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Box

Romances Inesquecíveis
Cinzas do Passado
Linha da Vida
Segredos que Ferem

Com três capítulos de degustação do futuro lançamento


O que escolhemos esquecer
Nota da autora

Quem está familiarizado com meus livros sabe que minha escrita
transita entre alguns estilos de romance e já me arrisquei no erótico, na
comédia e no drama.
Eu adoro escrever livros diferentes, porque gosto de ler todos
esses tipos de romances e meu estilo como leitora acaba refletindo quem
eu sou como escritora.
Porém, acho que nos dramas onde segredos são revelados e
reviravoltas intensas acontecem, surpreendendo o leitor, é onde eu me
satisfaço mais como escritora. Simplesmente amo imaginar as reações dos
leitores ao serem surpreendidos!
Neste box eu reúno três dos meus romances cheios de segredos e
também ofereço a vocês três capítulos de um próximo lançamento que
segue o mesmo estilo “O que escolhemos esquecer”.
E se você curte este tipo de história, não deixe de conferir minha
estreia na Harlequin com o romance “No silêncio do Mar”, que já está em
pré-venda na Amazon, tanto o livro físico como o e-book.
Boa leitura!

Juliana Dantas
Cinzas do Passado

A família King está de volta à cidade.


E Evangeline percebe rapidamente que mesmo depois de dez anos,
todos eles ainda a odeiam. Principalmente Matthew.
Mas ela guarda um segredo que pode mudar tudo.
Quando o passado retorna, nenhum segredo está a salvo.

Linha da Vida
Ainda muito jovens, Thomas e Liz se conheceram e viveram uma
paixão intensa que não acabou nada bem.
Oito anos depois, eles se encontram de novo, nos corredores do
Chicago Mercy, onde agora o sexy Dr. Thomas Hardy será chefe da recém
formada Dra. Liz Spencer.
O que nenhum dos dois têm ideia é que há muito mais entre eles do
que uma paixão mal resolvida que ainda faz faíscas voarem.
Um segredo muito bem guardado por oito anos está prestes a vir à
tona. Algo que mudará a vida de todos drasticamente.
Às vezes a vida nos brinda com uma segunda chance.
Às vezes esta segunda chance é tudo o que uma vida precisa para não
desaparecer.

Segredos que Ferem


“Ás vezes os segredos são tão terríveis que escondemos até de nós
mesmos”
Depois de passar dois anos estudando em outro país, Julia volta a sua
cidade natal e em uma caminhada solitária, ela encontra um lindo refúgio e
Ian Callahgan. A atração que Julia sente pelo bonito estranho é imediata e
irresistível, como se já se conhecessem de outras vidas.
Mas ela não entende por que todos na cidade, incluindo seu pai e seus
amigos, desaprovam sua paixão por Ian. E porque o próprio Ian, apesar de se
sentir atraído da mesma forma, insiste em se manter afastado.
Qual o segredo guardado que todos parecem saber, menos ela?
E como culpar Ian, quando ela mesma guarda segredos tão terríveis,
que não ousa contar nem a si mesma?
Copyright © 2017 Por Juliana Dantas

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eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia autorização por escrito do autor,
exceto no caso de breves citações incluídas em revisões críticas e alguns
outros usos não comerciais permitidos pela lei de direitos autorais.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares,


negócios, eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação do
autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.

Título Original: Cinzas do Passado

Capa: Jéssica Gomes


Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Epilogo
Capítulo 1

Evangeline

– Os King voltaram para a cidade.


A simples frase foi dita casualmente por Janine ao adentrar a livraria
naquela tarde chuvosa de Camden. A baixa temperatura faz o vento soprar até
mim, bagunçando meus cabelos e gelando meu rosto. Mas não foi o que me
afetou.
Nem um frio de 30 graus negativos teria me congelado no lugar como
a simples menção daquele nome no meio da frase banal. Os King voltaram
para a cidade.
Janine sorri, batendo os pés no capacho, sacudindo o casaco cheio de
granizo antes de pendurá-lo no cabide da entrada. Em outra ocasião eu teria
chamado sua atenção severamente pela pequena sujeira que estava fazendo,
neste momento pouco me importava com a falta de cuidado de Janine. Estava
paralisada. Como se o vento frio ainda estivesse fazendo efeito no meu rosto,
congelando minha expressão, embora Janine já tivesse fechado a porta.
Mesmo assim não me mexo. Minha mão está no ar, a caneta que eu segurava,
fazendo inúmeras contas no livro contábil da livraria, algo bem frequente
ultimamente, está em algum lugar no chão, rolando para debaixo da
prateleira.
– Ei, o que houve? – Janine sacode as mãos diante de mim. Eu nem
tinha percebido sua aproximação até ver seu sorriso e os dedos estalando
diante dos meus olhos vidrados. Como se fosse um mágico me tirando de
uma hipnose. Pisco algumas vezes, Janine dá um dos seus insuportáveis
risinhos e revira os olhos. – Ouviu o que eu disse? Os King vol...
– Sim, sim, eu ouvi! – Quase grito a obrigando a parar. Claro que
tinha ouvido. Infelizmente. E não estava acreditando.
– Onde foi que você ouviu isto? – Questiono, tentando manter a
sanidade e a calma. Janine era dada a exageros. E a fofocas. Muitas vezes
sem o menor fundamento. Claro que podia ser mais um dos seus delírios. Os
King em Camden novamente depois de dez anos? Só podia ser invenção.
Tinha que ser invenção!
Janine se abaixa e a olho impaciente, percebendo que estende os
braços para debaixo da prateleira à procura da caneta.
– Harry Cooper viu Ella e Emily King passando num carrão há
poucas horas. – Sua voz sai abafada. Estremeço à menção daqueles nomes.
Os quais pensei que nunca ouviria novamente. Não associados a Camden
pelo menos.
– Ele tem certeza que eram elas? – Janine me encara como se eu fosse
maluca, ainda ajoelhada no chão de madeira.
– Quem mais andaria por Camden numa BMW conversível com os
lindos cabelos loiros oxigenados ao vento? – Ela se levanta colocando a
caneta no balcão. – É claro que só podiam ser elas!
Então é fato. Ella e Emily King estão na cidade. O que isto
significava? Nada. Absolutamente nada. Eram apenas duas. Não quer dizer
que outras pessoas da família, obrigatoriamente, também estariam ali. Claro
que não.
– O que você acha que eles vieram fazer? – Janine pergunta pensativa.
– Eles? – Minha voz sai sumida. Medo real e cru começa a fazer
minhas mãos suarem e meu coração falhar de forma alarmante e nada boa.
– Sim, eles, os King!
– Você disse que Emily e Ella...
– Sim, Harry as viu, aparentemente todos estão aqui. – Ela arregala os
olhos mais animada ainda e sei o que a deixa tão feliz. Exatamente o que me
deixa apreensiva – quer dizer que o maravilhoso Matthew King também! Não
é o máximo? A gente vai ter um escritor famoso zanzando pela cidade! Quem
diria, não é? Que o gostoso do Matthew King que conhecemos quando
adolescente iria se tornar um famoso escritor de thriller?
– Como pode ter certeza? Que diabos ele estaria fazendo aqui? –
Tenho uma vaga noção da minha voz ficando estridente, não consigo frear
meu terror crescente. – Eles foram embora faz dez anos, Jan! Não voltariam!
Nunca! Jamais!
– Por que não? Por acaso estão proibidos de entrar na cidade? Eles
podem ter vários motivos...
– Continuo achando que é invenção.
– Eu ainda não te contei... a mãe de Harry me disse que a faxineira
dela esteve na casa deles há alguns dias, para limpar tudo por lá e preparar a
casa para sua chegada!
Começo a sentir falta de ar enquanto Janine continua.
– Deve ser fofoca...
Janine me lança um olhar impaciente.
– Não sou fofoqueira, você sabe. Só estou relatando os fatos! Os King
estão de volta a Camden... – ela agora cantarola com grande animação, como
se estivesse anunciando a chegada do circo à cidade. Afundo-me na cadeira.
Tenho vontade de levar a mão ao coração para impedir que ele pare de
apertar.
– Não é demais? Eu lamento tanto ter viajado na época em que
estiveram aqui há dez anos! Maldita tia Clotilde, que foi adoecer justo no
nosso último verão antes da faculdade! Perdi a oportunidade de tentar
conquistar o lindo do Matt...
– Pare Janine! – Peço, levantando a mão. – Já chega! Nem sabe se é
verdade...
– Eu te disse que é! – Insiste impaciente. – Todos os fatos levam a
crer que é a mais pura verdade! A casa dos King, aquela mansão maravilhosa,
fechada faz tanto tempo, foi reaberta! Harry vê Emily e Ella King num carrão
pela cidade... Certeza que estão voltando para Camden!
– Ainda acho muito estranho...
– Por quê?
– Porque os King são podres de ricos, podem passar férias em
qualquer lugar do mundo, por que escolheriam Camden?
– Pelo mesmo que viram há dez anos? Eles adoravam a cidade!
– Então por que foram embora e nunca mais voltaram?
– Não faço ideia! Gente rica é tão excêntrica! Ouvi dizer que têm
casas em várias cidades, até na Europa parece...
– Ainda não justifica o fato de terem voltado...
– Bom, se existe um motivo, eu não sei! O que sei é que preciso ligar
para Aria e contar tudo...
Janine me empurra para o lado e pega o telefone. Respiro
pesadamente e saio de perto. Caminho por entre as prateiras lotadas de livros
do teto ao chão. Este é o meu mundo. É onde amo estar. Meus olhos
alcançam a vitrine e a rua mais além. Algumas pessoas corajosas caminham
ignorando a chuva fina e o frio de inverno. Camden é uma pequena cidade no
Maine, quente e bastante movimentada no verão e com frio rigoroso no
inverno. Fria, cinzenta e gelada. Foi onde escolhi viver e era feliz. Até agora.
Estremeço ao pensar no vendaval que está se formando. E não falo
daquele lá de fora, feito de vento e chuva. Este outro que temo irá chegar e
varrer tudo o que levei anos para construir. Meu mundo. Minha vida. Fecho
os olhos e faço uma prece silenciosa, temendo que seja em vão. "Que não
seja verdade. Que os King não tenham voltado a Camden. E que, se
estiverem, nem todos tenham vindo".
– Ei, como foram as contas?
Volto à realidade com a voz estridente de Janine e me viro. Ela está
examinando meu livro contábil.
– Nada bem... – respondo contrariada. Janine faz uma careta.
– Diz que vai pagar meu salário, por favor!
– Claro que vou, alguma vez deixei de pagar?
Ela respira aliviada.
– Ufa! Estava preocupada! Estou de olho num vestido incrível e agora
que os King estão de volta, preciso cuidar do visual...
– Janine, chega deste assunto, ok? – Imploro, pegando o livro e o
fechando.
– Por que é tão chata? Nunca acontece nada nesta cidade! Os King
são tipo... a realeza!
– Não exagere... – Guardo o livro desligando minha mente da
tagarelice de Janine e fazendo contas mentais. A situação não está nada boa.
Nunca foi fácil ser dona de uma livraria numa cidade como Camden, porém,
até então, havia conseguido me manter. O problema era que os lucros vinham
diminuindo mês após mês e me perguntava até quando conseguiria manter a
livraria em funcionamento. Não posso fechá-la. Não consigo nem pensar
nesta possibilidade. Todos os meus sonhos estão aqui, anos e anos. Não sei o
que farei se falir.
Estremeço de medo. E, sinceramente, só a preocupação com a livraria
é suficiente para tirar meu sono.
Não preciso do rumor da volta de uma certa família para me
preocupar ainda mais. Não mesmo.
No entanto, a notícia martela na minha mente no decorrer do dia,
enquanto arrumo os livros novos que chegaram e Janine atende os poucos
clientes que aparecem. O expediente está quase no fim, quando, voltando do
estoque com uma caixa pesada nas mãos, paro horrorizada ao ver duas
pessoas entrando na loja. As duas são loiras e lindas. Emily e Ella King. As
gêmeas King.
A caixa escapa das minhas mãos, indo ao chão. Livros se espalhando
com um baque surdo.
– Oh meu Deus! – Escuto Janine dizer de trás do balcão, arregalando
os olhos, como se duas estrelas de cinema tivessem entrado na loja.
– Ande logo, Ella. – Escuto a voz altiva de Emily enquanto seu olhar
impaciente e entediado percorre o ambiente. – Não estou com a menor
vontade de ficar num lugar cheio de bolor como este!
Meu sangue ferve automaticamente. Lugar cheio de bolor?
Ella ri. A mesma risada melodiosa da qual me lembrava.
– Não seja chata, Emily! Preciso ver se têm aquele livro de moda que
estou procurando há tempos. – Ela tira as luvas que devem ter custado o
suficiente para pagar minha conta de luz e caminha em direção ao balcão,
deixando Emily para trás.
– Olá. – Ella sorri para Janine, que sorri de volta com uma devoção
ridícula. Se não estivesse tão horrorizada e paralisada no mesmo lugar no
fundo da loja, onde, graças a Deus as duas não me viam, teria pedido para
Janine parar com aquele ataque de tiete.
– Oi...oi.... Em que posso ajudá-la? – Janine sorri bobamente.
– Estou procurando o livro... – Ella fala o título para Janine, eu já não
presto atenção. Me abaixo para pegar os livros caídos, tentando conter a
vontade de sair correndo. Como se viesse de muito longe, escuto Janine dizer
a Ella que ainda não temos o tal livro, mas que, se deixar o número do
telefone, poderemos encomendá-lo. Ella agradece e passa o número para
Janine.
– Ok, você me ligue quando chegar! Eu virei buscar!
– Quer dizer que estão de volta à cidade? – Janine pergunta sem um
pingo de vergonha de sua bisbilhotice e paro para escutar a resposta.
– Sim, vamos ficar até o natal, pelo menos. – Eu quase gemo alto.
Ainda faltava mais de um mês para o natal, pelo amor de Deus!
– Espero que bem menos... – escuto Emily resmungar, caminhando
entre as prateleiras e olhando tudo com um olhar de desdém, como se um dos
livros fosse vomitar em seu casaco de pele caro.
– Que ótimo! – Janine exclama animada e Ella deve ter feito um olhar
de confusão que fez Janine continuar. – Bom, claro que sei quem vocês são!
Os King são famosos por aqui.
"Ai, Janine", gemo em desalento. Vergonha banhando meu rosto de
vermelho.
– Lembro-me de vocês no verão que compraram a casa aqui! Uma
pena terem ido embora... nem tivemos a chance de nos conhecer, sou Janine
Taylor e...
– Ella, ande logo! – Emily diz impaciente.
Sim, ande logo, sussurro comigo mesma, ainda ajoelhada no chão,
catando o resto dos livros.
– Já vou, Emily! – Ella resmunga e sorri pra Janine. – Realmente não
me lembro de você Janine, quem sabe agora teremos a oportunidade de nos
conhecermos?
Não posso ver o rosto de Janine, embora tenha certeza que está
derretendo de satisfação.
– Oh... eu adoraria... adoraria... Ella... você é tão...
– Jesus, Ella, vou deixar você para trás! – A voz de Emily está ainda
mais áspera agora.
– Certo, já vou.
Estou quase respirando aliviada quando escuto uma outra voz
conhecida depois de um baque de dois corpos se encontrando.
– Opa, me desculpe!
Sebastian?
– Nossa, veja por onde anda! – Emily resmunga. Rastejo de onde
estou para ver a cena.
Sebastian, Ella e Emily estão parados na entrada. Emily passa os
dedos enluvados por seu casado creme, agora com uma grande mancha preta
na frente. Mancha que também está na camisa de Sebastian e deve ser de
graxa. Quase posso rir de satisfação. Faço uma nota mental para me lembrar
de agradecer a Sebastian.
– Me desculpe, loira, acho que manchei seu casaco chique! –
Sebastian diz sem um pingo de remorso e sinto a diversão em sua voz.
– Manchou sim! Droga!
– Nossa Emily, que estrago. – Ella lamenta. – Que negócio preto é
este?
– É graxa – Sebastian explica.
– Se fosse menos idiota e olhasse por onde anda... – Emily o fuzila
com o olhar.
– Oh... sem ofensa! – Sebastian reclama.
– Emily, não queria ir embora? – Agora é Ella que está impaciente. –
Mamãe vai ficar irritada se nos atrasarmos para o jantar!
– Não posso sair assim, este imbecil arruinou meu casaco!
– Ei, Sebastian! – Janine se aproxima sorridente, alheia à tensão.
Típico!
– Cadê a Eve? – Sebastian pergunta e Janine olha em volta. Não tenho
tempo de me esconder quando ela me vê.
– Ali! Está fazendo o que ajoelhada aí Evangeline? – De repente
quatro pares de olhos estão presos em mim. Janine divertida. Sebastian
curioso. Emily e Ella chocadas. Claro que estavam surpresas. Elas me
conheciam. Mas não nos víamos há dez anos.
– Evangeline Evans? – Emily indaga perplexa.
– É... Oi. – Murmuro. Imagino minha bela imagem no momento.
Ajoelhada no chão, com a camiseta suja de poeira dos livros, os cabelos
presos num rabo de cavalo que está soltando, os fios castanhos se espalhando
rebeldemente por meu rosto pálido.
– Eve, que diabos está fazendo aí? – Sebastian se aproxima e me puxa
pela mão, me ajudando a levantar.
– Estava pegando uns livros que caíram...
– Oh meu Deus Evangeline, é realmente você! – A voz de Ella não é
menos surpresa, embora não contenha a mesma aspereza da de Emily. Agora
fico vermelha. Sebastian olha de Ella e Emily para mim.
– Se conhecem?
– Bem... – começo, sem saber o que dizer. Sebastian também deveria
se lembrar das duas. Ou não. Sebastian nunca fez parte do círculo dos King
naquela época. Porém, assim que eu dissesse os nomes, ele saberia. Eu não
queria que isto acontecesse. Mas Janine está ali como uma enviada do inferno
para me arruinar, claro.
– Também não sabia que você conhecia Emily e Ella King,
Evangeline!
O rosto de Sebastian muda. Sua expressão nublando mais que o
tempo lá fora. Aperto seus dedos numa muda advertência.
– King? – Sua voz é tão tensa quanto sua expressão.
– Elas já estavam de saída – digo tentando amenizar a situação.
– Os King não passam por aqui há mais de dez anos. – Sebastian
continua me ignorando. Ella sorri.
– Sim, viemos passar as festas... ainda não sei seu nome.
– Sebastian Blake. – Sebastian responde contrariado e seu braço cinge
minha cintura. – Noivo de Evangeline.
Emily e Ella trocam olhares. Nem sei qual deve ser minha expressão
neste momento.
– Todos vocês estão de volta à cidade? – Sebastian pergunta
casualmente. Para mim soa mais como astutamente. Espero a resposta à
pergunta que vinha me fazendo desde que Janine entrou na loja naquela tarde
anunciando a volta da família King.
– Quer saber se Matthew também veio? – É Emily quem pergunta.
Seu olhar está em mim. Frio e enigmático. Eu o sustento, mal respirando. –
Sim, estamos todos na cidade. Não por muito tempo, mas por tempo
suficiente para... – ela faz uma parada estratégica. – Relembrar os velhos
tempos.
– Emily... – agora até Ella está tensa, enquanto segura o braço da irmã
que lança dardos invisíveis de puro fogo em minha direção. Até Janine está
séria.
– E já que estamos esclarecendo alguns pontos, aproveito para dizer
que sim, o Matthew ainda te odeia. Então é melhor se manter longe.
Deus do céu. O que era aquilo? As palavras batiam em meu rosto
como tapas, machucando. Abrindo velhas feridas que eu julgava cicatrizadas.
Sebastian me aperta um pouco mais.
– Pois avise seu irmão que Evangeline não tem a menor intenção de
chegar perto. Muito pelo contrário. Aliás, ele é que deve tomar o cuidado de
não se aproximar. Evangeline está comigo. E é bom ele ficar longe se não
quiser perder algum órgão vital.
– Meu irmão não quer ver esta daí nem pintada de ouro, então faça
bom proveito! – Emily rebate com desdém. Eu ainda não sei como me
mantenho de pé. Provavelmente a única coisa que me impede de cair são os
braços de Sebastian.
– Emily, vamos embora.
Desta vez Ella consegue arrastar Emily para fora da livraria.
O ar frio do crepúsculo invade o ambiente até a porta se fechar de
novo. Ninguém fala nada por um momento. Ninguém nem respira.
– Que diabos foi isto? – Janine é a primeira a sair do transe. – Parecia
que eu estava numa daquelas cenas de novela da tarde, sabe?
– Cale a boca, Janine! – Sebastian resmunga e me encara. Sei que
estou numa palidez de morte. – O que estes infelizes estão fazendo na cidade?
– Pergunta furioso.
– Não sei... – respondo apalermada. – Acha que eu saberia?
Só quero sentar, colocar minha cabeça entre as mãos e chorar. Ou
gritar. Ou quebrar alguma coisa. E depois fugir. Para bem longe. Qualquer
lugar onde não escute a palavra King nunca mais.
– Você está bem?
– Não... – Sebastian me solta e dá um soco na primeira prateleira que
encontra.
– Aquela loira escrota! Devia ter calado sua boca com um soco!
– Sebastian, pare! – Peço fracamente, passando a mão pelos cabelos.
– Gente, alguém pode me explicar o que está rolando? – Janine pede.
– Janine, acho que já pode ir embora. – Digo, respirando fundo
tentando me acalmar.
Embora tenha a leve impressão que a época de calmaria na minha
vida acabou para sempre. A tempestade chegou junto com os King.
Definitivamente.
– Mas...
– Por favor, Janine.
– Não é hora de fechar ainda, e...
– Eu fecho a loja. Sebastian me ajuda.
– Ah, Evangeline, por favor, sabe que precisa me contar esta história
de conhecer os King e do Matthew te odiar...
– Janine, esquece o que ouviu, entendeu? – Peço seriamente. – Isto é
passado.
– Mas...
– E se você abrir a boca para contar para alguém eu te demito.
– Nossa, claro que eu não ia contar, não sou nenhuma fofoqueira,
credo!
– Estou falando sério, Janine. Por favor. – Algo no meu tom
desesperado deve tê-la comovido, pois ela assente e, colocando seu casaco,
finalmente vai embora.
Sebastian me encara.
– O que elas vieram fazer aqui?
– Encomendar um livro...
– Simples assim?
– Sim, simples assim. Elas nem sabiam que eu era dona da livraria, ou
que estava aqui.
– Sei...
– Esquece isto, Sebastian.
– Esquecer? Sério que está pedindo calmamente para esquecer que
Matthew King está de volta?
Estremeço com aquela constatação. Estou fugindo dela a tarde inteira.
Tentando arranjar desculpas esfarrapadas para a inexorável verdade.
– O que posso fazer? – Sussurro frustrada.
– Não gosto nem um pouco disto.
– Acha que eu gosto? Pensei que eles não fossem aparecer nunca
mais! Não faço ideia do motivo de terem voltado! Só de pensar em tê-los
aqui de novo...
Sebastian se aproxima e segura meus braços.
– Não fique assim.
– Não tem como ficar de outro jeito. – Digo sombriamente.
– Eles não vão chegar perto. A bruxa loira mesmo disse que o King te
odeia.
Eu estremeço.
– Então ele que fique longe.
– Camden é uma cidade pequena. Gostaria muito de ter certeza que
nunca vou topar com ele por aí.
– Sinceramente duvido que fiquem muito tempo. Não ficaram da
outra vez e não ficarão agora.
– Espero que tenha razão.
Eu não poderia pensar no inferno que seria ter que viver com medo de
ver Matthew. Apenas a possibilidade de encontrá-lo de novo... já me enchia
de terror. Sebastian me puxa para ele e me abraça. Fecho os olhos, tentando
me sentir segura, como sempre me senti com ele. Não consigo. Temo não ser
possível nunca mais. Porque a única pessoa que eu temo no mundo está de
volta. Matthew King.

***
Matthew

Eu estava de volta a Camden.


E sabia que, de todos os lugares do mundo, este era o último que
deveria estar. Chame-me de masoquista. Ou saudosista. Os dois sentimentos
se debatem dentro de mim enquanto percorro as ruas molhadas e
escorregadias da cidade com meu carro.
A tarde cai lentamente em seus inúmeros tons de cinza, contrastando
com o verde da mata ao redor. É lindo.
Meus olhos ainda estão presos na paisagem, quando de repente a
música no rádio muda e os primeiros acordes de piano de The Scientist
enchem o carro. Solto um palavrão desligando-o. Não me traz boas
recordações.
Bato com o punho fechado no volante. Dez anos não foram
suficientes para esquecer? Acho que não. Bastou eu estar rodeado pela
atmosfera de Camden, para todo tipo de sentimento ruim começar a me
atormentar. E jurei que não seria assim. Quando meus pais manifestaram o
desejo de voltar a Camden eu e minhas irmãs ficamos em choque. Meus pais
ignoravam todos os fatos que ocorreram naquele verão há dez anos. Foi
melhor assim. Para todo mundo. No final, tudo ficou entre mim e minhas
irmãs.
Algo para esquecer.
Ou fingir que nunca aconteceu. Para nossa sorte na época minha mãe
se encantou com uma propriedade nos Hamptons, onde começamos a passar
os verões. Foi um alívio saber que nunca mais precisaria pôr os pés em
Camden. Até agora. Até meus pais resolverem que deveríamos passar o natal
na cidade. Sei que poderia arranjar uma desculpa para não vir. Mas isto iria
contra tudo o que vínhamos combinando faz um tempo, de todos tirarem
férias juntos. Fazia mais de três anos que não acontecia, com todos ocupados
em suas profissões. Então mamãe nos fez prometer que passaríamos o mês
juntos. Todos nós. E escolheu justamente Camden.
– Podemos contar a eles. – Ella disse quando nos encontramos para
almoçar. Ela estava em Nova York, a cidade que eu morava, para
acompanhar a semana da moda. Ella era estilista e atualmente morava em
Paris.
– Não. – Refutei.
– Você vai mesmo voltar e...
– Está tudo no passado Ella. Não importa mais.
Era uma mentira deslavada, claro. Na qual eu queria acreditar. Mais
do que fazer minhas irmãs acreditarem. Talvez conseguisse convencer Ella,
Emily e até mesmo o marido de Emily, Carter. Ele me ligou de Boston, para
onde se mudaram quando Carter, que era jogador de futebol americano, foi
contratado por um time local, depois da intimação de meus pais. Carter
namorava Emily na época que estivemos em Camden. Ele estava lá e sabia de
todo o drama.
Inclusive foi uma peça central, penso sombriamente.
Eu havia garantido a ele que estava tudo esquecido. E acho que ele
acreditou. A Emily eu tinha certeza que não havia enganado. E agora, menos
de 24 horas após chegarmos a Camden, já me sentia numa prisão dentro de
minha própria casa.
Então entrei no carro, ignorando minha família, que jogava xadrez na
sala e saí sem destino. Até que me vi em frente à casa dela.
Parei o carro ali por um momento. As janelas estavam fechadas e não
havia nenhum carro parado na frente. Talvez ela nem mesmo morasse mais
ali, pensei. Dez anos se passaram, ela deveria estar longe agora. Camden era
uma cidade pequena cujos jovens acabavam invariavelmente indo embora.
Eu deveria ficar aliviado. Porém, enquanto dava partida me afastando daquela
casa cheia de lembranças que gostaria muito de ter esquecido, percebi que
não sentia alívio e sim pesar. Havia uma parte de mim que queria encontrá-la
outra vez. Cara a cara. Havia uma parte de mim que ainda sentia o velho
ressentimento. A antiga raiva. E acho que sempre sentiria.
Respiro fundo no carro silencioso. Nada de músicas de tempos
tempestuosos. Nada de lembranças ruins.
Eu deveria voltar para casa e fazer o que vim fazer em Camden.
Passar um tempo com minha família. Acelero o carro e então, de repente,
algo mais a frente me chama atenção. Há uma criança andando no
acostamento. Diminuo a velocidade ao me aproximar. Ela caminha encolhida,
com seu casaco de camurça, o capuz sobre os cabelos e uma mala nas costas.
Está começando a chover.
Eu paro o carro e abaixo o vidro.
– Ei. – Chamo-a e ela para me encarando. Olhos castanhos num rosto
muito branco.
– Quer uma carona?
– Não falo com estranhos – ela responde e eu rio.
– Sim, faz bem. Está perto de casa?
– Não, estou indo para a cidade...
– Entre, eu te levo.
Ela hesita.
– Meu nome é Matthew King. Juro que está tudo bem. Só não quero
que congele na estrada, daqui a pouco vai anoitecer.
Ela morde os lábios, indecisa, então dá a volta para entrar no carro.
Eu abro a porta do passageiro e ela entra. Dou partida e ela tira o capuz dos
cabelos. Um cobre maravilhoso e brilhante. Deve ter uns nove, dez anos.
Onde será que estão os pais da garota que a deixam sozinha na rua deste
jeito?
– Não deveria estar sozinha na rua ainda mais com este tempo.
– Eu sei.
– Onde está sua mãe, ou seu pai?
– Minha mãe está trabalhando...
– Ela sabe que está na estrada indo para a cidade?
– Eu tentei ligar para ela, não consegui... Preciso buscar umas coisas
na loja dos Cooper... Não achei que fosse chover...
– É perigoso sair com um tempo deste...
– Minha mãe vai ficar brava comigo.
– Quer que eu a leve para casa?
– Não! Vou ficar bem! Me deixe na loja dos Cooper depois vou
encontrar minha mãe no trabalho dela.
– Tudo bem.
A garota olha curiosa para o carro.
– Bonito seu carro.
Eu sorrio.
–Tem música? – Pergunta curiosa.
– Tem.
– Posso ouvir?
Eu hesito, mas a deixo ligar o rádio e satisfazer sua curiosidade
infantil. The Scientist enche o carro novamente. Tenho vontade de mudar a
música, ela me lança um sorriso animado.
– Adoro esta música. É a preferida da minha mãe!
Nós entramos na cidade e estaciono o carro em frente à loja do
Cooper. De repente hesito em deixá-la sozinha.
– Obrigada senhor King – Ela agradece com um sorriso e sorrio de
volta.
– Ei, qual seu nome?
– Sofia.
– Sofia, que tal eu esperá-la e levá-la até sua mãe?
– Tudo bem!
Ela desaparece dentro da loja retornando minutos depois.
– Onde sua mãe trabalha?
– Não fica longe, entre na próxima rua e já chegamos.
Sigo o caminho que indica e paramos em frente a uma charmosa
livraria.
– Sua mãe trabalha aqui?
– Ela é dona da livraria – a garota sorri orgulhosa e abre a porta do
carro. – Muito obrigada pela carona, senhor King!
– Só me prometa que não vai mais fazer o que fez hoje, podia estar
em encrenca com este tempo.
– Eu prometo. Minha mãe me mataria também.
Ela pula do carro e acena mais uma vez antes de desaparecer dentro
da livraria.
Capítulo 2

Evangeline

Eu estava numa enrascada sem tamanho.


É só no que eu pensava enquanto a tarde caía lá fora, o dia sendo
substituído pela noite, escurecendo tudo. Os King estavam de volta. Matthew
estava de volta. Eu mal podia acreditar que estava realmente acontecendo.
– Eve, está tudo bem?
Levanto a cabeça e encaro Sebastian vagamente. Minha mente ainda
dando voltas infinitas em torno de meus novos receios. Assim como meu
estômago sensível. É medo o que sinto. E tenho a impressão que este
sentimento vai me acompanhar por muito tempo. Ou até que os King
desapareçam de Camden novamente.
Forço um sorriso para Sebastian e volto a atenção ao meu livro
contábil, que estava fingindo verificar.
– Claro que sim. Só preocupada com as contas, como sempre – o que
não é totalmente mentira.
– Está tão ruim assim? – Sebastian pergunta preocupado, se
aproximando. Dou de ombros e fecho o livro. Não quero que ele se preocupe
com o que não tem nada a ver com ele. Sebastian sempre se sente na
obrigação de me ajudar. Por isto tento mantê-lo longe pelo menos deste
problema. Não quero que se sinta compelido a me auxiliar financeiramente.
Não seria justo.
– Não. Só o de sempre. Acho que já podemos fechar. – Desconverso,
olhando o relógio na parede.
– Sim, vou verificar a porta dos fundos.
Ele se afasta e escuto a porta se abrir. Um sorriso se forma em meu
rosto automaticamente ao ver a pequena pessoa que entra na loja retirando a
touca dos cabelos avermelhados.
– Oi, mamãe – ela sorri de volta batendo os pequenos pés no tapete da
entrada e meu sorriso se desfaz.
– O que você está fazendo aqui? Com este tempo? Sofia... como veio?
– Minha voz aumentando gradativamente de acordo com minha preocupação.
Era para Sofia estar em casa. Protegida da chuva e do frio daquela
tarde.
Ela morde os lábios, desviando o olhar.
– Eu precisava pegar um material para fazer um trabalho na loja dos
Cooper e...
– Não interessa! Veja o tempo! – Me aproximo, tocando seu rosto
gelado, suas roupas milagrosamente estão secas apesar da umidade lá fora.
Estreito o olhar, desconfiada. – Como veio até aqui?
– Caminhando – responde se afastando quando vê Sebastian voltando
do fundo da loja. – Oi, Sebastian!
– Oi, linda – ele sorri complacente abraçando-a. – O que faz aqui?
– Você veio sozinha da nossa casa? Quer mesmo que eu acredite
nisto? – Insisto.
– Por que estão discutindo? – Sebastian pergunta me olhando.
– Eu falei para ela não sair de casa com este tempo e ela me
desobedeceu.
– Eu precisava de um material! Não posso perder nota. Você disse
que me deixaria de castigo se eu tirasse nota baixa outra vez.
– Sim, pelo menos disto você lembra. Não mude de assunto. Quero
saber como chegou até aqui.
– Já disse, andando.
– Sua roupa nem está molhada, Sofia.
– Porque não estava chovendo quando vim. Fiquei um bom tempo lá
nos Cooper. O Harry é tão legal. Ele ficou me fazendo várias perguntas sobre
você.
– Ele fez é? – Sebastian fecha a cara e reviro os olhos.
– Não comece Sebastian.
– Ele gosta da mamãe, Sebastian? – Sofia pergunta rindo. O que faz
Sebastian fechar ainda mais a cara.
– Chega de conversa, Sofia. – Peço, lançando um olhar de
advertência. – Verificou tudo lá no fundo, Sebastian? Podemos ir?
– Sim, tudo ok.
– Posso ir com o Sebastian de moto? – Sofia pergunta empolgada e
sacudo a cabeça negativamente.
– Nem pensar.
– Mas, mãe...
– Está muito frio.
Sofia revira os olhos indo para o meu carro resmungando e Sebastian
ri.
– Não fique assim Sofia, eu a levarei para dar uma volta quando o sol
aparecer.
– Não invente, por favor – reclamo, abrindo a porta do carro e
entrando.
Sofia mexe no rádio e Sebastian vai para a moto. Sabia que ele ia nos
seguir até em casa.
– Você precisa de um rádio novo, mamãe. – Ela reclama, enquanto
dou partida. Uma música pop conhecida começa a tocar vinda de alguma
rádio local.
Eu rio de sua lógica infantil que achava que comprar qualquer coisa
era muito fácil, o sorriso foi morrendo lentamente em meus lábios quando
lembranças de outro tempo invadiram minha mente. Lembranças que eu
julgava estarem bem trancadas e com as chaves perdidas.
Música num carro. E Matthew King.
Respiro fundo, tentando jogar de novo aquelas lembranças
inconvenientes para o fundo da mente. Onde deveriam ficar e nunca mais
sair.
Apesar de acreditar que a partir de agora seria bem difícil mantê-las
escondidas. Meu estômago se revolve novamente.
Paro o carro em frente a minha casa e sinto alívio pela primeira vez
em dias por Jack estar viajando. Ele saberia assim que olhasse para mim que
havia algo errado e não queria ter que explicar nada.
Sofia salta correndo e entra na casa.
– Espero que esteja convidado para jantar. – Sebastian diz me
encontrando na porta de casa.
Sorrio cansadamente.
– Claro que sim.
– Meu pai ligou hoje.
– E aí? – Indago tirando o casaco ao entrar.
– Eles voltam daqui a dois dias como combinado.
– Foi o que meu pai disse ontem, porém achei que com este tempo,
eles poderiam voltar antes. – Comento, indo para a cozinha preparar o jantar
com Sebastian me seguindo.
Sofia estava lá atacando uma lata de biscoito que consigo tirar de sua
mão a tempo.
– Não antes do jantar.
– Estou com fome.
– Guarde sua fome para comida de verdade.
– Deixe-a comer, Eve – Sebastian pede, piscando pra Sofia.
– Ela sabe das regras. Suba e vá trocar de roupa.
Ela obedece. E começo a pegar o necessário para preparar o jantar.
– Às vezes acho que você é muito dura com ela.
– Sou mãe solteira Sebastian, preciso ser.
– Sabe que estou aqui para te ajudar.
Mordo os lábios, enquanto corto alguns temperos, sem encará-lo.
Já tivemos essa conversa algumas vezes. Sebastian sempre me apoiou.
Principalmente depois do que aconteceu dez anos atrás... De novo respiro
fundo e mudo a linha de pensamento. Enfim, Sebastian sempre esteve comigo
nos momentos difíceis e foi meu amigo quando precisei.
Mas Sofia era responsabilidade minha. Só minha.
Sempre soube dos sentimentos de Sebastian por mim. Era claro como
água e ele nunca fez questão de esconder. Eu me mantinha afastada porque
nunca achei que iria gostar dele do jeito que ele gostava de mim.
Nunca mais iria gostar de ninguém daquele jeito.
Era uma peça quebrada e sem conserto. Nem Sebastian conseguiria
aquela proeza.
E havia Sofia. Ser mãe aos 18 anos não foi fácil. Nada de
universidade ou namorados para mim. Precisava cuidar da minha filha e me
sustentar. Então veio a livraria e minhas responsabilidades duplicaram.
Sebastian não desistiu. Os anos passaram. E um dia eu não tinha mais
desculpas para dar. E percebi que, ou eu deixava nosso relacionamento
mudar, ou iria perdê-lo de vez. Aconteceu há cinco meses.
– Dê uma chance ao garoto, Eve – meu pai disse um dia, depois de
Sebastian ter me convidado para um encontro e eu responder não mais uma
vez.
– Somos amigos, pai.
– Sim e daí? Ele é apaixonado por você e um dia vai se cansar de te
esperar, arranjar uma namorada e casar. E aí, você ficará sozinha e amarga. Já
não é tão jovem assim, o tempo está passando...
– Não vou ficar sozinha, tenho Sofia.
– Não é a mesma coisa. Sabe do que estou falando. Sebastian é um
ótimo rapaz e adora sua filha. O que mais você pode querer?
As palavras de Jack ficaram gravadas em minha mente e comecei a
pensar nelas. E se Sebastian realmente se casasse? Senti uma pontada de
ciúmes. Sabia que estava sendo egoísta, não consegui evitar. Eu tinha
Sebastian para mim há tempo demais. Sabia que ele saía com garotas, que
tinha encontros. Nunca nada sério. Todavia, Jack tinha razão, um dia poderia
mudar. Sebastian se cansaria de ficar me esperando e eu ficaria sozinha. Sem
meu melhor amigo.
E por quê? Porque não conseguia me livrar de uma paixão
adolescente que não deu em nada além de uma mágoa profunda e um bebê
para eu criar?
Assim, quando Sebastian me chamou de novo para sair, aceitei.
E há um mês ele me surpreendeu com um pedido de casamento. Não
pensei muito antes de aceitar. Era a consequência natural do relacionamento,
embora de vez em quando ainda pensasse se estava fazendo a coisa certa. Se
conseguiria amar Sebastian como ele me amava. Sabia que ainda não. Pedi
que fôssemos devagar, que me desse tempo, ele estava sendo muito paciente.
Apesar de tudo ainda tinha medo de não chegar a lugar nenhum.
– Sabe disto não é, Eve? – Ele insistiu. – Quero ser um pai para Sofia
também.
– Ainda não somos casados, Sebastian – afirmo incomodada com o
rumo da conversa.
Não estava preparada para dividir Sofia. Para deixar Sebastian
representar a figura paterna na vida dela. Não antes de saber se ele seria
realmente um marido para mim. Não podia deixar as coisas irem longe
demais, não com os sentimentos de Sofia em jogo. Ela sempre viria em
primeiro lugar, não queria confundi-la.
Sebastian não falou nada por um tempo se limitando a me ajudar na
cozinha até que o jantar estivesse pronto.
– Onde Sofia se meteu? Pode ir chamá-la? – Pedi, colocando os pratos
na mesa.
– Eve, antes de Sofia descer, quero te perguntar uma coisa.
Sabia o que ele ia perguntar e não queria de jeito nenhum falar
daquele assunto porque era o mesmo que havia embrulhado meu estômago a
tarde inteira.
– Espero que as coisas entre nós não mudem com a volta dos King –
ele diz gravemente.
– Sebastian...
– Sério Eve. Sei que está preocupada e não é para menos. Mas para
mim as coisas não mudaram. Preciso saber se para você também não.
– Por que mudariam? – Sinto meu coração de afundar angustiado. –
Eles não sabem de nada. E você mesmo ouviu o que Emily disse. Eles me
odeiam.
Eu não quis dizer "Matthew me odeia". No fundo dava na mesma, não
é? Eu tinha certeza que para todos os King eu era persona non grata.
– Eu não entendi muito bem. Por que eles te odeiam? É você que tem
todo o direito de detestar o tal Matthew...
Eu me viro para as panelas no fogão, não querendo falar sobre aquele
assunto. Sebastian não faz nem ideia...
E quero que continue assim.
– Esqueça os King Sebastian. Eu já esqueci – menti.
– E sobre Sofia?
Engulo em seco. O medo que me rondava tomando proporções
gigantescas ameaçando me sufocar.
– Tudo vai continuar do jeito que estava. Ela é minha filha. Apenas
minha.
Sebastian sacudiu a cabeça afirmativamente, embora seu olhar ainda
continuasse sombrio.
Eu aperto sua mão.
– Está tudo bem, Sebastian. Tenho certeza que eles não ficarão muito
tempo por aqui como da outra vez. E tudo vai continuar como sempre foi.
Enquanto ele se afasta para chamar Sofia, tento me convencer daquilo
e ficar tranquila.
Depois do jantar ajudo Sofia com o dever enquanto Sebastian assiste a
um jogo na TV.
– A gente pode dar uma volta depois que eu terminar? – Ela pergunta
esperançosa.
– Não, está muito frio para qualquer passeio. E você tem aula amanhã
cedo.
– Eu queria ter ido pescar com o vovô.
– Ainda é muito nova para estas coisas, querida. Concentre-se na sua
lição, está ficando tarde.
Ele suspira volta a atenção para o caderno.
Sebastian desliga a TV.
– Melhor eu ir, está tarde.
– Sim.
Ele se despede de Sofia e o acompanho até a varanda.
Quando me beija, deixo que me abrace e me puxe para si. Não
consigo relaxar e ele percebe me soltando.
– Eve, sei que disse que ia esperar...
– Já falamos sobre esse assunto. Tenho Sofia e não quero dar nenhum
mau exemplo.
Ele ri.
– Somos noivos, Eve.
– Sim, por isto mesmo.
– Nós nos conhecemos a vida inteira.
– E eu pedi que fôssemos devagar. Não quero estragar tudo.
– Não sei como poderia estragar.
– Sabe que as coisas não deram certo uma vez...
Ele fecha a cara.
– Aquele cara era um idiota.
– Eu sei, mas... Você é importante para mim, Sebastian. É importante
pra Sofia. Quero fazer as coisas direito.
Ele suspira cansadamente.
– Tudo bem. Boa noite Eve.
– Boa noite.
Eu o observo montar na moto se afastando e fico por ali um tempo.
Naqueles momentos, quando Sebastian me pedia mais e não me sentia pronta
para dar um passo adiante, me sentia uma farsa.
– Mamãe?
Entro ao ouvir Sofia me chamar e tranco a porta.
Ela boceja e a abraço.
– Vamos dormir está tarde querida.
– Tenho mesmo que ir a escola amanhã? – Ela pergunta quando nos
deitamos.
Beijo seus cabelos.
– Todos os dias.
– E se estiver nevando?
– Pensarei no seu caso. Agora durma, bebê.
– Não sou bebê – reclama.
– Claro que é. Sempre será meu bebezinho – faço cócegas em sua
barriga e ela ri.
– Já tenho quase dez anos, mãe!
– Claro, uma adulta – ironizo. – Agora durma.
– Você podia me contar uma história.
– Ah é? Achei que já fosse adulta para ouvir histórias.
– Você disse que ia ler um capitulo por dia de Orgulho e Preconceito.
Sorrio e acendo o abajur pegando o livro que estava na mesa de
cabeceira.
– Tudo bem, só um capítulo, ok?
Ela concorda encostando em meu braço enquanto leio sobre Elizabeth
Bennett e Mr. Darcy. E, antes que o capítulo terminasse, já estava dormindo.
Eu a cubro e beijo seus cabelos acobreados. O mesmo tom dos
cabelos de Matthew me recordo.
Deixo meus pensamentos tomarem aquele rumo pela primeira vez
desde que a tormenta da volta dos King à cidade se abateu sobre mim.
Que merda eles vieram fazer na cidade? Nunca poderia imaginar que
voltariam depois de tanto tempo. E ainda me odiavam. Fecho os olhos com
força, tentando impedir meus pensamentos de voarem para o passado.
Eu segui em frente depois que todos eles foram embora.
E desde então fazia de tudo para esquecer o que havia acontecido
naquele verão. E achava que estava, senão esquecido, pelo menos enterrado.
Apenas eu e eles sabíamos o que havia realmente acontecido.
Era um segredo vergonhoso que eu gostaria de deixar enterrado para
sempre.
Mesmo algo tendo ficado comigo depois da partida deles.
Minha filha Sofia.
Eu não podia permitir, de maneira alguma, que descobrissem sobre
Sofia. Ela era minha. Somente minha.
E se eu tivesse sorte, eles logo partiriam de Camden. E tudo
continuaria como sempre foi.
Sem os King. Sem Matthew.
Sem problemas.
***
Matthew

– Tem alguma coisa que queiram me dizer? – Pergunto irritado a Ella


e Emily que cochichavam do outro lado da sala olhando para mim.
Eu desconfiava sobre o que elas falavam e me enraivecia ainda mais.
Ella ri forçadamente enquanto Emily faz cara de tédio.
– Não estamos falando de você, convencido! – Ella desconversa,
pegando uma revista de moda na mesa de centro.
Emily levanta de onde está e se senta ao lado de Carter que assistia a
um jogo na TV.
– Nem tudo gira em torno de você, Matthew.
– Vocês estão muito esquisitas – Carter observa e Emily revira os
olhos.
– Você nem estava prestando atenção na gente, estava vendo o jogo!
Ele ri e a abraça.
– Eu sempre presto atenção em você.
Foi a vez de Ella e eu revirarmos os olhos e me levanto.
– Vou dormir.
– Só vou esperar o papai e mamãe chegarem, pedi que trouxessem
uma sobremesa para mim. – Ella diz, voltando a atenção para a revista. –
Infelizmente terei que continuar segurando vela para estes dois nojentos.
– Quantos anos você tem, cinco? – Pergunto rindo. Ella era a mais
mimada das criaturas.
Antes que eu me afaste, ela segura minha mão.
– Matthew, queria te dizer uma coisa...
– Ella, não! – Emily chama seu nome, parando de beijar Carter e a
encarando com um olhar de advertência.
Era o bastante para mim.
– Sei do que querem falar e sinceramente não quero ouvir – exclamo
irritado. – Achei que tínhamos deixado bem claro que não íamos mais
discutir esse assunto.
– Eu sei, mas...
– Ella, chega. – Emily a corta novamente – Matthew tem razão.
Chega!
Ella bufa voltando a atenção para a revista e eu me afasto indo para
meu próprio quarto.
Queria dormir e esquecer que estava em Camden.
Como foi que pude acreditar que concordar em voltar àquele lugar ia
ser tranquilo? Estávamos naquela cidade há 24 horas e já sentia a tensão
aumentando de forma alarmante.
Talvez eu devesse criar coragem e dizer a meus pais a verdade. E
depois ir embora de vez daquele lugar. Fiz isto uma vez. Parti sem olhar para
trás. E prometi nunca mais voltar.
E agora lá estava eu, naquela maldita cidade, temendo mais dia menos
dia encontrar com uma pessoa que não queria nunca mais ver.
Numa cidade pequena daquele jeito, obviamente iria encontrá-la. Se é
que ela ainda morava ali. Talvez, se eu tivesse sorte, ela já tenha partido há
muito tempo. Então poderia respirar aliviado e me concentrar no motivo da
minha vinda. Passar um tempo com minha família e seguir em frente.
– Não sei vocês, mas estou entediada. – Emily comenta na manhã
seguinte durante o café da manhã, depois que meus pais saíram da mesa.
Claro que Emily não teria coragem de tecer aquele comentário na
frente de nossa mãe.
– Se a cidade pelo menos tivesse alguma loja de roupas interessante...
– Ella bufa.
– Se ao menos parasse de chover – Carter ri – a gente poderia velejar.
Seria legal. O que acha, Matthew?
– Sim, seria interessante.
– Nossa, que animação – Emily resmunga. – Precisamos encontrar
alguma coisa interessante para fazer, antes que eu enlouqueça.
– Podíamos dar uma festa! – Ella exclama animada. – Sim, pelo
menos ocuparíamos nosso tempo. Lembra como a gente dava as festas mais
animadas naquele verão? Todo mundo comentava!
– As únicas festas animadas, você quer dizer. – Emily fala sem grande
empolgação. – Acho que devo concordar com você, pelo menos poderei rir
destes caipiras e ficar sabendo das fofocas!
As duas saíram da sala conversando empolgadas.
– Ei, Matthew, encontrei isto no seu carro ontem. – Meu pai entra na
sala de repente e coloca o que parecia ser um caderno escolar na minha mão.
Ele havia usado meu carro ontem para levar mamãe para jantar.
Sorri ao me lembrar da garota chamada Sofia a quem dei carona
ontem. Certamente o caderno pertencia a ela.
– O que significa isto? – Carter pergunta curioso.
– Nada. – desconverso.
– Parece um caderno de criança. – Papai responde no meu lugar. –
Onde arranjou Matthew?
– Ontem dei carona para uma garotinha na estrada. Ela deve ter
esquecido.
– Carona? Que bom samaritano você é – Carter riu.
Eu o ignoro, me levantando.
– Vou dar uma saída.
Entro no carro disposto a procurar a garota chamada Sofia e devolver
seu caderno. Certamente ela iria precisar dele na escola. Me lembro que ela
disse que a mãe era dona da livraria, então paro o carro em frente e desço, ao
adentrar na loja e ser abordado por uma vendedora, me dou conta que havia
uma parte de mim que queria conversar com garotinha de novo. Quão
patético e entediado eu deveria estar para gostar da companhia de uma
menina de nove anos que mal conhecia?
– Olá, pode me ajudar? – Pergunto à garota de cabelos encaracolados
de costas para mim, arrumando alguns livros na prateleira, me perguntando se
seria a mãe de Sofia.
– Oh Meu Deus, Matthew King! – Ela arregala os olhos e levanto a
sobrancelha.
– Oh me desculpe – ela fica vermelha.
– Sem problema sempre acho estranho quando as pessoas me
reconhecem.
– Ah, claro, mas eu te conheço de quando esteve aqui há dez anos!
– Oh – fico desconcertado – não me lembro de você.
– Quer dizer, nós nunca fomos devidamente apresentados, mas todo
mundo conhecia os King. Amo seus livros também, claro! – Ela suspira e
começo a pensar que aquela criatura não deve ser a mãe de Sofia.
– A livraria é sua?
– Ah não – ela ri – sou apenas uma vendedora!
– Entendo. E ela está aqui, quer dizer, a dona da livraria?
– É.... ah... Não. Não está! – Ela responde hesitante – em que posso
ajudá-lo?
De repente não quero entregar o caderno de Sofia àquela garota
tagarela. Bom, e ela nem era a mãe da menina. Sorrio e decido improvisar.
– Sim, preciso comprar um livro. É um presente, para uma criança.
Você pode me ajudar?
Capítulo 3

Evangeline

Arrumo as prateleiras com o pensamento longe.


Estava totalmente distraída naquela manhã. Culpa de uma noite mal
dormida pensando no meu mais recente problema.
Que tinha nome e sobrenome.
Acordei com uma dor de cabeça e a certeza de que os acontecimentos
da noite anterior não eram parte de um sonho ruim.
Eram sim a mais pura realidade. Ou seja, teria que conviver com o
fato de a família King estar de volta. Tentar da melhor maneira, até que se
cansassem e desaparecessem novamente e, se eu tivesse sorte, desta vez para
sempre.
Janine passou a manhã inteira me interrogando sobre o que estaria me
afetando.
– Você está terrível hoje, qual seu problema? – Perguntou bufando e
retirando a pilha de livros de cima do balcão indo guardá-los. Pilhas que eu
deveria estar guardando, em vez de ficar dormindo acordada.
– Me desculpe, não dormi direito esta noite... – me justifiquei, o que
não deixava de ser verdade.
– Alguma coisa com a Sofia?
– Não, nada... – respondi ainda meio distraída. Sabia que Janine
estava curiosa e ficaria sondando até que eu contasse o que estava
acontecendo. De maneira alguma eu queria dividir qualquer problema
relacionado aos King com ela.
– Com Sebastian então? – Insistiu e peguei a pilha de suas mãos,
disposta a me afastar.
Meu alívio durou até eu ouvir uma voz muito conhecida.
Uma voz que não ouvia há dez anos.
As pilhas de livros que eu carregava escapam das minhas mãos, no
exato momento em que me viro, para comprovar que não estava imaginando
coisas.
A voz era de Matthew King.
Ele estava ali. A menos de três metros de distância.
Cabelos acobreados despenteados pelo vento.
Vestindo roupas casuais que exalavam uma riqueza sutil.
Ainda lindo.
Ainda me deslumbrando.
Janine se coloca na sua frente, tapando minha visão. Por um momento
louco, quero me aproximar e empurrá-la.
Que merda estava pensando? Não queria chegar perto de Matthew
King. Não queria nem que ele me visse. Dou um passo para o lado, a
prateleira servindo como um bem-vindo esconderijo e escuto a conversa
atentamente. Janine se fazendo de idiota não é surpresa, então ele faz uma
pergunta que me deixa de cabelo em pé.
– Esta livraria é sua?
– Ah não – ela ri – sou apenas uma vendedora!
– Ah, entendo. E ela está aqui, quer dizer, a dona da livraria?
Janine olha em minha direção e aceno negativamente para ela,
rezando para que entenda.
– É... ah... Não. Não está! – ela responde hesitante – em que posso
ajudá-lo?
Por que ele perguntou aquilo? Será que sabia que era eu? Suas irmãs
teriam contado sobre mim?
– Sim, preciso comprar um livro. Um presente, para uma criança.
Você pode me ajudar?
– Um livro infantil? Oh meu Deus, você tem filhos?
Só percebo que estou segurando a respiração enquanto espero a
resposta de Matthew, quando ele responde.
– Não, não tenho. É um presente.
– Ah, já ia perguntar se era casado.
Gemi, desalentada. Janine era muito cara de pau. Devo confessar que
existia uma parte de mim que queria muito saber a resposta de tudo o que ela
estava perguntando.
– Não, não sou. – Acho que detecto mais divertimento do que
consternação na resposta de Matthew.
– Oh... Entendi. – Não consigo ver, mas tenho certeza que este
"entendi" veio acompanhado de um olhar de puro flerte.
– E então, pode me mostrar os livros infantis?
– Claro! – Janine sorri e os dois começam a vir exatamente na minha
direção, quase corro para o fundo da loja, me refugiando ali para que não me
vissem.
Fecho a porta do estoque me encostando nela, respirando rápido.
Que inferno! Havia encontrado Matthew mais cedo do que supunha.
Pelo menos ele não me viu. Ainda não estava preparada para ficar cara a cara
com ele. Não mesmo. E nem sabia quando estaria.
Fico ali, morrendo de medo de ser descoberta e ao mesmo tempo
morrendo de curiosidade para saber o que Janine estava falando com ele até
que ouço a porta da rua bater novamente.
Só então me sinto segura para sair.
Janine ainda tem um sorriso bobo no rosto.
– Oh Meu Deus, Mathew King!
– Sim, eu vi – afirmo ainda meio preocupada.
Janine parece em êxtase.
– Nossa, ele continua tão lindo! Por que não quis falar com ele?
– Nem pensar!
– Por quê? Oh... Agora me lembro, aquela Emily disse que o Matthew
não ia com a sua cara, não é? Até agora você não me explicou esta história
direito...
– E nem vou explicar.
– Você tem que falar! Como conheceu os King naquele verão? E o
que rolou para eles te detestarem? Será que o Matthew sabia que você era
dona da livraria?
– Duvido muito.
– As irmãs dele podem ter contado.
– Acho que não. Senão ele nem teria vindo aqui. – E era verdade. Eu
tinha a ligeira impressão que Matthew iria me evitar a todo custo também.
Como a própria Emily disse, ele ainda me odiava. Se soubesse que eu estaria
na livraria, com certeza teria passado do outro lado da rua.
– Eu queria muito entender...
– Esqueça Janine! Foi somente uma desavença de verão, coisa boba
de adolescente...
– Coisa boba? Não me pareceu...
– Mas foi. E espero realmente que você não saia por aí espalhando
esta história.
– Que história? Eu nem sei de nada!
– Porque não há o que saber! Agora volte ao trabalho.
– Para quem será que Matthew comprou o livro? Será que uma das
irmãs tem filhos?
– Não faço ideia... – tento parecer desinteressada para que esqueça o
assunto.
– Espero que ele tenha gostado da minha indicação! Disse que era
para uma garota muito esperta e adivinhe? Eu o convenci a levar Harry
Potter!
Reviro os olhos.
– Não faça esta cara senhora superculta. Harry Potter é muito legal!
Devia encorajar Sofia a ler.
– Pois saiba que minha filha tem um gosto muito melhor. Ela me
pediu para ler Orgulho e Preconceito para ela.
– Credo, que chatice!
Eu ainda estava rindo quando a porta se abriu e Sebastian entrou.
– O que faz aqui a esta hora? – Indago surpresa. No fundo dando
graças a Deus que Sebastian não chegou alguns minutos antes. Seria um total
desastre se ele se deparasse com Matthew.
– Vim te sequestrar – ele se aproxima e beija meus lábios de leve, eu
o empurro.
– Que história é esta?
– Relaxe Eve. Oi, Janine, pode cuidar de tudo por aqui? Vou levar
Evangeline para tratar de um assunto.
– Mas...
– Claro – Janine pisca para mim. – Divirta-se!
E Sebastian me puxa para a rua.
– Sebastian, para onde está me levando? Tenho que trabalhar!
– É uma surpresa. – Entra comigo no meu carro e ele dirige parando
em frente à igreja.
– O que estamos fazendo aqui? – Indago confusa. Ele salta abrindo a
porta para mim e segurando minha mão.
– Viemos marcar a data do casamento.
Arregalo os olhos, estupefata.
– O quê?
– Já devíamos ter marcado Eve – ele me puxa para dentro, minha
mente dava mil voltas.
Meu estômago idem.
Que diabos era aquilo?
– Sebastian, espere. – Eu o obrigo a parar e me encarar. – O que está
rolando? Por que esta pressa toda?
– Pressa? Eve, já passou da hora! Até seu pai esteve me pressionando
outro dia.
– Meu pai não tem nada a ver com a gente!
– Não? Diga isto a ele.
– Sebastian, é sério, não precisamos marcar hoje...
– Por que não? Não estamos indo nos casar Evangeline. Somente
marcando a data. Temos um compromisso, não temos? Você concordou em
se casar comigo, não concordou?
– Claro, mas...
– Então é o que vamos fazer. Não quero mais esperar. Quero me casar
com você.
Ele fala muito sério e com uma convicção que me assusta.
Porque eu não tinha aquela convicção.
Como poderia dizer a ele?
Sebastian tinha razão. Concordei em casar. Firmamos um
compromisso. E talvez fosse realmente hora de dar um passo adiante.
Respiro fundo, jogando todas minhas dúvidas para o fundo da mente.
– Tudo bem. Vamos em frente.
Ele sorri e me beija.
Saímos da igreja com o casamento marcado para dentro de um mês.
Tento parecer feliz.
Estamos saindo de lá quando paro ao ver alguém conhecido entrando.
Evelyn King. A mãe de Matthew.
Ela parou também me reconhecendo. Infelizmente.
– Evangeline? Nossa, quanto tempo!
Eu sorrio amarelo.
– Oi...
– Se conhecem? – Sebastian pergunta. Claro que ele não fazia ideia de
quem era Evelyn King.
– Sim... Sebastian, esta é Evelyn... King. – Hesito ao falar o
sobrenome. Sebastian fica tenso na mesma hora e eu aperto sua mão. –
Sebastian Blake.
– Noivo dela - Sebastian completa.
Evelyn não parece notar a tensão, embora seus olhos se arregalem um
pouco surpresos.
– Noivo? Meus parabéns Evangeline!
– Sebastian, a gente precisa ir, não é? – Falo meio aflita, não
querendo estender mais a conversa com a mãe de Matthew.
– Sim, vamos.
– Foi bom revê-la Evangeline. – Evelyn disse com seu sorriso
educado e me pergunto se ela sabia.
Eu deduzia que não. Evelyn não sabia de nada sobre aquele verão.
Senão estaria me detestando como seus filhos.
Nós nos afastamos e Sebastian me encarou dentro do carro.
– Aquela é a mãe dele?
Claro que eu sabia de quem Sebastian estava falando.
– Sim.
– Será que vai ser assim? Toda hora topando com esta gente por aí? –
Resmunga irritado.
– Cidade pequena, não é? O que podemos fazer? Não gosto disto
tanto quanto você.
– Com sorte eles logo se cansam e desaparecem!
– Sim... – tomara. – Chega de falar dos King. – Olho o relógio. – Está
na hora de eu ir buscar Sofia na escola.
– Claro. Vou com você. Podemos contar a novidade a ela!
Matthew

Paro o carro em frente à escola e espero. Não demora muito para que
as crianças comecem a sair. E lá está ela. Os cabelos acobreados se
destacando no meio das outras crianças. Está conversando com uma colega
quando me vê. Aceno. Parece surpresa, então acena de volta, trocando
algumas palavras com a colega antes de vir em minha direção.
– Sr. King! O que está fazendo aqui?
– Me chame de Matthew, Sofia – estendo seu caderno. – Esqueceu no
meu carro.
– Nossa então foi lá que esqueci? Ontem procurei por toda parte!
Muito obrigada!
– Tchau, Sofia. – A amiga que conversava com ela passa por nós
acenando e me olhando curiosamente.
Sofia sorri.
– Melissa me perguntou se você era meu pai!
– Sério? – Sorri, curiosamente achando aquilo agradável.
Sofia era uma criança adorável. Devia ser fácil ser pai dela.
Porém, com certeza, ela já tinha um pai. A colega não o conhecia,
certamente, já que achou que eu poderia ser o pai da menina.
– Não é engraçado? Eu ri da cara dela e perguntei por que você se
parecia com meu pai e ela disse que temos a mesma cor de cabelo!
– É verdade – constato. E me pergunto se tivesse uma filha, se ela se
pareceria com Sofia.
Sofia olha em volta como que procurando alguém.
– Minha mãe já devia ter chegado...
– E eu preciso ir. Só vim trazer o seu caderno.
– Muito obrigada mesmo, Matthew! Minha mãe ficaria uma fera se eu
perdesse todas as lições!
– Ah, já ia me esquecendo. – Eu me viro e pego no carro o livro que
comprei.
– O que é isto? – Pergunta curiosa quando lhe dou o pacote.
– Um presente. Espero que goste de ler.
Ela arregala os olhos surpresa, abrindo o presente.
– Nossa, Harry Potter! Que legal!
– Gostou?
– Eu nunca li, adorei. – Ela sorriu. – Você é muito legal, Matthew!
Eu ri de sua felicidade. Devia ter comprado mais livros se ela ia ficar
tão feliz.
Ela fica pensativa.
– Terei que te dar um presente também!
– Claro que não.
– Eu vou dar sim! Agora você é meu amigo, não é?
Eu sorri.
– Claro. Somos amigos. Tenho que ir – olho em volta, a maioria das
crianças já tinha partido.
– Quer uma carona?
– Não, minha mãe vem me buscar!
– Tudo bem. Tchau, Sofia – me despeço.
– Tchau, Matthew! – Sem aviso ela me abraça rapidamente e fica
vermelha. De repente, ela me lembra alguém conhecido.
Aceno me despedindo e entro no carro. Pelo espelho retrovisor, vejo
um carro se aproximando e Sofia indo naquela direção.
Devia ser a mãe dela.
Me pergunto se veria Sofia novamente.
Provavelmente não.

***
Evangeline

– Sebastian! – Sofia pula no carro e o abraça efusivamente.


– Ei, também estou aqui! – reclamo e ela me abraça.
– Eu te vi, mamãe! O que o tio Sebastian está fazendo aqui?
– Ele vai almoçar com a gente.
– Temos uma novidade para te contar – ele pisca para mim e fico
tensa.
De novo me perguntando sobre a precipitação de tudo aquilo.
– Nossa hoje é o dia das surpresas então – Sofia comenta e eu franzo a
testa.
– Ah é? Que outra surpresa teve hoje?
– Nada não – ela desvia o olhar e fico desconfiada.
Tive a nítida impressão que ela estava me escondendo alguma coisa.
– Tem certeza?
– Tenho...
Nós chegamos em casa e Sebastian diz que vai verificar o motor do
meu carro enquanto preparo a comida.
Entro com Sofia.
– Vai me ajudar a fazer o almoço? – Pergunto e ela acena animada. –
Pegue os ingredientes da salada na geladeira.
Ela me ajuda a lavar as folhas, de repente reparo que está meio quieta,
o que não é de seu feitio.
– Querida, quer conversar alguma coisa comigo?
Ela morde os lábios e então me encara.
– Mãe, meu pai tinha cabelos da mesma cor que os meus?
Empalideço.
De onde vinha aquilo?
– O quê?
Eu sabia que mais dia menos dia, teria que enfrentar um interrogatório
sério de Sofia. Quando teve idade para perceber que não havia alguém para
chamar de pai eu lhe expliquei de forma vaga que ela só tinha mãe, que
muitas crianças eram assim. Ela pareceu entender. Algum tempo depois, já
mais velha, abordou de novo o assunto. Desta vez perguntando onde estava o
pai dela. E novamente respondi, bem vagamente, que ele não morava na
cidade. Que teve que ir embora antes de ela nascer. Aquilo pareceu bastar,
porém eu sabia que um dia ela viria com mais perguntas.
Só não esperava que fosse tão cedo.
– Sim, você e o vovô têm cabelos castanhos. Então meu cabelo parece
com o dele?
– Por que está perguntando isto agora?
Ela dá de ombros, desviando o olhar.
– Nada... Só curiosidade. Você nunca fala dele.
– Sofia... – respiro fundo. – Eu sei que tem curiosidade, mas...
– Por favor, mamãe. Eu só queria saber mais... Como ele era, por
exemplo?
Meu coração se aperta e me dá uma imensa vontade de chorar.
Culpa e pesar se misturando dentro de mim.
Era óbvio que Sofia sentia falta de uma figura paterna na sua vida. Eu
achava que Sebastian bastaria, aparentemente não.
Sebastian era apenas nosso amigo. Eu nunca o deixei exercer o papel
de pai para ela. Pergunto-me se, com o casamento, isto iria acontecer. Talvez
eu devesse deixar. Quem sabe assim as perguntas cessassem. E Sofia se
sentisse completa. Eu só queria que ela não sentisse aquele vazio.
Eu conhecia aquela sensação. E não queria que ela a sentisse também.
Minha mãe morreu no meu nascimento, nunca a conheci.
– Querida, tudo bem. Acho que podemos conversar sobre ele, outra
hora, ok? – Tento ganhar tempo.
Seus olhos se iluminam.
– Sério?
Aceno positivamente, por dentro estou muito preocupada.
Deus, o que eu ia fazer?
– Claro que sim. – Prometo algo que sequer sabia se conseguiria
cumprir. – Agora pegue sua mochila e leve lá para dentro depois vá chamar o
Sebastian para comer.
Ela sorri animada pegando a mochila que se abre com o movimento e
um livro cai no chão.
Eu me abaixo antes de ela o pegar e meus olhos se arregalam.
Era Harry Potter.
– Isto é seu?
Ela fica vermelha.
– Sim...
– Onde... – tento conter meu pavor. Claro que era uma coincidência. –
Onde o conseguiu? Pegou na livraria?
– Não, ganhei de um amigo.
Meu estômago se revirou.
– Amigo? Quando...?
– Hoje, na escola.
De novo, ela não olhava para mim. Como se escondesse algo...
– Qual amigo?
Ela morde os lábios.
– Você não conhece, ele é muito legal, viu...
– Qual o nome dele? Algum coleguinha da sua turma?
– Não... não é da escola...
– Como assim? – Eu mal respiro agora.
Ainda achando que estava ficando maluca.
Matthew não conhecia Sofia. Claro que não.
– Então... O nome dele é Matthew King.
Meu mundo parou de girar naquele momento.
Capítulo 4

Evangeline

Só podia ser um pesadelo. Simplesmente não era possível.


Eu tinha ouvido errado. Ou havia outro Matthew King em Camden.
Tento manter a calma ao encarar o rosto de Sofia.
– Matthew King?
– Sim, ele é muito legal mamãe... Sabe que minha amiga achou que
ele fosse meu pai, disse que o cabelo dele é igual o meu e...
Eu acho que vou desmaiar.
– Sofia... de onde o conhece? – Minha voz está cheia de pavor.
Sofia desvia o olhar, culpada.
– Ele me deu carona na chuva ontem...
– O quê?
– Não fique brava! Ele parou o carro e disse que podia me levar até a
cidade estava muito frio e chovendo...
– Como você pôde entrar no carro de um desconhecido? Meu Deus do
céu!
Agora estava apavorada não só por saber que Sofia e Matthew se
conheciam, como também por imaginar mil coisas horríveis ao saber que
tinha entrado no carro de um estranho.
– Quantas vezes te falei para não conversar com estranhos? E entrar
no carro então... – mal consigo respirar.
– Eu sei que você sempre fala, porém o Matthew não é um cara mau!
Ele tem um carro lindo! E foi muito legal comigo...
– Não interessa! Sabe que é perigoso. E você me desobedeceu! –
Estou completamente aterrorizada.
– Mas mãe...
– O que está acontecendo? – Sebastian entra na cozinha perguntando
preocupado.
Respiro fundo.
– Sofia, suba já para o quarto.
– Mas...
– Eu disse já! Está de castigo.
Ela faz cara de choro, mas obedece.
– O que aconteceu? – Sebastian insiste.
Tenho vontade de contar a ele, mas não posso.
Primeiro teria que conversar com Sofia e saber o mais importante: se
Matthew sabia que eu era a mãe dela.
Não podia nem imaginar o tamanho do estrago.
– Sebastian, melhor ir embora...
– O que aconteceu?
– Preciso conversar com Sofia sobre algo errado que ela fez.
– Eu posso ajudar.
– Não. É entre nós.
– Evangeline, eu posso ajudar...
– Sebastian, por favor. – Vou até a porta e abro. – Depois
conversamos.
Eu sabia que o estava magoando. Sabia que ele queria realmente me
ajudar. No entanto naquele momento eu precisava lidar com o problema
sozinha.
Sebastian vai embora e me obrigo a me acalmar antes de subir e falar
com Sofia.
Acabo de fazer o almoço e subo. A encontro sentada na cama com o
livro.
O livro que Matthew deu a ela. Meu estômago embrulha.
– Sofia, precisamos conversar. Feche o livro.
Ela me encara apreensiva e eu sento na sua frente muito séria.
– Mamãe, me desculpe... – seus lábios tremem, tenho vontade de
abraçá-la e dizer que estava tudo bem, me contenho.
– Nunca mais faça algo assim, entendeu? Nunca mais fale com
estranhos e muito menos entre no carro de alguém que não conheça.
Ela sacode a cabeça afirmativamente.
– Eu juro que nunca mais vou fazer isto. O Matthew...
– Sofia... Quero me conte tudo o que conversou com este tal de
Matthew.
– Ele foi muito legal comigo. Me deu carona. E deixou eu ligar o som
no carro dele. Sabe que ele gosta daquela música que você adora também...
Meu coração se aperta, minha mente invadida por lembranças que eu
julgava enterradas para sempre.
Claro que eu sabia que ele gostava de Coldplay.
Como poderia esquecer?
– E por que ele te encontrou de novo e te deu este livro?
– Esqueci um caderno no carro dele e hoje ele foi me entregar na
escola. Legal, né? E aí, me deu este livro... Eu adorei!
Por que Matthew tinha se dado ao trabalho de comprar um livro de
presente para uma criança que mal conhecia?
– E ele... Sabe que eu sou sua mãe?
– Não... Acho que não. Ele não perguntou. Ele nem te conhece, não é?
Eu não desfaço o engano.
Quanto menos Sofia soubesse melhor.
– Sofia, eu te proíbo de ver este Matthew novamente, entendeu?
– Por quê?
– Porque estou pedindo. Ou melhor, mandando.
– Ele é meu amigo...
– Ele é adulto. Você tem que ter amigos da sua idade.
– O Sebastian também é meu amigo.
– É diferente e sabe muito bem.
– Claro. O Sebastian é seu namorado.
Eu penso em aproveitar o momento e dizer que eu e Sebastian em
breve seríamos mais, me calo.
Haveria tempo para contar a Sofia depois, quando um certo King não
estivesse em nossa conversa.
– Sim, e Sebastian te conhece desde que nasceu.
– Mas o Matthew...
– Filha, esqueça este tal de Matthew. Ele nem é da cidade. Com
certeza irá embora em breve. Duvido que o caminho de vocês se cruze
novamente.
Ela parece querer insistir, mas acaba concordando.
– Tudo bem, mamãe. Você está brava comigo ainda? Estou de
castigo?
– Não, não está de castigo. Mas terá que me obedecer a partir de
agora, combinado?
– Combinado.
Eu me levanto e a puxo pela mão.
– Vamos comer.

***

– Eu não acredito que não me contou nada! – Janine grita depois que
eu conto que eu e Sebastian marcamos a data do casamento.
– Estou contando agora – falo distraída, meus olhos acompanhando
Sofia, que perambula pelas prateleiras.
Eu não queria mais deixá-la sozinha em casa. Precisava mantê-la sob
minhas vistas. O medo de um reencontro dela com Matthew me aterrorizava.
– Uau, isto é muito sério! Diga-me, vou ser a dama de honra, não é?
– Claro – concordo e Janine começa a dar pulinhos.
– Então temos que começar a preparar tudo! Nossa, tem tanta coisa!
Primeiro temos que escolher o vestido... Vou ligar pra Aria!
Ela continua tagarelando enquanto pega o telefone enquanto eu vou
atrás de Sofia.
Ela está com um exemplar de Orgulho e Preconceito nas mãos.
– O que está fazendo? – Ela me encara meio assustada, como se
tivesse sido flagrada fazendo algo errado.
– Nada... – ela recoloca o livro na estante. – O que vou ficar fazendo a
tarde inteira?
– Pode começar indo para o escritório fazer o dever de casa.
– Mas...
– Sem, mas. Agora!
Ela se afasta arrastando os pés e eu rio.
De repente ela volta.
– É verdade o que a Janine está falando com a Aria no telefone?
– O quê?
– Que você e o Sebastian vão se casar em um mês.
– Sim, é verdade. – Estudo sua reação. – Você está bem com isto, não
é? Você sabia que eu e o Sebastian estávamos noivos.
– Sim. – Murmura.
– Sofia? – Insisto meio preocupada.
– É só... achei que ainda fosse demorar... ele vai se mudar lá para
casa? Ou nós vamos nos mudar?
– Ainda não sei, não conversamos sobre isto.
E era verdade. Só agora me dava conta que havia várias questões
práticas a resolver com Sebastian. Como Sofia eu também pensava que iria
demorar para o casamento acontecer de fato.
– Não se preocupe com nada disto. São coisas para os adultos
resolverem. Vá fazer sua lição.
Ela se afasta e depois de um tempo, me surpreendo ao ver Sebastian
entrando na livraria na companhia da Aria.
– Parabéns pelo casamento! – Aria me dá um abraço.
– O que fazem aqui? – Pergunto confusa enquanto Sebastian se
aproxima e me dá um beijo no rosto.
– Janine me ligou dizendo que vocês precisavam sair e pediu para eu
ficar cuidando da livraria.
Encaro Janine.
– Sim, nós vamos comprar aquela coisa que eu te falei... do
casamento.
Rolo os olhos.
– Precisa ser hoje?
– Claro que sim! Não podemos perder tempo.
Encaro Aria.
– Você veio por causa disto?
– Sim, ela ligou me intimando.
– Me desculpe.
– Não se desculpe, preciso de um pouco de movimento na minha vida
mesmo. – Ela responde passando a mão pela barriga de cinco meses de
gravidez.
Aria tinha se casado há três anos com o namorado de adolescência e
estava esperando o primeiro filho.
– Tudo bem, então. Estou vendo que sou voto vencido. Pode
realmente ficar na livraria? Não quero atrapalhá-lo – encaro Sebastian.
– Claro, pode ir tranquila. Fico feliz que esteja empolgada com o
casamento – sorri.
Eu me sinto ligeiramente culpada sem saber por quê.
Talvez porque empolgação não fosse bem a palavra que expressava
meus sentimentos naquele momento.
– Certo. Sofia está aí. Está fazendo lição no escritório.
– Você resolveu o problema de hoje na hora do almoço?
– Sim, está tudo bem.
– E não vai me contar?
– À noite conversamos, está bem?
Ele apenas sacode a cabeça afirmativamente e eu sabia que não ia
escapar.
– Sofia não vai querer ir com a gente? – Aria indaga.
– Não, é melhor ela ficar. Tem muita lição para fazer.
Era um certo exagero sinceramente, já bastava Janine e Aria me
pressionando, não queria ter que lidar com Sofia também.
– Então vamos? – Janine agia como se estivesse indo pra
Disneylândia e tento colocar a mesma expressão no meu rosto ao sairmos.
– Vamos.
Onde eu estava com a cabeça ao concordar com Janine e Aria?
Estávamos na maior loja de departamentos da cidade, enfurnadas na
sessão de noivas e elas estavam brigando sobre qual estilo de vestido eu devia
usar.
– Acho que tem que ser um modelo romântico, Janine. – Aria dizia
com um vestido nas mãos, todo volume e tule.
– Isto está fora de moda, Aria! – Janine pega outro vestido mais
ousado e justo. – A moda agora é esta, mais moderno!
– Tenho certeza que Evangeline prefere algo tradicional!
– Não acho que ela queira parecer um merengue!
– Meninas, meninas, não briguem – finalmente interfiro. – Posso
experimentar os dois e ver como fica.
Pego os dois vestidos das mãos delas e vou para o provador, ainda
posso ouvi-las falando.
– Vou aproveitar enquanto está aí e dar uma olhada na sessão de gala
tenho que encontrar um vestido lindo para mim também! – Janine comenta.
– Isto! – Falo aliviada. – Por que não vai também, Aria?
– Tudo bem, a gente já volta para ver como ficou!
As duas se afastam e eu tiro a roupa e olho os dois vestidos.
Eu deveria estar eufórica, não deveria?
Então por que me sinto encurralada?
Suspirando pesadamente me obrigo a colocar um dos vestidos. Era o
modelo de Janine. Estilo sereia, todo justo, tomara que caia e com uma cauda
longa. Gostei. Era simples e prático. Talvez Aria se surpreendesse, afinal,
apesar de ser realmente uma garota tradicional, não estava a fim de parecer
um bolo branco com todo aquele volume do vestido que ela escolheu.
Saio do provador, disposta a me mostrar a elas e então estaco
horrorizada.
Nem Aria nem Janine estavam ali.
Matthew King estava.
Encarando-me tão pasmo quanto eu.
***
Dez Anos Antes

Matthew

A primeira vez que a vi ela estava sentada contra uma vitrine.


Lia um livro com a cabeça baixa, os longos cabelos castanhos
obstruindo a visão de seu rosto. Eu e Carter paramos. Carter talvez mais
admirando as duas garotas que saíam de provadores usando roupas de festa
justas e decotadas. Garotas comuns de Camden, provavelmente procurando
um vestido inesquecível para a noite do baile de verão.
Mas não ela, não a garota com um livro na mão e longos cabelos
castanhos.
Carter assoviou e, não se dando por satisfeito, como era de seu feitio,
bateu no vidro, chamando a atenção delas.
Então ela levantou o olhar.
Olhos castanhos expressivos num rosto pálido.
E eu sabia que nunca mais iria esquecê-la.
As duas garotas de vestido soltaram risadinhas envergonhadas,
enquanto Carter as provocava. A garota do livro apenas nos fuzilou com o
olhar.
Eu a achei incrível.
Ela voltou sua atenção ao livro, enquanto as outras duas voltavam
para o provador. Carter continuou seu percurso.
Eu não dei um passo.
Meus olhos presos em sua pequena e doce figura. Com um dedo, ela
colocou os cabelos atrás da orelha, deixando seu rosto à vista e mordeu os
lábios, os olhos presos no livro novamente.
Quis beijá-la naquele momento.
– Hei, Matthew, vamos logo! – Carter chamou exasperado, já com a
mão na maçaneta do carro.
Não me movi. Ainda não estava disposto a perdê-la de vista.
– Matthew, caramba! – Carter voltou para ver o que tanto me
chamava a atenção. – Não me diga que agora está tarando as gostosas de
Camden, logo você... – ele ria até perceber para quem eu olhava.
– Oh... a branquela com o livro? Quem é ela?
Finalmente desviei minha atenção, lançando um olhar irritado a
Carter.
– Como vou saber?
Os lábios de Carter se distenderam num sorriso lento e malicioso.
– Entre lá e peça o telefone dela.
Fiquei vermelho.
– Quem disse que eu quero o telefone dela?
Carter rolou os olhos.
– Deixe de ser gay, Matthew! Acho que é a primeira vez que vejo
alguém realmente chamar sua atenção deste jeito! Entre lá e fale com a
garota!
– Deixe disto, Carter – falei, desviando rapidamente meu olhar para a
garota.
Para minha consternação ela havia sumido.
Então fui para o carro.
– O que porra ele está fazendo? – Olhei para rua e, em vez de Carter
entrar no carro, ele estava entrando na loja.
– Droga – saí do carro seguindo-o.
E o encontrei justamente abordando a garota de cabelos castanhos.
– Ei, linda, posso falar com você? – Ele sorriu a interceptando.
Ela encarava Carter, alto e ameaçador, estupefata.
Rapidamente reagiu, ruborizada.
– Com licença, estou saindo...
Carter deu um passo para o lado impedindo-a.
– Ei, Carter pare! – Finalmente me aproximei.
Ela parecia mais interessante ainda sem o vidro entre nós. Me encarou
surpresa e confusa.
– Vou ser rápido. – Carter continuou, me ignorando. – Meu amigo
gostaria de saber se quer sair com ele. O baile de verão, talvez?
Seu olhar âmbar se arregalou assim como sua boca.
– Carter, por Deus – murmurei entredentes.
Carter riu me lançando um olhar "olhe a aprenda com o mestre".
Ele já fez isto antes. Nunca dá certo.
A moça olhava de um para outro, como se tentasse entender.
– Como é? – Perguntou.
– Ah me desculpe, nem nos apresentamos, não é? – Carter estava
sorrindo todo sedutor. Ou ele achava que era sedução. – Sou Carter
Henderson e este é meu amigo, Matthew King.
Ela continuava confusa.
– Agora você já pode responder à pergunta. Que horas o Matthew te
pega no sábado, gata?
Tive vontade de matar Carter naquele momento.
A moça abriu a boca várias vezes como se procurasse palavras.
Seu rosto imaculadamente branco estava vermelho.
Um rubor adorável.
Delicioso.
– Trata-se de algum tipo de pegadinha? – Ela perguntou por fim de
forma irônica e, por um momento, quis explodir numa gargalhada.
Carter a fitou confuso.
– Pegadinha? Acha que a gente está te zoando?
– Eu tenho certeza. – Ela resmungou e respirou fundo. – Olha, estou
realmente com pressa e sem paciência para brincadeiras idiotas, com licença.
Então passou por nós, saindo da loja sem olhar para trás.
– Ei, gatinha... – Carter fez menção de ir atrás dela.
Eu o segurei com força.
– Pelo amor de Deus, chega! – Pedi agora muito irritado.
– Não entendi porque ela achou que era brincadeira...
– Cale a maldita boca, Carter e vamos embora.
– Eu só queria ajudar! Essa sua timidez de nerd não colabora muito...
Bufei irritado quando entramos no carro.
Carter tinha razão.
Eu era mesmo um nerd e, por mais incrível que pareça, me dava
melhor com os livros do que com garotas. Isto nunca foi um problema até
agora. Todas as garotas pareciam muito acessíveis, talvez pelo dinheiro da
minha família ou popularidade de nosso nome, muito prestigiado em
Washington, sendo meu pai um proeminente advogado de políticos
importantes. Segundo minhas irmãs, eu deveria perceber que, de uns tempos
para cá, eu tinha me tornado um "cara gato", o que fazia as garotas não
largarem do meu pé.
Todas elas me pareciam muito entediantes, sempre querendo ser
lindas e perfeitas. Sempre que saía com alguma delas, rapidamente perdia o
interesse. De alguma maneira, eu acreditava que aquela garota com um livro
não seria nada entediante. Muito pelo contrário.
Ela me pareceu única.
Capítulo 5

Evangeline

Meu mundo parou de girar naquele momento.


Se desintegrando em mil partículas de memórias soltas e desconexas
que atingiam diretamente meu coração.
Matthew King, depois de dez anos, parado na minha frente.
Em carne, osso e cabelos acobreados despenteados pelo vento.
Luto para respirar. Luto para não deixar meus joelhos subitamente
bambos desmoronarem no chão acarpetado da loja.
Fuja!
É o que grita meu subconsciente amedrontado.
Corra! Se distancie o máximo que puder.
Finja que este reencontro não aconteceu. Finja que está na sua bolha
segura e confortável, sem Matthew King e lembranças dolorosas do passado.
Segura com seus segredos.
Respiro uma longa golfada de ar finalmente.
"Mantenha a compostura"!
– Olá, Matthew – minha voz sai surpreendentemente firme.
Seu olhar perplexo se desvia dos meus e me mede.
Vejo o ar mudar sutilmente. De surpresa para tensão.
Sinto as ondas de raiva irradiarem dele diretamente em minha pele
quando volta a me encarar. Seu olhar é duro. Me fere de várias maneiras
diferentes.
E eu que acreditava que nunca mais ele iria me ferir novamente.
– O que faz aqui? – Indago, com a voz mais sumida.
– Acho que posso perguntar o mesmo... – seu olhar passeia por mim
outra vez e me lembro que estou usando um vestido de noiva.
Que droga!
– Parece meio óbvio – digo subitamente envergonhada. O que é
ridículo.
Só penso numa maneira de sumir dali.
– Sim... está usando um vestido de noiva. – Ele diz quase que
pensativamente, como se só agora sua mente processasse a informação.
Vestido de noiva = casamento em breve.
Luto para não murmurar um "me desculpe".
Que merda não devo nada a Matthew King!
– Você vai se casar. – Não é uma pergunta.
Tenho vontade de não responder, me escuto dizendo um apagado
"sim".
De novo o silêncio. Cheio de significados e as malditas lembranças
retornam.
Desvio o olhar.
Que merda ele está fazendo ali mesmo?
– Pensei muitas vezes em como seria rever você. – Sua voz me
alcança e volto a fitá-lo.
"Também pensei o mesmo"
– O que faz aqui? – Pergunto de novo.
– Na cidade? Deve saber que estamos de volta. – Ele diz cheio de
ironia. – Todo mundo sabe de tudo nesta maldita cidade pequena.
Quero dizer que não foi o que perguntei, deixo para lá.
– Fiquei sabendo.
Me sinto tão idiotamente inadequada parada ali, vestindo aquele
requintado vestido de noiva branco. Os pés descalços e os cabelos desfeitos,
enquanto Matthew me encara a um metro de distância, todo elegante em suas
roupas finas e casuais.
Continua lindo, claro. Talvez mais do que antes.
Não quero pensar nisto. Não posso.
Uma vez foi o bastante.
– Então vai se casar. – Sua voz está carregada de um desprezo
calculado. – E posso saber quem conseguiu enganar dessa vez?
Emily tem razão. Ele ainda não esqueceu.
Sinto-me terrivelmente mal de repente.
Uma vontade louca de pedir desculpas. De tentar de novo tirar dele
aquele olhar de ódio e desprezo.
Me contenho. Não adiantou naquele dia e não irá adiantar neste
momento.
E a culpa é minha.
Então eu me foco no presente.
– Não é da sua conta – digo sustentando seu olhar firmemente.
– Será fácil descobrir.
Dou de ombros.
– Por que se importa? Vai querer um convite?
Sei que estou falando merda, não consigo me controlar.
Acho que só assim vou conseguir sair ilesa daquele encontro.
Seus olhos verdes escurecem.
Sim, agora eu tenho sua raiva certamente.
– Não. – Ele responde por fim. – Talvez eu tenha a bondade de contar
com que tipo de garota ele está se casando.
Estremeço só de pensar em sua ameaça.
Ele não ousaria...
Então me pergunto se sua raiva de mim ainda é tão grande que ele
teria coragem de contar a Sebastian.
Sebastian, que não sabe nada do que aconteceu.
Obviamente sabe da minha breve ligação com Matthew King. Afinal,
foi para ele que corri grávida e sozinha, quando os King partiram da cidade,
me odiando.
Só que ele não faz ideia do que realmente aconteceu.
– Por que faria isto? Não tem nada a ver com a minha vida. – Sibilo,
mal respirando. – Por que voltaram afinal? Pensei que nunca mais iriam pisar
em Camden. Foram estas as palavras de sua irmã Emily a última vez que nos
vimos.
– Isto não é da sua conta.
– Claro. Do mesmo jeito que você não tem nada a ver comigo agora.
– Alguma vez eu tive?
Engulo em seco.
– Ainda me odeia, não é? – Minha voz não passa de um murmúrio
sofrido.
Inferno, por que ainda dói?
– Queria que eu te perdoasse? – Sua voz está cheia de um rancor
antigo. Venenoso. – Não tem perdão para o que você fez.
– Talvez não – digo tristemente. – Só acho dez anos muito tempo para
guardar rancor de alguém.
– Isto quem decide sou eu.
– Se me odeia tanto, por que voltou a Camden?
– Meus pais queriam voltar. Não conseguimos dizer não. – Ele me
surpreende com a resposta contrariada.
– Eles não sabem...?
– Não tem porque saber.
Quase sinto alívio. Menos duas pessoas que sabem o que eu fiz...
– E vocês vão ficar.... – "Para sempre" quero perguntar, nem tenho
coragem de continuar.
– Apenas por um tempo... pode ficar tranquila, não precisa temer me
encontrar por aí todos os dias...
Ele não faz ideia do tamanho do meu alívio.
– Talvez eu nem precise receber um convite de seu casamento...
– Não espere por um – digo friamente.
Sua boca se distende num sorriso amargo e irônico.
Mesmo assim, é um sorriso de Matthew.
Aquele que me desmontou um dia.
– Eu iria só para dar meus pêsames a seu noivo.
– Você não sabe de nada – empalideço.
– Ei, Evangeline... – escuto a voz de Janine e quase respiro aliviada.
Ela para ao ver Matthew.
Seus olhos arregalados de surpresa e prazer.
– Matthew King!
Ele a olha rapidamente.
– Não lembra de mim? Da livraria! Sou Janine!
– Ah sim... claro.
Aria agora também está ali encarando-o embasbacada.
Aproveito para correr de volta ao provador.
E quando me vejo segura lá, me encosto na parede respirando fundo.
Meu rosto no espelho está mortalmente pálido.
Ainda escuto as pessoas lá fora.
– Uau, o que faz aqui? – Janine pergunta.
– Me desculpe, estou com pressa, com licença. – Ele ignora as
palavras de Janine e escuto seus passos se afastando.
Graças a Deus!
– Era mesmo o Matthew King? – Aria pergunta.
– Claro que sim, tonta! O que será que ele está fazendo aqui? Ele não
é lindo? Será que vai casar...? Ai meu Deus, será que...
– Fique quieta, Janine... – Aria diz e escuto passos se aproximando.
– Evangeline, está tudo bem?
– Sim – me obrigo a responder.
– O que o Matthew King estava fazendo aqui com você? – Janine
pergunta curiosa. – Hum... você não disse que ele não ia com a sua cara?
Oh... estavam brigando? Senti uma tensão no ar...
– Janine, pare! – Aria pede.
– O que foi? Você não percebeu? Sabe alguma coisa sobre esta
história de Evangeline com o Matthew? Ela não quer me contar, mas...
Abro o provador de uma vez e as duas me encaram.
– Evangeline o que está acontecendo? – Aria pergunta
cautelosamente.
– Estou provando vestidos e achei que vocês quisessem ver –
desconverso, saindo do provador e rodopiando na frente delas.
– Mas... – Janine quer insistir.
– Gostou? Ainda não provei o de Aria, confesso que gostei mais
deste.
Janine sorri batendo palminhas, feliz.
– Sim, sim! Ficou lindo! Eu disse! – Ela mostra a língua pra Aria.
– Sim, devo dizer que ficou bom mesmo – Aria ainda parece
intrigada.
E me lembro que ela estava na cidade dez anos atrás, ao contrário de
Janine.
Aria sabe.
Ou pelo menos desconfia.
Com certeza deve estar somando dois mais dois.
Desvio dela meu olhar culpado.
– Sim, você tem bom gosto Janine.
– Claro que tenho!
– Então, acho que encontramos meu vestido.
– Que maravilha! – Janine me abraça.
Aria ainda parece indecisa. Sobre muitas coisas.
– Não quer provar mais nenhum?
– Não, este ficou bom.
– Mas... quando casei, passei por todas as lojas da região e no fim
preferi mandar fazer um...
– Sabe que sou prática quando se trata de compras, Aria.
– Mas é seu casamento.
Reviro os olhos.
– Mais um motivo para ser eu mesma. Bom, vou tirar isto e a gente
pode voltar para a livraria. Não quero tomar muito tempo de Sebastian e
Sofia está lá.
Pensar em Sofia me faz estremecer de horror. E se eu a tivesse
trazido? E se ela estivesse comigo quando Matthew apareceu?
Eu não podia nem pensar naquela possibilidade!
– Mas... ainda faltam sapatos, arranjo para o cabelo... nem sabemos se
vai querer uma grinalda, ou véu... – Janine insiste.
Eu já me dirijo ao caixa.
– Terá que ficar para outro dia!
– Mas...
– Não insista, Janine. – Aria pede.
– Ok – ela concorda contrariada.
Felizmente não volta ao assunto Matthew King.
Enquanto caminhamos em direção ao caixa, olho para todos os lados,
amedrontada.
Felizmente não vejo sinal dele.
Só volto a respirar aliviada quando estamos dentro do carro, a
caminho da livraria.

***
Matthew

Eu quero quebrar alguma coisa.


Ou alguém, neste momento não me importo.
Apenas caminho pela maldita loja à procura de minhas irmãs,
disposto a sair dali o mais rápido possível antes que faça alguma besteira.
Como voltar a aquele provador e arrancar Evangeline daquele vestido
de noiva e lhe dar a surra que ela merecia ter levado há dez anos.
Inferno! Não sou um homem violento. Porém me lembrar do que ela
fez...
Paro respirando fundo e passando os dedos por entre meus cabelos.
Onde diabos Ella e Emily se meteram?
Nunca devia ter concordado em ir com elas.
– Onde estava? – Ella perguntou assim que entrei em casa naquela
tarde após sair da escola de Sofia.
– Por aí. – Respondi evasivo, me perguntando o que ela acharia se eu
contasse o que estive fazendo.
Com certeza Ella riria e acharia engraçado. Emily acharia esquisito e
pediria que eu parasse de ser idiota.
– Estávamos esperando você. Queremos que nos leve para fazer
compras.
– Por que eu? Cadê o Carter?
– Ele foi velejar com o papai – Emily falou entrando na sala toda
arrumada.
– Poxa e nem me chamaram – reclamei, embora não me importasse.
– E então, vai com a gente, não é? – Ella insistiu.
– Por que precisam de mim? Podem muito bem ir sozinhas.
– Queremos sua companhia, ora. – O sorriso de Emily era qualquer
coisa menos angelical. Com certeza pretendia que eu acreditasse que era.
Sorri da mesma maneira.
– Não vou carregar sacolas para vocês.
– Nós vamos almoçar, não fazer compras.
Eu encarei Ella que deu de ombros.
– Claro que ela está mentindo, pelo menos eu digo a verdade! Quero
um shopping antes que entre em abstinência.
Elas conseguiram me convencer, claro, agora lá estava eu naquela
enorme loja enquanto elas desapareciam dentro de provadores.
Estava no celular, caminhando distraidamente, enquanto mandava
uma mensagem bem desaforada para Carter quando a vi sair do provador.
Dez anos depois. Os mesmos cabelos longos e castanhos. Os mesmos
olhos cor de âmbar no rosto pálido.
Evangeline Evans.
E ela estava usando um virginal vestido de noiva.
Por todos os demônios, o que era aquilo?
Eu sabia que não a havia esquecido. Tinha tentado, arduamente.
Fui embora de Camden e não voltei. Dez anos se passaram. Porém,
bem lá no fundo, existia aquela velha e dolorida mágoa. Por aquela pessoa
parada diante de mim.
Usando um vestido de noiva.
Eu não estava pensando racionalmente nem mesmo agora, quando
não estava mais na sua presença. Ainda assim sinto o mesmo coquetel de
emoções borbulhando dentro de mim desde a hora em que a vi. É uma raiva
originada de um rancor antigo. Uma mágoa infinita. Nascida do sentimento
mais puro que já tive.
E sentia raiva de mim mesmo por ter sentido. Pois foi unilateral. Fui
tão apaixonado por ela um dia. Enquanto ela nunca se apaixonou por mim.
Este pensamento me enche da antiga raiva. Como pude acreditar que
poderia voltar pra Camden e não sentir mais nada? Talvez fosse o que eu
queria provar a mim mesmo voltando. E me dei muito mal.
Que conspiração divina me fez voltar para a cidade justamente
quando Evangeline ia se casar? De novo me vem à mente sua imagem etérea.
Noiva.
De quem? Quase sinto pena do imbecil com quem ela vai se casar.
Então um pensamento incômodo me faz sentir um aperto no coração. Talvez
seja diferente. Talvez ela ame este cara de verdade.
Talvez eu tenha sido o único que ela enganou, afinal. O que não faz
eu me sentir melhor. Pelo contrário.
O que eu tenho a ver com isto?
Evangeline Evans era passado. Não me interessa se vai casar nem
com quem. Talvez se eu repetir muitas vezes consiga me convencer.
– Matthew, onde estava? – Emily aparece e Ella está atrás dela cheia
de sacolas.
– Sim, estava passando no caixa, você sumiu.
– Podemos ir então? – Pergunto secamente e as duas trocam um olhar.
– Qual o problema? - Emily questiona no mesmo tom. – Está irritado
porque teve que ficar esperando? A culpa nem é minha, não comprei nada!
Não tem nada interessante aqui...
– Não estou com raiva, vamos embora. – Me dirijo para a saída e elas
me seguem.
O silêncio do carro é quebrado quando Ella liga o rádio. Desligo
quase afundando o rádio no processo ao reconhecer a música.
– Nossa o que foi? – Ella pergunta entre divertida e chocada.
– Não estou a fim de ouvir música.
– Que bicho te mordeu?
– Também não estou a fim de falar, ok?
– Está bem, credo, que mau humor...
Emily bufa no banco de trás.
– Sim, está todo nervosinho desde que saímos da loja, até parece que
encontrou com o diab... – ela para e sei imediatamente que entendeu.
Emily sabe.
– Você encontrou Evangeline.
Não é uma pergunta.
Ella arfa ao meu lado.
– Evangeline Evans estava na loja?
– Foi o que aconteceu, não foi? – Emily insiste e solto um palavrão
baixo.
Não adianta mentir para Emily.
– Sim, eu a encontrei.
– Uau. – Ella murmura e sei que está me encarando em busca de
respostas que não quero dar.
Emily solta uma série de imprecações no banco de trás.
– Ela já está te estragando de novo! Incrível.
– Não quero falar sobre isto, Emily.
– Como assim, você a encontrou? Onde? Ela estava... sozinha? - Ella
insiste.
– Estava com duas amigas – respondo secamente.
– Ah tá – sua resposta evasiva me faz desviar a atenção da estrada por
um instante e fitá-la.
Ela desvia seus olhos inquietos e sei que está escondendo algo e
entendo de repente.
– Vocês sabiam, não é?
– Sabíamos o quê?
– Que ela está noiva.
– Como soube? – Emily pergunta tensa.
– Ela estava provando vestidos de noiva. Pareceu óbvio.
– Uau. – Ella murmura – eu queria ter visto... deve ter sido uma cena
estranha.
– Cale a boca, Ella! – Emily pede.
– E como vocês descobriram?
As duas trocam olhares.
– Nós a encontramos numa livraria – Emily responde de má vontade.
– Infelizmente.
– Ela trabalha lá, algo assim... – Ella continua. – Pelo menos estava
toda suja e carregando uns livros, acho que comentou...
– Nós conhecemos o noivo dela. – Emily diz azeda.
Meus dedos apertam o volante, até as juntas ficarem brancas. Então
Evangeline também trabalhava naquela livraria?
– Um idiota! Parece que é mecânico, pela sujeira de graxa na roupa. –
Emily torce o nariz.
Ella ri.
– Sim, sujou o casaco da Emily.
– Não foi engraçado – Emily resmunga. – Enfim, não deve pensar
naquela lá, Matthew. Vai casar com um Zé ninguém qualquer e continuar
enterrada nesta cidade! Se tivermos sorte nossos caminhos não se cruzarão
mais enquanto estivermos na cidade.
– Disto eu duvido, Emily. Esta cidade é do tamanho de um ovo... –
Ella retruca.
Emily dá de ombros.
– Que seja. De minha parte, se encontrar com ela por aí, sou capaz de
cuspir naquela cara falsa!
– Emily! – Ella exclama horrorizada.
– Vai defendê-la depois do que fez com o Matthew?
– Chega, vocês duas! – Peço duramente. – Não quero mais falar sobre
Evangeline Evans.
– Sim, é o melhor que fazemos. – Emily resmunga e Ella parece
intimidada por meu tom de voz, pois fica calada.
Nós permanecemos num silêncio tenso até chegarmos em casa.
E tudo o que eu quero é ir para o meu quarto e não ver mais ninguém
pelo resto da tarde. No entanto, assim que entramos em casa uma figura
conhecida está sentada no sofá.
– Oi, Matthew.
Sofia sorri animadamente para mim.
Dez anos antes

Evangeline

Quando o vi pela primeira vez achei que nem fosse real.


