de composição e, também, a
necessidade de se interpretar as tradições orais de acordo com as
contingências histórico-sociais. Por isso, nossa micro-história sempre parte
de problemáticas a serem resolvidas e como a interpretação se modificou para
alcançar essa nova contingência que se lançava.
Um primeiro exemplo é o da perda do uso do Hebraico como idioma
falado por parte dos judeus da diáspora. A inacessibilidade do idioma dos
textos bíblicos incentivou uma tradução para o novo idioma, o grego. A
primeira tradução foi intitulada Septuaginta (LXX), ainda no terceiro século
a.C., por uma lenda que rondou a tradução2. Enquanto a Torah (Pentateuco)
foi traduzido na LXX de forma mais literal, as expansões do cânon
veterotestamentário receberam tratamentos diferentes (messiânicos,
alegóricos etc), conforme necessidade do público de cada época.3 Aos nossos
propósitos é necessário destacar que traduções costumam atualizar o sentido
não apenas literal, mas simbólico para novos leitores e, assim, essa prática
deu novos traços interpretativos à Torah.
Quando o Templo foi destruído, houve necessidade de se rever a
interpretação bíblica no ambiente judaico, pois o símbolo do poder divino
fora destruído. A interpretação rabínica ganhou força neste contexto. Os
midrashim (de ‫ִמ ְד ָרשׁ‬, estudar, inquirirׁ), variações orais dos escritos da Torah,
se tornaram a principal tônica. Rabis disputavam interpretações dos escritos
sagrados. Por exemplo, enquanto Rabbi Akiba, místico, favorecia a
interpretação criativa dos textos, Ishmael, de orientação filológica, dizia que a
Torah deveria ser interpretada conforme a tradição. Essas leis foram
coletadas e aplicadas a fontes como o Talmud (de ‫תלמוד‬, ensino, c. 600 d.C.),
servindo às futuras gerações4, muitas das quais perduram ainda hoje.
No Cristianismo Antigo muitos métodos de interpretação foram
utilizados, mas duas vertentes que se destacaram foram a vertente antiocana e
a vertente alexandrina, que herdaram o ambiente de interpretação judaico,
herdando suas disputas. A primeira vertente é a escola de Antioquia, Síria,
que pretendia atingir o sentido “literal” dos textos, i.e., interpretar palavras
segundo a intenção original dos autores. A segunda linha era a de Alexandria,
Egito, que tentava captar o sentido detrás dos textos, o sentido profundo.5
Frances Young6, recentemente, demonstrou que a diferença entre as duas
escolas se dava pelos métodos com que examinavam os textos, a saber, a
concepção de methodikon (μεθοδικός, regrado, sistemático) e historikon
(ἱστορικός, exato, preciso), respectivamente as questões linguísticas presentes
nos textos e as questões histórico-contextuais de cada texto. Enquanto os
alexandrinos enfatizavam o methodikon, o que produzia uma interpretação
mais focada nos aspectos filosóficos-imaginativos do texto, os antiocanos
enfatizavam o historikon, que observava questões retóricas que envolviam o
texto. Essa diferença causava o que hoje se chama de “interpretação literal de
Antioquia” e “interpretação alegórica de Alexandria”.
Esse debate, se a interpretação deveria ser alegórica ou literal se
concentrou em algumas personalidades. Do lado alexandrino, Orígenes (c.
254 d.C.) defendeu o método alegórico, classificando a interpretação bíblica
entre literal, moral e espiritual, e distinguindo entre dois níveis de sentido: a
letra e o espírito. Cassiano, no quinto século, tomou a dupla definição de
Orígenes e desmembrou-a em três, a interpretação: (1) tropológica, moral; (2)
alegórica; (3) anagógica, futura.7 Do outro lado, os teólogos antiocanos
Diodorus de Tarsos (c. 394 d.C.), Teodoreto de Cirrus (c. 460 d.C.) e
Crisóstomo (c. 407 d.C.) criticavam o método alegórico. Agostinho de
Hipona (347-420 d.C.), africano, embora fosse contra o “abuso” do método
alegórico, parece que fez os dois métodos conviverem melhor, centrando-se
no texto e na sua estrutura gramatical.
No Judaísmo Medieval, os protagonistas foram Abraão ibn Ezra (1092-
1167 d.C.) e Moisés ben Maimon ou Maimônides (1135-1204 d.C.).
Enquanto Ibn Ezra combinou a filologia e métodos rabínicos clássicos,
Maimônides interpretou a Bíblia em categorias da metafísica de Aristóteles.
O Cristianismo Medieval, por sua vez, permaneceu atado em grande parte à
interpretação alegórica, como no trabalho de Gregório o Grande (540-604
d.C.). No séc. XII d.C., entretanto, a aproximação a Aristóteles tentou, na
academia, resgatar o sentido literal dos textos. Um dos protagonistas foi
Tomás de Aquino, que questionou a cientificidade da alegoria.8
O Renascimento e o advento do Humanismo, seguiu a linha da
interpretação filológica e sua ênfase nas quebras dos textos. Na Reforma, não
houve unidade nem grande inovação dos métodos interpretativos, além da
tradução da Bíblia ao vernacular. Os reformadores concordaram que o
conceito “Sola Scriptura” representava as fundações da fé cristã, mas cada
um interpretou o conceito à sua maneira.9 Após esses eventos, a grande
novidade foi o nascimento da Hermenêutica como ciência crítica, no século.
XVIII d.C.

A Hermenêutica Crítica e seus três enfoques


A hermenêutica crítica fez nascer três vertentes, que correspondem à
questão: onde deve estar o foco da interpretação? Três respostas foram
oferecidas no decorrer dos séculos.

Foco na intenção do autor

Os primórdios da hermenêutica crítica nasceram com Friederich


Schleiermacher (1776-1834) e Wilhem Dilthey (1833-1911), na
“hermenêutica romântica”. Eles afirmavam que o que deveria ser descoberto
na leitura era a intenção do autor [intentio auctoris]. Enfocavam, portantoa
história e psicologia do autor.10 Essa era uma época em que a veracidade,
autenticidade e fidelidade das fontes estava prejudicada, visto que muitas
falsificações surgiam e que, pela lógica, testemunhos não são,
obrigatoriamente, dignos de crédito11.
Os métodos histórico-críticos nasceram dessa crítica (ou fomentaram
essa crítica?12) e se influenciaram por esse referencial, criando o aparato para
a crítica dos discursos registrados na história. O culto aos fatos das tradições
religiosas e sua necessidade apologética fez com que os métodos coubessem
bem na exegese acadêmica, tornando-lhes referencial principal.
Entretanto, embora ainda sejam bastante praticados na academia, existem
algumas limitações. Schokel, por exemplo, apesar de ressaltar que os
métodos tem importância para “recuperar ou reconstruir as condições
históricas específicas nas quais os textos foram produzidos, com o objetivo
de explicar seu significado”13, aponta uma série de limites: (1) a dificuldade
de compreensão da vida cotidiana [everyday life]; (2) o típico oposto ao que
é individual, ao entender que um fato histórico acontece uma única vez e
existem acontecimentos típicos, como o casamento de um rei; (3) a
dificuldade do cíclico e sua consciência histórica (p. ex. a meditação Ec 1.5-
4); (4) o fator individual que extrapola as condições históricas e é
“planificado” pela visão histórico-crítica, que acomoda o evento à uma época,
interpretando-lhe como “vítima” de seu tempo. A crítica, também, se não
utilizada com o devido cuidado, mistura percepções religiosas e simbólicas e
as planifica como factuais.

Foco na intenção do leitor

Uma resposta era necessária e ela veio não muito depois. Martin
Heidegger (1889-1976), a partir de Edmund Husserl (1859-1938), modificou
o eixo interpretativo para os leitores [intentio lectoris]. Utilizando-se da
fenomenologia filosófica, percebeu que “se cada leitor lê com seus próprios
olhos e projeta o sentido a partir de como a consciência coloca objeto, então a
pluralidade de leituras de um mesmo texto está teoricamente legitimada”14. A
novidade estava em notar a “historicidade do sujeito interpretante”. Foram
estes estudos que deram origem à “Estética da Recepção”, que vê como os
textos foram compreendidos no decorrer da história, partindo do pressuposto
que “a história é a história dos erros de leitura”15.
Da hermenêutica filosófica e fenomenológica, dois expoentes foram
Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. Gadamer defendeu que “a verdade não
pode residir na tentativa do leitor de voltar ao sentido do autor, pois esse ideal
não pode ser realizado tendo em vista que cada intérprete tem um
conhecimento novo e diferente do texto no próprio momento histórico do
leitor” e listou quatro afirmações16: (1) o preconceito (pré-entendimento) não
pode ser evitado; (2) o significado do texto vai além do autor; (3) a
explicação da passagem é uma fusão de horizontes do intérprete e perspectiva
histórica do texto, a compreensão das duas é contida numa terceira
alternativa17; (4) significados passados não podem ser reproduzidos no
presente, o passado não pode tornar a ser no presente.
Já Paul Ricoeur defendeu que a escrita altera a natureza da
comunicação18: (1) um texto é semioticamente independente da intenção do
autor; (2) gêneros literários formam um caminho de interpretação do texto;
(3) ao ser escrito, o significado do texto não é determinado pelos leitores
originais, mas cada público lê sua realidade no texto; (4) ao ser escrito o
significado do texto é libertado dos seus limites situacionais.
Essa perspectiva focada na literatura e no leitor, entretanto, não foi (e
ainda não é) bem aceita pela maioria dos biblistas. William Dever, por
exemplo, foi um dos que se opôs a alguns novos movimentos interpretativos,
que focavam na estrutura do texto. Embora seu “manifesto” seja direcionado
a um público maior, contemplando também outras linhas, seus apontamentos
são sintomáticos. Segundo ele, há pontos questionáveis das novas abordagens
(pós-modernas?), que dizem que19: (1) o texto é interpretado independente de
seu autor; (2) a intenção do autor é uma ilusão criada por leitores; (3)
linguagem é infinitamente instável; (4) todos os textos devem ser resistidos;
(5) a convicção do autor não pode ser confundida com expressões teológicas,
éticas e narrativas; (6) outras leituras legítimas são tão boas quanto as nossas.
As novas vertentes, ele reclama, dizem que: (1) textos são obras de arte e
não deveriam ser usadas para entender história; (2) não há sentido singular
para um texto; (3) como um texto “significa” é tão importante quanto o que
ele “significa”; (4) existem muitas, quase ilimitadas abordagens a um texto,
que podem ser legítimas e produtivas; (5) textos não tem sentido intrínseco,
os sentidos dependem da resposta do leitor, do contexto e conhecimento
social do autor e dos leitores; (6) ler além das fronteiras originais do texto
não é só possível, mas desejável; (7) o único teste de autenticidade do texto é
a aceitação dos leitores. Sua crítica também envolveu alguns slogans
didáticos do movimento que, segundo ele, dizem: (1) leia o texto “contra suas
exigências”; (2) considere o texto como um “como um todo inteligível e
coerente, independente de seu autor”; (3) leia o texto “politicamente”, como
“representação de poder”; (4) livre-se da noção antiquada de que “literatura é
reflexo da realidade”.
Para ele: (1) textos são produtos de um tempo, lugar, cultura, língua e
devem ser postos no seu contexto para compreensão; (2) um texto é escrito
por um autor, com objetivo específico, para uma audiência específica; (3) um
sentido “original” é inerente e expresso na linguagem e, por isso, é
inteligível; (4) o leitor deveria ser o mais objetivo possível e se abrir ao
sentido original do texto; (5) metodologicamente, o domínio da língua e
contexto é fundamental; (6) desde que existam fatores subjetivos na
interpretação de textos antigos, eles devem ser reconhecidos e utilizados na
interpretação, com uma “imaginação educada” e empatia; (7) preocupações
teológicas devem ser separadas de preocupações históricas.
O protesto de Dever ensina três lições. Primeiro, ele ilustra o grande
drama do abandono da intenção do autor, que é a leitura não pela história,
mas pelo prazer literário/religioso. Segundo, demonstra as tensões e disputas
que cercam a hermenêutica contemporânea. E, por fim, assinala as
dificuldades de se reconstruir a história por textos, pois, em muitos casos,
nossa leitura, mesmo que acadêmica e filológica, não passa de uma tentativa
de acessar um fato que não se recuperará.

Foco na intenção do texto

Uma terceira vertente veio de Jacques Derrida (1930-2004) e Richard


Rorty, que insistiam no uso e funcionalidade do texto, não se preocupando
com o sentido “original” dos textos ou da comunidade dos leitores, mas sim
nas mecânicas de funcionamento dos textos no contexto presente. Essa linha,
entretanto, chegava ao extremo de defender que os textos não possuíam uma
forma correta de serem interpretatados.
Por isso, com algumas familiariedades com Derrida, Rorty e Ricoeur,
mas com uma vida própria, Umberto Eco sugeriu uma intentio operis. O
autor seguindo a linha que hoje é majoritária, refuta a intentio auctoris,
aquilo que o autor empírico20 quer dizer e diz, também, que o papel da
interpretação não está na intentio lectoris, aquilo que o destinatário faz o
texto dizer, mas sim a intentio operis, que é o que o texto quer dizer com seus
sistemas de significação e coesão textual. Ele cita Agostinho que disse que
“uma interpretação, caso pareça plausível em determinado ponto de um texto,
só poderá ser aceita se for reconfirmada - ou pelo menos se não for
questionada - em outro ponto do texto”21. Esse desenvolvimento
metodológico procura desenvolver um “final feliz” para a interpretação, visto
que, segundo Eco, “dizer que um texto potencialmente não tem fim não
significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz”. Segundo ele,
“temos de respeitar o texto, não o autor enquanto pessoa assim-e-assim”22 e,
para isso, precisamos nos alinhar à estrutura do texto, para que dele
extraiamos o significado.
A teoria de Eco envolve dois conceitos valiosos à interpretação:
interpretação ou uso de textos. A interpretação seria aquele que segue a
estrutura do texto, enquanto o uso utiliza-se de provas fornecidas por
informações biográficas extratextuais para construir uma interpretação. Com
isso, Eco não rejeita completamente a intentio lectoris, mas usa o parâmetro
da intentio operis como normativo para a interpretação e respalda-se na
estrutura do texto. Ele também não corrobora com o deslocamento do texto
de seu horizonte vivencial23, seu tempo e as estruturas léxicas que regiam ao
vocabulário, mas aponta que, sem a referência de data ou autor, a
interpretação deve seguir o sistema interno de significação do texto.
Podemos, como exemplo, observar a canção “cálice” de Chico Buarque e
Gilberto Gil, interpretada por Chico Buarque e Milton Nascimento. A
música, protesto contra a repressão do silêncio na ditadura brasileira, foi
censurada em um episódio da Phono 73, quando os microfones “calaram-se”
no momento da exibição24:
Cálice25
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Essa canção trabalha sobre o texto bíblico de Jesus no Getsêmani, onde


diz “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! Todavia, não seja como
eu quero, e sim como tu queres” (Mt 26.39, ARA). Entretanto, não visa a
interpretação ou entendimento do texto, pois não segue a textualidade do
relato, mas adiciona significado a partir da sonoridade da frase de Jesus e a
realidade experimentada nos tempos de censura ditatorial brasileira. É um uso
de texto26. Mesmo com a atualização de significados e transposição de
metáforas, os autores invertem a segunda parte do texto, trazendo um novo
significado: ao invés de dizer “não seja como eu quero”, dizem “quero
inventar o meu próprio pecado”, fugindo do texto.

Um outro exemplo podemos tomar da mesma canção, que é a questão da


necessidade de conhecimento de autores ou de dados biográficos externos
para sua atualização. Ainda que não soubéssemos o contexto vivencial dos
autores, a letra converge para o assunto pretendido, que auxiliam na tradução:
“como é difícil acordar calado” pode auxiliar na indicação de uma situação
vivencial, visto contrastar com o relato do evangelista; “arquibancada”,
“cidade”, “óleo diesel” denotam um espaço geográfico real e situa no
tempo/espaço a peça; “inventar o próprio pecado, morrer do próprio pecado”
esclarecem a situação de coerção. Enquanto isso, o “silêncio” é um tema
recorrente, ainda mais pela sonoridade da língua portuguesa, o “cálice”,
“acordar calado”, “esse silêncio atordoa”, “mesmo calado o peito resta a
cuca” etc. A coerção, silêncio e o espaço da cidade, sugerem uma coerção
política que impossibilita a expressão das próprias ideias. É possível, assim,
tratar do texto a partir de sua estrutura e, concordamos com Eco, que o
caminho interpretativo deve respeitar a intentio operis, mesmo conscientes da
vida do texto.
A questão central de Eco é refutar a dependência do autor e seu contexto
“histórico”, características nos métodos histórico-críticos e, dessa forma,
expandir a leitura do texto e apagar, definitivamente, a ideia de que se possa
recuperar na leitura a intenção do autor. Sem saber a proveniência do texto,
caberia ao intérprete buscar, no texto, marcas que permitam alguma hipótese
sobre o sentido, como apontado na obra de Eco. Isso carrega a própria leitura
de munições para tratar de elementos individuais, como aqueles que são
ocultos no método histórico-crítico. Por esse aspecto, a teoria de Eco é
valiosa aos estudos bíblicos, sobre os quais, geralmente, não conhecemos ou
temos notícias quaisquer dos autores.
As concepções de Umberto Eco sobre uso ou interpretação de textos
assim como a ideia de interpretação e superinterpretação - em sentido
negativo, de superar o que está no texto, adicionar informações externas à ele
-, são valiosas à tarefa hermenêutica. Nossa intenção aqui não é refutar uma
ou outra linha de interpretação, mas demonstrar que cada uma tem um local e
uma função. A busca pela “intenção do autor”, como os métodos histórico-
críticos fazem, é importante para que tente se reconstruir o que foi perdido: a
história; a transmissão do texto; a cultura etc. A busca pela “intenção dos
leitores”, como os métodos filosóficos e a Estética da Recepção, é importante
para a percepção dos leitores como sujeitos históricos e ajudam a
compreender o desenvolvimento de interpretações e da formação de
tradições, o que é fundamental à história da religião. Já a busca pela
“intenção do texto” faz ressoar a beleza dos textos e sua produção de sentido,
mesmo que dentre um sentido controlado.

Cada referencial, com seu conjunto de métodos, tem seu limite e função
e, portanto, não devem ser demonizados por si. Cada vertente tende a revisar
seus referenciais constamente, buscando lhes fazer mais precisos a seus
propósitos.27 Por isso, cabe ao intérprete aplicar métodos pelas necessidades
da pesquisa.

Perspectivas
Traçamos, em nossa jornada inicial, um caminho onde: vimos a natureza
da linguagem e da capacidade do imaginar; observamos que a natureza
humana implica em ser intérprete, visto que é impossível não comunicar;
assistimos ao funcionamento da comunicação humana, em seus primórdios e
funcionamentos; atentamos à leitura como criação de sentido e a polissemia
dos textos; e, por fim, aportamos sobre uma micro-história da hermenêutica e
alguns pontos de destaque, fundamentais ao ofício do hermeneuta.
Nessa trilha, acolhemos tópicos importantes: (a) a mediação da
linguagem nos torna intérpretes por excelência; (b) a postura frente ao
processo comunicativo transforma a expectativa de interpretações,
especialmente no ruído como ganho de sentido ou perda do sentido original;
(c) a leitura é criação de sentido; (d) a história da hermenêutica passou de
uma hermenêutica do autor para uma hermenêutica do leitor; (e) que, além
desses dois paradigmas, existe a intentio operis, que é a intenção do texto; (f)
enxergamos o que é uso e interpretação de textos para Umberto Eco; (g)
vimos que os biblistas brasileiros tem tentado desenvolver o método
histórico-crítico para superar os limites do método.
Nesse ínterim, colocamos as bases de nossa proposta hermenêutica, que
inicia-se na leitura do texto independente de seu autor28 como parte de um
processo comunicativo que perdeu seus referenciais históricos, mas
permanece ligado a um contexto histórico discernível. Os métodos histórico-
críticos são usados, nesse aspecto, como aproximações do texto, mas
procuramos reconhecer suas limitações. Em suma, assumimos o texto e a
intenção do texto como centrais no processo hermenêutico, desde que se
respeite a natureza e distanciamentos históricos, sociais e linguísticos do
texto bíblico, que abordaremos nos próximos capítulos.

