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Box Romances Inesqueciveis - Cin - Juliana Dantas
Box Romances Inesqueciveis - Cin - Juliana Dantas
Romances Inesquecíveis
Cinzas do Passado
Linha da Vida
Segredos que Ferem
Quem está familiarizado com meus livros sabe que minha escrita
transita entre alguns estilos de romance e já me arrisquei no erótico, na
comédia e no drama.
Eu adoro escrever livros diferentes, porque gosto de ler todos
esses tipos de romances e meu estilo como leitora acaba refletindo quem
eu sou como escritora.
Porém, acho que nos dramas onde segredos são revelados e
reviravoltas intensas acontecem, surpreendendo o leitor, é onde eu me
satisfaço mais como escritora. Simplesmente amo imaginar as reações dos
leitores ao serem surpreendidos!
Neste box eu reúno três dos meus romances cheios de segredos e
também ofereço a vocês três capítulos de um próximo lançamento que
segue o mesmo estilo “O que escolhemos esquecer”.
E se você curte este tipo de história, não deixe de conferir minha
estreia na Harlequin com o romance “No silêncio do Mar”, que já está em
pré-venda na Amazon, tanto o livro físico como o e-book.
Boa leitura!
Juliana Dantas
Cinzas do Passado
Linha da Vida
Ainda muito jovens, Thomas e Liz se conheceram e viveram uma
paixão intensa que não acabou nada bem.
Oito anos depois, eles se encontram de novo, nos corredores do
Chicago Mercy, onde agora o sexy Dr. Thomas Hardy será chefe da recém
formada Dra. Liz Spencer.
O que nenhum dos dois têm ideia é que há muito mais entre eles do
que uma paixão mal resolvida que ainda faz faíscas voarem.
Um segredo muito bem guardado por oito anos está prestes a vir à
tona. Algo que mudará a vida de todos drasticamente.
Às vezes a vida nos brinda com uma segunda chance.
Às vezes esta segunda chance é tudo o que uma vida precisa para não
desaparecer.
Evangeline
***
Matthew
Evangeline
Evangeline
Paro o carro em frente à escola e espero. Não demora muito para que
as crianças comecem a sair. E lá está ela. Os cabelos acobreados se
destacando no meio das outras crianças. Está conversando com uma colega
quando me vê. Aceno. Parece surpresa, então acena de volta, trocando
algumas palavras com a colega antes de vir em minha direção.
– Sr. King! O que está fazendo aqui?
– Me chame de Matthew, Sofia – estendo seu caderno. – Esqueceu no
meu carro.
– Nossa então foi lá que esqueci? Ontem procurei por toda parte!
Muito obrigada!
– Tchau, Sofia. – A amiga que conversava com ela passa por nós
acenando e me olhando curiosamente.
Sofia sorri.
– Melissa me perguntou se você era meu pai!
– Sério? – Sorri, curiosamente achando aquilo agradável.
Sofia era uma criança adorável. Devia ser fácil ser pai dela.
Porém, com certeza, ela já tinha um pai. A colega não o conhecia,
certamente, já que achou que eu poderia ser o pai da menina.
– Não é engraçado? Eu ri da cara dela e perguntei por que você se
parecia com meu pai e ela disse que temos a mesma cor de cabelo!
– É verdade – constato. E me pergunto se tivesse uma filha, se ela se
pareceria com Sofia.
Sofia olha em volta como que procurando alguém.
– Minha mãe já devia ter chegado...
– E eu preciso ir. Só vim trazer o seu caderno.
– Muito obrigada mesmo, Matthew! Minha mãe ficaria uma fera se eu
perdesse todas as lições!
– Ah, já ia me esquecendo. – Eu me viro e pego no carro o livro que
comprei.
– O que é isto? – Pergunta curiosa quando lhe dou o pacote.
– Um presente. Espero que goste de ler.
Ela arregala os olhos surpresa, abrindo o presente.
– Nossa, Harry Potter! Que legal!
– Gostou?
– Eu nunca li, adorei. – Ela sorriu. – Você é muito legal, Matthew!
Eu ri de sua felicidade. Devia ter comprado mais livros se ela ia ficar
tão feliz.
Ela fica pensativa.
– Terei que te dar um presente também!
– Claro que não.
– Eu vou dar sim! Agora você é meu amigo, não é?
Eu sorri.
– Claro. Somos amigos. Tenho que ir – olho em volta, a maioria das
crianças já tinha partido.
– Quer uma carona?
– Não, minha mãe vem me buscar!
– Tudo bem. Tchau, Sofia – me despeço.
– Tchau, Matthew! – Sem aviso ela me abraça rapidamente e fica
vermelha. De repente, ela me lembra alguém conhecido.
Aceno me despedindo e entro no carro. Pelo espelho retrovisor, vejo
um carro se aproximando e Sofia indo naquela direção.
Devia ser a mãe dela.
Me pergunto se veria Sofia novamente.
Provavelmente não.
***
Evangeline
Evangeline
***
– Eu não acredito que não me contou nada! – Janine grita depois que
eu conto que eu e Sebastian marcamos a data do casamento.
– Estou contando agora – falo distraída, meus olhos acompanhando
Sofia, que perambula pelas prateleiras.
Eu não queria mais deixá-la sozinha em casa. Precisava mantê-la sob
minhas vistas. O medo de um reencontro dela com Matthew me aterrorizava.
– Uau, isto é muito sério! Diga-me, vou ser a dama de honra, não é?
– Claro – concordo e Janine começa a dar pulinhos.
– Então temos que começar a preparar tudo! Nossa, tem tanta coisa!
Primeiro temos que escolher o vestido... Vou ligar pra Aria!
Ela continua tagarelando enquanto pega o telefone enquanto eu vou
atrás de Sofia.
Ela está com um exemplar de Orgulho e Preconceito nas mãos.
– O que está fazendo? – Ela me encara meio assustada, como se
tivesse sido flagrada fazendo algo errado.
– Nada... – ela recoloca o livro na estante. – O que vou ficar fazendo a
tarde inteira?
– Pode começar indo para o escritório fazer o dever de casa.
– Mas...
– Sem, mas. Agora!
Ela se afasta arrastando os pés e eu rio.
De repente ela volta.
– É verdade o que a Janine está falando com a Aria no telefone?
– O quê?
– Que você e o Sebastian vão se casar em um mês.
– Sim, é verdade. – Estudo sua reação. – Você está bem com isto, não
é? Você sabia que eu e o Sebastian estávamos noivos.
– Sim. – Murmura.
– Sofia? – Insisto meio preocupada.
– É só... achei que ainda fosse demorar... ele vai se mudar lá para
casa? Ou nós vamos nos mudar?
– Ainda não sei, não conversamos sobre isto.
E era verdade. Só agora me dava conta que havia várias questões
práticas a resolver com Sebastian. Como Sofia eu também pensava que iria
demorar para o casamento acontecer de fato.
– Não se preocupe com nada disto. São coisas para os adultos
resolverem. Vá fazer sua lição.
Ela se afasta e depois de um tempo, me surpreendo ao ver Sebastian
entrando na livraria na companhia da Aria.
– Parabéns pelo casamento! – Aria me dá um abraço.
– O que fazem aqui? – Pergunto confusa enquanto Sebastian se
aproxima e me dá um beijo no rosto.
– Janine me ligou dizendo que vocês precisavam sair e pediu para eu
ficar cuidando da livraria.
Encaro Janine.
– Sim, nós vamos comprar aquela coisa que eu te falei... do
casamento.
Rolo os olhos.
– Precisa ser hoje?
– Claro que sim! Não podemos perder tempo.
Encaro Aria.
– Você veio por causa disto?
– Sim, ela ligou me intimando.
– Me desculpe.
– Não se desculpe, preciso de um pouco de movimento na minha vida
mesmo. – Ela responde passando a mão pela barriga de cinco meses de
gravidez.
Aria tinha se casado há três anos com o namorado de adolescência e
estava esperando o primeiro filho.
– Tudo bem, então. Estou vendo que sou voto vencido. Pode
realmente ficar na livraria? Não quero atrapalhá-lo – encaro Sebastian.
– Claro, pode ir tranquila. Fico feliz que esteja empolgada com o
casamento – sorri.
Eu me sinto ligeiramente culpada sem saber por quê.
Talvez porque empolgação não fosse bem a palavra que expressava
meus sentimentos naquele momento.
– Certo. Sofia está aí. Está fazendo lição no escritório.
– Você resolveu o problema de hoje na hora do almoço?
– Sim, está tudo bem.
– E não vai me contar?
– À noite conversamos, está bem?
Ele apenas sacode a cabeça afirmativamente e eu sabia que não ia
escapar.
– Sofia não vai querer ir com a gente? – Aria indaga.
– Não, é melhor ela ficar. Tem muita lição para fazer.
Era um certo exagero sinceramente, já bastava Janine e Aria me
pressionando, não queria ter que lidar com Sofia também.
– Então vamos? – Janine agia como se estivesse indo pra
Disneylândia e tento colocar a mesma expressão no meu rosto ao sairmos.
– Vamos.
Onde eu estava com a cabeça ao concordar com Janine e Aria?
Estávamos na maior loja de departamentos da cidade, enfurnadas na
sessão de noivas e elas estavam brigando sobre qual estilo de vestido eu devia
usar.
– Acho que tem que ser um modelo romântico, Janine. – Aria dizia
com um vestido nas mãos, todo volume e tule.
– Isto está fora de moda, Aria! – Janine pega outro vestido mais
ousado e justo. – A moda agora é esta, mais moderno!
– Tenho certeza que Evangeline prefere algo tradicional!
– Não acho que ela queira parecer um merengue!
– Meninas, meninas, não briguem – finalmente interfiro. – Posso
experimentar os dois e ver como fica.
Pego os dois vestidos das mãos delas e vou para o provador, ainda
posso ouvi-las falando.
– Vou aproveitar enquanto está aí e dar uma olhada na sessão de gala
tenho que encontrar um vestido lindo para mim também! – Janine comenta.
– Isto! – Falo aliviada. – Por que não vai também, Aria?
– Tudo bem, a gente já volta para ver como ficou!
As duas se afastam e eu tiro a roupa e olho os dois vestidos.
Eu deveria estar eufórica, não deveria?
Então por que me sinto encurralada?
Suspirando pesadamente me obrigo a colocar um dos vestidos. Era o
modelo de Janine. Estilo sereia, todo justo, tomara que caia e com uma cauda
longa. Gostei. Era simples e prático. Talvez Aria se surpreendesse, afinal,
apesar de ser realmente uma garota tradicional, não estava a fim de parecer
um bolo branco com todo aquele volume do vestido que ela escolheu.
Saio do provador, disposta a me mostrar a elas e então estaco
horrorizada.
Nem Aria nem Janine estavam ali.
Matthew King estava.
Encarando-me tão pasmo quanto eu.
***
Dez Anos Antes
Matthew
Evangeline
***
Matthew
Evangeline
Matthew
***
Evangeline
Evangeline
***
Hoje é sábado como Sofia não tem aula eu a levo comigo para a
livraria. Ela parece inquieta e me pergunto quando meu pai vai voltar. Num
dia como hoje, ele poderia ficar de olho nela para mim.
Ainda não me sinto segura em deixá-la sozinha. Não com Matthew
por perto.
Matthew. Pensar nele me faz voltar à noite passada e ao beijo...
– Ei, sonhando acordada?
Pisco quando Janine surge na minha frente.
Ela está rindo.
– Foi boa a comemoração ontem, hein... – ela me encara
maliciosamente e eu coro.
– É... – faço um sinal para ela parar de falar destas coisas, pois Sofia
está por perto.
– Ah sei... Falando em Sofia, ela te disse que pegou um livro ontem?
– Livro? Que livro? Para a escola?
– Não sei. Era um exemplar daquele que você adora, Orgulho e
Preconceito.
– Não, não me disse...
Caminho até onde ela está sentada numa poltrona lendo o Harry
Potter.
– Sofia?
Ela levanta o olhar e me encara.
– Oi mãe?
– Você pegou um exemplar de Orgulho e Preconceito ontem?
– É.... peguei.
– Para quê?
– Para dar de presente para uma amiga da escola – ela sorri. – Tudo
bem, não é?
– Claro, da próxima vez me avise, ok? Os livros não podem
simplesmente sumir da prateleira, já te expliquei.
– Me desculpe, eu ia te falar... – de repente ela para e pula do sofá,
acenando. – Olha, Sam chegou!
– Oi, Sofia... Evangeline... – então ele se vira pra Janine e seu olhar
muda sutilmente. – Oi, Janine.
Janine acena de onde está continuando seu trabalho.
Hum... Sam estava interessado em Janine?
– Oi Sam, o que faz aqui?
– Sofia não te falou? Vou levá-la para pescar.
– Pescar? Não, não me falou. – Eu a encaro interrogativamente e ela
sorri daquele jeito que sabe que sempre me amolece.
– Por favor, mamãe, não quero passar o dia inteiro trancada hoje até o
sol saiu!
Suspiro vencida.
– Tudo bem, não voltem tarde!
Ela abraça minha cintura e eu a aperto.
– E tomem cuidado!
– Pode deixar... – Sam pega a mão de Sofia e lança outro olhar em
direção a Janine, ela não lhe dá a menor bola.
Pobre Sam.
Eles saem e vou em sua direção.
– Sabe que ele está a fim de você, não é?
– Quem?
– Sam! Vai dizer que não percebeu?
Ela rola os olhos.
– Não sou chegada em garotos que mal saíram das fraldas!
– Ele tem vinte, acho!
– E eu vinte e sete, sou quase a tia dele!
– Bom, ele é um cara legal. E bonito.
– Sim, ele é bonitinho, mas... não sei...
– Dê uma chance a ele. Pode se surpreender.
– O que deu em você e Sofia?
– Eu e Sofia?
– Sim, desde de manhã que ela está com esta mesma conversa,
tentando me convencer de como o tal Sam é legal e que eu devia aceitar sair
com ele...
– Sofia fez isto? Vai ver Sam pediu para ajudá-lo...
– Pedir ajuda para uma criança? Golpe baixo.
– Bem, você quem sabe. Acho que poderia dar certo...
– Vou pensar. – Ela olha o relógio e são três da tarde. – Enfim, deu
minha hora. Vai ficar bem sozinha?
– Claro. Vou só checar se está tudo ok e fechar. Não tem mais
nenhum cliente mesmo.
– Devia sair com o Sebastian e aproveitar a tarde. É um milagre a
temperatura ter subido um pouco – ela pisca enquanto se afasta.
Penso em Sebastian e na nossa conversa de ontem. Será que ainda
está zangado comigo? Talvez eu devesse ligar, chamá-lo para fazermos
alguma coisa juntos já que Sofia tinha saído.
Estou pensando nisto quando saio do estoque, disposta a fechar a loja
e ligar para o Sebastian e escuto a porta se abrir.
Hum... Melhor esperar o último cliente. Estaco estarrecida ao ver
quem entrou.
Quem está na minha frente é Matthew King.
Dez anos antes
Matthew
Evangeline
***
Matthew
Matthew
Evangeline
***
Matthew
***
Evangeline
Matthew
Fugiu?
Escuto suas palavras com incredulidade.
– Como assim? Você tem certeza?
Evangeline está branca feito papel e passa os dedos trêmulos pelos
cabelos.
– A mochila dela não está aqui... Oh meu Deus.
Sinto seu desespero enquanto a dúvida vai se transformando em
certeza, e me atinge também.
– Por que ela faria isto? Você mesmo disse que ela não sai a noite...
– Acho que ela ouviu... ela pode ter ouvido e sabe Deus o que
entendeu. Matthew, ela é só uma criança... Aonde pode ter ido?
Rapidamente pego o telefone e disco.
– O que está fazendo?
– Ligando para a polícia.
Não demora para uma viatura aparecer e o policial começar a fazer
perguntas.
– Tem certeza que ela fugiu? – Pergunta o policial.
– Sim, não tem outra explicação... O que vamos fazer? Ela pode estar
sozinha por aí...
– Acha que ela pode ter ido para o bosque?
– Não sei...
– Precisam formar uma equipe de busca. – Começo a me irritar com a
calma do policial. – Ela pode estar em perigo nesse exato momento!
– Sim, claro, vou chamar reforço e veremos o que podemos fazer.
– Não vai ver nada, você vai fazer.
– Ei, meu chapa, sei fazer meu trabalho!
– Por isto mesmo devia fazer direito.
– E quem é você?
– Sou o pai de Sofia.
O policial encara Evangeline, como que buscando uma confirmação,
ela apenas assente.
– Sim, ele é o pai da Sofia, acho que agora isto não é importante.
– Claro. Vou passar um rádio.
Olho para Evangeline que tem os olhos aflitos e mal respira.
– Queria que meu pai estivesse aqui, ele saberia o que fazer.
– Fique calma. Vamos encontrá-la. Ela é uma garota esperta.
– Tenho medo, não sei o que faria se... – ela soluça. – Eu me sinto tão
culpada...
– Não fique assim. Não foi culpa sua.
– E se ela fugiu porque ouviu a verdade?
– O importante agora é encontrá-la. – Digo quase friamente, enquanto
por dentro estou remoendo as palavras de Evangeline.
Sofia fugiu de casa por algum motivo e provavelmente foi por
descobrir que era minha filha. Não era algo agradável de aceitar. Achava que
ela gostava de mim, que...
– E então? – Evangeline pergunta ao policial.
– Vou entrar e fazer uma busca na sua casa. Já chamei reforço, eles
estão vindo e vamos entrar na floresta.
Pego meu telefone de novo, enquanto Evangeline entra na casa com o
policial e ligo para Carter.
– Ei, Carter onde estão?
– Jantando na cidade. Aliás, Evelyn está furiosa contigo. Nós não
tínhamos combinado de jantar com seus pais hoje?
– Sinto muito, estou com um problema.
Eu me lembro que ao sair da casa de Evangeline naquela tarde, não
fui para casa, fiquei dirigindo pela cidade sem rumo.
Eu saí de lá consumido pela revolta. Como era possível? Dez anos se
passaram. Dez anos que eu tinha uma filha que andava por aí sem eu fazer
ideia. Porque Evangeline escondeu de mim.
E eu nunca iria ficar sabendo se não tivesse voltado a Camden.
Agora eu sabia.
E, enquanto percorria as ruas frias de Camden e o crepúsculo tomava
a tarde, a revolta foi dando lugar a outros sentimentos. Eu pensava em Sofia,
em todos os momentos que estive com ela desde que a conheci naquela tarde
chuvosa. E sentia uma mistura de pesar e angústia. Eu poderia nunca saber. Ir
embora da cidade e tudo continuar do mesmo jeito. Evangeline continuaria a
ser a garota que me enganou no passado e por quem ainda sentia uma mistura
de desejo inapropriado e raiva eterna. E Sofia seria apenas uma criança
adorável de quem me lembraria com carinho.
Agora tudo havia mudado irreversivelmente e sabia que teria que
dividir a verdade com minha família, só não estava preparado. Precisava
voltar à casa de Evangeline. Estava farto de mentiras.
Precisava que Sofia também soubesse a verdade.
Porém, quão arrependido poderia estar naquele momento? Eu agi
impulsivamente. Talvez numa vingança mesquinha contra Evangeline que me
infligiu tudo aquilo. E agora Sofia estava desaparecida.
– Que problema? – Carter fica alerta.
– Vocês podem voltar para casa agora? É urgente.
– Que diabos está acontecendo?
– São muitas coisas ao mesmo tempo..., preciso que venham até a
casa de Evangeline Evans.
– Evangeline... O que ela tem a ver com...?
– A filha dela está desaparecida.
– Desaparecida? Que filha? Evangeline Evans tem uma filha?
– Sim, Sofia.
– A garotinha que esteve em casa com você? É filha dela?
– Sim.
– Você sabia?
– Não até hoje a tarde.
– Matthew, o que está acontecendo realmente?
– Ela é minha filha Carter.
Escuto-o proferindo vários palavrões e a voz alterada de Emily muito
próxima.
– Emily, pelo amor de Deus, tire as mãos do meu telefone...
– Eu quero falar com o Matthew e saber o que está...
– Por favor, Carter. Estamos organizando uma equipe de busca e toda
ajuda será necessária.
– Claro... eu... Jesus, Matthew, isto é...
– Eu sei, podemos conversar depois, agora precisamos encontrá-la.
– Tudo bem. Estamos voltando.
Quando ele desliga o celular, alguns carros estão estacionando e vejo
o policial organizando as buscas.
Entro na casa e Evangeline está desligando o telefone.
– Estou ligando para todo mundo que conheço, alguém pode ter visto
Sofia.
– Liguei para Carter avisar minha família, eles podem ajudar.
Ela me lança um olhar especulativo, mas continua ao telefone.
– Aria, é Evangeline... – ela explica rapidamente sobre o sumiço de
Sofia. – Sim, seria de grande ajuda, obrigada. – Ela me encara quando
desliga. – Aria está vindo para cá com o marido dela Vão ajudar nas buscas...
Deus, estou tão preocupada! Aonde ela pode ter ido?
– Ela não tem nenhuma amiga próxima, alguém que poderia ter ido
encontrar?
– Ela tem várias coleguinhas, liguei para todas que ela poderia
procurar, se bem que nenhuma é muito próxima, ultimamente ela só falava de
você, que eram amigos... – de repente ela para, como se tivesse lhe ocorrido
algo. – E se ela foi para sua casa?
– Para minha casa?
– Sim! Ela mentiu para mim duas vezes para ir até lá!
– Não tem ninguém na minha casa agora, irei até lá.
– Talvez eu deva ir com você.
– Ela pode não estar lá. E os grupos de busca estão saindo. Melhor
ficar aqui no caso de a encontrarem.
– Tudo bem...
Antes que eu saísse, o policial entra na casa.
– Ela foi encontrada.
– Graças a Deus – Evangeline murmura.
– Onde ela está? – Pergunto.
– Está no hospital.
– Hospital? Ela está machucada? – Evangeline empalidece e seguro
seu braço, porque parecia que ela ia cair no chão.
– Parece que estava andando na estrada tropeçou em algo e caiu,
fiquem tranquilos, ela está bem, apenas algumas escoriações. Um motorista a
encontrou e a levou ao pronto socorro.
– Nós vamos para lá agora. – Puxo Evangeline pelo braço, que não
oferece resistência.
Nós seguimos em silêncio até o pronto socorro e Evangeline torce as
mãos nervosamente.
– Ela está bem – não sei se dizia isto para tranquilizar a mim mesmo.
– Preciso vê-la e ter certeza.
– Eu sei. – Sim, de alguma maneira estranha eu sabia como ela se
sentia, porque me sentia do mesmo jeito.
Não fazia nem 24 horas que sabia que ela era minha filha e já sentia
como se tivesse sido assim a vida inteira.
Eu era responsável por Sofia agora. E intuía que aquilo era só o
começo.
Nós entramos no pronto socorro e fomos conduzidos à enfermaria.
Sinto todo o peso do que é ser um pai naquele momento, ao ver Sofia
dormindo deitada contra os lençóis brancos, com um arranhão na testa e uma
tipoia no braço.
– Sofia – Evangeline murmura, passando a mão por ela toda, como
que para se certificar de que estava ali e realmente inteira.
Um médico entra na sala.
– Vocês são os pais?
– Sim – falamos ao mesmo tempo.
– Ela está bem? – Evangeline pergunta.
– Sim, só alguns arranhões. E bateu o braço. Não quebrou, apenas
luxou ficará dolorido por uns dias. Vocês podem levá-la para casa. Nós
demos um analgésico para a dor, por isto adormeceu, acordará bem pela
manhã.
– Obrigado – respondo, e o médico me fita com a testa franzida.
– Não é filho de Benjamin King?
– Sim, sou Matthew King.
– Nós jogamos golfe juntos. Não sabia que ele tinha uma neta.
Evangeline desvia o olhar, ficando vermelha e eu apenas dou de
ombros, sem nada falar.
– Nem acredito que a encontramos... – Evangeline murmura. – Quero
levá-la para casa.
– Sim, deixa que eu a carrego.
Ela parece querer protestar, se cala quando pego Sofia e a levo para o
carro, colocando-a no banco de trás, ainda profundamente adormecida.
Nós voltamos em silêncio quebrado apenas quando meu celular toca e
o atendo ao ver que é Carter.
– Oi Carter, nós a encontramos.
– Sério... ei, gente, ele disse que já a encontraram. – Ele fala fora do
fone. – E aí? Nós estamos em casa, acabamos de chegar.
Explico rapidamente a ele o que aconteceu e desligo.
– Contou a sua família sobre Sofia?
– Sim, eu te falei.
– Falou?
– Acho que nem ouviu.
– O que eles... disseram?
– Na verdade, não contei direito, apenas liguei para eles quando Sofia
desapareceu e tive que contar rapidamente... Não houve... tempo para
nenhuma conversa.
– Sei...
Ela não diz mais nada até chegarmos.
Retiro Sofia do carro e sigo Evangeline para dentro até seu quarto,
depositando-a na cama.
Ela retira seus sapatos e puxa a coberta para cima dela.
– Ainda não acredito que ela está realmente aqui. – Diz passando a
mão por seus cabelos. Seu tom de voz carregado de alívio e medo. – Se algo
tivesse acontecido... Não posso nem suportar pensar...
– Então é assim que nos sentimos? – Pergunto e ela me fita. – Eu
ainda me sinto meio apavorado de pensar que ela podia estar naquela estrada
sozinha... – passo os dedos pelos cabelos, respirando fundo, com um aperto
no peito.
Imaginar Sofia ferida é sentir como se estivessem machucando a mim
também.
– Sim, é assim – ela responde entendendo o que quero dizer.
Dou um sorriso nervoso e ela também sorri.
E, naquele momento entendo que, não importa o que tenha havido no
passado. Ou quais eram meus sentimentos por Evangeline, raiva ou desejo,
nós estávamos ligados irreversivelmente e para sempre.
Pelo o que sentíamos por aquela pequena criatura. Sofia.
Nossa filha.
Como as coisas ficariam?
Paro de sorrir, me enchendo de preocupação novamente e tenho
certeza que ela sente o mesmo.
– Vamos descer.
Eu a acompanho até a cozinha.
O telefone está tocando e ela atende.
– Oi, Aria... sim, está tudo bem. Sofia está dormindo... – ela me
encara e depois desvia o olhar. – Sim, ele está aqui... Aria, conversamos
depois, ok? Obrigada por ajudar!
Ela desliga e me encara.
– Bem, foi uma noite e tanto.
– Sim, pelo menos acabou bem. Sofia voltou.
– Eu queria que nem tivesse saído – diz sombriamente, nos lembrando
dos motivos que a fizeram fugir.
E será que ela estava realmente indo para minha casa?
– Ainda temos um problema.
– Eu sei. Mas... Matthew, o que aconteceu com Sofia me fez ver que
preciso mais do que nunca pensar nela primeiro. É só uma criança e não tem
culpa de nada do que aconteceu... saber que ela ouviu, sabe Deus o que, me
apavora!
– Ela precisa saber que sou o pai dela.
– Sim, eu sei...
– Ela já sabe de qualquer forma.
– Não temos certeza.
– Por qual motivo ela fugiria? Deve ter ouvido alguma coisa e ficado
confusa. Temos que explicar a ela.
– Não, sou eu que preciso explicar, Matthew. Sou a mãe dela e sou
quem precisa contar a verdade sobre você.
– E depois?
– Depois veremos.
– Não vai me deixar de fora, sabe disto, não é?
Sinto o pavor que ela tenta disfarçar em seu olhar. Quero acalmá-la,
mas talvez ainda haja um resquício de ressentimento dentro de mim.
– E o que você quer?
– Quero ser o pai dela.
– Matthew...
– Tem razão. É muita coisa para Sofia no momento. Droga, é muito
para mim! – Olho a hora avançada no relógio. – Então você conversará com
Sofia, posso concordar com isto, só espero que não invente nada.
– Não inventarei nada.
– Não tenho como confiar em você, afinal, disse a ela que o pai foi
embora porque não a queria.
– Eu disse o que foi preciso...
– Temos opiniões diferentes sobre esse assunto, discutiremos depois,
está tarde e hoje já aconteceram coisas demais.
– Tudo bem.
Quando chego em casa, como era de se esperar, minha família está
reunida a minha espera.
– Ainda bem que chegou! – Ella se levanta do sofá vindo em minha
direção – estava morrendo de curiosidade.
– O que aconteceu, meu filho? – Minha mãe pergunta. – Carter nos
disse que aquela garotinha, Sofia, era sua filha. Que história é esta?
– Deve ser mentira – Emily revira os olhos e Carter lhe lança um
olhar de advertência.
– Deixe o Matthew explicar, baby.
– Sim, estamos todos preocupados – meu pai me encara comedido.
– Sim, a menina é minha filha.
Então conto a eles, tudo o que aconteceu desde que levei Sofia em
casa naquela tarde e descobri que ela era filha de Evangeline e minha.
– Nossa, que história – Ella solta uma risadinha. – Parece novela.
– Cale a boca, Ella! – Emily exclama e me encara tensa. – Como pode
ter certeza? Até onde eu sei esta garota pode ser filha de qualquer um.
– Não é.
– Como sabe? Você só saiu uma vez com Evangeline, Matthew e
sabemos que ela não é de confiança... agora aparece com esta filha... Deve ser
filha de algum perdedor da cidade e ela quer te enrolar.
– Está falando asneiras, Emily. Sei que Sofia é minha filha!
– Continua tão crédulo quanto antes, não é? Acreditou que a tal
Evangeline era a mais pura das criaturas e olha no que deu...
– Emily, chega! – Meu pai pede. – Isto pode ser facilmente resolvido,
Matthew pode fazer um teste de DNA.
– E tem que fazer realmente! Ela deve estar querendo dinheiro de
novo...
– Ei, baby, pare com isto – Carter toca seu braço.
– Não, não vou deixar aquela vadia enrolar o Matthew outra vez!
Vocês não veem? Ela já o enganou antes e pode muito bem estar enganando
agora com esta história de filha...
– Acho que este é um problema meu. – Digo cansado. Não estou a
fim de entrar numa discussão com Emily no momento.
– Sim, chega deste assunto por hoje, está tarde. – Mamãe se levanta. –
Vamos todos dormir.
– A menina está bem? – Meu pai pergunta.
– Sim, teve uma queda, tem uma luxação no braço e alguns
arranhões... Bem, estou realmente cansado, boa noite.
Não consigo dormir. Todos os acontecimentos daquele dia rondam
minha mente e me sinto ansioso para saber como as coisas ficarão.
Desistindo de dormir, saio do quarto e vou até o piano. Tocar sempre
me acalmava. Me recordo de estar naquela mesma tarde com Sofia ali. E
sequer imaginava que ela era uma parte de mim.
– Ei, não consegue dormir?
Levanto o olhar e vejo Carter me encarando.
– Não e você?
– Ouvi o piano e sabia que estava aqui. Queria conversar com você.
– Agora?
Ele dá de ombros.
– Acho que estou pensando muito também... No passado. No que eu
fiz.
– Carter...
– A culpa é toda minha não é? Nunca teria se envolvido com esta
garota se não fosse minha ideia estúpida.
– Você pede desculpas uma vez por ano, então vamos deixar esta
história para lá.
Perdoar Carter não foi fácil na época.
No entanto meu ódio maior era de mim mesmo. Eu fui idiota por
acreditar em Evangeline.
E conhecia Carter. Ele não era maldoso. Apenas sem noção. E
acreditou que estivesse fazendo algo para me ajudar. Ele me via como um
irmão mais novo e, na mente dele, estava fazendo o certo ao pagar alguém
para ficar comigo. Este tipo de prática não era incomum no meio dos
esportes.
– Sempre achei que não deveríamos voltar...
– Ainda bem que voltamos. Senão nunca teria descoberto sobre Sofia.
– Esta menina... você acha que ela é realmente sua filha?
– Sim, ela é.
– E como vai ficar? Você odeia Evangeline.
– Meus sentimentos por ela não importam.
– Não sei como as coisas podem dar certo...
– Nem eu... – digo sombriamente.
– Bem, estou com você não importa o que decidir, sabe disto, não é?
– Eu sei.
– E não ligue para Emily. Ela se preocupa demais com você.
– Eu sei.
– Pare de tocar e vá dormir pelo amor de Deus, antes que Emily
acorde e fique de mau humor para sempre.
Rio e o acompanho escada acima.
Tentar dormir o que resta da noite. E esperar pelo o que o futuro me
reserva.
Capítulo 12
Evangeline
Evangeline
Evangeline
Evangeline
Matthew
***
Evangeline
Evangeline
– Oi, Eve.
Ele está sério e reticente.
Coloco minha bolsa sobre o balcão, sem saber o que dizer. É
lamentável que uma amizade de tantos anos tenha se resumido a isto. E dói
saber que a culpa é minha por ter permitido que as coisas fossem tão longe.
– Oi Sebastian, tudo bem?
Ele sorri de leve e me sinto um pouco melhor. Menos culpada.
– Poderia estar melhor, não é?
– Sebastian...
– Preciso muito conversar com você... podemos ir a algum lugar?
Olho em volta e vejo Janine arrumando uma prateleira, ou fingindo
que arruma, enquanto escuta muito interessada a nossa conversa.
– Janine, pode cuidar de tudo aqui?
– Claro, claro. Pode ir, eu fecho.
– Obrigada.
Posso ver em sua expressão o quanto está curiosa, ela deve ter
percebido a seriedade da situação, pois não faz perguntas.
Sebastian me acompanha até em casa e pergunta onde está Sofia.
– Está com Matthew.
Estudo sua reação ao falar dele, Sebastian apenas assente, sem
nenhum comentário ressentido.
– E então? O que quer falar comigo?
– Primeiro queria te pedir desculpas pelo meu comportamento.
– Sebastian...
– É sério, Eve. Andei pensando bastante e sei que fui um idiota.
Matthew é o pai da Sofia e não cabe a mim ficar zangado por ele fazer parte
da vida dela e, consequentemente, da sua.
– Sei que não deve ser fácil para você.
– Não é, como já disse, não tenho o direito de ser um idiota. Por isto
te peço desculpas.
– Está tudo bem. Vamos esquecer.
Então ele dá um passo em minha direção e segura minhas mãos.
– Será que poderíamos recomeçar?
Eu olho para nossas mãos unidas, indecisa sobre o que fazer.
Este é Sebastian, meu melhor amigo, uma das minhas pessoas
preferidas no mundo. Tenho certeza que o quero na minha vida para sempre.
Mas seria o suficiente para me casar com ele?
– Ainda não sei se estamos fazendo a coisa certa.
– Eu te amo, Eve.
Mordo os lábios, sentindo um grande aperto no peito.
Não quero magoá-lo, também não posso mais mentir para ele.
– Sebastian, eu amo você. Só que não deste jeito... Não como acredito
que duas pessoas devem se amar para se casar.
Ele parece triste com minhas palavras e dói muito em mim.
– Acho que sempre soube que você não me ama tanto quanto eu te
amo. Mesmo assim, quis me casar com você. Ainda quero. Podemos nos dar
uma chance. Podemos fazer dar certo. Você seria feliz comigo.
Respiro fundo, querendo muito acreditar que o que ele está falando é
possível, porém realmente não tenho certeza.
– Gosto de você apenas como amigo. Seria errado.
– Não me importo. Você nunca me deu uma chance de verdade.
– Sebastian...
– Por favor, Eve. Eu gosto realmente de você. E de Sofia. Quero que
dê certo. Me dê uma chance. Nos dê uma chance.
Eu o encaro com vontade de chorar.
Por que não amo Sebastian? Ele seria perfeito para mim. Um cara que
sempre vai estar ao meu lado. Que sempre esteve do meu lado. No fundo do
meu coração sei muito bem o que me impede de gostar dele de verdade.
Um dia, gostei de outra pessoa. E foi tão dolorido que fechei meu
coração. E o pior de tudo, é que essa pessoa está de volta. E me vejo sentindo
a mesma coisa outra vez. Apesar de saber que nunca vai levar a nada.
– Realmente não quero te magoar. Gosto demais de você e até pensei
que poderíamos fazer dar certo, agora estou muito confusa. Não quero me
precipitar. Tenho que pensar em Sofia também.
– Tudo bem. Tem razão. Vou esperar você pensar. Vamos... deixar
em suspenso. Quando estiver preparada me dê sua resposta. Eu realmente não
devia ter precipitado as coisas...
– Sim, não devíamos ter nos precipitado marcando o casamento.
– Certo, faremos do jeito certo desta vez. Vou esperar.
– Tudo bem, obrigada. – Eu me vejo concordando e, enquanto ele me
abraça me pergunto se mudarei de ideia.
– Ainda somos amigos, não é?
Eu beijo seu rosto.
– Claro.
– Oi, mamãe.
Eu me viro e vejo Sofia na porta da sala. E não está sozinha.
Matthew está com ela.
Eu me afasto de Sebastian, muito vermelha, Sofia se aproxima, me
abraçando. Em seguida abraça Sebastian e aproveito para olhar Matthew.
Ele tem o semblante frio como gelo.
– Que saudade de você, pequena! – Sebastian bagunça o cabelo de
Sofia, que ri.
– Estou passando todas as tardes na casa do meu pai!
– Que legal! – Sebastian olha para Matthew e fico tensa.
Ele apenas estende a mão.
– Como vai, Matthew?
Espero a reação de Matthew, que hesita por um momento, porém
acaba cumprimentando Sebastian, ainda sério.
– Tudo bem, Sebastian.
Respiro aliviada e sei que Sebastian está fazendo isto para provar a
mim que superou o ciúme.
– Eu já estava de saída. Tchau para vocês.
Ele se afasta e Sofia sorri para mim.
– Olha o que eu ganhei mamãe!
E ela me mostra um notebook muito empolgada.
Respiro fundo e encaro Matthew.
– Mais presentes? Não sabia que era seu aniversário...
– Não implique. Ela precisava de um para fazer seus trabalhos da
escola.
– Nós temos um computador...
– Aquela coisa velha? Fala sério, né, mãe!
– Sofia, suba para trocar de roupa depois a gente conversa.
Ela sobe e eu encaro Matthew.
– O que eu falei sobre presentes?
– Não foi bem um presente. Foi algo que comprei porque ela
precisava. É minha obrigação.
– Tudo bem, desta vez passa.
De repente um silêncio tenso cai sobre nós e fico ali, com os braços
cruzados sobre o peito, me perguntando se um dia conseguiremos conviver
como pessoas normais.
Ou melhor, me pergunto se um dia vou ser capaz de olhar para ele
sem ficar pensando em coisas totalmente impróprias e insanas, como o gosto
de sua boca sobre a minha.
– Se era só isto...
– Na verdade queria conversar mais uma coisa com você. Queria que
Sofia dormisse na minha casa sábado, tudo bem?
– Sábado? Ela tem a apresentação de natal da escola domingo.
– Eu sei. Eu a levarei direto para lá, pode ser?
– Tudo bem. Eu a levo em sua casa sábado à tarde.
– Certo, combinado. Já vou então.
Ele vai embora e, como uma adolescente deslumbrada, o acompanho
pela janela até que entre no carro e parta.
Quando é que vou parar de agir como se tivesse dezessete anos?
Era vergonhoso.
– Mamãe, pode subir? – Escuto Sofia me chamar e subo para
encontrá-la sentada na cama rodeada de fotos por todos os lados.
– Que bagunça é esta?
– Estou montando meu presente para o papai.
Sento ao seu lado.
– Presente?
– É aniversário dele sábado!
Ah, então era por isto que Sofia ia ficar com os King no fim de
semana. Agora eu entendia.
– E o que está fazendo?
– A tia Ella que deu a ideia! Vou fazer um álbum com fotos minhas
desde que eu era bebê, assim ele poderá ver como eu era quando não estava
por perto. Acha que vai gostar?
Sorrio tristemente.
– Tenho certeza que sim.
– Então me ajude a escolher!
Eu olho todas aquelas fotos com nostalgia. Sofia se transformando de
um bebê fofo numa criança linda.
Enquanto a ajudo escolher, vejo que Sebastian está em muitas destas
fotos e me recordo de nossa conversa e seu pedido.
Jogo o pensamento para o fundo da minha mente, totalmente
despreparada para tomar uma decisão no momento.
– E esta também! – Ela pega uma foto minha grávida e coloca no
álbum. – Pronto. Está perfeito! Acha mesmo que ele vai gostar?
Eu beijo seus cabelos.
– Claro que vai querida.
– Mamãe?
– Sim?
– Fazia tempo que eu não via o Sebastian.
Dou de ombros.
– Ele anda ocupado.
– Estava com saudade dele.
Sorrio.
– Ele também estava com saudade de você! Arrume tudo enquanto
faço o jantar e depois desça, ok?
Dois dias passam rápido, na mesma rotina.
Vejo Matthew brevemente quando ele vem buscar Sofia e quando a
traz à tarde, não trocamos mais do que algumas palavras educadas.
Meu coração ainda acelera ridiculamente quando o vejo.
Acho que terei que me acostumar.
Na sexta à noite, Sebastian aparece de surpresa e fico feliz em vê-lo,
embora um pouco apreensiva temendo que vá me cobrar uma resposta, ele
não fala nada.
E nós quatro jantamos como antigamente, quando Matthew ainda não
havia aparecido novamente em nossas vidas. No entanto, Sofia fala nele de
cinco em cinco minutos, ou sempre tem algo para contar sobre algum King.
Depois que sobe para dormir, levo Sebastian até a porta e ele nos
convida para ir numa festa no sábado. É aniversário de sua irmã, Rita e a
família vai dar um grande churrasco.
– Sofia vai dormir na casa dos King – respondo.
– Então vá com seu pai.
– Tudo bem. Irei sim.
Ele hesita ao se despedir, como se não soubesse o que fazer e é
estranho, então me abraça e vai embora.
Quando volto para a sala Jack me encara de maneira estranha.
– O que está acontecendo entre vocês?
– Estamos dando um tempo. – Não sei se esta era a expressão certa,
só não quero preocupar meu pai.
– Como assim? Não vão casar em menos de um mês?
– O casamento está suspenso... por enquanto.
– Que conversa é esta?
– Estou confusa e disse a ele. Não sei se esse casamento vai dar certo.
– Evangeline, Evangeline... Você sempre arrumando confusão, não é?
– Não é bem assim...
– O Sebastian é apaixonado por você desde sempre e pensei que você
finalmente tinha tomado juízo e resolvido fazer a coisa certa.
– Achei que era a coisa certa, mas... Não amo o Sebastian desse
jeito...
– O amor tem muitas formas, filha.
– Não quero cometer um erro.
– Tem razão. Você primeiro se envolveu com o tal King e
engravidou.
– Pai!
– Estou falando a verdade! E ficou sozinha! Depois teve aquele seu
namorado canalha, o tal Brady...
– Não me lembre...
Detestava me lembrar do único relacionamento que tive em todos
aqueles anos, depois de Matthew.
Brady era um cara bonito que apareceu justamente quando todos me
pressionavam para deixar de ser apenas uma mãe e começar a namorar,
afinal, eu era jovem e estava desperdiçando meu tempo, todas aquelas
conversas de parentes e amigos.
Então resolvi dar uma chance. Acontece que Brady trabalhava na
livraria comigo, antes de Janine voltar para a cidade, nós namoramos alguns
meses, até eu descobrir que ele estava me roubando descaradamente. E, antes
que meu pai pudesse pôr as mãos nele, fugiu da cidade com uma tal de Jojo.
Sim, ele tinha outra namorada além de mim.
Nunca fui apaixonada por Brady, embora tenhamos nos dado bem no
tempo que ficamos juntos, foi difícil entender como pude errar tanto. E de
novo, de certa forma.
Então desisti de ter relacionamentos.
Até Sebastian me convencer que podíamos dar certo como
namorados.
E outra vez estava sendo um desastre.
– Eu me preocupo realmente com você. – Sei que você reluta em dar
uma chance de verdade a Sebastian. No entanto, se você pôde dar uma
chance a um estranho, por que não para ele?
– Porque ele é meu amigo e é importante para mim. Não quero
estragar tudo.
Jack me estuda por um momento.
– Tudo estava indo bem antes... Até Matthew King aparecer.
Desvio o olhar, ficando vermelha.
– É este o motivo? Trata-se de Matthew King? Ainda gosta dele?
– Matthew não gosta de mim – afirmo amargamente. – Esse fato o tira
do páreo.
– Vocês têm uma filha.
– Sim e ela é a única coisa que temos em comum. – Levanto-me antes
que Jack continue a insistir no assunto. – Vou dormir pai. Boa noite.
***
Matthew
Matthew
Evangeline
Por um momento nenhuma de nós parece capaz de falar até que ela
recupera a compostura.
– Bom dia – diz com a voz inflexível e se afasta.
Volto a respirar tentando entender o que foi aquilo.
Era de se esperar um escândalo e ofensas da parte de Emily quando
me flagrou saindo do quarto de Matthew, surpreendentemente ela não falou
nada.
Embora ache estranho sinto-me aliviada.
Volto para o quarto e Sofia está acordando quando me aproximo da
cama.
– Oi, mamãe, já é de manhã?
– Sim, querida.
Ela se senta me olhando com os olhos sonolentos.
– Que camisola bonita.
– É da Ella.
– A tia Ella tem as roupas mais bonitas do mundo.
– E então, vamos levantar?
– Sim!
Eu a ajudo a se arrumar e coloco minhas próprias roupas. Meus
cabelos estão um desastre então os prendo em um rabo de cavalo.
Estou meio apreensiva de encarar os King enquanto desço as escadas
com Sofia. Sinceramente, depois do que aconteceu com Matthew, não sei
como encará-lo. Talvez eu devesse deixar Sofia e ir embora o mais rápido
possível e já estou pensando numa boa desculpa quando chego à sala de café
dos King.
– Bom dia, Evangeline. – Evelyn sorri para mim enquanto Sofia corre
para cumprimentar todos que estão à mesa.
Para meu alívio Matthew não está lá.
– Bom dia.
– Dormiu bem Evangeline? – Ella pergunta inocentemente, coro me
lembrando do quão bem dormi.
Sinto o olhar de Emily me perfurando, evito encará-la.
– Sente-se e tome café conosco – Evelyn pede gentilmente.
