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Estudo de

Caso

Pentateuco (Torá)

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


Unicesumar
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estudo de
caso

Culto é uma das principais atividades na vida de uma igreja. A escolha do modelo de culto
e do estilo de liturgia é uma das questões práticas cotidianas do ministério. Neste Estudo de
Caso refletiremos sobre um aspecto pouco levado em consideração na preparação do culto:
a sacralidade do tempo e do espaço litúrgicos a partir do livro do Deuteronômio. Os conceitos
de tempo e espaço sagrados podem ser muito úteis para uma visão renovada da liturgia cristã
e para uma prática cúltica mais relevante e consistente com vistas à edificação da comunida-
de para a espiritualidade e para a missão. Vamos lá, mãos à obra e pensemos sobre este tema.
(1) Tempo e espaço são categorias que devem ser estudadas em conjunto e pertencem
ao campo da cosmovisão cultural, pois exercem função configuradora dos discursos sobre
o mundo (natural, social e pessoal). Tempo e espaço são categorias do sagrado no discurso
deuteronômico e funcionam como delimitadores do mesmo, em uma forma contrastan-
te com as principais alternativas então existentes em sua época. O sagrado é definido pela
presença e energia vivificadoras de Javé, Deus de Israel. O profano é definido pela presença
da energia dos deuses do caos e da morte. No mundo divino, o profano está completamen-
te paralisado, interditado sob a soberania de Javé; dualidade não dualista. No mundo não
divino, entretanto, espelho microcósmico do divino, sagrado e profano se opõem e geram
permanente conflitividade entre vida e morte, demandando dos seres não divinos uma per-
manente decisão no tocante a que Deus seguir e servir. Decorre disto que a transcendência
divina seja articulada como alteridade e futuridade, e que o sagrado seja, simultaneamen-
te, fascinante e terrível.
(2) Tempo e espaço estão sob a soberania de Javé, o originador e sustentador de todas
as coisas. Ao reconhecer a soberania de Javé sobre o tempo e o espaço, o discurso deutero-
nômico apresenta a sua versão da universalidade do senhorio divino, em oposição à versão
predominante no Antigo Oriente, da polemicidade entre os deuses pelo controle e sobera-
nia das nações no tempo e no espaço. Não é uma universalidade de cunho monoteísta, mas
uma que afirma a irredutível superioridade de Javé sobre os demais deuses, retirados, assim,
do sagrado e relegados ao âmbito do profano: promotores do caos e da morte. Porque so-
berano sobre o tempo-espaço, Javé é o deus da futuridade1 e da promessa, presençausente
no mundo não divino. A face de Javé, portanto, é a face da alteridade — que se desdobra
em favor: liberdade e bênção para toda a sua criação.
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Não é à toa que a textualização da eleição divina do lugar seja feita com o verbo no incompleto, bem como a sua
presença no tempo-espaço litúrgico seja textualizada com o auxílio do nome — também textualizado no incompleto.
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A maneira como Javé exerce sua soberania é, também, oposta à dos deuses vétero-o-
rientais. Javé é soberano não porque é conquistador dos povos, mas porque é libertador e
abençoador. Soberano que elege seu povo, não de forma excludente, mas de forma a ins-
taurar — no tempo e espaço — a sua aliança de vida, em contraste com a aliança de morte
estabelecida nos tratados de vassalagem. Libertação e bênção são as características deter-
minantes da atividade divina, direcionadas à criação, defesa e preservação da vida de todos
os seres. Focalizadas no povo de Deus, libertação e bênção indicam a conjunção da natu-
reza e da história em um mesmo âmbito da sacralidade temporal-espacial. A bênção é a
energia da vida divina brotando da terra e se difundindo entre a sociedade. A libertação é a
energia da vida divina indo de encontro aos obstáculos que se interpõem contra a bênção
e sua difusão. Libertação e bênção são os eixos qualificantes do tempo e espaço sagrados
— a sacralidade delas deriva, não de características inerentes aos seres não-divinos.
(3) Tempo e espaço sagrados são também delimitados pela liturgicidade e pela cotidiani-
dade. O tempo-espaço cotidiano é marcado pela ambiguidade da caminhada e obstaculização
da bênção divina por meio da atividade das pessoas com a natureza. A bênção de Deus
caminha livremente pelo tempo-espaço cotidiano quando não se interpõem às barreiras
e fronteiras que segmentam irremediavelmente a sociedade de forma injusta, opressora e
excludente. Como a experiência humana na sociedade e natureza mostram, porém, esse
caminhar totalmente livre da bênção divina no espaço cotidiano é presente enquanto pro-
messa e possibilidade, mas não como realidade efetiva — obstaculizado, seja por desgraças
no campo da natureza, seja pelo mal praticado pelos seres humanos uns contra os outros.
Os obstáculos à bênção transformam a comunhão dos eleitos de Deus em uma sociedade
dividida, fragmentada — a serviço de e sob a energização dos múltiplos e igualmente frag-
mentados e frágeis deuses profanos. Quando a ambiguidade caótica e fragmentadora do
profano domina o tempo-espaço do cotidiano, torna impuro o tempo-espaço litúrgico e
demanda sua purificação por Javé.
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estudo de
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O tempo-espaço cotidiano, porém, é vivido sob a égide da promessa e não da desgraça,