1 MENN, E. “Inner-Biblical Exegesis in the Tanak”. In: HAUSER, A. J.; WATSON, D. F.


(Orgs.). A History of Biblical Interpretation: The Ancient Period. Grand
Rapids/Cambridge: Eerdmans , 2003,Vol. 1, p. 56. Sobre o tema do Êxodo
reinterpretado, leia: CARDOSO, S. K. “As muitas faces da Serpente: o êxodo como
conceito estruturante do Hino da Pérola em AtTm”. In: Ribla Atos Apócrifos, 2016
2 A LXX não foi a única, existiram outras traduções gregas, para diferentes propósitos,
como as versões de Aquila, Símaco e Teodócio.
3 HAUSER, A.J.; WATSON, D.F. “Introduction and Overview”. In: HAUSER, A.J.;
WATSON, D.F. (Orgs.). A History of Biblical Interpretation. Grand Rapids/Cambridge:
Eerdmans, 2003,Vol. 1,p. 14ss
4 JEANROND, W. G. “Interpretation, History of: History of Biblical Hermeneutics”. In:
FREEDMAN, D. N. (Org.), The Anchor Yale Bible Dictionary. New York: Doubleday,
1992, vol.3, p. 435
5 JEANROND, W. G. “History of Biblical Hermeneutics”. In: FREEDMAN, D. N. (Org.).
The Anchor Yale Bible Dictionary. New York: Doubleday, 1992, Vol. 3, p. 434
6 YOUNG, F. “Alexandrian and Antiochene Exegesis”. In: HAUSER, A.J.; WATSON,
D.F. (Orgs.). A History of Biblical Interpretation. Grand Rapids/Cambridge: Eerdmans,
2003,Vol. 1,p. 334-354
7 JEANROND, History of Biblical Hermeneutics, p. 435
8 JEANROND, History of Biblical Hermeneutics, p. 436
9 JEANROND, History of Biblical Hermeneutics, p. 436
10 REIMER, H. "Sobre a intentio operis de Umberto Eco". In: Protestantismo em Revista
23, set/dez, 2010, p. 68-74
11 Para citar BLOCH. M. Apologia da História: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002 [e-book]
12 BLOCH, Apologia da História
13 SCHOKEL, Manual of Hermeneutics, p. 43
14 HEIDEGGER apud REIMER, Sobre a intentio operis, p. 69
15 MCKENZIE, D. F. Bibliography and the Sociology of Texts. Cambridge: Cambridge,
1999 [e-book]
16 Cf. KAISER JR, W.C.; SILVA, M. Introdução à Hermenêutica: como ouvir a Palavra
de Deus apesar dos ruídos de nossa época. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 27
17 O chamado círculo hermenêutico de Schleiermacher, desenvolvido por Gadamer. Ele
consiste na circularidade entre texto e vida. Ao interpretarmos o texto, por ele somos
interpelados e, ao interpretar, nos interpretamos a nós mesmos.
18 Para compreender mais profundamente a linha fenomenológica da Hermenêutica veja,
p.ex., JOSGRILBERG, Hermenêutica fenomenológica e a tematização do sagrado, p.
31-67
19 DEVER, W. G. What did the biblical writers know & when did they know it? What
Archaeology Can Tell Us about the Reality of Ancient Israel. Grand Rapids: Eerdmans,
2002. A crítica de Dever se direciona, também, aos desconstrucionistas (cf. foco na
intenção do texto), entretanto seus argumentos focalizam mais à perspectiva crítico-
literária
20 Autor empírico e leitor empírico são os indivíduos de carne e osso que participam do
processo comunicativo, enquanto que autor-modelo e leitor-modelo são estratégias
textuais que prevêem um leitor fictício com códigos suficientes para o pleno
entendimento do texto e um autor fictício que encarrega-se de acompanhar o leitor na
melhor interpretação do texto. A intentio operis e intentio auctoris encontram-se na
estratégia textual criada pelo autor empírico e expressa na intenção do texto. ECO, Os
limites da interpretação, p. 15
21 ECO, Os limites da interpretação, p. 14; VOLLI, Manual de Semiótica, p. 175-176
22 ECO, Interpretação e Superinterpretação, p. 28, 77
23 P.ex, cf. ECO, Interpretação e Superinterpretação, p.80-81
24 Para uma interpretação da canção: MENESES, A.B. Desenho mágico: poesia e política
em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê, 2002, p. 91ss
25 Texto extraído de <http://goo.gl/zz1uQT>, 6 de Fevereiro de 2013.
26 Vale ressaltarmos que, mesmo que esse exemplo faça uso do texto bíblico e não o
"interprete", de forma própria, isso não retira necessariamente o valor de sua mensagem,
talvez a potencialize.
27 P.ex., ZABATIERO, J. P. T. "Novos Rumos da Pesquisa Bíblica". In: Estudos
Teológicos, 46, n.1, 2006, p. 25
28 Essa forma de leitura do texto foi chamada, simbolicamente, de “morte do autor”. Ainda
sem entrarmos na questão da inspiração, que é valiosa e estudaremos na sequência,
queremos apontar as considerações de Croatto sobre a morte do autor: essa ênfase nos
autores dos textos nos parece ultrapassada. Não toma em consideração que o autor morre
na produção do texto. Uma pessoa lê o texto e não seu autor.” Croatto, Hermenêutica
Bíblica, p. 42-43
3. Da vida à vida: uma teoria da produção
textual
Nas sessões anteriores fizemos um pequena introdução à Hermenêutica.
Tratamos, portanto, de práticas interpretativas em voga e, citando algumas
concorrências, retratamos o processo da comunicação, pensando na condição
humana que é interpretativa e o processo hermenêutico que dela se origina,
seja de forma voluntária ou involuntária. Tais apontamentos nos ajudam a
entender o papel do texto na vida, entretanto, em nossa experiência de fé, o
texto não é papel e letras, mas torna-se sentido/imagens para a vida. Cientes
disso, não poderíamos simplificar o texto bíblico a linhas tão gerais,
pensando que as questões sobre a compreensão do texto estariam saciadas
com uma compreensão “mecanicista” comunicativa.
Nesse momento, a provocação inicial, “como trazer redenção (em
sentido amplo) pela leitura da Bíblia?”, deve começar a ser respondida,
sendo cerne da prática pastoral. Porém, para compreender a junção desses
dois horizontes distintos - do texto e da vida - precisamos entender a origem
do texto e a vida por detrás dele que lhe fez surgir. Assim, nesse capítulo
analisaremos o ponto de partida do texto, sua gênese, e o que ocorreu até ele
chegar em nossas mãos. Disso, observaremos as distâncias que nos separam
do texto e que devem ser superadas ou compreendidas para uma boa
interpretação.

Da experiência à fala: a primeira distanciação


A gênese dos textos são acontecimentos ou impactos da vida1. Repare
que não falamos que textos foram acontecimentos da vida. A distinção é
fundamental. Como abordamos anteriormente, a comunicação humana, por
sua forma de ver o mundo mediada pela linguagem, com símbolos passíveis
de interpretação, torna-se polissêmica. Um evento da vida pode ser
interpretado de infinitas formas, partindo de dado lugar/perspectiva. Do
acontecimento até a fala há um enclausuramento, pelo lugar de onde se fala e
pela seleção de palavras com que se formata o discurso.
Nesse ponto é importante fazermos uma distinção terminológica entre
reserva-de-sentido e clausura de sentido. Segundo Severino Croatto, reserva-
de-sentido seria a polissemia inerente à linguagem e interpretação. Ela é a
potencialidade de sentido que cada acontecimento, palavra e texto possuem,
que lhe permite ser interpretado e reinterpretado, ou seja, são “possibilidades
de um texto de dizer mais do que pensou seu autor”2. Em contraposição há a
clausura de sentido, fechamento da potencialidade polissêmica das palavras:
Pois bem, no ato do discurso - do falar - deve haver clausura atual da
polissemia potencial das palavras ou das frases. Do contrário é impossível falar, a
não ser que se mantenha uma polissemia deliberada, como na poesia ou na
linguagem simbólica. [...] Do contrário, o discurso já não é mais um “dizer algo
sobre algo”. E esta é uma intenção de quem fala, escreve uma carta a um amigo ou
relata uma história a seus ouvintes.3

Falas selecionam determinadas palavras para a compreensão do


destinatário4. Isso quer dizer que falas ativam um sentido possível do evento.
Tal escolha de palavras reduz a potencialidade de sentido do acontecimento
(fig. 1). Alguém, em determinado momento da história, experimentou algo
com Deus, um Acontecimento de Deus, que serviu como inspiração à futura
Palavra de Deus. É importante o grifo da palavra inspiração, visto que, como
observamos o acontecimento não se deu factualmente como está escrito.
Croatto alerta que se a Bíblia, ou um texto sagrado qualquer, não for reflexo
de uma experiência com o sagrado na história, não terá sentido. Para ele, a fé
lê a presença de Deus nos acontecimentos, via código textual5.
A partir dessa experiência, seja qual for, teria havido a necessidade de
expressá-la para outras pessoas, pela fala. Nesse nível, o emissor é aquele que
seleciona os signos, que darão voz à mensagem. Ele estrutura a mensagem
dentro dos parâmetros do idioma, de forma a serem inteligíveis ao
destinatário. O destinatário, ou receptor, por sua vez, toma de seus signos
para interpretar simultaneamente a mensagem. Como plano de fundo está o
horizonte de compreensão comum, que permite a decodificação da
mensagem.

A fala, sendo interpretação de um evento inspirador, toma caráter de


primeira distanciação, que não é temporal ou espacial, mas lógica6. Assim,
a leitura da Bíblia tenta ler o acontecimento através do texto, que lhe é
produto. Tal acontecimento é naturalmente selecionado por sua significação a
determinado grupo de pessoas: pelo caráter salvífico individual ou influência
na prática do grupo. Um exemplo típico é o Êxodo: pelo impacto histórico na
comunidade que o experimentou, ele se tornou paradigmático, um prisma
pelo qual a história passada e futura do povo israelita foi lida e relida.
A experiência religiosa, entretanto, chega a nós intermediada pela
linguagem, diluída na seleção, que denota supressão e opção, com critérios
seletivos voluntários e involuntários, pelo olhar do espectador do evento.
Observar a compreensão dos acontecimentos é significativo, pois tal
percepção está gravada nos textos.

Formas de ver o mundo

Christoph Wulf, ao tratar da imaginação, não se detém nas imagens


produzidas, expressas como comunicação, mas na própria capacidade do
homem de criar imagens internas. Que seriam tais imagens? Como elas
condicionam nossa visão de mundo? Segundo ele, os “olhares estão ligados
intimamente à história do sujeito e da própria subjetividade, bem como à
história do conhecimento”7. Segundo ele, o mundo das imagens interiores de
certo indivíduo:
é determinado pelo imaginário coletivo de sua própria cultura, pelas
qualidades únicas e inequívocas das imagens derivadas de sua biografia individual
e finalmente pela sobreposição e interpenetração mútua desses dois mundos
imagéticos.

Tal indivíduo, sobre isso, constrói imagens interiores, que Wulf classifica
em: (1) imagens como moduladores de comportamento, aquelas que nos
fazem agir de tal forma em determinado contexto; (2) imagens de orientação,
as públicas, que ensinam os jovens a tomarem direções aceitáveis na
sociedade; (3) imagens de desejo, aquelas que traçam um horizonte almejado
aos homens, os sonhos; (4) imagens de intenção, aquelas que projetam-nos à
ação; (5) imagens mnemônicas, a seleção de memórias, que nos ajuda a
formatar8 nossa história; (6) imagens miméticas, modelos pré-existentes de
imitação; (7) imagens arquetípicas, o repertório de mitos e símbolos que
formatam nosso agir. A imaginação é mimética9, enquanto interioriza o
mundo externo, criando uma versão interna, controlada. O próprio
aprendizado se daria nessa dimensão.
As ideias de Wulf sobre as imagens interiores e as formas de
ver/contemplar, tornam-se valiosas aos estudos bíblicos na dimensão da
interpretação do acontecimento que deu origem a fala. Elas demonstram que
nossa forma de ver o mundo é condicionada socialmente, sendo uma mescla
entre cultura e experiência vital e acaba por servir à própria inserção social,
quando da produção de discurso10. Ao analisarmos os textos bíblicos temos
que estar conscientes da condição formativa do olhar, que altera
substancialmente a interpretação de eventos. As Crônicas, por exemplo, não
podem e jamais serão iguais aos livros de Reis/Samuel, pois o novo
paradigma cultural, associado às distintas imagens da biografia dos que o
escreveram, fomentaram uma nova interpretação daquele evento com
considerável reserva-de-sentido: a monarquia em Israel.

Da fala à escrita: a segunda distanciação


Voltando aos distanciamentos do texto, observamos que, até o momento
da fala, o intérprete do Acontecimento de Deus, ativou, por um sistema de
signos, um dos sentidos do texto. Ele selecionou palavras e formatou um
discurso. Aqui se dá uma segunda distanciação11, que é a transformação do
discurso em texto transmitido (fig. 2). Falamos, nesse ponto, de texto como
unidade de informação, que pode ser, inclusive, oral. Os escritos bíblicos,
nesse aspecto, carregaram durante séculos sua mensagem em forma de textos
que eram músicas, mitos, narrativas etc. Essa forma textual da mensagem
carrega novos pressupostos que alteram sua natureza. Eles, embora sejam
orais, mantém uma estrutura que lhes faz coerente e reprodutível, mantém um
centro de sentido.

Nesse formato de “texto”, Croatto defende que o emissor desaparece, que


o interlocutor não está presente, pois é outro que “lê” o texto em seu lugar e,
consequentemente, o horizonte transforma-se em outro, que é do leitor que
agora lê o texto12. Essa distanciação, pela perda dos referenciais primários,
devolve ao relato sua polissemia, assim como incrementa sua potencialidade
de sentido: o texto torna-se tradição viva. Decorrência disso é que, quão
maior a distância entre autor empírico e leitor real, maior a riqueza de sentido
de uma leitura. Para Croatto, a predileção das religiões pelo caráter anônimo
em mitos e textos, se dá por essa riqueza de sentidos13.
Oralidade e Escrita

Nesta altura, não podemos deixar de abrir um parêntese sobre uma


característica patente da literatura bíblica, a oralidade. Como dissemos, a
Bíblia, como grandeza e unidade literária, não era realidade até sua
canonização. Foi muito depois dos acontecimentos que as histórias tornaram-
se unidades parecidas com livros e, demorou ainda mais para tornarem-se
uma coletânea fechada de livros, como a temos hoje. Até aquele momento,
outro tipo de textualidade era utilizada pelo povo bíblico, uma textualidade
que abrigava fórmulas, sentenças, cânticos e até resquícios de mitos, que
eram historicizados14. O longo processo gestacional que originou nossa Bíblia
foi paralelo à experiência religiosa do Israel. Enquanto era escrito era
repensado, reformulado e retrabalhado.
Walter Ong15 elaborou uma síntese sobre a diferença entre oralidade e
escrita: (1) paratática em vez de hipotática, coordena o discurso com breves
proposições independentes ou conjunções simples (“e”, “mas”, “então”); (2)
agregativa em vez de analítica, une os conteúdos ao invés de enfocar a
complexidade das ligações; (3) redundante em vez de econômica, repete as
informações para facilitar memorização; (4) tradicionalista em vez de
inovadora, privilegia a memória à invenção de novos conteúdos e formas; (5)
agonística em vez de objetiva, privilegia a participação de quem fala no
discurso; (6) enfática e participativa em vez de objetiva e isolada, conteúdos
personalizados e assumidos pela platéia; (7) situacional em vez de abstrata,
prefere histórias a conteúdos, personifica as abstrações.
Alguns exemplos16 permaneceram dos tempos de oralidade e
funcionaram como recursos mnemônicos: (1) repetições, que aparecem como
quadros a serem completos (“haja x e houve x”, “viu que era bom” em Gn 1),
sentenças repetidas (pedido de Isaque, Gn 27.3-4, 7, 9-10) ou palavras-chave
estruturantes (“abençoar”, “comer” em Gn 27); (2) fórmulas metonímicas
(“virá”, Jr 50.36-38); (3) epítetos (Javé como bezerro/touro em Ex 32, 1Rs
13; cf. Is 1.24, 49.26); (4) citações de textos de referência como estrutura
(“viu que era bom” em Ex 2.2; cf. Gn 1.4); (5) padrões de escrita (padrão
vitória-entronização, Êx 1517). Tais padrões mnemônicos reforçam-nos a
transformação estrutural entre ser acontecimento até ser texto.

Da escrita à (re)leitura: a terceira distanciação


Observamos, até o momento, duas distanciações que ocorrem: a primeira
é a língua que reduz-se à fala, numa clausura que ativa sentidos, excluindo
determinadas palavras para criação da locução; a segunda está na
transformação da fala para texto, como unidade de informação ou escrita,
onde a distância reativa a polissemia, pela reserva-de-sentido do texto. A
terceira distanciação: a releitura (fig.3). Essa releitura não é nada mais que a
“leitura interpretativa de um texto, que faz ‘crescer’ seu sentido original”18.

Para Croatto, toda leitura é releitura, afinal, a primeira leitura dos textos
se dá na interpretação dos eventos pelos espectadores originais. Quanto maior
a distância, maiores os acréscimos aos sentidos presentes no texto. Aqui, dois
conceitos são caros a Croatto: ex-egese, a saída do texto com um sentido
extraído; e eis-egese, a entrada no texto, com perguntas diversas do que as
propostas pelo autor original. Esses dois atos são interdependentes:
A exegese crítica procura compreender a produção dos textos, enquanto que a
leitura teológica que se faz a partir da experiência de fé se concentra no texto
produzido, explorando sua “reserva-de-sentido” linguística como “palavra de
Deus”. No entanto, também aquela se pratica a partir de um determinado lugar
(social, teológico) ou seja, a partir de uma concepção da realidade, e, então, a
exegese é, ao mesmo tempo, eisegese. A releitura teológica de base, por outro lado,
está condicionada pela estrutura, os códigos, a polissemia do texto (não qualquer
polissemia!) que se deve explorar incansavelmente. Desta vez eisegese é exegese.19

Se cada leitura é releitura, há acúmulo de sentidos com as diversas


leituras que se fazem do texto. A reserva-de-sentido é ampliada a cada
releitura do texto e, muito embora, variadas leituras sejam criadas, com
significados diversos, o texto permanece sendo a convergência entre todas as
leituras distintas, pois a leitura parte do texto, seja perguntando o sentido do
texto (exegese) ou formulando novas perguntas ao texto (eisegese). A tensão
entre acontecimento e palavra, é um ganho, pois assim não se encerra o
sentido do texto numa leitura que busque suas origens. Novas dimensões
trazidas por novos contextos revelam facetas não lidas no texto: “o não dito
do ‘dito’ do texto é dito na interpretação contextualizada”20.

Intertextualidade e intratextualidade

Para observar a terceira distanciação, é interessante compreendermos a


intertextualidade e intratextualidade. Intertextualidade seria o sentido de um
texto à luz de outros textos de mesma cosmovisão. É notável que diversos
textos bíblicos referenciem-se e utilizem imaginários de outros textos, com
liberdade. Assim a Torá retoma a palavra dos profetas21, os profetas retomam
palavras de outros profetas22, os evangelhos retomam tradições antigas23 ou
utilizam matérias comuns24 etc. A intertextualidade é essa dinâmica entre
textos, que demonstra que um texto existe em função de outro texto anterior à
ele, não somente na Bíblia, mas na literatura em geral.
Maria Flavia Figueiredo, em artigo entitulado “A intertextualidade no
texto bíblico”25, defende que um texto só existe num sistema de textos que
permitam sua existência, não existem textos puros. Assim, ela demonstra que
existe a intertextualidade no sentido amplo26 e a intertextualidade stricto
sensu, que divide em quatro níveis27: (1) temática, que seria a inter-relação
entre temas, conceitos e terminologias próprias (Mt 17.22-23; Mc 9.30-32; Lc
9.43b-45); (2) estilística, a repetição, imitação e paródia de estilos ou
variedades linguísticas (Lc 1.11-18; Lc 1.26-34); (3) explícita, quando há
menção da fonte (Mt 4.1-11, citando Dt 8.3; Sl 90.11s; Dt 6.16; 6.13); (4)
implícita, quando se menciona um intertexto alheio, sem menção da fonte (Jo
10.11-15; Ez 34.1-6).
Embora a intertextualidade seja vital na leitura bíblica, — como a autora
diz, a Bíblia é um livro onde para ser capaz de ler, é preciso já ter lido —,
existe um perigo na confusão entre intertextualidade e intratextualidade. A
intratextualidade é “o sentido do texto em si mesmo, tomado como uma
totalidade estruturada”28. Na Bíblia ela ocorreria, em nível menor, na não
distinção dos acréscimos do texto29 ou, em nível elevado, na interpretação da
Bíblia como se fosse um livro, de Gênesis a Apocalípse, como se houvesse
nela toda um só sentido. Temos que compreender a natureza dos textos
bíblicos, para interpretá-los a partir do que são (cf. capítulo 4).