Sofia já está sentada conversando animadamente com Ella e seguro
firme minha bolsa.
– Na verdade preciso ir embora.
– Já? Fique ao menos para tomar café. – Benjamin puxa uma cadeira
para mim, tornando impossível fugir sem parecer mal-educada.
Bem, se Matthew aparecesse, não ia falar nada na frente de todos, não
é? Então me sento à mesa.
Estou sentada defronte a Emily que me fita com um olhar que não
consigo decifrar.
Ela se levanta de repente.
– Vou acordar o Matthew. Ele já dormiu demais.
Sofia ri.
– Isto, tia Emily! Quero tomar café com ele.
Ela sorri docemente para Sofia, ainda é muito estranho ver estas
demonstrações de carinho de Emily com ela.
Tomo meu café rapidamente e me levanto.
– Realmente não posso ficar mais. Tenho algumas coisas para fazer
antes da apresentação de Sofia na escola.
– Que pena – Evelyn diz.
– Obrigada pelo café. – Eu me aproximo e beijo Sofia. – Até mais
tarde, querida.
Estou passando pela sala quando vejo Emily e Matthew no corredor
entretidos numa conversa.
– Então seguiu meus conselhos? – Ela pergunta e paro ao ouvi-la.
– Do que está falando?
Emily ri.
– Eu a vi saindo do seu quarto hoje cedo. Você é rápido.
– Não é da sua conta.
– Não, tudo bem. Não estou com raiva, Matthew, nem vou me
intrometer, que coisa! Só estou dizendo que acho que agiu certo ao seguir
meu conselho. Estou curiosa para ver o desenrolar das coisas...
Não consigo ouvir mais e me afasto quase correndo, só parando
quando chego ao carro e dou partida me afastando da casa dos King.
Como assim Matthew “seguiu os conselhos de Emily”?
Sinto meu estômago embrulhando ao pensar nos dois falando sobre
mim. E me sinto pior ainda ao imaginar que o fato de Matthew transar
comigo tem a ver com algum conselho de Emily. Embora ache muito surreal
alguém que me odeia aconselhar Matthew a ficar comigo.
Mesmo assim, fico com aquela estranha conversa na cabeça, enquanto
o dia passa. Estou meio nervosa quando entro na escola de Sofia e a encontro
com Matthew no meio das outras crianças e seus pais.
– Oi, mamãe!
– Oi, querida – sorrio abraçando-a e encaro Matthew.
Ele está sério, quase frio e me pergunto se vai realmente haver alguma
“conversa” ou se vai continuar me ignorando como na última semana, como
se nada estivesse acontecendo.
– Oi, Eve.
Eu me viro e vejo Sebastian e entendo a carranca de Matthew.
Ele ainda não sabe. Ninguém sabe que não vai mais haver casamento.
Ou melhor, que suspendi tudo com Sebastian para pensar melhor. Com
certeza deve estar tendo os piores pensamentos a meu respeito. E a culpa é
minha.
– Oi.
– Quando chegamos o Sebastian já estava aqui – Sofia explica.
– Não perderia sua apresentação por nada – Sebastian sorri.
– Sofia, vamos colocar sua roupa? – Eu a puxo pelo corredor até atrás
do palco, onde as crianças se arrumam.
– Mamãe posso te fazer uma pergunta? – Ela diz, enquanto a ajudo a
se arrumar.
– Que pergunta?
– Você vai mesmo se casar com o Sebastian?
– Por que está perguntando?
– As coisas não parecem mais como antes. Ele quase não vai mais lá
em casa e nem beija você.
Respiro fundo decidindo ser sincera com ela. Já devia ter sido.
– Não, não vou mais.
– Por que não? Não gosta mais dele?
– Claro que gosto, mas... as coisas entre os adultos nunca são fáceis
de entender, querida. Não se preocupe.
– Posso te fazer outra pergunta?
– Está bem curiosa hoje, hein? Pergunte.
– Você gosta do meu pai?
– Bem, eu... – fico perdida sem saber o que responder.
– Porque, se você não vai mais casar com o Sebastian, podia casar
com o meu pai!
– Sofia, que conversa é esta? Isto é... – já ia falar “absurdo”, porém
não sei até onde posso dizer estas coisas sem deixá-la magoada.
– Eu não tinha pensado nisto porque você ia casar com o Sebastian,
agora que não vai mais... Seria muito legal se casasse com meu pai!
– Sofia, querida... As coisas não são tão simples. Você sabe que seu
pai e eu.... Nós gostamos de você de qualquer maneira, não precisamos ficar
juntos para amá-la.
– Mas... ontem à noite... acordei de madrugada e você não estava no
quarto. Pensei que estivesse dormindo com meu pai, como os pais fazem. –
Fico vermelha de novo sem saber o que responder, Sofia continua – então,
podia ser sempre assim não podia? Nós podemos ser uma família, eu ia
gostar tanto!
Acaricio seus cabelos, pensando no que dizer. Ela era só uma criança
não entendia todos os problemas relacionados aos adultos a sua volta.
– Meu amor sei que gostaria que as coisas fossem diferentes. Como já
disse, eu e Matthew somos seus pais o fato de sermos casados ou não, não
muda nada.
– Mas... – ela suspira, vencida. – Tudo bem. Eu entendo de verdade,
mamãe. Só tive a ideia... Não fique zangada comigo.
– Não estou. Agora vá ficar com seus colegas, sua professora está
chamando.
Beijo seu rosto e me afasto.
Ao chegar ao auditório, Matthew e Sebastian estão sentados lado a
lado com uma cadeira vazia no meio. Me aproximo nervosamente, sentando
entre eles.
– Tudo bem? – Sebastian pergunta e apenas aceno positivamente. –
Você parece tensa.
Eu lhe lanço um olhar irônico e ele ri.
– Ah claro, entendo. Eu não estou fazendo nada. Quer que eu vá
embora?
– Não!
Sebastian gostava de Sofia e não seria justo mandá-lo embora por
causa de Matthew.
A apresentação começa e as crianças se apresentam no coral. Quando
Sofia aparece me surpreendo ao vê-la tocando piano.
Olho para Matthew.
– Você a ensinou em tão pouco tempo?
Ele sorri, orgulhoso.
– Ela aprende rápido, esta música é muito fácil, além disso, treinou
bastante durante a semana.
– Ela não me contou nada.
– Queria que fosse uma surpresa.
Eu a vejo tocar e meu coração quase explode de tanto amor.
– Ela está perfeita! – Aplaudo orgulhosa quando termina e Matthew
faz o mesmo.
– Sim, linda.
Nós sorrimos um para o outro compartilhando o mesmo amor.
Não importam todos os problemas existentes entre nós, Sofia sempre
irá nos unir. E, pela primeira vez sinto-me realmente bem por ele estar ali
comigo, por compartilharmos Sofia. E percebo que, de alguma maneira foi o
que sempre quis, durante todos os anos que estive sozinha com ela.
A apresentação termina e olho para Sebastian que parece muito triste.
Sei que está se sentido deixado de lado. E me sinto meio culpada, então
seguro sua mão e lhe dou um sorriso.
– Que bom que veio. Sofia ficou feliz.
– Vou buscar Sofia – Matthew resmunga se afastando e Sebastian me
encara com as sobrancelhas erguidas.
– Qual o problema dele?
– O mesmo que o seu.
– Ciúme? De você ou de Sofia?
– Sebastian...
– Tudo bem, tudo bem, disse que não ia mais implicar com o King.
Ele poderia parar de encrencar comigo também! – De repente ele aperta
minha mão. – O que preciso saber Eve, é se ainda tenho algum direito de
sentir ciúme de você. Se pensou em nós.
Mordo os lábios com força. Sei que devo a ele uma resposta.
E a noite passada só ajudou a piorar tudo ainda mais.
Poderia dizer que, mais do que nunca, sei que não posso ficar com
Sebastian. Para quê? Matthew ainda me trata como lixo e tenho a impressão
que vai ser assim para sempre.
E dói demais.
– Ainda não sei, ok?
– Tudo bem... Será que posso levar Sofia para passear um dia destes?
Sinto falta dela.
– Claro que sim. Por que não hoje?
– Seria ótimo.
Sofia se aproxima e abraça Sebastian.
– Você estava linda, Sofia.
– Estava mesmo? Me viu tocando piano? Meu pai me ensinou!
– Vi sim, estava perfeita.
– Evangeline posso falar com você um momento? – Matthew
pergunta e me afasto alguns passos com ele.
– Meu pai ligou. Disse que saiu o resultado do teste.
– Ah claro, o teste – digo irônica. – E aí?
– Ele não abriu, está nos esperando.
– Tudo bem.
Volto para junto de Sofia e Sebastian.
– Sofia, Sebastian vai te levar para dar uma volta, o que acha?
Ela sorri animada.
– Que legal!
Matthew não parece gostar muito, porém não fala nada.
– Eu a levo para casa antes de anoitecer, tudo bem? – Sebastian diz e
Sofia se afasta de mãos dadas com ele.
Matthew me encara nervoso.
– Não devia...
– Não devia o quê? Sebastian é nosso amigo e sente falta dela. E ela o
adora. Nem pense em proibir nada!
– Como poderia proibir, ele é seu noivo, não é?
Respiro fundo.
– Matthew, quanto a isto, preciso te dizer uma coisa...
– Vai dizer que a noite passada foi um erro, que não queria trair seu
noivo? Quero te dizer algo antes. Eu queria te levar para a cama. Queria saber
se assim me livraria da obsessão que tenho por você.
De repente algo me passa pela cabeça.
– Emily sugeriu que fizesse isto? Que transasse comigo para se livrar
de mim depois?
– Não tem nada a ver com Emily.
– Mas foi ela, não foi? Ela me viu saindo do seu quarto e não falou
nada. Depois vi vocês cochichando.
– Antes de fugir sem me encarar?
– Não me sinto culpada agora que sei porque transou comigo. Eu me
sinto enojada!
Saio caminhando e entro no carro batendo a porta.
Matthew está do lado da janela enquanto dou partida.
– Vá para minha casa. Precisamos resolver esta questão do DNA.
– Eu não preciso! Já sei a resposta desta porcaria de teste que insistiu
em fazer.
– Também sei. Mesmo assim, precisamos encerrar o assunto.
– Claro, para sua irmã louca parar de me acusar pelo menos disto!
Tudo bem. Eu vou.
Tento controlar a minha raiva quando chego aos King.
Matthew já está lá, afinal, seu carro é muito mais rápido que o meu e
me recebe na porta. Nós entramos sem falar nada e todos estão reunidos na
sala de estar. Benjamin entrega o envelope a Matthew.
Antes que ele o abra, meu celular toca e vejo que é Sebastian.
– Um minuto, preciso atender... – Explico, colocando o aparelho no
ouvido – Sebastian, tudo bem?
– Eve, não fique nervosa. Eu e Sofia sofremos um acidente...
– Acidente? – Sinto meus joelhos trêmulos.
Antes que Sebastian responda, Matthew arranca o telefone das minhas
mãos.
– O que aconteceu com Sofia?
Mal posso respirar.
– Certo, estamos indo para aí – ele desliga.
– O que aconteceu? – Pergunto apavorada.
– Eles caíram da moto.
– Oh meu Deus.
– Sofia teve apenas alguns arranhões, ele disse que ela está bem, só
que eu preciso ver com meus próprios olhos. – Ele pega a chave do carro e eu
o sigo porta afora.
Nem passa pela minha cabeça ir em meu próprio carro então
seguimos em silêncio até o hospital.
Só volto a respirar direito quando vejo minha filha.
– Sofia! – Eu a toco tentando me certificar de que está bem. Ela está
sentada na enfermaria com um curativo no cotovelo.
– Estou bem, mamãe!
– Tem certeza?
– O que você estava pensando? – Escuto a voz furiosa de Matthew na
porta do quarto e me viro. Sebastian está em frente a ele no corredor. – Como
pôde colocar uma criança em perigo deste jeito? Minha filha está ferida por
sua culpa!
– Eu sinto muito, foi um acidente. – Sebastian parece péssimo,
enquanto Matthew continua furioso.
– Não me interessa!
– Eles estão brigando? – Sofia olha assustada e eu me levanto.
– Ei vocês parem. Agora! – Peço firmemente.
– Este imbecil nunca mais vai chegar perto...
– Matthew! Está assustando Sofia, por favor.
Ele respira fundo fitando Sofia que está assistindo tudo com os olhos
arregalados.
– Sim, me desculpe – Matthew entra no quarto para falar com ela.
– Sebastian, você está bem?
– Sim, apenas alguns arranhões. Sinto muito. Eu não queria machucar
Sofia. Sabe que já andamos de moto antes. Um alce atravessou a estrada e
tive que desviar então a moto caiu.
– Tudo bem, o importante é que ninguém se machucou gravemente.
– Sim, o médico falou que ela está bem. Só o machucado no cotovelo.
– Ainda bem – olho para dentro quarto e Sofia está no colo de
Matthew, que encara Sebastian com ódio extremo.
– Acho melhor você ir embora.
– Ok, eu vou. Desta vez Matthew tem razão de estar com raiva. No
lugar dele eu faria o mesmo.
Sebastian se afasta e eu entro no quarto.
O médico aparece dizendo que Sofia está bem e que foi um ferimento
leve.
– Então posso ir embora? – Pergunta sonolenta.
Matthew a leva no colo até o carro.
Seguimos em silêncio para casa e percebo que estamos indo para casa
dos King e não para a minha.
– Por que estamos indo para sua casa?
Ele não responde e decido não discutir na presença de Sofia.
Quando chegamos ele a retira do carro ainda sonolenta levando-a para
dentro.
– Ela está bem? – Emily pergunta e Matthew diz que sim.
– Sim, vou colocá-la no quarto.
Eu o sigo até o quarto e ele coloca Sofia na cama.
– Estou com sono – ela murmura, bocejando. – Vou dormir aqui de
novo?
– Não, querida – começo a responder, então Matthew responde por
mim.
– Vai sim, sua mãe vai ajudá-la a trocar de roupa e você poderá
dormir, tudo bem?
Eu o encaro irritada.
– Nós vamos embora...
– Não – ele fala tão friamente que me assusta. – Vou esperá-la lá
embaixo. Precisamos conversar.
Ele beija Sofia e sai do quarto.
Eu a ajudo a colocar o pijama e ela adormece em seguida.
Desço e encontro somente Matthew.
– Cadê todo mundo?
– Pedi para nos deixarem sozinhos.
Ele me entrega o envelope do teste de DNA aberto.
Vejo o resultado: positivo.
– Pelo menos agora sua família não tem mais dúvida.
– Eu quero a guarda de Sofia.
– O quê? – Sinto como se tivesse levado um soco no estômago. – Por
quê? Você falou que não faria isto!
– Sei o que falei. Porém não quero mais minha filha perto de
Sebastian Blake.
– Meu Deus, Matthew, é ridículo! O que aconteceu hoje foi um
acidente! Sebastian não é perigoso para Sofia.
– Não interessa. Simplesmente não quero mais. Eu sou o pai dela e
tenho este direito. Não quero dividi-la com outro homem. Já basta ter ficado
10 anos sem saber de sua existência.
– Não pode fazer isto! – Eu me apavoro. Penso em todo dinheiro dos
King. Em como poderia lutar contra eles. É um pesadelo. – Matthew me
escute, se a questão é o Sebastian...
– Sim, a questão é ele. Mas não somente. Não quero ter Sofia de vez
em quando. Só quando você permite.
– Eu nunca afastaria Sofia de você!
– Você a manteve afastada durante quase dez anos.
– E você quer se vingar tirando-a de mim! Não é justo! Sou a mãe
dela, não pode afastá-la!
Ele me encara por um momento tenso.
– Sei que você é a mãe dela. E eu o pai. Tenho os mesmos direitos
que você. Se quiser ficar com Sofia, podemos ficar juntos. – Prendo a
respiração achando que ouvi errado. – Deixe o Sebastian e case-se comigo.
Capítulo 20
Matthew
Naquele dia ligo para Janine dizendo que não poderei ir trabalhar,
explicando que ficarei com Sofia por causa do acidente.
– Está tudo bem com ela? – Janine questiona preocupada.
– Sim, apenas alguns arranhões, por precaução ficará em casa hoje.
Quero que descanse.
– Tudo bem cuidarei de tudo por aqui, fique despreocupada!
– Obrigada, Janine.
– Ah, ligou um cara do banco, não quis deixar recado.
– Certo, ligarei de volta amanhã.
Desligo e fico pensando nas minhas decisões em relação à livraria.
Continuo com as mesmas resoluções. O casamento não mudaria nada.
Mesmo assim, sinto tristeza e apreensão.
– Mamãe, quando vamos ver o papai? – Sofia pergunta.
– Hoje à noite.
– E quando vão marcar o casamento?
– Sofia, não seja ansiosa!
Ela ri.
– Mal posso esperar! – E me vejo sorrindo com ela.
Não há nada melhor no mundo do que o sorriso lindo de Sofia.
O dia passa rápido e fico apreensiva quando Jack chega em casa.
– E aí, como está a acidentada? – Ele pergunta a Sofia, que ri.
– Estou muito bem, vovô, precisa saber na novidade! Minha mãe vai
casar!
– Ah é? Isto é novidade?
– Claro que sim, ele vai casar com meu pai!
Jack me olha intrigado e suspiro.
– Sofia, suba para seu quarto, preciso conversar com o vovô.
Ela obedece e Jack cruza os braços no peito, esperando.
– Que conversa é esta?
– É a verdade. Eu e Matthew vamos nos casar.
– Sebastian já sabe?
– Contei a ele ontem à noite.
– Ah, quando ele me ligou avisando que ia dormir lá pensei que fosse
outro motivo.
– Pai! Claro que não.
– Bom, que problema teria? Não sou tão careta assim.
– Não foi nada disto! Fui contar a ele que Matthew me pediu em
casamento e que ia aceitar.
– E como aconteceu, filha?
– Matthew propôs e eu aceitei. É simples. – Eu me abstive de contar
toda a verdade a Jack.
– Simples? Até ontem era noiva de outro.
– Não sou mais. Você sabia que eu estava dando um tempo com
Sebastian.
– E Matthew resolveu do nada te pedir em casamento?
– Não foi do nada. Quer dizer, temos uma filha. Ela precisa de nós
dois.
– Está se casando por causa de Sofia?
– Estou fazendo o que é certo.
– Evangeline, Evangeline... Eu não tenho tanta certeza.
– Pai, não fique preocupado, ok? Vai dar tudo certo. – Afirmo com
uma certeza que estou longe de sentir.
– Bem, é sua vida. Espero que desta vez não seja cancelado.
– Pai!
Ele ri e pega uma cerveja na geladeira.
– E quando Matthew virá pedir sua mão?
Reviro os olhos.
– Não seja antiquado, pai!
– Certo, certo...
Ele se afasta e Sofia aparece toda feliz.
– Meu pai ligou! Ele disse que virá bem mais tarde porque teve que
viajar com o tio Carter. Posso ficar acordada esperando não é mamãe?
– Se não for muito tarde sim, porque amanhã tem escola.
– Está bem.
Nós jantamos e fico pensando a que horas Matthew pretende aparecer
e que tipo de conversa teremos.
Sinto-me meio apreensiva. Estou cheia de dúvidas e inseguranças me
perguntando a toda hora que merda estou fazendo.
E se os King convenceram Matthew que se casar comigo é um erro?
De repente escuto um carro estacionando e Sofia pula do sofá,
ansiosa.
– Será que é meu pai?
Ela corre na minha frente para abrir a porta, não é Matthew e sim
Sebastian.
– Oi, Sebastian! – Sofia o abraça.
– Oi, linda, e aí, como está este machucado?
– Está melhorando, nem dói nem nada.
– Que bom.
– Você já sabe da novidade?
Abro a boca para impedi-la de falar, é tarde.
– Minha mãe vai casar com o meu pai!
Sebastian fecha a expressão e sinto meu peito apertar.
– Sofia, acho que deveria subir e ver se não tem lição de casa.
– Mas...
– Agora! – Ordeno enfaticamente e ela acaba obedecendo.
– Sebastian, eu... – começo a dizer depois que Sofia se afasta.
– Não precisa me dar explicações. Eu já devia imaginar.
– Sinto muito.
– Acho que devo me conformar, não é?
– Quem está aí? – Meu pai aparece e fica surpreso ao ver Sebastian.
– Ah, é você?
– Oi, Jack.
– Evangeline, eu vou dormir.
– Boa noite, pai.
– Boa noite, Jack. – Sebastian me encara quando Jack se afasta. – Eu
vim aqui conversar, pode ser?
Hesito. Matthew disse que viria também, mas não seria justo colocar
Sebastian para fora por causa disto.
– Tudo bem, entre.
Ele me acompanha até a sala.
– Fiquei meio chocado com o que me contou ontem.
– Imagino. Me desculpe por nunca ter contado antes. Eu tinha... muita
vergonha.
– Agora entendo todo seu problema com os King.
– Acha que eles têm motivo para me odiar, não é?
– O que você fez foi muito errado.
– Eu sei. Por isto hesitei tanto em te contar.
– E Matthew ainda te odeia por causa disto?
Dou de ombros.
– Mas te pediu em casamento.
– Não podemos mais ficar agindo em função do passado. Agora
temos Sofia.
– Ainda não entendo.
– Acho que por um lado nem eu entendo. Só espero estar fazendo a
coisa certa.
– Você ainda gosta dele?
– Não tenho mais 17 anos, não posso mais ficar pensando nisto... –
enrolo na resposta, Sebastian segura meu braço.
– Eve, seja sincera comigo pelo menos uma vez na vida! Se não sente
nada por este cara, não posso permitir que se case com ele. Terminou comigo
justamente por não gostar de mim desse jeito!
– É diferente. Nós temos Sofia.
– Sabe que não é motivo suficiente! Se você entrar neste casamento
somente por causa de Sofia estará cometendo um grande erro ela vai perceber
que existe algo errado!
Respiro fundo, angustiada.
– Sebastian, por favor...
Ele não me solta.
– Vamos, me responda. Você ainda gosta dele?
– Gosto – admito vencida.
E este era meu grande problema, afinal.
Porque não tinha ideia do quanto Matthew gostava também.
E isto me dava medo.
De repente batem à porta e Sebastian me solta.
Vejo Sofia descer como um raio.
– É meu pai, é meu pai! Ouvi o carro dele.
E ela abre a porta, se jogando em cima de Matthew.
– Papai! Você veio!
Matthew não está sorrindo para Sofia. Está olhando furioso para mim
e Sebastian.
– O que faz aqui?
Eu lhe lanço um olhar de advertência.
– Sebastian já está indo embora. Por que não sobe com Sofia? Já
passou da hora de ela dormir.
Matthew parece finalmente notar que está perdendo a paciência na
presença de Sofia e recua.
– Eu não quero dormir!
– Mas precisa. Está tarde. Seu pai vai te colocar para dormir, aí
poderá ficar um pouco com ele, tudo bem?
Preciso afastar Matthew de Sebastian antes que a situação piore.
– Tudo bem.
Matthew não faz objeção em subir com Sofia.
– Acho melhor você ir embora, Sebastian.
– Ok, percebi que não sou bem-vindo.
– Não fale assim.
– E nem posso culpá-lo. Eu faria o mesmo. Tchau Eve!
Ele finalmente se afasta e fecho a porta atrás dele.
Penso em subir, depois decido ficar. Volto para sala, apago a luz e
vou para a cozinha.
Preciso de um chá para me acalmar então coloco a água no fogo.
Não demora muito para Matthew aparecer.
– Sofia dormiu? – Pergunto, tentando manter a conversa casual.
– Dormiu.
– Estou fazendo um chá.
– O que Sebastian Blake estava fazendo aqui?
– Nós estávamos conversando.
– Não gosto de vê-lo com você.
– Ele é meu amigo.
– Era seu noivo.
– Agora sou sua noiva, não é? – Rebato irônica.
– Espero que ele não se esqueça.
– Ele lembra sim. E espero que você se lembre de ser menos idiota!
Não vou aceitar que decida a quem devo ver ou não! Sebastian faz parte da
minha vida e da de Sofia, não posso afastá-lo porque você tem cisma dele!
– Não é cisma!
– O que é então?
– Fiquei com ciúmes quando o vi com você.
Paro de respirar por um instante.
– Não deve ficar. Eu disse que vou me casar com você, Matthew, não
disse?
O ar na cozinha está carregado de tensão enquanto Matthew se
aproxima.
– Eu precisava ter certeza. – Então ele tira do bolso uma caixinha e,
ao abri-la, vejo um anel de noivado.
Meu coração dispara alarmantemente no peito.
– Não fiz o pedido do jeito certo ainda... – mal consigo respirar
quando ele tira o anel da caixa e segura minha mão trêmula. – Evangeline
Evans, casa comigo?
Capítulo 21
Evangeline
***
Matthew
Evangeline
Evangeline
Evangeline
Matthew
Fim
Linha da Vida
Juliana Dantas
Copyright © 2017 por Juliana Dantas
Thomas
— Não transável.
Eu olhei de novo para a garota desajeitada de óculos e rabo de cavalo
em frente do púlpito, segurando uma folha de papel com as mãos trêmulas,
onde se viam unhas ruídas até o topo e, alguma coisa suja que eu não
consegui definir o que era.
Eu era um futuro estudante de medicina e minha mente analítica se
prendia em detalhes.
— Eu não sei... – Meu amigo James parecia em dúvida.
— Você quer comer aquela nerd?
— E daí? Somos nerds também!
— Fale por você!
Eu odiava quando me classificavam assim.
Tirar nada menos que A desde o Junior High não ajudava muito. No
entanto, nerds eram caras cheios de espinhas e com cabelos mal lavados,
corpos franzinos usando roupas sem estilo e que não fodiam ninguém.
Eu era o oposto. Então, vinha tentando desfazer aquele equívoco.
— Se não somos nerds o que estamos fazendo num sarau de poesia? -
Rick indagou do meu lado direito.
Eu achei que ele estivesse dormindo.
— Nós viemos pelas gostosas – James respondeu e eu revirei os
olhos.
— Você prometeu gostosas, até agora só o que eu estou vendo é a
garota sem graça no palco – resmunguei.
A garota no palco em questão começou a ler o poema em suas mãos e
eu tentei prestar atenção.
Liz
— Ah, ele é tão lindo - a voz de gralha suspira e eu rolo os olhos pela
sala de descanso horas depois.
— Ah até eu tenho que admitir Jenny, ele é mesmo muito gato – a
outra garota diz com a mesma voz sonhadora.
— Nem vem Julie, ele já é meu!
— Seu e da metade das mulheres deste hospital eu aposto –
resmungo.
— Ei, a atrasadinha – a garota baixinha me estuda – e aí, seu nome é
Elizabeth, não é?
— Liz, pelo amor de Deus, me chama de Liz!
— Oi Liz, eu sou a Julie – a outra sorri. Parece simpática, embora não
inteligente já que está caída pelo doutor escroto.
— E eu sou Jenny. E aí, o que achou do doutor gato?
— Um cretino.
— Nossa, por que tanto ódio? Você é uma daquelas garotas
feministas ou é lésbica mesmo?
— Você é lésbica? – O garoto chamado Mark aparece me encarando
com cara de terror.
Eu suspiro.
— Não, não sou, posso saber como minha sexualidade entrou em
pauta?
— Ei, só estava checando! – Jenny se defende – seria legal se você
fosse, uma a menos para disputar o doutor gostoso.
— Achei que fosse o doutor gato – Julie pergunta confusa.
— Pode ficar tranquila eu não faço a menor questão de disputar
aquele babaca.
— Bom, deve ter alguma coisa errada com seus olhos para não ver o
quanto ele é quente!
— Para com isto, Jen, talvez ela só tenha um namorado.
— Você tem? – Mark parece com dor de barriga de novo, mas antes
que eu consiga responder, uma médica nos interrompe. Ela é jovem e bonita,
com cabelos e olhos escuros que fazem os rapazes a medirem interessados.
— Ei, internos, menos conversa e mais trabalho! Eu sou a doutora
Chloe Martinez, venham comigo.
— Eu preferia o doutor Hardy – Jenny resmunga.
— Ah, o que temos aqui, mais uma deslumbrada pelo Thomas?
— E daí?
— E daí, que se eu fosse você ficava bem longe da fila para entrar no
parque de diversões do Dr. Hardy.
— Tem fila? – Jenny faz uma careta.
Mark ri.
— Deve chegar até a China.
— Que horror – Julie parece mortificada. Acho que ela estava se
retirando da fila.
— Bom, é só um aviso...
— Talvez eu queira pegar a senha... – Jenny insiste.
— Ok, querida, apenas não se apaixone. Caras como o Doutor Hardy
servem apenas para uma garota dar uma volta.
— Hum...
Eu mordo os lábios com força. Ah se alguém tivesse me dito isto há
mais tempo...
Oito anos antes
Thomas
Liz
Thomas
Liz
Não consigo evitar o alívio que sinto quando vejo Thomas sair. Eu
vinha tentando disfarçar meu desconforto desde que chegamos ao bar
irlandês. Eu estava ali por causa da forte pressão dos meus colegas, quando
tudo o que eu queria era ir pra casa tomar um longo banho e gritar bem alto
pra extravasar minha raiva daquele dia de bosta.
Infelizmente, todos meus digníssimos colegas insistiram que eu
precisava comemorar nossa sobrevivência ao primeiro dia de residência
médica tomando um porre.
Como se amanhã cedo a gente não tivesse que estar no hospital
inteiros!
Então eu acabei concordando e tentei fingir não notar que Mark
Geller parecia muito feliz, enquanto passava seus braços de mãos cheias de
dedos por meus ombros e seguíamos para o bar.
Podia mesmo ser relaxante me afogar no álcool em vez de ruminar
minha raiva sozinha em casa.
O que eu não esperava era me deparar com o motivo da minha
desgraça no bar.
Que inferno Thomas tinha que estar ali? Agora seria sempre assim?
Para onde eu me virasse eu me depararia com a fuça bonita, porém ordinária
daquele cara?
Por um momento nossos olhares se encontraram e se prenderam e eu
tentei evitar o traidor arrepio trespassando a minha espinha e as batidas
erráticas do meu coração que deveria estar calejado do sofrimento que aquele
cretino me fizera passar. Mas não, parecia que ele havia esquecido o quanto
tinha sofrido há oitos por aquele imbecil e tinha batido descompassado,
ameaçando pular do meu peito, simplesmente porque Thomas estava me
encarando com aqueles olhos azuis que pareciam querer mergulhar nos meus
e...
Eu consegui a muito custo conter a onda ridícula dos meus
pensamentos suicidas e desviei o olhar e dali em diante foi só cerveja e
falsidade.
Eu ri de todas as piadas toscas de Benjamin e Jenny e até ignorei a
mão boba de Mark nos meus ombros. E foi com um suspiro de alivio que eu
relaxei ao ver a razão do meu tormento desaparecer porta a fora.
— Ei, a gente podia sair pra jantar amanhã.
— Oi? – Eu encaro Mark que está ridiculamente vermelho.
— Jantar. Eu e você.
— Ah Mark, eu não sei... estou meio que ocupada...
— Deixa a garota em paz, Mark, ela não está interessada em você –
Jenny grita e dá pra perceber pela língua enrolada e pelo tom estridente de
sua voz normalmente chata que ela já está bêbada.
— Eu só estava convidando-a pra jantar, não era um encontro nem
nada – Mark explica mais vermelho ainda.
Pobre Mark.
Eu quase tenho vontade de aceitar sair com ele só pra ver a chata da
Jenny engolir suas palavras. Como não seria uma boa ideia, decido por uma
mentirinha.
— Mark, você é um cara legal – eu digo com um sorriso de desculpa
– mas eu meio que tenho um namorado.
A expressão de Mark cai.
— Ah... nossa, eu devia saber que uma garota como você teria
alguém...
Eu mordo os lábios e dou de ombros, bebendo um longo gole do meu
copo. Tentando não me sentir culpada por ter aumentado a realidade.
— Bom, eu preciso ir – digo algumas horas depois, todo mundo na
mesa está super bêbado. Sam está paquerando a bartender. Julie está no colo
de Benjamin com a língua dentro de sua boca e Mark está se agarrando com...
Jenny! O que as pessoas alcoolizadas não são capazes de fazer!
Eu me levanto e ninguém se dá conta da minha ausência. Eu deixo
algumas notas no caixa e ponho meu casaco, saindo do bar.
— Ei, linda, quer uma carona? – Escuto a voz atrás de mim e me viro
para ver o Doutor Erick sorrindo encostado na parede.
Eu rolo os olhos.
Carona? Sei bem o que ele esperava.
— Não obrigada – Sacudo as chaves do meu mini cooper – eu estou
dirigindo.
— Não está bêbada pra dirigir?
— Estou mais sóbria que você, com certeza.
— Mas eu poderia te acompanhar.
— Não!
— Ok – ele sorri e levanta os braços – é melhor mesmo eu ficar longe
da garota do Thomas.
Eu me volto, chocada.
— O que disse?
— Nada.
— Você disse garota do Thomas? Está louco?
— Eu não disse nada, relaxa!
Eu bufo.
— O que foi que seu colega te disse? Ele contou que já saímos
juntos? Pois saiba que aconteceu há muito tempo e não dá a ele o direito de
me chamar de sua garota, porra!
Erick arregala os olhos surpreso.
— Você e Thomas já saíram?
Ah merda. Ele não sabia.
Droga!
— Ah, vai pro inferno! – Eu me viro para entrar no carro, então me
volto para Erick.
— Nem uma palavra sobre isto com ninguém no hospital, ok?
Ele não fala nada, como se a língua tivesse sido arrancada de sua
boca.
Eu entro no carro e saio cantando pneu.
Que grande linguaruda Liz!
Dirijo até minha casa me sentindo cada vez mais cansada. E não só
fisicamente. Aquele dia foi emocionalmente esgotante.
Primeiro dia no hospital já seria um drama. Mas, reencontrar Thomas
Hardy pode ser considerado uma tragédia.
Estaciono na garagem e subo pro meu apartamento disposta a me
fechar em meu cantinho e pensar no que eu faria da minha vida. Mas paro
surpresa ao ver uma pessoa dormindo encostada na minha porta.
— Peter!
Ele abre os olhos castanhos sonolentos e sorri enquanto eu vou em
sua direção.
— Ei Lili.
— O que faz aqui?
Ele se levanta.
— Eu vim comemorar seu primeiro dia – sorri timidamente,
mostrando uma garrafa de vinho.
E é a minha vez de sorrir, embora cheia de culpa.
— Você podia ter avisado que viria! Eu estava num bar com meus
novos colegas – abro a porta e ele me segue para dentro.
Ainda é o mesmo apartamento que minha mãe me deu quando eu fiz
18 anos e entrei na faculdade. Mesmo depois de eu ir pra escola de medicina
em Yale, eu continuava voltando, ali era minha casa.
— Eu queria te fazer uma surpresa – ele diz, tirando o casaco e
jogando no sofá. Eu faço o mesmo e também tiro os sapatos. – Agora vejo
que não foi uma boa ideia.
— Não mesmo.
Eu prendo os cabelos num coque e nos encaramos.
É um momento meio estranho tê-lo ali.
Já faz alguns anos que eu conheço Peter White. Nos conhecemos na
faculdade e nos tornamos amigos imediatamente. Depois de alguns meses,
tomamos um porre juntos e acabamos na cama.
Foi o começo de uma longa e bela amizade colorida, que resistira até
ao fato de eu ter saído da cidade pra estudar medicina, enquanto ele ficara e
arranjara um emprego na construção civil (Peter era engenheiro). Era um bom
arranjo pra uma pessoa como eu. Que se tornou alérgica a relacionamentos e
deus me livre, amor, depois da desilusão com aquele que eu preferia não
nomear até hoje, mas agora não adiantava nada fugir do seu nome.
Depois da desilusão com o cuzão do Thomas Hardy.
Peter me entendia e gostava de mim do jeito que eu era e nosso
arranjo sempre foi perfeito para nós porque éramos amigos acima de tudo.
Ao longo daqueles anos, ele saíra com outras garotas e até havia
namorado algumas. Assim como eu tive a minha cota de romances de uma
noite, como qualquer universitária. Mas nós sempre podíamos contar um com
o outro para um pouco de carinho e conversa sincera. E um tantinho de sexo
também, porque não?
Peter era bem gato, com sua tez morena e cabelos pretos e com ele eu
não precisava ficar me preocupando se estava de cabelo penteado ou de
lingerie bonita. Também não precisaria me preocupar com desculpas para
mandá-lo embora no dia seguinte, como acontecia com outros caras.
Eu adorava Peter por isto.
Porém, desde o último verão, antes de eu voltar de vez pra cidade para
fazer residência, as coisas andavam estranhas.
Eu havia ligado pra ele convidando-o para viajar comigo, fazer um
tour pela Europa antes de me jogar de vez na vida de médica residente e ele
me contou que estava namorando.
— Ah, jura? Que ótimo – eu tentei disfarçar minha decepção. Não era
ciúme nem nada. Peter já namorara outras vezes e eu até cheguei a conhecer
algumas delas. Não que a gente continuasse transando quando ele estava
namorando. Peter era um cara fiel. A gente “dava um tempo” nas transas e
entrava no modo amigo. E eu sempre me perguntava quando uma daquelas
garotas seria “a garota” e eu e Peter entraríamos no modo amigo pra sempre.
Até agora, os relacionamentos dele nunca deram certo. E ele sempre voltava
pra nossa amizade colorida.
— Sim, o nome dela é Hannah, acho que já te falei dela.
— Hum sim, eu me lembro. – Hannah era uma amiga de infância de
Peter e eu sentia sim pouco de ciúmes porque ela era amiga dele muito antes
de mim, quase da família. E agora eles estavam namorando? – Quer dizer que
estão namorando, achei que fossem amigos? – Me incomodou pensar que
Peter era amigo colorido de Hannah como era meu.
— Por que acha estranho? Amigos podem se apaixonar...
— A gente não se apaixonou – revidei. Nem sei porque. Não era
como se eu quisesse me apaixonar por Peter era?
De repente eu me toquei por que estava brava. Era por isto. No fundo,
eu sempre desejei me apaixonar por ele. Desejei acordar um belo dia, e estar
livre daquele fardo que eu carregava no meu peito. Aquela dor que, por mais
que o tempo passasse, se recusava a desaparecer.
Eu era mercadoria avariada. Nem Peter conseguiu me consertar.
Então porque doía saber que ele estava seguindo em frente sem mim?
Eu era muito egoísta. Devia deixá-lo ir.
— Lili...? – Ele falara do outro lado da linha e eu percebi que depois
da minha última frase, nós tínhamos ficado em silêncio.
— Ei, esquece. Foi bobagem dizer isto! Eu estou muito feliz por você
e Hannah. Me conta, o que vão fazer no verão?
— Nós vamos acampar nas montanhas.
— Uau, que romântico, senhor White.
— Você me conhece – ele rira – porém agora estou me sentindo
culpado por não poder ir com você... Se tivesse me falado antes...
— Não seja tolo! Eu vou com Valerie.
— Valerie? Ainda são amigas?
— Claro – menti. Eu e Valerie não nos falávamos há tempos. Nossa
amizade não resistiu aos anos – Eu já tinha comentado com ela, acho que vai
ser ótimo. Uma viagem de garotas.
Eu consegui enrolar Peter e depois minha mãe acabou me
convencendo a viajar com ela, na sua interminável tour de palestras pelo país.
O que foi um porre. Pelo menos eu não fiquei sozinha.
E agora Peter estava ali de novo. Com uma garrafa de vinho.
— Hum, como está Hannah? – Faço a pergunta que não quer calar.
Ele coça o cabelo.
— A gente terminou.
— Sério? Eu sinto muito, Peter – e eu sentia mesmo. Eu tinha me
acostumado com a ideia de ele namorando e até me convencera de que ela
podia ser “a garota”. Peter merecia ser feliz. – O que aconteceu?
— Que tal abrir o vinho e eu te conto?
— Não sei se seria saudável eu beber mais. Já tomei umas cervejas!
— Uma taça não vai te matar.
— Sei! – Ele abre a garrafa e eu pego duas taças.
E uma hora depois nós estamos no sofá, embalados pelo vinho com
Peter me contando tudo sobre ex.
A tal Hannah aparentemente era uma doida ciumenta e por isto Peter
terminou com ela, depois de muitas brigas.
— Você não sabia que ela era assim?
— Ela é uma amiga legal. Mas como namorada, foi difícil.
— Sinto muito, você estava apaixonado?
— Acho que sim.
Eu toco sua mão.
— Talvez ainda consigam voltar.
— Eu não sei – ele entrelaça os dedos nos meus. Fácil. – E você?
— Eu?
— Sim, como foi a viagem com a sua mãe? Ainda não acredito que
trocou a Europa por Bárbara!
— Eu sei! – A gente ri – Sabe como é minha mãe, ela consegue me
convencer das coisas mais absurdas e me fez acreditar que seria ótimo pra
minha carreira médica!
— Que merda de férias hein?
— Pois é!
— E como foi seu primeiro dia?
Eu solto sua mão e encho mais a taça, embora tenha dito que não ia
beber, já era a terceira.
A agradável companhia de Peter tinha me feito esquecer o fiasco que
fora aquele dia, agora toda a merda voltava a minha mente.
— Uma porcaria – murmuro tentando sorrir, sem o menor sucesso.
— Oh, Lili, tão ruim assim?
Eu dou de ombros.
— Primeiros dias são difíceis né? Acho que com o tempo eu me
acostumo.
— E foi só isto? – Seu olhar sonda o meu – porque acho que tem
coisas que não quer me contar?
Eu desvio o olhar, enterrando meu rosto na taça.
De repente quero contar a Peter sobre o único segredo que eu havia
guardado dele. Quero contar sobre Thomas, mas me calo.
Eu nunca fui capaz de contar a Peter sobre minha breve relação com
Thomas e o quanto aquilo me feriu. Acho que Peter desconfiava que houve
alguém na minha vida que me magoara, mas eu nunca me senti à vontade
para contar a ele. E nem a ninguém.
— Estou com sono. E bêbada – eu me levanto pegando as taças e a
garrafa levando-as pra cozinha.
E, quando estou voltando, me choco com o corpo de Peter que está
muito perto do meu.
E então, sem aviso, ele está me beijando.
Minha primeira reação é empurrá-lo.
— Peter, não é uma boa ideia – eu descolo nossos lábios, porém ele
não me solta.
Uma parte de mim não quer que ele solte.
— Por que não? Eu senti saudade de você.
— Eu também senti, mas... Você acabou de terminar com a Hannah,
ainda está apaixonado por ela...
— Hannah não tem nada a ver com isto. – Ele me faz encará-lo – isto
é a gente. Sendo o que a gente sempre foi. É o que estou precisando agora. O
que eu senti falta.
E ele me beija de novo. Desta vez eu não me afasto.
E deixo que ele me leve pra cama.
***
O dia mal amanheceu e eu já estou acordada. Seguro uma xícara de
café e olho o sol se infiltrando por entre as nuvens.
Eu ainda estou com sono, mas me sinto inquieta demais pra dormir.
Naquela noite, nem os braços de Peter me aquietaram.
O sexo foi bom como sempre, então, depois ele dormiu e eu fiquei
acordada um longo tempo, ruminando o que eu ia fazer no dia seguinte.
Eu não queria voltar ao hospital e ver Thomas de novo.
No entanto eu sabia bem lá no fundo que não podia sair de lá. Minha
mãe não permitiria.
Sei que era ridículo, uma mulher adulta de 26 anos ter medo da mãe.
O problema é que Bárbara faria da minha vida um inferno se eu pedisse pra
trocar de hospital. O Mercy era o melhor hospital de Chicago e ela mesma
fizera sua residência lá.
Então eu me obriguei a dormir, conformada que eu teria que ser forte
e aguentar o tormento que seria ter Thomas Hardy por perto.
Só que com o sono vieram pesadelos.
Todos envolvendo Thomas e coisas que eu queria esquecer. Até que
eu desisti de dormir e me levantei, tomando um longo banho.
— Ei, já acordada? – Peter aparece no corredor e eu sorrio.
— Daqui a pouco tenho que trabalhar.
— Claro, doutora Spencer – ele sorri, vem até mim e me beija.
Eu me sinto pouco à vontade agora que não estou mais bêbada e
estamos à luz do dia.
Peter percebe e se afasta. E é sensato em não falar nada, embora
perceba algo estranho em seu olhar.
— Vou tomar um banho antes de puxar o carro, ok?
— Fique à vontade! – me levanto – e vê se não acaba com meu
shampoo.
Ele ri e se afasta pro banheiro.
Vou para o quarto e me arrumo para trabalhar. E, quando estou indo
para a cozinha preparar algo para comer, levo um susto ao ver a porta se
abrindo e minha mãe entrando sem cerimônias.
— Bom dia, querida.
— Mãe, que diabos está fazendo aqui? – E por que demônios ela tinha
minha chave ainda?
— Por que esta cara?
— Você estava num simpósio...
— Tenho dois dias de folga. Decidi vir ver minha filhinha! – Ela se
aproxima e coloca várias sacolas de mercado na bancada da cozinha.
— O que é isto?
— Comida, oras! Tenho certeza que não está se alimentando direito!
Eu rolo os olhos.
— Mãe, fala sério!
— Não faça esta cara! Agora que está trabalhando, precisa comer
melhor ainda! Já deve ter percebido que plantões não são fáceis!
— Eu sei me alimentar, não precisa vir me trazer comida!
Ela revira os armários que estão realmente vazios.
— Não estou vendo nada aqui! E este vinho e... – Seus olhos recaem
sobre a garrafa de vinho vazia e as duas taças sujas sobre a pia.
Seu olhar de ave de rapina se prende em meu rosto culpado.
— Teve companhia ontem?
— É...
— Ei, Lili, tem cereal aí?
Peter escolhe aquele momento pra sair do quarto, graças a Deus
vestido.
Ele para ao ver Bárbara.
— Oh, olá Bárbara.
Minha mãe não retribui o cumprimento, seu rosto se contrai quando
ela entende o que Peter está fazendo ali.
— Mãe, não preciso apresentar o Peter, não é?
— Eu conheço o Peter White seu amigo, não o... – Ela escolhe as
palavras – namorado...?