Estava escondida naquela cafeteria lendo e torcendo bravamente para
que Aria e Janine não aparecessem para me levar à indesejável sessão de
compras. Eu nem ia ao maldito baile, elas insistiram que queriam minha
opinião. Talvez eu tivesse sorte e elas me esquecessem.
Escuto a porta se abrir e levanto a cabeça parcialmente escondida pelo
livro, ressabiada. Não eram minhas amigas.
Eram dois rapazes. Lindos.
Como que saídos diretamente de um editorial de moda masculina, eles
invadem o café, rindo, alheios ao efeito que causavam.
Meus olhos passeiam ao redor. Todos os olhares femininos estão
presos neles. Então volto minha atenção para os fantásticos intrusos para
observá-los.
O primeiro é alto e forte e sabe que é bonito. Ele pisca para a
garçonete enquanto faz seu pedido e a garota solta risinhos histéricos.
Então minha atenção está nele.
Aquele que faz meus olhos se estreitarem com mais atenção.
É absurdamente lindo. Se o outro garoto é bonito, ele é deslumbrante.
Olhos verdes num rosto perfeitamente esculpido. Quase como uma pintura.
Seus cabelos acobreados, no tom mais diferente que já vi, estão perfeitamente
bagunçados e ele sorri de lado, quando o segundo faz algum comentário em
seu ouvido.
Mordo meus lábios para não gemer. Algo se irradiando em direção à
minha barriga. E me contorço sem perceber.
E fico ali... encantada.
Até que eles desaparecem porta afora.
Percebo que ainda não me mexi quando Janine e Aria aparecem na
minha frente.
– Ei, tudo bem? Que olhar bobo é este? – Janine ri e eu pisco,
voltando à realidade.
– Nada... demoraram – digo aturdida.
Aria dá de ombros.
– Melhor a gente ir então.
Nós saímos do café e caminhamos em direção à loja de departamentos
mais descolada da cidade, onde vendem os vestidos que Aria e Janine
querem.
– Vocês já viram os King? – Janine pergunta, enquanto olha os
vestidos nas araras.
– Eu os vi na loja dos Cooper na semana passada. – Aria responde
empolgada.
Claro que eu sabia quem eram os King. Não se falava de outra coisa
na última semana. Benjamin King era um advogado famoso que havia
comprado a casa mais impressionante da cidade para passar o verão com a
família.
E, segundo a falação dos moradores, além de ricos, todos eram lindos.
Eu ainda não tinha topado com nenhum deles. Não que estivesse interessada.
Os tais King deviam ser insuportáveis.
– Jura? E como eles são? – Janine perguntou curiosa.
– Eu só vi as garotas! Emily e Ella. São lindas e loiras. E vestiam
roupas tão finas como nunca vi na vida!
– E o irmão mais novo delas? Matthew? Eu quero saber dele! Lara diz
que o viu naquele restaurante chique novo, sabe? Aquele que sou louca para
ir, mas nunca fui convidada!
– Sei sim. – Aria responde, pegando um vestido e colocando na frente
do corpo. – O que acha deste Evangeline?
Levanto meu olhar do livro e tento parecer interessada.
– Parece bom.
– Vou experimentar.
Ela desaparece porta adentro. Janine continua indecisa.
– Ai, eu queria tanto que eles fossem ao baile...
– Eles nem estudam aqui, Janine – respondo distraída. – Ouvi dizer
que estão na faculdade.
– E daí? Seria o máximo!
– Sei... – me pergunto como fazê-la entender que quero prestar
atenção no livro.
– E sabe o que ouvi dizer? Que Emily King trouxe o namorado, um
cara que joga na liga profissional! Eu não entendo nada de futebol, acho que
vou pesquisar...
– Sei...
– E dizem que é lindo também! Lara falou que quase desmaiou de tão
encantada que ficou com ele e o tal Matthew!
De repente um alarme soa na minha mente.
Encantada. Como eu fiquei ao ver o estranho de cabelos acobreados
na cafeteria. Que estava acompanhado de um cara alto e forte. Como um
jogador.
Será que aquele era Matthew King?
Não me admirava que toda cidade estivesse falando.
Eles eram realmente lindos. Principalmente Matthew.
Lindo demais para ser real.
– Será que ele ficaria com alguém da cidade? – Janine pergunta.
– Janine, você não está interessada no Harry?
– Eu vou ao baile com ele, só isto!
Eu rio.
– Sei...
Janine pega dois vestidos.
– Não estamos ficando noivos nem nada, né? Se há um cara lindo
dando sopa na cidade...
– Você acha mesmo que do jeito que estão falando, que são ricos e
tal, eles iriam se misturar? – Pergunto cautelosamente.
– Por que não? Talvez não sejam esnobes.
– Eles estão aqui faz duas semanas e pelo o que sei, até agora não os
vi confraternizando com ninguém – comento.
– Ainda é cedo. E temos o verão todo pela frente!
Ela entra num dos provadores e eu volto a minha leitura de Orgulho e
Preconceito. Não é a primeira vez que o leio. É meu livro preferido, consigo
finalmente prender a atenção em Elizabeth e Darcy até que Janine e Aria
saem do provador, se posicionando em frente ao grande espelho.
Então alguém bate no vidro. Levanto o olhar, quase assustada e lá
estão eles de novo.
Os mesmos caras da cafeteria.
Aria e Janine soltam risadinhas atrás de mim, enquanto aquele que é
mais alto faz gestos engraçados de encorajamento.
Relampejo meus olhos rapidamente para aquele que deve ser Matthew
King e sua beleza é tão ofuscante quanto um farol contra a noite escura.
Desvio rapidamente o rosto de volta para o livro. Sei que estou
corando violentamente.
Não sei se eles foram embora, ou se continuam lá. Não tenho coragem
de olhar. De alguma maneira sinto que estou sendo observada. O que faz meu
estômago revirar.
– Uau, eles são gatinhos. – Janine ri e Aria a puxa para dentro do
provador, tão vermelha quanto eu.
– Vamos sair daqui, que vergonha!
Janine continua rindo.
Eu me levanto rapidamente, disposta a sair dali também.
– Meninas, vou até a livraria, ok? – Digo ao passar em frente aos
provadores.
Aria coloca a cabeça para fora.
– Mas...
– A gente se encontra de novo na cafeteria daqui a uma hora, está
bem?
– Tudo bem então. – Aria aquiesce e pego minha bolsa, pronta para
acabar com a tortura.
Minha mente ainda girando por ter visto Matthew King de novo.
Paro subitamente quando um peito largo e forte surge diante de mim.
Levanto minha cabeça e vejo o grandalhão me fitando com um
sorriso.
– Ei, linda, posso falar com você?
Linda? Coro, embaraçada.
Que diabos, aquele cara está falando comigo?
– Com licença, estou saindo... – digo abaixando a cabeça tentando
passar.
Ele dá um passo para o lado, me impedindo.
– Ei, Carter pare...
Engulo em seco ao vê-lo se aproximando. Matthew "perfeito" King.
Que raios está acontecendo?
– Vou ser rápido – Carter continua. – Meu amigo gostaria de saber se
quer sair com ele. O baile de verão, talvez?
Arregalo meus olhos e a boca em choque.
O quê? Eles estão de brincadeira, não é? Só pode.
Porque num mundo em que as coisas fazem sentido, dois caras como
eles não estariam me interceptando dentro de uma loja para me chamar para
sair.
– Como é? – Pergunto confusa.
Tenho a impressão que eles vão começar a rir a qualquer instante
denunciando a brincadeira idiota.
– Ah me desculpe, nem nos apresentamos, não é? Sou Carter
Henderson e este é meu amigo, Matthew King.
Claro. Eu já sabia. O que torna tudo muito mais bizarro.
– Agora você já pode responder à pergunta. Que horas o Matthew te
pega no sábado, gata?
Gata?
Pegar no sábado?
De repente estou furiosa. E mortificada.
Se não é uma brincadeira besta de dois riquinhos entediados é o
convite mais descarado e deselegante que já recebi.
– Trata-se de algum tipo de pegadinha? – Pergunto irônica.
Carter me fita confuso.
– Pegadinha? Acha que a gente está te zoando?
– Eu tenho certeza – respiro fundo. – Olha, estou realmente com
pressa e sem paciência para brincadeiras idiotas, com licença.
E passo por eles, saindo da loja sem olhar para trás.
– Ei, gatinha... – ainda escuto Carter me chamar e, pela primeira vez
na vida, tenho vontade de me virar e mostrar o dedo do meio, me contenho.
Dois babacas! O que tinham de lindos tinham de idiotas!
Enquanto caminho com passos firmes, penso que nunca mais quero
ver um King na minha frente.
Passo a hora seguinte na livraria, tentando fazer Darcy e Elizabeth
voltarem a ser interessantes, ainda me sinto irritada com aqueles caras.
Embora continue achando Matthew King o cara mais lindo que já vi,
para meu desalento. Sair com ele? Será que o amigo babaca estava falando
sério? E se estava, quão ridículo é um cara pedir para o amigo convidar a
garota para sair com ele?
– Ei, Evangeline!
Aria interrompe meu fluxo de pensamento. Ela segura uma enorme
sacola ao se sentar na minha frente.
– Oi, cadê a Janine?
– Nem te conto. Recebeu uma ligação da mãe dela e teve que sair
correndo, parece que uma tia está muito doente eles terão que viajar às
pressas.
– E o baile?
– Ela está louca da vida. Pelo visto não vai conseguir ir.
– É uma pena, ela estava tão empolgada...
– Pois é.
Nós tomamos um café e penso em dizer a ela sobre Carter e Matthew
King, me calo.
– Ei, garotas.
Harry Cooper entra sorrindo para nós.
– Oi, Harry – O cumprimento, tentando não ficar incomodada com
seu olhar interessado.
Desde que se mudou para a cidade agia assim. Eu pensava que ele
havia desistido de mim, aparentemente estava enganada.
Ainda bem que Janine não estava.
Ele se senta à mesa conosco.
– A Janine me ligou avisando que vai viajar.
– Oh, que pena Harry. – Aria comenta realmente chateada. – Vai ao
baile sozinho?
Ele me lança um olhar nervoso e coça o cabelo.
Oh. Oh.
– Então... eu estava pensando se você não gostaria de ir comigo,
Evangeline...
Mordo os lábios e troco um olhar com Aria que parece surpresa e
levemente divertida.
Também um pouco esperançosa. Ela havia insistido muito comigo
para eu ir ao baile.
– Harry... – procuro uma resposta.
– Por favor, Evangeline. Não quero ir sozinho e me lembrar disto para
o resto da vida!
– Eu nem ia... sabe muito bem.
– Agora pode ir. Estou te convidando.
Aria sacode a cabeça afirmativamente, sem esconder sua ansiedade.
– Mas Janine...
– Ela não vai se importar. – Aria diz rápido e lhe lanço um olhar de
descrença. – Quer dizer, vocês são amigos, não é? Fala para ela, Harry, que
você a está convidando como amigo...
Ele pisca.
– Claro, claro. Como amigo.
Embora duvide muito, não contesto.
Sério que estou cogitando ir ao baile com Harry Cooper?
– Eu não sei...
– Por favor, Evangeline... por favor! Estarei sozinha agora que Janine
não vai.
– Você estará com Peter, Aria.
– Sabe o que quis dizer! Quero a companhia de uma amiga! Por
favor...
Suspiro, me deixando convencer. Espero não me arrepender.
Se eu soubesse...
Capítulo 6

Matthew

– Sofia? – Eu a encaro surpreso. – O que faz aqui?


Ela se levanta e vem em minha direção, com seu sorriso radiante.
– Vim te trazer seu presente, lembra?
– Você veio sozinha? – Pergunto preocupado.
– Não! Vim com o Sam.
Só então eu vejo que há um rapaz na sala também.
Ele acena, como que pedindo desculpas.
– O Sam estava me levando para casa, eu o convenci a me trazer aqui!
– Ela diz piscando para o tal Sam, como se estivessem compartilhando um
segredo.
Sinto ciúmes. Quem era este tal Sam?
Acho que ele percebe meu olhar ameaçador, pois se aproxima com
um sorriso cordial, estendendo a mão.
– Oi, Sam Blake. Sou amigo da mãe dela – explica. – E, falando na
sua mãe, Sofia, acho melhor a gente ir...
– Sua mãe sabe que veio?
Ela fica vermelha.
– Não... não vou demorar. Só passei para te entregar...
Ela tira a mochila das costas e retira um livro de lá.
Orgulho e Preconceito.
Sinto como se tivesse recebido um murro no estômago.
– É meu livro predileto! – Sofia explica sorridente, então me encara
preocupada. – Oh... você não gostou.
– Claro que gostei – sorrio para ela. – Só estranhei uma garotinha
como você ser fã da Jane Austen.
Ela sorri.
– Minha mãe também é!
Escuto um pigarreio e só então me lembro da presença de minhas
irmãs.
Elas me encaram confusas e intrigadas.
– Não vai apresentar sua... amiga, Matthew? – Ella pergunta curiosa.
– Esta é Sofia... – digo, constatando que não sei seu sobrenome.
– Sofia... precisamos ir. Não quero problemas com a sua mãe... – Sam
parece angustiado, olhando o relógio.
– Tudo bem Sam. – Ela coloca a mochila nas costas de novo. – Tenho
que ir, Matthew.
– Claro. Espero que não faça mais isto, sair sem comunicar a sua mãe.
– Falo, tentando soar sério.
Ela sacode a cabeça afirmativamente, embora minha impressão seja
de que Sofia não é a mais obediente das filhas.
– Pode deixar! E de novo obrigada pelo livro! Estou adorando.
– Fico feliz que tenha gostado. Gostei do seu também.
Ela sorri feliz e, para minha surpresa abraça minha cintura com seus
braços pequenos, se afastando em seguida pegando a mão de Sam Blake.
– Tchau Matthew!
Fico olhando-a se afastar com um sorriso. É realmente encantadora.
– Ei, Sofia. – Eu a chamo, antes de sair. – Volte sempre que quiser.
Só peça permissão para sua mãe antes, ok?
Ela sorri.
– Combinado!
Assim que eles saem, Ella e Emily começam seu interrogatório.
– Quem é esta garota? – Ella pergunta divertida. – É muito fofa!
– Sim, também estou curiosa! – Emily indaga.
– Dei carona a ela um dia destes depois resolvi lhe dar um livro. –
Faço um gesto com o livro nas minhas mãos. – E ela retribuiu.
Emily revira os olhos.
– Meu Deus Matthew, por quê? Resolveu ser benfeitor de garotinhas
desconhecidas? Cada dia te entendo menos!
– Acho que é o tédio deste lugar! – Ella ri. – Embora tenha que
concordar. A garotinha é mesmo uma graça! Um livro? Podia ter dado um
casaco de marca, ou um cardigã lindo que vi no...
– Ella, não diga besteiras. Eu queria estimulá-la, estas coisas. Ela me
pareceu bastante esperta e inteligente.
– Parece mesmo ser inteligente, se já lê Orgulho e Preconceito. –
Emily comenta. – Que coisa bizarra. Tão bizarra quanto você quando era
criança – Emily ri com Ella. – Lembra Ella, quando fazíamos nossas listas de
natal, Matt sempre pedia livros!
– Lembro! – Ella concorda – E você virou um escritor rico e bonitão
ainda bem, temia que se tornasse um daqueles nerds de computador.
Eu as ignoro.
– Sofia não é bizarra. É adorável.
– E você está encantado por ela – Emily rola os olhos e bufa. – Deve
ser o tédio mesmo!
– Ou deve estar precisando ter seus próprios filhos – Ella ri. – Só falta
a esposa, né?
Ela continua rindo e Emily a segue.
É minha vez de bufar.
Recordando-me de Evangeline Evans.
E seu vestido de noiva.
O que traz de volta toda a irritação que estava sentindo antes de
chegar em casa e ver Sofia.
– Que bom que divirto vocês – resmungo.
– Estou vendo que o mau humor voltou. – Ella diz.
– Vou para meu quarto.
Emily segura meu braço e me encara nos olhos.
Aquele seu olhar de "eu quero falar e você não vai poder fugir para
sempre"
– Matthew...
Suspiro cansadamente.
– Agora não.
Ela me solta, sei que não vai demorar para ela voltar ao assunto.
– Acho que devíamos sair hoje e espairecer! Jantar fora! – Ella diz,
desanuviando o ambiente.
Eu e Emily nos fitamos. E então estamos sorrindo.
– Pode ser uma boa ideia. – Concordo enquanto Emily dá de ombros
com seu olhar blasé.
– Sim, pode ser...

***
Evangeline

Entro na livraria e Sebastian me fita com um sorriso. Há apenas


alguns clientes por ali, na tarde que finda.
– Oi, e aí, como foi? – Ele se aproxima e tenta me beijar.
Desvio o rosto, ruborizada.
– Sebastian, tem cliente na loja!
Ele ri.
– Qual o problema?
– O problema é que estamos no meu trabalho, esqueceu? – Explico,
embora saiba que este não é o motivo de eu não estar com vontade de beijar
Sebastian.
Tento não pensar nos meus outros motivos quando olho em volta.
– Cadê a Sofia? Ainda no escritório?
– Não. O Sam passou por aqui e ela pediu para ir embora. Ele a levou.
Franzo a testa. Sam era primo de Sebastian.
– Ela ia ficar sozinha em casa?
– Não, pedi para o Sam esperar nós chegarmos, não se preocupe.
Fico mais tranquila.
A última coisa que preciso me preocupar é com Sofia solta por aí,
perigando encontrar Matthew.
Já bastava eu ter me encontrado com ele.
Aquele pensamento me perturba.
Janine entra segurando o café que eu tinha pedido para ela comprar
pra Sebastian, como uma forma de agradecimento.
– Pronto, eis o café do seu noivinho!
– Oh, obrigada – Sebastian agradece.
– Foi a Evangeline que pediu, agradeça a ela!
Sorrio para ele.
– Foi muito gentil de sua parte ficar na livraria para mim.
– Eu não me importo. Sabe disto. Ainda mais que foi cuidar de coisas
do casamento... – ele sorri.
Tento sorrir de volta com a mesma animação.
– Sim, ainda faltam trilhões de coisas – Janine resmunga. – Se não
fosse a gente encontrar o...
– Janine, acho que aquele cliente precisa de ajuda. – Eu a interrompo
a tempo. Não quero que Sebastian saiba que encontrei Matthew King.
Ela vai até o cliente e eu fito Sebastian.
– Vou indo, tenho que comprar peças para uns carros...
– Claro, não quero te atrapalhar mais.
– O que acha de a gente sair para jantar hoje?
– Jantar fora?
– Sim, precisamos comemorar.
– Tudo bem – respondo, embora não me sinta tão certa.
– A gente se vê à noite então. E não se preocupe com Sofia. Peço para
o Sam cuidar dela.
– Certo. Combinado.
Ele sai e o sorriso no meu rosto se desfaz.
Estou preocupada. Para não dizer apavorada.
Matthew King está de volta. E tudo o que eu quero é que seja um
pesadelo. Imagino-me trombando com ele de novo, numa cidade tão pequena.
Ou Sofia. Apesar de eu tê-la proibido é perigoso. E se Matthew descobrir que
ela é minha filha? Não quero nem pensar.
– Oi Evangeline.
Harry Cooper entra na loja sorrindo para mim.
– Oi Harry, posso ajudá-lo em alguma coisa?
Procuro ser solícita e cordial, embora mantenha a distância. Harry
sabe que estou noiva, mesmo assim, às vezes, ainda parece um adolescente
quando me vê.
– Hum... vim só procurar um livro...
– Claro, vou chamar Janine para te ajudar.
Janine se aproxima.
– Oi Harry, veio me ver? – Ela brinca piscando.
Janine e Harry já ficaram juntos muitas vezes. Nunca dá certo por
muito tempo.
– Ele precisa de ajuda para encontrar um livro – respondo.
– Claro! Harry, já sabe da novidade? A Evangeline vai casar!
– Disto eu já sei. – Ele diz.
– Agora é pra valer, marcou a data e tudo. Será daqui um mês!
O sorriso de Harry parece congelado no rosto.
Quase sinto pena.
– Meus parabéns – ele diz sem graça. – Bom, acho melhor eu passar
outra hora com calma para procurar o livro. Já estão fechando...
– Tudo bem, volte quando quiser – sorrio cordial enquanto ele se
afasta.
– Deus, o Harry nunca vai superar sua paixonite por você? É ridículo!
– Janine comenta.
– Está exagerando.
– Sabe que não! Já briguei com ele por sua causa! Falei que só
voltava com ele, se parasse de ser babaca com você.
– Janine...
– Sei que vocês saíram uma vez, mas...
– O que quer dizer? Nunca saí com o Harry. Só fui ao baile da escola
com ele. É diferente.
De repente senti que havia algo mais.
– Posso te perguntar uma coisa?
Ela fica vermelha, o que é quase inédito para Janine.
– Pergunte.
– A Sofia é filha do Harry?
Quase engasgo.
– Não! De onde tirou esta ideia? – Agora estou mais vermelha que
ela.
– Me desculpe por perguntar, porém, às vezes eu ficava desconfiada...
– Nunca tive nada com o Harry... Claro que Sofia não é dele, meu
Deus!
– Sei, é de um cara com quem você ficou, que não mora mais na
cidade... – ela repete a história que contei a todos sobre o pai de Sofia.
Ela era fruto de um namoro de verão com um cara que não mora na
cidade e que ninguém conhece.
Só para Sebastian contei a verdade. Mesmo assim, parte dela. Ele não
sabe do pior. Nunca saberá.
Ninguém a não ser os King sabe.
– Esta história sempre me deixou curiosa... este seu tal namoro de
verão... você nunca fala dele, do cara que foi embora e te deixou grávida.... –
De repente Janine para e arregala os olhos, a cor fugindo de seu rosto. – Oh
meu Deus! É Matthew King!
Agora sou eu que empalideço de horror.
– Janine, não!
– Claro que é... Oh... Só pode ser Matthew! É isto! É o Matthew! Ele
era seu namorado secreto! Daí toda aquela tensão... Oh meu Deus... Sofia é
filha do...
– Chega, Janine, pelo amor de Deus! – Seguro seu braço e
praticamente a arrasto para o escritório, fechando a porta atrás de nós. –
Nunca mais repita isto, entendeu? Esqueça o assunto! – Peço quase em
desespero.
– Então é verdade?
Respiro fundo.
– É – confesso.
– Nossa... Estou chocada!
– Janine, por favor. É segredo, ok? Não pode contar a ninguém.
Ninguém mesmo! Eu te imploro.
– Sebastian sabe?
– Sabe.
– Que complicado... E Sofia?
– Não, ela não sabe de nada e vai continuar não sabendo.
– Matthew...?
– Não! – Respondo rápido.
– Quer dizer que ele não sabia que estava grávida quando foi embora?
– Não, não sabia.
– Agora ele voltou e...
– E nada. Ele não pode saber sobre Sofia.
– Mas...
– Janine, por favor. É um assunto particular. E muito sério. Tem que
me prometer que não vai contar a ninguém.
– Tudo bem. Não contarei. Eu juro. Porém, sinceramente, não
acredito que vai continuar sendo segredo por muito tempo...
E assim ela exteriorizava meu maior medo. Só não queria pensar nele
agora.
– Bom, vamos fechar a loja. Tenho que ir para casa me arrumar. Eu e
Sebastian vamos sair para jantar.
Ela sorri maliciosamente.
– Oh... que legal! O que vai usar?
– Não sei ainda...
– Tenho um vestido novo que ficaria lindo em você.
– Janine...
– Sem discussão. Você me dá uma carona para casa e te empresto o
vestido.
Não discuti. Era melhor mantê-la distraída e feliz.
Algumas horas depois olho minha imagem no espelho enquanto
prendo meu cabelo num coque baixo.
O vestido de Janine era preto e justo. E me sentia meio inadequada
nele.
Sofia estava deitava na cama, lendo Harry Potter. Eu tentava não
pensar em quem tinha dado aquele livro a ela desde a hora que a vi lendo.
Escuto uma buzina.
Sofia tira os olhos do livro.
– Acho que Sebastian e o Sam chegaram... Nossa, mãe, você está tão
bonita!
– É um vestido da Janine... estou bem mesmo? – Pergunto insegura.
– Claro, está linda!
– Então vamos descer.
Encontramos Sebastian e Sam entrando em casa.
Eles me olham com admiração e fico sem graça.
– Uau, Eve, está gostosa! – Sam diz piscando e recebe um soco de
Sebastian no braço.
– Olha como fala!
– Desculpe, ai...
Sebastian se aproxima de mim.
– Ele tem razão. Está linda, Eve.
– Obrigada... podemos ir?
– Claro.
Olho para Sam e Sofia. Eles estão cochichando alguma coisa.
– Ei, vão ficar bem?
– Não se preocupe, cuidarei dela direitinho – Sam responde colocando
o braço nos ombros de Sofia.
– Tem comida na geladeira é só esquentar.
– Sim, a gente se vira.
– Então vamos – pego meu casaco.
– Divirtam-se! – Sam diz e nós saímos para a noite escura.
– Você parece tensa – Sebastian diz quando estaciona o carro em
frente a um restaurante italiano.
Tento sorrir.
Sim, estou tensa. E tenho mil motivos. Só não quero dividir com
Sebastian meus receios. Se o fizer tenho certeza que eles se multiplicarão.
– Estou bem.
Ele segura minha mão quando saímos do carro
– Sebastian, não acha um exagero? – Pergunto quando entramos no
restaurante muito fino, mais frequentado por turistas endinheirados.
– Nada é demais para minha noiva. – Ele me puxa para perto com o
braço, beijando meus cabelos.
Quando levanto o olhar, arregalo os olhos, horrorizada.
A poucos metros de distância vejo os King, andando
despreocupadamente para sua mesa.
E claro, meus olhos focalizam naquele que é a razão de todos os meus
problemas.
Matthew King.
Dez anos antes
Evangeline

Onde eu estava com a cabeça quando concordei em ir ao baile com


Harry Cooper?
Eu odiava aquele tipo de cerimônia tola e infantil da escola. E de
qualquer maneira já me sentia na faculdade.
Eu iria para Princeton em breve. No fim do verão.
– Vamos dançar? – Harry pergunta assim que entramos e estremeço
de horror.
Os casais dançavam uma música agitada a nossa volta e, mais do que
nunca, me sinto muito idiota, vestindo aquele traje de festa azul que Aria
escolheu. Até saltos estava usando. Eu esperava não cair.
O que era muito fácil em se tratando de mim. Afinal, não tinha o
hábito de usar aquele tipo de roupa. Ir a festas e dançar não era exatamente
meu estilo. Eu fazia mais o tipo nerd que prefere ficar em casa com um bom
livro. Então dançar estava fora de questão. Definitivamente.
– Ei Evangeline!
Escuto a voz de Aria e respiro aliviada. Ela se aproxima com seu
namorado e me abraça.
Está radiante em seu vestido rosa.
– Você veio! – Ela ainda parece surpresa e dou de ombros.
– Prometi a você que viria, não é?
– Garotos, poderiam pegar uma bebida para a gente? – Aria pede e
eles se afastam.
Ela me encara.
– Evangeline, pelo amor de Deus, se divirta!
– Estou me divertindo.
– Não, está odiando! O que há para ser odiado num baile?
Muitas coisas quero dizer, mas me calo.
– Janine me ligou mais cedo. Disse que era para te avisar que tem sua
permissão para ficar com o Harry.
Eu a encaro confusa então entendo o que Janine quis dizer e coro.
– Eu e Harry... não! – Estremeço, não gostando da ideia e Aria ri.
– Relaxe. É só um baile! Não tem problema se fizer algumas
loucuras! Terá histórias para contar daqui uns anos... Oh meu Deus. – Ela
olha estupefata para a porta do salão. – Os King vieram.
Eu me viro e os vejo.
São como a realeza. A multidão se abrindo boquiaberta para as
figuras elegantes passarem. Duas garotas loiras deslumbrantes estão à frente,
com vestidos que devem custar o valor de toda a decoração da festa.
Certamente Emily e Ella King. O rapaz alto e forte que se apresentou para
mim com aquela brincadeira idiota vem logo atrás, gingando o corpo com um
sorriso de quem acha tudo muito engraçado. Ele se aproxima de uma das
garotas e cinge sua cintura. Deve ser seu namorado jogador de futebol,
presumo.
E um pouco atrás, sozinho recebendo o olhar faminto de cada garota
naquele lugar, vem Matthew King.
Seus olhos verdes varrem a multidão e param em mim.
E perco o ar.
Naquele momento é como se todos na festa desaparecessem restando
somente nós dois. Então seus lindos lábios se distendem num sorriso de lado.
Eu ofego, tentando levar ar aos meus pulmões.
O calor no salão aumentou de repente.
E, mortificada, percebo que o calor vem de dentro de mim.
– Uau, eles são demais – Aria exclama.
Desvio o olhar, vermelha feito pimentão. Meu coração está disparado.
E me sinto mais idiota do que nunca. Matthew King estava rindo de
mim, era isto? Com certeza devo ser uma grande piada para ele.
– Cadê os garotos? – Aria pergunta se abanando. – Estou morrendo de
sede! Espere aqui que já volto, vou ver o que aconteceu...
Quero puxá-la de volta e pedir para não me deixar sozinha, mas não
tenho tempo. Quase no mesmo instante o ar muda sutilmente a minha volta.
Sinto sua proximidade antes mesmo de levantar a cabeça e me deparar
com seu olhar esverdeado muito perto.
– Olá.
Tento buscar as palavras em meu cérebro entorpecido por sua
presença deslumbrante.
De perto ele é ainda mais impressionante.
– Por que está falando comigo? – Consigo dizer por fim.
Ele sorri.
Ofego. Os músculos da minha barriga se contraem.
– Ainda não sei seu nome.
Mordo os lábios, desconcertada.
Seus olhos acompanham o movimento. Parecem se estreitar.
O oxigênio está rarefeito de novo.
– Evangeline Evans – respondo baixinho.
– Evangeline – ele saboreia meu nome.
Ou assim me parece. Me deixando com água na boca.
Sinto vontade de pedir para ele falar dentro do meu ouvido.
– Certo, Evangeline. Meu nome você já sabe.
– Claro, é um dos King – minha voz sai cheia de sarcasmo e seus
olhos se estreitam curiosos.
– Hum... O que tem ouvido falar dos King, para parecer tão negativa
sobre nós?
Dou de ombros me sentindo mais conectada com a realidade. Se não
olhasse diretamente para ele ficava mais fácil.
– Deve saber que está todo mundo comentando. São quase como
astros de cinema para simples caipiras como nós.
Ele ri claramente agora.
– Cidades pequenas...
Mordo os lábios de novo. O som do riso dele tem algo de estimulante.
Causa-me arrepios.
– Dance comigo – pede de repente.
– Eu não danço – afirmo amedrontada.
Está tocando uma música lenta agora e me encolho de horror.
Ignorando minha negativa Matthew segura minha mão e me puxa
para perto dos outros casais.
– Matthew, por favor... – estou quase roxa de vergonha.
– Relaxe. É só uma dança. – Ele diz quando paramos frente a frente.
– Eu não sei dançar...
Então ele sorri e, antes que eu perceba o que pretende fazer, seus
braços estão a minha volta e ele me guia magistralmente. – Melhor assim? –
Ele pergunta enquanto se move comigo pela pista.
Não consigo responder.
Estou ocupada com meu coração loucamente disparado no peito.
Estamos tão perto, tão... colados...
Posso senti-lo inteiro. Meus seios esmagados em seu peito, nossas
pélvis se roçando. Meu corpo inteiro cora num delicioso e inédito despertar.
Como se todas as células acordassem depois de um longo sono invernal.
Está tudo vivo e em movimento no meu interior.
Nossos olhares se encontram e se prendem e nada falamos por longos
minutos. Apenas a música e nosso suave movimento.
Ele sabe dançar, não há dúvida.
De repente percebo que estou gostando. Realmente gostando de estar
com aquele King. Num baile de verão. Dançando.
– Eu amo esta música – ele diz de repente. Vagamente percebo que
está tocando Coldplay. Matthew cantarola um verso que diz o quanto alguém
está adorável.
E de alguma maneira sinto como se fosse pra mim.
– Carter disse que não ia conseguir.
Pisco quando ele quebra o silêncio.
Ele está sorrindo.
– Conseguir o quê?
– Dançar com você.
É como um balde de água fria no calor escaldante em que eu me
encontrava até agora.
– Estava apostando com seu amigo? – Minha voz sai cheia de uma
irritação que não consigo conter.
Matthew fica sério.
– Não foi o que eu disse.
Não estamos mais dançando.
– O que quis dizer então? Esclareça.
Ele dá de ombros.
– Apenas que começamos com o pé esquerdo. Carter achava que você
nunca ia me dar atenção de novo...
Eu me desprendo dele, que não tenta me conter.
Estou borbulhando de raiva e humilhação.
– Seu amigo tinha razão.
– Evangeline... Me desculpe se a ofendi de alguma maneira... não foi
minha intenção... Deus, você é tão absurda.
Fico mais raiva ainda.
– Bom, a pessoa absurda aqui está dando o fora!
Eu me afasto quase correndo e só paro dentro de um banheiro. Me
tranco lá e respiro fundo várias vezes.
Fui muito absurda mesmo. Mas por ter acreditado por um momento
que um cara como aquele sentiria algum interesse por mim. Ou talvez ele até
tivesse, porém de maneira alguma era recíproco! Era um cara rico e arrogante
eu queria distância de gente assim!
Mais calma decido ir embora. Vou procurar Harry e dizer que para
mim, a festa acabou.
Escuto passos se aproximando e espero antes de abrir a porta.
– Você sabe com quem o Matthew estava dançando?
Fico em alerta. Quem será que está ali?
– Carter me falou que é uma garota com quem ele está a fim de
brincar.
Abro a boca horrorizada. O quê?
– Ai, Emily, o Carter disse isto? Não acredito que o Matthew tenha
algum interesse...
– Ella, você é tão ingênua às vezes!
As vozes se afastam.
E permaneço ali, remoendo suas palavras.
Como eu imaginava Matthew só queria "brincar" comigo. Ele estava
muito enganado se pensava que conseguiria alguma coisa. Eu nunca ficaria
com ele. Nunca!
Capítulo 7

Evangeline

Sebastian acompanha meu olhar e seu corpo fica tenso.


– Que inferno! O que estes imbecis estão fazendo aqui? – Sua voz é
quase um rosnado.
Aperto seu braço.
– Calma, Sebastian... A gente pode ir embora...
– Não. Vamos ficar. – Ele segura firmemente minha mão enquanto
somos conduzidos a nossa mesa, que, para meu alívio, fica a uma boa
distância da mesa dos King.
Mesmo assim eles estão no nosso campo de visão. Deliberadamente
escolho a cadeira que me deixa de costas para eles.
– Relaxe. Parece que teremos que nos acostumar a encontrar estes
riquinhos por um tempo, não é?
– Continuo achando que seria melhor irmos embora.
– Não. Não podemos fugir com o rabo entre as pernas como se
tivéssemos feito algo errado toda vez que trombarmos com eles. É ridículo.
– Você sabe do que eu tenho medo. – Digo quase num fio de voz,
grata por ter ficado de costas para a mesa dos King.
– Eu sei. Não tem como eles descobrirem, Eve. E Sofia nem veio.
Penso em contar a ele que Sofia conhece Matthew, opto por me calar.
O clima já está tenso o suficiente para que eu acrescente algo mais.
– Gostariam de fazer o pedido? – O garçom pergunta e fazemos nosso
pedido.
Sebastian sorri e segura minha mão.
– Estou feliz, Eve, não vou deixar o cretino do seu ex estragar tudo.
Respiro fundo e sorrio também. Por dentro estou uma pilha de nervos.
Me perguntando se eles já nos viram.
Sem querer eu me viro e, neste exato momento, meu olhar cruza com
o de Emily King.
Ela parece chocada quando me vê.
Viro-me rapidamente, respirando rápido. Neste momento ela deve
estar contando aos irmãos que estamos ali. Sebastian olha na mesma direção
e faz uma carranca.
– Parece que fomos vistos.
Faço um esforço sobrehumano para não me virar.
– Esqueça-os, Sebastian.
– Sim, é o que vou fazer.
Enquanto o garçom traz nossos pedidos, a tensão cresce em vez de
diminuir.
– Você contou a Sofia que marcamos a data do casamento?
– Claro.
– E o que ela achou?
– Normal.
– Você ainda não me contou o que aconteceu naquele dia que ficou
zangada com ela.
Eu me remexo incomodada.
– Tenho a impressão que está escondendo algo.
Respiro fundo e decido contar.
– Sofia conheceu Matthew.
– O quê? Como...?
– Ela pegou uma carona com ele.
– Ele sabe...?
– Não, claro que não! Ele nem faz ideia de que ela é minha filha. É
claro que Sofia também não tem noção de quem é Matthew.
– Por isto ficou zangada com ela? Dá para entender. Podia ter me
contado.
– Fiquei irritada também porque ela sabe que não pode sair por aí
pegando carona com estranhos.
"Mesmo este estranho sendo seu pai biológico" meu subconsciente
sussurra.
– E saber que ela e Matthew se conhecem... me deixou apavorada.
– Foi só uma carona, Eve. E, como você mesma disse, eles não fazem
ideia de nada.
– Não foi só esta vez que se viram. Matthew foi até a escola e lhe deu
um livro de presente.
– O quê? Por que ele faria algo assim?
– Não sei! Descobri por causa deste maldito livro! Obviamente Sofia
escondeu de mim a história da carona, foi obrigada a me contar quando vi o
livro.
– O que ela disse?
– Que eram amigos – estremeço ao me recordar o quão perto estive de
tudo ser revelado. – Consegue imaginar?
– E o que você fez?
– Dei-lhe uma bela bronca e a proibi de chegar perto dele. Mas... esta
cidade é pequena, Sebastian... É apenas uma questão de tempo os caminhos
deles se cruzarem de novo...
– Eve... Você nunca pensou... em contar a ele?
– Não! – Rechaço a possibilidade rapidamente.
– Sei que quando descobriu a gravidez os King já tinham ido
embora...
– Sim. Quando descobri eles já estavam longe.
E nunca me passou pela cabeça tentar descobrir onde estavam para
poder contar. Mesmo porque, só de pensar em encontrar Matthew novamente,
quando ele foi embora me odiando, fazia meu coração afundar.
Não. Matthew, assim como todos os King, me odiava.
E ainda guardavam rancor.
– Mas e agora?
– Não posso, Sebastian. Como é que eu poderia dividir minha filha
com eles? Eu a criei sozinha. Ela é minha. Só minha.
– Nós vamos nos casar Evangeline. Sofia será minha também.
Desvio o olhar e quase sem querer, viro a cabeça e lá está ele.
Matthew e seus olhos verdes fixos em mim.
Eles parecem dardejar raios de antagonismo em minha direção. Por
um momento sustento seu olhar, sem conseguir me mover, então sinto a mão
de Sebastian sobre a minha e me viro, respirando com dificuldade.
Sebastian estuda meu rosto com curiosidade e preocupação.
– Você nunca me contou... toda a história de vocês.
– Sebastian...
– Deixei que me contasse apenas o que estava pronta. Fui seu amigo e
respeitei. Agora nós vamos nos casar e gostaria que me contasse tudo.
– Eu te contei! Conheci Matthew, nós nos envolvemos. Não deu
certo, nós brigamos e ele foi embora pouco tempo depois.
– Então por que a irmã dele disse aquele dia na livraria que ele ainda
te odeia? O que de tão grave aconteceu para ele te odiar?
Dou de ombros.
– Às vezes os términos não são fáceis...
– Se passaram dez anos. Não faz sentido ele continuar guardando
alguma mágoa se foi uma simples briga de namorados.
Não sei o que responder e desvio o olhar.
– Sebastian esqueça, ok? Sinceramente, não faço ideia do motivo de
Matthew King ainda se dar ao trabalho de ter raiva de mim. – Minto e me
pergunto se Sebastian está acreditando. – Vou ao banheiro. Acho melhor
pedir a conta e irmos embora.
Entro no banheiro feminino e miro minha imagem no espelho.
Estou pálida, meus olhos parecem grandes e assustados.
Mordo os lábios com força, tentando me acalmar. Encontrar Matthew
e sua família, as perguntas de Sebastian... tudo isto está acabando com meus
nervos. A única coisa que quero é voltar para casa e ficar sozinha.
Sem um King me assombrando ou até mesmo Sebastian.
De repente a porta se abre e me preparo para sair, ao me virar, Emily
King está na minha frente.
– Olá Evangeline.
– Emily...
Ela dá um sorriso frio. Tento me manter calma.
– Que coincidência encontrar você e seu noivinho mecânico sujo de
graxa aqui.
– Sim, como disse, uma coincidência.
– Sério?
– Duvida? Acha que vim de propósito? Pois se enganou, não fazia
ideia que estivessem aqui, se soubesse não teria vindo a este restaurante.
– Posso dizer o mesmo... Como já disse nós não nos esquecemos de
quem você é...
– Emily, por que veio atrás de mim? Foi seu irmão que te mandou
para me xingar?
Ela ri.
– Não, claro que não. Matthew te detesta e...
– Sim, disto eu já sei. Não precisa me perseguir em banheiros para
ficar repetindo, agora, se me der licença... – tento passar, ela se põe na minha
frente e segura meu braço com força.
– Sempre quis dizer na sua cara exatamente o que penso sobre o que
fez há dez anos e você vai ouvir...
– Emily, pare!
Nós duas nos viramos ao mesmo tempo quando ouvimos a voz na
porta do banheiro.
E não sei quem está mais surpresa, se eu ou ela, por ver Matthew.
Ele nos encara sério e por um instante ninguém fala nada.
– Saia Emily – pede.
– Mas, eu...
– Agora! – Seu tom é inflexível ela larga meu braço e sai do banheiro,
não sem antes me lançar um olhar mortal.
Eu me preparo para sair também.
Matthew está entre mim e a porta.
E sei que não será tão fácil fugir.
– O que estava acontecendo?
– Não viu? Aparentemente sua irmãzinha não superou seu ódio por
mim, mesmo depois de tanto tempo. Deve ser cansativo.
– Emily é muito emotiva.
– Emotiva? Ela me parece meio psicopata às vezes. Desde quando
você a nomeou protetora da sua virtude?
– Ela tem suas razões para não gostar de você.
– Pensei que depois de dez anos vocês nem se lembrariam da minha
existência.
– Gostaria muito que fosse assim...
– Escute Matthew, não temos nada para dizer, por favor, me deixe
passar. – Peço, não sabendo até quando manteremos aquele arremedo de
conversa civilizada.
– Seu noivo sabe sobre mim?
– Por que saberia?
– Porque ficou a noite inteira me lançando olhares assassinos.
– Sim, ele sabe. E deve estar se perguntando por que estou
demorando, então...
Dou um passo à frente. Matthew também.
De repente ele está muito próximo.
Respiro fundo para me acalmar, o que é um erro.
Seu cheiro peculiar invade minhas narinas, minha memória olfativa
me traindo com imagens antigas que parecem novinhas em folha dentro de
minha mente traiçoeira.
Meu coração dispara alarmantemente.
– O quanto ele sabe?
– Que diferença faz?
– Com certeza não sabe tudo...
– Por que ainda estamos falando sobre esse assunto? Matthew, se
passaram dez anos. Não temos mais nada a ver um com o outro! Deixe o que
aconteceu no passado!
– Acha que não quero deixar? Passei todo esse tempo fingindo que
nunca nem tinha te conhecido e agora você está aqui. Parece que não se
passou nem um dia... – Seu olhar passeia por mim e se prende em meu rosto.
Eu mal consigo respirar, quanto mais me mover. – Ainda parecendo a mesma
garota do baile de verão. Tão inocentemente bonita...
– Matthew... – fico em alerta.
Meu corpo inteiro está em alerta.
– Sim, você continua bonita. Embora saibamos agora que o inocente
não se aplica. – Escuto suas últimas palavras como se fosse uma bofetada me
atingindo.
– Não preciso ficar ouvindo estes absurdos!
Movo-me para passar por ele, Matthew é mais rápido e, sem que ao
menos saiba como ou por que, ele está me puxando para perto. A mão em
minha nuca me leva em sua direção e sinto sua respiração em minha língua
antes que seus lábios toquem os meus.
E sou transportada para o passado.
Matthew King está me beijando.
De alguma parte do meu cérebro entorpecido vem esta constatação e
sofro enquanto meus lábios exultam. Eles se movem no mesmo ritmo que os
dele. Numa exploração de reconhecimento, nossas línguas se buscando e se
enroscando, mandando mil agulhadas em direção à minha barriga.
E me colo nele, meus dedos castigando seus cabelos, enquanto suas
mãos se infiltram em meu coque, desmanchando tudo.
Ele me desmancha inteira naquele momento.
Não me importo.
Estou ocupada demais matando a saudade de seus lábios, de sua
língua, de seu gosto. Do prazer quente que toma conta de mim me fazendo
desejar coisas que não desejei durante muito tempo.
Porque nenhum beijo era igual ao de Matthew.
Ninguém era igual a Matthew.
E, enquanto estamos nos beijando loucamente naquele banheiro,
tenho plena consciência do quanto minha boca sentiu falta da sua.
Do quanto meu corpo ansiou ter o dele assim, colado no meu.
Senti muita falta dele.
Puta que pariu, eu estava numa enrascada.
De repente a porta se abre e no segundo seguinte ele me solta.
A moça que entrou nos encara curiosa e divertida, coro até a raiz do
cabelo e finalmente me dou conta do que estava fazendo.
E sinto-me uma idiota.
Sem dizer nada saio quase correndo de lá.
Sebastian me encara preocupado.
– O que foi? Você está bem?
Só então tento imaginar em que estado me encontro. Meu cabelo está
desfeito, caindo em cascatas pelas minhas costas e eu ofegante, corada.
De vergonha.
De raiva.
De algum prazer proibido que ainda corre em minhas veias.
– Podemos ir?
– Claro – Sebastian se levanta – já havia pagado a conta.
Ele segura minha mão, enquanto caminhamos para a porta e ainda
arrisco uma última olhada para a mesa dos King.
Todos me encaram friamente.
Matthew não está entre eles.
– O que aconteceu? – Sebastian pergunta finalmente quando estamos
no carro.
– Nada... – desconverso.
– Vi aquela loira nojenta voltando da mesma direção que você, pouco
antes de você voltar.
Olho para ele.
Pouco antes? Emily saiu bem antes de Matthew.
– Vocês se encontraram no banheiro? Ela falou com você? Ela te
ofendeu?
– Sebastian, não foi nada...
– Claro que alguma coisa aconteceu! – Seus punhos batem com força
no volante.
De repente estou assustada. Se Sebastian viu Emily, será que também
viu Matthew?
– Já estava quase indo atrás de você. Fiquei preocupado quando vi a
loira indo na mesma direção.
– Emily gosta de provocar, ela nunca foi com a minha cara.
– Nem quando namorava Matthew?
– Nunca.
– Ele sumiu também. Quando levantou, logo depois que a irmã,
pensei que iria atrás de vocês, só que ele seguiu em outra direção.
Respiro aliviada. Então Matthew fez outro caminho até o banheiro?
Para despistar a família? Ou despistar Sebastian?
Será que já tinha a intenção de me beijar quando foi atrás de mim?
Claro que não, minha mente rechaça a ideia.
Matthew me odiava e deve ter ido para afastar Emily.
Então por que me beijou?
Levo os dedos aos lábios. Ainda sinto seu gosto...
– Você não falou com o Matthew, não é?
Olho pra Sebastian e só então percebo que o carro parou e ele me
encara desconfiado.
– Não! Claro que não! Estava no banheiro feminino.
Agradeço a semiescuridão do carro que não denuncia meu rosto que
com certeza está vermelho.
Eu me odeio naquele momento por mentir pra Sebastian. O que eu fiz
não foi nada correto. Como posso ter permitido que o Matthew me beijasse
quando estou noiva? Sebastian não merece.
Eu não tive culpa, tive? Matthew me pegou de surpresa.
Mas eu gostei. Muito.
Tento afastar este pensamento. Para meu consolo, pelo menos sei que
nunca mais vai se repetir.
– Por que voltou com os cabelos soltos do banheiro?
– Estava me machucando – Estou virando uma mentirosa compulsiva.
Não foi disto que os King me acusaram no passado?
– Sebastian, fala sério, acha que eu tive alguma espécie de encontro
com Matthew King no banheiro? Pelo amor de Deus! – Desvio o olhar.
– Tudo bem. Sei que estou sendo ridículo.
– Sim, não precisa se preocupar com qualquer coisa envolvendo
Matthew. Não neste sentido. Ele não tem mais nenhum interesse em mim.
Sabe que me detesta.
– Sim, eu sei. E você?
Volto a encará-lo.
– Se passaram dez anos, Sebastian. Nada mais restou – respondo,
querendo acreditar desesperadamente nas minhas palavras. – Agora, será que
podemos ir embora? Estou cansada.
Sua mão segura a minha e ele se aproxima.
– E se fôssemos para a minha casa?
Um alerta vermelho se acende em minha mente.
– Sebastian...
Ele toca meu rosto.
– Já esperamos demais, Eve. A gente vai casar em menos de um mês.
– Preciso ir para casa ficar com Sofia.
– Sam cuida dela, não se preocupe.
Ele tenta me beijar, viro o rosto na última hora.
– Não posso. Não esta noite – respondo, quase que para mim mesma.
– Eve – Sebastian ainda continua a me abraçar, eu o empurro.
– Não, Sebastian, por favor...
Finalmente ele me solta.
Parece nervoso. E nem posso culpá-lo.
Sei que ele tem razão. Se vamos nos casar, qual o problema? Eu teria
que ir para a cama com ele mais dia menos dia. Mas hoje? Depois do beijo de
Matthew... Eu não conseguiria. De maneira nenhuma.
– Eve, por que continua agindo desse jeito?
– Você concordou em esperar...
– Esperar até quando? Até depois do casamento?
– Por que não? Esperamos até agora! E falta apenas um mês.
– Não me lembro de você ser tão certinha antes...
– Ei! – Agora sou eu que me sinto ofendida.
Sebastian é meu melhor amigo. Sempre foi.
Ele sabe sobre Matthew. E sobre a única vez que tentei ter um
relacionamento com outra pessoa naqueles dez anos e foi um desastre.
– Me desculpe, Eve. Não devia ter falado isto, mas... você ficou com
este Matthew King mesmo ele sendo um idiota riquinho que te virou as
costas sem mais nem menos, te deixando grávida...
– Ele não sabia que eu estava grávida.
– E depois namorou aquele imbecil que não passava de um cafajeste...
– Precisamos realmente falar sobre isto? É passado! E me arrependo
profundamente destas duas ocasiões e não estou gostando nada de ter você
jogando na minha cara!
– Tudo bem, me desculpe.
– Vamos embora.
– Eve... – ele tenta me abraçar, eu não permito.
– Chega, Sebastian. Me leve para casa, agora!
Ele dá partida e seguimos em silêncio até chegar a minha casa.
Sam abre a porta e acena.
Saio do carro antes que Sebastian queira falar mais alguma coisa.
– Ei Sam, Sofia dormiu?
– Dormiu. E aí, a noite foi boa? Voltaram cedo – ele dá um sorriso
malicioso, o que me faz desconfiar que Sebastian tinha dito a ele como a
noite iria terminar.
– Sim, amanhã é dia de trabalho. Obrigada por ter cuidado da Sofia.
Te devo uma!
– Imagine, pode pedir sempre que quiser!
Eu me viro para Sebastian.
– Nos falamos depois, ok?
– Eve...
– Depois Sebastian. – Me viro para entrar em casa, fechando a porta
atrás de mim.
E só me sinto tranquila outra vez, quando deito e abraço Sofia.
Só ela importa.
Nem Matthew. Nem Sebastian. Nada.
Durmo tentando acreditar nisto.

***
Hoje é sábado como Sofia não tem aula eu a levo comigo para a
livraria. Ela parece inquieta e me pergunto quando meu pai vai voltar. Num
dia como hoje, ele poderia ficar de olho nela para mim.
Ainda não me sinto segura em deixá-la sozinha. Não com Matthew
por perto.
Matthew. Pensar nele me faz voltar à noite passada e ao beijo...
– Ei, sonhando acordada?
Pisco quando Janine surge na minha frente.
Ela está rindo.
– Foi boa a comemoração ontem, hein... – ela me encara
maliciosamente e eu coro.
– É... – faço um sinal para ela parar de falar destas coisas, pois Sofia
está por perto.
– Ah sei... Falando em Sofia, ela te disse que pegou um livro ontem?
– Livro? Que livro? Para a escola?
– Não sei. Era um exemplar daquele que você adora, Orgulho e
Preconceito.
– Não, não me disse...
Caminho até onde ela está sentada numa poltrona lendo o Harry
Potter.
– Sofia?
Ela levanta o olhar e me encara.
– Oi mãe?
– Você pegou um exemplar de Orgulho e Preconceito ontem?
– É.... peguei.
– Para quê?
– Para dar de presente para uma amiga da escola – ela sorri. – Tudo
bem, não é?
– Claro, da próxima vez me avise, ok? Os livros não podem
simplesmente sumir da prateleira, já te expliquei.
– Me desculpe, eu ia te falar... – de repente ela para e pula do sofá,
acenando. – Olha, Sam chegou!
– Oi, Sofia... Evangeline... – então ele se vira pra Janine e seu olhar
muda sutilmente. – Oi, Janine.
Janine acena de onde está continuando seu trabalho.
Hum... Sam estava interessado em Janine?
– Oi Sam, o que faz aqui?
– Sofia não te falou? Vou levá-la para pescar.
– Pescar? Não, não me falou. – Eu a encaro interrogativamente e ela
sorri daquele jeito que sabe que sempre me amolece.
– Por favor, mamãe, não quero passar o dia inteiro trancada hoje até o
sol saiu!
Suspiro vencida.
– Tudo bem, não voltem tarde!
Ela abraça minha cintura e eu a aperto.
– E tomem cuidado!
– Pode deixar... – Sam pega a mão de Sofia e lança outro olhar em
direção a Janine, ela não lhe dá a menor bola.
Pobre Sam.
Eles saem e vou em sua direção.
– Sabe que ele está a fim de você, não é?
– Quem?
– Sam! Vai dizer que não percebeu?
Ela rola os olhos.
– Não sou chegada em garotos que mal saíram das fraldas!
– Ele tem vinte, acho!
– E eu vinte e sete, sou quase a tia dele!
– Bom, ele é um cara legal. E bonito.
– Sim, ele é bonitinho, mas... não sei...
– Dê uma chance a ele. Pode se surpreender.
– O que deu em você e Sofia?
– Eu e Sofia?
– Sim, desde de manhã que ela está com esta mesma conversa,
tentando me convencer de como o tal Sam é legal e que eu devia aceitar sair
com ele...
– Sofia fez isto? Vai ver Sam pediu para ajudá-lo...
– Pedir ajuda para uma criança? Golpe baixo.
– Bem, você quem sabe. Acho que poderia dar certo...
– Vou pensar. – Ela olha o relógio e são três da tarde. – Enfim, deu
minha hora. Vai ficar bem sozinha?
– Claro. Vou só checar se está tudo ok e fechar. Não tem mais
nenhum cliente mesmo.
– Devia sair com o Sebastian e aproveitar a tarde. É um milagre a
temperatura ter subido um pouco – ela pisca enquanto se afasta.
Penso em Sebastian e na nossa conversa de ontem. Será que ainda
está zangado comigo? Talvez eu devesse ligar, chamá-lo para fazermos
alguma coisa juntos já que Sofia tinha saído.
Estou pensando nisto quando saio do estoque, disposta a fechar a loja
e ligar para o Sebastian e escuto a porta se abrir.
Hum... Melhor esperar o último cliente. Estaco estarrecida ao ver
quem entrou.
Quem está na minha frente é Matthew King.
Dez anos antes

Matthew

A casa está toda iluminada e a música toca alto. Mesmo do meu


quarto, eu a escuto. Finalmente Ella conseguiu dar sua maldita festa.
Não estou com humor para ser social hoje. Na verdade, nem nos
últimos dias. Desde o baile que Carter me convenceu que seria uma boa ideia
comparecer.
Devia saber que seria perda de tempo.
Evangeline Evans estava fora do meu alcance agora.
– Toc toc. – Emily entra no quarto. Toda vestida de Pink e com
maquiagem pesada. Está linda apesar do exagero.
Dou um sorriso e a elogio, pois é o que ela espera.
– Está linda, Emily.
Ela sorri se jogando do meu lado na cama.
– O que você tem?
– Não estou sociável hoje.
– Hoje? – Ela levanta as sobrancelhas perfeitas. – Está de mau humor
a semana inteira.
– Está preocupada que eu roube seu título de mais chata da família? –
Ela me dá um soco no braço.
– Não tente me distrair. Está assim desde aquele baile cafona...
Não digo nada.
– Eu o vi com aquela garota.
Lá estava. O maldito sexto sentido aguçado de Emily.
– Você parecia... encantado.
Eu me remexo, incomodado.
– O que aconteceu? Não consigo imaginar nenhuma garota resistindo
a você.
– Essa resistiu.
– Oh... Então é este o problema.
– Não classificaria como problema.
Ela fica pensativa me encarando.
– Emily, está perdendo a festa e sei que não se arrumou toda para
ficar aqui trancada comigo.
– Carter me contou que a conheceram numa loja e que você a
convidou para ir ao baile.
Solto uma risada irônica.
– Carter disse isto?
– É mentira?
– Ele a convidou por mim, o que não foi bem aceito por ela, como
pode imaginar.
Emily sorri indulgente.
– Meu querido Carter. Sutileza e esperteza não fazem parte de sua
natureza.
– Peça para ele ficar longe dos meus assuntos, por favor. Este tipo de
ajuda eu dispenso.
– Seus assuntos... Então continua interessado na garota?
– Emily...
– Sei, não é da minha conta, mas... Matthew. – Ela segura minha mão
e me obriga a encará-la. – Nunca vi você olhar para ninguém como olhou
para ela. Acho que está apaixonado.
– Não estou – minto.
Na verdade, nem sei o que estou sentindo.
Só sei é que a acho irresistível.
E não consigo pensar em outra coisa desde que a vi naquela loja.
Depois do fora no baile, em vez de diminuir, meu interesse aumentou mais.
Evangeline Evans tinha se tornado minha pequena obsessão.
– Emily, vá para a festa.
– Não vai mesmo descer? Ella ficará magoada.
– Vou pensar.
Ela se levanta, da porta se volta.
– Ela também estava encantada – diz. – A garota. Estava encantada
com você também.
Ela sai do quarto fechando a porta atrás de si me deixando com suas
palavras.
Evangeline Evans estava encantada por mim?
Eu me recordo de quando dançamos. De como ela corava
deliciosamente. De como parecia ter sido feita para estar ali, colada em mim.
Então por que se afastou?
Eu me levanto e olho a noite escura. Vários carros se aproximam. Os
convidados de Ella circulando pelo jardim iluminado.
Então a vejo.
Evangeline está ali. Poucos metros abaixo de mim. Vestindo jeans e
sueter tão simples, que a diferencia de todas as garotas produzidas a seu
redor. Os cabelos longos ricocheteiam soltos em volta de seu rosto pálido e
desejo estar mais perto para ver seus olhos de âmbar.
Sorrio quase sem querer.
Ela olha para cima. E me vê.
Morde os lábios. Sinto um aperto no baixo ventre.
E a desejo como nunca quis outra coisa na vida.
– Ela veio.
Saio de meu devaneio ao ouvir a voz de Carter atrás de mim.
– Sim, vi sua queridinha chegando e vim ver se vai continuar com
este negócio de reclusão.
Eu podia até xingar Carter nesse momento, porém estou entusiasmado
demais com a perspectiva que a simples presença de Evangeline Evans me
traz.
Então sorrio.
– Não quero magoar, Ella.
Carter me dá um sorriso cheio de malicia.
– Parece que alguém vai se dar bem...
Ignorando suas palavras maliciosas o acompanho porta afora. Afinal,
quero mesmo me dar bem, não é? Eu quero tudo com Evangeline.
Emily está com Ella, as duas cercadas de garotas da cidade que as
olham num misto de inveja e admiração.
Quase como se fossem fãs em volta de seu ídolo.
Emily ergue seu copo num sorriso malicioso e sei que já deve ter visto
Evangeline.
Ella acena feliz.
Carter bate nas minhas costas e desaparece.
Circulo entre as pessoas na festa procurando por ela. E a encontro
num canto. Parece solitária e deslocada. Seu rosto cora violentamente quando
me vê. Tenho vontade de beijar seu rubor. E sua boca.
E qualquer parte dela.
– Oi – diz timidamente e eu sorrio.
– Estou surpreso de vê-la aqui.
Ela parece ainda mais corada quando dá de ombros.
– Também estou chocada comigo.
Levanto a sobrancelha, confuso.
– Se não queria vir por que veio?
– Todo mundo foi convidado.
– Podia dizer não.
– Talvez eu quisesse conhecer a tão falada casa dos King.
– Sendo assim posso ser o perfeito anfitrião e te levar para um tour.
Ela parece indecisa quando estico minha mão.
Depois de um momento de hesitação, coloca a mão sobre a minha.
Encaixo meus dedos nos dela. É perfeito.
Eu a conduzo por entre as pessoas que nos olham curiosas.
– Está todo mundo olhando – ela sussurra envergonhada e eu rio.
– Não ligue.
– É tudo tão lindo – ela diz enquanto caminhamos pela casa, que fica
exatamente em frente à marina, com uma vista impressionante.
– Sim, gostamos de ver o lago...
– É lindo.
Eu a guio pelos vários cômodos. Tenho vontade de subir as escadas e
levá-la ao meu quarto, mas acho melhor não abusar da sorte.
Nós entramos numa sala onde fica o piano.
– Uau, quem toca?
– Todos nós tocamos. Minha mãe, que não tem talento algum, nos
obrigou a fazer aulas desde pequenos. Embora devo dizer que só eu
desenvolvi algum gosto pela música.
Ela arregala os olhos.
– Jura?
– Sim, está duvidando?
Ela morde os lábios. Sinto vontade de beijá-la.
Desvio o olhar.
– Venha, vou te mostrar.
Eu a faço sentar do meu lado e começo a tocar The Scientist.
– A nossa música.
Ela se lembra.
– Quer dizer, a música que dançamos – ela cora.
Paro de tocar. Meus dedos vão automaticamente para o seu rosto.
Acaricio sua pele branca e perfeita.
Seus olhos brilhantes parecem maravilhosos enquanto me aproximo.
– Por que veio?
– Por você – sua voz é um murmúrio e engulo seu hálito delicioso.
– Pensei que não quisesse...
Sua mão toca a minha que está em seu rosto e ela se afasta um pouco.
Não quero que ela se afaste. Levanto a outra mão e enquadro seu
rosto.
– Matthew, eu... – ela parece hesitante de repente. Fugindo.
Eu me aproximo mais e a beijo.
E suas palavras nunca foram ditas.
Capítulo 8

Evangeline

Perco o prumo por alguns instantes, minha mente se embaralhando


em mil pensamentos conflitantes.
Matthew está realmente ali. Parado na porta da livraria. Olhando para
mim.
Meu coração está disparado e nem sei o motivo real. São tantas coisas
relacionadas a ele que me tiram o chão que me sinto como se um furacão
estivesse se aproximando e fosse me levar a qualquer momento.
Sinto medo. Pesar. Desejo.
E ele ainda me odeia.
"Mantenha a calma e o mande embora o mais rápido possível. Está
em meu território não deixe que a intimide de novo."
Pensando nisto respiro fundo e dou um passo a frente.
– O que faz aqui? – Minha voz é fria e controlada.
Quase sinto orgulho de mim mesma.
– Então é aqui que trabalha? – Ele pergunta casualmente, seus olhos
percorrendo a livraria. – Estive aqui outro dia. – Ele caminha, se
aproximando.
Eu me afasto.
– Você não estava. Havia uma garota... acho que se chama Janine. Ela
estava com você naquela loja. – Seu olhar está em mim de novo e mordo os
lábios nervosamente, me lembrando do nosso encontro quando estava
justamente experimentando meu vestido de noiva.
O inferno estava me sondando, certamente.
– Por que veio Matthew? – Pergunto tentando me livrar daquela
situação.
– Não posso entrar numa livraria?
– Quer me fazer acreditar que não sabia que eu estaria aqui?
Ele sorri.
Estremeço.
– Não, não vou mentir. Eu sabia que trabalhava aqui. Emily e Ella me
contaram.
– Sério? Agora usa suas irmãs para me espionar?
– Não estavam te espionando, entraram aqui por acaso...
– O que não é o seu caso, então diga logo o que veio fazer, além de
me atormentar e caia fora.
– É assim que trata os clientes?
– Você não comprou nada, então não é um cliente.
Ele sorri de novo, enquanto passeia por entre as prateleiras e pega um
livro.
– Acho que conheço este autor... – ele sorri e vejo que está segurando
um de seus livros.
– Está se exibindo?
– Aposto que não preciso. Trabalha numa livraria, deve conhecer
todos os autores.
– Obviamente. É meu trabalho.
– E o que achou?
Dou de ombros.
– Não sei. Nunca li. Sabe que não é meu estilo.
Era uma mentira deslavada. Eu não lhe daria o gosto.
– Você gostava muito deste, não é? – Ele caminha mais um pouco e
pega um exemplar de Orgulho e Preconceito.
– Não sabia que se lembrava – tento parecer desinteressada.
O fato de lembrar algo que eu disse há tanto tempo não quer dizer
nada.
– Lembro-me de muitas coisas.
Dou graças a Deus por ele não estar olhando para mim e sim para o
livro que folheia. Não pode ver meus olhos marejando perigosamente.
Claro que lembra. Infelizmente sua mente guardou apenas o que
aconteceu de ruim entre nós dois. Não queria que isto machucasse.
– Certo. Faça como quiser. Fique e olhe os livros! – Digo por fim,
bufando enquanto vou para trás do balcão.
Posso ser profissional e ignorar que aquele é Matthew King.
– Vou fechar em alguns minutos, então não demore. – Resmungo,
indo para trás do computador.
– Ganhei um destes ontem, não é uma coincidência?
Levanto a cabeça ao ouvir o que ele disse, uma desconfiança terrível
se apossando de mim.
– Você ganhou o quê?
– Um exemplar de Orgulho e Preconceito.
– De quem? – Minha voz é apenas um sibilar trêmulo.
Acho que já sei antes de ele dizer.
– De uma garotinha – responde, recolocando livro na estante com um
sorriso nos lábios.
E é um sorriso terno.
Meu coração se aperta de várias formas aterradoras.
– Que garotinha? – Pergunto, embora saiba que só pode ter sido uma
pessoa.
Ele dá de ombros.
– Deve conhecê-la. Ela falou que a mãe dela é dona da livraria. Ela se
chama Sofia. – Seguro a vontade de vomitar, quando ele me encara de
repente como se algo tivesse lhe ocorrido. – Aliás, eu gostaria muito de
conhecê-la, sua chefe.
Luto para respirar, meu rosto pálido se tingindo de vermelho culpado,
enquanto desvio o olhar.
– Ela não está. – Meu Deus, quanto tempo demoraria para ele
descobrir que a dona da livraria sou eu?
– É uma pena...
– Como... – limpo a garganta. Minha mente trabalha rapidamente
tentando entender como diabos Sofia tinha passado a perna em mim para
encontrar Matthew novamente. – Como conheceu Sofia?
– Eu dei carona a ela.
– E como foi que ela lhe deu este livro?
– Por que está interessada? – Ele me encarara se aproximando.
Dou de ombros.
– Curiosidade. Como é que um cara como você pode se interessar por
uma criança de nove anos...
– Acha que sou insensível? – Ele franze a testa e sei que virão
ofensas. – Não sou eu o insensível.
– Matthew... – saio de trás do balcão, disposta a acabar com aquela
conversa. – Acho que já chega, não é? Nós dois sabemos que veio apenas
para me atormentar, então é melhor ir embora.
– Não vim te atormentar.
Cruzo os braços no peito ao vê-lo se aproximando sorrateiramente.
– Veio fazer o que então?
– Acho que fiquei curioso...
– Sobre mim?
Sinto medo. Não quero Matthew curioso sobre minha vida.
Não quero que ele descubra nada a meu respeito.
– Por quê? Você não gosta de mim, disse que fingiu que eu nem
existia nestes dez anos, então que interesse poderia ter?
– Parte de mim ainda não entende... – de repente ele está muito
próximo e nem sei como aconteceu. Apesar de saber que preciso fugir, meus
pés estão colados no chão. – Você.
– Não tente. Continue me odiando. Apenas saia por aquela porta.
Desapareça e pronto. Continue agindo como sempre, fingindo que não existo.
– Minhas palavras são quase uma súplica.
– Você me beijou ontem.
– Não. Você me beijou.
– E vou te beijar de novo.
– Não... – mas é tarde. Minhas palavras são engolidas por sua boca.
Assim como qualquer controle. Ou instinto de autopreservação.
Não foi este meu erro dez anos atrás, me deixando levar por aquela
maldita atração que sentia por ele, esquecendo de todo o resto?
Era exatamente igual agora.
Gemo em sua língua, derretendo, quando seus braços me envolvem,
me puxando para perto e tudo o que consigo pensar é que não é perto o
suficiente.
Esfrego-me nele, meus quadris se contorcendo para se aproximar
ainda mais e é sua vez de gemer. Gemo também, muitas vezes, enquanto ele
me aperta mais, os dedos se infiltrando em meus cabelos, os lábios deixando
os meus para fazer uma trilha voraz por meu rosto.
Cerro meus olhos permitindo a chegada das sensações. É tão quente,
tão doce, tão deliciosamente contagiante.
Como uma injeção de pura adrenalina em minhas veias.
Meus dedos trêmulos envolvem seus cabelos e puxo sua boca para a
minha de novo, devoro seu gosto, adorando-o com meus lábios.
Meu corpo estremece em mil agulhadas de prazer, que descem em
direção a meu baixo ventre, sinto as mãos de Matthew em meus quadris, me
puxando para sua ereção. Sim. É isto. Exulto em antecipação, meu próprio
corpo se preparando num pulsar úmido e quente querendo desesperadamente
o dele.
– Por que ainda quero você? – Matthew sussurra contra minha boca,
suas palavras fazendo um eco sombrio dentro do meu cérebro confuso.
E acordo instantaneamente.
– Não! – o empurrando angustiada e Matthew me solta. – Não,
Matthew!
– Por que não?
Ele está realmente me perguntando?
E o pior, estou realmente vendo algum sentido em nós dois juntos?
Respiro fundo tentando buscar na minha mente todas as razões pelas
quais aquilo era errado e a primeira delas é como um soco no meu estômago.
– Eu sou noiva, Matthew.
– Não pareceu se lembrar disto ontem à noite e nem minutos atrás. –
Ele afirma friamente.
– Estou me lembrando agora. – Sinto uma culpa imensa ao pensar que
estou traindo Sebastian.
Sei que não amo Sebastian como deveria. Porém, nós temos um
compromisso e de maneira alguma ele merece ser magoado.
Ainda mais envolvendo Matthew King.
O cara que foi embora da cidade me odiando e que até hoje me
detesta.
O cara de quem eu escondo uma filha.
Estremeço de medo ao pensar em Sofia e no que aconteceria se ele
descobrisse.
– Matthew, esqueça o que aconteceu. Nós nunca deveríamos ter nos
beijado. Nem ontem nem hoje. E não somente por causa de Sebastian, sabe
muito bem. Há coisas demais entre nós, um passado...
– Pensa que não sei? Mais do que ninguém eu sei e não esqueço.
– Então vá embora! Nada de bom pode surgir disto. Já aprendemos,
não?
– Eu aprendi que não se pode confiar em você.
Suas palavras me ferem.
– Então por que continua aqui?
– Tem razão. Estou sendo idiota de novo, não é? – Diz com uma
mágoa antiga e profunda. Mais do que nunca sinto culpa.
Se ao menos...
– Matthew...
– Tudo bem. Não se preocupe. Não ficarei na cidade por muito tempo.
Vou embora em breve. Então poderá esquecer que eu existo. Assim, como eu
vou esquecer sua existência.
Eu o vejo se afastar com uma dor desconcertante.
Uma dor que só senti dez anos antes.
Quando ele foi embora da primeira vez.
E me pergunto se um dia vou deixar de sofrer.

***
Matthew

Saio da livraria como se o próprio demônio me perseguisse.


E talvez fosse a realidade. Pelo menos eu me sinto no inferno.
Que porra estava pensando ao vir atrás de Evangeline Evans?
Uma vez não foi suficiente? Eu estava obcecado. Era a única coisa
que explicava meu comportamento masoquista ontem no banheiro e hoje.
Ontem pelo menos havia a desculpa de ter ido atrás de Emily. Quando
ela se levantou dizendo que iria ao banheiro, sabia que sua intenção
confrontar Evangeline. Emily era impulsiva demais. De maneira alguma
imaginei que meu próprio confronto com ela iria acabar daquele jeito.
Com minha língua dentro de sua boca.
Com meu corpo implorando para estar dentro dela.
Com minha mente de novo cheia de pensamentos sobre Evangeline
Evans.
E depois ela correu para o tal noivo. O cara que tinha o direito de
beijá-la e levá-la para a cama sempre que quisesse. Eu continuava sendo
apenas o idiota que ela enganou. E que, se tomasse como exemplo a cena da
livraria, estava pronto para ser enganado outra vez. Era realmente um inferno
que essa mulher ainda me deixasse maluco.
Eu sabia quem ela era. Do que foi capaz.
E mesmo assim sentia vontade de beijá-la toda vez que ela mordia os
lábios. De arrancar suas roupas cada vez que sentia seu cheiro peculiar e
inconfundível. De me perder dentro dela a cada gemido seu quando
estávamos juntos momentos atrás.
Solto um palavrão ao entrar no carro e dar partida.
Preciso ir embora de Camden. Colocar a maior distância possível
entre mim, Evangeline Evans e aquela atração inconveniente.
Ligo o som e a música clássica invade o carro. Sinto-me mais calmo
quando tomo esta decisão.
E também mais vazio.
Não quero analisar nada no momento. Só esquecer.
Não será fácil convencer minha mãe de que preciso partir. Posso usar
o trabalho como desculpa. Ou contar a verdade.
Não me sinto nada bem ao pensar nas alternativas.
Estaciono em frente a nossa casa e, ao saltar vejo que tem um carro
desconhecido estacionado lá.
Fico mais surpreso ainda ao ver Sofia sentada no capô. Ao lado dela
está o mesmo cara que a trouxe da outra vez. Sam.
– Oi, Matthew! – Ela pula do capô e vem em minha direção.
– Oi, Sofia, o que faz aqui? – Sorrio ao ver sua diminuta figura se
aproximando.
Todos os sentimentos ruins que estavam dentro de mim se
evaporando.
– Você disse que eu podia voltar quando quisesse. – Ela para de
repente insegura, mordendo os lábios.
– Disse a ela que devíamos ir embora quando chegamos e não havia
ninguém – Sam explica. Ele parece entediado e preocupado, ao olhar o
relógio. – Me desculpe, cara. Ela tem um jeito especial de nos convencer a
satisfazer suas vontades. Pediu para eu trazê-la aqui no caminho. Estamos
indo pescar.
– Tudo bem, não tem problema. Você realmente pode vir me visitar
quando quiser, Sofia.
Ela sorri parecendo satisfeita.
– Se vocês estão indo pescar acho que devem sair antes que fique
tarde.
Ela olha para Sam indecisa ele parece ainda mais apressado.
– Na verdade eu nem queria ir pescar...
– Então por que pediu para vir, Sofia? Preciso ir, vai me atrasar se for
levá-la de volta...
– Eu a levo – ofereço.
Sofia dá pulinhos.
– Isto! Isto!
Sam me olha indeciso.
– Sofia, sua mãe a deixou comigo...
– Ela não vai se importar, Sam! Por favor! E o Matthew já me deu
carona antes, minha mãe sabe!
– Eu não sei...
– Pode ir tranquilo eu a levarei e aproveito para conhecer a mãe dela.
– Certo! Preciso realmente ir! Sofia, tem meu telefone, não é?
Qualquer coisa me ligue.
– Pode deixar, Sam!
Sam entra no carro e eu encaro a criança.
– E então, vamos embora?
– Você quer conhecer minha mãe?
– Claro que sim. Ela precisa saber que somos amigos, não é? Não
quero que se preocupe com você.
Ela parece hesitante.
– Sim, pode ser... Aí ela vai ver que você é um cara superlegal e
deixar eu te visitar sempre! Achei sua casa linda!
– Quer conhecê-la por dentro?
– Posso?
– Claro. Venha.
Seguro sua mão enquanto a guio para dentro da casa.
A lembrança da vez em que mostrei a casa para outra garota aperta
meu peito.
– Uau! É tudo tão lindo! – Ela exclama e rio de seu entusiasmo
infantil, enquanto continuo nosso tour.
– Esse é o quarto de uma de suas irmãs?
– Sim, Ella.
– Ela parece legal. E suas roupas são lindas de morrer!
– Sim, tenho que concordar com você... esse é o quarto de Emily e
Carter.
– A sua irmã do cabelo bonito...
– Ela não parece legal como Ella?
– Hum... ainda não sei.
Sorrio com sua franqueza.
Nós descemos as escadas e entramos na sala do piano.
Seus olhos se iluminam.
– Vocês têm um piano!
– Sim, você sabe tocar?
– Não, eu sempre quis! Você sabe?
– Sei sim.
Ela me olha quase com adoração.
– Jura que sabe tocar piano? Você toca Coldplay?
– Claro. Venha vou te ensinar.
Ela ri e praticamente pula em cima do banco ao meu lado enquanto
toco e depois a deixo tocar, ensinando-lhe algumas notas básicas.
Sua felicidade é contagiante.
E me pergunto se todas as crianças são assim. Nunca convivi com
crianças de perto antes e não sei dizer.
De repente imagino como seria se tivesse meus próprios filhos. Eu
nunca havia pensado naquilo, mesmo porque nunca pensei em me casar.
Claro que tive muitos relacionamentos durante todos aqueles anos, porém
nunca quis ninguém para sempre de verdade.
Emily disse uma vez, num dos seus acessos de fúria, que Evangeline
tinha me estragado.
Nós tivemos uma briga feia naquele dia. E nunca mais ela ousou citar
Evangeline Evans para mim.
– Queria aprender a tocar piano – Sofia suspira e volto ao presente.
Eu até penso que poderia ensiná-la, no entanto, estou indo embora,
não estou?
De repente pensar em deixar Camden e nunca mais ver aquela garota
tão adorável, me deixa triste. Talvez fique mais algum tempo... Evitando
trombar com certa pessoa de cabelos escuros pela cidade... Quem sabe...
– Matthew, está tudo bem? – Sofia pergunta e forço um sorriso.
– Acho melhor levá-la embora.
– É, tem razão... Minha mãe já deve estar indo para casa também...
– Talvez devêssemos ligar para sua mãe e avisá-la que está aqui –
digo enquanto saímos de casa.
– Não precisa...
Nós entramos no carro e dou partida.
– E seu pai?
Ela dá de ombros.
– Não tenho pai.
– Como assim?
– Ele não mora com a gente. – Parece hesitante, como se não gostasse
de falar daquilo e penso que não deveria estar perguntando.
Algo em Sofia incita minha curiosidade. Ou melhor, me deixa
preocupado.
– Seus pais são divorciados?
– Não é bem assim... Na verdade nem o conheço... Ele foi embora
antes de eu nascer.
Ela parece triste ao dizer isto. O jeito como mexe nos cabelos e olha a
paisagem pela janela do carro com um olhar perdido.
Talvez seja este o motivo de ela gostar de minha companhia. Talvez
me veja como uma espécie de figura paterna que nunca teve.
– E sua mãe nunca se casou? – Pergunto sabendo que estou sendo
invasivo, sinto uma vontade incontrolável de saber mais sobre ela e quem
sabe...
Quem sabe o quê?
Eu não era o pai desta garota. Nem ia ficar na cidade.
Talvez eu devesse deixá-la em casa e nunca mais vê-la. Não seria
saudável que ela se apegasse a mim para depois nunca mais me ver.
– Minha mãe tem um namorado... – ela me encara curiosa de repente.
– Você tem namorada, Matthew?
Sorrio de sua curiosidade.
– Não, não tenho.
– Mas você é tão bonito!
Rio ainda mais.
– Me diz para onde vou?
Ela fala as coordenadas e eu sigo.
– Estou tentando arranjar uma namorada para Sam. – Ela diz. –
Talvez se me dissesse de quem você gosta eu possa te ajudar.
Deus, que figura era aquela menina!
Me imagino contando a ela sobre Evangeline e perguntando se ela
realmente poderia me ajudar, tenho vontade de gargalhar.
– Então, você gosta de alguém?
– Não, não gosto – respondo e sei que fiquei vermelho.
Estou ruborizado por causa de uma menina de nove anos?
– Acho que gosta sim! – Ela ri. – Por que você não namora com ela?
– As coisas não são tão simples Sofia...
– Por que não? Ela não gosta de você?
– Este é só um dos problemas...
Sério que estou tendo uma conversa sobre meus problemas amorosos
com uma criança. Quão ridículo isso soa?
– Como assim ela não gosta de você? Claro que deve gostar! É
impossível não gostar de você!
Rio de sua lógica inocente.
Se as coisas fossem tão simples...
– Sofia, os adultos são complicados, não queira entender.
– Eu sei. Meu pai foi embora porque brigou com a minha mãe... e
nunca quis nem me conhecer...
Tenho vontade de encontrar este cara e socá-lo até a morte.
– Sinto muito, Sofia.
Ela sorri para mim.
– Tudo bem. Tenho a minha mãe... Ei, pare, chegamos!
Eu paro o carro e olho em volta meu estômago se contrai como se
tivesse levado um soco.
Estamos na frente da casa de Evangeline Evans.
– Você mora aqui?
Olho ao redor para ver se tem alguma casa vizinha, quando saltamos.
Não há nenhuma.
– Sim, moro com minha mãe e meu avô...
Evangeline Evans ainda morava naquela casa com o pai? A mãe de
Sofia e a dona da livraria poderiam ser parentes? Por isto ela trabalhava lá
também? E, se ela era parente de Sofia, porque não me disse...
Minha cabeça está explodindo de possibilidades.
Não posso aceitá-las.
São todas ridículas e inadmissíveis.
Então me lembro de Sofia dizendo que não tem pai.
Que sua mãe tem um namorado.
Sofia nunca conheceu o pai. Ele foi embora antes de ela nascer.
Será que foi porque nem fazia ideia de que sua mãe estava grávida?
Sinto o chão fugindo sob meus pés. Olho para Sofia.
Aquela criança deveria ter uns nove ou dez anos...
Seus cabelos acobreados...Como os meus.
Não consigo respirar.
– Qual o nome da sua mãe, Sofia?
– Evangeline.
Meu mundo muda irreversivelmente naquele momento.
E mal vejo o carro se aproximando até ouvir a voz infantil de Sofia.
– Mamãe!
Levanto o olhar e lá está ela.
Me encarando com o rosto mortalmente pálido.
Ela não precisa me dizer a verdade.
Está escrita em seus olhos castanhos arregalados de horror.
Sofia é minha filha.
Dez anos antes

Matthew

Ligo o rádio e o som do Coldplay enche o carro.


Olho o relógio ligeiramente nervoso, enquanto a espero. Foi mesmo
ontem que a beijei pela primeira vez? Parece que tudo o que aconteceu na
noite passada foi a uma eternidade.
O beijo no piano foi o primeiro de muitos. Eu a levei de volta para a
festa só para encostá-la em alguma parede e mantê-la ali, parando apenas
para recuperar o fôlego até que ela falou que tinha horário para chegar em
casa. Então a chamei para sair de novo. Ela disse sim, os olhos castanhos
brilhando e seu rosto tingido de vermelho.
Eu mal podia esperar.
Emily ficou me aporrinhando o dia inteiro. Parecia feliz em me
atormentar. E quando digo feliz, não estou sendo irônico. Ela parecia
verdadeiramente contente por me ver com alguém.
Carter fez suas piadas maliciosas e Ella perguntou quando eu iria
levá-la em casa para que pudessem ser amigas e fazer compras juntas.
Eu disse a ela que Evangeline não fazia o tipo que gostava de
compras.
Embora ela não tenha me dito eu intuía, se tomasse como exemplo
sua falta de empolgação na loja em que a encontrei.
– Talvez esteja enganado. – Carter falou quando Ella saiu da sala. –
Toda garota gosta de gastar dinheiro.
– Acredito que ela seja mais o tipo que gasta com livros.
– Ah Matthew, você é tão ingênuo às vezes.
Emily lhe deu um tapa.
– Pare com isto!
Carter a beijou e o assunto foi encerrado.
E agora lá estava eu, esperando ansiosamente pela única garota pela
qual me interessei até agora. E eu me perguntava se voltaria a me interessar
por outra pessoa algum um dia.
Evangeline Evans era tão única. Tão perfeita para mim...
Eu queria prendê-la comigo para sempre.
Escuto uma batida no vidro e volto ao presente.
Seu perfume de baunilha invade o carro quando ela entra. Está usando
um vestido florido e os cabelos estão soltos. Seu rosto deliciosamente corado
quando me encara.
– Você está linda.
Ela cora ainda mais e estendo a mão para tocar seu rosto.
– Adoro seu rubor.
– Aonde vamos?
Sorrio e dou partida.
– É surpresa.
– Adoro esta música – ela diz e eu sorrio.
– E de que mais você gosta?
– Vai fazer um interrogatório? – Ela parece incomodada.
– Quero saber tudo sobre você.
– Talvez não goste do que descobrir.
Ela parece tensa de repente.
– Algum problema?
– Estão acontecendo umas coisas...
– Conte-me.
Ela hesita.
– Briguei com meu pai hoje. Na verdade, antes de sair com você.
– Por quê? Por que está comigo? Se era um problema, podia ter
entrado e me apresentado...
– Não! Nada a ver com você. Eu juro. São... coisas de família...
esqueça.
Enquanto ela passa a mão pelos cabelos, noto que estão trêmulas.
– Tem certeza que está bem? Posso te levar para casa, podemos
marcar outro dia.
– Não, estou bem – ela sorri – de verdade. Eu... quero estar aqui com
você.
Suas palavras me enchem de um tesão repentino e paro o carro, me
inclinando e beijando-a. Ela suspira e eu a sinto relaxando.
Não quero soltá-la, mas o faço.
Ela sorri para mim, enquanto me afasto.
– Gosto de Jane Austen – diz, quando coloco o carro em movimento
de novo.
– Era o que estava lendo na loja?
– Orgulho e Preconceito. Meu preferido.
– Também gosto.
– Mentira.
Sorrio de sua surpresa.
– Sim, eu gosto.
– Você gosta realmente de ler? Ou está dizendo só para me ganhar?
– Já não ganhei?
Ela cora deliciosamente outra vez.
– Por isto mesmo, não precisa mentir para me conquistar.
– Então deve ser verdade.
– Está falando sério?
– Por que é tão difícil acreditar?
– Sei lá. Talvez você seja bonito demais para...
– Para ser inteligente também?
– Não foi o que eu disse!
Rio ainda mais.
– Tudo bem. Só queria que soubesse que está saindo com um nerd.
Agora é a vez dela de rir.
– Até parece.
– É sério.
– Sei... Então qual seu livro preferido?
– Gosto de ler clássicos também, apesar de preferir suspenses,
mistérios.
– Hum, eu prefiro romance.
Nós conversamos sobre nossos livros prediletos enquanto paro o carro
em um restaurante.
E as horas passam sem que sinta, enquanto a encho de perguntas.
Descubro que nasceu em Camden, que sua mãe morreu quando ela
nasceu e que foi criada pelo pai, que era dono de uma oficina mecânica.
– Devo ficar preocupado com seu pai?
– Não, ele é legal. E seus pais?
Conto a ela sobre meu pai ser um advogado de Washington e minha
mãe que adora caridade.
– Você quer ser advogado também?
– Não, posso te contar uma coisa que nunca contei a ninguém?
– Claro.
– Eu escrevo.
– Sério? Tipo assim, livros?
– Tipo isto – Nunca tive coragem de contar a ninguém. Minhas irmãs
com certeza me achariam ridículo. Eu já era o esquisito da família. Imagine
se dissesse que queria seguir uma carreira tão instável quanto a de escritor.
– É incrível! Gostaria de ler um livro seu um dia.
– Talvez leia.
– E suas irmãs?
– As gêmeas insuportáveis?
– Não fale assim! Deve ser incrível ter irmãos.
– Sim, elas são chatas mas são minhas irmãs mais velhas. Têm apenas
dois anos a mais do que eu e mesmo assim são muito protetoras.
– E Carter?
– Carter namora Emily há tanto tempo que nem me lembro de quando
ele não estava por perto. Acabamos nos tornando amigos, embora sejamos
tão diferentes.
– Você confia nele, ele... nunca te decepcionou?
– Ele é um babaca às vezes, mas eu lhe confiaria minha vida.
Ela desvia o olhar e de novo me pergunto se há algo errado.
– Podemos ir? – Ela pergunta e peço a conta.
Nós entramos no carro e a encaro.
– Ainda não queria levá-la embora.
– Tudo bem.
Eu dirijo até o lago.
Quando estaciono, ela sai do carro e faço o mesmo.
– Sua casa é linda.
De onde estamos dá para ver as luzes acesas na casa.
Espero que minha família não tenha me visto passar.
– Meus pais adoram.
– Vocês pretendem... ficar até quando?
– Por todo o verão.
Ela dá de ombros.
– Parece pouco tempo...
– Eu ficaria mais se tivesse um motivo.
Ela desvia o olhar.
Me pergunto se tem ideia da profundidade dos meus sentimentos por
ela. É algo que me assusta e me fascina.
Seguro sua mão e a puxo para mim.
Ela suspira ao se encaixar em mim e enterro o rosto em seus cabelos.
– Você cheira a baunilha.
Ela ri abafado contra meu peito.
– Ninguém nunca me disse isto.
– Já saiu com muitas caras para comparar?
Ela me encara.
– Já tive alguns encontros, mas... nunca namorei de verdade.
Sorrio e beijo seu rosto.
Ela fecha os olhos.
– Nem eu.
– Mentira! – Ela suspira quando desço por seu pescoço.
– É sério. Carter achava que eu era gay, até pouco tempo atrás.
Ela ri e passo o nariz por sua orelha, ela solta um gemido.
Eu a aperto mais.
De repente pingos grossos de chuva começam a cair e nós corremos
para o carro.
Estamos rindo feito crianças quando sentamos meio molhados no
banco de trás. E não sei em qual momento o riso é substituído por beijos,
perco a noção do mundo lá fora enquanto devoro Evangeline Evans no banco
traseiro do carro.
Ainda está tocando Coldplay quando percebo que estamos passando
de todos os limites.
Eu não paro. E ela não me para.
Muito tempo se passa até que a realidade volte.
Ainda estamos meio vestidos, ela está sentada entre minhas pernas,
seu rosto enterrado em meu pescoço e meus braços a envolvem.
E me dou conta que transamos no banco traseiro do meu carro em
nosso primeiro encontro.
E o pior é que não estou arrependido.
– Evangeline, tudo bem? – Pergunto baixinho e ela não diz nada.
Será que está arrependida?
De repente fico tenso.
– Me desculpe – peço e ela me encara.
Seus olhos são insondáveis.
Ela parece triste.
E eu sei que preciso fazer alguma coisa para que ela acredite que não
foi um erro.
Estamos juntos agora.
Ela não percebeu?
– Eu amo você.
As palavras saem da minha boca sem que eu me dê conta, mas sinto
que precisavam ser ditas.
Sim, estou apaixonado por Evangeline Evans.
Ela pisca como se fosse chorar. Seus dedos tocam meu rosto.
– Matthew... preciso te dizer...
De repente alguém bate no vidro do carro e olho assustado.
– Matthew, sei que está ai!
– É Emily – afirmo irritado. – Que diabos!
Afasto-a enquanto Emily continua batendo no vidro.
– Matthew preciso falar com você, agora!
Arrumo minhas roupas rapidamente, enquanto ela faz o mesmo.
– Não fique assustada, é minha irmã.
Abro a porta do carro e saio.
Emily não está sozinha.
Carter está ali e Ella corre em nossa direção.
– Que merda pensa que está fazendo? – Grito furioso.
– Emily, vamos embora, pare com isto. – Carter tenta puxar seu
braço, ela parece verdadeiramente fora de si quando o empurra.
– Me deixe! Você é um imbecil também!
– Emily...
– Ei, o que está acontecendo?
– Você é uma maldita! – Emily rosna com ódio.
Ela olha além de mim e vejo Evangeline saindo do carro.
O cabelo ainda desgrenhado e o vestido mal abotoado.
– Transou com ele, não foi?
– Emily, cale a boca e dê o fora daqui!
Emily me ignora e encara Evangeline.
– Vai dizer a ele ou quer que eu diga?
Capítulo 9

Dez anos antes

Evangeline

– Você tem certeza que quer ir embora?


Olho para Harry que me encara dentro do carro.
Eu pedi para ir assim que saí do banheiro depois de ouvir a conversa
de Ella e Emily King. Sabia que não deveria ter ido àquele baile, porém
nunca imaginei que seria tão ruim.
Por que os King tinham que vir? E por que fui me interessar justo por
um deles? Logo eu, que sempre me orgulhei de ser tão sensata.
– Tenho, por favor.
Harry não dá partida no carro. Ele me encara em silêncio e escuto um
alarme soar na minha cabeça.
– Sabe que eu gosto de você, não é? – Suas mãos seguram as minhas.
– Harry... – tento puxá-las de volta, agora ele tenta me abraçar.
– Sempre quis ficar com você...
– Harry, não... – ele me segura forte e me beija mesmo assim.
– Não! – Consigo empurrá-lo. – Droga, você não entende um não? –
Abro a porta do carro disposta a fugir dali antes que ele continue a me
agarrar.
– Ei, Evangeline, volte aqui!
Bato a porta e saio andando pelo estacionamento me perguntando
como é que vou embora. Talvez devesse voltar para o baile e pedir carona
para Aria e o namorado. Mas não quero estragar a noite deles.
Um carro para do meu lado e a janela abaixa. Reconheço Carter
sorrindo para mim.
Era o que me faltava.
– Quer uma carona, gatinha?
– Não, obrigada.
– Vai andando com estes saltos, é? E cadê seu par?
– Não sei – continuo andando e tentando ignorá-lo, ele me segue
devagar.
– Entre. Eu te levo em casa. Não precisa ficar com medo.
Paro e o encaro. Ele parece sincero. Pelo menos parou de me chamar
de gatinha.
– Vamos é só uma carona.
Com um suspiro, entro no carro. Ainda sinto um certo medo, no
entanto, o que ele poderia fazer comigo? Com certeza não havia nenhum
interesse. O cara namorava a fabulosa Emily King.
Explico como chegar a minha casa e Carter sorri.
– Até que você é bonita... Acho que entendo o que ele viu em você...
– Espero que não esteja querendo se engraçar comigo. – De repente
fico com medo.
Ele começa a rir com vontade e eu fico vermelha.
– Pensou que ofereci carona para poder te pegar? – Carter ri quase se
dobrando.
– Não, não pensei. Embora deva dizer que é bem esquisito um cara
como você se interessar em me ajudar.
– Tem razão – ele para de rir – queria falar com você.
Eu o encaro desconfiada.
– Falar comigo?
Ele estaciona o carro em frente a minha casa.
– Sim, queria te fazer uma pergunta.
Eu espero, curiosa.
– Você gosta do Matthew?
– O quê?
– Não está interessada nele?
– Claro que não! – Não quero nada com seu cunhado babaca!
– Então temos um problema, porque ele quer com você, se é que me
entende.
– Ah, claro que entendo! E pode dizer para o Matthew que não estou
interessada em ser seu brinquedinho em Camden. Se ele procurar um pouco
mais, tenho certeza que encontrará várias candidatas bem mais dispostas!
– O Matthew não é assim. Acho que está obcecado por você.
– Problema dele.
– Queria pedir para que você aceite sair com ele.
– O quê? Está falando sério?
– Por que não? E acho que você está mentindo quando diz que não
está interessada nele.
– Isto é ridículo! Não vou sair com seu amigo e pronto!
– Ok, Evangeline, teremos que resolver esse impasse. Me diga o que
você quer em troca.
Arregalo os olhos, chocada.
– Como é?
– Bem, pode até parecer meio radical, mas preciso ajudar o Matt e se
para isso precisar gastar algum dinheiro...
Não sei que impulso me acometeu quando levantei a mão e bati com
força no rosto de Carter Henderson.
– Ei, está louca?
– Louco é você! Está me oferecendo dinheiro para sair com seu
cunhado?
– Sim, dinheiro não é problema...
– Não acredito no que estou ouvindo...
– Só me escute ok? Pode até parecer exagero, você não conhece o
Matthew como eu conheço. Ele é... Ele nunca se interessa por ninguém, e
você... Por que simplesmente não aceita ficar com ele?
– Porque não quero! E nem todo dinheiro do mundo vai me
convencer, meu Deus, nunca pensei ouvir algo assim na minha vida!
Matthew te mandou foi isto?
– Não! Ele não faz ideia... só quero ajudar...
– Pois errou feio! Cuide de sua vida ou então vá fazer sua proposta
ridícula para outra garota mais tonta que eu, passar bem! – Saio do carro e
praticamente corro para dentro de casa.
Fico aliviada por meu pai já estar dormindo assim posso me trancar
no meu quarto sem ter que dar satisfação a ele.
Odeio os King. É só o que me vem à cabeça enquanto rolo de um lado
para outro tentando dormir. São as pessoas mais sujas do mundo. Onde já se
viu me oferecer dinheiro para sair com um deles?
É nojento!
Fecho os olhos com força. Só espero esquecer que os conheci um dia.
E esquecer Matthew King.

Quando acordo no dia seguinte, Matthew King se transforma no


menor dos meus problemas.
Jack está na cozinha olhando alguns papéis e mal me vê entrando.
Eu me sirvo de cereal e o encaro.
– Bom dia, pai.
– Ah, Bom dia, Eve.
– Algum problema?
– Não... – ele junta os papéis e coloca tudo numa gaveta. – E aí, como
foi o baile ontem?
– Foi bom – respondo evasiva.
– Vou trabalhar, vai ficar bem sozinha?
– Claro pai.
– Sebastian vive perguntando de você.
Reviro os olhos.
– Não faça esta cara. Você costumava gostar de Sebastian quando era
criança.
– Disse bem, quando era criança. Acho que nem temos mais assunto
hoje, pai.
– Pode se surpreender.
– Vou pensar – digo sem ânimo.
Eu e Sebastian tínhamos nos afastado nos últimos tempos, depois que
ele começou a trabalhar na oficina na qual o pai dele e o meu eram sócios. Na
verdade, Sebastian gostava muito de aventura, andar de moto, ouvir rap com
seus novos amigos e eu preferia ficar em casa na companhia de um bom
livro. A gente já não tinha nada em comum.
Porém, naquele dia estava realmente precisando de novos ares.
Aria me ligou algumas vezes e não atendi. Sabia que iria perguntar
sobre o que aconteceu no baile e não estava a fim de falar sobre o assunto.
Então naquela tarde me vejo dirigindo até a oficina.
Sebastian parece feliz em me ver. E por um momento eu lamento que
não sejamos mais tão próximos.
– E aí, quer dar uma volta?
– Claro.
Quando volto para casa no começo da noite, meu pai não chegou
ainda e penso no que fazer para o jantar.
Estou feliz por ter saído com Sebastian. Meu pai estava certo e eu
tinha me surpreendido. Sebastian era um cara legal. Ainda podíamos ser
amigos.
Meu pai ia gostar penso sorrindo, então me lembro de como ele estava
esquisito de manhã. Será que tinha algo a ver com aqueles papéis?
Curiosa vou até a gaveta e pego tudo.
Algumas horas depois quando ele chega eu o encaro muito séria.
– Pai, o que significa isto?
– Você andou mexendo...
– Você me pareceu preocupado hoje de manhã e eu tinha razão, não
é? Pai, isto aqui é uma hipoteca? Você hipotecou nossa casa?
– Foi preciso.
– Por quê?
– Para pagar sua faculdade.
– Não acredito! Não podia ter feito isto!
– Eu precisava! Você passou em Princeton, não podia permitir que
não fosse porque não tínhamos dinheiro suficiente!
– E agora? Pelo o que consta nestes papéis eles podem tomar nossa
casa se não pagar!
– Quando fiz há seis meses pensei que conseguiria pagar...
– E agora? O que vamos fazer? Precisa cancelar minha matrícula!
Tenho certeza que eles devolverão uma parte do dinheiro...
– Não, você vai para a universidade, Eve!
– E você vai ficar sem casa? Não!
– Se for preciso sim!
– Isto não está certo!
– Não se preocupe filha. Quem tem que resolver sou eu.
Ele sai da sala e eu fico ali, aflita.
E agora? Meu pai não podia ter feito aquele empréstimo. Não posso
permitir que ele perca a casa por minha causa. Claro que quero ir para a
universidade. Eu me esforcei demais para conseguir, porém não posso se for
para meu pai perder tudo.
Sei que ele não me deixará desistir. Então o que me resta é pensar
num jeito de conseguir o dinheiro.
De repente a proposta de Carter vem a minha mente.
Meu estômago revira. Claro que não posso aceitar uma proposta
daquelas. Está fora de questão. Nunca iria me perdoar se aceitasse transar
com um cara por dinheiro. Não, nem conseguia imaginar uma coisa destas.
Mas Carter Henderson tinha dinheiro. Sobrando, como ele mesmo fez
questão de frisar. Bom, eu podia lhe fazer uma proposta também.

Torço minhas mãos naquela tarde, enquanto espero a campainha tocar


a qualquer momento. Quando toca, quase dou um pulo de susto.
Vou até a porta e Carter Henderson está ali, sorrindo.
– Olá, gatinha.
– Não me chame de gatinha. É nojento.
– Ok, como quiser. E aí, por que queria falar comigo? Mudou de
ideia? - Ele diz entrando e eu fecho a porta.
– Não, não mudei.
– Então por que estou aqui?
– Porque quero te pedir um empréstimo.
Ele levanta a sobrancelha, brincalhão.
– Empréstimo?
Sei que estou corando violentamente, mas não posso parar agora.
– Você me disse que tinha muito dinheiro, tenho certeza de que o que
preciso nem vai fazer diferença para você.
– E por que eu te emprestaria dinheiro? Só estava interessado em te
dar algo se fizesse o que eu te pedi.
– Transar com seu cunhado? Nem pensar!
– Não precisa transar com ele, pode apenas lhe dar uma chance.
– Não.
– Vamos lá Evangeline. Não se faça de difícil. Sei que você tem
interesse nele, sim. Vi vocês dançando.
– Você não sabe de nada!
– Sei que você está me pedindo um favor e estou lhe pedindo outro
em troca.
– Não vê como é ridículo? Não posso aceitar sair com o irmão de sua
namorada por dinheiro! É nojento demais!
– Estamos falando de um empréstimo, não é? Só estou pedindo que
pare de se fazer de difícil e dê uma chance ao Matt. É muito simples.
– Quer dizer que você vai me emprestar o dinheiro se eu concordar
em sair com o Matthew?
– Sim, basicamente.
– E se eu não gostar dele? E se eu não quiser nada com ele?
Ele sorri maliciosamente.
– Sinceramente, eu duvido..., mas é um risco que teremos que correr.
Não posso obrigá-la a nada, tem razão. Nós temos um acordo se você
concordar. Eu te empresto o dinheiro e você comparece à festa que Ella vai
dar. E vai ser legal com o Matthew.
Mordo os lábios com força.
Não era pedir muito, era?
Eu podia ir na maldita festa e ser legal com Matthew King.
Infelizmente não sei se ele vai ser legal comigo.
Bom, neste caso, posso virar minhas costas e sair da lá sem olhar para
trás. E Carter Henderson não pode me acusar de não ter cumprido o
combinado.
– Não vou transar com ele – insisto, para garantir.
– Talvez mude de ideia...
– Não. Nunca vai acontecer.
– Então você aceita?
– E é um empréstimo. Obviamente não poderei te pagar agora, mas
juro que vou te devolver todo o dinheiro.
– Não tenha pressa...Além do mais, se o Matt estiver feliz...
– Por favor, não fale assim – peço me sentindo meio enjoada.
Ele dá de ombros e pega o cheque me perguntando a quantia e quando
o coloca na minha mão, sorri satisfeito.
– Eu te vejo na festa então!
Quando ele sai, olho para o cheque na minha mão.
E já começo a me arrepender. Agora é tarde.
Não posso simplesmente rasgá-lo e deixar tudo para lá. Com este
dinheiro eu posso resolver os problemas do meu pai. Então, pensando nisto
pego minha bolsa e vou até o banco.

***

– Você fez o quê?