Tradutor, traidor

Existe um antigo ditado latino que diz: traduttori traditori, ou tradutor,


traidor. O dito compreende que toda releitura é ampliação de sentido,
inclusive a tradução. Traduzir é optar, acolher alguns significados e rejeitar
outros. Ela é, ao mesmo tempo, uma espécie de intertextualidade e uma
forma de interpretação, pois cria um novo texto traduzido a partir do texto a
traduzir. E, mais do que palavras, utiliza contextos culturais diferentes,
portanto as traduções também tem sua validade, na medida que a língua, que
é viva se transforma.
Mas o que se deve traduzir numa obra? A questão é que se interpretamos
o texto de acordo com sua estrutura interna, não deveríamos acrescer dados
externos à tradução. Haroldo Campos diz que deveríamos operar, na tradução
poética, intratextualmente, não sucumbindo a “fatores extratextuais”, na
tentativa de uma reconstrução de um mundo passado30. Para ele, a tradução
poética deve ser transcriação, decifrar o texto para cifrá-lo, em função da
forma estética, aplicada ao presente. Apenas traduzir o sentido literal não
serve para reconstruir a experiência poética. A poesia acontece na
experiência da leitura, com sonoridade, estética visual, ritmo etc. A
comparação entre traduções do Salmo 107.1 nos mostram a dificuldade em
traduzir esses elementos supra-citados:
Louvai ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua benignidade é para sempre.
(ARC)
Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, e a sua misericórdia dura para
sempre (RA)
Dai graças ao Senhor, pois ele é bom; o seu amor dura para sempre. (Alm.
Cont.)
Dêem graças a Deus, o Senhor, porque ele é bom, e porque o seu amor dura
para sempre. (NTLH)
Dêem graças ao Senhor, porque ele é bom! O seu amor cuidadoso e fiel dura
para sempre. (BV)
Dêem graças ao Senhor porque ele é bom; o seu amor dura para sempre.
(NVI)
Aleluia! Celebrai a Iahweh, porque ele é bom, porque o seu amor é para
sempre. (Jer.)
Celebrai o Senhor, pois Ele é bom, pois sua fidelidade é para sempre. (TEB)

Essa distinção entre traduções de trechos bíblicos não é característica de


nossa época somente. No próprio tempo de Jesus, existiam variadas versões,
cada uma com sua peculiaridade. Existia a Septuaginta (LXX), uma tradução
alexandrina em grego de porções bíblicas hebraicas criada a partir de 250 aC,
que foi utilizada pelos judeus na diáspora. É importante constatarmos que o
texto hebraico ao qual ela faz referência talvez seja mais antigo do que o que
temos acesso hoje, o texto massorético, e que muitas vezes, eram feitas
atualizações dos conteúdos para o presente dos leitores, além de adições,
omissões, mudanças interpretativas, substituições de palavras desconhecidas,
atualizações geográficas e históricas etc31.

Posteriormente, foram criados os Targumim (de ‫תרגם‬, traduzir), uma


espécie de tradução-comentário das escrituras. A interpretação do Targum
respeitava alguns pressupostos: (1) era ligado à liturgia sinagogal; (2) era de
caráter popular, preferindo lendas e exageros; (3) devia ser compreendido de
imediato; (4) traduz o livro sagrado, às vezes corrigindo-o em suas
contradições; (5) considerava a Escritura uma unidade; (6) é sempre
atualizado na vida dos fiéis32.
Frente à destruição do templo, um terceiro modo de ler as escrituras foi
produzido, o Midrash. A palavra midrash vem do radical hebraico que
significa buscar (‫דרשׁ‬, drš), que era a busca do sentido da palavra, para
colocá-la em prática. Sua diferença para o Targum é que o Midrash era mais
uma ampliação de um texto, até tornar-se um novo relato, enquanto o Targum
visava somente interpretá-lo. Ele seria a espécie de hermenêutica do judaísmo
antigo e visava “cumprir” a Escritura em três passos: (1) dando sentido das
escrituras, (2) agindo de acordo com o descoberto no primeiro nível, (3)
realizando promessas da Torá. Ela era composta em dois estilos, a haggadah,
que era contar histórias e a halakah, de caráter jurídico.

Podemos demonstrar um exemplo entre o texto hebraico massorético e o


targum33:
Hebraico: O Senhor Javé me deu língua de discípulo para que faça saber ao
cansado uma palavra de alento. Manhã após manhã, desperta meu ouvido para
escutar como os discípulos. O Senhor Javé me abriu o ouvido. (queixa do servo
perseguido)
Targum: Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, para saber ensinar
os justos que languidescem pelas palavras de sua Lei, a sabedoria. Assim, cada
manhã, envia cedo seus profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores estejam
abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me enviou para profetizar.
(queixa do profeta perseguido)
A compreensão do processo tradutivo torna-se essencial à hermenêutica
pelo acesso que temos ao texto bíblico, que é interpretado por traduções
diversas. Essas traduções tem suas intencionalidades, seus programas e
ideologias específicas, que devem ser discernidas para a compreensão do
texto.

Perspectivas
Nessa sessão observamos que a primeira distanciação é a língua que se
reduz à fala, numa clausura que ativa sentidos específicos. A segunda está na
transformação da fala para texto oral ou escrito e a terceira está na releitura
do texto. Observamos, também, que desde a primeira distanciação,
enclausuramentos e reservas-de-sentido são criadas pela própria essência
interpretativa do ser humano que, para fazer prevalecer sua interpretação,
canoniza e, para comunicar, expande os sentidos. Observamos também que
diversos fatores influem em cada um dos momentos: (1) a forma de ver o
mundo interfere na interpretação; (2) a transposição da oralidade para a
escrita modifica a mensagem; (3) a intertextualidade geral e stricto sensu
amplia sentidos; (4) a tradução cria novos textos.
Em nossa jornada, porém, uma pergunta permanece: como interpretar? O
que significa atualizar a mensagem? Croatto sugere que tornemos eficaz o
querigma bíblico para nossas situações34 e sugere que o façamos aplicando o
conhecimento linguístico associado à percepção do acontecimento que se faz
palavra. A proposta é a recriação da mensagem bíblica, através das novas
informações. Isso sugere mais perguntas que respostas: como relacionar a fé
com conteúdos históricos distintos? Como respeitar o Primeiro Testamento,
sem pensá-lo como antigo, negativamente? Caminharemos para a resposta
dessa questão. Mas, antes, é necessário compreender o que significa “livro”,
que usamos de forma tão leviana nos estudos bíblicos. Só assim, poderemos
nos questionar sobre a natureza dos escritos bíblicos e em práticas de
interpretação.

1 É importante abrirmos um parênteses aqui: textos não precisam, obrigatoriamente, terem


sido eventos. Não são apenas "fatos/acontecimentos" que nos impactam em nossa
experiência humana.
2 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 73. Podemos enxergar a tendência de Croatto para
a intentio lectoris. Ele não expõe claramente, como Eco, parâmetros de averiguação de
leituras, exceto o parâmetro da vida que vai de encontro ao texto. As múltiplas
possibilidades seriam um ganho da escrita que ganha vida ao encontrar nossa vida.
3 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 18
4 Ele demonstra que isso pode não ocorrer caso seja desejo do autor manter a polissemia
como, p.ex., na poesia ou linguagem simbólica.
5 CROATTO, J. S. Historia de Salvación: la experiencia religiosa del pueblo de Dios.
Navarra: Verbo, 2010, p.17
6 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 19
7 WULF, Homo Pictor, p. 39
8 Wulf demonstra que tais imagens não passam de “disfarces” para a memória. Não são os
fatos em si, mas uma forma de “histocizarmos” nossa trajetória. Elas “se lançam ao
primeiro plano da memória, de modo que o passado se torna presente e fornece um
remédio contra a implacabilidade do tempo”. WULF, Homo Pictor, p. 38
9 Mimética vem de mimesis, imitação ou representação, no grego.
10 Embora Wulf não fale especificamente de discurso, mas da imaginação em geral, ele
demonstra que o aprendizado como um todo é mimético e dado a partir do olhar e da
criação de imagens internas.
11 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 19-22
12 Croatto usa Austin: Quando alguém fala, transmite uma mensagem (linguagem
locucional, como se diz), fá-lo, contudo, com força ou intensidade determinadas
(linguagem inlocucional expressada pela entonação, pelos gestos, etc.) e com um efeito
que faz parte da mensagem (linguagem perlocucional). Pois bem, na leitura de um texto
perdem-se os dois últimos aspectos, pois, em ordem decrescente, mais dificilmente
podem ser inscritos em um código. CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 21
13 Eco, ao abordar a interpretação hermética de textos, diz que a palavra “bárbaro”
significa “aquele que gagueja”. Por isso, segundo ele, tais idiomas eram utilizados nas
religiões ancestrais, pois pelo balbuciar e mal-entender guardavam-se segredos,
promessas e revelações silenciosas. ECO, Interpretação e Superinterpretação, p. 36-37
14 Há discussões, especialmente no campo veterotestamentário, se as imagens primitivas
constituiriam-se de mitos ou histórias. Eles não habitam o contexto do mito por não
utilizarem o tempo imemorial.
15 Citamos aqui os elementos de VOLLI, Manual de Semiótica, p. 205
16 Provindos de: NIDITCH, Susan. Oral world and written world: ancient israelite
literature. Louisville: John Knox Press, 1996
17 Padrão vitória-entronização é uma sequência narrativa com até nove elementos. Há
quatro em Ex 15: (1) desafio, v.9; (2) batalha/vitória, v. 1, 4-8, 10-12; (3) procissão, v.
13, 16; (4) entronização, v. 17-18.
18 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 73
19 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 60
20 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 61
21 P.ex.: Ex 21.7-11 e Am 2.7; Ex 20.17 e Mq 2.2; Ex 23.6 e Jr 5.28
22 P.ex. : Hb 2.20 e Sf 2.20
23 P.ex.: Mt 1.23 e Is 7.14; Mt 2.6 e Mq 5.1-13; etc.
24 Nos sinóticos, p.ex.: Cf.Mt 3.3b-6, Mc 1.3-6, Lc 3.4b-6 e Is 40.3
25 FIGUEIREDO, M.F. A intertextualidade no texto bíblico in CARMELINO, A.C.;
FERREIRA, L.A.; PERNAMBUCO,J. (orgs.). Nos caminhos do texto: atos de leitura.
Franca: Unifran, 2007, p. 129-147
26 Ela cita a intertextualidade intergenérica, isto é, de diversos gêneros literários, que a
autora enquadra o livro de Juízes, com as descrições “históricas” (Jz 12.1ss) e descrições
“míticas” (Jz 13-16) e a intertextualidade tipológica, aquela que apresenta sequências
narrativas (enredo) mesclado a sequências descritivas e expositivas, no qual a autora cita
Lc 1.1-7. Embora suas compreensões de “historicidade” dos textos de Juízes escapem à
nossa concepção de história, as definições nos são caras. FIGUEIREDO, A
intertextualidade no texto bíblico, p. 137-139
27 Os exemplos citados são da autora.
28 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 73
29 Croatto utiliza o exemplo do Salmo 78, onde o versículo 9 seria acréscimo, mudando o
sentido da composição.
30 Cf. CAMPOS, Haroldo. Transcriação. Orgs. Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega.
São Paulo: Perspectiva: 2013
31 Cf. SILVA, C. M. D. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2009,
p.265-269
32 Cf. SILVA, Metodologia de Exegese Bíblica, p.330-333
33 Exemplo de CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 23
34 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 61-62
4. A materialidade do texto em sua
interpretação
No último capítulo observamos o distanciamento entre o
acontecimento/evento até sua perpetuação pela palavra. Entretanto, nos seis
mil anos de cultura escrita1, a mídia utilizada, embora geralmente desprezada
na teoria hermenêutica, tem sido tão fundamental quanto aquilo que se
escreve, visto que ela multiplica os significados do escrito enquanto a
manuseamos. Já em 1796, Kant anotou a dupla natureza dos livros:
primeiramente o livro enquanto objeto material de posse individual e,
segundo, o livro enquanto discurso endereçado a um público, mantendo-se
propriedade do autor2. Ou seja, o livro tem a dimensão material e intelectual.
Se for possível dissociá-las, diríamos que ao contar a história do livro e arguir
sobre as evoluções de seu design, estaríamos indubitavelmente ligados à
primeira linha, do texto enquanto materialidade.
Tal exercício não se dá por mera curiosidade, mas é pleno em significado,
no melhor sentido da expressão. Isso porque o formato de nosso encontro
com as palavras modifica substancialmente nossa compreensão do que elas
dizem e possibilita novas categorias de escrita, como disse Don McKenzie,
“novos leitores criam novos textos e seus novos significados são uma função
de suas novas formas”3. Na Idade Média, por exemplo, a hierarquia dos livros
se reconhecia pela observação de seu formato: o fólio, que se colocava sobre
a mesa, era o formato do saber, dos escolásticos; o formato médio era para
grandes lançamentos do humanismo e obras clássicas; e o libellus, livro de
bolso, era para devoção e diversão4. O formato do texto preparava o leitor
para seu conteúdo. Como ocorre até hoje: o design tem implicação direta nos
sentidos e na intepretação dos textos.
Nossa proposta nesse capítulo, entretanto, não é de apenas embarcarmos
no exercício hermenêutico do design de livros. Mais que isso, pretendemos
meditar sobre como tais formatos modificaram e modificam as formas de se
enxergar o mundo. A escrita, como disse Steven Fischer, é o meio do
conhecimento na ciência, da cultura na literatura, da expressão democrática
da informação na imprensa (e internet) e da arte na caligrafia5. Se pensarmos,
além disso, que o conhecimento e arrazoar modernos são formados pelo
contato com textos, perceberemos que eles são mais que “janelas para o
mundo”, como diz o ditado, mas são as estruturas do mundo que fomos
ensinados a enxergar. Assim, selecionamos algumas fases da história do livro
para estudar suas implicações no pensamento humano.
Livros-monumento e a construção de impérios
Uma primeira pergunta é: de onde vieram os livros? Seria anacronismo
pensar em livros enquanto produções de um autor para um mercado editorial
e potenciais leitores, antes do final do período helenista, na Grécia Antiga6.
Entretanto, há estruturas fundamentais da composição do livro que se
originaram em tempos muito mais antigos. Os vestígios iniciais dos livros
podem ser rastreados até o nascimento da escrita. Acredita-se que na
Suméria, entre 3500 e 3000 aC, com a grande aglomeração de pessoas em
cidades-estado foi percebida a necessidade de recursos mnemônicos para
armazenar dados como taxas, leis e códigos7. Tais códigos logográficos, com
poucos fonográficos, tinham, em 2800 aC, formato de cunha, dando nome ao
sistema de escrita, cuneiforme, utilizado também pelas civilizações Hitita,
Persa, Elamita etc.
Nesse período, os textos eram esculpidos em pedras, selos, armas de
metal, couro e tábuas de cera. O principal formato de “livro”, se podemos
chamá-los assim, eram as tabuletas de argila. Elas eram planas na parte
superior com um lado convexo, escritas enquanto molhadas da esquerda
superior à direita inferior. As tabuletas precisavam secar sob o sol ou,
posteriormente, ser queimadas em fornos. Alguns documentos importantes
utilizavam uma capa de argila especial. A compilação de diversas tabuletas
formavam uma espécie de livro primitivo, como é observado na biblioteca de
Assurbanipal (668-627 AEC) em Nínive e em textos como o Enuma Elish8.
Embora com um sistema de escrita elaborado e com uma forma produtiva
consideravelmente desenvolvida, o índice de alfabetismo na época era
baixíssimo, entre dois e cinco por cento, nas melhores hipóteses. Isso
significa que o acesso era restrito às elites. Mesmo que os escribas não
fossem, necessariamente, das classes altas, seus trabalhos eram direcionados
e financiados pela elite. Os textos mesopotâmicos, por exemplo, se
caracterizam em noventa por cento como textos econômicos e
administrativos, demonstrando a função relacionada aos templos e palácios.
Nesse aspecto, equivalem a outro suporte para escrita da época, os
monumentos de pedra, as estelas, que eram utilizadas como memoriais
celebrativos políticos e/ou religiosos, geralmente patrocinados ou
encomendados por sacerdotes e/ou príncipes do Antigo Oriente Próximo.
Assim, os ancestrais do livro, a tabuleta de argila e as estelas, acabaram
por operar como ferramentas para manutenção/promoção de visões imperiais
e/ou religiosas. O baixo entendimento de suas inscrições, tal qual seu
formato, transformaram-nos em monumentos de pedra e/ou peças de culto e
devoção ao público geral, num mundo que iniciava a tradição de grandes
impérios e concentrações de poder.
Papiros e a construção de identidades
A influência Suméria sobre o Egito logo forneceu frutos no formato de um
sistema de escrita própria. A face formal desse sistema de escrita era o
hieróglifo e as duas escritas não pictóricas derivadas eram o hierático e
demótico. Os materiais utilizados antes, contudo, foram substituídos por
materiais naturais das cercanias. Os egípcios escreviam sobre madeira,
óstracos, monumentos, templos e pele de animais. Seu material preferido,
porém, passou a ser o papiro. Extraído do caule da planta aquática de mesmo
nome, originária do delta do Nilo, os papiros eram leves e resistentes,
suscitando uma rede de comércio da matéria na Síria, Palestina, Itália e
Grécia.9
A facilidade do manuseio do material, assim como sua resistência, os
levou a criar um substituto aos antigos óstracos na comunicação pessoal e
estatal. Há inúmeras listas, contratos e cartas escritas encontrados sob
esforços arqueológicos. Entretanto, uma grande inovação do formato foi a
possibilidade de se colar folhas de papiros na criação dos rolos. Juntos em
formatos de rolos, podia-se alcançar incríveis 39.6m de extensão, tamanho do
maior rolo conhecido10, embora fosse difícil a utilização de rolos maiores que
10m, pela dificuldade de manuseio. Várias inovações foram introduzidas em
decorrência do formato: a coloração de vermelho e preto diferenciando
cabeçalhos e seções de textos; margens largas; título, nome do autor e
sumário — ou primeiras palavras do texto — na parte externa dos rolos; e os
cólofon, nome do “impressor”.11
Sob tutela dos gregos, com seu recém adquirido sistema alfabético fenício,
foram adicionados os parágrafos: uma linha horizontal que mudava fala ou
indicava mudança no sentido da prosa, mesmo na scriptio continua. É
interessante perceber, nesse ínterim, que a materialidade do livro tornava a
prática de leitura relativamente difícil, pois eram necessárias duas mãos para
ter acesso ao conteúdo dos rolos. Ler e anotar tornavam-se impraticáveis num
mesmo tempo. Da igual modo, a comparação e composição a partir de
diferentes obras era uma prática inexistente12. Apesar da dificuldade, os
maiores espaços para escrita/leitura possibilitaram tanto a compilação de
obras literárias de maior porte, quanto a criação de um sistema educacional
internacional, os gymnasia helenistas, que visavam a proliferação dos valores
físicos e intelectuais gregos no mundo antigo.
Papiros e rolos fomentaram uma das primeiras revoluções da escrita.
Mesmo sendo considerados inferiores ao discurso falado, por “não reagirem a
questões”, como Platão diz em Fedro13, eles adicionarem diversas
características essenciais aos livros de hoje e foram responsáveis pela
conservação de textos notáveis. De igual modo, forneceram a plataforma
material capaz de promover estilos de vida, filosofias e debates, essenciais
num mundo de fronteiras abertas.
Códices e a construção de ficções
Plínio, o Velho, relata que havia grande rivalidade entre as bibliotecas de
Ptolomeu V Theos Epifanes, no Egito (205-182 aC), com Eumenes II, em
Pérgamo (197-159 aC). Bibliotecas, à época, eram sinais do poder imperial,
não espaços de leitura. Assim, um embargo do governador egípcio fez com
que Eumenes procurasse um novo suporte à escrita. Os pergaminhos, cujo
nome referia-se à cidade de criação, Pérgamo, foram a solução. Eram feitos
com o couro de animais e, embora tenham sido utilizados em rolos, seu peso
dificultava o manuseio. Sua principal utilização foi na substituição da
madeira no chamado codex romano, no primeiro século dC, embora tenha se
disseminado amplamente apenas com o declínio da civilização egípcia, no
quarto século dC.
No início, sua utilização se deu em transações comerciais e legais, mas
logo passou a ser meio de escrita para atividades educacionais e rascunhos. É
interessante observar que a maior parte de sua utilização, 98% dos achados
do séc. II dC, era de textos cristãos. Acredita-se que a preferência tenha se
dado pelo cristianismo da época ser relacionado às classes média e baixas,
que teriam os utilizado como material escolar ou profissional. O códice tinha
custo inferior ao papiro, visto ser utilizado em ambos os lados da página.14
A tecnologia do códice de pergaminho transformou a forma de
ler/escrever. Ela tornou possível folhear páginas e encontrar passagens (outra
hipótese da razão do uso pela religião cristã nascente), assim como
possibilitou a consulta a diversos textos num mesmo período e por uma só
pessoa. O saber passou a ser construído com uma quantidade maior de
referenciais e a citação de memória começou a se tornar obsoleta, pois era
possível conferí-las nos códices. A postura do leitor deixa de ser em pé para
ser assentada ou prostrada perante os textos. A natureza da leitura muda,
deixando de ser fluida e sequencial para ser particionada em páginas: há
espaço para arrazoar dentre as páginas. Livros começam a ser escritos em
formatos pequenos, como atestado em obras de Homero, Virgílio e Cícero e
histórias, como as novelas gregas e os Evangelhos, começam a se tornar
acessíveis às classes mais baixas. A própria composição do livro,
privilegiando textos extensos, começa a fomentar coleções temáticas,
mudando a concepção de livro enquanto texto de um autor, para texto
temático.
O códice iniciou uma tradição na qual nos inscrevemos até hoje. Ele foi
responsável pela transição na forma de se contar histórias, que deixam de ser
contadas oralmente para serem lidas em pequenos objetos. Há nisso um
despertar da dessacralização dos objetos-texto, tal qual o início de uma
cultura mais racional e visual, que agora tomava uma forma mais constante e
perene.
Manuscritos e a construção de obras abertas
No quarto século dC, o mundo já experimentava a dominação do códice
sobre o rolo e do pergaminho sobre o papiro. A razão para a preferência pode
estar atrelada ao enfraquecimento econômico do Egito ou a relação custo,
benefício e durabilidade de uma matéria sobre a outra. No período Bizantino,
a produção de livros estava conectada aos interesses religiosos: como cópias
de Bíblias, textos litúrgicos, vidas dos santos e sermões dos Pais da Igreja.
Alguns textos educacionais, contendo os clássicos da literatura “pagã” e
textos técnicos profissionais. O preço de um códice, embora inferior ao do
papiro, permanecia proibitivo, equivalendo ao salário de um ano de um
trabalhador braçal. Os próprios escribas usavam muitas abreviações na escrita
e o palimpsesto continuava a ser muito utilizado.15
Os escribas, na época, não formavam guildas, mas muitos faziam suas
próprias cópias. Uma grande parcela da produção se dava nos scriptorium
dos antigos monastérios. Uma regra do monastério de São Teodoro (759-826
dC) nos fornece um panorama. Eles tinham um calígrafo chefe, que dividia
encargos e preparava o pergaminho para uso. Há punições descritas para a má
performance e conduta inadequada como, por exemplo, quebrar uma pena
por raiva. O escriba tinha um número exato de páginas a copiar por dia e
encerrava seu turno ao pôr do sol, pelo perigo de se queimarem os
manuscritos. Não há nada a respeito dos responsáveis pelas iluminuras, mas
poderiam ser contratados de outro local. Eram lidos poucos textos, mas
escrevia-se muito. A fatiga da escrita era considerada uma forma de oração e
a forma do códice cooperava para uma vida meditativa. Com isso o objeto
retomava sua antiga sacralidade.
Por outro lado, os textos da cultura manuscrita não estavam “fechados”.
Amplas margens, características desde os volumen, forneciam espaço para
anotações, comentários e interpretações dos leitores. De fato, a
personalização de volumes de textos partia da sua composição material: um
missal era diferente de um cartulário, livros de poesia eram estreitos e a
Bíblia para o púlpito era dividida em duas colunas, marcadas para leitura
pública. Embora disformes, tais textos poderiam vir de um mesmo escriba. A
forma dos livros seguia uma espécie de hierarquia social. Nasce aqui o livro
para estudo, não como depositório de informações, mas como ferramenta
para criação de novos saberes. Os livros pequenos e portáteis das
universidades eram um sucesso, com coleções de sermões, tratados de
virtudes, assuntos teológicos etc16. A era manuscrita foi uma era de
miscelâneas, de gêneros, datas e autores diversos num mesmo livro.17
No final da Idade Média, Renascimento, os autores começam a
resplandecer, como a nova filosofia do período requeria. Entretanto, até lá, a
era dos manuscritos foi uma era de livros inacabados, seja pelo desejo do
autor, pela compilação heterogênea de textos ou pelos espaços nos quais o
leitor introduzia comentários ou fazia adições.
Gutenberg e a construção das massas
Com o ideal humanista e o aumento do alfabetismo nos séculos quinze a
dezessete dC, era necessário um sistema de fabricação de textos que
atendesse produtivamente, mercadologicamente e logisticamente a nova
demanda. Isso se deu com o advento da prensa. Johannes Gensfleich zum
Gutenberg adaptou diversas práticas correntes de seu tempo criando uma
máquina de impressão: a prensa móvel18. A partir disso, Gutenberg pôde, pela
primeira vez, imprimir a Bíblia com tipos móveis: a Bíblia de Mainz, com 42
linhas. Com isso criou-se o primeiro meio de comunicação de massa, dada a
agilidade da prensa móvel, que logo dominou os mercados editoriais
europeus.19
Uma de suas criações foi a matriz de tipos invertidos que aderiam à tinta
para impressão. O grande trunfo de Gutenberg, porém, era a alta qualidade
técnica, que somente foi equivalida três séculos depois. Segundo Albertine
Gaur, “as duas décadas que Gutenberg gastou aperfeiçoando a tipografia
assinalou o início do período moderno e todo o subsequente avanço
científico, político, sociológico, econômico e filosóficos que não seria
alcançado sem a influência da máquina de impressão”20. Todo o negócio de
publicação de livros se transformou e a própria sociedade ocidental foi
alterada pelo sinergismo comercial, linguístico e cultural trazido pela prensa.
As transformações atingiram a personalidade do autor que agora preferia a
publicação de livros próprios, ao contrário das coletâneas antigas. Há também
crescimento da figura do editor, temido por esconder grande parcela da
tiragem em benefício próprio. A qualidade dos escritos estava em jogo. Se
todos escreviam, os leitores passavam a perceber e a ler muitos tolos ao invés
de poucos notáveis. A integridade do texto, de igual forma, passou a ser
questionada, pelos erros e reduções nas edições de clássicos. Por esses
motivos e pelo costume de se escrever em obras “inacabadas” o manuscrito
continuou durante um grande período a ser preferido21. Por contraste, os
inquisidores reagiam ferozmente, questionando livros lidos e seu
entendimento, em vista de assentir e assinar condenações.
A partir da cultura impressa, o livro disseminou-se como nunca antes.
Porém, a qualidade e integralidade dos textos passaram a ser mais
frequentemente questionados e postos em dúvida. A mídia massiva
proporcionou a todos uma forma de expressão, assim como um acesso à
leitura, que agora estava nas cabeceiras de cama. Entretanto, ao mesmo
tempo, a nova tecnologia pecou em qualidade e integralidade, evidenciando
problemáticas que até hoje nos alcançam.
América Latina e a construção de liberdades
Até o século dezenove os locais de impressão seguiam modelos de
negócios simples. A prática era: procurar textos, comprar os direitos de
impressão e tentar lucrar com a promoção e venda. Em 1780, na Inglaterra, o
negócio de livros ganhou novas proporções, com o nascimento das primeiras
grandes corporações22. Na América Latina, o desenvolvimento foi muito mais
lento que no velho continente. Os conquistadores espanhóis e portugueses
controlavam severamente a produção, impressão e leitura de livros nas
colônias, de tal forma que somente em 1747 se teve a primeira máquina de
impressão no Brasil, no Rio de Janeiro, enquanto a Cidade do México havia
recebido sua primeira em 1539. O material impresso na época era
primordialmente religioso, sendo muitas vezes proibida a leitura de outros
textos, que acabavam sendo contrabandeados.23
Foi a partir do século dezoito que a produção impressa latino-americana
passou a crescer vigorosamente. A revolução da impressão se deu a partir dos
movimentos de independência. No Brasil, uma primeira revolução da
impressa ocorreu entre 1808 e 1821. Primeiro, com a chegada da família real,
que estabeleceu a Impressão Régia e, segundo, com a Proclamação da
Independência, quando nasceu a liberdade de imprensa, acabou o monopólio
real, passou a ser admitida a aquisição de livros e novas casas de impressão
foram fundadas. A grande novidade foi o surgimento de periódicos mensais
ou semanais, que divulgavam: notícias da coroa; eventos europeus; chegada e
partida de navios; éditos; obituários; festas; e objetos perdidos.
Nesses periódicos era comum a publicação dos folhetins: uma novela
seriada que era publicada diariamente ou semanalmente nos jornais. Era rara
a publicação de textos em formato de livro sem que passassem pelos jornais
cariocas24. Por exemplo, foi nos folhetins da época que foi publicado
“Memórias de um Sargento de Milícia”, de Manuel Antônio de Almeida e
onde foi traduzido “O Peregrino” de John Bunyan, pelo médico protestante
Robert Kalley. Outra característica, ainda da segunda metade do séc. XIX dC,
foi o desenvolvimento e sucesso de alguns impressores locais. Acredita-se
que os fatores para isso foram: a produção local de papel; a diversificação de
mercado, com textos distintos como periódicos, tratados; e publicações para
grupos específicos, como mulheres e crianças.
O livro latino-americano surgiu nas sombras de proibições. Porém, à
medida que independências foram sendo conquistadas, floresceu em
liberdade. Tal liberdade também foi marca do formato dos textos, nos
folhetins diários e públicos alcançados. Nesse ínterim, minorias foram
atendidas, como mulheres, crianças e grupos religiosos não dominantes. O
conhecimento passou a ser inclusivo e cotidiano.
E-books e a construção da globalidade
A partir da metade dos anos 1970, publicações textuais e imagéticas
passaram a ser produzidas em computadores. A primeira biblioteca de livros
foi criada antes mesmo dos e-books, em 1971, o Project Gutenberg. A partir
de 1990, com softwares como PageMaker (antecessor do InDesign) e Quark,
a produção textual foi sofisticada. O computador, entretanto, com o tempo,
deixou de ser plataforma para criação e publicação de textos impressos para
ser um meio de acesso aos livros. Tal desenvolvimento do e-book, entretanto,
não foi notado até a chegada do CD-ROM, em 1987. Em 1994, os títulos de
e-books vendidos em CD-ROM quase alcançaram a marca de um bilhão de
dólares, com mais de oito mil títulos vendidos. No mesmo ano alguns títulos
escritos transformaram-se em audio-books, criando o primeiro retorno de
paradigma da era digital, voltando do formato do códice ao formato oral pré-
códice. Com a World Wide Web e seu crescimento, foi facilitado o estoque e
entrega de livros.
As características dos e-books em geral — à exceção dos audio-books —
permanecem as mesmas do tempo do códice, enquanto mantém por estrutura
básica: título; colaboradores; sumário; lista de ilustrações e tabelas; capítulos;
páginas (telas?) número de páginas ou parágrafos; anotações; conteúdo final;
informação catalográfica; o International Standard Book Number (ISBN) e
outros. Embora haja descontinuidades na forma virtual como essas
características se dão, aprimoradas por hiperlinks no sumário, dicionários
instantâneos, navegação digital etc. Os processos editoriais e materiais,
entretanto, alteraram a experiência de leitura.25
Com o advento do e-book, a “materialidade do livro” passa a ser virtual.
Num mesmo objeto, ao invés de ter contornos típicos da categoria literária,
como na época manuscrita e impressa, diferentes textualidades e gêneros são
abrigados, criando-se uma continuidade de indistintos discursos. Uma
primeira confusão é criada. A segunda confusão é da totalidade da obra, que
tornou-se descontínua e fragmentária: se acessa um artigo de periódico, um
capítulo de livro etc. A terceira é a figura do editor, que por vezes torna-se
desnecessária pela capacidade do autor de colocar seu livro no mercado
editorial.26
Na história do livro, jamais uma prática nascente eclipsou uma prática
anterior. Pelo contrário, os formatos co-existiram e desenvolveram-se
paralelamente. Não há como saber o que os próximos anos trarão, mas já
pode-se notar uma nova estrutura do pensamento com os e-books: o saber
descentralizado, fragmentário, que não se detém nos limites das obras ou se
submete a caprichos editoriais. O conhecimento, mesmo sob pesadas leis de
direitos-autorais, tenciona a ser livre e descentralizado, como nossa
sociedade.
Perspectivas
Neste capítulo, fizemos uma incursão à história da materialidade dos
textos. Esta tarefa nos ajuda a perceber que a compreensão dos textos não
está apenas associada à intelecção dos termos e da criação de imagens
mentais corretas na leitura, pois o próprio evento se faz substância novamente
na materialidade do livro e passa a ser reconhecido dessa característica. A
Bíblia foi protagonista em diversos momentos da história do design do livro
e, hoje, no advento dos ebooks, protagoniza a transição da dissociação entre
sua materialidade ritualista (o livro como objeto sagrado) para a
imaterialidade virtual. Ao partirmos para a natureza da Bíblia devemos estar
atentos aos sentidos antigos da materialidade e dos novos sentidos
conquistados.