— Mãe, por favor! – Eu começo a me irritar.
— Bom, acho melhor eu dar o fora! Foi bom rever você Bárbara! –
Peter pega o casaco e acena pra mim – eu te ligo Lili.
Ele fecha a porta atrás de si e Bárbara me encara.
— O que está acontecendo aqui?
— Que pergunta mãe, não é obvio?
— Está namorando Peter White?
— Não! Nós somos amigos.
— Amigos com benefícios? Eu não sabia.
— Porque não é da sua conta!
— Calma! Eu só me preocupo com você! Se Peter for apenas um
amigo, tudo bem. Só não pode se envolver em algo sério!
— Por que não? Peter é um cara legal – eu retruco só pra fazer um
ponto. Ela não tinha o direito de ficar ditando o que eu devia ou não fazer na
minha vida amorosa.
— Não pode deixar nenhum homem te tirar do seu caminho de
sucesso. – Bárbara diz enfaticamente – Você não se lembra o que aconteceu
quando se apaixonou antes?
— Eu tento esquecer, você é que faz questão de ficar lembrando! – Eu
grito irritada.
E Bárbara recua.
— Nossa! Calma! Eu só falei pra te lembrar o que acontece quando
confiamos nos homens!
— Já chega mãe! Que inferno este assunto!
— Ok, me desculpa. Agora me conta como foi ontem?
— Mãe... estou atrasada. – Eu pego meu casaco e as chaves do carro.
— Mas já? Eu queria que a gente conversasse durante o café...
— Não vai dar.
— Podemos jantar juntas pelo menos?
— Tudo bem eu vou até sua casa, ok?
Eu saio e bato a porta atrás de mim, deixando Bárbara e sua insistente
necessidade de me controlar para trás.
Ligo o som do carro e respiro fundo várias vezes.
A música que está tocando é muito conhecida pra mim e me faz
mergulhar de volta no passado...
Oito anos antes
Thomas
***
Liz
Thomas
***
Naquela noite, eu ligo para a única pessoa que sabia da minha história
com Liz e o encontro no bar próximo ao hospital.
— E aí, cara, quanto tempo – Josh senta do meu lado e pede uma
cerveja. Eu já havia perdido a conta de quantas tinha bebido e a merda era
que o álcool não estava fazendo seu trabalho. Por mais que eu bebesse hoje
eu não conseguia me desligar da realidade.
— Mais uma – resmungo para a bartender, que hoje teve o bom senso
de não se insinuar, certamente percebendo meu humor. Ou estava esperando
eu ficar bêbado para atacar. Bom, hoje ela não estava com sorte se esta fosse
sua intenção.
Josh levanta a sobrancelha, onde brilha um piercing.
— Hum, por que eu acho que esta não é uma noite como as outras,
onde vamos beber e pegar umas garotas?
— Lembra da Liz?
Josh quase cospe a cerveja.
— A Liz? A sua Liz?
Um riso amargo fecha minha garganta.
— Sim, essa Liz, mas não mais minha, certamente.
— Sim, claro que eu lembro.
— Ela é uma interna no hospital.
— Espera aí: quer me dizer que aquela Liz que você comia há oito
anos e que as coisas não acabaram nada bem, agora trabalha no mesmo
hospital que você?
— Ela não só trabalha no mesmo hospital. Eu sou seu chefe. Ela é
uma das internas, começou esta semana.
— Cara... – Josh assovia – isto é inesperado.
— Só isso que tem a dizer?
— Quer que eu diga o quê?
Sim, o que eu queria que Josh dissesse?
Ele estava lá quando tudo aconteceu. Desde o começo.
Ele sabe de todas as merdas.
Talvez por causa disto eu esperasse que ele tivesse algo a dizer.
— Mas e aí? – Ela continua gata?
— A mulher mais linda do mundo – pro Josh eu não precisava mentir.
Ele sabia que eu fui louco por Liz.
Ele só não faz ideia de que esta loucura perdura até hoje.
— Hum, e aí?
— E aí que minha vida virou um inferno – eu tomo um longo gole de
cerveja.
— Sei... Acho que é melhor me contar tudo em detalhes pra eu
entender. Eu achei que esta história tinha ficado lá trás, afinal se passaram
oito anos. Eu tive muitas namoradas e algumas com histórias que também
não acabaram nada bem, mas cara acho que nenhuma ia transformar minha
vida num inferno se eu a encontrasse hoje.
— Eu queria dizer o mesmo. Também já tive muitas garotas nestes
oito anos e antes e algumas certamente me odeiam....
Josh ri.
— Isto porque algumas não aceitam o aviso de “sem compromisso” e
insistem em se apaixonar por você. Espera... é isto? A Liz é uma destas que
ainda é apaixonada por você?
— Não. A Liz me odeia.
— Hum, deve estar sendo difícil mesmo. Mas... oito anos depois? Eu
não me lembro da cara de quem eu estava pegando há dois anos, que dirá
oito! Por que vocês estão encrencando com isto?
— Eu me pergunto o mesmo!
— Olha, eu sei que ela era uma tremenda gata. Sei que você foi
amarradão nela. Sei que as coisas acabaram mal, mas... aconteceu faz tanto
tempo! Não consigo entender porque ainda.... Wow – ele para me encarando
– Você ainda gosta dela!
— Não! – eu faço uma careta.
Josh ri mais.
— Claro que sim! Ainda quer comer ela, não é seu filho da puta?
Cara, qual o problema? Certamente nunca foi difícil pra você! Basta lançar
este sorrisinho sacana que as minas já abrem as pernas! Porra, eu mesmo já
peguei algumas por sua causa!
— Você não ouviu o que eu disse? As coisas não são tão simples
assim, a Liz me odeia!
— Ah, agora começo a entender. Você quer a Liz e ela não te quer.
— Eu sei que ela quer ficar comigo, só não quer esquecer o que
aconteceu...
— Hum, não dá pra culpá-la não é?
— Não sei por que eu sou o sacana da história se ela não era tão
inocente assim!
— Ei, calma! Acho que temos bastante ressentimentos aqui hein?
Deveriam ter pago uma grana pro analista, hoje não estariam assim, cheios de
grilos!
— Vai se foder, Josh! Nem sei porque achei que poderia me ajudar.
— Eu realmente não sei como te ajudar. O que diabos você quer?
— Eu quero... – Respiro fundo, tentando externar o que estava me
matando por dentro – eu a quero de volta. – Digo com todas as palavras e é
como se tirasse um peso do meu peito.
Sim. Eu a queria de volta e não sabia como convencê-la e isto estava
me deixando louco.
— Ah... Agora sabemos qual o verdadeiro problema.
— A merda é que ela é uma interna. Além de ser proibido...
Josh ri.
— Esse fato nunca foi problema.
— Eu sei. Só que desta vez prometi pro meu pai.
— Eu tenho certeza que esse não seria uma proibição que faria você
ficar longe dela. O problema é que Liz não está disposta a ceder desta vez.
— Eu sei. Eu estou ferrado, cara.
Josh bate nas minhas costas.
— Olha eu acho que deveria tentar esquecer a Liz. Não acabou bem
antes e agora pode ser pior ainda.
— Acho que tem razão.
***
Liz
O show estava lotado naquela noite e ainda não era Josh que estava no
palco.
Eu fiquei procurando Thomas por entre as pessoas.
Não demorou para que eu o avistasse. Ele estava com uma cerveja na
mão e ria junto com alguns caras da banda de Josh.
— Oi – eu me aproximei.
Ele sorriu ao me ver me puxando pra ele.
— Oi, gata! – Sua boca desceu sobre a minha e eu ri me afastando.
— Podemos conversar?
— Agora? – Ele quase gritou por cima do som.
— Sim, não posso esperar! – Insisti, ficando séria.
Ele franziu a testa.
— Não vai me dizer que está brava comigo? Eu liguei mais cedo, para
te chamar e você não atendeu.
— Eu sei... Aconteceram umas coisas... Por isso quero conversar com
você.
Ele passou a cerveja para a mão de Josh que tinha acabado de chegar.
— Ei, aonde vão?
— Algum lugar com menos barulho – Thomas respondeu.
— O Backstage – Josh gritou atrás de nós e foi para lá que Thomas
me levou.
A próxima banda que ia tocar estava por ali, mas com certeza havia
menos barulho.
Assim que chegamos lá, Thomas me prensou contra uma parede e me
beijou. Por um momento eu pensei em esquecer a conversa e ficar de amasso
com meu namorado.
— Hum, você tem um gosto bom – ele mordeu meu lábio e eu ri.
— E você tem gosto de cerveja.
Em resposta, ele me prensou ainda mais apertado. E eu adorei.
— Que bom que veio, não deveria ter ido embora hoje à tarde – sua
boca fez um caminho até meu pescoço.
— Eu tinha que jantar com a minha mãe...
— Nosso tempo está se esgotando, não quero perder um minuto...
Eu respirei fundo e o afastei.
— É exatamente sobre isso que quero falar – mordi os lábios
contendo um sorriso – nosso tempo não está se esgotando!
De repente, ele desviou o olhar, passando os dedos nervosamente
sobre o cabelo.
— Liz, você sabia que eu estava indo pra Harvard. Nós só ficaremos
juntos por esta semana.
— Sim, eu sei que vai pra Boston na próxima semana. O que quero
dizer é que eu vou também! – Sorri largamente, toda empolgada.
Thomas franziu a testa.
— Não entendi.
— Eu vou com você pra Boston! – Me aproximei, minhas mãos
querendo tocá-lo, Thomas se afastou.
— Que papo é este? Você está indo pra faculdade aqui em Chicago.
— Não mais!
— Como assim!
— Olha, eu tomei minha decisão. Eu não vou mais pra faculdade. Eu
vou pra Boston. Com você.
— Liz... o que está dizendo... é absurdo.
— Não é não! Eu até já arranjei um emprego. Alan vai me ajudar, se
lembra dele? Meu ex-chefe? Ele tem um amigo lá. Eu já cuidei de tudo, vai
ser incrível!
— Liz... eu... – Thomas parecia verdadeiramente chocado e, de
repente, eu me senti compelida a tranquilizá-lo. Claro que ele estava chocado.
Eu estava despejando tudo em cima dele de uma vez, sem aviso.
Nós nunca antes tínhamos conversado sobre os rumos do nosso
relacionamento. Estávamos mais preocupados em vivê-lo.
— Quer dizer, sei que não conversamos sobre esse assunto, mas...
Thomas eu te amo – sussurrei o que ainda não tivera coragem de dizer em
voz alta – e eu quero ir com você aonde você for!
E ali, eu esperei pelas palavras que fariam eco com as minhas.
— Liz...
— Sim...
— Eu não quero que vá comigo.
Por um momento, eu não entendi.
— Thomas, sei que não esperava, mas eu estou segura, já tomei
minha decisão, eu te amo!
— Mas eu não te amo! – Sua voz saiu alta, por cima do som que a
banda começava a tocar, ensaiando.
Eu senti como se tivesse levado um tapa na cara. Ali, parada naquele
corredor escuro, com Thomas olhando pra mim atordoado depois de dizer
que eu estava enganada o tempo inteiro.
Ele não me amava.
Ele não queria que eu fosse com ele.
Ele não me queria.
Senti dificuldade de respirar.
— Você não me ama... – murmurei, como se para convencer a mim
mesma, porque era difícil de acreditar. Não podia ser.
Eu era inexperiente, mas eu não podia ter errado tanto.
Mas ele nunca disse em palavras, depois de tudo o que a gente viveu...
Oh Deus...
Eu não podia ter sido tão idiota...
— Eu achei... eu pensei... – uma lágrima solitária rompeu a barreira
dos meus olhos.
— Porra, Liz, não chora! – Ele levantou as mãos, como fosse me
tocar, desistiu no último segundo. – Inferno, eu achei que você tivesse
entendido que era só um lance.
— Um lance... – repeti as palavras.
— Sim, um lance bom pra cacete, mas era só.
— Oh Deus...
— Droga, não era pra você chorar!
— É você que está me fazendo chorar!
— Eu não posso te enganar. Nunca pensei que você acreditaria que
isso poderia continuar...
— Isso...
— Vem, para de chorar – ele se aproximou e tocou minhas lágrimas,
secando-as. Enquanto eu o encarava como se não o conhecesse.
E as palavras da minha mãe voltaram a minha mente.
No final, ela tinha toda razão. Eu fora burra de cogitar mudar toda a
minha vida por causa daquele cara. Aquele filho da puta egoísta diante de
mim.
Com um safanão, eu tirei suas mãos.
— Não me toca!
— Ei, Liz, calma. Não fica chateada comigo...
— Chateada?
— Eu não queria te magoar. Agora que já esclarecemos tudo,
podemos continuar, ainda temos uma semana...
Desta vez quando ele se aproximou, eu não hesitei em esbofetear seu
rosto.
— Tira suas mãos de mim! Seu... filho de uma puta! Minha primeira
impressão sobre você estava certa! Você é um cretino!
— Ei, está sendo exagerada...
— Exagerada? Você não ouviu nada do que eu disse? Eu me
apaixonei por você! Eu briguei com a minha mãe, eu defendi o nosso
relacionamento, defendi você! Ia largar a minha faculdade, minha vida, tudo,
por você! E você só quer me foder e ir embora! – Eu agora gritava e chorava
e não estava nem aí.
Thomas finalmente pareceu entender a magnitude do que eu estava
sentindo, pois sua expressão mudou de confusa para consternada.
No entanto, eu não queria nem saber. Eu não queria mais olhar pra
ele.
Nunca mais.
— Eu fui só mais uma, não é? Eu achei que eu fosse diferente... que
nós dois fossemos diferente...
— E eu que tivesse entendido que eu não me apaixono. Eu nunca me
apaixono, Liz – sua voz estava cheia de pesar. Mas, naquela altura, eu
duvidava que ele sentisse alguma coisa.
De repente uma voz feminina chamou seu nome.
— Ei, Thomas, o Josh pediu pra avisar que vai começar o show dele!
Eu vi a moça bonita e loira piscando pra Thomas com a voz macia, o
que me deixou com mais raiva ainda.
— Vai, é isso que quer. Está louco para se livrar de mim! Pois eu vou
facilitar para você! Adeus, Thomas!
Eu me virei e saí correndo, ignorando sua voz gritando meu nome.
Eu não sei como cheguei em casa. Quando abri a porta. Bárbara
estava lá.
E eu desabei de novo.
— Liz, filha...
— Você tinha razão, mãe... Eu estava tão errada... – ela me abraçou,
me levando para o sofá, secando minhas lágrimas.
— Ah filha, eu sinto muito... Eu te avisei...
— Achei que fosse diferente...
— Achou que ele fosse diferente?
— Achei que seria diferente comigo, me enganei completamente.
— É o que eu venho querendo te dizer há muito tempo. Amor não
vale a pena, baby. Você é uma mulher forte. Vai superar este idiota. Eu te
prometo. O tempo cura tudo.
Capítulo Onze
Thomas
Eu sei que estou no inferno quando vejo nos olhos de Liz exatamente
o que está se passando pela sua cabeça.
Mas que porra estava acontecendo com a minha vida ultimamente que
tudo dava errado?
— Oh, oi... – Emily teve a decência de dar um passo para trás,
enquanto esboçava um sorrisinho maroto. – Ops, acho que fomos pegos!
Inferno. Mil vezes inferno. Cala a boca, Emily. Cala essa sua maldita
boca.
Eu quero abrir a minha e dizer a Liz a famosa frase “não é nada do
que você está pensando”, porém, assim como ela, eu também perdi minha
voz.
E, silenciosamente, eu vejo seu olhar surpreso se transformar em
raivoso antes de ela dar meia volta e sair da sala.
— Nossa, será que ela vai contar pra alguém? – Emily continua,
alheia a merda que sua sedução estava causando – bom, eu nem ligo! – Suas
mãos voltam para meu jaleco, eu as afasto.
— Volte ao trabalho, Emily.
— Por quê? A gente ia se divertir...
— Não a gente não ia! – Ajeito minhas roupas e saio da sala, disposto
a ir atrás de Liz.
Claro que eu estava fazendo papel de trouxa novamente, indo atrás
dela.
Enchê-la com minhas explicações. Mendigar seu perdão.
Implorar por sua atenção.
Que tipo de masoquista eu tinha me transformado?
Hoje de manhã eu tinha acordado com o firme propósito de esquecer
de vez que Liz Spencer existia. Eu tinha dito a mim mesmo que não valia a
pena. Eu já havia me envolvido com ela uma vez, há oito anos, quando era
ingênuo o suficiente para acreditar que poderia ter algum tempo com ela e
partir como se nada tivesse acontecido. Com minhas emoções sob controle.
Como sempre fazia.
E as coisas não foram bem assim.
Eu deveria estar correndo agora.
Ainda mais depois de ontem, quando eu a prensara no armário me
lembrando exatamente o porquê de ela ser inesquecível. Era como se sua
boca tivesse sido moldada para a minha. Tudo nela encaixava perfeitamente
em mim.
E, em todos aqueles anos, eu nunca havia encontrado uma mulher
com quem tivesse aquele nível de afinidade física.
Então ela fugiu de novo. Jogou na minha cara que nunca mais poderia
existir nada entre nós. Ela não tinha esquecido ainda o que eu fizera há oito
anos. E inferno, o que eu fiz foi tão grave assim?
Eu só quis ser sincero. Eu sabia que nossa ligação era muito intensa.
Eu estava lá também, sabia como era perfeito quando estávamos juntos. Só
não sabia que ela tinha todos aqueles planos.
Aquilo me assustara pra caralho.
Possivelmente teria assustado qualquer cara da minha idade. Mas eu
era pior do que os outros caras porque, enquanto alguns apenas se divertiam
esperando que um dia fossem encontrar alguma garota que iria prendê-los, eu
tinha horror de me imaginar nessa situação. Eu não queria me apaixonar, eu
nunca iria me apaixonar. Nem por uma garota como Liz Spencer. Perfeita pra
mim em todos os sentidos.
Porra foi justamente por isso que eu me vi dizendo todas aquelas
palavras. Eu sabia que a estava magoando.
Eu tive vontade de amenizar. Tive vontade de dizer que eu sentia algo
também. Eu sentia mais do que era permitido, e por isso mesmo eu precisava
recuar e dar o fora.
Se havia uma garota que poderia derrubar o muro que eu tinha
construído em volta do meu coração de pedra, era ela. No fundo, ela já estava
começando a perfurar com pequenos golpes, bem lentamente, fazendo
pequenos buracos na minha resistência. Se tornando pouco a pouco essencial.
Eu não podia deixá-la a entrar de vez. Nem pensar.
Claro que eu não me preocupei. Eu iria para Boston em pouco tempo
e, naturalmente, nossa história acabaria ali. Descobrir que Liz pensava bem
diferente me desconcertara totalmente. Eu precisei terminar tudo.
Eu fui duro? Fui. Naquele momento eu só sabia que precisava fazê-la
desistir de mim. Porque, por um ínfimo instante, eu tive medo de ceder. Tive
medo de me deixar contagiar por aquela esperança tola que ela trazia em seu
sorriso quando disse que ia embora comigo.
Meu instinto de proteção falou mais alto.
Se eu lamentei pelo jeito que terminou? Claro que sim.
Se eu senti falta dela? Mais do que poderia imaginar.
Se eu me arrependi?
Bom, isso não fazia a menor diferença agora.
Muito tempo havia passado e, depois de Liz Spencer, eu nunca mais
deixei ninguém se aproximar o bastante. Era perigoso demais para minhas
convicções. Agora ela estava de volta. E não demorou muito para eu estar
procurando problemas de novo.
Como se não tivesse aprendido nada há oito anos.
Agarrá-la ontem foi regredir oito anos. Sentir-se miserável por ela ter
me parado foi regredir oito anos. Ficar puto quando minha querida irmã
comentou com falsa casualidade que vira a foto do namorado de Liz no
celular foi o estalo que me fez ver o quão atolado na lama eu estava.
E de novo surgiu a necessidade de fuga. O instinto de proteção
sobressaindo outra vez em minhas ações. Eu não podia deixar Liz se
aproximar de novo.
Então eu sufocara o desejo que tinha por ela ignorando o ciúme que
estava sentindo do seu suposto namorado.
E acordei esta manhã achando que tudo ia ficar bem.
E quando Emily entrou na sala de medicação se insinuando para cima
de mim, eu quis aceitar a oferta. Quis provar a mim mesmo que eu não estava
sob o domínio do feitiço de Liz Spencer como no passado, quando ela foi a
única.
Mas algo estava errado. Quando Emily sorriu colando seu corpo em
mim, eu não senti a mesma coisa de antes.
Na verdade, eu apenas me senti enjoado com seu perfume.
E exatamente naquele momento Liz entrou na sala e nos pegando em
flagrante.
E agora eu me sentia ridiculamente culpado. Como se a tivesse traído
ou algo assim. O que era absurdo.
E o que eu ia fazer? Porque se eu achava que a situação estava sob
controle, havia acabado de constatar que estava enganado. O fiasco com
Emily servira para me mostrar que Liz havia me estragado novamente para
outras mulheres. Eu só queria ela. Era simples assim.
Ou melhor, era terrivelmente complicado.
Porque, mesmo que eu estivesse disposto a me arriscar e me envolver
com ela de novo, ainda tinha o fato de ela estar ressentida com o que
acontecera no passado a considerar.
E por que ela guardara toda aquela mágoa? Se bem me lembro ela não
demorou a arranjar alguém para consolá-la pela decepção que lhe causei.
Me lembrar deste fato faz meu próprio ressentimento aflorar.
E eu me vejo transportado para oito anos atrás.
Oito anos antes
Dois dias.
Exatamente dois dias depois eu estava batendo na porta da casa dela.
Se eu ia pedir desculpas por ter sido um escroto insensível? Com
certeza.
Se eu queria dizer que eu estava arrependido? Talvez.
Se eu queria que ela insistisse mais um pouco para que eu pudesse
mandar meus medos a merda e mergulhar naquele lugar em que eu nunca
tinha estado chamado amor? Porra, sim.
Eu tinha me embebedado naquela noite, no show de Josh, porque seu
olhar de dor e decepção não saía da minha mente.
Eu queria esquecer. Tinha firme convicção que, apesar daquele vazio
que estava sentindo por ela não estar curtindo o show comigo, eu tinha feito
a coisa certa.
Eu não queria um relacionamento. Eu não queria amar ninguém.
E ela tinha dito que me amava. Puta que pariu.
Quanto mais bêbado eu ficava, mais escroto eu me sentia por tê-la
magoado. Cheguei em casa e me senti pior ainda por estar sozinho. Liz não
estava ali.
Eu nunca mais ia estar dentro dela de novo. E nunca mais ia abraçar
seu corpo morno antes de dormir.
Nem ouvir seu riso. Nem sua voz em meu ouvido.
Só o vazio.
E, na manhã seguinte, junto com a ressaca, veio o arrependimento,
quando eu vi que ela havia deixado seu quadro ali.
Diana me disse que ela viera na noite anterior me procurar e trazer o
quadro. Porra, ela havia dito que rompera com a vadia da mãe. Que ia sair da
faculdade.
Secretamente, eu tinha desejado que ela fizesse algo desse tipo.
Porque, mesmo estando com Liz há pouco tempo, eu sabia que ela não queria
ser médica. Ela era uma artista. Apesar de estar seguindo o caminho
escolhido por sua mãe.
E não podia deixar de sentir certo orgulho pelo fato de ela ter tido
coragem de romper com tudo.
E foi por mim. O cara que rejeitara tudo o que ela estava oferecendo.
Porra, ela podia ter falado comigo antes. Podia ter dito que esperava
mais do que estava oferecendo. Eu achei que ela soubesse. Que ela tivesse
entendido. Afinal, eu só tinha 22 anos e estava indo pra outra cidade e ela mal
acabara de completar 18. Eu não acho que eu fui tão sacana assim por ficar
assustado com seus planos.
Mesmo assim, eu me sentia meio canalha. Ela fora embora chateada.
E com certeza estava me odiando.
E eu já estava sentindo falta dela.
Então, sem nem pensar muito no que estava fazendo eu decidi ir atrás
dela.
Quem abriu a porta não foi Liz, e sim uma mulher ainda bonita de uns
trinta e tantos anos.
— Olá, quem é você? – Ela me mediu dos pés à cabeça com ar altivo.
E de cara eu soube que aquela era a mãe de Liz.
— Liz está? – Eu ignorei sua pergunta
— Minha filha não está, posso saber quem é você?
— Meu nome é Thomas Hardy.
— Ah, você é o tal namoradinho.
Eu me irritei com seu tom de voz, mas me contive.
— Você pode me dizer onde eu posso encontrar a Liz?
— Eu até poderia, mas minha filha não quer mais ver você.
— Eu prefiro ouvir isso da boca da Liz.
Ela sorriu cheia de ironia.
— Você acha que depois do que fez, ainda tem alguma chance? Não
seja tolo rapaz! Eu não criei a Liz para ser enganada pelos homens! Ela é
mais forte do que imagina e se pensou que ela estaria trancada em casa
chorando por você, se enganou! Ela já deu a volta por cima, exatamente
como eu a ensinei!
— O que está querendo dizer?
— Que ela está saindo com outra pessoa.
— Está mentindo.
— Por que eu mentiria? Você deve saber que antes de ela te conhecer,
ela saía com Alan, o chefe dela na galeria.
O quê? O que aquela mulher estava dizendo?
Ela continuou.
— Ele tirou a virgindade dela e para as mulheres isto é algo
importante, deve imaginar. Claro que ela se encantou com você, mas,
certamente agora que a descartou Liz percebeu que o melhor a fazer é
continuar se divertindo com Alan, um homem mais velho que sabe como
tratá-la. Ela está com ele novamente agora. Então, por favor, não a procure
mais. Vá para Boston e esqueça que minha filha existe. Porque nesse
momento é nisso que ela está trabalhando. Passar bem.
Capítulo Doze
Liz
Eu era um idiota.
Duas vezes idiota.
Thomas continuava sendo o mesmo cretino de antes. E eu a mesma
burra.
Saio bufando pelo corredor, querendo continuar caminhando até sair
pelas portas, desaparecendo de vez daquele hospital a da presença de Thomas
Hardy na minha vida de novo.
Para meu azar eu não posso. Eu sou adulta e aquela era minha vida
profissional. A vida que eu havia escolhido, depois de abrir mão de muitas
coisas para estar ali. Para construir uma carreira na medicina.
E pensar que um dia eu estive a um passo de jogar tudo para o alto e
seguir outro sonho. Justamente por causa da minha paixão por aquele cara
que no final não se mostrara digno de nenhum sentimento.
A decepção com Thomas servira para eu perceber que se deixar
dominar pelas emoções não levava a nada. Só significava sofrimento e
desilusão. Há erros que, por mais que desejássemos, não poderiam ser
consertados.
— Ei, aonde vai com tanta pressa?
Eu paro ao ouvir a voz autoritária atrás de mim e dou de cara com
uma médica loira e bonita.
Como era mesmo o nome dela?
— Doutora Paola – me lembro.
Ela me olha com exasperação.
— Está chorando?
Engulo em seco e passo os dedos pelas lágrimas que nem havia
percebido que estavam caindo.
Fico vermelha de consternação.
— Me desculpe – balbucio – sou uma idiota, é o que eu tenho a dizer
– desabafo e, para minha surpresa, a médica sorri complacente.
— Aposto que tem a ver com homens, ou estou enganada?
Eu dou de ombros.
— Clichê não é?
— Todas nós já passamos por isso em algum momento. Tente fazer
como eu. Nunca se apaixone. Os homens não merecem nos ter
completamente. Sou sempre eu que os tenho.
— Eu aprendi mais ou menos isso há oito anos. Infelizmente, bastou
alguns dias na presença dele novamente para eu estar prestes a cometer os
mesmos erros.
— Nossa você parece bem amarga e eu estou muito curiosa. Venha,
me ajude a analisar esses exames e você pode me contar sobre o idiota que te
fez chorar.
Sigo a médica, me sentindo meio aliviada por poder finalmente contar
a alguém o que me aflige quando Thomas aparece no corredor.
E seus olhos se fixam em mim.
— Liz, preciso falar com você.
— Oi, Thomas, sei que a Liz é sua interna, pedi a ela que me ajude a
analisar uns exames. Tenho certeza que achará outro para orientar.
E sem mais ela sai me puxando pelo braço.
— Obrigada – me vejo dizendo e ela me olha confusa.
— Pelo quê?
— Não poderia encarar o Thomas... quer dizer, doutor Hardy, agora.
Ela para, franzindo a testa fechando a porta da sala.
— Espere. Está me dizendo que quem fez você chorar foi o Thomas?
Fico vermelha imediatamente por ter revelado mais do que devia.
— Eu não disse isso...
— Foi isso que entendi... – A médica me encara com uma expressão
fria e especulativa agora que me incomoda.
— Tudo é tão embaraçoso. – Desvio o olhar, envergonhada.
— Hum... interessante – ela sibila devagar, com um olhar pensativo e
então de repente sorri. – Ok, vamos nos sentar e acho que os exames podem
esperar. Quero que me conte exatamente o que aconteceu.
Ela se senta e bate na cadeira diante dela.
Apesar de hesitante acabo fazendo o que ela pediu. Sinto-me
subitamente cansada física e emocionalmente.
E pensar que fazia somente alguns dias que estava convivendo com
Thomas de novo e ele já estava drenando toda a minha maturidade emocional
conseguida através dos anos e a duras penas.
— Então o Thomas já colocou seus dedinhos safados em você?
Eu coro miseravelmente.
— Não, eu não...
Ela ri.
— Não fique envergonhada. Todo mundo sabe o galinha que o
Thomas é.
— É...? – Eu não quero estar curiosa.
Eu não quero estar com ciúmes.
Mas estou.
— Sim, ele não vale um centavo em se tratando de mulheres. Ele já
deve ter fodido todas as enfermeiras e boa parte das médicas, com certeza.
Oh Deus. Eu não queria estar ouvindo aquilo.
A imagem de Thomas com a enfermeira Emily voltou a minha mente.
Então era algo corriqueiro? Será que eu fui também mais uma na
longa lista de garotas que Thomas já prensou contra os armários?
Pensar nisto me deixa com vontade de vomitar.
— Hum... parece mortificada. Achei que já soubesse. Afinal, a fama
do Thomas não é segredo.
— Eu estou aqui faz poucos dias. Claro que eu vi as internas todas
babando por ele, mas vê-lo hoje com a enfermeira Emily....
— Oh, Emily? – Paola parecia mais interessada agora. – O que foi
que você viu?
Eu dou de ombros.
— Acho que cheguei e atrapalhei a pegação dos dois – resmungo.
— Hum, entendi... E você?
— Eu?
— Sim, você estava chorando. Ficou magoada por vê-los juntos. Você
por acaso achou que seria a única a trepar com ele pelas salas escuras?
— Eu não trepei com ele!
— Não? – Ela levanta a sobrancelha.
— Ele me beijou – confesso – foi só isso. Eu caí em mim a tempo.
— Ah... E por que estava chorando? Por acaso está apaixonada por
ele?
— Não!
— Eu não entendo... Espera – ela me olha com atenção – você disse
que estava sendo idiota... de novo?
De repente, hesito, tentando descobrir se posso confiar naquela
mulher.
O que eu teria a perder? Parece que os casos do Thomas eram bem
conhecidos naquele hospital. E eu não queria que ela pensasse que eu era
mais uma na vida de Thomas.
Queria que ela entendesse que o que aconteceu entre nós ficou no
passado.
— Nós já nos conhecemos.
— Sério? Como assim? Tiveram um caso?
— Pode-se dizer que sim.
— Quanto tempo faz isso?
— Oito anos, como eu disse.
— Então eram muito jovens.
— Sim, eu era jovem e ingênua. Com certeza não sou mais.
— E o que aconteceu?
— Eu me apaixonei e ele me deu o fora, dizendo que nunca se
apaixonava.
Ela sorri de um jeito amargo.
— Sim, sei bem como é isso.
Eu a encaro desconfiada.
— Você também já ficou com o Thomas?
— Eu? Não! Eu sou noiva do pai dele.
Ai que merda!
Por que diabos eu tinha escolhido justo a noiva de Jack Hardy para
contar meus segredos?
— Olha, por favor, não fale sobre o que eu te contei a ninguém ok?
— Claro, eu não contaria.
— Nem para o doutor Jack Hardy.
— Você o conhece?
— Sim, brevemente. E eu estou evitando topar com ele.
— Por quê?
Eu me levanto, sentindo-me incomodada com todas aquelas
perguntas.
Estava começando a achar que Paola Becker não era apenas uma
mulher querendo satisfazer sua curiosidade inocente.
E me perguntava o que ela faria com as informações que eu dei a ela.
Eu esperava estar sendo paranoica. Por via das dúvidas, era melhor
parar. Antes que revelasse coisas mais sérias.
Estremeço só de imaginar.
— Calma, aonde vai?
— Eu preciso ir.
— Íamos verificar esses exames.
— Sinto muito, preciso mesmo ir...
Eu dou meia volta e saio da sala.
— Onde se meteu? – Jenny esbarra comigo no corredor.
— Estava com a doutora Paola.
— Jura? Ela é demais, não é? Parece que aqui todo mundo tem inveja
dela. Mas claro, ela é noiva do doutor Jack Hardy. E ele é um gato também,
já o viu? Nossa, que genes dessa família. Sem contar a Amber, que é linda e...
— Jenny, para de fofocar – Julie aparece – esqueceu que o Doutor
Thomas pediu pra gente encontrá-lo na sala de raios X?
— É mesmo! Vamos – antes que eu conseguisse fugir as duas me
puxaram pelo braço.
Eu estava querendo fugir mesmo antes de entrar na sala, para meu
alivio, não era Thomas que estava lá e sim Chloe e Amber.
— Cadê o Doutor Thomas? – Jenny pergunta.
— Ele foi chamado pra ver um paciente. Quarto 230. – Chloe
responde e sorri pra mim. – Oi Liz, como está? Vamos almoçar juntas?
— Desculpe-me, não vou almoçar.
— Como assim? – Amber indaga – realmente, está meio abatida.
— Acho que eu vou ficar resfriada – minto.
— Liz, vamos logo! – Jenny me puxa de novo.
— Nossa você é amiga da Amber e da Chloe?
— Mais ou menos...
— Que sortuda! Elas não me chamam pra almoçar...
— Deixa de ser invejosa Jen! – Julie reclama e nós entramos no
quarto.
Eu fico atrás das duas, ao ver que Thomas está ali com Mark.
E, para minha consternação Emily também está presente, mexendo no
soro do paciente.
— Mark, estou esperando sua resposta... – Thomas diz friamente a
Mark e então seu olhar recai em mim.
Parece frustrado e irritado.
Pois que explodisse. Eu não me importaria.
— Está respirando mal, tem febre, é pneumonia. Iniciei os
antibióticos – Mark responde balbuciando, todo inseguro.
Thomas finalmente desvia o olhar de mim.
— É este o diagnóstico?
— Embolia pulmonar – Julie se intromete.
— Sim, Julie. Pode ser. Você e o Mark levarão o paciente para fazer
uma radiografia completa. – O olhar dele recai sobre mim.
— E você vem comigo.
Merda!
— E eu? – Jenny pergunta ansiosa.
— Você pode ir com eles.
— Por que, eu...
Thomas ignora Jenny e sai da sala.
Eu penso em ignorar sua ordem e não acompanhá-lo, ainda mais
quando meu olhar cruza com Emily que sorri presunçosamente.
Naquele exato momento, outra enfermeira entra na sala e diz que o
Doutor Jack Hardy está chamando Emily.
Eu desvio o olhar da enfermeira e saio atrás de Thomas.
Ele segue pelo corredor até que estejamos num saguão vazio.
— O que estamos fazendo aqui? – Pergunto com toda a frieza que sou
capaz.
— Nós precisamos conversar.
— Não temos nada para conversar, Thomas.
— O que viu com Emily, não era nada...
— Eu não quero saber – o corto – é problema seu se come todas as
mulheres deste hospital!
— Eu não...
— Nem tenha a cara de pau de negar! Pelo o que sei não é segredo
pra ninguém.
— Inferno, Liz! – Ele passa as mãos pelos cabelos frustrado.
— O que pretendia Thomas? Que eu fosse para algum canto escuro
com você? Iria me comer até se fartar e então me jogaria em algum lixo
hospitalar como todas as outras?
— Liz...
— Nem tente negar, sei muito bem que sempre foi somente isso que
quis comigo! Nunca signifiquei nada pra você!
— Porra, por que guarda tanto ressentimento de mim?
— Ainda pergunta?
— Já se passaram oito anos, Liz!
— Sim, oito malditos anos e infelizmente eu tive o azar de topar com
você de novo. E de novo você quer me ferir!
— Eu não quero te ferir!
— Então o que quer?
— Eu quero você! Inferno, é tão difícil assim entender?
— Pra que, Thomas? Me diz? Acha que vai ser diferente agora? Por
que eu devo imaginar que você mudou? Que ia querer algo mais do que
gastar um tempo fazendo sexo comigo?
— Se você quiser a mesma coisa, qual o problema? Somos adultos e
podemos lidar...
— Ah cala a boca! Eu sabia! Você continua igualzinho! Não
amadureceu nem um dia! Continua o mesmo galinha egoísta! Pois saiba que
eu não sou a Emily! Não sou idiota pra cair na sua lábia de novo, então, faça
o favor de ficar bem longe de mim!
E sem aguentar mais, dou meia volta e me afasto de Thomas.
E espero que dessa vez seja definitivo.
Eu me enfio na sutura, mesmo sem ninguém pedir e passo a manhã
cercada de ataduras, limpando minha mente de toda a merda que vinha
acumulando na minha vida.
Eu só queria paz. Era tão difícil assim?
Como é que teria paz com Thomas me rondando?
Que garantias eu tinha de que ele ia se manter longe de mim?
E pior, que garantias tinha de que eu iria conseguir resistir? No fundo,
esse era meu maior medo.
Termino a manhã e, mesmo sem estar com fome, estou procurando
alguém para ir almoçar comigo, quando a Jenny me aborda.
— Você já ficou sabendo?
— O que houve?
— A enfermeira Emily foi demitida.
— O quê?
— Sim! E não sabe da maior, parece que foi demitida porque pegaram
ela se amassando com o Doutor Thomas Hardy
Puta que pariu!
Eu fico chocada. Então foi isso que Paola fez com a informação?
Dedurou Emily?
O que ela ganharia fazendo isso?
— É um absurdo Jenny! Parece que o Thomas pega todas as mulheres
do hospital por que demitiriam a Emily?
— Eu não faço ideia, só sei que é o que está circulando por aí!
— Eu ainda acho que é uma fofoca sem sentido... – balbucio.
— E eu que é uma a menos! Agora posso voltar a fila do doutor
delícia...
— Liz, ainda bem que te encontrei! – Julie aparece.
— O que foi?
— O Doutor Hardy pediu para te chamar.
— O Thomas?
— Não. O Doutor Jack Hardy. Disse que é para você ir
imediatamente na sala dele.
Eu caminho para a sala do diretor do hospital como alguém indo para
o sacrifício. Eu sabia o que ia acontecer. Bem lá no fundo eu já sabia. Só não
queria acreditar.
Eu nem sei o que temia mais.
O fato de estar prestes a ser demitida, na minha primeira semana de
trabalho. Ou o famigerado reencontro com Jack Hardy.
Respiro fundo e bato na porta abrindo-a.
E como eu temia, lá está ele.
Jack Hardy me encara com um grave semblante de assombro.
— Elizabeth Spencer. Quando me disseram seu nome, eu achei que
era uma coincidência. Vejo que me enganei.
Engulo em seco.
— Estou surpreso de saber que veio trabalhar aqui. Achei que gostaria
de ficar bem longe do Thomas.
— Eu não sabia... – minha voz sai alquebrada.
— Ah, entendo. E entendo ainda menos o que vieram me contar. E
sabe do que estou falando. Então, dadas as circunstancias, acho melhor irmos
direto ao assunto. Você está demitida.
— Vai demitir todas as garotas que se esfregaram no seu filho? Não
vai sobrar muita gente! – Digo cheia de sarcasmo.
— Nenhuma delas tem um passado com ele.
Eu estremeço. Medo e dor se mesclando dentro de mim.
— Nós dois sabemos que é melhor para todos que vá embora.
Sinto vontade de chorar.
— Sim, percebo que entende. Eu sinto muito. Não tem como ser
diferente.
Eu quero gritar. Quero dizer que ele não tem o direito.
Me calo, sei bem no fundo que ele tem razão. Eu deveria ter ido
embora quando vi Thomas naquele hospital. A cada dia que eu passava perto
dele só piorava tudo.
— Sim, tem razão.
Sem conseguir mais ficar na frente dele, dou meia volta e me arrasto
para o vestiário. Eu estou ali, arrumando minhas coisas, quando Thomas
aparece.
Seu rosto é uma máscara de consternação.
— É sério? Meu pai te demitiu?
Eu não respondo e continuo a arrumar minhas coisas.
— Liz, porra, me responde! – Thomas grita.
Eu levanto o olhar.
— Sim, é verdade.
— Isto é absurdo!
— Eu não deveria estar aqui mesmo... – volto a arrumar minha bolsa.
— Inferno, Liz! Claro que é absurdo! Ele não pode te demitir!
— Por que não? Achei que iria ficar feliz em se livrar de mim!
— Sabe que não quero que vá embora, merda!
— Não? Pode não ser agora, mais dia menos dia iria querer! Então
seu pai só antecipou minha saída.
— Não! Ele não tem o direito! Foi aquela cobra da Paola, Emily me
disse, isso não vai ficar assim, eu vou agora falar com ele...
— Não! – Afirmo categoricamente. Não quero que Thomas vá
interceder por mim. Só pioraria tudo.
— Eu não vou deixar você ir embora!
— Seu pai não vai permitir que eu fique!
— Por que não, porra? Ele não tem nada a ver com o que aconteceu
com gente! Nem antes nem agora!
— Você não entende Thomas... – pego minha bolsa, louca pra fugir
dali. O nó no meu peito estava ameaçando se romper.
— Não entendo mesmo! O que meu pai pode ter contra você?
— Me deixa ir, Thomas...
— Não! – Ele segura meu braço, me impedindo. – Nós vamos agora
na sala do meu pai e vamos acabar com essa merda!
— Não! Eu não quero olhar pra cara do seu pai de novo!
— Por que não? Que diabos está acontecendo? Por que está cedendo
em algo que não tem nada a ver...
— Porque eu estive grávida – grito, as compotas finalmente se
rompendo – eu estive grávida de você e seu pai sabia!
Oito anos antes
Thomas
Jack
Liz
Estava feito.
O mais bem guardado segredo que eu escondia até de mim mesma
finalmente foi revelado a Thomas.
Eu caminho para fora do hospital, alheia às vozes e ao movimento a
minha volta, como se estivesse morta.
E é assim que eu me sinto. Morta por dentro.
Exatamente como me senti há oito anos, quando saí de um hospital,
depois de nove meses de uma gravidez solitária, após de dar à luz a um bebê
que, apesar de meu, nunca me seria permitido chamá-lo assim.
Meu bebê. Minha filha.
Filha de Thomas também.
Eu acreditei que jamais precisaria revelar isso a ele.
Quando estava grávida, muitas vezes eu fantasiei como seria, se eu
contasse que esperava um bebê. Mesmo naquela época, eu já não nutria
nenhuma tola esperança de Thomas aceitar aquele fato.
O que ele havia feito comigo, foi o bastante para me deixar vacinada
contra qualquer fantasia romântica envolvendo Thomas Hardy.
Ele havia me rejeitado. Havia algo em mim que não queria vê-lo
rejeitando nossa criança também.
E agora ele sabia.
Eu deveria ter previsto quando coloquei os olhos nele naquele
hospital que meu segredo estaria em perigo. Fui tola em achar que
conseguiria lidar com Thomas Hardy desta vez. Que eu era forte o suficiente
para tratá-lo como a qualquer médico. Apenas um colega de hospital. Apenas
um chefe.
A quem eu queria enganar?
Ele ainda virava meu mundo de cabeça pra baixo. Fazia aquela Liz
jovem e sonhadora emergir sob a pele da Liz adulta e madura.
A Liz, que escolhera dar a própria filha a estranhos e seguir como se
ela não existisse.
Minha filha.
Ah Deus. A dor que eu sempre havia conseguido suprimir por todos
aqueles anos, agora se negava a adormecer.
Eu sinto minhas pernas cederem e deixo-me cair sobre um banco,
respirando com dificuldade. O nó na minha garganta me sufocando.
O vento do fim de tarde chicoteia meu rosto levando as lágrimas que
caem, sem que eu consiga detê-las.
E junto com elas, vêm as lembranças.
As memórias que eu mantive trancafiadas no local mais escondido do
meu coração. A primeira vez que ela mexeu dentro de mim. As incontáveis
noites em que eu chorava desesperadamente almejando que tudo fosse
diferente.
A única vez que eu a tive em meus braços. Tão pequenina e indefesa.
O momento em que eu havia me despedido pra sempre. No coração,
apenas a certeza que eu estava fazendo a coisa certa. Eu não podia ser sua
mãe.
E eu segui em frente. Ainda chorei por incontáveis noites, sentindo
falta dela em meus braços. Mas acordando para dizer a mim mesma que foi
melhor assim.
Ela estaria melhor sem mim.
O tempo fez a saudade arrefecer. A dor adormecer.
Embora nunca me tenha sido permitido esquecer.
Por mais que eu tentasse, ela sempre estava ali. Em algum lugar do
meu coração. E eu me perguntava todos os anos, como ela seria? Com quem
se pareceria? Será que era feliz?
Eu precisava muito acreditar que sim.
Afinal, foi por isso que abri mão dela. Para que fosse feliz.
Sem mim.
— Por que você está chorando?
Eu abro os olhos e penso estar delirando, quando vejo uma garotinha
me encarando com olhos curiosos.
Olhos cinzentos como os da minha filha.
— Você está triste – ela insiste, se aproximando e tocando meu rosto.
Noto seu cabelo loiro escuro. Da mesma cor...
Oh Deus, estou alucinando.