uma vez que o soberano Deus é também libertador e rompe as barreiras e fronteiras impostas
pelo caos e morte dos deuses profanos e seus servidores. Daí a necessidade do tempo-espa-
ço litúrgico qualificar decisivamente o tempo-espaço cotidiano do povo de Deus. A condição
fundamental para isso é que o tempo-espaço litúrgico sagrado seja verdadeiramente reconhe-
cido, não confundido com o espaço litúrgico profano do sincretismo e da idolatria. Somente,
portanto, no lugar escolhido pelo próprio Javé é que se constitui o espaço litúrgico sagrado,
limiar entre o mundo não divino e o mundo divino. No tempo-espaço litúrgico sagrado são
interditados não só os seres e atos profanos, mas também seres e atos sagrados-cotidianos
que possam funcionar como limiares do profano (seres impuros, injustiça etc.).
Consequentemente, a liturgia realizada no tempo-espaço sagrado litúrgico deve ser
completamente fiel e agradável ao soberano Javé. Alegria e solidariedade são as marcas
características da adoração agradável a Javé. Alegria fruto da gratidão pela libertação no
passado mítico e histórico e pela bênção desde a criação até o fruto do campo a cada colhei-
ta. Solidariedade fruto da participação no agir libertador e abençoador de Javé, favorecendo
as pessoas socialmente dependentes. A energia libertadora e abençoadora de Javé flui do
espaço sagrado litúrgico (limiar) para o cotidiano. A libertação e a bênção alegre e solida-
riamente rememoradas, celebradas e comemoradas no tempo-espaço sagrado litúrgico,
qualificam a atividade humana no tempo-espaço sagrado cotidiano, e fundamentam assim
a normatização das relações em sociedade — o direito sagrado que corresponde à justiça de
Javé — e que abre as fronteiras do tempo-espaço sagrado cotidiano para todas as pessoas
que se aproximam do povo eleito e se dispõem a viver segundo as suas normas.
Decorrente desta característica, um limiar secundário do mundo divino no tempo-es-
paço cotidiano é o tempo-espaço do tribunal — nos portões — onde o povo eleito busca
restaurar a comunhão quebrada pela interposição do profano no tempo-espaço cotidiano.
Não sendo, porém, um tempo-espaço litúrgico, o tribunal no portão também possui a am-
biguidade do espaço cotidiano, pelo que necessita de ser qualificado e suplementado pelo
tempo-espaço litúrgico, onde se resolvem as questões insolúveis sem a intervenção divina.
Especialmente interditadas no tempo-espaço cotidiano são as tentativas de se renunciar à
soberania de Javé e formular aliança com deuses profanos. Somente a morte da pessoa que
produz a inserção do profano no cotidiano é capaz de purificar o tempo-espaço cotidiano
assim invadido.
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Alegria e solidariedade são as características predominantes da alteridade divina nos


seres humanos. Por serem características da alteridade, precisam ser celebradas, recebidas
e aprendidas no tempo-espaço litúrgico, a fim de que possam fincar suas estacas no tem-
po-espaço cotidiano da vida do povo de Deus no mundo não-divino. Alegria (gratidão) e
solidariedade são as faces do tempo-espaço sagrados na vida humana. São elas que permi-
tem ver e conviver com o próximo (humano e não-humano), não como o mesmo ameaçador,
mas como o outro libertador e abençoador debaixo da soberania de Javé. Eis, em síntese, o
discurso deuteronômico, tornar presente-próxima, no tempo-espaço litúrgico-cotidiano de
Judá, mediante fidelidade, gratalegria e solidariedade, a soberania libertadora e abençoado-
ra de Javé — expulsando do tempo-espaço sagrado litúrgico-cotidiano os seres e as forças
da profana morte fragmentadora e caótica.

Fonte: o autor.

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