– Pai, não grite. – Peço, irritada também.
Ele tinha acabado de descobrir que paguei a dívida no banco.
– Como não gritar? Onde arranjou o dinheiro?
– Um amigo me emprestou.
– Amigo? Que amigo?
– Você não conhece pai... esqueça, ok? Está tudo bem. A casa está
salva e pronto. Fiz o que precisava ser feito.
– Como assim, o que você fez, Evangeline...
– Pai, se acalme, por favor. Este amigo tem dinheiro e resolveu me
emprestar. Não vai fazer falta para ele.
– E ele resolveu te emprestar assim, do nada? Quem é este amigo,
pode me dizer?
Respiro fundo.
– Não precisa saber.
– Evangeline...
– Não adianta me ameaçar, não vou dizer.
Ele me mede e então fico vermelha. Estou usando um vestido novo.
Todo florido e feminino. Certamente nunca me viu vestida assim.
E vou sair com Matthew King. Ainda sinto meu estômago se contrair
de ansiedade e medo. Escuto a buzina na porta de casa e meu coração dispara.
– Aonde vai?
– Sair.
– Com quem?
– Com um rapaz. Não vou voltar tarde, ok?
Antes que possa falar mais alguma coisa, saio rapidamente.
Meu coração ainda está disparado quando entro no carro.
– Você está linda – ele diz e eu coro.
Passei o dia pensando em todas as razões para não estar ali.
Agora, quando ele me olha como se eu fosse realmente linda, só
consigo me lembrar de como ele me beijou ontem. De como tudo parecia
certo e perfeito.
Como se eu estivesse esperado por ele até aquele momento.
E eu não hesitei nem um minuto em aceitar sair com ele de novo.
Depois, quando estava sozinha, me lembrei de Carter. De suas
palavras. De nosso acordo.
Ontem, quando cheguei à festa de Ella King, me sentia tão mal que
meu estômago doía. Não devia ter aceitado a proposta de Carter, era errado
sair com um cara porque o cunhado dele havia me emprestado dinheiro.
Mas prometi que o faria.
Ficava dizendo a mim mesma que Matthew era apenas um riquinho
mimado e que não tinha nenhum interesse verdadeiro em mim enquanto
circulava entre as pessoas. Talvez até merecesse ser usado por alguém para
variar.
Então ele me encontrou. E lá estava, aquele olhar intenso me fitando
como se só nós dois estivéssemos na sala.
E deixei de pensar.
E descobri que não só Matthew King podia não ser quem eu pensava,
como eu estava mentindo para mim mesma ao dizer que não tinha nenhum
interesse nele.
Estava completamente seduzida. E, quando ele me beijou no piano,
senti que estava mais envolvida do que gostaria de admitir.
E o deixei me levar. Me beijar por horas sem fim. Deslizando numa
doce inconsciência, ansiando por algo que nem sabia o que era, mas que tinha
certeza que seria perfeito.
E hoje estamos juntos de novo. As horas passam sem que perceba,
enquanto falo sobre mim e descubro mais sobre Matthew. E a cada momento
sinto que posso realmente gostar dele de verdade. Ele não se parece em nada
com o que pensei.
E de novo sinto-me culpada.
– Podemos ir? – Pergunto e ele pede a conta.
Quando entramos no carro ele me encara.
– Ainda não queria levá-la embora.
– Tudo bem. – Sei que devia pedir para ele me levar, porém não quero
me afastar dele ainda.
Ele estaciona em frente ao lago. Ao longe dá para ver a casa dos
King.
– Sua casa é linda.
– Meus pais adoram.
– Vocês pretendem... ficar até quando?
– Por todo o verão.
Dou ombros.
Sinto um vazio ao pensar em Matthew indo embora para sempre.
– Parece pouco tempo...
– Eu ficaria mais se tivesse um motivo.
Desvio o olhar, com o coração falhando.
Pergunto-me se ele tem noção do quanto são profundos meus
sentimentos por ele. É assustador e fascinante ao mesmo tempo.
Matthew segura minha mão me puxando para ele.
Suspiro me encaixando nele, que enterra o rosto em meus cabelos.
– Você cheira a baunilha.
Rio.
– Ninguém nunca me disse isto.
– Já saiu com muitas caras para comparar?
Eu o encaro.
– Já tive alguns encontros, mas... nunca namorei de verdade.
Ele beija meu rosto e fecho os olhos.
– Nem eu.
– Mentira! – Suspiro quando sinto seus lábios em meu pescoço.
– É sério. Carter achava que eu era gay, até pouco tempo atrás. – Ri,
passando o nariz por minha orelha. Estremeço quando me aperta mais.
De repente pingos grossos de chuva começam a cair e nós corremos
para o carro. Estamos rindo feito crianças quando sentamos meio molhados
no banco de trás.
E não sei em qual momento o riso é substituído por beijos, perco a
noção do mundo lá fora quando Matthew finalmente me beija.
E não me importo quando um beijo se transforma em muitos, cada
vez mais vorazes, fazendo meu corpo esquentar em lugares escondidos, que
clamam por suas mãos e, quando elas finalmente estão em mim, apenas fecho
os olhos e me derreto nele, não me importando mais com nada.
Ainda está tocando The Scientist, quando percebo que estamos
passando de todos os limites. Não consigo parar. Não quero parar.
Aquilo não pode ser errado. Os dedos de Matthew removendo minha
calcinha. Meus próprios dedos abrindo sua calça.
Anseio delirantemente sentir como será tê-lo dentro de mim e então
ele vem.
E é perfeito.
Muito tempo se passa até que volte à realidade.
Ainda estamos meio vestidos, estou sentada entre suas pernas, meu
rosto enterrado em seu pescoço e seus braços me envolvem.
Então me dou conta que transei com Matthew King no banco traseiro
de seu carro no nosso primeiro encontro.
E o pior é que não estou arrependida.
– Evangeline, tudo bem?
Não consigo responder.
O peso do que fiz me enche de angústia.
– Me desculpe. – Ele pede com a voz culpada e o encaro.
Se eu contar a ele, o que vai acontecer?
Talvez fique furioso comigo. E não teria razão?
– Eu amo você.
Suas palavras me pegam de surpresa e meu coração para de bater por
um momento.
Eu acredito nele. E uma parte de mim quer dizer que o ama também.
Será que é realmente o que eu sinto?
Será que estou apaixonada por Matthew King?
Não, não posso me deixar levar. Não antes de contar a ele como tudo
começou.
Talvez ele nem me ame mais quando souber.
Meus dedos tocam seu rosto.
– Matthew... preciso te dizer...
De repente alguém bate no vidro do carro e olho assustada.
– Matthew, sei que está ai!
– É Emily – ele explica irritado. – Que diabos!
Ele se afasta, enquanto Emily continua batendo no vidro.
– Matthew, preciso falar com você, agora!
Nós nos arrumamos rapidamente e me pergunto o que a irmã de
Matthew está pretendendo.
– Não fique assustada, é minha irmã!
Ele abre a porta do carro e sai.
Emily não está sozinha.
Carter está ali e Ella corre em nossa direção.
Sinto um pressentimento horrível.
– Que merda pensa que está fazendo? – Matthew grita furioso.
– Emily, vamos embora, pare com isto. – Carter tenta puxar seu
braço, ela parece verdadeiramente fora de si quando o empurra.
– Me deixe! Você é um imbecil também!
– Emily...
– Ei, o que está acontecendo?
– Você é uma maldita! – Emily rosna com ódio.
Ela olha para mim e sei exatamente o que está pensando.
Emily sabe. E veio contar a Matthew.
Saio do carro tremendo.
– Transou com ele, não foi?
– Emily, cale a sua boca e dê o fora daqui!
– Vai dizer a ele ou quer que eu diga? – Ela pergunta me encarando
com ódio.
Matthew me encara confuso...
– Do que ela está falando?
– Matthew... – tento achar as palavras, Emily me interrompe.
– O Carter pagou para ela sair com você!
Suas palavras parecem sujas quando enchem o ar.
Matthew olha para Emily como se ela tivesse enlouquecido.
– Do que está falando?
– Acha que estou mentindo? O idiota do Carter acabou de me contar!
Ele deu dinheiro a Evangeline para ela concordar em sair com você!
Matthew me encara. Ele não está acreditando.
– Diz para ele! Ou vai mentir? – Emily insiste.
– Emily pare! – Carter pede.
– Você cale a boca! Como pôde fazer isto com Matthew? Meu Deus
tenho vontade de te matar!
– De que porra vocês estão falando? – A voz de Matthew é gélida. –
Carter?
– Emily está exagerando...
– Carter?
– Bom, eu vi que estava interessado nela e a gente fez um acordo.
Fecho os olhos.
– Acordo?
– Pedi que ela saísse com você, dei um dinheiro para ela...
Tenho vontade de morrer naquele momento. Colocando daquela
maneira pareço uma vagabunda mercenária.
Matthew me encara.
E em seus olhos já não há nenhum calor.
– É verdade?
– É – respondo.
– Claro que é verdade! – Emily grita e sinto um tapa na minha cara. –
Sua vadia! Vou matar você!
Carter segura Emily afastando-a de mim.
Eu tremo inteira.
Matthew me encara com ódio.
– Matthew, sinto muito... Não é como está pensando...
– E como é então?
– Só peguei um dinheiro emprestado...
– Em troca de transar comigo?
– Não... eu... Você não entende.
– Estou começando a entender muito bem.
– Não transei com você por dinheiro – digo mortificada.
Todos os King continuam ali me encarando com raiva.
– Carter te convenceu a sair comigo por causa do dinheiro, não é?
– Sim..., mas... Matthew, por favor, as coisas não foram bem assim!
Carter foi atrás de mim...
– Chega! Não quero mais ouvir.
– Matthew, por favor... me escute... eu sinto muito. Eu...
Ele se afasta. Mesmo assim sinto que não posso deixá-lo ir e seguro
seu braço.
– Matthew...
Ele empurra minha mão com um safanão e me encara com tanto ódio
que me fere quase fisicamente.
– Suma daqui! Não quero nunca mais olhar na sua cara! Só quero ir
embora desta maldita cidade e esquecer que te conheci!
E se afasta sem olhar para trás.
– Poxa, não era para acabar desse jeito. – Carter diz e Emily o encara
com raiva.
– A culpa é sua por ter trazido esta vadia para vida do Matthew! Não
vou te perdoar, Carter.
Emily corre em direção a Matthew e Carter a segue.
Ella me fita com frieza.
– Acho que sobrou para mim te levar embora.
Não tenho outra opção a não ser entrar no carro com ela.
Tento não chorar no caminho. Ella não diz nada e imagino que
também deve estar com raiva de mim. Saio do carro sem dizer uma palavra.
Meu pai não está por lá quando me arrasto para a cama e finalmente
choro.
Eu não vi mais os King. Por dias só queria chorar.
Tinha uma vontade louca de procurar Matthew e tentar me explicar,
de que adiantaria?
Ele escolheu não me ouvir. E agora me odiava.
O melhor que podia fazer era esquecer.
Depois de alguns dias fico sabendo que eles partiram. Ninguém sabe
por que deixaram a casa no meio do verão. Ou se voltariam algum dia.
E sinto um alívio misturado à tristeza.
Nunca mais veria Matthew King.
No entanto, ele deixou algo para me fazer lembrá-lo pelo resto da
minha vida.
Sofia.
Capítulo 10

Matthew

Aquela verdade inexorável se repete em meu cérebro vezes sem fim.


Sofia é minha filha.
A garotinha de cabelos acobreados que andava sozinha na rua naquele
dia chuvoso e a quem eu dei carona. A criança que me deu Orgulho e
Preconceito de presente. E que não tinha pai.
“Meu pai foi embora porque brigou com a minha mãe. Ele nem quis
me conhecer”.
É claro que fui embora.
Nem fazia ideia que ela existia! Até aquele momento. Defronte a casa
de Evangeline Evans.
Com quem eu estive apenas uma vez. E foi o bastante.
A garota que me enganou da maneira mais vil possível. Me deixando
com uma marca que, mesmo depois de dez anos, ainda doía. A mulher que
agora me fitava com total horror porque descobri que não foi só um segredo
de dez anos que escondeu de mim.
Foi minha própria filha.
Filha.
Olho de novo para Sofia assombrado. Chocado.
Deslumbrado.
Ela passou dez anos por aí. Sem que sequer desconfiasse da existência
de uma parte de mim em algum lugar do mundo, respirando, sorrindo.
Vivendo.
Estudo seu rosto quase com desespero. Vejo meus próprios traços
misturados com os de sua mãe. Como não percebi?
Seus olhos castanhos são do tom exato dos de Evangeline. Um rico e
profundo tom de âmbar.
Ela é uma mistura perfeita de nós dois.
Sinto minha vida sendo drenada de mim num instante.
Como se levasse sucessivos murros no estômago ficando incapaz de
respirar.
– Ei, mãe – Sofia diz meio ressabiada.
Não sei se ela sente a tensão entre nós. Ou se só está com medo por
ter sido descoberta pegando carona com um estranho.
Estranho!
Esta definição é tão deturpada e ao mesmo tempo tão verdadeira que
me causa uma dor quase física.
Minha própria filha é uma estranha.
E tudo por culpa de Evangeline Evans.
Tenho certeza que ela sabe exatamente o tamanho do erro que
cometeu, pois seu olhar está cheio de medo.
Ela tem razão de estar aterrorizada. Sinto uma raiva borbulhante
dentro de mim.
– Sofia, entre agora – finalmente diz com firmeza.
– Mas, mãe... este é o Matthew... eu te falei dele. – Sofia parece com
medo também.
– Eu disse agora! – Ela repete e Sofia me encara com os olhos
castanhos suplicantes numa mistura de medo da ira de sua mãe e um pedido
mudo de desculpas.
Tenho vontade de puxá-la para mim e dizer exatamente quem sou.
Então ela se afasta quase correndo para dentro de casa.
– Posso saber o que pensa que está fazendo? – Pergunta friamente. Sei
o que está tentando. Ela acredita que ainda pode me enganar.
Que eu talvez ainda não tenha descoberto seu segredo sujo.
– O que eu estou fazendo? Talvez você queira me dizer o que andou
fazendo nestes dez anos...
– Pensei que tivesse deixado claro hoje. Some da minha vida. Não
quero mais você me rondando ou a ...
– Sofia?
– Sim, minha filha.
– Ou seria melhor dizer nossa filha.
Ela empalidece ainda mais. Por um momento temo que vá desmaiar.
Uma certa preocupação me faz dar um passo em sua direção, logo
sendo substituída pela raiva quando ela pisca. – Ela não é sua filha.
– Vai ter coragem de mentir na minha cara? Eu não devia esperar
outra coisa de você, não é? Mentiu para mim no passado e está mentindo
agora.
– Vá embora, Matthew – sua voz está trêmula.
Não sinto a menor pena.
Ela sabe que não tem como fugir da verdade e mesmo assim mente.
As coisas não ficarão assim.
Olho para a casa, onde Sofia desapareceu. Sinto uma espécie de pesar
misturado à fúria. E também uma vontade insana de dizer a verdade a ela,
mas sei que não posso.
Ela é apenas uma criança. E, se eu estou chocado com toda esta
revelação, não posso colocá-la na mesma situação.
Não agora. Não ainda.
Respiro fundo, tentando me acalmar.
– Matthew, vá embora, por favor... – Evangeline repete.
– Eu vou. Por enquanto.
Entro no carro e saio cantando pneus. Pelo espelho retrovisor vejo
Sofia saindo novamente da casa falando com Evangeline que a abraça junto
ao corpo, como se temesse que alguém a levasse embora.
Sinto um aperto no peito, enquanto a imagem das duas diminui até
desaparecer.
As coisas não iam ficar assim. Eu voltaria.
E Evangeline teria que me explicar tudo sem rodeios ou mentiras. E
eu teria que decidir o que fazer com aquela verdade.

***
Evangeline

Quero sumir. Fugir. Desaparecer.


É só o que passa pela minha cabeça enquanto vejo Matthew se
distanciando.
O meu maior pesadelo está em curso. Ele descobriu sobre Sofia.
E tenho certeza que meus problemas estão apenas começando. Por
mais que eu tentasse negar por puro desespero que ele não é o pai dela, sei
que seria em vão.
Ele já tem a certeza. As evidências são visíveis. Ele as vê como
qualquer pessoa mais observadora.
E, além disto, qualquer mentira pode ser descoberta com um exame
de DNA.
Estremeço de horror. O que Matthew vai fazer com esta revelação?
– Mamãe, está zangada comigo?
Escuto a voz de Sofia e, esquecida da bronca que ela merecia levar
por ter mentido tão descaradamente, a abraço forte mantendo-a junto de mim,
enquanto o carro de Matthew se afasta.
Será que ela faz ideia? Não, não pode fazer.
E nem sei como será se ela também descobrir.
Tenho medo do que o futuro me reserva.
– Mamãe, me desculpe por ter mentido, você não está com raiva?
Eu a encaro.
Seus olhos estão amedrontados e culpados.
– Conversaremos depois, tudo bem? Agora vamos entrar.
Ela hesita, pois sabe que não é este meu estilo.
Costumo puni-la na hora sempre, caso mereça. Nesse momento não
consigo pensar em nada a não ser que Matthew sabe que é o pai dela. E me
pergunto o que vai acontecer. Meu estômago dá voltas terríveis enquanto
preparo o jantar e ainda estou preocupada quando Sebastian aparece.
– Oi, Eve – ele entra na cozinha, mas não se aproxima muito. Parece
hesitante, talvez por causa da nossa conversa tensa de ontem à noite.
E ele nem sonha tudo o que aconteceu depois. – Oi – respondo
distraída, enquanto cozinho.
Sei que devo contar a ele sobre Matthew. Mas não consigo. Sebastian
ficaria preocupado. E nem quero imaginar se ele cismar de ir tirar satisfação
com Matthew.
Não, melhor ele não saber de nada por ora.
Não enquanto eu não souber o que Matthew vai fazer.
– Está tudo bem?
– Está. – Eu o encaro brevemente forçando um sorriso.
Ele permanece em silêncio por um momento. Fico ainda mais tensa.
– Você está irritada comigo?
– Não, não estou.
– Pois parece.
Suspiro pesadamente e o encaro.
– Não estou com raiva de você, ok? É sério. Agora você pode chamar
a Sofia? Já vou servir o jantar.
Ele se afasta e respiro fundo várias vezes, tentando me acalmar, pois
sinto que posso explodir a qualquer momento.
Minha vontade é de me abraçar a Sebastian e contar todos meus
problemas para que ele possa me proteger da ira de Matthew.
É tão ridículo e irreal. Obviamente sei que Sebastian sempre ficará do
meu lado. Afinal, foi para ele que pedi ajuda quando engravidei e estava
sozinha. Foi ele que me ajudou a convencer meu pai que eu não era uma
perdida só porque engravidei aos 18 anos de um cara que nem estava mais na
cidade. E também foi ele que me ajudou quando me meti de novo em
confusão ao me envolver com outro cara.
Claro que me ajudaria se eu pedisse.
Desta vez eu não queria envolver Sebastian.
No fundo, sabia que nada me protegeria da ira de Matthew neste
momento.
Eu me recomponho quando escuto o som dos passos de Sebastian e
Sofia se aproximando.
– Lavou as mãos? – Pergunto firmemente para ela que mostra a mãos
com um sorriso. Sorrio de volta enquanto nos sentamos para comer.
Fingindo que está tudo bem.
Que somos quase uma família. Que nada vai atrapalhar meu
casamento em menos de um mês. Que Sebastian pode vir a ser um pai para
Sofia.
Sei que nada disto é real. E meu coração está apertado pela angústia.
Sebastian nunca foi e nunca será o pai de Sofia.
Ela tem um pai. Um cara que me odiou por dez anos. E que agora
deve me odiar ainda mais por ter escondido a existência de sua filha.
– Como foi a pescaria com Sam hoje? – Sebastian pergunta a Sofia e
ela fica vermelha.
Claro, ela não foi pescar coisíssima nenhuma. De alguma maneira
convenceu Sam a levá-la até Matthew. E não foi a primeira vez.
Eu me pergunto o motivo de tanto interesse por Matthew. Será que
tem alguma ideia de quem ele é?
– Eu não fui pescar.
– Não? – Sebastian franze a testa, confuso – Sam disse que ia te levar
para pescar hoje à tarde.
– Sim, ele me levou na casa do meu amigo antes e acabei ficando lá.
– Amigo?
– Sofia – tento impedi-la de falar, é tarde.
– Sim, o Matthew. Você devia conhecê-lo! Ele é tão legal...
Sebastian me encara chocado. Meu olhar confirma o que Sofia diz.
– Matthew King? – Ele pergunta devagar, ainda me encarando.
Seu choque se transformando lentamente em ira.
– Sim! Ele mora naquela casa linda na marina. Você precisa ver por
dentro, Sebastian, é demais! Dá para ver o lago e ele tem um piano, me
ensinou a tocar e...
– Você esteve na casa dele? – Sebastian pergunta e Sofia continua a
falar empolgada, alheia à tensão.
– Sim veio me trazer em casa hoje, conheceu a minha mãe...
Agora ele me encara novamente.
– Ele te viu?
– Sebastian, agora não, por favor – imploro.
Ele respira fundo.
– Ele sabe?
– Sebastian – murmuro olhando para Sofia, e ela olha de mim para
ele, curiosa.
– Ele sabe o quê?
– Nada – eu me levanto. – Já terminaram?
– Sim, tem sobremesa? – Sofia pergunta já esquecida de sua
curiosidade anterior.
– Não, suba para o quarto.
– Por quê?
– Porque preciso conversar com o Sebastian.
– Não estou com sono.
– Vá ler então. Não tem um livro novo?
– Sim, já estou acabando.
– Ótimo, então termine!
Ela sobe a escada não muito animada e começo a tirar as travessas da
mesa, jogando tudo dentro da pia furiosamente. Minhas mãos estão trêmulas.
– Ele sabe sobre Sofia? – Sebastian pergunta atrás de mim.
– Sabe.
Sebastian solta um palavrão.
– Quando você iria me contar?
– Não queria preocupar você.
– Deus, Eve! Não seja absurda! Como aconteceu? O que Sofia estava
fazendo na casa dele?
– É culpa do Sam! Ele a levou lá! E não foi a primeira vez!
– Como assim?
– Sofia esteve na casa dos King ontem também.
– Ela te contou?
Abro a boca para dizer “Matthew me disse”, mas me calo.
Lembrar que Matthew esteve na livraria faz meu rosto esquentar de
culpa ao me lembrar do que aconteceu lá.
Eu traí Sebastian. E me sinto horrível.
Não quero pensar sobre este assunto agora. Não quando tenho coisas
muito mais graves para me preocupar.
– Vou matar o Sam.
– O Sam é o menor dos meus problemas no momento.
– Como foi que o Matthew King descobriu que Sofia é filha dele?
– Você ouviu o que Sofia disse. Ele veio trazê-la em casa. Quando me
viu descobriu tudo. Até tentei negar...
– Ele não acreditou.
– Duvido que tenha acreditado.
– E Sofia?
– Ela não sabe de nada.
– E o que ele fez?
– Nada. Pedi que ele fosse embora. Agora é esperar.
– Não vamos esperar nada! Vou agora falar com ele.
– Falar o que, Sebastian? Não seja absurdo você!
– Absurdo? Não vou deixar este cara te intimidar...
– Ele não fez nada ainda. E nem sei o que pretende fazer. Talvez...
Talvez nem faça nada!
– Acredita mesmo que ele não vai fazer nada?
– Talvez! Matthew me odeia! Acha que ficará feliz em ter uma filha
comigo? Provavelmente irá embora da cidade correndo para nunca mais
voltar.
– É o que você queria, não é?
Mordo os lábios com força. O que eu queria?
Nem sei o que eu quero.
Antes de Matthew reaparecer eu sabia como era minha vida e o que
queria. Agora, está tudo de ponta cabeça.
– Não sei o que fazer...Tenho medo...
Sebastian se aproxima e me abraça.
Fecho os olhos.
– Não fique assim. Nós estamos juntos nisto Eve, você sabe, não é?
Não vou deixar nada acontecer.
Tento acreditar, porém estou longe de ficar calma.
Eu o afasto.
– Acho melhor você ir.
– Não quer que eu fique...
– Não, está tudo bem.
– Eve...
– Sério Sebastian. Pode ir para casa. Vou fingir que está tudo bem e
esperar o próximo movimento de Matthew.
– Ainda acho que devia conversar com ele.
– Não. Vamos esperar. Nem sabemos o que ele vai fazer, não é?
Como disse, pode estar fugindo de Camden a esta hora... duvido que queira
algo com Sofia.
Enquanto digo isto, sei, bem no íntimo, que estou me enganando.
As palavras são fruto do meu desespero, querendo que tudo continue
igual. Querendo não ter que enfrentar as consequências das minhas escolhas.
– Tudo bem, eu vou. Voltarei amanhã cedo, ok?
– Tudo bem.
Eu o acompanho até a porta e então, sem aviso, ele me beija.
Eu deixo embora não sinta nada. E enquanto o vejo subir na moto e se
afastar, me pego lembrando de outro beijo. E me sinto culpada, não só por ter
traído Sebastian. Também por ter a plena noção de que Sebastian é o homem
com quem vou me casar, e, mesmo assim, ainda prefiro os beijos de Matthew
King.
O cara que me odeia. O pai de Sofia.
Fecho a porta e volto para a cozinha.
Solto um grito abafado ao ver Matthew me encarando.
– Deus do céu, como entrou?
– Pela porta aberta.
Claro, ele entrou pela porta da cozinha, há quanto tempo estava ali? E
por quê?
– O que está fazendo aqui? – Cruzo os braços sobre o peito o
encarando o mais friamente possível, porém por dentro estou tremendo.
– Nós precisamos conversar.
Engulo em seco.
– Não precisamos. Já disse tudo o que tinha a dizer.
– Mentiras?
– Não é mentira! Estou falando a verdade, ela não é sua filha! – Grito,
embora até para meus ouvidos minhas palavras pareçam falsas.
– Ela é sim. Fui um idiota por não ter visto as semelhanças e todas as
evidências, agora está claro como água. Ela me disse que não conhece o pai.
Que ele foi embora da cidade antes de ela nascer e que nunca quis conhecê-
la.
– É verdade.
– Eu nem sabia que ela existia!
– Você não se importava! – Desabafo por fim.
Do que adiantava continuar negando?
– E de quem é a culpa? – Seu grito se sobrepõe ao meu. – Você
recebeu dinheiro do Carter para transar comigo e ainda queria que eu
permanecesse aqui? Eu não queria ficar e me lembrar do quanto fui idiota
toda vez que encontrasse você!
– Eu poderia ficar horas tentando me explicar, porém acho que dez
anos depois não faria o menor sentido!
– Sim, não estamos aqui para falar de nós dois. Isto não importa mais.
Vamos sim falar do segredo que escondeu por dez anos.
– Não escondi nada deliberadamente! Você não estava aqui para eu
contar!
– Se você quisesse mesmo me encontrar teria conseguido. Nunca
pensou nisto?
– Claro, te procurar e contar que estava grávida? Você e sua família
foram embora me odiando!
– Você estava grávida! Era um filho meu! Eu merecia saber! Você fez
de propósito, escondeu Sofia de mim por todo este tempo, deixando que este
seu namoradinho criasse ela...
– Não coloque o Sebastian no meio do assunto. Eu nunca o coloquei
como pai da Sofia. Ela é apenas minha filha!
– Está se casando com ele!
– Isto é da minha conta!
– É da minha conta a partir do momento que ele terá mais direito que
eu em relação a Sofia.
Estremeço.
– O que quer dizer?
– Que eu sou o pai dela e estou aqui. E tenho meus direitos.
Sinto o chão fugir sob meus pés. O que ele queria dizer?
Ele não iria querer tirar Sofia de mim, iria?
Sinto dificuldade de respirar.
E se os King resolverem brigar comigo pela guarda da minha filha?
– Matthew, ela é uma criança. E é minha filha...
– É minha filha também, embora você teime em agir como se não
tivesse importância. Não vou permitir que continue agindo assim!
– E o que você vai fazer?
– Quero que a chame.
– Matthew...
– Você vai chamá-la agora. E vamos contar a verdade.
– Não acho que...
– Você não tem que achar nada. Estou te dando a chance de você
mesma contar. Se não quiser, eu mesmo contarei.
Mordo os lábios com força, o medo se apoderando de mim.
Medo da reação de Sofia ao saber da verdade.
– Matthew, por favor. Ela é só uma criança! Sei que está com raiva,
mas...
– Sim, estou com raiva. De você e não dela.
Sinto suas palavras como uma bofetada e me encolho.
– Por isto mesmo peço que não seja precipitado...
– Precipitado? Ela tem dez anos! Chega de mentiras!
Respiro fundo. Matthew está decidido e sei que não vou conseguir
convencê-lo do contrário.
– Certo – murmuro vencida. – Vou chamá-la.
Praticamente me arrasto escada acima para chamar Sofia. Meu
coração está apertado e nem é mais por mim e sim por ela.
Ela tem quase dez anos e é uma criança bem esperta e madura para a
idade. Mesmo assim, será um baque uma revelação daquelas.
Sofro por pensar que ela pode sofrer também.
Infelizmente sei que não posso protegê-la disto. Agora que Matthew
está de volta e sabe da verdade, ela precisa saber que ele é o seu pai.
– Sofia? – Abro a porta do quarto e não a encontro ali. – Sofia? – Vou
até o banheiro e ela também não está.
Vou até o quarto de Jack e nada.
De repente sinto um pressentimento ruim.
– Sofia? – Desço as escadas novamente e Matthew está ali. – Você a
viu aqui embaixo? – Pergunto, passando por ele e indo até a sala. Nada de
Sofia.
Meu coração começa a falhar.
– Ela não está lá em cima? – Matthew pergunta.
– Sofia? – Grito de novo, abrindo a porta e chamando-a na noite
escura. – Sofia?
– O que aconteceu, onde ela está?
Eu me viro de novo e corro para dentro, subindo as escadas. Matthew
me segue.
– Ela não está em lugar nenhum! – Digo apavorada, percorrendo
novamente os cômodos vazios.
– Ela poderia ter ido a algum lugar aqui perto? – Ele pergunta e eu
sacudo a cabeça em negativa.
– Ela não sai à noite sozinha...
– Mas ela sai sozinha, não é? Quando a encontrei pela primeira vez
estava andando sozinha na estrada.
– Não à noite! Também não sai sem permissão!
Quero dizer que ela não mentia e nem desaparecia antes de ele
aparecer e então uma desconfiança terrível faz meus ossos gelarem.
– E se ela ouviu? E se ela sabe que...
– Se ela ouviu nossa conversa?
– Não, antes... Sebastian esteve aqui... – fecho os olhos com força,
imaginando Sofia ouvindo o que conversei com Sebastian sobre Matthew. –
Oh Deus... – abro os olhos e rapidamente reviro o quarto e, como
desconfiava, a mochila de Sofia não está lá, assim como o livro que ela
carrega para todos os lugares agora.
Encaro Matthew, gelada por dentro e por fora.
– Acho que ela fugiu.
Capítulo 11

Matthew

Fugiu?
Escuto suas palavras com incredulidade.
– Como assim? Você tem certeza?
Evangeline está branca feito papel e passa os dedos trêmulos pelos
cabelos.
– A mochila dela não está aqui... Oh meu Deus.
Sinto seu desespero enquanto a dúvida vai se transformando em
certeza, e me atinge também.
– Por que ela faria isto? Você mesmo disse que ela não sai a noite...
– Acho que ela ouviu... ela pode ter ouvido e sabe Deus o que
entendeu. Matthew, ela é só uma criança... Aonde pode ter ido?
Rapidamente pego o telefone e disco.
– O que está fazendo?
– Ligando para a polícia.
Não demora para uma viatura aparecer e o policial começar a fazer
perguntas.
– Tem certeza que ela fugiu? – Pergunta o policial.
– Sim, não tem outra explicação... O que vamos fazer? Ela pode estar
sozinha por aí...
– Acha que ela pode ter ido para o bosque?
– Não sei...
– Precisam formar uma equipe de busca. – Começo a me irritar com a
calma do policial. – Ela pode estar em perigo nesse exato momento!
– Sim, claro, vou chamar reforço e veremos o que podemos fazer.
– Não vai ver nada, você vai fazer.
– Ei, meu chapa, sei fazer meu trabalho!
– Por isto mesmo devia fazer direito.
– E quem é você?
– Sou o pai de Sofia.
O policial encara Evangeline, como que buscando uma confirmação,
ela apenas assente.
– Sim, ele é o pai da Sofia, acho que agora isto não é importante.
– Claro. Vou passar um rádio.
Olho para Evangeline que tem os olhos aflitos e mal respira.
– Queria que meu pai estivesse aqui, ele saberia o que fazer.
– Fique calma. Vamos encontrá-la. Ela é uma garota esperta.
– Tenho medo, não sei o que faria se... – ela soluça. – Eu me sinto tão
culpada...
– Não fique assim. Não foi culpa sua.
– E se ela fugiu porque ouviu a verdade?
– O importante agora é encontrá-la. – Digo quase friamente, enquanto
por dentro estou remoendo as palavras de Evangeline.
Sofia fugiu de casa por algum motivo e provavelmente foi por
descobrir que era minha filha. Não era algo agradável de aceitar. Achava que
ela gostava de mim, que...
– E então? – Evangeline pergunta ao policial.
– Vou entrar e fazer uma busca na sua casa. Já chamei reforço, eles
estão vindo e vamos entrar na floresta.
Pego meu telefone de novo, enquanto Evangeline entra na casa com o
policial e ligo para Carter.
– Ei, Carter onde estão?
– Jantando na cidade. Aliás, Evelyn está furiosa contigo. Nós não
tínhamos combinado de jantar com seus pais hoje?
– Sinto muito, estou com um problema.
Eu me lembro que ao sair da casa de Evangeline naquela tarde, não
fui para casa, fiquei dirigindo pela cidade sem rumo.
Eu saí de lá consumido pela revolta. Como era possível? Dez anos se
passaram. Dez anos que eu tinha uma filha que andava por aí sem eu fazer
ideia. Porque Evangeline escondeu de mim.
E eu nunca iria ficar sabendo se não tivesse voltado a Camden.
Agora eu sabia.
E, enquanto percorria as ruas frias de Camden e o crepúsculo tomava
a tarde, a revolta foi dando lugar a outros sentimentos. Eu pensava em Sofia,
em todos os momentos que estive com ela desde que a conheci naquela tarde
chuvosa. E sentia uma mistura de pesar e angústia. Eu poderia nunca saber. Ir
embora da cidade e tudo continuar do mesmo jeito. Evangeline continuaria a
ser a garota que me enganou no passado e por quem ainda sentia uma mistura
de desejo inapropriado e raiva eterna. E Sofia seria apenas uma criança
adorável de quem me lembraria com carinho.
Agora tudo havia mudado irreversivelmente e sabia que teria que
dividir a verdade com minha família, só não estava preparado. Precisava
voltar à casa de Evangeline. Estava farto de mentiras.
Precisava que Sofia também soubesse a verdade.
Porém, quão arrependido poderia estar naquele momento? Eu agi
impulsivamente. Talvez numa vingança mesquinha contra Evangeline que me
infligiu tudo aquilo. E agora Sofia estava desaparecida.
– Que problema? – Carter fica alerta.
– Vocês podem voltar para casa agora? É urgente.
– Que diabos está acontecendo?
– São muitas coisas ao mesmo tempo..., preciso que venham até a
casa de Evangeline Evans.
– Evangeline... O que ela tem a ver com...?
– A filha dela está desaparecida.
– Desaparecida? Que filha? Evangeline Evans tem uma filha?
– Sim, Sofia.
– A garotinha que esteve em casa com você? É filha dela?
– Sim.
– Você sabia?
– Não até hoje a tarde.
– Matthew, o que está acontecendo realmente?
– Ela é minha filha Carter.
Escuto-o proferindo vários palavrões e a voz alterada de Emily muito
próxima.
– Emily, pelo amor de Deus, tire as mãos do meu telefone...
– Eu quero falar com o Matthew e saber o que está...
– Por favor, Carter. Estamos organizando uma equipe de busca e toda
ajuda será necessária.
– Claro... eu... Jesus, Matthew, isto é...
– Eu sei, podemos conversar depois, agora precisamos encontrá-la.
– Tudo bem. Estamos voltando.
Quando ele desliga o celular, alguns carros estão estacionando e vejo
o policial organizando as buscas.
Entro na casa e Evangeline está desligando o telefone.
– Estou ligando para todo mundo que conheço, alguém pode ter visto
Sofia.
– Liguei para Carter avisar minha família, eles podem ajudar.
Ela me lança um olhar especulativo, mas continua ao telefone.
– Aria, é Evangeline... – ela explica rapidamente sobre o sumiço de
Sofia. – Sim, seria de grande ajuda, obrigada. – Ela me encara quando
desliga. – Aria está vindo para cá com o marido dela Vão ajudar nas buscas...
Deus, estou tão preocupada! Aonde ela pode ter ido?
– Ela não tem nenhuma amiga próxima, alguém que poderia ter ido
encontrar?
– Ela tem várias coleguinhas, liguei para todas que ela poderia
procurar, se bem que nenhuma é muito próxima, ultimamente ela só falava de
você, que eram amigos... – de repente ela para, como se tivesse lhe ocorrido
algo. – E se ela foi para sua casa?
– Para minha casa?
– Sim! Ela mentiu para mim duas vezes para ir até lá!
– Não tem ninguém na minha casa agora, irei até lá.
– Talvez eu deva ir com você.
– Ela pode não estar lá. E os grupos de busca estão saindo. Melhor
ficar aqui no caso de a encontrarem.
– Tudo bem...
Antes que eu saísse, o policial entra na casa.
– Ela foi encontrada.
– Graças a Deus – Evangeline murmura.
– Onde ela está? – Pergunto.
– Está no hospital.
– Hospital? Ela está machucada? – Evangeline empalidece e seguro
seu braço, porque parecia que ela ia cair no chão.
– Parece que estava andando na estrada tropeçou em algo e caiu,
fiquem tranquilos, ela está bem, apenas algumas escoriações. Um motorista a
encontrou e a levou ao pronto socorro.
– Nós vamos para lá agora. – Puxo Evangeline pelo braço, que não
oferece resistência.
Nós seguimos em silêncio até o pronto socorro e Evangeline torce as
mãos nervosamente.
– Ela está bem – não sei se dizia isto para tranquilizar a mim mesmo.
– Preciso vê-la e ter certeza.
– Eu sei. – Sim, de alguma maneira estranha eu sabia como ela se
sentia, porque me sentia do mesmo jeito.
Não fazia nem 24 horas que sabia que ela era minha filha e já sentia
como se tivesse sido assim a vida inteira.
Eu era responsável por Sofia agora. E intuía que aquilo era só o
começo.
Nós entramos no pronto socorro e fomos conduzidos à enfermaria.
Sinto todo o peso do que é ser um pai naquele momento, ao ver Sofia
dormindo deitada contra os lençóis brancos, com um arranhão na testa e uma
tipoia no braço.
– Sofia – Evangeline murmura, passando a mão por ela toda, como
que para se certificar de que estava ali e realmente inteira.
Um médico entra na sala.
– Vocês são os pais?
– Sim – falamos ao mesmo tempo.
– Ela está bem? – Evangeline pergunta.
– Sim, só alguns arranhões. E bateu o braço. Não quebrou, apenas
luxou ficará dolorido por uns dias. Vocês podem levá-la para casa. Nós
demos um analgésico para a dor, por isto adormeceu, acordará bem pela
manhã.
– Obrigado – respondo, e o médico me fita com a testa franzida.
– Não é filho de Benjamin King?
– Sim, sou Matthew King.
– Nós jogamos golfe juntos. Não sabia que ele tinha uma neta.
Evangeline desvia o olhar, ficando vermelha e eu apenas dou de
ombros, sem nada falar.
– Nem acredito que a encontramos... – Evangeline murmura. – Quero
levá-la para casa.
– Sim, deixa que eu a carrego.
Ela parece querer protestar, se cala quando pego Sofia e a levo para o
carro, colocando-a no banco de trás, ainda profundamente adormecida.
Nós voltamos em silêncio quebrado apenas quando meu celular toca e
o atendo ao ver que é Carter.
– Oi Carter, nós a encontramos.
– Sério... ei, gente, ele disse que já a encontraram. – Ele fala fora do
fone. – E aí? Nós estamos em casa, acabamos de chegar.
Explico rapidamente a ele o que aconteceu e desligo.
– Contou a sua família sobre Sofia?
– Sim, eu te falei.
– Falou?
– Acho que nem ouviu.
– O que eles... disseram?
– Na verdade, não contei direito, apenas liguei para eles quando Sofia
desapareceu e tive que contar rapidamente... Não houve... tempo para
nenhuma conversa.
– Sei...
Ela não diz mais nada até chegarmos.
Retiro Sofia do carro e sigo Evangeline para dentro até seu quarto,
depositando-a na cama.
Ela retira seus sapatos e puxa a coberta para cima dela.
– Ainda não acredito que ela está realmente aqui. – Diz passando a
mão por seus cabelos. Seu tom de voz carregado de alívio e medo. – Se algo
tivesse acontecido... Não posso nem suportar pensar...
– Então é assim que nos sentimos? – Pergunto e ela me fita. – Eu
ainda me sinto meio apavorado de pensar que ela podia estar naquela estrada
sozinha... – passo os dedos pelos cabelos, respirando fundo, com um aperto
no peito.
Imaginar Sofia ferida é sentir como se estivessem machucando a mim
também.
– Sim, é assim – ela responde entendendo o que quero dizer.
Dou um sorriso nervoso e ela também sorri.
E, naquele momento entendo que, não importa o que tenha havido no
passado. Ou quais eram meus sentimentos por Evangeline, raiva ou desejo,
nós estávamos ligados irreversivelmente e para sempre.
Pelo o que sentíamos por aquela pequena criatura. Sofia.
Nossa filha.
Como as coisas ficariam?
Paro de sorrir, me enchendo de preocupação novamente e tenho
certeza que ela sente o mesmo.
– Vamos descer.
Eu a acompanho até a cozinha.
O telefone está tocando e ela atende.
– Oi, Aria... sim, está tudo bem. Sofia está dormindo... – ela me
encara e depois desvia o olhar. – Sim, ele está aqui... Aria, conversamos
depois, ok? Obrigada por ajudar!
Ela desliga e me encara.
– Bem, foi uma noite e tanto.
– Sim, pelo menos acabou bem. Sofia voltou.
– Eu queria que nem tivesse saído – diz sombriamente, nos lembrando
dos motivos que a fizeram fugir.
E será que ela estava realmente indo para minha casa?
– Ainda temos um problema.
– Eu sei. Mas... Matthew, o que aconteceu com Sofia me fez ver que
preciso mais do que nunca pensar nela primeiro. É só uma criança e não tem
culpa de nada do que aconteceu... saber que ela ouviu, sabe Deus o que, me
apavora!
– Ela precisa saber que sou o pai dela.
– Sim, eu sei...
– Ela já sabe de qualquer forma.
– Não temos certeza.
– Por qual motivo ela fugiria? Deve ter ouvido alguma coisa e ficado
confusa. Temos que explicar a ela.
– Não, sou eu que preciso explicar, Matthew. Sou a mãe dela e sou
quem precisa contar a verdade sobre você.
– E depois?
– Depois veremos.
– Não vai me deixar de fora, sabe disto, não é?
Sinto o pavor que ela tenta disfarçar em seu olhar. Quero acalmá-la,
mas talvez ainda haja um resquício de ressentimento dentro de mim.
– E o que você quer?
– Quero ser o pai dela.
– Matthew...
– Tem razão. É muita coisa para Sofia no momento. Droga, é muito
para mim! – Olho a hora avançada no relógio. – Então você conversará com
Sofia, posso concordar com isto, só espero que não invente nada.
– Não inventarei nada.
– Não tenho como confiar em você, afinal, disse a ela que o pai foi
embora porque não a queria.
– Eu disse o que foi preciso...
– Temos opiniões diferentes sobre esse assunto, discutiremos depois,
está tarde e hoje já aconteceram coisas demais.
– Tudo bem.
Quando chego em casa, como era de se esperar, minha família está
reunida a minha espera.
– Ainda bem que chegou! – Ella se levanta do sofá vindo em minha
direção – estava morrendo de curiosidade.
– O que aconteceu, meu filho? – Minha mãe pergunta. – Carter nos
disse que aquela garotinha, Sofia, era sua filha. Que história é esta?
– Deve ser mentira – Emily revira os olhos e Carter lhe lança um
olhar de advertência.
– Deixe o Matthew explicar, baby.
– Sim, estamos todos preocupados – meu pai me encara comedido.
– Sim, a menina é minha filha.
Então conto a eles, tudo o que aconteceu desde que levei Sofia em
casa naquela tarde e descobri que ela era filha de Evangeline e minha.
– Nossa, que história – Ella solta uma risadinha. – Parece novela.
– Cale a boca, Ella! – Emily exclama e me encara tensa. – Como pode
ter certeza? Até onde eu sei esta garota pode ser filha de qualquer um.
– Não é.
– Como sabe? Você só saiu uma vez com Evangeline, Matthew e
sabemos que ela não é de confiança... agora aparece com esta filha... Deve ser
filha de algum perdedor da cidade e ela quer te enrolar.
– Está falando asneiras, Emily. Sei que Sofia é minha filha!
– Continua tão crédulo quanto antes, não é? Acreditou que a tal
Evangeline era a mais pura das criaturas e olha no que deu...
– Emily, chega! – Meu pai pede. – Isto pode ser facilmente resolvido,
Matthew pode fazer um teste de DNA.
– E tem que fazer realmente! Ela deve estar querendo dinheiro de
novo...
– Ei, baby, pare com isto – Carter toca seu braço.
– Não, não vou deixar aquela vadia enrolar o Matthew outra vez!
Vocês não veem? Ela já o enganou antes e pode muito bem estar enganando
agora com esta história de filha...
– Acho que este é um problema meu. – Digo cansado. Não estou a
fim de entrar numa discussão com Emily no momento.
– Sim, chega deste assunto por hoje, está tarde. – Mamãe se levanta. –
Vamos todos dormir.
– A menina está bem? – Meu pai pergunta.
– Sim, teve uma queda, tem uma luxação no braço e alguns
arranhões... Bem, estou realmente cansado, boa noite.
Não consigo dormir. Todos os acontecimentos daquele dia rondam
minha mente e me sinto ansioso para saber como as coisas ficarão.
Desistindo de dormir, saio do quarto e vou até o piano. Tocar sempre
me acalmava. Me recordo de estar naquela mesma tarde com Sofia ali. E
sequer imaginava que ela era uma parte de mim.
– Ei, não consegue dormir?
Levanto o olhar e vejo Carter me encarando.
– Não e você?
– Ouvi o piano e sabia que estava aqui. Queria conversar com você.
– Agora?
Ele dá de ombros.
– Acho que estou pensando muito também... No passado. No que eu
fiz.
– Carter...
– A culpa é toda minha não é? Nunca teria se envolvido com esta
garota se não fosse minha ideia estúpida.
– Você pede desculpas uma vez por ano, então vamos deixar esta
história para lá.
Perdoar Carter não foi fácil na época.
No entanto meu ódio maior era de mim mesmo. Eu fui idiota por
acreditar em Evangeline.
E conhecia Carter. Ele não era maldoso. Apenas sem noção. E
acreditou que estivesse fazendo algo para me ajudar. Ele me via como um
irmão mais novo e, na mente dele, estava fazendo o certo ao pagar alguém
para ficar comigo. Este tipo de prática não era incomum no meio dos
esportes.
– Sempre achei que não deveríamos voltar...
– Ainda bem que voltamos. Senão nunca teria descoberto sobre Sofia.
– Esta menina... você acha que ela é realmente sua filha?
– Sim, ela é.
– E como vai ficar? Você odeia Evangeline.
– Meus sentimentos por ela não importam.
– Não sei como as coisas podem dar certo...
– Nem eu... – digo sombriamente.
– Bem, estou com você não importa o que decidir, sabe disto, não é?
– Eu sei.
– E não ligue para Emily. Ela se preocupa demais com você.
– Eu sei.
– Pare de tocar e vá dormir pelo amor de Deus, antes que Emily
acorde e fique de mau humor para sempre.
Rio e o acompanho escada acima.
Tentar dormir o que resta da noite. E esperar pelo o que o futuro me
reserva.
Capítulo 12

Evangeline

Eu mal consigo dormir naquela noite.


Então, quando escuto o barulho de um carro estacionando, me levanto
e ao abrir a janela, fico surpresa ao ver Jack e Sebastian saindo do carro.
Desço rapidamente quando eles estão entrando em casa.
– Pai, o que faz aqui? – Corro e o abraço. Senti tanta falta dele
naqueles dias nem tinha me dado conta.
– Sebastian foi me buscar e contar a confusão que está acontecendo
aqui. – Ele diz gravemente. – Por que não me ligou?
Lanço um olhar irritado a Sebastian que dá de ombros, permanecendo
sério.
– Seu pai precisava saber.
– Não devia ter decidido sem me consultar!
– Fiz o que você deveria ter feito.
– Ei, chega, vocês dois. Sebastian fez bem em ir me buscar! Você
devia ter me ligado.
– Não queria preocupar você.
– Que história é esta de o pai da menina ter voltado?
Mordo os lábios com força. O que dizer a Jack?
Ele também não sabe muita coisa. Jamais tive coragem de contar a ele
no que tinha me envolvido naquela época. Assim, ele sabia o mesmo que
Sebastian.
Tive um breve envolvimento com Matthew King e ele foi embora da
cidade, me deixando grávida.
Na época, Jack ficou muito zangado comigo e queria procurar
Matthew, consegui fazê-lo desistir. Jack ficou chateado e decepcionado
comigo por algum tempo, depois que Sofia nasceu ficou tão apaixonado por
ela que facilmente esqueceu meus deslizes.
O que aconteceria se ele descobrisse toda a verdade? Não, não podia
dar um desgosto destes a ele.
– Os King voltaram à cidade faz alguns dias, Matthew e Sofia se
conheceram e ele descobriu tudo, enfim, acho que o Sebastian já contou ao
senhor.
– Sim, ele me contou. O que o tal Matthew quer agora depois de tanto
tempo?
– Ele ficou enfurecido por eu ter escondido Sofia dele.
– Bem que eu falei na época. Você deveria tê-lo procurado e contado
que estava grávida, não foi certo...
– Pai, as coisas não terminaram bem entre mim e Matthew, eu
acreditava que ele não ia querer saber sobre a gravidez. Tive medo!
– E agora, como vai ser?
– Eu não sei.
– Sofia já sabe?
– Sabe, só... não sei o quanto. Na verdade, acredito que ela ouviu
alguma coisa da nossa conversa, Sebastian, ou da conversa com Matthew...
– Matthew esteve aqui? – Sebastian pergunta irritado.
– Sim, depois que você foi embora. Nós discutimos feio e ele pediu
para chamar Sofia exigindo que eu contasse tudo a ela, quando fui chamá-la,
ela havia fugido.
– O quê? – Jack e Sebastian exclamam ao mesmo tempo.
– Como assim fugido? – Jack pergunta.
– Não se preocupem nós a encontramos. Ela estava na estrada, caiu e
se machucou.
– Meu Deus, ela está bem?
– Sim, apenas alguns arranhões e um braço luxado. Está dormindo
não conversamos ainda.
– E Matthew King?
– Ele ficou aqui o tempo inteiro. Pedi que fosse embora porque que
tenho que conversar com Sofia primeiro. Ele vai voltar. – Estremeço de medo
com todas as possibilidades de ter Matthew por perto.
– Por que não me ligou? Sofia desaparece e você nem me conta nada?
– Sebastian reclama.
– Me desculpe, não pensei em nada na hora, fiquei tão apavorada...
Agora percebo que no meio da confusão realmente nem pensei em
ligar para Sebastian.
Alguma parte do meu subconsciente queria deixá-lo de fora daquilo.
Ele e Matthew no mesmo espaço seria mais problema ainda.
– Vou subir e ver Sofia – Jack se afasta, subindo as escadas.
Encaro Sebastian que não parece nada feliz.
– Como pode ter me deixado de fora?
– Não foi...
– Foi exatamente assim! Este tal de King volta e você me joga para
escanteio!
– Do que está falando? Acha que eu estava pensando racionalmente?
Eu só queria encontrar Sofia, não me interessava quem estava perto!
– Você podia ter me avisado, eu poderia ajudar, droga!
– Não foi preciso, encontraram-na rapidamente. E graças a Deus tudo
se resolveu.
– E era o King que estava com você.
– Sebastian, pare com isto! Matthew é o pai dela. E está aqui. Acho
que nós dois teremos que nos acostumar com a presença dele.
– Sei que ele é o pai dela. Só não gosto de vê-lo perto de você.
– O Matthew não tem nenhum interesse em mim apenas na Sofia, não
se preocupe. – Enquanto digo estas palavras, as imagens de Matthew me
beijando na livraria vêm à minha mente e me sinto mais culpada do que
nunca. – Sebastian, acho melhor ir embora. Ainda é muito cedo e deve estar
cansado da viagem. Vá descansar, nós nos falamos depois, ok?
– Eu queria ver a Sofia.
– Ela está dormindo. E preciso conversar com ela sobre os
acontecimentos. Não vai ser fácil.
– Posso ficar com você...
– Não, preciso falar com ela sozinha. De qualquer forma, obrigada.
Ele se aproxima para beijar minha boca, viro o rosto e o beijo pega
em meu rosto.
Eu me afasto e abro a porta para ele.
– Eu te ligo mais tarde, está bem?
– Tudo bem.
Fecho a porta quando ele se afasta e vou para cozinha fazer um chá.
Jack aparece alguns minutos depois.
– Ela parece bem, mas estou preocupado.
– E eu não? Ela ter fugido... Foi uma reação temerária demais. Não
sei o que está se passando por sua cabeça...
– E o que acha que o tal Matthew King pretende?
– Não sei... E tenho medo. Nesse momento minha preocupação maior
é com Sofia.
– Sim, vamos nos concentrar em um problema por vez...
– Pai, vá dormir um pouco. Deve estar cansado.
– Sim, vou descansar.
Ele se afasta ouço o telefone tocar na sala e corro para atender.
– Evangeline é Matthew.
Fecho os olhos e respiro fundo. Mesmo por uma linha telefônica ele
tinha o poder de me perturbar de muitas maneiras.
– Oi.
– Como está Sofia?
– Dormindo ainda.
– Estou preocupado com ela, ainda acho que...
– Não. Vou conversar com ela, Matthew.
– Tudo bem. Irei aí hoje à tarde. Isto não está em discussão.
– Certo. Pode ser. Não temos porque adiar.
Desligo e fico olhando para a xícara de chá, até que escuto passos se
aproximando, ao olhar para a porta, vejo Sofia, descalça e de pijama me
encarando com os olhos ressabiados.
Sinto meu coração se apertar. Ela parece tão frágil parada ali, com a
testa arranhada e o braço na tipoia. Daria tudo para ela não precisar passar
por nada daquilo.
Sinto de novo aquela onda sufocante de culpa. Teria sido diferente se
eu tivesse insistido em procurar Matthew na época para contar que estava
grávida?
O que teria acontecido?
– Oi, querida, venha aqui.
– Coloco a xícara na mesa e estendo o braço. Sofia hesita por um
momento, mas se aproxima.
– Você está bem? Alguma dor? – Eu a faço sentar do meu lado.
– Não... – ela morde os lábios, os olhos fogem dos meus.
Respiro fundo.
– Não estou com raiva por você ter saído de casa sem autorização
ontem. Embora tenha ficado muito preocupada, sabe que nunca mais deve
fazer algo desse tipo, não é?
Ela assente com a cabeça.
E me pergunto como começar o assunto.
– Filha, por que você fugiu ontem?
– Eu não fugi... eu...
– Onde estava indo?
– Para a casa do...
– Matthew?
Ela assente, sem me encarar.
– Você estava indo para lá porque ouviu minha conversa com
Sebastian?
Finalmente ela me encara e seus olhos estão tão confusos que sinto
vontade de chorar.
– É verdade o que estavam dizendo? Que o Matthew é meu pai?
– É – respondo esperando sua reação.
– E é verdade que ele não gosta de mim?
– Não! Claro que não, por que pensou isto?
– Você disse ao Sebastian que ele provavelmente ia fugir de Camden
agora que sabia...
– Não quis dizer aquilo, Sofia. Estava... nervosa. E você não deveria
ter saído de casa. Poderia ter vindo conversar comigo.
– Você ia mentir para mim! Você não gosta dele, não é? Por isso me
proibiu de vê-lo, porque não queria que ele fosse meu pai!
Deus, como explicar para uma criança algo tão complicado?
– Sofia, muitas coisas aconteceram... Antes de você nascer. Sinto
muito que tenha descoberto sobre o Matthew dessa maneira... Sei que um dia
teria que contar a você...
– O Matthew sabia o tempo todo?
– Não. Ele nem sabia que você era minha filha. Descobriu hoje ao vir
trazê-la em casa.
– Eu queria falar com ele, queria... nem sei o que ia falar, não queria
que ele fosse embora de Camden. Queria convencê-lo de que gosto dele, que
a gente podia ser amigos, que ele nem precisa ser meu pai se não quiser...
Tenho vontade de rir da sua lógica e me sinto ainda mais angustiada
ao ver o quanto Sofia gosta de Matthew.
– Sofia, ele não vai embora. – Bem, eu realmente não sabia com
certeza, mas não podia mais dizer nada que a magoasse ainda mais. – Ele só
ficou muito surpreso ao descobrir que você é filha dele.
– Como é que ele não sabia? Você disse que ele foi embora...
Naquele momento me arrependi de todas as meias verdades que
contei a Sofia ao longo dos anos. Sempre que ela tentava voltar ao assunto,
eu dizia a mesma coisa: que Matthew foi embora da cidade antes de ela
nascer. E acho que Sofia deduziu que ele não queria ser seu pai.
– Nós brigamos. Eu não sabia que estava esperando você quando ele
foi embora com a família.
– Então ele não sabia sobre mim?
– Não, querida, não sabia.
– E por que você não contou a ele?
– É tão complicado... Eu e Matthew... Nós realmente brigamos feio.
Não tem nada a ver com você... foi melhor assim. – ou ao menos eu
acreditava na época que seria, penso sombriamente. – Eu tinha medo de ele
nem querer nada comigo, ou ficar com mais raiva ainda...
– E agora que ele voltou? Você podia ter contado!
– Eu sei. Só achei que era melhor deixar tudo do jeito que estava. A
gente vivia bem, não é? Eu e você?
– Sim, mas.... Eu sempre quis saber como era ter um pai e, quando
conheci o Matthew... quis que meu pai de verdade fosse parecido com ele,
porque ele era tão legal... E ele toca piano, você sabia? E gosta de The
Scientist, assim como nós...
Sorrio tristemente, passando a mão por seus cabelos. Ela não faz a
menor ideia do motivo de eu gostar daquela música.
Pensar naquela noite, deixa meu coração ainda mais pesado.
– E agora, o que vai acontecer? Ele não vai embora, não é? – Pergunta
ansiosa.
– Não, não vai. Na verdade, ele virá aqui em casa hoje à tarde.
Ela arregala os olhos.
– Sério?
– Sim, ele quer conversar com você. Tudo bem?
Ela aperta os lábios nervosamente.
– E se ele não gostar mais de mim?
Sorrio e a abraço, beijando seus cabelos.
– Ele vai gostar sim, meu anjo.
– Então a fujona está acordada?
Jack está na porta da sala e Sofia corre para seu colo ao vê-lo.
– Vovô, você voltou!
– Sim, deixe-me ver você, está toda quebrada!
Ela ri.
– Eu caí ontem.
– E quase matou sua mãe de preocupação, não é?
Ela fica vermelha e lanço um olhar de advertência a Jack.
– Está tudo bem agora. Nós já conversamos.
– Você sabia que meu pai voltou, vovô? – Ela diz toda animada.
– Ah é?
– Sim, e ele vem aqui em casa me ver hoje!
– Sei...
– Sofia, vá trocar de roupa e desça para tomar café. – Peço e ela se
afasta.
Jack me olha preocupado.
– E então?
– Ela está apaixonada por ele! – Digo indo para cozinha com Jack me
seguindo. E começo a preparar o café da manhã. – Ela o adora, desde que o
conheceu. E sua preocupação era que ele não gostasse mais dela. Por isso
fugiu para ir atrás dele. Ela escutou parte da minha conversa com Sebastian e
tirou suas próprias conclusões. Agora está toda ansiosa porque Matthew virá
vê-la.
– E você acha que ele não vai decepcioná-la? Este cara te largou sem
nenhum remorso.
Aperto o bule de café que estou fazendo até as juntas dos meus dedos
ficarem brancas.
– Não foi bem assim...
– Então como foi?
– Pai, eu... – encaro Jack, querendo contar toda a verdade. Sou
interrompida pela campainha.
– Quem será a esta hora?
Eu me pergunto se é Matthew, enquanto Jack vai atender. Não é
Matthew que está ao lado de Jack entrando na cozinha.
É Emily King.
Tão linda, loira e super arrumada como sempre. Parecendo muito
deslocada na cozinha simples da minha casa.
– Emily, o que faz aqui?
– Preciso conversar com você.
– Não sei se temos algo para falar...
– Acho que temos sim.
Olho para Jack.
– Já estou de saída, preciso dar um pulo até a oficina.
Assim que Jack se afasta, Emily começa seu ataque.
– Então pode me dizer por que está mentindo para o Matthew sobre
esta sua filha?
– Emily, sinceramente, não sei o que veio fazer aqui.
– Eu vim saber a verdade.
– Que verdade? Que tenho uma filha com Matthew? Acho que ele já
contou.
– Você acha mesmo que vamos acreditar que esta menina é filha do
Matthew?
– Não me interessa em que você e sua família acreditam.
– Claro, o Matthew acreditando já basta, não é? Vai enrolá-lo de
novo!
– Quer saber, eu não queria que Matthew descobrisse sobre Sofia. Eu
gostaria de não ter que olhar na cara de nenhum membro da sua família
nunca mais e pensei que não precisaria. Infelizmente vocês voltaram. Rezei
para que fossem embora logo e que nunca descobrissem sobre Sofia.
– Quer que eu acredite nisto?
– Já falei que não me importo com sua opinião! Vocês me
condenaram há muito tempo e acho que isso não vai mudar nunca.
– Vai se fazer de inocente? Você dormiu com o Matthew por
dinheiro!
– Não te interessa o motivo de eu ter dormido com o Matthew. Eu não
devia ter pegado aquele dinheiro com Carter. E nem concordado em sair com
seu irmão. Acha que não me arrependo todos os dias?
– Tem motivos para arrependimento mesmo! Meu irmão ficou
arrasado! Acho que ele nunca esqueceu sua traição!
– Emily, como disse, não vou ficar falando sobre esse assunto com
você...
– E agora você me vem com esta menina...
– Ela tem nome, é Sofia.
– Que seja. Só quero que pare de atormentar meu irmão. Ele já sofreu
demais naquela época e não quero vê-lo sendo enganado por você
novamente!
– Não estou mentindo. Sofia é filha do Matthew. E se vocês têm
dúvida, qualquer teste de DNA pode comprovar...
De repente escuto passos descendo as escadas e sei que é Sofia.
– Vá embora, por favor, minha filha está descendo e não quero
discussão na frente dela.
Sofia entra na cozinha em seguida e arregala os olhos ao ver Emily.
– Oi... você não é a irmã do Matthew?
– Sim, eu sou. – Emily responde friamente e Sofia abre um sorriso.
Se Emily falar qualquer coisa que seja para magoar minha filha
arrancarei seus olhos com minhas mãos.
– Então você é minha tia?
– Sofia, Emily já está indo embora ... – digo puxando-a para perto de
mim.
– Sim, eu já vou – Emily parece desconcertada.
– Você pode ficar e tomar café com a gente, não é, mamãe?
– Tenho certeza que Emily tem compromisso.
Abro a porta da cozinha para ela sair.
– Tchau, tia Emily! – Sofia acena empolgada e Emily parece sem
ação por um momento, depois acena confusa e se afasta.
– Uau, ela é tão linda – Sofia senta à mesa se servindo de cereal.
– Sim. Agora coma. – Tento encerrar o assunto.
Naquela manhã recebo algumas ligações, de pessoas preocupadas
com Sofia e tenho dificuldade de lidar com ela que parece mais ansiosa do
que nunca.
– Que horas são? – Pergunta a cada cinco minutos.
– É cedo, Sofia.
– Que horas ele disse que vinha?
– Querida, ela virá apenas à tarde, ok? Não fique ansiosa. E cadê a
tipóia? – pergunto ao vê-la sem.
– Não está doendo mais mamãe!
Ela troca de roupa várias vezes depois do almoço, do qual quase não
come nada.
E agora, enquanto as horas se arrastam, sou que eu começo a ficar
nervosa. E se Matthew não aparecer? E se a bruxa da Emily conseguiu
convencê-lo que estou mentindo?
Nem sei o que farei se ele decepcionar Sofia agora.
E, para completar meus problemas, Sebastian me liga e insiste em vir.
– Não, Sebastian, só ia piorar a situação.
– Você está me dizendo que Matthew está indo para sua casa...
– Sim, para ver Sofia.
– Quero estar aí.
– Não, Sebastian, é sério. Só iria piorar as coisas. Pense em Sofia, ok?
Vamos evitar confusão.
– Não gosto deste cara sozinho com você.
– Meu pai está em casa, se é o que te preocupa – minto. Jack almoçou
em casa, depois foi para a cidade. Não sei quando vai voltar. Mas precisava
tranquilizar Sebastian.
– Tudo bem. Me ligue depois, ok?
– Claro, pode deixar.
Desligo ao mesmo tempo em que escuto o carro estacionando em
frente a minha casa.
Sofia desce as escadas correndo. Está usando um vestido diferente
agora e nem sei quantas vezes já trocou de roupa.
– Ele chegou!
– Acho que sim.
Ela para de repente e segura minha mão com força, sorrio para
tranquilizá-la, enquanto abro a porta.
Matthew está ali. Com suas roupas casuais que lhe caem
perfeitamente bem, deixando-o mais lindo ainda. Os cabelos acobreados
despenteados pelo vento e os olhos verdes receosos vão de mim para Sofia.
– Oi, Matthew – digo para quebrar a tensão.
– Oi, Evangeline... Oi, Sofia. – Ele sorri para ela que morde os lábios
nervosamente e apenas acena com a cabeça.
Matthew busca meu rosto e parece meio apavorado com a reação
tímida de Sofia.
– Quer entrar?
Ele nos acompanha até a sala e Sofia continua muda ao sentar do meu
lado.
– Sofia estava bem ansiosa com sua visita – digo e ela cora – trocou a
roupa várias vezes.
– Mamãe!
– Você está linda, Sofia. – Matthew a elogia. – É um vestido bonito.
– Obrigada – ela cora mais ainda.
– Bem, acho que todos sabemos por que estamos aqui – digo
finalmente. – Eu conversei com a Sofia, Matthew. E ela ficou feliz de saber
que... Você é o pai dela, não é meu amor?
– Sim, é verdade – ela diz com um sorriso tímido. – E minha mãe
disse que você também tinha gostado é verdade?
– Sim, Sofia. Adorei saber que é minha filha.
Ela olha para mim e sorri, satisfeita.
– Eu te falei – murmuro contra seus cabelos e lanço um olhar
agradecido a Matthew.
– Então, você não vai embora de Camden? – Sofia questiona.
– Não, não vou – Matthew diz olhando seriamente para mim e sinto
um arrepio de medo.
O que significa esse olhar?
– Eu sinto muito por todo este tempo que passamos sem nos conhecer.
Se soubesse que você existia, teria vindo para cá há muito tempo.
– Sério? – Sofia olha para mim. – Está vendo mamãe? Devia ter
contado para ele!
– Sim, sua mãe devia ter me contado.
– Você está com raiva dela? – Sofia indaga. – Não quero que brigue
com ela.
– Não estamos brigando. – Afirmo, embora não seja totalmente
verdade. – E não importa o que aconteceu entre mim e Matthew, ele sempre
será seu pai e vai gostar de você.
– Sim, sua mãe tem razão. Nós dois estamos aqui por você.
– Que bom. – Ela sorri parecendo satisfeita com esta resposta. – Então
vou poder ir à sua casa sempre que quiser?
Matthew sorri de volta. Tão cheio de amor e adoração que sinto meu
coração apertar.
Ele me olhou assim um dia. Num momento tão fugidio, tão perdido
no tempo..., nunca mais seria assim novamente. Eu deveria me sentir feliz de
pelo menos ele ter este amor por Sofia.
Ela não tinha culpa de nada e até aquele momento eu não havia me
dado conta de como ela podia sentir falta de um pai de verdade.
– Claro que sim. Será sua casa também.
– E vai me ensinar a tocar piano?
– Ensinarei o que você quiser.
Sofia sorri para mim, toda feliz.
Eu sorrio de volta e me preparo para a parte difícil. Ainda tenho
muitas coisas para acertar com Matthew e preferia falar com ele sozinha.
– Sofia, por que não sobe para o quarto? Preciso conversar com o
Matthew.
– Mas mamãe...
– Por favor, querida. Eu te chamarei daqui a pouco para o lanche, ok?
– Matthew ainda estará aqui?
– Sim.
Ela levanta do sofá e se aproxima de Matthew o abraçando.
– Adorei saber que é meu pai, Matthew.
Ele sorri contra seus cabelos.
– Eu também.
Ela se afasta e o encaro.
– Parece que tudo correu bem.
Ele respira fundo, passando os dedos pelos cabelos.
– Eu estava bem nervoso com a reação dela.
– Ela já adora você, não se preocupe.
– E o que aconteceu ontem?
– Como deduzi, ela ouviu minha conversa com Sebastian sobre você.
Ela estava mesmo indo a sua casa. Ela temia que você fosse embora de
Camden.
– Foi o que você disse ao seu namoradinho?
– Eu nem me lembro de tudo o que falei naquele momento, posso ter
dito algo assim. Eu nem sabia o que você sentia em relação a ser o pai dela e
estava bem nervoso quando saiu.
– Quero ser o pai dela, acho que já entendeu. E não vou partir de
Camden, embora deva ser o que você e seu namorado gostariam.
– Só quero o que for melhor para Sofia.
– E você acha que o melhor é colocá-lo no meu lugar?
– Sebastian nunca foi um pai para Sofia, embora sempre tenha estado
na minha vida.
– Vocês vão se casar.
– Sim. – Respondo incomodada. – O que não muda o fato de que você
é o pai dela. Preciso saber o que pretende.
Ele deve ter sentido o medo na minha voz, pois estreita o olhar.
– O que está te preocupando? Que eu tente roubá-la de você?
– Eu não sei. Mas saiba que não vou deixar ninguém tirá-la de mim.
Você pode visitá-la sempre, podemos fazer algum acordo, mas nunca vai
separá-la de mim, então nem tente.
– Não pretendo fazer isto, sei que você é a mãe dela.
Quase respiro aliviada.
– Só queria deixar as coisas bem claras.
– Quero participar da vida dela. E espero que você permita.
– Sim, eu sei. Sei que tem direitos. E Sofia também quer, acima de
tudo. Ela quer ter você na vida dela e eu nunca a impediria.
– Já que resolvemos esta questão, preciso ir. Minha mãe as convidou
para jantar na minha casa esta noite.
– Sua mãe?
– Sim, ela está ansiosa para conhecer Sofia.
– Então sua família a aceita como sua filha?
– Por que não aceitaria?
– Emily esteve aqui hoje.
– O quê? – Ele parece surpreso.
– Ela veio me dizer para eu não te enrolar e parar de mentir sobre
Sofia ser sua filha. Acho que sua irmã é louca, sinceramente. Espero que não
diga nenhuma merda deste tipo perto da minha filha, eu acabo com ela.
– Não, não se preocupe. Falarei com ela. Emily é muito impulsiva.
Ela não se atreveria a dizer nada para Sofia. Ou eu mesmo acabo com ela.
Então, venha jantar conosco hoje.
– Eu não sei...
– Por favor. Minha família é a família de Sofia também.
– Tudo bem – concordo por fim. – Nós iremos.
Chamo Sofia e ela fica decepcionada quando digo que Matthew vai
embora.
– Sua mãe te levará para jantar lá em casa hoje.
– Com a sua família?
– Sim, eles querem muito conhecer você.
– Eu também quero conhecer eles! Sua irmã Emily é tão linda, ela
esteve aqui hoje de manhã.
– Sim, fiquei sabendo. Então, até daqui a pouco.
Ele abraça Sofia.
– Tchau Evangeline, espero vocês mais tarde.
– Nós estaremos lá.
Eu o vejo entrar no carro e me pergunto em que tipo de encrenca me
meti dessa vez.
Porque, jantar com toda a família King, só podia significar problema.
Capítulo 13

Evangeline

Eu não deveria ter concordado com aquele jantar. Era só o que se


passava pela minha cabeça enquanto via Sofia toda ansiosa tentando escolher
o que vestir.
– O que está acontecendo? – Jack aparece na porta e rolo os olhos,
enquanto Sofia rodopia com o quinto vestido.
– Estou bonita, vovô?
– Sempre está linda, meu anjo. – Ele me fita com uma expressão
questionadora, quando saio do quarto o acompanhando.
– Fomos convidadas para jantar com os King.
Jack levanta as sobrancelhas para mim.
– Sim, também acho estranho.
– Não é estranho já que Sofia é uma King, não é?
– Sofia pode até ser, eu não. Não posso me imaginar socializando
com eles.
– Creio que terá que se acostumar... Avisou o Sebastian?
– Não.
– Evangeline, Evangeline, melhor não esconder dele, não acha? Vai
ser pior...
– Tem razão.
Pego o telefone e ligo para a casa de Sebastian, estou tensa ao
imaginar que não irá gostar nada desta história.
E se eu o chamasse para ir comigo? Tudo bem que Matthew não disse
que o convite era extensivo a ele, se bem que ele era meu noivo.
Quem atende é a mãe dele, Elena.
– Oi Evangeline, Sebastian teve que atender um cliente que precisou
de ajuda com o carro, não sei quando vai voltar.
– Tudo bem converso com ele depois.
Desligo aliviada por ser poupada de uma briga com Sebastian, então
Sofia desce as escadas correndo. Já está usando outra roupa.
– Mamãe, você ainda não se arrumou? Não podemos chegar
atrasadas!
– E você trocou de roupa de novo?
– Está feia? – Pergunta insegura e eu rolo os olhos, por dentro estou
mais ansiosa que ela.
E não pelos mesmos motivos.
E é com o estômago dando voltas que estaciono em frente à casa dos
King. Olho para seu interior iluminado, forçando minha respiração a sair
devagar.
A situação parece muito com a primeira vez que estive ali. Há dez
anos. A noite em que beijei Matthew pela primeira vez.
E quis contar a ele o que Carter me pediu. Não o fiz. Será que as
coisas teriam sido diferentes?
Eu nunca saberia.
Sofia praticamente pula do carro, ansiosa e a sigo. Ela segura minha
mão e sorrio para tranquilizá-la.
– Você está linda!
– Você também, mamãe.
Reviro os olhos, querendo que Sofia esteja apenas sendo exagerada.
Só estou usando aquele vestido, o mesmo emprestado por Janine, por
causa da insistência de Sofia. Ela me deu uma pequena bronca quando me viu
de jeans.
– Não, mãe, precisa pôr um vestido! Coloca aquele da Janine, ficou
tão bonito em você! Por favor!
E acabei concordando para não deixá-la ainda mais preocupada.
Agora já começava a me arrepender. Não quero estar bonita. Não quero
parecer que me arrumei excessivamente para a ocasião.
Quem abre a porta é Matthew e mordo os lábios com força ao vê-lo.
Ele parece sério, os olhos desconfiados vão de mim para Sofia, então
ele muda.
Seus olhos se iluminam ao fitá-la.
– Olá, Sofia, você está linda.
O sorriso de Sofia pode ofuscar o próprio sol nesse momento.
– Oi, Matthew. – Sem cerimônia ela o abraça os olhos de Matthew
encontram os meus por cima do cabelo dela.
– Oi, Evangeline.
– Oi – respondo insegura.
– Finalmente chegaram! – Escuto a voz cantada de Ella se
aproximando. – Aí está a bela Sofia, seu vestido é realmente adorável! –
Elogia e Sofia fica vermelha.
– O seu é muito mais bonito.
Ella pisca, animada.
– Você gostou da minha roupa? Acho que tem estilo! – Então ela me
encara. Seu sorriso para mim é um pouco mais comedido. – Oi Evangeline,
tudo bem?
– Oi, Ella.
– Bem, vamos para a sala? – Ella estende a mão para Sofia que a
segura. – Estão todos ansiosos para te conhecer!
As duas seguem na frente e Matthew me encara.
Por um momento tenso tenho vontade de dar meia volta e fugir,
embora seja tarde.
Tenho a impressão que nunca mais vou conseguir fugir de Matthew
King.
– Você parece nervosa.
– Não tenho motivos?
– Não estamos aqui para brigar.
– Sua família me odeia – “e você também” penso em acrescentar. –
tenho motivos para ficar tensa.
– Estamos aqui por Sofia.
– É com ela que eu me preocupo.
– Pois não deveria. Ela é minha filha.
Tento acreditar em suas palavras enquanto o sigo para a sala e lá vejo
Sofia sendo apresentada aos King que ela ainda não conhece.
Evelyn e Benjamin parecem bem receptivos e sorriem para ela. Emily
e Carter são outra história.
Ela está segurando alguma bebida e tenta parecer relaxada, seus dedos
apertam o copo com força e Carter está a sua volta, como sempre.
– Olá, Evangeline. – Evelyn foi a primeira a se aproximar e me
recordo de quando fomos apresentadas pela primeira vez. Foi na festa de Ella
e me lembro vagamente que em algum momento ela passou por nós e
Matthew me apresentou.
Eu me perguntava o quanto dos acontecimentos ela sabia.
Benjamin King fez o mesmo. Era um homem bonito, lembro-me
apenas vagamente dele daquela época.
Emily e Carter não se aproximaram.
O que me remete à fatídica noite em que tudo mudou na minha vida.
Estava claro que ainda tinham ressentimentos por mim.
– Sua filha é muito bonita. – Carter diz simplesmente sendo educado,
enquanto Ella nos oferece uma bebida.
Sofia pede uma Coca-Cola e eu aceito uma bebida alcoólica. Estava
precisando.
– Sim, ela é uma graça – Evelyn comenta. – Seus cabelos são iguais
aos do Matthew.
– Cabelos desta cor são muito comuns – Emily alfineta e seguro o
copo com força.
– Emily... – Matthew a repreende, Evelyn segura seu braço.
– Emily fez apenas um comentário, Matthew. – Ela sorri dando-lhe
um olhar de advertência. – Sim, é um tom muito bonito, porém não creio que
seja comum.
– É um cabelo lindo! – Ella diz. – Poderia levá-la a um cabeleireiro
ótimo e fazer um corte bem moderno, assim como o meu.
– Não comece Ella. – Matthew reclama. – Os cabelos de Sofia são
bonitos como são, você não vai cortá-los.
– Por que não? Ela pode gostar! Você não gosta do meu estilo? – Ela
pergunta a Sofia. Os cabelos de Ella, diferentemente dos de Emily que são
compridos e lisos, são cortados na altura do pescoço, num corte repicado bem
moderno.
– Sim, é muito bonito, mas prefiro cabelos compridos. Como o da
minha mãe e da tia Emily.
– Tia Emily – Carter explode numa gargalhada e Emily resmunga.
Sofia fica vermelha.
– Opa, me desculpe, não perguntei se podia chamá-la assim.
– Ela pode, Emily? – Matthew a provoca e Emily respira fundo, então
sacode a cabeça afirmativamente.
– Pode. Só se chamar Ella também.
– Ela pode chamar do que quiser! – Ella ri. – Agora vamos jantar?
– Vamos. – Matthew segura a mão de Sofia e todos o seguem.
Quando Emily passa por mim, seguro seu braço.
– O que pensa que está fazendo?
– Se você fizer qualquer comentário que magoe minha filha, acabo
com você, entendeu?
Ela solta o braço, furiosa.
– Não se preocupe. O Matthew já me intimidou o suficiente.
– Que bom!
Ela dá um risinho, me medindo.
– Não que você possa me intimidar, claro.
– Pois devia se preocupar. Quando se trata da minha filha, sou capaz
de qualquer coisa.
– Estou percebendo... como já deve ter percebido, sou capaz de
qualquer coisa quando se trata do meu irmão. Então é bom que esta menina
seja filha dele porque, se o magoar novamente, sou eu que acabo com você.
– Não tem que se preocupar. Sofia é filha de Matthew.
– Ei, o que ainda fazem aí? – Carter se aproxima preocupado e puxa
Emily.
Eu evito olhar para ele.
Ver Carter me faz lembrar de como fui tola no passado.
Eu me sento à mesa ao lado de Sofia e toda a conversa gira em torno
dela. Os King lhe fazem perguntas sobre sua escola, seus gostos e hábitos, as
quais ela responde muito animada e começo a respirar aliviada.
Embora não saiba até que ponto estão sendo sinceros, pelo menos
Sofia está feliz.
E isto é o mais importante.
Mesmo assim sinto os olhares hostis de Emily, também tento evitar os
olhares de Matthew, que parecem voar em minha direção mais do que o
necessário. Obviamente isto me desconcerta totalmente.
Quando o jantar termina voltamos para sala e eu me pergunto que
horas poderemos ir embora sem parecer mal-educado. Sofia não parece
disposta a ir embora tão cedo, quando pede a Matthew que a leve para tocar
piano.
Eles se afastam e me vejo sozinha cercada pelos King.
Um silêncio tenso recai sobre a sala.
– E então Evangeline, fiquei sabendo que tem uma livraria. – Evelyn
diz.
– Tenho.
– Que ótimo. Farei uma visita qualquer hora destas. Preciso comprar
uns livros de trabalhos manuais.
– Me diga uma coisa, Evangeline. – Emily anda pela sala com seus
saltos batendo no chão e se serve de uma bebida. – Como conseguiu abrir
esta livraria? Foi com o dinheiro que pegou do Carter para transar com o
Matthew?
– Emily! – Benjamin a repreende. – Pare com isto!
Ela dá de ombros com um falso olhar de inocência.
– Qual o problema? Todo mundo já sabe da história...
– Emily, isto é passado. – Evelyn diz séria. – Não estamos aqui para
discutir esse assunto.
– Por que não? Ela virou uma santa? Só porque teve uma filha?
– Amor... – Carter toca seu braço.
– Emily, está sendo inconveniente. – Benjamin diz irritado e me
encara. – Me desculpe, Evangeline.
Eu me sinto mal. Sabia que em algum momento aquele jantar ia
começar a naufragar, talvez deva agradecer que tenha acontecido sem a
presença de Sofia.
Levanto-me disposta a ir embora. Já estava passando da hora.
– Tudo bem, acho melhor irmos embora. Vou buscar Sofia.
Praticamente corro da sala, deixando os King para trás, seguindo o
som do piano.
Paro na porta, ao ver Sofia toda compenetrada vendo Matthew tocar.
Por um momento apenas fico ali, me lembrando de quando eu estive
onde ela estava, sentada ao lado dele. Me apaixonando por ele.
– Oi, mamãe! – Ela sorri quando me vê e Matthew me encara.
Me pergunto se ele lembra.
Respiro fundo, engolindo o nó na minha garganta.
– Sofia, precisamos ir embora.
– Já?
– Sim, querida, está tarde e amanhã você tem aula.
– Está bem...
Ela se levanta, desanimada e saímos.
Ao passarmos pela sala os King continuam lá.
Enquanto Sofia se despede deles, Emily fica me medindo e tento
ignorá-la, seu próximo comentário torna tudo mais difícil.
– Este seu vestido... já a vi com ele, não é?
Eu a encaro.
– Ah sim, me lembrei, acho que não era em você, era em alguém que
vi beijando um homem num banheiro, enquanto o noivo a esperava!
Meu rosto se tinge de vermelho e ela sorri mordazmente.
Ela viu, claro.
Ela viu Matthew me beijando naquele banheiro.
– Vamos mamãe? – Sofia me chama e percebo que ninguém ouviu
seu comentário.
Menos mal.
Matthew nos segue até o carro e coloca Sofia dentro.
Eu o encaro.
– Não foi tão ruim.
– Se sua irmã parasse de tentar me provocar seria bem melhor!
– O que aconteceu? – Pergunta tenso.
– Pergunte a ela! – Eu me viro para entrar no carro, ele segura meu
braço.
– Me diga você.
Eu solto o braço. Não gosto que ele me toque.
Não quero que ele me toque.
– Ela viu você me beijando no banheiro.
Matthew solta um palavrão baixo.
– Ela não tem nada a ver com minha vida.
– Então lhe diga porque ela acha que tem tudo a ver! Só não quero
que perturbe Sofia.
– Não se preocupe, já falei com ela.
– Espero que sim! Porque não perde a oportunidade de me atacar.
– E o que mais ela fez?
– É tarde, estou cansada e preciso levar Sofia para casa. Se quer saber
o que Emily fez, pergunte a ela ou a alguém da sua família.
Finalmente consigo entrar no carro e vejo que Sofia adormeceu.
Sinto-me aliviada quando finalmente me afasto da casa dos King.
Quando chego em casa mais problemas me aguardam. Sebastian está me
esperando com cara de poucos amigos.
– Oi, o que faz aqui? – Pergunto saindo do carro e abrindo a porta
para tirar Sofia adormecida do banco de passageiro.
– Acho que quem deve fazer perguntas sou eu, não concorda?
– Vou colocar Sofia para dormir, me espere e nós conversamos.
Levo Sofia para a cama, troco sua roupa e a cubro, descendo para
encarar Sebastian.
– E então, quando ia me dizer deste seu jantar com o King?
– Não foi um jantar com o King da maneira que está insinuando! Fui
jantar na casa dos King sim, com Sofia, eles queriam conhecê-la.
– E por que não me disse que ia?
– Tentei avisar, você estava com um cliente.
– Não deveria ter ido.
– Como não?
– Aquela família te odeia.
– É a família de Sofia agora, temos que conviver! Acha que me senti
feliz? Foi bem tenso, acredite!
– O que eles fizeram? Eles te ofenderam?
– Não, calma, não foi assim – minto. – Acho que nunca irei conviver
bem com os King. Eles parecem aceitar Sofia e é o que interessa. Ela está
encantada com eles.
– Continuo não gostando nada desta situação...
– Eu sei Sebastian, também preferia que fosse diferente você bem
sabe. Tentei evitar que descobrissem, não teve jeito. Agora teremos que dar
um jeito de conviver em paz.
– E o que o Matthew pretende?
– Ele quer ser um pai participativo. Mas disse que nunca pensaria em
tirá-la de mim.
– Ele que não tente, eu acabaria com a raça dele.
– Sebastian, melhor ir embora, está tarde.
– Eu vou. Amanhã à noite nos vemos então, ok?
– Claro – sorrio e ele me beija.
Eu tento sentir algo. Preciso desesperadamente sentir.
Não consigo, então o afasto.
– Vá, amanhã a gente se vê.
Ele sai e eu subo para dormir.
Queria estar tranquila, parece que as coisas estão esclarecidas em
relação a Sofia, mas sinto somente apreensão.
Lá no fundo, sei que nada mais será o mesmo.
Matthew

Volto para dentro de casa e minha família me encara.


– Ela é absolutamente linda, Matthew. – Minha mãe sorri e sorrio de
volta, esquecido momentaneamente das acusações de Evangeline sobre
Emily.
– Sim, ela é.
– E o que pretende fazer? – Meu pai pergunta.
– Vou ser pai dela.
– E as questões legais? – Insiste.
– Não será difícil resolver, irei registrá-la, claro.
– E o teste de DNA? – Ella pergunta.
– Não é necessário – afirmo irritado.
Eu não tinha a menor dúvida que Sofia era minha filha.
– Pois devia – Emily resmunga e lanço-lhe um olhar de advertência.
– Meta-se com a sua vida!
– Só quero abrir seus olhos.
– Emily, deixe o Matthew resolver... – Carter diz.
– Sim, quem tem que resolver é o Matthew. – Evelyn concorda. – A
menina é muito parecida com ele, não há dúvida.
Emily revira os olhos, mas se cala.
– E o que vai acontecer quando formos embora? – Ella pergunta.
– Não posso deixar minha filha para trás.
– Podem fazer aquela coisa de guarda compartilhada. – Ella sugere.
– Eu posso trabalhar em qualquer lugar.
– Vai morar em Camden? – Carter pergunta surpreso e todos eles me
encaram.
Sim, era o que eu pretendia?
Não tinha pensado ainda, porém, se era ali que Sofia morava, eu não
podia de maneira alguma ir embora.
– Não fiz planos a longo prazo, por enquanto será assim – respondo.
– Está tarde, vamos dormir. – Benjamin sugere e todos concordam, eu
seguro o braço de Emily. – Quero falar com você.
– Vou te esperar no quarto, baby – Carter se afasta e me vejo sozinho
com Emily.
– Quero que pare de atacar Evangeline.
– Eu?
– Não se faça de inocente, Emily! Ela me contou que você me viu
beijando-a no restaurante.
Emily ri ironicamente.
– E vai me dizer que foi certo? Ela não é noiva?
– Não é problema seu.
– É se estiver se envolvendo com ela de novo!
– Emily, não é da sua conta! E não estou me envolvendo com ela!
– Não? Matthew, você ainda sente algo por ela sim! Acha que sou
cega?
– Está enganada – minto.
É um inferno que Emily me conheça tão bem. Ela sempre agiu como
minha consciência. É o que está fazendo, me obrigando a ver algo que não
quero admitir.
Evangeline Evans e a atração irresistível que ainda sinto por ela.
– Sabe que não me engana, Matthew. Eu vi naquela época e estou
vendo agora.
– Naquela época eu achava que Evangeline sentia o mesmo. Agora sei
aonde estou pisando.
Ela ri de novo sem o menor humor.
– Agora ela tem uma filha, pela qual você está encantado, o que vai
fazer você se encantar pela mãe outra vez, mais dia menos dia.
– Sofia é minha filha e gostaria que parasse de duvidar.
– Então faça a porcaria do exame!
– Certo, posso fazer, se isto te deixa mais tranquila, será apenas para
confirmar que sou o pai dela.
– Está vendo, você diz que é diferente agora, mas ainda acredita em
qualquer coisa que Evangeline Evans diga!
– Emily, esta discussão não vai levar a nada. E gostaria muito que
parasse de se intrometer na minha vida!
– Só me preocupo com você! Não quero que sofra por causa desta
garota novamente!
– As coisas são diferentes...
– Gostaria que fossem. Não tenho tanta certeza.
– Não tenho mais nada a ver com Evangeline Evans. Uma vez foi o
suficiente, acredite, sei muito bem. – Afirmo com amargor. Minha memória
voltando para o passado e toda dor que senti por ter sido enganado por ela.
– Então por que a beijou?
Passo a mão pelos cabelos, irritado.
Não com Emily, comigo mesmo.
Sim, por que eu a beijei?
E Emily nem fazia ideia de que foi mais de uma vez. Era melhor nem
saber.
– Foi um erro – respondo. – Não foi nada.
– Não me pareceu.
Eu a encaro friamente.
– Como disse antes, não é da sua conta, estou dizendo que foi um erro
que não vai se repetir nunca mais.
Mesmo eu ainda querendo. Vê-la hoje, tão inatingivelmente bonita me
fez lembrar o quanto quero colocar minhas mãos nela.
– Para seu próprio bem, Matthew, espero realmente que não se repita.
Ela está noiva não se esqueça.
– Eu sei – resmungo. – Vou dormir. Emily... apenas... lembre-se de
nunca dizer nada na presença de Sofia, entendeu?
– Sim, eu prometi, não prometi?
– Espero que não se esqueça da sua promessa.
Ela se aproxima e me abraça.
– Não fique zangado comigo.
– Não estou e não ficarei se você não magoar minha filha.
Ela me encara e a sombra de um sorriso se forma em seu rosto.
– Quando você fala assim, torço mesmo para que ela seja sua de
verdade.
– Ela é, Emily. Eu sinto. Senti algo diferente desde o momento em
que a conheci.
– Espero que seja. Ela é adorável, não tem como negar.
Eu sorrio.
– Sim, ela é.
– Vamos torcer para que seja verdade então será uma coisa a menos
que terei contra Evangeline Evans!
– Emily...
– Tudo bem, tudo bem. Vou dormir, acho que já falei demais mesmo
e meu marido me espera. Boa noite.
– Boa noite.
Vou para meu próprio quarto.
E de repente me sinto muito sozinho. Nunca havia me sentido assim.
Meu trabalho me bastava. Nenhum relacionamento que tive foi significativo
o bastante para mudar essa condição. Não depois da desilusão causada por
Evangeline Evans.
De repente estar sozinho já não me parecia tão normal.
Evangeline estaria sozinha? Ou com o noivo?
Pensar no noivo dela me deixa mais irritado ainda. Será que estavam
juntos nesse momento? Será que ele estava fazendo amor com ela?
Respiro fundo, desviando o rumo dos meus pensamentos. Não me
interessava o que ela estava fazendo. Ou não deveria me interessar. Apenas
Sofia contava.
Capítulo 14

Evangeline

Acordo muito cedo na manhã seguinte, com alguém tocando a


campainha. Sonolenta, me arrasto da cama para abrir a porta.
Vejo Jack no corredor saindo do banheiro.
– Não é muito cedo?
– Acho que sim, mas tem alguém na porta.
– Deve ser Sebastian.
– A esta hora? – Resmungo ao abrir a porta.
Não é Sebastian é Matthew King.
E tarde demais percebo que ainda estou com um pijama velho e toda
descabelada.
Obviamente Matthew parece saído de uma revista de moda.
Sinceramente, não devia ser permitido alguém ser tão bonito àquela
hora da manhã.
– O que está fazendo aqui? – Pergunto friamente.
– Vim buscar Sofia para levá-la à escola, se não se importa.
– Podia ter avisado que viria.
– Eu sei, me desculpe. Acho que poderíamos fazer isto sempre, se não
se importa.
Bom, estava começando. Matthew estava ali na minha porta para
levar minha filha. E dizendo que ia fazer com frequência.
E eu teria que me acostumar.
– Tudo bem – suspiro. – Quer entrar? Eu vou acordá-la para se
arrumar.
Ele entra no mesmo instante que meu pai está descendo as escadas.
– Pai, este é o Matthew.
– Sim, estou sabendo. – Meu pai pode ser bem intimidador quando
quer, Matthew não parece se sentir intimidado enquanto os dois se
cumprimentam.
– Matthew vai levar Sofia à escola.
– Sei... Parece uma boa maneira de começarem a se aproximar, não é?
Isto vai acontecer até quando? Pelo que ouvi dizer você e sua família estão
apenas de passagem.
– Pai...
– Ainda não fiz planos, tudo é muito recente, mas pretendo ficar em
Camden por enquanto.
– Bom, Matthew, você é o pai da menina e como já falei para
Evangeline em várias ocasiões, tem seus direitos, só espero que não pense em
conquistá-la e depois desaparecer como fez com a mãe dela há dez anos.
– Pai, pare com isto.
Matthew me lança um olhar especulador e sei que está pensando no
passado. No que meu pai não sabe e torço para que ele não fale nada.
– Não, nunca deixaria Sofia – garante por fim.
Sinceramente não sei se fico aliviada ou preocupada com aquela
afirmação.
– Boa resposta – Jack parece satisfeito. – Aceita um café?
– Aceito.
Os dois vão para a cozinha e eu subo para acordar Sofia.
– Filha, está na hora de ir para escola.
Ela cobre a cabeça.
– Não quero ir...
– Ah não? Então vou falar para o Matthew ir embora já que não
precisa te levar.
– Ele está aí? – Ela coloca a cabeça para fora das cobertas
subitamente alerta.
– Sim, ele veio te levar à escola.
Ela pula da cama empolgada.
– Vá se arrumar primeiro. Não quero que se atrase!
– Estou indo!
Também me arrumo e nós descemos para encontrar Matthew
conversando com meu pai na cozinha.
Sofia o abraça, toda feliz.
– Não acredito que veio me buscar! Isto é muito legal.
– Combinei com a sua mãe de levá-la todos os dias, pode ser?
Ela sorri para mim.
– Ele pode de verdade, mamãe?
– Claro que sim – concordo me servindo de uma xícara de café. –
Agora coma seu cereal para poderem ir.
Jack se levanta.
– Começou a nevar não acho seguro ir com seu carro. Os pneus não
estão bons.
– Posso levá-la. – Matthew se prontifica e, antes que eu consiga
escapar, meu pai concorda.
– Certo, então eu vou indo.
E assim me vejo entrando no carro de Matthew, pela segunda vez na
minha vida.
Agora com uma Sofia bastante entusiasmada no banco traseiro.
– Ligue o rádio, Matthew – ela pede e ele a atende.
Sinto meu peito se apertando ao ouvir os acordes conhecidos da
música.
– Minha mãe também adora esta banda – Sofia diz e Matthew me olha
por um instante, antes de voltar a atenção para a estrada.
É o suficiente para fazer meu pulso acelerar de maneira imprópria.
Mexo no rádio e mudo a música.
– Por que tirou? – Sofia reclama.
– Porque enjoei desta música.
– Mas você escuta ela sempre.
– Chega Sofia! – Eu a corto.
Matthew estaciona em frente à escola e nós saltamos.
– Matthew, venha conhecer minhas amigas. – Sofia o puxa pela mão,
guiando-o para onde algumas garotas estão reunidas.
– Oi gente, este é meu pai!
Ela parece bem satisfeita ao falar e de novo me sinto culpada por não
perceber o quanto Sofia sentia falta de um pai.
As garotas soltam risadinhas e comentários.
– Sofia, melhor entrar, está muito frio aqui fora. – Eu lhe dou sua
mochila.
– Eu venho te buscar também, ok? – Matthew diz e ela assente.
– Vai mesmo fazer isto todo dia?
– Vou, eu não prometi?
Ela o abraça e se afasta com as amigas.
Nós voltamos para o carro e agora o espaço parece infinitamente
menor.
Me recordo da primeira vez que estive com ele no espaço ínfimo de
um carro, sentindo sua presença com cada célula do meu corpo.
Ainda me sentia do mesmo jeito. Será que um dia esta sensação ia
passar?
– Quero conversar algo com você, Evangeline. É sobre Sofia.
– Sim...
– Não quero que pense que tenho alguma dúvida de que ela é minha
filha, porém para não termos nenhum problema legal, acho que deveríamos
fazer um teste de DNA.
– Então Emily conseguiu te convencer – digo cheia de ironia que não
passa despercebida a ele.
– Eu falei que não duvido. E não quero que ninguém mais duvide.
– Não me importo com a opinião de sua família ou de sua irmã
maluca.
– Eu sei. Só quero Sofia segura.
Sim, nisto ele tem razão.
Só Sofia deve importar.
Ele para o carro em frente à livraria.
– Tudo bem, vá em frente então.
– Eu pegarei Sofia depois da aula e a levarei ao hospital, depois
gostaria de levá-la para ficar comigo em casa, se não se importa.
– Tudo bem – concordo, sei que Sofia gostaria muito.
Por dentro vejo o controle sobre ela se esvaindo de minhas mãos e me
sinto estranha.
– Não vi seu noivo hoje de manhã.
Opa. Que conversa era aquela?
– Sebastian? Por que o veria? Ele não mora comigo.
– Eu sei, só achei que ele poderia estar dormindo lá.
– Ele não dorme na minha casa. Nunca! – Respondo tão rapidamente
que até me arrependo. Não devo satisfações para Matthew King. Mesmo
assim sinto meu rosto queimando. – Não que eu deva alguma satisfação a
você, claro. Mas se quer saber, não coloco Sofia em nenhuma situação
inadequada.
– Fico feliz em saber – Matthew responde. – Então é você que dorme
na casa dele.
– Não é da sua conta!
– Ok, me desculpe. Realmente você e seu noivo não são da minha
conta. Eu só não quero que toda esta situação crie um clima ruim.
Impossível, penso em dizer, porém me calo.
Obviamente Sebastian não ia com a cara de Matthew e era recíproco,
no entanto eles teriam que conviver por causa de Sofia.
– Também não quero um clima ruim.
– Para quando é seu casamento?
Mordo os lábios com força, me sentindo nervosa por falar daquele
assunto com Matthew.
– Em menos de um mês.
– Tão pouco tempo assim?
Eu o encaro ao detectar um tom diferente em sua voz. Parece... Pesar?
– Nós nos conhecemos a vida inteira.
– Estão juntos há quanto tempo?
– Alguns meses.
– Por que não ficaram juntos antes?
– Porque nós sempre fomos amigos.
E por que mesmo estou confessando aquelas coisas a Matthew?
– E o que mudou? Você se apaixonou por ele?
Não consigo responder.
Porque não sei como responder aquela pergunta, é muito simples.
Desvio o olhar, constrangida com o olhar questionador de Matthew. É
como se ele soubesse a resposta. O que me atinge de uma maneira que não
quero admitir.
– Você o ama? – Matthew insiste, volto a fitá-lo.
Quero dizer que sim. Porque será verdade. Eu realmente amo
Sebastian. Só que não da maneira que Matthew está perguntando, se
responder sim, seria uma mentira.
De repente eu me sinto uma farsa.
Uma farsa quase tão grande como a que eu fui há dez anos. Daquela
vez pelo menos meus sentimentos eram verdadeiros. E no fim, não adiantou
nada. Foi apenas um momento perdido no tempo, que teria ficado perdido se
não fosse por Sofia.
– Como já disse, eu e Sebastian não somos da sua conta – respondo
por fim.
– Não, não são – ele concorda. – Eu só... queria entender você.
– O que há para ser entendido? – Tenho vontade de bater em mim
mesma por dar corda para aquela conversa, não consigo parar.
– Você vai se casar e mesmo assim nos beijamos duas vezes.
O ar parece tornar-se rarefeito de repente.
E fico muito vermelha ao me lembrar dos meus deslizes. Se Matthew
já me achava uma vadia antes, agora devia pensar até pior. Afinal, eu era uma
mulher que ia se casar e mesmo assim beijava outro cara.
E como poderia culpá-lo?
Agora mesmo, sentia meus dedos coçando de vontade de tocar seus
cabelos e puxá-lo para mim, beijá-lo de novo. E de novo. Muitas vezes.
Respiro com dificuldade forçando meus olhos a se desviarem de seus
lábios, ao focalizar os olhos verdes, percebo que é ele que olha para minha
boca.
Naquele momento tenho certeza que está pensando exatamente a
mesma coisa que eu.
Querendo a mesma coisa.
Então eu espero, a respiração presa na garganta, enquanto escuto meu
coração batendo de forma alarmante no peito e um desejo quente descendo
pelo meu ventre.
Naquele momento não me importo de aumentar as estatísticas dos
meus erros. Só desejo que Matthew me beije de novo. Que ponha as mãos em
mim novamente.
De repente uma batida no vidro me assusta e saio do transe perigoso
em que me encontro para olhar a origem do barulho e vejo Janine ao lado do
carro.
Que merda eu estava pensando? Ia deixar Matthew me beijar
novamente? Bem ali, onde qualquer um poderia ver? Se Janine tivesse
chegado alguns minutos atrasada, teria fofoca suficiente para uma vida
inteira.
Mortificada, abro a porta do carro e salto.
– Ei, o que está fazendo aqui com Matthew King?
– Nada, vamos entrar – sem ao menos me despedir de Matthew,
caminho para a porta da livraria abrindo-a.
– Como assim não é nada? – Janine entra atrás de mim.
– Foi apenas uma carona, Janine.
– Carona de Matthew King? Até alguns dias atrás ele te odiava e
agora te dá carona naquele carrão? E... espere! E Sofia? Achei que queria
distância dele por causa de Sofia e tal...
– Ele já sabe a verdade.
– Como assim? Conte-me tudo!
Respiro fundo e começo a contar a Janine.
Matthew

Dirijo de volta para casa pensando em Evangeline.