— Nina – a voz de Thomas me faz sair do meu desvario, enquanto a
criança também se afasta, sorrindo para Thomas.
— Oi Thomas!
— O que faz aqui? – Ele olha de Nina pra mim, parecendo me notar
pela primeira vez. – Liz...
Eu me levanto, secando as lágrimas.
Pronta para continuar minha fuga.
— Seu nome é Liz, que bonito! – a garotinha continua, alheia a nossa
tensão. – A Liz estava chorando Thomas.
— Eu preciso ir – balbucio, Thomas segura meu braço.
— Não. Nós precisamos conversar – sua voz está cheia de urgência.
— Thomas, por favor.
— Ei, Liz, você é médica também? – A garotinha continua e eu me
pergunto agora quem seria.
Thomas desvia a atenção para a criança.
— Nina, ainda não entendi o que está fazendo aqui, entre e procure a
Amber...
— A motorista me trouxe! A Amber disse que eu tinha que fazer
alguns exames!
— Sim, claro, os exames – ele repete distraído.
— Minha irmã acha que eu estou doente – Nina explica pra mim.
— Irmã?
— Sim, Amber. Thomas também é meu irmão.
Eu encaro Thomas.
— Não sabia que tinha uma irmã. – Comento aleatoriamente.
Realmente não me lembro de ele comentar algo na época que
namorávamos.
Também isso não interessava agora.
— Thomas, vamos comigo! – Nina começa a puxá-lo – Você pode vir
também, Liz. Você pode convencer a Amber a não me dar uma injeção? Eu
odeio agulhas! Você não me disse se é médica?
— Sim, eu sou – respondo não querendo deixar a criança acreditar
que eu não lhe dei atenção.
Irmã de Thomas. Quem diria? Por isso ela me pareceu familiar.
— Nina, você está aí! – Amber se aproxima, o rosto de Nina se
ilumina e ela corre para a irmã.
Eu aproveito para continuar minha fuga e, sem falar nada, dou meia
volta, Thomas segura meu braço de novo.
— Liz, não vai ainda!
Eu me desvencilho.
— Me deixa, Thomas!
Desta vez eu consigo correr e, para meu alívio, ele não vem atrás de
mim.
Entro no carro e só consigo respirar normalmente quando estou longe
do hospital.
O percurso até minha casa é um suplício.
É como se a caixa de pandora tivesse sido aberta, revelando todos as
maldades do mundo.
Do meu mundo.
Eu tinha sérias dúvidas se eu conseguiria fechá-la de novo.
Quando chego em casa tudo o que eu queria era um quarto escuro
onde eu pudesse me esconder e chorar. Infelizmente sei que de nada vai
adiantar eu me esconder agora.
O castelo de areia sobre o qual eu construíra minha vida, estava se
desfazendo como se atingindo uma onda gigantesca composta de revelações
do passado. Era uma questão de tempo para tudo desmoronar de vez.
Então retiro toda a roupa e entro sob o chuveiro. Não há mais
lágrimas. Estou seca.
Deixo a água escorregar sobre meus ombros cansados. A tensão se
dissipa com o vapor, embora a dor continue martelando firme meu coração.
Pressinto que agora não será como das outras vezes. Eu não vou
conseguir dobrá-la cuidadosamente como uma roupa velha e guardar no
fundo do armário.
Eu terei que vesti-la. E exibi-la por aí.
Quanto tempo mais eu tenho antes que não reste nada?
Saio do chuveiro e olho o dia se transformar em crepúsculo.
A escuridão está chegando.
O barulho do celular vibrando me distrai da escuridão. Eu o pego e
há várias mensagens. Minha mãe. Peter.
Thomas.
Muitas de Thomas.
Apago todas até restar uma de Mark Geller. Ele diz que todos estão
indo a uma boate hoje. Está me convidando.
Minha primeira reação é ignorar e apagar, então eu paro o
movimento.
Por que não?
***
Thomas
Eu a observo dormir.
Parece tão tranquila no sono, como se o mundo não estivesse
desmoronando a nossa volta. Como se não tivesse feito o meu mundo se
quebrar em mil pedaços. Agora ele estava espalhado pelo chão e eu me
sentindo paralisado no lugar, sem saber como juntar todos os pedaços e fazê-
lo voltar ao que era antes.
Será que era possível?
Uma parte de mim desejava que sim. Aquela que tinha medo de
sofrer, a mesma parte que havia dispensado aquela garota há tantos anos.
Deixando-a para trás.
Eu não queria que ela mudasse minha vida. Só que, sem saber, eu já
havia mudado a dela irreversivelmente. E por oitos anos eu sequer imaginava.
As perguntas se embaralham em minha mente, mil questionamentos e
dúvidas sobre todas as possibilidades. E se não tivéssemos terminado? Se
naquela noite longínqua em que ela apareceu no show de Josh dizendo que ia
embora comigo, eu tivesse simplesmente aceitado?
Essa possibilidade nunca me pareceu aceitável. Até agora.
Agora eu não conseguia parar de questionar minha decisão de oito
anos antes. Como teria sido minha vida?
As acusações de Liz reverberam em minha mente. Ela temia que eu
rejeitasse a criança assim como a havia rejeitado.
Eu faria isso?
Se eu tivesse tomado as mesmas decisões, mas ela tivesse conseguido
falar comigo naquela tarde na piscina, como eu teria reagido?
Sinto um soco no estômago ao perceber que provavelmente ela estava
com a razão. Eu teria ficado aterrorizado.
Eu teria concordado em dar a criança e continuar como se nada
tivesse acontecido como ela fez?
Não me sinto bem pensando que sim.
Eu nunca tinha pensado em ter filhos. Como eu poderia, se nem
queria me casar? Eu sempre vivi o momento. Concentrando-me em minha
carreira e fodendo as mulheres que eu desejava. Sem amarras. Sem
compromisso.
Eu me sentia bem assim. A vida estava boa desse jeito.
Sem amar. Também sem sofrer.
Então, como eu podia estar lamentando, bem lá no fundo do meu
peito, não ter conhecido aquela criança cuja existência eu nem sabia há
menos de 24 horas?
Eu lamentava. E isto doía.
E lá estava eu, sofrendo. Sentindo. Justo o que eu sempre havia
evitado a todo custo.
O dia amanhece e me encontra no mesmo dilema.
O que eu ia fazer agora? Talvez devesse ir embora. Liz havia deixado
claro que não queria a minha presença na vida dela. Não queria antes e, agora
que me contara a verdade, acredito que muito menos.
Eu não queria deixá-la.
Não queria antes e não queria agora.
Ainda havia aquele maldito imã que me fazia aproximar dela como se
uma linha invisível nos ligasse inexoravelmente.
Era exatamente como oito anos antes.
De repente um sentimento de inevitabilidade me invade. Do que
adiantava fugir? Parecia que ela sempre me encontrava.
O que eu ia fazer agora? Poderíamos começar de onde tínhamos
parado há oito anos? Esse pensamento se forma na minha mente e um
calafrio percorre minha espinha.
Medo.
Eu sabia que ficar com Elizabeth Spencer significava. Foi exatamente
por isso que eu fugi antes.
Agora ela estava de volta e eu não conseguia pensar em outra coisa a
não ser que eu deveria estar deitado com ela naquela cama, com seu corpo
morno grudado no meu.
Que eu deveria estar ali quando ela acordasse. E ela sorriria pra mim e
não se importaria com minhas mãos acordando sua pele, com minha boca
dizendo bom dia para a sua com um beijo.
Porra, eu gosto tanto desta imagem que por um momento eu quase
chego a fazer exatamente isto. Me aproximar e mandar para o inferno o
medo.
Não precisava ter sofrimento. Era só fazê-la me amar.
Ela me amou no passado.
Eu poderia fazê-la me amar agora?
A campanhia tocando me tira dos meus loucos devaneios e eu olho a
hora. Ainda é cedo, quem poderia estar procurando Liz?
Ela não se mexe e eu vou até a sala, abrindo a porta.
Um homem moreno parece surpreso ao me ver.
A minha surpresa é a mesma.
Quem diabos é aquele cara?
— Cadê a Liz? – Ele pergunta olhando além de mim com um olhar
desconfiado que prontamente se transforma em animosidade quando eu
respondo calmamente.
— Ela está dormindo.
— E quem é você? – Sua voz não disfarça a hostilidade.
— Talvez eu devesse estar fazendo a mesma pergunta – rebato no
mesmo tom.
— Peter? – A voz de Liz atrás de mim chama a nossa atenção.
Ela nos encara com um olhar confuso e sonolento que se transforma e
preocupação ao vagar de um para outro.
Eu quero fechar a porta na cara daquele intruso e questionar a ela
quem ele era.
No fundo sei do absurdo da situação.
Porém isto não impede que eu esteja morrendo de ciúmes apenas com
a possibilidade de aquele cara ser namorado dela.
Amber não dissera que ela tinha um?
— Oi Liz – o homem que ela chamou de Peter responde passando por
mim e entrando no apartamento.
Ele a abraça. Beija seu rosto.
Cerro meus punhos.
Os olhos de Liz me encontram.
— Não vai nos apresentar? – Pergunto tentando manter uma calma
que estou longe de sentir.
Ela dá um passo para longe dos braços possessivos do suposto
namorado que não disfarça sua insatisfação com minha presença.
Bem, se fosse eu já teria partido para a agressão física. Dadas as
circunstâncias até que ele está bem calmo.
— Peter, este é Thomas Hardy. Ele trabalha no hospital – ela diz com
um suspiro – Thomas, este é Peter White, meu amigo.
Amigo? Talvez isso explique ele ainda não ter quebrado minha cara.
— E o que ele está fazendo aqui a esta hora? – A voz não disfarça a
desconfiança.
— Nós estávamos numa boate ontem e eu passei mal. Thomas cuidou
de mim – ela responde simplesmente e me encara. – Muito obrigada,
Thomas, acho que já pode ir embora.
Ela estava me dispensando?
Tenho vontade de dizer que não vou a lugar nenhum. Mas, o que
posso fazer?
Talvez seja melhor mesmo eu ir embora e dar tempo para nos
acalmar. E pensar.
Me irrita deixá-la com o tal Peter, mas o amigo já está abrindo a porta
pra mim e acho que até posso ver um risinho de mofa em seu rosto bonito.
Quero quebrar os seus dentes e fazê-lo engolir, opto por uma saída
pacifica. Por enquanto.
Eu vou direto para o hospital, mesmo sentindo que não estou nada
bem.
— Oi, Doutor Thomas – a voz de gralha da interna Jenny Lars me
atinge quando entro no vestiário. Rolo os olhos, abrindo meu armário, sem a
menor paciência para aguentá-la.
Ela não desiste facilmente.
— O que aconteceu com a Liz ontem? Que coisa horrível não saber
beber hein? Eu te convidei pra curtir a noite e ela atrapalhou tudo e... –
Vagamente eu me lembro de que foi Jenny que me ligou dizendo que os
internos estavam na boate. E eu peguei a informação como ouro, porque
significava que Liz estava lá também. Então eu chamei Josh para ir comigo. –
E falando nisto, cadê ela? Ah, esqueci que ela foi demitida...
— Jenny, você não tem trabalho a fazer na sutura? – A voz de Chloe
nos interrompe e Jenny faz uma careta.
— É o Doutor Thomas que determina o que tenho que fazer...
— Ah, cala a boca e chispa já daqui! – Chloe ordena e Jenny parece
que vai rejeitar a ordem, ao ver que eu não falo nada, ela se afasta bufando.
Chloe entra no vestiário e me estuda
— Meu Deus, o que aconteceu com você?
— Não enche você também, Chloe!
— Nossa você está um lixo!
— Eu não tive a melhor noite da minha vida.
— Problemas com mulheres? – Ela diz claramente com ironia. Todos
sabem que eu não tenho problemas com mulheres, porque eu não permito que
isto aconteça. Quando não respondo, Chloe franze os olhos. – Wow, é sério?
Eu desisto de fingir que procuro um uniforme e bato com o punho no
armário. Chloe tem razão. Eu estou na merda. Chafurdando e afundando cada
vez mais.
— Deus, Thomas, o que está acontecendo com você? – Chloe segura
minha mão. – Não está em condições de trabalhar.
Passo os dedos pelos cabelos, concordando com ela. Eu realmente não
posso atender ninguém do jeito que estou.
— Tem razão. Preciso sair daqui. – Pego o celular e disco o número
de Josh que só chama, me deixando ainda mais irritado.
— Para quem está ligando? – Chloe indaga cautelosamente.
— Um amigo... Merda! – Desligo quando a ligação cai e digito uma
mensagem para Josh me encontrar em casa.
— Eu acho que você precisa ir pra casa dormir, Thomas.
— Eu sei.
— Venha, eu vou te levar.
— Não precisa...
— Não vou deixar você dirigir neste estado.
— Ok.
***
Acordo com uma dor de cabeça que se espalha por meu corpo
cansado. O quarto está na semiescuridão e ao me sentar, tento me lembrar
como cheguei ali. Vagamente recordo de entrar no carro de Chloe e fechar os
olhos e sua voz suave dizendo que eu podia descansar.
Olho as horas e não fico surpreso ao ver que um dia inteiro se passou.
Arrasto-me até o chuveiro e deixo que a água morna leve os resquícios
daquelas ultimas insólitas 24 horas.
Até ontem minha vida estava nos eixos.
Eu era um jovem e promissor médico no último ano de residência no
maior hospital de Chicago. Podia ter a mulher que eu quisesse e dispensá-las
com a mesma facilidade.
A vida era boa e simples.
Agora tudo estava de cabeça para baixo.
Porque eu sinto que vivi uma mentira durante todos aqueles anos. A
caixa de pandora foi aberta revelando todos os seus segredos e eu não sabia
como fechá-la novamente e deixar tudo como era antes.
E o pior: eu não sabia se queria isto.
Saio do chuveiro para encontrar Chloe sentada na bancada da minha
cozinha com algo que parece uma xicara de chá em sua mão.
— Bem-vindo ao mundo dos vivos.
Eu sorrio, coçando o cabelo.
— Ainda está aqui...
Ela dá de ombros.
— Inventei uma pequena mentira no hospital para salvaguardar os
nossos lindos rabos, não se preocupe. Agora sente-se aqui, eu fiz uma
omelete de cogumelos que é capaz de curar todos os males do mundo.
Eu me sento na bancada e suspiro pesadamente.
— Eu duvido que sua omelete, por melhor que seja, consiga consertar
a minha vida.
Ela coloca o prato na mesa e se senta na minha frente.
Eu mastigo a comida. E está realmente boa. Não cura os males do
mundo, mas me deixa com a sensação de pelo menos ainda estar vivo.
— O que diabos aconteceu Thomas? – Ela pergunta baixinho. Sinto
um tom de assombro em sua voz – eu nunca te vi assim.
— Eu descobri que tenho uma filha. – Confesso.
Chloe cospe o chá.
— Como é?
— Com Elizabeth Spencer.
Os olhos de Chloe estão tão esbugalhados que parece que vão sair da
órbita.
— Thomas... que história é essa? Liz Spencer, a interna?
— Sim, essa mesma.
— Oh Meu Deus! Ela foi demitida ontem... Wow, foi por causa
disso?
— Sim.
— Nossa Thomas estou passada, não estou entendendo nada...
— Ok, Chloe – eu suspiro – eu vou te contar uma história.
Quando termino meu relato o prato está limpo, eu me sinto mais leve
por poder contar toda a minha história com Liz a alguém. E Chloe me encara
totalmente assombrada.
— Então é isto – termino – agora está tudo uma merda. Eu fiquei
surpreso quando a vi no hospital e o que posso dizer? Eu ainda sentia tesão
por ela, e achei que podíamos, sei lá...
— Você iria foder ela como todas as outras e continuar sua vida –
completa.
E como eu poderia negar? Era o que eu fazia não era? Embora agora
este pequeno plano sórdido pareça absurdo e sem sentido. Elizabeth Spencer
nunca foi como as outras para mim. E eu tinha sido um idiota em pensar que
poderia tratá-la do mesmo jeito e sair ileso.
— Agora tudo complicou com esta revelação sobre o bebê que
tiveram não é?
Volto a sentir aquela inquietação no peito.
Eu não sabia o que pensar. Ainda era chocante demais pensar que eu
tinha gerado uma criança. E que ela estava em algum lugar do mundo.
— Pois é. E meu pai sabia! Isto me enche de raiva.
— Isto é o menos importante agora. Você tem que pensar no que vai
fazer.
— O que acha que eu posso fazer? – Indago frustrado.
— Eu não sei! Mas duvido que consiga voltar à sua vida de antes.
Acha que consegue? Afinal, a Liz Spencer foi demitida. Você pode esquecer
tudo e continuar, como posso dizer... “ o cara que finge que não tem
sentimentos de sempre”.
— Acha que é fingimento?
— Você é um canalha, Thomas.
— Canalha?
— Sim. E sabe disto. Mas um canalha adorável. Todas te amam e
querem você.
— Todas não. Você é diferente.
Ela sorri tristemente.
— Não tão diferente assim – sussurra e então de repente eu entendo.
— Chloe...?
Ela dá de ombros.
— Não vamos fazer disto uma grande coisa. – Ela ri dando de
ombros. – Porém, já que estamos na fase das confissões, eu não era tão
diferente das garotas do hospital, no fim das contas. Como eu poderia? Como
disse, você pode ser um filho da puta, mas consegue ser adorável ao mesmo
tempo. Claro que eu também queria sua atenção.
— Chloe... – eu estou totalmente abismado com aquela confissão.
Claro que eu a achava atraente. Eu sou um homem e não sou cego, mas ela
sempre havia sido diferente para mim. Eu a respeitava. Nunca a coloquei no
patamar das garotas que podia foder e largar. E era só isto que eu tinha a
oferecer. – Não sei o que dizer. Você... eu te acho linda, mas...
— Sou só sua amiga.
— Não é isto. Você merece mais do que um cara como eu. Eu não
tenho sentimentos pra dar a ninguém, Chloe.
— Até hoje eu pensava a mesma coisa Thomas. Eu achava que você
era incapaz de amar. Mas não é verdade. Você a amou, não é? Elizabeth
Spencer? É por isso que não pode dar seu coração a ninguém. Você já deu a
ela há oito anos. E ela nunca devolveu.
Eu quero dizer a Chloe que ela está enganada. Eu fugi. Deixei Liz
para trás antes que fosse tarde demais. Percebo agora que eu me iludi todos
esses anos. Eu fugi quando já era tarde.
E agora ela estava de volta. Tomando posse do que já é seu por
direito.
Como eu poderei fugir de novo?
Ou como eu poderei sucumbir agora, porra? Sinto calafrios de medo
traspassando minha pele só de imaginar Liz tomando conta de todos os meus
sentidos de novo.
Amar era sofrer. Meu pai sofreu por minha mãe todos esses anos. Eu
não queria esta vida pra mim. Nunca quis. Este medo tinha norteado todas as
minhas decisões. Mas sinceramente, do que tinha adiantado?
Eu achava que minha vida era boa. Agora, pensando na possibilidade
de voltar a ela, eu só sinto o vazio.
Minha vida era vazia.
— Eu não sei... Como fazer isto. Como... amar. – Confesso. – Minha
família, meu pai, Amber. A gente não é assim.
Chloe segura minha mão.
— Thomas, olha pra mim. – Ela me encara com seus olhos cheios de
sabedoria – você sabe amar. Você ama sua irmãzinha, Nina, não ama?
— Claro que sim – a resposta surge rápido. Eu nunca tinha parado
para pensar nisto. Para dar nome e um sentimento que parecia tão natural.
— E seu pai a ama. E Amber também. Claro que vocês sabem amar.
Vocês só precisam parar de ter medo de amar outras pessoas. Amber critica
você, apesar de ser exatamente igual. Não consegue ver que Erick está louco
por ela. E você rejeitou a única garota que amou.
— E essa garota me odeia agora, do que adianta?
— Bom, você sempre pode recorrer ao canalha adorável e sexy dentro
de você e tentar conquistá-la. Conquistou uma vez não foi?
— Tem tanta coisa... E tem a criança.
— Vocês precisarão conversar sobre isto em algum momento, sem
dúvida, mas o passado não pode ser mudado Thomas. Liz deu a criança. Ela
tem uma vida longe de vocês. Não acredito que tenha volta.
— Como poderemos recomeçar? Com tudo isto pairando entre nós?
— Vão ter que descobrir como passar por cima disto se quiserem ficar
juntos. A pergunta é: você quer ficar com ela? Apenas pense...
A campainha toca, interrompendo Chloe.
— Esperando visitas?
— Deve ser Josh...
Eu me levanto e abro a porta e como previ é Josh na porta.
— Ei, cara, desculpa só aparecer agora. Eu toquei a noite inteira e
estava dormindo... – ele para ao ver Chloe. – Hum, oi.
— Oi – Chloe acena.
— Josh, esta é Chloe. Ela é uma amiga lá do hospital.
— Que já está indo embora... – ela pega sua bolsa e passa por nós
acenando.
Assim que a porta se fecha atrás dela Josh me encara.
— Uau, esta é gata hein? E eu achando que estava deprê por causa da
Liz...
— Não é o que está pensando. Ela é realmente só minha amiga.
— Não comeu esta?
— Pelo amor de Deus, Josh!
Ele ri.
— Calma, desculpa aí. Estava só checando se não estarei entrando em
terreno proibido.
— Como é?
— Vai me passar o número dela, não é?
— Só se prometer não ser um idiota. Esta garota é incrível.
— Eu? Eu sou um príncipe!
— É bom que seja mesmo...
— Mas e aí? O que aconteceu ontem? Parecia um lixo nas mensagens
hoje de manhã...
Antes que eu comece a contar sobre a malfadada noite a Josh, meu
celular toca e vejo que é Amber.
— O que é? – Indago mal-humorado.
— Thomas, precisa vir para o hospital. Nina está passando muito mal.
Capítulo Dezesseis
Liz
***
Bárbara
***
Não sei bem o que estou sentindo quando Peter me deixa em casa.
Ele está radiantemente feliz e eu não consigo fingir que me sinto da
mesma maneira.
E Peter percebeu, mas não está bravo.
— Eu sei que está sendo uma fase difícil pra você – ele diz quando
me acompanha até a porta.
— Eu sinto muito se não estou sendo uma boa companhia.
— Não quero que finja uma felicidade que não sente Lili. Eu sei o que
está sentindo. Sei que não é fácil e que precisa de um tempo para digerir tudo.
— Obrigada, Peter.
— Quer que eu entre? – Ele indaga com cuidado e eu dou um passo
atrás, rompendo nosso contato.
— Hoje não, me desculpe.
— Tudo bem. Eu disse que ia te dar o tempo que precisa. Eu já fico
feliz só de a gente estar tentando
Eu sorrio.
— Eu também.
Ele beija levemente meus lábios e me deixa entrar sozinha no
apartamento.
Eu deveria ter vergonha de admitir que a primeira coisa que eu faço é
ir para meu quarto e aspirar, para ver se ainda tem o cheiro do Thomas ali.
Mas já se foi.
Assim, como ele já não está na minha vida.
Tento ignorar a dor profunda em meu coração ao constatar. Como não
estou mais no hospital, nossos caminhos tomarão rumos diferentes.
Como aconteceu nos últimos oitos anos.
E eu não devo deixar o sofrimento tomar conta de mim outra vez,
como naquele tempo.
Agora eu tenho Peter. E devo ao menos tentar esquecer Thomas de
vez e seguir em frente.
Mas não estou preparada para a ligação que recebo naquela tarde.
— Elizabeth Spencer? – Diz a voz feminina muito formal.
— Sim?
— Aqui é do Chicago Mercy, a senhorita deve estar presente em uma
reunião ainda hoje com o Doutor Jack Hardy. As 17h, posso confirmar sua
presença?
Jack Hardy quer falar comigo? O que ele tem pra falar comigo?
Penso em recusar. Mas é melhor eu terminar logo aquela história.
— Tudo bem.
Na hora marcada, eu entro a sala de Jack Hardy.
Ele me fita gravemente.
— Por favor, sente-se.
Eu faço o que ele pediu, ainda levemente apreensiva.
— Por que estou aqui?
— Estamos te recontratando, Senhorita Spencer.
— O quê?
— Isto mesmo. Pode retornar ao trabalho amanhã.
— Eu não entendo...
— Apenas fique satisfeita com isto.
— Eu... Não acho que é uma boa ideia, na verdade. Não acho que
trabalhar com Thomas vá dar certo, e o senhor sabe bem por que.
— Não se preocupe quanto a isto. Thomas será transferido muito em
breve.
— O quê? – Por esta eu não esperava.
— Está dispensada. – Ele volta sua atenção para o computador.
— Mas...
— Estou muito ocupado, senhorita Spencer. Por favor, se retire.
Eu saio da sala atordoada.
Como assim, Thomas seria transferido e eu iria voltar.
Que diabos estava acontecendo ali?
— Liz?
Eu me volto ao ouvir a voz.
Thomas está me fitando no corredor, parecendo tão surpreso quanto
eu. E, segurando sua mão, está Nina, sua irmã.
— O que está fazendo aqui? – Ele pergunta.
— É... Eu... Fui recontratada, seu pai acabou...
— Foi recontratada – seu rosto se ilumina em... alivio? – Isto é ótimo.
Foi um absurdo sua demissão.
Eu me pergunto se ele sabe sobre a transferência.
— Oi Liz – Nina larga a mão de Thomas e vem em minha direção
sorrindo.
Seu sorriso é muito parecido com o de Thomas.
— É... Oi – eu a cumprimento atordoada.
— Você trabalha aqui né? Fala pro meu irmão que eu não estou
doente?
— Eu...
Olho pra Thomas, sem entender e ele ainda parece meio chocado de
me ver ali.
— Eu só estou com febre! Não quero fazer um monte de exame
chato!
Eu olho mais atentamente para ela e realmente seu rosto está muito
vermelho e febril e seus olhos parecem cansados.
— Nina, não adianta tentar fugir de mim, como fugiu da Amber –
Thomas cruza os braços e me encara – Liz, Nina está com febre alta e
provavelmente tem alguma infecção, qual exame ela deve fazer?
O quê? Ele estava voltando a me sabatinar.
Eu encaro o rosto da menina.
Tentando buscar na minha mente um possível diagnóstico.
E a conclusão que chego me deixa com o peito pesado.
— Você parece cansada – eu toco sua testa.
— Eu vivo cansada ultimamente! – A menina revira os olhos, como
se não fosse nada demais.
Eu rezo para não ser. Rezo para estar errada em minha suposição.
Olho para Thomas. Será que ele não percebeu? Não acho que estaria
tão tranquilo se tivesse percebido. Talvez por ser sua irmã, ele esteja
deixando passando algo crucial.
— Hemograma completo. Com contagem de cada tipo de célula
sanguínea. Se não estiver normal, encaminhar a um especialista – respondo
por fim.
Os olhos de Thomas se arregalam lentamente. Ele entendeu minha
desconfiança.
— Apenas... para se certificar Thomas – me vejo na obrigação de
diminuir seu horror.
— Eu não me sinto bem... Estou tonta – Nina chama minha atenção
ao gemer e quando olho pra ela está mais vermelha do que antes.
— Nina...? – Thomas também percebe e vem em sua direção. Antes
que ele chegue até ela, Nina perde os sentidos caindo em meus braços.
Capítulo Dezessete
Thomas
Liz
Assim que Thomas desaparece porta afora eu olho para Peter, parado
do outro lado da sala me encarando com olhos acusatórios, sentindo como se
algo estivesse tremendamente errado.
O que é absurdo. O cara que saiu por aquela porta, não deveria
significar mais do que o que está na minha sala nesse momento. Esse é o meu
namorado.
Como dizer ao meu tolo coração que era muito certo deixar Thomas
ir? E como eu poderia fazer para convencê-lo, quando ainda sinto o gosto do
seu beijo na minha boca. Quando anseio por mais?
— Não entendi o que esse cara estava fazendo aqui.
Respiro fundo e me sento no sofá. O mesmo em que Thomas tinha me
beijado a pouco tempo.
Passo a mão pelos cabelos cansadamente.
— Eu falei. Ele estava com problemas.
— O que não é motivo para ele procurar você.
— Peter, sinceramente, não estou a fim de brigar ok? – Minha voz
demonstra toda a exaustão daquele dia interminável.
— Merda, Liz! – Peter desaba no sofá – eu também não vim para
brigar com você. Porém, o que quer que eu pense? Você e esse tal de Thomas
Hardy têm uma história juntos. Uma que eu disse a mim mesmo que vou
apagar da sua memória. Então quando chego aqui vocês estão juntos!
— Não estávamos juntos – eu luto para não corar. – Não da maneira
que está insinuando – nego descaradamente. Sei que estou errada. Que talvez
devesse contar a Peter sobre o beijo, mas para quê? Para magoá-lo? Não é
como se tivesse significado algo mais do que um momento de desabafo.
Thomas estava sofrendo e eu só queria consolá-lo. Foi o único
motivo.
Talvez se eu repetisse bastante quem sabe eu não acabasse me
convencendo.
— Vocês estavam chorando.
— A irmã do Thomas está com câncer – esclareço. Peter franze os
olhos.
— A tal gêmea?
— Não. Ele tem uma irmãzinha. Nina. Ela é só uma criança e eu
estava lá no hospital quando ela passou mal e...
— Espera, o que estava fazendo lá?
— Eu fui readmitida.
— Sério? Como assim?
Dou de ombros.
— Nem eu entendi. O Dr. Hardy me chamou de volta.
Peter me encara com cuidado.
— Acha que é uma boa ideia continuar no hospital dos Hardy – e eu
sei que por Hardy ele quer dizer Thomas.
— Ele me disse que Thomas vai sair.
— Nossa, essa é uma reviravolta estranha.
— Sim, eu também acho.
— E você aceitou voltar.
— A única coisa que poderia me manter longe do Chicago Mercy é o
Thomas e se ele vai sair... Talvez não tenha motivos para eu não voltar.
De repente Peter se move em minha direção e segura minhas mãos
entre as suas.
— Não acho que deva voltar Liz.
— Peter – me mexo desconfortável, mas ele não me solta. Seus olhos
são febris em minha direção.
— Eu vou ser transferido de cidade.
— O quê?
— Estou indo embora, Liz.
— Mas... como... onde...? – Sinto meu coração afundando. Peter ia
me deixar também?
— Estou indo para Seattle. Recebi uma proposta irrecusável para
trabalhar em uma obra na cidade. Eu serei o engenheiro chefe.
— Uau, nossa... é... incrível – digo sem conter minha decepção.
Peter era meu melhor amigo. A única constante na minha vida. Podia
até ser egoísmo, eu realmente não queria me separar dele. Justo agora que eu
havia decidido mudar o status do nosso relacionamento.
— Eu quero que você vá comigo.
Arregalo os olhos, surpresa.
— O que?
— Liz... casa comigo?
— Peter... eu... – não consigo pensar coerentemente. Solto minha mão
das suas e me levanto. – Isto é... Nem sei o que pensar...
Como assim Peter estava me pedindo em casamento?
— Eu sei que é repentino – ele também se levanta e segura meus
ombros – eu te amo. Amo há muito tempo...
— Peter... – sinto-me sufocar com aquela declaração tão intensa. Tiro
suas mãos de meus ombros e as seguro contra meu peito – eu também te amo.
Mas não sei se... é do jeito que você gostaria. Você foi meu melhor amigo por
todos esses anos. Eu sempre vou precisar de você comigo, porém... A gente
mal decidiu namorar, como é que já pretende pular pra... casamento?
— Eu estou indo embora. Não vamos conseguir manter um
relacionamento à distância.
— Eu entendo e concordo daí a... casar? Casamento é algo muito
sério. É... um passo muito grande!
— Que eu quero dar com você! – ele insiste. E a paixão em seu olhar
é comovente e assustadora ao mesmo tempo.
Bem lá no fundo do meu coração, eu quero jogar a cautela pela janela.
Quero aceitar todo aquele amor. Eu sei que Peter nunca vai me magoar. Que
ele deseja me fazer feliz.
Há uma parte de mim que acha bem possível.
No entanto, existe aquela outra parte. A parte da Liz que deixou um
cara entrar em seu coração um dia e que ansiou por tudo que estavam lhe
oferecendo agora. Uma vida juntos e então teve todos os seus sonhos
destroçados e espalhados pelo vento.
E esses sonhos nunca mais voltaram.
Como poderei retribuir o amor de Peter? Eu sou uma pessoa
quebrada.
Thomas me quebrou há oito anos e até hoje eu tento encontrar os
caquinhos pra me consertar e ser inteira de novo. E a merda é que ele voltou,
está rondando a minha vida e pisando nos caquinhos.
E o pior de tudo, existe aquele pedaço que foi embora junto com a
minha filhinha perdida.
Só de pensar nela eu sinto aquela dor insuportável me invadir
novamente. O vazio que nunca será preenchido.
Peter acha que vai me fazer esquecer Thomas e tudo o que ele me fez
sofrer. É que ele não sabe que existe sofrimento maior do que uma paixão
perdida.
A dor da perda da minha filha nunca vai passar. Ela está entranhada
em mim e vai me acompanhar até a minha morte. Sei que talvez devesse
tentar explicar a Peter, temo que ele diga que essa dor pode ser curada
também. Que ele poderá me dar filhos um dia para substituir a minha bebê
perdida.
E eu não quero que ele diga. É quase como se eu estivesse traindo a
sua memória.
Eu não quero esquecer aquela dor. Enquanto eu a sentir, significa que
a sua memória ainda está dentro de mim e, de alguma forma, eu sinto que eu
não a abandonei totalmente. Dentro do meu coração, ela continua sendo meu
bem mais precioso.
Solto as mãos de Peter.
— Eu não posso... Sinto muito muito.
Seus ombros caem e eu vejo a dor em seu olhar. Sou apunhalada pela
culpa.
— Eu quero realmente dar uma chance a você, Peter, porém
casamento é algo sério demais.
— Definitivo demais? – ele não disfarça a mágoa.
— Não é...
— Olha eu sei que parece muito precipitado. Mas eu juro Liz. Eu
posso fazer você feliz. Você só precisa se permitir, me permitir.
Ele toca meu rosto.
— Estou indo embora daqui a três dias...
— Três dias, tão rápido?
— A obra já começou e eu estou correndo com a mudança. Por isso
vim aqui agora, te dizer que estarei muito ocupado.
— Eu entendo...
— Eu vou esperar Liz. Vou esperar sua resposta. Não quero te
pressionar. Sei que parece que começamos agora, mas pra mim, essa história
já está rolando faz muito tempo.
Ele beija minha testa.
— Eu preciso ir.
— Tudo bem – eu o acompanho até a porta aliviada. Não quero que
ele fique esta noite.
Eu preciso de tempo e espaço para pensar.
E, assim que ele vai embora, eu percebo que deveria estar pensando
em sua proposta, no entanto meus pensamentos se voltam para Thomas.
Sinto meu coração apertar ao lembrar de como ele estava arrasado
quando bateu na minha porta. Em como eu sabia que não deveria e, mesmo
assim, o deixei entrar.
E deixei que me beijasse.
E, mil vezes inferno, eu tinha ansiado por aquele beijo bem lá no
fundo da minha alma. Como se ela soubesse que a alma dele precisava desta
nossa insolúvel conexão.
Eu já não podia negar a mim mesma que poderiam se passar mil anos,
ainda sim, nossas almas se reconheceriam. Nossos corpos se desejariam.
E agora eu estava voltando ao hospital. Pelo menos por algum tempo,
até que a tal transferência acontecesse, nós estaríamos lado a lado de novo.
A não ser que eu aceitasse a proposta de Peter.
Eu adormeço sem ter encontrado uma saída.
***
Na manhã seguinte, eu vou trabalhar.
Minha chegada ao Chicago Mercy acontece debaixo de fofocas
sussurradas que finjo não ouvir. Não sei o que estão falando ou como
entenderam a minha volta, também não me interessa. Estou ali para trabalhar
e não para me envolver em falatórios.
E, porque não confessar, eu espero rever Thomas. Digo a mim mesma
que se trata apenas de uma preocupação solidária com o momento difícil que
ele está passando com a doença da irmãzinha.
— Onde está o doutor Thomas? – Jenny pergunta quando chegamos à
enfermaria e quem está nos recepcionando e passando nossas atribuições é a
Doutora Chloe.
— Não é da sua conta – ela responde secamente ganhando uma careta
de Jenny.
— Credo só perguntei.
— Jen! – Julie a cutuca.
— O quê? Ela é uma grossa. Tá ficando pior que a Amber...
— A única coisa que lhe interessa é que deve ir para a sutura
imediatamente – Chloe ignora os comentários mordazes de Jenny.
Eu não quero dizer que também anseio saber onde está Thomas, nem
ouso perguntar algo a Chloe, que parece estar de mau humor. Será que ela
também está afetada pela doença de Nina? Ela parecia ser amiga tanto de
Thomas quanto de Amber e esta última também não havia aparecido hoje.
— Elizabeth Spencer. Entregar exames – ela resmunga e se afasta.
Eu vou executar minhas tarefas e o tempo inteiro, me pergunto se
Thomas irá aparecer.
E, como quem não quer nada, passo pelo quarto de Nina Hardy.
Como era de se esperar Amber está lá e, ao lado dela o Doutor Jack. A
menina está dormindo enquanto Amber e o pai parecem discutir em voz
baixa.
— O senhor sabe que eu tenho razão! – Amber diz enfaticamente.
— Não vamos mais discutir esse assunto, Amber! – O médico retruca,
irritado.
— Olhe para ela! Veja como esta pálida! Será que não tem um pingo
de sentimento dentro de você? Se você se negar a me dizer, eu vou atrás da
Diana!
— Deixe a Diana fora disso! Ela foi embora há muito tempo e nem se
importa com a Nina.
— Você a fez ir embora, com esta sua frieza!
— Não sabe de nada, Amber! – Refuta sombriamente e então levanta
a cabeça e nota minha presença. Tenho a impressão que seus olhos me
encaram com medo por um momento.
— Me desculpem – murmuro.
— O que você quer? Está procurando o Thomas? – Amber diz
friamente – ele só virá trabalhar a tarde. Se precisar de algo peça a Chloe.
— Sim claro... – eu dou meia volta e me afasto, perguntando-me do
que eles estariam falando.
E estou pensando em sair para almoçar quando vejo Paola Becker. Ela
não parece satisfeita em me ver.
Eu sei que foram as fofocas daquela médica que fizeram Emily ser
demitida. E também o motivo da minha demissão, em parte. Só não entendo
o que ela ganharia.
— Ainda não entendi como conseguiu ser readmitida – ela diz
mordazmente.
— Por que não gosta de mim, doutora Paola? – Não consigo me
impedir de perguntar – me atraiu para uma conversa, me fez falar de Emily e
de mim com Thomas e...
De repente uma desconfiança tolda meus pensamentos...
Ela não era noiva de Jack Hardy?
Seu sorriso é quase uma confissão.
— Parece que já entendeu.
— Mas...
— Como posso ser noiva do pai do homem com quem dormi?
Sinto o chão fugir dos meus pés.
— Você trai o doutor Hardy com Thomas?
Ela dá de ombros, como se não fosse nada.
— Minha história com Thomas começou antes mesmo da minha com
o pai dele.
— Eu não entendo – balbucio, chocada. Enojada.
Thomas se tornou um homem pior do que eu imaginava se transava
com a noiva do próprio pai.
— Conhecemos o Thomas, não é? Ele tem essa fobia de
compromisso. Não quer se comprometer com ninguém e eu cheguei num
momento da vida que preciso de segurança.
— E tinha que ser justamente o pai dele?
— Não ouse me julgar.
— Eu não preciso julgar nada!
— Vejo sua repulsa. Ou está com ciúmes do Thomas? Me diz,
Elizabeth Spencer, ainda sente algo por ele? Quer Thomas de volta? Por isto
está aqui?
— Por que se preocupa? Não vai casar com o pai dele? – Rebato no
mesmo tom irônico.
— Se eu fosse você, desaparecia para sempre. Não deveria nem ter
voltado. Thomas não mudou. Nunca vai mudar. Ele vai ser sempre este
garoto mimado e egoísta. Além de mulherengo. Não pense nem por um
instante que ele não vai te fazer sofrer novamente. Porque é o que Thomas
Hardy faz melhor. Ele nos envolve em sua sedução e depois nos cospe fora
como uma erva daninha para seu precioso coração intocado.
E sem mais, ela me dá as costas e entra no quarto onde Nina está.
Eu ando até o vestiário tremendo.
Por que sei que Paola Becker tem razão. Thomas vai me fazer sofrer
de novo. Eu já não estou sofrendo? Não estou correndo pelos corredores a
procura dele? Usando desculpas esfarrapadas para encontrá-lo?
Porque eu quero isto. Eu sempre quero.
Quero que ele me toque de novo e faça o que quiser comigo. Não
consigo mais fugir desta triste realidade. Thomas Hardy ainda mexe comigo
como nenhum outro. Ele continua tendo aquele mesmo poder sobre mim. O
poder de me levar ao céu e depois me jogar lá de cima.
Eu quase já posso antever acontecendo novamente, sem que consiga
impedir.
***
Thomas
Liz
Está acabado.
Thomas Hardy está saindo da minha vida. De novo. Dessa vez quem
o está expulsando sou eu.
Eu saio do Chicago Mercy pela última vez e dirijo até minha casa me
abstendo de pensar. Pensar no que eu fiz dói muito. Deveria me sentir
aliviada e não angustiada. Eu tomei a decisão certa me livrando de Thomas
antes que, inevitavelmente, ele se livrasse de mim. Era o único desfecho que
uma história envolvendo Thomas e eu poderia ter. E dessa vez, eu assumi o
controle antes que fosse tarde demais, eu realmente não saberia dizer se
sobreviveria a uma recaída por Thomas. A primeira vez quase havia me
matado. E, como consequência, além de perder um malfadado amor, eu ainda
fui obrigada a abrir mão do meu bebê.
O duro era dizer ao meu coração teimoso que eu devia parar de sofrer
por Thomas. Será que ele não aprendia? Quando é que ele ia aprender que
bater mais forte por Thomas Hardy era perda de tempo? Por que é que ele
não batia mais forte por um cara como Peter? Que me amava e queria me
fazer feliz?
Ah, eu ia aprender. Eu precisava aprender. Eu havia decidido ficar
com Peter e era assim que ia ser. Podia ainda demorar um tempo, mas eu ia
conseguir esquecer Thomas e aprenderia a amar Peter. E quem sabe até
poderia preencher aquele vazio da perda da minha filha com outro bebê? Eu
conseguiria abrir meu coração de novo para todas essas possibilidades? Só o
tempo dirá. Por enquanto, eu só queria chegar na minha casa, arrumar minhas
coisas e ir embora de Chicago. Colocar a maior distância entre mim e a
confusão de sentimentos causada por Thomas.
Assim, decidida a ignorar aquela dorzinha no meu peito, que queria só
se arrastar pra cama e chorar, eu pego o telefone e disco o número.
— Peter White – a voz atende do outro lado da linha e eu engulo em
seco.
— Peter, é Liz.
— Liz, oi... espere um minuto – sua voz sai abafada e eu escuto
barulho de multidão. – Pode falar, eu estou no aeroporto – ele diz agora mais
claramente.
— Aeroporto?
— Sim, eu estou indo viajar hoje.
— Você disse que ia em três dias...
— Sim, eu sei. Surgiu um imprevisto e precisam de mim antes. Eu só
poderei voltar daqui a algumas semanas para tratar da minha mudança de
vez... O que aconteceu? Por que está me ligando?
— Peter, eu pensei na sua proposta – respiro fundo. Minha razão
ainda tentando ignorar minha emoção, que luta ferozmente para ser ouvida.
Mas eu resisto. – Eu aceito me casar com você.
Pronto. Está feito.
— Liz, uau... – Peter parece realmente surpreso – está falando sério?
— Você parece muito surpreso.
— Estaria mentindo se dissesse o contrário. Eu... já estava perdendo
as esperanças, Lili.
— Não perca a fé em mim Peter – murmuro – você é tudo o que me
resta.
— Nunca. Nunca farei isso! Eu prometo que não vai se arrepender.
Nós vamos ser felizes.
— Promete? – Eu fecho os olhos, um nó se formando em minha
garganta. Eu quero tanto, tanto acreditar nas palavras de Peter. Eu vivi num
limbo durante anos, lutando contra minhas emoções, com medo de sofrer de
novo. E agora tudo o que eu quero é me abrir para algo novo.
Eu mereço ser feliz.
— Eu prometo – Peter diz solenemente – Quando eu voltar, nós
acertaremos tudo. Um mês é suficiente para sua mudança?
— Sim, claro que sim – sussurro, pensando que agora não há pressa.
A decisão já está tomada. E eu preciso mesmo de um tempo para me desfazer
de tudo o que me liga a Chicago.
— E sua mãe?
Oh merda. Eu xingo mentalmente.
Eu me esqueci de Bárbara. Eu teria que contar a ela meus planos. E
ela não ia gostar nem um pouco. Estremeço de medo.
— Minha mãe vai ser um problema.
— Não deixe que ela a domine de novo. Você é adulta e pode tomar
suas próprias decisões.
— Sim, tem razão. Acho que já está na hora de eu enfrentar Bárbara.
— Você vai conseguir Lili, preciso desligar. Estão chamando meu
voo.
— Certo. Boa viagem.
— Eu te amo – ele se despede.
Não consigo dizer o mesmo.
— Eu sei – é minha resposta lacônica.
Por enquanto isto basta. Tem que bastar.
Eu desligo e respiro fundo, olhando para o telefone na minha mão.
Sei que preciso ligar para minha mãe e marcar uma conversa, porém
ainda tenho medo.
E estou ali, pensando como vou comunicar minha mudança a ela
quando a campainha toca.
Me precipito a atender e meu coração dá um salto no peito ao ver
Thomas parado diante de mim.
— Thomas? – Minha voz não passa de um sussurro trêmulo.
O que diabos ele está fazendo ali? Quero gritar para ele desaparecer e
fechar a porta na sua cara, porém algo em seu semblante me faz ficar
paralisada no lugar. E sinto um calafrio na espinha.