1 Por “cultura escrita”, entendemos culturas com sistemas gráficos que ultrapassam os
sistemas mnemônicos primitivos. Eles teriam surgido na China ou Mesopotâmia em
4.000 aEC. Cf. LEMAIRE, A. “Writing and Writing Materials”. In: FREEDMAN, D.N.
The Anchor Yale Bible Dictionary. New York: Doubleday, 1992; FISCHER, S.R. A
History of Writing. London: Reaktion Books, 2001 [ebook]
2 CHARTIER, R. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p.
30
3 MCKENZIE, Bibliography and the Sociology of Texts
4 CHARTIER, R. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Imprensa
Oficial/Unesp, 1998, p. 8
5 FISCHER, A History of Writing
6 WILAMOWITZ apud TOORN, Karel Van Der. Scribal Culture and the Making of the
Hebrew Bible. Cambridge: Harvard, 2007
7 FINKELSTEIN, D.; MCCLEERY, A. An Introduction to Book History. London:
Routledge, 2005 [ebook]
8 KALLENDORF, C. “Ancient Book”. In: SUAREZ, M F.; WOUDHUYSEN, H. R.
(eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford University Press, 2013 [ebook]
9 Cf. LEMAIRE, Writing and Writing Materials
10 Um manuscrito de Qumrã de Isaías. Cf. deCLAISSÉ-WALFORD, N. L. “Papyrus”. In:
FREEDMAN, D. N.; MYERS, A. C.; BECK, A. B. Eerdmans dictionary of the Bible.
Grand Rapids: Eerdmans, 2000
11 KALLENDORF, Ancient Book
12 CHARTIER, A Aventura do Livro, p. 24
13 "Cada logos, a partir do momento em que foi escrito, rola para todos os lados, tanto na
direção dos que o compreendem quanto na daqueles com os quais nada tem a ver, não
sabendo a quem deve ou não deve falar. [...] Se o logos escrito for vítima de vozes
dissonantes ou se for injustamente atacado, precisará sempre da ajuda do pai; ele, na
verdade, não é capaz de repelir um ataque ou de defender-se sozinho." (Fedro 275)
14 KALLENDORF, Ancient Book
15 cf. WILSON, N. G. “The History of Book in Byzantium”. In: SUAREZ, Michael F.;
WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
16 Cf. DE HAMEL, Christopher. “The European Medieval Book”. In: SUAREZ, Michael
F.; WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
17 CHARTIER, A mão do autor e a mente do editor, p. 111-112
18 É creditada também a criação da pensa em 1403 dC, por impressores coreanos. Cf.
FISCHER, A History of Writing.
19 FINKELSTEIN; MCCLEERY, An Introduction to Book History.
20 GAUR apud FISCHER, A History of Writing.
21 CHARTIER, A mão do autor e a mente do editor, p. 110-112
22 FINKELSTEIN; MCCLEERY, An Introduction to Book History.
23 VERA, E. R. “The History of the Book in Latin America (including Incas and Aztecs)”.
In: SUAREZ, M. F.; WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New
York: Oxford University Press, 2013 [ebook]
24 LEONEL, J. “O Jornal Imprensa Evangélica e a formação do leitor protestante
brasileiro no século XIX”. In: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 35, p. 65-81,
set/dez 2014
25 Cf. GARDINER, E.; MUSTO, R. G. “The Electronic Book”. In: In: SUAREZ, M. F.;
WOUDHUYSEN, H. R. (eds.). The Book: A Global History. New York: Oxford
University Press, 2013 [ebook]
26 CHARTIER, R. Os Desafios da Escrita. São Paulo: Unesp, 2002
5. A Natureza da Bíblia
As últimas etapas nos foram necessárias para formatar uma compreensão
do processo interpretativo. Enxergar o homem como intérprete por
excelência, situá-lo no processo comunicativo e compreender as tensões de se
ter um texto em mãos, fornecem-nos um panorama das dificuldades
interpretativas que precisamos superar na tarefa hermenêutica. Poderíamos
dizer que, até o momento, estudamos o termo hermenêutica de nossa matéria.
Agora é momento de passarmos ao que classifica e distingue nosso curso de
outras hermenêuticas gerais, a questão bíblica. Assim, antes de nos
aventurarmos na interpretação, precisamos compreender a natureza da Bíblia.
Não podemos assumir que ela seja um livro igual aos demais. A Bíblia possui
características distintas da literatura contemporânea que merecem ser
observadas para não cairmos em anacronismos1.
Portanto, a partir dessas questões levantadas, nossa apresentação será
fundamentada com vistas a combater três afirmações anacrônicas de
compreensão da Bíblia na atualidade: (1) a Bíblia é um livro; (2) a Bíblia é
História; (3) a Bíblia sempre foi Bíblia. Demonstraremos, portanto, que a
Bíblia não é um livro, não contém história e não pode ser enxergada numa
totalidade desde sua escrita. Ao utilizarmos tais termos, não negamos a Bíblia
ou sua mensagem, mas queremos demonstrar que tais conceitos de livro e
história não existiam no tempo de criação da Bíblia e, da mesma forma, seus
textos não foram escritos para compor uma coleção sagrada de escritos, um
cânon. Acreditamos que, através dessas considerações, seremos capazes de
eliminar alguns ruídos hermenêuticos que tem surgido nos corredores mais
extremados da fé que compartilhamos.

Livros que não são livros


Conforme abordamos no capítulo anterior, a concepção moderna de livro
não existia nos tempos bíblicos. Segundo Ulrich von Wilamowitz, que estuda
literatura greco-romana, um livro é “um texto publicado por um autor através
de um meio organizado de comércio de livros para o benefício de um público
estimado”2. Veremos, sobre a questão, que falarmos de autores bíblicos ou
escritores bíblicos não tem a mesma concepção de autores modernos. Da
mesma forma, não havia um comércio organizado de livros até bem próximo
dos tempos de Jesus e, tampouco, havia imprensa e edição massiva de livros.
Assim, para início de conversa, não poderíamos dizer que os livros bíblicos
são livros e, muito menos, dizer que a Bíblia, uma coletânea de textos
sagrados e culturais, é um livro. O que faremos aqui é observar as relações
das pessoas possuíam com os textos, para compreender o que era o texto
bíblico o povo antigo.

Escritos como objetos de culto

O tratamento que damos aos livros bíblicos hoje é de pura textualidade.