E em como algumas coisas parecem não ter mudado mesmo passados
dez anos. Eu podia ainda estar furioso com o que ela fez, ao mesmo tempo
bastava ela estar perto para eu me esquecer de tudo e pensar somente em
como sua boca fica perfeita contra a minha.
Ou de como tenho vontade de beijá-la inteira, de fazer coisas que não
tive oportunidade de fazer.
E quase lamento por saber que nunca terei a oportunidade.
Outro cara tem. Sebastian Blake. O cara com quem ela vai se casar
em menos de um mês.
E o que posso fazer? Não tenho direito nenhum sobre ela.
Será que eu queria ter? Era isto que me deixava tão irritado ao pensar
nela se casando com Blake? Ou seria por causa de Sofia? Não gosto de
pensar que será Sebastian que irá morar com ela, não posso negar.
Também não posso negar que não gosto de saber que será Sebastian
Blake que irá dormir com Evangeline todas as noites, ou vê-la pela manhã,
como vi hoje. Os lindos olhos castanhos pesados de sono e os cabelos
deliciosamente despenteados.
Eu precisava parar de pensar nela naqueles termos.
Ela era apenas a mãe de Sofia. Teria que me concentrar nisto.
Minha mãe está em casa quando chego e me pergunta de Sofia.
– Emily me disse que irá fazer o teste de DNA.
– Farei. Até já falei com Evangeline.
– E o que ela acha?
– Ela concorda. Eu não tenho dúvidas, mãe. Sofia é minha.
Ela sorri, passando os dedos por meus cabelos.
– Eu gostei, sabe? De você ter uma filha. Sempre fiquei tão
preocupada com você... Nunca achei que teria uma família.
– Mãe...
– Agora sei qual era o problema, não é? – Ela está séria. Eu deveria
saber que uma hora ela iria me interrogar sobre o que aconteceu com
Evangeline. – Por que nunca me contou, durante todo este tempo meu filho?
– Porque não queria deixá-la preocupada.
– Pelo menos eu saberia o que estava acontecendo. Pensa que não vi
você todo deprimido? Imaginei que podia ser coisa de garota, só nunca me
passou pela cabeça a magnitude da situação.
– Não quero mais falar deste assunto, mãe. Foi há muito tempo.
– E como está sendo para você revê-la? Ainda sente raiva dela?
– Não é para sentir?
– Eu entendo que haja ressentimento, porém... ela nunca me pareceu
má pessoa.
– Também achei que ela fosse uma garota inocente, estava enganado.
– Você ao menos a ouviu depois de tudo?
– Não havia nada para ouvir. Ela confessou quando Emily disse a
verdade.
– Carter nunca deveria ter feito o que fez. Foi muito errado. Ele nunca
foi a mais sensata das criaturas, mas passou dos limites.
– Eu sei. Só que ele não tem culpa de ela ter aceitado o dinheiro. Não
existe perdão para sua atitude, mãe.
– Eu sei. É realmente horrível pensar que ela saiu com você por
dinheiro, quando eu a conheci... quando... o vi com ela. Cheguei a comentar
com Benjamin que ela parecia apaixonada por você.
– Eu também pensei. Estava enganado. Foi apenas... dinheiro.
– Bom, como você disse, já se passaram dez anos. As pessoas
mudam, amadurecem. Ela errou no passado, talvez tivesse seus motivos.
– Não consigo pensar em nada que amenize o que fez.
– Eu sei. Agora existe Sofia. Não acho saudável manter uma relação
de ódio com a mãe de sua filha. Talvez seja melhor para todos que tente
esquecer o que aconteceu.
– Não sei se consigo.
– Pense em Sofia. E esta garota, Evangeline, parece ser uma moça
muito sensata atualmente. Ela é mãe, Matthew. Ser mãe muda muito a
pessoa. Ela me parece ser uma boa mãe também.
– Ela é – não posso negar.
– Bem, vou cuidar do meu jardim. E traga Sofia aqui mais vezes.
Gostaria de conhecê-la melhor.
– Eu trarei.
Ela se afasta e fico pensando em suas palavras. Minha mãe me acusou
de nunca conversar com Evangeline sobre o ocorrido, o que eu poderia ouvir?
Desculpas esfarrapadas? Seus motivos para querer o dinheiro não me
interessavam. Nada justificava ela ter fingido estar interessada. Era nojento.
Naquela época estava tão furioso e magoado, que tudo o que podia
pensar era em sair de Camden e nunca mais olhar na cara dela outra vez.
Então eu voltei. E a vi de novo.
E descobri que tínhamos uma filha.
O que elevava tudo a um nível muito mais complicado, ainda mais
levando em consideração que cada vez que a via, ainda tinha vontade de
arrancar suas roupas. Como naquele momento no carro. Não sei que tipo de
curiosidade mórbida me fez perguntar se ela amava o noivo. E ela não
respondeu. Será que sua falta de resposta era apenas por não querer falar
comigo sobre ele ou não estava apaixonada por Sebastian Blake?
Não podia negar que uma parte de mim queria que a segunda hipótese
fosse a verdadeira. Então, o que a motivava a se casar com ele?
Cada vez a entendia menos. O que me deixava ainda mais confuso.
Hoje no carro eu tive certeza de que ela não me empurraria se eu a
beijasse. Na verdade, por um momento achei realmente que ela queria tanto
quanto eu.
Será que eu estava fantasiando, como no passado?
Naquele tempo havia um motivo para ela me enganar, para fingir que
estava interessada. Hoje não havia nenhum. Nem em nenhuma das outras
duas vezes que eu a beijei.
– Olá, o que faz aqui sozinho? – Emily interrompe meus pensamentos
entrando na sala.
Ella vem atrás dela.
– Nada, cadê o Carter?
– Foi jogar golfe com papai – Ella responde.
– Sim, acho que me disseram algo, eu me esqueci.
– Podemos sair para almoçar, o que acha?
– Não, vou buscar Sofia na escola e levá-la à clínica.
Emily levanta as sobrancelhas.
– Vai fazer o teste?
– Sim, não era o que queria?
– E Evangeline disse o quê?
– Ela concorda.
– Sei... posso ir com você?
– Se a Emily for eu também vou! Adoraria conhecer melhor a sua
filha! Ela é tão fofa!
– Não...
– Deixe de ser chato, Matthew! – Emily diz. – Pensei que quisesse
que conhecêssemos sua filha melhor.
– Então agora ela é minha filha?
Ela dá de ombros.
– Dar-lhe-ei o benefício da dúvida.
– Tudo bem, podem vir, só não quero que façam nenhum comentário
inadequado perto dela, fui claro?
– Sim, senhor! – Ela revira os olhos.
– Eu nunca digo nada inadequado! – Ella sorri e, enquanto estou
estacionando o carro em frente à escola de Sofia horas mais tarde, me
pergunto se fiz bem em trazê-las.
Sofia corre em direção ao carro e para indecisa ao ver Emily e Ella.
– Oi, Sofia, espero que não se importe de dar uma volta comigo e
minhas irmãs.
– Não, eu não ligo! – Ela sorri.
Fico feliz que ela pareça gostar delas.
– Oi, Sofia – Ella sorri amigável.
– Oi – Emily apenas sorri, colocando os óculos escuros, embora esteja
frio e nevando.
Nós entramos no carro e Ella fica tagarelando com Sofia no banco de
trás.
– Aonde estamos indo? – Pergunta.
– À clínica. A gente vai fazer um exame, não se preocupe.
– Exame? Não estou doente.
Nós rimos.
– É só algo de rotina.
– Minha mãe sabe?
– Sabe, sim, não se preocupe.
Ela parece satisfeita com a resposta.
A coleta de material é bem rápida e Sofia não reclama e digo que
depois a levarei para minha casa.
– Jura? Minha mãe deixou?
– Deixou.
Ela pula animada.
– Que legal!
– Sim, vou arrumar meu armário e você pode me ajudar, que tal? –
Ella diz e Sofia pula ainda mais.
– Vou adorar! Suas roupas são tão bonitas.
– São sim, tenho bom gosto, vou ensiná-la a ter também.
– Ella, você é tão convencida! – Emily ri.
– Eu? É você que se acha a mais linda do mundo.
– Mais bonita que você eu sou, pelo menos.
– Não fique convencida como elas, Sofia. – Peço quando estamos
entrando em casa e Sofia ri.
E adoro ouvi-la rir. É um som tão puro que rapidamente está se
transformando no meu som predileto no mundo.
– Olha só quem veio nos visitar – minha mãe sorri e Sofia a abraça.
– Ela não veio nos visitar. – Eu a corrijo. – Esta casa é dela também.
– Sério? – Sofia arregala os olhos e eu rio.
– Claro que sim. Tudo o que é meu é seu.
– Até aquele piano?
– Sim, acabo de ter uma ideia. Que tal se eu comprar um piano só
para você?
Seus olhos castanhos se arregalam ainda mais.
– Ele ficaria lá na minha casa? Quer dizer, na minha outra casa?
– Sim, onde você quiser.
– Oba! Eu ia amar!
Ela corre pulando em meus braços e me sinto feliz apenas de vê-la tão
contente com a ideia de um simples presente.
– Obrigada, papai.
Congelo e ela me encara, ficando vermelha.
– Opa, posso te chamar de pai, não é?
Sorrio completamente deslumbrado.
– Claro que pode.
Ela sorri de volta.
– Agora vá lavar as mãos para comer.
– Sim, papai.
E tenho a impressão que o sorriso no meu rosto nunca mais vai se
desfazer.
Sofia se afasta e Ella e minha mãe estão deliciadas.
– Ah, Matthew, tão lindinho ela te chamando de pai! – Ella diz e
minha mãe concorda.
– Ela é realmente uma graça de menina.
Emily não comenta nada, Ella a cutuca.
– Você não acha Sofia linda, Emily?
– Sim, é uma criança linda – diz casualmente.
Sofia volta para a sala e minha mãe nos chama para almoçar.
Surpreendendo a todos Sofia segura a mão de Emily puxando-a para a
cozinha.
– Vamos tia, Emily.
Emily parece surpresa, mas a acompanha.
E, naquele momento tenho certeza que Sofia já está conquistando
Emily também.
À tarde minha agente me liga e precisamos fazer uma conferência de
trabalho, então deixo Sofia com as duas e vou para o escritório. E me
surpreendo horas depois ao entrar no quarto de Ella e ver Sofia vestida com
suas roupas e fazendo algum tipo de penteado estranho em Emily, que ri.
– O que estão fazendo?
– Oi, papai! Olha como a tia Emily está bonita! Eu penteei o cabelo
dela!
– Estou vendo.
– E depois ela disse que posso maquiá-la!
– Acho que Sofia a transformou numa Barbie, Emily – brinco e ela dá
de ombros, sorrindo e revirando os olhos.
– Posso ser divertida também, Matthew.
– E que roupas são estas, Sofia?
– São da tia Ella! Ela falou que vai comparar umas iguaizinhas para
mim!
– Sei – Olho para Ella que ainda arruma o closet atulhado de roupas
até o teto.
– Está tarde. Preciso levar Sofia embora.
– Já? – Ella reclama. – Ela podia jantar com a gente!
– Vou ligar para a mãe dela e perguntar se pode.
Pego o celular e ligo para Evangeline.
– Alô?
– Oi, é o Matthew.
– Oi, tudo bem com Sofia?
– Sim, está tudo bem, só liguei para saber se ela pode jantar aqui.
– Na verdade não gostaria que ela ficasse saindo muito na semana.
Ela passou a tarde inteira aí, melhor que venha para casa, deve ter lição para
fazer.
– Tudo bem, eu a levo então.
Desligo e Sofia fica decepcionada por ter que ir embora.
– Você volta amanhã, tudo bem?
– Minha mãe não vai deixar...
– Vai sim, vou conversar com ela, provavelmente terá que prometer
que fará suas lições de casa.
Ela morde os lábios, como a mãe.
– É, tenho lição para fazer.
– Não tem problema. Se despeça de Ella e Emily e vamos.
Ela abraça Ella e Emily e nós partimos.
Ao chegar é Jack que abre a porta.
– Olá Matthew, e aí, como esta garota se comportou?
– Vovô! Eu sou comportada!
Nós rimos.
– Muito bem.
– E advinha vovô? Meu pai vai comprar um piano para mim! Igual ao
dele!
– Ah é? Quero ver se sua mãe vai gostar...
– Claro que ela vai gostar! Vou aprender a tocar direitinho! E cadê
minha mãe?
– Ela deve estar chegando... E você Matthew, vai jantar com a gente?
– Eu...
– Fica, papai! Por favor!
E como acabei de descobrir, dizer não para Sofia é bem difícil.
Eu me pergunto o que Evangeline dirá quando chegar e me ver.
Vai ser no mínimo interessante.
Capítulo 15

Evangeline

– Era o Matthew? – Janine pergunta curiosa quando desligo o telefone


depois de pedir a Matthew que leve Sofia para casa.
– Era.
– E aí?
– E aí nada, Janine, que coisa!
Foi bem difícil passar o dia com Janine me atormentando.
Pensei que contando tudo a ela, sua curiosidade diminuiria e me
deixaria em paz, estava enganada.
– Agora vocês são tipo... amigos? E aquele lance de ele odiar você?
– Não somos amigos.
Sinceramente eu não saberia como definir Matthew para mim. No
momento ele era apenas o pai de Sofia.
E iria continuar assim. Já era problema o bastante.
– Mas...
– Acho que a partir de agora teremos que manter uma convivência
educada por causa de Sofia e é só.
– Sei... E a família dele?
– Janine, eu não sei! Para de fazer pergunta besta! Acho que já está na
hora de fecharmos.
E é só quando estou saindo da livraria depois de me despedir de
Janine, me dou conta de que estou sem carro. Eu poderia ter ligado para
Sebastian e pedido uma carona, porém ele avisou que não iria lá em casa
hoje, pois estaria ocupado no trabalho até mais tarde.
– Ei, já fechou a livraria? – Harry Cooper para o carro todo sorridente.
Como sempre, parece um cachorrinho esperando minha atenção.
– Fechei.
– Cadê seu carro? Precisa de carona?
– Não, não quero te atrapalhar.
– Não me atrapalha. Posso te levar em casa, entre.
Penso em não aceitar. Ainda lembro do que aconteceu da última vez
que estive num carro com Harry. Claro que foi zilhões de anos atrás e ele
nunca mais tentou nada comigo, mesmo assim, sei porque está se oferecendo
e não me sinto à vontade.
O que eu poderia fazer? Precisava realmente de uma carona.
Entro no carro e ele sorri satisfeito.
– E aí, como está Sofia?
– Ótima.
– E Sebastian? Vai mesmo sair este casamento?
Eu me remexo incomodada com a pergunta.
– Sim, já marcamos a data.
– Ah é... a Janine me contou. – Ele parece desanimado.
– E você, quando vai pedir a Janine em casamento?
Ele ri, sem graça.
– Eu e Janine? Nunca daria certo.
– Acho que daria sim. Sabe que ela só está esperando pelo seu pedido,
não sabe?
– Você acha?
– Claro que sim. Ela gosta de você desde o ensino médio, Harry.
– É talvez eu pense...
Não digo nada. Só espero que Harry acorde a tempo desta paixão sem
cabimento por mim. Porque no fundo não é nada. Somente um capricho de
adolescente por algo que nunca aconteceu. E nem vai acontecer.
Paixões adolescentes e coisas que nunca vão acontecer me fazem
pensar Matthew.
E me pergunto como conseguirei conviver com ele depois de tudo.
Parece impossível aquilo acabar bem.
– Pronto, está entregue – Harry interrompe meus pensamentos quando
para em frente a minha casa.
– Obrigada, Harry. Você foi muito gentil.
– Pode contar comigo sempre que precisar.
– Eu sei.
Salto e reconheço o carro de Matthew parado logo atrás do carro do
meu pai. Antes que consiga pensar numa rota de fuga, escuto a porta de casa
abrindo e Sofia correndo em minha direção.
– Oi, mamãe!
Eu a abraço, me acalmando momentaneamente.
– Oi, amor.
– Sabe quem está aqui? Meu pai! E o vovô o convidou para jantar
com a gente, não é legal?
Meu sorriso congela no rosto. Eu ia matar meu pai. Definitivamente!
Olho para cima, me sentindo observada e lá está ele. A razão dos
meus problemas
Matthew King.
Nossos olhares se encontram e por um instante me recordo do
momento estranho no carro hoje de manhã, antes de Janine nos interromper.
O momento em que senti uma vontade quase irresistível de beijá-lo.
Sofia me puxa e mordo meus lábios com força, tentando me manter
calma. Aquilo não seria problema. Eu não deixaria que se transformasse num
problema.
Não poderia fugir correndo e evitar Matthew de agora em diante.
Ele era o pai de Sofia e estaria na vida dela, consequentemente na
minha. Teria que aprender a conviver com isto da melhor forma possível.
Paro diante dele e Sofia entra em casa, quando meu pai a chama.
– Fiquei sabendo que meu pai te convidou para jantar, não precisa
ficar apenas por educação. Sei que deve ter coisa melhor para fazer.
Ele sorri. Eu amoleço.
Deus do céu. De onde tirei a ideia de que não seria problema?
– Nada é mais importante do que estar com Sofia. Foi por isto que
aceitei o convite do seu pai.
– Sofia passou o dia todo com você.
– Pretende controlar minhas horas com Sofia? – Sua voz é cheia de
uma suavidade ameaçadora e me sinto muito egoísta.
– Não, claro que não. Só estou dizendo antes que comece a reclamar
que está aqui porque não deixei que ela jantasse na sua casa.
– Não estou dizendo nada.
– Certo.
Passo por ele e entro em casa.
– Era Harry Cooper que vi no carro?
Eu me viro, franzindo os olhos.
– Era. Por quê?
Ele dá de ombros.
– Nada, só achei estranho que aceite carona de outros caras estando
noiva.
– Como é? – Pergunto indignada. – O que está insinuando?
– Não estou insinuando nada. Só me lembrei que Harry Cooper era
bem interessado em você. Não foi com ele que ficou no dia do baile?
– Nunca fiquei com Harry Cooper, não que isto faça alguma diferença
para você, claro.
– Você estava com ele no baile.
– Sim, fui com ele naquele maldito baile e só.
– E qual seu relacionamento com ele atualmente?
– Matthew, está me fazendo um interrogatório totalmente descabido!
Como você mesmo disse, sou noiva, não tenho nada com Harry!
– E seu noivo sabe que anda com Harry por aí?
– Como você não é o meu noivo não tem direito de me questionar.
Acho bom parar com estas insinuações ou desista de jantar com Sofia e vá
embora!
Não espero sua resposta e vou para a cozinha.
Jack e Sofia estão lá, e ela mostra um livro para ele.
– Ei, algum problema? – Jack pergunta estudando meu rosto,
enquanto começo a me mexer pela cozinha para fazer o jantar.
– Nenhum – resmungo. – Sofia, vá trocar de roupa depois desça para
comer.
– Está bem – ela obedece e sai da cozinha no mesmo instante em que
Matthew está entrando.
Jack olha de mim para ele, com uma expressão curiosa.
– Vocês estavam discutindo?
– Não se intrometa pai!
– Ei, olha como fala!
– Jack, será que pode nos dar licença um momento? – Matthew pede e
Jack se levanta, pegando uma cerveja.
– Sim, vou assistir o noticiário. E é bom vocês resolverem seja lá o
que precisem resolver antes que Sofia perceba...
Ele sai da cozinha e continuo a preparar o jantar furiosamente.
– Me desculpe – Matthew diz depois de um momento. – Você tem
razão. Eu não devia ter questionado nada.
– É, não deveria mesmo!
– Estou... tentando, ok? Não é fácil para mim... Até poucos dias atrás
eu nem tinha uma filha e agora...
Eu o encaro.
– Agora somos obrigados a conviver por causa dela.
– Exatamente. E acho que podíamos tentar conviver civilizadamente
por Sofia.
– É você que está sendo idiota agindo como um namorado ciumento!
Assim que as palavras saem da minha boca, quero pegá-las de volta,
mas é tarde.
– Quem é ciumento? – A voz inocente de Sofia nos interrompe e
desvio o olhar de novo para as panelas.
– Ninguém – desconverso. – E então, me conte como foi sua tarde. –
Pergunto para distraí-la e porque estou curiosa para saber como foram as
coisas na casa de Matthew.
– Foi demais, mamãe! A tia Ella me deixou colocar as roupas dela e a
tia Emily deixou eu pentear seus cabelos!
Olho para Matthew, desconfiando das palavras de Sofia, ele confirma.
– Sim, Sofia estava fazendo Emily de Barbie, ou algo assim.
Sofia ri desta descrição.
– Sério? – Ainda não acredito.
– Sim, elas já estão nas mãos de Sofia.
Não sei como me sinto com esta informação.
Há um misto de alívio e ciúme dentro de mim. E um tanto de
preocupação também.
Os King, principalmente Emily, me odeiam. Será que serão realmente
capazes de aceitar Sofia incondicionalmente?
– Querida, você pode colocar a mesa?
– Sim, me ajuda, papai?
Paro ao ouvi-la chamar Matthew de pai. Somente eu pareço estar
surpresa, ele apenas sorri enquanto ajuda Sofia a colocar os pratos como se
fosse a coisa mais natural do mundo.
Sofia sai da cozinha para chamar Jack e encaro Matthew.
– Ela está te chamando de pai.
Ele sorri com uma adoração boba.
E não posso negar que é adorável. E faz algumas borboletas
inconvenientes sobrevoarem meu estômago.
– É o que eu sou, não é?
– Só... fiquei surpresa. Está tudo acontecendo tão... rápido.
– Se acostume. – Ele fala com o semblante sério.
– Estou tentando.
Jack e Sofia voltam para cozinha e nós nos sentamos para jantar.
Sofia monopoliza a conversa contando suas histórias da escola, as quais
Matthew escuta atentamente com um sorriso no rosto.
Eu os observo interagindo como se fizessem isto a vida inteira e sinto
meu coração apertado. É inegável a felicidade de Sofia e novamente
questiono minhas decisões que me pareceram tão certas dez anos atrás.
De que adianta remoer isto agora? Sofia tem o tão sonhado pai em sua
vida finalmente e eu teria que aprender a lidar com meus próprios
sentimentos em relação a esta nova realidade.
– Acho que os Pats não ganham o campeonato este ano. – Jack diz em
um dado momento e volto ao presente.
– Não sei não, Jack, a campanha deles está boa. Carter está confiante.
Espere, Jack e Matthew estavam discutindo futebol e tomando
cerveja?
Em que mundo eu estava vivendo?
– Vamos esperar para ver. – Jack comenta e se levanta. – Vou assistir
ao jogo, me acompanha Matthew?
– Quero assistir também. – Sofia pula da cadeira e a repreendo.
– Não vai não, mocinha. Você vai subir e pegar seus cadernos, aposto
que não fez nenhuma lição hoje.
– Está bem – ela resmunga, se afastando para fazer o que eu mandei.
– Estou vendo que a louça sobrou para mim, não é Jack Evans? Achei
que o combinado era, eu faço a comida e você lava a louça. – Reclamo me
levantando e recolhendo os pratos.
– Eu te ajudo – Matthew me surpreende e Jack dá de ombros.
– Pronto, já arranjei um substituto. Quando terminar junte-se a mim
na sala Matthew, quero saber mais sobre sua opinião a respeito de futebol.
Jack se afasta me deixando a grande sensação de que estava numa
realidade paralela.
– Não precisa – digo acabando de colocar as louças na pia, com a
ajuda de Matthew.
– Eu insisto. Como disse, você fez o jantar, merece ajuda.
– Não consigo imaginá-lo ajudando sua mãe com a louça – resmungo
e ele ri.
Mordo os lábios, desviando os olhos do seu sorriso delicioso para a
louça suja.
– Ela não deixa. Minha mãe é muito controladora quando se trata da
sua cozinha.
Eu lhe passo o pano de prato.
– Já que insiste, pode secar a louça.
Enquanto lavo os pratos, tendo Matthew por perto me questiono onde
está minha sanidade ao achar que aquilo seria um ato simples de colaboração.
Estou muito consciente de sua presença, de seus movimentos... Meus olhos
estudam suas mãos que secam os pratos. E de uma maneira ridícula e
imprópria, as desejo em mim.
Mordo meus lábios para conter o gemido desalentado que vem do
fundo do meu peito. Que merda estou fazendo?
Será que nunca serei capaz de controlar meus pensamentos insensatos
perto de Matthew?
Se fossem somente meus pensamentos que precisavam ser
controlados seria até mais fácil. O que fazer com aquela torrente de sensações
que me invade só pelo fato de ele estar perto de mim?
É como se eu não fosse dona do meu próprio corpo. Que parecia estar
ligado por algum fio invisível ao de Matthew. Era perturbador. Insano. E
deliciosamente irresistível.
– Evangeline.
Levanto o olhar quando ele chama meu nome. Sei que é um grande
erro, mesmo assim eu fito seus olhos.
E mal respiro.
– Estive pensando sobre o que aconteceu há dez anos.
Desvio o olhar. Agora sentimentos ruins se misturam aos loucos no
meu interior.
– Por quê? Achei que tínhamos combinado tentar conviver
civilizadamente.
– Foi o que eu disse. O que não significa que eu consiga esquecer.
– E por que precisamos falar sobre esse assunto agora?
– Porque, por mais que eu tente, nunca consigo te entender.
– Agora quer me entender? – Eu meio que acuso, encarando-o.
– Há algo para entender além do que ficou óbvio?
– O óbvio, ou o que fui acusada sem direito a defesa?
– Você nunca negou.
– Nunca neguei que Carter me pediu para sair com você.
– E você transou comigo por causa disto.
– Seu cunhado nunca me pagou para transar com você. Ele me pagou
para lhe dar uma chance, concordar em sair com você. Sexo nunca esteve na
barganha. Aliás, deixei bem claro a ele que nunca iria transar com você. –
Digo por fim.
– Então por que transou? – Os olhos de Matthew são impenetráveis.
Respiro fundo, buscando as respostas dentro de mim.
Estou tão cansada de conviver com aquela culpa...
Tão cansada de esconder tudo de mim mesma, então decido aqui e
agora que posso conviver com a verdade.
– Talvez pelos mesmos motivos que deixei você me beijar naquele
banheiro... Ou na livraria, ou quis te beijar essa manhã, ou quero te beijar
agora apesar de saber o quão errado é...
As palavras saem da minha boca sem que eu consiga contê-las e
rodopiam no silêncio tenso que se segue.
Sei que estou confessando algo que nunca confessei nem a mim
mesma e de certa forma é libertador.
E também atemorizante ao mesmo tempo.
Parece que passaram horas e não segundos, enquanto estamos ali, sob
o peso das minhas palavras, esperando por alguma coisa que, de alguma
maneira, pode mudar tudo irreversivelmente.
Então o ar se modifica sutilmente. Agora está cheio de eletricidade, se
move entre nós criando um campo de força irresistível e quente.
Meu corpo inteiro estremece como se tivesse levado um choque de
mil volts daquela eletricidade que criamos. Uma onda de desejo puro se
alastra por minha pele, penetra em mim, queimando por onde passa se
alojando com a força de uma pulsação nervosa em meu íntimo.
Eu anseio. Eu desejo.
Eu preciso.
De algum lugar de fora do nosso universo particular, um telefone toca
e dou um passo atrás, rompendo a bolha de irrealidade em que me
encontrava.
– Evangeline, é Sebastian! – Escuto meu pai me chamando de algum
lugar e é como um jarro de água fria em meus pensamentos insanos.
Que porra eu estava prestes a fazer?
– Evangeline! – Meu pai grita mais forte e sinto meu rosto queimar ao
me virar, disposta a fugir, Matthew segura meu braço.
– Não vá.
– Matthew... – Deus do céu, estou hesitando.
Estou realmente cogitando ignorar o cara com quem vou casar em
menos de um mês para...
Para quê?
Beijar Matthew? Era disto que se tratava?
Eu nem sei mais do que estávamos tratando!
– Por favor...
– Não, Matthew. – Solto meu braço. – Esqueça o que aconteceu aqui.
– Peço quase implorando.
E sei que no fundo estou implorando a mim mesma.
– E o que aconteceu?
Fecho os olhos, porque até olhar para ele é demais para mim.
Sim, o que aconteceu?
– Nada – respondo, abrindo os olhos. – E nem vai acontecer.
E eu lhe dou as costas, indo atender o telefonema de Sebastian.
Jack me passa o aparelho, com um olhar curioso que eu ignoro.
– Oi, Sebastian.
– Eve, está tudo bem?
– Sim, está, claro.
– Estou a caminho da sua casa, tudo bem?
Vejo Matthew entrando na sala e Sofia o chamando.
– Papai, pode me ajudar com esta lição?
– Eve...?
– Oi, Sebastian, claro, pode vir sim – respondo por fim.
– Certo, chego daqui uns dez minutos.
Desligo encarando Matthew.
– Acho melhor você ir embora.
– Não, ele vai me ajudar! – Sofia reclama e Matthew senta ao seu
lado.
– Vou ajudar Sofia. – Ele diz com a voz fria.
Olho para meu pai em busca de socorro, ele me lança um olhar de “se
vire”.
E eu já me arrependo de ter concordado com a visita de Sebastian.
Volto para a cozinha irritada e termino de arrumar tudo, quando
escuto a moto de Sebastian estacionando em frente a casa e vou até lá.
Obviamente ele está com cara de poucos amigos quando abro a porta.
– O carro que estou vendo aí fora é de Matthew King?
– É.
– Que inferno!
– Não continue Sebastian, não quero brigar na frente da Sofia.
– Por que não me disse...
– Agora não – insisto. – E se não for capaz de se conter, melhor ir
embora.
Ele respira fundo.
– Tudo bem.
Nós entramos na sala e Matthew continua ajudando Sofia com a lição.
Ela sorri ao ver Sebastian e se aproxima abraçando-o.
– Oi Sebastian! Você já conhece meu pai? – Pergunta alheia à tensão
entre os adultos.
– Conheço – Sebastian diz
Sofia se volta para o lado de Matthew.
– Ele está me ajudando com a lição! Sabia que ele jantou com a
gente?
Sebastian me olha irritado.
– Fiquei sabendo.
– Por que não jantou com a gente também?
– Eu tinha um trabalho a fazer.
Sebastian senta num sofá vago e me puxa para seu lado, mantendo um
braço a minha volta, possessivamente.
Olho para Matthew e ele está nos fitando com uma raiva fria.
Desvio o olhar para Sebastian que aproveita e beija de leve meus
lábios.
Desvio o rosto, ruborizada, não me afasto, enquanto ele acaricia meus
ombros e beija meu rosto.
O olhar de Matthew agora é quase mortal.
Sofia chama sua atenção e ele finalmente para de nos fuzilar, sinto-me
tão mal que meu estômago dói.
Que espécie de pessoa horrível eu sou?
Há poucos minutos estava confessando a Matthew que eu queria que
ele me beijasse de novo e agora estou sentada com meu noivo, desejando que
fossem os braços de Matthew a minha volta.
– O jogo acabou, vou dormir – Jack anuncia e percebo que ele devia
estar cochilando no sofá faz algum tempo.
Aproveito para me levantar também.
– Sim, está tarde. Sofia também precisa ir dormir.
– Não estou com sono – ela boceja e eu rio.
– Está sim, despeça-se de Matthew e Sebastian e suba para escovar os
dentes.
Ela abraça Sebastian e depois Matthew.
– Amanhã você virá me buscar, papai?
– Com certeza.
Ela sorri satisfeita e sobe para o quarto.
E me vejo sozinha os dois.
– Vou te acompanhar até a porta, Matthew – digo educadamente e
Sebastian segura minha mão, indo comigo.
Matthew não fala nada, antes de sair, seu olhar recai sobre Sebastian
segurando minha mão, então me encara com um olhar frio e vai embora.
Fecho a porta respirando aliviada.
– Você vai me dizer que palhaçada é esta? – Sebastian me pergunta
irritado.
– O quê?
– Este cara aqui! Agindo como se morasse com vocês!
– Está maluco, Sebastian? Ele ficou porque meu pai convidou!
– Não gosto nada disto! Ele se aproveitou que eu não estava para...
– Para o quê? – Pergunto irritada também.
E sei que nem é só com as acusações de Sebastian, que ele nem faz
ideia do quanto são verdadeiras.
– Este cara é muito folgado! Não o quero perto de você!
– Sebastian, está sendo ridículo...
– Não, vejo como ele olha para você, acha que sou idiota?
– Está sendo...
– Não, não estou! Estou de saco cheio de ter que aguentar...!
– E o que você quer que eu faça? Ele é o pai da Sofia. Vai estar
sempre por perto de agora em diante! Sabe muito bem!
– Não consigo aceitar, sinto muito! Sei que ele é o pai dela, até tento
ser imparcial, não consigo!
– Não sei o que dizer.
– Me diga que estou louco. Que estou imaginando coisas. Que este
cara não significa nada para você, que...
– Ele é, acima de qualquer coisa, o pai da Sofia. E esta realidade não
vai mudar.
Desvio o olhar e contenho o nó na minha garganta.
O que eu posso fazer?
Por um momento quero confessar tudo. Dizer que Matthew me
beijou, que...
O quê?
Nem sei o que está acontecendo direito. Como posso arriscar a contar
algo assim a Sebastian e magoá-lo irreversivelmente?
Não posso.
– Sebastian, sinto muito. Não quero que se sinta assim, mas não posso
mudar nada. Matthew faz parte de nossas vidas agora... E... – Eu respiro
fundo. – Talvez seja melhor pararmos para pensar se isto vai dar certo.
– O que não vai dar certo?
– Nosso casamento.
– Você quer terminar?
– Talvez seja a coisa certa a fazer. – Sinto lágrimas quentes em meus
olhos.
– Evangeline...
– Vamos repensar, Sebastian, porque não posso me livrar de Matthew.
Se você não aguenta, temos um problema.
– Não acredito no que estou ouvindo.
– Tenho que pensar em Sofia.
– Está terminando comigo porque o pai da Sofia voltou? Sério? Está
me jogando para escanteio?
– Não! Estou dizendo que precisamos de um tempo para pensar em
tudo que mudou.
– Pensar? Falta menos de um mês para nosso casamento!
– Por isto mesmo. É um passo muito sério, não posso pensar apenas
em mim. Toda esta situação é complicada e você, mais do que ninguém,
precisa saber se aguenta ou não. Não podemos nos casar com essa dúvida,
sinto muito. Acho que devemos suspender tudo.
Ele passa a mão pelos cabelos atormentado e me sinto muito mal por
magoá-lo.
– Tudo bem. Vou embora.
Ele sai fechando a porta atrás de si e me arrasto escada acima.
Sofia já dormiu, entro no chuveiro e finalmente deixo as lágrimas
caírem. Que bagunça fiz com a minha vida?
Antes de Matthew voltar estava tudo tranquilo.
Eu criava minha filha sozinha e Sebastian parecia uma aposta segura.
Ele era meu amigo e eu achava mesmo que nosso casamento podia dar certo.
Agora Matthew estava de volta. E, junto com ele, toda aquela confusão de
sentimentos que estava me sufocando. E lá se ia meu futuro cuidadosamente
planejado.
O que eu poderia fazer? Sebastian não estava lidando bem com a
presença de Matthew e nem podia culpá-lo. Todas as suas desconfianças
eram verdadeiras. E me sinto muito culpada. Talvez eu devesse ter contado
tudo a ele. Confessado o quão leviana estava sendo. De que iria adiantar?
Somente o magoaria ainda mais. E Sebastian não merecia.
Não, melhor deixar as coisas como estavam.
E como elas estavam?
Saio do banheiro visto um pijama, me sentindo amortecida, então de
repente escuto um telefone tocando.
Seria Sebastian?
Ao atender, não é a voz de Sebastian que escuto.
É de Matthew.
– Evangeline.
– O que você quer? – Aperto o telefone com força.
– Está sozinha?
Entendo o que ele quer saber.
– Sim.
– Estou indo para aí.
E desliga.
Fico olhando para o aparelho nas minhas mãos estupefata.
E acho que ainda estou assim, quando escuto o carro estacionando em
frente a minha casa e, com o coração aos pulos, eu hesito.
Ignorar ou ir até lá?
Largo o telefone e desço as escadas.
Aquilo começou há muito tempo.
Desde que Matthew pousou seus olhos em mim naquela loja de
noivas, não sei o que está acontecendo. Seria resquício dos mesmos
sentimentos daquele verão perdido no tempo?
Só sei que preciso me deixar levar. Está muito além do meu controle.
Toda a tensão que venho acumulando está prestes a se romper.
Saio para a noite gelada. O carro está parado ali e respiro fundo ao
correr, a porta se abre antes de eu chegar lá e entrar.
Está quente.
Matthew está ali.
Tão lindo. Tão a meu alcance.
Já me sinto deslizar para uma doce e bem-vinda inconsciência.
– Ainda não terminamos aquele assunto. – Toco seu rosto com
minhas mãos geladas.
– Não diga nada.
– Evangeline...
– Shi... – meus lábios estão perto dos seus, sinto seu gosto em minha
língua e derreto. – Apenas me beije... me beije...
E, com um gemido, ele me beija.
Capítulo 16

Matthew

O céu e o inferno podiam ser bem próximos quando eu estava com


Evangeline Evans.
Houve um momento naquela noite, quando olhei em seus incríveis
olhos castanhos e ouvi as palavras mais sinceras que ela já havia dito a mim
até hoje, que achei que tudo era possível.
E então ela me levou do céu ao inferno ao voltar para o outro cara.
Aquele que tinha todo o direito de estar com ela, pois era quem esteve por
perto nos últimos dez anos que agora ficaria infinitamente.
E me consumi no ciúme mais intenso que uma pessoa podia sentir, o
velho ressentimento voltando com força, me dominando.
Desta vez não quis fugir. Eu quis voltar e confrontá-la.
Queria olhar para ela e ver a mesma mulher que imaginei que era
durante dez anos, mentirosa e dissimulada. Não aquela que vislumbrei na
cozinha.
Em vez disto, ela está me beijando.
A Evangeline que está aqui é a garota que dançou comigo naquele
baile de verão. Que beijei no piano e com quem transei pela primeira vez no
banco traseiro do meu carro ao som de Coldplay.
E estou no céu.
Embora tenha uma pitada de inferno também.
É quente. Me consome e me descontrola.
E esqueço completamente quem eu sou.
Ou o fato de não saber quem ela é.
Tudo o que desejo é infiltrar meus dedos em seus cabelos castanhos,
deslizar meu nariz por seu rosto até o pescoço macio e aspirar seu cheiro
único e inebriante.
Evangeline tem cheiro de primeiro amor.
E lembrar disto faz meu coração se apertar com uma angústia antiga.
Uma dor que se esconde ali e nunca tem fim.
Mágoa.
Desejo.
Estes dois sentimentos andam sempre juntos agora. E, por um
momento, guerreiam dentro de mim, enquanto luto para respirar.
E no fim sou vencido por ela novamente.
Meu nome em seus lábios.
“Matthew....Matthew..."
Fecho os olhos e a beijo uma vez.
E outra.
Seus gemidos fazem minha excitação aumentar. Então decido que
preciso ouvi-la gemer ainda mais. É quase uma necessidade.
Mordo seu lábio inferior e ela geme.
Puxo seus cabelos e ela geme.
Trago-a para meu colo e ela geme.
Abro os olhos e sua visão acima de mim, o rosto tingido de vermelho,
os cabelos despenteados por meus dedos, os lábios inchados dos meus beijos
causam uma espécie de dor em meu íntimo.
É físico e emocional ao mesmo tempo.
Agora são suas mãos que estão em meus cabelos e é ela quem me
beija com força, morde meus lábios movendo os quadris.
E é minha vez de gemer muitas vezes.
E tudo me lembra demais uma outra noite perdida no tempo. Ainda é
o mesmo desejo, a mesma garota.
Sempre vai ser ela.
O que de certa forma me assusta. Me amedronta.
Foram dez anos no inferno.
Como posso ter o céu?
– Matthew?
Só percebo que tinha parado de beijá-la e a estou encarando com os
olhos perdidos e a respiração ofegante, quando ela me chama, confusa.
De repente é como se ela percebesse o que está fazendo. Vejo a
mudança em sua expressão.
O vermelho de excitação do seu rosto se transformando em vermelho
de vergonha. É delicioso do mesmo jeito e, uma parte de mim, aquela do
garoto do passado, quer lhe dizer.
O cara que sou hoje, talhado por dez anos de ressentimento, não pode.
Então ela sai do meu colo, voltando para o banco do passageiro, por
um momento nenhum de nós diz nada.
– O que veio fazer aqui, Matthew? – Ela pergunta depois de um
tempo.
– Eu já não sei.
– É incrível... se passaram dez anos e ainda me sinto muito errada
quando estou com você.
– Não parecia estar se sentindo assim há alguns minutos.
– E o que estávamos fazendo alguns minutos atrás, Matthew? – Ela
me encara através da escuridão do carro. – O que realmente significa?
– Eu quero você, ao mesmo tempo ainda sinto raiva pelo que
aconteceu no passado. – As palavras saem da minha boca sem que eu consiga
contê-las.
Não são mentiras.
Também tenho a impressão que não contém toda a verdade.
Ela não fala nada por um tempo.
E uma parte minha lamenta.
– Nada vai mudar, não é? – Sua voz parece cheia de uma fria
suavidade. Uma triste aceitação.
– Evangeline...
Ela abre a porta do carro.
– Foi um erro. De novo. Tchau, Matthew.
Eu a vejo se afastar sem conseguir pensar em nada a não ser o quanto
lamento que tudo seja tão complicado entre nós.
Infelizmente existe um passado.
Um passado no qual ela me enganou vilmente.
Como passar por cima de um ressentimento tão antigo? Talvez seja
melhor deixar as coisas como estão... somente Sofia entre nós.
Pensar em minha filha faz voltar um pouco de minha sensatez. Não
quero que nada a atinja. E, entre mim e Evangeline há tanta coisa que temo
ser algo impossível. Por Sofia, precisaremos manter nossos sentimentos
guardados.
Os ruins. Os bons. Os confusos.
Os inconfessáveis.
Respirando fundo, dou partida e volto para casa.

***
Evangeline

Subo para meu quarto.


Vejo seu carro parado através da minha janela e meu coração pesa
uma tonelada. Está nevando, tudo está branco e frio.
Assim como minha vida.
Não vou chorar. Não quero chorar.
Já havia chorado todas as minhas lágrimas há dez anos. Quando ele
descobriu sobre o acordo com Carter. Quando percebi que havia cometido
um grande erro e não tinha volta. Quão diferente teria sido se eu tivesse
aceitado o primeiro convite desajeitado de Carter naquela loja?
Ou não ter corrido deixando Matthew falando sozinho no baile?
Fui idiota o suficiente para não perceber o que estava acontecendo.
No fundo dever ter sido uma espécie de ato de defesa contra algo
extremamente desconhecido. Eu sentia medo de me apaixonar por um cara
como Matthew, pois sabia que iria sair machucada no final.
E foi o que realmente aconteceu.
Por minha culpa.
Agora ele está de volta e temos um laço eterno. Um desejo
irresistível.
E um ressentimento sem fim.
Se ao menos eu pudesse voltar no tempo...
Talvez as coisas fossem diferentes. Mas eu nunca saberia. Era tarde
demais.
E é com uma dor apertando meu peito, que vejo o carro se afastando.
Sei que preciso deixá-lo ir, assim como aquele sentimento que não vai levar a
lugar nenhum. Fecho o vidro, enxugo meu rosto e deito ao lado de Sofia.
O som da respiração da minha filha me acalma o suficiente para me
lembrar de que não estou sozinha. Não sei o que acontecerá com Sebastian. E
Matthew está perdido para sempre. Mas tenho minha Sofia. E é o bastante.

O dia amanhece frio e cinzento. Assim como meu humor.


Eu me arrumo e acordo Sofia. Ela me encara silenciosa por cima de
seu prato de cereal. Estamos sozinhas, Jack saiu cedo para a oficina.
– Mamãe?
– Sim?
– Você está triste?
Eu me obrigo a sorrir.
– Não, estou apenas cansada de chuva e frio – minto.
Sofia sorri também.
– Lembra-se de nossas férias na Flórida? Você amou.
– Sim, é um lugar incrível.
– Por que não nos mudamos para lá?
– Está querendo se mudar, é?
– Não! Claro que não! Eu adorei a Flórida, mas agora meu pai está
aqui! Então Camden é o melhor lugar do mundo.
Sorrio e beijo seus cabelos.
De alguma forma Sofia tinha razão. O melhor lugar do mundo é onde
está quem amamos.
Quem me dera que a minha vida fosse simples assim.
Escuto o carro de Matthew estacionando e meu coração dispara
ridiculamente.
– Vá pegar sua mochila, Matthew chegou.
Sofia corre para pegar sua mochila e fico na expectativa de Matthew
entrar a qualquer momento. Isto não acontece. Quando ela desce, eu a
acompanho porta afora, lhe dando um beijo.
Matthew não sai do carro.
Ajeito seu cachecol e touca.
– Seja boazinha.
– Eu sempre sou! Amo você, mamãe.
– Também te amo, bebê.
Ela acena entra no carro e os dois partem.
Eu me sinto muito sozinha de repente.

Janine percebe meu mau humor e começa a fazer perguntas quando


chego à livraria, corto todas.
– Nossa, que humor... Então, que tal a gente sair neste fim de semana
e providenciar algumas coisas do casamento?
Pensar no casamento me faz ter calafrios, o mais provável é que ele
nunca ocorra. O que me faz sentir triste e aliviada ao mesmo tempo.
– Janine hoje realmente não estou com humor para nada, vá trabalhar
e não insista!
Ela parece entender e me deixa em paz o resto do dia.
Sofia me liga depois do almoço para dizer que está passeando no
shopping com a “tia Ella”.
– E cadê seu pai?
– Ele teve que trabalhar parece. Então Tia Ella me trouxe para
passear.
– Tudo bem, te vejo a noite então.
– Ok! Tchau, mãe!
Desligo com a sensação de que estou vivendo num mundo bizarro.
Tudo se torna ainda mais bizarro quando chego em casa e um
chamativo Porsche está estacionado lá. Paro surpresa ao entrar e ver Ella
King sentada à mesa da cozinha tomando chá com meu pai.
– Oi, Evangeline! – Ela acena, animada.
Como sempre está impecavelmente vestida.
– Oi, Ella... Que surpresa vê-la aqui.
– Ella veio trazer Sofia – Jack explica.
– Sim, nós passamos a tarde juntas no shopping! Foi tão divertido!
– E onde ela está?
– No quarto – Jack responde.
– Vou vê-la... com licença, Ella. – Quero perguntar onde está
Matthew, mas me contenho.
Fico com a impressão estranha de que ele está me evitando. O que
deve ser verdade.
Ao chegar ao quarto, Sofia está às voltas com muitas sacolas e roupas
espalhadas por todo canto.
– O que é isto?
Ela ri.
– Meus presentes!
– Presentes? – Conto pelo menos umas dez sacolas espalhadas e sinto
um calafrio.
– Sim, tia Ella me deu todos eles, não é legal?
– É um exagero! E um absurdo! Para que tudo isto?
– Não seja chata, mamãe! Eu adorei tudo!
Respiro fundo, tentando conter minha irritação.
– Arrume essa bagunça e vá fazer sua lição de casa, entendeu?
Saio do quarto disposta a confrontar Ella, que já foi embora quando
chego à cozinha.
Jack ri quando reclamo dos presentes.
– Eu vi o tanto de sacola, parece um exagero mesmo, Ella me disse
que está compensando dez anos de presentes perdidos.
Reviro os olhos, irritada.
Sinceramente não gosto nada de ver minha filha sendo estragada com
presentes exagerados, terei que deixar bem claro para os King.
Depois do jantar, enquanto ajudo Sofia com sua lição, me pergunto se
Sebastian vai aparecer.
Ele não aparece.
E de novo não sei se sinto alívio ou tristeza.

Na manhã seguinte, quando escuto o carro de Matthew estacionar,


ordeno que Sofia suba para pegar seu casaco e mochila e saio disposta a falar
com ele.
Como no dia anterior, ele permanece dentro do carro, bato no vidro e,
quando ele o abre, peço para ele sair.
– Preciso falar com você.
Ele sai e seu rosto está muito sério, mesmo assim, ainda é o rosto
mais lindo que já vi e me faz perder o fôlego por um instante.
– O que foi? Algum problema com Sofia?
– Não, ainda.
– O que quer dizer?
– Não gostei nada daquele monte de roupas que Ella comprou. É um
exagero.
– São presentes.
– Não crio Sofia assim, sem ter noção do valor das coisas.
– Minha família gosta de dar presentes. Obviamente vão querer dar a
ela.
– Não gosto nem um pouco deste exagero! Tem roupas ali para uma
vida inteira!
– Ella é meio exagerada, não faz por mal.
– Só gostaria de deixar claro que não quero que a estraguem com
mimos. Não me faça reavaliar o tempo que ela passa com vocês.
– O que está querendo insinuar? Tenho direitos.
– Eu sei. Mas sou a mãe e sou eu quem decide.
– Nós decidimos em conjunto de agora em diante.
Bufo, irritada.
No fundo sei que ele tem razão, só é muito difícil abrir mão do
controle absoluto que tive por quase dez anos.
Sofia aparece correndo interrompendo nossa discussão.
Eu me despeço dela e os vejo ir com certo pesar.

Quando chego à livraria, há alguém esperando por mim.


Carter Henderson.
– Oi, Evangeline – ele sorri e não consigo retribuir.
– O que faz aqui?
Ele sorri ainda mais.
– Bom dia para você também.
– Carter, não finja que somos velhos amigos.
Ele para de sorrir.
– Sim, não somos velhos amigos, mas você agora é quase parte da
família, não é?
– Continuo achando absurdo.
– Pelo visto ainda temos ressentimentos hein?
– Não tenho nenhum ressentimento por você ou qualquer pessoa da
sua família vocês é que têm por mim, é diferente. E tudo começou por culpa
sua, então me perdoe se não sinto vontade de ser simpática.
– Wow! Acho que colocou toda a situação de forma bastante clara.
– Resumindo, o que veio fazer aqui? Preciso trabalhar.
Ele olha em volta, a livraria está vazia a essa hora, só escuto a voz de
Janine em algum canto por trás das prateleiras com um cliente.
– É um lugar bem legal... foi para isto que me pediu o dinheiro?
– Não, não foi... – começo a dizer, paro abruptamente e respiro fundo.
De repente muitas coisas passam por minha mente.
Decisões antigas que eu julguei certas em determinado momento, que
me parecem muito erradas agora.
E uma outra decisão começa a se delinear em minha mente.
– Carter, sério, não posso ficar de papo com você agora, então...
– Ela chegou! – Escuto a voz de Janine e olho em sua direção, fico
muito surpresa ao ver que Evelyn King está com ela.
– Oi Evangeline – Evelyn me abraça. – Eu disse que viria conhecer
sua loja!
– Oi...
– Pedi a Carter que me trouxesse! Sua funcionária é ótima! Me
indicou livros de jardinagem muitos bons.
Ela mostra a pilha que Janine está passando no caixa bem animada.
– Que bom – digo ainda meio perdida.
Então foi por isto que Carter veio?
– Também queria lhe agradecer por deixar Sofia passar um tempo
conosco. Ela é adorável!
– Tenho certeza que ela está adorando ficar com vocês também.
– E é claro, você é bem-vinda em nossa casa também.
Apenas aceno, sem conseguir dizer que duvido muito que sou
realmente bem-vinda.
– Vamos Carter.
Carter vai pegar as sacolas com os livros, porém Janine que está
especialmente cordial hoje e, aposto que tem muito a ver com o fato de sua
cliente ser Evelyn King, se prontifica a levá-los até o carro as duas saem
conversando animadamente sobre o tempo e Carter acaba ficando para trás.
– Queria te dizer uma coisa.
– Sim?
– Eu realmente acreditava que você sentisse algo pelo Matthew.
Eu o encaro ceticamente.
– Por isto me ofereceu dinheiro?
Ele coça o cabelo com um olhar confuso.
– Acho que estava um pouco desesperado... e você sabe, tenho muito
dinheiro, não vi maldade alguma em te dar um incentivo.
– Meu Deus, Carter, chega! Isto é tão... absurdo! Achou mesmo que
era correto pagar alguém para sair com o irmão de sua namorada?
– Ele estava apaixonado por você. Só queria ajudar.
– Você arruinou tudo.
– Eu? Não fui eu, você poderia não ter aceitado. E simplesmente
ficado com ele. Você aceitou. E arruinou tudo.
– Não tem ideia dos meus motivos. Vocês prontamente me julgaram,
sem saberem realmente quem sou ou o motivo de eu fazer aquilo! – Minha
voz sai embargada e me odeio por isto.
Respiro fundo para me acalmar.
– Chega desta conversa. É inútil ficar discutindo o que não tem mais
volta. Vá embora, Carter!
Ele finalmente sai e tento me recuperar.
– Uau! Evelyn King é demais! É tão chique, tão bonita, tão simpática!
– Janine retorna toda encantada.
– Sim... – murmuro distraída.
– Ei, o que foi? Está chorando?
– Não, claro que não. – Eu a corto e pego minha bolsa. – Pode cuidar
da loja por um tempo? Preciso resolver umas coisas urgentes.
– Mas...
– Sem perguntas, Janine.
Saio da loja, deixando Janine com um ponto de interrogação.
Não me importo.

Quando finalmente volto para a loja à tarde tenho outra surpresa me


esperando.
Sebastian.
Parece que hoje era o dia das visitas inesperadas.
Capítulo 17

Evangeline

– Oi, Eve.
Ele está sério e reticente.
Coloco minha bolsa sobre o balcão, sem saber o que dizer. É
lamentável que uma amizade de tantos anos tenha se resumido a isto. E dói
saber que a culpa é minha por ter permitido que as coisas fossem tão longe.
– Oi Sebastian, tudo bem?
Ele sorri de leve e me sinto um pouco melhor. Menos culpada.
– Poderia estar melhor, não é?
– Sebastian...
– Preciso muito conversar com você... podemos ir a algum lugar?
Olho em volta e vejo Janine arrumando uma prateleira, ou fingindo
que arruma, enquanto escuta muito interessada a nossa conversa.
– Janine, pode cuidar de tudo aqui?
– Claro, claro. Pode ir, eu fecho.
– Obrigada.
Posso ver em sua expressão o quanto está curiosa, ela deve ter
percebido a seriedade da situação, pois não faz perguntas.
Sebastian me acompanha até em casa e pergunta onde está Sofia.
– Está com Matthew.
Estudo sua reação ao falar dele, Sebastian apenas assente, sem
nenhum comentário ressentido.
– E então? O que quer falar comigo?
– Primeiro queria te pedir desculpas pelo meu comportamento.
– Sebastian...
– É sério, Eve. Andei pensando bastante e sei que fui um idiota.
Matthew é o pai da Sofia e não cabe a mim ficar zangado por ele fazer parte
da vida dela e, consequentemente, da sua.
– Sei que não deve ser fácil para você.
– Não é, como já disse, não tenho o direito de ser um idiota. Por isto
te peço desculpas.
– Está tudo bem. Vamos esquecer.
Então ele dá um passo em minha direção e segura minhas mãos.
– Será que poderíamos recomeçar?
Eu olho para nossas mãos unidas, indecisa sobre o que fazer.
Este é Sebastian, meu melhor amigo, uma das minhas pessoas
preferidas no mundo. Tenho certeza que o quero na minha vida para sempre.
Mas seria o suficiente para me casar com ele?
– Ainda não sei se estamos fazendo a coisa certa.
– Eu te amo, Eve.
Mordo os lábios, sentindo um grande aperto no peito.
Não quero magoá-lo, também não posso mais mentir para ele.
– Sebastian, eu amo você. Só que não deste jeito... Não como acredito
que duas pessoas devem se amar para se casar.
Ele parece triste com minhas palavras e dói muito em mim.
– Acho que sempre soube que você não me ama tanto quanto eu te
amo. Mesmo assim, quis me casar com você. Ainda quero. Podemos nos dar
uma chance. Podemos fazer dar certo. Você seria feliz comigo.
Respiro fundo, querendo muito acreditar que o que ele está falando é
possível, porém realmente não tenho certeza.
– Gosto de você apenas como amigo. Seria errado.
– Não me importo. Você nunca me deu uma chance de verdade.
– Sebastian...
– Por favor, Eve. Eu gosto realmente de você. E de Sofia. Quero que
dê certo. Me dê uma chance. Nos dê uma chance.
Eu o encaro com vontade de chorar.
Por que não amo Sebastian? Ele seria perfeito para mim. Um cara que
sempre vai estar ao meu lado. Que sempre esteve do meu lado. No fundo do
meu coração sei muito bem o que me impede de gostar dele de verdade.
Um dia, gostei de outra pessoa. E foi tão dolorido que fechei meu
coração. E o pior de tudo, é que essa pessoa está de volta. E me vejo sentindo
a mesma coisa outra vez. Apesar de saber que nunca vai levar a nada.
– Realmente não quero te magoar. Gosto demais de você e até pensei
que poderíamos fazer dar certo, agora estou muito confusa. Não quero me
precipitar. Tenho que pensar em Sofia também.
– Tudo bem. Tem razão. Vou esperar você pensar. Vamos... deixar
em suspenso. Quando estiver preparada me dê sua resposta. Eu realmente não
devia ter precipitado as coisas...
– Sim, não devíamos ter nos precipitado marcando o casamento.
– Certo, faremos do jeito certo desta vez. Vou esperar.
– Tudo bem, obrigada. – Eu me vejo concordando e, enquanto ele me
abraça me pergunto se mudarei de ideia.
– Ainda somos amigos, não é?
Eu beijo seu rosto.
– Claro.
– Oi, mamãe.
Eu me viro e vejo Sofia na porta da sala. E não está sozinha.
Matthew está com ela.
Eu me afasto de Sebastian, muito vermelha, Sofia se aproxima, me
abraçando. Em seguida abraça Sebastian e aproveito para olhar Matthew.
Ele tem o semblante frio como gelo.
– Que saudade de você, pequena! – Sebastian bagunça o cabelo de
Sofia, que ri.
– Estou passando todas as tardes na casa do meu pai!
– Que legal! – Sebastian olha para Matthew e fico tensa.
Ele apenas estende a mão.
– Como vai, Matthew?
Espero a reação de Matthew, que hesita por um momento, porém
acaba cumprimentando Sebastian, ainda sério.
– Tudo bem, Sebastian.
Respiro aliviada e sei que Sebastian está fazendo isto para provar a
mim que superou o ciúme.
– Eu já estava de saída. Tchau para vocês.
Ele se afasta e Sofia sorri para mim.
– Olha o que eu ganhei mamãe!
E ela me mostra um notebook muito empolgada.
Respiro fundo e encaro Matthew.
– Mais presentes? Não sabia que era seu aniversário...
– Não implique. Ela precisava de um para fazer seus trabalhos da
escola.
– Nós temos um computador...
– Aquela coisa velha? Fala sério, né, mãe!
– Sofia, suba para trocar de roupa depois a gente conversa.
Ela sobe e eu encaro Matthew.
– O que eu falei sobre presentes?
– Não foi bem um presente. Foi algo que comprei porque ela
precisava. É minha obrigação.
– Tudo bem, desta vez passa.
De repente um silêncio tenso cai sobre nós e fico ali, com os braços
cruzados sobre o peito, me perguntando se um dia conseguiremos conviver
como pessoas normais.
Ou melhor, me pergunto se um dia vou ser capaz de olhar para ele
sem ficar pensando em coisas totalmente impróprias e insanas, como o gosto
de sua boca sobre a minha.
– Se era só isto...
– Na verdade queria conversar mais uma coisa com você. Queria que
Sofia dormisse na minha casa sábado, tudo bem?
– Sábado? Ela tem a apresentação de natal da escola domingo.
– Eu sei. Eu a levarei direto para lá, pode ser?
– Tudo bem. Eu a levo em sua casa sábado à tarde.
– Certo, combinado. Já vou então.
Ele vai embora e, como uma adolescente deslumbrada, o acompanho
pela janela até que entre no carro e parta.
Quando é que vou parar de agir como se tivesse dezessete anos?
Era vergonhoso.
– Mamãe, pode subir? – Escuto Sofia me chamar e subo para
encontrá-la sentada na cama rodeada de fotos por todos os lados.
– Que bagunça é esta?
– Estou montando meu presente para o papai.
Sento ao seu lado.
– Presente?
– É aniversário dele sábado!
Ah, então era por isto que Sofia ia ficar com os King no fim de
semana. Agora eu entendia.
– E o que está fazendo?
– A tia Ella que deu a ideia! Vou fazer um álbum com fotos minhas
desde que eu era bebê, assim ele poderá ver como eu era quando não estava
por perto. Acha que vai gostar?
Sorrio tristemente.
– Tenho certeza que sim.
– Então me ajude a escolher!
Eu olho todas aquelas fotos com nostalgia. Sofia se transformando de
um bebê fofo numa criança linda.
Enquanto a ajudo escolher, vejo que Sebastian está em muitas destas
fotos e me recordo de nossa conversa e seu pedido.
Jogo o pensamento para o fundo da minha mente, totalmente
despreparada para tomar uma decisão no momento.
– E esta também! – Ela pega uma foto minha grávida e coloca no
álbum. – Pronto. Está perfeito! Acha mesmo que ele vai gostar?
Eu beijo seus cabelos.
– Claro que vai querida.
– Mamãe?
– Sim?
– Fazia tempo que eu não via o Sebastian.
Dou de ombros.
– Ele anda ocupado.
– Estava com saudade dele.
Sorrio.
– Ele também estava com saudade de você! Arrume tudo enquanto
faço o jantar e depois desça, ok?
Dois dias passam rápido, na mesma rotina.
Vejo Matthew brevemente quando ele vem buscar Sofia e quando a
traz à tarde, não trocamos mais do que algumas palavras educadas.
Meu coração ainda acelera ridiculamente quando o vejo.
Acho que terei que me acostumar.
Na sexta à noite, Sebastian aparece de surpresa e fico feliz em vê-lo,
embora um pouco apreensiva temendo que vá me cobrar uma resposta, ele
não fala nada.
E nós quatro jantamos como antigamente, quando Matthew ainda não
havia aparecido novamente em nossas vidas. No entanto, Sofia fala nele de
cinco em cinco minutos, ou sempre tem algo para contar sobre algum King.
Depois que sobe para dormir, levo Sebastian até a porta e ele nos
convida para ir numa festa no sábado. É aniversário de sua irmã, Rita e a
família vai dar um grande churrasco.
– Sofia vai dormir na casa dos King – respondo.
– Então vá com seu pai.
– Tudo bem. Irei sim.
Ele hesita ao se despedir, como se não soubesse o que fazer e é
estranho, então me abraça e vai embora.
Quando volto para a sala Jack me encara de maneira estranha.
– O que está acontecendo entre vocês?
– Estamos dando um tempo. – Não sei se esta era a expressão certa,
só não quero preocupar meu pai.
– Como assim? Não vão casar em menos de um mês?
– O casamento está suspenso... por enquanto.
– Que conversa é esta?
– Estou confusa e disse a ele. Não sei se esse casamento vai dar certo.
– Evangeline, Evangeline... Você sempre arrumando confusão, não é?
– Não é bem assim...
– O Sebastian é apaixonado por você desde sempre e pensei que você
finalmente tinha tomado juízo e resolvido fazer a coisa certa.
– Achei que era a coisa certa, mas... Não amo o Sebastian desse
jeito...
– O amor tem muitas formas, filha.
– Não quero cometer um erro.
– Tem razão. Você primeiro se envolveu com o tal King e
engravidou.
– Pai!
– Estou falando a verdade! E ficou sozinha! Depois teve aquele seu
namorado canalha, o tal Brady...
– Não me lembre...
Detestava me lembrar do único relacionamento que tive em todos
aqueles anos, depois de Matthew.
Brady era um cara bonito que apareceu justamente quando todos me
pressionavam para deixar de ser apenas uma mãe e começar a namorar,
afinal, eu era jovem e estava desperdiçando meu tempo, todas aquelas
conversas de parentes e amigos.
Então resolvi dar uma chance. Acontece que Brady trabalhava na
livraria comigo, antes de Janine voltar para a cidade, nós namoramos alguns
meses, até eu descobrir que ele estava me roubando descaradamente. E, antes
que meu pai pudesse pôr as mãos nele, fugiu da cidade com uma tal de Jojo.
Sim, ele tinha outra namorada além de mim.
Nunca fui apaixonada por Brady, embora tenhamos nos dado bem no
tempo que ficamos juntos, foi difícil entender como pude errar tanto. E de
novo, de certa forma.
Então desisti de ter relacionamentos.
Até Sebastian me convencer que podíamos dar certo como
namorados.
E outra vez estava sendo um desastre.
– Eu me preocupo realmente com você. – Sei que você reluta em dar
uma chance de verdade a Sebastian. No entanto, se você pôde dar uma
chance a um estranho, por que não para ele?
– Porque ele é meu amigo e é importante para mim. Não quero
estragar tudo.
Jack me estuda por um momento.
– Tudo estava indo bem antes... Até Matthew King aparecer.
Desvio o olhar, ficando vermelha.
– É este o motivo? Trata-se de Matthew King? Ainda gosta dele?
– Matthew não gosta de mim – afirmo amargamente. – Esse fato o tira
do páreo.
– Vocês têm uma filha.
– Sim e ela é a única coisa que temos em comum. – Levanto-me antes
que Jack continue a insistir no assunto. – Vou dormir pai. Boa noite.

Estaciono o carro em frente a casa dos King no sábado a tarde com


certo pesar. Seria a primeira vez que passaria a noite longe de Sofia e já
estava começando a sentir sua falta.
Nós saltamos ao mesmo tempo em que vejo a porta da casa se abrir e
Emily aparecer.
– Oi, Tia Emily! – Sofia a abraça efusivamente.
Sinto um pouco de ciúme ao ver que Emily parece se dar muito bem
com minha filha. Apesar de me detestar, como comprovei vendo seu olhar de
desprezo ao me encarar em seguida.
– Olá, Emily.
Ela dá um sorriso desdenhoso.
– Olá, Evangeline.
Neste momento Ella e Matthew aparecem, Sofia os cumprimenta
entusiasmada. Eu me sinto extremamente mal de repente por sentir ciúme de
minha filha com eles, é tão ridículo. Eles são sua família.
Sofia tem outras pessoas que a adoram e irão protegê-la. Eu deveria
ficar feliz.
– Oi, Evangeline – Ella me dá dois beijos estalados. – Por que não
fica com a gente?
– Já tenho um compromisso. – Digo, sem graça, apesar do jeito
simpático de Ella, tenho certeza que convidou por educação e que Matthew e
Emily não gostariam nada de me ter por perto.
– Minha mãe vai numa festa com o Sebastian. – Sofia responde e
sinto o olhar de Matthew me perfurando.
– Divirta-se! – Ele diz acidamente retirando a mochila de Sofia de
minhas mãos.
– Eu irei – respondo no mesmo tom e abraço Sofia.
– Comporte-se, hein?
– Pode deixar!
Encaro Matthew mais uma vez antes de ir.
– Qualquer coisa me ligue, ok?
– Claro.
Entro no carro deixando Sofia com a família King.
Meu coração está pesado, tento esquecer meus problemas com eles e
pensar que Sofia está feliz. E é o que interessa.
Chego à festa ao anoitecer e me sinto bem com aquelas pessoas que
conheço a vida inteira. Realmente me divirto com Sebastian, como quando
éramos somente amigos e não havia toda aquela confusão sentimental no
meio.
Agora tudo é diferente. Sou mãe e Sebastian está apaixonado por
mim, querendo muito mais do que apenas amizade.
Quando nos sentamos, lado a lado sobre o balanço em seu quintal
como fizemos tantas vezes quando crianças, me pergunto onde tudo isto vai
parar.
– Sei que disse que não ia te pressionar Evangeline, mas... não paro de
pensar em nós.
Prendo a respiração. Lá estava. Sebastian queria uma resposta.
E o que eu ia fazer?
Antes que eu consiga pensar no que responder, meu celular toca.
Eu o pego e fico preocupada ao ver que é o número de Matthew.
– Matthew? Aconteceu alguma coisa?
– Não, fique calma. Sofia está com uma indisposição.
Eu me levanto automaticamente.
– Estou indo para aí.
– Só quero saber se...
Desligo antes de ouvir o que ele tem a dizer.
Se minha filha está doente, precisa de mim.
– Tenho que ir.
– O que foi? – Sebastian pergunta preocupado, enquanto me segue.
– Sofia está doente. Vou até a casa dos King.
– Quer que eu vá junto?
– Não, não é necessário. Por favor, procure meu pai e avise onde
estou indo. – Peço, ao entrar no carro.
– Ok. Me ligue para dizer se está tudo bem com ela.
– Eu ligo!
Chego a casa dos King e Ella abre a porta para mim.
– Uau, que rápido!
– Onde ela está?
– Na sala com todo mundo.
– Ela está bem?
– Está sim.
Só respiro aliviada ao ver Sofia sentada no colo de Matthew
conversando animadamente com ele.
– Mamãe, o que está fazendo aqui?
– Achei que estivesse doente! – Olho acusatoriamente para Matthew.
– Você não me deixou falar. Eu disse que ela estava se sentindo mal,
era uma dor de ouvido.
– Podia ter dito! Quase morri de preocupação. – Toco o rosto de
Sofia. – Ainda está doendo?
– Está passando. O vovô Benjamin me deu um remédio.
– Sim, fique tranquila. Só pedi para Matthew te ligar para saber se
Sofia era alérgica ao remédio que tínhamos em casa.
Respiro aliviada, ao saber que está tudo bem, também me sinto meio
idiota.
– Está tudo bem. Realmente não precisava ter vindo.
– Claro, não precisava – digo irônica.
Todos os King estão ali. Em suas roupas caras e seus drinks chiques.
E me sinto deslocada.
– Já que não foi nada, vou embora.
– Não, fique mamãe. – Sofia pula para o meu colo, enfiando o rosto
em meu pescoço. – Por favor!
– Não querida, preciso ir. – Digo relutante. Era difícil me sentir bem
indo embora, quando ela pedia para eu ficar ainda mais quando ela sentia dor.
– Fique, por favor, – Evelyn pede. – Nós já jantamos, se quiser,
podemos...
– Obrigada já comi também.
– Evangeline estava numa festa com o... – Emily diz com um risinho
de desdém. – Como é mesmo o nome de seu noivo? Sebastian?
Tenho vontade de corrigi-la, opto por me calar. Não devo nenhuma
satisfação a Emily King.
– Então você vai ficar? – Benjamin insiste. – Acho que Sofia se
sentiria melhor com sua presença.
– Sim, fique mamãe! Nós vamos dar o presente do papai agora!
Sorrio para ela.
– Tudo bem, vou ficar bebê.
Ela me abraça feliz e pula do meu colo.
– Vou buscar meu presente! – Ela corre e Benjamin diz que vai me
servir uma bebida.
Tento não me sentir tão deslocada o que é bem difícil.
– Arruinei sua noite? – Matthew pergunta de repente e o fuzilo com o
olhar.
– Nunca estragará se for para cuidar da minha filha.
– Você não precisava ter vindo.
– Claro, sei que não me quer aqui.
– Não se trata disto. – Ele passa a mão pelos cabelos. – Você precisa
confiar em mim. Sei cuidar dela.
– Você disse que ela estava doente.
– Sofia estava totalmente segura.
De repente meu celular toca e vejo o número de Sebastian.
– Desculpe-me, preciso atender.
Eu me afasto para um canto.
– Oi.
– E aí? Como está Sofia?
– Está tudo bem. Era só uma dor de ouvido ela já foi medicada.
– Você vai voltar?
– Não, vou ficar aqui um pouco e ver se ela continua bem; avise meu
pai.
– Pode deixar.
Desligo e vejo Matthew me encarando de onde está com um olhar
gelado. Respiro fundo e coloco um sorriso no rosto quando Sofia volta.
– O meu presente primeiro. – Ela diz empolgada e Matthew retribui
sua animação, abrindo o presente que ela preparou para ele.
E ele realmente parece feliz quando folheia o álbum.
– Você era mesmo linda, querida. – Ele diz e Sofia fica toda derretida.
– Você gostou realmente do meu presente?
– Com certeza será o meu preferido.
– Até melhor que o meu? – Ella brinca fazendo Sofia rir.
– Veja esta foto, estou dentro da barriga da minha mãe!
Fico vermelha ao perceber que Matthew está vendo minha foto
grávida. Ele olha para mim e meu coração dispara de forma alarmante.
– Você ficou linda grávida.
Mordo os lábios, meu rosto queimando e não é somente vergonha por
toda atenção estar voltada para mim ou pelo fato de o álbum ser passado
entre os King que também estão me vendo.
É simplesmente porque o olhar dele parece me tocar de várias
maneiras.
E isto me desconcerta.
Os outros King dão seus presentes, Sofia parece muito feliz quando
Ella coloca uma máquina fotográfica em sua mão e ela se diverte tirando
fotos de todo mundo.
– Venha mamãe! Quero tirar uma foto sua e do papai para pôr no meu
quarto!
Eu vou até Matthew relutantemente estremecendo quando sinto suas
mãos em minhas costas.
Elas parecem quentes mesmo através das minhas roupas.
Gostaria de estar sem roupa.
O pensamento surge inesperado e inoportuno me fazendo corar.
Matthew me encara e engulo em seco.
– Tudo bem?
– Sim...
– Seu rosto está vermelho.
– Eu...
– Sempre gostei do seu rubor.
E é o bastante para me fazer corar por inteiro. Em todos os lugares
escondidos do meu corpo.
Me afasto antes que faça algo idiota, como pedir para Matthew me
beijar ou algo do tipo.
Sofia boceja.
– Acho que é hora de ir para cama – Matthew diz sorrindo para ela,
que se aninha em seus braços.
– Não estou com sono.
– Está sim – digo firmemente.
– Você vai ficar, mamãe? – Ela pergunta sonolenta e me preparo para
negar, Ella se intromete.
– Fique! Pode dormir no quarto de Sofia com ela.
– Quarto de Sofia?
– Oh, você ainda não viu?
Ella me puxa pelo braço até o andar de cima e fico abismada quando
abre a porta de um quarto todo decorado em tons pastéis.
– Não é lindo? Eu mesma decorei.
– Fez isto para Sofia?
– Claro, ela adorou.
– Sim, eu amei – Sofia diz e vejo Matthew entrando com ela no colo,
colocando-a na cama.
– É muito bonito.
– E então, vai ficar? – Ella insiste.
– Eu não...
– Por favor, mamãe, durma aqui comigo. – Sinto alguma insegurança
em Sofia, o que me faz desconfiar de que a sua dor de ouvido era mais manha
para me fazer ficar com ela.
Ela parecia bem à vontade com os King, porém ainda era uma criança
dormindo pela primeira vez fora de casa.
E não tenho coragem de dizer não.
– Tudo bem, eu fico.
Ella bate palmas, animada e tento não olhar para Matthew.
– Ótimo! Vou buscar um pijama meu para te emprestar!
Ela sai do quarto e Matthew se aproxima de Sofia.
– Boa noite querida.
Ele a beija e Sofia boceja novamente.
– Boa noite, papai.
Matthew me fita e sinto um arrepio. Há algo íntimo em dormir sob o
mesmo teto que ele.
Algo de íntimo e proibido, que me faz sentir uma excitação
instantânea, que tento dominar.
– Boa noite Evangeline.
– Boa noite Matthew.
Ele se afasta, fechando a porta atrás de si.
– Que bom que vai ficar mamãe – Sofia diz sonolenta e me aproximo
da cama para ajudá-la a trocar de roupa.
Ella volta e me traz não um pijama e sim uma camisola.
– Acho que ficará ótima em você! – Diz, desejando boa noite e
saindo.
Sofia está dormindo antes mesmo que eu termine de trocá-la e a
cubro, deitando ao seu lado.
É difícil pegar no sono.
As horas passam e escuto a respiração compassada de Sofia sem
conseguir relaxar.
Matthew está em algum lugar daquela casa. É só o que meu
subconsciente grita. O que é totalmente ridículo.
Estou aqui por Sofia. Somente por ela.

***
Matthew

– Não consegue dormir?


Levanto o olhar do álbum que folheava e encontro Emily me
encarando.
Todos já haviam se deitado, porém eu não conseguiria dormir. Minha
mente estava cheia de pensamentos dispersos, insistentes. Todos envolvendo
Evangeline Evans. Era como voltar ao passado e sentir tudo novamente.
Desde que nos beijamos no carro fiz tudo para evitá-la. De que
adiantava não vê-la, não falar com ela, se não conseguia parar de pensar nela
e em como gostaria que o final daquela noite tivesse sido diferente.
Ela dormia tranquilamente em algum lugar daquela casa. E só
conseguia pensar que gostaria de estar com ela. Dentro dela.
Estava perdendo a batalha contra Evangeline Evans.
Imagino o que Emily diria se pudesse ouvir meus pensamentos e rio.
– Estou sem sono... e você?
Ela se aproxima.
– Também... Posso ver? – Ela senta pegando o álbum. – Sofia era
realmente um bebê lindo – diz com um sorriso doce. O que é algo quase
inédito em se tratando dela.
– Ela te conquistou, não é?
Emily dá de ombros.
– Não sou um monstro sem sentimentos, Matthew. Você sabe porque
eu tinha receios com esta menina.
– Você ainda acha que ela não é minha filha?
Ela me encara.
– Agora que a conheço, que convivi com ela... Ficaria surpresa se não
fosse.
– Então não acha que Evangeline está me enganando?
– O que quer que eu diga, Matthew? Que ela se tornou uma santa e
todos os seus erros com você foram perdoados porque tem uma filha? É o
que você pensa?
Desvio o olhar e passo os dedos pelos cabelos. Sinto-me confuso.
Perdido.
A verdade é que eu não a conhecia. Sabia apenas o que eu sentia e
acreditava que ela sentia o mesmo. Talvez eu tenha projetado uma perfeição
que não existia em ninguém.
– Não sei o que pensar... passei dez anos odiando o que ela fez. Me
sentindo um idiota por ter acreditado nela e agora...
– Agora vocês têm uma filha e terão que conviver eternamente. –
Emily diz com suavidade, então segura meu rosto me forçando a encará-la. –
E não é só isto, não é? Você tem ficado acordado, perambulando pela casa a
noite ou tocando aquela maldita música no piano... – ela faz uma pausa e sei
o que vai dizer. – Você ainda sente algo por ela. E nem tente negar, sabe que
o conheço muito bem. – Ela sorri, é um sorriso vencido. – Eu queria muito
que fosse diferente. Acho que de alguma maneira pensei que voltar a Camden
fosse um teste. Que você iria deixar o ressentimento de lado e seguir em
frente. Que você a veria e perceberia que ela nunca valeu a pena. E poderia
finalmente se apaixonar, arranjar uma namorada de verdade e não ficar
perdendo tempo com relacionamentos vazios que não levam a nada.
Infelizmente você continua obcecado por Evangeline Evans.
Não nego suas palavras porque são absolutamente verdadeiras.
– Também não queria sentir nada – confesso. – É como lutar comigo
mesmo. Eu podia me manter longe dela. Estava pronto para isto, porém existe
Sofia. É muito difícil... resistir.
– E você acha que seria capaz de perdoar? Esquecer o que ela fez?
– Eu não sei.
– Matthew, você sabe o que eu penso. Sabe que não consigo perdoá-
la, foi algo horrível. Acreditei nela, tanto quanto você e no fim ela se mostrou
uma oportunista. E tenho medo que passe por todo aquele sofrimento
novamente. Porém é a sua vida e é você que deve decidir o que fazer dela.
Talvez só precise... não resistir.
Eu a encaro sem entender.
– Está querendo dizer que devo transar com ela?
– Algumas coisas precisam ser vividas. Talvez só assim possam ser
deixadas para trás.
Ela se levanta e beija meus cabelos.
– Vá dormir.
Ela se afasta e olho outra vez as fotos no álbum, parando na de
Evangeline grávida.
Estava tão linda. Daria tudo para tê-la visto assim.
Fecho o álbum e me levanto, disposto a ir dormir, em vez disto acabo
indo para o piano. Penso nela. Na primeira noite em que a beijei exatamente
aqui. E também em como gostaria de tê-la outra vez ao alcance das minhas
mãos. Acho que estou tendo uma alucinação quando levanto o olhar e a vejo
olhando para mim.
Capítulo 18

Matthew

– Desculpe-me. – Ela pede mordendo os lábios nervosamente. –


Pensei ter ouvido uma música...
– Eu que devo pedir desculpas se a acordei.
– Não me acordou, estava sem sono.
– E Sofia?
– Dormindo – responde com um pequeno sorriso e a acompanho.
De repente o silêncio parece perfeito.
O que não é perfeito com Evangeline Evans?
Só quero arranjar uma maneira para mantê-la por perto.
– Venha – peço suavemente e ela hesita. – Disse que está sem sono,
também estou.
Ela finalmente se aproxima lentamente sinto meu corpo respondendo
a sua proximidade hesitante. Parece mais linda do que nunca, com os cabelos
castanhos soltos sobre os ombros pálidos usando algo de renda que tenho
certeza ser de minha irmã Ella. Não importa. Está excitantemente perfeito
nela.
Senta do meu lado e seu perfume invade minhas narinas. Começo a
tocar para impedir que meus dedos migrem para sua pele branca.
Acho que ela percebe meu olhar insistente em suas pernas nuas, pois
cora deliciosamente. A vontade de tocá-la se junta à vontade de beijá-la. E
não necessariamente na boca. Meus lábios têm planos muito mais elaborados
para ela nesse momento.
– Sua irmã... eu não deveria estar usando isto. – Ela parece
verdadeiramente encabulada.
Sinto vontade de abraçá-la e dizer que está linda. Com certeza ela
sairia correndo e é o que menos quero.
– Então foi isto que Ella te emprestou? – Brinco e ela dá de ombros.
– Inapropriado.
– Perfeito – rebato e ela arfa.
Seu hálito atinge meu rosto.
– Acho que não deveria me sentir tão sem graça, não é? – Ela desvia o
olhar. – Já me viu com menos.
– Nunca te vi nua.
Ela volta a me encarar. E tenho certeza que nossos pensamentos estão
no mesmo lugar agora.
Dez anos atrás.
– Não o suficiente – digo, deixando de lutar contra a vontade de
deslizar meu olhar faminto por ela inteira.
E de novo o silêncio parece cheio de significados, de desejos
inconfessáveis.
De repente ela se levanta e receio ter ido longe demais.
Não quero que se afaste de mim ainda.
– Evangeline, eu... me desculpe, acho que esta conversa é meio
inapropriada, não é? Não precisa ir embora...
– Não estou indo embora. Acho que só agora percebi que não te dei
um presente de aniversário.
E, antes que eu entenda aonde ela quer chegar, vejo seus dedos
deslizando a camisola para baixo.
E então está nua diante de mim.
E deixo meu olhar se perder em sua brancura perfeita.
Eu me levanto, obedecendo a um desejo irresistível de estar perto
dela, me fundir com ela. Em todos os sentidos. Meu corpo dói de excitação.
– Você é tão linda... Quero tocar você.
– Sim.
– Não aqui. Quando puser minhas mãos em você, não vou conseguir
parar.
– Não vou pedir que pare.
Sua resposta me excita além do limite então pego a camisola do chão
colocando-a nela novamente e seguro suas mãos.
– Vou levá-la para meu quarto e fazer amor com você. É o que você
quer?
– Sim.
É única resposta que preciso ouvir.
Evangeline

Tive todo o percurso até seu quarto para desistir.


Sei que poderia mudar de ideia. Poderia dar um fim àquela loucura
que me acometia toda vez que ficava sozinha com ele.
Quem disse que eu queria? Estava cansada de lutar contra meus
desejos. Estava vivendo num inferno desde que Matthew voltou para
Camden. E simplesmente estava desistindo de ir contra meus sentimentos.
A parte minha que sabia que podia se arrepender profundamente
amanhã, não era suficientemente forte para me fazer desistir de entrar naquele
quarto com ele.
E já não sou capaz de pensar quando escuto a porta fechar, Matthew
se aproximar e finalmente me tocar. Era tudo o que eu queria desde que me
levantei do piano e tirei minha roupa. Em segundos a camisola desapareceu
novamente, fecho os olhos, derretendo lentamente sentindo seus dedos
deslizarem delicadamente por meus ombros, passando por meus seios, que
despertam instantaneamente intumescendo, ansiando por um toque mais
profundo, ele continua a descer, rodeando minha cintura e me levando para
mais perto dele.
Há algo de muito excitante em estar nua enquanto ele continua todo
vestido e me acariciando daquele jeito. Apoio-me nele, meus dedos
enganchando em sua camisa. Fico na ponta dos pés para alcançar sua boca.
Quando alcanço o beijo quase desesperadamente. Preciso muito sentir seu
gosto em minha língua e é o que faço.
Escuto Matthew gemer, suas mãos me segurando mais forte, me
apertando e gemo também, me perdendo um pouco mais naquele beijo, meus
dedos puxando seus cabelos, enquanto ele enche minha boca de beijos
molhados.
Estou respirando por arquejos quando os beijos migram para meu
rosto, meu pescoço, meus ombros nus. Suas mãos em meus quadris, me
apertando contra ele me fazem sentir sua ereção e me contorço com a
necessidade de senti-lo dentro de mim.
– Preciso estar dentro de você. – Sua voz rouca em meu ouvido faz
eco com meus pensamentos e estou quase delirando.
– Sim... Sim... Tire a roupa. – Peço, me deitando sobre sua cama e
esperando.
Deus do céu, ele é perfeito como uma estátua grega é só o que
consigo pensar quando finalmente fica nu e eu o puxo para mim, adorando
sentir o roçar de nossas peles nuas em atrito, suas mãos rodeando meus seios,
apertando meus mamilos, meu corpo se arrepiando e se preparando para ele
num pulsar úmido de luxúria. E a tortura só aumenta mais com seus lábios
substituindo sua mão em meus seios, o toque quente e molhado de sua língua
me fazendo gemer alto com pequenos tremores de antecipação. Grito quando
o sinto tocar entre minhas pernas.
– Por favor... – imploro, deslizando meus dedos ansiosos até sua
ereção e Matthew geme de prazer, então abre os olhos parecendo hesitante.
– Droga! Eu não tenho...
– Está tudo bem, eu tomo pílula. Juro.
Ele parece aliviado e então vem. Dentro de mim. E é mais perfeito
ainda agora. Nossos corpos parecem se encaixar com perfeição, mexo meus
quadris para senti-lo melhor, depois de tanto tempo. Ouço-o gemer
longamente, enquanto impulsiona dentro de mim, num ritmo contínuo. A
sensação é incandescente. E não demora para os primeiros tremores de um
orgasmo delicioso me fazerem gritar e fincar minhas unhas em seus ombros.
Matthew estremece junto comigo, gozando também, o som de seus gemidos
em meu ouvido é maravilhoso.
Até restar apenas o silêncio.
Nenhum de nós diz nada.
Sei que qualquer palavra pode arruinar o momento. E não quero.
Quero manter a sensação de perfeição o máximo de tempo possível.
E, antes de adormecer, ainda sentindo seus braços a minha volta e o
calor do seu corpo aquecendo o meu, desejo que seja eterno.
Acordo no dia seguinte com uma sensação de irrealidade.
Matthew está dormindo do meu lado. Por um momento fico ali,
recordando tudo. Foi tão perfeito como da primeira vez. Ou até melhor.
Matthew disse que não esqueceria o que aconteceu no passado. E mesmo
assim dormimos juntos.
E agora? Eu tinha medo de descobrir.
E mais medo ainda de acreditar que algo havia mudado. Que não foi
apenas um momento. Eu já havia sofrido demais por causa de Matthew King
para acreditar que agora seria diferente.
Não importa que tenha sido minha culpa, com uma atitude
desesperada e impensada destruí o que ele sentia por mim. Agora tínhamos
ficado juntos outra vez. O que poderia significar? Que ainda havia desejo?
Ou era algo mais?
Detenho os rumos perigosos dos meus pensamentos e decido sair dali.
Primeiro porque não estou preparada para encarar Matthew e a
conversa que inevitavelmente precisaremos ter.
E segundo que preciso voltar para o quarto de Sofia antes que ela
acorde.
Levanto-me tentando não fazer barulho, visto a camisola de Ella,
abrindo a porta e saindo para o corredor.
Para me deparar com os olhos frios de Emily me encarando.
Capítulo 19

Evangeline

Por um momento nenhuma de nós parece capaz de falar até que ela
recupera a compostura.
– Bom dia – diz com a voz inflexível e se afasta.
Volto a respirar tentando entender o que foi aquilo.
Era de se esperar um escândalo e ofensas da parte de Emily quando
me flagrou saindo do quarto de Matthew, surpreendentemente ela não falou
nada.
Embora ache estranho sinto-me aliviada.
Volto para o quarto e Sofia está acordando quando me aproximo da
cama.
– Oi, mamãe, já é de manhã?
– Sim, querida.
Ela se senta me olhando com os olhos sonolentos.
– Que camisola bonita.
– É da Ella.
– A tia Ella tem as roupas mais bonitas do mundo.
– E então, vamos levantar?
– Sim!
Eu a ajudo a se arrumar e coloco minhas próprias roupas. Meus
cabelos estão um desastre então os prendo em um rabo de cavalo.
Estou meio apreensiva de encarar os King enquanto desço as escadas
com Sofia. Sinceramente, depois do que aconteceu com Matthew, não sei
como encará-lo. Talvez eu devesse deixar Sofia e ir embora o mais rápido
possível e já estou pensando numa boa desculpa quando chego à sala de café
dos King.
– Bom dia, Evangeline. – Evelyn sorri para mim enquanto Sofia corre
para cumprimentar todos que estão à mesa.
Para meu alívio Matthew não está lá.
– Bom dia.
– Dormiu bem Evangeline? – Ella pergunta inocentemente, coro me
lembrando do quão bem dormi.
Sinto o olhar de Emily me perfurando, evito encará-la.
– Sente-se e tome café conosco – Evelyn pede gentilmente.
Sofia já está sentada conversando animadamente com Ella e seguro
firme minha bolsa.
– Na verdade preciso ir embora.
– Já? Fique ao menos para tomar café. – Benjamin puxa uma cadeira
para mim, tornando impossível fugir sem parecer mal-educada.
Bem, se Matthew aparecesse, não ia falar nada na frente de todos, não
é? Então me sento à mesa.
Estou sentada defronte a Emily que me fita com um olhar que não
consigo decifrar.
Ela se levanta de repente.
– Vou acordar o Matthew. Ele já dormiu demais.
Sofia ri.
– Isto, tia Emily! Quero tomar café com ele.
Ela sorri docemente para Sofia, ainda é muito estranho ver estas
demonstrações de carinho de Emily com ela.
Tomo meu café rapidamente e me levanto.
– Realmente não posso ficar mais. Tenho algumas coisas para fazer
antes da apresentação de Sofia na escola.
– Que pena – Evelyn diz.
– Obrigada pelo café. – Eu me aproximo e beijo Sofia. – Até mais
tarde, querida.
Estou passando pela sala quando vejo Emily e Matthew no corredor
entretidos numa conversa.
– Então seguiu meus conselhos? – Ela pergunta e paro ao ouvi-la.
– Do que está falando?
Emily ri.
– Eu a vi saindo do seu quarto hoje cedo. Você é rápido.
– Não é da sua conta.
– Não, tudo bem. Não estou com raiva, Matthew, nem vou me
intrometer, que coisa! Só estou dizendo que acho que agiu certo ao seguir
meu conselho. Estou curiosa para ver o desenrolar das coisas...
Não consigo ouvir mais e me afasto quase correndo, só parando
quando chego ao carro e dou partida me afastando da casa dos King.
Como assim Matthew “seguiu os conselhos de Emily”?
Sinto meu estômago embrulhando ao pensar nos dois falando sobre
mim. E me sinto pior ainda ao imaginar que o fato de Matthew transar
comigo tem a ver com algum conselho de Emily. Embora ache muito surreal
alguém que me odeia aconselhar Matthew a ficar comigo.
Mesmo assim, fico com aquela estranha conversa na cabeça, enquanto
o dia passa. Estou meio nervosa quando entro na escola de Sofia e a encontro
com Matthew no meio das outras crianças e seus pais.
– Oi, mamãe!
– Oi, querida – sorrio abraçando-a e encaro Matthew.
Ele está sério, quase frio e me pergunto se vai realmente haver alguma
“conversa” ou se vai continuar me ignorando como na última semana, como
se nada estivesse acontecendo.
– Oi, Eve.
Eu me viro e vejo Sebastian e entendo a carranca de Matthew.
Ele ainda não sabe. Ninguém sabe que não vai mais haver casamento.
Ou melhor, que suspendi tudo com Sebastian para pensar melhor. Com
certeza deve estar tendo os piores pensamentos a meu respeito. E a culpa é
minha.
– Oi.
– Quando chegamos o Sebastian já estava aqui – Sofia explica.
– Não perderia sua apresentação por nada – Sebastian sorri.
– Sofia, vamos colocar sua roupa? – Eu a puxo pelo corredor até atrás
do palco, onde as crianças se arrumam.
– Mamãe posso te fazer uma pergunta? – Ela diz, enquanto a ajudo a
se arrumar.
– Que pergunta?
– Você vai mesmo se casar com o Sebastian?
– Por que está perguntando?
– As coisas não parecem mais como antes. Ele quase não vai mais lá
em casa e nem beija você.
Respiro fundo decidindo ser sincera com ela. Já devia ter sido.
– Não, não vou mais.
– Por que não? Não gosta mais dele?
– Claro que gosto, mas... as coisas entre os adultos nunca são fáceis
de entender, querida. Não se preocupe.
– Posso te fazer outra pergunta?
– Está bem curiosa hoje, hein? Pergunte.
– Você gosta do meu pai?
– Bem, eu... – fico perdida sem saber o que responder.
– Porque, se você não vai mais casar com o Sebastian, podia casar
com o meu pai!
– Sofia, que conversa é esta? Isto é... – já ia falar “absurdo”, porém
não sei até onde posso dizer estas coisas sem deixá-la magoada.
– Eu não tinha pensado nisto porque você ia casar com o Sebastian,
agora que não vai mais... Seria muito legal se casasse com meu pai!
– Sofia, querida... As coisas não são tão simples. Você sabe que seu
pai e eu.... Nós gostamos de você de qualquer maneira, não precisamos ficar
juntos para amá-la.
– Mas... ontem à noite... acordei de madrugada e você não estava no
quarto. Pensei que estivesse dormindo com meu pai, como os pais fazem. –
Fico vermelha de novo sem saber o que responder, Sofia continua – então,
podia ser sempre assim não podia? Nós podemos ser uma família, eu ia
gostar tanto!
Acaricio seus cabelos, pensando no que dizer. Ela era só uma criança
não entendia todos os problemas relacionados aos adultos a sua volta.
– Meu amor sei que gostaria que as coisas fossem diferentes. Como já
disse, eu e Matthew somos seus pais o fato de sermos casados ou não, não
muda nada.
– Mas... – ela suspira, vencida. – Tudo bem. Eu entendo de verdade,
mamãe. Só tive a ideia... Não fique zangada comigo.
– Não estou. Agora vá ficar com seus colegas, sua professora está
chamando.
Beijo seu rosto e me afasto.
Ao chegar ao auditório, Matthew e Sebastian estão sentados lado a
lado com uma cadeira vazia no meio. Me aproximo nervosamente, sentando
entre eles.
– Tudo bem? – Sebastian pergunta e apenas aceno positivamente. –
Você parece tensa.
Eu lhe lanço um olhar irônico e ele ri.
– Ah claro, entendo. Eu não estou fazendo nada. Quer que eu vá
embora?
– Não!
Sebastian gostava de Sofia e não seria justo mandá-lo embora por
causa de Matthew.
A apresentação começa e as crianças se apresentam no coral. Quando
Sofia aparece me surpreendo ao vê-la tocando piano.
Olho para Matthew.
– Você a ensinou em tão pouco tempo?
Ele sorri, orgulhoso.
– Ela aprende rápido, esta música é muito fácil, além disso, treinou
bastante durante a semana.
– Ela não me contou nada.
– Queria que fosse uma surpresa.
Eu a vejo tocar e meu coração quase explode de tanto amor.
– Ela está perfeita! – Aplaudo orgulhosa quando termina e Matthew
faz o mesmo.
– Sim, linda.
Nós sorrimos um para o outro compartilhando o mesmo amor.
Não importam todos os problemas existentes entre nós, Sofia sempre
irá nos unir. E, pela primeira vez sinto-me realmente bem por ele estar ali
comigo, por compartilharmos Sofia. E percebo que, de alguma maneira foi o
que sempre quis, durante todos os anos que estive sozinha com ela.
A apresentação termina e olho para Sebastian que parece muito triste.
Sei que está se sentido deixado de lado. E me sinto meio culpada, então
seguro sua mão e lhe dou um sorriso.
– Que bom que veio. Sofia ficou feliz.
– Vou buscar Sofia – Matthew resmunga se afastando e Sebastian me
encara com as sobrancelhas erguidas.
– Qual o problema dele?
– O mesmo que o seu.
– Ciúme? De você ou de Sofia?
– Sebastian...
– Tudo bem, tudo bem, disse que não ia mais implicar com o King.
Ele poderia parar de encrencar comigo também! – De repente ele aperta
minha mão. – O que preciso saber Eve, é se ainda tenho algum direito de
sentir ciúme de você. Se pensou em nós.
Mordo os lábios com força. Sei que devo a ele uma resposta.
E a noite passada só ajudou a piorar tudo ainda mais.
Poderia dizer que, mais do que nunca, sei que não posso ficar com
Sebastian. Para quê? Matthew ainda me trata como lixo e tenho a impressão
que vai ser assim para sempre.
E dói demais.
– Ainda não sei, ok?
– Tudo bem... Será que posso levar Sofia para passear um dia destes?
Sinto falta dela.
– Claro que sim. Por que não hoje?
– Seria ótimo.
Sofia se aproxima e abraça Sebastian.
– Você estava linda, Sofia.
– Estava mesmo? Me viu tocando piano? Meu pai me ensinou!
– Vi sim, estava perfeita.
– Evangeline posso falar com você um momento? – Matthew
pergunta e me afasto alguns passos com ele.
– Meu pai ligou. Disse que saiu o resultado do teste.
– Ah claro, o teste – digo irônica. – E aí?
– Ele não abriu, está nos esperando.
– Tudo bem.
Volto para junto de Sofia e Sebastian.
– Sofia, Sebastian vai te levar para dar uma volta, o que acha?
Ela sorri animada.
– Que legal!
Matthew não parece gostar muito, porém não fala nada.
– Eu a levo para casa antes de anoitecer, tudo bem? – Sebastian diz e
Sofia se afasta de mãos dadas com ele.
Matthew me encara nervoso.
– Não devia...
– Não devia o quê? Sebastian é nosso amigo e sente falta dela. E ela o
adora. Nem pense em proibir nada!
– Como poderia proibir, ele é seu noivo, não é?
Respiro fundo.
– Matthew, quanto a isto, preciso te dizer uma coisa...
– Vai dizer que a noite passada foi um erro, que não queria trair seu
noivo? Quero te dizer algo antes. Eu queria te levar para a cama. Queria saber
se assim me livraria da obsessão que tenho por você.
De repente algo me passa pela cabeça.
– Emily sugeriu que fizesse isto? Que transasse comigo para se livrar
de mim depois?
– Não tem nada a ver com Emily.
– Mas foi ela, não foi? Ela me viu saindo do seu quarto e não falou
nada. Depois vi vocês cochichando.
– Antes de fugir sem me encarar?
– Não me sinto culpada agora que sei porque transou comigo. Eu me
sinto enojada!
Saio caminhando e entro no carro batendo a porta.
Matthew está do lado da janela enquanto dou partida.
– Vá para minha casa. Precisamos resolver esta questão do DNA.
– Eu não preciso! Já sei a resposta desta porcaria de teste que insistiu
em fazer.
– Também sei. Mesmo assim, precisamos encerrar o assunto.
– Claro, para sua irmã louca parar de me acusar pelo menos disto!
Tudo bem. Eu vou.
Tento controlar a minha raiva quando chego aos King.
Matthew já está lá, afinal, seu carro é muito mais rápido que o meu e
me recebe na porta. Nós entramos sem falar nada e todos estão reunidos na
sala de estar. Benjamin entrega o envelope a Matthew.
Antes que ele o abra, meu celular toca e vejo que é Sebastian.
– Um minuto, preciso atender... – Explico, colocando o aparelho no
ouvido – Sebastian, tudo bem?
– Eve, não fique nervosa. Eu e Sofia sofremos um acidente...
– Acidente? – Sinto meus joelhos trêmulos.
Antes que Sebastian responda, Matthew arranca o telefone das minhas
mãos.
– O que aconteceu com Sofia?
Mal posso respirar.
– Certo, estamos indo para aí – ele desliga.
– O que aconteceu? – Pergunto apavorada.
– Eles caíram da moto.
– Oh meu Deus.
– Sofia teve apenas alguns arranhões, ele disse que ela está bem, só
que eu preciso ver com meus próprios olhos. – Ele pega a chave do carro e eu
o sigo porta afora.
Nem passa pela minha cabeça ir em meu próprio carro então
seguimos em silêncio até o hospital.
Só volto a respirar direito quando vejo minha filha.
– Sofia! – Eu a toco tentando me certificar de que está bem. Ela está
sentada na enfermaria com um curativo no cotovelo.
– Estou bem, mamãe!
– Tem certeza?
– O que você estava pensando? – Escuto a voz furiosa de Matthew na
porta do quarto e me viro. Sebastian está em frente a ele no corredor. – Como
pôde colocar uma criança em perigo deste jeito? Minha filha está ferida por
sua culpa!
– Eu sinto muito, foi um acidente. – Sebastian parece péssimo,
enquanto Matthew continua furioso.
– Não me interessa!
– Eles estão brigando? – Sofia olha assustada e eu me levanto.
– Ei vocês parem. Agora! – Peço firmemente.
– Este imbecil nunca mais vai chegar perto...
– Matthew! Está assustando Sofia, por favor.
Ele respira fundo fitando Sofia que está assistindo tudo com os olhos
arregalados.
– Sim, me desculpe – Matthew entra no quarto para falar com ela.
– Sebastian, você está bem?
– Sim, apenas alguns arranhões. Sinto muito. Eu não queria machucar
Sofia. Sabe que já andamos de moto antes. Um alce atravessou a estrada e
tive que desviar então a moto caiu.
– Tudo bem, o importante é que ninguém se machucou gravemente.
– Sim, o médico falou que ela está bem. Só o machucado no cotovelo.
– Ainda bem – olho para dentro quarto e Sofia está no colo de
Matthew, que encara Sebastian com ódio extremo.
– Acho melhor você ir embora.
– Ok, eu vou. Desta vez Matthew tem razão de estar com raiva. No
lugar dele eu faria o mesmo.
Sebastian se afasta e eu entro no quarto.
O médico aparece dizendo que Sofia está bem e que foi um ferimento
leve.
– Então posso ir embora? – Pergunta sonolenta.
Matthew a leva no colo até o carro.
Seguimos em silêncio para casa e percebo que estamos indo para casa
dos King e não para a minha.
– Por que estamos indo para sua casa?
Ele não responde e decido não discutir na presença de Sofia.
Quando chegamos ele a retira do carro ainda sonolenta levando-a para
dentro.
– Ela está bem? – Emily pergunta e Matthew diz que sim.
– Sim, vou colocá-la no quarto.
Eu o sigo até o quarto e ele coloca Sofia na cama.
– Estou com sono – ela murmura, bocejando. – Vou dormir aqui de
novo?
– Não, querida – começo a responder, então Matthew responde por
mim.
– Vai sim, sua mãe vai ajudá-la a trocar de roupa e você poderá
dormir, tudo bem?
Eu o encaro irritada.
– Nós vamos embora...
– Não – ele fala tão friamente que me assusta. – Vou esperá-la lá
embaixo. Precisamos conversar.
Ele beija Sofia e sai do quarto.
Eu a ajudo a colocar o pijama e ela adormece em seguida.
Desço e encontro somente Matthew.
– Cadê todo mundo?
– Pedi para nos deixarem sozinhos.
Ele me entrega o envelope do teste de DNA aberto.
Vejo o resultado: positivo.
– Pelo menos agora sua família não tem mais dúvida.
– Eu quero a guarda de Sofia.
– O quê? – Sinto como se tivesse levado um soco no estômago. – Por
quê? Você falou que não faria isto!
– Sei o que falei. Porém não quero mais minha filha perto de
Sebastian Blake.
– Meu Deus, Matthew, é ridículo! O que aconteceu hoje foi um
acidente! Sebastian não é perigoso para Sofia.
– Não interessa. Simplesmente não quero mais. Eu sou o pai dela e
tenho este direito. Não quero dividi-la com outro homem. Já basta ter ficado
10 anos sem saber de sua existência.
– Não pode fazer isto! – Eu me apavoro. Penso em todo dinheiro dos
King. Em como poderia lutar contra eles. É um pesadelo. – Matthew me
escute, se a questão é o Sebastian...
– Sim, a questão é ele. Mas não somente. Não quero ter Sofia de vez
em quando. Só quando você permite.
– Eu nunca afastaria Sofia de você!
– Você a manteve afastada durante quase dez anos.
– E você quer se vingar tirando-a de mim! Não é justo! Sou a mãe
dela, não pode afastá-la!
Ele me encara por um momento tenso.
– Sei que você é a mãe dela. E eu o pai. Tenho os mesmos direitos
que você. Se quiser ficar com Sofia, podemos ficar juntos. – Prendo a
respiração achando que ouvi errado. – Deixe o Sebastian e case-se comigo.
Capítulo 20

Matthew

Não consigo dormir.