Eu já vi muitas faces de Thomas. Mas nunca vi aquele olhar. E é o
que me faz não recuar e fechar a porta em sua cara, quando ele passa por mim
e entra na minha sala.
— Thomas, o que aconteceu? O que está fazendo aqui? – Consigo
perguntar.
— Liz... – ele não continua. Respira fundo. Os dedos que passam
pelos cabelos estão trêmulos. É como se estivesse à beira de um colapso. –
Eu estava com medo de não te encontrar, eu... Eu nem sei como te dizer...
Nem eu ainda acredito... – ele perde a voz de novo.
— Thomas, pelo amor de Deus, não está falando coisa com coisa... E
está me assustando!
Ele para e se aproxima de mim. Tão perto. Eu perco o ar. O imã que é
ativado toda vez que ele está perto, me faz ficar parada no lugar, lutando
contra a gravidade que me leva em sua direção.
A gravidade que quer fazer minha mão levantar e tocar seu rosto,
dizer que seja lá o que o está afligindo, tudo vai ficar bem.
— É Nina. – Ele diz e eu franzo a testa.
— Aconteceu algo com sua irmã...
— Ela não é minha irmã.
— O quê? Do que está falando? – Eu estava entendendo cada vez
menos.
— Eu disse que Nina não é minha irmã.
— Como assim? Oh, ela me disse que é adotada, é isso?
— Sim, ela foi adotada por meu pai. E nós o pressionamos para dizer
onde estavam seus verdadeiros pais.
— Sim, eu entendo. Por causa da leucemia... E ele disse?
Thomas perde o ar. Uma lágrima cai do seu olhar assustado.
Algo estala em minha mente. Ainda não sei o que é. Só tenho certeza
que é algo tão assustador quanto o olhar de Thomas demonstra.
— Sim, meu pai disse – ele sussurra me encarando com aquele olhar
perdido. Como se quisesse me dizer algo e não encontrasse as palavras. Seu
olhar implora.
Eu não consigo...
— Thomas... o que está acontecendo... por que está aqui?
— Nina é nossa filha, Liz.
Um zunido soa em meu ouvido e faz tudo desaparecer a não ser as
palavras sem sentido de Thomas.
— O quê? O que está dizendo?
— Que Nina é nossa filha. A criança que você deu em adoção há oito
anos. Meu pai a adotou. E mentiu para todos nós por todos esses anos.
As palavras de Thomas flutuam até mim, apesar do zumbido,
começando a fazer um terrível sentido.
Luto para respirar, enquanto minha mente dá voltas. Me recordo da
única vez que a tive em meus braços. Tão pequena. Tão minha antes de a
levarem de mim pra sempre.
Me recordo do vazio que nunca foi preenchido por sua ausência. De
como todos os dias eu pensava nela e me perguntava como ela seria. Se
pareceria comigo. Ou com Thomas.
E substituo a imagem da minha imaginação por Nina. A irmãzinha de
Thomas. Que se parecia tanto com ele.
— Oh Meu Deus – eu finalmente entendo e minhas pernas cedem.
Thomas me segura antes que eu vá ao chão. – Não pode ser, como pode ser...
— Eu sei, eu sei... – ele sussurra com a mesma angústia.
Eu o encaro num último átimo de sanidade, como se ele fosse rir e
dizer que era tudo uma brincadeira.
Seu olhar é contundente.
— Nina é nossa filha? – Murmuro, sentindo lágrimas quentes caindo
por meu rosto enquanto Thomas sacode a cabeça.
— Sim, Liz.
Fecho os olhos e deixo o nó na minha garganta se romper. Em meio a
revolta por toda a mentira que Jack Hardy construiu sinto uma mistura
confusa de alegria e alivio.
Eu a encontrara. Minha filha perdida era a linda e doce garotinha que
vivia com os Hardy.
Não sei quanto tempo passamos assim, unidos naquela explosão de
sentimento. Até que finalmente me sinto exausta e me afasto.
— Eu sinto muito, Liz – são as palavras doloridas de Thomas.
Eu passo a mão pelos cabelos, sem saber o que fazer. O que sentir.
— A culpa não é sua. Foi seu pai que mentiu. Como ele pôde fazer
isto?
— Ele combinou a adoção com a sua mãe...
— Minha mãe sabia? – Sinto uma pontada no peito. Traição.
— Não até pouco tempo. Ela descobriu quando viu Nina no hospital e
chantageou meu pai. Por isto ele te readmitiu e ia me mandar embora.
— E foi justamente por isto que me demitiu. Ele tinha medo não de
nós dois ficarmos juntos e sim de que descobríssemos a verdade. – Minha
mente começa a clarear e entender tudo.
E uma raiva fria se apossa de mim. Raiva de Jack Hardy. E da minha
mãe.
Ela tinha descoberto que minha filha estava perto e escondera de
mim.
— Ele foi obrigado a dizer por causa da doença de Nina.
— Oh Deus, a doença de Nina – eu sinto a dor me dilacerar de novo.
Agora mil vezes mais forte.
Eu tinha encontrado minha filha e ela estava doente. Terrivelmente
doente.
Seria um castigo divino? Eu a encontrara apenas para perdê-la.
— Liz, nós... – Thomas começa, antes que ele termine a porta do
apartamento se abre e minha mãe aparece.
— Liz, querida... – ela para ao ver Thomas. – O que este homem está
fazendo aqui?
— Que ótimo que apareceu, Bárbara. Talvez possa nos explicar a
sujeira que você e meu pai aprontaram... – Thomas começa, eu o paro.
— Thomas, vai embora.
— Liz... – Eu imploro com meu olhar.
— Por favor. Eu preciso conversar com a minha mãe a sós.
— Tudo bem – ele finalmente concorda e se vai fechando a porta
atrás de si.
E eu finalmente encaro Bárbara.
— Quando ia me contar que Jack Hardy adotou minha filha?
— O quê?
— Não se faça de desentendida. Jack contou a Thomas. Mãe, como
você pode fazer algo assim comigo?
— Eu não sabia! Acha que eu teria permitido que esta criança ficasse
com os Hardy?
— Esta criança é minha filha!
— Não é mais! Você abriu mão dela, então que diferença faz onde ela
foi criada...
— Meu Deus, você não tem um pingo de compaixão? Não percebe o
que está dizendo, acha que não faz diferença pra mim?
— Não deveria fazer! Tomou a melhor decisão quando a deu! Sua
vida teria sido bem diferente se tivesse ficado com ela!
— Sim, teria. Eu teria sido imensamente mais feliz!
— Tem certeza? Sozinha e com uma filha para criar? Caia na real,
Liz!
— Eu nunca deveria ter te escutado! Eu fui uma idiota!
— Não, foi sensata! Olha sua vida agora! É uma médica e vai ter
muito sucesso ainda...
— É só o que importa para você? Status e carreira! Pois saiba que eu
não dou a mínima!
— Não pode dizer uma coisa dessas! Sei que está chateada por causa
da garotinha, mas deve esquecer... nada mudou e...
— Chateada? Acredita que estou somente “chateada”? Pelo visto não
me conhece nem um pouco! Aliás, nunca fez questão de conhecer!
— Não comece com o drama! Eu não te ensinei a ser assim,
melodramática! Sempre te criei pra ser uma mulher forte e passar por cima
dos problemas! Pare de choramingar...
— Cala a boca! – Grito – Cala a boca agora! Você não se importa
com o que eu sinto! Nunca se importou!
— Eu me importo sim! Sempre te ajudei a tomar as melhores
decisões.
— Não me ajudou nada, você me persuadiu! Isso quando não tomava
as decisões por mim! Saiba que agora chega! Não quero mais te ver na minha
frente! – Caminho até a porta e a abro.
— Liz, querida, seja razoável...
— Estou de saco cheio de ser razoável com você! Uma pessoa que
não se importa com meus sentimentos! Com meu sofrimento.
— Não é verdade...
— Eu estou arrasada, mamãe. Arrasada! E você só se preocupa com a
merda da minha carreira!
— Sua carreira é o mais importante.
— Não, não é. Nunca foi! Eu deixei que incutisse esta ideia absurda
em minha cabeça e só fui infeliz até agora! Chega! Não quero te ouvir mais.
Por favor, vai embora.
— Filha, não faça isto.
Eu não falo mais nada, apenas mantenho a porta aberta.
Bárbara se dá por vencida, porém me encara antes de sair.
— Vou esperar você se acalmar e voltaremos a conversar. – Ela sai e
eu bato a porta.
Eu estou tremendo inteira quando ando até meu sofá e me sento ali.
Estou dentro de um pesadelo.
E não consigo sair dele.
Então eu penso em Nina e sinto uma necessidade premente de vê-la.
Ela é só o que interessa agora.
Pego a chave do carro e rumo para o hospital.
***
A noite já caiu quando caminho pelos corredores com um destino
certo. O quarto de Nina.
Ela está dormindo quando eu me aproximo. Eu olho para ela como se
a visse pela primeira vez. E é realmente a primeira vez que a vejo. Antes ela
era só a doce irmãzinha de Thomas. Agora ela é a minha filha. O meu bebê
perdido.
Sinto lágrimas quentes molharem minha bochecha quando estico os
dedos para tocar sua pele pálida. Deixo minhas mãos vagarem por seus
braços, por seu corpinho quente, como que para me certificar que ela é de
verdade. Que está ali. Viva e respirando.
E tão doente.
Um soluço rompe em minha garganta e a dor pungente me sufoca.
Será que eu a encontrei apenas para perdê-la? Será esse o meu castigo por
abandoná-la?
Toco seus cabelos e aproximo meu rosto do seu, minha pele tocando a
sua, ouvindo sua respiração. E rezo silenciosamente para que ela sobreviva. É
só o que importa.
Capítulo Vinte e Um
Thomas
***
Liz
Não sei quanto tempo estou ali, velando o sono de Nina, quando
escuto passos se aproximando.
— Você pode salvá-la – a voz atrás de mim me causa um sobressalto.
Eu me aprumo e vejo Amber Hardy.
— Você e Thomas podem salvá-la. – Ela diz firmemente. – Vocês
precisam ter um bebê. Um bebê que irá salvar Nina.
Parece uma daquelas experiências extra-sensoriais. Como se eu
estivesse fora do meu corpo, minha alma atormentada e confusa vagando em
um lugar acima da cena que se desenrola lá embaixo.
Vejo o fervor de Amber enquanto propõe o que ela diz ser a única
solução para salvar Nina.
Suas palavras flutuam até mim, adentram em meu cérebro ainda
entorpecido depois de todas as revelações do dia e tentam encontrar um
sentido.
— Eu não entendo... – fecho os olhos lutando para respirar,
começando a sentir como se a voz de Amber desse pequenas marteladas em
minha cabeça, causando dor por onde passa. Confunde e machuca.
Ela toca meu braço, aperta com força, quase me sacudindo, me
obrigando a abrir os olhos.
— Um bebê seu e de Thomas seria a combinação genética perfeita
para ajudar Nina! Você tem que me escutar!
— Amber que diabos está fazendo?
Como vindo de muito longe, vejo Thomas se aproximando. Seu rosto
é apenas um borrão, mas não posso negar o alívio que sinto.
Amber solta meu braço, ou Thomas a obriga a soltar e o toque
macabro de sua irmã é substituído por sua mão morna.
E é o que basta para eu me sentir segura o suficiente para desabar.
— Thomas, eu não aguento mais... – ainda consigo murmurar.
Seus dedos tocam meu rosto, segurando meu corpo exausto. Como
uma fortaleza.
Ele é minha fortaleza agora.
— Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.
***
Eu acordo na minha própria cama. Um olhar vago para o relógio na
mesa de cabeceira, me traz as horas. É madrugada.
Por um momento, acho que sonhei com tudo. Com todas as
revelações aterradoras e incríveis das últimas vinte quatro horas. Embora
saiba, bem no fundo do meu peito ferido que eu vivo em outra realidade
agora.
Uma realidade linda e assustadora.
Eu tenho uma filha.
Eu passei anos ansiando por um momento como esse. Que existisse
uma fenda no tempo que me permitisse tê-la de volta. E como por um
milagre, ela voltou.
Mas estava a um triz de perdê-la de novo. Para aquela doença terrível.
As palavras de Amber voltam. O fervor com que ela dizia que Nina
tinha uma chance. E que eu e Thomas poderíamos dá-la a ela.
Muito vagamente eu me lembro das últimas horas. O momento em
que meu corpo e mente desabaram com o peso de tantas exigências. E ele
estava lá para me segurar. E era como se toda a necessidade que eu senti de
fugir do hospital e, consequentemente, de sua presença não tivesse existido.
Ou não importasse mais.
Nada mais importava.
De repente essa constatação atinge meu cérebro e se espalha como um
elixir por minhas veias, contaminando meu coração. E uma estranha calma
toma conta das minhas emoções.
Todos aqueles medos e anseios pertencem a outra vida. A outra
realidade. Uma realidade sem Nina.
E ela é tudo o que importa agora.
Fortalecida por essa nova convicção, jogo as cobertas para o lado e
me levanto. A casa está em silêncio, apesar de eu sentir sua presença. Ele está
em algum lugar na semiescuridão.
Deixo meus pés descalços me guiarem.
O encontro sentado na minha sala, cercado pela escuridão. Um facho
de luz da rua ilumina sua cabeça entre as mãos. Me compadeço por um
instante. Eu sei o que ele sente. Somos iguais agora.
Seus medos, são os meus medos.
Nos completamos em nossa dor.
Sentindo minha presença, ele levanta o olhar. Vejo tormenta e
incerteza.
— Você está bem? – Ele se levanta e caminha em minha direção.
— Acho que nunca mais ficarei bem.
— Acho que entendo.
— Eu sei.
Por um momento apenas nos encaramos.
— Amber te disse... – sua voz não passa de um sussurro. Assim como
minha resposta.
— Sim.
— O que vamos fazer?
— O que precisa ser feito.
Ele me encara incrédulo. Esperançoso.
Temeroso.
— Você tem certeza?
— Não podemos perdê-la.
— Liz, isso é tão...
— Shi... Não vamos pensar – eu dou um passo em sua direção. Posso
sentir seu calor. – Isso é certo. Contra todas as possibilidades. Apenas é
certo. Eu sinto que faria qualquer coisa. Incondicionalmente... Você não sente
o mesmo...? – Minhas palavras são engolidas por sua boca, que devora o
resto das minhas incertezas.
Meu corpo flutua em direção a suas mãos, que tomam posse, ansiosas
e urgentes.
Eu mal sinto o chão fugir a meus pés, apenas fecho os olhos e deixo
Thomas me levar. Deixo o desejo dominar meus sentidos.
Os lençóis ainda mornos recebem meu corpo febril e minhas mãos
não perdem tempo em retirar suas roupas do caminho. A primeira coisa que
noto é a tatuagem. Isto faz uma sensação de dejá-vù pesar no meu estômago.
Meus dedos traçam o contorno do dragão que eu mesma desenhei. Parece que
faz tanto tempo. Parece que foi ontem.
O devaneio desaparece quando Thomas me joga para trás, na ânsia de
tirar minhas calças é sua vez de se perder em suas próprias lembranças
quando minha tatuagem de rosa se revela.
Ele toca com os dedos longos o pequeno desenho, fazendo arrepios de
prazer traspassarem minha espinha e em seguida se inclina e a beija. Cerro as
pálpebras e solto um pequeno gemido que é ao mesmo tempo dor e prazer.
Era exatamente assim que ele fazia. Antes. Quando era meu. Antes de
despedaçar meu coração e acabar com tudo.
Ah merda. Lá estava. O passado.
Eu ia mesmo fazer aquilo. Deixar que ele entrasse em mim. Na minha
vida.
Que colocasse um bebê em minha barriga de novo.
— Liz? – Sua voz é ansiosa e insegura quando se coloca em cima de
mim.
Tão nu quanto eu.
Ele parou, mas ainda sinto sua ereção exigindo um caminho. O pulsar
entre as minhas pernas é inconfundível. Eu o quero. Sempre quis. Sempre ia
querer.
Fecho os olhos e o beijo, deixando de lado todos os meus antigos
medos.
Era tarde demais.
— Não pare... – Murmuro dentro de sua boca e ele rosna, me
mordendo e eu solto um gemido de rendição.
E ele prossegue, deixando seus lábios vagarem por meu corpo numa
sessão de reconhecimento. E meu corpo reconhece sua língua também, e dá
boas vindas a ela, como uma velha conhecida. Minha pele exulta com aquele
retorno e transborda de calor e prazer.
E com prazer, eu abro os olhos para vê-lo provar meus mamilos,
como uma iguaria rara, lambendo e mordendo delicadamente, como ele
certamente lembrava que eu gostava e que fazia eu ficar molhada e pronta
para ele. Ansiosa por ele. E com um arquejo, eu seguro sua mão e a levo para
o meio das minhas pernas, fazendo ele sentir o que eu quero. O que eu
preciso.
E ele solta um gemido, me acariciando lentamente, seus dedos
invadindo profundamente, me fazendo arquear e perder o fôlego.
— Thomas, por favor...
— Por favor o que? – Ele exige roucamente, os lábios descendo por
meu ventre, me fazendo tremer de expectativa.
— Isso... – minha voz se perde num engasgo quando sua boca
substitui os dedos e eu estou perdida.
Ele sabe como fazer aquilo. Malditamente sabe. E eu deslizo numa
doce inconsciência, deixando que meu corpo dê boas-vindas a Thomas
Hardy.
E, quando, por fim, ele está dentro de mim, eu me sinto como aquela
Liz apaixonada e livre de oito anos atrás. Que queria ser pintora e amar
aquele homem.
É como voltar a ser eu mesma. Finalmente.
***
***
Thomas
Liz
***
Thomas
Eu não vejo Liz pelo resto do dia. Sou designado para duas cirurgias
e, quando passo no quarto de Nina para me despedir é noite e Amber diz que
Liz já passou por ali e foi embora.
— Certo, eu estou indo também.
Eu me inclino e beijo Nina, que está acordada, mas sonolenta.
Amber sai do quarto comigo.
— Papai acordou. Não vai vê-lo?
— Não sei se quero vê-lo.
— Faça como quiser – ela resmunga e volta para perto de Nina.
Apesar de minhas palavras eu passo no quarto do meu pai antes de ir
embora.
Ele parece mais velho contra os lençóis.
— Thomas – ele exclama surpreso.
— Como está se sentindo?
— Melhor.
— Ótimo – minha voz é fria.
— Thomas, escute, sei que não vai me perdoar.
— Papai...
— Só queria que entendesse... Eu acreditava que estava fazendo para
seu bem.
— Eu realmente não quero mais discutir esse assunto e, tem razão,
não dá pra perdoar. Porém, fico aliviado que esteja bem.
E sem mais eu saio do quarto. Ainda não estou pronto para perdoar
Jack. Não sei se um dia estarei. Tenho outras coisas na minha cabeça por
hora.
Eu dirijo até sua casa sem nem mesmo cogitar outra opção. Estaciono
em frente ao prédio e subo ao seu apartamento, batendo na porta.
Liz abre a porta e de repente sou invadido pela sensação de déjà-vu.
Ela está vestindo apenas uma camiseta velha com os cabelos soltos sobre os
ombros. Parece demais com aquela manhã em que a beijei pela primeira vez.
Pela sua expressão ela está se lembrando da mesma coisa.
— Oi – sussurra com um sorriso.
Eu a puxo pra mim e a beijo.
E como há oito anos, eu a empurro para dentro, fechando a porta com
meus pés. Diferentemente de antes, hoje eu a pego no colo e a levo pra cama.
Capítulo Vinte e Seis
Liz
Perfeição.
Não existia outro nome para aquela sensação sublime que era ter
Thomas se movendo dentro de mim. Podia ser lento e suave como agora ou
rápido e duro, como era geralmente quando começávamos. Não importava.
Sempre era incomparável.
Abro os olhos, desfocados pelo desejo e percebo o quarto na
semiescuridão da madrugada, os lençóis desfeitos e Thomas pairando sobre
mim. Seu corpo lindo colado no meu, escorregando sobre o meu, nossos
quadris se movendo em sintonia num delicioso atrito. Seus gemidos roucos
em meu ouvido e seus dedos retirando os fios de cabelo do meu rosto suado.
Ele me encara com os olhos azuis intensos. Sinto-me queimar.
— Tudo bem? Está muito devagar?
Eu sacudo a cabeça negativamente.
— Não... está perfeito... – ele sorri. Lindo. E me beija, intensificando
os movimentos, me penetrando mais fundo, mais rápido, eu soluço agarrando
seus ombros com minhas mãos ansiosas, cravando as unhas na sua pele e não
demora muito para me desmanchar embaixo dele.
Depois o silêncio, quebrado apenas pelo barulho de nossas
respirações voltando ao normal. Thomas se move para o lado e me puxa
contra seu corpo ainda quente, se encaixando atrás de mim e depositando um
beijo doce em minha nuca.
Algum tempo depois ouço seu ressonar. Ele dormiu, eu permaneço
acordada. Penso em como as coisas mudaram nas últimas duas semanas,
desde que descobrimos sobre Nina e decidimos embarcar naquela jornada
para salvá-la.
Eu não tinha pensado muito no que implicaria ficar com Thomas de
novo. Eu apenas seguira o instinto intrínseco de que eu teria que fazer
qualquer coisa para salvá-la. E então, de novo eu estava na cama de Thomas.
E o que eu podia dizer? Ele ainda era o melhor sexo que eu podia ter, não
havia nem comparação com qualquer coisa que eu tivesse vivido antes ou
depois. Nós éramos perfeitos juntos, como se tivéssemos sido feitos para nos
encaixar.
E, sem que eu conseguisse evitar, ele começou a se infiltrar por meu
coração de novo. Não que ele tivesse saído um dia. Eu o trancara em algum
lugar escondido. Assim como o amor por minha filha. Os dois estavam
perdidos pra mim.
A vida às vezes tomava rumos inexplicáveis, a linha do destino se
enrolara em volta do mundo e nos conectara novamente. Nós três.
E o que ia acontecer agora? Eu não fazia ideia.
Eu havia escolhido viver um dia de cada vez. Passava os dias no
hospital, aprendendo a ser médica, junto com os outros internos tendo
Thomas me supervisionando, nossos olhares se encontrando e fugindo, se
encontrando de novo, até que um dos dois arranjasse alguma desculpa para
nos trancarmos na sala de medicação para passarmos alguns instantes
roubados sacudindo os armários.
Nina continuava a não demonstrar nenhuma melhora, eu a via
definhar enquanto permanecia do seu lado todo o tempo que me era dado,
rezando todas as noites, depois que Thomas gozava dentro de mim, para que
um bebê viesse para salvá-la.
Nós estávamos juntos todas as noites. Estabelecemos uma espécie de
rotina, na qual íamos para minha casa ou a dele depois do dia puxado no
hospital. Nós jantávamos e depois cama. E, por algum tempo, eu me esquecia
de tudo a não ser as sensações incríveis que ele me proporcionava. Naqueles
momentos eu me permitia ser aquela Liz do passado, jovem e despreocupada.
Apaixonada. Eu podia fingir que éramos só um homem e uma mulher
ocupados em tirar prazer um do outro.
Depois, junto com a quietude vinham os medos e as incertezas.
A preocupação com Nina e sua saúde frágil. O receio de não
engravidar. E o pânico por saber que a cada noite que passava, eu me deixava
envolver mais um pouquinho por Thomas.
E me angustiava sem saber o que iria acontecer. Às vezes eu achava
que ele tinha mudado. Que aquele Thomas que havia me virado as costas, que
se negava a se envolver, não era o mesmo Thomas que demonstrava tanto
amor por Nina e parecia comprometido comigo e nosso propósito.
E se fosse só isto? E se bastasse eu engravidar para ele me deixar
novamente, se transformando naquele Thomas egoísta e galinha que levava
as enfermeiras para a sala de medicação?
Eu tinha medo. E tentava não pensar. Simplesmente fechava os olhos
e aproveitava a felicidade roubada que era ter seus braços a minha volta. E
esperava pelo dia de amanhã.
***
Amber
Liz
— Está distraída.
Eu levanto a cabeça e encontro o olhar de Thomas do outro lado da
mesa. Nós estamos no seu apartamento onde acabamos de jantar. Como
sempre, eu cozinhei e Thomas ficou responsável pela louça. Era uma boa
troca.
Geralmente eu estaria ansiosa para o que viria depois. De como em
algum momento ele me puxaria pra perto, mergulharia seus incríveis olhos
nos meus e por fim, encheria minha boca de beijos molhados. E mil
borboletas sobrevoariam meu estomago, deixando meu corpo leve e pesado
ao mesmo tempo. Então passaríamos horas perdidos um no outro.
Mas hoje eu me sentia diferente. Desde que Amber me alertara de que
eu devia fazer o exame minha ansiedade era outra.
— Eu fiz o exame hoje – murmuro me levantando da mesa e retirando
os pratos – acho que estou nervosa – completo, de costas pra Thomas.
Ele levanta e se coloca atrás de mim. Toca meus ombros. Fecho os
olhos.
— Vai dar tudo certo, Liz. – Sua voz abafada sai contra meus cabelos.
Suspiro. Quero acreditar nele. Tenho medo de acreditar.
— Acha que já estou grávida?
— É bem possível, dada a maneira que estamos tentando – ele
imprime humor em sua flexão; apesar de nós sabermos que no fundo não tem
nada de engraçado.
A verdade é que estamos há dias seguindo aquela rotina de sexo,
como se não fosse nada demais. Como se tanta coisa não dependesse disto.
Não éramos simplesmente dois amantes passando um tempo juntos saciando
desejos. E eu me perguntava o que aconteceria depois que completássemos
nosso propósito.
Tenho vontade de perguntar a Thomas. Talvez esteja mais do que na
hora de termos uma conversa franca sobre, já que eu posso mesmo estar
efetivamente grávida.
— Thomas – eu me viro para encará-lo, neste momento a campainha
toca. – Está esperando alguém?
— Não! – Ele se afasta para abrir a porta e eu vou atrás.
E nós dois estacamos surpresos quando vemos Amber com Nina no
colo.
— Oi Thomas – Amber sorri.
— O que estão fazendo aqui? – Thomas pergunta, quando Amber
coloca Nina no chão e entra no apartamento segurando sua mão.
Meus olhos se prendem em Nina apreensivos. Ela está vestindo um
casaco por cima da camisola e, apesar de abatida, não parece mais doente do
que já estava. Na verdade, há um brilho em seus olhinhos espertos quando ela
os crava em mim.
— Nina, o que faz aqui? – Pergunto preocupada ainda, apesar da
minha inspeção.
— Oi Liz – ela olha pra Amber, como se esperando uma ordem.
Thomas fecha a porta e vem até nós, nossos olhares se encontram
confusos.
— Sim, o que estão fazendo aqui? Por que tirou Nina do hospital a
essa hora? – Ele toca o rosto de Nina, fazendo sua própria inspeção
preocupada.
— Ela está bem, Thomas. Acha que eu a tiraria do hospital se não
estivesse?
— Não fica bravo com a Amber, Thomas – Nina pede com sua
vozinha infantil – fui eu que pedi para vir.
— Você? O que aconteceu? – Ele toca seu rosto carinhosamente
agora.
— Nina queria vir pessoalmente dar uma notícia. Por que não nos
sentamos?
Ela se senta sobre o sofá e abre a bolsa.
Nina se aproxima dela e Thomas me puxa para outro sofá.
Amber pega um envelope dentro da bolsa e entrega a Nina. A
garotinha se move em nossa direção e me entrega o envelope.
— O que é isto? – Pergunto.
— É o exame que diz que vai ter um bebê.
Eu escuto o engasgar de Thomas do meu lado.
Meu coração para de bater por um instante.
Eu encaro Nina e ela sorri.
— O meu irmãozinho.
Eu começo a tremer.
Thomas pega o envelope da minha mão abrindo-o e lendo.
Eu não consigo deixar de olhar pra Nina.
— O que disse...? – Indago com a voz embargada de emoção.
— Amber me disse que estavam tentando fazer um irmãozinho pra
mim. Pra me salvar.
Eu encaro Amber, com uma pergunta muda no olhar e ela sacode a
cabeça positivamente com um sorriso.
— Você sabe quem somos? – É Thomas quem pergunta. Sua voz está
tão abalada quanto a minha.
— Sim, Thomas. Amber me contou que você é meu pai biológico –
ela confirma animada – e que a Liz é minha mãe! Não é incrível?
Eu solto um soluço, levando a mão a boca para não explodir em
lágrimas.
Não consigo conter o choro.
— Oh Meu Deus – sussurro sem ar.
Nina se aproxima e sobe no meu colo.
— Não chora Liz, eu vou ficar bem. A Amber me disse que meu
irmãozinho vai poder me ajudar quando nascer. E eu vou adorar conhecê-lo.
– Ela me abraça e eu deixo meus braços a envolverem.
Finalmente meu bebê voltou para meus braços.
Eu olho para Amber por cima de seus cabelos e murmuro um
“obrigada”.
Ela se levanta e pega sua bolsa. Saindo do apartamento
silenciosamente.
Olho para Thomas. Ele também está chorando. Eu passo a mão por
suas lágrimas. Ele a segura.
Por um momento ninguém fala nada, apenas ficamos ali, unidos em
algo que nunca imaginamos possível.
Éramos nos três juntos. E em breve seríamos quatro.
Ainda parecia surreal demais para acreditar.
Nina levanta a cabeça e me encara com seu sorriso doce.
— Vocês podiam ter me contado antes, né? – Reclama.
— Nós não sabíamos pitoco – Thomas diz e ela pula para seu colo.
— É, a Amber disse que só o papai sabia e que ele contou a vocês
quando fiquei doente.
— O que mais a Amber te contou? Você entendeu tudo? – Thomas
pergunta com cuidado.
— Ela me disse que vocês eram namorados e que se separaram. E que
aí quando eu nasci a Liz não podia ficar comigo, porque às vezes os pais que
são jovens e não são casados não podem cuidar dos filhos. – Eu sorri
tristemente sabendo como a Amber tinha simplificado a situação para fazer
Nina entender – e que aí o papai decidiu cuidar de mim com a Diana. Sem
contar a vocês. Eu fiquei um pouco confusa com esta parte. Amber disse que
era pra eu ser criada por outros pais, que vocês acharam que eu estava com
outros pais quando o tempo todo eu estava aqui. É meio esquisito né?
— Sim, para dizer o mínimo – Thomas resmunga.
— Agora está tudo bem, porque todos nós sabemos!
— E está tudo bem pra você? Que eu e a Liz sejamos seus pais? –
Thomas pergunta.
— Eu adorei! Nunca imaginei que podia ser vocês, é muito legal,
porque eu gosto da Liz e bom, você já era meu irmão. Agora é meu pai – ela
ri – é engraçado. Como vou te chamar? E o papai? Terei que chamá-lo de
vovô? – Ela parece preocupada.
— Isso não tem importância – Thomas diz – pode ser do jeito que
você quiser.
Ela me encara.
— Eu posso te chamar de mamãe, Liz? Eu não chamo a Diana de
mãe, então acho que não tem problema!
Eu sinto que vou chorar de novo, mas engulo o choro.
— Claro que sim, meu amor – ela me abraça feliz e ainda puxa
Thomas para perto.
— Isso é tão legal! Estou tão feliz!
Eu e Thomas rimos, compartilhando daquela felicidade.
Era incrível que Nina estivesse lidando tão bem com fatos tão
insólitos.
De repente ela para e olha de um pra outro.
— E agora que terão um bebê vocês ficarão com ele, não é? –
Pergunta apreensiva.
— Claro que sim, Nina – respondo.
— Vocês vão se casar? Por favor, vocês têm que casar e ficar juntos.
Assim eu posso ficar com vocês e o bebê também. Por favor! – Ela suplica e
eu e Thomas nos encaramos sem saber o que dizer.
E agora?
Capítulo Vinte e Nove
Thomas
***
***
Liz
***
Quando eu estava com Thomas, tudo parecia perfeito. Mas ainda
havia uma sombra enorme pairando sobre nossa felicidade. A doença de
Nina.
Agora eu a vejo dormir, acariciando seus cabelos, enquanto o dia
amanhece lá fora, fazendo uma prece silenciosa para que ela fique bem. Para
que aquele bebê que cresce dentro de mim, chegue a tempo para salvá-la.
Penso nas minhas dúvidas e incertezas nas últimas semanas. Primeiro
Nina descobrindo que era nossa filha e sua inusitada reação, que foi uma
grata surpresa. Eu ainda tinha medo que ela ficasse chateada ou não
entendesse, mas ela havia amado. O que encheu meu coração de amor e
esperança. Finalmente eu poderia ficar perto dela e me permitir amá-la como
ela merecia. Como eu merecia. Podíamos ser mãe e filha.
E então veio a certeza da minha gravidez. E em pouco tempo eu não
seria mãe apenas de Nina e sim de mais um bebê. Era assustador. E, ao
mesmo tempo, era incrível.
Quando eu engravidei de Nina, eu era apenas uma menina, não sabia
se queria ser mãe, se poderia ser mãe. E ainda estava sofrendo depois de uma
grande desilusão amorosa. Sozinha e com uma mãe controladora que assumiu
o controle da minha vida, com a minha permissão. Por causa do meu medo e
inexperiência.
Eu havia sufocado o amor pela minha filha perdida por oito anos,
tentando não pensar nela, não me perguntar onde ela estava e se era realmente
feliz.
E o tempo inteiro ela estava na casa dos Hardy. Sim, ela era feliz e era
amada. E por aquele que sequer desconfiava que na verdade era seu pai. Pelo
menos ela teve Thomas. Aprendera a amá-lo, mesmo que fosse como irmão.
Eu ansiava que ela me amasse também. Naquelas últimas semanas eu estive
ao seu lado, aprendendo sobre quem era aquele pequeno ser que saíra de
dentro de mim e que eu conhecia tão pouco.
Nós estávamos aprendendo a nos conhecer e a nos conectar como mãe
e filha.
Se por um lado, essa missão preenchia meus dias, eu havia deixado
meus sentimentos por Thomas de lado. Me afastei dele, com medo. Eu via
que isto o confundia e frustrava. Eu não sabia o que fazer. Tinha receio de
continuar dormindo com ele sem saber o que ia acontecer.
Éramos pais de Nina, iriamos ter outro bebê, porém continuávamos
no limbo quando se tratava dos ressentimentos do passado e dos desejos que
ainda sentíamos.
Ontem, tudo mudou. Eu ainda não conseguia acreditar que Thomas
tinha me pedido em casamento. Que tinha dito que me amava. Que se
comprometera comigo.
Era bom demais para ser verdade. Mas era.
E, para minha surpresa, ele havia me procurado há oito anos e eu
nunca soube. Tento conter a raiva que sinto de Barbara neste momento, por
ela ter estragado tudo.
Se eu tivesse visto Thomas, tudo poderia ter sido diferente.
Talvez tivéssemos ficado juntos e ele saberia sobre Nina.
E aqueles anos poderiam ter sido diferentes. Porém, como Thomas
disse, não poderíamos mudar o passado, mas poderíamos construir um futuro.
— Liz? – Nina acorda e crava em mim seus olhos sonolentos.
— Bom dia, querida – eu sorrio e ela se senta, passando os bracinhos
em volta do meu pescoço.
— Estou tão feliz que esteja aqui!
Eu a trago para meu colo, aconchegando-a a mim.
Era incrível que ela fosse essa criatura doce e amorosa. De quem
herdou aquele gene tão desapegado com tanta gente espinhosa do seu lado?
Ela era um anjo em nossas vidas. Alguém que veio nos ensinar sobre
amor incondicional e perdão.
Ela nos transformava em pessoas melhores.
— E vou ficar aqui pra sempre – digo e ela me encara.
— Sério? De verdade?
— Posso te contar um segredo? – Pergunto divertida e ela sacode a
cabeça positivamente. Eu mostro minha mão, onde o anel de Thomas brilha.
Ele o havia colocado ali depois que a gente fez amor. Pela terceira vez.
Nina arregala os olhos.
— É um anel de noivado?
— Sim docinho. Thomas me pediu em casamento.
— Oba! – Ela grita e me abraça – agora vocês serão meus pais de
verdade!
Eu a abraço de volta.
— Sim, meu amor. Seremos uma família de verdade.
— Ei, vocês estão aí – Thomas aparece na porta do quarto e Nina pula
do meu colo para o dele.
— Liz me contou que vão se casar!
Ele sorri para mim, por entre os cabelos de nossa filha.
— Sim, nós vamos! Está feliz?
— Muito!
— Agora se apronta que nós vamos te levar à escola.
— Posso voltar à escola?
— Por enquanto sim. Se sentir qualquer coisa, veremos outra maneira,
ok?
— Eu vou ficar bem! – Ela diz esperançosa me deixando com o
coração apertado. Quero tanto que ela tenha razão. Mas aquela doença
terrível ainda está ali, à espreita.
Nina se afasta para tomar banho e Amber aparece no quarto.
— Nina já foi pro banho? Vou ajudá-la a se arrumar para a escola e...
Thomas segura seu braço impedindo-a de seguir em frente.
— Não, a Liz vai ajudá-la.
— Oh... Claro. Eu vou descer e fazer café então.
Ela se afasta e eu percebo o que Thomas fez e lanço-lhe um olhar
agradecido.
Ele se aproxima e beija minha boca de leve.
— Tudo bem?
— Muito bem.
— Ainda pode andar?
Eu rolo os olhos.
— Cala a boca!
Ele ri e me beija de novo.
— Eu vou me arrumar, consegue ajudar Nina?
— Eu acho que consigo. Estou amando poder ser mãe dela
finalmente.
— Vamos ver se continuará pensando assim quando ela começar com
suas teimosias.
— Não fala assim, Nina é perfeita!
— Eu só estou avisando! – Ele ri e se afasta.
Nina volta do chuveiro, eu a ajudo a se enxugar, escolher uma roupa
para a escola e penteio seus cabelos.
Nós descemos e tomamos café com Amber e Thomas se provocando,
o que parece ser habitual por ali.
Nina ainda não tem muito apetite, o que é preocupante, embora todos
saibamos o motivo.
Eu e Thomas a levamos na escola e conversamos com a professora,
que já sabe de sua situação e promete ficar de olho e avisar imediatamente em
caso de necessidade.
Tento não ficar receosa quando deixamos a escola.
— Ela vai ficar bem? – Pergunto apreensiva a Thomas.
Ele segura minhas mãos.
— Temos que ter fé.
Quando chegamos ao hospital é esquisito ter Thomas segurando
minha mão.
— Acha apropriado? – Pergunto receosa, ele sorri.
— Foda-se o que os outros pensam.
Eu tento entrar na onda dele, embora ainda seja preocupante pra mim.
A verdade é que para as mulheres é sempre mais complicado este tipo de
situação. Sempre seremos as mais julgadas.
Eu solto sua mão quando entramos no vestiário. Os internos estão por
ali.
Eles param de falar quando entramos e sei que viram nossas mãos
dadas.
Nós nos trocamos e Thomas sai antes de mim, quando Erick o chama
para ver um paciente.
Jenny é a primeira a se aproximar com um sorriso maldoso.
— Então, é a namoradinha do doutor Hardy.
— Jenny, para – Julie pede e me encara com um sorriso amigável –
vocês parecem felizes. Formam um belo casal.
— Isto não vai criar problemas pra você? – Mark pergunta.
— Claro que vai! Deixe a direção do hospital descobrir. Se é que
ainda não sabe! A Doutora Paola estava revoltada ontem! – Jenny fala.
— Dizem que ela terminou com o doutor Jack e que foi por causa do
Thomas – Mark comenta estudando minha reação.
— Credo, isto é mentira – Julie refuta.
— Eu ouvi isto e muito mais! – Jenny continua – parece que eles
tinham um caso e que o doutor Hardy sofreu o ataque quando descobriu e...
— Por que não cala esta sua boca fofoqueira? – Eu finalmente rebato
– não deve falar sobre o que não sabe!
Ela dá de ombros.
— Só estou repetindo o que estão dizendo por aí.
— Se eu fosse você parava de fazer fofoca, pode se prejudicar. E
também ficaria longe da Paola!
— Hum, a doutora Paola tem influência aqui e...
— Duvido que continue tendo por muito tempo, ficou sabendo que o
doutor Hardy se afastou da direção? – Sam entra na conversa.
— Sério? E quem é o novo diretor? – Ben pergunta.
— Ninguém sabe. Dizem que é o doutor Thomas.
Será? Eu me pergunto. Thomas não havia dito nada sobre isto.
— Você sabe? – Julie pergunta e eu nego.
— Não. Com certeza em breve todos saberemos.
— Hum, por isto se pendurou no Thomas? Esperta hein? Conseguiu
ser a namorada do diretor... – Jenny alfineta.
— Cala essa boca, sua gralha ridícula! – Explodo – Estou de saco
cheio de sua falta de noção!
— Nossa, credo...
— Quer saber? Eu não sou a namorada do Doutor Hardy, sou sua
noiva – mostro o anel fazendo-a perder o ar. E todo mundo a nossa volta se
cala – Satisfeita? E quer ter mais um motivo pra fofocar, eu estou grávida!
Desta vez todos soltam uma exclamação abafada.
— Agora podem sair daqui para espalhar. Eu não me importo. Só me
deixem em paz!
Eu saio do vestiário e sinto que um peso foi tirado do meu peito. Era
bom falar a verdade, seja ela qual for. A vida era minha e se querem fofocar,
que fofoquem. Não me importo.
Eu só não contaria sobre Nina. Não ainda, embora um dia todos irão
saber. Ainda é cedo. E ela é só uma criança doente e precisa ser protegida de
certos dissabores.
***
***
***
Amber
Um ano depois
Fim
Segredos que Ferem
Juliana Dantas
Copyright © 2017 por Juliana Dantas
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capitulo 22
Capítulo 23
Epílogo
A água escura abraça meu corpo
Sussurra baixo no meu ouvido
Entorpece minha dor
Afundo lentamente
Enquanto abraço
O esquecimento
O vazio
O nada
Nada
Capítulo 1
***
***
No dia seguinte, depois que Jack sai, entro no carro e pego o caminho
da antiga propriedade dos Robinson. Não quero pensar muito no que estou
fazendo enquanto dirijo pelas estradas molhadas de Beaverton.
A casa continua linda, toda rodeada pelo jardim de esculturas verdes
de árvores. Respiro fundo e apanho a sacola. Toco a campainha e espero um
longo tempo. Até me dar conta de que não há ninguém ali. Dou a volta pela
casa. Espio lá dentro como um ladrão curioso. Não há menor sinal de vida.
Mesmo assim, largo a sacola na porta da frente da casa.
E, naquela noite, eu finalmente tenho coragem de perguntar a Jack.
– Conhece os Callaghan?
Tento parecer casual, enquanto jantamos. Jack para e me encara com
a testa franzida.
– O que tem os Callaghan?
– Nada... vi dois deles na loja dos Johnson outro dia... Ian e Rebecca...
– E por que o interesse?
– Oras não os conheço! Carla comentou que eles se mudaram para a
casa dos Robinson. Fiquei curiosa, só isto...
– O que mais Carla disse? Este povo da cidade fala demais...
– E o que há para dizer? Alguma fofoca?
– Claro que não, Julia! – Jack parece irritado.
Ele volta a comer e eu acho que deu o assunto por encerrado, então
ele volta a falar depois de um tempo.
– Alan Callaghan é um congressista aposentado. Você não é muito
ligada em política por isto nunca deve ter ouvido falar da família Callaghan.
Eles vêm de uma longa linhagem política. A esposa de Alan, Jill, é uma
mulher muito digna. Gosta de decoração e jardinagem. Eles têm três filhos,
os gêmeos Ian e Rebecca a mais jovem ainda é adolescente, Tess.
– E o tal... Ian? Ouvi dizer que ele fez faculdade em Corvallis, ele
mora na cidade agora?
– Não sei Julia, quanta pergunta!
Eu não falo mais nada. Para quem quer fingir que Ian Callaghan
nunca existiu estou muito curiosa sobre sua vida. Preciso começar a agir
como adulta e esquecer esta paixonite sem sentido.
Ian Callaghan não é pra mim. Ele deixou bem claro.
Carla aparece no dia seguinte.
– Oi, e aí, o que anda fazendo?
Dou de ombros.
– Nada... lendo... cuidando de Jack... Vendo Chris...
– Chris Wilson? Ainda são amigos... – Ela parece muito espantada.
– Por que não?
Ela fica vermelha.
– Nada, é que... passou tanto tempo fora...
– Eu também fiquei meio na dúvida se as coisas seriam as mesmas,
meus receios foram infundados. Ainda somos amigos.
– Ele gostava de você né?
Eu suspiro. Sim, eu havia confessado muitas coisas a Carla, me
recordo agora.
– Foi há tanto tempo...
– Bom, eu só fico preocupada...
– Esquece Carla.
– Tudo bem, na verdade eu vim te fazer uma proposta.
– Proposta?
– Sim. Então, você sabe que estou dando aulas no Beaverton High
School.
Carla havia se formado em Biologia. Era engraçado pensar nela dando
aula no mesmo colégio em que estudamos.
– Sei, me contou ontem.
– Eles estão precisando de um professor substituto de literatura. Eu
indiquei você.
– Eu? Nunca dei aula, Carla!
– Eles sabem que acabou de se formar... como está sem fazer nada...
Mordo os lábios, pensativa.
– Eu não sei...
– Vai ser legal! Vamos trabalhar juntas!
– Não sei se quero ficar...
– É temporário. E se decidir ficar... quem sabe? Pode conseguir a
vaga efetiva. Marquei com o diretor amanhã, ok? Vá, converse com ele, por
favor.
– Tudo bem. Eu vou.
Carla bate palmas, animada.
– Vou adorar você lá!
Eu começo a me empolgar também.
No dia seguinte estou contratada. E estou realmente entusiasmada
com a perspectiva, apesar de ser temporária. Chris me espera em casa e eu
conto a ele meus planos.
– Então vai ficar?
– Não foi o que disse. É temporário...
– Bom, pode acabar gostando.
Eu dou de ombros.
– Vamos entrar?
– Pensei em darmos uma volta.
– Claro.
Entro no carro dele e, enquanto ele dirige, eu me lembro de quando
andávamos de moto.
Chris ri quando eu conto.