Observamos relações intertextuais stricto sensu, admitimos somente
interpretações baseadas na leitura exaustivamente gramatical dos textos,
tiramos conclusões a partir da etimologia de certos termos, chegamos a falar
em inerrância da letra dos textos bíblicos etc. Tais esforços convêm? Quais
são os limites para essas conclusões? Acreditamos que o limite se dá pelo
contexto no qual os textos foram produzidos. Assim, se observarmos o acesso
que tinha o povo à leitura, poderemos concluir se tamanha ênfase filológica é
cabível ou se há outros meios de se compreender a Bíblia.
Aparentemente, a literatura hebraica só passou a florescer a partir de 850
e 750 aC, tendo a escrita hebraica, segundo achados arqueológicos, surgido
nas cercanias do século X aC3. De qualquer forma, mesmo surgindo em
tempos tão remotos, a leitura não era para todos. Acredita-se que a leitura era
acessível na Mesopotâmia, nascedouro da escrita, apenas para 5% da
população, no Egito para 7% e na Grécia Antiga somente para 10% da
população4. A própria composição dos textos bíblicos coopera para tal
afirmação. Em Deuteronômio, fala-se de uma cópia da lei:
Quando subir ao trono real, ele deverá escrever num livro, para seu uso, uma
cópia desta Lei, ditada pelos sacerdotes levitas. Ela ficará com ele, e ele a lerá
todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer a Iahweh seu Deus, observando
todas as palavras desta Lei e colocando estes estatutos em prática. Dt 17.18-19

Sabemos, em questão de alfabetização, que muitos escritores bíblicos,


nem mesmo sabiam escrever. Ao receber a ordem divina para escrever sua
profecia num rolo, Jeremias se viu impossibilitado, pois não possuía a
habilidade da escrita, não poderia lê-la ou entrar no Templo. Assim,
imediatamente, chamou Baruque:
Jeremias chamou, então, Baruc, filho de Nerias, que escreveu em um rolo,
conforme o ditado de Jeremias, todas as palavras que Iahweh lhe dirigira. Então
Jeremias deu a Baruc esta ordem: “Estou impedido, não posso entrar na Casa de
Iahweh. Mas tu irás e lerás para o povo no rolo que escreveste, ditado por mim,
todas as palavras de Iahweh, no Templo de Iahweh, no dia do jejum. Lerás,
também, a todos os judeus vindos de suas cidades. Jr 36.4-6

Entretanto, se não havia capacidade de leitura, que era para uma seleta
parcela da população da qual nem mesmo reis se incluíam, o que era o livro
para o povo? Acreditamos que o objeto de leitura era um ícone de culto, tema
que desenvolvemos em outro local5. Toorn demonstra que os livros sagrados
tinham função semelhante aos ídolos babilônicos: (1) juramentos eram feitos
diante deles; (2) acompanhavam o exército em suas incursões; (3) eram feitas
procissões para mostrá-los ao povo; (4) eram enterrados, jamais destruídos;
(5) eram considerados pré-existentes a partir de uma imagem ideal criada
pelos deuses. Tem-se notícia, nesse aspecto, num documento antigo, que o rei
que mandou traduzir a LXX teria se ajoelhado sete vezes frente ao livro, pois
representava Deus6.
Não queremos menosprezar a leitura do livro, mas esclarecer que era
uma literatura para poucos e que, na visão popular, esse livro tornou-se
objeto de adoração e devoção, muitas vezes não sendo ligado à textualidade
ou leitura. Talvez a relação com o livro, para muitos, mantenha-se a mesma.
No analfabetismo funcional de grande parcela de nossa população brasileira,
o livro tem sido elevado à objeto de adoração. Assim, a informação que pode
nos libertar do gramaticalismo e do fundamentalismo literário, também pode
nos levar a posturas equivocadas frente ao texto.

Escritos como artigos de luxo

Já dissemos, anteriormente, que os escritos eram produzidos para uma


parcela ínfima da população. Citamos, inclusive, as porcentagens de
alfabetizados no Antigo Oriente Médio e Grécia. Outro fator que distanciava
o povo do livro era seu próprio custo. Hoje, comprar livros extensos, de
300/600 páginas é fácil e relativamente barato. Entretanto, devemos
considerar o tempo para se produzir literatura, o material e qual seu preço,
para verificar a acessibilidade.
Até a Idade Média, antes da imprensa, não havia forma de se produzir
livros em larga escala. A escrita era artesanal. Tem-se notícias de que um
copista medieval precisava de um dia para cada duas páginas de escrita. A
escrita de um texto em estelas era mais rápida, acredita-se que, para uma
cópia de Gilgamesh, por exemplo, precisava-se de duas semanas de trabalho.
Eram utilizadas para a escrita estelas e cerâmicas na antiguidade e, depois,
rolos, de papiro ou couro. Foi somente na era cristã que surgiu o códice, que
tinha o formato de livro. O custo do livro era tão alto que muitos utilizavam o
mesmo material diversas vezes, dando origem aos palimpsestos (gr. palin =
de novo + psao = riscar), que eram papiros ou pergaminhos com anotações,
apagadas e escritas novamente por cima. Muitos dos manuscritos que
possuímos estão nesse formato.
Todas essas questões encareciam o processo produtivo dos textos, que
tornavam-se inacessíveis ao público comum. As primeiras referências, do
Período Romano, sobre o preço de um rolo da Torá (Pentateuco), por
exemplo, era 10.000 peças de prata. Considerando que um trabalhador
recebia uma peça de prata por dia, é um preço totalmente inalcançável7. Um
rolo de Isaías, de acordo com alguns dados do Talmud, custaria 200 peças de
prata, ou seja, mais de seis meses de trabalho. Com o papiro, o preço foi
reduzido, mas não possuímos notícias exatas da evolução dos preços. O que
se sabe é que rolos tinham preços proibitivos e que, quando não era a
analfabetização que impedia a leitura, o alto valor dificultava o acesso.

Escritos para performance

As características que mencionamos acima nos fazem, num primeiro


momento, pensarmos numa inacessibilidade total aos escritos bíblicos.
Entretanto, esse extremo tampouco é aceitável. Não podemos, pela simples
característica diversa dos textos, generalizarmos e afirmarmos que eles
fossem totalmente desprezados pelo povo que o recebia. Cumprir o papel de
ícone e serem, materialmente, artigos caros, não eliminam os textos utilizados
na devoção popular. Diferente concepções tem diferentes práticas.
A leitura, nos templos bíblicos, era performática, oral, na religião e no
ambiente intelectual de aprendizado8. No hebraico, a palavra que se traduz
por ler é qara, que significa, literalmente, “proclamar, falar em alta voz”9. É
por isso que Isaías diz: “Naquele dia, os surdos ouvirão o que se lê, e os olhos
dos cegos, livres da escuridão e das trevas, tornarão a ver” (Is 29.18).
Também Esdras, toma sozinho o fardo da leitura: “E Esdras leu no livro da
Lei de Deus, traduzindo e dando o sentido: assim podia-se compreender a
leitura” (Ne 8.8). Os escritos do Novo Testamento demonstram a leitura
pública: “Feliz o leitor e os ouvintes das palavras desta profecia, se
observarem o que nela está escrito, pois o Tempo está próximo” (Ap 1.3).
No seio do Cristianismo Primitivo, tal qual nos tempos
veterotestamentários, a leitura era comunitária, legados à interpretação
coletiva. Isso modifica substancialmente nossa forma de enxergar a
interpretação bíblica. Hoje, nossos livros são parte da vida privada,
destinados à cabeceira da cama. Entretanto, nos tempos do Cristianismo
Primitivo, os julgamentos de práticas eclesiásticas (1Co 14.26-32),
interpretações (At 17.1012) e textos (Cl 4.16; 1Ts 5.27) eram para a
coletividade, lidos por diferentes comunidades. Isso nos faz pensar que num
ambiente da leitura comum, de compartilhamento de ideias sobre o texto e de
discussões na comunidade.

Escritos como fragmentos

Ainda com respeito à oralidade, não é de se espantar que grande parte


dos textos antigos do Antigo Testamento e muitos do Novo estejam no
formato de canções e poemas, cuja recitação e memorização são fáceis.
Mesmo os textos bíblicos comumente chamamos “históricos” (problema que
veremos na sequência), são trechos identificáveis. As memórias que temos de
Jesus, parecem-nos chegar em aspectos fragmentários de memória, como
ditos, metáforas, histórias pontuais, que os evangelhos dispuseram de forma
distinta.

A questão é que, exceto em alguns trechos do Novo Testamento, os


gêneros das histórias bíblicas eram favoráveis à oralidade, com ritmo,
repetições, refrões e enredos relativos mas inter-relacionados. A perícope,
recorte de texto, geralmente indica esse favorecimento à oralidade. Como
disse Milton Schwantes certa vez:
É preciso ler a Bíblia colocando-se na mão de uma analfabeto. De uma
geração, de uma tropa de analfabetos, que tiveram as suas pessoas especializadas
em escrita, mas que pensaram a escritura em pequenos fragmentos de pensamento.
Emendados, pode ser emendados, não há problemas. Mas eles nasceram pequenos,
nasceram de 3, 4, 5, 10 versículos: o que cabia na cabeça. Ele é do tamanho da
memória e não do tamanho do papel.10
A leitura e interpretação bíblica deve respeitar tal condição do texto.
Devem-se enxergar as formas dos elementos bíblicos, seus trechos e
condições especiais. A relação entre a parte e o todo deve ser analisada, mas
a parte do todo também deve ser considerada. Um dito de Jesus deve, ao
mesmo tempo, ser entendido como um dito oral e como parte de um discurso
literário maior, um Evangelho, por exemplo. Através da observância das
formas literárias, podemos ver o que é padrão e o que é particular num texto
e, assim, buscar interpretações. Diversos livros especializados11 nos apoiam
nessa tarefa, que não pode ser descrita em minúcias aqui.
Outro aspecto que temos que considerar é que o texto original não existe.
Pelas mazelas do tempo, muito do que havia foi perdido. As cópias
“originais” se foram há séculos e os textos que nos chegam são traduções de
fragmentos de textos. A Bíblia Hebraica Sttuttgartensia, a futura Biblia
Hebraica Quinta, o Novum Testamentum Graece, a Biblia Sacra Vulgata e a
Septuaginta são edições críticas, compiladas através do estudo de textos
diversos. Assim, através das variantes textuais de cada um dos textos
bíblicos, chegou-se a uma edição do que se pensa ser uma aproximação do
texto original. Portanto, o que nos chegam são fragmentos, que devem ser
observados como tais e colocados dentre essa grande tradição.12

Escritores que não escreviam

Observamos, até o momento, que os “livros” bíblicos, embora os


chamemos assim, não podem ser considerados livros no sentido atual da
palavra. Eles não tinham uma circulação ampla, não tinham formas de
reprodução em massa e tinham um custo elevado. Vimos também que, por
tais motivos, grande parte dos escritos foi composto para uma leitura pública-
performática, além de serem condensações de fragmentos distintos. Nada
disso nos permite considerá-los livros, no sentido moderno da palavra. A
questão da autoria é outro fator impeditivo à tal concepção.
Tomar um livro em mãos, hoje, é assumir que os pensamentos descritos
provém do autor: nos importamos com direitos autorais e autoria, chegamos
até a e seguir a carreira de certos escritores. Antigamente, até a Idade Média,
porém, havia uma distinção: a questão entre autoridade e autenticidade dos
livros. Hoje, procuramos a autenticidade dos livros, mas até então, a
autoridade era o mais importante. Mais do que ter a “pena na mão”, era
importante que os livros refletissem as ideias a quem eram atribuídas.
Existem três fenômenos distintos nos textos bíblicos: (1) anonimato; (2)
atribuição a um autor; (3) pseudonímia; (4) pseudoepigrafia.
No lado do anonimato, não vemos menção ao autor em Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números, Josué, Juízes, 1-2 Samuel, 1-2 Reis, 1-2 Crônicas,
Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, as três cartas “de João”, Hebreus13. Tais
textos não chegaram até nós com indicações de seus autores, embora sua
autoria tenha sido atribuída posteriormente por pensadores. No caso dos
Evangelhos, tem-se notícia, com Papias de Hierápolis, que eram preferidos
(em 130 dC), tradições orais aos evangelhos escritos, estes de testemunhas
oculares.
A tradição oral para a escrita, no Cristianismo, talvez tenha sido
inaugurada por Paulo (Rm, 1-2Co, Gl, Fp, Fl, 1Ts). Suas cartas formaram
uma tradição literária que culminou em novas cartas, de seus discípulos, que
colocavam os escritos sob a autoridade de Paulo, as deuteropaulinas (2Ts, Cl,
Ef, 1-2Tm, Tt)14, sob o pseudônimo Paulo. Pseudonímia é, literalmente,
“nome falso” e é utilizado por muitos poetas, que criam uma persona para
apresentar uma outra forma de pensar. Entretanto, o termo correto a escritos
de autores que se passam por outro é pseudoepigrafia, literalmente: “escrito
sob nome falso”. As duas formas procuram favorecer a recepção do texto,
colocando-o sobre o nome de uma figura popular do passado ou presente. No
Antigo Testamento, vemos a pseudonímia atuar, por exemplo, em
Deuteronômio, atribuído a Moisés, como legitimação da reforma cúltica de
Josias em 622 aC e Daniel15, Jonas e Jó, cujas histórias são atribuição à
figuras lendárias (Cf. Ez 14.14)16.

Um terceiro fenômeno, ao lado do anonimato e da


pseudonímia/pseudoepigrafia era a atribuição a um autor. Enquanto a
pseudonímia e pseudoepigrafia é trabalho do próprio autor, a atribuição é
trabalho de um editor. Tal atribuição temos, em nossas Bíblias, por exemplo,
nos Salmos e Provérbios atribuídos a figuras que representam certas
tradições. Os Salmos 42-72 são atribuídos a Davi, filho de Jessé, o Salmo 90
a Moisés, os Salmos 50, 73-83 a Asafe etc. Uma tradição tardia confere os
cinco livros dos Salmos a Davi, como eram atribuídos os cinco livros da Torá
a Moisés: “Moisés deu os cinco livros da Torá para Israel, e correspondendo
a eles, Davi deu os cinco livros dos Salmos a Israel. Mid. Ps 1.2”17. Alguns
Provérbios são atribuídos a Salomão (Pv 10.1), outros a Lemuel (31.1).
Ainda que se argumente que muitas dessas tradições possam ter vindo de
figuras históricas correspondentes, não podemos dizer que as inscrições
vieram de suas mãos. O citado caso de Jeremias nos ensina isso. Mas não
podemos enxergar isso como falsidade ideológica18. Os valores que nos
regem hoje não são os mesmos que lhes regiam. Para eles, textos existiam
antes de serem escritos, eram primeiramente orais, portanto, a escrita era
distribuição de um conhecimento atual ou mesmo passado, através de
gerações e gerações.
A expectativa de encontrarmos uma integralidade literária nos textos, que
se firma sobre a gramática, etimologia e filologia provém de uma concepção
errônea da natureza dos textos bíblicos. Como observamos, chamar a Bíblia
de livro é um equívoco: (1) por ser uma plural de coletânea de textos
sagrados; (2) por serem objetos cúlticos de culturas iletradas; (3) por serem
artigos de luxo de difícil acesso; (4) por serem escritos a partir da e para a
oralidade; (5) por serem peças fragmentárias de memória coletiva; e (6) por
não terem nossa concepção de autoria. Com isso, descobrimos que, em
nossas mãos, possuímos: (1) um livro plural e real, que abriga contradições
porque a vida é contraditória e plural; (2) um livro popular, pois foi feito pra
gente que nem mesmo sabia ler; (3) um livro para comunidades, que o liam e
interpretavam em comunhão.
Tudo isso, nos leva a pensar sobre correntes literalistas de interpretação,
que tomam uma postura irrevogável frente a certas opções interpretativas.
Tais movimentos entendem o texto sagrado como artefato literário e não
constroem sua interpretação respeitando o paradigma que demonstramos.
Para esses, a Bíblia é um processo escriturístico de um mundo alfabetizado,
uma realidade que tem mais a ver com a época de criação do
fundamentalismo, o final do século XIX, do que com a realidade da produção
por detrás dos textos bíblicos. Nossa ênfase na questão se dá pelas
consequências que extremismos religiosos - sejam conservadores ou liberais -
tem feito à nossa sociedade e à prática interpretativa da Bíblia. Sob
prerrogativas extremistas temos dado a mão à intolerância ou à omissão. Se
temos a proposta de criar vida através da leitura bíblica, não podemos cair em
tais extremos e, para isso, lembrar a natureza da Bíblia é uma questão
fundamental.

História que não história


Perguntar em que consiste a história é problemático tanto se partirmos da
historiografia ou da visão bíblica sobre a matéria. Isso significa que a
pergunta “a Bíblia é História?” é igualmente problemática à pergunta
“existem relatos realmente históricos?”19. Isso se deve ao fato de que o que
chamamos popularmente de ciência histórica, na atualidade, busca uma
objetividade20 que talvez não seja alcançável e, por consequência, não seria
identificável. Os textos de Hayden White nos ajudam a pensar sobre a
matéria21.
O autor percebe que nas três formas convencionalmente utilizadas como
registros históricos (o anal, a crônica e a história, propriamente dita) existem
juízos de valor, narrativizantes ou narrativos22, comprometendo a
objetividade. Para ele, o anal peca na seleção dos fatos, por agregar uma
ordem de igual valor de importância; a crônica, peca ao pretender igualar-se à
vida, não atribuindo significado e um desfecho às situações, que comprovaria
estar disposta aos favores do poder e lei vigentes; e a história peca ao
preencher as lacunas com enredo, um sentido não existente nos fatos. A
conclusão inevitável de White é que a história não é objetiva, por ser a
construção de um discurso sobre acontecimentos e não os fatos em si. Ele
explica a razão disso:
O valor atrelado à narratividade na representação de eventos reais ergue-se de
um desejo de ter eventos reais dispostos com coerência, integridade, completude e
um fechamento de uma imagem da vida que é e só pode ser imaginária.23

Até o início do século passado, tal discussão não era levantada em


relação à Bíblia, especialmente em relação ao Antigo Testamento, pelo
contrário, um nascente campo de pesquisa procurava descobrir evidências de
que a Bíblia continha a verdade: a arqueologia24. Assim, como na história do
reconstrutor Neemias, com a pá numa mão e a Bíblia na outra, personagens
importantes da literatura bíblica aventuraram-se em escavações. Com o
passar do tempo, resolveram fechar suas Bíblias e deixar as pedras falarem,
mas a voz que delas saiu não foi a esperada25, por exemplo: (1) o tamanho
das cidades israelitas, do grande - o maior de sua época (?) - império
salomônico era inexpressível frente aos outros impérios da época; (2) jamais
encontraram-se vestígios da multidão de 600 mil pessoas atravessando o
deserto; e (3) os piores reis de Israel eram economicamente os mais bem-
sucedidos. Isso nos faz levantar a questão: que tipo de história é a história
bíblica? Tentaremos nos aproximar de uma resposta na continuidade.
História ou teologia?

O grande medo que surge, ao nos defrontarmos com pesquisas que


invalidem - ou mesmo que validem - a cronologia, história ou personalidades
bíblicas é, geralmente: a fé cai se a história cair? Essa categoria de pergunta
geralmente reside na dualidade do sim e do não, da verdade e da mentira, do
fato ou da invenção. E, podemos admitir, geralmente os debates bíblicos
sobre o tema tem ressoado sobre tais categorias. Cabe lembrar do já citado
exemplo do livro “Quem escreveu a Bíblia? Porque os autores da Bíblia não
são quem pensamos que são”, na (des)tradução do título do livro “A Bíblia
não tinha razão”26 ou ainda na divisão clássica dos capítulos do livro “Para
além da Bíblia”27, que divide-se entre Uma História Normal e Uma História
Inventada. Tais exemplos, com arguições necessárias e valiosas aos estudos
bíblicos, não omitem a questão que tem motivado crentes das diferentes
religiões que tem o texto bíblico como central: onde está a verdade dos
escritos bíblicos? Com a resposta subentendida: é na história?
Mark S. Smith sugere que surgiu, em nosso amplo ambiente de estudos
bíblicos, uma “idolatria da história”. Para ele, tal idolatria é a “exaltação da
história, como a absoluta ou primária medida da verdade na Bíblia”28. Mais
do que uma explanação da história, para ele, a verdade bíblica reside na
realidade de Deus nas vidas de homens e mulheres e a implicação que flui a
partir desse encontro. Nossa ingenuidade ao tratar da história como descrição
jornalística imparcial29 tem ferido nossa fé, pois coloca-a sobre categorias
absolutistas que não consideram a natureza da história. Todo conto, diz o
bom e velho ditado, é a vista de um ponto e sugere um ambiente que
influencia a contação, que carrega uma finalidade. Assumir que o
acontecimento de Deus - nos termos de Croatto - é hermenêutico e foi
hermeneuticamente encontrado no tempo e no espaço é fundamental para não
cairmos em tais padrões. A partir disso, ficamos na expectativa sobre
descobrir a melhor forma de entender tais relatos, como história, memória ou
teologia.

A Teologia seria aquela que promulga-se de forma sincrônica, isto é, ao


mesmo tempo (gr. sin = junto + cronos = tempo), enquanto História seria
aquela que manifestaria-se de maneira diacrônica (gr. dia = separado +
cronos = tempo). Isso significaria que a teologia entende a revelação bíblica
num mesmo momento, como um observador que contempla uma moral de
uma história sendo revelada, enquanto a história observaria a construção do
sentido no decorrer do tempo, observando as camadas de sentido que surgem
a partir de cada momento dessa construção. Tais dimensões, na concepção de
Smith, constroem-se mutuamente. Por essa razão ele opta por construir suas
concepções a partir da concepção de memória coletiva. Esse conceito,
quando cunhado por Halbwachs e outros, tinha a intenção de distinguir
história de memória. Para Halbwachs “memória é o que uma cultura
coletivamente carrega de seu passado, enquanto história envolve uma
avaliação crítica do passado”30. A consequência é que a memória, em nível
afetivo, confirma similaridades entre passado e presente e é expressa através
de imagens, valores e ideais compartilhados socialmente, por isso memória
coletiva.