As últimas vinte quatro horas atormentam minha mente como um
filme sem fim. E ainda sinto o cheiro de baunilha em meu travesseiro. Cheiro
dela.
Me recordo de sua expressão chocada quando disse a ela para largar
Sebastian Blake. E ficar comigo.
Agora estou esperando.
Talvez eu tenha sido precipitado.
Ou temerário. Sentia como se tudo estivesse escapando de minhas
mãos. Vê-la com Sebastian hoje, depois de ter passado a noite com sua pele
grudada na minha, foi um pesadelo.
E eu que pensava que uma noite com Evangeline poderia ajudar a
exorcizar meus demônios.
Aconteceu o contrário. Agora eu tinha muitos mais sobre meus
ombros.
E todos eles odiavam Sebastian Blake e os direitos que ele tinha
sobre Evangeline. E ainda havia Sofia. Senti ciúme dela também.
Ela era minha filha e fui privado de sua presença por dez anos
enquanto ele esteve por perto todo este tempo. Como é que eu podia permitir
que justamente ele fosse morar com ela? O cara que também estava me
tirando Evangeline.
Pensar assim me assustava. Eu não podia sentir nada. Eu não queria
sentir nada. A quem eu queria enganar?
Ainda sentia, apesar dos dez anos de ressentimento.
Ainda queria que ela estivesse comigo.
Só para poder ouvir sua respiração compassada. As palavras sem nexo
que dizia enquanto dormia. Sua pele morna ao alcance dos meus dedos.
Então ela foi embora e eu permiti que fosse.
– Você está maluco? – Ela disse empalidecendo, o que me fez quase
recuar.
Já tinha ido longe demais não dava para voltar.
Até aquele momento não havia pensado em nada daquilo. Só sabia
que estava furioso por Sebastian Blake ter colocado minha filha em risco. Foi
como se toda a tensão que senti durante todo o dia, desde que acordei sozinho
depois que Evangeline fugiu da minha cama para estar com ele, explodisse.
Queria Sofia comigo.
E de repente constatei que queria a mãe dela também.
Que se danasse o passado. Estava cansado de lutar contra seja lá o que
fosse que sempre me levava na direção de Evangeline.
– Estou te dando uma opção. – Minha mente trabalhava rápido,
pensando em como convencê-la.
– Não posso me casar com você.
– Não vou abrir mão de Sofia – e era verdade.
Queria que Evangeline viesse junto. Não queria separá-la de Sofia.
Também não podia mais abrir mão da minha filha.
Ela teria que escolher o que era mais importante.
– Não pode estar falando sério...
– Estou falando muito sério.
Ela continuava ali, me encarando como se eu tivesse enlouquecido.
Sim, eu estava fora de mim. E já fazia uns dez anos. Sinceramente eu
acreditava que, finalmente, estava voltando aos eixos. De alguma maneira
sentia que aquilo era o certo.
Nós três juntos era certo.
– Vá embora. Vou te deixar pensar. Sei que foi inesperado.
– Não vou deixar Sofia.
– Ela está segura comigo.
Ela pareceu hesitar, então apenas assentiu depois de um momento e se
afastou.
Assim que fiquei sozinho, subi para ver minha filha. Ela dormia
tranquilamente.
Eu a cobri e saí do quarto.
Emily me esperava no corredor.
– O que aconteceu?
– Não quero conversar agora. Vá dormir.
– Mas...
– Estamos todos cansados. Foi um longo dia. Amanhã conversaremos.
Fui para meu quarto, ignorando sua insistência.
Dormir era impossível. Eu me perguntava o que Evangeline estaria
pensando. Se estaria pensando na minha proposta.
De repente escuto uma batida fraca e a porta se abrir, os olhos
sonolentos de Sofia me fitam através da semiescuridão.
– Papai?
– Sofia? O que foi?
– Onde está minha mãe?
– Ela foi para casa. Venha aqui, está tudo bem? – Toco seu rosto
quando se aproxima. – Sente alguma dor?
– Não... Só fiquei confusa ao acordar... achei que minha mãe poderia
estar com você quando não a vi no quarto.
Franzo a testa. Sofia achava que Evangeline poderia estar dormindo
comigo?
– Não. Ela foi embora.
– Ah... – ela parece chateada.
– Ela viu que estava tudo bem com você e eu disse que ela podia ir
que eu cuidaria de você.
– Então posso ficar aqui?
– Claro que pode querida.
Ela deita do meu lado.
– Por que mandou minha mãe embora? Ela podia ter dormido aqui,
não podia?
– Sim, podia.
– Você ia querer que ela dormisse aqui?
– Claro que sim – Sofia não fazia ideia do quanto eu queria que
Evangeline ficasse. E para sempre.
– Você não tem uma namorada, não é?
Eu rio de sua pergunta estranha.
– Não, claro que não. Por que está perguntando?
– Sabe que minha mãe não vai mais casar com o Sebastian?
Paro de rir ao escutar aquilo.
– Como é?
– Ela me contou hoje. Que eles não iam mais casar.
Que conversa era aquela? Como assim eles haviam cancelado o
casamento? Desde quando?
De hoje? Ou não?
Minha mente está a milhão nesse momento.
– Eu não sabia – respondo.
– Acho que ela não contou a ninguém ainda...
– E o que ela disse? Ela falou o motivo?
– Não...
– E como você se sente?
– Não me importo. Gosto do Sebastian, claro. Estava tudo bem ele
ficar com a gente antes, mas... agora eu prefiro que seja você. – Ela diz
baixinho, como se tivesse vergonha e a puxo para mim, beijando seus
cabelos.
Aparentemente nossos pensamentos estavam conectados.
Só faltavam os pensamentos de sua mãe seguirem na mesma direção.
Por que ela não me contou sobre o rompimento? E se romperam o que
ele fazia com ela?
Evangeline estava me confundindo mais do que nunca.
– Você gostaria também? – Sofia pergunta e acaricio seu rostinho
ansioso.
– Gostaria muito.
Ela sorri.
– Jura?
– Juro.
Tenho vontade de lhe contar sobre a proposta que fiz a Evangeline,
mas me contenho. Não posso colocar falsas expectativas em sua mente.
– Você podia casar com a minha mãe! Não odeia mais ela, odeia?
Penso no que responder. Não quero mentir para Sofia.
– Não, não odeio mais.
E é a mais pura verdade.
Não sei em qual momento meus sentimentos haviam mudado. Só sei
que não a odeio.
Talvez nunca tenha odiado.
Estava apenas ressentido. Magoado.
E agora não sei quanto destes sentimentos ainda carrego dentro de
mim. No entanto ali, com Sofia me fitando com seus olhinhos esperançosos,
sei que há coisas maiores, mais importantes do que mágoas de um passado
que não pode ser mudado.
– Que bom! Sei que é um assunto de adulto, que você sempre vai ser
meu pai mesmo se não casar com a minha mãe, mas queria tanto morar com
você!
– Você pode morar comigo. Esta casa é sua também.
– Eu queria que nós três morássemos juntos. Eu, você e a minha mãe.
É realmente uma imagem tentadora.
Estar com Evangeline e Sofia.
É certo demais.
Eu a abraço e ela adormece rapidamente.
E me pergunto se poderei realizar seu desejo.
Na verdade, só depende de Evangeline.
Evangeline

Torço minhas mãos nervosamente enquanto espero dentro do carro


naquela manhã.
Ainda tenho dúvidas e mal consigo respirar.
É como se estivesse em um sonho estranho desde ontem, quando
Matthew disse que eu tinha que casar com ele.
Isto logo depois de me assustar com a possibilidade de ele tirar Sofia
de mim.
Era difícil assimilar tantas exigências em tão pouco tempo. Como
assim ele achava que tínhamos que casar? Havia tantas coisas contra que eu
levaria uma vida para enumerá-las.
A começar pelo fato de ele ter deixado bem claro, depois de nos
beijarmos no carro naquela noite, que não esqueceria o que aconteceu.
Matthew passou dez anos me odiando, provavelmente continuaria por mais
dez se necessário.
O mesmo eu podia dizer de sua família. Atualmente todos, exceto
Emily, me tratavam quase gentilmente, com certeza era apenas por eu ser a
mãe de Sofia. Como será que encarariam a possibilidade de eu ser um deles?
Não conseguia ver uma reação positiva.
Também não podia esquecer que ele estava fazendo isto só por estar
com raiva de Sebastian. E nem fazia ideia de que eu não ia mais me casar.
Será que se eu contasse sobre o término, ele retiraria seu pedido de
casamento? Era o que me perguntava ontem ao dirigir para casa, ainda
aparvalhada com tudo. Não que tenha acontecido um pedido de verdade.
Apesar de ter ficado claro que eu tinha duas opções: casar com ele ou perder
Sofia.
Eu não podia perder minha filha. De maneira alguma.
Pensei em voltar lá e dizer que não ia mais me casar com Sebastian.
Que seu pedido era absurdo. Algo me impediu.
Talvez fosse a lembrança dos olhos esperançosos de Sofia ao dizer
que gostaria que fôssemos uma família. Ou seria a lembrança insistente da
noite passada, que teimava em voltar a minha mente quando me distraía.
A noite passada não tinha sido um teste para ele? Eu ainda ficava
furiosa ao lembrar que seguiu uma sugestão de Emily. E me sentia uma idiota
por ter me deixado levar novamente por aquela atração. Será que levaria mais
dez anos para me livrar dela? E se não me livrasse nunca?
Matthew tinha me estragado para os outros homens. Não deu certo
com Brady. Nem com Sebastian.
Pensar em Sebastian fazia meu coração se apertar de culpa e pesar. Eu
nunca deveria ter deixado nosso relacionamento mudar de status.
Agora sabia mais do que nunca que ele jamais deixaria de ser somente
um amigo. Já estava na hora de dizer a ele com todas as letras. Chega de
indecisão. Tomei tantas decisões erradas na minha vida, talvez ainda
houvesse tempo de consertar aquela.
Então me vi dirigindo para a casa de Sebastian, em vez de seguir para
a minha e batendo à sua porta.
Ele ficou surpreso quando me viu e me senti mais culpada ainda ao
ver uma centelha de esperança em seu olhar quando me pediu para entrar.
– Como está Sofia?
– Bem. Está dormindo na casa do Matthew.
– Ele continua furioso comigo, imagino.
Mordi os lábios, nervosamente.
– Sebastian... Mathew me pediu para casar com ele.
Ele ficou primeiro estupefato e depois furioso.
– Você contou que cancelamos o casamento e ele já quer tomar meu
lugar?
– Não é bem assim... é mais... Complicado. – Estava receosa de contar
sobre as ameaças de Matthew.
– Ele sempre esteve de olho em você. É claro que percebi! E ainda
vem me falar de ódio!
– É por causa de Sofia – tentei explicar. – Ele quer ficar com ela.
– Ele quer tirá-la de você?
– Ele disse que se nos casarmos nós dois ficaremos com ela.
– E se você não se casar, vai tirar a menina de você? Não vou
permitir!
– Não há nada que possa fazer. Ele é o pai, tem direitos, se quiser
lutar comigo na justiça... tenho medo de sair perdendo.
– Não pode deixá-lo fazer isto! Vou ficar do seu lado! Nós podemos
ficar juntos e lutar...
– Sebastian... Nós não vamos ficar juntos. Não deste jeito... não nos
casando.
– Você disse que iria pensar.
– E estou te dando minha resposta. – Respirei fundo, tentando conter
a vontade de chorar. Sentia-me horrível por magoá-lo. – Não vamos nos
casar.
– Está desistindo porque está com medo do King?
– Não. Independentemente da minha decisão quanto ao pedido de
Matthew não posso mais me enganar, Sebastian. Eu amo você. Como amigo.
Você merece mais.
Ele fica em silêncio, remoendo minhas palavras. E me sinto péssima.
– Sinto muito. Não posso me casar com você.
– Mas pode se casar com o King?
– Não disse que vou casar com ele...
– Mas vai, não é? Se veio aqui é porque já decidiu. Você vai aceitar se
casar com ele.
Seria verdade? Eu havia decidido?
– Preciso pensar em Sofia.
Sebastian riu sem humor.
– Por Sofia? Ou por você?
– Sebastian, por favor... sabe que...
– Sei o quê? Que ele te largou sozinha e grávida? Que te maltrata o
tempo inteiro? Que está ameaçando tirar sua própria filha de você?
– As coisas não foram bem assim... Se você soubesse.
– Então me conte. Explique por que os King te odeiam. Que merda
aconteceu?
Respirando fundo, finalmente contei toda a verdade.
Não sei em qual momento comecei a chorar, ele me abraçou e
adormeci acordando em seu sofá com seu pai me estendendo uma xícara de
café.
Pedi desculpas e Blake disse que Sebastian havia contado a ele que
não estávamos mais juntos e que agradecia a mim por ter desistido.
– Nunca quis magoá-lo – tentei explicar.
– Sebastian é teimoso. Ele vai acabar vendo que assim foi melhor.
– Espero que não me odeie.
– Ele adora você. Só precisa aprender a adorar da maneira certa. Não
se preocupe tudo vai ficar bem.
Tentando acreditar nele saí da casa dos Blake, dirigindo pela manhã
chuvosa parando em frente à casa dos King.
Agora tenho que sair daquele carro e dizer a Matthew que vou me
casar com ele.
Sem ter plena certeza de que não estou cometendo mais um erro que
vai se juntar aos muitos que cometi até hoje.
Apesar disso saio do carro e bato à porta de vidro.
Evelyn me recebe com um sorriso gentil dizendo que todos ainda
estão dormindo.
Sinto meu coração batendo forte de medo e nervosismo quando
Matthew desce as escadas. Me recordo da primeira vez que estive ali, me
sentindo de maneira semelhante.
– Bom dia filho. – Evelyn sorri. – Todo mundo acordou cedo hoje
hein? Evangeline veio ver como Sofia está.
– Ela ainda está dormindo. Não tive coragem de acordá-la. Acho
melhor deixá-la aqui hoje.
– Tudo bem – concordo.
Matthew me fita com um olhar interrogativo enquanto pede para
Evelyn nos deixar a sós.
– Mãe, pode nos dar um momento?
– Claro. Vou preparar o café da manhã.
Espero Evelyn sair da sala e respiro fundo.
– Eu pensei... No seu pedido. E a resposta é sim. Vou me casar com
você.
Pronto. Está feito.
Acabei de concordar em me casar com Matthew King.
E por um momento nenhum de nós diz nada. Ainda parece surreal.
Como se ele fosse rir e dizer que era uma brincadeira, que não
precisava levar a sério.
Em vez disto, ele continua sério.
– Você terminou realmente com Sebastian Blake?
– Terminei.
– Sofia me disse que já tinha terminado com ele antes. É verdade?
– Sim. Na verdade... Falei que precisava pensar e concordamos que o
casamento estava suspenso.
– E ele já sabe que foi cancelado?
Reviro os olhos, irritada.
– Sim, Matthew, ele sabe. Satisfeito?
– Por que terminou com ele?
Dou de ombros.
– E por que não me contou quando dormimos juntos?
– Nem precisou, não é? – Respondo irônica. – Não acho que iria
mudar alguma coisa.
– Mudaria tudo.
Suas palavras dançam no ar e tento captar seu significado, antes que
eu possa perguntar a ele, Sofia desce as escadas ainda de pijama e se joga em
meus braços.
– Mamãe! Você voltou!
– Oi, amor – eu a aperto com força. – Como está se sentindo?
– Estou bem! Sabia que dormi com meu pai?
Olho para Matthew.
– Verdade é?
– Sim, fiquei com medo quando acordei e não vi você. – Suas
palavras contêm alguma recriminação e sorrio.
– Seu pai estava aqui.
– Não é a mesma coisa – ela se enrosca em meus braços e neste
momento desejo que seja um bebezinho de novo e fique sempre ali.
– Sofia, nós queremos te contar algo – Matthew diz e o encaro em
dúvida.
Ele não parece ter as mesmas dúvidas.
Sofia levanta a cabeça e o encara curiosa.
– Eu e sua mãe vamos nos casar.
Ela arregala os olhos e me fita.
– Sério?
– Sim – minha voz um pouco trêmula.
– Eu não acredito! – Ela me abraça depois pula do meu colo e corre
para Matthew. – Agora a gente vai ficar sempre juntos.
Vejo seu sorriso feliz e sinto certo alívio dentro de mim.
Tenho que estar fazendo a coisa certa desta vez. Porque não é
somente minha vida que está em jogo. Sofia é mais importante do que tudo.
– E quando vão se casar?
– É cedo para tantas perguntas querida – digo. – Vamos subir e trocar
de roupa. Precisamos ir embora.
– Eu tenho que ir à escola?
– Hoje não.
Subo com ela, evitando encarar Matthew e ajudando-a a se trocar
rapidamente.
Ao descer, ainda não vejo sinal de nenhum King.
Sofia se despede de Matthew e entra no carro, eu o encaro sem saber
o que dizer.
– Precisamos conversar.
– Eu sei.
– Passarei na sua casa hoje à noite, pode ser?
– Tudo bem.
Entro no carro e dou partida.
Percebo que Sofia me fita curiosa.
– O que foi?
– Agora você é a namorada do meu pai?
Fico vermelha.
Era uma boa pergunta.
– Bom... Por um lado, sim, não é?
– Então por que você não beijou ele antes de ir embora?
Solto uma risada me perguntando o que farei com toda esta
curiosidade de Sofia.
– Nem todo mundo precisa ficar beijando o tempo todo! E,
sinceramente, este é assunto de adultos, não deve se preocupar, ok?
– Está bem. Espero que vocês se casem bem rápido aí a gente pode
mudar para a casa do papai logo!
Deus do céu, eu morando na casa dos King?
Com todos eles. Com Emily.
Estremeço de horror.
Também não posso evitar um quê de ansiedade. Me casar com
Matthew também significa dormir com ele todas as noites.
Fazer amor com ele todas as noites.
Mordo os lábios para não suspirar como uma noiva virgem.
Preciso manter os pés no chão.

Naquele dia ligo para Janine dizendo que não poderei ir trabalhar,
explicando que ficarei com Sofia por causa do acidente.
– Está tudo bem com ela? – Janine questiona preocupada.
– Sim, apenas alguns arranhões, por precaução ficará em casa hoje.
Quero que descanse.
– Tudo bem cuidarei de tudo por aqui, fique despreocupada!
– Obrigada, Janine.
– Ah, ligou um cara do banco, não quis deixar recado.
– Certo, ligarei de volta amanhã.
Desligo e fico pensando nas minhas decisões em relação à livraria.
Continuo com as mesmas resoluções. O casamento não mudaria nada.
Mesmo assim, sinto tristeza e apreensão.
– Mamãe, quando vamos ver o papai? – Sofia pergunta.
– Hoje à noite.
– E quando vão marcar o casamento?
– Sofia, não seja ansiosa!
Ela ri.
– Mal posso esperar! – E me vejo sorrindo com ela.
Não há nada melhor no mundo do que o sorriso lindo de Sofia.
O dia passa rápido e fico apreensiva quando Jack chega em casa.
– E aí, como está a acidentada? – Ele pergunta a Sofia, que ri.
– Estou muito bem, vovô, precisa saber na novidade! Minha mãe vai
casar!
– Ah é? Isto é novidade?
– Claro que sim, ele vai casar com meu pai!
Jack me olha intrigado e suspiro.
– Sofia, suba para seu quarto, preciso conversar com o vovô.
Ela obedece e Jack cruza os braços no peito, esperando.
– Que conversa é esta?
– É a verdade. Eu e Matthew vamos nos casar.
– Sebastian já sabe?
– Contei a ele ontem à noite.
– Ah, quando ele me ligou avisando que ia dormir lá pensei que fosse
outro motivo.
– Pai! Claro que não.
– Bom, que problema teria? Não sou tão careta assim.
– Não foi nada disto! Fui contar a ele que Matthew me pediu em
casamento e que ia aceitar.
– E como aconteceu, filha?
– Matthew propôs e eu aceitei. É simples. – Eu me abstive de contar
toda a verdade a Jack.
– Simples? Até ontem era noiva de outro.
– Não sou mais. Você sabia que eu estava dando um tempo com
Sebastian.
– E Matthew resolveu do nada te pedir em casamento?
– Não foi do nada. Quer dizer, temos uma filha. Ela precisa de nós
dois.
– Está se casando por causa de Sofia?
– Estou fazendo o que é certo.
– Evangeline, Evangeline... Eu não tenho tanta certeza.
– Pai, não fique preocupado, ok? Vai dar tudo certo. – Afirmo com
uma certeza que estou longe de sentir.
– Bem, é sua vida. Espero que desta vez não seja cancelado.
– Pai!
Ele ri e pega uma cerveja na geladeira.
– E quando Matthew virá pedir sua mão?
Reviro os olhos.
– Não seja antiquado, pai!
– Certo, certo...
Ele se afasta e Sofia aparece toda feliz.
– Meu pai ligou! Ele disse que virá bem mais tarde porque teve que
viajar com o tio Carter. Posso ficar acordada esperando não é mamãe?
– Se não for muito tarde sim, porque amanhã tem escola.
– Está bem.
Nós jantamos e fico pensando a que horas Matthew pretende aparecer
e que tipo de conversa teremos.
Sinto-me meio apreensiva. Estou cheia de dúvidas e inseguranças me
perguntando a toda hora que merda estou fazendo.
E se os King convenceram Matthew que se casar comigo é um erro?
De repente escuto um carro estacionando e Sofia pula do sofá,
ansiosa.
– Será que é meu pai?
Ela corre na minha frente para abrir a porta, não é Matthew e sim
Sebastian.
– Oi, Sebastian! – Sofia o abraça.
– Oi, linda, e aí, como está este machucado?
– Está melhorando, nem dói nem nada.
– Que bom.
– Você já sabe da novidade?
Abro a boca para impedi-la de falar, é tarde.
– Minha mãe vai casar com o meu pai!
Sebastian fecha a expressão e sinto meu peito apertar.
– Sofia, acho que deveria subir e ver se não tem lição de casa.
– Mas...
– Agora! – Ordeno enfaticamente e ela acaba obedecendo.
– Sebastian, eu... – começo a dizer depois que Sofia se afasta.
– Não precisa me dar explicações. Eu já devia imaginar.
– Sinto muito.
– Acho que devo me conformar, não é?
– Quem está aí? – Meu pai aparece e fica surpreso ao ver Sebastian.
– Ah, é você?
– Oi, Jack.
– Evangeline, eu vou dormir.
– Boa noite, pai.
– Boa noite, Jack. – Sebastian me encara quando Jack se afasta. – Eu
vim aqui conversar, pode ser?
Hesito. Matthew disse que viria também, mas não seria justo colocar
Sebastian para fora por causa disto.
– Tudo bem, entre.
Ele me acompanha até a sala.
– Fiquei meio chocado com o que me contou ontem.
– Imagino. Me desculpe por nunca ter contado antes. Eu tinha... muita
vergonha.
– Agora entendo todo seu problema com os King.
– Acha que eles têm motivo para me odiar, não é?
– O que você fez foi muito errado.
– Eu sei. Por isto hesitei tanto em te contar.
– E Matthew ainda te odeia por causa disto?
Dou de ombros.
– Mas te pediu em casamento.
– Não podemos mais ficar agindo em função do passado. Agora
temos Sofia.
– Ainda não entendo.
– Acho que por um lado nem eu entendo. Só espero estar fazendo a
coisa certa.
– Você ainda gosta dele?
– Não tenho mais 17 anos, não posso mais ficar pensando nisto... –
enrolo na resposta, Sebastian segura meu braço.
– Eve, seja sincera comigo pelo menos uma vez na vida! Se não sente
nada por este cara, não posso permitir que se case com ele. Terminou comigo
justamente por não gostar de mim desse jeito!
– É diferente. Nós temos Sofia.
– Sabe que não é motivo suficiente! Se você entrar neste casamento
somente por causa de Sofia estará cometendo um grande erro ela vai perceber
que existe algo errado!
Respiro fundo, angustiada.
– Sebastian, por favor...
Ele não me solta.
– Vamos, me responda. Você ainda gosta dele?
– Gosto – admito vencida.
E este era meu grande problema, afinal.
Porque não tinha ideia do quanto Matthew gostava também.
E isto me dava medo.
De repente batem à porta e Sebastian me solta.
Vejo Sofia descer como um raio.
– É meu pai, é meu pai! Ouvi o carro dele.
E ela abre a porta, se jogando em cima de Matthew.
– Papai! Você veio!
Matthew não está sorrindo para Sofia. Está olhando furioso para mim
e Sebastian.
– O que faz aqui?
Eu lhe lanço um olhar de advertência.
– Sebastian já está indo embora. Por que não sobe com Sofia? Já
passou da hora de ela dormir.
Matthew parece finalmente notar que está perdendo a paciência na
presença de Sofia e recua.
– Eu não quero dormir!
– Mas precisa. Está tarde. Seu pai vai te colocar para dormir, aí
poderá ficar um pouco com ele, tudo bem?
Preciso afastar Matthew de Sebastian antes que a situação piore.
– Tudo bem.
Matthew não faz objeção em subir com Sofia.
– Acho melhor você ir embora, Sebastian.
– Ok, percebi que não sou bem-vindo.
– Não fale assim.
– E nem posso culpá-lo. Eu faria o mesmo. Tchau Eve!
Ele finalmente se afasta e fecho a porta atrás dele.
Penso em subir, depois decido ficar. Volto para sala, apago a luz e
vou para a cozinha.
Preciso de um chá para me acalmar então coloco a água no fogo.
Não demora muito para Matthew aparecer.
– Sofia dormiu? – Pergunto, tentando manter a conversa casual.
– Dormiu.
– Estou fazendo um chá.
– O que Sebastian Blake estava fazendo aqui?
– Nós estávamos conversando.
– Não gosto de vê-lo com você.
– Ele é meu amigo.
– Era seu noivo.
– Agora sou sua noiva, não é? – Rebato irônica.
– Espero que ele não se esqueça.
– Ele lembra sim. E espero que você se lembre de ser menos idiota!
Não vou aceitar que decida a quem devo ver ou não! Sebastian faz parte da
minha vida e da de Sofia, não posso afastá-lo porque você tem cisma dele!
– Não é cisma!
– O que é então?
– Fiquei com ciúmes quando o vi com você.
Paro de respirar por um instante.
– Não deve ficar. Eu disse que vou me casar com você, Matthew, não
disse?
O ar na cozinha está carregado de tensão enquanto Matthew se
aproxima.
– Eu precisava ter certeza. – Então ele tira do bolso uma caixinha e,
ao abri-la, vejo um anel de noivado.
Meu coração dispara alarmantemente no peito.
– Não fiz o pedido do jeito certo ainda... – mal consigo respirar
quando ele tira o anel da caixa e segura minha mão trêmula. – Evangeline
Evans, casa comigo?
Capítulo 21

Evangeline

– Sim. – Respondo. O que mais posso dizer?


É como se os meus sonhos mais secretos e bobos tivessem se
tornando realidade.
De repente sinto como se tivesse 17 anos outra vez. E ele ainda é o
cara dos meus sonhos.
E, como num sonho, ele desliza o anel pelo meu dedo.
Encaro seus olhos verdes intensos. Nunca me pareceram tão lindos.
Ele nunca me pareceu tão perfeito.
Matthew King, meu noivo.
Então, sem pensar, fico na ponta dos pés, fecho meus olhos e o beijo...
Era para ser apenas um selinho.
Um simples roçar de lábios, como forma de agradecimento, talvez.
Ou o que eu acreditava ser uma forma de fechar o que iniciamos.
Assim que sinto seu gosto, deixo de pensar.
E um suspiro trêmulo escapa de meus lábios, se misturando com o
dele, nossa respiração se torna uma só, quente e inebriante. Ofegante.
Intoxica meus sentidos e aquece minha pele.
Fazendo-me romper o espaço entre nós, buscando o calor dele.
E um simples roçar se torna muitos. Doces. Insistentes.
Instigantes.
Fecho os olhos passando a língua por seus lábios. Em resposta, ele
prende meu lábio inferior entre os dele, sugando.
Eu derreto e gemo, prendendo meus dedos em seus cabelos, inserindo
a língua em sua boca. A dele me encontra no meio do caminho e não há mais
lugar para suavidade.
Sinto seus braços me rodeando, me apertando e exulto, deixando sua
boca vagar sobre a minha em beijos molhados, quentes, intensos.
E quero mais.
Quero sentir sua boca em cada parte minha. Quero passar meus
próprios lábios pelo seu corpo inteiro.
Estes pensamentos me enchem de uma excitação febril, que se
desloca pela minha pele pulsando em partes estratégicas do meu corpo. E,
quanto mais Matthew me aperta e beija, mais me sinto desligando do mundo
real. Só sei que não quero que ele pare nunca de me beijar deste jeito. Não sei
quanto tempo passamos ali, nos beijando loucamente, até que parece não ser
mais o suficiente.
Até que ele para com a testa colada na minha, o barulho de nossas
respirações ofegantes enchendo a cozinha. Nem sei dizer como foi que suas
mãos foram parar em meus quadris. Não é o bastante. Tudo dói numa
necessidade compulsiva pelo seu toque.
– Acho que eu devia ir embora. –Diz e o prendo mais contra mim,
relutando em soltá-lo.
Não parece nada certo ele me deixar nesse momento.
– Não quero ir. – Completa e me afasto um pouco para encará-lo,
mordendo os lábios numa doce antecipação.
Então, sem pensar seguro suas mãos.
– Não precisa ir. – Decido, puxando-o para a sala escura.
– Eu me sinto meio que uma adolescente ao fazer isto. – Falo
baixinho e Matthew ri atrás de mim e me puxa pela camiseta, encostando
seus lábios em meu ouvido.
– Espero que seu pai não me pegue aqui.
Rio e me viro para ele.
– Shi... Melhor não fazer barulho então.
– É realmente ridículo...
– Você sempre tem a opção de ir embora.
– Prefiro arriscar...
E estamos rindo quando caímos no sofá, nos beijando de novo, até
estarmos deitados sobre as almofadas, o riso se transformando em gemidos
de prazer quando finalmente suas mãos estão deslizando por minhas costas,
se infiltrando dentro da minha camiseta, seu toque em minha pele é sublime.
Queima e excita, me fazendo beijá-lo com mais força, mais vontade. Passo
minha perna por seu quadril sentindo sua ereção, o desejo percorre minhas
veias como uma droga, entorpecendo rápido, me deixando fraca e trêmula.
Respiro por arquejos enquanto seus lábios se apartam dos meus para traçar
um caminho úmido por meu rosto, meu pescoço. Seus dentes mordiscam
minha orelha e sinto sua respiração quente dentro do meu ouvido: “Eu pensei
em te beijar assim o dia inteiro”. – Sussurra e me contorço.
– Toque-me. – Peço. Ou imploro. Não importa.
O que interessa é que sua mão sobe para envolver meu seio por cima
do sutiã, dentro da minha blusa, apertando, mordo os lábios para não gemer
alto. E, quando os dedos se infiltram dentro da renda macia, desmancho de
vez, sentindo uma conexão direta do meu mamilo com o meio de minhas
coxas. E me esfrego nele, roçando meu corpo excitado no dele, deslizando
meus dedos para a frente de sua calça.
– Isto...
Ele meio ri, meio ofega e me beija novamente.
De alguma maneira penso que precisamos parar, não consigo.
Até que escuto passos na escada.
– Evangeline, você está aí?
– Droga! – Praguejo me afastando de Matthew rapidamente
colocando minha camiseta no lugar enquanto escuto os passos do meu pai se
aproximando.
E apenas imagino o que ele viu quando acendeu a luz flagrando nós
dois.
Ofegantes, despenteados e com as roupas amassadas.
– Que diabos está acontecendo aqui? – Pergunta quando finalmente o
entendimento passa por sua mente.
E sim, agora mais do que nunca me sinto mesmo como uma
adolescente.
– Pai, eu... – limpo a garganta.
– Me desculpe, Senhor. Estávamos apenas conversando sobre o
casamento...
– Conversando? Vocês acham que nasci ontem?
– Pai, não exagere, por favor, – peço ruborizada. – Não há motivo
para drama, somos adultos.
– Exatamente, adultos e não dois adolescentes com hormônios
descontrolados!
– Ok, pai. Já entendemos. O Matthew está indo embora.
– É melhor casarem logo e tomarem jeito. – Ele resmunga se
afastando. – Sabia que iria passar por isto, só não esperava que fosse com dez
anos de atraso! – Ainda o escuto dizer quando sobe as escadas e encaro
Matthew.
– Me desculpe.
– Acho que devo me sentir aliviado por ele não ter ido pegar uma
arma.
– Ele pode estar fazendo isto agora – digo e começamos a rir.
– Então é melhor eu ir embora.
Nós nos levantamos e o acompanho até a porta.
Olho para ele, seus cabelos deliciosamente bagunçados por meus
dedos, nunca me pareceu tão lindo. Ainda reluto em deixá-lo ir.
– Não quero ir, faz sentido para você? – Confessa e eu suspiro.
– Mais do que imagina.
– Acho que seu pai tem razão devemos nos casar logo.
Mordo os lábios.
– Meu pai sempre tem razão.
Ele sorri. E me deslumbro mais um pouco.
– Boa noite!
Quero pedir que ele me beije de novo. Talvez não seja uma boa ideia.
– Boa noite!
Ele se afasta e fecho a porta, subindo para meu quarto.
Sofia está adormecida há muito tempo eu a cubro. Indo para o
banheiro, coloco uma camisola e me olho no espelho.
Meus olhos estão brilhantes e meu rosto ruborizado.
Passo os dedos por meus cabelos bagunçados me recordando dos
dedos de Matthew entre eles.
Lembro-me de seus dedos em outros lugares e suspiro.
Abro os olhos respirando fundo. Preciso parar com esses
pensamentos.
Volto para o quarto e, quando vou fechar a janela, paro.
O carro de Matthew ainda está lá.
Hesito apenas por um momento antes de sair do quarto, fechando a
porta devagar e descendo as escadas.
Está frio lá fora, praticamente corro em direção ao carro e bato na
janela. Ele parece surpreso por me ver e abre a porta.
– O que ainda faz aqui?
– Estava pensando se deveria te ligar ou não.
– Para...?
Ele sorri lentamente.
– Entre no carro ou volte para dentro. Vai congelar.
Eu devia voltar para dentro e mandá-lo embora.
Como já devia saber, não sou a mais sensata das criaturas quando
Matthew está por perto.
Então entro no carro.
Está quente, com o aquecedor ligado, sei também que qualquer lugar
próximo dele é quente.
Eu o encaro na semiescuridão e ele toca meu rosto. Fecho os olhos,
segurando sua mão beijando seus dedos e, quando os abro, ele está me
fitando com tanto desejo que me faz perder o fôlego.
– Eu quero você.
– Eu também... eu também... – sua mão envolve meu rosto me
puxando para perto. Seu beijo é tão bom como sempre foi, só que agora tem
aquele gosto de antecipação. De certeza de que não há limites.
Deixo as sensações doces e quentes me tomarem, subindo minhas
mãos para envolver sua nuca permitindo que me puxe para cima dele.
Encaramo-nos ofegantes, ele sorri deliciosamente enquanto desliza os
dedos por meus ombros abaixando as alças da minha camisola.
– Quero ver você – mordo os lábios com força, me excitando com seu
olhar em meus seios. – Quero tocar você...
– Sim, por favor. – Solto um gemido trêmulo quando suas mãos
envolvem meus seios, esfregando o polegar em meus mamilos. É tão
deliciosamente bom que arqueio as costas, deixando que me acaricie daquele
jeito, apertando, torturando. Então, ele me ergue um pouco e sinto o toque
úmido de sua língua, os lábios puxando gentilmente, os dentes arranhando
deliciosamente. Sinto meu ventre contraindo de desejo intenso, urgente e
puxo seu rosto para mim, beijando sua boca, mordendo seu lábio e roçando
meu quadril contra o dele, perdida naquelas sensações.
E é a vez dele de gemer, os dedos deslizando para debaixo da minha
camisola, subindo por minha coxa, até me tocar por cima da calcinha.
Eu me derreto inteira e abro os olhos o encarando ofegante.
Ele está sorrindo.
– Você é tão delicioso quando sorri deste jeito. – Murmuro e em
resposta, ele desliza os dedos para dentro do tecido.
– Acho você deliciosa. – sussurra em meu ouvido e perco o resto da
sanidade. – Preciso estar dentro de você...
– Sim. – Saio do seu colo e tiro minha calcinha, voltando para cima
dele, que, graças a Deus, já abriu as calças. E ele me faz descer sobre sua
ereção. Fecho os olhos deixando a sensação de ser preenchida me dominar.
Adoro senti-lo dentro de mim, seus gemidos em meu ouvido, suas mãos me
apertando e movendo meus quadris num vai e vem enlouquecedor. Mais
rápido. Mais forte. Mais profundo. Até as contrações se tornarem
insuportáveis e explodirem num orgasmo intenso e perfeito. Sentindo-o
estremecer em seu próprio gozo, gemo seu nome como um mantra, me
desmanchando em volta dele.
Depois deito minha cabeça em seu ombro enquanto minha respiração
volta ao normal.
Assim como a realidade do que acabou de acontecer. Outra vez.
Desta vez não me sinto mal. Nem um pouco.
Sinto-me sublime.
Sinto-me feliz.
Seus dedos brincam com meus cabelos e levanto o rosto para fitá-lo.
– Tudo bem? – Parece inseguro por um momento.
– Mais do que bem – sorrio e o beijo.
Por um momento louco tenho vontade de pedir que ele me leve dali,
para qualquer lugar onde não precisemos nos separar nunca mais.
Sei que não é possível. Não ainda.
– Acho melhor eu entrar.
– Sim, não quero que seu pai apareça e me mate desta vez.
Rio e saio de cima dele, procurando minha calcinha em algum lugar
do carro, enquanto ele se arruma.
– Realmente Jack pode ser assustador às vezes.
Eu o encaro.
– Acho que agora é boa noite de verdade.
Ele sorri lindamente.
– Por enquanto.
Eu me encho de uma doce ansiedade.
Há quanto tempo não me sinto assim? Há dez anos para ser mais
exata.
Não quero pensar no passado. Quero olhar para a frente. Pensar no
futuro. Com Matthew. Parece bom demais para ser verdade.
– Passarei para pegar Sofia e levá-la a escola, tudo bem?
– Claro. – Eu o beijo rapidamente e saio do carro. – Até amanhã,
então.
– Durma bem – ele diz antes que eu feche a porta e corra para dentro
da casa.
Sim, tenho a impressão que vou dormir muito bem.

***
Matthew

As luzes da sala estão acesas quando chego em casa. E me pergunto


quem terei que enfrentar.
Eu deveria saber que só uma pessoa poderia estar me esperando.
Emily ainda não teve a oportunidade de dizer exatamente o que
pensava do meu casamento. E bem podia imaginar o que ela diria.
Sinceramente, não me importava. Eu havia tomado uma decisão e nada me
faria mudá-la. Nem Emily, nem ninguém da minha família.
Agora havia Sofia e ela era minha família.
Ela e sua mãe.
Lembrar de Evangeline me faz pensar em como gostaria que ela
estivesse comigo agora. Poderia estar levando minha noiva para a cama e não
me preparando para ter uma briga com minha irmã.
– Ainda acordada? – Digo ao entrar na sala, ela desliga a TV.
– Sim, queria conversar com você.
Passo a mão pelos cabelos, subitamente cansado e sem ânimo para
qualquer tipo de discussão.
– Emily, sei exatamente sobre o que deseja falar e sinceramente acho
que não vai levar a nada.
Ela se levanta.
– Você fez de propósito, não é? Contando a todo mundo quando eu
não estava em casa.
– Claro que não.
Sabia que não ia adiantar nada tentar esconder alguma coisa de Emily,
ou adiar o inevitável.
Meus pais foram compreensivos. Sei que, mesmo que tivessem
alguma resistência, não falariam nada.
– Ella também não estava – Digo e Emily revira os olhos.
– Ella deu pulinhos de alegria quando soube! Ela deve estar mais
preocupada em organizar uma cerimônia do que com o fato de sua noiva ser
uma garota que te fez infeliz por dez anos.
– Não comece. Você disse bem. Aconteceu faz dez anos!
– Por todo este tempo você continuou recordando e sofrendo.
– Agora chega! Nós temos Sofia e o passado não importa mais.
– Tem certeza? Pode confiar nela novamente?
– Isto é problema meu! Estou de saco cheio de você se intrometendo
na minha vida! Vou me casar com Evangeline, é um fato. Acostume-se! –
Digo e me afasto para meu quarto.
Realmente não estou mais com paciência para as preocupações de
Emily.
Quero esquecer o passado. Quero pensar apenas no futuro.
Com Evangeline e Sofia.
Capítulo 22

Evangeline

– Você está sorrindo, mamãe.


– O quê? – Levanto a cabeça distraída e Sofia me encara através da
mesa de café, curiosa.
– Está sorrindo sozinha – ela diz e eu fico vermelha, desviando o
olhar e saindo da mesa.
– E você precisa terminar rapidamente de comer e ir escovar os
dentes.
Ela resmunga e se levanta indo fazer o que mandei e eu rio.
Deus, estou realmente rindo feito uma adolescente boba é ridículo.
Mas não consigo me conter.
Alguns minutos depois escuto o carro estacionar e vejo Sofia
passando correndo pelo corredor. Me contenho para não correr também.
Sofia está abraçando Matthew quando me aproximo. Ele me olha por
cima de seus cabelos e sorri.
É inevitável não sorrir de volta. E me pergunto como vivi todo este
tempo sem vê-lo sorrindo daquele jeito para mim todas as manhãs.
– Sofia, vá buscar sua mochila – ordeno e ela faz uma careta.
– Tenho mesmo que ir à escola?
– Por que não iria?
– Porque está frio.
– Não invente moda, vá pegar a mochila rápido antes que se atrase.
Ela desaparece escada acima e Matthew está rindo.
– Você é muito firme com ela.
– Tenho que ser. Espero que você seja também.
– Terei que aprender com você. Sempre tenho vontade de fazer tudo o
que ela pede.
– Também tenho se isto ajuda. Mas ela só teve a mim para educá-la.
– Agora tem a nós.
Sinto pequenas borboletas sobrevoando meu estômago com a palavra
“nós”. Ainda mais quando ele levanta a mão e coloca uma mecha de cabelo
atrás da minha orelha.
– Você está linda esta manhã.
Ah Deus, se eu dissesse que ele estava sempre lindo em qualquer
horário, ficaria repetindo eternamente.
– Dormi muito bem – respondo e ele sorri de lado, fazendo as
borboletas no meu estômago rumarem para o sul do meu corpo. Ofego
levemente, indo em sua direção quase flutuando.
– Eu não – seus dedos agora estão em meu rosto, que cora facilmente.
– Fiquei pensando em você... E em como gostaria de tê-la comigo.
Então ele me beija.
E quero me dissolver nele, escuto os passos apressados de Sofia se
aproximando e me afasto.
– Vocês estão se beijando! – Ela ri e acabo rindo também, pois
Matthew fica vermelho.
– Estamos – ajeito seu cachecol. – Comporte-se na escola.
– Vou me comportar.
Beijo seu rosto e ela vai para o carro.
– Nunca tive crianças em casa e não sei até que ponto isto parece
inadequado. – Matthew diz confuso e eu rio.
– Não é inadequado. Aliás, ela me perguntou outro dia se agora eu era
sua namorada e respondi que sim, então ela falou que achava estranho nós
não nos beijarmos!
– Bom, acho que não tem problema se eu beijar novamente.
– Nenhum – digo, ficando na ponta dos pés para ele me beijar.
O beijo acaba tão rápido quanto começou e suspiro.
– Passarei na livraria mais tarde, tudo bem? Acho que temos que
conversar.
– Tudo bem.
Ele se vai e fico vendo o carro se afastar ainda sentindo o gosto dos
seus lábios nos meus.
E me perguntando quanto tempo vai demorar para poder senti-los de
novo. E de novo...
***
– Você está diferente. – Janine diz finalmente depois de passar a
manhã inteira me olhando esquisito. Desta vez não estava nem aí para a
curiosidade irritante de Janine. Então apenas abro um sorriso, voltando a
cadastrar livros novos no computador.
De repente sinto-me estranha ao pensar que em breve posso não estar
mais fazendo isto.
Pensar neste assunto me faz lembrar da minha reunião com o
advogado esta manhã. Não quero me sentir mal. Há coisas que devem ser
feitas, não tem outro jeito.
Preciso enterrar o passado de uma vez por todas.
– Vamos, me conte logo o que está acontecendo. – Janine desliga o
computador sem cerimônia e rolo os olhos.
– Não está acontecendo nada...
– Conte outra! O que aconteceu neste fim de semana? Foi algo com
Sebastian? O casamento? Aliás, temos que voltar a falar sobre ele! Tem
milhões de coisas para fazer e muito pouco tempo.
Suspiro. É melhor contar logo para Janine.
Ao abrir a boca para contar que sim, vai haver casamento, só que o
noivo é outro, escuto a porta se abrir e Matthew entrar.
Meu coração dispara ridiculamente e sorrio toda animada.
– Matthew! – Janine exclama, surpresa e deliciada. – Você por aqui!
– Oi, Janine – ele sorri para ela e acho que ela pode desmaiar a
qualquer momento.
Como posso culpá-la?
– Precisa de algum livro? Alguma dica? Posso te ajudar, claro, e...
– Não, vim ver Evangeline. – Ele muda a atenção para mim e Janine
olha para nós especulando.
– Evangeline?
– Sim. – Ele sorri para mim e eu simplesmente fico ali, mordendo os
lábios, meu rosto se tingindo de vermelho de puro prazer, apenas porque ele
está olhando para mim.
– Hum... sei. – Agora a voz de Janine está cheia de curiosa
desconfiança – Evangeline, como eu ia dizendo, precisamos falar do seu
casamento...
– Então Janine, não tive tempo de te contar ainda – desvio a muito
custo os olhos de Matthew.
– Contar o quê?
– Não vai mais haver casamento.
O queixo de Janine cai.
– Mas... mas... Como assim?
– Eu e Sebastian terminamos.
– Faltava menos de um mês! E eu já estava organizando tudo!
– Não se preocupe. – Matthew diz. – Ainda vai haver um casamento.
Evangeline vai casar comigo.
Desta vez acho mesmo que ela vai cair dura no chão.
– Oh meu Deus! Isto é... é...
– Janine, calma. – Peço, entre divertida e preocupada.
– Estou chocada! Como assim? Como... Oh meu Deus! Tenho que
contar para Aria? Ela já sabe? Não me diga que contou para ela e não me
contou?
– Não, ninguém sabe.
– Preciso ligar para ela.
Janine corre para o escritório e Matthew ri quando ela desaparece.
– Acho que ela está chocada.
– Às vezes até eu fico – digo e ele sorri me puxando em sua direção.
– Melhor se acostumar – ele diz antes de me beijar, nem passa pela
minha cabeça impedir.
O beijo dura pouco. Ele me fita com os olhos brilhando e aquele
sorriso perfeito no rosto. Me dá vontade de devorá-lo inteiro.
– Vamos buscar Sofia na escola e ir marcar a data do casamento.
– Marcar a data? Já? – Minha cabeça gira com a rapidez de
acontecimentos.
– Estamos dez anos atrasados.
E adoro o jeito que ele fala. Faz tudo parecer possível e certo.
– Tudo bem... acho que Janine vai gostar.
Nós rimos e ele me beija de novo.
E não escuto a porta da livraria se abrir, até ouvir um pigarro, quando
Matthew para de me beijar, abro os olhos e vejo Sebastian e Harry Cooper
nos encarando.
Eu me afasto de Matthew, corando.
Harry Cooper está chocado. Sebastian muito tenso.
Uma parte de mim se sente terrivelmente culpada.
– Sebastian... Harry...?
– Oi – Harry diz, olhando de mim para Matthew e depois para
Sebastian. Agora parece com medo. Então me lembro que ainda não sabe que
terminei com Sebastian. – Eu... não queria atrapalhar, quer dizer...
– Está tudo bem, Harry. Posso te ajudar em alguma coisa?
– Na verdade... estive com seu advogado quase agora e não sei se ele
falou com você.
– Ah, claro. Ele falou sim. Só não sabia que teríamos que conversar
sobre o assunto agora.
– Fiquei surpreso quando meu pai me contou, queria conversar com
você...
– Claro, tudo bem. Pode ser outra hora? Eu te ligo.
– Sim, com certeza... Acho que não é o momento mesmo... é... até
logo... para vocês.
Ele sai quase tropeçando nas próprias pernas.
Respiro fundo e encaro Sebastian.
– Oi, Sebastian.
– Oi, Eve. Queria... conversar com você, se possível..., parece que não
vim numa boa hora.
Eu olho de relance para Matthew que está tenso.
– Pode nos dar licença um momento?
Ele parece estar tentando conter um acesso de fúria, aperto sua mão
com a minha, pedindo paciência com meus olhos.
– Por favor... Por que você não vai buscar Sofia? Acho que já está
quase no horário de ela sair depois nós iremos fazer o que combinamos, tudo
bem?
Falar sobre marcar a data do casamento aparentemente acalma
Matthew, pois ele acaba concordando.
– Tudo bem. – Ele se afasta, saindo da livraria e volto a encarar
Sebastian.
– O que faz aqui? Aposto que não veio com Harry Cooper.
– Não, eu o encontrei aí fora... – ele olha de mim para Matthew. –
Acho que posso dizer o mesmo que ele... não queria... atrapalhar.
– Sebastian...
– Tudo bem. Devia ter imaginado.
– Sabe que nunca faria nada para magoá-lo deliberadamente. Sei que
deve ser difícil para você.
– Sim, é muito difícil, ainda mais que sempre que eu queria
demonstrar algum afeto por você aqui na livraria, você se afastava com
alguma desculpa enquanto com ele... Parece que mal se contém para não
arrastá-lo para a cama.
– Sebastian! – Sinto-me indignada, ficando vermelha, porque, por
mais que as palavras dele sejam um pouco ofensivas, são totalmente
verdadeiras.
Ele respira fundo.
– Me desculpe. Eu não deveria falar assim.
– Realmente não deveria.
– Tudo bem. Até que foi bom eu ver. Me faz cair na real. Já perdi esta
guerra. – Não falo nada, me sentindo mal por Sebastian, embora esteja
aliviada por ele saber que não tem mais chance comigo. – Vê-la com ele... ver
como você o olha... é tão diferente de nós dois. Me fez enxergar que você
tinha razão. Acho que íamos cometer um grande erro. Você ainda é
apaixonada por Matthew King.
Quero negar, mas como poderia?
Estou mais feliz desde que ficamos noivos do que fui durante dez
anos. E nunca seria feliz assim com Sebastian.
– Não tem nada a ver com Sofia, não é Eve? – Ele diz com uma
suavidade sofrida.
– Tem a ver sim. Se não fosse por ela, acho que Matthew nunca iria
me perdoar e ficar comigo.
– Ele te perdoou?
Mordo os lábios com força. Era uma boa pergunta.
Estava evitando aquele assunto deliberadamente, uma hora ele viria à
tona. E tinha medo de descobrir o que se passava na mente de Matthew.
– Está tudo bem – afirmo simplesmente.
Sebastian acena a cabeça então sorri, embora seja um sorriso triste.
– Existe uma parte minha que está feliz por você e Sofia.
– Obrigada. É importante para mim.
– Ainda somos amigos, não é?
– Claro que sim – sorrio aliviada.
As coisas podem não estar boas entre nós agora, espero que um dia
fiquem.
– Bom, já vou indo. Até mais.
– Até.
Ele se afasta e Janine entra.
– Uau! Que coisa, hein? Fiquei com dó dele.
– Estava ouvindo atrás da porta?
– Pode ter certeza que sim! Você não me conta nada! Aria está
chocada também! Falei para ela que nós duas iremos jantar na sua casa hoje,
assim você conta todas as novidades! E queremos detalhes! Todos.
– Certo... Acho que posso aguentar...
Ainda passa algum tempo até que Matthew retorne com Sofia e ela
pula em cima de mim toda animada.
– Verdade que vamos marcar o casamento?
– Sim, nós vamos.
Encaro Matthew e ele continua meio tenso.
– Querida, por que não vai lá dentro avisar para a Janine que nós
vamos sair?
Sofia se afasta correndo e eu encaro Matthew.
– Tudo bem?
– Acho que sou eu que devo perguntar.
Eu me aproximo.
– Sebastian é apenas um amigo agora, Matthew.
– Ele sabe?
– Sabe, é claro. Disse até que está feliz por mim e Sofia.
– Duvido muito. Não sei como alguém pode se sentir feliz por perder
você.
Toco seu rosto.
– Você não precisa se preocupar, porque não vai me perder.
Ele segura minha mão e beija a palma.
– Então, por favor... Não fique zangado por causa dele. Nós estamos
indo marcar nosso casamento. – Sorrio. – E estou muito feliz.
Ele sorri de volta e respiro aliviada.
Sofia irrompe na sala.
– Pronto já avisei Janine! Vamos?
Eu olho para Matthew.
– Vamos?
Ele segura minha mão.
– Vamos.
É um pouco esquisito estar desmarcando meu casamento com
Sebastian e marcando o meu com Matthew para a mesma data.
– É a mais próxima disponível – diz o funcionário, olho para Matthew
para ver sua reação.
Ele parece não se importar.
– Vamos, marquem logo! – Sofia pula impaciente, e nós sorrimos.
– Pode marcar então. – Digo por fim e, quando saímos da igreja,
Matthew nos leva a um café também e é esquisito andar com ele na rua,
assim, tão casal, de braços dados enquanto ele segura a mão de Sofia.
Esquisito, embora muito bom.
É como estar em outro mundo. Onde a garoa fina que cai sobre nós
não importa. Nem o vento frio em meu rosto despenteando meus cabelos.
Sinto-me muito em casa. E tem pouco a ver com Camden e tudo a ver
com estar com Matthew e Sofia.
Ao entrarmos no café, Sofia vai ao banheiro e ele me encara por sobre
a mesa.
– Sobre o que Harry Cooper estava falando hoje de manhã?
Eu me mexo, incomodada.
– Nada... Coisas da livraria.
– E você não pode me contar?
– Não está com ciúmes dele, está?
É sua vez de parecer incomodado e suspiro.
– Certo. Em algum momento terá que saber mesmo. Estou vendendo a
livraria e o pai de Harry está interessado.
Ele parece genuinamente surpreso.
– Por que vai vender?
Dou de ombros.
– Ela não está dando lucro... sempre trabalho no vermelho. É bem
estressante.
Não é toda a verdade. Também não é uma mentira.
E não estava disposta a estragar aquela paz entre nós com a verdade.
Não ainda.
Matthew parece intrigado e sei que não está inteiramente satisfeito
com minha resposta. Sofia volta para a mesa e o assunto é encerrado.
– Tia Ella me ligou. – Ela diz animada e a encaro surpresa.
– Como é?
Ela sorri me mostrando um celular.
– Desde quando você tem celular, Sofia?
– Não reclame – Matthew responde e o fito com o cenho franzido.
– Ainda está valendo o que conversamos sobre presentes.
– Não foi um presente e sim uma necessidade. – Ele responde olhando
Sofia. – O que ela queria?
– Queria falar com a minha mãe. Ela quer começar a organizar o
casamento, não é legal?
– Organizar o casamento? – Repito confusa e Matthew ri.
– Esqueci de te contar que desde que disse que vamos nos casar, Ella
não fala de outra coisa a não ser dos preparativos.
– Oh! – Quer dizer que Ella estava entusiasmada a ponto de querer
organizar meu casamento? E como será que os outros King estavam
reagindo? Quero perguntar a Matthew, prefiro não tocar no assunto na
presença de Sofia.
– Você se importa? Posso pedir para ela parar, claro.
– Não, tudo bem. – Respondo então seu próprio celular toca e sei que
está falando com Ella quando desliga.
– Ela quer que você jante lá em casa hoje a noite. Assim podem
conversar sobre os preparativos.
– Hoje não posso. Combinei de jantar com Janine e Aria.
– Que pena – ele sorri. – Você e Sofia podiam dormir lá em casa se
fosse.
Mordo os lábios, para não soltar um gemido de desalento. Pensando
por este lado...
Não, não ia desmarcar meu compromisso com minhas amigas.
E definitivamente precisava parar de pensar em sexo com Matthew.
Já estava ficando obcecada.
– Teremos que combinar outra noite então. – Ele acaricia minha mão
por cima da mesa e me arrepio.
Foco Evangeline!
– E então – puxo a mão antes que entre em combustão espontânea e
pego o cardápio. – O que vai querer, Sofia?

Matthew nos deixa em casa no fim da tarde e começo realmente a


lamentar ter que jantar com Janine e Aria, quando Sofia entra em casa e ele
me encara com aquele sorriso perfeito.
– Ainda pode mudar de ideia.
– Não posso.
– Nem devo tentar fazê-la mudar? – Pergunta, abaixando a cabeça o
suficiente para que seus lábios rocem no meu rosto.
Fecho os olhos e luto contra a força gravitacional que me leva em sua
direção.
– Não hoje – respondo por fim, respirando fundo e me afastando.
– Nos vemos amanhã, então?
– Sim, amanhã.
Ele entra no carro e me arrasto para dentro, ainda me perguntando se
não seria melhor jantar com os King apenas pela chance de passar a noite
com Matthew.
***
Eu devia saber que não poderia evitar Ella King por muito tempo.
Não me surpreendo ao vê-la aparecer na minha casa de manhã com
Matthew.
– Olá! Ainda não a cumprimentei pelo casamento. – Ela me abraça
efusivamente, encaro Matthew por cima de seus cabelos loiros e ele sorri,
dando de ombros.
– Obrigada – agradeço confusa com sua atitude esfuziante.
– Olá, Ella. – Jack entra na cozinha e parece feliz ao vê-la. – Quer um
café?
– Sim, com adoçante, está bem? – Sem demora, ela senta à mesa e
abre uma agenda.
– Então Evangeline fiz uma lista de tudo que precisamos fazer... Não
temos muito tempo, darei um jeito, não se preocupe! Já consegui falar com o
pastor e ele prontamente entendeu que o casamento vai ser no jardim da
nossa casa e...
– Jardim?
Ella fuzila Matthew com o olhar.
– Você não contou a ela?
– Você pediu para eu dizer muitas coisas, é impossível me lembrar de
tudo.
– Tudo bem! Acho melhor lidar diretamente com Evangeline a partir
de agora.
– Boa sorte com isto – Matthew sorri e não sei se a boa sorte é para
mim ou para Ella.
Ele se aproxima, beija meus cabelos e se afasta.
– Vou chamar Sofia ou chegaremos atrasados. Passo na loja mais
tarde, tudo bem?
– Tudo bem.
– Não deixe Ella te irritar.
Reviro os olhos e Ella solta uma imprecação. Jack ri.
Depois que Matthew se vai, Ella parece ainda mais determinada.
Minha mente gira com tanta informação sobre flores, músicas,
cardápios e uma infinidade de coisas que nem sabia que seria preciso me
preocupar.
De certa forma é um alívio tê-la cuidando de tudo.
Na hora de sair me estresso com meu carro que se nega a pegar.
– Não se preocupe eu te dou uma carona – Ella diz e sou obrigada a
aceitar.
Preciso me lembrar de pedir a Sebastian para dar uma olhada no
carro.
Será que seria uma boa ideia?
Ao chegar à livraria, atrasada, ainda tenho que lidar com uma pequena
cena de ciúme de Janine quando conto que Ella está cuidando de todos os
preparativos.
– Achei que fosse eu, como sua dama de honra, que me encarregaria
de tudo!
– Janine, as coisas mudaram. Sabe como são os King.
– Oh, claro! Aquela metida da Ella King resolveu se intrometer em
tudo!
– Uau, agora a está xingando? Poucos dias atrás tinha uma paixonite
por ela.
– Até ela roubar meu lugar.
– Não seja exagerada. Você pode ligar para Ella e oferecer sua ajuda.
Tenho certeza de que ela irá gostar.
Os olhos de Janine se iluminam.
– Eu? Ajudar Ella King? Oh, Meu Deus! Ia ser incrível! Já posso até
imaginar, seremos melhores amigas! Vamos, me passe o número dela – pede
pegando o telefone.
Eu lhe passo o número, divertida, me perguntando se não estou sendo
louca de permitir que não só Ella, como também Janine me atormentem com
os preparativos.
Se eu não as deixar sei que será pior.
E na verdade realmente não me importo.
Suspiro quando o telefone toca e escuto a voz de Matthew.
– Não era para estar chegando? – Digo sorrindo.
– Eu sei, liguei para avisar que Ella está exigindo que eu vá com ela
até Augusta.
– Fazer o quê? – Augusta era a capital do Maine, a cidade grande
mais próxima.
– Coisas do casamento, segundo ela.
– Ah, tudo bem.
– Posso levar Sofia? Acho que ela gostaria de ir.
– Claro, pode levá-la. Ela vai adorar – respondo meio desanimada,
por todos estarem indo e eu ficando.
– Para compensar vou levá-la para jantar hoje à noite.
– Ah é? Assim como um encontro?
Ele ri do outro lado da linha e o som parece maravilhoso.
– Acha que Jack se importaria de ficar com Sofia?
– Ele não se importa.
– Então está combinado.

Desligo com um pequeno sorriso. Agora iria contar as horas para a


noite chegar.
Aquele dia ainda me reservava mais uma ligação e me surpreendo ao
atender o telefone e ouvir a voz de Sebastian.
– Tudo bem?
– Oi – parece estranho lidar com ele agora.
– Seu pai me ligou pedindo que eu desse uma olhada em seu carro.
– Ah, não precisa...
– Precisa sim, Jack disse que ele a deixou na mão hoje.
– Sim, ele não pegou de manhã.
– Certo. Vou dar uma olhada, ok?
– Sebastian, sério. Não precisa, meu pai pode verificar.
– Eve, ainda sou o melhor mecânico desta cidade, ok?
Sorrio.
– Está bem.
Ele se despede e eu desligo. Me sinto bem pelas coisas estarem
voltando ao normal entre mim e Sebastian. Como deveria ser.
– E aí, já podemos fechar?
– Acho que sim...
– Eu queria sair logo. Tenho um encontro hoje.
– Ah é? Posso saber com quem?
– Harry Cooper.
– Sempre Harry...
– Pois é, quem sabe agora, ele vendo você toda felizinha com seu
Matthew, ele não pare de sonhar e me faça uma proposta.
– Desejo muito que aconteça, de verdade.
– Então, posso ir?
– Está tudo arrumado?
– Sim chefe!
– Pode ir eu fecho tudo.
Ela coloca o casaco e então se volta.
– Ah, já ia esquecendo! Ontem, depois que saiu com Matthew,
Sebastian voltou aqui e deixou uma blusa sua, parece que esqueceu da última
vez que dormiu lá... – ela pisca maliciosamente, já ia comentar que ela não
tinha que ficar pensando nada, quando levanto a cabeça e vejo Matthew na
porta.
Pelo seu semblante tenso, ouviu o que Janine disse.
E está tirando suas próprias conclusões.
– Oi, Matthew. – Janine acena, sorrindo alheia à tensão. – Que bom
que chegou. Estou saindo! – Ela se afasta, fechando a porta atrás de si e eu o
encaro.
– Oi... Não sabia que viria.
– Ella me contou que está sem carro.
– Ah, sim, é verdade.
Quase nem respiro esperando a explosão que não vem.
– Precisa de ajuda?
– Não, está tudo sob controle. Só vou apagar as luzes e podemos ir.
Sigo para o escritório, desligo tudo e, sobre a cadeira está minha
blusa, que nem me lembrava de ter deixado na casa de Sebastian.
Eu a pego e volto à loja, apagando tudo pelo caminho.
Entro no carro e Matthew fica em silêncio.
Sinceramente? Preferia uma discussão do que esta tensão.
– Vai continuar desse jeito? – Pergunto depois de um tempo.
Ele não diz nada, porém posso sentir sua fúria pela forma como
segura o volante.
– Você está de mau humor por causa de Sebastian – é uma afirmação
e ele não diz nada por um momento até que solta um palavrão.
– Quer que eu me sinta como?
– Quero que pare de ficar deste jeito toda vez que o nome do
Sebastian surge numa conversa. Senão teremos sérios problemas.
– Acha que não estou tentando? Ouvir sobre sua noite passada com
Sebastian, mesmo tendo sido antes de ficarmos noivos...
– Não foi do jeito que está pensando! Dormi no Sebastian sim, mas no
sofá, se quer saber! E aconteceu no dia em que fui contar a ele que íamos nos
casar. Então tire estes pensamentos ridículos de sua mente.
– Você não me deve satisfação sobre o que aconteceu antes. Ele era
seu noivo.
– Se vai ficar neste humor horrível, é melhor que pergunte!
– Não quero saber!
– Ótimo então!
Viro para a janela deixando meu olhar preso lá até que chegamos em
minha casa e, se as coisas estão ruins, com certeza podiam piorar.
Sebastian está verificando o motor do meu carro naquele exato
momento.
– O que ele está fazendo aqui? – Matthew pergunta friamente.
– Não é óbvio?
– Aposto que ele não é o único mecânico nesta cidade. Aliás, seu
próprio pai é um.
– Ele se ofereceu para ajudar.
– Claro que sim...
– Chega Matthew! – Começo a me irritar. – Não vou admitir que
continue agindo assim comigo, entendeu?
– Eu estou de saco cheio de ver este cara rondando...
– Não vou acabar com uma amizade de anos porque você não
consegue lidar com a situação!
– Realmente não sou obrigado a lidar com...
– Ah não? E significa o quê? Vai me dizer algo do tipo “ou eu ou
Sebastian?” Espero sinceramente que não esteja insinuando isto!
Ele respira fundo.
– Estou tentando ok? Juro que tento entender, é difícil! Este cara teve
você por dez anos...
– Ele foi meu amigo por dez anos! E fomos noivos só por alguns
meses! E acabou! Pensei que estivéssemos bem. Que tivesse deixado de ser
um imbecil, pelo visto me enganei!
Um silêncio tenso recai sobre o carro. Lá fora a noite cai e Sebastian
está terminando de mexer no carro. Tenho certeza que nos viu, mas fingiu
não ver.
Jack sai da casa e troca algumas palavras com ele.
Que lança um último olhar ao carro, antes de montar na sua moto e ir
embora.
– Satisfeito? – Pergunto irônica e Matthew passa a mão pelos cabelos.
– Não quero brigar com você.
– Não sou eu que estou sendo uma idiota.
– Evangeline... – ele tenta me tocar, eu me afasto abrindo a porta.
– Estou irritada com você. Melhor ir embora.
– Nós vamos jantar, esqueceu?
– Não mais. Não quero sair com este clima! Tchau!
Bato a porta e Jack está me encarando com o cenho franzido na porta
de casa.
– Estavam brigando?
– Estávamos.
– E tem algo a ver com o Sebastian.
– Tudo a ver. O Matthew precisa entender que somos amigos e não
vou afastá-lo por causa dele, não seria justo.
– Sou capaz de entender o garoto e também acho que não tem como
afastar o Sebastian. Ele foi um bom amigo para você todo este tempo.
– Queria que Matthew entendesse. – Começo a sentir todo o peso
daquela discussão me extenuar. – Tenho medo... que ele nunca entenda. –
Confesso com uma imensa vontade de chorar.
– Dê tempo ao tempo. Toda esta história, troca de noivo... aconteceu
muito rápido.
Respiro fundo, tentando desfazer o nó na minha garganta.
– Sofia está aí?
– Está fazendo lição no quarto.
– Vou entrar e fazer o jantar, então.
– Não ia sair com o Matthew?
– Não mais. Não existe clima para jantar a dois.
– Entendi... Pelo menos Sofia será poupada da minha comida.
Sorrio sem humor e começo a preparar o jantar.
O tempo inteiro me sentindo pesada, como se algo me puxasse para
baixo.
Sofia conta como foi a viagem a Augusta e claro, Ella não se limitou a
comprar coisas para o casamento, também lhe deu mais presentes. Desta vez
nem tenho vontade de ficar brava.
Só pensando em como conseguirei sair daquela situação com
Matthew.
Tudo parecia tão bem, tão certo...
Se Matthew continuar a implicar com Sebastian, como vai ser?
Até consigo entender seu ciúme. Só não posso afastar Sebastian da
minha vida. Ele foi meu melhor amigo e me apoiou com Sofia quando eu
mais precisava. Não seria justo afastá-lo.
– Mamãe? – Eu me viro para Sofia que está quase dormindo.
– Sim, querida?
– Estou tão feliz que vamos morar com o papai.
Sorrio e beijo seus cabelos.
– Eu também, meu amor. Eu também.
Depois que ela adormece, estou me perguntando se os planos de
Matthew são estes, quando meu telefone toca.
Meu coração dispara porque só pode ser uma pessoa.
Atendo tentando respirar normalmente.
– Oi, Matthew.
– Estou em frente a sua casa.
Eu me levanto e olho pela janela.
E lá está seu carro.
Mordo os lábios. Entre aliviada e ansiosa.
– É tarde.
– Preciso falar com você.
Fecho os olhos.
– Não vou transar com você – e realmente estou sendo sincera.
Sexo no final das contas não resolvia nada.
– Eu não quero só sexo de você. Vim porque me sinto péssimo por ter
te aborrecido e quero consertar as coisas.
– Não estou mais aborrecida. – E é verdade.
– Então desça.
– Não.
– Por favor. Só... venha ficar comigo.
Ah Deus, se ele não fosse tão persuasivo.
Se eu não fosse tão fraca...
– Tudo bem vou descer.
Matthew

Às vezes me sinto um idiota.


Ou na maior parte do tempo em que estou com Evangeline e me dou
conta de que dez anos se passaram e Sebastian Blake foi quem passou todo
este tempo com ela e minha filha.
Na verdade a raiva é de mim mesmo. Se eu não tivesse ido embora,
teria descoberto sua gravidez. Então tudo teria sido diferente.
Ou não?
Estava com tanta raiva e mágoa na época...
Será que teria passado por cima da minha raiva? Não sei dizer. Até
dias atrás ainda sentia o mesmo ressentimento. Descobrir sobre Sofia mudou
tudo, sem dúvida. Tive que rever muitos conceitos sobre o que era realmente
importante. E então fui capaz de perceber que não poderia ficar para sempre
com aquela raiva, por algo acontecido faz tanto tempo.
Não quando ainda havia outros sentimentos muito mais profundos e
muito mais difíceis de serem ignorados, com os quais tínhamos que conviver.
E tomar a decisão de me casar com ela foi simplesmente dar vazão a
meus desejos mais secretos e antigos. Eu queria Sofia. Ela era minha filha e
já havia perdido quase dez anos de sua vida. E queria Evangeline também.
Queria as duas. Para sempre.
Passei dez anos tendo relacionamentos vazios e superficiais,
acreditando que era incapaz de sentir algo profundo por alguém. Não depois
da decepção com Evangeline.
Agora sei que não podia sentir nada por ninguém, porque nunca fui
capaz de esquecê-la. Era simples assim.
E iríamos nos casar, contra todas as probabilidades. Estava sendo
perfeito.
Não fosse o fantasma de Sebastian Blake pairando sobre nós.
E, por mais que eu tivesse ido para casa hoje e pensado que precisava
entender que ele fazia parte da vida dela, estava sendo difícil esquecer que
foram noivos. Que estariam prestes a se casar se não fosse a minha ameaça de
tirar Sofia dela.
Sabia que teria que tentar passar por cima do meu ciúme e pedir
desculpas. Não podia perdê-la novamente.
Não agora.
Então aqui estou em frente a sua casa. Abro a porta ao ouvir seus
passos e ela entra. Seu cheiro peculiar invade o carro e aspiro com força.
Sinto-me tão bem perto dela. E lamento demais nossa briga de hoje à
tarde. Digo a ela depois de alguns momentos de silêncio.
– Me desculpe. Sinto muito por ter brigado com você hoje.
– Também sinto. Não quero brigar com você. E muito menos brigar
por causa de Sebastian.
– Queria que você tentasse entender o quanto essa convivência é
difícil para mim.
– Eu sei. Só não posso simplesmente deixar de ser amiga dele. Fomos
amigos a vida inteira. E ele me ajudou demais todos estes anos.
– É o que me deixa com mais ciúme. Saber que ele teve o direito de
ficar com você e Sofia todo este tempo.
– Não fui noiva de Sebastian todo este tempo. Só ficamos noivos há
alguns meses.
– Você estava apaixonada por ele?
– Não.
Solto o ar lentamente só então percebendo que estava esperando a
resposta sem respirar.
– Então por que quis casar?
Ela olha para a frente fixamente enquanto formula sua resposta.
– Porque ele pediu e me pareceu muito certo aceitar naquele
momento. Ele sempre foi apaixonado por mim. E nunca pude retribuir. Então,
de repente, ele me diz que quer se casar comigo e me ajudar a cuidar de
Sofia... Me pareceu muito egoísta não aceitar, entende? Sei lá, achei que algo
podia mudar, que conseguiria retribuir a paixão dele.
– E retribuiu?
– Não... nada mudou. – Ela me fita através da semiescuridão do carro.
– Nunca fui para cama com Sebastian. Nunca chegamos nem perto disto.
Franzo a testa, descrente. Como alguém podia tê-la a sua disposição e
não querer transar com ela?
– Como foi possível?
Sei que ela está corando, mesmo sem ver direito.
Ela morde os lábios.
– Eu sempre dizia não. Sei que não foi justo. Devia ter percebido que
Sebastian nunca deixaria de ser meu amigo, pois sequer queria transar com
ele.
– Mesmo assim vocês iam se casar em poucas semanas.
– Tinha medo de estar cometendo um erro. Cada vez mais eu percebia
que algo não se encaixava... apesar disso insisti. Como podia voltar atrás? E
de repente você voltou... E tudo ficou pior. Acho que Sebastian percebeu
minha hesitação e insistiu em marcar a data do casamento.
– E você aceitou se casar comigo por causa de Sofia.
Ela fica em silêncio por alguns instantes então sinto sua mão na
minha. Entrelaço meus dedos nos dela, dizendo a mim mesmo que não
importam seus motivos.
Ela está aqui e vai ser minha em pouco tempo.
Seremos uma família. Eu, ela e Sofia.
Só que eu desejo mais. Talvez dentro de mim ainda haja um resquício
daquele adolescente ingênuo que um dia esteve com ela no interior de um
carro e disse que a amava.
Eu podia dizer novamente. Posso sentir as palavras se formando
dentro de mim.
O sentimento continua latente.
Não consigo.
Talvez também ainda haja em mim um pouco do cara que passou dez
anos ressentido e humilhado.
– Hoje, depois que nos viu juntos, Sebastian comentou que eu agia
como se mal pudesse esperar para arrastar você para cama.
– Você e Sebastian falando de mim?
Ela ri e leva minha mão a seus lábios.
– Não foi bem assim. Foi apenas uma constatação. Verdadeira, por
sinal. – Sinto seus olhos de novo. Ela está mais próxima. Aquela velha
atração, poderosa e irresistível se alastrando.
– O que eu quero dizer, é que sim, aceitei porque você disse que ia
pedir a guarda de Sofia. E eu jamais poderia permitir que acontecesse. – Ela
diz por fim. – Sim, Sofia é importante, não poderia ser diferente, ela é a
pessoa mais importante da minha vida. Tudo o que eu faço tem a ver com ela,
no entanto, agora sei o que quero, Matthew. Quero realmente me casar com
você. Acredito realmente que estou agindo certo desta vez. Não há...
hesitação, como havia com Sebastian. O tempo inteiro sentia que algo estava
tremendamente errado e me esforçava para me convencer que estava fazendo
a coisa certa. Não é mais assim. Eu e você, juntos... mal posso esperar. É...
perfeito. E sim, Sebastian tem razão. Mal posso esperar para ir para a cama
com você. Na verdade mal posso nesse momento...
Eu a beijo, engolindo suas palavras. Porque também sinto que é certo.
Que nós dois juntos somos perfeitos.
E também mal posso esperar para levá-la para a cama.
Então deixo todos os problemas com Sebastian Blake de fora e a
abraço, trazendo-a para mim, ouvindo-a suspirar e se moldar aos meus
braços, onde é seu lugar.
Ela é toda minha. Cada centímetro de sua pele macia e branca. Seus
gemidos suaves em meus ouvidos, quando deslizo meus lábios por seu rosto
corado até a veia que pulsa em sua garganta.
Mas ela se afasta, quando meus dedos tentam se apossar daquilo que é
meu.
– Não, não... eu disse que não ia transar com você. – Reluta ofegante,
segurando meus pulsos que estão quase sobre seus seios.
– Você disse que mal podia conter a vontade de me levar para a cama.
Ela ri, afastando minhas mãos.
– Disse bem: cama. Acho que devemos esperar e fazer as coisas
direito. Não somos mais adolescentes para ficar nos pegando no carro.
– Não tenho nada contra carros. Aliás, com você, qualquer lugar para
mim está de bom tamanho.
– Também não tenho. Mas somos pais agora. Acho que não custa
nada sermos um pouquinho caretas.
Falar de Sofia me faz voltar à realidade também.
– Você tem razão.
– Acho melhor eu entrar, está tarde.
– Ah, já ia esquecendo. Ella pediu para avisar que haverá um jantar de
noivado em minha casa sábado.
Ela solta um suspiro desalentado.
– Até havia me esquecido da sua família.
– Não se preocupe com eles. Todos estão aceitando bem nosso
casamento.
– Ah, claro, quer que eu acredite que Emily me aceita? Desculpe se eu
duvido.
– Não se preocupe com ela.
– Tudo bem. Está certo. Jantar com os King.
– E convidados – completo e ela faz uma careta. – Aposto que Ella até
já comprou seu vestido.
– Certo. Acho que terei que me acostumar. – Ela abre a porta do
carro.
– Nem um beijo de despedida?
Ela ri e se aproxima me beijando de novo, se afastando em seguida.
– Até amanhã.
Eu a vejo entrar em casa e fechar a porta e só então vou embora.
Ansioso para que os dias passem rápido, para enfim, não haver mais
despedidas.
***
– Acho que vocês podiam ir para Paris! – Ella fala sem parar na
manhã seguinte enquanto tomamos café, sobre a viagem que devíamos fazer
na lua de mel, quando Emily entra na sala com cara de poucos amigos e se
senta à mesa.
– Quem vai para Paris?
– Ninguém – resmungo.
– Estou dizendo a Matthew que ele podia levar Evangeline a Paris.
Não seria demais?
Emily rola os olhos.
– Este assunto não me interessa.
– Que ótimo, Emily. Sempre sonhei com o dia em que minha vida
amorosa não interessaria mais a você – digo friamente.
Nós quase não nos falávamos desde que anunciei o casamento.
Ela me fuzila com o olhar.
– Eu deveria mesmo não me importar. Sou uma idiota, não é?
Aparentemente, dessa família, só eu me preocupo com você.
– Não há motivo algum para você estar preocupada.
– Espero de verdade que não – diz secamente.
– Emily, já escolheu o vestido para a festa de sábado? – Ella
questiona.
– Tenho realmente que participar?
– Eu não faço questão – digo, me levantando. – E se resolver
participar quero que trate Evangeline muito bem, não vou admitir que a
destrate, entendeu?
Ela não responde e saio da sala pisando duro.
– Avise a Evangeline e Sofia que vou buscá-las hoje à tarde para
escolhermos os vestidos! – Ella grita da copa. Nem respondo. Estou muito
cansado das atitudes de Emily. Até entendo que se preocupe. Ela sabe o que
passei há dez anos e como me comportei por causa daquilo, só que também
precisa entender que tudo mudou.
Sofia já está toda arrumada me esperando à porta com Evangeline do
seu lado, quando chego. Ela corre para o carro, pois está chovendo e
Evangeline a cobre com a blusa até que entre no carro.
– Não quer uma carona? – Pergunto depois de beijar Sofia. Ela já
voltou para a varanda para se proteger da chuva.
– Não, obrigada! Cuidado na estrada viu?
– Sim, senhora – pisco e dou partida.
Sofia mexe no rádio até encontrar uma música e sorrio para ela.
– Você está muito bonita hoje, Sofia – Agora que Ella a veste, cada
dia é uma roupa diferente.
– Tia Ella que escolheu!
– Sua tia tem bom gosto. Aliás, esqueci de avisar sua mãe que Ella
disse que vocês vão sair hoje à tarde para comprar vestidos ou algo assim.
– Oba! Será que é o vestido de noiva?
– Não sei.
Me pergunto se Evangeline se casaria com o mesmo vestido que a vi
experimentando quando a reencontrei.
Provavelmente Ella não permitiria.
– Eu quero muito ajudar a escolher! Tia Ella me disse que posso
ajudar a escolher tudo!
– Aposto que sim.
– Estou tão feliz que vocês vão se casar! Mal posso esperar!
– Eu também. – Sorrio de seu entusiasmo.
De repente ela fica em silêncio.
– Posso perguntar uma coisa?
– Claro que sim.
– A Aria, amiga da minha mãe, se casou faz um tempinho...
– Sim, conheço a Aria. – Fico pensando aonde ela pretende chegar
com aquele assunto.
– E agora ela vai ter um bebê.
Então entendo.
Estou parando o carro em frente à escola e a encaro.
– E eu queria saber... Você e minha mãe vão ter um bebê também?
Penso nisto. Nesta possibilidade.
Até agora nada do tipo tinha passado por minha mente. Agora posso
ver claramente. E gosto do que vejo.
Sorrio ao imaginar Evangeline grávida. Poderíamos criar um bebê
juntos desde o começo. Até ele se transformar numa criança tão linda quanto
Sofia.
Sim, eu gosto demais desta ideia.
– E você? Gostaria? – Pergunto.
Ela sorri toda empolgada.
– Sim, sempre quis ter um irmãozinho! Ou uma irmãzinha! Ia ser tão
legal! Então é verdade, vocês vão ter um bebê?
Sorrio a abraçando e beijando sua testa.
– Vou conversar com sua mãe sobre o assunto, tudo bem?
– Ah, convence ela, por favor! Eu ia adorar!
Ela sai do carro me lançando um beijo no ar e se afasta para a escola.
Fico me perguntando o que Evangeline acharia da ideia de Sofia.

Entro na livraria e a encontro conversando com Harry Cooper.


Eles se viram ao ouvir o barulho da porta e Harry parece um
adolescente pego em flagrante.
Sinto um certo ciúme. Lembro de Carter dizendo tê-la visto saindo do
carro dele no baile.
E me pergunto o que realmente acontecia entre eles.
E se não teria acontecido mais nada nestes dez anos. Evangeline disse
que nunca dormiu com Sebastian, mas provavelmente houve outros caras em
sua vida. E me perguntava se Harry Cooper seria um deles.
– Oi! – Ela me cumprimenta sorrindo e esqueço tudo de ruim por um
momento.
– Oi, espero não estar atrapalhando.
– Não está – Harry responde. – Já estava de saída.
– Obrigada, Harry. – Evangeline agradece enquanto ele se afasta com
um aceno.
– Não sabia que viria aqui.
– Qual o lance com Harry Cooper?
Ela para de sorrir, cruzando os braços em frente ao peito.
– Lance? O que quer dizer?
– Não estou insinuando nada.
– Pois senti que insinuou sim. E não gostei nem um pouco. Eu te falei
que estava tratando da venda da livraria com o Harry.
– Achei que fosse com o pai dele.
– É a mesma coisa! Não acredito que está insinuando que eu e
Harry... ! – Ela mal respira.
– Me desculpe. Eu realmente não acho nada disto. Só fico curioso
para saber se não rolou nada entre vocês nestes anos, ele, obviamente, tem
uma queda por você ainda. E você foi com ele ao baile.
– Ah, claro e, segundo seu cunhado idiota, estava me pegando
loucamente com ele no carro depois.
– Evangeline... – já começo a me arrepender de ter começado aquele
assunto.
– Se quer saber, não, nunca rolou nada entre nós. Tirando um beijo no
carro na noite do baile, o que me fez fugir correndo de suas investidas. E
nunca mais nada. Harry fica com a Janine, na verdade.
– Ele tem uma queda por você.
– Tem, nunca foi recíproca, fim de papo. Satisfeito?
– Me desculpe. – Eu me aproximo. – Sei que sou um idiota. Sinto
ciúmes de você. É inevitável.
Toco seu rosto e ela se aproxima automaticamente.
– Não deveria.
– Todos estes caras te rondando...
– Nunca fui de nenhum deles.
– Eu não deveria brigar com você por isto. Você não me deve
satisfação de nada do que aconteceu nestes dez anos.
– Não aconteceu tanta coisa assim – ela dá de ombros.
Eu fico curioso. Muito na verdade. Já imagino todas as possibilidades.
Quero saber? Realmente?
Então resolvo mudar de assunto.
Já havíamos nos desentendido vezes demais naqueles dias. E queria
apenas seguir em frente, somente as possibilidades a partir de agora
contavam.
Eu a puxo pela cintura beijando-a devagar, depois a encaro.
– O que veio fazer aqui mesmo? – Ela sorri, passando os braços em
volta do meu pescoço.
– Tive uma conversa muito interessante com Sofia hoje.
– Ah é?
– Ela me perguntou se teríamos um bebê.
Capítulo 23

Evangeline

– Como é? Pergunto confusa. – Sofia perguntou a você sobre filhos?


Ele está sorrindo.
– Sim, veio com um papo sobre Aria ter casado e depois ter ficado
grávida então perguntou se você também teria um bebê.
– Oh meu Deus, de onde ela tirou esta ideia?
– É a lógica dela. Sofia é uma criança curiosa. Primeiro perguntei o
que ela achava do assunto e ela ficou toda animada, dizendo que sempre quis
ter um irmãozinho.
– Jura que ela falou isto?
– Falou.
Eu me mexo incomodada saindo do círculo dos seus braços.
Minha mente dá voltas no assunto: gravidez e bebês.
Eu já estive grávida de Matthew antes. E passei por tudo sozinha. Se
bem que agora seria diferente, não é? De repente a possibilidade parece bem
real e me faz prender a respiração por um momento enquanto o encaro.
– O que você disse a ela?
– Que iria perguntar a você.
– A mim?
– Sim você teria que querer também, não é?
Ah Deus, eu quero?
– E você o que acha? – Pergunto num fio de voz.
– Eu gostaria muito. – Ele sorri e sinto meu coração vir à boca.
– Sério? – Pergunto com um nó na garganta.
Saber que Matthew quer ter um filho comigo. Que realmente quer,
depois de tudo, de Sofia... É demais para mim.
– Se você também quiser, claro. – Ele me puxa para si de novo, a
pergunta pairando entre nós.
– Sim, quero ter outro bebê seu.
– Então esta é mais uma coisa que mal posso esperar. – Ele sorri
lindamente e me beija.
– Uau, isto que eu chamo de beijo. – Escuto a voz de Janine e me
afasto dele, ruborizada.
Janine entra na livraria tirando o casaco.
– Atrasada, hein? – Resmungo e ela ri.
– E você estava aproveitando, não é? Posso voltar e me atrasar mais
um pouco, estou precisando fazer as unhas...
– Nem pense nisto. Matthew já está de saída.
– Ah, certo então. – Ela passa por nós e entra no escritório.
– Está me dispensando? – Pergunta brincalhão e dou de ombros.
– Preciso trabalhar.
– Isto me lembra que ainda não me explicou direito este negócio da
venda da livraria.
Mordo os lábios, desviando o olhar.
– Vou te explicar, prometo.
– Hoje à noite?
– Não sei. Não esqueça que vou sair com a sua irmã e sabe Deus a
que horas ela vai me libertar.
– Você vai ter que me explicar em algum momento.
– Prometo.
Ele me beija de novo e sai contra a vontade.
Janine retorna.
– Ah, alguém está apaixonada...
– Pare com isto! – Reclamo, embora esteja rindo. – Você pode ficar
sozinha um pouco?
– Aonde vai?
– Tenho que resolver uns assuntos. Te explico depois pode ser?
– Claro.

Sinto-me ligeiramente deprimida quando entro na livraria naquela


tarde.
Janine está atendendo um cliente e me pergunto o que ela achará do
que tenho a dizer.
Caminho por entre as prateleiras, cheia de pesar.A livraria não me
pertence mais. Assinei os papéis de venda naquela tarde. De manhã estive
com o advogado revisando a papelada. Passei quase dez anos entre aquelas
paredes. E agora teria que me despedir delas.
Era preciso. Precisava resolver uma última pendência do passado para
finalmente conseguir seguir em frente.
E rezar para que fosse suficiente.
– Ei, o que foi? – Janine pergunta e sorrio tristemente.
– Preciso te contar uma coisa...
***
– Ei, chegamos! – A voz de Ella King nos interrompe e vejo Sofia
correndo para mim como um pequeno furacão.
– Oi, mamãe!
– Oi, querida!
– E então, preparada? – Ella pergunta e reviro os olhos.
– Não sei se preparada seria a palavra correta...
– Não seja chata! Vai gostar, não é Sofia?
– Sim, vai ser demais, mamãe!
Olho para Janine.
– Tudo bem ficar o resto do dia sozinha?
– Sem problemas! Divirtam-se!
– Eu lhe trarei um presente, para compensar. – Ella pisca e Janine
sorri, empolgada.
Como prometido, não foi infernal como eu imaginava. Era só deixar
Sofia e Ella resolverem tudo.
Ao fim da tarde, em vez de me levar para casa, Ella me leva para a
casa dos King, dizendo que Matthew nos esperava lá e que ele nos levaria
embora.
Sofia sai do carro e corre, entusiasmada, eu e Ella a seguimos.
Ainda me sinto deslocada ao entrar ali e, pensar que em poucas
semanas esta será a minha casa, é assustador. Quer dizer, nós não havíamos
conversado sobre questões práticas ainda. A verdade era que ele não morava
na cidade, só estava de passagem para os feriados. Isto significava que
teríamos que nos mudar? E como eu me sentia sobre essa possibilidade? Não
conseguia encontrar uma resposta. Tudo estava acontecendo rápido demais.
Emily e Evelyn estão na sala.
Emily está lendo uma revista e não levanta o olhar.
– Oi Evangeline. – Evelyn me cumprimenta cordialmente. – Vai
jantar conosco?
– Não, obrigada. Nós já vamos embora.
– Espero que Ella não tenha te cansado muito.
– Imagine! Nunca canso ninguém – Ella ri.
Sofia surge no corredor segurando a mão de Matthew.
Eu me sinto melhor ao vê-lo.
Apesar de a hostilidade de Emily ainda me preocupar.
– Vamos?
– Sim – digo, aliviada.
Nos despedimos e saímos, em vez de ir para o carro ele segura minha
mão.
– Na verdade, pedi que viessem porque quero mostrar algo a vocês.
– Mostrar o que, papai? – Sofia pergunta curiosa e ele sorri.
– Vamos caminhando, logo verá.
Eu o olho, curiosa, enquanto Sofia vai pulando na frente.
– O que está acontecendo?
– É uma surpresa.
– Ah, sei... Não sei se gosto...
– Espero que goste.
– Sua irmã, Emily... Ela me odeia ainda, não é? – Pergunto, ao ver
que Sofia se afastou e não está ouvindo.
– Já falei para não se preocupar com ela.
– Como não me preocupar? Não sei se poderemos conviver, Matthew.
– Bom, se sua preocupação é esta, pode ficar tranquila. Emily vai
embora depois do natal para Boston, é onde ela e Carter vivem.
– E você mora em Nova York.
– Sobre isto...
Nós paramos e olho em volta.
Estamos em frente a uma grande casa, ainda na marina.
– Que casa é esta? – Sofia pergunta se aproximando.
– Pode ser nossa casa, se concordarem.
Arregalo os olhos.
– Nossa?
– Sim.
– Você mora em Nova York...
– Você e Sofia moram aqui. E é onde quero ficar com vocês.
– Nossa... é tão inesperado.
– Quero morar nesta casa! Eu quero! – Sofia pula. – Vou ter um
quarto?
– Claro que vai – Matthew sorri e me olha. – E então? Posso fechar o
negócio?
– Pode. Vou adorar morar com você e Sofia.
Ele sorri.
– E mais um bebê?
– Bebê? – Sofia escuta.
Eu e Matthew sorrimos um para o outro e a encaramos.
– É apenas uma ideia, ok? Pode demorar muito ainda. – Digo, ela
parece não se importar.
– Então você a convenceu? – Pergunta a Matthew e ele ri.
– Convenci – diz piscando para mim.
– Que legal! – Sofia nos abraça tão feliz que tenho vontade de
engravidar naquele momento só para vê-la mais feliz ainda.
Mas é cedo.
Meu relacionamento com Matthew é frágil e recente...
Melhor deixar que tudo aconteça no seu devido tempo.
Capítulo 24

Evangeline

– Pensei que era somente um jantar. – Comento estupefata, quando


Jack para o carro em frente a casa dos King na noite de sábado.
– Acho que já deveríamos saber o quanto Ella King é exagerada, não
é? – Jack ri saindo do carro segurando a mão de Sofia.
– Está tudo iluminado, que bonito! – Ela comenta.
Sim, está tudo iluminado e vejo vários carros estacionados no jardim.
Lembra-me demais a primeira noite em que estive ali. Tão ansiosa e
nervosa. A noite que definiu minha vida até então. Para bem e para o mal.
Bom, eu esperava que esta fosse a noite que definiria o resto da minha
vida. E que, desta vez, eu estivesse agindo da maneira certa.
Nós nos aproximamos da porta que Ella abre toda linda num vestido
lilás.
– Uau, você está maravilhosa! – Diz, me medindo.
– Claro você escolheu – afirmo corando.
Estou usando um vestido preto de cetim.
– E eu não estou bonita, tia Ella? – Sofia pergunta em seu vestido de
veludo vermelho.
– Sim, a mais linda da festa.
– Achei que fosse um jantar – Ella rola os olhos.
– Jantar, festa, tudo a mesma coisa! E você, Jack, que elegante!
Entrem muitos convidados já chegaram!
– Cadê o Matthew?
– Acho que está no quarto dele. Se quiser ir chamá-lo... Já era para ter
descido.
Subo para o quarto de Matthew, sorrindo para as pessoas que vejo no
caminho, reconhecendo algumas delas como Aria e Janine tomando um drink
num canto.
Abro a porta e o vejo de costas contra a janela e me aproximo o
abraçando pela cintura, encostando meu rosto nele.
– Eu a vi chegando – diz, tocando minha mão. – Do mesmo jeito que
dez anos atrás.
Fico um pouco tensa. Não gosto deste assunto. Não gosto de me
lembrar de como tudo começou errado, se tornou perfeito e depois virou um
desastre completo.
Sei que em algum momento teremos que falar do assunto se
quisermos realmente seguir em frente.
Não hoje.
Hoje quero apenas ser uma noiva feliz. Como se tivéssemos acabado
de nos conhecer e não existissem dez anos de sofrimento na nossa história.
– Estava disposto a permanecer aqui no quarto, sem a menor vontade
de participar de mais uma festa de Emily e Ella. Aí você apareceu...
Ele se vira.
– E você está linda. – Ele sorri. Sua gravata está desfeita e ele parece
extremamente convidativo. O que me faz esquecer por um momento o
assunto que desejo evitar e apenas apreciá-lo.
Estava com muita saudade de ficar com ele.
Nos dias anteriores, antes da festa, além de alguns beijos rápidos, não
tínhamos ficado sozinhos. Ele me ligava antes de dormir e ficava me
tentando, dizendo que ia parar o carro em frente a minha casa, eu havia
resistido bravamente.
Estava falando sério querendo ser cautelosa. O que só aumentava a
vontade que eu tinha dele.
– Você não está nada mal – digo, arrumando sua gravata.
– Eu vou te beijar.
– Não acho uma boa ideia. – Quero desesperadamente que ele me
beije, mas tenho receio que um beijo não seja suficiente.
Estar com Matthew, em um quarto, era demais para meu autocontrole.
Apesar disso, contrariando minha resposta, fico na ponta dos pés quando
termino e deposito um beijo quase casto em seus lábios.
Ele sorri de lado, colocando as mãos na minha cintura me puxando
em sua direção.
– Vou te beijar do jeito certo agora...
Obviamente não tenho forças para negar antes que sua boca se aposse
da minha com vontade.
Só me resta passar os braços em volta de sua nuca e deixar que o beijo
dele faça sua mágica em mim. Como sempre.
Como vindo de muito longe, escuto um pigarro e Matthew levanta a
cabeça, olhando para porta com cara de poucos amigos.
– Ella está procurando vocês.
A voz contrariada é de Emily e me afasto, sem graça.
– Nós já vamos – Matthew responde.
Emily hesita um momento, olhando para mim com clara hostilidade,
antes de sair do quarto.
– Sua irmã continua me odiando.
– Ignore-a.
Respiro fundo e me recomponho.
Emily tinha suas razões para não confiar em mim, porém eu esperava
que, como os outros, ela começasse a me aceitar agora que ia me casar com
Matthew.
Pelo visto, não seria fácil.
– Acho melhor a gente descer.
Matthew segura minha mão.
– Sim, vamos. Embora eu preferisse mil vezes ficar com você aqui.
Sorrio para ele.
– Mais tarde...
Ele levanta a sobrancelha.
– O que isto significa?
– Que uma pessoinha muito insistente pediu para dormir aqui hoje e
eu, como boa mãe que sou, resolvi deixar. E claro, se Sofia dorme em sua
casa eu também durmo.
Matthew aperta meus dedos entre os dele.
– Esta sim é uma boa notícia
– Finalmente vocês apareceram! – Ella resmunga quando descemos as
escadas. – Tem um tanto de gente querendo ver vocês!
– Não surte Ella. – Matthew lhe dá tapinhas na cabeça e ela rola os
olhos, se afastando.
– Sua irmã é meio assustadora às vezes – brinco e ele ri.
– Se ela está assim agora, imagine como não estará no dia do
casamento. – Ele comenta.
– Podemos fugir e casar escondido.
– Nem pensar. Demorei tempo demais para poder mostrar para todo
mundo que você vai ser minha. Não quero fazer nada escondido.
Mordo os lábios, meu coração disparando, enquanto ele me guia por
entre os convidados que nos cumprimentam.
Até que de repente vejo meu pai. E paro chocada.
Ao lado dele está Sebastian.
Automaticamente olho para Matthew, ficando tensa. Para minha
surpresa, ele não parece chocado como eu.
Na verdade está estranhamente calmo.
– Está tudo bem. Vamos cumprimentá-lo.
Ele me puxa para onde eles estão e Sebastian sorri ao me ver.
– Oi, Eve.
– Sebastian... Estou surpresa de vê-lo aqui.
Ele era meu melhor amigo, porém depois de quase termos nos casado,
não passou pela minha cabeça que ele gostaria de estar na minha festa de
noivado com outro homem.
– Recebi um convite.
– Oh... Eu nem sei quem foi convidado para esta festa. Na verdade,
nem sabia que seria uma festa... – eu o encaro. – E de maneira alguma
esperava que você quisesse vir.
– Também tive estas mesmas dúvidas. Mas você é minha melhor
amiga. Estive presente em todos os momentos importantes da sua vida. Quero
estar presente neste também.
Eu engulo o nó na minha garganta. Com uma súbita vontade de
chorar. Ou de abraçar Sebastian. Me contenho. Matthew parece calmo, com a
presença dele, o que acho ainda muito estranho, com certeza não continuaria
assim se eu o abraçasse.
– Obrigada por vir. Está tudo perfeito agora.
– Agradeça ao Matthew também.
Olho para Matthew, sem entender.
– Ele e Sofia estiveram na minha casa para me convidar
pessoalmente.
Antes que Matthew possa dizer alguma coisa, Sofia aparece correndo
e abraça Sebastian.
– Sebastian, você veio!
Eu me afasto com Matthew e o encaro.
– Você fez realmente isto? – Pergunto intrigada.
– Sim. Pensei muito depois da nossa briga. E já passou da hora de eu
parar com este ciúme.
– Quer dizer que não sente mais ciúme do Sebastian.
– Não foi o que eu disse. Acho que sempre vou sentir ciúme de você.
Não só com ele. Só estou tentando ser civilizado. E sabia que a presença dele
te deixaria feliz. E quero te fazer feliz.
Pela segunda vez naquela noite minha garganta se aperta. Assim
como meu coração.
– Obrigada. É realmente importante para mim.
Ele sorri, deslizando a mão para minha cintura. Eu me arrepio.
– Você é importante para mim.
Perco o fôlego e, ficando na ponta dos pés, beijo seu rosto
murmurando em seu ouvido.
– No fim da noite vou te mostrar quão importante você é para mim.
E me afasto quando Ella se aproxima, exigindo nossa presença em
algum lugar.
E tudo é muito suportável, porque eu sei que em poucas horas,
seremos somente eu e ele.
Ninguém mais.
***
– Parece que alguém está caindo de sono – digo, vendo Sofia bocejar.
Praticamente todos os convidados já se foram. E os que não foram,
estão se despedindo, mal posso esperar para tirar aquele salto.
E aquela roupa.
E as roupas de Matthew.
– Não estou, não. – Ela luta para ficar de olhos abertos, Matthew ri a
pega no colo.
– Vamos, vou levá-la para dormir, já passou da sua hora.
– Eu não quero.
– Já passou da hora de criança estar na cama. – Ele diz firmemente,
levando-a escada acima, o que me faz ter esperança que pare de mimá-la e
não deixe a parte de ser chata só para mim.
– Eu também já vou, Eve. – Meu pai diz. Sebastian está com ele.
Eu o abraço e ele se afasta.
Sebastian se aproxima e o abraço também.
– Estou feliz que tenha vindo. – De verdade.
– Eu também.
– Sério mesmo?
– Sim. Vejo que você está fazendo a coisa certa, finalmente.
– Então posso te esperar no meu casamento?
– Com certeza – ele sorri.
Ainda é um sorriso meio triste. Mas acho que ele está a caminho da
superação.
E vou ficar feliz quando tiver superado de verdade.
Depois que vai embora, volto para sala e vejo Carter.
– Carter, posso conversar com você um instante?
– Comigo? – Ele parece meio desconfortável com a minha seriedade.
– Sim, podemos ir ao escritório?
– Claro.
Ele parece intrigado.
Paro para pegar minha bolsa no vestíbulo e o acompanho, fechando a
porta atrás de mim.
– E aí? – Ele pergunta sem entender.
– Acho que tenho uma dívida com você.
Ele franze a testa.
– E dívidas precisam ser pagas, mesmo que com dez anos de atraso.
Abro minha bolsa retirando o cheque e lhe estendendo.
– Evangeline... realmente... achei que este assunto estava esquecido...
– Não estará enquanto não estiver quitado.
– Nunca esperei que você fosse me pagar...
– Não me interessa. Eu disse que pagaria e estou pagando.
– Posso me recusar a aceitar.
– Você vai aceitar. Por favor.
– Por que agora?
– Porque preciso realmente que este assunto do passado morra de vez.
Só assim poderemos seguir em frente
– Você e Matthew já estão seguindo em frente...
– Este assunto é entre eu e você. – Insisto. – Não quero mais me sentir
suja e errada. Falei muito sério quando disse que não queria dinheiro nenhum
para sair com seu cunhado.
– Então por que mudou de ideia e aceitou?
– Porque eu precisava. Meu pai estava endividado por causa da minha
faculdade. Apesar disso foi o maior erro que cometi. Menti quando disse que
não sentia nada pelo Mathew. Eu sentia sim, só que achava que não ia sair
nada de bom. Éramos diferentes, como água e vinho. Vocês eram os King e
eu era... comum. Tinha medo de me aproximar do Matthew e me apaixonar
por ele.
– Ele estava apaixonado por você.
– Eu não sabia. Não o conhecia. Pensava que era só um capricho. Ou
era o que eu dizia enquanto concordava em sair com ele pelo seu dinheiro.
Era quase... Uma punição. Não fazia ideia do que ia acontecer. Não queria me
apaixonar por ele. Foi inevitável.
– E nós o tiramos da sua vida do mesmo jeito que colocamos.
– Isto não importa mais. Vocês queriam protegê-lo. Talvez eu fizesse
o mesmo.
– Você estava grávida e ficou sozinha.
– Isto nunca poderá ser mudado. Vocês fizeram o que acharam certo
no momento. E eu também. – Seguro sua mão e coloco o cheque nela. –
Espero estar fazendo o certo agora.
– O que está acontecendo aqui?
Eu me viro ao ouvir a voz fria de Emily.
– Oi, amor... então... – Carter se enrola para responder.
– O que é isto na sua mão?
Emily avança tirando o cheque da mão dele e me encara.
– Está pedindo mais dinheiro?
Eu teria rido, se não fosse a seriedade da situação.
– Claro que não Emily! – Carter diz.
– Então por que está dando dinheiro a ela?
– E por que você tem sempre que pensar o pior de mim? – Rebato. –
Se olhar mais atentamente, verá que o cheque é meu e não do Carter!
Ela olha para o cheque constatando o que falei.
– E o que significa?
– Que estou pagando minha dívida.
– Agora? Acha que seu gesto vai resolver alguma coisa? Acha que vai
se transformar numa santa?
– Não. Só quero saldar uma dívida. Já devia ter feito isto há muito
tempo.
– Você é muito cara de pau isto sim!
– Emily, pare amor... – Carter pede, ela continua.
– Eu não posso aceitar você na vida do Matthew, entendeu? Pode até
enganar toda a minha família não a mim, você aprontou com ele uma vez e
quem pode garantir que não aprontará novamente? Não quero mais ver o
Matthew sofrer por sua culpa!
– Por que tem tanto ódio de mim? Tudo bem, sei que errei há dez
anos, mais do que ninguém sei o que fiz! Sofri muito também!
– Sofreu? Duvido! – Emily agora está gritando. – Eu nunca devia ter
acreditado em você! Achei que estivesse apaixonada por ele e você estava
aceitando dinheiro...
– Do que está falando?
– Fui eu que convenci o Carter a ir atrás de você no dia do baile. – Ela
diz por fim. – Fui eu que pedi para ele ir conversar com você e convencê-la a
dar uma chance ao Matthew.
– Você pediu para ele me dar dinheiro?
– Claro que não! Esta ideia saiu da cabeça oca do Carter! Prometi a
ele, enfim, muitas coisas, se ele conseguisse que você desse uma chance ao
Matthew. E ele apelou para esta idiotice de te oferecer dinheiro.
– Por quê? Por que queria que eu ficasse com o Matthew?
– Ninguém conhece o Matthew como eu. Eu sabia desde o começo
que ele estava apaixonado por você e que era muito sério. Pensei que você
estivesse apaixonada por ele também. Vi vocês naquele baile. Eu podia
sentir... Depois que você o deixou sozinho... quis fazer algo. Quis ajudá-lo.
– Mas você disse a Ella que Matthew queria brincar comigo! Eu ouvi
as duas no banheiro!
– Foi só maneira de dizer! Quando estávamos indo embora a vi sair
do carro do Harry Cooper. Pedi para o Carter te dar uma carona e falar com
você. Nunca imaginei que ele fosse oferecer dinheiro! E muito menos que
você fosse aceitar... E, quando naquela noite, ele deixou escapar... Fiquei
louca. Como é que eu podia ter me enganado tanto? Eu havia estragado a
vida do Matthew. A culpa era minha. No fundo a culpa foi toda minha... – ela
soluça. – Joguei um tipo como você pra cima dele! Na verdade quem não
posso perdoar é a mim mesma por ter feito esta loucura. E não posso permitir
que você volte para vida dele! Não posso...
– Eu amo Matthew, você não se enganou a este respeito! Sempre
amei! – As palavras saem da minha boca antes que posso contê-las. – Sinto
muito se nunca vai acreditar em mim e também por ter se sentido culpada
todo este tempo. A culpa não é sua... só não vou deixar que tente me separar
de Matthew. Então, não me importa o que você pense, não vai nos separar!
– Quer mesmo que eu acredite que...
– Chega Emily!
Nós todos nós viramos ao ouvir a voz de Matthew na porta do
escritório.
Há quanto tempo ele estava ali?
– Matthew, eu – Emily começa, Carter segura seu braço.
– Basta, amor. Vamos dormir. Já no intrometemos demais na vida
deles. E a gente só causou confusão...
– Não. Fiquem. – Matthew pede muito sério. – Acho que está na hora
de esclarecermos algumas coisas.
Encaro Matthew percebendo que estou chorando também então
respiro fundo para me acalmar.
Matthew se aproxima e enxuga meu rosto com seus dedos.
– Você está bem?
– Não – respondo lutando contra as lágrimas. Toda esta discussão
com Emily havia me esgotado.
Matthew me leva a um sofá e me senta lá. Ainda estou trêmula.
– Há quanto tempo estava aqui? O que você ouviu?
– Desde quando Emily entrou. Estava a sua procura. Assim como ela,
ouvi vozes vindas do escritório e, quando ela veio direto para cá, sabia que
estava procurando briga.
– Eu não estava procurando briga! – Emily rosna.
Matthew lhe lança um olhar irado que a faz se calar.
– Eu odeio pensar no quanto vocês se intrometeram na minha vida –
diz friamente.
– Eles acreditavam estar ajudando – me vejo os defendendo e nem sei
por quê.
Talvez esteja cansada de tanto ódio e ressentimento.
– E só conseguiram arruinar tudo – Matthew rosna com raiva.
– Não foram eles. Fui eu. Eu nunca devia ter aceitado o dinheiro do
Carter.
Matthew segura o cheque que Carter deixou sobre a mesa.
– Foi por isto que vendeu a livraria?
– Sim. O dinheiro que usei na livraria foi o mesmo que Carter me
emprestou.
– Foi por isto que você aceitou? Para abrir a livraria?
– Não. Meu pai estava endividado por causa da minha faculdade. Ele
hipotecou nossa casa. Eu não sabia, quando descobri... fiquei apavorada. E
me lembrei da proposta de Carter. – Olho para minhas próprias mãos. Pensar
nisto ainda me enche de vergonha. – Então o procurei. A primeira vez que ele
me propôs achei um absurdo. Então quando pensei que poderia resolver os
problemas do meu pai com o dinheiro... sabia que era errado, mas precisava
resolver a situação. Então disse a ele que seria um empréstimo. E ele pediu
que eu te desse uma chance em troca. – Mordo os lábios com força antes de
continuar. – Então eu falei que nunca iria transar com você. Que só iria
naquela festa e daria uma chance...
Mesmo nesse momento ainda me sinto ridícula. Pois não tinha me
limitado à festa.
E havia transado com ele.
Me lembrar de tudo aquilo era horrível. E sabia que devia estar sendo
horrível para Matthew também.
– É claro que você aceitou! – Emily acusa.
– Cale a boca, Emily, pelo amor de Deus! – Matthew encara a irmã e
o cunhado. – Por que nunca me disse que Evangeline tinha recusado da
primeira vez? Que aceitou por causa da dívida?
– Eu não sabia de dívida nenhuma. – Carter responde. – E não contei
mais nada sobre a proposta porque Emily pediu que não contasse.
– O quê?
– De que iria adiantar? – Ela se defende. – Acha que melhoraria ou
mudaria alguma coisa? O mal já estava feito, você já estava sofrendo por
causa dela! O melhor era se afastar de vez e nunca mais pensar no que
aconteceu!
Matthew respira fundo e sei que está tentando se controlar.
Quando me encara vejo mágoa em seu olhar.
É um tipo diferente de mágoa.
– Por que não contou tudo?
– Você nunca quis me ouvir naquela época.
– E agora, depois que voltei?
– De que adiantaria? Eu queria distância de você. Era de alguma
maneira... até cômodo que me odiasse. Estava com medo por Sofia. Achei
que iria embora da cidade mais dia menos dia e que a vida ia continuar.
– E depois que ficamos noivos?
– No começo tive medo... parecia que tudo estava começando a ficar
bem e não tinha certeza de como iria reagir... E depois eu sabia que precisava
resolver a questão da dívida. Quando descobri que estava grávida, desisti da
faculdade e meu pai conseguiu parte do dinheiro de volta. Pensei muito em
tentar localizá-los para devolver o dinheiro. Porém estava grávida e sozinha.
Não tinha nem um emprego e precisava sustentar minha filha. Então investi o
dinheiro na livraria. No fundo isto sempre me incomodou. Então vendi a
livraria. Não quero mais nada que me deixe em dívida com vocês. Acabou.
– Não, não acabou – Matthew diz com a voz cansada.
Ele pega o cheque e dá para Carter.
– Faça o que quiser com ele.
– Mas...
– Agora saiam.
Emily não fala nada quando Carter segura seu braço e a leva para
fora.
Matthew finalmente me encara.
– Sinto muito. Eu deveria ter contato tudo antes. Eu só queria resolver
a questão do dinheiro primeiro. Eu pretendia... ter esta conversa com você
amanhã.
– E depois?
– Depois ficaria tudo em suas mãos. Se você ainda desejasse casar
comigo...
Eu mal consigo falar, porque me passa pela cabeça a possibilidade de
ele não me querer mais.
E é horrível demais pensar...
– Deus... – ele se ajoelha na minha frente. – Sempre vou querer você.
– Suas mãos seguram as minhas e sei que estou chorando de novo, não faço
nada para impedir. – Eu amo você. – Fecho os olhos, saboreando aquelas
palavras.
As mesmas que ouvi há dez anos naquele carro.
E que acreditei que nunca mais ouviria.
– E quero saber se é verdade o que disse a Emily.
– Que sempre te amei? – Abro os olhos. Os dele estão fixos em mim.
Verdes. Dourados. Límpidos. – Claro que sim. É a única verdade absoluta em
tudo. Eu te amo, Matthew. Te amo muito. Tanto que nem sei como vivi sem
este amor por tanto tempo...
Então não há mais espaço. Ele está junto a mim, me abraçando, suas
mãos segurando meu rosto, seus lábios em meu rosto, em minha boca. E sinto
meu coração bater forte no peito, explodindo pela profusão de sentimentos
que finalmente posso colocar para fora. É quase maior que eu. Quase maior
que tudo.
Seguro seu rosto e o faço olhar para mim.
– Acho que podemos ir para cama agora?
Ele sorri, beijando meus dedos.
– Tenho uma coisa para te confessar antes.
Franzo a testa confusa.
– Comprei a livraria.
– O quê? Pensei que os Cooper...
– Não. Quando fiquei sabendo fiz uma proposta melhor ao seu
advogado. E conversei com os Cooper. Disse que o negócio iria permanecer
na família. Eles entenderam.
– Por quê?
– Sei o quanto você ama aquele lugar. Não podia deixá-la se desfazer
dele.
– Não é justo Matthew...
– Não seja absurda. Queria pagar o Carter, já pagou.
– Com o seu dinheiro!
– O que é meu, é seu. Seu e de Sofia. E o que é seu, é meu, então a
livraria seria minha também, não é?
– Então agora você é o dono da livraria... – digo ainda estupefata.
– Na verdade... a dona é Sofia. Coloquei no nome dela.
– Mas...
– Sem nenhum mas. – Ele me levanta. – Vamos dormir. Está tarde.
Seja lá o que tenha para discutir ainda, podemos fazê-lo amanhã. Ou qualquer
outro dia. Teremos tempo...
Eu o sigo escada acima e peço para passar no quarto de Sofia.
Ela dorme calmamente, me aproximo beijando sua testa.
– Nossa, quer dizer que ela é minha chefe agora? – Digo e Matthew
ri.
– Acho que ela vai gostar bastante da ideia.
– Aposto que sim. – afirmo irônica, quando entramos no quarto de
Matthew.
– Você pode estar ocupada daqui alguns meses – diz com as mãos já
ocupadas em retirar meu vestido.
– Ah é? – Ofego quando seus dedos retiram minha calcinha.
E quando ele me fita sorrindo sinto meu coração explodindo no peito.
– Sim, com bebês.
Sorrio de volta a possibilidade.
Mais bebês. De Matthew.
Pode ser perfeito.
Pego sua mão e a coloco sobre meu seio.
– Então vamos começar a fazê-los.
Ele imediatamente me pega no colo, coloca na cama e começa a
retirar as próprias roupas, até se juntar a mim, nu e lindo.
Ofego sob seu bem-vindo peso. Me arrepio com o roçar de nossas
peles. Derreto com sua boca sobre a minha. Meus lábios se abrem para seu
beijo, assim como minhas pernas para suas mãos, que pousam sobre mim,
com ares de dono. E ele é. Sempre foi.
Fecho os olhos, perdida em sensações intensas, que percorrem minha
pele e se concentram onde ele acaricia.
Abro os olhos para vê-lo sorrindo e o puxo pela nuca, para beijá-lo,
enquanto rolo por cima dele e encaixo nossos corpos como duas peças
perdidas de um único ser.
E somos um só.
Jogo minha cabeça para trás e gemo a cada investida do seu corpo
dentro do meu, me contorcendo de prazer puro e incandescente.
E ele se ergue, juntando-se a mim, os braços a minha volta, me
apertando, me marcando. Seus gemidos dentro dos meus lábios, enquanto
tudo vai desaparecendo, o mundo se resumindo a nós dois e aos movimentos
de nossos quadris em sintonia, aumentando a sensação quente que se enrosca
em meu ventre até explodir num orgasmo perfeito, delirante, intenso. E sei
que ele sente o mesmo, em seus braços que me apertam mais forte, em seus
gemidos no meu ouvido e em seu coração batendo no mesmo ritmo alucinado
que o meu.
E depois a quietude.
Quando ele me abraça no quarto escuro e beija meus cabelos antes de
adormecer.
Eu me sinto feliz.
Pois agora é para sempre.
Epilogo

Matthew

Eu acordo e ela está enroscada em mim.