– Achei que seu pai fosse me matar quando descobriu.
– Ele estava mais propenso a me matar. Nunca fiquei tanto tempo de
castigo.
– Ficou sim...
– Fiquei não... ou não me lembro... – franzo a testa forçando meus
pensamentos.
– Esquece, acho que foi seu maior castigo mesmo!
– Culpa sua! Me levava para o mau caminho.
– Nunca te levei pro mau caminho naquela época... – suas palavras
são carregadas de certa malícia e eu desvio o olhar.
Me recordo dos temores de Carla.
– Uau. – Exclamo de repente, olhando para o penhasco que beira o
rio. A vista da cachoeira é espetacular – Nunca me canso de olhar, é tão
lindo.
– Sim...
– Lembra quando eu queria pular? Você nunca deixou.
– Você sempre buscou o perigo... depois fica dizendo que era eu que
te levava pro mau caminho!
– Você sempre me protegeu na verdade... – murmuro.
Ficamos em silêncio e eu penso naqueles dias.
Eles não voltarão mais. É um pouco triste.
Éramos inocentes. Uma inocência que não existe mais.
De repente fico atenta ao reconhecer o lugar por onde estamos
passando. É a estrada que leva à casa dos Callaghan.
Fico tensa. Quando passamos em frente à propriedade, eu não consigo
deixar de comentar.
– A casa parece vazia...
– Eles foram embora. - Chris diz friamente.
Há satisfação em sua voz.
– Pra sempre? – Murmuro.
– Não faço ideia. Já foram tarde...
A casa fica para trás. E eu sinto um pesar profundo.
***
Os dias passam arrastados.
De manhã eu dou aula. Passo as tardes com Chris e as noites com
Jack. O namorado de Carla aparece e, como combinado, vamos ao cinema.
Convido Chris, ele e Austin passam a noite inteira trocando farpas. Seria
engraçado, se eu não estivesse começando a me preocupar com Chris.
As coisas são diferentes agora e eu não tenho mais como negar. O
jeito que ele me olha como se ansiasse por algo... como se esperasse algo me
assusta. Não deveria. É Chris, meu melhor amigo desde sempre.
E está apaixonado por mim.
O que devo fazer?
Me afastar de vez é impossível. Me aproximar não parece certo.
– Quero te levar pra jantar amanhã.
Eu e Chris estamos na varanda da minha casa. Jantamos com Jack que
agora assiste a um programa de pesca na TV.
Eu mordo os lábios, indecisa.
– Não gosta da minha comida? – Tento levar na brincadeira, Chris
não ri.
– Estou te chamando para um encontro.
Lá está. O que eu esperava. O que eu temia.
– Não sei o que dizer. – Confesso.
– Diz sim.
– Chris...
– Não quero te pressionar. – Sua mão segura a minha. - Eu não vou te
pressionar. – Garante com firmeza e eu acredito.
E por que não? Me recordo de Carla e Brad. Da inveja que sinto.
Daquele anseio profundo de querer o mesmo pra mim. De sentir falta de algo
que nem sei o que é.
– Tudo bem. – Aceito e ele sorri.
– Boa noite, Jules – Ele se despede e vai embora.
Ele parece feliz. Eu fico feliz por ele.
Não por mim.
O que me faz sentir culpa. Porque, quando fecho os olhos na minha
cama, não é em Chris que eu penso. E sim num cara de olhos verdes e
cabelos bagunçados pelo vento.
Um cara que nem existe mais pra mim.
Quando acordo no dia seguinte e abro a janela, ainda sonolenta e
vestindo pijamas, levo um susto ao ver uma picape preta parada na minha
porta.
E em frente a ela, Ian Callaghan me encara, alheio à chuva fina e fria.
Capítulo 3
***
Primeiro eu acho que não escutei direito. Depois que devo ter
adormecido e estou sonhando.
Mas é real.
E eu tenho medo de pedir que ele repita para que eu tenha certeza de
que não estou alucinando. Pois meu coração já bate descompassado de uma
felicidade sem fim.
– Sim.
Ian sorri. E é o sorriso mais lindo do mundo.
Eu começo a rir feito boba.
– Não estou sonhando, não é?
– Se está, eu também estou.
Nós rimos juntos. E ele me beija.
E tudo recomeça.
***
– Julia, amor?
Desperto com a voz de Ian.
Sonolento e preocupado, ele se inclina sobre mim, beijando meu
ombro.
Estremeço. Meu rosto está molhado, assim como meu travesseiro.
– Estava tendo um pesadelo?
Respiro fundo. Dor.
Que eu não sei de onde vem.
– Não consigo me lembrar...
Ele retira os fios de cabelos do meu rosto e enxuga minhas lágrimas.
Está amanhecendo lá fora.
– Então durma. Foi só um sonho ruim.
Eu me viro de novo e fecho os olhos. Ian se encaixa atrás de mim.
– Eu não consigo me lembrar destes sonhos... – murmuro, antes de
cair no sono de novo.
Quando acordo novamente, está tudo claro.
Estou sozinha na cama e me espreguiço devagar.
Estou feliz. Como nunca estive antes.
Me levanto e vou ao banheiro. Olho minha imagem no espelho.
Meus cabelos estão desgrenhados e passo os dedos entre os fios para
tentar domá-los. Visto uma camisa de Ian ao passar de novo no quarto e vou
procurá-lo.
O encontro sentado sobre o sofá da sala, falando ao telefone.
– Tess, não insista ok? – Ele diz, então me vê e sorri. – Tenho que
desligar, tchau.
Ele desliga e me aproximo, deslizando para seu colo, encaixando meu
rosto em seu pescoço adorando sentir seus braços a minha volta.
– Bom dia.
– Minha camisa fica bem em você.
Eu o encaro.
– Não tenho roupas.
– Isto não é problema – ele sorri de lado, fazendo um arrepio subir por
minha espinha.
Agora eu tenho tempo de olhar a sala a meu redor e a vista me tira o
fôlego.
– Uau.
– Você gosta?
– É lindo...
Olho em volta, curiosa. É tudo muito chique e elegante, embora goste
mais da casa dos Callaghan em Beaverton. Aqui parece... sem vida. Como se
quem morasse ali, não usufruísse muito.
– Mora sozinho?
– Sim, foi minha irmã Rebecca quem decorou. Na verdade é ela que
rega as plantas.
Eu rio, imaginando a irmã elegante de Ian por ali.
Meu estômago ronca e Ian me tira do seu colo.
– Vamos comer.
O acompanho até a cozinha e ele me manda sentar enquanto prepara o
café da manhã. Sinto cheiro de ovos.
– Uau. Eu costumo comer só um cereal mixuruca de manhã.
– Agora está comigo e eu vou alimentá-la direito – diz, enquanto
enche meu prato com ovos e bacon.
– Talvez eu fique gorda depois de alguns anos de casamento e você
me abandone.
Ele se inclina para perto de mim.
– Vai mesmo se casar comigo?
– Hoje mesmo se for possível – e o beijo rapidamente.
Ele ri e se afasta.
– Estou falando sério. – Falo com a boca cheia de comida.
Ian ri. Acho delicioso o jeito que ele ri. É um som rico que enche meu
estômago de borboletas.
De repente o barulho de um celular tocando me assusta.
Lanço o olhar sobre a mesa onde o celular de Ian vibra.
Ele se vira tenso e pega o aparelho. Está muito sério enquanto escuta
a pessoa do outro lado da linha.
Procuro seu olhar. Ele sorri. Não há nenhum humor. Então se afasta.
Me levanto e lavo o prato na pia, me perguntando com quem Ian
estaria falando.
Quando termino de lavar tudo, ainda não retornou.
Eu vou pra sala e ele está na varanda do apartamento, de costas pra
mim. Não consigo escutar o que está dizendo, só noto a tensão em seus
ombros. Mordo os lábios com força. A curiosidade me invade. Quando ele
finalmente desliga e volta para a sala, age como se o telefonema estranho não
tivesse acontecido.
– Quem era? – Pergunto sem esconder minha curiosidade mesclada
com apreensão.
Ele hesita.
Me questiono se estou entrando em terreno proibido.
– Era seu pai.
Oh. Eu não esperava de maneira alguma por aquela resposta.
Talvez que fosse alguém de sua família. Ou quem sabe uma ex-
namorada enfurecida. Esta opção não me agradava nem um pouco, seria
ingenuidade demais querer que Ian não tivesse destruído alguns corações
antes de me conhecer.
Mas meu pai?
– Como é que ele tem seu telefone?
Ele dá de ombros.
Bufo, sem saber se estou irritada ou não.
Eu havia saído de casa brava com meu pai ontem. E, depois de tudo o
que aconteceu com Ian, me deixando numa nuvem cor de rosa de felicidade,
eu mal pensei no mundo que existia lá fora. Infelizmente o mundo existia. E
nele eu tinha um pai que deveria estar furioso.
– Por que não me deixou falar com ele? Ele está muito bravo? Por
favor, diga que ele não conseguiu também o seu endereço e está vindo pra
cá...
– Não, ele não está vindo pra cá.
– O que ele falou? - Começo agora a pensar na fúria de Jack e em
como pode ser ruim pra mim e até pra Ian.
– Ele estava mais preocupado do que bravo, Julia.
– E ele queria falar comigo? Por que não me deixou falar com ele?
– Porque eu consegui acalmá-lo.
Eu o encaro cética.
– Está mentindo.
– Eu disse que estaria te levando de volta pra casa ainda hoje.
– Eu não quero voltar pra casa.
– Julia...
– Não ainda – murmuro, de repente, sentindo certo pavor de me
separar de Ian.
Ele se aproxima e eu me encosto nele.
Chega a ser assustador o jeito que eu preciso de sua proximidade.
Seus lábios em meus cabelos. Minhas mãos amassando sua camisa.
Aspiro.
– Julia, eu não quero te levar embora.
– Então não leva – digo, esfregando meu rosto em seu peito.
– Não quero criar mais problemas com seu pai.
Eu fico na ponta dos pés. Respiro em sua boca.
Ian fecha os olhos.
– Você não sente que isto é certo? - Passo meus braços por sua nuca o
puxando pra mim.
As mãos dele afundam em meus cabelos.
E ele me beija. Nossas línguas acariciando-se, sentindo o sabor uma
da outra.
Quero me perder nele novamente. Quero esquecer a existência do
mundo lá fora.
Não sei bem se chego a pedir em voz alta. Só exulto intimamente
quando meus pés saem do chão. Até sentir que estou deitada com Ian sobre
mim.
Em beijos sem fim.
Me fazendo lembrar dele dentro de mim.
– Faz amor comigo, Ian – peço entre beijos molhados que enchem
minha boca.
Minhas mãos se tornam impacientes ao retirar suas roupas.
De repente tudo é só sensação.
E gemidos. E atrito.
E Ian dentro de mim. Rápido. Fundo. Com força.
Os olhos fixos em mim, enquanto me preenche de uma maneira quase
espiritual.
Minha alma está sendo possuída.
O orgasmo vem rápido e efêmero. Estremeço. Derreto.
Ian enterra o rosto em meus cabelos e geme alto. Envolvo seu corpo
trêmulo em meus braços. Não quero mais soltar.
***
Estou olhando a chuva fina cair através da janela. Minha cabeça
repousada no travesseiro. Sinto a respiração de Ian em minha nuca, seus
dedos brincando na minha barriga.
– Você sempre tem aqueles pesadelos?
A pergunta surge de repente, sem aviso.
Me assusta um pouco.
Mordo os lábios com força e penso em contar a ele.
– Às vezes – respondo casualmente.
De repente uma desconfiança terrível me domina.
E se Ian souber? E se meu pai contou a ele? E se é por isto que ele
ficava sempre tentando se afastar de mim?
O encaro com desconfiança.
Eu posso perguntar. Por outro lado, se perguntar e ele não souber, eu
terei que contar.
E eu não quero que ele saiba.
– Não quero voltar pra Beaverton – murmuro.
Ele fica tenso.
– Eu tenho medo que tudo mude – continuo. – Que me convençam
que não devo ficar com você. – Confesso.
Ian fica em silêncio.
Quase nem o escuto respirar.
– Eu te amo, Ian. Quero ficar com você pra sempre.
Mais silêncio.
Ouço apenas o som da chuva lá fora.
Então ele me faz virar.
Seu olhar é intenso. Determinado.
Quase voraz.
– Casa comigo?
Eu sorrio docemente.
– Eu já disse que sim.
– Agora.
– Agora? – Eu rio.
Embora saiba que ele não está brincando.
Minha vez de não respirar.
– No Estado do Oregon o prazo da licença de casamento é de três
dias...
As ideias se amontoam em minha mente.
Casar com Ian. Não uma ideia abstrata, algo para um futuro incerto.
Agora.
Sou tomada por uma enxurrada de sentimentos.
Exulto. Hesito.
E meu pai? E a família dele?
– Eu te amo, Julia.
Aí está.
O que estou esperando.
Ian me ama.
Não sei por que, mas me ama.
De repente nada mais tem importância. Fomos feitos um para o outro.
É tão simples que não há mais um pingo de hesitação em mim.
– Três dias me parece perfeito.
Ele sorri.
Lindo.
Deslumbrante.
Meu.
E eu estou mais feliz do que um dia estive na vida. Ou que me lembre.
***
Três dias passam como um sonho bom.
Quero me prender em todos os detalhes. Não quero me esquecer de
nada. Estou quase intoxicada numa nuvem de felicidade constante.
Depois de me beijar um milhão de vezes naquela tarde, Ian me levou
para fazer compras. Obviamente eu torci o nariz, Ian foi prático dizendo que,
a não ser que eu preferisse voltar a Beaverton para pegar minhas coisas, eu
precisaria de roupas.
Eu tive que concordar. E Ian ainda disse que eu tinha sorte de sua
irmã gêmea não estar junto, aí sim seria um pesadelo.
Eu havia ficado meio apreensiva quando ele falou da família. Afinal,
o que os Callaghan pensariam deste casamento relâmpago? Nem mesmo isto
foi capaz de me tirar da bolha em que eu estava vivendo.
Comprei tudo o que Ian queria obedientemente. E como eu tinha sido
uma “boa menina”, ele me levou a uma livraria enorme em Portland e aí sim,
eu senti prazer em comprar.
Ele andava atrás de mim, sorrindo docemente, como se acompanhasse
uma criança numa loja de doces. Me roubando beijos entre as estantes. Me
enchendo com um pouco mais de felicidade.
Depois jantamos num restaurante que ele dizia ser seu preferido e eu
havia adorado. Queria que ele compartilhasse comigo tudo o que gostava.
Havia tanto a saber. Tanto que eu queria descobrir. Haveria tempo.
Haveria a eternidade.
Quando voltamos pra casa, eu praticamente dormia em pé. Ian me pôs
na cama como uma boneca de pano e eu adormeci um sono sem sonhos quase
imediatamente.
Foi só quando acordei muito tarde no dia seguinte, que me lembrei
que Ian tinha prometido a meu pai me levar embora.
Ian sorriu enquanto preparava meu café da manhã e disse pra eu não
me preocupar, pois já avisara Jack.
– Você disse a ele sobre... o casamento? – Indaguei apreensiva.
Ele ficou tenso.
– Não, não disse.
Respirei aliviada.
Era melhor Jack não saber ainda.
Passamos a tarde namorando no sofá enquanto fingíamos ver alguns
filmes dos quais nunca me lembraria.
E à noite eu insisti em cozinhar com Ian fazendo piada sobre minhas
habilidades culinárias e eu fiquei feliz em mostrar a ele que eu sabia cozinhar,
sim senhor.
– Está se casando com uma moça prendada – disse em seu ouvido,
depois de pular pro seu colo ao fim da refeição.
Ele riu e me beijou. E me levou pra cama.
Demorou muito até que finalmente dormíssemos. E eu queria me
lembrar quantas vezes eu havia me desmanchado de prazer naquela noite. As
sensações ficaram impregnadas em mim, assim como seu cheiro. Seu gosto.
A marca dos seus beijos em minha pele.
Me recordava claramente de seus lábios em minha nuca e seus braços
me envolvendo quando finalmente o sono nos dominou.
E, sobretudo, sua voz sonolenta em meu ouvido.
– Eu te amo.
E então o terceiro dia amanheceu.
Ian me acordou com um beijo na testa. O corpo morno colado ao meu
sob o cobertor. Abro os olhos para seu sorriso sonolento e perfeito.
Pensar que acordarei assim todos os dias me deixa feliz.
– Tenho um presente pra você.
Faço uma careta e ele ri, saindo da cama.
– Tome um banho e vista-se. Vou preparar seu café.
Eu faço o que ele pediu, um pouco curiosa, confesso. Quando entro na
cozinha, meu estômago ronca. Me aproximo de Ian e beijo suas costas nuas.
– Cadê a surpresa?
– Sente-se e coma primeiro.
– Precisa parar com toda esta comida gordurosa se não quiser uma
esposa gorda e com colesterol alto.
Ele ri, enquanto me serve.
– Eu amarei você mesmo assim. Na saúde e na doença, lembra?
Rolo os olhos, começando a comer.
Ele beija meus cabelos.
– Vou tomar um banho, ok?
Enquanto como, vejo o celular de Ian sobre a mesa. Penso se meu pai
ligou mais alguma vez. Acho estranho que ele tenha simplesmente
concordado em me deixar com Ian. Ou será que Jack finalmente entendeu
que eu cresci e sou dona das minhas próprias decisões?
Acabo de comer ainda pensativa e, enquanto lavo a louça, penso em
ligar pra Carla para contar que hoje eu vou me casar. Há uma parte de mim
que acha importante compartilhar com ela. Chego a segurar o telefone em
minhas mãos, indecisa. O barulho de Ian retornando, me faz recuar.
– Vamos?
– Aonde? – pergunto desconfiada.
– Surpresa – ele me puxa pela mão porta afora.
Em vez de irmos para a garagem, ele me leva para a rua. Há um carro
parado e um motorista abre a porta traseira para mim. Eu sento enquanto Ian
fica segurando a porta.
– Te vejo no juiz.
– Como assim?
– Dizem que dá azar o noivo ver a noiva antes do casamento.
– Ian... aonde este cara vai me levar?
– Primeiro pra comprar um vestido, depois pra você se arrumar.
– Não sei se... – eu nem tinha pensado nestes detalhes práticos.
Ele ri e fecha a porta.
– Não se preocupe nos veremos no fim do dia.
– Preferia passar o dia com você.
– Passaremos todos os dias juntos de hoje em diante.
– Promete?
– Prometo.
Ele se inclina e me beija rapidamente. Então o carro segue.
O dia sem Ian é meio confuso depois de ter passado as últimas horas
grudada nele.
É estranho.
Tento me divertir, enquanto estou numa loja de noivas e me obrigam
a experimentar vários vestidos.
Nunca pensei no dia do meu casamento ou em que tipo de vestido
usaria. Então é esquisito ver toda aquela profusão de tules e cetim branco.
Por fim, escolho o mais simples.
As noivas se vestem para serem vistas e admiradas. Como somente eu
e Ian estaremos em nosso casamento, não faz diferença mesmo.
Depois o motorista, um senhor de meia-idade bem simpático, me leva
a um cabeleireiro e eu tenho vontade de sair correndo ao ver todas aquelas
mãos femininas, atenciosas e solícitas.
Quando digo que é meu casamento, o negócio fica realmente sério.
Tenho que lutar bravamente para não sair de lá parecendo um merengue.
Por fim, tudo termina.
Eu estou pronta.
É estranho quando o motorista me deixa em frente a um prédio
enorme e eu respiro fundo, subitamente insegura. Até que a porta se abre e
Ian está lá, me puxando para fora.
Ele sorri. E tudo volta a ser perfeito.
– Você está linda.
Dou de ombros, sem graça.
Meus cabelos estão presos num coque intricado. E uso mais
maquiagem que jamais usei na vida. E o ridículo véu que me obrigaram a
comprar está em minhas mãos.
– Parece exagero.
– Você é linda de qualquer jeito.
Rolo os olhos.
– E então?
Ele segura minha mão.
– Vamos casar.
Percorremos um saguão elegante e ninguém parece reparar em nós,
enquanto subimos um lance de escadas. E me dou conta de que desde que dei
meus documentos a Ian, não fiz nenhuma pergunta em como ou quem iria
nos casar.
– O que acontece agora? – pergunto.
– O juiz é um velho conhecido. Concordou em nos casar
discretamente. – ele pisca, ao abrir uma porta.
Estamos no que parece ser um grande escritório. Um homem de meia
idade nos cumprimenta e eu não me lembro direito dos detalhes depois disto.
Como num sonho onírico, apenas vejo Ian dizendo todos aqueles
votos antigos e profundos. E digo o mesmo.
Parece muito rápido até que ele está escorregando uma aliança de
ouro em meu dedo. Tenho uma aliança para colocar no dedo dele também.
E sou grata por Ian ter pensado em todos os detalhes. Por ter feito
tudo perfeito.
E então ele está me beijando.
E o juiz sorri muito prático. Assinamos alguns papéis.
Eu não consigo parar de sorrir quando Ian segura minha mão e me
puxa para fora da sala.
– Vamos para casa, senhora Callaghan.
Está escurecendo enquanto dirige para casa. E eu estou feliz.
Agora é definitivo.
Eu não sou mais Julia Simmons.
Sou Julia Callaghan.
E este cara lindo e perfeito do meu lado é meu marido.
É estranho. É assustador.
É maravilhoso.
De vez em quando ele desvia os olhos do trânsito e sorri pra mim. E
eu mordo os lábios. Plena de expectativa e felicidade. Eu estou começando o
meu pra sempre.
– Cansada? – Ian pergunta ao entrarmos no elevador.
Eu sacudo a cabeça negativamente.
– Não.
Ele sorri, e quando o elevador chega ao andar, solto um gritinho de
susto quando ele me ergue no colo.
– É a tradição, senhora Callaghan.
Eu beijo seu rosto e rimos feito crianças quando Ian se atrapalha para
abrir a porta comigo no colo. Ambos paramos de rir instantaneamente ao
entrarmos no apartamento.
Há alguém ali.
Avisto uma silhueta feminina contra a parede de vidro.
Eu penso que estou sonhando. Um pesadelo estranho.
Uma mulher está parada de costas. Ela usa uma camisola preta, que
mais parece uma lingerie e tem uma taça de champanhe na mão.
– Ian, querido... – ela se vira.
Então seus olhos se arregalam quando nos vê.
Eu não sei quem está mais estupefata.
Se eu, ela.
Ou Ian.
Por um momento suspenso no tempo, ninguém fala nada. Ninguém
respira.
Então Ian me coloca no chão.
– O que diabo está fazendo aqui, Susan?
Capítulo 8
Não sei quantos minutos se passam até que Ian e a tal Susan
aparecem. Ela está vestida e segura uma bolsa. Eu analiso sua aparência pela
primeira vez, avaliando-a. É uma moça bonita, com cabelos pretos levemente
ondulados na altura dos ombros. Seus lábios com batom vermelho se
destacam no rosto pálido de beleza clássica.
Ainda estou analisando-a sem a menor cerimônia, quando ela passa
por mim sem falar nada e sai da sala, Ian fecha a porta atrás dela e me encara.
– Julia, sinto muito, eu...
– Sente muito? – Minha voz está calma, embora por dentro eu esteja
gritando.
– Deus do céu... – Ian se aproxima, seu olhar é suplicante.
Eu não sinto nada.
– Ela é sua amante.
Não é uma pergunta.
– Ela foi.
Fecho os olhos. Eu não sei o que esperava.
Talvez uma negativa enfática. A confirmação me rasga por dentro.
Imaginá-lo com outra mulher me enche de dor.
Abro os olhos e encaro Ian. O cara que eu conheço há tão pouco
tempo. A quem confiei minha vida inteira. De repente eu sinto que não o
conheço.
Sou tomada por uma raiva cega. Não só de Ian, também de mim
mesma.
– Foi é? E o que ela fazia aqui sem roupa?
– Eu não sei.
– Ah, Ian, pode até parecer, mas eu não sou idiota! Por que não me
contou? Quanto tempo achou que podia me enganar? Era disso que todo
mundo falava? Você tinha essa tal Susan na sua vida, ela é sua namorada ou
o quê?
– Não era uma namorada. É uma amiga.
– Amiga? Todas suas amigas o esperam em casa seminuas?
– Nós dormíamos juntos, Julia. E não acontece mais.
– Desde quando?
– Desde que te encontrei.
– E ela sabe? Não me pareceu que soubesse!
– Nós terminamos. Eu fui sincero quando disse que não tinha
ninguém.
– Então o que ela estava fazendo aqui?
– Por algum motivo ela cismou que eu não estava falando sério.
– Podia ter me contado. Devia ter me contado!
– Era passado.
– Não era. Se no dia em que nos casamos ela surge quase nua em sua
sala – minha voz se alquebra.
Eu me levanto e ando tropegamente.
– Julia... – Ian tenta segurar meu braço, eu o afasto com um safanão.
– Não ponha a mão em mim!
Saio da sala e me tranco no banheiro. Inclino-me sobre o vaso e
vomito até a alma.
Sei que Ian está do outro lado da porta, finjo que não está.
Me olho no espelho. A maquiagem derreteu. Estou horrível.
Mas minha aparência tem conserto. Enquanto eu, por dentro, estou
quebrada.
Não sei quanto tempo permaneço ali sem coragem para sair.
Eu não sei o que fazer.
Ian está me esperando. Seu olhar é triste. Sua tristeza não me atinge.
Sento na cama e meus olhos recaem sobre a camisola preta esquecida.
A camisola de Susan.
– Quero ficar sozinha – digo.
– Julia, por favor, eu estou falando a verdade. Eu sinto muito... Não
era para Susan estar aqui... Ela achou que... Ela não sabia sobre você. De
alguma maneira pensou que podia me convencer a voltarmos...
– Eu não quero saber...
– Mas eu preciso falar! Eu tinha preparado tudo. Aquele champanhe,
até esta maldita camisola que ela usava, nada era pra ela, eu tinha deixado
tudo pronto pra você para quando voltássemos. Chegar e ver Susan
estragando tudo...
– Eu disse... – respiro fundo. – Que não quero saber.
– Você não pode estar acreditando que eu ia te enganar desse jeito...
– Eu não sei. Eu não te conheço, Ian – o encaro cheia de angústia. –
Eu não sei do que você é capaz. Eu começo a achar que foi um grande erro
me casar com você.
Estas palavras me ferem.
De alguma maneira eu sei que o machucam também. Eu
simplesmente não posso lidar com nada agora.
– Por favor, me deixa sozinha.
Ian parece querer insistir, por fim, ele sai do quarto, fechando a porta
atrás de si. Eu retiro o vestido. Desfaço o penteado bonito. Lavo meu rosto
para tirar qualquer resquício de maquiagem.
Ainda continuo pálida. Meus olhos estão sem vida.
Pego o telefone e disco os números.
– Alô? - A voz conhecida e sonolenta atende.
– Pai?
– Julia...?
– Vem me buscar?
– Filha, o que aconteceu? Você está bem?
– Estou... – vai dar trabalho demais explicar.
– Cadê o Ian? O que foi que aconteceu...
– Pai, por favor, apenas diga se pode vir me buscar...
– Tudo bem. Estou indo.
Não levo nada quando saio do apartamento de Ian duas horas depois.
Também não o vejo em parte alguma. Deixo apenas um bilhete no quarto.
O carro de Jack para no meio fio e eu entro, antes que ele tenha a
infeliz ideia de descer e tirar alguma satisfação com Ian. Não quero que eles
entrem em conflito.
Já basta o nosso conflito.
– O que diabo está acontecendo?
– Podemos ir embora e conversar depois?
– Julia...
– Por favor, pai...
Jack dá partida.
– Você sabia, não é? – Pergunto depois de um tempo.
– Julia, meu bem... Deus do céu... você descobriu...
– Que o Ian tinha uma namorada? Claro que sim! Meio difícil ignorar
quando ela está parada na sala vestindo lingerie no dia do meu casamento!
O carro para com um solavanco e eu vou pra frente.
– Pai, quer nos matar?
– Que história é essa de casamento?
Mordo os lábios com força e meu olhar vai pra aliança em meu dedo.
– Eu e Ian nos casamos – sussurro cheia de culpa.
Agora eu percebo o quão imprudente eu fui. O quanto fui tola
confiando cegamente em um cara que eu mal conheço. Indo contra os avisos
do meu pai.
Tenho vontade de bater a cabeça contra o asfalto.
– Se casaram, é?
– Sinto muito pai... eu sei que fui... imprudente. Eu não deveria ter
feito isto... eu não fazia ideia que o Ian tinha esta mulher chamada Susan na
vida dele, ele diz que terminaram...
– Espera... foi por isto que pediu para eu vir te buscar? É este o
problema?
– Acha pouco? Você não parece surpreso, não é? Com certeza já
sabia... como pude ser tão idiota! Por que não me contou que era por isto que
não queria que eu ficasse com o Ian, não acha que devia ter me avisado?
Jack suspira, como se estivesse pensando no que dizer.
– Você estava cega. Duvido que iria me ouvir.
O pior é que eu desconfio que Jack tem razão.
– Me conta o que aconteceu.
Eu conto a Jack. Revivendo aquele momento de horror ao entrar no
apartamento de Ian e sendo surpreendida por Susan seminua.
– Aquele... – Jack solta vários palavrões assustadores. - Eu devia
voltar lá e quebrá-lo em dois!
– Não vai fazer nada disso.
– Julia...
– Por favor, pai, vamos embora? Eu só quero voltar pra casa.
Ele finalmente concorda.
Chegamos em casa quando está amanhecendo. Me arrasto até a cama
e caio num sono profundo.
Acordo suando e gritando. Não me lembro com o que sonhei.
Não está chovendo, só frio e nublado.
– Bom dia – digo em tom neutro ao chegar na cozinha.
Jack me encara preocupado.
– Você está bem?
Colo um sorriso amarelo no rosto ao fitá-lo por cima do meu cereal
que não tem gosto de nada naquela manhã.
Tento não pensar em ovos mexidos e beijos roubados.
– Vai trabalhar pai, vou ficar bem.
Ele não parece convencido.
Fica me olhando enquanto como. Como se quisesse me dizer alguma
coisa.
Até que solta um suspiro profundo.
– Eu preciso ir trabalhar. Liguei para Carla vir ficar com você.
Reviro os olhos, meio irritada.
Não sei se quero companhia. Não sei se quero alguém me encarando
com pena ou reprovação por ter sido uma idiota.
– E não adianta reclamar. – Jack resmunga e sai porta afora.
Jogo o cereal quase intocado no lixo e volto pra cama. Penso em ligar
para Carla e pedir para ela não vir, acabo desistindo.
Talvez Jack tenha razão. Ficar sozinha é perigoso, a vontade que eu
tenho é de me esconder na cama o dia inteiro.
Ou dias inteiros.
Ou até passar aquela dor.
Escuto um carro parando no meu jardim e me obrigo a levantar.
Caminho até a porta e a abro. Não é Carla que está ali.
É Ian.
Respiro fundo. Desvio o olhar.
Não quero olhar pra ele.
– Ainda não quero falar com você.
– Eu sei.
– Então o que veio fazer aqui?
– Te pedir desculpas. E dizer que vou aceitar qualquer decisão que
tomar.
– Decisão? Sobre o casamento?
– Sobre nós.
Sinto o nó na minha garganta se apertar.
Quero chorar. Quero agredi-lo a socos e pontapés.
– Eu ainda não sei... – limpo minha garganta para que minha voz não
saia chorosa – o que vai acontecer. Então só... me deixe sozinha por
enquanto.
– Tudo bem.
Ele se afasta em direção ao carro.
Fecho a porta e consigo chegar até o sofá, onde me sento encolhida. E
finalmente eu choro.
Carla me encontra assim algum tempo depois.
E eu sou grata por ela simplesmente me estender um lenço e me
deixar chorar, até que finalmente as lágrimas cessam.
Conto tudo a ela.
– Acha que eu sou uma idiota, não é?
– Você estava apaixonada.
– Uma idiota.
– Talvez devesse ter esperado mais, antes de... se casar e tal.
– É que tudo parecia tão perfeito, tão certo... predestinado, entende?
Como se estar com Ian fosse a coisa mais natural do mundo. Então... eu vejo
aquela garota...
– Ele não disse que ela era uma ex?
– Acha que devo acreditar?
– Esta Susan... e se ela for meio obcecada por Ian? E se ela não se
conforma que ele tenha dado o fora nela?
– Bom, nem posso culpá-la – resmungo.
Como é que se esquece um cara como Ian?
– O que eu faço?
– Bom, você pode pedir o divórcio. Seguir com sua vida.
Sinto um aperto no peito somente de pensar nesta possibilidade.
Seguir em frente. Sem Ian. Como se ele não tivesse existido em
minha vida.
– Ou continua com o Ian e esquece a tal Susan. – Carla completa.
Será que eu conseguiria? Simplesmente voltar pra Ian e esquecer o
episódio horrível de encontrar sua ex-amante quase nua na noite que deveria
ser minha noite de núpcias?
– Julia, posso te dar um conselho?
Olho para Carla.
– Ian não é o cara perfeito que idealizou. Ninguém é. Nenhum
homem. Mas eu acho que ele gosta mesmo de você. De verdade. Então, se for
ficar com ele, aceite as coisas como são. Ele teve esta garota na vida dele e
está dizendo que a deixou, que quer ficar com você. Às vezes a gente tem que
dar um voto de confiança pra voltar a ser feliz.
Eu fico pensando em suas palavras muito tempo depois que ela se foi.
Jack aparece com pizzas à noite. Me estuda preocupado. Pergunta se
estou bem.
– Ainda não sei – digo depois de comer e lhe dou boa noite, indo pra
cama.
Nesta noite eu não tenho pesadelos.
Eu sonho com Ian. Sonho que continua como antes. Que estamos
juntos. E acordo me sentindo triste, porque não sei se ainda será possível.
Jack já saiu pra trabalhar. Ligo para Carla para falar sobre as aulas,
me dando conta de que simplesmente deveria ter voltado ao trabalho.
Carla me tranquiliza, dizendo que deu uma desculpa por mim e que eu
posso ficar mais uns dias em casa. Eu acho que devo voltar logo a trabalhar.
Ocupar minha mente e meus dias, para esquecer o quanto minha vida está
bagunçada.
Por um momento anseio por dias tranquilos. Dias sem paixões
turbulentas.
Apenas um dia de cada vez.
Naquela tarde, eu dirijo até a fazenda dos Wilson. Chris está saindo
do estábulo e me vê. Ele sorri e eu sinto como se fosse adolescente de novo.
E vou ao seu encontro. Deixo que ele me abrace forte.
Por um momento isto basta. Seria tudo tão mais simples se bastasse
sempre.
– Por onde andou? – Ele pergunta finalmente ao me soltar e eu dou de
ombros, passando os dedos por meus cabelos bagunçados pelo vento.
Os olhos de Chris se estreitam e eu percebo seu olhar fixo na aliança
em meu dedo.
– Isto é uma...
– Aliança – completo. – Eu me casei – falo, dando de ombros
casualmente como se estivesse falando de comprar uma blusa nova.
– Casou?
– Com Ian Callaghan.
Eu não sei dizer com certeza se entendo a reação de Chris. Acho que
esperei que ele ficasse furioso. Gritasse comigo sobre o quão maluca eu sou
por me casar com um cara que mal conheço. Ele simplesmente me encara em
silêncio.
– Diz alguma coisa – peço, cheia de angústia.
– Vamos dar uma volta e você me explica tudo.
Nós caminhamos e eu conto a ele sobre meu casamento em Portland.
– E por que está aqui, Julia?
– Porque, quando voltamos pra casa depois do casamento, uma tal de
Susan estava lá.
– Susan Willians?
Eu o encaro espantada.
– Você a conhece? Como... Oh Deus, você também sabia, não é?
– Julia – ele tenta segurar minha mão, eu o afasto.
– Que inferno! Todo mundo nesta maldita cidade parecia saber que
Ian estava me fazendo de idiota e ninguém foi capaz de me contar? Até você,
Chris?
– O que você sabe sobre Susan Willians?
– Além do fato de ela estar esperando por Ian seminua no dia do
nosso casamento?
– Ian me disse que não estava mais com ela.
– Mas o quê... você e Ian conversaram sobre ela? – Começo a ficar
realmente furiosa.
– Eu precisava saber, já que ele estava com você.
– Deus do céu, eu odeio você neste momento, Chris! Como pôde
fazer isso?
– Eu só queria protegê-la.
– Eu sou adulta e posso tomar conta da minha própria vida, seria bem
mais fácil se eu soubesse da existência desta tal Susan!
– Se Ian não estava mais com ela, não tinha porque eu contar. Aposto
que ia parecer que eu estava fazendo sua cabeça contra ele.
Sim, ele tem razão.
Chris nunca escondeu que tem ciúmes de Ian.
Respiro fundo, tentando me acalmar.
– E o que você sabe sobre Susan.
– Julia...
– Por favor, me conta Chris.
– Ela é amiga da irmã do Ian, Rebecca. E as famílias são amigas
desde sempre.
– E o que ela foi pro Ian?
– Eles dormiam juntos... há algum tempo.
– Eles eram namorados?
– Não. Não era assim.
– Você parece saber bastante.
– Cidade pequena, Julia. Sabe como as coisas funcionam. E os
Callaghan são uma espécie de realeza. Todo mundo gosta de comentar sobre
a vida deles.
– Então esta Susan é amiga da família? Por que ele não namorava
com ela, então?
Fico me perguntando o que a família de Ian pensa sobre isto. Se me
odeiam porque o roubei de Susan.
– Terá que perguntar a ele. O que o Ian te disse sobre ela?
– Eu o deixei.
– Deixou?
– Na verdade ele tentou explicar, disse que dormia com a Susan, que
terminou com ela... eu não consegui ficar lá. Pedi pro meu pai ir me buscar.
Ian apareceu na minha casa ontem dizendo que aceitaria qualquer decisão que
eu tomasse.
– E o que vai fazer?
– Eu não sei...
– Julia... eu sinto muito.
Eu o encaro. Será que sentia mesmo? Eu sabia dos sentimentos dele
por mim. Talvez estivesse feliz por Ian estar longe. De alguma maneira, eu
soube que Chris estava sendo sincero.
– Não sei o que fazer – murmuro, ao sentar sob a árvore.
Chris senta ao meu lado e passa os braços sobre meus ombros.
– Quer que eu dê uma surra nele?
Eu rio, encostando minha cabeça em seu ombro.
– Às vezes quero voltar no tempo. Quando éramos adolescentes.
Quando tudo era tão simples.
Ele me aperta um pouco mais e sinto seus lábios em meus cabelos.
– Era tudo o que mais queria. Eu teria te conquistado... e nenhum Ian
Callaghan teria chances com você.
Eu me afasto com cuidado.
– Chris...
– Me desculpe Jules.
– Sou eu que tenho que pedir. Sei que não estou sendo legal com
você. – murmuro cheia de culpa.
– Não. Somos amigos. Isto nunca vai mudar. Não importa o que
aconteça.
– E como meu amigo, o que acha que devo fazer?
– Eu queria muito dizer que deveria esquecer o Callaghan de vez.
Infelizmente sei que nunca vai acontecer. Podem passar anos, Julia, você
pode esquecer de tudo, porém, o que você sente... não vai mudar.
Quero dizer que ele está errado.
O tempo cura tudo, não é o que dizem? De alguma maneira eu
desconfio que ele está certo.
Nos despedimos algum tempo depois e eu dirijo sem rumo.
Paro o jipe na estrada e entro na floresta. Sei exatamente aonde estou
indo.
Não sei por que estou indo. Ou talvez saiba.
Ele está lá. Eu não me surpreendo.
Com certeza ele se surpreende ao me ver caminhando em sua direção.
Sento do seu lado. Por um momento nenhum de nós diz nada. Percebo
a falta que eu senti dele. De apenas estar em sua presença. Saber que ele está
ao alcance de minhas mãos.
– O que veio fazer aqui? – Pergunto baixinho.
– Sofrer por você.
Eu o encaro.
Ele sorri tristemente.
– Eu também.
Ele fica sério. Grave.
– Não quero que sofra.
– Impossível.
– Julia, você acredita mesmo que eu tenha te enganado em relação a
Susan? Que eu enganei vocês duas? Que de alguma maneira eu ainda ficaria
com a Susan depois de casar com você?
– Não.
E é verdade. Percebo que estava com dificuldade de lidar com este Ian
humano. Não tão perfeito como nos meus devaneios românticos.
E aí ele tinha uma ex. Quem não tinha?
E escondeu de mim. Será que eu podia realmente culpá-lo quando eu
também estava escondendo coisas dele?
– Eu fui sincero com você – ele continua.
– Podia ter sido sincero antes.
– Eu deveria ter feito um relatório de todos meus antigos
relacionamentos? Talvez eu devesse pedir um pra você também.
Eu penso no que eu não contei. Penso se não é pior.
Algo se debate dentro de mim. Não consigo falar. Eu não quero falar.
Então sinto seus dedos no meu cabelo. Fecho os olhos.
– Eu só queria uma segunda chance com você.
E o que eu queria?
Eu gostava tanto dele que chegava a doer.
Será que por causa de uma ex-namorada eu deveria simplesmente
riscar Ian da minha vida?
Nunca mais vê-lo.
Nunca mais sentir seus dedos em meu rosto, como agora.
Sua respiração quente em minha pele. Seu gosto em minha língua.
Seu beijo.
Suspiro e em um segundo estamos nos beijando.
E é como voltar pra casa.
Toco seu rosto. Seus cabelos. Aspiro seu cheiro.
O beijo termina, mas permanecemos abraçados.
– Precisamos descer – Ian diz depois de um tempo.
Sim, não há mais sol e logo vai escurecer.
Eu hesito. Sei que preciso tomar uma decisão.
Nós descemos em silêncio. Ian me leva até meu carro e parece tanto
com o dia em que nos conhecemos que sorrio.
– Déjà-vu – digo ao entrar no jipe.
– Parece errado deixar você ir – ele diz. – Apesar de saber que não
posso forçá-la a nada. Eu já fiz... deixa pra lá.
Ele fecha a porta e se afasta.
Sinto vontade de chorar.
E choro.
Eu dirijo de volta sem ver nada no caminho. Quando chego em casa,
subo as escadas e arrumo minhas coisas. Demoro um tempo para conseguir
colocar tudo no jipe.
Escrevo um bilhete para Jack.
Só há uma coisa a fazer.
***
Dirijo com cuidado pela estrada molhada para a casa de Jack. Ele está
limpando sua coleção de itens para pesca quando chego e me encara.
– Achei que tivesse esquecido que tinha casa.
Abro a geladeira e pego uma cerveja pra ele.
– Bom dia pra você também.
– Dois dias de casada e já está de volta? O que significa?
Reviro os olhos, enquanto continuo com a geladeira aberta pegando
os ingredientes para o almoço.
– Significa que quero passar um tempo com meu pai, antes de viajar
em lua de mel.
Ele para o que está fazendo e me encara.
– Vai viajar?
– Lua de mel – eu lavo as alfaces. – E Ian quer que eu vá a um
médico.
– Médico?
– Eu contei a ele sobre o acidente – falo casualmente sem encará-lo. –
Não sei se deveria ter falado.
– Fez certo.
Jack não diz mais nada. Achei que ele teria algum discurso sobre o
assunto.
– Enfim, ele quer ter certeza que estou bem ou algo assim. Sabe que
eu não quero ir, mas... vou apenas pra ele não ficar preocupado.
– Seu Ian está ganhando uns pontos comigo.
– Ele foi bem legal, em relação ao acidente e a amnésia. Fiquei com
medo de ele não entender...
Jack volta a me encarar.
– Está feliz?
– Muito.
Ele toma sua cerveja.
– Acho que voltarei a comer minha comida ruim então.
Eu gargalho.
– Sobreviveu por dois anos, não reclame!
Nós almoçamos e Jack fica satisfeito quando eu conto que passarei a
tarde com ele.
Nos acomodamos na sala e Jack assiste a um jogo na TV.
Eu me preparo para fazer as indagações que estou querendo fazer
desde que cheguei.
– Pai?
– Sim?
– Toda vez que eu pergunto... sobre vida que eu levava em Seattle...
Você sempre é evasivo.
Ele não parece satisfeito com o assunto.
– O que quer dizer, Julia?
– Eu quero saber mais.
– Não tem nada além do que já contei – resmunga. - Esquece.
– Esquecer? Sábias palavras! – Exclamo cheia de ironia.
– O que quer saber? Eu te contei tudo o que eu sei!
– Sim, de acordo com você, eu fui estudar lá e fim! Não posso ter
vivido dois anos somente estudando! Eu devia ter amigos... talvez eu tivesse
até um namorado – minha voz vai sumindo.
– Se teve eu não sei. Já te disse.
– Eu tive alguém lá... não sei se foi importante, se durou, mas...
Mordo os lábios, sem saber como dizer a Jack que eu não era virgem.
Era apenas uma suspeita então, depois de transar com Ian, eu tive certeza: eu
já tinha feito aquilo antes.
E eu não me lembrava de ter nenhum namorado na adolescência.
Então deve ter acontecido na faculdade.
Ok, pode não ter sido grande coisa. Na verdade, quem garantiria que
foi apenas um cara? Como eu me conhecia não conseguia me imaginar
flertando livremente e indo pra cama com qualquer um.
Eu imaginava que devia ter sido apenas um cara. Alguém importante
a ponto de eu querer ir pra cama com ele. Alguém de quem eu não me
lembrava.
– Julia, me escute. – Jack fala muito sério. – Esquece, me perdoe as
palavras. Mas é isto mesmo. Não importa o que aconteceu na faculdade.
Você está casada agora, não é? O que importa se teve um namorado que ficou
no passado?
Jack está certo. Não interessa mais.
Eu tenho Ian e eu sei que o amo de corpo e alma. Então por que ficar
me preocupando com alguém do passado?
– Sim, tem razão – murmuro e olho o relógio. – Acho que vou indo.
– Claro. Pode ir, me avise quando for viajar.
– Pode deixar.
Antes de sair eu ligo pra Ian.
– Estou indo embora.
– Já? Ainda estou resolvendo algumas coisas de trabalho, se quiser vir
ficar com as minhas irmãs.