Smith sublinha seis31 aspectos dos estudos de memória coletiva que


podem cooperar para a compreensão da “história” bíblica: (1) a Bíblia não
registra fato ou ficção, mas relatos da memória cultural de Israel, como Israel
se lembra de si, com quantidade acurada de informações históricas; (2) cada
estudioso da Bíblia parte de um contexto particular religioso, que influi em
sua interpretação dos fatos, devemos suspeitar de todos; (3) locais físicos de
escrita formataram a moldaram a memória que nos chegou, a “história
oficial” carrega a pena de seus escritores; (4) mudanças tecnológicas
transformam a forma de recepção da memória, no caso bíblico, a transição da
oralidade para a escrita marcaria a ruptura entre um passado tradicional e sua
queda; (5) tragédias sociais influem na produção da escrita sobre um passado;
(6) o passado, ao ser conectado com o presente, com as divergentes
dinâmicas sócio-culturais de armazenamento, manifestam memórias
conflitivas, que geram novas memórias, pela adulteração das mesmas. Esses
processos ajudam a lidar com as chamadas, em ambientes engessados,
“contradições”.

A escrita da Bíblia

Até agora, afirmamos que a Bíblia não compõe uma história e que seria
melhor estudada nas categorias de memória. Observamos que os textos
bíblicos não se contentariam com uma reprodução de fatos imparcial, como
esperariam os historiadores contemporâneos. Pelo contrário, tais textos “tem,
em relação aos seus ouvintes ou leitores, uma determinada intenção para a
qual os eventos relatados proporcionam o material e os exemplos”32. Assim,
os escritos não constroem uma forma de anal histórico, com uma pretensa
objetividade, mas tem principalmente a função de gerar sentido de vida nos
leitores, ou seja, tem função hermenêutica de atualização da mensagem na
vida daqueles que o recebiam, nos determinados tempos em que foram sendo
escritos. Para melhor evidenciar tal questão observemos os gêneros que
originaram o texto bíblico.

Rolf Rendtorff demonstrou que os escritos bíblicos, no Antigo


Testamento, formatavam-se com33: (1) cânticos ou ditos, como, p. ex., a
“canção da vitória” de Miriam (Êx 15.21), a canção de Lameque (Gn 4.23-
24), o cântico de Débora (Jz 5); (2) provérbios populares (1Sm 24.14; Ez
16.44) e coletâneas de tais provérbios (p. ex. o “livro do valente” em Js
10.13; 2Sm 1.18); (3) contos ou sagas, que contam acontecimentos da
história primitiva, sendo que a história contada representava a própria vida
daqueles que a contavam, tais sagas poderiam ser etiológicas, contando
porque tal coisa ocorre de tal jeito (p. ex. Gn 11 e a pergunta sobre a razão
dos diferentes idiomas); (4) historiografia, dos tempos de Davi, mas, como já
abordamos, não tem a conotação de história, no sentido moderno; (5) leis,
que podiam ser casuísticas (“se” fizer tal coisa, acontecerá tal coisa),
apodíticas (“não farás tal coisa”) ou referentes ao culto.
Sobre o Novo Testamento, Johan Konings34 defendeu que, além dos
“discursos missionários” ou “querigmáticos” (gr. kérygma, anúncio), que
encontramos em At 2.14-36; 3.12-26; 10.34-43, existiam formas primárias
paralelas, que ajudaram a compor os escritos: (1) Palavras de Jesus, sentenças
e parábolas (Mt 5-7; 1 Co 7.10); (2) ações significativas de sua vida pública,
p. ex., curas, sinais, milagres, observância do sábado, declarações de perdão
etc (Mc 2.1-12; 3.1-6); (3) catequese de iniciação (Jo 3.1-15; 4.4-29); (4)
profissão de fé no batismo (Rm 10.10; 1Jo 4.2); (5) liturgia, celebração, culto
(hinos em: Fp 2.5-11; Cl 1.15-20; prólogo de Jo 1.1-18); (6) história da
paixão (Mc 14-15; Mt 26-27); (7) parêneses, i.e, exortações à firmeza na fé e
moral (Fl 4.4-9); (8) preceitos específicos (1Co 7.10; 9.14); (9) lembranças
anedóticas, pessoais ou geográficas (Mc 14.9; Jo 2.1-11); (10) narrativas
edificantes (Lc 7.36-50); (11) discussões e debates de Jesus (Mc 12); entre
outros.
Essas formulações literárias, que partiram da oralidade para a escrita em
certo momento tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, não compõe a
totalidade de formas literárias nos dois cânones, nem são as fórmulas que
operaram principalmente na construção das literaturas individuais, como
cartas, apocalipses etc, mas ajudam a perceber a raiz da lembrança que, em
combinação com a vida das novas comunidades, formatou o que temos hoje
como Bíblia. Essas formas não tinham um desinteresse histórico objetivo,
pelo contrário, visavam atingir o coração do sentido operante nas
comunidades a qual se relacionavam, construindo práxis de fé.
Se observarmos o texto bíblico sobre esse prisma que apresentamos até
aqui, chamá-los de “história” e dizer que a “verdade” habita nesse
historicismo, seria uma grande injustiça com o propósito dos textos em si. Os
textos bíblicos não tem função de informar uma realidade imparcial, mas
gerar sentido de fé ou mesmo de organização social (nas leis
veterotestamentárias e nas “crônicas oficiais” dos reis de Israel, por
exemplo), naqueles que o recebessem. Os textos bíblicos podem ser
chamados de “história” enquanto compreendermos o termo no sentido de ter
fundamentação em algum fato do passado. Entretanto não passarão pelo crivo
historiográfico e arqueológico atual. Podem, também, ser chamados
“teologia”, por pretenderem a fé e aplicação na vida. Entretanto, é anacrônico
chamá-los História, no sentido corrente da palavra.

Cânon não canonizado


Oscar Cullmann disse que “o cânon do Novo Testamento não se formou,
como se poderia supor, por adição, mas por eliminação”35. Essa óbvia
realidade por vezes no escapa na interpretação dos escritos referentes à
religião de Israel e do Cristianismo Primitivo. Croatto já alertava que o cânon
é um fenômeno de clausura “que exclui outras leituras de uma tradição
antecedente e orienta a interpretação de novas práticas”, sendo um longo
processo hermenêutico36. Os escritos que hoje compõe a Bíblia, nem sempre
foram uma coleção. Ao escrever suas cartas, Paulo não imaginava que um dia
fariam parte de um escrito canônico e, talvez, sequer os profetas literatos do
Antigo Testamento o soubessem. Isso nos faz pensar nas consequências da
canonização para a interpretação bíblica. Assim, devemos interpretar os
livros da Bíblia como um todo?
A leitura conjunta dos livros do cânone, chamada “leitura canônica”
monta os textos num conjunto, dando-lhes um sentido a mais, além daquele
presente nas linhas dos textos em si37. Isso significa que ler o livro de Gênesis
e ler o livro do Gênesis como parte do Pentateuco, acresce sentidos distintos
à obra. Essa realidade, que parece-nos favorável em nossas comunidades, não
pode escapar de críticas, para que seja feita conscientemente. Assim,
observaremos uma micro-história da formação dos dois cânones presentes na
Bíblia Cristã e trataremos de algumas questões pertinentes ao tema.

Interpretação via cânon

Não podemos, como que por desinteresse, deixar de reparar nas


diferentes formações dos cânones nas variadas matrizes judaico-cristãs. O
que espanta é que não surja, recorrentemente, a pergunta sobre a razão de tais
rupturas, visto que essas tradições — no caso do cristianismo —
encontravam-se unidas até meados da Idade Média. O que teria causado tal
separação? Para responder essas questões primeiro devemos observar alguns
cânones do Antigo Testamento (cf. tabela 1).

Devemos, antes da análise dos dois cânones, observar a criação dos


diferentes cânones38: Bíblia Judaica; Septuaginta; Católica-Ortodoxa; e da
Reforma. A Bíblia Judaica foi a coleção de livros normativos no judaísmo
depois da destruição do Segundo Templo, em 70 dC. Enquanto Bíblia
Hebraica, ela aderiu também ao Pentateuco Samaritano, Isaías de Qumrã,
Sirácida Hebraico etc. A Tanak, que é a Bíblia judaica canônica, foi
organizada no fim do primeiro século, provavelmente pelos judeus de Javné
(Jâmnia). A Septuaginta é a tradução grega dos livros do “Antigo
Testamento”, que ainda não existia como unidade. A Septuginta é um dos
primeiros esforços de canonização e corresponde ao AT da Bíblia Católica.
A Igreja Ortodoxa, do oriente, tomou a Septuaginta como Antigo
Testamento e, em adição, a Igreja Romana tomou algumas diferenças sob
influência da Vulgata, de Jerônimo, que tinha intenção de voltar à hebraica
veritas, aos manuscritos hebraicos disponíveis. A Igreja Ortodoxa ainda
abriga alguns livros distintos da Igreja Romana e Reformada: 1 (ou 3) Esdras,
3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão. Os Reformadores tentaram
voltar ao cânone de Jerônimo, usando basicamente o texto hebraico e
excluindo os deuterocanônicos, que tem em seu nome a referência a um
“segundo cânon”. Entretanto, seguiram o arranjo tradicional dos livros do
Antigo Testamento, combinando com a Bíblia Católica. O Novo Testamento
permanece igual nas diferentes tradições, mesmo com ressalvas de Lutero
quanto à Tiago, por exemplo.
Voltando a análise das duas formações canônicas principais, do Primeiro
Testamento e Tanak39, podemos notar que, nos dois agrupamentos a Torá é a
revelação primária, a revelação originária no Sinai, o que muda é a disposição
posterior. A conjunção de livros do Primeiro Testamento agrupa os livros de
acordo com o tipo de literatura, lhes dando sentido pelo formato histórico-
teológico. Essa conjunção trabalha em função da Torá e seguem-se três
blocos, respectivamente de Josué à 2 Macabeus, Jó à Sirácida e Isaías até
Malaquias. No segundo bloco, Josué a 2 Macabeus40, é demonstrado o
exemplo do que acontece com uma comunidade que vive ou não cumpre a
Torá. No terceiro bloco, Jó a Sirácida, cada pessoa busca a sabedoria
salvadora da vida, ouvindo e meditando a Torá. O quarto bloco, de Isaías a
Malaquias, projeta a visão de que mundo e história chegam à plenitude, para
lá aprender a Torá da paz de Javé41.

Essa organização dá formato de teologia histórica ao Primeiro


Testamento, estrutura que seguira também no Novo Testamento. Se
observarmos, a Teologia do cânon das duas partes da Bíblia cristã são
paralelas: (1) a fundamentação é a Torá no AT e os Evangelhos no NT; (2) o
passado são os livros históricos no AT e os Atos dos Apóstolos no NT; (3) o
presente é demonstrado pelos livros sapienciais no AT e pelas epístolas
apostólicas no NT; (4) o futuro é vislumbrado e sonhado pelos livros
proféticos no AT e pelo Apocalipse de João no NT. De igual forma, a
estrutura canônica delimita-se pelos livros de Gênesis e pelo livro de
Apocalipse, com tópicos correspondentes. Erich Zenger traz um bom
exemplo sobre a temática:
Gn 1-3: “Quando Deus iniciou a criação do céu e da terra, a terra era deserta
e vazia, e havia treva na superfície do abismo; o sopro de Deus pairava na
superfície das águas, e Deus disse: ‘Que a luz seja!’ E a luz veio a ser. Deus viu
que a luz era boa. Deus separou a luz da treva. Deus chamou a luz de ‘dia’ e à
treva chamou de ‘noite’. Houve uma tarde, houve uma manhã: o primeiro dia...
Javé-Elohim fez germinar do solo toda árvore de aspecto atraente e boa para
comer; a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do que seja
bom ou mau. Um rio corria de Éden para irrigar o jardim; dali se repartia para
formar quatro braços...
Depois de ter expulsado o homem, postou os querubins a oriente do jardim de
Éden, com a chama da espada fulminante, para guardar o caminho da árvore da
vida”.
Ap 21-22: “Vi então um céu novo e uma nova terra... E aquele que estava
sentado no trono disse então: Eis que eu faço novas todas as coisas! ... Eu sou o
Alfa e o Omega, o começo e o fim... Ele mostrou-me depois um rio de água da
vida, brilhante como cristal, que jorrava do trono de Deus e do Cordeiro. No meio
da praça da cidade e dos dois braços do rio, há uma árvore da vida... Não haverá
mais noite, ninguém mais precisará de luz da lâmpada nem da luz do sol, porque o
Senhor Deus difundirá sobre eles a sua luz, e reinarão pelos séculos dos séculos...
Felizes os que lavam as vestes para que lhes caiba o direito à árvore da vida e
possam entrar, pelas portas, na cidade”.42
Outros textos ajudariam na estruturação e conjuntura dos dois cânones
cristãos como, por exemplo, o final de Ml 3.22-24, que é citado diversas
vezes no Novo Testamento (Cf. Mt 17.10-13; Mc 9.11s; Lc 1.17) e serviria
como ligação, ao identificar Elias com João Batista. Entretanto, as
demonstrações belas e pacíficas de Zenger, que servem muito bem à prática
pastoral, enquanto defendem o cânon cristão em relação ao judaico, por
exemplo, não deixam escapar as problemáticas hermenêuticas que a leitura
canônica pode causar em conflitos diretos com outros textos fora de nossa
tradição. Observemos a questão mais atentamente na sequência.

Problemáticas hermenêuticas no cânon

A aceitação pacífica do cânon omite divergentes opiniões históricas


desde o nascimento de Israel até o nascimento de um movimento de Jesus
organizado. A formação do cânon neotestamentário nos ajuda a ilustrar tais
divergências43. Ele foi formatado a partir de algumas tradições, que corriam
em paralelo. Primeiro, coube aos apóstolos a promulgação da tradição do
Senhor, em seus ditos ou no que os Profetas e Lei falavam sobre o Messias.
Depois, a tradição de Paulo se fortaleceu por suas cartas, formando corpus
paulino. Outras tradições, entretanto, corriam em separado, geralmente
percebidas por regiões, existia a tradição de Pedro na Síria Ocidental, com O
Evangelho de Pedro, o Apocalipse de Pedro e o Querigma de Pedro; a
tradição de Tomé na Síria Oriental, com os Atos de Tomé, o Evangelho de
Tomé e o Livro de Tomé, os dois últimos da biblioteca de Nag Hammadi; e a
tradição de João, dna Palestina ou Síria, aliados à essa tradição estão os Atos
de João e o Apocryphon de João.
Entretanto, o cânon neotestamentário partiu da controvérsia de Marcião.
Até ele, só havia “A Lei e os Profetas”, a partir da Septuaginta. Marcião
compreendeu que essa unidade de cânon não era justificada pelas cartas de
Paulo, onde o “fim da Lei é Cristo”. Assim, ele compilou uma nova Escritura,
com o Evangelho de Lucas e as cartas de Paulo, sem as Epístolas Pastorais.
Ele convenceu-se que tais escritos não eram originais e editou uma edição
crítica do que pensava ser o pensamento de Paulo. Marcião foi excomungado
em 140 dC, mas não deixou de ser popular e crescer em número de igrejas. A
crítica à Marcião veio primeiro por Justino, mas foi Irineu de Lião que deu
início à reorganização de uma Bíblia que compilasse Antigo e um “Novo”
Testamentos. Ele acreditava que a melhor forma era se possuir Evangelhos
separados, quatro ao invés de um, por serem correspondentes às quatro
extremidades da Terra. Todos os escritos utilizados pelas igrejas iniciais
foram incluídos, sem determinação doutrinal estreita. Ele suprimiu escritos
mais recentes e adicionou os referidos à apostolicidade, com princípio amplo,
pela presença do corpus paulino e pela consciência de que Paulo considerava
outros apóstolos além dos Doze (Cf. p. ex. 1Co 15.5, 7, Júnia em Rm 16.7). A
questão da inspiração dos escritos não foi critério, visto que a presença do
Espírito era entendida como difundida.
Problemas, entretanto, foram causados. Em primeiro lugar, as
exclusões44: das mulheres de cargos eclesiásticos, que era bem documentada
no nascente cristianismo; do cristianismo judaico em relação ao cristianismo
gentio; da democracia, pela episcopalização das igrejas, pela estrutura
formada para criação dos cânones. Também, em relação ao cânon
veterotestamentário, tivemos a exclusão dos livros deuterocanônicos, no
Tanak pelo desconhecimento e na Bíblia Reformada, que considerava o
Tanak mais “autêntico” que a Septuaginta, mesmo sendo a Escritura do
cristianismo formativo45. Gerstenberger46 tem certa razão ao objetar-se frente
à “interpretação canônica” do Antigo Testamento por considerar que tais
escritos não são uniformes e coerentes, mas são fruto de desenvolvimentos
históricos isolados e pela necessidade de uma leitura que corresponda à
atualidade, que considere tais estágios de desenvolvimento e a
heterogeneidade dos textos.
Não podemos considerar, a partir das evidências reunidas, que a “Bíblia
sempre foi Bíblia”. Existe uma heterogeneidade dos textos e tensões
hermenêuticas que formataram a criação do cânon e que hoje formatam nossa
leitura, ao recebermos o texto como cânon “unívoco”. A leitura cânonica da
Bíblia é possível em nossas comunidades de fé, mas precisamos atentar às
suas limitações e consequências. Fazemos coro à Croatto, que diz que cânon
é uma forma de clausura de sentido. Por ser clausura, amplia o sentido numa
esfera nem sempre desejada. Devemos optar por como leremos a Bíblia,
cônscios dos resultados diversos em cada opção.

Perspectivas
Não podemos então pensar: na Bíblia como um livro; a Bíblia como
História; e na Bíblia como Bíblia; no sentido moderno que carregamos estas
palavras. Ela é fruto de processos históricos independentes de diversos tipos
de literatura, que ganharam contornos finais e foram, num processo
hermenêutico, compiladas como regra de fé para diversas comunidades.
Dessa forma, precisamos estar conscientes de que: entre a disposição que
tenta ser unívoca e a fragmentariedade dos textos; entre sua concepção como
ícone e como textualidade; entre sua concepção como história, teologia ou
memória; os escritos bíblicos ganham novas dimensões interpretativas, que
operam diretamente sobre nossas comunidades, que recebem sentido a partir
de tais perspectivas. Temos que optar em qual direção seguiremos, sabendo
quais malefícios e benefícios tais perspectivas trouxeram ou trarão à nossa
família na fé.