Seus cabelos escuros contrastando lindamente com sua pele pálida.
Ainda é cedo e não quero acordá-la, então me desvencilho dos seus
braços com cuidado e saio da cama.
A porta do quarto de Sofia está entreaberta e entro, ela não está ali.
Sorrio e vou para a cozinha.
Como imaginava, ela está lá, vestindo sua camisola de flanela e
pantufas de ursinho.
Olhando fixamente para dentro da geladeira.
Eu me aproximo e beijo seus cabelos.
Ela parece um pouco mais alta ou seria impressão minha?
Sinto um aperto no peito. Dez anos. Quase onze. Daqui a pouco ela
não será mais uma criança.
Me pergunto se continuará sorrindo para mim da mesma maneira,
pulando em meu colo e enroscando seus bracinhos em meu pescoço.
– Bom dia, papai! – Ela beija meu rosto sorrindo. – A mamãe já
acordou?
– Ainda não.
Ela pula do meu colo.
– Então dá tempo de preparar o café da manhã pra ela!
Rio.
– Sim, dá tempo.
Hoje era aniversário de Evangeline e Sofia estava ansiosa há uma
semana.
Ela estava ficando muito parecida com Ella, pensando em presentes e
festas que poderia dar e organizar para a mãe.
Mal sabia ela que seria Evangeline que iria lhe dar um presente.
Estamos acabando de preparar a bandeja, quando ouvimos uma batida
leve na porta da cozinha e Emily entra.
– Bom dia!
– Bom dia, tia Emily – Sofia a abraça. – Olha o que estamos
preparando para a mamãe!
– Uau! Ela vai adorar. – Emily sorri para Sofia e olha para mim. –
Vim dizer que seu “presente” para sua mãe já chegou.
– Jura! Quero ver! – Sofia pula entusiasmada.
– Depois, querida – respondo. – Não esqueça que é uma surpresa.
– Assim como a festa da Ella. – Emily rola os olhos. – Ella está
insuportável como sempre por causa desta festa!
Minha família estava toda na cidade para as férias de verão.
– Ah é? Ela me disse que você estava ajudando sem reclamar.
Emily dá de ombros com cara de tédio.
– Bom, preciso me redimir, não é? Fazendo boas ações.
Muita coisa mudou desde que eu e Evangeline nos casamos, há seis
meses.
Depois de todas as revelações na festa de noivado, as coisas ficaram
estranhas por um tempo.
Carter e Emily ficaram afastados de nós. O que foi bom para
acalmarmos os ânimos.
No fim, eu os perdoei, como sempre. Tive uma conversa muito séria
com Emily sobre ela se intrometer na nossa vida.
Ela pediu desculpas por tudo e prometeu que não ia se intrometer
mais.
Quanto a aceitar Evangeline, não forcei nada. As coisas não
funcionavam desse jeito com Emily. Ela teria que ver a verdade por si
mesma. Que nós estávamos juntos e felizes e que era para sempre. Agora ela
via. E seus problemas com Evangeline terminaram.
– Certo, vou voltar para casa e ajudar Ella com os últimos
preparativos. Talvez eu lhe dê alguns calmantes – resmunga antes de sair.
Eu e Sofia acabamos de preparar a bandeja e deixo que ela a leve para
o quarto.
Evangeline está acordando quando entramos e sorri quando nos vê.
– Feliz aniversário, mamãe! – Sofia diz animada e Evangeline pega a
bandeja antes que caia em cima dela.
– Wow, muito obrigada, querida. – Ela a puxa para um beijo.
– O papai me ajudou!
Evangeline sorri para mim.
– Então o papai merece um beijo também.
– Cobrarei o meu depois. – Respondo, sorrindo maliciosamente e ela
morde os lábios, corando.
Sim, eu iria cobrar quando estivéssemos sozinhos. Havia muitos tipos
de beijos nos quais ela era boa.
Aliás, nós tínhamos nos aperfeiçoado em muitas áreas nestes seis
meses de casamento.
– A tia Ella preparou uma festa linda para você mamãe! – Sofia diz e
ela faz uma careta.
– Ah é?
Sofia coloca a mão sobre a boca.
– Opa! Acho que era surpresa!
– Não tem problema, já devia imaginar que Ella iria aprontar das suas.
– O papai e eu temos presentes também, só entregaremos a noite!
– Hum, quanto segredo! – Evangeline brinca quando Sofia pisca para
mim.
Aposto que ela não ficaria tão bem humorada quando visse que eu e
Sofia tínhamos escolhido um carro novo para ela poder aposentar de vez seu
pré-histórico.
– Acho que precisamos contar um segredo para você também. –
Evangeline diz e Sofia a encara ansiosa. – Lembra quando nos disse que
queria um irmãozinho?
– Claro que sim... – de repente ela para e arregala os olhos. – Você
está grávida?!
– Estou.
Sofia pula toda feliz em cima da mãe e tenho tempo só de retirar a
bandeja antes que aconteça um acidente.
– Eu não acredito! É muito legal!
Evangeline a abraça e beija seus cabelos.
– Fico feliz por você estar tão animada, querida.
– Claro que estou! Preciso contar a tia Emily e ao tio Carter...
Ela pula da cama e sai correndo do quarto.
– Com certeza está indo para a casa dos meus pais contar a novidade.
– Digo e Evangeline ri, se levantando.
– Não tem problema deixe ela contar...
Ela vai para o closet a procura de uma roupa, eu a sigo, me sentando e
observando-a se vestir.
– Ella vai ficar louca quando souber. Vai reclamar que daqui a pouco
suas roupas não estarão servindo e terá uma desculpa para mais compras.
Ela me olha divertida.
– Sabe que eu deveria estar nervosa com a ideia, mas nem me
importo?
Sorrio puxando-a para mim, encostando a cabeça em sua barriga
ainda plana.
Nós tínhamos descoberto sobre a gravidez na noite anterior e, desde
então, eu só conseguia imaginar como ela iria ficar com a barriga enorme.
– Vou amar vê-la crescer. – Digo e ela se senta no meu colo.
– E eu vou amar ter você acompanhando o crescimento comigo desta
vez – sorri.
Sorrio de volta.
– Eu te amo, senhora King.
Ela passa os braços em volta do meu pescoço e sussurra em meu
ouvido, como todos os dias.
– E eu te amo para sempre, Senhor King.

Fim
Linha da Vida
Juliana Dantas
Copyright © 2017 por Juliana Dantas

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação


pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma ou
por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou outros métodos
eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia autorização por escrito do autor,
exceto no caso de breves citações incluídas em revisões críticas e alguns
outros usos não comerciais permitidos pela lei de direitos autorais.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares,


negócios, eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação do
autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.

Título Original Linha da Vida

Capa: Jéssica Gomes


Sumário
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Epilogo
Nota da autora

Esta é uma obra de ficção, portanto, embora eu tenha realizado


pesquisas e tido a ajuda de duas médicas para sanar as dúvidas sobre os temas
que abordo, algumas liberdades foram tomadas para que o enredo fluísse de
acordo com o romance.
Capítulo Um

Thomas

— Doutor Thomas Hardy. Chamando Doutor Thomas...


— Porra! – Solto um grunhido irritado ao ouvir meu nome sendo
chamado pelo alto falante e olho para baixo, para ver a boca da enfermeira
Emily desgrudando do meu pau, enquanto ela sorri para mim por entre os
cabelos castanhos claros bagunçados por minhas mãos.
— Ainda não, querido. – Ela abaixa a cabeça de novo, pronta para
recomeçar o trabalho, mas puxo seus cabelos para longe ao ouvir meu nome
proferido novamente e desta vez por uma voz estridente seguida de batidas
furiosas na porta.
— Thomas, você está aí dentro?
— Inferno! – Fecho as calças enquanto Emily finalmente percebe que
nosso pequeno interlúdio na sala de medicamentos terminou.
— É a Doutora Amber? – Indaga recolocando a blusa do uniforme.
Vejo Emily ajeitar os seus cabelos num coque tentando ficar
apresentável.
— Thomas! Eu sei que está aí.
— Nazista maldita! – Rosno, abrindo a porta e me colocando frente a
frente com o olhar irado da Doutora Amber Hardy.
Minha irmã. Embora fôssemos diferentes como água e vinho.
Amber era tão certinha quanto eu era rebelde.
Foi sempre assim, desde que éramos duas crianças de fraldas. Eu
aprontava e Amber me dedurava. As coisas não haviam mudado em nada.
— O que diabos está fazendo trancado aqui dentro? – Seu rosto se
transforma em uma careta de asco, quando passo os dedos pelos cabelos
desgrenhados e um olhar de entendimento tolda sua expressão – Você é
nojento! Está comendo quem agora? – Emily escolhe aquele momento para
passar por nós – Ah, Emily. Típico. – Amber lança um olhar mortal à
enfermeira que desliza por nós rapidamente, sumindo de vista.
Como todo mundo no Chicago Mercy, Emily sabia que se tinha
alguém que podia esmagar qualquer um como se fosse um inseto apenas por
estar de mau humor, este alguém era Amber.
Emily foi esperta saindo do caminho da ira da minha querida irmã.
Eu já não tinha essa sorte.
— O que você quer? – Pergunto impaciente.
— Não ouviu seu nome ser chamado?
— Claro que ouvi. Qual é a emergência?
— Fui eu que pedi para te chamar! Você não tem vergonha, Thomas?
Não cansa de ficar pelos cantos se pegando com qualquer funcionária do
hospital?
— Por que não cuida da sua vida? – Deus, Amber era um pé no saco!
— Bem que eu gostaria! Para meu azar sua vida de merda sempre
atrapalha a minha!
Eu rio, cruzando os braços.
— É mesmo?
— Não seja cretino! Eu ainda não engoli o papai ter escolhido você
para ser o chefe dos internos.
Meu sorriso se expande.
— Ah claro. Como sempre se trata da sua inveja.
— Não tenho inveja de um idiota como você!
— Não? – Ergo as sobrancelhas com ironia a enfurecendo ainda mais.
— Claro que não! Você não passa de uma fraude! Todo mundo sabe
que a única coisa que faz nesse hospital é transar com todo mundo!
— Você devia transar mais, Amber. Quem sabe assim seu humor
fosse melhor.
— Não sou promíscua como você! E estou aqui para trabalhar e não
pra transar.
— Você não suporta isso, não é? Que eu possa me divertir e ainda ser
o melhor residente desse hospital, enquanto você, mesmo sendo toda certinha
e puxa saco, não passa da minha sombra!
Seu rosto escurece de raiva.
— Porque você sempre joga seu charme para todo mundo e se safa!
Um dia, sua sorte vai acabar e todo mundo vai perceber a fraude que é!
Principalmente o papai!
Toda aquela conversa começa a me irritar também, quando ela insiste
em tocar no nome do nosso pai.
O honorável Doutor Jack Hardy. Diretor chefe do Chicago Mercy.
— Jack sabe quem eu sou!
— Papai parece estar perturbado ultimamente, se levarmos em
consideração suas últimas atitudes! E sabe muito bem disso! – Sim, eu sabia
do que Amber estava falando.
— Não posso discordar de você.
— Escolher você para chefe dos internos é só mais uma de suas
insanidades! – Ela continua.
— Disso eu discordo! – Agora, se me der licença, preciso receber os
internos que chegam logo mais. Tenha um bom dia, querida irmã!
Passo por ela e vou para o vestiário, que está vazio àquela hora.
Tiro a roupa e entro no chuveiro.
Eu havia passado a noite no hospital em um plantão infernal. E estaria
indo embora, se não fosse o fato de que agora eu era o chefe dos internos.
O sorriso vencedor que eu ostentava na frente da minha irmã já não
está em meu rosto, enquanto deixo a água morna percorrer meu corpo
cansado.
Eu gostava de irritar Amber e nossa competição era antiga. Ser gêmeo
definitivamente era uma merda. Claro que ela ficaria puta por ter sido
preterida. E claro que eu iria tripudiar de minha vitória em cima dela o quanto
eu pudesse. Porém, no fundo, também me perguntava que diabos estava se
passando na cabeça do meu pai quando me deu tamanha responsabilidade.
Amber tinha razão em dizer que eu era famoso por minhas aventuras
sexuais desde que começara minha residência há quatro anos. Jack fazia vista
grossa, contanto que eu fizesse bem minha parte que consistia em me
sobressair na sala de cirurgia. E, inferno, tanto quanto gostava de irritar o
velho eu também amava ver seu olhar de orgulho quando me saía bem.
Era uma droga de paradoxo.
Este sou eu. O cara que faz tudo errado, e que no fim, acaba fazendo
dar certo. Amber dizia que era a sorte em dobro que eu simplesmente tinha
roubado dela na hora do nosso nascimento, afinal, eu era cinco minutos mais
velho.
Eu não saberia explicar.
E sinceramente, não saberia dizer por que Jack tinha me dado tal
incumbência que, aliás, estava começando a apreciar.
Um pouco de autoridade faria bem ao meu ego. Deixaria Amber puta.
E atrairia as mulheres. Não que eu precisasse de algum artificio nesse quesito,
penso com um sorriso, ao sair do chuveiro e começar a me enxugar, em
frente ao espelho. A tatuagem de dragão que começava no ombro e descia
por meu peito era só um dos atributos que as atraiam. Sem falsa modéstia eu
podia dizer com toda certeza que eu era um cara atraente. Herdara a altura e
os cabelos loiros escuros do meu pai e os olhos azuis da minha falecida mãe.
— Você ainda é a melhor visão desse hospital, Doutor Hardy. – A voz
melodiosa faz os pelos do meu pescoço arrepiarem.
Não de um jeito bom. Mas, porra, não poderia dizer que aquela voz
não suscitava boas memórias. Ou talvez boas fosse um exagero. Quentes,
talvez fosse um adjetivo melhor.
Sorrio a contragosto ao vê-la se aproximar como uma gata.
Doutora Paola Becker.
Loira, linda e letal.
Mais letal do que qualquer um dos outros adjetivos.
— O que deseja Paola? – Diferentemente do tom quente da sua voz, a
minha estava fria como um iceberg.
Era o que Paola merecia.
— Hum, adoro quando faz essa voz de garoto mau. – Sinto seu
perfume quando ela para atrás de mim. As unhas arranham de leve minhas
costas.
Inferno. Ela era boa.
Eu me viro e encaro seus olhos escuros.
— Não tenho tempo para seus joguinhos agora.
— Ainda está bravo comigo. – É uma constatação, não uma pergunta.
Ela nem disfarça quando desce os olhos cobiçosos de meu peito largo,
passando pelo suave caminho de pelos loiros na barriga até chegar no meu
pau.
Não respondo, apenas me ocupo em colocar a roupa, antes que meu
corpo comece a ter ideias bem diferentes da minha mente.
— Pelo visto sim – ela cantarola.
— Estou ocupado, Paola. Então, se não tem nada melhor para fazer...
— Eu só queria lhe dar os parabéns. Fiquei sabendo que é o novo
chefe dos internos.
— Obrigado.
— É um médico incrível. Sempre te disse.
— Aparentemente não incrível o suficiente para você. – Não consigo
evitar a ironia.
A desfaçatez de Paola ainda me irritava mais do que eu queria
admitir.
— Thomas, está na hora – nós somos interrompidos por Erick.
O médico olha de mim pra Paola com um olhar de interrogação que
diz “Porra, essa merda ainda não acabou? ” que eu ignoro.
Eu saio do vestiário, e Erick me segue.
— Não fala nada – resmungo e ele ri.
Ele é meu amigo e sabe de toda a merda com Paola.
— Nem ousaria. E aí, preparado para receber os internos, doutor
Hardy?
— Eu só espero que tenha algumas gostosas dentre as mulheres -
suspiro e Erick gargalha.
— Boa sorte com isto. Eu fui escalado com Chloe para assistir seu pai
numa cirurgia e infelizmente não poderei ver os novos internos em primeira
mão. Até mais!
Ele desaparece pelo corredor e eu encontro meu pai na recepção, onde
alguns jovens com olhar variando entre assustado e excitado o escutam.
— Bom dia. Eu sou Jack Hardy, diretor chefe do Chicago Mercy e
quero lhes dar as boas-vindas a nosso hospital.
Seu olhar cruza com o meu quando me aproximo.
Ele parece meio consternado e eu me pergunto se Amber já foi fazer
fofoca.
Maldita linguaruda!
— Este é o Doutor Thomas Hardy e ele será o chefe de vocês por este
ano. Eu os deixo em suas mãos, pois irá explicar a todos os procedimentos.
Jack se afasta e eu me coloco na frente dos internos.
— Primeiro precisam saber que não será nada fácil. – Eu começo –
Muitos vão desistir, alguns vão trocar de especialidade. Outros serão cortados
– escuto alguns engolindo em seco – para quem ficar eu desejo boa sorte. –
Alguns se permitem sorrir. Alguns ainda parecem querer sair correndo a
qualquer momento. Uma garota morena parece que vai vomitar. – Primeiro
entendam que não estão mais na faculdade de medicina. Aqui é vida real. Há
pouco tempo eram só estudantes cheio de hormônios. – Eu sorrio. – Agora
são médicos cheios de hormônios.
Risadas nervosas substituem os rostos apreensivos e eu gosto disto.
Quem disse que temos que ser sérios o tempo todo? Isto eu deixava para
minha irmã pé no saco.
Uma garota baixinha levanta a mão.
— Então aqui é tipo Grey’s Anatomy com médicos bonitões meio
tarados se esfregando em todo mundo?
— Jenny! – A garota que parecia querer vomitar repreende a amiga
lhe dando um cutucão muito vermelha enquanto os meninos riem.
— Com médicas taradas também, espero – Um rapaz loiro
engomadinho comenta e bate na mão de um oriental, que concorda com sua
colocação.
— O quê? Olhe pra ele pelo amor de Deus! – Jenny se defende
resmungando para a amiga.
Eu disfarço um sorriso, me lembrando imediatamente do meu pau na
boca da enfermeira Emily.
— As enfermeiras também são taradas... – Respondo para o rapaz
loiro, indagando seu nome.
— Mark Geller, senhor.
— E eu sou Jenny. Jenny Lars. Solteira. Solteiríssima – a garota
baixinha se apressa a dizer.
Ela tinha um sorriso que só podia ser descrito como safado no rosto,
enquanto rolava nos dedos uma mecha de cabelo encaracolado. Não consegui
parar o sorriso ao medir Jenny Lars Solteira Solteiríssima. Apesar de pequena
parecia ter um corpo legal. Talvez eu pudesse aplicar uma prova oral mais
tarde. Mostrar a matéria médicos tarados a internas safadas.
— Cala a boca, Jenny – a garota do seu lado parece visivelmente
mortificada e muito vermelha. Eu aproveito para estuda-la rapidamente
também.
Uma vez minha irmã me chamou de nojento quando eu contei a ela
que homens eram assim: nós classificávamos as mulheres em dois grupos
imediatamente após a conhecê-las: as transáveis e as nãos transáveis.
Aqueles duas ali eram definitivamente transáveis.
— Você é.…?
— Julie Maddison, Doutor Hardy. – Sua voz foi sumindo e seu olhar
se enfiando no sapato, mesmo assim eu percebo seu rosto vermelho.
Hum. Tínhamos uma tímida ali. Podia até parecer enfadonho para um
observador desavisado, no entanto, para um conhecedor como eu, era apenas
um delicioso desafio.
Sem contar que as tímidas às vezes se revelavam umas tigresas
embaixo dos lençóis. Ou em qualquer lugar que eu pudesse dobrá-las.
Talvez eu começasse com a timidazinha Julie Maddison antes da
Jenny solteira safada.
Ou quem sabe as duas juntas? Será que topariam? Não acho que seria
problema para a safada, quanto à timidazinha, talvez precisasse ser
persuadida.
Ah, eu iria gostar de persuadi-la.
E ela iria gostar também, eu me certificaria disto.
Eu podia ser um canalha a maior parte do tempo e não estava
disponível para nada além de algumas fodas ou brincadeiras depravadas pelos
corredores escuros do hospital entre uma cirurgia ou outra, mas nenhuma
mulher poderia reclamar de sair insatisfeita da minha cama.
Ou do chuveiro. Ou do quarto dos médicos. Sala de medicamentos.
Ou de qualquer lugar.
Eu não tinha preconceito quanto a isto.
Para alguém de fora isto poderia parecer nojento e pervertido.
Infelizmente nós éramos a raça mais fodida da face da terra. Experimente
passar 12 anos estudando para depois continuar trabalhando por 12, 16 até
mesmo 24 horas seguidas com a responsabilidade insana de ter a vida das
pessoas em suas mãos.
Éramos dirigentes do destino. Os donos da vida e da morte de quem
adentrava as portas do Chicago Mercy.
Ora, precisávamos de uma trepada entre salvar uma vida e outra para
tirar o estresse.
Dane-se os bônus de natal.
— Certo Julie – sorrio para a garota tímida, que cora mais ainda ao
me encarar. Fazendo a interna safadinha dar risadinhas e cutucar a amiga com
os ombros. Ah, na minha mente eu já podia imaginar as duas ...
— Agora, por favor, me acompanhem – eu me viro para seguir em
frente parando imediatamente ao ouvir a porta se abrir num estrondo, me
tirando do devaneio sacana com as duas internas. Eu bufo, irritado, não só
por alguém interromper minha pervertida linha de pensamento, como
também por se tratar, obviamente, de algum interno atrasado em seu primeiro
dia.
Ouço os passos do atrasado se aproximando e passando por entre os
colegas e me preparo para mostrar para aquele idiota que, apesar de ser meu
primeiro dia como chefe dos internos, eu não deixaria um aprendiz de médico
brincar com a minha autoridade conseguida a duras penas.
Inferno, eu tinha desbancado minha própria irmã, e teria que provar
por "a mais b" que era capaz de assumir aquela responsabilidade. Não
deixaria ninguém ficar no meu caminho.
— Me desculpe, estou atrasada.
Eu estaco.
Aquela voz.
Eu não ouvia aquela voz há oito anos.
As batidas do meu coração falham miseravelmente, como as de um
cardíaco na fila de doação de órgãos, enquanto me viro lentamente, de
alguma forma achando que minhas lembranças estão me pregando uma peça.
Assim que eu focalizo meus olhos assombrados na figura da interna
que acabou de chegar atrasada, eu me vejo transportado para oitos anos atrás.
Não é minha lembrança traidora me pregando peças desta vez.
Liz Spencer está ali, entre os internos, respirando ofegante como se
tivesse corrido milhas. Os cabelos escuros mal presos num rabo de cavalo, o
rosto corado e os olhos cinzentos que assombravam meus pesadelos me
olhando com horror.
Que porra Liz está fazendo ali?
Oito anos antes

— Não transável.
Eu olhei de novo para a garota desajeitada de óculos e rabo de cavalo
em frente do púlpito, segurando uma folha de papel com as mãos trêmulas,
onde se viam unhas ruídas até o topo e, alguma coisa suja que eu não
consegui definir o que era.
Eu era um futuro estudante de medicina e minha mente analítica se
prendia em detalhes.
— Eu não sei... – Meu amigo James parecia em dúvida.
— Você quer comer aquela nerd?
— E daí? Somos nerds também!
— Fale por você!
Eu odiava quando me classificavam assim.
Tirar nada menos que A desde o Junior High não ajudava muito. No
entanto, nerds eram caras cheios de espinhas e com cabelos mal lavados,
corpos franzinos usando roupas sem estilo e que não fodiam ninguém.
Eu era o oposto. Então, vinha tentando desfazer aquele equívoco.
— Se não somos nerds o que estamos fazendo num sarau de poesia? -
Rick indagou do meu lado direito.
Eu achei que ele estivesse dormindo.
— Nós viemos pelas gostosas – James respondeu e eu revirei os
olhos.
— Você prometeu gostosas, até agora só o que eu estou vendo é a
garota sem graça no palco – resmunguei.
A garota no palco em questão começou a ler o poema em suas mãos e
eu tentei prestar atenção.

A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E


um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade
deles. Mas não é nada sério. – Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que
eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a
ser mistério por muito que pareça (Escreve!) Muito sério.

A sala se ergueu em aplausos mornos e o que não era nenhuma


surpresa, dado a falta de emoção na voz da garota, que mais parecia que
preferia estar em qualquer outro lugar exceto ali.
— Esta foi Elizabeth Spencer, pessoal – o rapaz que apresentava a
sessão adentrou o palco.
— É Liz! – Ela corrigiu no microfone e eu ri ao notar mais paixão na
maneira que ela corrigia seu nome do que na leitura do poema.
Ela saiu do palco rapidamente e então uma ruiva fenomenal a
sucedeu.
— Puta merda – James assoviou e até Rick parecia estar bem
acordado no momento.
Agora sim. A ruiva subiu no palco rebolando os quadris numa calça
jeans justa e eu já não estava pensado na garota sonsa do poema anterior.
— Olá, eu sou Valerie. E assim como minha amiga Liz, eu lerei um
poema de Elizabeth Bishop.
Ela começou a ler e porra, eu não fazia ideia do que ela estava
falando, poderia estar recitando a constituição americana que ainda seria
sexy.
— Isto que eu chamo de gostosa – afirmei e meus amigos riram,
concordando – agora eu entendo porque temos que estar aqui escutando toda
esta baboseira! Aliás esta garota nem precisava falar, bastava empinar aquela
bunda e...
— Ei, como é? – Eu escutei a voz irritada atrás de mim e me virei.
Levou alguns segundos para eu reconhecer a garota de olhar irado
atrás de mim como a mesma que estava no palco momentos antes.
A garota no palco era esquecível e esta era decididamente
interessante.
Ela tinha soltado os cabelos, que caiam numa cascata de chocolate por
seus ombros, até as costas, fazendo um belo contraste com a pele
imaculadamente branca.
Os óculos horrendos tinham desaparecido e agora eu via seus olhos
cinzentos dardejando fúria em minha direção.
— O quê? – Perguntei ainda meio atordoado em minha análise.
— Como assim o quê? Eu escutei estes seus comentários machistas e
preconceituosos sem um pingo de sensibilidade e estou horrorizada!
— Como é? – Eu não podia acreditar naquela garota. Ela estava me
repreendendo?
— Isto mesmo que ouviu! Que diabos está fazendo aqui se odeia
poesia? Ah claro, está aqui pelas garotas gostosas, ah, faça-me o favor! – Ela
estava mesmo irritada.
— Está brava comigo por eu ser sincero?
— Sincero? Chama ser um ogro de sinceridade? Você nem sabe o que
é isto!
— Ei, agora está me ofendendo!
— Ah, me desculpe, ofendi o garotinho! Ah, vai se ferrar! Odeio
caras como você! Atletas, playboys, garotos que não têm um pingo de
sensibilidade ou inteligência e que tratam as garotas como objetos! – Porra,
ela estava mesmo furiosa! Eu fiquei olhando pra ela, meio fascinado por
aquela explosão e meio irritado pelo mesmo motivo.
Ela estava tão brava que seu rosto estava corado e ela começou a
retirar a echarpe que cobria seu pescoço enquanto falava.
— Acho que deveriam se retirar e nos poupar da sua presença! Não
quero que continue fazendo estes comentários odiosos sobre minha amiga!
Ela não está aqui para se mostrar para caras como vocês e sim pela arte!
— E quem disse que eu não estou aqui pela arte também?
— Ah, vai me dizer que conhece poesia?
— Claro que sim.
— Ah, disto eu duvido.
— Garota, nem me conhece, então não tire conclusões precipitadas!
Ela rolou os olhos, finalmente conseguindo tirar a echarpe.
Imediatamente meus olhos se prenderam na camiseta decotada que usava. E
da posição que eu estava, mais acima dela por minha altura, meus olhos
analíticos repararam na curva suave dos seus seios que a blusa meio folgada
deixava entrever.
Naquele momento, eu mudei Liz Spencer da categoria de não
transável para transável.
E decidi que eu queria muito ver os seios dela. Muito mesmo.
Sem contar que havia muita paixão no jeito que defendia seu ponto de
vista. Ela estava furiosa. Cuspindo fogo.
Liz Spencer tinha fogo, definitivamente.
Sua performance morna no palco provavelmente era fruto da má
escolha do poema, talvez.
— Por que Elizabeth Bishop?
— O quê? – Ela me encarou desconcertada.
— Você foi péssima ao ler o poema.
— Ah – ela perdeu a voz com minha crítica.
— É sério. Eu quase dormi. Meu amigo Rick dormiu.
— Qual o seu problema? Como pode me criticar? Bishop é fantástica!
Uma mulher à frente do seu tempo, que canalizou sua paixão para as
palavras...
— Aposto que ela era quente, então...
— Ah meu Deus, ela era lésbica sabia?
— Eu gosto de lésbicas.
— Ah claro, ainda mais se você puder filmar ou estiver no meio
delas!
— É uma boa colocação.
— Credo! Além de tudo você ainda é um destes caras que acha que
porque tem pinto é um presente dos céus para as mulheres.
Eu não consegui parar minha risada, o que a irritou ainda mais.
— Eu nem sei por que estou discutindo contigo!
— Está me ofendendo gratuitamente.
— Você que é ofensivo!
— Eu só disse que sua declamação foi terrível.
— Não ouse me criticar! Duvido que tenha a sensibilidade para fazer
melhor.
— Duvida?
— Duvido sim!
— Podemos apostar.
— Eu não vou apostar com você!
— Não quer me ver lá no palco declamando um poema?
— Ah, sim, isto eu queria ver! Quero ver você subir naquele palco.
Aposto que nunca nem leu um poema na vida!
— Desafio aceito.
— O quê?
— Aceito o desafio.
Escutei palmas e percebi que a declamação da gostosa ruiva devia ter
acabado. Meus amigos estavam de pé assoviando.
— Certo. Quero ver – Liz Spencer me encarou cheia de presunção. –
Duvido que tenha coragem!
— Se eu for será uma aposta.
— Certo.
— Se eu subir naquele palco, declamar um poema e for ovacionado,
você sai comigo.
Ela recua.
— O quê? Não, sem chance!
— Disse que aceitava! Então é o que vamos apostar. Se eu vencer, eu
quero um encontro.
— Está maluco se acha que vou sair com você!
Eu dei de ombros.
— Você nem acredita que eu consiga então o que tem a perder.
Eu a vi hesitar por alguns instantes, enquanto mordia os lábios, por
fim ela deu de ombros.
— Certo. Está apostado.
Um sorriso lento se distendeu em meu rosto quando eu levantei e fui
até o palco.
Eu ia sair com Liz Spencer.
Capítulo Dois

Liz

Eu ainda estou dormindo.


Só isto explica o porquê de eu estar vendo Thomas Hardy parado na
minha frente.
É um pesadelo. Meu pior pesadelo.
Afinal, não seria a primeira vez que aquele cretino invadia meus
pesadelos, rastejando como uma cobra peçonhenta para dentro do meu
subconsciente, espalhando seu veneno por meu sangue, minha pele, meus
ossos, contaminando tudo por onde passava e me transformando numa massa
trêmula de lembranças e medo.
Preciso dizer que em nenhum pesadelo ele estaria presente no meu
primeiro dia no hospital. Um dia que já tinha começado errado quando eu
tive que lidar com um atraso decorrente de uma noite mal dormida justamente
por causa da ansiedade de saber que em poucas horas eu teria que lidar com o
fato de que agora eu era uma médica de verdade e não mais uma simples
estudante de medicina.
Inferno, eu não me sentia preparada pra lidar com esta realidade
ainda!
Durante todo percurso de casa ao hospital, costurando pelo transito
caótico de Chicago, estive rezando para que, diferente dos meus mais
obscuros medos, eu não fosse uma péssima médica.
Mas, a cada quilometro que ia me aproximando do meu destino,
minha parca confiança ia se esvaindo como fumaça.
Eu estava com o estômago embrulhado e com dificuldade para
respirar quando finalmente estacionei no Chicago Mercy. E para piorar, meu
celular começou a tocar e uma olhada no visor me deixou mais nervosa
ainda. Barbara não podia escolher outra hora para me torturar?
Por um instante eu hesitei, sem saber se deveria atender e enfrentar a
fera ou adiar o confronto para um momento em que eu estivesse mais calma.
A covardia venceu e eu desliguei sem atender. Sabia que não era uma
decisão inteligente ignorar Barbara Spencer, porém no momento, eu não
queria acrescentar seu terrorismo psicológico à lista de contratempos que eu
precisava enfrentar.
Se eu achava que um telefonema de minha enervante mãe era a pior
coisa que poderia me acontecer aquele dia eu estava muito enganada.
O pior existia e se chamava Thomas Hardy.
Parado na minha frente me encarando em total assombro. Os olhos
azuis atordoados e cabelos loiro escuro perfeitamente bagunçados como eu
me lembrava.
Infelizmente. Me lembrava sim e não foi por falta de tentar esquecer.
— Hei, eu sou Mark Geller – um rapaz bonitinho me cumprimenta,
não sei se por total inocência ou por querer quebrar a tensão instalada nos
poucos segundos da minha intempestiva chegada.
— Oi – murmuro, desviando o olhar de Thomas.
Inferno. Doutor Thomas! Caralho. Porra. Todos os palavrões
possíveis e imagináveis que eu nem conseguia me lembrar nessa hora.
Porque de repente, minha mente que estava em choque há até poucos
segundos, começa a assimilar a realidade diante de mim.
Thomas Hardy, ainda lindo como eu fatalmente me lembrava, estava
na minha frente de jaleco e uniforme.
Doutor Thomas Hardy.
Doutor Hardy. Puta. Que. Pariu!
Começo a hiperventilar.
— Acho que não é legal chegar atrasada no primeiro dia! – Uma
garota baixinha murmura alto o suficiente para eu ouvir sua voz de gralha.
Sinto todos os olhares em mim.
Quero morrer. Não. Quero correr.
Me esconder.
Eu não deveria estar aqui, uma voz insidiosa cochicha em meu
ouvido.
— Cala a boca, Jenny – um rapaz oriental intercede – acho que o
Doutor Hardy não se importa com isto.
Os olhares desviam de mim para o Doutor Hardy, que continua
olhando pra mim com cara de quem está vendo um fantasma.
E então eu me dou conta de que, pior do que estar frente a frente com
meu passado, é ele ser revelado pela boca mentirosa de Thomas.
Ah não. O dia podia ter começado como uma merda, mas eu tinha que
retomar o controle daquele carro desgovernado antes que ele me levasse
direto ao precipício.
Eu já caíra uma vez por causa daquele cara.
Ele não ia me derrubar de novo. Era simples assim.
Respiro fundo e o encaro.
— Me desculpe pelo atraso, Doutor Hardy – digo firmemente. – Isto
não vai se repetir.
Por um momento todos esperam.
Os outros certamente esperam pela minha bronca ou o meu perdão.
Enquanto eu espero para saber se ele vai dizer que já nos conhecemos ou vai
ignorar este fato.
Eu já estou ignorando e espero que ele faça o mesmo.
Por favor, faça o mesmo!
— Eu tenho algumas regras. – Por fim ele diz me encarando. Eu luto
para não desviar o olhar. - A primeira delas: nunca cheguem atrasados.
Ele continua me encarando.
Ah Deus, ele tinha mesmo que fazer isto?
— Entendido – respondo levantando o queixo – o senhor pode
prosseguir. Por favor, não perca seu tempo.
Seus olhos se franzem e eu me pergunto o que está pensando. Não
parece ser algo agradável.
Só espero que ele entenda a deixa e prossiga.
— Regra número dois – ele finalmente desvia o olhar e eu respiro
aliviada. - São internos, fazem testes, anotam ordens, trabalhem duro se
quiserem se destacar, e o mais importante: prestem atenção em mim.
— Como se precisasse pedir – a tal Jenny cantarola e juro por Deus
que eu vi um sorrisinho nos lábios dele.
Arg. Sinto a bílis na minha garganta.
Thomas Hardy continua o mesmo galinha!
Será que ele não amadureceu nada naqueles oitos anos?
Pelo menos fisicamente eu podia dizer que ele continuava o mesmo,
quer dizer. Os mesmos cabelos que pareciam perfeitamente bagunçados. O
mesmo rosto esculpido por anjos. Ou melhor, vamos fazer uma correção, não
havia nada de angelical em Thomas Hardy. Toda sua beleza devia ser obra de
um demônio, o mais mortal dos anjos caídos. Aposto que ele continuava
pecaminoso por baixo do jaleco.
E ele agora é meu chefe. Pelo amor de Deus, alguém lá em cima me
odiava muito. O universo não poderia ter colocado aquele cara na minha vida
de novo. Era muito azar para uma encarnação só.
E o que eu faria agora?
— Vocês devem correr sempre que ouvirem o bipe – ele continua
começando a andar e todos o seguem.
Sim, correr.
Era a melhor ideia do dia.
Eu poderia dar meia volta e correr porta a fora. Sem olhar pra trás.
Fugir para bem longe de Thomas Hardy e sua beleza demoníaca.
— E onde eu estiver vocês também estão.
Ah que ótimo. Tudo o que eu sempre sonhei. Ficar colada em Thomas
Hardy o dia inteiro.
Mate-me por favor!
— Não precisa nem pedir – a garota baixinha sussurra com ar
sonhador de novo e eu rolo meus olhos.
— Agora peguem seu Pager – ele continua quando chegamos à
recepção e todos nós nos apressamos em fazer o que pediu. Ele encara o
oriental, o loiro engomadinho e um rapaz quietinho – Sam e Mark, códigos.
Benjamin, entregar exames aos pacientes... – começa a passar nossas
primeiras atribuições.
— Eu achei que iríamos te ajudar, sabe, ficar colados. – Jenny pisca e
eu luto para não enfiar o dedo na garganta.
— O que a Jenny quer dizer – Mark interpõe – é que a gente achou
que poderia ver um pouco mais de ação. Cirurgia e tal...
— Todo interno quer fazer cirurgias, este não é seu trabalho.
Ninguém pega em um bisturi até que eu diga que pode. Não fiquem tristes.
Se eu estiver de bom humor, até o fim do dia posso escolher alguém que se
destaque para me ajudar.
Os internos comemoram excitados.
— Então o que eu vou fazer? Sou uma ótima assistente – Jenny
continua a saga “se rastejando para Thomas Hardy”
— Julie, Laboratório. Jenny sutura.
E então ele olha para mim.
Eu engulo em seco.
— Você...
— Liz Spencer – murmuro.
Ele se aproxima de mim devagar e eu estou paralisada no lugar
enquanto todos os meus colegas começam a se mover para seus postos.
Para na minha frente, e pega meu crachá.
Eu paro de respirar.
— Aqui está escrito Elizabeth.
O maldito! Sabia muito bem que eu odiava que me chamassem por
meu nome completo.
— Prefiro Liz – falo entredentes e ele sorri. De lado.
Escroto!
— Doutor Hardy...
— Antes eu era Thomas... Liz.
Lá vamos nós.
Respiro fundo. O que é um erro enorme.
Porque eu consigo comprovar que ele ainda tem aquele cheiro incrível
e único.
— Doutor Hardy, por favor... – minha voz sai mais fraca do que eu
pretendia.
Thomas se inclina mais. Dou um passo atrás, parando com a parede
no meu caminho.
— Eu gostava quando falava por favor... – seu hálito doce invade
minha boca.
Mil vezes inferno.
Eu baixo o olhar, respirando parcamente.
Tão perto. Tão doce. Tão...
Mentiroso! - A recordação do pior lado daquele crápula me salva de
cair em sua lábia.
E eu me afasto para o outro lado, cruzando os braços sobre o peito.
— Terei que denunciar um caso de assédio sexual no meu primeiro
dia?
— Liz, fala sério... – ele ri como se tudo fosse muito engraçado.
Típico!
— Estou sendo séria e você não – continuo com o tom mais frio que
iceberg.
— Eu só quero falar sobre o fato insólito de que não nos vemos
durante oito anos e você agora aparece aqui!
— Não há nada pra dizer.
— Nada?
— Oito anos é muito tempo. Eu nem lembro mais, e tenho certeza de
que você também não.
— Não sabe o que eu lembro.
— Não me interessa na verdade. Eu estou aqui apenas para fazer um
trabalho.
— Você sabia que eu trabalhava neste hospital?
— Claro que não! É uma inconveniência, certamente...
— Inconveniência?
— Sim, não devemos deixar que o pequeno fato de já nos
conhecermos afetar nosso trabalho.
— Você continua o mesmo pé no saco.
— E você o mesmo idiota misógino.
— Está me ofendendo.
— Oh me desculpe, doutor Hardy. Isto não vai se repetir – ironizo. –
Agora, se me der licença, preciso me juntar a meus colegas.
— Então vai ser assim, vamos fingir que nada aconteceu?
— Nada aconteceu.
— Não é o que eu me lembro.
— Faça como eu, apague da sua memória. Com licença, doutor
Hardy!
E eu quase corro sem olhar para trás.
Maldizendo o dia em que eu decidi voltar para Chicago e aceitar a
residência naquele maldito hospital.
Onde eu estava com a cabeça que não me lembrei que Thomas Hardy
poderia estar ali?
Talvez porque, embora eu o tenha conhecido pouco antes de ele ir pra
Harvard estudar medicina, no fundo, eu nunca acreditei que ele iria se formar
de verdade.
Fala sério, como aquele idiota conseguira um diploma? Até podia
imaginá-lo nas festas da faculdade comendo todas as garotas disponíveis, mas
estudando?
E como ele se tornou o chefe dos internos? Os residentes eram tão
ruins que tiveram que apelar para um escroto como Thomas?
— Ei, está perdida? – Uma moça loira me interpela e eu paro,
ruborizada.
— Desculpe, é meu primeiro dia e...
Ela me mede de cima a baixo.
— Thomas já perdeu uma pupila?
— Na verdade, eu realmente não me lembro de ele ter me passado
alguma atribuição, doutora...
— Hardy. Amber Hardy.
Eu arregalo os olhos.
— Você é irmã do Thomas! – Ela levanta a sobrancelha e eu coro –
quer diz, doutor Thomas.
— Infelizmente – ela sorri sem humor. – E já que Thomas está sendo
um péssimo chefe, pode distribuir estes exames – Ela me passa um monte de
papeis.
— Ok, certo, acho que sou capaz de fazer isto – e antes que eu possa
incentivá-la a continuar criticando Thomas, ela se afasta pelo corredor e eu
chego à conclusão de que se soubesse que Amber Hardy tinha um senso
crítico tão apurado contra Thomas, eu teria feito questão de conhecê-la há
oito anos.

— Ah, ele é tão lindo - a voz de gralha suspira e eu rolo os olhos pela
sala de descanso horas depois.
— Ah até eu tenho que admitir Jenny, ele é mesmo muito gato – a
outra garota diz com a mesma voz sonhadora.
— Nem vem Julie, ele já é meu!
— Seu e da metade das mulheres deste hospital eu aposto –
resmungo.
— Ei, a atrasadinha – a garota baixinha me estuda – e aí, seu nome é
Elizabeth, não é?
— Liz, pelo amor de Deus, me chama de Liz!
— Oi Liz, eu sou a Julie – a outra sorri. Parece simpática, embora não
inteligente já que está caída pelo doutor escroto.
— E eu sou Jenny. E aí, o que achou do doutor gato?
— Um cretino.
— Nossa, por que tanto ódio? Você é uma daquelas garotas
feministas ou é lésbica mesmo?
— Você é lésbica? – O garoto chamado Mark aparece me encarando
com cara de terror.
Eu suspiro.
— Não, não sou, posso saber como minha sexualidade entrou em
pauta?
— Ei, só estava checando! – Jenny se defende – seria legal se você
fosse, uma a menos para disputar o doutor gostoso.
— Achei que fosse o doutor gato – Julie pergunta confusa.
— Pode ficar tranquila eu não faço a menor questão de disputar
aquele babaca.
— Bom, deve ter alguma coisa errada com seus olhos para não ver o
quanto ele é quente!
— Para com isto, Jen, talvez ela só tenha um namorado.
— Você tem? – Mark parece com dor de barriga de novo, mas antes
que eu consiga responder, uma médica nos interrompe. Ela é jovem e bonita,
com cabelos e olhos escuros que fazem os rapazes a medirem interessados.
— Ei, internos, menos conversa e mais trabalho! Eu sou a doutora
Chloe Martinez, venham comigo.
— Eu preferia o doutor Hardy – Jenny resmunga.
— Ah, o que temos aqui, mais uma deslumbrada pelo Thomas?
— E daí?
— E daí, que se eu fosse você ficava bem longe da fila para entrar no
parque de diversões do Dr. Hardy.
— Tem fila? – Jenny faz uma careta.
Mark ri.
— Deve chegar até a China.
— Que horror – Julie parece mortificada. Acho que ela estava se
retirando da fila.
— Bom, é só um aviso...
— Talvez eu queira pegar a senha... – Jenny insiste.
— Ok, querida, apenas não se apaixone. Caras como o Doutor Hardy
servem apenas para uma garota dar uma volta.
— Hum...
Eu mordo os lábios com força. Ah se alguém tivesse me dito isto há
mais tempo...
Oito anos antes

“Quero apenas cinco coisas... Primeiro é o amor sem fim.


A segunda é ver o outono.
A terceira é o grave inverno.
Em quarto lugar o verão.
A quinta coisa são teus olhos.
Não quero dormir sem teus olhos. Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.”

Eu não conseguia parar de olhar pra ele.


Aquele escroto que até um minuto atrás tinha me irritado como
ninguém, por ser tudo o que eu mais detestava em um cara.
Agora lá estava ele. No palco recitando Neruda enquanto mantinha os
lindos olhos azuis pousados em mim.
Como se recitasse pra mim.
E agora eu não conseguia respirar.
Os aplausos me fizeram voltar à realidade e eu forcei o ar para meus
pulmões antes de cair desmaiada no chão como a mais ridícula mocinha de
um romance vitoriano.
— Este foi Thomas Hardy recitando Pablo Neruda, pessoal.
Ele sorriu. Pra mim. Diretamente pra mim.
Lindamente pra mim.
Puta que Pariu.
Eu senti o ar começar a querer fugir de novo e sabia que minha
bochecha estava mais vermelha que um pimentão quando o vi caminhar na
minha direção. Com um inconfundível olhar de vitória no rosto bonito.
— Acho que ganhei uma aposta.
Eu engoli em seco o encarando como se ele tivesse duas cabeças.
— Quem diabos é você?
Ele riu.
Um som rouco e áspero que fez coisas ridículas com minha barriga.
Jesus!
— Como assim?
— Você nem gosta de poesia!
Ele riu mais ainda.
— Eu nunca disse isto, você é quem tira conclusões precipitadas,
Elizabeth Spencer.
— É Liz! Você tem dupla personalidade?
— Eu? – Ele estava se divertindo com minha confusão.
— Eu não acredito que o mesmo cara que recitou Neruda tão
intensamente pode ser o mesmo babaca que disse que só estava aqui pelas
garotas gostosas!
— Uma coisa não anula a outra – ele deu de ombros e eu rolei os
olhos. Aí estava. O cretino.
Simplesmente não fazia sentido.
— Você é estranho, Thomas Hardy – murmurei.
Ele sorriu e se inclinou para perto, colocando uma mecha de meu
cabelo atrás da minha orelha. Me arrepiei.
— E você é linda, Elizabeth Spencer.
Pela primeira vez eu esqueci de corrigir meu nome.
Thomas Hardy poderia me chamar do que quisesse se continuasse me
olhando daquele jeito.
— E eu acho que temos um encontro.
Ah sim.
Eu tinha um encontro com aquele cara lindo.
Um cara que dava pra ver a milhas de distância que não valia nada.
E eu estava começando a ficar ansiosa pra isto.
Ah, eu estava muito ferrada.
Capítulo Três

Thomas

— E aí, já decidiu qual delas vai comer?


Eu não tiro os olhos das radiografias ao ouvir a voz de Erick do meu
lado.
Não estou a fim de ouvir as brincadeiras de Erick hoje.
Se fosse qualquer outro dia, provavelmente eu estaria respondendo no
mesmo tom cheio de malícia, qual das internas eu ia foder primeiro. Até
acrescentaria alguns detalhes sórdidos para diverti-lo.
Mas não hoje.
Não quando Liz Spencer estava entre as internas.
Por que aquela garota já estivera no páreo uma vez e ela vencia
qualquer outra.
Eu estava ferrado porquê da outra vez as coisas não acabaram nada
bem e agora ela claramente me odiava.
A merda toda era que ela ainda vencia qualquer páreo.
Eu estava fodido.
— Que papo é este? – Amber pergunta, entrando atrás de Erick.
— Todo mundo sabe que elas sempre querem o Thomas, caso ele
dispense alguma a gente pode consolá-las – Erick explica.
— Consolá-las com seu pinto? – Amber levanta a sobrancelha.
— Com o que elas quiserem querida – Erick pisca.
Amber rola os olhos.
— Que nojo de vocês.
— Tem nojo porque ainda não deu um passeio pelo parque de
diversão aqui. – Erick brinca e eu me pergunto se Amber sabe que por trás de
suas brincadeiras há um desejo real.
Eu não entendia como alguém podia querer a minha irmã, porém,
Erick parecia totalmente apaixonado por ela desde que começamos nossa
residência há quatro anos.
O fato de Amber nunca o ter levado a sério não parecia desencorajá-
lo.
— Só em seus sonhos!
Ela se afasta e Erick insiste em saber minha escolha sobre as internas.
— Qual sua preferida? Aquela baixinha tem cara de safada. Sabe que
gosto das safadas. Tem a tímida. Ah, cara, estas às vezes, são as piores. Devo
ressaltar que a garota branquinha de cabelos escuros é o maior tesão.
— Esta não – corto-o sem pensar.
— Wow. Temos uma escolhida – Erick se vira para uma plateia
imaginária, entonando a voz – Senhoras e senhores, já temos a primeira da
fila, as restantes peguem suas senhas!
— Cala a sua boca, Erick!
— Ei, está de mau humor? Achei que ia ficar animado com a carne
fresca no pedaço.
— Eu achei que estava apaixonado pela Amber.
— Não vai esquecer, não é?
— O que quer que eu diga? Foi você que bebeu todas e me fez
confidencias, dizendo o quanto queria que Amber lhe desse uma chance.
— Disse certo. Sua irmã não me dá uma chance.
— Ela nunca vai dar se continuar comendo todas as garotas do
hospital. – Neste quesito Erick era quase pior do que eu.
— Cara, estou mesmo recebendo conselhos do Dr. Hardy?
— Eu acho minha irmã um pé no saco. Você está melhor sem ela.
— Infelizmente a gente não escolhe de quem gostar. Amor é uma
merda.
— Pois é – resmungo.
Eu sabia bem disto. De como amar era uma merda. Estar vulnerável e
deixar alguém ser importante. Era assustador e eu nunca mais queria estar
naquela posição.
E agora lá estava Liz Spencer. De novo.
Alguém lá em cima me odiava. Só podia ser.
Chloe se junta a nós na sala de radiologia.
— Hum, as garotas já estão todas apaixonadas por você.
— Todas? Até Liz Spencer? – Não consigo deixar de perguntar.
Embora já saiba a resposta.
Bem lá no fundo, eu tenho esperança, porque negar?
E eu já fizera ela se apaixonar por mim uma vez. Poderia acontecer de
novo.
— Ah, a primeira escolhida – Chloe sorri cheia de escárnio.
— Não! – Eu desvio o olhar.
Chloe era muito sensível. E infelizmente me conhecia bem. Ela era a
única amiga mulher que eu tinha. E a única que eu não tinha fodido. Eu a
respeitava demais pra isto.
— Ah, não negue. Eu vejo no seu rosto. Pena que ela não sabe que
será jogada pra escanteio logo, logo.
— Quem disse?
— É o que você faz com todas.
— Não fiz com você.
— Você nunca me fodeu.
— Claro que não! Você é minha amiga. A única garota legal neste
lugar.
— Ah claro. Que sortuda que eu sou – ela me passa um exame. –
Acabei de pegar os exames do Senhor Schwartz.
— Hum, apendicectomia.
— Sim. Jack disse que você vai fazer. Está marcado para o fim da
tarde.
— Ok.
— Vai escolher alguém pra te ajudar?
— Hum... – Antes que eu consiga responder, meu bip toca e eu corro.
Quando chego à emergência, os internos já estão ali, uns ansiosos,
outros assustados. Em meio a minha comoção eu não consigo deixar de
relancear um olhar curioso em direção a Liz.
Ela morde os lábios. Não sei se está na turma dos nervosos ou
ansiosos.
— O que temos?
— Carl Smith, 30 anos. Está tendo convulsões agudas múltiplas.
Pulso perdido quando chegou – eu me aproximo do homem na maca,
chamando todos eles para se aproximarem.
— Coloquem-no de lado – exijo e eles se apressam a obedecer minha
ordem. – Como proceder? – indago a ninguém em particular.
— Diazepam dez miligramas – Julie responde.
— Muito bem. Mark, 10 miligramas de Diazepam. Use a agulha
grande. E não deixe o sangue hemolizar.
Mark pega a agulha e não sem alguma confusão consegue aplicar a
medicação no paciente, que para de convulsionar pouco a pouco.
— Certo – eu pego o prontuário – O que faremos agora? – Eu me viro
para Liz, que só agora reparo que ficou longe da paciente, diferentemente dos
outros que tinham se aproximado para ajudar, ávidos para impressionar.
— Liz? Pode responder?
Todos se viram pra ela, esperando a resposta.
Sua palidez se transforma em rubor.
Me faz lembrar de como eu gostava de vê-la corar. Antes.
Isto me deixa com raiva. Porque agora não me é permitido tocar seu
rosto e sentir a quentura de sua pele. Eu sempre achei seu rubor delicioso.
— Eu... eu... – Ela balbucia nervosa.
— Temos que fazer os exames – Jenny responde em seu lugar. – CT,
CBC, quimio-7...
— Não pedi que respondesse senhorita Lars - digo friamente, a garota
cora.
Nem de longe é tão encantador quanto Liz.
— Me desculpe Dr. Hardy, eu só queria...
— Só queria aparecer – Mark resmunga divertido e eu lanço-lhe um
olhar ameaçador que o cala.
— Mas tem razão, senhorita Lars. Só se esqueceu do toxicológico –
eu olho para Liz, que voltou a ficar pálida. Uma pena. – E você, senhorita
Spencer, seja rápida da próxima vez. Estamos numa emergência. A vida ou
morte de um paciente depende da nossa agilidade.
— Claro, me desculpe, eu... fiquei nervosa.
— Aqui não temos lugar para nervosismo. Se queria moleza deveria
ter escolhido outra profissão – minha voz é dura. Eu quero ser duro com ela.
Não só porque não respondeu quando pedi, o que já justificaria uma bronca a
qualquer interno, também por ser quem é.
Por estar fodendo com minha cabeça quando não faz nem 24 horas
que está de volta a minha vida.
— Agora o senhor Smith é sua responsabilidade – digo por fim –
leve-o para a tomografia. – E vocês voltem a seus afazeres.
Eu saio da sala irritado encontrando meu pai vindo em minha direção.
— Eu estou saindo para almoçar, Thomas. Espero que esteja tudo sob
controle com os internos.
— Claro que sim. Está sendo moleza.
— Tudo é moleza para você – sua voz contém a dose certa de censura
para me pôr no foco – espero que saiba que nomeá-lo chefe dos internos foi
um risco, Thomas. E que você não pode me decepcionar.
— Sabe que eu não faria isto.
— Então leve a sério.
— Estou levando.
— Não quero ouvir nenhum rumor sobre você estar pelos cantos com
alguma interna.
Eu tenho vontade de rir, como faria em qualquer outra ocasião, mas
sei que meu pai está falando sério desta vez.
Ele permite que eu faça do hospital meu playground, contanto que
faça meu trabalho direito. Para minha sorte, eu sou fodidamente bom e nunca
o decepcionei em termos profissionais. Por isto, ele faz vista grossa para
minhas aventuras.
E isto porque ele provavelmente não faz ideia da mais sórdida. E eu
espero que continue assim, não pelo bem dela e sim porque, bem no fundo do
meu peito, eu não quero que meu pai sofra.
Ele amou demais a minha mãe e ela morreu quando eu e Amber
nascemos. Ele se casou novamente, há dez anos com a doutora Diana, uma
psiquiatra. Mas o casamento havia acabado há seis anos.
Agora ele parecia estar apaixonado de novo.
Eu ficaria feliz se não fosse a mulher que ele escolheu.
E ela sai da sala dos médicos, toda arrumada e batendo seus saltos no
chão, fazendo meu pai sorrir como um bobalhão ao vê-la.
Tenho vontade de vomitar.
— Aí está você, querida. – Ele segura as mãos da mulher loira e letal
que sorri para ele. Me pergunto por que esta maldita não seguiu carreira de
atriz. – Eu e Paola estamos saindo, Thomas.
— Claro, bom almoço – respondo, tentando não soar irônico.
Paola sorri pra mim. A vadia.
— Por que não se junta a nós, querido enteado?
Vagabunda.
— Não, tenho trabalho a fazer.
— Seu pai contou que vamos dar um jantar amanhã à noite? Espero
que compareça.
— Sim, queria dar um grande jantar para oficializar nosso noivado. –
Meu pai diz, beijando o rosto satisfeito de Paola. – Mas Paola prefere só a
família.
— Claro que estarei lá.
— Nina vai gostar de te ver.
Eu sorrio genuinamente agora ao pensar em Nina.
Ela era a única pessoa que me fazia sorrir ultimamente.
— Eu também estou com saudade dela.
— Então nos vemos amanhã.
Eu fico olhando-os se afastarem e me pergunto o que meu pai diria se
soubesse que eu já tinha sacudido muitos armários com a doutora Paola por
aquele hospital.
Claro que ele não fazia ideia. Paola era ardilosa. Mesmo enquanto
estávamos fodendo não só pelos cantos do hospital, como também no meu
apartamento ou na casa dela, ela fizera questão de que tudo ficasse em
segredo. Diferentemente dos meus outros casos, o nosso nunca foi público.
Eu acreditei por algum tempo que era por ela levar a sério sua
reputação. Então, depois que ela me trocou por meu pai, eu entendi qual era
sua jogada.
Ela era ambiciosa e eu era somente um residente que ainda vivia à
sombra de Jack Hardy, o diretor do Chicago Mercy. E ela não hesitara em
fazer a troca.
Eu fiquei puto na época, há seis meses, e quis realmente contar ao
meu pai. Por mais incrível que pareça foi Erick quem me convenceu do
contrário.
— Ele está enfeitiçado por aquela cobra. E vai ficar puto contigo se
contar. E escute o que estou te dizendo, quem vai se ferrar é você. Deixe que
ele descubra por si só que ela não vale nada. Uma hora o feitiço acaba.
Eu havia acreditado em Erick. Agora eles estavam noivos e eu tinha
sérias dúvidas se o feitiço tinha mesmo prazo de validade.
— Ei, Doutor Thomas – eu me viro ao ouvir a voz melodiosa de
Emily. – Está ocupado? Podíamos continuar aquela aula sobre
medicamentos... – sorri cheia de promessas. – Eu estou com tempo – ela
sussurra, piscando e se virando para entrar na sala de medicamentos,
deixando a porta entreaberta.
Inferno. Era melhor pegar a enfermeira, do que cair em tentação com
alguma das internas, embora pelo menos duas delas estivessem bem
interessadas.
A merda era que a única que eu queria encurralar em qualquer canto
daquele hospital era a única que não tinha mais o menor interesse em mim.
E a quem eu queria enganar? Por Liz Spencer, eu facilmente burlaria
todas as regras. Valeria a pena.
Mas ela era inatingível. E Emily estava bem ali, bem disponível.
Eu entro no armário atrás de Emily e fecho a porta.
O melhor que eu faria era esquecer Liz Spencer. Como eu fiz há oito
anos.
Oito anos antes

Eu mal podia acreditar que Liz Spencer tinha concordado em seguir


com nosso trato e íamos ter um encontro. Eu realmente achei que ela iria dar
para trás. Ela parecia aquele tipo de garota que não se deixava seduzir
facilmente. O que era algo bem diferente pra mim. Eu sempre havia
conquistado qualquer garota que eu quisesse.
— Tudo bem, só que eu escolho aonde vamos – ela tinha dito na tarde
anterior na livraria.
Nós trocamos telefones e ela me enviou um SMS com o endereço de
onde devíamos ir. Eu fiquei confuso quando cheguei ao local e vi que era
uma galeria de arte.
Olhei as horas no celular, depois de estar na porta esperando por dez
minutos, me perguntando se a garota ia me dar o bolo. Eu estava
malditamente ansioso como nunca antes. E quase respirei aliviado ao vê-la
surgir na esquina.
Puta merda. Ela estava mais linda do que antes. Se vestia com
simplicidade, calça jeans e suéter. E era justamente esta simplicidade que
fazia destacar sua beleza natural. Liz Spencer não usava de artifícios. Seus
cabelos gloriosos estavam soltos sobre os ombros e havia cor em seus lábios,
os tornando mais desejáveis.
Disse a mim mesmo que até o fim daquela noite meus dentes estariam
mordendo aquela boca.
— Ei, você veio. – Ela disse e eu sorri.
— Pensou que eu não viria?
Ela deu de ombros.
— Achei que marcar numa galeria poderia assustá-lo.
— Não me assusto facilmente. Confesso que fiquei intrigado.
— Vamos entrar?
Eu a segui para dentro da galeria.
— Então além de poesia também é amante das artes? – Perguntei.
— Eu amo arte – ela sussurrou com fervor quando paramos em frente
a um quadro.
Era uma paisagem sufocante, meio impressionista, com fortes tons de
verde.
— O que achou deste? – Perguntou.
— Estranho. – Murmurei.
Eu não era um grande fã de arte. Na minha casa havia muitos quadros,
alguns deles valiam uma fortuna. Minha falecida mãe era uma grande fã de
arte, porém meu pai não incutira aquele gosto em mim. Jack Hardy estava
mais preocupado em me educar para ser como ele, um renomado cirurgião e
não como um apreciador das artes como minha mãe.
— Ei Liz – Um homem elegante de uns trinta anos se aproximou e
Liz sorriu para ele.
Eu imediatamente fiquei com ciúmes.
— Oi Alan.
O homem segurou suas mãos e beijou seu rosto.
Eu fechei os punhos. Quem era aquele babaca engomadinho?
— E quem é seu amigo? – Ele me encarou curioso.
— Este é Thomas, Thomas este é Alan Mitchel, o dono da galeria.
Nós nos cumprimentamos formalmente e Alan continuou com um
olhar curioso, mas educado.
— Professor de pintura da Liz – Corrigiu o que fez Liz corar.
— Na verdade eu trabalhei aqui nas férias – ela respondeu.
— Em troca de algumas aulas – Alan interferiu – que ela nem
precisava.
— Você pinta? – Indaguei surpreso.
— Não é nada. É apenas um hobby. – Ela estava mais corada agora.
— Eu não chamaria de hobby alguém capaz de pintar este quadro –
Alan apontou para o quadro que estávamos admirando antes.
—Você pintou isto? – Agora eu estava estupefato.
Ela deu de ombros.
— Achei que seria só uma aula...
— E era até você pintar esta maravilha. – Alan parecia
verdadeiramente maravilhado – Eu não podia deixar de expor. Você é muito
boa, Liz.
— Não me deixe embaraçada – Liz cobriu o rosto com as mãos,
envergonhada. Seus dedos sujos agora fazem sentido.
— Agora entendo sua mão suja – murmurei e ela tirou o rosto das
mãos, respirando fundo.
— São as mãos de um artista, meu rapaz – Alan sorriu – agora, se me
dão licença. Eu preciso ir.
Ele se despediu.
— Você é realmente intrigante, Liz Spencer – murmurei admirado.
Ela estava muito corada, o que eu achei lindo.
Sem resistir, toquei seu rosto vermelho e quente.
Ela mordeu os lábios e não se afastou.
Eu queria beijá-la ali.
Mas a espera também era doce.
Liz Spencer era minha por aquela noite.

— Restaurante italiano? Que Clichê – Ela reclamou quando nos


sentamos à mesa de um dos meus restaurantes italianos preferidos.
Eu tinha insistido em levá-la para jantar depois da galeria.
— É meu lugar preferido – expliquei.
O garçom se aproximou e nós fizemos nosso pedido. Eu reparei que
Liz ficou olhando intrigada para os braços cheios de tatuagem do rapaz.
— Algo que tenha gostado? – Questionei, quando o cara se afastou e
ela corou.
— Eu estava admirando os desenhos das tatuagens dele. São incríveis.
Ah. Devia ser coisa de artista.
— Você tem tatuagem? – Ela perguntou de repente e eu tentei não me
sentir um babaca por ter 22 anos e nenhuma tatuagem. A verdade era que eu
não era muito fã de agulhas.
— Por que teria?
— Os bad boys sempre têm.
— Sou um bad boy?
— É quase um clichê ambulante.
— Ok, me sinto até lisonjeado. Meu amigo disse que éramos nerds.
— Você nerd? Até parece!
— O que você sabe sobre isto?
— Olha pra mim. Eu sou uma nerd.
— É uma competição?
O garçom voltou com nosso pedido e depois que ele se afastou, Liz
me encarou curiosa.
— Ok, vamos lá. Me diz porque devo acreditar que é um nerd.
— Entrei em Harvard para medicina. Estou indo para lá depois do
verão.
— Fala sério! – Seus olhos se arregalaram e eu me senti um tanto
convencido.
— Família de médico.
— Ah que merda!
— O quê?
— Minha mãe é medica!
— Jura?
— E ela quer que eu estude medicina também.
— E você quer? – Eu não conseguia imaginá-la em um hospital. Ela
era toda artística.
— Eu não sei o que quero. – Murmurou incerta.
— Achei que queria pintar.
— Eu amaria pintar para viver. Minha mãe nunca permitiria.
— Mande ela ir a merda! – Eu tomei um gole da minha cerveja e Liz
sorriu.
Ela tinha um sorriso fofo.
— Você não conhece a minha mãe. Ela morreria se eu fizesse uma
tatoo, por exemplo.
— Então faça!
— Eu sempre quis fazer uma na verdade! – Seus olhos brilharam.
— Eu também – menti.
— Sério? Nerds fazem tatoo?
— Sou um bad boy, baby! – Sorri e ela me acompanhou.
Fodidamente linda.
— Ok, o que vai fazer?
— Eu não sei – dei de ombros, seguindo com o papo da tatuagem.
Ela abriu a bolsa e retirou um bloco papel e um lápis, começando a
desenhar freneticamente.
— O que está fazendo?
Ela apenas continuou a desenhar. O garçom apareceu e retirou nossos
pratos e Liz continuou absorta em seu desenho.
— Aqui está – ela me deu a folha, onde estava desenhado um
intricado dragão. – Esta é sua tatuagem. Consigo visualizá-la em seu ombro.
— Nem vou tentar desenvolver, sou péssimo em desenho.
— Vamos lá. Agora. – Ela pegou a bolsa e se levantou.
Eu a segui para fora do restaurante.
— Está falando sério? – Tentei ganhar tempo. Ela não poderia estar
falando seriamente sobre eu fazer uma tatuagem hoje.
— Está com medo?
— Não! – Eu estava sim, só que ela não precisava saber.
— Eu acho que está!
— Ok. Vamos apostar! – Pensei rápido.
— Lá vem você e suas apostas.
— Se eu fizer você também faz.
— OK! – Ela sorriu animada. Puta merda.
— E você vai pra minha casa comigo depois – eu deixei claro em
minha voz minhas intenções.
Com certeza ela iria recuar depois desta.
— Fechado! – Ela respondeu.
Porra, ela nem ao menos hesitou.
Capítulo Quatro

Liz

Se uma situação está ruim, ela sempre pode piorar.


E muito.
Este era o resumo do meu dia.
Ruim. E ficando cada vez pior.
Como se não bastasse este ser o meu primeiro fodido dia como
médica, ainda tinha que lidar com o fato de ter Thomas Hardy por perto.
E, com minhas emoções em frangalhos, eu agora tenho um paciente
sob meus cuidados.
— Certo. Vai dar tudo certo – murmuro comigo mesma, enquanto
empurro a maca de volta ao quarto, depois de tê-lo levado à tomografia. Até
agora, tudo indo bem.
Era só respirar fundo e me lembrar do que eu tinha aprendido na
maldita faculdade.
— Ei, querido, me deu um susto – a mulher loira se inclina sobre o
sonolento paciente, acariciando seu rosto pálido.
— Está tudo bem agora... – Ele consegue responder.
A mulher então me encara.
— O que aconteceu? Ele não parece nada bem...
— Ele tomou um sedativo para a tomografia, por isto está meio
grogue.
— Você é a médica dele? Pode me dizer o que aconteceu? Ele vai
ficar bem, terá que fazer alguma cirurgia?
Eu engulo em seco diante de tantas perguntas, sem saber o que
responder, enquanto começo a suar frio.
— É, na verdade, eu não sou a médica...
— Não?
— Quer dizer, eu sou, mas...
— Doutora Spencer? – Uma enfermeira nos interrompe e eu respiro
aliviada.
— Sim?
— Tem uma ligação para você na recepção. Me pareceu urgente.
Ligação pra mim? Eu não fazia ideia do que poderia ser. Balbucio
uma desculpa e me afasto do quarto, aliviada por me livrar das perguntas.
— Me disseram que tinha uma ligação? – Falo ao chegar à recepção e
a atendente aponta para o telefone. – Obrigada – respondo, pegando o
aparelho – Elizabeth Spencer.
— Filha, finalmente consigo falar com você.
Ah droga, falando em coisas ruins!
— Mãe? Por que diabos está me ligando aqui?
— Oras, você não atendeu a minha ligação hoje cedo. Estou
preocupada.
— Mãe, eu estou trabalhando, pelo amor de Deus!
— Por isto mesmo! É seu primeiro dia no hospital, quero saber de
tudo...
— E não pode esperar? Eu estava em meio a um atendimento e não
posso ficar atendendo ligações particulares!
— Ah, eu sou a Doutora Spencer, todo mundo me respeita. E você é
minha filha.
— Mãe, você disse que eu era sua filha? – Abaixo o tom, ao ver a
atendente me encarando curiosa.
— Você é minha filha, qual o problema?
— Não quero que as pessoas saibam disto!
Bárbara ri do outro lado da linha.
— Não seja boba! Ser minha filha vai lhe abrir muitas portas.
— Temos opiniões diferentes sobre este assunto – resmungo.
— E então, como está sendo seu primeiro dia?
De repente, meu bip apita e eu vejo que é uma mensagem dizendo
para ir até o paciente Carl Smith.
Droga!
— Mãe preciso desligar! – Antes que ela continue a insistir, eu
desligo e saio correndo pelo corredor.
E paro atordoada ao ver o paciente em meio a uma convulsão.
Dois enfermeiros tentam contê-lo.
— Doutora Spencer, onde estava? Ele está tendo convulsões agudas
múltiplas, como proceder? – Um deles pergunta, segurando o paciente,
enquanto o outro corre pela sala.
— Diazepam, duas miligramas de Lorazepam – consigo dizer, ainda
paralisada.
— Não está funcionando – o outro diz.
— Acabei de dar outra dose.
— Doutora Spencer, está ouvindo? Tem que nos dizer o que fazer!
Eu sinto vontade de vomitar.
— Fenobarbital. Agora! – Digo rapidamente, pegando o prontuário e
tentando achar uma saída para a situação. Meu cérebro parece ter se
dissolvido.
— Ok, demos o Fenobarbital.
— Não está fazendo efeito...
Oh, inferno...
— O coração parou. Código azul.
— O quê...? Não, não... – digo, sentindo o sangue fugir do meu corpo.
— Doutora Spencer! – O enfermeiro grita e eu saio do torpor.
— Desfibrilador – Alguém grita e eu me movo para pegar e aparelho,
com as mãos trêmulas.
— Duzentos. Carregando. Pronto!
Eu aplico sobre o peito do homem, que pula sob minhas mãos. Nada.
— 15 segundos...
— Nada.
— Trezentos – grito e aplico de novo. A adrenalina correndo por meu
corpo.
— 24 segundos...
— Trezentos e sessenta - meus gritos ecoam pelo quarto.
— 40 segundos...
— Em 60 segundos teremos que ministrar outro medicamento –
alguém diz.
O quê? Eu não consigo raciocinar.
Apenas um pensamento aterrorizante envolve minha mente. Eu ia
perder um paciente em meu primeiro maldito dia.
— Carregue de novo – peço agora num fio de voz. Meu corpo
começando a tremer e a entrar em choque.
E naqueles segundos, eu rezo silenciosamente por aquela vida.
Por favor, por favor...
Então um som nítido e contínuo no monitor indica que o coração
voltou a bater.
— Pressão subindo. Ritmo voltando. – O enfermeiro atesta.
Eu dou um passo atrás, segurando o desfibrilador, ainda paralisada.
Alguém o tira das minhas mãos, ao mesmo tempo em que Thomas
Hardy entra pela porta.
— O que aconteceu? – Pergunta, se aproximando do paciente e o
examinando.
— Ele teve uma convulsão e o coração parou. – Explico.
— Estava observando?
Eu não respondo.
Droga!
Ele me encara.
— Estava observando como mandei?
Engulo em seco.
— Eu me ausentei por um momento...
— Devia estar observando! Deixa que eu assumo agora. – Ele volta a
atenção ao paciente. – Alguém me dê o prontuário.
Eu saio do quarto, tremendo inteira e fico no corredor, tentando fazer
minha respiração voltar ao normal.
Thomas vem atrás de mim.
— Que inferno estava pensando?
— Eu não fiz nada...
— Exatamente! Eu mandei ficar de olho e o enfermeiro disse que
você estava no telefone!
— Eu...
— Está no meu time, se alguém morrer é o meu que está na reta!
Ah claro. De repente tudo fica claro como água! Ele não estava
preocupado com o paciente ou até mesmo com o meu aprendizado.
Ele estava preocupado apenas com seu próprio rabo! Típico de um
egoísta como Thomas Hardy.
Algumas coisas nunca mudam.
Eu levanto a cabeça.
— Foda-se! Você me deixou sozinha pra provar um ponto!
— O quê? Está dizendo que a culpa é minha por sua falta de
responsabilidade?
— Estou sim! Como disse, estou no seu time! Você é o responsável!
Se eu deixasse aquele pobre homem morrer seria culpa sua. Você me deixou
como responsável por ele, sabendo que eu não era capaz ainda, somente
porque me odeia! Vai pro inferno Thomas Hardy!
E sem esperar resposta, eu me afasto, andando rapidamente sem olhar
para trás. Saio pelas portas duplas do fundo e sinto o ar frio do crepúsculo
que cai sobre o céu em meu rosto.
Oito anos.
Oito anos e aquele imbecil ainda conseguia tirar o pior de mim.
E nem interessa que por um pequeno espaço de tempo, eu imaginei
que ele seria o melhor.
Quão enganada eu poderia estar?
Oito anos antes

Eu era louca ou o quê?


Que diabos estava se passando pela minha cabeça para ir com Thomas
Hardy a um estúdio de tatuagem?
E ainda por cima estar amando a ideia?
Onde foi parar a Elizabeth Spencer sensata e obediente, que colocava
sempre seus próprios desejos em compasso de espera?
Que tremia de medo só de pensar em desafiar as vontades de Bárbara
Spencer? E aquele com certeza era um desafio enorme.
E o pior de tudo? Naquele momento, eu não estava nem aí.
A verdade era que tinha alguma coisa naquele cara de sorriso de lado
e boca suja que me fazia querer ser livre. Não aquela liberdade forjada que eu
vivera no último verão antes de ir pra faculdade, trabalhando na galeria de
Alan, e sim algo mais real e palpável. Algo que me fizesse sentir que ainda
havia uma chance de eu ser o que eu realmente queria.
Não o que haviam escolhido pra mim.
— E aí, o que vai ser, gata? – Eu olhei para o cara bonitinho diante de
mim, meus olhos indo direto para seu braço coberto de tatuagens de cima
abaixo, quando ele usou a mão para tirar os cabelos loiros compridos da testa.
Eu coloquei o desenho que fiz para Thomas no balcão.
— Wow. Isto é grande! É pra você? – Ele esquadrinhou meu corpo
sem nenhum pudor, certamente imaginando onde desenharia aquele dragão.
Eu apontei para Thomas.
— Não, para ele.
Os olhos do tatuador bonitinho foram para Thomas.
— Já fez alguma tatuagem antes, cara?
— É, não ainda... – Thomas parecia meio tímido, o que era um
desconcertante de se ver – ela vai fazer uma também.
— Sério? – Os olhos do tatuador vieram pra mim novamente. – E o
que vai fazer?
— Hum, eu ainda não sei...
— Eu posso desenhar para você, é só escolher. Quem desenhou este
daqui?
— Eu mesma.
Seus olhos se arregalaram surpresos e depois admirados.
— Uau. Você é boa.
— Ah, obrigada – senti meu rosto esquentar.
— Você já tem alguma tatoo?
— Não.
Seu sorriso se alargou. É, ele era bem bonitinho mesmo.
— Uma virgem – ele carregou no sotaque sulista, que só agora eu
reparei que tinha. – Então, vai desenhar algo pra você mesma? Tem alguma
ideia? Eu sugeriria algo pequeno para começar. Tem ideia de onde quer
fazer? – Ele deu a volta no balcão e tocou minha cintura, os dedos passando
pela pele da minha barriga que a blusa não cobria – Algo no quadril talvez,
ou...
— Ei – de repente eu me vi puxada para trás, de encontro ao peito de
Thomas – tira as mãos da minha garota, cara.
Oi?
Eu o encarei.
— Sua garota? Tá louco, Hardy? – O empurrei, tirando suas mãos de
mim.
— Calma amigo – o tatuador riu – sou apenas um artista, não estou
flertando com sua mina.
— Eu não sou a garota dele! – Retruquei.
— Enfim, decidam o que vão fazer, já está ficando tarde, e eu tenho
um show hoje.
— Show?
— Sim, eu toco guitarra numa banda.
— Que legal – eu sorri empolgada ao mesmo tempo que pensei
escutar Thomas resmungando um “grande merda”. – Certo, não queremos
tomar muito do seu tempo. Pode começar com a tatoo do Thomas, já que
temos o desenho. Eu acho que preciso pensar.
— Não, você vai fazer primeiro – Thomas discordou.
— Por quê?
— Porque com toda esta conversa acho que está me enrolando.
— Não estou te enrolando!
— Nada feito, Spencer. Você vai fazer primeiro.
— Mas eu nem sei o que fazer!
— Eu deveria escolher.
— Por quê?
— Você escolheu a minha é justo que eu escolha a sua.
— Ah é? Você disse que nem sabe desenhar!
— E aí? – O tatuador insistiu pegando uma folha – quer que eu
desenhe algo, ou você mesma desenha?
Eu peguei a folha de sua mão e o lápis e encarei Thomas.
— Ok, Picasso, qual sua grande ideia pra mim?
— Uma pequena rosa. Vermelha. Bem aqui – e, sem aviso, sua mão
se descolocou para minha cintura, deslizando mais pra baixo, até se infiltrar
em meu jeans.
E, diferentemente da inspeção do tatuador, o toque de Thomas causou
um curto-circuito em minha pele. Meu rosto queimando de um vermelho
vivo, enquanto minha respiração tornou-se rápida e curta.
Nossos olhares se encontraram e eu sabia que em algum lugar da
minha mente estava o sonoro “nem pensar”, assim, como o tapa que eu devia
dar em sua mão atrevida. Quem disse que eu encontrei? Todas minhas
respostas rápidas deviam ter dado as mãos e fugido junto com a minha
sensatez.
— Decidimos então? – O tatuador quebrou nosso momento e Thomas
tirou as mãos de mim. Eu mordi os lábios com força, enquanto começava a
desenhar rapidamente, tentando fazer meu cérebro voltar a funcionar.
— Isto – Empurrei o desenho.
— Perfeito. Vamos?
Eu nem consegui olhar para Thomas, enquanto acompanhava o
tatuador.
E só voltei a respirar quando a porta se fechou atrás de nós.
— Eu sou Josh, aliás – ele disse sorrindo, enquanto pedia para eu
deitar – e ainda bem que seu namorado não está aqui, preciso pedir que abra
seu jeans.
Eu corei de novo, fazendo o que ele pediu.
— Ele não é meu namorado.
Josh levantou a sobrancelha, enquanto passava álcool no local, quase
chegando na minha virilha.
— Não? Ele parecia bem possessivo.
— Ele é só um encontro.
— Primeiro encontro? – Eu sacudi a cabeça afirmativamente, o
fazendo rir – Não brinca! E decidiram fazer uma tatuagem.
Eu dei de ombros.
— Pelo menos somos originais.
Josh concordou ligando o aparelho.
— Relaxa agora. É uma tatoo pequena e não vai demorar. Prometo.
Eu respirei fundo e engoli o gemido quando senti a picada na pele.
Agora não tinha mais volta.
Não sei quanto tempo se passou até que Josh desse o serviço por
terminado.
— Prontinho.
— Ufa! – Exclamei me levantando e alongando meus membros
inativos.
Josh apontou para um espelho.
— Veja como ficou.
Eu me aproximei do espelho e olhei para baixo.
— Uau – uma pequena rosa vermelha adornava minha pele antes
pálida.
— Gostou?
Eu sorri, deixando meus dedos passarem pelo pequeno desenho.
— Eu amei...
— Vai ficar sensível por uns dias. Vou prescrever uma pomada.
— Certo – fechei minha calça no exato momento em que meu
telefone celular tocou no meu bolso.
Eu o peguei para ver o número da minha mãe. Imediatamente eu me
encolhi, imaginando o quanto ela ficaria furiosa quando soubesse da minha
tatuagem.
Bem, pelo menos eu tinha feito num lugar em que ela não descobriria
tão fácil.
E com certeza hoje não era um dia em que eu queria estragar falando
com Bárbara. Infelizmente eu sabia que não atender seria pior.
— Eu preciso atender.
— Fique à vontade – Josh saiu da sala e eu respirei fundo colocando o
telefone na orelha.
— Oi Mãe.
— Onde diabos está?
— Em um encontro – murmurei.
— O quê? Encontro com quem?
— Com um cara, mãe.
— Espero que se lembre dos meus conselhos e não se envolva em
nada a sério! Está a poucos dias de começar suas aulas na universidade e terá
que se dedicar totalmente se daqui a quatro anos quiser entrar com mérito na
escola de medicina.
— Eu sei mãe, é apenas um encontro...
— Espero que seja mesmo. Eu não te criei para se deixar envolver
com rapazes e perder o foco!
— Eu já sei mãe.
— É minha obrigação te manter na linha. Diversão é para os outros!
Você é especial e tem um futuro brilhante, só não pode perdê-lo de vista.
— Você não me deixaria perder não é? – Resmunguei, começando a
sentir minha cabeça doer – mãe preciso desligar.
— Tudo bem. Eu estarei de volta daqui a duas semanas. Te amo
querida.
— Também te amo – eu desliguei.
Eu respirei fundo algumas vezes, tentando esquecer minha mãe e
voltei para a sala de espera, para encontrar Thomas e Josh.
— E aí? – eu coloquei um sorriso no meu rosto – já cumpri minha
parte do acordo. Agora falta a sua, senhor Hardy!
— Tenho más notícias – Josh disse – Esta tatoo é muito grande, não
vai dar tempo de fazer hoje.
— O quê? Não!
Thomas deu de ombros.
— A culpa não é minha.
Eu encarei Thomas decepcionada.
— Que merda!
— Por mim, tudo bem. Agora me mostra a sua – ele sorriu cruzando
os braços a espera.
Eu franzi a testa e cruzei os braços também.
— Você me enrolou!
— Claro que não! Ouviu nosso amigo. A tatoo é muito grande. A que
você desenhou, aliás.
— É verdade, fazer esta tatuagem do Thomas, vai demorar umas boas
horas e eu não tenho este tempo hoje, por isso estamos adiando. – Josh
endossou e eu fiquei encarando os dois, muito decepcionada.
— Bom, sabe o que isto significa, não é? Nada do que combinamos
vai acontecer, Hardy – eu peguei minha bolsa e tirei o cartão de lá. – Quanto
ficou Josh?
— O Thomas já acertou.
Isto me irritou mais ainda.
— Não foi o combinado!
— Não seja absurda, Liz...
— Está bem, que seja! – Recoloquei meu cartão na bolsa – eu vou
embora!
Eu saí pela porta sem olhar para trás, Thomas me alcançou na calçada.
— Liz, aonde vai?
— Acho que nosso encontro acabou – eu olhei de um lado para o
outro procurando um táxi.
— Você está brava comigo...
— Claro que sim!
— Só por causa de uma tatuagem...
Eu me virei furiosa.
— Só por isto? Só por isto? Eu fiz a merda de uma tatuagem porque
era uma aventura que estávamos vivendo juntos! Era para fazermos juntos e
você deu pra trás, me deixando sozinha!
— Eu disse que a culpa não é minha!
— Que seja! Eu preciso achar um táxi.
— Não precisa ir...
— O quê? Esperava que eu fosse pra sua casa? Nem pensar!
— Você parecia empolgada no restaurante... – ele disse cheio de
presunção.
— Ah, vai pro inferno!
— Ei, Liz – Josh surgiu de dentro do prédio vestindo uma jaqueta
jeans. – Eu vou tocar num bar aqui perto...
Eu olhei pra Thomas e depois pra Josh e depois pra Thomas de novo.
— Eu quero ir!
O rosto de Thomas se transformou de presunção para irritação e eu
fiquei bem feliz.
Minha felicidade acabou quando Josh se virou para Thomas que
parecia petrificado na calçada.
— Sabe onde fica o Rascall, Thomas?
— Talvez o Thomas não queira ir, posso ir com você? – perguntei
rápido.
— É... – Josh hesitou olhando pra Thomas.
— Thomas não vai se importar. Eu estava justamente dizendo pra ele
que nosso encontro terminou.
— Bem, já que é assim... Esta é minha caminhonete – Josh apontou
para a pick-up preta – vamos?
Eu sorri.
— Amei seu carro!
Josh abriu a porta pra mim e eu entrei.
E, enquanto Josh dava a volta para entrar no carro, eu olhei pra
Thomas e sorri.
— Boa noite, Thomas!
E fechei a janela na cara dele.
Josh entrou no carro e deu partida.
— Tem certeza do que está fazendo? – ainda me perguntou. – Thomas
me pareceu chateado...
— Thomas é um idiota! Vamos logo.
— Ok...
Por todo o percurso eu tentei ficar bem dizendo a mim mesma que
tinha tomado a decisão certa. Thomas era um babaca presunçoso que achou
que podia brincar comigo e eu ainda ia concordar em ir pra cama com ele.
Pois estava bem enganado.
Eu poderia estar me sentindo muito decepcionada bem lá no fundo,
porém era melhor estar decepcionada agora do que arrasada depois.
E eu começava a entender que, por todas aquelas emoções que
Thomas despertava em mim, o único desfecho daquela nossa estória seria um
coração partido, o meu, com certeza.
Nós chegamos ao bar lotado e outra banda estava tocando.
— Minha banda vai tocar depois desta. Vem, vamos tomar alguma
coisa.
Ele me comprou uma cerveja e nós ficamos em um canto.
— Você também parece chateada – Josh comentou e eu sorri.
— Só por ter, por um momento, acreditado que Thomas Hardy
poderia ser menos que um babaca.
— Por que acha isto?
— Ah, não ficou claro? Ele me deixou empolgada para fazer uma
tatoo, algo que é pra sempre e eu amei a ideia de embarcarmos nesta aventura
juntos e ele me deixou fazer sozinha como se não tivesse a menor
importância pra ele.
— E foi importante pra você.
Eu dei de ombros.
— Eu fui uma idiota.
— Você não acreditou que era falta de tempo?
— Nós estamos aqui, de boa e não vejo você se apressar pra tocar,
então, começo a desconfiar que eu estava certa...
Josh coça os cabelos.
— É, eu poderia ter ao menos começado a tatuagem.
— E por que não começou?
— Thomas pediu que eu mentisse pra você.
— Filho da puta! – Eu bebi o resto da minha cerveja, mais irritada
ainda com Thomas agora.
— Me desculpe – Josh pediu, parecendo genuinamente arrependido.
— Não foi culpa sua.
— Eu só fiquei mal por ver que você ficou mesmo chateada.
— Tudo bem. Deixa pra lá!
A banda tocou mais algumas músicas e então Josh me deixou indo
para os bastidores.
Peguei mais uma cerveja e Josh subiu no palco, começando a tocar.
Ele tocava realmente bem e a banda era muito boa. Eu estava tentando me
divertir quando, de repente, senti alguém me observando. Olhei em volta para
quase engasgar com minha cerveja ao ver Thomas Hardy encostado numa
parede olhando diretamente pra mim, enquanto tomava sua própria cerveja.
Eu me virei, pensando no que fazer.
Eu podia ignorá-lo.
Só que estava tão irritada pensando no que Josh me disse que marchei
até ele e parei a sua frente.
— Você é um sacana sabia?
Ele deu de ombros.
— Não é a primeira a me dizer!
Eu bufei, sentindo minha irritação aumentar.
— Você pediu para o Josh mentir!
Ele riu.
— E ele ficou muito feliz em te contar e tomar o meu lugar, não é?
— É só o que tem a dizer? Eu fiz uma merda de uma tatuagem! E
você acha engraçado? Em que momento você decidiu que ia ser divertido me
fazer de idiota? Deve ter sido muito engraçado pra você não é? Vamos fazer
piada com a trouxa da Liz Spencer! E ainda vou jogar meu sorrisinho sacana
pra ela e levá-la pra cama no fim da noite! Seu grande babaca! – Sem pensar
eu virei minha cerveja na sua cara e taquei o resto da garrafa na parede,
marchando para fora do bar sem olhar para trás.

Eu acordei com uma grande dor de cabeça e uma batida insistente na


porta.
— Oh inferno! – Praguejei jogando as cobertas para o lado e me
perguntando quem poderia ser naquela hora.
Eu cheguei no começo da madrugada cheia de cerveja e ódio, dizendo
a mim mesma que nunca mais ia confiar em cretinos como Thomas Hardy.
Eu só queria esquecer o fiasco que foi a noite passada, para meu azar
a maldita tatoo sobre a minha pele não me deixaria esquecer.
E o pior de tudo era a decepção que eu sentia quando botei minha
cabeça no travesseiro, admitindo a mim mesma que não foi assim que eu
imaginei que minha noite terminaria.
A verdade era que eu estava atraída demais por Thomas Hardy, como
nunca estivera por outro cara antes.
Todos as minhas paixões anteriores pareciam sem sentindo quando eu
pensava no que ele me fazia sentir com apenas um olhar.
A batida na porta agora ficou mais insistente e eu xinguei baixinho
me levantando e arrastando meus pés cansados pelo apartamento.
Ainda parecia incrível que minha mãe tivesse me deixado morar
sozinha para fazer faculdade, eu estava adorando ter meu próprio lugar,
mesmo duvidando que Bárbara afrouxasse o laço sobre mim tão cedo.
— Já vai! – Será que era Valerie?
Eu abri a porta e meu queixo caiu ao ver que quem estava ali, bem na
minha frente, era Thomas Hardy.
— Você! – Exclamei estupefata.
— Eu acho que te devo uma tatoo.
Capítulo Cinco

Thomas

Sinto o líquido gelado descer como um bálsamo em minha garganta e


batendo em meu estômago vazio. Era tudo o que eu precisava hoje: cerveja
gelada. O bem-vindo torpor do álcool em minha mente e corpo exausto.
— Agora sim – Erick esbraveja soltando um ruidoso arroto em
seguida me fazendo rir.
— Porco!
— Obrigado! – Erick sorri, fazendo sinal para a bartender encher mais
o seu copo.
Nós estamos faz meia hora no bar irlandês que fica na esquina do
hospital para onde inevitavelmente fugíamos a cada fim de plantão para
encher a cara e pegar algumas garotas, se ainda tivesse força, antes de irmos
para nossas respectivas casas e cairmos na cama para um bem-vindo sono
depois de horas estressantes.
— Mais uma para você também? – A bartender pergunta numa voz de
inconfundível interesse o que me faz levantar o olhar da cerveja para dar uma
checada. Definitivamente gata com cabelos pretos, tatuagem nos braços e
sacanas olhos azuis que piscam pra mim sem nenhum disfarce.
— E aí, estou pensando em encurralar em alguma sala aquela interna,
a baixinha gostosa, o que acha?
Falar das internas azeda meu humor e faz qualquer interesse que eu
começava a ter na bartender desaparecer feito fumaça e no lugar ressurgir a
raiva que eu vinha tentando camuflar o dia inteiro desde que ela cruzara meu
caminho de novo.
Elizabeth Spencer.
Ainda irritantemente linda. Ainda irritantemente sexy.
Ainda fodendo a minha vida.
— E você? Vai investir na branquinha? Como é mesmo o nome?
Spencer? Se bem que me falaram que você e Emily andaram sacudindo
algumas aspirinas hoje no armário de medicação. Não posso culpá-lo, Emily
é gata pra cacete. Se quiser deixar a branquinha pra mim...
— Cala a boca! – Grunhi irritado com o solilóquio de Erick que já
fala merda sóbrio, com a bunda cheia de cerveja ficava ainda pior.
— Ei, calma, amigo! Já entendi que a Spencer é território proibido –
Ele solta uma risada, limpando a boca de cerveja – se bem que é só até que
você se canse né? O que sempre acontece, aí eu e o meu colega aqui
estaremos a postos para consolá-la – ele segura o saco e eu tenho vontade de
fazê-lo engolir as próprias bolas por apenas estar sugerindo que vai passar
aquele pinto sujo na minha garota.
Espera. Minha garota? Que diabos eu estava pensando?
Eu não via Liz há quase nove anos. Nós ficamos juntos um tempo tão
ínfimo que nem sei se eu podia chamar o que tivemos de relacionamento.
E tudo acabara mal. Muito mal.
Ok, eu a considerei minha um dia.
Agora ela era apenas uma interna no hospital.
Eu tinha que continuar pensando assim.
— E falando nelas... – Erick cantarola, entornando mais cerveja e eu
acompanho seu olhar para ver os jovens internos entrando em bando no bar.
E lá está ela. A razão do meu tormento.
E de súbito o tesão que faz meu pau se contorcer dentro das calças.
Maldito traidor.
Maldita Spencer!
Os internos seguem entrando ruidosos como gralhas, se agrupando
numa mesa, meus olhos seguem como um falcão aquela que eu deveria estar
evitando a qualquer custo.
E então, seus olhos se levantam e se encontram com os meus.
Por um momento eu esqueço como respirar. Meu coração bate num
ritmo estranho e ele só foi idiota para bater assim somente uma vez na vida e
foi justamente por causa daquela garota.
E eu odiava isto.
Desvio o olhar com um resmungo irritado e Erick ri ainda mais alto.
— Caralho, que foi isto? Até eu estou com tesão.
— Você devia calar esta maldita boca – rosno, jogando algumas notas
em cima do balcão e me levantando.
— Ei, aonde vai?
— Tenho um jantar na casa do meu pai – Infelizmente, completo
mentalmente. Hoje tudo o que eu queria era um longo banho e a solidão do
meu apartamento. Talvez uma garrafa de whisky e dormir bêbado de
lembranças doloridas.
— Ah cara, que merda. Boa sorte – Erick levanta o copo. Ele já está
bêbado. Hoje teria que se virar sozinho.
Eu ainda lanço um olhar para a mesa dos internos, que riem e
conversam alto e vejo Liz rindo de algo que Mark disse e não consigo evitar
o desgosto ao ver o olhar idiota que ele descarrega nela.
Mais irritado ainda, eu saio do bar e sinto alívio por não estar mais no
mesmo ambiente que Liz Spencer. Ao mesmo tempo me lembro que tenho
que ir pra minha casa, tomar um banho rápido e me tornar decente para ir pra
casa do meu pai. O que seria ótimo em qualquer outra circunstância que não
envolvesse sua noiva vadia, Paola Becker.
Minha vida estava mesma muito fodida.