– Não, eu vou pra casa e te espero lá.
– Tudo bem.
Ainda está claro quando chego em casa. Não chove mais, o dia até
abriu e um sol pálido está se pondo. Estaciono no jardim, em vez de entrar
em casa, decido dar uma volta.
Caminho pela grama verde, aspirando o ar puro, adorando ver o céu
um pouco azul, apesar das nuvens. Dou a volta no chalé e continuo andando,
até que encontro um jardim que nunca tinha visto.
É lindo e cheio de flores de várias cores. Um cheiro delicioso enche o
ar e então eu escuto um choro.
Intrigada, eu vou em direção ao som e encontro Rebecca Callaghan
sentada na grama. Ela está de costas pra mim a uns dois metros de distância.
– Rebecca?
Ela se vira. Os olhos estão vermelhos e o rosto molhado.
Eu não tinha imaginado, ela estava mesmo chorando.
– Julia... me desculpe... – ela vem em minha direção enxugando o
rosto.
– Por que está chorando? Está tudo bem?
– Não é nada.
– Mas você estava chorando.
Ela dá de ombros.
– Eu... tive uma discussão com Oliver. Não queria ficar lá em casa e
vim chorar aqui. Coisas de namorados – ela ri.
– Se você quiser... conversar...
– Não, eu vou voltar...
– Por que não vem comigo? Pode lavar o rosto, eu faço um chá...
Ok, eu estou sendo gentil e cordial com a irmã nojenta do Ian, o que
eu posso fazer? Ela parece realmente mal.
Ela hesita, mas me acompanha. No chalé, ela vai até o banheiro lavar
o rosto e, como prometido, eu faço um chá.
De volta à cozinha ela está recomposta.
– Obrigada – agradece a xícara de chá que nós tomamos em silêncio.
Acho que ela não quer falar sobre seja lá o que a aflige e eu não
insisto. Me pergunto se um dia serei amiga de Rebecca Callaghan. Talvez até
seja possível.
– Obrigada pelo chá – ela se levanta. – Vou pra casa.
– Se precisar... conversar... bem...
Ela dá um sorriso. Parece genuíno.
Eu a vejo se afastar, me perguntando como consegue andar com
aqueles saltos na grama úmida.
Ainda estou intrigada quando Ian aparece. Já escureceu e ele parece
estranho.
Eu estou na cozinha e me ocupo em fazer o jantar.
– Olá.
– Oi... tudo bem?
– Sim, por que pergunta?
– Minha irmã esteve com você.
– Oh... ela contou? Bem, na verdade eu a encontrei chorando num
jardim. Aliás, um jardim lindo...
– Ela disse por que estava chorando?
– Disse que tinha brigado com Oliver.
– Sim, deve ser isto... eles vivem discutindo. – Ian comenta distraído.
– Quer ajuda? – Pergunta se aproximando.
– Não, estou acabando... por que achou que não estava tudo bem só
pelo fato de eu ter conversado com sua irmã? Ela me pareceu uma boa
pessoa.
– Ela é uma boa pessoa, do seu jeito.
– Ninguém é perfeito! Eu fiquei com pena dela. Parecia tão... triste.
Ele acaricia meus cabelos.
– Não ligue. Rebecca é dramática demais às vezes. Ela já está bem,
fazendo as malas pra ir pra Portland com ele.
– E nós também vamos voltar?
Ele sorri de lado e me puxa pela minha camiseta.
– Nós vamos para Nova York, senhora Callaghan.
Seus lábios estão em meu pescoço.
– Quando?
– Hoje a noite.
Eu o obrigo a parar e a me encarar.
– Como assim, não podemos viajar hoje!
– Claro que podemos! Rebecca e Oliver vão nos levar ao aeroporto
em Portland.
– Pra que esta pressa toda?
Ele sorri de lado, seus braços me envolvem.
– Talvez eu queira ficar sozinho com você, numa tal lua de mel o
mais rápido possível...
E então está me beijando. Persuasivamente.
E eu já não tenho argumentos. E nem quero.
Quero a tal lua de mel também. Na verdade, eu mal posso esperar.
Capítulo 11
***
– Quer sair? – Ian pergunta um tempo depois, entrando no quarto.
Não sei exatamente quanto tempo, porém, como combinado, estamos
sem roupa.
E eu acabei de comer toda a comida que Ian pediu e agora estou
esparramada de bruços na cama, sonolenta.
– Não... – murmuro preguiçosamente.
Ian se inclina e deposita um beijo em meu ombro.
– Quem era no telefone? – Pergunto, pois Ian havia saído do quarto
dez minutos atrás quando seu celular tocou.
– Tess dizendo que está passando a lista de compras por e-mail.
Eu começo a rir.
– Ela acredita mesmo que faremos compras pra ela?
– Você não tem noção de como ela se tornará chata se eu não fizer -
ele responde contra minha nuca.
– Sei... – sussurro roucamente ao sentir seus lábios deslizando por
minha espinha.
– Está com sono? – Escuto sua voz em meu ouvido quando ele deita
ao meu lado.
Seu corpo está excitado perto do meu.
Estou excitada também.
– Não...
Não demora muito para estarmos nos beijando, corpos se enroscando.
Minha mente flutua num estado entre a lucidez e a embriaguez. Abro os
olhos e miro seus lábios em meus seios. Seus dedos estão descendo, entrando,
acariciando.
E eu queimo, estremeço, enlouqueço.
E então ele paira sobre mim, seus joelhos abrindo os meus
delicadamente.
Eu abro os olhos, esperando ansiosa pela desejada invasão.
Ele hesita, seus olhos buscando os meus.
– Julia, está realmente tudo bem quanto a isto, não está?
Por um momento eu não sei do que ele está falando, me lembro de
uma conversa que tivemos antes de viajar, quando ele me viu tomando
pílulas.
Eu comecei a tomar em Londres por causa das cólicas, agora elas
seriam realmente úteis.
– Sim, sim... – confirmo ofegante então ele sorri e me penetra fundo.
– Sim... – sussurro, agora perdida de prazer.
E eu adoro vê-lo se mover em cima de mim.
Me excita o jeito que ele me olha, sabendo o efeito que causa em
mim, como cada estocada me desmonta por dentro. Me derrete a ternura com
que ele me beija, ou quando pergunta se está tudo bem.
Nada é mais perfeito.
De repente eu penso em meu outro amante. Aquele que eu não me
lembro. Será que era desse jeito com ele? Será que ele me tocava dessa
maneira. Será que eu sentia a mesma coisa?
Será que eu o amei como amo Ian?
Sinto-me grata por não lembrar. Quero que Ian seja o único em minha
mente, em meu corpo. E é olhando pra ele que eu me desmancho em êxtase.
Então ele estremece e goza comigo.
Quero ser a única pra ele também.
Eu não sou. Este pensamento ronda minha mente no dia seguinte,
enquanto percorremos Nova York, como dois turistas em férias.
Ian trouxe a tal lista de Tess e nós entramos e saímos das lojas mais
chiques da Quinta Avenida e ele sempre me pergunta se eu não quero nada.
– Não, não quero.
– Tem certeza?
Eu rolo meus olhos.
– Sabe que odeio presentes.
– Não seriam presentes. O que é meu é seu...
A vendedora nos interrompe ao entregar o cartão de crédito e as
sacolas a ele.
Ela sorri toda derretida.
Nem dá raiva. Sei que meu marido é lindo. Eu estaria suspirando
como ela também. Só que algo nesta moça me incomoda. Ela tem lindos
cabelos pretos e boca vermelha.
Ao sairmos da loja eu constato qual é o problema. Ela me lembra
Susan. A ex-amante de Ian. Aquele simples pensamento me enche de um
ciúme gelado e pavoroso.
– Ei, tudo bem? – Ian aperta minha mão e eu o encaro.
– Sim...
– Está esquisita desde que saímos da loja.
Nós caminhamos de volta ao hotel. As mãos de Ian cheias de sacolas
e ele me encara preocupado.
– Não é nada, acho que cansei desse monte de compras...
Ele sorri.
– Já acabou. Eu tinha me esquecido do quanto você odeia.
– Esqueceu?
– Acho que me disse algo sobre odiar compras uma vez.
Eu dou de ombros, distraída.
Meu problema não são as compras. Meu problema é a dificuldade que
eu tenho de esquecer a existência de outra mulher na vida de Ian.
Ok, podia lidar com o pensamento que ele tivesse um milhão de ex-
namoradas. Nunca conversamos sobre o assunto e talvez ele até tenha tido
mesmo. Eu não conheço nenhuma delas. São apenas estranhas sem rosto, sem
nomes. Porém, me deparar com uma delas seminua na casa de Ian, no dia do
meu casamento, com certeza foi um golpe terrível.
E acho que é por esse motivo que eu não consigo engolir Susan
Willians. É real demais. Recente demais. Me embrulha o estômago apenas
pensar naquele moça linda e perfeita com Ian.
– Julia, está fazendo de novo.
Eu respiro fundo e volto à realidade. Sem que eu perceba estamos no
quarto do hotel.
– Me desculpe, estou distraída... Acho que vou tomar um banho.
– Tem certeza que está tudo bem? Sei que odeia fazer compras, só
não achei que fosse ficar irritada.
– Não estou irritada, Ian, esquece - eu entro no chuveiro.
Fecho os olhos e deixo a água escorrer. Tento limpar minha mente.
– Qual o problema?
Abro os olhos e vejo Ian diante de mim.
Ele está sério e determinado. Sei que não vai me deixar em paz até
que eu responda.
Só que eu não quero falar.
Sei que ele vai me achar exagerada. Eu mesma sei bem lá no fundo
que estou exagerando. Sei que causará problemas entre nós.
Sem dizer nada, eu me aproximo e, ficando na ponta dos pés, o beijo.
– Julia... – ele tenta me afastar, eu não deixo.
Meus lábios percorrem seu queixo áspero de barba por fazer, minhas
mãos deslizam por seu peito.
– Shi... – sussurro em seu ouvido, meus dedos descem mais.
– Julia, é sério... – ele ofega.
Eu sorrio contra seu pescoço.
– Acho que estou na TPM.
Ele ri agora. Sei que está cedendo. Eu sinto em meus dedos.
– Está desviando do assunto de propósito.
Eu o empurro até a parede e o encaro com falsa inocência. Meus
dedos aumentam o ritmo.
– Jura? Quer que eu pare?
Ele geme.
Me excita.
Seus dedos puxam meu cabelo e me beija.
Eu exulto. O beijo de volta. Mil vezes. Devoro seus gemidos.
Quero que ele não pense em nada. A não ser em mim. Ele é meu
agora.
E eu o beijo inteiro. Mordo, lambo, marco.
Ajoelhada diante dele escuto seus gemidos em meu ouvido, seus
dedos puxando meus cabelos e sinto seu gosto em minha língua.
E depois, ele me leva pra cama.
E eu desconfio que ele sabe o que me preocupa, porque me beija e
sussurra em meus lábios.
– Eu nunca amei ninguém além de você, Julia.
E eu acredito. Porque eu sei, embora não me lembre, que também
nunca amei ninguém assim.
***
Dias depois eu estou em frente a sua casa. Jack me olha com raiva.
Ele espera Julia desaparecer dentro de casa e me encara irritado. Eu sei que
ele tem motivos.
Eu prometi ficar longe. Prometi manter minha resolução de sair da
vida dela há dois anos. Porém, depois de alguns dias remoendo o passado em
Portland, eu havia voltado.
– Que diabo está fazendo?
– Eu não consegui... ficar afastado.
– Que inferno, Ian! Foi você mesmo que nos proibiu de dizer qualquer
coisa a seu respeito e agora está cortejando Julia como se nada tivesse
acontecido?
– Não aconteceu. Não pra ela. Somos somente dois estranhos se
conhecendo.
– Eu não concordo. Quero que saia da vida dela.
– Acho que só a Julia pode decidir quanto a isto.
– Agora é ela quem decide? – Sua voz é cheia de ironia.
Ele está certo.
Eu entro no carro e me afasto. Não quero as verdades de Jack. Não
quero pensar nos perigos das decisões que estou tomando agora. Eu só sei
que estou feliz de novo. Eu estou com Julia novamente.
Na minha casa as coisas não são diferentes. Rebecca é a pior. Temos
mais uma discussão naquela noite.
– Você não entende! É uma segunda chance! Ela não se lembra de
nada!
– Acha certo? Você está enganando a Julia!
– Você quer o quê? Que eu conte a verdade?
Rebecca recua e Oliver a tira de perto de mim.
Eu saio para respirar ar puro e não fico surpreso quando vejo Chris
Wilson vindo em minha direção. Por um momento acho que ele vai me bater.
Talvez eu mereça.
Ele para na minha frente. Está mais calmo do que eu achei que estaria
nesta situação.
– O que você pretende?
Eu solto uma risada amarga.
– Ela já foi te procurar, não é?
É incrível como ainda dói. Saber que Julia se esqueceu de mim, mas
não dele.
A ligação entre eles continua a mesma. Enquanto eu tenho que lutar
para conquistá-la de novo.
– Sim, ela te contou que eu a chamei pra sair?
Eu não deveria ficar surpreso. Chris ainda era apaixonado por ela.
– Não, não me disse. E vocês saíram? – Minha mente está tomada
pelo ciúme.
– Não, ela desmarcou porque um tal de Ian Callaghan surgiu na
parada. Déjà-vu?
Eu não falo nada.
– E o que eu devo fazer? Juro que me deu vontade de contar
exatamente quem você é! Que não é o senhor perfeitinho que ela pensa!
– Teria coragem de contar?
– Não. Eu jurei que não contaria nada, não jurei? O que eu sei foi que
você também jurou! E disse que ia sair da vida dela e agora está de volta!
– Eu quero uma segunda chance – digo simplesmente. – Eu não estou
forçando nada, Chris. Simplesmente... está acontecendo de novo... como se
nada tivesse existido antes.
Chris respira fundo.
– Eu percebi. E eu sei muito bem que, como da outra vez, eu não
posso lutar contra – sua voz é cheia de amargura.
– Do mesmo jeito que eu não posso lutar contra esta ligação de vocês.
– O que vai acontecer de agora em diante?
– Vamos em frente... Estamos nos conhecendo de novo.
– Eu mato você se ferrar com tudo novamente.
– Não fui bem eu que ferrei com tudo da primeira vez.
Chris sabe muito bem.
– E a tal Susan?
– Não estamos mais juntos.
Ele parece satisfeito com esta resposta quando vai embora.
Capítulo 12
***
– Finalmente vou comer algo que preste!
Eu sorrio ao ouvir a voz de Jack pendurando o casaco ao entrar na
cozinha.
Eu resolvi fazer uma surpresa e fui jantar com ele. Ou melhor,
cozinhar pra ele.
– Oi, pai. Senti sua falta também!
– Já está cansada da vida de casada é?
– Sabe que Ian está em Portland.
– E por que não está lá com ele?
– Porque estou trabalhando.
– E vai ficar assim até quando?
– Até acabarem as aulas, pai.
– Não quero ser intrometido, antes que me acuse devo dizer que esse
negócio de casar e ficar cada um para um lado... não dá certo.
Eu lhe lanço um olhar exasperado.
– É temporário, já falei!
De repente escuto um carro estacionando em frente a casa.
– Está esperando alguém?
– Oh... não fazia ideia.
– Entrem – ele abre a porta para os dois homens. - Acho que estão
com sorte hoje. – Jack diz apontando pra mim.
O pai de Chris, Martin é amigo do meu pai de longa data.
– Oi... Realmente um golpe de sorte, porque nem sabia que viriam
hoje.
– Oi Jules – Chris sorri.
Ele parece feliz em me ver.
Eu me divido entre sentir felicidade ou culpa.
Acho que sinto os dois.
Jack abre a geladeira e pega cerveja para ele e Martin e, em pouco
tempo estão indo pra sala para Jack mostrar as varas de pesca novas.
Chris se aproxima de mim no fogão.
– Eu não fazia ideia que estaria aqui.
– Eu sei. Digo o mesmo.
– Quer ajuda?
– Não, estou terminando, se quiser colocar a mesa.
– Certo... e aí, como você está?
– Estou bem... sinto falta do Ian – confesso. – Ele estará aqui amanhã.
– Que bom pra você. – Chris comenta simplesmente, sem me encarar.
Nós jantamos ouvindo as histórias de pescaria de Martin e Jack e
depois Chris me ajudar a lavar a louça.
É quase como antigamente, como se ainda pudéssemos ser amigos,
sem nenhuma preocupação. Penso naqueles dois anos que não me lembro.
Será que Chris conheceu meu “namorado”, ou seja lá quem que esteve
comigo naquela época?
– Nós continuamos amigos quando eu estava em Seattle?
– Onde?
– Seattle. Faculdade.
– Claro.
– Eu vinha muito pra cá? Nós... andávamos juntos?
– Claro... Por que está perguntando?
– Não sei... curiosidade. Ninguém nunca fala desta época. Isto me
incomoda.
– É natural que te incomode não lembrar de nada. Não devia ficar se
preocupando com isto.
– Eu tento... então, se ainda éramos amigos... você deve saber se eu
tive algum namorado.
Chris parece incomodado com minha pergunta. Desvia o olhar.
– Eu tive?
– Não sei Julia. Eu só te via nos feriados e férias. Pode ter tido
dezenas de namorados, como posso saber?
– Eu acho que te contaria se tivesse, não é?
– Talvez não...
Eu suspiro pesadamente.
Será mesmo que Chris não sabia de nada? Ou sabia e não queria
falar?
De repente escuto um carro estacionando e olho pela janela. Meu
pulso congela ao reconhecer o carro de Ian.
– Droga – murmuro baixinho, indo abrir a porta pra ele.
Será que Ian tinha um sexto sentido que lhe avisava quando Chris
estava perto de mim?
Ian sai do carro e vem em minha direção.
Ele sorri e, por um momento, eu esqueço de tudo o mais e me jogo em
sua direção.
Ele me recebe em seus braços. Eu aspiro seu cheiro.
Depois de uma eternidade eu o encaro.
– Por que não me avisou que chegaria hoje?
– Não sabia se daria tempo... não queria deixá-la esperando...
Então seu sorriso congela no rosto. Ele olha além de mim.
E sei que viu Chris.
– E aí? – Chris acena com a mão.
Ian me encara. Está furioso.
– Eu vim jantar com meu pai... ele já tinha convidado Chris e o pai
dele... – explico rápido.
– Que conveniente, não é?
Ele me solta. Sinto frio.
Sinto raiva.
– Conveniente? O que quer dizer? Que eu armei para me encontrar
com Chris? Algum encontro secreto na casa do meu pai? – Minha raiva vai
aumentando com o tom da minha voz.
– Ei, Ian – escuto Jack se aproximando. – Julia disse que chegaria
amanhã.
– Sim, eu iria.
– Quer entrar? Martin e Chris estão aqui, eu os convidei pra jantar,
Julia apareceu de surpresa.
Tenho vontade de pedir para Jack parar de dar explicações.
Porque é exatamente o que ele está fazendo.
– Não, ele não quer entrar – respondo entredentes. – Aliás, ele pode
fazer o que quiser, pois eu vou embora!
Entro em casa apenas para pegar as chaves e meu casaco então passo
por eles indo direto para meu carro.
– Julia... – Ian está se aproximando, eu o ignoro e dou partida.
Ele e sua desconfiança podem ir pro inferno.
Obviamente o carro dele era muito mais veloz que o meu e ele
estaciona logo atrás de mim quando chegamos.
Eu entro e ele me segue.
Eu o encaro furiosa.
– Eu quero saber se vai ser sempre assim? Se eu não poderei mais
encontrar com o Chris que você vai ficar insinuando absurdos!
– Me desculpe.
– Agora você pede desculpas?
– Eu queria que você me entendesse também! Chris é apaixonado por
você...
– Eu não sou apaixonada por ele! E dói saber que você acha que eu
posso, sei lá, trair você com ele! Você acredita mesmo que eu faria isso? Me
fale agora, eu não posso viver desse jeito... Não posso aceitar que você pense
tão mal de mim.
Minha voz está trêmula e eu sinto meu coração afundando no peito.
E espero.
Ian me encara. Há dor em seu olhar.
– Eu tenho medo de perder você.
– Ian...
– Não diga que é absurdo. Ele sempre esteve na sua vida. Você
nunca... o esquece. Há uma ligação entre vocês que eu não entendo, que não
consigo dissolver.
– Eu não sei mais... como fazer você entender... Eu te amo, Ian. Quero
ficar com você. Eu me casei com você, e não com o Chris; Ele é meu amigo.
Ele sabe. Eu não posso... obrigá-lo a não gostar mais de mim. Se eu pudesse,
o faria. Porque eu sofro por saber que nunca vou poder corresponder. Eu
posso viver sem o Chris. Eu vivi dois anos longe daqui, longe dele. Mas eu
não conseguiria ficar dois anos sem você. Ficar uma semana já é horrível...
– Não tenho tanta certeza...
– Eu tenho – me aproximo e toco seu rosto. – Por favor, Ian. Não faça
isto com a gente. Eu não sei se conseguiria suportar se me deixasse.
– Julia. – ele toca minhas mãos, meus cabelos. - Eu não vou deixar
você, não agora que...
– Então pare de colocar o Chris entre a gente. Vamos realmente
começar do zero. Nada de Susan. Nada de Chris. Só nós dois. Por favor...
– Eu continuo fazendo tudo errado, não é? – Ele diz num lamento.
Eu o beijo.
– Vamos esquecer, ok? Você está aqui... senti tanto a sua falta...
Ele me beija de volta e me leva pro quarto.
Quando me põe na cama, eu o empurro.
– Espera!
– O que foi?
Eu saio da cama e vou para o closet.
– Me espera aqui!
Eu volto minutos depois vestindo o “presente” de Tess.
Ian sorri.
Eu me arrepio.
– É o presente da Tess – digo fazendo um giro.
– Por favor, não coloque minha irmã na nossa conversa agora.
Eu começo a rir e me aproximo.
– Bom, ela disse que era um presente que você iria apreciar.
– Ela tem toda razão – ele me puxa e num segundo estamos de novo
sobre a cama.
E ele me beija devagar e sensualmente, suas mãos fazendo um passeio
preguiçoso pelo meu corpo.
Não demora para o desejo crescer, urgente, intenso.
E nós nos despimos entre risos.
– Não rasgue a camisola de Tess.
– Para de falar da Tess – ele pede exasperado, os dentes em meus
seios, as mãos abrindo minhas pernas.
Eu perco o prumo ao sentir seus dedos dentro de mim.
– Agora, Ian, por favor – me contorço, levando meus próprios dedos à
sua ereção, trazendo-o para dentro.
E ele geme em meu ouvido, imprimindo um ritmo perfeito. Eu me
movo com ele. Para ele. O desejo se manifestando em ondas cada vez mais
fortes, até explodir em mil espasmos de prazer que me tiram da terra e me
fazem sussurrar seu nome como um mantra.
E eu adoro ouvir meu próprio nome nos lábios dele quando goza
dentro de mim.
Eu adormeço em seguida, quando acordo já é dia e Ian não está na
cama.
Eu me arrumo e saio do quarto, ele está fazendo meu café da manhã.
– Ai, ai, ai, ovos de novo? – Eu me aproximo e beijo seu ombro.
– De novo? Eu só estou aqui nos fins de semana, não reclama!
– Sempre vou reclamar por não estar aqui.
Eu me sento e começo a comer.
– E como foi sua semana? Tess te importunou muito?
– Não... Na verdade, sabe o quarto vazio? Eu tinha pedido pra ela
decorá-lo.
– Ah é? Faça o que quiser – ele se levanta, mexendo em algo na pia.
– Eu pensei... em não fazer nada por enquanto – remexo os ovos no
meu prato e me preparo para entrar no assunto. – Acho que podíamos deixar
para... um bebê.
Escuto som de um copo caindo sobre a pia.
– Quebrou? – pergunto preocupada.
Ian está de costas pra mim e não consigo ver nada.
– Não, só caiu...
– Então... Sei que nunca conversamos sobre filhos... mas... bem, eu
quero ter filhos, você também, não é?
Silêncio.
De repente eu sinto medo.
Lembro-me da reação dele com a suposta gravidez de Susan.
– Ian... Você quer ter filhos, não é? – Insisto.
– É muito cedo para pensarmos nisto, Julia – afirma, ainda de costas.
Eu mordo meus lábios me sentindo frustrada.
Sei que ele tem razão. Nos casamos faz pouco mais de um mês.
É realmente muito cedo concordo, embora me sinta decepcionada
com sua resposta.
– Um dia... – eu insisto.
Ele se vira e sorri.
– Podemos ter esta conversa outra hora? Eu vou até a casa dos meus
pais, tudo bem?
– Claro.
Ele beija minha testa e se afasta, subindo as escadas para colocar uma
roupa.
Eu tento conter minha frustração.
Me levanto depois de comer. Escuto Ian ao telefone lá em cima. Ao
passar pela sala, me dá vontade de arrumar os livros sobre a estante. Seria
bom pra passar o tempo.
Minha atenção recai sobre uma pilha de CDs que nunca tinha
reparado.
Começo a puxar um por um para ver os títulos. Ian tem um bom gosto
musical, penso, sorrindo. Então acho um sem capa. Está em branco. Eu o
abro e há uma dedicatória dentro.
Eu congelo.
***
Vozes me acordam.
Por um momento eu acho que ainda estou sonhando. As vozes
continuam alteradas em algum lugar, mesmo depois que eu abro os olhos.
Observo o relógio na mesa de cabeceira. Passa um pouco das nove.
Hoje não tenho aula, então me dei ao luxo de dormir até um pouco
mais tarde. As vozes alteradas continuam. E agora parecem mais altas.
Arrasto-me para fora da cama e abro a janela.
E a cena me surpreende.
Rebecca e Chris estão discutindo bem na porta da minha casa.
– Que diabo...?
Corro quarto afora e desço as escadas até abrir a porta da frente.
– O que está acontecendo aqui?
Eles param e me encaram.
Parecem dois galos de briga. Rebecca está vermelha e ofegante.
Alheia a chuva fina que molha seus cabelos.
Chris parece pronto para voar no pescoço de alguém.
– Julia... – Chris murmura perdido.
Rebecca respira fundo.
– Está acontecendo que este idiota não deveria estar aqui!
Chris ri. Cheio de ironia.
– Você contratou um cão de guarda, Julia?
– Escuta bem, seu imbecil...
– Acho bom parar de me xingar garota! Estou de saco cheio de você...
– Ei, parem com isto! – Dou um passo a frente.
Tremo de frio.
– Sim, Julia tem razão, já chega. Acho melhor você dar o fora! –
Rebecca sibila.
– Eu?
– Sim, você!
– Gente, é sério, por que estão brigando? – Pergunto horrorizada.
Uma leve desconfiança de que Rebecca saiba sobre as desavenças de
Ian e Chris me deixa incomodada.
– Eu vim visitar você e esta intrometida...
– Veio apenas visitar a Julia? Tem certeza? – Rebecca indaga
sarcástica.
– Por que você não se mete com a sua vida? Sabe que eu posso estar
aqui!
– Você veio causar problemas!
– Sei muito bem que quem está louca pra causar é você!
– Ei, agora chega! – Eu me coloco entre os dois. – Já estão passando
do limite! – Eu olho pra Rebecca. – Rebecca, sério, eu resolvo com o Chris.
Rebecca respira fundo. Ela não está disposta a acreditar em mim.
Chris parece triunfante.
– Vaza loirinha!
Eu reviro os olhos.
– Chris, pare você também. Por favor, não me traga problemas.
Meu olhar implora. Chris sabe do que eu estou falando.
Ele fica sério. Passa a mão pelos cabelos, parece frustrado.
– Eu tenho que ir embora, não é?
Me dói um pouco vê-lo deste jeito. Eu concordo com a cabeça.
Eu não quero mais que Chris fique entre mim e Ian. E deixar que
entre na minha casa na ausência de Ian, ainda mais com a irmã dele como
testemunha, seria um enorme problema.
– Tudo bem.
Ele lança um olhar raivoso para Rebecca e se afasta sem dizer nada.
– É bom mesmo – Rebecca diz baixinho eu a encaro.
– O que foi isto?
– Este seu amigo é um idiota.
– Disse tudo: meu amigo. Não precisa ofendê-lo, Rebecca.
Ela fica meio sem graça.
– Bom, eu só acho que Ian não ia gostar nada, nada, de vê-lo aqui.
Eu penso em dizer que Ian não está no momento, decido me calar.
Com certeza não é a coisa certa a se dizer. E Rebecca tem razão.
– Sim, tem razão...
– Você fez a coisa certa o mandando embora.
– Infelizmente sim...
– Me desculpe por te acordar. Eu vou voltar pra casa. Meu cabelo já
está ficando um lixo – ela me mede – e vê se põe uma roupa, vai congelar.
Eu volto para casa pensativa.
Enquanto a manhã passa, se transformando lentamente numa tarde
fria de Beaverton, eu continuo intrigada.
Era como se tivesse perdendo alguma coisa.
Repasso a discussão de Rebecca e Chris na minha mente. Por um
momento eu tive a nítida impressão de que eles já se conheciam. Que aquela
briga era de uma animosidade antiga.
Não fazia sentido. Pelo menos eu não conseguia achar um sentido.
E a chuva continua. Está mais forte.
Eu fico parada contra a janela. Minha mente trabalha sem parar, sem
chegar a lugar algum. Algo estava estranho demais.
Por um momento me sinto deslocada no tempo. Lembrando.
Minha inusitada amizade com Rebecca Callaghan.
Sua discussão com Chris.
As estranhas palavras entre eles e aquela sensação incômoda de que
eles se conheciam.
Será que estou delirando?
Só existe uma maneira de tirar esta dúvida, perguntando a Chris. De
alguma maneira, eu sinto que Rebecca Callaghan irá mentir pra mim, como
mentiu em relação àquele álbum.
Coloco meu casaco e pego as chaves do carro.
Estou a meio caminho do meu jipe quando vejo o carro de Ian se
aproximando.
Meu coração dispara.
– Ian... – Eu digo seu nome.
Ele para e desce do carro.
Sorri ao me ver. Um sorriso preocupado.
– O que está fazendo aqui fora na chuva?
– O que você está fazendo aqui? – Indago chocada.
Deslumbrada.
– É a minha casa – ele responde.
– Não é fim de semana.
– Resolvi fazer uma surpresa. Se não gostou...
Sei que está brincando, mesmo assim seguro sua camisa com minhas
mãos trêmulas.
– Não gostei? Estou achando maravilhoso.
E então, não há mais espaço entre nossos corpos. Entre nossas bocas.
Eu nem me lembro mais quais planos eu tinha antes de sentir sua
língua na minha. Eu só lembro que senti uma falta enorme dele.
E que ele está aqui. Suas mãos em mim. Seu hálito se misturando com
o meu.
E estremeço. De frio e prazer.
Ele ri ao parar de me beijar. Deliciosamente ainda dentro da minha
boca.
Me sinto tonta. Me sinto viva.
– Aonde ia? – Sua mão se fecha contra a minha, sentindo as chaves
do carro.
Sim, onde eu estava indo?
– Não importa – digo sem fôlego. – Não acredito que está aqui... –
beijo sua boca. Seu queixo, seu rosto.
Ele ri mais ainda. E me puxa pra dentro. Fecha a porta atrás de nós.
– Deus, como senti sua falta – murmuro, meus dedos castigando seus
cabelos.
– Você está gelada – ele diz em tom de censura.
Sua voz cheia de uma ternura desconcertante derrete o gelo em mim.
Mesmo assim, ele me leva para perto da lareira. Afundamos no sofá.
Seus dedos frios retiram os cabelos do meu rosto.
Eu me perco em seus olhos.
– Tudo bem?
Eu sorrio.
– Agora sim.
– Ia mesmo sair com este tempo?
– Não vou mais – brinco com os botões de sua camisa. – E você está
de volta – digo de novo.
Ainda parece perfeito demais pra ser verdade. Eu tinha me
acostumado com o sofrimento de não tê-lo por perto. Ele sorri e beija meu
pescoço. Solto um gemido e me enrosco nele.
– Podemos tirar a roupa agora?
Eu não preciso perguntar duas vezes.
Da primeira vez é rápido. Saudade demais. Vontade demais.
Anoitece e ainda estamos ali.
Seus dedos acariciando minha pele devagar. Seus lábios traçando uma
rota que, apesar de já ter feito tantas vezes, sempre me faz prender a
respiração para soltá-la em forma de suspiros e palavras sem sentido.
O riso delicioso dele ecoa em meu ouvido e vibra em algum lugar
bem íntimo dentro de mim, quando eu salto por cima dele e faço eu mesma
minha própria trilha por seu corpo perfeito.
Até de novo estarmos perdidos um no outro.
Encontramos o ritmo facilmente, como se tivéssemos sido feitos
exatamente pra isto.
Para nos encaixarmos.
E seus movimentos dentro de mim causam tremores até na minha
alma. Reverberam tão profundamente, que sinto que vou me desmanchar em
mil pedaços, que só ele poderá montar de novo.
E eu me agarro a ele, confiante de que não importa quantas vezes
chegamos naquele mesmo ponto. Sempre vai ser único e perfeito.
***
– Julia?
Eu não quero me mexer. Sei que quando abrir os olhos verei a luz do
dia. E será hora de sair do casulo quente da minha cama para ir trabalhar.
Eu apenas resmungo e me mexo um pouco pra ele saber que estou
acordada. Seus braços estão a minha volta e eu sinto seu coração batendo
devagar nas minhas costas.
– Você disse que iria trabalhar hoje.
– Eu sei... – Abro os olhos ao sentir seus lábios esfregando em meu
ombro.
– Não precisa ir se não quiser.
É tentador, eu penso. Mas tenho responsabilidades.
Eu me viro e enterro o rosto em seu peito.
– Você está tão quentinho.
– Posso ficar ainda mais se...
Eu me afasto, antes que seja impossível.
– Eu tenho mesmo que ir, então facilite pra mim, por favor.
Ele ri e parece muito convidativo entre as cobertas desarrumadas.
Suspiro pesadamente desviando o olhar, indo tomar banho.
– E nem pense em vir atrás de mim – resmungo.
Ainda escuto sua gargalhada ao fechar a porta do banheiro.
Eu sou levada na direção da cozinha pelo cheiro de ovos e bacon.
– Nem reclame – ele diz enchendo meu prato.
– Nem pensei – eu o puxo e o beijo rapidamente, antes de enfiar o
garfo no prato – melhor eu aproveitar enquanto você está aqui, não é?
– Então é um bom momento pra dizer que eu não vou mais embora.
Eu paro com o garfo no ar.
– Como assim?
Ele dá de ombros.
– Não vou mais voltar pra Portland, pelo menos até o encerramento
das aulas.
Eu acho que ainda estou dormindo e aquilo faz parte de um sonho.
– Está falando sério?
– Estou.
– Mas... e seu trabalho?
– Eu pedi uma licença.
De repente eu entendo que ele está falando sério.
E com um grito eu pulo em cima dele.
– Eu não acredito! Tem certeza? Não terá problemas?
– Eu devo ter esquecido de dizer que Oliver e eu somos sócios em um
escritório de construção.
– Ah, isto facilita tudo com certeza – digo um tanto incomodada pelo
fato de eu não saber muita coisa sobre ele.
Ele ri e me põe sentada de novo.
– Eu sei. Agora coma, antes que se atrase.
Eu como obedientemente, meu estômago dando piruetas de
felicidade.
A vida me parece perfeita neste momento.
***
– Ian eu não quero.
Ele me puxa até seu carro.
– Se não quer que eu te leve à escola, você pode dirigir meu carro.
– Não é necessário...
– É sim. Aliás, está passando da hora de trocar este seu carro velho...
– Não fale assim...
Ele abre a porta e me dá as chaves.
– Ok, vamos deixar esta discussão pra mais tarde.
Eu reviro os olhos, mas estou sorrindo quando dou partida na picape
silenciosa. Tão diferente do meu jipe.
Ele se inclina e beija meus lábios.
– Volte logo, senhora Callaghan.
Eu acelero e fico vendo sua imagem ir diminuindo no retrovisor.
Flutuo numa nuvem de felicidade entre as aulas.
Olho o relógio a toda hora. Ian está esperando por mim, é só o que eu
consigo pensar. E ele não vai embora. Não vamos mais nos separar.
É perfeito demais.
Finalmente chega a hora de ir e eu me despeço de Carla. Quando
entro no carro meu celular toca. Eu pego o aparelho, achando que é Ian, mas
não conheço o número.
– Alô?
– Julia Simmons?
– Sou eu – eu não corrijo meu nome de solteira.
– Aqui é da agência.
Então eu me recordo. A agência em Seattle.
Eu nem estava me lembrando mais...
Sinto um calafrio de medo.
– Estamos ligando para lhe falar sobre seu pedido de investigação...
De repente não sei se quero ouvir o que ele tem a dizer.
– Sim? – Indago com o coração aos pulos de medo.
– Creio que temos um problema.
– Problema?
– Sim, nós fomos atrás de seus registros na universidade e não há
nenhum registro de sua passagem por lá.
– Como não? Eu estudei dois anos lá!
– Sim, a senhora disse. Mas não existe nenhum registro. Nenhuma
Julia Simmons.
Franzo a testa. Aquilo não podia estar certo, podia?
– Será que existe outra faculdade...
– Eu tomei a liberdade de verificar em todas. Em Seattle não há
nenhum registro de sua presença. Também fizemos perguntas no campus.
Mostramos a foto. Ninguém pareceu conhecê-la.
Eu começo a sentir falta de ar.
– Não pode ser... Algo tem que estar errado...
– Nós fomos meticulosos. E não há absolutamente registro de que
uma Julia Simmons tenha estudado em Seattle neste período.
– Nós podemos te enviar os arquivos por e-mail...
Eu balbucio qualquer coisa e desligo. Não consigo falar. Eu mal
consigo respirar. Minha mente começa a girar.
Eu não estudei em Seattle?
Meu pai... todos me disseram que eu estive lá! Eu não me lembro.
Não me lembro de nada.
De repente uma desconfiança terrível me assola.
Mentiras.
– Ah Deus... – ligo o carro.
Só uma pessoa poderia me responder. Meu pai.
Não sei como consigo chegar a minha casa. Quase sinto alívio ao ver
o carro parado. Ele está em casa.
Salto e quase corro pra dentro.
– Jules... – Ele parece agradavelmente surpreso por me ver.
Instantaneamente seu olhar se transforma em preocupação – O que
aconteceu?
– Eu não estudei em Seattle?
– O quê? Do que está falando?
– Você sabe do que estou falando! Por que diz que estudei em Seattle
se não há nenhum registro da minha presença lá?
– Seattle... Julia! O que você andou fazendo?
– Eu andei investigando, já que ninguém parece disposto a conversar
comigo sobre estes malditos dois anos que não me lembro!
– Eu não acredito...
– Quem não acredita sou eu! Vocês mentiram!
– Julia, não é bem assim...
– E como é? Disse que passei dois anos em Seattle até o acidente.
Quando na verdade eu nunca fui pra lá...
– Realmente não é tão importante assim.
– Pelo amor de Deus, pai! Pare de me enrolar! Por que mentiu?
– Não foi bem uma mentira...
– Foi sim! Então por favor, me diga a verdade... eu realmente nunca
fui pra Seattle, não é?
Eu imploro com meus olhos ardendo.
Acho que Jack finalmente percebe que eu não vou desistir.
– Não, não foi.
Eu sinto meu mundo começar a desmoronar. Tudo o que eu
acreditava como verdade desaparecendo, dando lugar a uma escuridão sem
fim.
Luto para respirar.
– Se eu não fui pra Seattle... Para onde eu fui?
– Julia, por favor, esque...
– Não me mande esquecer! Eu estou à beira de um ataque agora. –
Respiro fundo, para manter a sanidade. – Para onde?
Jack passa a mão pelos cabelos. Parece cheio de frustração.
E dor.
– Oregon State, em Corvallis.
Eu franzo a testa. Pensei que ia ouvir alguma coisa horrível. E ele me
diz que eu fui pra Corvallis... Onde ouvi falar sobre esta cidade antes?
– Corvallis... – então eu me lembro. Ian estudou lá... que
coincidência... Como nunca...
Eu paro.
Meu coração para.
Meu mundo para.
Estática.
Oh Deus. Oh Deus.
A certeza de que eu tive alguém em minha vida na universidade.
Alguém importante. Que ninguém nunca tinha citado.
Alguém que deixara de existir no momento em que eu o esqueci.
Minha mente volta para o dia na clareira. Meu primeiro dia em
Beaverton depois de dois anos.
Eu sabia como chegar lá.
Eu o encontrei lá. Eu me apaixonei por ele lá.
Jack. Chris. Carla. A reação de todos quando me viram com ele.
Um estranho.
Na realidade não era um estranho, a não ser pra mim.
– Não pode ser... – Murmuro sem ar.
Quero desmaiar. Quero perder os sentidos...
Quero sair daquele horror.
Sinto as mãos de Jack em mim.
– Julia, querida...
Eu me desvencilho. Corro para fora. Entro no carro.
Minhas mãos trêmulas mal conseguem segurar o volante. Minha
mente gira confusa com o excesso de informações. Só não consigo pensar em
nada. Eu sei que elas estão ali.
Todo o emaranhado de pistas... que agora são terríveis suspeitas...
Eu ainda luto.
Eu estou enlouquecendo.
O carro para bruscamente no jardim dos Callaghan e eu salto.
Eu sei aonde preciso ir.
Vejo Rebecca e Jill no meu caminho. Elas estão falando comigo, eu
não as escuto.
Eu passo por elas e vou até a estante. Minhas mãos furiosas derrubam
tudo pelo caminho, até eu encontrar o que estou procurando.
O álbum cai no chão com o resto dos livros.
Eu me ajoelho e abro. E meu mundo desaba naquele momento.
O momento em que eu vejo a mim mesma. Quatro anos antes.
Vestida de branco.
De noiva.
Com Ian Callaghan.
Ian
– Tire-o dela.
A voz é de Jill. De um jeito que eu nunca ouvi. Agressiva e
desesperada. Rebecca avança tirando o álbum de mim. Não consigo me
mexer.
Estou em choque.
Não vejo nada. Apenas manchas pretas dançando diante dos meus
olhos cegos de dor.
– Ela está aqui?
Ian.
A voz de Ian me tirar do estupor.
Eu levanto o olhar.
Ele olha pra Rebecca em busca de respostas.
– Ela viu – são suas simples palavras.
Ele me encara, parece em choque também.
Eu penso em tudo o que vi. As fotos. A prova incontestável de todas
as mentiras.
De todo o circo de horrores no qual eu estava vivendo.
Era Ian o tempo todo. O cara que eu sabia que tive na minha vida. O
cara que eu tinha esquecido depois do acidente que havia tirado minhas
memórias.
Dois anos de memórias.
Era Ian.
Eu luto pra respirar. Luto para não mergulhar novamente naquele lago
negro de desespero e dor.
É difícil demais.
Está tudo se quebrando dentro de mim. Estilhaços pra todo lado. Me
cortando inteira.
– Julia... – Ian se aproxima. Toca meus ombros.
– Era você... eu conhecia você... como... como é possível?
– Julia, querida... não era para descobrir desse jeito...
– Não era pra eu descobrir? – Minha voz parece estranha para mim
mesma enquanto ainda tento entender... achar algo naquela história que a
torne mais plausível e menos horrível. – Por quê... – eu respiro fundo. – Por
que não me lembro de você? Por que não estava lá quando eu acordei? Por
que fingir que não nos conhecíamos? Este tempo todo... meu Deus. – passo a
mão pelos cabelos, o horror voltando a me dominar. – Estas fotos... nós nos
casamos... antes... como é possível? O que está acontecendo aqui, Ian?
– Julia, acalme-se, vamos conversar – ele fala com extremo cuidado
me levantando do chão.
Eu me desvencilho dele.
– Eu não consigo acreditar... ainda não consigo... é horrível demais...
demais... Como isto pode estar acontecendo? – Eu o encaro em busca de
respostas. – É verdade, não é? Nós nos conhecemos...
– Sim – ele responde por fim, como se lhe custasse muito dizer.
E é pior assim. Ouvir da boca de Ian.
A verdade nua e crua.
– Eu sofri este acidente... eu... perdi a memória... e você está de
alguma maneira inserido nestes dois anos...
– Sim.
Fecho os olhos com força.
O nó na minha garganta me sufoca.
– Nós éramos casados – murmuro.
– Sim.
Abro os olhos e faço a pior de todas as perguntas.
– E você fingiu este tempo inteiro que não nos conhecíamos?
Ele respira fundo. Sabe que não pode mais mentir.
– Sim.
O nó se solta. Começo a soluçar.
– Julia, por favor, eu sinto muito – ele se aproxima de novo. Eu dou
um passo atrás, o impedindo de se aproximar.
– Não! – grito. – Não se aproxime! Meu Deus... é monstruoso demais!
Por que fez isto? Por quê?
Estou gritando e chorando. Não me importo.
De alguma maneira percebo que estamos sozinhos na sala dos
Callaghan.
Rebecca e Jill desapareceram levando o maldito álbum.
Elas sabiam. O tempo inteiro.
Todos sabiam.
Meu pai. Chris. Carla. Os Callaghan.
Eu era a única idiota.
A revolta cresce como um maremoto em meu interior. E, de repente
eu percebo que a pior pergunta não era o porquê de Ian fingir não me
conhecer. Na realidade todos fingiram que não nos conhecíamos.
– Por que não estava lá quando acordei do acidente? Por que fingiu
que não existiu na minha vida e me deixou prosseguir sozinha?
Ele fica em silêncio por um momento.
Atormentado. Como se estivesse perdido em suas próprias
lembranças.
Tenho ódio destas lembranças. Como se ele as tivesse roubado de
mim.
– Responde!
– Você nem se lembrava de mim... que diferença faria? – Sua resposta
é fria. Dolorida. Ressentida.
Ele não tem o menor direito de sentir ressentimento. Não quando me
enganou.
Não quando me deixou.
Eu nem sei mais o que é pior.
Escondo o rosto entre as mãos enquanto choro lágrimas amargas. Meu
corpo inteiro dói. Minha alma dói. Por um momento eu desejo voltar no
tempo.