1 Anacrônico (ana = sobre, contra + cronos = tempo + ico = relativo a) seria algo fora de
tempo. Quando tomamos algo de um tempo e o inserimos numa época distinta, à qual
esse algo não pertence. Se, por exemplo, dissermos, na temática bíblica, “Jesus foi à
igreja”, cometemos um anacronismo, pois não existiam igrejas no tempo de Jesus.
Haviam templos e sinagogas, que inspiraram a futura criação de igrejas. Assim, chamar
uma sinagoga de igreja é dotar a palavra de um significado que não possuía no momento
ao qual nos referimos.
2 WILAMOWITZ apud TOORN, Scribal Culture, p. 25
3 SCHMID, Konrad. História da literatura do Antigo Testamento: uma introdução. Trad.
Uwe Wegner. São Paulo: Loyola, 2013, p. 57-58
4 TOORN, Scribal Culture and the making of Hebrew Bible, p. 10
5 CARDOSO, Silas Klein. A imagem se fez livro: a materialidade da Torá e a invenção do
aniconismo pós-exílico. São Bernardo do Campo: Umesp, 2015. Dissertação (Mestrado,
Ciências da Religião), 153 p.
6 TOORN, Karel Van Der. The Image and the book: Iconic Cults, Aniconism, and the Rise
of Book Religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters, 1997, p. 243-244
7 TOORN, Scribal Culture and the making of Hebrew Bible, p. 16-19
8 KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento, v1. Trad. Euclides Calloni. São
Paulo: Paulus, 2005, p. 106
9 TOORN, Scribal Culture and the making of the Hebrew Bible, p. 12
10 SCHWANTES, Milton. Leituras históricas da Bíblia. Teologia antenada, Faculdade
Unida de Vitória, Maio 2010. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?
v=WMMWaFZBBgM>. Acesso em: 28 de Fevereiro de 2014.
11 Sobre a questão: BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. Trad.
Fredericus Antonius Stein. São Paulo: Loyola, 1998; SILVA, Metodologia de Exegese
Bíblica, pp. 187-229; WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de
metodologia. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal, Paulus, 1998, pp.165-229; SCHNELLE,
Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo:
Loyola, 2004, pp.85-108; SIMIAN-YOFRE. H.; GARGANO, I.; SKA, J. L.; PISANO,
S. (orgs.). Metodologia do Antigo Testamento. Trad. João Rezende. São Paulo: Loyola,
2000, pp. 93-108
12 Além das exposições introdutórias em cada um desses textos, uma introdução pode ser
dada, por exemplo, no livro de SILVA, Metodologia de Exegese Bíblica, pp. 38-65.
13 Existe uma pequena indução no livro para que o leitor associe-o ao apóstolo Paulo, o
que o colocaria como pseudoepigráfico. Entretanto, o autor não expressa isso
claramente. Cf. Hb 13.22-25
14 KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v2, p.2-4
15 Característica patente no apocalipsismo é a pseudoepigrafia. P. ex., os apocalipses de
Daniel, João, Pedro, Enoque, Moisés etc.
16 Linguajar e contextos históricos são distintos do tempo queretratarm. Parece-nos que a o
objetivo era projetar a vida comum em personagens famosos, gerando identificação e
ensinando a lidar com dificuldades da época. Assim, Daniel ajuda a “digerir” o exílio,
Jonas a situação dos judeus da diáspora e Jó a teologia da retribuição, que aprisionava os
pobres à “vontade de Deus” pregada pelos sacerdotes.
17 TOORN, Scribal culture and the making of the Hebrew Bible, p.37
18 P.ex., veja a abordagem de Bart D. Ehrman sobre o tema: EHRMAN, Bart D. Quem
escreveu a Bíblia? Porque os autores da Bíblia não são quem pensamos que são. Rio de
Janeiro: Agir, 2013
19 Se é que cabe tal divisão. A divisão disciplinar parte do pressuposto que, na linearidade
do conhecimento, se descobre o todo na parte. Cf. MORIN, E. & LE MOIGNE, J-L. A
inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo: Ed. Peirópolis,
2000
20 Objetividade como imparcialidade na narração de histórias.
21 Firmamos-nos principalmente sobre: WHITE, Hayden. The Content of the Form:
narrative discourse and historical representation. Baltimore and London: John Hopkins
University Press, 1987
22 Para White, o relato narrativo é aquele que dispõe os fatos numa sequência horizontal,
sem necessariamente aderir a um enredo. O narrativizante, por sua vez, agrega o enredo,
que regularia e ordenaria a realidade de acordo com o tema ou uma moral.
23 WHITE, The Content of the Form, p. 24
24 Um excelente livro de introdução à temática, que funciona como roteiro de viagem
pelos sítios arqueológicos israelitas é: KAEFER, J.A. Arqueologia das terras da Bíblia.
São Paulo: Paulus, 2012.
25 Questões citadas no livro: FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha
razão. São Paulo: A Girafa, 2003.
26 Não podemos deixar de citar o crime cometido na tradução do nome da obra, que
passou de “A Bíblia desenterrada” (The Bible Unearthed) para “A Bíblia não tinha
razão”. Outro exemplo de que traduzir é, no mínimo, trair os propósitos da escrita.
27 LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. Trad. Orlando Soares
Moreira. São Paulo: Paulus/Loyola, 2008
28 SMITH, M. S. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no
Antigo Israel. Trad. Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo: Paulus, 2006, p. 234
29 Sem considerar que a imparcialidade jornalística, em si, é falácia.
30 SMITH, O memorial de Deus, p.185
31 Agrupamos aqui 3 e 4. Cf. SMITH, O memorial de Deus, p. 190-201
32 RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento: uma introdução. Trad. Monika Otterman.
Santo André: Academia Cristã, 2009, p.28
33 RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. Trad. Bertholdo Weber. 7 ed.
São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 8-12
34 KONINGS, J. A palavra se fez livro. São Paulo: Loyola, 1999, p.40-44
35 CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. Trad. Bertholdo Weber. 12ed.
rev. São Leopoldo: Sinodal, 2012, p. 90
36 CROATTO, Hermenêutica Bíblica, p. 41
37 Cf. KONNINGS, Johan. "Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica". In: REIMER,
Haroldo; SILVA, Valmor da (orgs.). Hermenêuticas Bíblicas: Contribuições ao I
Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo/Goiânia: Oikos, UCG, 2006, p.
85
38 Cf. KONNINGS, Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica, p. 79-81
39 ZENGER, Erich (et all.). Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São
Paulo: Loyola, 2003, p. 39
40 Primeiro bloco depois do bloco da Torá.
41 Isaías 2.1-5 funciona como abertura programática canônica do bloco.
42 ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p. 42
43 Seguimos KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.2, p. 6-10
44 KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.2, p. 12
45 KONNINGS, Bíblia, literatura, cânone, hermenêutica, p. 81
46 GERSTENBERGER, Erhard. Teologias no Antigo Testamento: pluralidade e
sincretismo da fé em Deus no Antigo Testamento. Trad. Nelson Killp. São Leopoldo:
Sinodal/CEBI, 2007, p. 23
6. Manual de boas práticas hermenêuticas
A pergunta de Jesus, lida no primeiro capítulo, continua ressoando: como
lês? Observamos, até o momento, que existem variadas formas de se
enxergar e compreender o texto, que se alteram a partir dos olhares com que
partimos ao texto e pelos métodos e pressupostos que nele aplicamos. Em
suma, até o instante, nos limitamos a discutir pressupostos teóricos. Disso
trataria a hermenêutica. E, neste aspecto, podemos recapitular alguns dos
tópicos já dispostos: a essência interpretativa do ser humano; o processo
comunicativo; o alcance hermenêutico de alguns métodos exegéticos; as
distanciações do texto até nós; a “natureza” e materialidade dos textos etc.
Cada um desses aspectos nos legou obrigações por coerência, para com
nossa interpretação bíblica. Lembremos, por exemplo, a questão do uso ou
interpretação de textos, quando definimos que nossa meta traria uma
interpretação, por respeitar aos limites e intenções do texto, não do autor ou
leitor. Assim, cabe sugerirmos um método interpretativo que tente pautar-se
pelos limites que nos impusemos. Sabemos que a hermenêutica não consiste
de métodos, mas da teoria e pressupostos interpretativos, entretanto, seria
irresponsável sugerir perguntas à prática pastoral, sem sombra das respostas,
ainda que levem a mais dúvidas. Assim, explicaremos resumidamente uma
coleção de métodos, em oito passos: (1) leitura do texto; (2) delimitação do
texto; (3) estrutura do texto; (4) coesão do texto; (5) estilo do texto; (6)
estudo semântico do texto; (7) contexto do texto; e, separadamente, (8)
atualização.
Nossos passos são aproximações do texto que ajudam, do estudo
sistemático, ler os textos com uma atenção que se perde pela familiaridade
que temos com os escritos bíblicos. Assim, nos levam para uma sensação de
“estranhamento”, esta útil aos estudos e verificação dos significados do texto.
O resultado final, dessa compilação de passos, deve ser uma lista de
aprendizados sobre o texto, que podem culminar em um comentário do texto,
para servir à atualização para a prática pastoral. Esse último passo, a
atualização, também recebe, por vezes, o nome hermenêutica e age
particularmente em favor do tópico que já discutimos, a fusão de horizontes,
do horizonte do texto e de nossa comunidade de fé.

1: Leitura do texto
Um primeiro tópico deveria ser a escolha do texto. Como escolher um
texto a ser pregado? Aqui, não podemos descartar toda a subjetividade da
escolha. Perguntas da comunidade, interesses por pontos específicos de
leituras devocionais poderiam orientar nossa decisão, assim como um evento
social ou midiático que relembram-nos de leituras já feitas. A leitura do
Lecionário Comum, também pode ajudar-nos a definir um texto. De qualquer
forma, as decisões pelas quais optamos pelo texto, não são tão importantes
para nossa matéria quanto a forma que os interpretaremos, por isso,
passaremos direto à leitura do texto, com uma pequena ressalva: faça, antes
do processo interpretativo e da leitura do texto, uma análise do motivo pelo
qual escolheu tal texto. Ela será valiosa à prática pastoral, mesmo não sendo
abordada aqui.

A interpretação começa na leitura do texto. Entretanto, aqui reluz um


assunto já debatido: qual é nossa intenção com o texto? Se fosse seu uso, sua
leitura deveria ser direcionada por nossos interesses. Assumiríamos leituras já
feitas e, nesse caso, partiríamos para o texto procurando uma mensagem
específica, utilizando comentários, talvez. Nosso objetivo, porém é a
interpretação. Assim, devemos nos abster de procurar interpretações já
feitas e comentários, mesmo das notas de rodapé de nossas Bíblias. Ao
buscarmos a interpretação de um texto devemos aproximar-nos dele abertos à
sua intenção. Isso significa, também, que o primeiro passo exegético deveria
ser sua tradução. Já discutimos que a tradução é uma forma de interpretação,
que opta por sentidos do texto de acordo com o contexto e pressupostos do
tradutor. No caso da impossibilidade de tradução, diversas traduções podem
(e devem) ser colocadas lado a lado e comparadas, para melhor avaliar o
texto.
E aqui alertamos para o uso de traduções, não paráfrases de textos
bíblicos. Como exemplo de paráfrases, que são veementemente
desaconselháveis temos a Linguagem de Hoje, a Nova Tradução da
Linguagem de Hoje, a Bíblia Viva, a Bíblia A Mensagem (The Message) etc.
Embora eficazes para comunicar uma mensagem final, a interpretação dos
tradutores do texto, a mudança gramatical faz com que ela não coopere à
interpretação do texto. Como exemplo de traduções aconselháveis temos a
Bíblia de Jerusalém e a Almeida Revista e Atualizada. Outra possibilidade é
o uso de versões interlineares, que colocam abaixo do texto grego, hebraico
ou aramaico a tradução termo-a-termo. No Antigo Testamento, uma edição
interlinear criteriosa é a de Edson de Faria Francisco, da SBB e, no Novo
Testamento, também da SBB, temos a tradução de Scholz e Bratcher. Essas
versões contém, além das traduções interlineares, as traduções de Almeida e
da NTLH. Assim é possível a comparação tanto dos termos originais quanto
das opções tradutivas.

Entretanto, a leitura não pode ser desatenta. Um objetivo dessas leituras é


se apropriar do texto. Após uma leitura e releitura inicial, em diversas
versões, associada à tradução do texto, quando possível, devem ser
observados alguns elementos textuais: (1) personagens; (2) espaço; (3)
tempo; (4) tema. Cada palavra utilizada tem um propósito na composição da
grande tecitura que é um texto, assim, esses elementos devem ser observados
literalmente. Um local chamado “beira do mar” não pode ser considerado
como “praia”, um personagem chamado “Abraão” e “ele”, embora
aparentemente sejam um, deve ser considerado nas duas dimensões do nome,
pois cada designação pode trazer uma mensagem distinta. Pensar no que os
personagens fazem e como fazem é igualmente importante, já que todo texto
narrativo cria-se no decorrer dos movimentos dos personagens. As ações
devem ser, igualmente, marcadas pelas palavras literais e observadas nos
originais sempre que possível. Todos esses dados, assim como os seguintes,
devem ser anotados, pois são valiosos no decorrer do processo interpretativo.

2: Delimitação do texto
O segundo passo, depois da escolha e leitura do texto é conferir sua
delimitação. Nossas Bíblias usualmente já vem com trechos delimitados, que
no mundo evangelical chamamos passagens e no mundo acadêmico
chamamos perícopes. Perícope significa “cortado ao redor”. Isso significa
que interpretamos os textos a partir de suas pequenas unidades. A razão para
as utilizarmos são basicamente três: (1) a dificuldade de se interpretar
profundamente textos longos; (2) a natureza fragmentária dos textos, que
tratam de núcleos de memória acoplados; (3) a falta, em muitos textos
bíblicos, de títulos ou divisões de capítulos, como nos livros modernos. A
delimitação não pode ser feita irresponsavelmente, mas deve seguir as dicas
que o texto nos fornece sobre sua própria unidade, ou seja, a intenção do
texto, lembrando que recortes distintos produzem sentidos distintos ao texto.
A delimitação, assim, nada mais é que o recorte de um sentido completo do
texto, ou seja, precisa ter começo, meio e fim e passar uma mensagem.
Os textos bíblicos nos trazem indícios dessas unidades menores, que
compõe seu todo. Devemos observar onde começa e onde termina cada
texto1. Algumas das indicações de início em narrativas são evidentes e, na
leitura passageira do texto podem ser compreendidas, como mudança de: (1)
tempo, como em Mc 2.1, quando o texto traz a anotação de “dias depois...”;
(2) espaço, como em Mc 2.15, que fala de um novo cenário, a “casa de Levi”;
(3) personagens, como em Mc 7.1, onde são introduzidos na narrativa
“fariseus e escribas vindo de Jerusalém”; (4) tema/argumento, como em 1Co
12.1, que passa a falar dos “dons espirituais”, explicitamente; (5) linguagem,
Mt 7-8, que modifica um discurso à narração.
Sobre as indicações de término, por vezes o texto expõe rupturas, além
das mudanças acima mencionadas: (6) ação terminal, como partida ou
término, como em Mc 8.13 e Mt 9.8, que finalizam um tópico narrativo; (7)
ruptura do diálogo, como em At 8.24; (8) comentário conclusivo, como em Jo
2.24-25; (9) sumário narrativo, como surge em Lc 3.18.
Algumas formas literárias também cooperam na divisão de perícopes,
como nos inícios: “depois destes fatos” (Gn 22.1); “Esta é a história de X”
(Gn 6.9); “Aconteceu a palavra de Deus dizendo” (Ezequiel) etc, e, nos
finais: “E o lugar se chamou X até o dia de hoje”; “por isso existe tal
costume”; “foi para seu próprio país”; “e sabei que eu sou o Senhor vosso
Deus”; “palavra do Senhor”. Com isso temos a perícope delimitada e
podemos pensar no significado.
Um segundo e terceiro passo nesse estágio é a percepção da relação da
unidade delimitada com as unidades posteriores e anteriores, além da relação
com a unidade maior como um todo. A intenção dessa análise é perceber em
qual contexto literário (trataremos posteriormente do contexto histórico)
estamos interpretando nosso texto. Aqui vale atentarmos para o aparecimento
dos personagens, tempo, espaço e tema nas diferentes unidades e vermos
como o texto em questão se relaciona com eles. Se fossemos, por exemplo,
observar a relação do texto da aparição de Deus para Abraão em Mamre e da
promessa de Isaque à Sara em Gn 18, com os textos anteriores e posteriores,
perceberíamos que ele se liga por antítese temática ao capítulo 17, que firma
aliança com Ismael e se liga por personagens ao capítulo 19, da destruição de
Sodoma. Também, num nível maior, perceberíamos que o tema da promessa
de filiação é recorrente na história, assim como as aparições em Mamre, e a
própria presença de Abraão. Estes temas, fazem parte de uma unidade maior,
Gn 12-25. Assim, nossa perícope deveria ser interpretada pensando nesse
contexto literário, de Gn 12-25.

3: Estrutura do texto
Depois de observarmos o começo e fim de nosso texto, temos em mão
uma unidade completa. Tal unidade comporta-se logicamente, através dos
temas, personagens, espaço, tempo e, também, pelos artefatos linguísticos.
Nos manuscritos originais, geralmente não existem divisões entre frases,
vírgulas, títulos etc. Assim, para um maior entendimento do texto, devemos
subdividi-lo em parágrafos, tentando decifrar a lógica de sua composição.
Alguns pontos podem auxiliar nesse texto, como, por exemplo, o estudo de
termos que se repetem, por exemplo, os termos “melhor” ou “bom” (hebr.
tov) em Ec 7, que funciona como termo estruturante da perícope, a dividindo
em frases menores. Também, podemos observar a divisão lógica temática de
alguns textos como, por exemplo, a divisão entre “a natureza como criação de
Deus” e a “Torá como criação de Deus” em Sl 19. A composição de uma
forma gráfica para o texto pode cooperar na sua compreensão. Leia o texto de
1Sm 9.15-25 e, depois, confira um exemplo de estruturação:
Encontro de Samuel com Saul (1Sm 9.15-25)
1. Nó: Revelação de YHWH a Samuel (15-17)
2. Ação transformadora: Saul encontra Samuel (18-21)
3.Desenlace: Saul ganha lugar de honra (22-24a)
4.Situação final: Saul e Samuel comem (24b-25)
Essa divisão segue o enredo do texto, percebido em um esquema
narrativo quinário, isto é, percebe o movimento dos personagens e sua
relação de causalidade, com os momentos: situação inicial (S.I.), nó (N.),
ação transformadora (A.T.), desenlace (D.) e situação final (S.F.)2. Esse texto
é interessante como exemplo, pois é uma narrativa compósita, isto é, foi
formada a partir de diversos textos menores e compilada de forma mais
conservadora, sem tantos ajustes editoriais. Assim, ela tem ao menos quatro
enredos:
I. S.I.: “sistema tribal” corrupto (1Sm 8.1-3)
II. N.: necessidade de um rei (1Sm 8.4–22)
1. Os anciãos pedem um rei (1Sm 8.4-5)
2. Primeira reação ao pedido de um rei (1Sm 8.6-9)å
3. Exposição dos direitos do rei (1Sm 8.10-18)
4. Reação aos direitos do rei (1Sm 8.19-20)
5. Segunda reação: povo às tendas (1Sm 8.21-22)
III. A.T.: YHWH escolhe líder (1Sm 9.1-10.16)
1. Jornada pelas jumentas (9.1-5)
a) S.I.: apresentação de Saul (9.1-2)
b) Nó: extravio das jumentas (9.3)
c) A.T.: busca das jumentas (9.4-5)
i. Jornada ao Homem de Deus: presente (9.6-10)
a) S.I.: Notificação do Homem de Deus (9.6)
b) N.: presente para o Homem de Deus (9.7)
c) A.T.: jovem tem prata (9.8)
** Nota explicativa: Videntes em Israel (9.9)
d) S.F.: Início da Jornada ao Homem de Deus (9.10a)
ii. Jornada ao Vidente: (9.10b-14)
a) Procura pelo vidente na cidade (9.10b-14a)
b) Adendo vinculante entre as duas narrativas (9.14b)
iii. Encontro de Samuel com Saul (9.15-25)
a) N.: Revelação de Deus a Samuel (v.15-16)
b) A.T.: Saul encontra Samuel (v. 18-21)
c) D.: Saul ganha lugar de honra (v.22-24a)
d) S.F.: Saul comeu com Samuel (v.24b-25)
iv. Samuel unge Saul (9.15-25)
a) Unção privativa de Saul (9.26-10.8)
b) Sinais para confirmação (10.9-12)
d) D.: Saul volta ao lugar alto e fala com o tio (10.13-15)
e) S.F.: jumentas são ditas encontradas (10.16)
IV. D.: um rei é escolhido (1Sm 10.17-24)
1. Retorno de Samuel: volta e discurso (1Sm 10.17-19)
2. Sorteio para o rei: Saul (1Sm 10.20-24)
V. S.F.: percepções sobre o rei (1Sm 10.25-27)
Geralmente, em textos poéticos trataremos com repetições e
paralelismos, característica de textos hebraicos. Tais repetições fornecem
indícios de onde se iniciam novas estrofes, que são unidades menores. Em
textos narrativos, trataremos com ações de personagens, diálogos e temas.
Todos esses aspectos nos auxiliam na compreensão da estrutura do texto, que
formam-se como uma espécie de “esqueleto” daquela composição literária.
Os comentários exegéticos e boa parte das pregações se organizam a partir da
estrutura do texto, por ela trazer uma compreensão lógica da composição
textual, que nos ajuda didaticamente em sua explicação.
4: Coesão do texto
A coesão do texto existe para verificar se a unidade delimitada é uma
unidade com um fio condutor. Ela reavalia a delimitação do texto e a
estrutura. Enquanto na estruturação nos dividimos o texto em partes menores
observando a lógica de sua composição, na coesão nos veremos se há algo
que perpassa toda a perícope mantendo unidade. Tal fio condutor por vezes
será temático, como a expressão de uma teologia, outras vezes se manifestará
em repetições de expressões pertencentes a um mesmo campo de sentido (ou
semântico) e, por outras, estará ligada pelo protagonismo de um personagem.
Alguns critérios são comumente usados contra a unidade dos textos: (1)
presença de duplicações ou repetições, que podem ser justificadas ou não
pelo texto; (2) presenças de tensões não explicáveis no texto; (3) diversos
campos semânticos não relacionados; (4) mudança do fundo histórico no qual
se trabalha o texto; (5) mudança linguística dos termos do texto etc. Por
vezes, os passos exegéticos nos levam a novas avaliações do texto e de
passos precedentes. No caso da descoberta da não unidade da perícope e na
falta de um fio condutor, delimitação e estruturação devem ser refeitas.