A bela casa em estilo vitoriano com um jardim magnifico me saúda


quando estaciono meu carro e, respirando fundo, desligo o motor e fico um
momento ali, olhando para a construção além do verde luxurioso que minha
mãe tanto amou. Uma mãe que eu não conheci.
O jardim ficou malcuidado por muitos anos depois de sua morte, com
meu pai mais preocupado em construir sua fenomenal carreira médica até que
ele conheceu Diana e em seu breve casamento, ela se esforçou para deixar o
jardim como antes.
Assim como nossas vidas. Eu teria sentido falta dela quando se
divorciaram se já não estivesse em Harvard ocupado com a minha própria
ascensão. Realmente achei que eles dariam certo, seu divórcio só fez
aumentar a minha crença que as pessoas não foram feitas para viverem juntas
para sempre. Relacionamentos sempre estavam fadados a acabar e a foder
com a vida de quem se apaixonava.
Meu pai se ferrou por anos porque continuava apaixonado pela minha
mãe.
E Diana porque amou meu pai que nunca foi capaz de retribuir, ainda
preso à figura da esposa morta.
E eu? Bom, eu fugi do amor enquanto era tempo.
A merda é que agora eu sentia que este filho da puta tinha me
alcançado. Mil vezes inferno.
De repente escuto uma risada e sorrio, sentindo o amargor deixar meu
peito como um passe de mágica.
Saio do carro e nem cheguei à porta quando um pequeno furacão se
choca contra mim.
— Thomas você veio!
Eu sorrio ao erguê-la do chão, rodopiando seu corpo pequeno vestido
de xadrez pelo ar antes de seus bracinhos rodearem meu pescoço com força.
— Claro que eu viria, pitoco.
Ela me encara com os olhos franzidos.
— Não me chama de pitoco, eu cresci cinco cm! Me mediram na
escola ontem!
Eu rio, levando-a pra dentro e Amber está descendo as escadas. Usa
um lindo vestido vermelho que faz um contraste bonito com seu cabelo loiro.
Ela estava sempre bonita, mas não seria eu a elogiá-la. Não mesmo.
— Olha, Amber, o Thomas chegou! – Nina diz ainda com os braços
presos no meu pescoço – você disse que ele não viria!
Amber sorri para nossa irmã. A única coisa que era uma constante
entre nós.
Desde a chegada de Nina, ela teve o dom de ser uma espécie de trégua
entre nossas brigas. Nós a amávamos e protegíamos ferozmente.
Eu ainda não entendia como Diana concordou em deixá-la com meu
pai quando foi embora. Mas nós agradecíamos muito por isto. A casa não
seria mesma sem a presença de Nina.
— Parece que eu errei querida – Amber responde – agora por que não
desce do colo do Thomas e vai ver com a Maria se o jantar está pronto?
— Eu não quero ir na cozinha! A Paola está lá dando bronca na
Maria.
Eu e Amber trocamos um olhar.
Amber também não gostava nada do fato de o meu pai estar com
Paola. Isto porque ela não fazia ideia do meu relacionamento com Paola. E
era melhor que continuasse assim.
— OK, eu vou ajudar a Maria a se livrar da bruxa! – Amber resmunga
e Nina arregala os olhos
— A Amber chamou a Paola de bruxa!
Eu rio e a coloco no chão.
— Não conte ao papai.
— Não é legal chamar ninguém de bruxa, né?
— Não, não é. Mas não quer deixar a Amber em maus lençóis com o
papai quer?
— Claro que não!
Nós entramos na sala e meu pai está lá folheando uma revista médica
e tomando whisky.
— Aí estão vocês – ele sorri ao nos ver.
— Ainda bem que o Thomas veio não é papai?
— Eu falei que ele viria, docinho. – Mau pai me encara – e aí, como
foi o primeiro dia com os internos? Correu tudo bem?
— Sim, tudo perfeitamente bem – digo com ironia que passa
despercebida a Jack.
— Que ótimo! Espero que continue assim.
— Vai continuar papai.
— Este cargo vai ser muito importante para sua ascensão no hospital.
Não está longe o dia da minha aposentadoria...
— O que é aposentadoria? – Nina senta no meu colo.
— É quando alguém para de trabalhar.
— Ah, então eu sou aposentada?
Nós rimos.
— Não, pitoco, só os velhos são aposentados.
— Papai não é velho! – Ela refuta.
— Sim, papai, você não é velho – eu concordo. Jack tinha 58 anos e
estava muito bem para sua idade. Havia alguns fios grisalhos em seus cabelos
loiros, mesmo assim ninguém lhe daria mais de 40. – E muito me admira que
já queira se aposentar.
— Eu não sou mais um garoto, filho. E ando pensando em aproveitar
um pouco da vida enquanto ainda não sou tão velho.
Eu disfarço uma careta. Provavelmente era por isto que ele estava
namorando uma mulher 25 anos mais jovem.
— Por isto que estou treinando você para ficar no meu lugar...
— Por que Thomas tem que ficar no seu lugar? – Amber entra na sala
seguida de Paola.
Paola me lança um olhar agudo, se aproximando do meu pai, sentando
ao seu lado.
— Porque é o natural, Amber – meu pai responde.
Amber morde os lábios, num gesto de frustração e fúria que eu já vi
muitas vezes.
Ela odiava que meu pai preferisse a mim.
— Natural por quê?
— Porque ele é meu filho.
— Eu também sou sua filha.
— Amber, não vamos começar de novo!
— Não acho nada justo! Eu sou médica também. Eu sou uma boa
médica!
— Nunca disse que não era!
— Então por que sempre faz tudo pelo Thomas? Eu poderia ficar no
seu lugar e seria melhor que ele!
— Pelo amor de Deus, não quero discutir hoje, Amber – ele se levanta
– vamos comer!
Nós seguimos para sala de jantar com Amber ainda emburrada.
— Não fica assim, irmãzinha – eu cochicho sem evitar o sarcasmo e
ela me dá um soco no ombro.
— Au!
— Ei parem com isto! – Jack reclama e Paola sorri.
— Vocês são umas graças! Parecem criança brigando! Sempre foram
assim?
— Estes dois sempre foram como gato e rato – Jack resmunga. –
Achei que quando crescessem melhoraria, parece que só piora.
— A culpa não é minha! – Amber se defende – eu sou adulta, Thomas
é que insiste em me irritar sempre!
— Você que é muito chata o tempo inteiro.
— Ei, chega! – Jack pede.
Nina pede a Amber que corte sua carne e ela desfaz a carranca para
ajudar nossa irmã.
— Bom, ainda bem que não são crianças, senão teria que pensar em
alguns castigos por estar sendo mau com sua irmã, Thomas – Paola diz
baixinho ao meu lado e eu arregalo os olhos, preocupado que alguém pudesse
ter ouvido suas insinuações. Meu pai parecia distraído em uma conversa com
Maria, nossa governanta, sobre o ponto do cordeiro e Amber estava ajudando
Nina com a carne.
— Por favor, só fale comigo se for necessário – digo entredentes e
solto um palavrão quando sinto suas unhas em minha coxa. Porra, que diabos
ela estava pretendendo?
— Thomas! – Amber e Nina falam ao mesmo tempo e meu pai me
encara.
— Desculpe – eu sei que estou vermelho – muita pimenta – minto,
apontando para o molho que acabei de servir.
Nina ri.
— Thomas falou palavrão!
— E você nunca deve dizer querida – Amber afirma.
Paola recua para meu alivio e o jantar transcorre sem percalços.
Depois eu e Amber conseguimos nos livrar da presença do casal indo
pro quarto de Nina, jogar banco imobiliário com ela.
Após algumas partidas ela começa a bocejar e nós decretamos hora de
ir para cama.
— Vai dormir aqui? – Ela pergunta sonolenta, quando eu puxo a
coberta sobre seu corpinho. Amber tinha ido até a cozinha buscar seu copo de
leite.
Eu acaricio seu cabelo.
— Não, pitoco, eu tenho que ir pra casa.
— Você não tem casa!
— Como assim?
— Você tem um apartamento.
— É a mesma coisa.
— Não é! Aqui é muito mais legal! Você prometeu pra mim que
quando voltasse de vez de Harvard ia morar aqui comigo!
Eu suspiro. Eu prometi muitas coisas pra Nina, sempre culpado ao fim
de cada fim de semana ou férias, quando voltava à escola de medicina.
É claro que quando eu voltei à cidade e fui fazer residência me mudei
para meu próprio apartamento.
— As pessoas adultas têm suas próprias casas, Nina.
— Mas a Amber mora aqui!
Amber é uma puxa-saco – eu queria dizer, porém optei por uma
abordagem mais branda.
— A Amber um dia vai ter a própria casa também.
— Quando ela casar?
— Pode ser – eu sorrio. Imaginando qual coitado aceitaria Amber até
que a morte os separe.
— Papai vai mesmo casar com a Paola?
— Hum, é uma boa pergunta – eu sento do seu lado e a encaro – que
você pensa sobre isto?
Ela dá de ombros.
— Eu não sei. Às vezes sinto falta de ter uma mãe.
Eu tento conter a onda de raiva que sinto de Diana no momento.
— Você tem uma mãe, pitoco.
— Que eu quase não vejo! Eu queria uma mãe que morasse comigo.
—Você tem a Amber para cuidar de você. E a Maria.
— Não é a mesma coisa.
— Então você quer que o papai se case com a Paola?
Era difícil pra mim imaginar Paola sendo a figura materna de alguém.
Contudo, eu nunca a tinha visto destratar Nina, ela era sempre
simpática com a criança, trazia presentes e aguentava seu papo infantil. Eu
desconfiava que era apenas para agradar meu pai.
E se eles realmente se casassem, ela seria uma boa mãe para Nina?
Nina boceja, sem responder. Em vez disto ela fica pensativa e eu me
pergunto se ela dormiu, então, de repente ela me encara.
— E você vai casar?
— Eu?
— É, todo mundo se casa, não é?
— Não eu, pitoco.
— Por que não?
Como explicar a uma criança que eu não acreditava em amor eterno,
casamento e aquele tipo de baboseira?
— Acho que já é hora da mocinha ir dormir! – Eu beijo seu rosto, ao
mesmo tempo que Amber entra no quarto.
— Olha aqui seu leite.
— Thomas vai dormir aqui? Por favor! – Nina insiste – amanhã você
poderia me levar a escola.
— Tudo bem – eu acabo concordando. Era muito difícil dizer não a
aquela criança.
Eu me levanto e, dando boa noite as duas, saio do quarto.
Antes que alcance a segurança do meu próprio quarto, Paola aparece
no meu caminho.
Eu tento passar por ela ignorando-a. Obviamente, Paola não deixará
as coisas tão fáceis para mim.
— Está bravo comigo?
— Sério? – eu não consigo acreditar naquela cara de pau.
Ela sorri.
— Você está.
— Eu não estou bravo. Eu apenas estou tentando te ignorar, algo que
você está tornando difícil.
— Por que quer me ignorar?
— Por que você é a noiva do meu pai? – Eu levanto a sobrancelha
cheio de ironia.
Ela sorri dando um passo à frente.
— Por isto mesmo não devia me ignorar. Somos família agora.
— De boa, qual é a tua?
— Como assim?
— Você fez suas escolhas. Começou um relacionamento com meu
pai. Estão noivos. Então por que diabos fica dando em cima de mim ainda?
Ela se aproxima ainda mais. Rápido demais.
Só há a parede atrás de mim.
— Ainda pergunta? – E sem aviso, ela fica na ponta dos pés e cola os
lábios nos meus.
— Que diabos está acontecendo aqui? – Eu congelo quando Paola se
afasta e vejo Amber nos encarando horrorizada.
— Eu vou dormir, com licença. – Paola se afasta pelo corredor e
Amber ainda está chocada.
— Não é o que está pensando – eu digo a frase mais clichê de todas e
Amber finalmente sai do seu torpor.
— Não posso acreditar no que eu vi! Você é pior do que eu pensava
Thomas!
— Já disse que não é o que parece.
— Ah não? Você estava beijando a Paola! Que, apesar de ser uma
vaca, é a noiva do seu pai!
— Disse uma verdade. Paola é uma vaca e ela estava me beijando e
não o contrário!
— Ah, por favor!
— Você está sempre pronta a acreditar no pior!
— Em se tratando de você sim!
— Acha que eu seria capaz de fazer isto com o papai?
— Eu não achava, aparentemente estava enganada, não é?
— Eu não beijei a Paola! Ela que me encurralou aqui no corredor e
me beijou!
— E por que ela faria algo assim, a não ser que tivesse um convite?
— Quer saber a verdade? A gente teve sim um caso. Que durou
meses.
— O quê?
— Exatamente e era apenas uma transa. Então ela se envolveu com
nosso pai e tudo acabou.
— Acabou? E o que foi que eu vi hoje?
— Apenas Paola sendo vadia.
— Deixa ver se eu entendi. Você comeu a Paola por meses e ninguém
sabia?
— Erick sabia.
— Tinha que ser! Enfim, vocês tiveram um caso e então ela decidiu
dar em cima do papai? Por que ela faria isto?
— Porque ela é uma piranha interesseira.
— Ah, ela preferiu o tubarão.
— Pois é.
Amber sorri cheia de sarcasmo.
— Então você perdeu a garota para seu velho pai?
— Cala a boca, Amber!
— Bom, é exatamente assim que eu vejo as coisas!
— Pode ver do jeito que bem entender, contanto que não conte nada
disto ao papai.
— Ele não sabe?
— Claro que não!
— Ele tem que saber.
— Não, não tem!
— Não está certo enganá-lo deste jeito! E quem sabe assim ele não dá
um fora naquela vaca!
— Você não pode contar, Amber.
— Por que não? Não quer ficar mal com o papai, não é? Certamente
ele não ficará nada feliz em saber que estão dividindo a mesma mulher!
— Não diga besteira! Não estamos dividindo nada!
— Não? – Ela levanta a sobrancelha.
— Não! Meu caso com a Paola terminou quando ela começou a sair
com papai.
— Meu Deus, isto é tão nojento! Esta Paola é pior do que eu pensava!
— Concordo totalmente.
— Por isto mesmo não podemos deixar o papai com uma piranha
destas!
— Não vai se intrometer, Amber.
— Como pode deixá-la se casar com o papai? Ainda mais quando ela
ainda fica se esfregando em você como uma gata no cio? A não ser que esteja
gostando disto e pretendendo...
— Não pretendo nada! Eu já disse à Paola que não quero mais nada
com ela, parece que está sendo difícil para ela entender.
— Mais um motivo pra contar ao papai!
— Não é uma boa ideia.
— Não entendo!
— Ele vai sofrer Amber. Ele está feliz, Deus sabe que a Paola pode
ser uma vadia, porém ela é uma vadia esperta e está fazendo tudo direitinho
pra ele comer na mão dela.
— Pois isto precisa acabar!
— Eu acho que vai acabar sim. Só terá que ser sem que ele saiba
sobre mim e Paola.
— Não acredito em você! Está somente preocupado com sua própria
pele. Pois eu vou contar tudo a ele!
— Amber...
— Nem adianta insistir! Amanhã eu vou contar exatamente o que eu
vi e o que me contou! E ele vai acabar com esta palhaçada de noivado.
— E vai me odiar também. É o que você mais quer!
— E é exatamente o que você não quer, não é? Boa noite, Thomas!
Ela passa por mim e entra no próprio quarto.
A mim, nada resta fazer a não ser ir pro meu quarto também.
Eu estou cansado e com sono e não adianta nada me preocupar com o
que Amber e sua língua grande vai fazer amanhã.
Talvez ela tenha razão e seja melhor assim. Que papai saiba logo de
tudo e se livre de vez de Paola.
E fique enfurecido comigo.
Amber tinha razão e era justamente isto que eu queria evitar.
Agora esta decisão fora tirada de minhas mãos. E estava na mão da
minha ciumenta irmã.
Que bela merda pra fechar com chave de ouro aquele dia infernal!
E como se tudo já não fosse o bastante, de repente vejo meu antigo
quarto de forma diferente esta noite.
Eu fecho a porta atrás de mim e meus olhos recaem no quadro na
parede.
O quadro dela.
E então minha mente está infestada de lembranças.
Ela já esteve ali comigo. Naquele quarto. Naquela cama...
Oito anos antes

Eu tinha sido um idiota.


Era a única coisa que eu conseguia pensar quando acordei naquela
manhã, com uma tremenda dor de cabeça e uma ressaca monstro.
Eu tinha estragado tudo com Liz.
Claro, eu poderia deixar para lá. Poderia sair hoje à noite e conseguir
qualquer garota que eu quisesse.
Porém a verdade é que eu não queria ninguém. Eu estava com uma
pequena obsessão por aquela garota.
Então por que eu tinha detonado com nosso encontro?
Tudo começou quando eu arreguei na hora de fazer a merda da
tatuagem. Simplesmente porque desde que eu me conhecia por gente, eu
tinha um certo pavor de agulha.
Era isto: eu era um banana quando se tratava daquele ridículo objeto
perfurante.
Tentei enrolar, pedindo pra ela fazer primeiro e fiquei aguardando na
sala de espera, sentindo-me suar frio e uma crescente vontade de vomitar.
Então, quando Josh apareceu dizendo que tinha terminado a tatoo de
Liz e podia ao menos contornar a minha eu pedi que ele inventasse que não
daria tempo. Ele havia levantado a sobrancelha interrogativamente, não sei se
desconfiando dos meus motivos ou não, então dera de ombros concordando.
O que me deixou bem aliviado.
Eu não imaginei que Liz ficaria tão puta. E acabaria indo embora do
estúdio com o tatuador traidor.
Eu devia ter deixado aquela garota pra lá naquele momento, mas não.
Eu fui atrás.
E passei a noite inteira bebendo e secando-a de longe. Me
perguntando se ela beberia o suficiente pra eu poder me aproximar e levá-la
para alguma parede, prensando-a lá até que ela cedesse e esquecesse aquela
história boba de tatuagem.
Como eu não estava com sorte e ela se aproximara de mim, gritando e
me esculachando, o que bem lá no fundo eu sabia que merecia, embora não
fosse admitir. Então eu decidi pela escrotice habitual, o que só serviu para
deixá-la com mais raiva, e eu terminei a noite levando cerveja na cara.
Mil vezes porra! Que garota insuportável.
Eu fui pra casa bêbado, fedendo e jurando que pra mim bastava.
Mas, assim que eu pousei minha cabeça bêbada no travesseiro, eu só
conseguia pensar que eu tinha sido mesmo um babaca com ela.
E um sentimento muito parecido com arrependimento e culpa
começou a se arrastar sobre minha consciência.
E agora eu estava bem acordado e pensando que tudo o que eu queria
era uma segunda chance. Como me redimir caralho?
Eu me levantei, me arrastei até o banheiro, tomei um banho demorado
e um plano começou a se delinear na minha mente.
E algumas horas depois eu estava batendo em sua porta.
Algo esquisito fez meu peito se contrair, quando escutei seus passos
se aproximando. Uma vontade súbita de dar meia volta e fugir. Como se esta
fosse minha última chance... Mas para quê?
Era um sentimento estranho. Querer muito e temer muito ao mesmo
tempo. Eu não conseguia entender. A necessidade que eu tinha de vê-la de
novo venceu e eu ainda estava ali, quando a porta se abriu.
Ela estava um lixo.
Ela estava linda.
E claramente surpresa em me ver.
— Acho que te devo uma tatoo – foi tudo o que eu consegui dizer.
Eu havia ensaiado algumas desculpas no caminho. Pensando em que
tipo de humilhação eu poderia oferecer. Se ela soubesse o quanto me custava
estar ali oferecendo a merda da tatoo ela certamente entenderia que era o
maior sacrifício que um cara que odiava agulhas como eu poderia oferecer.
Então, por um momento infinito, eu esperei. Ela me encarava com os
olhos cinzentos arregalados.
Seu rosto pálido e cabelos desgrenhados. Sua camiseta velha puída
nos ombros.
Os lábios entreabertos em surpresa.
Merda. O que ela estava pensando?
Era um inferno não conseguir ler sua mente.
E eu já estava pensando se eu deveria dar meia volta e ir embora antes
de passar a humilhação de vê-la fechando a porta na minha cara quando, sem
aviso algum, ela se aproximou, sua mão subiu até minha nuca e puxou minha
cabeça para baixo. Sua boca se chocando contra a minha.
Puta que pariu!
Eu estava beijando Liz Spencer.
Capítulo Seis

Liz

Não consigo evitar o alívio que sinto quando vejo Thomas sair. Eu
vinha tentando disfarçar meu desconforto desde que chegamos ao bar
irlandês. Eu estava ali por causa da forte pressão dos meus colegas, quando
tudo o que eu queria era ir pra casa tomar um longo banho e gritar bem alto
pra extravasar minha raiva daquele dia de bosta.
Infelizmente, todos meus digníssimos colegas insistiram que eu
precisava comemorar nossa sobrevivência ao primeiro dia de residência
médica tomando um porre.
Como se amanhã cedo a gente não tivesse que estar no hospital
inteiros!
Então eu acabei concordando e tentei fingir não notar que Mark
Geller parecia muito feliz, enquanto passava seus braços de mãos cheias de
dedos por meus ombros e seguíamos para o bar.
Podia mesmo ser relaxante me afogar no álcool em vez de ruminar
minha raiva sozinha em casa.
O que eu não esperava era me deparar com o motivo da minha
desgraça no bar.
Que inferno Thomas tinha que estar ali? Agora seria sempre assim?
Para onde eu me virasse eu me depararia com a fuça bonita, porém ordinária
daquele cara?
Por um momento nossos olhares se encontraram e se prenderam e eu
tentei evitar o traidor arrepio trespassando a minha espinha e as batidas
erráticas do meu coração que deveria estar calejado do sofrimento que aquele
cretino me fizera passar. Mas não, parecia que ele havia esquecido o quanto
tinha sofrido há oitos por aquele imbecil e tinha batido descompassado,
ameaçando pular do meu peito, simplesmente porque Thomas estava me
encarando com aqueles olhos azuis que pareciam querer mergulhar nos meus
e...
Eu consegui a muito custo conter a onda ridícula dos meus
pensamentos suicidas e desviei o olhar e dali em diante foi só cerveja e
falsidade.
Eu ri de todas as piadas toscas de Benjamin e Jenny e até ignorei a
mão boba de Mark nos meus ombros. E foi com um suspiro de alivio que eu
relaxei ao ver a razão do meu tormento desaparecer porta a fora.
— Ei, a gente podia sair pra jantar amanhã.
— Oi? – Eu encaro Mark que está ridiculamente vermelho.
— Jantar. Eu e você.
— Ah Mark, eu não sei... estou meio que ocupada...
— Deixa a garota em paz, Mark, ela não está interessada em você –
Jenny grita e dá pra perceber pela língua enrolada e pelo tom estridente de
sua voz normalmente chata que ela já está bêbada.
— Eu só estava convidando-a pra jantar, não era um encontro nem
nada – Mark explica mais vermelho ainda.
Pobre Mark.
Eu quase tenho vontade de aceitar sair com ele só pra ver a chata da
Jenny engolir suas palavras. Como não seria uma boa ideia, decido por uma
mentirinha.
— Mark, você é um cara legal – eu digo com um sorriso de desculpa
– mas eu meio que tenho um namorado.
A expressão de Mark cai.
— Ah... nossa, eu devia saber que uma garota como você teria
alguém...
Eu mordo os lábios e dou de ombros, bebendo um longo gole do meu
copo. Tentando não me sentir culpada por ter aumentado a realidade.
— Bom, eu preciso ir – digo algumas horas depois, todo mundo na
mesa está super bêbado. Sam está paquerando a bartender. Julie está no colo
de Benjamin com a língua dentro de sua boca e Mark está se agarrando com...
Jenny! O que as pessoas alcoolizadas não são capazes de fazer!
Eu me levanto e ninguém se dá conta da minha ausência. Eu deixo
algumas notas no caixa e ponho meu casaco, saindo do bar.
— Ei, linda, quer uma carona? – Escuto a voz atrás de mim e me viro
para ver o Doutor Erick sorrindo encostado na parede.
Eu rolo os olhos.
Carona? Sei bem o que ele esperava.
— Não obrigada – Sacudo as chaves do meu mini cooper – eu estou
dirigindo.
— Não está bêbada pra dirigir?
— Estou mais sóbria que você, com certeza.
— Mas eu poderia te acompanhar.
— Não!
— Ok – ele sorri e levanta os braços – é melhor mesmo eu ficar longe
da garota do Thomas.
Eu me volto, chocada.
— O que disse?
— Nada.
— Você disse garota do Thomas? Está louco?
— Eu não disse nada, relaxa!
Eu bufo.
— O que foi que seu colega te disse? Ele contou que já saímos
juntos? Pois saiba que aconteceu há muito tempo e não dá a ele o direito de
me chamar de sua garota, porra!
Erick arregala os olhos surpreso.
— Você e Thomas já saíram?
Ah merda. Ele não sabia.
Droga!
— Ah, vai pro inferno! – Eu me viro para entrar no carro, então me
volto para Erick.
— Nem uma palavra sobre isto com ninguém no hospital, ok?
Ele não fala nada, como se a língua tivesse sido arrancada de sua
boca.
Eu entro no carro e saio cantando pneu.
Que grande linguaruda Liz!
Dirijo até minha casa me sentindo cada vez mais cansada. E não só
fisicamente. Aquele dia foi emocionalmente esgotante.
Primeiro dia no hospital já seria um drama. Mas, reencontrar Thomas
Hardy pode ser considerado uma tragédia.
Estaciono na garagem e subo pro meu apartamento disposta a me
fechar em meu cantinho e pensar no que eu faria da minha vida. Mas paro
surpresa ao ver uma pessoa dormindo encostada na minha porta.
— Peter!
Ele abre os olhos castanhos sonolentos e sorri enquanto eu vou em
sua direção.
— Ei Lili.
— O que faz aqui?
Ele se levanta.
— Eu vim comemorar seu primeiro dia – sorri timidamente,
mostrando uma garrafa de vinho.
E é a minha vez de sorrir, embora cheia de culpa.
— Você podia ter avisado que viria! Eu estava num bar com meus
novos colegas – abro a porta e ele me segue para dentro.
Ainda é o mesmo apartamento que minha mãe me deu quando eu fiz
18 anos e entrei na faculdade. Mesmo depois de eu ir pra escola de medicina
em Yale, eu continuava voltando, ali era minha casa.
— Eu queria te fazer uma surpresa – ele diz, tirando o casaco e
jogando no sofá. Eu faço o mesmo e também tiro os sapatos. – Agora vejo
que não foi uma boa ideia.
— Não mesmo.
Eu prendo os cabelos num coque e nos encaramos.
É um momento meio estranho tê-lo ali.
Já faz alguns anos que eu conheço Peter White. Nos conhecemos na
faculdade e nos tornamos amigos imediatamente. Depois de alguns meses,
tomamos um porre juntos e acabamos na cama.
Foi o começo de uma longa e bela amizade colorida, que resistira até
ao fato de eu ter saído da cidade pra estudar medicina, enquanto ele ficara e
arranjara um emprego na construção civil (Peter era engenheiro). Era um bom
arranjo pra uma pessoa como eu. Que se tornou alérgica a relacionamentos e
deus me livre, amor, depois da desilusão com aquele que eu preferia não
nomear até hoje, mas agora não adiantava nada fugir do seu nome.
Depois da desilusão com o cuzão do Thomas Hardy.
Peter me entendia e gostava de mim do jeito que eu era e nosso
arranjo sempre foi perfeito para nós porque éramos amigos acima de tudo.
Ao longo daqueles anos, ele saíra com outras garotas e até havia
namorado algumas. Assim como eu tive a minha cota de romances de uma
noite, como qualquer universitária. Mas nós sempre podíamos contar um com
o outro para um pouco de carinho e conversa sincera. E um tantinho de sexo
também, porque não?
Peter era bem gato, com sua tez morena e cabelos pretos e com ele eu
não precisava ficar me preocupando se estava de cabelo penteado ou de
lingerie bonita. Também não precisaria me preocupar com desculpas para
mandá-lo embora no dia seguinte, como acontecia com outros caras.
Eu adorava Peter por isto.
Porém, desde o último verão, antes de eu voltar de vez pra cidade para
fazer residência, as coisas andavam estranhas.
Eu havia ligado pra ele convidando-o para viajar comigo, fazer um
tour pela Europa antes de me jogar de vez na vida de médica residente e ele
me contou que estava namorando.
— Ah, jura? Que ótimo – eu tentei disfarçar minha decepção. Não era
ciúme nem nada. Peter já namorara outras vezes e eu até cheguei a conhecer
algumas delas. Não que a gente continuasse transando quando ele estava
namorando. Peter era um cara fiel. A gente “dava um tempo” nas transas e
entrava no modo amigo. E eu sempre me perguntava quando uma daquelas
garotas seria “a garota” e eu e Peter entraríamos no modo amigo pra sempre.
Até agora, os relacionamentos dele nunca deram certo. E ele sempre voltava
pra nossa amizade colorida.
— Sim, o nome dela é Hannah, acho que já te falei dela.
— Hum sim, eu me lembro. – Hannah era uma amiga de infância de
Peter e eu sentia sim pouco de ciúmes porque ela era amiga dele muito antes
de mim, quase da família. E agora eles estavam namorando? – Quer dizer que
estão namorando, achei que fossem amigos? – Me incomodou pensar que
Peter era amigo colorido de Hannah como era meu.
— Por que acha estranho? Amigos podem se apaixonar...
— A gente não se apaixonou – revidei. Nem sei porque. Não era
como se eu quisesse me apaixonar por Peter era?
De repente eu me toquei por que estava brava. Era por isto. No fundo,
eu sempre desejei me apaixonar por ele. Desejei acordar um belo dia, e estar
livre daquele fardo que eu carregava no meu peito. Aquela dor que, por mais
que o tempo passasse, se recusava a desaparecer.
Eu era mercadoria avariada. Nem Peter conseguiu me consertar.
Então porque doía saber que ele estava seguindo em frente sem mim?
Eu era muito egoísta. Devia deixá-lo ir.
— Lili...? – Ele falara do outro lado da linha e eu percebi que depois
da minha última frase, nós tínhamos ficado em silêncio.
— Ei, esquece. Foi bobagem dizer isto! Eu estou muito feliz por você
e Hannah. Me conta, o que vão fazer no verão?
— Nós vamos acampar nas montanhas.
— Uau, que romântico, senhor White.
— Você me conhece – ele rira – porém agora estou me sentindo
culpado por não poder ir com você... Se tivesse me falado antes...
— Não seja tolo! Eu vou com Valerie.
— Valerie? Ainda são amigas?
— Claro – menti. Eu e Valerie não nos falávamos há tempos. Nossa
amizade não resistiu aos anos – Eu já tinha comentado com ela, acho que vai
ser ótimo. Uma viagem de garotas.
Eu consegui enrolar Peter e depois minha mãe acabou me
convencendo a viajar com ela, na sua interminável tour de palestras pelo país.
O que foi um porre. Pelo menos eu não fiquei sozinha.
E agora Peter estava ali de novo. Com uma garrafa de vinho.
— Hum, como está Hannah? – Faço a pergunta que não quer calar.
Ele coça o cabelo.
— A gente terminou.
— Sério? Eu sinto muito, Peter – e eu sentia mesmo. Eu tinha me
acostumado com a ideia de ele namorando e até me convencera de que ela
podia ser “a garota”. Peter merecia ser feliz. – O que aconteceu?
— Que tal abrir o vinho e eu te conto?
— Não sei se seria saudável eu beber mais. Já tomei umas cervejas!
— Uma taça não vai te matar.
— Sei! – Ele abre a garrafa e eu pego duas taças.
E uma hora depois nós estamos no sofá, embalados pelo vinho com
Peter me contando tudo sobre ex.
A tal Hannah aparentemente era uma doida ciumenta e por isto Peter
terminou com ela, depois de muitas brigas.
— Você não sabia que ela era assim?
— Ela é uma amiga legal. Mas como namorada, foi difícil.
— Sinto muito, você estava apaixonado?
— Acho que sim.
Eu toco sua mão.
— Talvez ainda consigam voltar.
— Eu não sei – ele entrelaça os dedos nos meus. Fácil. – E você?
— Eu?
— Sim, como foi a viagem com a sua mãe? Ainda não acredito que
trocou a Europa por Bárbara!
— Eu sei! – A gente ri – Sabe como é minha mãe, ela consegue me
convencer das coisas mais absurdas e me fez acreditar que seria ótimo pra
minha carreira médica!
— Que merda de férias hein?
— Pois é!
— E como foi seu primeiro dia?
Eu solto sua mão e encho mais a taça, embora tenha dito que não ia
beber, já era a terceira.
A agradável companhia de Peter tinha me feito esquecer o fiasco que
fora aquele dia, agora toda a merda voltava a minha mente.
— Uma porcaria – murmuro tentando sorrir, sem o menor sucesso.
— Oh, Lili, tão ruim assim?
Eu dou de ombros.
— Primeiros dias são difíceis né? Acho que com o tempo eu me
acostumo.
— E foi só isto? – Seu olhar sonda o meu – porque acho que tem
coisas que não quer me contar?
Eu desvio o olhar, enterrando meu rosto na taça.
De repente quero contar a Peter sobre o único segredo que eu havia
guardado dele. Quero contar sobre Thomas, mas me calo.
Eu nunca fui capaz de contar a Peter sobre minha breve relação com
Thomas e o quanto aquilo me feriu. Acho que Peter desconfiava que houve
alguém na minha vida que me magoara, mas eu nunca me senti à vontade
para contar a ele. E nem a ninguém.
— Estou com sono. E bêbada – eu me levanto pegando as taças e a
garrafa levando-as pra cozinha.
E, quando estou voltando, me choco com o corpo de Peter que está
muito perto do meu.
E então, sem aviso, ele está me beijando.
Minha primeira reação é empurrá-lo.
— Peter, não é uma boa ideia – eu descolo nossos lábios, porém ele
não me solta.
Uma parte de mim não quer que ele solte.
— Por que não? Eu senti saudade de você.
— Eu também senti, mas... Você acabou de terminar com a Hannah,
ainda está apaixonado por ela...
— Hannah não tem nada a ver com isto. – Ele me faz encará-lo – isto
é a gente. Sendo o que a gente sempre foi. É o que estou precisando agora. O
que eu senti falta.
E ele me beija de novo. Desta vez eu não me afasto.
E deixo que ele me leve pra cama.

***
O dia mal amanheceu e eu já estou acordada. Seguro uma xícara de
café e olho o sol se infiltrando por entre as nuvens.
Eu ainda estou com sono, mas me sinto inquieta demais pra dormir.
Naquela noite, nem os braços de Peter me aquietaram.
O sexo foi bom como sempre, então, depois ele dormiu e eu fiquei
acordada um longo tempo, ruminando o que eu ia fazer no dia seguinte.
Eu não queria voltar ao hospital e ver Thomas de novo.
No entanto eu sabia bem lá no fundo que não podia sair de lá. Minha
mãe não permitiria.
Sei que era ridículo, uma mulher adulta de 26 anos ter medo da mãe.
O problema é que Bárbara faria da minha vida um inferno se eu pedisse pra
trocar de hospital. O Mercy era o melhor hospital de Chicago e ela mesma
fizera sua residência lá.
Então eu me obriguei a dormir, conformada que eu teria que ser forte
e aguentar o tormento que seria ter Thomas Hardy por perto.
Só que com o sono vieram pesadelos.
Todos envolvendo Thomas e coisas que eu queria esquecer. Até que
eu desisti de dormir e me levantei, tomando um longo banho.
— Ei, já acordada? – Peter aparece no corredor e eu sorrio.
— Daqui a pouco tenho que trabalhar.
— Claro, doutora Spencer – ele sorri, vem até mim e me beija.
Eu me sinto pouco à vontade agora que não estou mais bêbada e
estamos à luz do dia.
Peter percebe e se afasta. E é sensato em não falar nada, embora
perceba algo estranho em seu olhar.
— Vou tomar um banho antes de puxar o carro, ok?
— Fique à vontade! – me levanto – e vê se não acaba com meu
shampoo.
Ele ri e se afasta pro banheiro.
Vou para o quarto e me arrumo para trabalhar. E, quando estou indo
para a cozinha preparar algo para comer, levo um susto ao ver a porta se
abrindo e minha mãe entrando sem cerimônias.
— Bom dia, querida.
— Mãe, que diabos está fazendo aqui? – E por que demônios ela tinha
minha chave ainda?
— Por que esta cara?
— Você estava num simpósio...
— Tenho dois dias de folga. Decidi vir ver minha filhinha! – Ela se
aproxima e coloca várias sacolas de mercado na bancada da cozinha.
— O que é isto?
— Comida, oras! Tenho certeza que não está se alimentando direito!
Eu rolo os olhos.
— Mãe, fala sério!
— Não faça esta cara! Agora que está trabalhando, precisa comer
melhor ainda! Já deve ter percebido que plantões não são fáceis!
— Eu sei me alimentar, não precisa vir me trazer comida!
Ela revira os armários que estão realmente vazios.
— Não estou vendo nada aqui! E este vinho e... – Seus olhos recaem
sobre a garrafa de vinho vazia e as duas taças sujas sobre a pia.
Seu olhar de ave de rapina se prende em meu rosto culpado.
— Teve companhia ontem?
— É...
— Ei, Lili, tem cereal aí?
Peter escolhe aquele momento pra sair do quarto, graças a Deus
vestido.
Ele para ao ver Bárbara.
— Oh, olá Bárbara.
Minha mãe não retribui o cumprimento, seu rosto se contrai quando
ela entende o que Peter está fazendo ali.
— Mãe, não preciso apresentar o Peter, não é?
— Eu conheço o Peter White seu amigo, não o... – Ela escolhe as
palavras – namorado...?
— Mãe, por favor! – Eu começo a me irritar.
— Bom, acho melhor eu dar o fora! Foi bom rever você Bárbara! –
Peter pega o casaco e acena pra mim – eu te ligo Lili.
Ele fecha a porta atrás de si e Bárbara me encara.
— O que está acontecendo aqui?
— Que pergunta mãe, não é obvio?
— Está namorando Peter White?
— Não! Nós somos amigos.
— Amigos com benefícios? Eu não sabia.
— Porque não é da sua conta!
— Calma! Eu só me preocupo com você! Se Peter for apenas um
amigo, tudo bem. Só não pode se envolver em algo sério!
— Por que não? Peter é um cara legal – eu retruco só pra fazer um
ponto. Ela não tinha o direito de ficar ditando o que eu devia ou não fazer na
minha vida amorosa.
— Não pode deixar nenhum homem te tirar do seu caminho de
sucesso. – Bárbara diz enfaticamente – Você não se lembra o que aconteceu
quando se apaixonou antes?
— Eu tento esquecer, você é que faz questão de ficar lembrando! – Eu
grito irritada.
E Bárbara recua.
— Nossa! Calma! Eu só falei pra te lembrar o que acontece quando
confiamos nos homens!
— Já chega mãe! Que inferno este assunto!
— Ok, me desculpa. Agora me conta como foi ontem?
— Mãe... estou atrasada. – Eu pego meu casaco e as chaves do carro.
— Mas já? Eu queria que a gente conversasse durante o café...
— Não vai dar.
— Podemos jantar juntas pelo menos?
— Tudo bem eu vou até sua casa, ok?
Eu saio e bato a porta atrás de mim, deixando Bárbara e sua insistente
necessidade de me controlar para trás.
Ligo o som do carro e respiro fundo várias vezes.
A música que está tocando é muito conhecida pra mim e me faz
mergulhar de volta no passado...
Oito anos antes

Thomas Hardy estava me beijando, e me tocando.


Me prensando contra a porta depois que me arrastou para dentro e
bateu o pé para fechá-la, me encostando nela no processo.
E era perfeito.
Seus lábios. Sua língua. Seu gosto.
Tudo misturado num coquetel intoxicante, que deixava minha cabeça
rodando e meu corpo queimando em lugares estratégicos. Lugares estes que
estavam ansiando para que as mãos de Thomas fizessem uma visita em breve,
muito em breve, por favor, elas estavam implorando.
Um gemido saiu dos meus lábios diretamente para dentro da sua boca
e encontrou o gemido dele, eles se misturaram e se completaram assim como
nossas respirações.
Assim como as batidas de nossos corações.
— Eu sabia que ia ser perfeito – Ele sussurrou contra minha boca
quando finalmente o beijo terminou e nossas testas se juntaram confabulando
sobre o quão bom era estarem juntas.
— Eu sei...
Eu respirava erraticamente, meus dedos grudados naqueles cabelos
bagunçados que eu podia confessar agora, sentira vontade de puxar desde a
primeira vez que eu o vi e ainda o achava um escroto.
Agora eu só me perguntava por que não tinha o beijado antes.
Nós quedamos ali, nossa respiração se misturando, as mãos de
Thomas bem presas nas minhas costas, como se temesse minha fuga. Como
se fosse possível! Eu queria morar ali pra sempre, entre aqueles braços.
Eu queria falar tanta coisa, porém a eloquência me abandonara e
Thomas teria que se contentar com um suspiro feliz.
Ele me apertou mais.
E eu adorei.
— Porra, isto é bom demais – ele sussurrou e eu sorri quando sua
cabeça se enterrou em meu pescoço – e este cheiro... – ele aspirou em meu
pescoço, antes de seus lábios tocarem minha pele e eu gemi de novo. E de
novo.
Minhas pernas bambearam, ao sentir sua boca percorrendo um
caminho de fogo até minha orelha.
— Porra – fiz eco de suas palavras e, com um gemido rouco, ele me
beijou de novo. Intensa e profundamente, me tirando o fôlego e o resto que
ainda sobrou de minha sanidade. E desta vez todo meu corpo pulsou em uma
excitação febril, meu sangue acelerando nas veias e correndo para algum
lugar entre minhas pernas.
E as mãos de Thomas deslizaram por minhas costas e pousaram na
minha bunda apertando meus quadris contra os dele e nós dois gememos
quando senti sua óbvia excitação.
Rápido assim.
Assim mesmo.
E quem se importava?
E eu já estava prestes a implorar para que ele me levasse para minha
cama ainda desfeita e desfizesse aquele nó dentro de mim, quando ele se
afastou. Suas mãos me empurrando brevemente e eu abri os olhos
atordoados.
— Porra, Liz, se disser, por favor, deste jeito de novo, eu desisto de
ser um cara legal e te fodo contra esta porta.
— O quê? – Eu murmurei perdida – eu disse isto?
Que merda, eu nem me lembrava. Acho que já estava delirando.
— Me desculpe – murmurei com o rosto vermelho.
Não quis dizer a Thomas que ele estava longe de ser um cara legal, se
levarmos em conta o bosta que foi ontem comigo, mas que, no estado de
excitação em que ele me deixara, eu nem estava me importando.
Ah Deus, estava muito ferrada.
Agora sou eu que dou um passo atrás, tentando voltar ao modo
sensato.
— O que está fazendo aqui? – Perguntei por fim.
Ele foi mesmo um babaca ontem não foi? E agora estava ali na minha
porta. Me beijando. Me pegando... Foco Liz!
Ele passou os dedos pelos cabelos bagunçados.
— Eu preciso te pedir desculpas. Eu fui um babaca.
— Eu sei.
— Então, por favor, podemos esquecer o que aconteceu ontem e
começar de novo hoje?
Eu mordi os lábios incerta.
A sensatez gritava para eu mandá-lo embora. Thomas Hardy tinha
escrito “encrenca” em letras garrafais em sua testa.
Por outro lado, havia aquela parte que estava louca para que ele
pusesse as mãos em mim de novo.
E se fosse só isto, acho que até não seria um grande problema.
Mas eu devia realmente me preocupar com meu coração todo
derretido com sua cara de cachorro arrependido. Thomas era mesmo bem
bonitinho quando estava pedindo desculpas e tudo o que eu queria era abraçá-
lo, beijar suas pálpebras e dizer que tudo ia ficar bem.
Como eu disse, muito ferrada.
— Então, por favor?
Eu tentei conter um sorriso.
— Não diz por favor assim, Hardy, que eu tenho vontade de te dar
colo.
Um sorriso fofo se distendeu em seus lábios. Derreti um pouco mais.
Ai, ai, ai.
— Eu ia gostar muito, Spencer.
Eu suspirei.
Ele acariciou meu rosto.
— E então, perdoado?
Eu segurei sua mão.
— Vai fazer a tatuagem?
Ele fez uma careta, mas concordou.
— Eu disse que sim.
— Ok então podemos trabalhar no seu perdão depois que fizer. Eu
vou me trocar.
Eu me troquei em tempo recorde e Thomas me levou para tomar café
numa cafeteria próxima ao estúdio de Josh.
Nós seguimos para o estúdio de mãos dadas e num silêncio cúmplice.
Era como se a gente soubesse que se fosse conversar, algo poderia acontecer,
poderíamos discutir e acabar com aquela trégua.
Josh franziu a testa ao nos ver entrando. Seus olhos foram para nossas
mãos juntas.
— Ora, ora. Não achei que os veria de novo. E juntos.
— Nem eu achei – eu sorri – nosso amigo aqui veio fazer a sua
tatuagem.
Josh olhou pra Thomas surpreso.
— Sério?
Thomas apenas sacudiu a cabeça e passou a mão pelos cabelos.
Parecia bem tenso.
— Ok então, vamos? – Josh o chamou.
Eu o encarei.
— Tudo bem?
— Claro, tudo ótimo.
— Não parece – eu comecei a ficar meio irritada – você não quer
fazer? Por que não diz logo, porque não disse ontem e...
— Ei – ele me interrompeu, tocando meu rosto – eu quero fazer. Vai
ser nossa tatuagem, não é? Eu prometi.
Eu sorri, mais aliviada.
— Tudo bem. Então posso ir com você?
Ele sorri, me puxando pelo estúdio.
— Quer ter certeza que eu não vou fugir.
— Você tem um histórico, já esqueceu?
Nós entramos na sala e Josh pediu que Thomas tirasse a camisa e
sentasse na cadeira que é meio inclinada.
Eu mordi os lábios meio embevecida pelo peito de Thomas.
Ele era como uma estátua grega. Com músculos suaves e perfeitos.
Lindo.
Josh ligou a máquina e então eu finalmente olhei para Thomas e o vi
muito pálido.
E de repente a realização me atingiu.
Ele estava apavorado!
— Porra, esta merda dói – ele disse entredentes quando Josh começou
o traçado.
Josh riu.
— Claro que dói cara, o que esperava?
— Merda – Thomas estava ainda mais pálido agora.
Sem pensar, eu puxei minha cadeira para seu lado e segurei sua mão.
— Ei, está tudo bem – murmurei.
Sua pele estava fria e suada.
Meu Deus, aquilo estava mesmo sendo difícil pra ele.
— Por que não me disse? – Perguntei suavemente.
— Dizer o quê? – Ele retrucou todo machão, não tendo muito
sucesso.
Josh estava do outro lado, a tatuagem sendo feita no outro braço e não
sei se ele pode nos escutar por cima do barulho e de sua concentração.
— Que estava com medo.
— Não estou com medo, porra – ele gemeu e eu achei que vi uma
lágrima no seu olho.
Puta merda.
Eu tentei não rir e apertei sua mão.
— Ok então. Vamos apenas passar por isto juntos, está bem? –
Encostei minha cabeça em seu ombro e acariciei seu cabelo suado.
Foi a primeira vez que eu vi um cara chorar.
Ao final da sessão. A tatuagem mais linda estava sobre o ombro de
Thomas Hardy.
— Uau! Ficou incrível cara – Josh exclamou enquanto Thomas
olhava no espelho. Depois de algumas horas de sessão ele começara a relaxar
e as lágrimas tinham ido embora.
E agora ele admirava o trabalho de Josh.
— Sim, ficou foda – Thomas concordou.
Josh guardou suas coisas.
— Eu vou esperar vocês na recepção.
Ele nos deixou sozinhos e eu me coloquei atrás de Thomas.
— Você é lindo... quer dizer, a tatoo ficou linda.
Ele sorri. De lado.
Ah, por favor.
— Acho que você precisa me mostrar a sua.
Eu mordi os lábios. Subitamente tímida.
— Aqui?
— É pensando bem não seria uma boa ideia. Eu com certeza me veria
tentado a te comer na cadeira do Josh.
Eu ri, meu rosto queimando, enquanto Thomas colocava sua camiseta.
— Vem, vamos dar o fora daqui.
Ele pagou Josh que lhe passou algumas recomendações e nós
entramos no carro de Thomas.
— Para onde vamos agora?
— Como combinamos ontem. Eu vou levá-la para minha casa,
senhorita Spencer.
Eu não me opus.
Capítulo Sete

Thomas

— Nina, precisa comer! – Ainda no corredor escuto a voz de Amber


na cozinha e faço uma careta. Ouvir sua voz naquela manhã me lembrava da
nossa discussão e de sua ameaça de contar ao meu pai sobre mim e Paola.
— Eu não quero! – Nina está resmungando quando entro na cozinha.
— Nina, por favor, você não tem comido nada! – Amber insiste, mas
Nina tem os braços cruzados em frente ao peito com expressão emburrada.
— Bom dia, gatinha – eu me aproximo e ela sorri ao me ver.
— Thomas, fala pra Amber que não quero comer.
Eu encaro Amber.
— Deixa a menina, Amber – eu me sirvo de café preto e Maria me
lança um olhar reprovador.
— Não é só a Nina que precisa comer mais.
— Eu não tenho fome de manhã, Maria, sabe disto.
— Tá vendo? Eu sou como o Thomas – Nina se levanta da mesa,
ignorando a carranca de Amber.
— Acontece que não é só de manhã que você anda enrolando pra
comer. Maria disse que ontem não almoçou. E ontem à noite quase nem
jantou direito. Quer ficar doente?
— Você também não come! Vive de dieta, comendo só aquelas folhas
esquisitas, eca! – Nina retruca fazendo Maria e eu rirmos.
— Boa, Nina!
— Vocês deveriam me apoiar! – Amber reclama – tudo bem eu
desisto! Eu preciso me arrumar pra trabalhar, você leva Nina pra escola?
Papai já está no hospital.
— Sim, eu prometi que a levaria.
— Ótimo!
Amber se afasta e eu e Nina seguimos para o carro.
— Que negócio é este de não querer comer?
Ela dá de ombros.
— Amber está exagerando. Eu como direitinho sim. – Ela sorri e eu
não consigo ficar bravo.
— Espero que seja verdade. Amber tem razão. Pode ficar doente se
não comer.
Ela rola os olhos e vai entrando no carro.
— Ei, eu vi isto!
Como se ela se importasse.

***

Eu já estou tenso de novo quando chego ao hospital e, para completar,


Erick me aborda no vestiário.
— Que papo é este que você e a Spencer já se pegaram?
— O quê? Como sabe? Quem mais sabe? – Eu fico alarmado. Não
seria nada legal que meu passado com Liz virasse motivo de fofoca pelo
hospital.
— Calma cara. Na verdade, foi a própria Liz quem jogou isto em mim
ontem à noite e adivinha que cara eu fiquei! Puta merda!
— Espera, como assim ontem à noite? – Eu o encaro desconfiado.
Que diabos tinha acontecido depois que eu fui embora?
— Eu estava na porta do bar quando ela saiu e perguntei se queria
uma carona, sabe como é...
— Porra, Erick! – Eu me irrito.
— Calma aí! Eu tentei fazer você dizer que já tinha escolhido a
Spencer, como você não admitiu, achei que podia arriscar... eu só não fazia
ideia de que ela fosse sua ex!
— As coisas não são bem assim!
— E como são?
— Primeiro me explica o que aconteceu ontem – Exijo desconfiado.
Esperava que Erick não tivesse botado aquelas mãos sujas em Liz.
— Não aconteceu nada, não está me ouvindo? Eu ofereci carona, ela
me deu o fora, aí de repente ela estava brava porque eu disse que não deveria
ter mexido com a garota do Hardy e ela entendeu que eu sabia sobre o
passado de vocês e começou a gritar que não tinham mais nada e que isto não
lhe daria o direito de chamá-la de sua e... – ele dá de ombros – cara, você e a
Spencer? Quando, onde?
— Olha, foi há muito tempo, antes de eu ir para a escola de medicina
e não durou nada.
— Por que não disse nada ontem?
— Porque não terminou nada bem e ela está muito puta por me
encontrar aqui.
— Ah, agora começo a entender. E o que vai fazer cara?
— Eu não sei. Eu não sei.
Eu sigo para encontrar os internos sentindo uma mistura de apreensão
e anseio. Por alguns segundos eu cogito se Liz estará entre eles. Será que ela
iria desistir? Sua aversão a mim a faria procurar outro hospital?
Eu não duvidaria nada. E até deveria torcer para que acontecesse.
Por outro lado, eu era um idiota quando se tratava de Elizabeth
Spencer e por mais que eu soubesse que estaria bem melhor se ela
desaparecesse novamente da minha vida, eu não consegui me imaginar
ficando feliz por nunca mais vê-la.
Não agora que eu a havia reencontrado.
Mil vezes inferno.
A nossa história terminara muito mal no passado e agora eu queria o
quê?
A mesma coisa?
“Quem disse que vai terminar mal desta vez?” – Uma vozinha
insidiosa sussurra em meu ouvido, me assustando.
E abrindo minha mente para uma possibilidade que eu não tinha
pensando ainda.
Era o que eu queria?
Eu poderia querer? Um desfecho diferente para nossa história desta
vez?
— Bom dia, doutor Thomas – a voz estridente de Jenny me faz voltar
a realidade e eu me deparo com os internos me esperando ansiosos para mais
um dia de aula.
Meus olhos varrem a sala a procura de apenas uma pessoa.
E lá está ela. Ainda linda. Ainda desviando o rosto quando o olhar
encontra o meu.
Quero vencer a distância entre nós e obrigá-la a me encarar.
Quero dizer que não precisamos fazer daquela nossa proximidade
forçada um campo de batalha. Que eu sei que fui um babaca há oito anos,
mas que eu sou um cara diferente agora e...
Espera, que diabos estou pensando?
Eu não sou diferente. Eu continuo o mesmo homem.
O mesmo homem que com certeza ela ainda odiava.
Respiro fundo, tentando deter meus pensamentos caóticos e me ater
ao trabalho a ser feito.
— Certo, bom dia. Me acompanhem na ronda aos pacientes.
Eu sigo pelo corredor e eles vão atrás de mim.
Eu visito os pacientes, examino e faço perguntas que às vezes eles
respondem certo e de pronto, outras eu tenho vontade de mandá-los de volta
para a faculdade.
Como ontem, Liz permanece mais quieta que os outros.
— Spencer, qual o seu diagnóstico para este paciente – eu pergunto
por fim, depois de algumas horas.
Ela fica vermelha.
— Hum... Está respirando mal, tem febre, é pneumonia.
— Tem certeza?
— Sim. É só iniciar os antibióticos. – Ela levanta o queixo e eu gosto
do seu olhar me desafiando.
É melhor que a apatia que ela apresentara durante toda a manhã.
— É este o diagnóstico? – Insisto.
— Sim.
— Pode ser embolia pulmonar. – Eu retruco e olho pra Mark. – Mark,
leve-o para alguns exames!
— Certo! – Mark se apressa em fazer o que eu mandei.
— E vocês, continuem comigo.
— Thomas – Amber se aproxima – posso falar com você?
Eu me afasto com ela e entramos numa sala vazia. Me pergunto se ela
já falou com meu pai. Provavelmente não. Ainda.
Ela estende um prontuário.
— São os exames do Senhor Schwartz.
— Da Apendicectomia? – Eu o folheio. Este paciente tinha uma
cirurgia marcada para ontem que foi adiada para fazermos mais exames.
— Sim. Ele passou mal na madrugada, vai precisar de uma cirurgia de
emergência.
— Ok. Vou me preparar. – Eu me viro para me afastar, mas ela me
chama.
— Eu não vou dizer nada ao papai.
Eu a encaro.
Ela não parece nada feliz.
— Acho que tem razão. Ele vai sofrer e será uma confusão. Eu acho
que você deve pensar em contar caso ele siga com a ideia de casamento. Não
podemos admitir que aconteça. Tem que concordar comigo.
— Sim, você tem razão. Vamos só dar um tempo.
— Ah, e eu acho que a Nina precisa fazer alguns exames.
— Para quê? Ela me parece bem.
— Ela não está com apetite, isto me preocupa.
— Certo, traga-a esta semana.
Eu me afasto e encontro os internos me encarando ansiosos.
— Senhores, estão com sorte, temos uma apendicectomia de urgência,
eu escolherei um de vocês para me acompanhar.
Um burburinho de excitação se forma. Apenas um deles continua sem
empolgação.
— Elizabeth Spencer – eu a chamo e todos param.
— O quê?
— Você vai fazer – eu tomo a decisão.
— Eu? – Ela parece apavorada.
— Me acompanhe.
— Mas...
— Agora!
— Eu não acho que... – Ela balbucia atrás de mim e eu me viro para
encará-la.
— Não tem que achar nada e sim fazer o que eu mandei.
Ela morde os lábios com força e parece que vai sucumbir a qualquer
momento.
— Eu não sei se sou a mais preparada...
— Você teve quatro anos para se preparar!
— Por que está fazendo isto comigo? – De repente o medo é
substituído pela raiva – ontem pediu para que eu ficasse com aquele paciente
e agora isto, quando sabe que há outros internos que estariam muito mais
preparados! Está fazendo de propósito? Você me odeia!
— Não acredito que seja eu quem sente ódio! – Eu sibilo em sua
direção e por um momento nos encaramos como dois oponentes num ringue.
— Vai dizer que está satisfeito de me ver? De ter que me aguentar?
— Quer saber? Sim, toda esta situação é uma merda! – Explodo – nós
temos uma história. Que acabou mal.
— E por culpa de quem? – Sua voz é carregada de ressentimento. Me
atinge direto no ponto.
— Oh, agora quer conversar sobre o passado? Ontem você só queria
ignorar que ele existia!
Ela recua, empalidecendo.
— Não, não quero falar sobre o maldito passado. Infelizmente é
difícil ignorar que ele existe já que tenho que olhar para tua cara o tempo
todo!
Ok, isto doeu.
— Então o que sugere? Estamos nos meus domínios! Minhas regras!
Você não quer me ver? Então desaparece daqui!
— Eu não posso – ela murmura.
— Por quê? Existem outros hospitais na cidade.
— Estaria bem feliz, não é? Se livrar de mim? – Ela diz cheia de
ironia.
— Não posso dizer que ficaria triste!
— Se detesta tanto minha presença por que não me deixa em paz? Por
que fica pegando no meu pé?
— Porque você é uma médica! Porque o seu aprendizado depende de
mim e eu não vou deixar você agir do jeito que está agindo, simplesmente se
escondendo atrás do seu medo!
— Eu não estou com medo!
— Então o que é? Você é diferente de todos os outros e sabe muito
bem! Por que está aqui, Elizabeth Spencer? Não quer ser médica? Continua
sendo aquela garota que preferia ficar com as mãos sujas de tinta?
— Você não sabe de nada – ela sussurra entredentes.
Eu percebo que cutuquei uma ferida e me sinto um pouco culpado.
Ela está obviamente sofrendo.
Parece que eu ainda era capaz de lhe infligir dor, afinal de contas.
E isto deixava meu peito apertado de culpa.
Inferno!
— Olha eu pego no seu pé porque sou o seu mentor. Como pegaria no
pé de qualquer um que precisasse. Sei que temos uma merda de uma história
e que nenhum dos dois está feliz em ter que conviver de novo. Infelizmente é
o que temos. E agora temos um trabalho a fazer, vá se preparar.
Ela se afasta e eu respiro fundo, seguindo para me preparar também.
Eu estou no vestiário, colocando a roupa cirúrgica quando Emily
aparece.
— Oi doutor Hardy, que tal uma massagem relaxante antes da
cirurgia? Ela estende as mãos pra mim toda sedutora, eu a seguro no ar,
afastando-a.
— Dá um tempo, Emily.
— Oh, parece tenso. Acho que posso ajudar....
— Não, obrigado – eu termino de me vestir ignorando-a.
A verdade é que eu não tinha mais nenhum interesse em Emily.
— Talvez mais tarde então? – Como ela insiste eu a encaro
seriamente.
— Nem mais tarde nem nunca. Volte ao trabalho, Emily.
Eu saio do vestiário e lavo minhas mãos colocando as luvas e quando
entro na sala Liz já está lá, ainda mais pálida.
— É só uma cirurgia de apêndice. É muito simples – eu me vejo
confortando-a, minha voz descendo num nível quase doce e eu espero que
ninguém na sala perceba.
— Eu realmente não sei... – ela balbucia.
— Ei, fique calma. Eu estarei por perto e assumirei se perceber que
não vai conseguir.
— Este é o problema. Não quero fazer merda e sei lá, furar o paciente,
ou algo assim.
Eu rio.
— Você vai conseguir. Suas mãos são delicadas. Mãos de artista, não
tem como errar.
Eu a vejo corando por baixo da máscara cirúrgica e acho delicioso.
— Doutor Hardy, tudo pronto.
A enfermeira avisa e nós nos aproximamos do paciente sedado.
— Pode começar, doutora Spencer – eu peço, tentando lhe transmitir
segurança.
Ela respira fundo.
— Bisturi – Pede por fim e a enfermeira lhe passa o instrumento.
Liz hesita, mas posiciona o bisturi na pele.
— Mais pressão – oriento e ela força a mão para fazer o corte. –
Muito bem. O corte foi feito.
— Pinça – ela continua e sua mão está firme quando volta a atenção
para o corte – grampo.
— Está indo bem, Liz, continue assim. Já abriu o peritônio.
— Oh Deus, estou vendo. – Ela continua a manusear os instrumentos
com destreza até que acha o apêndice. – Pronto. O apêndice está fora – diz
aliviada.
— Eu falei que ia conseguir – eu digo, apertando seu ombro.
Realmente feliz por ela ter conseguido.
Ela me encara com os olhos brilhando de surpresa.
— Eu consegui.
— Ótimo, agora deixa comigo, eu termino.
— Mas...
— Agora, Spencer
Ela sai da sala, e eu continuo o procedimento, a enfermeira me encara
confusa.
— Ela não deveria terminar?
— Eu temi que não conseguisse fazer o resto, que é mais complicado
o que poderia abalar sua recém-conquistada confiança – a enfermeira apenas
franze a testa e não me interrompe mais.
Quando eu termino, saio da sala e encontro Liz olhando pelo vidro.
— Ele vai ficar bem? – Nós caminhamos para a sala dos médicos.
— Sim, a cirurgia foi um sucesso.
Ela morde os lábios, indecisa.
— Obrigada por ter me ajudado.
— Viu? Não doeu nada. – Eu sorri e o mais incrível acontece. Ela
sorri de volta.
E naquele momento eu me dou conta de que eu quero Elizabeth
Spencer.
Tanto ou mais que antes.
E enquanto eu deixo meus olhos abaixarem para sua boca, eu vejo o
sorriso se desfazer em seu rosto e a mudança em sua expressão quando ela
percebe que eu quero beijá-la.
Ela sabe. Ela sempre sabe.
Assim, como eu sei.
Nossos olhares se prendem. Se entendem.
Nós dois queremos o mesmo.
É como uma força irresistível.
Ainda está ali, como se tivesse saído de uma fenda no tempo, o desejo
se materializa e flutua entre nós.
Nos consumindo.
E como da primeira vez. É impossível resistir.
Eu me deixo ir em sua direção...
Oito anos antes

— Então esta é sua casa? Uau!


Eu a guiei por entre o jardim, puxando-a pela mão.
— É a casa do meu pai.
— Ah, achei que morasse sozinho.
Eu dei de ombros.
— Eu preferi continuar aqui durante a faculdade. Era mais fácil.
Ela riu.
— Aposto que é um cara mimado e que não queria assumir as
responsabilidades de morar sozinho.
— Ah, Spencer, você está começando a me entender – eu abri a porta.
A casa estava silenciosa àquela hora.
— Não sentiu falta de ter sua liberdade?
— Eu tenho toda liberdade que preciso aqui, meu pai quase nunca
está em casa. Nem minha madrasta que também trabalha pra caramba.
— Moram só vocês?
— E minha irmã gêmea, Amber.
— Você tem uma irmã gêmea, que legal! Sempre quis ter irmãs!
— Não é tão legal quanto parece. Amber é um pé no saco!
— E ela está em casa?
— Ela está passando o verão com amigos no Cabo.
— Ah...
— E aí, quer comer alguma coisa? – Eu tentava ser educado e não
colocá-la nas costas e carregá-la direto para a minha cama como um homem
das cavernas. Estava difícil.
— Não... eu queria conhecer a casa. Parece incrível.
Eu a levei pelos cômodos, ansioso para que chegássemos logo no
objetivo final: meu quarto.
Quando finalmente abri a porta, eu me senti ansioso como um
adolescente. Ela mordeu os lábios, quase timidamente ao entrar e eu fechei a
porta atrás de nós.
Ela caminhou pelo quarto espaçoso e parou na janela.
— A vista daqui é tão linda!
— Eu digo o mesmo – murmurei admirando o sol de fim de tarde
batendo em seus cabelos escuros.
Ela se voltou, um tanto vermelha, mas havia um brilho novo em seu
olhar.
— Acho que preciso pagar minha parte do nosso trato, não é? –
Sussurrou e levou a mão ao botão da calça abrindo-o.
E eu fiquei completamente sem voz e embasbacado quando a vi tirar
o jeans, ficando só de calcinha e uma blusinha curta que mal chegava até sua
cintura na minha frente.
E lá estava, a pequena flor vermelha sobre a pele branca.
Meu pulso acelerou e todo meu sangue correu para um lugar
específico da minha anatomia, meu cérebro esvaziando quando Elizabeth
Spencer caminhou em minha direção.
Capítulo Oito

Liz

Como foi que chegamos àquele ponto?


Com a boca de Thomas Hardy a centímetros da minha, com o aroma
inesquecível de seu hálito doce invadindo minha língua naquele momento
que antecedia o beijo que às vezes era até melhor que o próprio beijo?
E por que demônios em vez de correr para longe eu estava com meus
pés pregados no chão incapaz de me mover mesmo que o céu desabasse sobre
nós?
Por que ele vai me beijar.
E eu quero muito que ele o faça.
Malditamente eu quero.
Nos segundos loucos em que todos estes pensamentos passam por
minha mente eu me dou conta, com meu coração todo costurado depois de ter
sido estilhaçado por este mesmo cara, que eu ainda o quero.
Como antes.
Uma sensação de inevitabilidade me toma e eu cerro minhas
pálpebras, esperando o único fim que aquela nossa súbita aproximação pode
ter.
Nós dois juntos. De novo.
— Thomas, aí está você – como se viesse de muito longe eu escuto
uma voz nos interrompendo e abro os olhos, assustada.
Chocada.
Encaro Thomas, que deu um passo atrás. Seus olhos frustrados, sua
boca bonita proferindo um palavrão baixo.
E a realidade do que estava prestes acontecer cai sobre mim, fazendo
com que eu dê vários passos para trás fugindo do que sabe Deus aquele cara
ia fazer comigo desta vez.
Não. Não desta vez.
Nunca mais.
— Liz – seus lábios articulam meu nome sem emitir nenhum som.
Eu sacudo a cabeça em negativa.
E o que vejo em sua expressão faz meu coração se apertar tanto no
peito, que ele salta e sai rolando no chão pelo espaço entre nós.
Ele me encara com aquele sentimento que eu achei que era tudo o que
bastava há oito anos.
Não foi suficiente.
Eu não fui suficiente.
Nada era o bastante para caras como Thomas Hardy.
— Ei, estão brincando de estátua? – a voz feminina que havia nos
interrompido nos alcança agora mais próxima. E eu pisco, desviando minha
atenção de Thomas para a intrusa.
Ou minha salvadora.
Era a doutora Chloe Martinez com seu olhar aguçado, com um sorriso
divertido no rosto e um brilho estranho em seu olhar.
— Foi tudo bem na cirurgia? – Ela insiste e Thomas passa os dedos
pelos cabelos soltando o ar lentamente.
— Sim, tudo bem – ele responde, voltando ao modo habitual – se nos
der licença, eu ainda estou tratando de alguns assuntos com a Liz...
— Vai ter que deixar estes assuntos para depois. O Doutor Hardy está
pedindo que vá até a sala dele. E sabe que ele não gosta de esperar.
— Merda!
— Vá, eu cuido da nossa novata preferida – Chloe passa o braço
bronzeado sobre meus ombros, e sai me puxando pelo corredor.
Eu ainda demoro uns bons passos para conseguir respirar
normalmente.
— Está feliz com sua primeira cirurgia?
— É... sim...
— Você tem sorte. A minha foi uma merda! – Ela finalmente solta
meus ombros quando chegamos à recepção – e aí, quer ir almoçar comigo?
— Eu?
— Sim, por que não? Vai ser divertido. Vamos.
E sem que eu consiga dizer não, Chloe sai me puxando de novo.
Se eu imaginava que Chloe almoçava no refeitório estava enganada.
Ela me arrastou até um restaurante tailandês da moda a duas quadras do
hospital.
— Achei que íamos comer no refeitório.
Ela rola os olhos.
— Deus me livre! Sempre que eu tenho oportunidade eu dou o fora
daquele hospital.
Eu ri.
— Acho que me identifico com você.
— Ei, só está lá há dois dias e já está assim?
Eu fico vermelha.
— Ainda é meio assustador para mim.
— Eu te entendo. – Ela olha o cardápio com interesse e então, de
repente, levanta o olhar e me encara – posso te dizer uma coisa?
Eu franzo a testa.
— Sim?
— Você é muito legal para cair na lábia do Thomas.
— O... que...? – Gaguejo.
— Oras, ficou claro que estava rolando um clima quando eu os
interrompi!
— Não, eu... Não era nada...
Ela ri.
— Não fica vermelha, não foi a primeira e nem vai ser a última vez
que eu vejo o Thomas em ação, se é que me entende.
— O que quer dizer? – eu me remexo incomodada.
— Que o Thomas é galinha. Ele pega toda as mulheres daquele
hospital.
Eu sinto vontade de vomitar.
Claro. Era típico de Thomas.
Eu já devia imaginar. Então por que eu estava chateada?
— Espero que não fique brava por causa da minha interrupção. Eu fiz
de propósito.
— Fez?
— Sim. Como eu disse, o Thomas não vale nada e eu gostei de você.
Achei diferente das outras cabeças ocas que caem seduzidas por ele. Então
achei por bem te alertar. Não quero que seja mais uma que ele vai usar e
depois jogar fora. Você merece mais.
— Tem razão. Eu não quero e nem vou ser mais uma no harém do
Doutor Hardy – digo enfaticamente. Com a intenção de convencer não só
Chloe como a mim mesma.
— É assim que se fala. Agora vamos fazer nosso pedido.
— Agora eu fiquei curiosa, você e o Thomas...?
Ela solta uma gargalhada.
— Eu e Thomas? Não!
— Com certeza ele deve ter dado em cima de você...
— De mim? Nunca! Agora vamos fazer nosso pedido. A comida
daqui é deliciosa, vai gostar.
Naquela tarde, Chloe me toma sob suas asas o que é ótimo para eu
não ter que ficar na cola de Thomas. E eu agradeço por isto. Infelizmente sei
que não conseguirei fugir dele pra sempre.
À noite, eu vou ao apartamento da minha mãe jantar com ela.
Obviamente ela pediu comida pronta e me fez contar tudo sobre
minhas horas no hospital. Foi bom vê-la vibrar quando eu contei do sucesso
na minha primeira cirurgia.
— Eu sabia que ia ser ótima! Claro que ia. É minha filha.
Eu rolo os olhos, tentando ter em mim a mesma fé que a minha mãe
tinha.
Já é tarde quando ela finamente me libera para eu voltar pra casa
depois de fazer um grande discurso sobre como deveria ser a minha conduta
“agressiva” no hospital. Para minha mãe, eu deveria sempre fazer tudo para
ser melhor que os outros. Assim como ela.
Eu concordei com tudo porque era o melhor a fazer. Contrariar
Bárbara nunca era uma boa pedida.
Depois de voltar para casa, estava me preparando para dormir, quando
vi várias chamadas no meu celular e reconheci o número de Peter. Ele deixou
várias mensagens, querendo me ver.
Eu hesito.
Sei que poderia pedir que ele viesse me encontrar e seria como
sempre foi entre nós. Fácil e sem perguntas. Sem cobranças.
No entanto, eu não queria ver Peter naquela noite.
Naquela noite eu me sentia diferente.
Sentia-me um pouco como alguém que eu havia conhecido anos atrás.
A Liz de dezoitos anos. Uma garota que pintava quadros, fazia
tatuagens as escondidas e se apaixonava loucamente sem medir as
consequências.
Aquela Liz não existia mais.
Eu era a doutora Liz Spencer agora. Eu era uma mulher adulta e
independente de 26 anos que tinha deixado os erros do passado para trás.
E eu era feliz assim.
Eu colocava a cabeça no travesseiro todas as noites e lutava contra as
lembranças de coisas que não poderiam ser mudadas. Que estavam perdidas.
Às vezes, elas lutavam tão fortemente para romper o casulo que eu
criara para elas no fundo da minha mente, que deixavam meu coração
pesado.
Mas, por mais que elas lutassem para se libertar, eu sempre vencia.
E elas permaneciam lá. Onde deveriam ficar. Trancadas na minha
memória. Agora, com Thomas de novo na minha vida, eu estava com
dificuldades para mantê-las cativas.
Abracei meu corpo em posição fetal e fechei os olhos com força,
lutando para respirar. Para não lembrar.
Para dormir e esquecer.
E acordar no dia seguinte com minhas lembranças e meus sentimentos
bem escondidos de mim mesma.

A manhã me encontrou exausta de uma noite mal dormida, lutando


contra meus demônios.
Tudo o que eu queria era continuar na minha cama e ignorar o mundo.
Ou quem sabe na companhia de algumas tintas e uma tela em branco. Mas
isto não me pertencia mais. Eu não pintava há anos.
Aquele sonho ficou para trás. Assim como outros.
Não era isto que significava ser adulto?
Embora abatida, eu me levanto, me arrumo e vou para mais um dia de
residência.
Confesso que não sei o que esperar depois do jeito que as coisas
tinham ficado entre mim e Thomas ontem. Então, com uma leve dor de
cabeça e o estômago enjoado de apreensão eu espero junto com meus outros
colegas pelo nosso instrutor.
— E aí, Jenny, já teve sucesso em seduzir o nosso chefe? — Sam
cutuca Jenny que hoje está ridiculamente maquiada e eu me lembro das
palavras de Chloe que Thomas passava o rodo geral.
O que faz uma onda de raiva me dominar.
Era mesmo típico de Thomas Hardy. Ele não havia mudado nada.
— Cala a boca Sam! – Jenny responde irritada.
— Deixe-a Sam. Ela está brava porque não conseguiu nada ainda –
Mark provoca e todos riem, parando instantaneamente quando Thomas se
aproxima.
Jenny e Julie suspiram. Porra, até a Julie?
Eu achei que ela estava apaixonada por Ben, aparentemente Thomas
tinha a capacidade de desvirtuar qualquer uma.
Menos eu.
Quer dizer. Não agora.
Nem pensar eu ia deixar isto acontecer agora!
Ontem eu estava sob o efeito da cirurgia. Da maneira que ele me
tratou, quase doce, ao me guiar.
Droga, me lembrar faz minha raiva ceder um pouquinho.
— Bom dia, prontos para mais algumas lições? – Ele pergunta
sorrindo.
Jenny quase desmaia. Julie é mais sutil só corando.
Eu rolo meus olhos, desviando o rosto.
Era melhor nem olhar.
Longe dos olhos, longe do coração, não era o que diziam?
— Spencer – sua voz me chama e eu volto à realidade, ainda
mantendo minha atenção em algum ponto além dele.
— Sutura.
— Ok – concordo e me viro disposta a me afastar o mais rápido
possível.
Eu passo a manhã envolvida em ataduras e esparadrapos e até que não
é difícil, já que sutura não era uma coisa tão complicada quanto uma cirurgia.
— Olá, eu sou a doutora Spencer, o que temos aqui? – me aproximo
de uma moça ainda jovem com um garotinho de aproximadamente uns quatro
anos chorando eu seu colo.
— Ele caiu e machucou a testa – a mãe explica.
Eu me aproximo para ver e o garotinho se encolhe, chorando ainda
mais.
— Mason, precisa deixar a médica te examinar.
Eu sorrio, a tranquilizando, enquanto dou uma olhada no prontuário.
— Sim, Mason, eu sei que está doendo, eu preciso dar alguns
pontinhos para sarar, tudo bem?
— Pontinhos? – Ok, agora ele parece mais assustado ainda.
Eu olho sua camiseta do Superman suja de sangue.
— Sabe quem já levou muitos pontos e nunca chorou? O Superman.
Ele fica sério.
— O Superman?
— Claro que sim. Ele salva o mundo todo dia e leva pontos na testa o
tempo inteiro. Aposto que você é um super-herói como ele, não é?
— Sou sim!
— Então, vai ser tão corajoso também?
Ele funga.
— Vou.
Eu sorrio.
— Muito bem!
Eu termino a sutura de Mason e o dispenso junto com sua agradecida
mãe e estou saindo da sala quando vejo Thomas me observando.
Eu fico vermelha imediatamente.
— Você daria uma boa pediatra – ele comenta.
Eu pisco.
— O quê?
— O garotinho. Alguns internos teriam saído correndo. Lidar com
crianças é um pesadelo para alguns.
— Eu gosto de criança – dou de ombros, enquanto tiro minhas luvas –
houve um tempo que pensei em ser pediatra.
— Por que desistiu?
— Porque minha mãe me mataria.
— Ah... Sua famosa mãe? – Não me passa despercebido seu tom de
ironia.
Eu o encaro com a testa franzida.
— O que sabe da minha mãe?
— Doutora Bárbara Spencer? Quem não a conhece?
— Desde quando você sabe quem é minha mãe?
— Isto faz alguma diferença agora?
— Não, claro que não. Nada do que aconteceu interessa mesmo.
— Se não interessa por que você ainda olha pra mim com
ressentimento?
A pergunta me pega de surpresa e minha primeira reação é fugir.
Não quero lembrar do passado. Mas inferno, como é que eu posso
fugir dele, se ele está ali bem na minha frente? E estaria todos os malditos
dias a partir de agora?
— Acha que não merece meu ressentimento? – Minha voz sai cheia
de amargura.
— Talvez eu tenha minha própria cota de ressentimento também —
sua resposta me surpreende e eu tenho vontade de indagar por que diabos ele
tem algum ressentimento de mim, se foi ele quem fez merda?
Porém me calo. Começar uma discussão sobre algo que rolou há tanto
tempo e claramente ainda me machuca não seria boa ideia.
— Então estamos quites – dou a conversa por encerrada me virando
para me afastar, Thomas se coloca na minha frente.
— Ei, escuta... – ele passa os dedos pelos cabelos, frustrado – sei que
é uma merda a gente ter este passado, mas como disse... É passado. Nenhum
de nós vai poder mudar o que aconteceu. Eu acho que deveríamos esquecer e
seguir em frente. Temos que trabalhar juntos agora. E não acredito que será
bom para nenhum de nós alimentar ressentimentos... – ele respira fundo. – O
que eu estou querendo dizer é que devemos começar de novo. Como se nada
tivesse acontecido antes. O que me diz?
Oito anos antes

Eu estava tremendo, quando caminhei em sua direção.


Seus olhos eram duas bolas douradas de puro fogo esquentando
minha pele.
Parei diante dele e suas mãos estavam em mim na velocidade da luz,
deslizando por minha barriga despida até a pequena rosa e eu fechei os olhos,
soltando um suspiro quando senti o toque quente de seus dedos.
— Eu sabia que ficaria perfeita em você – sua voz saiu dentro dos
meus lábios entreabertos e eu abri os olhos para ver seu rosto muito perto do
meu. Seu hálito doce me intoxicando.
Suas mãos fizeram uma busca e apreensão por minha pele. As faíscas
que saíam de nós eram capazes de incendiar uma cidade.
E eu respirei ele.
E voltei a cerrar as pálpebras quando seus lábios roçaram os meus,
delicados e exigentes, doces e venenosos. Em minha boca. Em meu rosto
ruborizado, minhas pálpebras fechadas.
Um gemido baixo escapou da minha garganta, quando suas mãos
tocaram meus seios, meus mamilos acordando para a vida, ávidos por
carinho.
— Porra, diz que você está aqui para a gente transar – ele sussurrou
em meu ouvido e eu quase desfaleci no chão.
— Sim...
E então, ele estava me beijando intensamente. E seus dedos apertando
meus seios com força. E tudo o que eu podia fazer era levar meus próprios
braços a sua nuca e apertar meu corpo ansioso contra o dele. Enfraqueci mais
um pouquinho ao sentir sua ereção se esfregando em mim.
Puta merda.
Eu iria entrar em combustão espontânea se ele não me fodesse
naquele momento.
— Porra, Liz, não pode me dizer estas coisas! – Thomas resmungou
contra meus lábios, que mordeu os dele quase inconscientemente.
E então eu percebi em meio ao meu enlevo que falei em voz alta.
Bom, era tarde demais para corar, pois os braços maravilhosos de
Thomas estavam me erguendo do chão e me jogando na cama sem cerimônia.
Ele ajoelhou na minha frente e tirou a camisa, jogando-a longe e eu
mordi os lábios com força, deslumbrada com seu peito perfeito, onde a sexy
tatuagem repousava.
Thomas continuou a tirar a roupa, até que estava nu diante de mim.
E eu perdi a fala.
Ele era de verdade?
Eu deixei meus olhos ávidos percorrerem seu corpo de anjo e parei
esta linha de pensamento porque provavelmente os seres divinos não tinham,
bem... uma ereção.
Meu rosto queimou assim como outras partes do meu corpo ansioso.
Ele franziu a testa de repente antes que suas mãos voltassem a mim de
novo.
— Por favor, diz que não é virgem.
— Eu não sou virgem... – eu ri e ele soltou um suspiro de alívio.
— Graças a Deus!
Graças a Deus digo eu!
Ele veio pra cima de mim, cheio de mãos e desejo, sua língua e dentes
fazendo um estrago em minha pele delicada. Mas quem ligava quando eu o
tinha provando meus seios?
Eu só conseguia me contorcer e gemer embaixo dele, minhas mãos
puxando seus cabelos, querendo que aquela tortura não acabasse nunca.
E então, suas mãos estavam dentro da minha calcinha, numa inspeção
sacana que me fez arquear os quadris da cama e gritar.
Thomas Hardy tinha os dedos esculpidos para estarem ali. Dentro de
mim.
Nada antes me preparou para aquilo. Para aquela avalanche de
sensações que explodia em minha pele como fogos de artifício e me fazia
ansiar por mais.
Mais de Thomas Hardy. Por favor.
— Por favor... – eu sussurrei segurando sua cabeça levantando-a pra
mim, mordendo seus lábios e implorando com meu corpo por aquele mais.
E então, ele estava puxando minha calcinha para baixo e deslizando
um preservativo em si mesmo e no instante seguinte eu o tinha dentro de
mim.
E eu tive certeza que, passasse o tempo que passasse, eu nunca iria
esquecer o momento em que eu fiz amor pela primeira vez com Thomas
Hardy.
Quando ele possuiu meu corpo, se tornando dono dele.
E do meu coração.
Ninguém antes dele havia roubado meu coração. E nem roubaria
depois.
Como poderia?
Ele nunca tinha me devolvido.
Capítulo Nove

Thomas

O silêncio que procede meu pedido transforma o ar entre nós em


tensão.
Seus olhos são duas bolas escuras de choque e confusão e eu vejo em
sua expressão a luta interna que acontece em seu íntimo. E me identifico.
Desde que nós nos reencontramos esta luta era minha companheira
constante.
Eu sabia que não podia tê-la de novo. Eu nem deveria querê-la de
novo.
Sua presença constante era irresistível. Como fora uma vez.
Era impossível não pensar em como teria sido nossas vidas se o
desfecho de nossa breve história tivesse sido diferente.
Se eu fosse um cara diferente, minha consciência sussurra.
Eu não lhe dou ouvidos. Eu a empurro com um soco para longe, como
fiz todos aqueles anos.
Não. Eu não deveria pensar que as coisas poderiam ter sido diferentes.
Como eu tinha acabado de falar para Liz, nada do que aconteceu no passado
poderia ser mudado. Mas nós dois estávamos ali agora. E não dava mais para
ignorar que eu ainda tinha um tesão louco por aquela garota. Isto não mudou
nem um pouco.
E desde ontem à tarde, depois da cirurgia, quando quase a beijei, eu
vinha pensando sobre esta situação e não tinha outra conclusão: eu precisava
fodê-la de novo.
Ok, sei que se externasse este pensamento, Liz me daria um soco na
cara. Eu posso ser um canalha em se tratando de mulheres, mas sabia a hora
certa e como agir para destruir suas resistências. Uma a uma.
Eu fiz isto até hoje e precisava acreditar que com Liz não seria
diferente. Afinal, ontem, eu pude sentir que ela não era indiferente. O mesmo
fogo que me consumia a atormentava também.
E se meu desejo por ela não mudara, minhas convicções também não.
Eu ainda não acreditava em relacionamentos. Eles simplesmente não eram
pra mim. E eu acreditava que não eram pra ninguém. Amor era uma merda.
Era a pior das doenças. E sei que um dia eu estive muito próximo de me
contaminar e o catalizador foi justamente aquela garota na minha frente. Mas
consegui pular fora enquanto era tempo, não consegui?
Não foi fácil. Não foi sem um pouco de sofrimento envolvido.
Com certeza teria sido muito pior se tivesse insistido naquele
sentimento. Ele ia crescer e me dominar por inteiro. Assim como um câncer,
ia comer tudo o que tinha de bom em mim. E quando acabasse, eu estaria
destruído para sempre.
Eu já vi isto acontecer antes e não queria isto pra mim.
No entanto, eu estava mais velho agora. Mais experiente e mais sábio,
poderia lidar muito bem com aquela paixão por Liz Spencer.
Bastava ela deixar tudo para trás. Esquecer o que aconteceu de ruim e
se concentrar nas boas lembranças. Naquelas de nós dois nos encaixando
perfeitamente, no melhor sexo do mundo, no prazer mais perfeito que
poderíamos tirar um do outro.
Todavia minhas esperanças se arrefecerem um pouco quando o
choque em seu rosto se transformou em pesar.
E uma sombra triste toldou seu olhar. Luto contra a própria sombra
dentro de mim.
— Não sei se será possível - é sua resposta quase sussurrada.
Eu dou um passo à frente, ávido por convencê-la, ela dá um passo a
trás, mantendo a distância entre nós.
— Você sabe que eu tenho razão. Somos adultos agora. Não somos
mais aquelas pessoas Liz.
Ela sacode a cabeça, como se negando com todo seu íntimo a verdade
que eu já havia aceitado.
— Você pode me dizer com toda certeza que mudou Thomas?
— O que nós sentimos não mudou.
— Nós? Você não sentia nada!
— Não é verdade, e sabe muito bem.
— Minhas memórias infelizmente são bem frescas!
— Então deve se lembrar de como era... quando estávamos juntos –
eu me aproximo, até quase não haver espaço entre nós, ainda deixando uma
distância pequena o suficiente para ela querer mais, assim como eu queria.
Inferno, eu queria tanto que chegava a doer.
— Não faça isto – sua voz naquele tom sussurrante que amava ouvir
quando estava dentro dela.
— Não posso parar Liz. Não sente? – Ela fecha os olhos, quando
levanto a mão e toco seu rosto, passando meus dedos por seus lábios perfeitos
que se entreabrem prontos para receber minha língua.
Língua que neste instante está coçando para sentir o gosto dela de
novo. E de novo.
— Por favor... – e lá está, aquela súplica que sempre age como uma
droga que entra por meu ouvido e controla meus sentidos.
Ela deve saber que sou um escravo quando faz isto.
— Por favor, o quê? – Me aproximo mais, me alimento do seu hálito
doce que aquece meu rosto.
— Eu não posso... – sua voz quase sumida agora está cheia de um
sentimento tão profundo que atravessa as barreiras bem construídas em volta
do meu coração. E eu paro, chocado por um momento por entrever pela
primeira vez a extensão do ressentimento que ela guarda dentro de si. E mais
chocado ainda por sentir aquela dor que vinha dela se chocando com algo
duro dentro do meu peito.
Minha própria dor, ignorada e por fim esquecida, que ainda estava ali.
Pungente. E que agora envolve a dela num abraço apertado de amante.
E então, eu estou dando um passo atrás, assustado.
E Liz abre seus olhos, a dor sendo substituída pela velha mágoa.
— Me deixe em paz, Thomas!
Ela foge e eu fico ali, aturdido, tentando fazer a minha dor que
deveria estar escondida, largar a dela e voltar ao esquecimento.

***
Naquela noite, eu ligo para a única pessoa que sabia da minha história
com Liz e o encontro no bar próximo ao hospital.
— E aí, cara, quanto tempo – Josh senta do meu lado e pede uma
cerveja. Eu já havia perdido a conta de quantas tinha bebido e a merda era
que o álcool não estava fazendo seu trabalho. Por mais que eu bebesse hoje
eu não conseguia me desligar da realidade.
— Mais uma – resmungo para a bartender, que hoje teve o bom senso
de não se insinuar, certamente percebendo meu humor. Ou estava esperando
eu ficar bêbado para atacar. Bom, hoje ela não estava com sorte se esta fosse
sua intenção.
Josh levanta a sobrancelha, onde brilha um piercing.
— Hum, por que eu acho que esta não é uma noite como as outras,
onde vamos beber e pegar umas garotas?
— Lembra da Liz?
Josh quase cospe a cerveja.
— A Liz? A sua Liz?
Um riso amargo fecha minha garganta.
— Sim, essa Liz, mas não mais minha, certamente.
— Sim, claro que eu lembro.
— Ela é uma interna no hospital.
— Espera aí: quer me dizer que aquela Liz que você comia há oito
anos e que as coisas não acabaram nada bem, agora trabalha no mesmo
hospital que você?
— Ela não só trabalha no mesmo hospital. Eu sou seu chefe. Ela é
uma das internas, começou esta semana.
— Cara... – Josh assovia – isto é inesperado.
— Só isso que tem a dizer?
— Quer que eu diga o quê?
Sim, o que eu queria que Josh dissesse?
Ele estava lá quando tudo aconteceu. Desde o começo.
Ele sabe de todas as merdas.
Talvez por causa disto eu esperasse que ele tivesse algo a dizer.
— Mas e aí? – Ela continua gata?
— A mulher mais linda do mundo – pro Josh eu não precisava mentir.
Ele sabia que eu fui louco por Liz.
Ele só não faz ideia de que esta loucura perdura até hoje.
— Hum, e aí?
— E aí que minha vida virou um inferno – eu tomo um longo gole de
cerveja.
— Sei... Acho que é melhor me contar tudo em detalhes pra eu
entender. Eu achei que esta história tinha ficado lá trás, afinal se passaram
oito anos. Eu tive muitas namoradas e algumas com histórias que também
não acabaram nada bem, mas cara acho que nenhuma ia transformar minha
vida num inferno se eu a encontrasse hoje.
— Eu queria dizer o mesmo. Também já tive muitas garotas nestes
oito anos e antes e algumas certamente me odeiam....
Josh ri.
— Isto porque algumas não aceitam o aviso de “sem compromisso” e
insistem em se apaixonar por você. Espera... é isto? A Liz é uma destas que
ainda é apaixonada por você?
— Não. A Liz me odeia.
— Hum, deve estar sendo difícil mesmo. Mas... oito anos depois? Eu
não me lembro da cara de quem eu estava pegando há dois anos, que dirá
oito! Por que vocês estão encrencando com isto?
— Eu me pergunto o mesmo!
— Olha, eu sei que ela era uma tremenda gata. Sei que você foi
amarradão nela. Sei que as coisas acabaram mal, mas... aconteceu faz tanto
tempo! Não consigo entender porque ainda.... Wow – ele para me encarando
– Você ainda gosta dela!
— Não! – eu faço uma careta.
Josh ri mais.
— Claro que sim! Ainda quer comer ela, não é seu filho da puta?
Cara, qual o problema? Certamente nunca foi difícil pra você! Basta lançar
este sorrisinho sacana que as minas já abrem as pernas! Porra, eu mesmo já
peguei algumas por sua causa!
— Você não ouviu o que eu disse? As coisas não são tão simples
assim, a Liz me odeia!
— Ah, agora começo a entender. Você quer a Liz e ela não te quer.
— Eu sei que ela quer ficar comigo, só não quer esquecer o que
aconteceu...
— Hum, não dá pra culpá-la não é?
— Não sei por que eu sou o sacana da história se ela não era tão
inocente assim!
— Ei, calma! Acho que temos bastante ressentimentos aqui hein?
Deveriam ter pago uma grana pro analista, hoje não estariam assim, cheios de
grilos!
— Vai se foder, Josh! Nem sei porque achei que poderia me ajudar.
— Eu realmente não sei como te ajudar. O que diabos você quer?
— Eu quero... – Respiro fundo, tentando externar o que estava me
matando por dentro – eu a quero de volta. – Digo com todas as palavras e é
como se tirasse um peso do meu peito.
Sim. Eu a queria de volta e não sabia como convencê-la e isto estava
me deixando louco.
— Ah... Agora sabemos qual o verdadeiro problema.
— A merda é que ela é uma interna. Além de ser proibido...
Josh ri.
— Esse fato nunca foi problema.
— Eu sei. Só que desta vez prometi pro meu pai.
— Eu tenho certeza que esse não seria uma proibição que faria você
ficar longe dela. O problema é que Liz não está disposta a ceder desta vez.
— Eu sei. Eu estou ferrado, cara.
Josh bate nas minhas costas.
— Olha eu acho que deveria tentar esquecer a Liz. Não acabou bem
antes e agora pode ser pior ainda.
— Acho que tem razão.
***

Eu acordo com uma tremenda dor de cabeça de ressaca e chego ao


hospital ansioso e temeroso ao mesmo tempo.
Eu queria vê-la. Saber que estaria por perto.
Ao mesmo tempo sabia que seria um inferno tê-la ao meu alcance
sem ter o direito de tocá-la.
— Bom dia Doutor Hardy, está atrasado – Erick brinca quando entro
no vestiário.
— Vai tomar no cu! – Resmungo e escuto um risinho.
Levanto o olhar enquanto tiro a camisa e Jenny está ali, amarrando os
sapatos.
— Bom dia chefe. Noite mal dormida?
Erick ri e bate nas minhas costas.
— Eu vou dizer que vai se atrasar mais um pouco. – Ele pisca e se
afasta, deixando claro que eu terei tempo para uns amassos de
reconhecimento na interna.
Assim que ele desaparece porta a fora, Jenny já está perto de mim.
— Uau – ela arregala os olhos ao ver minha tatuagem – é... linda...
Em outros tempos eu sorriria e diria que ela poderia tocar. E eu a
tocaria também. E uma coisa levaria a outra.
Hoje Jenny e seu olhar embasbacado apenas me irritam.
— Se já estiver pronta, deveria se juntar aos outros – digo friamente,
me virando para o armário a procura do meu uniforme.
Mas a pequena Jenny tem outras ideias.
Sinto seu toque no meu ombro.
— É um trabalho incrível, doutor Hardy, sabe eu tenho uma tatoo
também, eu posso mostrar a minha já que mostrou a sua...
Antes que eu tenha a chance de mandá-la se afastar de novo, escuto
um barulho na porta e ao levantar a cabeça, Liz está ali.
Seus olhos são duas pedras de gelo e automaticamente tenho vontade
de empurrar Jenny e sua mão curiosa pra longe.
— Ah, olha só quem chegou atrasada. De novo – Jenny, graças a
Deus, se afasta com a chegada de Liz. – O Doutor Hardy não deixou bem
claro que uma das regras era não se atrasar?
— E você agora é a assistente pessoal do Doutor Hardy, Jenny? – Liz
diz entredentes, passando por nós e chegando ao próprio armário. – Ou
melhor, talvez assistente não seja bem o que você quer ser, não é? – ela abre a
porta começando a jogar suas coisas lá dentro com força.
— O que está insinuando...
— Jenny, vá se juntar aos outros – eu ordeno.
— Mas...
— Agora!
Ela bufa e se afasta batendo os pés no chão como uma criança
birrenta.
Sério que eu tinha achado aquela garota desagradável interessante?
Assim que ela desaparece porta afora volto minha atenção para Liz.
E puta que pariu. Ela está tirando a blusa nervosamente.
— Tá olhando o quê? – resmunga irritada e para meu assombro, ela
tira a calça, ficando apenas de calcinha e sutiã na minha frente.
A linda tatuagem de rosa vermelha continuava ali, no mesmo lugar
em que eu passei minhas mãos e minha língua tantas vezes.
Eu me lembro de tudo. Minhas mãos se lembram de tudo. Meu pau se
lembra de tudo.
Eu sinto um forte puxão na minha calça, enquanto a olho de cima
abaixo, embasbacado.
Liz continua maravilhosa. Não, ela está mais perfeita agora. Se é que
é algo possível.
Ela acha sua calça e a coloca, com gestos nervosos.
— Eu atrapalhei seu joguinho com a Jenny? — Dardeja irritada,
porém não estou prestando atenção em suas palavras.
Na verdade, o único pensamento racional na minha mente é a
constatação que ela não deveria estar se vestindo.
— E nem vem reclamar que eu me atrasei! – Ela pega a blusa e é o
que basta para eu sair do meu torpor.
Sem pensar em mais nada, sigo meu mais básico instinto e com
poucas passadas, estou na sua frente, puxando a blusa de sua mão e a jogando
longe, enquanto a empurro em direção ao armário que trepida com o baque.
Ela solta uma exclamação abafada de surpresa e é o último som que
escuto antes de lançar minha boca sobre a sua.
E eu a beijo.
Oito anos antes

— Eu amo esta música – Liz murmurou e eu aumentei o som. Era


mais uma música da banda do nosso amigo Josh de cujo show acabáramos de
sair.
Disfarcei um sorriso, quando Liz bocejou tentando acompanhar a
música. Ela era ridiculamente desafinada, ainda mais bêbada.
Tínhamos nos divertido hoje à noite, como eu ia dirigir, maneirei na
bebida, Liz certamente não teve a mesma preocupação.
Naquele momento, observando-a fechar os olhos, me perguntei se não
deveria tê-la feito parar, porque, certamente, acabar a noite carregando minha
namorada bêbada e apagada para a cama não era uma boa opção.
Sinto um mal-estar ao me dar conta que cada vez mais eu vinha
usando esta palavra para me referir a Liz.
Namorada. Era estranho.
Eu não tinha namoradas.
Garotas para foder sim. Compromissos não.
Eu fugia de compromissos como o diabo foge da cruz.
Não era pra mim. Eu tinha pavor de me imaginar preso a uma só
pessoa.
Deixando aquela pessoa ser importante. Porque as pessoas vão
embora um dia e aí você fica na merda eternamente. Como meu pai, depois
que minha mãe morreu.
Não, eu não queria aquela merda toda pra mim.
Então o que eu estava fazendo com aquela garota?
Bom, ela era linda e eu ainda não tinha me cansado dela. Na verdade,
a cada dia que passava minha vontade de ficar com ela aumentava cada vez
mais. Era como uma droga. Alguma substância ilícita feita só para mim,
apenas para me viciar.
Toquei sua coxa apertando e ela abriu os olhos sonolentos para mim.
Um sorriso preguiçoso em seu rosto bonito.
Eu continuava achando-a tão incrível como na primeira vez que a vi,
naquele maldito sarau, brigando comigo por ser um filho da mãe.
Parecia que tinha se passado muito tempo apesar de fazer somente
algumas poucas semanas.
E, desde o dia em que eu a levei a minha casa e finalmente a coloquei
na minha cama, nós não tínhamos mais nos desgrudado.
De novo, eu senti um frio na boca do estômago. Um medo estranho.
Eu o afastei rapidamente quando ela ronronou e se aconchegou a
mim, deitando a cabeça em meu ombro.
— Sua casa? – Perguntei, beijando seus cabelos.
— Não!
— Por que não? Acho que nunca me levou lá. Não mora sozinha? –
Desde que começamos a transar, nós só ficávamos juntos na minha casa, que
graças a Deus estava quase sempre vazia, com meu pai e Diana muito
ocupados com seus respectivos trabalhos e Amber passando férias com os
amigos em Cabo.
— Minha mãe pode aparecer... – ela resmungou.
Eu ainda não conhecia a mãe de Liz que, numa coincidência incrível
também era médica. Pelo pouco que Liz falava dela, parecia ser uma pessoa
extremamente controladora e, mesmo Liz morando sozinha, ainda dava um
jeito de controlar a vida dela.
Isto não deveria me interessar ou me chatear, afinal, meu lance com
Liz era temporário, em breve eu iria para Boston, passar quatro anos em
Harvard e Liz ficaria ali, para cursar a universidade.
De novo senti um aperto estranho. Eu não poderia estar lamentando,
poderia? Eu não tinha nenhum interesse em relacionamentos e obviamente
nunca foi uma opção para nós.
Todavia acho que sentiria falta de Liz.
Eu não ia ficar pensando naquilo.
Naquele momento, ela estava comigo, um pouco bêbada e sonolenta,
mas eu poderia dar um jeito, pensei, com o bom humor voltando, ao pensar
em todas as possibilidades.
Parei o carro em frente à minha casa e a ajudei a sair, ela tropeçou,
rindo.
— Opa! Acho que estou meio bêbada.
— Meio? – Eu abri a porta de casa – Você está travada, baby.
Ela riu mais.
— Vai se aproveitar de mim?
— Com certeza, porém eu prefiro você acordada – e a levei para o
sofá – fique quietinha aí, vou fazer um café.
Eu fui pra cozinha e liguei a cafeteira, fazendo um café rapidamente e
levando pra Liz.
Ela tinha tirado a jaqueta e agora eu poderia apreciar novamente seus
seios perfeitos que a blusa apertada deixava à mostra.
Ela era gostosa. Ela era minha. E eu não via a hora de tirar aquela
pequena blusa idiota e tomar posse do que era meu.
— Aqui, tome – eu lhe dei o café e sentei do seu lado.
— Eca, tá amargo.
— Não reclame. Senão a levo pra sua casa.
Ela tomou o café lentamente, começando a tomar vida novamente,
enquanto olhava em volta. Seus olhos pousaram no aparador ao lado do sofá,
onde alguns porta-retratos o enfeitavam.
— Esta mulher com seu pai é sua mãe? – Ela perguntou apontando
para uma foto de Diana e Jack numas férias em Aspen.
— Não, é minha madrasta.
— Hum, não tem foto da sua mãe?
— Meu pai sumiu com todas. Ele não aguentaria.
— Por quê?
— Ele nunca superou. Ele... nunca mais amou depois da minha mãe.
Ele seguiu a vida, até se casou de novo, embora eu ache que se tornou uma
pessoa incapaz de amar.
— Ele deve amar você e sua irmã.
— Eu duvido. Acho que ele nunca nos ensinou a amar também, talvez
por isto eu e Amber não nos amamos. Somos mais rivais do que qualquer
outra coisa.
Eu me perguntei de onde vinham aquelas confissões. E porque as
estava fazendo a Liz.
De repente quis mudar de assunto, antes que ela fizesse mais alguma
pergunta sobre minha disfuncional família.
— E seu pai? Nunca me falou sobre ele.
— Ele morreu de um aneurisma quando eu tinha pouco mais de oito
anos. Mas eu mal o conhecia. Ele era um professor de cidade pequena, um
cara com quem Bárbara ficou pouco tempo. Ela deu o fora da cidade que eles
moravam pra estudar medicina que era seu grande sonho e me levou junto.
Eu o via todo verão, apenas isto. Barbara não permitia que fôssemos
próximos.
— Sua mãe parece ser uma vaca.
Ela riu.
— Acho que ela e seu pai têm isto em comum. Minha mãe também é
incapaz de amar – ela ficou séria – É isto. Eu sempre achei que ela me tratava
assim por excesso de amor, eu estava enganada, não é?
De repente a conversa havia tomado um rumo esquisito. E a dor que
eu vi em seu olhar, me fez querer matar a vadia da tal Bárbara.
— Por que estamos falando dos nossos fodidos pais? Eu te trouxe
aqui pra te foder, esqueceu? – Eu me levantei e a puxei comigo fazendo-a rir,
quando a coloquei sobre meus ombros.
— Thomas!
Eu lhe dei um tapa na bunda e rumei para as escadas.
Estava chegando ao andar de cima, quando meu pai apareceu no
corredor.
— Thomas, que barulho é este?
— Merda!
Eu coloquei Liz no chão, que tirou o cabelo do rosto ficando vermelha
ao ver meu pai.
— Oh Meu Deus – ela sussurrou – É o Doutor Hardy.
— Sim, este é meu pai – resmunguei.
Jack veio em nossa direção. Usava um roupão e óculos de leitura, o
que queria dizer que estava trabalhando em vez de estar dormindo.
— Sim, sou o pai de Thomas e você é?
— Liz – respondi por ela – e nós estamos indo pro meu quarto.
Eu a puxei, sem a menor cerimônia.
Jack não nos impediu. Ele não se intrometia na minha vida e eu não
me intrometia na dele.
Meu pai só se preocupava comigo quando dizia respeito a minha
futura carreira na medicina. Quem eu fodia não lhe interessava.
— Que vergonha — Liz sussurrou quando fechei a porta do quarto.
— Esquece, meu pai está de boa.
— Tem certeza? Minha mãe teria enlouquecido!
Eu ri e a puxei pela camiseta, enfiando meu rosto em seu pescoço,
depositando um beijo ali o que a fez gemer e fechar os olhos.
— Agora chega de falar, senhorita Spencer. Eu vou te levar pra
cama... – eu a empurrei em direção a cama e ela riu, se ocupando em tirar a
blusa e me mostrar aquele belo par de seios que já fazia parte das minhas
mais sacanas fantasias.
— Você é linda – enterrei meu rosto entre eles, aspirando.
— Seu pai é gato – ela comentou e eu levantei a cabeça a encarando.
— E você deve estar mais bêbada do que eu imaginava.
— Sério! Ele é lindo! Será que você vai ficar assim quando ficar mais
velho? – Ela me puxou para si, beijando meu queixo, enquanto eu me
imiscuía no meio de suas pernas.
— Quem sabe? Talvez eu fique — eu a beijei com vontade, engolindo
suas palavras e querendo tirar qualquer pensamento de sua cabecinha bêbada
que não fosse eu estar dentro dela.
— Eu espero que você fique... – ela ainda murmurou quando deixei
sua boca para trilhar beijos por seu pescoço, sua risada suave misturando-se
com seus gemidos doces – quero ver você assim...
Eu afastei da mente aquela imagem que ela projetava em seus
devaneios.
Liz não me veria assim. Mais velho.
Na verdade, em poucas semanas, ela não me veria mais.
Capítulo Dez

Liz

Thomas Hardy está me beijando.


Demorou alguns instantes, entre o momento em que ele me jogou
contra o armário e enfiou a língua na minha boca, para meu cérebro processar
aquela informação.
E aí veio a revolta. A constatação que aquilo não deveria, em hipótese
alguma, estar acontecendo.
Era a mais errada de todas as ideias erradas no mundo.
No entanto havia as sensações.
A textura. O gosto.
Ah, porra. Thomas Hardy e sua boca ainda eram o melhor beijo do
mundo.
E então estou perdida no jeito que suas mãos grandes seguram minha
cabeça, puxando meu cabelo. Seu corpo perfeito segurando o meu, imóvel,
me forçando com docilidade.
O gemido rouco que ele deixa escapar como se viesse do fundo de sua
alma. Acordando a minha, que se espreguiça e vem à vida. Querendo tudo o
que tinha direito e que só ele poderia dar.
Meu coração se junta à festa e se agita ansioso no meu peito, seu
retumbar frenético é como uma trilha sonora para a loucura que toma conta
dos meus sentidos. E um gemido de rendição escapa por entre meus lábios,
que devoram os dele com igual fome.
Cada célula do meu corpo está viva e pulsando por ele. Respirando
por ele. Meus próprios braços se apressam em trazê-lo para perto. Mais perto.
Até que não reste nenhum espaço. Nenhuma dúvida de que eu preciso dele
para aplacar aquele desejo insidioso que começa a correr nas minhas veias e
explode em forma de calor em minha pele que queima fazendo meu interior
ferver.
E de novo eu sou aquela menina de dezoito anos, apaixonada e
ansiosa por qualquer coisa que aquele cara poderia me dar.
Ansiosa por seus dentes mordendo minha boca. Por suas mãos que
percorrem minhas costas e pousam agressivamente em meus quadris. Ansiosa
por sua ereção agressiva, que me deixa frágil e entregue.
Depois de mais de oito anos tentando esquecer aquela sensação. Oito
anos tentando tirar da minha cabeça a memória de seus beijos. Dos seus
braços.
Para acabar assim. Rendida. De novo.
Este reconhecimento derrama um balde de água fria sobre meu desejo
e eu luto para empurrá-lo.
— Não, Thomas... – murmuro sentindo um nó se formar na minha
garganta.
Thomas finalmente para de me beijar, mas não me solta. Seus olhos
brilhantes de um desejo ávido ameaçam o muro que estou erguendo à custa
das lembranças dolorosas que ele mesmo causou.
— Por quê? – Ele ofega, me apertando.
— Me solta – luto contra seus braços.
— Você também quer, por que está relutando...?
Eu esqueço a raiva e o encaro com todo o ressentimento que ainda
existe dentro de mim.
— Você sabe muito bem por quê!
Ele finalmente reconhece e seus braços se afrouxam, me libertando.
Sei que por sua mente está se passando o mesmo que na minha. Um
filme de horror que foi aquela noite há mais de oito anos.
O dia em que ele quebrou meu coração.
O coração que eu fui tola o bastante em dar a ele.
— Você não deveria nem perguntar por quê! – Cuspo estas palavras,
o nó na garganta arrebentando em lágrimas sofridas que já não posso conter.
— Inferno, Liz, já se passaram oito anos! – Ele bate no armário,
frustrado e enraivecido.
— Pois podem se passar mil!
— Você me odeia tanto assim?
— Não sei se ódio é a palavra correta. Eu só não quero passar por
tudo aquilo novamente. Nunca mais. Consequentemente eu não posso confiar
em você de novo, deixar que isto... – eu aponto para nós dois – aconteça de
novo.
Antes que ele possa responder, Amber entra pela porta.
— Thomas, estão te chamando na sala de emergência... – ela para
quando me vê.
Eu me viro automaticamente, tentando secar as lágrimas.
— Estou ocupado, Amber – Thomas rosna.
— O quê? Ocupado comendo mais uma interna? Devo dizer isto ao
papai que foi quem te chamou? Confesso que eu adoraria!
Eu tento não gritar para ela que eu não sou mais uma interna que o
Thomas vai comer, mas me calo.
Com um palavrão Thomas sai do vestiário.
Eu me viro, achando que Amber o acompanhou, ela continua ali e
parece desconcertada com minhas lágrimas.
— Oh... Meu irmão fez isto?
Eu as seco, voltando a me vestir.
— Seu irmão é um idiota.
Ela ri e estende a mão, onde tem um lenço de papel.
— Eu sei.
Eu pego o lenço.
–Obrigada.
— Olha, se quer um conselho. Não se envolva com o Thomas. Ele é
um sacana egoísta e, embora muitas garotas tentem, ele nunca fica muito
tempo com nenhuma.
Eu deveria dizer a ela que eu sabia muito bem disto? Que eu
descobrira da pior forma possível?
— Não se preocupe. Não farei parte das estatísticas.
— Não? Era seu batom que eu vi na boca dele.
Eu fico vermelha.
— Isto não vai se repetir.
— Para o seu bem, espero que não.
De repente, meu celular toca e eu vejo o rosto de Peter no visor.
E Amber também, antes que eu desligue e o jogue dentro do armário.
— Nossa, que gato. Namorado?
— É... por aí... – respondo.
— Uau. Ele é lindo.
— Eu preciso ir – digo quando acabo de me trocar.
Amber ainda me estuda.
— A Chloe me disse que almoçou com ela. Se quiser, pode ir com a
gente hoje de novo. Ela disse que você é legal.
— Quem sabe? – Eu dou de ombros e me afasto.
Eu ainda estou tonta com todo o ocorrido quando paro no corredor ao
ver Thomas e um senhor bonito conversando a poucos metros de mim.
E as palavras de Amber que eu não tinha decifrado, ressurgem.
O pai de Thomas também trabalhava ali, naquele hospital.
– Que grande merda! – Resmungo dando meia volta evitando mais
aquele confronto.
Como é que eu não tinha nem sequer lembrado que Jack Hardy era o
diretor daquele hospital? Como se não bastasse reencontrar Thomas, ainda
seria obrigada a encarar o pai dele?
Era muito azar para uma pessoa só.
— Ei, Liz, vai ficar aí de boa o dia inteiro? – Jenny passa por mim
com cara de poucos amigos e sem aviso joga um monte de exames nos meus
braços – já que não tem o que fazer, pode ir entregar esses exames!
— Isso não é tarefa sua? – Pergunto de mal humor.
— E você não chegou atrasada de novo? – Ela usa seu tom mais
estridente para me desafiar e eu bufo.
— Okay eu faço,
Ela dá um sorriso afetado.
— Aposto que o Thomas vai te dar uma bronca por mais este atraso!
De repente eu tenho vontade de jogar na cara dela exatamente o que
Thomas tinha feito comigo no vestiário para tirar aquele sorrisinho satisfeito
do rosto daquela gralha.
Me controlo a tempo. Imagina o inferno que seria se outras pessoas do
hospital soubessem sobre Thomas e eu?
Não. Nem pensar.
Com alguma sorte eu conseguiria sair daquele enrosco com o meu
orgulho intacto.
E espero, desta vez, meu coração.