Não ter descoberto nada. Continuar sendo feliz com Ian. Naquela vida
de mentira e enganação.
Não é possível. Não tem mais volta.
Eu agora que eu sei. Continuo não me lembrando. É o que me mata
aos poucos.
– Julia, eu realmente sinto muito. Eu não queria que descobrisse... não
era pra descobrir...
Eu volto a fitá-lo.
– Sente muito? Você me enganou, Ian. Mentiu pra mim... Eu não
fazia ideia... Como pôde fazer isto? Todos vocês? Mentiram que eu fui pra
Seattle e pra quê? Pra que eu não quisesse voltar pra Corvallis para te
encontrar? Por isto meu pai insistiu na minha ida pra Londres, não é?
Minha mente volta àqueles dias depois do acidente. Do horror do
vazio. Da depressão. De meu pai dizendo que eu ainda podia ir pra Londres,
que seria melhor...
Na época pareceu que era ideia minha, mas não. Ele estava fazendo
minha cabeça.
Me manipulando.
– Sim, decidimos que seria melhor se fosse pra longe de tudo. – Ian
confirma o que faz crescer ainda mais minha raiva.
– Decidiram? E como foi que decidiram que eu não tinha direito de
saber que tinha me casado? Foi ideia do meu pai? Do Chris?
– Foi ideia minha.
De alguma maneira isto me surpreendeu. E doeu.
Eu ainda achava algum sentido em Chris ficando feliz por eu ter
esquecido da existência de Ian. Ou até mesmo meu pai. Mas não foi o que
aconteceu.
Ian havia escolhido sair da minha vida.
Fingir que nunca tinha existido pra mim.
– Por quê?
– Você não se lembrava de nada. Nada que se referisse a mim.
Esqueceu completamente os dois anos que eu fiz parte de sua vida.
– Podia ter voltado, ter continuado comigo... não éramos casados?
Como pode...
– Julia... – Ele desvia o olhar atormentado.
De repente eu sinto que tem mais.
– Meu Deus, Ian! O que aconteceu com nosso casamento?
– Nós não estávamos mais casados quando sofreu o acidente.
Eu paro de respirar.
– Não? Mas...
– Nós estávamos divorciados há alguns meses. Satisfeita?
Eu me sento trêmula e ainda mais perdida. Minha mente dá voltas.
Eu não só tinha me esquecido do nosso casamento, como também do
divórcio.
– Por quê? – Indago.
Eu podia entender completamente ter me apaixonado por Ian a ponto
de ter casado com ele tão jovem. Só não conseguia me imaginar abrindo mão
dele.
A não ser por um motivo muito forte.
Como este agora. Que me fazia questionar que tipo de homem ele era
para ser capaz de fazer aquilo comigo.
– Não deu certo.
– Não deu certo? Simples assim?
– Éramos muito jovens... estas coisas acontecem – sua voz é séria,
assim como sua expressão.
– E você achou que era motivo para fingir que não existia quando eu
tive amnésia?
– Foi seu cérebro que escolheu esquecer.
– Não tenho culpa.
– Não?
– Está me culpando?
– Estou dizendo a verdade, como está exigindo. Nós nos casamos.
Nos separamos. Você sofreu o acidente. Esqueceu tudo.
– E aí você decidiu que era mais fácil deixar assim?
– Que diferença faria para você?
– Para você muita, não é? Pôde sair deitando e rolando com a Susan
sem a ex idiota no caminho...
– Deixe a Susan fora disto.
– Oh meu Deus, então foi este o motivo? – Minha mente se enche de
terríveis desconfianças. – Nós nos separamos por causa dela? Você estava
tendo um caso ou algo do tipo...
– Não seja absurda. Eu nunca tive nada com a Susan. Não naquela
época. Nunca quando estávamos juntos.
Não sei se devo acreditar nele.
Como posso acreditar em qualquer palavra que saia da sua boca?
Eu me sinto enojada. Enjoada por tanta mentira.
Ian não tinha o direito de me roubar dois anos de memórias. Nem que
fossem as piores possíveis. Um casamento desfeito...
Eu ainda queria desesperadamente saber detalhes... Porque nem tudo
deve ter sido ruim. Inferno, eu nem consigo imaginar eu e Ian não nos
amando...
Algo aconteceu... Algo nos separou. Algo o fez preferir sumir da
minha vida. Enterrar nossa história. E teria ficado enterrada para sempre se eu
não tivesse voltado a Beaverton. E o reencontrado.
E agora estávamos casados de novo.
– Por que nos casamos novamente, Ian?
Não faz o menor sentido...
– Porque eu queria uma segunda chance.
Ele responde simplesmente. Como se fosse algo óbvio e certo.
Não era.
Era inescrupuloso. Horrível. Infame.
Odioso.
– Simples assim? Depois de tudo, depois de, Deus sabe por que nos
separamos, de eu esquecer você num acidente... de você escolher sem o meu
consentimento que eu nunca deveria saber do nosso relacionamento
anterior... você simplesmente achou que íamos voltar e tudo ia ficar bem? Ia
mentir eternamente. Todos vocês iriam, é isto?
Ele não precisa responder para eu saber qual a verdade.
– Julia?
Eu me viro e vejo Jack.
Seu rosto é de pura culpa.
– Você está bem?
– Você me enganou também – afirmo, me sentindo mais traída do que
nunca.
Porque era meu pai. E havia me deixado no escuro.
– Contou a ela? Disse que nunca iria contar... – ele acusa Ian.
Não me importa mais.
– Como pôde? Como pôde concordar com esta farsa horrível?
– Eu não queria que sofresse...
– Você não tinha o direito! – Meus gritos aterrorizam meus próprios
ouvidos. – Não tinham o direito! Era minha vida! Ninguém podia decidir por
mim!
– Jules...
– Não posso acreditar que justamente você tenha feito isto comigo!
Deus do céu... todo mundo... Chris... até o Chris...
– Jules, querida, nós achamos que seria o melhor a fazer...
– Não me interessa! O que fizeram foi monstruoso! E eu odeio todos
vocês!
Antes que tentem me impedir eu saio pelas portas de vidro. Corro
pelo jardim dos Callaghan. Posso ouvir chamarem meu nome, continuo
correndo.
Chego ao chalé e subo direto para o quarto. Pego a primeira mala que
aparece e começo a colocar minhas roupas nela de qualquer jeito. Mal
consigo enxergar através das lágrimas.
Minhas mãos tremem.
Eu quero apenas fugir.
Escuto passos e levanto o olhar, achando que verei Ian, mas é Chris
que está na minha frente.
– Jules...
Sem pensar eu me aproximo e bato com força em seu rosto.
Ele não reage.
– De todas as pessoas que me enganaram, nunca poderia esperar isto
de você.
– Eu fiz para o seu bem...
– Bem? Bem? Acha que estou bem agora? Qual era o seu motivo?
Ficou feliz porque eu não me lembrava mais do Ian? Eu nem sei quem odeio
mais!
Volto a fazer minhas malas ignorando meu choro convulsivo.
– O que faz aqui?
Ian entra no quarto e eu percebo vagamente que ele está furioso por
ver Chris.
Não me importa. Eles podem se matar.
Eu talvez até ficasse feliz se acontecesse.
Eles eram dois mentirosos nojentos.
– Jack me ligou... contou que ela podia ter descoberto...
– Vá embora, Chris.
– Qual é? Eu me preocupo com ela também... a culpa é toda sua! Se
não tivesse decidido ficar com ela outra vez, se tivesse ficado longe como
prometeu...
– Aí seria você a estar com ela, não é?
– Chega! – Grito e eles se calam, me encarando. – Não percebem o
quão ridículos vocês estão aí, discutindo como se eu não tivesse vontade
alguma? Eu não quero saber de nenhum dos dois. Nunca mais.
Eu pego minha mala.
– Julia, aonde vai? – Ian pergunta apreensivo.
– Vou embora.
– Não pode fazer isto.
– Não? Achou o quê? Eu não tenho como te perdoar, Ian. Não tenho
como aceitar o que fez. Foi odioso demais! Você escolheu sumir da minha
vida da primeira vez, agora quem escolhe sumir da sua sou eu!
– Eu sei que errei... sei que não entende... – ele olha pra Chris, e por
um momento eu eles parecem se entender. – Não quero que sofra, nunca quis
que sofresse... tudo o que eu fiz... foi acreditando que era o melhor para
você...
– Acha que eu acredito? Você disse que nem casados éramos mais!
Então acho que nem se importava! Queria se livrar de mim!
– Não é verdade! Droga, eu te quis de volta... nós estávamos felizes,
Julia.
Eu fecho os olhos. O dor se intensificando. Porque eu sei que ele tem
razão.
Nós estávamos felizes.
E dói saber que nunca mais vai ser assim. Ele tornou impossível.
– A que custo? – Murmuro. – Em cima de mentiras? Não dá mais,
Ian. Eu não confio em você. Sinto que não conheço você. Não posso mais
viver aqui...
Eu saio cambaleando, levando minha mala e meu coração em
pedaços.
Capítulo 16
***
Eu estou morrendo.
Simplesmente não consigo respirar. Um horror infinito me domina.
As palavras de Ian ressoam em meus ouvidos. Embora ainda não façam
sentido. Não podem fazer!
Como assim eu dormi com o Chris?
Fiz sexo com ele? Não é verdade... Não pode ser.
Eu só percebo que estou dizendo estas palavras como uma insana,
quando Ian segura meus braços.
– Julia, esquece! Eu não deveria ter tocado neste assunto – ele parece
mais atormentado do que eu.
– É mentira... está inventando... Eu não posso... eu não iria... Oh meu
Deus!
As lágrimas caem em forma de soluços desesperados.
– Não... Chris... e eu... Não pode ser...
– Julia, por favor, se acalme...
– Então me diz que está mentindo! – Grito, tirando seus braços de
mim. – Diz que está inventando!
– Eu não posso! Acha que eu não gostaria?
– Oh Deus... – cubro o rosto com as mãos. – Para... não quero mais
ouvir... chega!
– Sim, eu não vou dizer mais nada, eu realmente não deveria ter
desenterrado esse assunto!
Eu continuo a chorar.
Sei que Ian está ali me dizendo aquelas coisas horríveis.
Coisas que eu fiz. E nem me lembro.
E mesmo assim me enchem de horror e vergonha.
E dor.
E eu simplesmente não posso mais encará-lo.
– Vai embora, Ian...
– Não posso deixá-la sozinha.
– Por favor...
– Não, Julia. Não vai ficar sozinha.
Então ele me pega no colo e me leva pra fora.
Estou fraca demais pra impedir, ou me incomodar com a chuva, ele
me coloca no carro e entra também, dando partida.
Eu apenas choro todo o percurso até o chalé.
E quando chego lá, estou emocionalmente exausta.
Ian me leva pra dentro e me deixa no banheiro. Liga a torneira da
banheira e um vapor quente enche o lugar enquanto ele tira minhas roupas.
Não me importo. Ele me põe na banheira e sai silenciosamente.
E então eu choro de novo.
Choro por tudo o que eu esqueci. Por tudo o que eu fiz e não me
lembro.
O sofrimento que causei.
Meu coração está despedaçado.
Chris. Meu melhor amigo. Que eu sempre soube que era apaixonado
por mim, cujo amor nunca pude retribuir. Nem antes e nem agora.
Mas houve um momento no tempo. Uma fenda. Algo aconteceu
naqueles dois anos e eu esqueci. Eu fui pra cama com ele. Eu fiz sexo com
ele.
E nem sabia por quê. Ou como. Ou o que havia me motivado.
E pior. Eu tinha traído Ian.
A traição explicava o ódio e o ciúme que Ian nutria por Chris.
Agora eu entendia. Eu sabia.
Provavelmente foi o que acabou com meu casamento. Traição.
Só que algo não se encaixava. Eu estava apaixonada por Ian, não
estava? Como pude dormir com Chris então? Como era possível? Eu queria
desesperadamente lembrar. Eu precisava lembrar.
E ao mesmo tempo eu tinha medo. Medo do que iria descobrir sobre
mim mesma.
Depois de muito tempo eu saio da banheira sentindo-me mais calma.
Amortecida.
Há uma xícara de chá em cima da mesa de cabeceira e uma camisa de
Ian na cama. Eu a visto. Ainda tem seu cheiro o que me faz desejar voltar no
tempo.
Escuto uma batida na porta e Ian entra, me estudando muito sério.
– Está se sentindo bem?
Eu sacudo a cabeça afirmativamente.
– Então durma.
– Mas...
– Eu vou dormir em outro lugar, não se preocupe.
E ele sai do quarto fechando a porta atrás de si.
Eu me deito, sem tocar no chá. Queria apenas dormir e esquecer.
Mas eu sonho.
E desta vez eu me lembro. Tinha uma fogueira e Chris estava lá. E ele
estava me beijando. Acordo de repente com o coração aos pulos e o estômago
embrulhando.
Respiro rápido, arquejante. O bebê se mexe.
Coloco a mão na barriga, querendo que se acalme, querendo me
acalmar também.
É impossível.
O sonho me atormenta porque sei que é algo que está no meu
subconsciente. Sei que é uma lembrança.
Jogo as cobertas para o lado, incapaz de dormir de novo e desço as
escadas.
Preciso comer. Preciso acalmar meu estômago. Ao passar pela sala,
vejo Ian dormindo no sofá. Eu me enrosco na poltrona em frente a ele.
Várias perguntas dançam em minha mente. Eu quero interrogá-lo.
Quero que me conte tudo sobre aquela história sórdida.
O quão injusto seria?
Eu o fiz sofrer. Com certeza. E eu sofria ao pensar nisto.
Penso em Susan. Penso no que eu senti só de imaginar Ian com ela. E
o tempo inteiro, enquanto o acusava, eu tinha minha parcela de culpa. Que
era ainda maior que a dele, provavelmente.
Ian tinha todo o direito de me odiar.
Talvez tivesse me odiado mesmo. No entanto, ele se casou comigo de
novo. Por quê?
– Julia? – Ele abre os olhos, sonolento. – Você está bem?
– Estou com fome – murmuro.
Ele se levanta.
– Eu deveria ter perguntado a você se tinha comido...
– Tudo bem, eu às vezes acordo de madrugada com fome mesmo –
respondo seguindo-o até a cozinha.
– O que quer comer?
– Omelete?
– A esta hora?
Eu dou de ombros.
– É o que estou com vontade de comer.
Ele prepara em silêncio e eu o observo, sentada à mesa, até que ele
coloca a comida no meu prato.
– Obrigada.
Ele fica me vendo comer.
Lembro-me de quando tudo era fácil entre nós. Quando havia risos e
beijos.
Me dá vontade de chorar.
Quando o encaro sei que ele está pensando o mesmo. Talvez esteja
pensando mais além. Esteja pensando no que eu esqueci.
– Eu te traí? – Pergunto num fio de voz. – Eu traí você com Chris?
– Não.
– Não?
– Não foi assim. Não foi uma traição.
Eu quase posso respirar aliviada.
Minha cabeça está a mil por hora.
Então foi depois, me pergunto. Foi depois de me separar de Ian?
Quero perguntar e ao mesmo tempo não quero reabrir essa ferida nele.
Porque, mesmo ele dizendo que não foi uma traição, pelo menos no sentido
literal da palavra, sei que pra Ian tem quase o mesmo peso.
Assim como o fato de ele ter transado com Susan, enquanto nós nem
estávamos juntos, tinha pra mim.
– E por que nos separamos? – indago.
– Eu não sei se devemos falar desse assunto agora, Julia...
– Por que não? Por que todo mundo faz isto comigo?
– Faltam três semanas para o seu parto. Até menos... Quero só me
certificar que ficará tudo bem com você e a nossa filha.
Quero dizer que isto não tem nada a ver com a criança que espero.
Mas imagino que Ian não queira que eu me estresse, será esse o motivo?
Sinto um medo gelado por dentro.
O que ele poderia me dizer que me deixaria tão mal?
– Então há algo pra contar, não é? Algo terrível...
– Julia, não faça isto.
Há angústia em sua voz.
– Então é assim? É este nosso prazo? Até o nascimento?
– Sim, Julia, é.
Eu respiro fundo.
Talvez ele tenha razão. E eu precise daquele tempo. Apenas saber
sobre Chris e eu já me abalara demais.
Eu mal conseguia pensar nisto sem me angustiar.
Saber de toda verdade... seja lá qual for... Coloco a mão sobre minha
barriga, protetoramente. Não posso pensar apenas em mim. Não posso me
envolver em problemas faltando tão pouco para o nascimento de minha filha.
Pensar nela me deixa mais calma. Me traz um pouco de paz.
– Tudo bem – concordo. – Eu vou dormir.
Ian me acompanha até o quarto.
A chuva recomeçou e um trovão sacode as janelas.
– É só chuva, Julia. – Ian diz quase divertido ao ver meu susto.
– Eu sei – digo, me deitando.
De repente eu não quero ficar sozinha.
– Ian – eu o chamo – você pode... ficar comigo?
Ele hesita. Isto dói.
– Sei que é só chuva... acho que estou um pouco sensível.
Ele se aproxima e deita ao meu lado. Quase solto um suspiro de
alívio.
E, por um momento, eu me sinto bem. Tranquila e segura. Ian está
comigo. Depois de tanto tempo. E eu senti falta demais de tê-lo assim, perto
de mim.
Outro raio cai e eu me assusto, coloco a mão na barriga, onde o bebê
se mexe inquieto também.
– Está sentindo algo? – Ian pergunta meio apreensivo.
– Não, acho que ela está com medo da chuva também – respondo.
Então ele me surpreende colocando a mão na minha barriga, me
acariciando devagar.
– Shiii bebê, está tudo bem – sussurra e eu o encaro meio surpresa
com seu tom carinhoso.
– Você gosta mesmo da bebê?
– Claro que sim.
– Você ficou bravo por saber que eu estava grávida. Não queria que
acontecesse!
– Você entendeu tudo errado... claro que eu já a amo. É minha filha,
Julia. Eu apenas... Me enfureceu saber que ficou sozinha todo este tempo.
Podia estar aqui, podia estar sendo cuidada, se acontecesse algo...
– Eu pensei em te ligar e contar várias vezes... – murmuro culpada,
me recordando dos meses sozinha. – Eu estava com tanto rancor, tanta raiva.
– Eu sei. Mesmo assim deveria ter me contado. Não precisaria passar
pela gravidez sozinha. Mesmo que não estivéssemos juntos... Ainda havia
Jack.
– Eu sei... sei que fui imatura. O importante é que agora estou aqui –
eu o encaro. – Me desculpe por mantê-lo afastado. Eu não tinha o direito.
– Tudo bem Julia, durma.
– Vai ficar comigo? – Indago sonolenta, fechando os olhos. Meus
dedos tocam sua mão que ainda está na minha barriga, quero que permaneça
ali.
– Eu não vou a lugar nenhum.
– Eu senti sua falta, Ian – confesso então, entre o sono e a vigília –
todos os dias...
E a última coisa que sinto antes de dormir são seus lábios em minha
testa.
Capítulo 20
***
***
***
***
Iam sabe?
Eu o encaro chocada e me afasto.
– Sabe?
– Chris me contou. Depois do acidente.
– Então o tempo inteiro...
– Sim. Eu sabia Julia.
– Eu sinto muito... no começo eu não achava... depois... eu deveria ter
contado, então ele se foi... E eu não consegui aguentar... – começo a chorar
de novo, imaginando o que ele deve ter sentido ao saber pela boca de Chris.
Não foi justo.
E a culpa era inteiramente minha.
– Deve me odiar. Entendo agora porque quis que eu fosse embora,
porque não quis me contar nada sobre nossa vida juntos...
– Eu me senti um pouco traído sim, eu amava aquele bebê, não era
justo Chris roubá-lo de mim.
– Eu não sei nem por onde começar a te pedir desculpas – digo
desolada. – Eu devia ter contado com a possibilidade do bebê ser de Chris
desde o começo, sinceramente, eu nem me lembrava... – fico vermelha e
desvio o olhar. – Da noite que passamos juntos. Ele me garantiu que não
havia perigo e mentiu. Eu só comecei a desconfiar quando Mason nasceu...
depois ele ficou doente... – respiro fundo, tentando não sentir aquela mesma
dor de outrora. É bem difícil. – A certeza só veio quando ele morreu. E era
tarde. Como é que eu podia tirar a memória dele de você?
– Podia ter me contado Julia.
– Eu não podia. Você iria me odiar...
– Nosso casamento acabou de qualquer maneira, não é? Se tivesse me
dito a verdade, talvez...
Fecho os olhos. Dor e arrependimento me consumindo.
Tanta coisa eu tinha feito errado.
Ian também tinha errado, eu abro os olhos fitando-o com pesar.
– Do mesmo jeito que devia ter me contado toda nossa história
quando nos reencontramos – sussurro.
Ian passa a mão pelos cabelos.
Ficamos em silêncio por um longo tempo, enquanto o dia amanhece
lá fora.
Ainda chove.
– Quero visitar Mason – digo de repente, me levantando.
– Julia... – Ian me encara preocupado.
– Eu estou calma. – garanto.
Ele assente por fim e sai do quarto.
– Vou ligar para minha família e acalmá-los. Tem certeza que está
bem?
Passo os dedos por minha barriga saliente.
Sinto um arrepio de medo.
Quero que London esteja bem. Eu preciso que esteja. Não conseguirei
lidar com outra perda.
– Sim, estou bem – respondo.
– Você precisa comer. Coloque roupas quentes se vai sair no jardim.
Ele sai do quarto e eu tomo um banho e coloco roupas quentes.
Minha barriga parece enorme agora e eu passo os dedos pela
saliência. Faço uma prece silenciosa para minha filha que ainda nem nasceu.
Porque é a única coisa que interessa agora.
As pequenas rosas sumiram, é a primeira coisa que noto ao chegar ao
jardim.
Agora o túmulo está à vista. Sinto um aperto no peito. Quanto tempo
eu passei sem saber? Minha mente o havia esquecido.
O deixara para trás.
– Como pude esquecê-lo? Esquecer-me do meu próprio filho? –
Pergunto para mim mesma.
– Foi uma fatalidade.
Olho para trás e vejo Chris.
Nós ficamos em silêncio em frente ao túmulo de Mason.
E noto que é a primeira vez que o partilhamos.
Parece estranho e triste que seja assim.
– Eu não devia tê-lo escondido de você – digo.
– Talvez não. Todos nós erramos Julia. E você fez o que achava certo
naquele momento.
– Eu tinha medo de perder o Ian.
– Eu sei.
– E também não queria tirar Mason dele. Você entende?
– Sim, eu entendo. Não se culpe. Está tudo no passado agora. Eu
fico... feliz que ele tenha tido um pai como Ian. Ian foi o pai dele enquanto
viveu.
– As coisas podiam ter sido diferentes.
– Como? Você sabe que talvez tivesse sido bem pior com a verdade,
Jules. Nunca deveríamos ter transado naquela noite, hoje eu vejo o quanto eu
fui imaturo e egoísta. Você estava bêbada e eu fui irresponsável. Acho que
queria que se apaixonasse por mim. E no fim... Não dá pra forçar, não é?
– Eu sinto muito.
– Não sinta. Você vai ter um bebê. Acho que chegou a hora de
finalmente as coisas darem certo pra você.
Coloco a mão na minha barriga.
Sim, tudo parece tão certo quando penso em London.
Mason nunca será esquecido e eu tenho uma razão para seguir em
frente.
– Sim, está certo.
– Eu vou embora. Acho que já abusei demais da paciência do
Callaghan.
Eu olho pra trás e vejo que Ian está a alguns passos de distância,
dando-me privacidade para conversar com Chris.
Chris acena e se afasta.
– Ei, Chris...
– Sim?
– Ainda somos amigos?
– Claro. Pra sempre, Jules.
Eu sorrio, enquanto ele se afasta.
E depois sinto Ian se aproximando.
– Tudo bem?
Eu dou de ombros.
– Não sei ainda. É dolorido estar aqui, lembrar dele... – mordo os
lábios. – Acho que é difícil pra você, me ver aqui com Chris, me desculpe.
– Julia, eu tive dois anos pra superar.
– Superou?
– Eu entendi suas razões.
– E sua família? Eles... sabem? Meu pai...?
– Sim, eu e Chris contamos a todos.
– Todo mundo me odiou, não é?
– Foi difícil entender, porém, todos seguimos em frente, Julia. E nada
mudou o que sentimos por Mason. Pra nós, ele será sempre o mesmo bebê.
Ninguém deixou de amá-lo.
– Nem você?
– Nunca. Ele era meu filho, mesmo que não biologicamente.
Eu seguro sua mão com força.
– Eu queria realmente que ele fosse nosso...
– Ele era nosso, Julia. Assim como nossa filha que vai nascer.
– Eu tenho medo, Ian... Se acontecer algo com ela...
– Não vai acontecer. Ela é saudável. – Ian me garante, uma mão em
meu rosto e outra em minha barriga. – Ela vai nascer linda como você. E
vamos criá-la com todo amor que não pudemos dar a Mason.
– Nós vamos ficar juntos? – Pergunto baixinho.
Ele sorri.
Lindo.
E é como voltar no tempo.
Como minha primeira lembrança dele.
– Não está sozinha. Nunca esteve.
Ian segura minha mão, me puxando gentilmente para a manhã fria.
Ainda há muitas dúvidas, muita dor.
Não sei o que o futuro nos reserva, mas entrelaço meus dedos nos
dele e me deixo guiar até nossa casa.
Juntos. Como tem que ser.
Epílogo
Fim
Parte I
Esquecimento
Um
Escuridão.
Por que tudo estava tão escuro? Abri os olhos e por um instante
pontos negros contrastaram com a luz muito brilhante. Pisquei desorientada,
lutando contra a dor na têmpora que aquela luz me causava.
Movi-me, e tudo doeu.
Serrei as pálpebras com força gemendo e de repente ouvi uma
movimentação ao meu redor. Voltei a abrir os olhos e dessa vez consegui
focalizar além da luz forte. Um teto branco e limpo.
Virei a cabeça, ainda sentindo as leves pontadas, e paredes brancas
me cercavam. Respirei uma longa golfada de ar e senti o cheiro de éter
inconfundível de um hospital.
Hospital?
O que eu estava fazendo em um hospital?
— Ella?
Minha atenção foi capturada por uma voz desconhecida a minha
direita. Alguns passos foram dados em minha direção até que um homem de
jaleco branco se colocou no meu campo de visão.
— Como se sente?
O médico colocou uma lanterna nos meus olhos e gemi virando a
cabeça.
— O que... — minha voz saiu pastosa e grossa, como se eu não a
usasse há muito tempo e minha garganta queimou, mas forcei a fala. — Onde
estou?
— Em um hospital.
— Por quê? — Tentei me lembrar... O que teria acontecido para eu
estar num hospital?
— Não se lembra?
Ele continuou a me examinar, passando um negócio gelado por meu
pé, que me fez encolher a perna, me surpreendendo com a dor de novo. Eu
me sentia como se tivesse levado uma surra.
— Ella, preciso que me diga o que se lembra.
Fechei os olhos e puxei minha memória. Comecei a ficar seriamente
perturbada. Eu sabia que meu nome era Ella Brooke. Morava em Aberdeen
com meus pais. Tinha dezoito anos e estava me formando no Aberdeen High
School. E a última coisa que me lembrava...
— Uma entrevista de emprego — lembrei de repente. — Eu estava
viajando de carro para fazer um teste. Estava chovendo... — Soltei um
gemido, a dor de cabeça se intensificando enquanto eu tentava lembrar mais
coisas sem conseguir — Eu sofri um acidente? — indaguei começando a
entender.
— Sim, sofreu.
— Ah não! — Isso queria dizer que eu estava terrivelmente atrasada.
— Eu tenho que ir... — balbuciei tentando levantar, mas minha cabeça
rodopiou e caí de novo ao mesmo tempo que o médico me pressionava contra
a cama — Tenho que fazer a entrevista...
— Não se mova. Seus ferimentos externos não foram graves, mas
ainda está bastante dolorida e com algumas contusões.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Três dias.
— O quê? — gritei. Ou era para ser um grito, porém não passou de
um sussurro engasgado.
— Não fique agitada. Vou fazer algumas perguntas, pode me
responder?
— E minha família? — Preocupei-me com o estado que meus pais
deviam ter ficado. Minha mãe estaria louca.
— Não se preocupe com isto. Ele está aí fora.
— Toby? — Pensei que meu namorado também devia estar
preocupado.
O médico pareceu confuso.
— Apenas responda às perguntas.
Respirei fundo tentando ficar calma.
— Tudo bem.
— Qual o seu nome?
— Ella Marie Brooke.
— Onde você mora, Ella?
Ele perguntou meu endereço e eu dei o dos meus pais, em Aberdeen.
Perguntava-me agora se eu ainda teria chance de mudar meu endereço para
Seattle, como vinha sonhando desde que fora chamada para a entrevista de
emprego na St. James Corporation. Era apenas um cargo de recepcionista,
mas o salário era muito bom e eu poderia me mudar para Seattle. Meu pai
não estava muito feliz com isso. Ele queria que eu fizesse faculdade, mas
além de não termos dinheiro suficiente para ir a Yale como ele sonhara, eu
também não estava certa que carreira queria seguir.
E não via problema nenhum nisso. Eu era jovem e tinha todo o tempo
do mundo para me decidir.
O médico perguntou quem são meus pais e onde estudei e comecei a
ficar impaciente com aquele monte de pergunta besta.
— Para onde estava indo quando sofreu o acidente?
— Eu já disse! Uma entrevista de emprego... Eu tinha que estar lá,
senão... Oh droga, devo ter perdido a chance de conseguir o trabalho! —
murmurei angustiada.
O médico me fitou com um olhar preocupado.
— Ella, em que ano nós estamos?
Oh Deus. O que aquele médico estava pensando? Que eu era uma
louca ou algo assim?
— 2012 — respondi sem pestanejar.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes, depois retirou os óculos e
escreveu algo em sua prancheta, com o semblante muito grave.
— Quando eu vou poder sair daqui? — insisti impaciente.
— Ainda teremos que fazer alguns exames e... — Antes que ele
terminasse, a porta do quarto se abriu e alguém entrou.
— Ella!
A voz desconhecida tinha um tom ao mesmo tempo preocupado e
aliviado. Os passos se aproximaram da cama e eu o vi. Ele me fitava com um
olhar que condizia com sua voz. Alívio e preocupação toldavam os olhos
verdes e seu rosto cansado tinha uma barba por fazer de dias, talvez, eu
calculei. Os cabelos escuros estavam bagunçados como se tivessem sido
castigados por dedos impacientes e sua roupa amarrotada parecia que não era
trocada há dias. E ele me olhava como se me conhecesse. E me chamara pelo
nome, mas...
— Quem é você?
O desconhecido riu. Era um riso grave e bonito. Mesmo estando
contundida e confusa eu tive que reconhecer.
— Ella? — Ele estendeu a mão para tocar a minha, mas a puxei,
assustada, encarando o médico que suspirou tocando o braço do estranho.
— Preciso falar com você. Melhor deixá-la descansar.
— Mas... Ela está bem? — O estranho indagou ao médico me
encarando sem mais o olhar de alívio. Agora era pura preocupação.
— Lá fora.
O estranho parecia que não ia ceder. Passou os dedos pelos cabelos,
exasperado e então, lançando-me um último olhar consternado, seguiu o
médico.
Assim que saíram, me senti estranhamente só. E ao mesmo tempo
aliviada. Quem era aquele cara? Eu devia conhecê-lo? Claro que não. Nunca
o tinha visto na vida.
Fechei os olhos, sentindo-me impaciente e aflita. Precisava ver um
rosto conhecido. Qualquer um servia. Meu pai, minha mãe, Toby, quem quer
que fosse. Alguém para me explicar o que diabos estava acontecendo.
Apesar de toda impaciência, acho que acabei adormecendo, pois
despertei com o quarto envolvido em uma suave penumbra.
Alguém se movimentou do meu lado.
— Ella?
Era ele. O estranho bonito de cabelos escuros. O que ele estava
fazendo ali ainda? Eu gemi quando uma pontada de dor traspassou minha
cabeça.
— Está sentindo dor? Vou chamar o médico...
— Não... Eu só... Será que poderia dizer quem é você?
Ele aproximou-se da cama. Era alto. E parecia maior ainda parado ali
enquanto eu permanecia indefesa. Quase ri desse pensamento.
— Você realmente... Não se lembra?
Havia dor na sua voz? Ou era impressão minha?
— Me lembro do quê?
— O médico me disse que você não se lembrava...
— Do que eu tenho que me lembrar?
— De mim. — Seus olhos sondaram meu rosto com uma expressão
angustiada.
Oh Deus. Será que havia alguma ala psiquiátrica no hospital e ele
tinha fugido de lá?
— Olha, não sei quem é você, ou o que está fazendo aqui, mas parece
uma boa ideia chamar o médico agora... ou melhor, deve ter alguém da minha
família aqui ou o Toby...
— Sua família não está aqui, Ella. Nem o… Toby. — Sua voz se
tornou sombria.
— Por que não? O médico disse que estou aqui há três dias!
— Sim, está.
— Eles não sabem que eu acordei? É isso?
— Ella, me escuta. Você precisa entender... As coisas que se lembra,
ou melhor, que não se lembra...
Comecei a ficar verdadeiramente irritada.
— Escuta você... Será que pode me deixar em paz? Chama o médico,
por favor...
— Ella...
Ele tentou tocar minha testa, mas dei um tapa na sua mão.
— Não põe a mão em mim!
Ele parecia irritado agora também. Mais que isso. Parecia estar
sofrendo. E algo dentro de mim se agitou. Culpa? Eu nem o conhecia,
caramba! Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Olha, me desculpa. Não queria ser rude, mas isso tudo está muito
esquisito e estou ficando com medo! Não gosto nem um pouco desse tipo de
situação que me deixa no escuro!
— Eu sei. — Ele sorriu, para meu assombro.
Talvez não fosse um maluco perigoso. Talvez se conversasse
educadamente, me deixasse em paz. Seja lá quem fosse.
— Qual seu nome?
— Luke.
— Certo. Luke. — O nome não me dizia nada. — Será que poderia
chamar o médico para mim?
— Sim, eu irei. Mas antes precisamos conversar. Quero ter certeza...
Do quanto você não se lembra.
Eu revirei os olhos impaciente. De novo aquela história?
— Por que insiste nisso?
— Porque você realmente esqueceu.
— Esqueci do quê?
Ele respirou fundo.
— Ella... Se eu te dissesse que essa não é a primeira vez que nos
vimos?
— Eu diria que você é maluco, eu nunca te vi antes.
— Mas nós nos vimos.
— É alguma piada?
— Quem dera que fosse... — Ele passou os dedos pelos cabelos, com
um sorriso sem humor.
— Certo. Então, segundo você, nós nos conhecemos?
— Sim.
— E por que eu não me lembro de você?
— Porque, segundo o médico, está com alguma espécie de amnésia.
Eu ri. Mas ele permaneceu sério.
— Está brincando, não é?
— Não, não estou.
— Não pode ser verdade! — Droga, eu não poderia estar acreditando
nele. Era surreal demais.
— Ella, quando o médico perguntou em que ano estávamos você
respondeu...
— 2012.
— Nós não estamos em 2012.
— Ah não?
— Não.
— Certo, em que ano nós estamos então?
— Já se passaram sete anos.
— Você é mesmo maluco — murmurei.
Mas em resposta ele se levantou, pegou um jornal esquecido em cima
de uma mesa e colocou na minha frente. Eu olhei a data e senti uma vertigem.
Não podia ser!
Eu o encarei, empalidecendo.
— Mas como...
— Ella, você esqueceu sete anos da sua vida.
Engoli em seco. Começando a acreditar em tudo aquilo. Por mais
bizarro que fosse.
Sete anos.
Sete anos!
Meu estômago começou a revirar e minha cabeça a doer em busca de
respostas.
— Eu não estava indo fazer a entrevista?...
— Não. Você estava dirigindo, mas não era a entrevista.
— O que aconteceu?
— Você bateu o carro.
— E fiquei em coma...
— Três dias.
Fechei os olhos com força, tentando conter o nó na minha garganta e
o apavoramento que ameaçava me engolfar. E quando o abri, o encarei com
uma nova ótica.
— Nós realmente nos conhecemos?
— Sim.
— Há quanto tempo?
— Sete anos.
— Sete anos... — Eu o conhecia há sete anos e não me lembrava. Era
simplesmente surreal demais para mim.
— E o que você significa... para mim? — sussurrei, como se resposta
estivesse em mim mesma. Mas dentro de mim era só o vazio. Não havia
nada.
— Isso, teremos que descobrir — ele disse suavemente.
E me senti de novo sendo tragada pela escuridão.
Dois
Quando eu acordei, Luke St. James não estava mais no quarto. Outra
enfermeira sorridente apareceu e abriu as cortinas. O dia estava chuvoso e
frio. Nova York, pensei com desgosto. Ainda queria saber o que eu estava
fazendo ali. Mais uma pergunta para quando Luke aparecesse.
E se Luke não voltasse? Isso me deixou com certo pavor. Eu podia
não me lembrar dele, mas atualmente era a única pessoa que podia me ajudar.
Era só por esse motivo que estava sentindo aquele vazio ao pensar que ele
poderia desaparecer para sempre.
Mas nós tínhamos “algo”. Ele mesmo afirmou. Me senti curiosa. Será
que eu me lembraria de tudo?
Algum tempo depois, o médico entrou para me examinar e me fez
várias perguntas para as quais eu não tinha resposta.
— Ainda nada, não é? — Eu me senti desanimada.
— Precisa ter paciência e não ficar ansiosa.
— Como se fosse fácil ...
A enfermeira entrou logo em seguida e eu perguntei se poderia
colocar alguma roupa e sair da cama.
— Sim, acho que posso ajudá-la.
Ela saiu do quarto e retornou com uma mala contendo algumas coisas
e eu sinceramente não me lembrava de nada daquilo. Sim, pareciam as roupas
que eu usava. Mas não eram as mesmas, definitivamente. Claro que eu não
teria as mesmas roupas de sete anos atrás, pensei irônica, fazendo uma careta
de dor, enquanto ela me ajudava a vesti-las. E depois me deu um espelho.
— Talvez queira arrumar os cabelos.
Eu nunca fui muito ligada em aparência nem nada disso, mas estava
meio ansiosa quando peguei o espelho e dei um suspiro de alívio ao ver que
eu não tinha mudado absolutamente nada. Até meus cabelos continuavam os
mesmos, talvez um pouco mais compridos.
— Não mudei nada — murmurei como se fosse para mim mesma,
tentando ajeitar as ondas do meu cabelo castanho ondulado.
— Não mesmo.
Levantei a cabeça assustada ao ouvir a voz inconfundível. Luke me
fitava com um sorriso contido.
Eu fiquei vermelha.
— Oi — falei meio apalermada dando o espelho para a enfermeira.
— Oi, Ella.
— Onde estava? — Oh droga, estava mesmo o questionando? De
onde saíra aquilo?
— Precisava resolver umas coisas, mas planejava estar aqui quando
você acordasse.
— Claro que sim. Deve ter uma vida. Não precisa ficar me pajeando
vinte e quatro horas por dia.
— Vejo que encontrou suas roupas.
— Sim, embora não pareça minhas roupas.
A enfermeira aproximou-se novamente.
— Você disse que gostaria de sair da cama.
— Eu queria mesmo. Sinto-me uma inválida deitada aqui.
A enfermeira se posicionou para me ajudar, mas Luke a dispensou.
— Deixe que eu a ajudo.
Luke me pegou no colo e meu rosto ficou a centímetros do dele. Ele
tinha olhos verdadeiramente lindos.
Passei o braço em volta do seu pescoço, para minha surpresa,
apreciando aquele contato.
Era tão... natural. Quase fácil demais, ficar ali, fitando seu rosto tão
próximo do meu, seus braços em volta de mim. E de repente sentir um calor
repentino se espalhando por meu corpo e uma fraqueza quase absurda. Mas
durou muito pouco, ele me colocou no sofá e voltei a sentir frio. Estremeci.
— Está com frio?
Sacudi a cabeça afirmativamente.
— Não gosto muito de frio... Estamos no inverno? — Era estranho
não saber nem em que estação do ano estávamos.
— No outono.
— Preciso te fazer algumas perguntas.
— Se eu puder responder...
— Como assim "se puder responder"?
— Eu conversei com o médico, e ele acha que você ainda está
bastante confusa e se encher sua cabeça com muita informação de uma vez
pode ser pior.
— Isso e ridículo! Eu preciso saber!
— Você precisa lembrar.
— Quer dizer que ficarei no escuro até que me lembre, é isso?
— Não, eu ajudarei você a lembrar.
Isso me deixou frustrada, mas tentei me controlar.
— Certo. Então vamos ver o que pode me responder.
— Pergunte.
— Por acaso nosso relacionamento é... — Sabia que estava ficando
vermelha e me senti ridícula, mas tinha que perguntar — relacionamento
amoroso?
Luke fitou o chão por alguns minutos, o rosto pensativo e então me
encarou muito sério.
— Como você se sente sobre isso?
Oh. Então a resposta era mesmo afirmativa?
— Muito estranha. Eu não conheço você. Na minha mente eu ainda
estou namorando outro pessoa — murmurei me lembrando de Toby.
O que teria acontecido com ele nesses sete anos? Há quanto tempo
não estávamos mais juntos? Quando foi que eu o troquei por esse cara na
minha frente? Se é que eu tinha pulado de um para o outro. Poderia ter vários
outros caras no meio da história.
Esse pensamento me perturbou e sacudi a cabeça para afastá-lo. Já
bastava ter que lidar com Luke. Não dava para lidar no momento com mais
gente desconhecida. Eu queria perguntar para ele sobre Toby, mas me calei.
Ele estava bem sério me fitando daquele jeito que parecia estar com o peso do
mundo nas costas.
— E nós trabalhamos juntos na St. James?
— Sim.
— E você é um St. James, então... — Tento me lembrar o que tinha
pesquisado sobre a empresa na internet. O CEO era Anthony St. James.
Lembro de ter ficado impressionada com sua foto. Era um homem distinto de
cinquenta e poucos anos muito bonito.
Será que Luke era parente de Anthony?
— Sim, eu sou um St. James — Luke respondeu pacientemente
esperando que eu concluísse meu pensamento.
Era quase como se esperasse que eu achasse as respostas dentro de
mim. Mas não havia nada na minha mente, por mais que tentasse.
— Eu me lembro de ter pesquisado sobre Anthony St. James...
— Sim, meu pai.
— Oh — Fiquei impressionada. Então Luke era o filho do dono da
empresa. Como diabos eu tinha me envolvido com ele? — E nós... Bem, eu
me lembro que eu realmente tinha um namorado. Então como foi que isso...
— fiz um gesto abrangendo nós dois — aconteceu?
Ele não respondeu.
— Oh, pergunta proibida? Você não está ajudando muito!
— Eu vou responder suas perguntas, se você não se lembrar.
— E qual é o meu prazo?
— Até sair do hospital.
— Quando vou sair daqui? — Eu me enchi de esperança.
— Talvez alguns dias.
— Ainda bem!
De repente um celular tocou. Ele pegou do bolso e franziu a testa.
— Me desculpe, preciso atender.
Saiu do quarto e eu mordi a língua, louca de vontade de perguntar
quem era. Mas ele voltou rapidamente. Parecia... tenso.
— Eu preciso ir.
— Claro. — Tentei parecer despreocupada e refrear a vontade de
implorar para ele ficar.
Eu não me lembrava de ser tão carente antes. Será que eu era assim
agora, ou apenas por causa da situação que vivia?
— Você ficará bem?
— Tão bem quanto uma pessoa que não lembra de nada pode ficar —
respondi triste.
— Eu voltarei à noite.
— Não precisa — respondi rápido.
— Ella... — Ele parecia estar prestes a repreender uma criança.
— É sério, Luke. Não precisa ficar aqui me vigiando. Eu ficarei bem.
“Tentando forçar a minha mente lembrar onde você se encaixa na
minha vida, já que não quer me dizer!”, pensei um tanto frustrada.
— Certo. — Ele olhou o relógio. — Eu voltarei amanhã, tenho
mesmo que trabalhar...
— Trabalhar? Aqui em Nova York? — Eu me senti curiosa.
— Sim. Agora eu preciso mesmo ir.
E sem aviso, ele se inclinou e beijou minha testa. Foi rápido e
inesperado. Fechei os olhos na fração de segundos que durou o contato de
seus lábios contra minha pele e quando abri, Luke já tinha desaparecido.
Sinopse
Até onde o amor nos faz ser cúmplices das coisas mais terríveis?
Vista de fora, a vida de Ana e Gael parecia muito próxima da ideal: a casa perfeita,
em frente à praia, planejada com esmero por ele; os dias sossegados de uma família um
tanto introspectiva, mas íntima. A antiga atração irresistível que sentiam um pelo outro
havia se transformado em algo muito diferente. Tão imprevisíveis quanto os humores do
mar, as circunstâncias haviam exigido deles a maior das intimidades. Juntos,
compartilhavam um grande segredo. Toda essa suposta tranquilidade foi imediatamente
abalada com a chegada de misteriosos vizinhos.
Desde que Ana avistara aquela mulher desconhecida aos prantos na praia, o castelo
de areia que havia construído para si começou a desmoronar. O mar revolto e impetuoso de
que tinha tanto medo desde criança agora lhe cobrava que verdades assustadoras fossem
reveladas. Não havia mais como fugir.
Sobre a autora
Juliana Dantas – Leitora voraz de romances, trabalhou durante anos em uma grande
rede de livrarias, onde teve a oportunidade de se dedicar à sua grande paixão: os livros.
Envolveu-se com a escrita em 2006, escrevendo fanfics dos seus seriados e livros
preferidos. Estreou na Amazon em 2016 e hoje conta com 28 títulos na plataforma Kindle
e livros publicados pela Editora Pandorga e Volúpia Editora. Em 2019 lançará um livro
inédito pelo selo Harlequin, da Editora Harper Collins e continuará se dedicando
integralmente a escrita enquanto planeja viagens pelo mundo, sua outra grande paixão.
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