5: Estilo do texto
Nessa etapa, começaremos a procurar as maneiras próprias do texto se
expressar. A análise do estilo do texto passa por dois momentos: (1) análise
do estilo literário; e (2) análise do gênero literário. Na primeira etapa,
observamos as características próprias da escrita da unidade literária que
estamos trabalhando. No caso de Gn 18, que utilizamos por exemplo,
analisaríamos como o texto desenvolve os temas, como utiliza as palavras,
qual seu uso de verbos de ação, se ele tem preferência por certos lugares para
desempenhar determinadas ações etc. Tudo isso faríamos dentro da unidade
de Gn 12-25. Podemos enxergar, utilizando outro exemplo, diferenças
estilísticas em cada um dos evangelhos sinóticos, que revelam acentos e
terminologias diferentes para cada uma das narrativas.
A segunda etapa depende de um arcabouço de conhecimento que
provavelmente fuja da prática comum3. Ela pretende analisar o gênero
literário e enxergar suas particularidades que influem no texto analisado. Um
gênero literário nada mais é que uma “abstração linguística que permite
associar na mesma categoria os textos que possuem forma literária
semelhante”4. Essa análise do gênero ajuda-nos a enxergar convergências e
divergências dos textos. Se observássemos, por exemplo, o gênero literário
carta, saberíamos que contém, usualmente: (1) remetente; (2) destinatário; (3)
ações de graças; (4) corpo da carta; (5) bênção. Esse enlistamento faz-nos
perceber a intenção da carta aos Gálatas que, propositadamente, omite as
ações de graças. Também perceberíamos as várias despedidas na carta aos
Romanos (cf. Rm 15.30-33; 16.20, 24, 25-27), que podem significar mais de
uma carta compilada e não uma única carta, o que altera substancialmente o
sentido da última etapa. Com estilo e gênero definidos, passamos ao
conteúdo.

6: Estudo semântico do texto


Na leitura repetida do texto, assim como o passar dos passos exegéticos,
devem ter levantado uma série de questões no texto. Frases centrais no texto,
assim como termos polêmicos e duvidosos devem ter sido percebidos. Aqui,
o estudo semântico nos fornece a maior parte dos sentidos do texto. Ele
consiste na observação do uso, ou seja, quantas vezes e de qual forma cada
um dos termos ou expressões selecionadas aparecem na perícope, na unidade
maior selecionada e na Bíblia. Se utilizássemos o exemplo de Gn 18, que
delimitamos entre os versículos 1 até 15, perceberíamos que nosso estudo
semântico tem três passos, em cada uma das palavras: (1) analisar quantas
vezes e como cada termo selecionado aparece na perícope (Gn 18.1-15); (2)
analisar quantas vezes e como cada termo selecionado na unidade maior (Gn
12-25); (3) analisar quantas vezes e de qual forma cada termo aparece na
Bíblia (Gn-Ap). Por ser um termo hebraico, ele não aparecerá no Novo
Testamento, mas, se virmos a tradução da LXX, enxergaremos suas ligações
com o NT.
Esse esforço necessita de auxílios, como de uma concordância grega e
hebraica e dicionários léxicos e teológicos do Antigo e Novo Testamento.
Esse trabalho pode ser auxiliado pelas já citadas Bíblias Interlineares de
Antigo e Novo Testamento e também por softwares, que tem sido muito
utilizados na academia, como o Bible Works e o Logos Bible Software.
Entretanto, ressaltamos que a interpretação de dicionários é fixa e morta,
enquanto o texto e a língua são fluidos e vivos, assim, o estudo das formas de
uso dos termos deve estar acima da simples busca de significados e
sinônimos nesses dicionários.
Esse estudo nos fará notar que, muitas vezes, palavras semelhantes foram
traduzidas de formas distintas nos textos bíblicos, mas que revelam formas
comuns de uso, entretanto, por vezes, as palavras carregam dois significados
não associáveis. É o caso da palavra hebraica dabar, que pode ser traduzida
como coisa (cf. Gn 18.14), mas também pode significar palavra (cf. Gn
11.1). Aqui caberia uma observação se as duas participam de um ambiente
significativo único ou se simplesmente refletem coisas distintas com uma
mesma descrição simbólica linguística. No caso, poderíamos talvez arguir
que dabar caracterize-se como ação de Deus, que é ato/ação/palavra e
compreenderíamos aqui que não haviam abstrações do tipo no ambiente da
língua hebraica, tal qual temos no ambiente grego, com a palavra logos (cf.
Jo 1).
De igual modo, os termos utilizados nos ajudam na localização do texto
no tempo/espaço. O uso das palavras geralmente denota sua época, assim
como o local geográfico de onde ela parte. Se tivermos um texto com muitas
metáforas pastoris ou do campo, como, por exemplo, o livro de Cantares,
provavelmente saberemos que este texto trata de um ambiente
pastoril/campestre. Livros que tratam de ambientes citadinos e de cortes
monárquicas, provavelmente estão no ambiente urbano. Semelhantemente, se
o termo de um texto do pentateuco surge somente em textos que sabemos ser
de tempos posteriores, como, por exemplo, 1 e 2 Crônicas, Salmos, Daniel
etc, saberemos que se trata de um texto tardio, já dos tempos posteriores ao
exílio judaíta. Se fala de tensões entre dominações, campo e filosofia,
provavelmente está no período helenístico etc. Esses auxílios funcionam mais
efetivamente quando aplicados ao Antigo Testamento, cujas memórias
perpassam séculos.
Um segundo passo do estudo semântico, após a observação dos termos
separados, é como eles funcionam juntamente. Muitos verbos de ação dão
dinâmica à narração, enquanto termos antitéticos (luz/trevas; água/terra;
correr/parar) demonstram tensões no texto, que podem auxiliar a
compreensão do significado. É nesse ponto de nossa pesquisa, após lermos o
texto, delimitá-lo, estruturá-lo, observarmos sua coesão e estudarmos os
termos, que começamos a compreender os significados. Pode ocorrer que um
campo semântico se destaque totalmente dos outros encontrados no texto, que
pode ser indício de uma adição posterior. Embora seja assunto importante,
não o trataremos aqui, por ser avesso aos objetivos da prática pastoral. De
qualquer forma, notamos que no estudo semântico atingimos o ápice do
entendimento do texto.

7: Contexto do texto
Quanto mais sabemos do contexto histórico do texto, mais saberemos de
sua significação5. E tal contexto pode ser provido pelo estudo semântico
aliado aos estudos prévios que já foram feitos no mundo acadêmico6. É
importante que esse estudo do contexto seja feito após o estudo semântico e,
depois, que seja revisto e reavaliado o estudo semântico. Isso porque, às
vezes, a descrição do contexto antes do estudo do texto, leva a analogias
anacrônicas dos textos.
Dito isso, dizemos que no contexto temos mais dois passos, que
poderíamos chamar de análise macro-estrutural e micro-estrutural. Na análise
macro-estrutural nosso esforço é descobrir as correntes de pensamento, sejam
religiosas, políticas, econômicas e/ou sociais que apresentam-se no texto. Isso
nos ajuda a enxergar o ambiente cultural no qual o texto foi elaborado e nos
ajuda também a enxergar reflexos desse contexto cultural no nosso texto. O
segundo passo é uma análise micro-estrutural, que tenta exergar práticas
cotidianas daquelas que experimentaram os eventos descritos no texto. Isso
nos ajuda a ouvir a voz, em expectativas, e esperanças, ilusões e desilusões
daqueles que viveram o evento que gerou o texto.
A nível de exemplo, dois bons estudos que relacionam o texto ao
contexto e cotidiano se encontram no livro Experiência Religiosa e Crítica
Social no Cristianismo Primitivo, de Paulo Augusto de Souza Nogueira,
especialmente no capítulo 4 e, também, no livro Dimensões sociais da Fé do
Antigo Israel, organizado por José Ademar Kaefer e Haidi Jarschel,
especialmente no capítulo entitulado “‘Há uma doença debaixo do sol’. Uma
introdução ao livro de Coélet”, que trata do contexto de Eclesiastes. Os dois
reconstroem, a partir do texto bíblico, um panorama a partir do estudo
semântico e sociológico, que ajudam a esclarecer a mensagem de textos
bíblicos.

8: Trazendo ao presente, a atualização


O último passo de nosso método está separado do processo. Enquanto até
agora estivemos analisando o texto e interpretando-o, nesse passo fazemos
uma aplicação do estudado ao mundo moderno, em especial, àqueles que nos
ouvem em nossas comunidades de fé. É importante ressaltar que existem
diversas formas de atualização que tratamos com mais atenção em matérias
como homilética/retórica. Assim, aqui cabe apenas ressaltar algumas boas
práticas para a interpretação. E cabe aqui refletirmos o caminho já trilhado.
Até o momento, observamos quem são os personagens e temas, qual é o local
e o tempo de nosso texto. Também, conseguimos distinguir uma unidade de
texto, que tem uma estrutura lógica e é coesa em si. Observamos também
como se dá o significado do texto, pelo estudo dos termos e como se localiza
na história e no espaço. Com isso, devemos saber responder, sobre o texto:
(1) o que ele quis dizer?; (2) quais suas ênfases?: (3) qual sua vivacidade?;
(4) quais imagens mentais se evocam?7. Nisso percebemos que captamos
parte do sentido do texto e sua mensagem, em seu contexto/tempo
específicos.
Nossa comunidade contemporânea também tem um contexto específico e
suas próprias dificuldades. Muitas vezes, tais dificuldades se assemelham às
dificuldades expressas e resolvidas pelos textos bíblicos, muitas vezes são
distintas. Entretanto, existem estruturas, que percorrem a história, que se
assemelham e nos deixam traçar analogias. Essas analogias são uma forma de
se atualizar a mensagem. Ao se enxergar um problema e uma resolução no
contexto bíblico e observar um problema no contexto de minha comunidade,
posso perceber sugestões, desafios ou envios à minha comunidade, a partir
das similaridades e diferenças. Isso seria atualizar o texto e passar uma
mensagem. A mensagem, entretanto, caminhando pela interpretação bíblica,
não ficará abstrata, etérea ou transcendental, mas terá aspectos práticos
visíveis, chamando-nos para ações práticas no mundo. Isso não é demérito,
mas mérito dos textos bíblicos. Nos tempos bíblicos, as pessoas sofriam de
problemas reais que precisavam de soluções reais. Assim, uma pastoral
consciente não levará sua igreja à alienação, mas até uma prática
contextualizada e coerente com o mundo em que se vive, não somente na
esfera religiosa, mas também na esfera social, política, filosófica, relacional
etc.

1 SILVA, Metodologia de Exegese Bíblica, p.70-73; SIMIAN-YOFRE et aliii,


Metodologia do Antigo Testamento, pp. 78-80
2 Excelentes introduções sobre textos narrativos: MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN,
Yvan. Para ler as narrativas Bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola,
2009; ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007
3 Cf. BERGER, As formas literárias do Novo Testamento; SILVA, Metodologia de
Exegese Bíblica, pp. 187-229; WEGNER, Exegese do Novo Testamento, p.165-229;
SCHNELLE, Introdução à Exegese, p.85-108; SIMIAN-YOFRE et all, Metodologia do
Antigo Testamento, p. 93-108
4 SIMIAN-YOFRE et aliii, Metodologia do Antigo Testamento, p. 101
5 Há discussão na academia sobre a possibilidade de se datar com precisão os textos a
partir apenas das estruturas linguísticas, pela nossa falta de conhecimento sobre o
desenvolvimento dos idiomas bíblicos. Dito isso, é bom não assentir com uma datação
do texto simplesmente pelas características linguísticas ou mesmo por
interpretações/reconstruções históricas e arqueológicas. Devemos saber que essas
proposições são teses e, portanto, são discutíveis e devem ser lidas criticamente.
6 Aqui, podemos citar alguns textos introdutórios que nos ajudam nesse aspecto. Dois já
citados no decorrer do curso, que são dignos de confiança, são: Introdução ao Novo
Testamento, de Helmut Koester; e Introdução ao Antigo Testamento, de Erich Zenger et
alii. Embora não cooperem à datação particular de textos esses compêndios fornecem
bibliografia para ser pesquisada, em artigos e livros específicos.
7 Neste quarto tópico devemos lembrar que as imagens evocadas pelo texto não são nossas
imagens contemporâneas. Assim, deveríamos observar estudos arqueológicos
iconográficos. Um texto excelente a ser observado é o Simbolismo do corpo na Bíblia,
de Silvia Schroer e Thomas Staubli, editado pela Paulinas (2003).
Perspectivas
O que, afinal de contas, é necessário para ler a Bíblia? Defendemos, nos
seis capítulos que compuseram esse livro, que para ler os textos bíblicos
devemos nos ver entre dois pólos históricos distintos: primeiro, no momento
histórico no qual os eventos que geraram os textos bíblicos aconteceram e,
segundo, no momento histórico no qual lemos os textos. Entretanto, esse
caminho não é tão simples quanto parece nessa breve descrição. Para superar
as distâncias culturais, idiomáticas, imaginativas, materiais etc, temos que
nos exercitar na compreensão e familiarização dos momentos que
culminaram na produção desses textos que hoje nos são caros.
Assim, os primeiros dois capítulos forneceram alguns fundamentos sobre
os quais a compreensão de textos se dão. No primeiro, através da natureza
humana de interpretar e da mecânica da comunicação, argumentamos que o
mundo, por ser percebido e mediado pela linguagem, i.e., como signos,
precisa ser interpretado para ser contado ou narrado. As ciências linguísticas,
no caso, nos ajudaram a compreender a natureza polissêmica dos textos e os
desvios de significado, ruídos, que podem ser vistos como ônus a serem
vencidos na interpretação ou como o potencial criativo dos textos.
O segundo capítulo, por sua vez, trabalhou sobre algumas empreitadas
hermenêuticas no decorrer da história. É notável que a interpretação bíblica
nasce junto aos textos bíblicos, tanto na leitura dos eventos da vida, quando
na releitura de textos mais antigos. Assim, os escritores bíblicos foram os
primeiros intérpretes. A hermenêutica científica, por sua vez, nasceu de uma
questão fundamental: o que se deve interpretar? Três vertentes nasceram da
questão, uma respondendo que é o autor e sua psicologia, outra respondendo
que é o leitor e sua historicidade e outra respondendo que é o texto em sua
estrutura de significação. Defendemos, nesse ínterim, que cada proposta tem
seu lugar, pois responde a questões específicas e tem suas limitações, que
devem ser ressaltadas. No caso dos textos bíblicos, as três podem interagir:
procurar a intenção do autor seria tentar extrair o máximo possível das fontes
textuais, por um aparato filológico; a procura da intenção do leitor seria a
tentativa de se perceber a recepção desse texto no decorrer da história e ver
como ele ganhou sentido com interpretações localizadas cultural e
geograficamente; e, por fim, a procura da intenção do texto procuraria as
estruturas de significação do texto, percebendo a riqueza literária dos textos.
Muitas vezes, a militância ideológica/metodológica impede de ver o ganho da
leitura conjunta de métodos e perspectivas.
A segunda sessão do texto foi composta em três capítulos, que trataram
sobre particularidades da interpretação bíblica. No terceiro capítulo, vimos
que a criação do texto se dá por uma série de distanciamentos entre o evento
histórico, até chegar ao texto: a primeira é a transformação do evento em fala;
a segunda da fala em texto oral/escrito; a terceira está na (re)leitura do texto.
Assim, argumentamos que a escolha de palavras para descrever o evento,
reduz a potencialidade de significados do evento, assim como a escolha da
forma literária reduz a potencialidade de significados da fala e assim
sucessivamente (Cf. fig. 1). Embora mantenha polissemia, característica da
linguagem, durante esse processo, a mensagem bíblica é continuamente
recriada, pelas novas configurações literárias do texto.
Uma ressalva que fizemos no quarto capítulo é que textos em geral e o
texto bíblico em particular, não possui apenas uma face intelectual, mas
também uma faceta indissociável que é sua materialidade, esta também
prenhe de sentidos. Por isso, fizemos um breve passeio pela história da
materialidade dos textos, demonstrando que cada fase não apenas respondeu
a contingências específicas histórico-sociais, mas também criou novas
práticas interpretativas. Essa característica, geralmente esquecida nos
manuais de hermenêutica, também enxerga o texto sagrado como objeto de
culto, uma característica que é muito presente nos próprios tempos bíblicos1.
Nesse aspecto, é interessante perceber que hoje vivemos num mundo de
“profanações”, pois o texto bíblico agora é lido num objeto que congrega a
outros aplicativos “seculares”, o que tem causado reações por vezes
extremadas de lideranças religiosas. O BibleApp está ao lado do Snapchat,
Facebook, Twitter, Instagram, Tinder etc. Da mesma forma, sua leitura é via
hiperlink, assim não se tem mais contato com o restante dos textos em sua
leitura, é uma leitura fragmentária e seletiva e, de igual modo, sua presença
simbólica nas reuniões sagradas já não é mais proeminente. Tudo isso exige
um novo posicionamento frente ao texto. O que fizemos, portanto, foi
ressaltar exemplos históricos de transições da mídia literária. Entretanto,
vimos que o retrato religioso não foi de inovação, pois a canonização nunca é
apenas do conteúdo. Enquanto os judeus ainda mantém os rolos da Torá, é
possível que cristãos mantenham-se ligados a Bíblia no formato de códice,
que foi o formato predominante na história.
No quinto capítulo, lidamos com algumas particularidades do texto
bíblico e, nisso, argumentamos que alguns conceitos aplicados à Bíblia são
anacrônicos. Primeiro, a Bíblia não é um livro no sentido moderno da
palavra, mas era um objeto de culto, de acesso difícil pelo preço e pela pouca
alfabetização do mundo antigo, e pressupunha um ambiente de proclamação.
Segundo, a Bíblia não é História, no sentido moderno e, talvez, não possa ser
pensada como teologia, mas sim como um aglomerado de experiências
histórico-culturais que foi guardada durante muito tempo e recontada a partir
de necessidades específicas. E, terceiro, a Bíblia não nasceu como Bíblia,
mas foi composta em forma de textos avulsos que, num processo de exclusão,
transformou-se em um cânon, uma seleção de textos para uso litúrgico. Isso
não quer dizer que outros textos não eram lidos no decorrer da história cristã.
Há uma posição ingênua de líderes religiosos e mesmo de teólogos, que
dizem que os textos da Bíblia são a totalidade dos textos litúrgicos antigos.
Se os próprios textos bíblicos citam outros textos (p.ex. Js 10.13; 1Rs 11.41;
15.31; 22.46; 2Tm 3.16; 2Pd 3.15; Jd 14), é extremamente simplificador
pensar que os judeus e cristãos liam apenas os textos canonizados. Para
começar o cânon é um evento local, já vimos que a tradição ortodoxa tem os
livros de 1 (ou 3) Esdras, 3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão, que
figuram na Vulgata, enquanto a tradição etíope traz os livros de Enoque. A
própria existência do Talmude e Midrash na literatura judaica e dos
Apócrifos do Antigo e Novo Testamento disputam essa ideia. Assim, para
uma percepção completa da tradição, estes textos devem ser visto sem
preconceitos, mas com os mesmos cuidados que os textos canônicos.
No último capítulo, fizemos uma brevíssima exposição de um método
para interpretação bíblica, em oito passos: (1) leitura; (2) delimitação; (3)
estruturação; (4) coesão; (5) estilo; (6) semântica; (7) contexto; (8)
atualização. Tais passos querem impedir que aspectos centrais do texto sejam
esquecidos na interpretação. Porém, procuramos não enfatizar aspectos
teólogicos. Deixamos ao leitor a tarefa de aplicar seus próprios pressupostos
e vivências à leitura. Nosso propósito, afinal, é incentivar e suportar a leitura
bíblica em sua forma mais plural. Por esse mesmo motivo, esse texto só se
encerrará na leitura bíblica, seja pessoal ou coletiva. Portanto, depois dessa
empreitada só podemos desejar uma boa leitura bíblica.
1 Cf. nosso estudo sobre a Torá como objeto de culto no período pós-exílico, em
CARDOSO, A Imagem se fez livro
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