Eu passo o dia entregando os malditos exames e fugindo de Thomas e


companhia.
À noite, Peter aparece na minha casa sem avisar.
Eu deveria saber que ao não atender seus telefonemas ele ficaria
preocupado e viria atrás de mim.
— Oi Peter – não consigo disfarçar o desânimo na minha voz.
— Ei, Lili, tentei falar contigo o dia inteiro.
— Eu vi suas ligações, não pude atender, estava atrasada para o
trabalho.
— Você não parece nada bem – ele estuda meu rosto e eu tento um
sorriso.
— Estou cansada. A pressão é grande no hospital.
— É só trabalho mesmo? – ele não parece acreditar na minha
desculpa e por um momento tenho vontade de contar tudo a ele.
Peter pensa que me conhece mais do que ninguém. Que sabe todos os
meus segredos. Ele não sabe nada.
— Lili – ele entende meu silêncio como confirmação e se aproxima,
tocando meu rosto – ei, sou eu – sorri de um jeito que em outro momento me
faria sorrir também. Não hoje. Temo que nunca mais – sabe que pode me
contar o que está te preocupando.
Eu seguro sua mão afastando-a.
— É só a pressão do trabalho.
— É tanta pressão assim?
Eu dou de ombros.
– Deve passar com o tempo.
Ele se aproxima novamente, sua mão agora acariciando meu cabelo.
— Bem, o que acha de pedirmos comida chinesa e, enquanto
esperamos, eu posso lhe fazer uma massagem? Sabe que eu sou bom nisso...
– sua voz não esconde a promessa sexual.
Em outra ocasião seria tentadora. Relaxar fazendo um bom sexo.
Mas hoje eu sabia que fazer sexo com Peter não iria me ajudar. Eu
não queria sentir a boca de Peter. O toque de Peter. Porque, de alguma forma,
por mais que eu tentasse esquecer, eu ainda sentia o gosto de Thomas em
minha boca.
Ainda sentia o toque de suas mãos.
Era exatamente como há oito anos. Eu não precisava estar com ele,
para senti-lo.
Como se tivesse me marcado. Me tatuado.
— Não hoje, Peter – eu dou um passo atrás – estou realmente cansada
e só quero dormir. Melhor ir embora.
— Tem certeza? Eu realmente não queria deixá-la sozinha...
— Sim, eu tenho. Só preciso de um banho e cama.
— Tudo bem. – ele finalmente cede.
Eu o acompanho até a porta.
— Lili, eu queria te levar pra jantar – ele diz antes de ir.
— Ok, vamos marcar... deixa eu me acostumar com o ritmo do
trabalho e a gente pode comer o quanto você quiser!
— Não, eu estou dizendo, tipo um... encontro.
Oh, oh!
Eu estava entendendo errado, ou Peter estava me chamando pra sair?
— Peter... O que está querendo dizer?
— Você entendeu.
— Não estou entendendo direito. Você quer ter um encontro?
— Sim, um encontro.
— Nós somos amigos, Peter. Não temos encontros!
— Mas eu quero um.
Eu respiro fundo, tentando organizar meus pensamentos.
Tentando não chorar.
Peter sempre foi meu porto seguro. O cara que era meu amigo acima
de tudo. Que me entendia. Que me aceitava.
Que nunca me cobrara nada.
Porque, além da minha amizade e do meu corpo de vez em quando, eu
não tinha mais nada a oferecer.
Agora ele estava me cobrando.
Estava mudando tudo.
Justo agora, que eu estava de novo toda enrolada nos problemas com
Thomas Hardy.
Por que o universo escolheu aquele momento para me sabotar?
— Peter, eu não... não quero que nada mude entre nós.
— E se eu quiser?
— Por quê? Não está legal assim?
— Assim como? Com você decidindo quando me quer? E me
enxotando quando não está a fim?
— Por que está sendo tão cruel comigo? Não entendo! Somos
amigos!
— A gente faz sexo, Lili!
— E daí? Não é nada demais! A gente combinou que seria desse jeito!
— Combinamos? Eu somente aceitei as migalhas que me oferecia!
Apesar de sempre ter desejado mais!
— Oh Deus! – Como é que eu nunca havia percebido que Peter
guardava todo aquele ressentimento?
— Olha, me desculpa! Eu não deveria estar te pressionando! Merda,
não foi assim que eu imaginei a gente tendo esta conversa. Eu disse a mim
mesmo que eu iria devagar. Iria esperar você se formar, e então iria te cortejar
e...
— Eu não fazia ideia...
Ele sorri tristemente.
— Eu sei. Eu nunca quis te assustar. Eu sei que tem coisas no seu
passado que não quer me contar, que alguém te magoou muito e por isso
mantém seu coração fechado, mas Lili – ele segura minha mão – eu não sou
como esse cara. Eu nunca iria te machucar.
— Eu sei – mordo os lábios com força para não chorar – infelizmente
eu sou uma mercadoria avariada, Peter.
— Não é! Se me permitir, eu posso fazer você feliz. Você sabe que
posso!
— Eu sei – afirmo, tristemente – mas realmente não posso. Não
ainda... Ainda existem coisas... Coisas que não faz ideia...
— Então me conta.
— Eu não posso... Por favor, não me faça falar... Apenas... Seja meu
amigo. – Imploro, porque sou uma criatura egoísta. E não quero perder Peter.
— Eu nunca vou deixar de ser seu amigo!
— Então, por favor, me entenda. Não posso te amar. Não do jeito que
quer.
— Tudo bem, Lili. Eu não vou insistir. Não agora.
— Eu sinto muito, eu realmente sinto. Eu queria ser essa pessoa.
Lamentavelmente não sou. Temo que nunca poderei ser.
— Eu não concordo. Mas eu vou respeitar seu desejo. É o que os
amigos fazem, não é? Vai continuar sendo como você quiser.
Eu respiro aliviada.
— Eu acho que a gente não deve... Não devemos mais dormir juntos.
— Pensei que quisesse que tudo continuasse como antes.
— Agora que eu sei como se sente, acho que só iria confundir e piorar
mais as coisas.
— Tudo bem. Como quiser – ele se aproxima e beija minha testa.
— Obrigada, Peter.
— Se cuida.
Ele se vai e eu fecho a porta me encostando nela.
Que dia interminável.
Um dia que começou com Thomas me beijando e me fazendo
perceber que ainda havia dentro de mim muito daquela menina de dezoito
anos que foi completamente apaixonada por ele.
E culminara com Peter praticamente se declarando.
Tudo estava mudando.
E de um jeito que eu não sabia como ia terminar.
E isso me amedrontava.

Naquela noite eu quase não dormi.


Minha cabeça completamente infestada de pensamentos confusos.
A conversa com Peter voltava toda hora na minha mente, assim, como
nossa história. Será que Peter estava com a razão e eu poderia ser feliz com
ele? Poderia me livrar dos traumas do passado e dar uma chance a minha
felicidade ao lado de alguém que me amava de verdade?
Como acreditar?
Eu acreditei uma vez e foi uma tragédia. Acreditei que um cara me
amava e me queria. Quis abrir mão de tudo por ele.
E o que eu ganhara em troca?
Só sofrimento e traumas pra uma vida inteira.
E agora este mesmo cara que eu achei que nunca mais fosse ver,
estava ali, todos os dias. E o pior, me tentando como da outra vez.
Como Thomas podia querer alguma coisa comigo ainda? Eu não
entendia.
Será que era só um jogo? Aquilo me atormentava.
Eu queria dar uma chance a Peter. Eu ansiava por ser uma garota
normal. Uma garota que não hesitava em entregar seu coração.
Eu queria ser realmente feliz. Feliz de verdade. Para isso, eu teria que
me livrar de Thomas.
Não havia outro jeito.
E talvez, a única saída que eu tivesse, era enfrentá-lo. Não adiantava
continuar fugindo. Ele queria falar do passado? Então iríamos falar. Talvez
estivesse na hora de colocar tudo para fora.
Thomas deveria saber a extensão do mal que tinha me causado.
E quem sabe assim, eu poderia me livrar de toda aquela dor arraigada
dentro de mim como o mais precioso segredo.

De manhã, eu me sinto surpreendentemente bem.


Como se o peso que eu guardava há oito anos tivesse prestes a ser
tirado de mim.
Ainda havia medo, claro.
Ainda havia um caminhão de incertezas. Tomar a decisão de
conversar com Thomas me trouxe a certeza de que eu deveria ter feito isso há
muito tempo.
Eu chego ao hospital na hora certa e rumo para o vestiário. Jenny e
Julie estão lá com seus risinhos, eu as ignoro.
Elas desistem de me incluir na conversa e saem antes de mim.
Eu me troco e penso se devo pleitear uma conversa com Thomas
agora. Talvez devesse esperar o fim do dia. Mas eu não quero esperar.
— Ei, Erick, você viu o Thomas? – eu pergunto ao médico
grandalhão quando ele passa por mim no corredor.
— Ei, bonita, eu o vi na sala de medicação...
— Obrigada!
Eu quase corro para lá, ao abrir a porta, eu paro.
Sim, Thomas está lá. Mas ele não está sozinho.
A enfermeira Emily está lá também. Muito próxima a ele, com suas
mãos muito ocupadas abrindo seu jaleco.
É como um pesadelo retornando do passado, exatamente de oito anos
atrás...
Oito anos antes

— Eu sou muito boa. – Meus dedos contornaram as linhas escuras do


dragão em seu ombro, o desenho contrastava sensualmente com a placidez de
sua pele de estátua grega.
Ele se virou, um sorriso preguiçoso e sexy em seus lábios perfeitos,
enquanto seus braços me prendiam sob seu domínio de novo. Derreti com
aquele sorriso. E aqueles braços.
E todo aquele corpo perfeito roçando o meu.
Não importava quantas vezes ele já havia feito a mesma coisa antes.
Continuava sendo incrível.
Ele era todo incrível. E eu me sentia incrível com ele.
— Eu estou falando da tatuagem – retruquei, devolvendo o sorriso e o
abraço.
— Nisto também – sua resposta saiu abafada contra meu pescoço.
— Sério? – Levantei a sobrancelha entre vermelha e orgulhosa.
A gente não passava muito tempo conversando e era obvio que eu não
queria ficar falando de todas as garotas que passaram por aquela cama ou
sabe mais onde Thomas levava suas conquistas, sem contar que minha única
experiência com sexo antes dele não podia se comparar ao histórico de
Thomas.
Eu não me importava. Ele era meu agora. A gente passava todo o
tempo juntos. Às vezes saíamos, mas geralmente ficávamos presos naquela
bolha que tínhamos criado, onde nós nos bastávamos. Nos completávamos.
Contrariando todas as expectativas eu estava irrevogavelmente
apaixonada por Thomas Hardy.
E nunca tinha sido tão feliz na minha vida.
Eu o beijei e me deixei levar mais uma vez para aquele lugar sublime
que só Thomas sabia me levar. Era mais do que sexo, mais do que conexão
física.
Ele tinha se tornado dono de cada pedacinho meu.
Do meu coração. Do meu corpo. Da minha alma.

Quando acordei, Thomas ainda ressonava pesadamente.


Olhei o relógio, já passava das cinco da tarde. Eu devia ir embora,
hoje minha mãe teria um tempo na sua ocupada agenda e jantaria comigo.
Eu o deixei dormindo e me vesti sem fazer barulho, saindo do quarto
pé ante pé.
Estava passando pela sala quando uma mulher bonita me interceptou.
— Olá, você deve ser a Liz.
Eu fiquei vermelha imediatamente.
— Eu sou Diana Hardy – a mulher estendeu a mão.
— Muito prazer, senhora Hardy.
— Fiquei sabendo que passa muito tempo aqui.
Eu fiquei mais vermelha ainda e ela riu.
— Não fique com vergonha. Eu também já fui jovem. Venha, tome
um chá comigo.
Eu queria recusar, mas achei que seria falta de educação não aceitar o
convite da madrasta do Thomas.
Estávamos na cozinha e ela me fazia perguntas sobre minha
faculdade, que eu começaria em breve, quando o Doutor Hardy apareceu.
— Já conhece a namorada do Thomas, Jack? – Diana perguntou ao
marido, colocando uma xícara de chá na minha frente.
— Sim, acho que nos esbarramos no corredor uma noite destas.
Droga. Eu queria mergulhar dentro da xicara de tanta vergonha.
— E então, já se despediram?
— O quê? – Franzi a testa sem entender.
— Thomas está indo pra Boston na próxima semana. Acho que ele
deve ter te contado sobre a escola de medicina.
Eu engoli em seco.
Nossa! Como é que eu podia ter me esquecido que Thomas ia pra
Harvard?
Como é que eu conseguiria me despedir dele?
Eu não queria ter que me despedir!
Uma dor horrível oprimiu meu peito.
— Claro que sim – respondi, tomando o chá de um só gole e me
levantando. – Eu preciso ir.
— Já vai? – Diana pareceu decepcionada.
— Me desculpe, eu tenho um jantar com a minha mãe. Até logo.
Eu saí quase correndo da casa dos Hardy.

Eu me arrumei para o jantar com a minha mãe, com a cabeça girando


em um turbilhão de pensamentos.
Eu nunca havia parado para pensar que Thomas iria embora em breve.
E como ficaríamos? Eu não gostava de saber que iriamos nos separar,
mesmo que por pouco tempo.
Namoros a distância eram muito difíceis.
Eu precisava pensar em algo...
Então, uma ideia começou a se formar na minha cabeça...
Talvez fosse loucura, contudo quanto mais pensava no assunto, mais a
ideia se solidificava.
Eu cheguei ao apartamento da minha mãe e ela estava em uma
conferência por telefone, toda ocupada ainda. Sorri, dizendo que ia preparar
nosso jantar.
Claro que Bárbara não ia cozinhar. Ela tinha uma empregada, porém a
mulher só ficava ali durante o dia.
Eu me ocupei em preparar uma massa e quando Bárbara desligou já
estava tudo pronto.
— Nossa, está cheirando maravilhosamente bem! – elogiou.
— É sua massa preferida – revelei e ela levantou a sobrancelha.
— Hum, quer me agradar? Algum motivo especial?
Eu dou de ombros.
— Não posso agradar minha mãe? – desconversei ainda sem coragem
de contar meus planos a ela.
— Sei... E então me conte as novidades. Preparada para o começo das
aulas?
– Bem – eu tomei um grande gole de água – era sobre isso que eu
queria falar com você.
— Sobre a faculdade?
— Eu não vou pra faculdade – disse devagar.
— O quê? Que conversa é essa?
— Não surta, eu já estou fazendo todos os planos...
— Que planos você pode ter? Eu já fiz todos os planos pra você!
— Isso mesmo mãe, você fez! Nunca me perguntou se eu queria o
que planejou.
— Não, não pode estar falando sério! – Bárbara se levantou andando
de um lado para o outro e eu também me levantei.
Eu deveria saber que não seria fácil.
— Mãe, apenas me escute...
Ela parou, me encarando.
— Ok, Elizabeth, fale que diabos está passando pela sua cabeça, mas
fique sabendo desde já que eu não vou concordar com nada que envolva você
mudar de carreira!
Eu respirei fundo, tentando não me amedrontar, por ela ter me
chamado de Elizabeth.
Geralmente queria dizer que eu estava encrencada.
— Eu realmente não estou certa se estou preparada para entrar na
faculdade agora. Eu acho que poderia ir pra Boston. Eu arranjaria um
emprego, lá. Alan tem amigos em Boston, e certamente me ajudaria a
conseguir alguma coisa, em uma galeria...
— Ah, mas tinha que ser! Achei que esse pintorzinho só tinha tirado
seu cabaço e te deixado em paz!
— Mãe! – Eu recuei chocada com suas palavras.
Eu nunca deveria ter contado a ela sobre minha primeira vez com
Alan. Mas Bárbara desconfiou e eu tive que garantir a ela que não significava
que eu estava apaixonada e que o fato não iria interferir em nada nos planos
dela para mim.
E era verdade. Eu me sentira atraída por Alan e até tive uma paixonite
por ele, mas não passara disso. Foi mais uma paixão de aluna pelo professor.
E nós ficamos juntos apenas uma vez, porque ele se recusou a continuar
comigo, depois de descobrir que eu era virgem antes dele. Ele se sentia de
certa forma culpado por eu ser tão jovem. No começo eu fiquei chateada, mas
nem cheguei a sofrer, pois não estava apaixonada. E nós continuamos
amigos.
— Não tem nada a ver com Alan!
— Então por que essas ideias agora? Esta maluca? Que diabos iria
fazer em Boston?
— Meu namorado está indo pra lá.
— Namorado? Que namorado?
— O Thomas, meu namorado.
— Como assim tem um namorado? E por que nunca me contou?
— Eu sabia que ia surtar!
— Meu Deus, Elizabeth! Enlouqueceu?
— Não, mãe. Eu estou apaixonada!
— Não pode estar apaixonada! – Bárbara gritou.
— Eu estou e não pode me impedir de fazer o que eu quero!
Eu não estava preparada para o tapa que ela deu na minha cara.
— Mãe! – Segurei meu rosto vermelho, chocada. Bárbara continuou a
gritar.
— Não vou deixar você arruinar sua vida, entendeu? Vai terminar
agora este namoro ridículo! E nem pense em continuar com esses planos de
não ir pra faculdade! Você vai ser uma grande médica! Nós sempre
sonhamos isso pra você!
— Não! Eu amo o Thomas e quero ir embora com ele! Não pode me
obrigar a ficar longe dele!
— Pelo amor de Deus, você está louca!
— Não, mãe! Eu nunca estive tão lúcida! – Peguei minha bolsa e saí
do apartamento dela antes que tentasse me impedir.
Bárbara não podia mais controlar a minha vida.
Eu queria ficar com Thomas. E eu iria embora com ele.
Eu nunca quis aquela faculdade mesmo! Era um sonho de Bárbara,
não meu. Ela me fez acreditar que eu deveria querer ser como ela. E por um
tempo eu até acreditei. Afinal ela era minha mãe e deveria saber o que era
melhor para mim. Então eu deixei que ela tomasse as decisões. Acreditei que
a pintura era só um passatempo.
Mas eu podia fazer o que eu queria agora.
E queria ir com Thomas. Onde quer que ele fosse.
— Elizabeth, volta aqui! – Eu escutei os saltos da minha mãe batendo,
indo atrás de mim e me virei.
— Mãe, por favor, chega de brigas... Me deixa ir... Eu sou adulta
agora, não pode me impedir...
— Claro, joga na minha cara que é adulta e sabe o que está fazendo!
Mas você não sabe! Eu sou sua mãe e sei! Vá, mas escute o que estou te
dizendo: você vai sofrer! Vai estragar a sua vida por causa de uma paixão que
não vai levar a nada! Certamente esse garoto, como todos os homens, só quer
uma coisa! E você está sendo suficientemente burra para acreditar em contos
de fadas! Isso não existe! E eu sei! Não quero que cometa os mesmos erros
que eu! Que se apaixone e engravide de um idiota qualquer, que só vai atrasar
a sua vida!
— Não tenho culpa se você odiou engravidar de mim! – Gritei.
Não era a primeira vez que ela jogava na minha cara. Bárbara nunca
quis ser mãe.
— Mas eu a tive! E te criei, mesmo com todas as dificuldades! E para
quê? Para jogar tudo fora por causa de um homem que com certeza vai te
chutar mais dia menos dia!
— Não desconte sua amargura em mim!
— Não é amargura! É a realidade! Eu conheço a vida e você não! Eu
só espero que você veja a realidade antes que seja tarde demais! Aí você verá
que eu estava com a razão!
Ela voltou pra casa me deixando sozinha na rua.
Por um momento, eu quis ir atrás dela. Quis gritar que ela não tinha
razão.
Não ia adiantar. Bárbara era uma cabeça dura. E eu teria que mostrar
a ela que eu poderia sim ser feliz, sem ser do jeito que ela planejou.
— Ei Liz, não esperava vê-la por aqui – Alan me cumprimentou
quando entrei na galeria.
— Oi, eu queria te pedir uma coisa.
— Claro, o que quer?
— Você tem um amigo que possui uma galeria em Boston, não tem?
— Sim, o Parker.
— Eu estou indo pra lá, poderia pedir pra ele me arranjar um
emprego?
Alan me encarou surpreso.
— Boston? E sua faculdade?
— Eu não vou mais.
— Nossa, que mudança! Vai seguir a carreira artística então?
— Eu ainda não sei, na verdade...
— Então por que está indo pra Boston?
— Meu namorado está indo pra lá e eu quero ir com ele.
— Aquele garoto que esteve aqui com você?
— É.
— Está apaixonada. – Não é uma pergunta.
— Muito. – Confessei.
Alan sorriu.
— Fico feliz por você, duvido que sua mãe tenha ficado satisfeita com
sua decisão.
– Minha mãe?
Ele pareceu arrependido, e coçou a cabeça.
— Sua mãe esteve aqui me ameaçando, depois que ficamos juntos.
Eu não sei por que não fiquei surpresa.
— Deveria ter me dito.
— Não queria te aborrecer.
— Foi por causa dela que terminou comigo?
— Não. Eu gosto de você, Liz. E me senti atraído por sua jovialidade
e seu talento. Um típico caso de atração professor aluna – ele sorriu – mas foi
só. Eu coloquei um ponto final em nosso caso porque achei que deveria ter a
chance de ser uma jovem da sua idade, de conhecer garotos da sua idade.
Como aconteceu com seu Thomas. Não por causa das ameaças de sua mãe.
Aliás, fico feliz que tenha tomado a decisão de ir para longe dela. É o melhor
que faz.
Ele foi até o quadro na parede e o tirou de lá.
— Tome, é um presente pra você. Para sua nova vida.
Eu sorri, pegando o quadro.
— Eu nunca vou esquecer o que fez por mim, Alan.
— Apenas seja feliz. Eu desejo o melhor para você.

Quando cheguei à casa de Thomas fui recebida por Diana.


— Oi Liz, o Thomas não está, querida.
— Não? – Fiquei um pouco decepcionada.
— Não, ele disse que ia a um show daquele amigo...
— Josh?
—Acho que sim... Achei que ia com você...
Só então eu lembrei de olhar meu celular e havia algumas ligações
perdidas de Thomas.
— Ah, acho que ele tentou me chamar...
— O que é isso, parece pesado – ela apontou para o quadro na minha
mão.
— É um quadro. Um presente para o Thomas. Será que posso entrar e
deixar no quarto dele?
— Claro que sim. Você sabe o caminho.
Eu entrei e subi direto para seu quarto.
Deixei o quadro em um canto e pensei em esperá-lo ali, porém estava
ansiosa para compartilhar meus planos. Para contar que não teríamos que nos
despedir, porque eu iria embora com ele.

O show estava lotado naquela noite e ainda não era Josh que estava no
palco.
Eu fiquei procurando Thomas por entre as pessoas.
Não demorou para que eu o avistasse. Ele estava com uma cerveja na
mão e ria junto com alguns caras da banda de Josh.
— Oi – eu me aproximei.
Ele sorriu ao me ver me puxando pra ele.
— Oi, gata! – Sua boca desceu sobre a minha e eu ri me afastando.
— Podemos conversar?
— Agora? – Ele quase gritou por cima do som.
— Sim, não posso esperar! – Insisti, ficando séria.
Ele franziu a testa.
— Não vai me dizer que está brava comigo? Eu liguei mais cedo, para
te chamar e você não atendeu.
— Eu sei... Aconteceram umas coisas... Por isso quero conversar com
você.
Ele passou a cerveja para a mão de Josh que tinha acabado de chegar.
— Ei, aonde vão?
— Algum lugar com menos barulho – Thomas respondeu.
— O Backstage – Josh gritou atrás de nós e foi para lá que Thomas
me levou.
A próxima banda que ia tocar estava por ali, mas com certeza havia
menos barulho.
Assim que chegamos lá, Thomas me prensou contra uma parede e me
beijou. Por um momento eu pensei em esquecer a conversa e ficar de amasso
com meu namorado.
— Hum, você tem um gosto bom – ele mordeu meu lábio e eu ri.
— E você tem gosto de cerveja.
Em resposta, ele me prensou ainda mais apertado. E eu adorei.
— Que bom que veio, não deveria ter ido embora hoje à tarde – sua
boca fez um caminho até meu pescoço.
— Eu tinha que jantar com a minha mãe...
— Nosso tempo está se esgotando, não quero perder um minuto...
Eu respirei fundo e o afastei.
— É exatamente sobre isso que quero falar – mordi os lábios
contendo um sorriso – nosso tempo não está se esgotando!
De repente, ele desviou o olhar, passando os dedos nervosamente
sobre o cabelo.
— Liz, você sabia que eu estava indo pra Harvard. Nós só ficaremos
juntos por esta semana.
— Sim, eu sei que vai pra Boston na próxima semana. O que quero
dizer é que eu vou também! – Sorri largamente, toda empolgada.
Thomas franziu a testa.
— Não entendi.
— Eu vou com você pra Boston! – Me aproximei, minhas mãos
querendo tocá-lo, Thomas se afastou.
— Que papo é este? Você está indo pra faculdade aqui em Chicago.
— Não mais!
— Como assim!
— Olha, eu tomei minha decisão. Eu não vou mais pra faculdade. Eu
vou pra Boston. Com você.
— Liz... o que está dizendo... é absurdo.
— Não é não! Eu até já arranjei um emprego. Alan vai me ajudar, se
lembra dele? Meu ex-chefe? Ele tem um amigo lá. Eu já cuidei de tudo, vai
ser incrível!
— Liz... eu... – Thomas parecia verdadeiramente chocado e, de
repente, eu me senti compelida a tranquilizá-lo. Claro que ele estava chocado.
Eu estava despejando tudo em cima dele de uma vez, sem aviso.
Nós nunca antes tínhamos conversado sobre os rumos do nosso
relacionamento. Estávamos mais preocupados em vivê-lo.
— Quer dizer, sei que não conversamos sobre esse assunto, mas...
Thomas eu te amo – sussurrei o que ainda não tivera coragem de dizer em
voz alta – e eu quero ir com você aonde você for!
E ali, eu esperei pelas palavras que fariam eco com as minhas.
— Liz...
— Sim...
— Eu não quero que vá comigo.
Por um momento, eu não entendi.
— Thomas, sei que não esperava, mas eu estou segura, já tomei
minha decisão, eu te amo!
— Mas eu não te amo! – Sua voz saiu alta, por cima do som que a
banda começava a tocar, ensaiando.
Eu senti como se tivesse levado um tapa na cara. Ali, parada naquele
corredor escuro, com Thomas olhando pra mim atordoado depois de dizer
que eu estava enganada o tempo inteiro.
Ele não me amava.
Ele não queria que eu fosse com ele.
Ele não me queria.
Senti dificuldade de respirar.
— Você não me ama... – murmurei, como se para convencer a mim
mesma, porque era difícil de acreditar. Não podia ser.
Eu era inexperiente, mas eu não podia ter errado tanto.
Mas ele nunca disse em palavras, depois de tudo o que a gente viveu...
Oh Deus...
Eu não podia ter sido tão idiota...
— Eu achei... eu pensei... – uma lágrima solitária rompeu a barreira
dos meus olhos.
— Porra, Liz, não chora! – Ele levantou as mãos, como fosse me
tocar, desistiu no último segundo. – Inferno, eu achei que você tivesse
entendido que era só um lance.
— Um lance... – repeti as palavras.
— Sim, um lance bom pra cacete, mas era só.
— Oh Deus...
— Droga, não era pra você chorar!
— É você que está me fazendo chorar!
— Eu não posso te enganar. Nunca pensei que você acreditaria que
isso poderia continuar...
— Isso...
— Vem, para de chorar – ele se aproximou e tocou minhas lágrimas,
secando-as. Enquanto eu o encarava como se não o conhecesse.
E as palavras da minha mãe voltaram a minha mente.
No final, ela tinha toda razão. Eu fora burra de cogitar mudar toda a
minha vida por causa daquele cara. Aquele filho da puta egoísta diante de
mim.
Com um safanão, eu tirei suas mãos.
— Não me toca!
— Ei, Liz, calma. Não fica chateada comigo...
— Chateada?
— Eu não queria te magoar. Agora que já esclarecemos tudo,
podemos continuar, ainda temos uma semana...
Desta vez quando ele se aproximou, eu não hesitei em esbofetear seu
rosto.
— Tira suas mãos de mim! Seu... filho de uma puta! Minha primeira
impressão sobre você estava certa! Você é um cretino!
— Ei, está sendo exagerada...
— Exagerada? Você não ouviu nada do que eu disse? Eu me
apaixonei por você! Eu briguei com a minha mãe, eu defendi o nosso
relacionamento, defendi você! Ia largar a minha faculdade, minha vida, tudo,
por você! E você só quer me foder e ir embora! – Eu agora gritava e chorava
e não estava nem aí.
Thomas finalmente pareceu entender a magnitude do que eu estava
sentindo, pois sua expressão mudou de confusa para consternada.
No entanto, eu não queria nem saber. Eu não queria mais olhar pra
ele.
Nunca mais.
— Eu fui só mais uma, não é? Eu achei que eu fosse diferente... que
nós dois fossemos diferente...
— E eu que tivesse entendido que eu não me apaixono. Eu nunca me
apaixono, Liz – sua voz estava cheia de pesar. Mas, naquela altura, eu
duvidava que ele sentisse alguma coisa.
De repente uma voz feminina chamou seu nome.
— Ei, Thomas, o Josh pediu pra avisar que vai começar o show dele!
Eu vi a moça bonita e loira piscando pra Thomas com a voz macia, o
que me deixou com mais raiva ainda.
— Vai, é isso que quer. Está louco para se livrar de mim! Pois eu vou
facilitar para você! Adeus, Thomas!
Eu me virei e saí correndo, ignorando sua voz gritando meu nome.
Eu não sei como cheguei em casa. Quando abri a porta. Bárbara
estava lá.
E eu desabei de novo.
— Liz, filha...
— Você tinha razão, mãe... Eu estava tão errada... – ela me abraçou,
me levando para o sofá, secando minhas lágrimas.
— Ah filha, eu sinto muito... Eu te avisei...
— Achei que fosse diferente...
— Achou que ele fosse diferente?
— Achei que seria diferente comigo, me enganei completamente.
— É o que eu venho querendo te dizer há muito tempo. Amor não
vale a pena, baby. Você é uma mulher forte. Vai superar este idiota. Eu te
prometo. O tempo cura tudo.
Capítulo Onze

Thomas

Eu sei que estou no inferno quando vejo nos olhos de Liz exatamente
o que está se passando pela sua cabeça.
Mas que porra estava acontecendo com a minha vida ultimamente que
tudo dava errado?
— Oh, oi... – Emily teve a decência de dar um passo para trás,
enquanto esboçava um sorrisinho maroto. – Ops, acho que fomos pegos!
Inferno. Mil vezes inferno. Cala a boca, Emily. Cala essa sua maldita
boca.
Eu quero abrir a minha e dizer a Liz a famosa frase “não é nada do
que você está pensando”, porém, assim como ela, eu também perdi minha
voz.
E, silenciosamente, eu vejo seu olhar surpreso se transformar em
raivoso antes de ela dar meia volta e sair da sala.
— Nossa, será que ela vai contar pra alguém? – Emily continua,
alheia a merda que sua sedução estava causando – bom, eu nem ligo! – Suas
mãos voltam para meu jaleco, eu as afasto.
— Volte ao trabalho, Emily.
— Por quê? A gente ia se divertir...
— Não a gente não ia! – Ajeito minhas roupas e saio da sala, disposto
a ir atrás de Liz.
Claro que eu estava fazendo papel de trouxa novamente, indo atrás
dela.
Enchê-la com minhas explicações. Mendigar seu perdão.
Implorar por sua atenção.
Que tipo de masoquista eu tinha me transformado?
Hoje de manhã eu tinha acordado com o firme propósito de esquecer
de vez que Liz Spencer existia. Eu tinha dito a mim mesmo que não valia a
pena. Eu já havia me envolvido com ela uma vez, há oito anos, quando era
ingênuo o suficiente para acreditar que poderia ter algum tempo com ela e
partir como se nada tivesse acontecido. Com minhas emoções sob controle.
Como sempre fazia.
E as coisas não foram bem assim.
Eu deveria estar correndo agora.
Ainda mais depois de ontem, quando eu a prensara no armário me
lembrando exatamente o porquê de ela ser inesquecível. Era como se sua
boca tivesse sido moldada para a minha. Tudo nela encaixava perfeitamente
em mim.
E, em todos aqueles anos, eu nunca havia encontrado uma mulher
com quem tivesse aquele nível de afinidade física.
Então ela fugiu de novo. Jogou na minha cara que nunca mais poderia
existir nada entre nós. Ela não tinha esquecido ainda o que eu fizera há oito
anos. E inferno, o que eu fiz foi tão grave assim?
Eu só quis ser sincero. Eu sabia que nossa ligação era muito intensa.
Eu estava lá também, sabia como era perfeito quando estávamos juntos. Só
não sabia que ela tinha todos aqueles planos.
Aquilo me assustara pra caralho.
Possivelmente teria assustado qualquer cara da minha idade. Mas eu
era pior do que os outros caras porque, enquanto alguns apenas se divertiam
esperando que um dia fossem encontrar alguma garota que iria prendê-los, eu
tinha horror de me imaginar nessa situação. Eu não queria me apaixonar, eu
nunca iria me apaixonar. Nem por uma garota como Liz Spencer. Perfeita pra
mim em todos os sentidos.
Porra foi justamente por isso que eu me vi dizendo todas aquelas
palavras. Eu sabia que a estava magoando.
Eu tive vontade de amenizar. Tive vontade de dizer que eu sentia algo
também. Eu sentia mais do que era permitido, e por isso mesmo eu precisava
recuar e dar o fora.
Se havia uma garota que poderia derrubar o muro que eu tinha
construído em volta do meu coração de pedra, era ela. No fundo, ela já estava
começando a perfurar com pequenos golpes, bem lentamente, fazendo
pequenos buracos na minha resistência. Se tornando pouco a pouco essencial.
Eu não podia deixá-la a entrar de vez. Nem pensar.
Claro que eu não me preocupei. Eu iria para Boston em pouco tempo
e, naturalmente, nossa história acabaria ali. Descobrir que Liz pensava bem
diferente me desconcertara totalmente. Eu precisei terminar tudo.
Eu fui duro? Fui. Naquele momento eu só sabia que precisava fazê-la
desistir de mim. Porque, por um ínfimo instante, eu tive medo de ceder. Tive
medo de me deixar contagiar por aquela esperança tola que ela trazia em seu
sorriso quando disse que ia embora comigo.
Meu instinto de proteção falou mais alto.
Se eu lamentei pelo jeito que terminou? Claro que sim.
Se eu senti falta dela? Mais do que poderia imaginar.
Se eu me arrependi?
Bom, isso não fazia a menor diferença agora.
Muito tempo havia passado e, depois de Liz Spencer, eu nunca mais
deixei ninguém se aproximar o bastante. Era perigoso demais para minhas
convicções. Agora ela estava de volta. E não demorou muito para eu estar
procurando problemas de novo.
Como se não tivesse aprendido nada há oito anos.
Agarrá-la ontem foi regredir oito anos. Sentir-se miserável por ela ter
me parado foi regredir oito anos. Ficar puto quando minha querida irmã
comentou com falsa casualidade que vira a foto do namorado de Liz no
celular foi o estalo que me fez ver o quão atolado na lama eu estava.
E de novo surgiu a necessidade de fuga. O instinto de proteção
sobressaindo outra vez em minhas ações. Eu não podia deixar Liz se
aproximar de novo.
Então eu sufocara o desejo que tinha por ela ignorando o ciúme que
estava sentindo do seu suposto namorado.
E acordei esta manhã achando que tudo ia ficar bem.
E quando Emily entrou na sala de medicação se insinuando para cima
de mim, eu quis aceitar a oferta. Quis provar a mim mesmo que eu não estava
sob o domínio do feitiço de Liz Spencer como no passado, quando ela foi a
única.
Mas algo estava errado. Quando Emily sorriu colando seu corpo em
mim, eu não senti a mesma coisa de antes.
Na verdade, eu apenas me senti enjoado com seu perfume.
E exatamente naquele momento Liz entrou na sala e nos pegando em
flagrante.
E agora eu me sentia ridiculamente culpado. Como se a tivesse traído
ou algo assim. O que era absurdo.
E o que eu ia fazer? Porque se eu achava que a situação estava sob
controle, havia acabado de constatar que estava enganado. O fiasco com
Emily servira para me mostrar que Liz havia me estragado novamente para
outras mulheres. Eu só queria ela. Era simples assim.
Ou melhor, era terrivelmente complicado.
Porque, mesmo que eu estivesse disposto a me arriscar e me envolver
com ela de novo, ainda tinha o fato de ela estar ressentida com o que
acontecera no passado a considerar.
E por que ela guardara toda aquela mágoa? Se bem me lembro ela não
demorou a arranjar alguém para consolá-la pela decepção que lhe causei.
Me lembrar deste fato faz meu próprio ressentimento aflorar.
E eu me vejo transportado para oito anos atrás.
Oito anos antes

Dois dias.
Exatamente dois dias depois eu estava batendo na porta da casa dela.
Se eu ia pedir desculpas por ter sido um escroto insensível? Com
certeza.
Se eu queria dizer que eu estava arrependido? Talvez.
Se eu queria que ela insistisse mais um pouco para que eu pudesse
mandar meus medos a merda e mergulhar naquele lugar em que eu nunca
tinha estado chamado amor? Porra, sim.
Eu tinha me embebedado naquela noite, no show de Josh, porque seu
olhar de dor e decepção não saía da minha mente.
Eu queria esquecer. Tinha firme convicção que, apesar daquele vazio
que estava sentindo por ela não estar curtindo o show comigo, eu tinha feito
a coisa certa.
Eu não queria um relacionamento. Eu não queria amar ninguém.
E ela tinha dito que me amava. Puta que pariu.
Quanto mais bêbado eu ficava, mais escroto eu me sentia por tê-la
magoado. Cheguei em casa e me senti pior ainda por estar sozinho. Liz não
estava ali.
Eu nunca mais ia estar dentro dela de novo. E nunca mais ia abraçar
seu corpo morno antes de dormir.
Nem ouvir seu riso. Nem sua voz em meu ouvido.
Só o vazio.
E, na manhã seguinte, junto com a ressaca, veio o arrependimento,
quando eu vi que ela havia deixado seu quadro ali.
Diana me disse que ela viera na noite anterior me procurar e trazer o
quadro. Porra, ela havia dito que rompera com a vadia da mãe. Que ia sair da
faculdade.
Secretamente, eu tinha desejado que ela fizesse algo desse tipo.
Porque, mesmo estando com Liz há pouco tempo, eu sabia que ela não queria
ser médica. Ela era uma artista. Apesar de estar seguindo o caminho
escolhido por sua mãe.
E não podia deixar de sentir certo orgulho pelo fato de ela ter tido
coragem de romper com tudo.
E foi por mim. O cara que rejeitara tudo o que ela estava oferecendo.
Porra, ela podia ter falado comigo antes. Podia ter dito que esperava
mais do que estava oferecendo. Eu achei que ela soubesse. Que ela tivesse
entendido. Afinal, eu só tinha 22 anos e estava indo pra outra cidade e ela mal
acabara de completar 18. Eu não acho que eu fui tão sacana assim por ficar
assustado com seus planos.
Mesmo assim, eu me sentia meio canalha. Ela fora embora chateada.
E com certeza estava me odiando.
E eu já estava sentindo falta dela.
Então, sem nem pensar muito no que estava fazendo eu decidi ir atrás
dela.
Quem abriu a porta não foi Liz, e sim uma mulher ainda bonita de uns
trinta e tantos anos.
— Olá, quem é você? – Ela me mediu dos pés à cabeça com ar altivo.
E de cara eu soube que aquela era a mãe de Liz.
— Liz está? – Eu ignorei sua pergunta
— Minha filha não está, posso saber quem é você?
— Meu nome é Thomas Hardy.
— Ah, você é o tal namoradinho.
Eu me irritei com seu tom de voz, mas me contive.
— Você pode me dizer onde eu posso encontrar a Liz?
— Eu até poderia, mas minha filha não quer mais ver você.
— Eu prefiro ouvir isso da boca da Liz.
Ela sorriu cheia de ironia.
— Você acha que depois do que fez, ainda tem alguma chance? Não
seja tolo rapaz! Eu não criei a Liz para ser enganada pelos homens! Ela é
mais forte do que imagina e se pensou que ela estaria trancada em casa
chorando por você, se enganou! Ela já deu a volta por cima, exatamente
como eu a ensinei!
— O que está querendo dizer?
— Que ela está saindo com outra pessoa.
— Está mentindo.
— Por que eu mentiria? Você deve saber que antes de ela te conhecer,
ela saía com Alan, o chefe dela na galeria.
O quê? O que aquela mulher estava dizendo?
Ela continuou.
— Ele tirou a virgindade dela e para as mulheres isto é algo
importante, deve imaginar. Claro que ela se encantou com você, mas,
certamente agora que a descartou Liz percebeu que o melhor a fazer é
continuar se divertindo com Alan, um homem mais velho que sabe como
tratá-la. Ela está com ele novamente agora. Então, por favor, não a procure
mais. Vá para Boston e esqueça que minha filha existe. Porque nesse
momento é nisso que ela está trabalhando. Passar bem.
Capítulo Doze

Liz

Eu era um idiota.
Duas vezes idiota.
Thomas continuava sendo o mesmo cretino de antes. E eu a mesma
burra.
Saio bufando pelo corredor, querendo continuar caminhando até sair
pelas portas, desaparecendo de vez daquele hospital a da presença de Thomas
Hardy na minha vida de novo.
Para meu azar eu não posso. Eu sou adulta e aquela era minha vida
profissional. A vida que eu havia escolhido, depois de abrir mão de muitas
coisas para estar ali. Para construir uma carreira na medicina.
E pensar que um dia eu estive a um passo de jogar tudo para o alto e
seguir outro sonho. Justamente por causa da minha paixão por aquele cara
que no final não se mostrara digno de nenhum sentimento.
A decepção com Thomas servira para eu perceber que se deixar
dominar pelas emoções não levava a nada. Só significava sofrimento e
desilusão. Há erros que, por mais que desejássemos, não poderiam ser
consertados.
— Ei, aonde vai com tanta pressa?
Eu paro ao ouvir a voz autoritária atrás de mim e dou de cara com
uma médica loira e bonita.
Como era mesmo o nome dela?
— Doutora Paola – me lembro.
Ela me olha com exasperação.
— Está chorando?
Engulo em seco e passo os dedos pelas lágrimas que nem havia
percebido que estavam caindo.
Fico vermelha de consternação.
— Me desculpe – balbucio – sou uma idiota, é o que eu tenho a dizer
– desabafo e, para minha surpresa, a médica sorri complacente.
— Aposto que tem a ver com homens, ou estou enganada?
Eu dou de ombros.
— Clichê não é?
— Todas nós já passamos por isso em algum momento. Tente fazer
como eu. Nunca se apaixone. Os homens não merecem nos ter
completamente. Sou sempre eu que os tenho.
— Eu aprendi mais ou menos isso há oito anos. Infelizmente, bastou
alguns dias na presença dele novamente para eu estar prestes a cometer os
mesmos erros.
— Nossa você parece bem amarga e eu estou muito curiosa. Venha,
me ajude a analisar esses exames e você pode me contar sobre o idiota que te
fez chorar.
Sigo a médica, me sentindo meio aliviada por poder finalmente contar
a alguém o que me aflige quando Thomas aparece no corredor.
E seus olhos se fixam em mim.
— Liz, preciso falar com você.
— Oi, Thomas, sei que a Liz é sua interna, pedi a ela que me ajude a
analisar uns exames. Tenho certeza que achará outro para orientar.
E sem mais ela sai me puxando pelo braço.
— Obrigada – me vejo dizendo e ela me olha confusa.
— Pelo quê?
— Não poderia encarar o Thomas... quer dizer, doutor Hardy, agora.
Ela para, franzindo a testa fechando a porta da sala.
— Espere. Está me dizendo que quem fez você chorar foi o Thomas?
Fico vermelha imediatamente por ter revelado mais do que devia.
— Eu não disse isso...
— Foi isso que entendi... – A médica me encara com uma expressão
fria e especulativa agora que me incomoda.
— Tudo é tão embaraçoso. – Desvio o olhar, envergonhada.
— Hum... interessante – ela sibila devagar, com um olhar pensativo e
então de repente sorri. – Ok, vamos nos sentar e acho que os exames podem
esperar. Quero que me conte exatamente o que aconteceu.
Ela se senta e bate na cadeira diante dela.
Apesar de hesitante acabo fazendo o que ela pediu. Sinto-me
subitamente cansada física e emocionalmente.
E pensar que fazia somente alguns dias que estava convivendo com
Thomas de novo e ele já estava drenando toda a minha maturidade emocional
conseguida através dos anos e a duras penas.
— Então o Thomas já colocou seus dedinhos safados em você?
Eu coro miseravelmente.
— Não, eu não...
Ela ri.
— Não fique envergonhada. Todo mundo sabe o galinha que o
Thomas é.
— É...? – Eu não quero estar curiosa.
Eu não quero estar com ciúmes.
Mas estou.
— Sim, ele não vale um centavo em se tratando de mulheres. Ele já
deve ter fodido todas as enfermeiras e boa parte das médicas, com certeza.
Oh Deus. Eu não queria estar ouvindo aquilo.
A imagem de Thomas com a enfermeira Emily voltou a minha mente.
Então era algo corriqueiro? Será que eu fui também mais uma na
longa lista de garotas que Thomas já prensou contra os armários?
Pensar nisto me deixa com vontade de vomitar.
— Hum... parece mortificada. Achei que já soubesse. Afinal, a fama
do Thomas não é segredo.
— Eu estou aqui faz poucos dias. Claro que eu vi as internas todas
babando por ele, mas vê-lo hoje com a enfermeira Emily....
— Oh, Emily? – Paola parecia mais interessada agora. – O que foi
que você viu?
Eu dou de ombros.
— Acho que cheguei e atrapalhei a pegação dos dois – resmungo.
— Hum, entendi... E você?
— Eu?
— Sim, você estava chorando. Ficou magoada por vê-los juntos. Você
por acaso achou que seria a única a trepar com ele pelas salas escuras?
— Eu não trepei com ele!
— Não? – Ela levanta a sobrancelha.
— Ele me beijou – confesso – foi só isso. Eu caí em mim a tempo.
— Ah... E por que estava chorando? Por acaso está apaixonada por
ele?
— Não!
— Eu não entendo... Espera – ela me olha com atenção – você disse
que estava sendo idiota... de novo?
De repente, hesito, tentando descobrir se posso confiar naquela
mulher.
O que eu teria a perder? Parece que os casos do Thomas eram bem
conhecidos naquele hospital. E eu não queria que ela pensasse que eu era
mais uma na vida de Thomas.
Queria que ela entendesse que o que aconteceu entre nós ficou no
passado.
— Nós já nos conhecemos.
— Sério? Como assim? Tiveram um caso?
— Pode-se dizer que sim.
— Quanto tempo faz isso?
— Oito anos, como eu disse.
— Então eram muito jovens.
— Sim, eu era jovem e ingênua. Com certeza não sou mais.
— E o que aconteceu?
— Eu me apaixonei e ele me deu o fora, dizendo que nunca se
apaixonava.
Ela sorri de um jeito amargo.
— Sim, sei bem como é isso.
Eu a encaro desconfiada.
— Você também já ficou com o Thomas?
— Eu? Não! Eu sou noiva do pai dele.
Ai que merda!
Por que diabos eu tinha escolhido justo a noiva de Jack Hardy para
contar meus segredos?
— Olha, por favor, não fale sobre o que eu te contei a ninguém ok?
— Claro, eu não contaria.
— Nem para o doutor Jack Hardy.
— Você o conhece?
— Sim, brevemente. E eu estou evitando topar com ele.
— Por quê?
Eu me levanto, sentindo-me incomodada com todas aquelas
perguntas.
Estava começando a achar que Paola Becker não era apenas uma
mulher querendo satisfazer sua curiosidade inocente.
E me perguntava o que ela faria com as informações que eu dei a ela.
Eu esperava estar sendo paranoica. Por via das dúvidas, era melhor
parar. Antes que revelasse coisas mais sérias.
Estremeço só de imaginar.
— Calma, aonde vai?
— Eu preciso ir.
— Íamos verificar esses exames.
— Sinto muito, preciso mesmo ir...
Eu dou meia volta e saio da sala.
— Onde se meteu? – Jenny esbarra comigo no corredor.
— Estava com a doutora Paola.
— Jura? Ela é demais, não é? Parece que aqui todo mundo tem inveja
dela. Mas claro, ela é noiva do doutor Jack Hardy. E ele é um gato também,
já o viu? Nossa, que genes dessa família. Sem contar a Amber, que é linda e...
— Jenny, para de fofocar – Julie aparece – esqueceu que o Doutor
Thomas pediu pra gente encontrá-lo na sala de raios X?
— É mesmo! Vamos – antes que eu conseguisse fugir as duas me
puxaram pelo braço.
Eu estava querendo fugir mesmo antes de entrar na sala, para meu
alivio, não era Thomas que estava lá e sim Chloe e Amber.
— Cadê o Doutor Thomas? – Jenny pergunta.
— Ele foi chamado pra ver um paciente. Quarto 230. – Chloe
responde e sorri pra mim. – Oi Liz, como está? Vamos almoçar juntas?
— Desculpe-me, não vou almoçar.
— Como assim? – Amber indaga – realmente, está meio abatida.
— Acho que eu vou ficar resfriada – minto.
— Liz, vamos logo! – Jenny me puxa de novo.
— Nossa você é amiga da Amber e da Chloe?
— Mais ou menos...
— Que sortuda! Elas não me chamam pra almoçar...
— Deixa de ser invejosa Jen! – Julie reclama e nós entramos no
quarto.
Eu fico atrás das duas, ao ver que Thomas está ali com Mark.
E, para minha consternação Emily também está presente, mexendo no
soro do paciente.
— Mark, estou esperando sua resposta... – Thomas diz friamente a
Mark e então seu olhar recai em mim.
Parece frustrado e irritado.
Pois que explodisse. Eu não me importaria.
— Está respirando mal, tem febre, é pneumonia. Iniciei os
antibióticos – Mark responde balbuciando, todo inseguro.
Thomas finalmente desvia o olhar de mim.
— É este o diagnóstico?
— Embolia pulmonar – Julie se intromete.
— Sim, Julie. Pode ser. Você e o Mark levarão o paciente para fazer
uma radiografia completa. – O olhar dele recai sobre mim.
— E você vem comigo.
Merda!
— E eu? – Jenny pergunta ansiosa.
— Você pode ir com eles.
— Por que, eu...
Thomas ignora Jenny e sai da sala.
Eu penso em ignorar sua ordem e não acompanhá-lo, ainda mais
quando meu olhar cruza com Emily que sorri presunçosamente.
Naquele exato momento, outra enfermeira entra na sala e diz que o
Doutor Jack Hardy está chamando Emily.
Eu desvio o olhar da enfermeira e saio atrás de Thomas.
Ele segue pelo corredor até que estejamos num saguão vazio.
— O que estamos fazendo aqui? – Pergunto com toda a frieza que sou
capaz.
— Nós precisamos conversar.
— Não temos nada para conversar, Thomas.
— O que viu com Emily, não era nada...
— Eu não quero saber – o corto – é problema seu se come todas as
mulheres deste hospital!
— Eu não...
— Nem tenha a cara de pau de negar! Pelo o que sei não é segredo
pra ninguém.
— Inferno, Liz! – Ele passa as mãos pelos cabelos frustrado.
— O que pretendia Thomas? Que eu fosse para algum canto escuro
com você? Iria me comer até se fartar e então me jogaria em algum lixo
hospitalar como todas as outras?
— Liz...
— Nem tente negar, sei muito bem que sempre foi somente isso que
quis comigo! Nunca signifiquei nada pra você!
— Porra, por que guarda tanto ressentimento de mim?
— Ainda pergunta?
— Já se passaram oito anos, Liz!
— Sim, oito malditos anos e infelizmente eu tive o azar de topar com
você de novo. E de novo você quer me ferir!
— Eu não quero te ferir!
— Então o que quer?
— Eu quero você! Inferno, é tão difícil assim entender?
— Pra que, Thomas? Me diz? Acha que vai ser diferente agora? Por
que eu devo imaginar que você mudou? Que ia querer algo mais do que
gastar um tempo fazendo sexo comigo?
— Se você quiser a mesma coisa, qual o problema? Somos adultos e
podemos lidar...
— Ah cala a boca! Eu sabia! Você continua igualzinho! Não
amadureceu nem um dia! Continua o mesmo galinha egoísta! Pois saiba que
eu não sou a Emily! Não sou idiota pra cair na sua lábia de novo, então, faça
o favor de ficar bem longe de mim!
E sem aguentar mais, dou meia volta e me afasto de Thomas.
E espero que dessa vez seja definitivo.
Eu me enfio na sutura, mesmo sem ninguém pedir e passo a manhã
cercada de ataduras, limpando minha mente de toda a merda que vinha
acumulando na minha vida.
Eu só queria paz. Era tão difícil assim?
Como é que teria paz com Thomas me rondando?
Que garantias eu tinha de que ele ia se manter longe de mim?
E pior, que garantias tinha de que eu iria conseguir resistir? No fundo,
esse era meu maior medo.
Termino a manhã e, mesmo sem estar com fome, estou procurando
alguém para ir almoçar comigo, quando a Jenny me aborda.
— Você já ficou sabendo?
— O que houve?
— A enfermeira Emily foi demitida.
— O quê?
— Sim! E não sabe da maior, parece que foi demitida porque pegaram
ela se amassando com o Doutor Thomas Hardy
Puta que pariu!
Eu fico chocada. Então foi isso que Paola fez com a informação?
Dedurou Emily?
O que ela ganharia fazendo isso?
— É um absurdo Jenny! Parece que o Thomas pega todas as mulheres
do hospital por que demitiriam a Emily?
— Eu não faço ideia, só sei que é o que está circulando por aí!
— Eu ainda acho que é uma fofoca sem sentido... – balbucio.
— E eu que é uma a menos! Agora posso voltar a fila do doutor
delícia...
— Liz, ainda bem que te encontrei! – Julie aparece.
— O que foi?
— O Doutor Hardy pediu para te chamar.
— O Thomas?
— Não. O Doutor Jack Hardy. Disse que é para você ir
imediatamente na sala dele.
Eu caminho para a sala do diretor do hospital como alguém indo para
o sacrifício. Eu sabia o que ia acontecer. Bem lá no fundo eu já sabia. Só não
queria acreditar.
Eu nem sei o que temia mais.
O fato de estar prestes a ser demitida, na minha primeira semana de
trabalho. Ou o famigerado reencontro com Jack Hardy.
Respiro fundo e bato na porta abrindo-a.
E como eu temia, lá está ele.
Jack Hardy me encara com um grave semblante de assombro.
— Elizabeth Spencer. Quando me disseram seu nome, eu achei que
era uma coincidência. Vejo que me enganei.
Engulo em seco.
— Estou surpreso de saber que veio trabalhar aqui. Achei que gostaria
de ficar bem longe do Thomas.
— Eu não sabia... – minha voz sai alquebrada.
— Ah, entendo. E entendo ainda menos o que vieram me contar. E
sabe do que estou falando. Então, dadas as circunstancias, acho melhor irmos
direto ao assunto. Você está demitida.
— Vai demitir todas as garotas que se esfregaram no seu filho? Não
vai sobrar muita gente! – Digo cheia de sarcasmo.
— Nenhuma delas tem um passado com ele.
Eu estremeço. Medo e dor se mesclando dentro de mim.
— Nós dois sabemos que é melhor para todos que vá embora.
Sinto vontade de chorar.
— Sim, percebo que entende. Eu sinto muito. Não tem como ser
diferente.
Eu quero gritar. Quero dizer que ele não tem o direito.
Me calo, sei bem no fundo que ele tem razão. Eu deveria ter ido
embora quando vi Thomas naquele hospital. A cada dia que eu passava perto
dele só piorava tudo.
— Sim, tem razão.
Sem conseguir mais ficar na frente dele, dou meia volta e me arrasto
para o vestiário. Eu estou ali, arrumando minhas coisas, quando Thomas
aparece.
Seu rosto é uma máscara de consternação.
— É sério? Meu pai te demitiu?
Eu não respondo e continuo a arrumar minhas coisas.
— Liz, porra, me responde! – Thomas grita.
Eu levanto o olhar.
— Sim, é verdade.
— Isto é absurdo!
— Eu não deveria estar aqui mesmo... – volto a arrumar minha bolsa.
— Inferno, Liz! Claro que é absurdo! Ele não pode te demitir!
— Por que não? Achei que iria ficar feliz em se livrar de mim!
— Sabe que não quero que vá embora, merda!
— Não? Pode não ser agora, mais dia menos dia iria querer! Então
seu pai só antecipou minha saída.
— Não! Ele não tem o direito! Foi aquela cobra da Paola, Emily me
disse, isso não vai ficar assim, eu vou agora falar com ele...
— Não! – Afirmo categoricamente. Não quero que Thomas vá
interceder por mim. Só pioraria tudo.
— Eu não vou deixar você ir embora!
— Seu pai não vai permitir que eu fique!
— Por que não, porra? Ele não tem nada a ver com o que aconteceu
com gente! Nem antes nem agora!
— Você não entende Thomas... – pego minha bolsa, louca pra fugir
dali. O nó no meu peito estava ameaçando se romper.
— Não entendo mesmo! O que meu pai pode ter contra você?
— Me deixa ir, Thomas...
— Não! – Ele segura meu braço, me impedindo. – Nós vamos agora
na sala do meu pai e vamos acabar com essa merda!
— Não! Eu não quero olhar pra cara do seu pai de novo!
— Por que não? Que diabos está acontecendo? Por que está cedendo
em algo que não tem nada a ver...
— Porque eu estive grávida – grito, as compotas finalmente se
rompendo – eu estive grávida de você e seu pai sabia!
Oito anos antes

Eu nunca imaginei que estaria na casa dos Hardy novamente. Então lá


estava eu, quase cinco meses depois que Thomas me deu o fora partindo para
Boston sem olhar para trás, batendo na sua porta novamente.
Estar ali suscitava uma infinidade de lembranças que eu gostaria de
manter enterradas para sempre. Assim como todo meu amor que fora em vão.
Eu vinha lutando para esquecer e seguir minha vida. Faculdade, novos
amigos e até mesmo alguns flertes. E, mesmo ainda chorando muitas vezes
antes de dormir, eu sabia que a dor ia passar. Era só dar tempo ao tempo. Não
era o que diziam? Ninguém morria de amor. Muito menos sofria por causa do
primeiro amor pelo resto da vida. Eu ia esquecer Thomas mais dia menos dia.
Só não queria me apaixonar novamente. Nem pensar. Daquele sentimento, eu
estava vacinada. Estava tudo sob controle.
Até dois meses atrás, quando notei que minha menstruação estava
terrivelmente atrasada. Ou melhor, eu não menstruava há mais de dois meses.
A mudança de rotina e o estresse de um novo ano letivo na faculdade tinha
me consumido e eu nem havia percebido esse importante detalhe.
Achei que podia ser algum problema ginecológico. Nunca imaginei o
que a médica me revelaria depois de uma batelada de exames.
— Isso não pode estar certo – balbuciei para a médica que suspirou,
tirando os óculos e sorrindo complacente.
— Não há nenhum engano, senhorita Spencer. Você está grávida. De
doze semanas.
Daquele momento em diante, meu pesadelo havia começado pra
valer.
Nos primeiros dias eu apenas deixei o tempo correr, ainda em choque,
sem saber o que fazer. Depois me bateu a realidade e entrei em pânico,
principalmente pensando na minha mãe e na morte lenta que ela me faria
passar quando descobrisse.
E então veio Thomas.
Porque, afinal de contas, aquela gravidez era tanto responsabilidade
minha quanto dele.
Nós usávamos preservativos na maioria das nossas transas, porém,
algumas vezes a gente brincou com o perigo, achando que nada ia acontecer.
Como fomos estúpidos.
E agora eu estava sozinha. E grávida.
Thomas estava em outra cidade e certamente nem se lembrava da
minha existência. O que eu ia fazer?
Passei semanas com aquele problema fermentando dentro de mim,
seguindo os dias vendo meu corpo mudar assustadoramente. Comecei a usar
roupas largas e a inventar desculpas esfarrapadas para não ver meus amigos.
Até Peter, um cara muito legal que tinha se tornado um dos meus
amigos mais próximos, eu afastei.
Ninguém podia saber.
Então um dia, me toquei que não podia continuar ignorando o
problema para sempre. Eu estava grávida de quase cinco meses e minha
barriga já começava a ficar difícil de disfarçar.
Decidi comunicar a Thomas.
Como não fazia ideia de como entrar em contato com ele em Boston,
liguei para a casa dos Hardy e, para minha sorte (ou azar, dependendo do
ponto de vista), a empregada disse que naquele fim de semana Thomas estava
em casa visitando o pai.
E agora eu estava defronte à casa dele, tentando juntar coragem
suficiente para enfrentá-lo de novo e jogar a bomba.
Eu não fazia ideia do que ia acontecer quando ele soubesse, também
não tinha a menor condição de passar por aquilo sozinha.
Uma senhora latina abriu a porta e sorriu pra mim.
— Olá, veio para a festa do senhor Thomas? Estão todos na piscina.
Festa?
Passei pela empregada maldizendo o momento em que decidi ir
direto, sem ligar antes avisando. Mas temia que Thomas não quisesse falar
comigo depois de tudo.
Segui a música que ia ficando cada vez mais alta e como a empregada
dissera, a área da piscina estava repleta de gente.
O som estava alto e rapazes sarados e garotas de biquíni circulavam
livremente.
Caminhei por entre as pessoas, meus olhos procurando Thomas e me
detive quando olhei na piscina e o vi.
Lá estava ele. Rindo e abraçando uma garota ruiva, que se pendurou
nele e beijou sua boca.
Eu tive uma vontade súbita de vomitar com aquela cena. Uma onda
insana de ciúme fazendo um nó fechar minha garganta.
— Ei, não está vestida demais para uma festa na piscina? – Uma
garota loira disse do meu lado e eu desviei o olhar de Thomas amassando a
garota na piscina. – Ah, também está de olho no Thomas? Entra na fila! A
Charlote já é a segunda que ele beija hoje...
Ah Deus!
Temendo dar um vexame, eu corri dali, entrando na casa e achando
facilmente o lavabo, onde me joguei em cima do vazo, vomitando todo meu
ultraje.
Depois de alguns minutos que pareceram horas, finalmente me
recompus. Lavei meu rosto e olhei meu semblante pálido no espelho.
Estava decepcionada por ter ido atrás de Thomas, achando que ele
poderia me ajudar de alguma maneira.
O que é que eu esperava afinal?
Thomas era imaturo e egoísta. A cena na piscina só mostrava que ele
estava muito feliz com sua vida do jeito que era.
Ele estava curtindo sua vida alheio a meu sofrimento.
Como sempre.
Contar pra Thomas sobre minha gravidez não ia adiantar nada. Um
cara como ele, certamente voltaria pra Boston sem olhar para trás e me
deixaria sozinha pra resolver aquilo.
Irritada comigo mesma, eu saí do banheiro e dei de cara com Jack
Hardy.
— Liz, o que faz aqui? – Perguntou surpreso ao me ver.
— Nada. Eu já estou indo embora – tentei passar, ele segurou meu
braço.
— Não me parece bem. Nem sabia que continuava em contato com
Thomas, achei que tivessem terminado quando ele foi para Harvard.
— Sim, nós terminamos e eu nem deveria estar aqui...
— Você não me parece nada bem. Estava vomitando? Bebeu muito
na festa?
Eu soltei uma risada amarga.
— Se fosse isso seria tão mais fácil...
O médico franziu a testa e me mediu, e então seu olhar escureceu de
choque quando chegou ao meu rosto.
— Você está grávida – não era uma pergunta.
E eu não consegui negar.
Na verdade, eu estava ansiando por dividir aquele segredo. Estava
cansada de passar por tudo sozinha.
— Meu Deus... – Jack parecia em choque agora – Thomas sabe?
— Não. Eu vim contar a ele, acho que não é um bom momento.
— Não, não é... – Jack ficou pensativo – certamente é um péssimo
momento...
— Olha, me deixa ir...
— Não. Venha comigo – ele segurou meu braço com força e me
levou até um escritório. – Sente-se aí.
Obedeci e Jack me serviu um copo de água.
— Está grávida de quanto tempo?
— Quase cinco meses.
— Isso é péssimo. Devia ter me procurado quando ainda dava tempo
de abortar.
— O quê?
— Não me diga que está pensando em ter esse bebê com Thomas! –
Exasperou – seria absurdo. Thomas está apenas no primeiro ano da escola de
Medicina! Não tem a menor condição de ter um bebê!
— Eu também não tenho, acha que queria isso?
— Se não quer ter o bebê, por que esperou tanto? O que pretendia
contando ao Thomas agora?
— Eu não sei! Sinceramente, não sei. Eu me sinto perdida!
— Poderia ter se prevenido melhor, nada disso teria acontecido...
— Eu não engravidei sozinha! Seu filho tem tanta responsabilidade
quanto eu!
— Sim, claro que sim. Por isso deveria ter nos procurado mais cedo.
Poderíamos fazer um procedimento rápido. Agora precisamos pensar numa
solução... – ele passou os dedos pelos cabelos, completamente frustrado. –
Essa gravidez não pode atrapalhar a vida do Thomas. Nada pode atrapalhar
seus estudos nesse momento...
Suspirei cansadamente.
— Eu nem deveria ter vindo aqui... Vou embora. – me levantei.
— Espere Liz. Eu sei que isso é tão ruim para você quanto pra
Thomas. Quantos anos tem? Dezoito não é? É uma criança ainda. E está na
faculdade também, o que sua mãe tem a dizer sobre isso?
— Ela não sabe. Não tive coragem de contar. Ela me matará quando
souber.
— Bom, ela terá que saber em algum momento. Devo entender que
ela também pensa como eu?
— Com certeza. Na verdade, acho que vocês são muito parecidos.
Minha mãe é médica também.
— Médica? Qual o nome dela?
— Bárbara Spencer.
— Você é filha de Bárbara? – Jack arregalou os olhos.
— Conhece minha mãe?
— Claro que sim. Já trabalhamos juntos inclusive. Nossa, que mundo
pequeno.
— Sim... – balbuciei.
— Bom, acho que posso conversar com sua mãe e chegaremos a
alguma solução...
— Não! Por favor, não conte a minha mãe.
— Como pretende esconder seu estado por mais tempo? Mal
consegue disfarçar sua barriga.
— Esse é um problema meu.
— Eu só quero ajudar, Liz.
— Acho que vou dispensar sua ajuda.
E sem mais, eu dei meia volta e saí da sala e da casa dos Hardy.
Eu não deveria ter ficado surpresa por Bárbara aparecer no meu
apartamento furiosa naquela noite.
— Diz que não é verdade... Como pode fazer isso comigo? – Gritava.
— Com você? Acha que eu fiz de propósito?
— Ficar grávida, Liz? Que irresponsabilidade!
— Eu sei, ok? Não adianta ficar me dando sermão agora!
— Sermão? Você merecia muito mais! Está grávida de cinco meses e
escondeu de mim todo esse tempo!
— Justamente porque sabia que ia ficar furiosa!
— Eu estou furiosa e decepcionada! Como pôde errar desse jeito? Eu
te eduquei tão bem! Como pôde cometer os mesmos erros que eu? Eu não
quero isso pra você! – Ela começou a chorar e eu não pude segurar as
lágrimas também.
— Me desculpa mãe... eu sei que fui uma idiota.
— Ah filha... – ela me abraçou e nós choramos juntas.
— O que eu vou fazer mãe? – Perguntei quando ambas estávamos
mais calmas.
— Não se preocupe. Vamos dar um jeito.
— Como? – Eu a encarei.
Naquele momento eu me sentia com cinco anos de idade, querendo
que minha mãe resolvesse todos os problemas.
— Acho que a única solução é a adoção.
Adoção?
Eu não sabia o que pensar.
No fundo, eu tinha evitado pensar em todos aqueles meses. Tinha
enfiado minha cabeça na terra e simplesmente ignorado o fato mais
importante de toda aquela situação: Havia um bebê crescendo dentro de mim.
Um ser vivo, que iria nascer em pouco tempo. Um filho.
Estremeci de horror.
Como poderia ser diferente? Eu tinha apenas dezoito anos. Nunca
havia pensado em ter filhos. Fui criada por uma mãe que deixava claro todos
os dias que a gravidez havia sido o maior erro da vida dela.
Uma mãe que, por mais que tivesse boas intenções, estava longe de
ser um modelo materno. Bárbara era mais uma orientadora do que uma mãe.
Então que tipo de mãe eu seria? O que eu teria a oferecer a uma
criança?
E o que era pior, sozinha.
Com certeza Thomas não estava nem aí. Me perguntei se Jack Hardy
teria contado a ele. Se sabia, não tinha dado a mínima. Certamente já teria
corrido de volta pra Harvard.
Então o que eu podia fazer?
Eu sabia bem lá no fundo que a solução sugerida pela minha mãe era
a melhor a diante das circunstancias.
Eu só tinha dezoito anos, havia acabado de entrar na faculdade, estava
sozinha, sem o apoio do pai da criança e desconfiava seriamente que minha
mãe nunca me apoiaria se eu decidisse criar aquele bebê.
Mas... adoção?
Eu não tinha certeza se conseguiria. Também não tinha certeza se
conseguiria arcar com todas as responsabilidades de ter e criar um bebê.
— Filha sei que está confusa e com medo – Bárbara continuou – eu já
estive na sua situação. E me deixei convencer por seu pai a não abortar e ficar
com você. Não foi fácil! Eu não desejo que aconteça o mesmo com você!
Quero que tenha uma carreira brilhante, sem empecilhos!
— Como eu fui pra você – murmurei amarga.
— Não posso dizer que não foi! Essa é a verdade! As pessoas
romantizam demais a maternidade, a verdade é que não é fácil!
— E se eu resolver tentar?
— Não vou apoiá-la Liz! Não posso deixar você estragar sua vida
desse jeito. E sabe que tenho razão. Não está preparada para ser mãe. E com
certeza o filho de Jack Hardy muito menos.
— Ainda acho incrível que esse tempo todo você e o pai do Thomas
se conheciam...
— Eu também fiquei passada quando ele me procurou hoje! Não via
Jack há anos! Não fazia ideia que seu namorado era filho dele!
— E o que ele acha disso tudo?
— Ele pensa como eu. Que a melhor solução é dar a criança para
adoção.
— Eu não sei. É algo muito sério...
— Sim, claro que é. Vá descansar. Eu deixarei que pense sobre o
assunto. Quando pensar melhor, verá que é a melhor solução.
Eu me levantei para ir dormir, então algo me ocorreu.
— Jack disse se Thomas já sabe?
— Ele não contou ao filho. Aliás, Thomas já voltou para a
universidade essa noite. – Bárbara me analisou. – Acha que faria alguma
diferença ele saber?
— Eu sei que ele é mais imaturo do que eu e que vai fugir correndo
quando souber, porém, talvez o certo seja ele saber também. Afinal, tem
participação.
— Sim, ele é tão responsável quanto você. Mas Jack disse que não
quer preocupá-lo. Ele está em época de provas importantes. – Bárbara riu
com ironia – está vendo como são as coisas? Esse Thomas não passa de um
mimado! O cara que deu o fora em você daquele jeito com certeza não vai
querer lidar com as consequências de uma gravidez indesejada.
Eu não dormi naquela noite, pensando no que fazer.
Nunca me senti tão sozinha e com tanto medo na minha vida.
O bebê já se mexia na minha barriga e eu senti vontade de chorar.
No fundo, existia um desejo latente de ser capaz de proteger e cuidar
daquele bebê dentro de mim.
Não era o que as mães faziam? Como eu saberia fazer isso? Como eu
poderia? Bárbara tinha razão. Eu não estava preparada. E Thomas muito
menos.
Naquele momento eu senti um ódio enorme de Thomas Hardy. Era
tudo culpa dele. Culpa dele que tinha feito eu me apaixonar apenas para me
abandonar depois.
Culpa dele que eu estivesse grávida e sozinha.
De novo ele era o culpado de todo o meu sofrimento.
No dia seguinte, eu concordei com Bárbara sobre a adoção.
Com sua influência, ela conseguiu que eu ficasse fora da faculdade
por quatro meses, apenas fazendo trabalhos sem que minha ausência me
prejudicasse.
E me disse para não me preocupar com nada, que cuidaria de todo o
processo de adoção.
— Eu só quero que me prometa que escolherá uma boa família. – Eu
não podia cuidar daquela criança, mas eu queria me certificar que ela seria
amada e teria uma vida boa. Uma vida que eu nunca tive e que não saberia
dar a ela.
— Não deve se preocupar com nada. Eu tomarei todas as
providências para escolher uma boa família com certeza.
— Sim, é só o que eu desejo.
Quatros meses se passaram e, num dia frio de inverno, aconteceu a
minha cesariana.
Bárbara esteve comigo o tempo inteiro e tudo ocorreu muito
tranquilamente.
— Pronto querida. Já nasceu – Bárbara disse passando a mão por
meus cabelos – deve descansar agora.
— Posso vê-la? – O médico já havia me dito que era uma menina.
Bárbara sorriu complacente.
— Melhor não. Será mais fácil...
— Por favor. Só uma vez.
— Eles vão cuidar dela agora. Depois veremos...
Quando me levaram para o quarto, Bárbara desapareceu, certamente
para cuidar da burocracia para a adoção.
E eu aproveitei para pedir a enfermeira para trazer a criança.
Ela entrou no quarto, segurando um pequeno embrulho e colocou no
meu colo.
Olhei para o rosto branquinho e ainda marcado do parto do bebê em
meus braços. Ela abriu os olhos e pousou em mim. Eram como os meus. Mas
os cabelos eram no mesmo tom de Thomas. Ela era linda e eu senti um misto
de alegria e tristeza naquele momento.
— Eu sinto muito, bebê. Eu queria tanto ficar com você...
infelizmente eu não posso. Espero que possa me perdoar um dia e entender
que estou fazendo isso para o seu bem. Você vai ter uma família de verdade.
Vai ser amada. Vai ser feliz. É tudo que eu desejo para você.
— Eu preciso levá-la de volta – a enfermeira me interrompeu
momentos depois.
Eu senti um nó na garganta, mas segurei o choro.
Não queria chorar. Não queria lamentar. Eu estava fazendo a coisa
certa.
Me permiti beijar seu rostinho branco, me despedindo. E deixei que a
enfermeira a levasse.
Foi última vez que eu vi a minha filha.
Foi a última vez que eu me permiti pensar nela nesses termos.
A partir do momento que a levaram de mim, eu não era mais mãe.
Não tinha mais filha.
Eu tinha ficado curiosa para saber quem era a família que iria adotar,
mas decidi não perguntar a Bárbara. Seria melhor assim. Nenhum vínculo.
Nenhuma possibilidade de me arrepender.
Eu nunca poderia voltar atrás.
Eu só poderia, dali em diante, seguir a vida, como se ela não existisse,
guardando o amor que eu não podia sentir por ela escondido bem no fundo do
meu coração.
Lá onde estava o amor que o pai dela tinha rejeitado uma vez.
Capítulo treze

Thomas

Eu provavelmente não tinha ouvido direito.


Um zunido cada vez mais alto parecia que ia fazer minha cabeça
explodir, enquanto eu encarava Liz com assombro.
— O quê? – Balbuciei confuso, esperando que ela desfizesse o mal-
entendido horrível.
Liz recuou, com a mão na boca, perdida em seu próprio choque.
Sua cabeça vai de um lado para outro em negação.
Eu não posso deixá-la ir. E, quase com violência, seguro seus ombros.
— Que diabos está dizendo? Liz? Responda! – A sacudo.
Ela tira a mão da boca e vejo uma lágrima escorrendo de seu rosto
derrotado.
— Você ouviu...
— Não – a negação sai da minha boca, bem como minhas mãos de
seus ombros.
— Eu queria que não fosse verdade, mas é – sua voz não passa de um
sussurro.
Então eu finalmente começo a acreditar. Não há mentira em suas
palavras.
Liz está falando a mais pura verdade. Ela esteve grávida. Há oito
anos.
Sinto o ar me faltar enquanto processo aquela informação assustadora.
Liz grávida.
Eu a deixei grávida. Puta que pariu!
— Você estava grávida quando a deixei? Por que não me disse? Por
quê...
— Eu não sabia, eu só descobri quando você já tinha ido embora –
ainda há um mundo de rancor em suas palavras.
— E daí? Você sabia onde eu estava! Podia ter me procurado, podia
ter me contado!
Ela ri. Um riso sem o menor humor.
— Fala sério, Thomas! Até parece que iria adiantar alguma coisa!
Você se livrou de mim como se livra de um sapato velho! E estava muito
feliz com suas festinhas e garotas fáceis!
— Eu não fazia ideia! Porra, Liz! – Eu estou furioso.
Por que demônios eu só estou sabendo daquela merda toda somente
agora? Depois de oito anos?
Então algo que ela havia dito retornou a minha mente.
— Você disse que meu pai sabia...
— Sim ele sabia
— Por que ele sabia e eu não?
— Porque quando eu fui atrás de você na sua casa, você estava se
atracando com várias garotas numa piscina.
— O quê? Que diabos – De repente eu me lembro. A festa da piscina,
num feriado que passei em casa.
Então Liz havia estado na minha casa naquele dia?
— Por que não falou comigo? Por que foi direto ao meu pai?
Ela dá de ombros.
— Eu passei mal. Ele me encontrou e eu contei a ele o que seus olhos
médicos já desconfiavam.
— Aquela festa foi cinco meses depois que eu fui embora...
— Sim, eu demorei isso tudo para ter coragem de ir atrás de você. Ou
de contar a alguém.
Passo os dedos nervosos pelos meus cabelos, puxando os fios, em
frustração e raiva.
Está sendo difícil de processar tudo.
E nem havia chegado ao cerne da questão.
A pergunta mais importante.
— E o que aconteceu?
Ela engole em seco e desvia o olhar.
— Esquece Thomas... – pega sua bolsa, disposta a fugir.
Eu a seguro de novo.
— O que diabos aconteceu? Você fez um aborto? – Era a resposta
mais plausível. Porque ela havia dito “eu estive”, num passado. E não “eu
tive um filho”.
Ela fecha os olhos com força, sacudindo a cabeça negativamente.
— Thomas, por favor, me deixa ir... esqueça... foi há oito anos... não
posso...
— Porra, Liz, você começou, agora termina! O que aconteceu?
Ela abre as pálpebras e a dor que vejo em seu olhar, me atinge em
cheio.
— Nós tivemos uma filha – murmura.
Sinto dificuldade para respirar.
— Você teve um bebê – eu não podia acreditar.
Todo aquele tempo...
Não podia ser.
— Nós temos uma filha?
Ela começa a chorar.
— Não, não temos Thomas. Ela nasceu, mas não é nossa. Nunca foi.
— Que diabos está dizendo?
— Ela foi adotada.
Minhas mãos não têm mais forças para segurá-la, quando ela escapa
de mim.
Eu não tenho mais forças.
— Eu preciso ir... – ela sai do vestiário correndo e eu não consigo me
mover.
Não consigo respirar. Pensar. Viver.
Liz estava grávida quando eu a deixei. Ela teve uma filha sozinha.
Uma criança que ela deu para adoção.
Respiro uma longa golfada de ar quando finalmente entendo toda a
minha nova realidade. Uma realidade que eu não fazia ideia que existia.
Uma vida que se passava a minha volta, alheia à minha vontade.
Uma criança.
Uma menina.
Uma filha.
Meu coração se contrai. Minha mente automaticamente constrói a
ideia de Liz grávida. A ideia de ela segurando um bebê.
Meu bebê. Nosso.
Não é nosso. Nunca foi, ela disse.
Ela deu a nossa filha.
Não nos pertence mais.
Há oito malditos anos. Oito anos que eu vivi sem fazer ideia que
havia gerado uma criança com Liz. E meu pai sabia.
A verdade bate em mim como um soco no estômago roubando o ar.
E eu saio do vestiário atrás daquele em quem eu mais confiava no
mundo
E que tinha me escondido a verdade mais preciosa de todas.
Eu irrompo na sala do meu pai com todos os demônios nos meus
ombros.
— Você sabia – apenas essas palavras. Duras. Frias. Palavras simples
que contém uma infinidade de significados terríveis.
Ele levanta o olhar de alguns exames que analisava e vejo pela sua
expressão que sabe do que estou falando.
Mesmo assim, percebo o ínfimo de segundo no qual o honorável Dr.
Jack Hardy retoma o controle, sua mente analítica certamente tentando achar
uma saída plausível para minhas acusações.
Seus dedos elegantes retiram os óculos e, quando ele crava os olhos
azuis límpidos em mim, não há mais hesitação.
— Do que está falando, filho?
— Você sabe muito bem. Liz me contou.
Ele suspira. Se levantando e dando a volta na mesa.
Eu respiro como se tivesse corrido uma maratona. Frustração e raiva
borbulhando no meu interior.
Estou prestes a explodir e ainda assim, há uma pequena parte de mim
que espera que ele desminta tudo. Que diga que há um tremendo engano ali.
Não há criança. Nunca houve gravidez.
Tudo vai voltar a ser como sempre foi. Quero desesperadamente que
volte a ser.
— Eu sabia que essa garota nos traria problema. Se tivesse me
contado antes que ela estava trabalhando aqui, eu teria dado um jeito.
— Pare de dar voltas! – Grito, meu controle começando a se esvair. –
Sim, Elizabeth Spencer, a mulher que você acabou de demitir porque estava
com medo, não é?
— Thomas... – sua voz contém aquele pedido frio de reflexão que ele
sempre usava comigo desde criança. O pedido para que eu me acalmasse.
Isso não iria surtir o menor efeito agora.
— Você estava com medo puro e simples que ela me contasse sobre a
criança.
Jack empalidece. Finalmente sua frieza calculada dá lugar a alguma
emoção.
— Ela não deveria ter contado a você.
Uma risada descrente sai da minha garganta.
— Está de brincadeira? Que porra você estava pensando ao esconder
de mim? Por oito malditos anos?
— Eu resolvi o problema para você! Como sempre fiz! Fiz naquela
época te livrando de um fardo e agora te livrando da presença de Liz Spencer
na sua vida de novo!
— Fardo?
— Sim, fardo! Não entendo porque está revoltado! Era uma criança!
Estava no começo da faculdade de medicina, um filho só iria atrapalhar!
— Eu deveria saber merda! – Bato na mesa, fazendo todo o material
que havia ali pular com um estrondo.
Jack não mexe um músculo.
— Eu fiz o que precisava ser feito! Fiz por você! Por sua carreira, seu
futuro.
— Você não tinha o direito!
— E o que iria fazer se soubesse? Hein Thomas? Assumir a criança?
Ser um pai? Você e aquela garota nem estavam mais juntos! Você meteu o pé
na bunda dela, para continuar com a sua vida como sempre foi e ainda é! Um
homem que não se prende a nada e nem a ninguém! Que nunca quis nenhum
compromisso!
Suas acusações batem em minha raiva me fazendo viajar para oito
anos antes. Para o cara que eu era.
O cara que tinha medo de se envolver e de se comprometer.
O cara que não hesitou em expulsar Liz de sua vida.
Sim, meu pai tinha razão. Eu me encolho quando a verdade me
envolve com seu manto frio.
— Sabe que eu tenho razão. Saber não ia mudar nada, Thomas! Você
iria correr para mim, para resolver seus problemas como sempre fez! E no
final eu teria que resolver de qualquer jeito! Pelo menos a garota percebeu
que a melhor decisão era mandar a criança embora. Nenhum dos dois tinha
condições de assumir um filho. Essa é a verdade.
A verdade dói. Queima.
Pela primeira vez em todos aqueles anos eu questiono tudo o que sou.
O que meu pai está me acusando com toda a propriedade de ser.
Eu tinha escolhido ser assim. Era bom ser desse jeito até hoje.
O único momento em que houve alguma hesitação e incerteza foi
justamente há oito anos. Com Liz. Porque eu sabia que ela tinha aquele poder
sobre mim. De me mudar. De mudar tudo em mim. Se apossar de mim.
E eu tinha medo. E fugi.
Só que eu não fugi apenas de Liz. Eu fugi de uma criança. De um
filho.
Será que meu pai tinha razão e eu teria fugido dele também? Eu não
sei.
Eu só sei que sinto um vazio inexplicável em meu peito agora.
Como se nada fizesse sentido.
— Você me roubou a decisão de ter um filho. – Murmuro por fim.
Um nó fechando minha garganta, quando o encaro – eu não sei qual teria sido
minha reação. Talvez tenha razão e eu tivesse fugido. Porém, eu tinha o
direito de escolher. Isso não posso perdoar, pai.
E saio da sala, ignorando os chamados de Jack.
Levando todos os meus demônios comigo.
Oito anos antes

Jack

— Finalmente apareceu! – Bárbara se levantou do banco da sala de


espera da maternidade ao me ver entrar.
Era uma clínica particular e exclusiva. Discreta, o que era mais
importante.
— Faz horas que a criança nasceu e já deveria estar aqui!
— Eu estava em um plantão – justifiquei.
— Problema seu, temos um trato!
Aquela mulher sempre foi insuportável.
Trabalhar com ela tinha sido um inferno e eu dei graças a Deus
quando ela parou de clinicar para seguir carreira como escritora e palestrante.
Era realmente desconcertante que nossos filhos tivessem se conhecido
e se apaixonado. Imagino se Thomas fosse diferente. Se ele tivesse
continuado com a garota Spencer. Ela teria contado primeiramente a ele sobre
a gravidez.
Eu estremeci de horror ao imaginar Thomas jogando fora todo o
futuro que planejei para ele para assumir aquele bebê. Seria inconcebível.
Felizmente, Thomas era um garoto imaturo em se tratando de
relacionamentos. Ele não queria se prender a ninguém o que era ótimo para a
sua carreira.
Nada iria atrapalhá-lo. Por isso eu estava ali.
— Então, a criança nasceu.
— Sim, nasceu. Uma menina, como previsto. – Nós nos
encaminhamos para o berçário e sem ao menos pedir permissão Bárbara
adentrou a sala, a enfermeira não a impediu. Devia saber que ninguém podia
se interpor no seu caminho.
Ela retirou o bebê do berço.
— Ela é muito saudável. Minha filha fez um ótimo trabalho!
— Sua filha está bem?
— Sim, claro. Foi um parto muito bem feito. E a criança é linda, devo
admitir, temos bom genes. Se Liz não fosse tão jovem... enfim, ela será mais
bem criada por pais adequados. Minha filha tem uma carreira pela frente é só
o que importa. Suponho que já está tudo acertado para a adoção?
— Sim, meu advogado já achou uma boa família.
— Ótimo.
Ela me passou o embrulho e eu a peguei.
A criança abriu os olhinhos pequenos para mim. Eram como os das
Spencer. Os cabelos eram dos Hardy.
— Gostaria que ela se chamasse Nina – eu a encarei incrédulo – Ah,
não é pedir muito! Ela não terá meu sobrenome, pelo menos posso escolher o
nome. É um nome bonito. Queria que Liz se chamasse Nina, mas o pai dela
insistiu em Elizabeth!
— Os pais adotivos darão o nome que escolherem Bárbara.
Ela pegou sua bolsa.
— Tenho certeza que pode arranjar isso se quiser. – Ela sorriu para a
criança – bom, minha missão está cumprida aqui. Adeus, Jack.
— Adeus, Bárbara.
A neném mexeu os bracinhos, espreguiçando-se.
Ela parecia ser forte. E decidida.
Uma criança Hardy.
Se ao menos Thomas não fosse tão jovem...
Eu a deixei no hospital para buscá-la na manhã seguinte quando iria
ter alta.
Eu deveria ter ligado para meu advogado, para contatar a família
adotiva. Eu não o fiz. A noite inteira algo ficou martelando na minha cabeça.
Minha esposa me encarou na mesa de café da manhã.
— O que foi? Algum problema, querido? Reparei que não dormiu
bem.
Eu sorri.
Diana era uma boa mulher.
Estávamos casados há pouco tempo, mas ela era muito sensitiva para
os problemas que me afligiam. E muito paciente em relação ao que não podia
mudar em mim.
Ela sabia que minha carreira estaria sempre em primeiro lugar. Que eu
dedicaria minha vida para que meus filhos tivessem o mesmo sucesso que eu.
E que, por mais que gostasse dela, eu nunca esqueceria a mulher que
eu amei e que perdi para a morte. Elena.
Diana me entendia.
Por isso, pensei em contar a ela sobre a criança de Thomas. Contar a
ela o plano que começava a se delinear na minha cabeça.
Mas me calei. Algumas decisões deviam ser tomadas em segredo.
Para o bem de todos.
— Você ainda quer ter um filho?
Ela me encarou surpresa. Desde que nos casamos ela de vez em
quando voltava ao tema. De que meus filhos já eram adultos e poderíamos ter
um bebê. E ela ainda tinha 39 anos, podia conceber enquanto era tempo.
— Por que esse assunto agora? Achei que não quisesse...
— Podemos adotar um bebê.
— Adotar?
— Sim. Há uma criança no hospital. A mãe abriu mão. Pediu que eu a
ajudasse na adoção. Eu não consigo parar de pensar que pode ser um sinal.
Que poderíamos ficar com ela.
— Tem certeza? Isso é tão repentino.
— Mas você quer?
Ela sorriu. Eu sabia a resposta. E tomei minha decisão.

— Nina? Da onde tirou esse nome? – Amber comentou debruçada


sobre o berço, alguns dias depois.
Era quase engraçado ver minha filha, que tinha um coração frio como
o gelo, apaixonada por aquela criança.
— Eu achei lindo – Diana falou, retirando a criança do berço e
colocando sobre o peito. – Foi seu pai que escolheu.
Eu me aproximei.
— Uma tia avó tinha esse nome. – Disse casualmente. Claro que era
uma mentira. Isso não importava, eles nunca iriam saber.
— Não sei se gostei.
— Não gostou do que? – Thomas entrou no quarto.
— Finalmente se dignou a vir conhecer sua irmã – Amber rolou os
olhos.
— Então é realmente verdade? Eu achei que estavam todos loucos.
Que história é essa de adotarem um bebê? Não são velhos demais para isso?
Diana riu, aproximando-se com a neném no colo.
— Não somos tão velhos assim, querido! Agora, venha conhecer sua
irmã.
Ela colocou a menina no colo de Thomas que a segurou
desengonçadamente.
— Eu vou deixá-la cair.
— Você aprende. Todos nós vamos aprender a cuidar dela. – Diana o
ajudou, até que Nina estivesse ajeitada em seu colo.
— Ela é linda – vi seu olhar desinteressado mudar, quando a criança
cravou os olhos inteligentes nele. Assim como aconteceu com todos nós.
Ela conquistava a todos.
— Poderia ser facilmente sangue do nosso sangue – Amber estendeu
a mão – agora é minha vez, deixe-me segurá-la.
— Não – Thomas negou – eu acabei de pegar. Espere sua vez!
— Pai!
— Meninos não briguem! Ela vai ficar aqui para sempre, vão poder
pegá-la no colo quando quiserem.
— Qual o nome dela? – Thomas perguntou.
— Nina.
— Bem-vinda a família, Nina. – ele sorriu para a criança em seu
colo.
Sim, eu tomei a decisão certa.
Capítulo Quatorze

Liz

Estava feito.
O mais bem guardado segredo que eu escondia até de mim mesma
finalmente foi revelado a Thomas.
Eu caminho para fora do hospital, alheia às vozes e ao movimento a
minha volta, como se estivesse morta.
E é assim que eu me sinto. Morta por dentro.
Exatamente como me senti há oito anos, quando saí de um hospital,
depois de nove meses de uma gravidez solitária, após de dar à luz a um bebê
que, apesar de meu, nunca me seria permitido chamá-lo assim.
Meu bebê. Minha filha.
Filha de Thomas também.
Eu acreditei que jamais precisaria revelar isso a ele.
Quando estava grávida, muitas vezes eu fantasiei como seria, se eu
contasse que esperava um bebê. Mesmo naquela época, eu já não nutria
nenhuma tola esperança de Thomas aceitar aquele fato.
O que ele havia feito comigo, foi o bastante para me deixar vacinada
contra qualquer fantasia romântica envolvendo Thomas Hardy.
Ele havia me rejeitado. Havia algo em mim que não queria vê-lo
rejeitando nossa criança também.
E agora ele sabia.
Eu deveria ter previsto quando coloquei os olhos nele naquele
hospital que meu segredo estaria em perigo. Fui tola em achar que
conseguiria lidar com Thomas Hardy desta vez. Que eu era forte o suficiente
para tratá-lo como a qualquer médico. Apenas um colega de hospital. Apenas
um chefe.
A quem eu queria enganar?
Ele ainda virava meu mundo de cabeça pra baixo. Fazia aquela Liz
jovem e sonhadora emergir sob a pele da Liz adulta e madura.
A Liz, que escolhera dar a própria filha a estranhos e seguir como se
ela não existisse.
Minha filha.
Ah Deus. A dor que eu sempre havia conseguido suprimir por todos
aqueles anos, agora se negava a adormecer.
Eu sinto minhas pernas cederem e deixo-me cair sobre um banco,
respirando com dificuldade. O nó na minha garganta me sufocando.
O vento do fim de tarde chicoteia meu rosto levando as lágrimas que
caem, sem que eu consiga detê-las.
E junto com elas, vêm as lembranças.
As memórias que eu mantive trancafiadas no local mais escondido do
meu coração. A primeira vez que ela mexeu dentro de mim. As incontáveis
noites em que eu chorava desesperadamente almejando que tudo fosse
diferente.
A única vez que eu a tive em meus braços. Tão pequenina e indefesa.
O momento em que eu havia me despedido pra sempre. No coração,
apenas a certeza que eu estava fazendo a coisa certa. Eu não podia ser sua
mãe.
E eu segui em frente. Ainda chorei por incontáveis noites, sentindo
falta dela em meus braços. Mas acordando para dizer a mim mesma que foi
melhor assim.
Ela estaria melhor sem mim.
O tempo fez a saudade arrefecer. A dor adormecer.
Embora nunca me tenha sido permitido esquecer.
Por mais que eu tentasse, ela sempre estava ali. Em algum lugar do
meu coração. E eu me perguntava todos os anos, como ela seria? Com quem
se pareceria? Será que era feliz?
Eu precisava muito acreditar que sim.
Afinal, foi por isso que abri mão dela. Para que fosse feliz.
Sem mim.
— Por que você está chorando?
Eu abro os olhos e penso estar delirando, quando vejo uma garotinha
me encarando com olhos curiosos.
Olhos cinzentos como os da minha filha.
— Você está triste – ela insiste, se aproximando e tocando meu rosto.
Noto seu cabelo loiro escuro. Da mesma cor...
Oh Deus, estou alucinando.
— Nina – a voz de Thomas me faz sair do meu desvario, enquanto a
criança também se afasta, sorrindo para Thomas.
— Oi Thomas!
— O que faz aqui? – Ele olha de Nina pra mim, parecendo me notar
pela primeira vez. – Liz...
Eu me levanto, secando as lágrimas.
Pronta para continuar minha fuga.
— Seu nome é Liz, que bonito! – a garotinha continua, alheia a nossa
tensão. – A Liz estava chorando Thomas.
— Eu preciso ir – balbucio, Thomas segura meu braço.
— Não. Nós precisamos conversar – sua voz está cheia de urgência.
— Thomas, por favor.
— Ei, Liz, você é médica também? – A garotinha continua e eu me
pergunto agora quem seria.
Thomas desvia a atenção para a criança.
— Nina, ainda não entendi o que está fazendo aqui, entre e procure a
Amber...
— A motorista me trouxe! A Amber disse que eu tinha que fazer
alguns exames!
— Sim, claro, os exames – ele repete distraído.
— Minha irmã acha que eu estou doente – Nina explica pra mim.
— Irmã?
— Sim, Amber. Thomas também é meu irmão.
Eu encaro Thomas.
— Não sabia que tinha uma irmã. – Comento aleatoriamente.
Realmente não me lembro de ele comentar algo na época que
namorávamos.
Também isso não interessava agora.
— Thomas, vamos comigo! – Nina começa a puxá-lo – Você pode vir
também, Liz. Você pode convencer a Amber a não me dar uma injeção? Eu
odeio agulhas! Você não me disse se é médica?
— Sim, eu sou – respondo não querendo deixar a criança acreditar
que eu não lhe dei atenção.
Irmã de Thomas. Quem diria? Por isso ela me pareceu familiar.
— Nina, você está aí! – Amber se aproxima, o rosto de Nina se
ilumina e ela corre para a irmã.
Eu aproveito para continuar minha fuga e, sem falar nada, dou meia
volta, Thomas segura meu braço de novo.
— Liz, não vai ainda!
Eu me desvencilho.
— Me deixa, Thomas!
Desta vez eu consigo correr e, para meu alívio, ele não vem atrás de
mim.
Entro no carro e só consigo respirar normalmente quando estou longe
do hospital.
O percurso até minha casa é um suplício.
É como se a caixa de pandora tivesse sido aberta, revelando todos as
maldades do mundo.
Do meu mundo.
Eu tinha sérias dúvidas se eu conseguiria fechá-la de novo.
Quando chego em casa tudo o que eu queria era um quarto escuro
onde eu pudesse me esconder e chorar. Infelizmente sei que de nada vai
adiantar eu me esconder agora.
O castelo de areia sobre o qual eu construíra minha vida, estava se
desfazendo como se atingindo uma onda gigantesca composta de revelações
do passado. Era uma questão de tempo para tudo desmoronar de vez.
Então retiro toda a roupa e entro sob o chuveiro. Não há mais
lágrimas. Estou seca.
Deixo a água escorregar sobre meus ombros cansados. A tensão se
dissipa com o vapor, embora a dor continue martelando firme meu coração.
Pressinto que agora não será como das outras vezes. Eu não vou
conseguir dobrá-la cuidadosamente como uma roupa velha e guardar no
fundo do armário.
Eu terei que vesti-la. E exibi-la por aí.
Quanto tempo mais eu tenho antes que não reste nada?
Saio do chuveiro e olho o dia se transformar em crepúsculo.
A escuridão está chegando.
O barulho do celular vibrando me distrai da escuridão. Eu o pego e
há várias mensagens. Minha mãe. Peter.
Thomas.
Muitas de Thomas.
Apago todas até restar uma de Mark Geller. Ele diz que todos estão
indo a uma boate hoje. Está me convidando.
Minha primeira reação é ignorar e apagar, então eu paro o
movimento.
Por que não?

***

O som alto faz tudo vibrar dentro de mim.


O líquido forte faz minha garganta queimar. Enquanto minha mente
gira com toda aquela distração. E as marteladas no meu coração estão
quietinhas agora.
— Mais um – peço e ignoro minha língua pesada.
Jenny ri histericamente do meu lado direito.
— Pretende realmente ficar bêbada? Pelo menos não tem que
trabalhar amanhã cedo! Plantão de sábado, ninguém merece!
— Ainda não nos contou porque foi demitida – Mark pergunta muito
próximo.
Perto demais, algo alerta dentro de mim, mas eu ignoro. Assim como
sua mão na minha perna.
Dou de ombros, tomando mais um grande gole de bebida.
— Eu ouvi dizer que você pegou o Thomas, duvido que seja verdade,
fala sério – Jenny revira os olhos.
— Claro que deve ser mentira – Julie concorda.
— Mesmo porque se fossem mandar embora todo mundo que o
Doutor Thomas pega não ia restar nenhuma mulher no hospital – Sam diz e
todos riem. Menos eu.
— Vamos dançar, adoro esta música – Digo me levantando e perco o
equilíbrio. Inferno. Eu já estou tonta.
Mark me segura antes que eu caia.
— Ei, cuidado aí, gata!
— Estou bem. Só quero dançar.
Ele me puxa para a pista e todos nos acompanham.
Deixo a música guiar meus movimentos. O álcool em meu sistema me
faz sentir leve.
De repente, sinto um arrepio na minha espinha e abro os olhos. Sinto
meu pulso acelerar ao ver Thomas me encarando.
Ao lado dele está Josh e eu sinto como se tivesse voltado no tempo.
E quase posso vê-lo se aproximando como fazia antes, seus braços me
rodeando com ares de dono. Sua boca na minha, nossos corpos se movendo
juntos na música.
Volto à realidade, quando ele anda até mim só que é com um olhar
furioso.
— Oi Thomas – Jenny se coloca no seu caminho, ondulando corpo e
balançando os cabelos. – Não sabia que viria!
Então sinto que Mark está me abraçando por trás, roçando o corpo no
meu. E Thomas tenta se desvencilhar de Jenny que, bêbada, está bem mais
agressiva em suas tentativas de sedução.
Sei que ele está tentando chegar a mim e não quero que se aproxime.
Inferno, eu estava naquela boate justamente para esquecer e não para
discutir com Thomas de novo.
— Me solta, Mark – peço, empurrando seus braços.
Ele me solta. E eu me afasto tropegamente por entre as pessoas
dançando.
— O que foi? Já quer parar de dançar? A gente pode ir sentar – Mark
ainda tenta chamar minha atenção.
E para minha falta de sorte, não é só Mark que me segue.
— Liz – sinto os dedos de Thomas no meu braço, impedindo que eu
me afaste mais dele.
— Me solta, Thomas – minha voz está grogue e não tenho forças para
me desvencilhar.
— Porra, você está bêbada!
Eu rio.
— Sim, estou. E acho que deveria me soltar para eu poder beber mais.
— E aí, Thomas! – Mark nos alcança, sorrindo alheio à tensão que
corta o ar.
Thomas o ignora.
— Não acho que deveria beber mais – ele diz ainda segurando meu
braço.
— Você não manda em mim, que inferno! – resmungo e finalmente
consigo me soltar. O esforço foi tanto que perco o equilíbrio e sinto-me indo
na direção do chão.
Antes que caia, alguém me segura e quando olho pra cima reconheço
Josh.
— Oi – ele sorri – quanto tempo e tudo o mais.
Eu rolo os olhos.
— Por que o passado resolveu me visitar hoje?
— Acho que o Thomas tem razão já bebeu demais.
E sem aviso, ele está me carregando pra fora da boate.
Eu fecho meus olhos e me recosto nele.
Não preciso olhar pra saber que Thomas está nos seguindo.
Estou tão cansada. Com tanto sono...
Ele me coloca em um carro. Escuto vozes, ignoro-as. Continuo com
os olhos fechados e deslizo para o sono.
Eu acordo, com o chão se movendo embaixo de mim.
Tento firmar o olhar e percebo que estou no colo de alguém que se
movimenta.
— O quê...
— Devia continuar apagada.
Thomas. É a voz de Thomas.
— Thomas? – Finalmente consigo abrir os olhos e percebo que ele
está entrando comigo em meu apartamento.
— Esperava outra pessoa? – Ele pergunta secamente, quando me
coloca no chão. – Mark Geller e sua mão boba talvez?
Eu gemo, sentindo minha cabeça doer.
— Por que esta gritando?
— Não estou gritando, embora esteja com vontade.
— Hum, acho que não estou bem - minha mente gira e meu estômago
também.
— Porra, Liz – Thomas resmunga, antes de me carregar para o
banheiro.
É só o tempo de ele me posicionar sobre o vaso, para eu começar a
vomitar.
Na minha miséria, vagamente percebo que Thomas está ali, segurando
meu cabelo pacientemente, enquanto xinga baixinho.
Sinto sua fúria e frustração, piorando meu desalento e choro em meio
a onda de náusea e humilhação.
— Eu sinto muito... – resmungo, quando não há mais nada para sair
de dentro de mim. – Eu sinto muito, Thomas.
E acho que ele sabe que eu não sinto apenas pela cena horrenda de
vômito e sim por tudo o que ele descobriu hoje.
Eu vinha tentando fugir do fato de que para ele não devia estar sendo
fácil descobrir os acontecimentos de oito anos atrás somente agora.
Na época, eu achava que havia tomado a melhor decisão.
Eu tinha certeza que Thomas nunca ia se importar. Que mesmo que
ele soubesse nada seria diferente. Talvez fosse até pior.
Agora ele está aqui. E ele sabe.
Eu levanto a cabeça do vaso. Meus cabelos desgrenhados e meu rosto
banhado de lágrimas e suor.
Ele está ali. Perto.
Seu olhar está cheio de dor também.
— Sente muito pelo o que Liz? – Ele se afasta e volta com uma toalha
molhada, que passa por meu rosto sujo – por ter escondido de mim que estava
grávida?
— Você nunca ia querer saber...
— Como pode ter tanta certeza? – Agora ele está furioso de novo.
— Você me deixou... Você tinha outra vida, sem mim... Tinha outras
garotas...
— E você não tinha o direito de me deixar de fora! Não era mais
somente sobre nós dois, porra!
— Eu sinto muito – volto a chorar baixinho.
Thomas se afasta, ainda xingando.
Ele está bravo e eu não posso fazer nada.
Escuto-o abrindo a torneira da banheira e depois suas mãos estão em
mim, me levantando do chão.
Retira minhas roupas automaticamente.
Eu deixo. Estou fraca e cansada. Devastada.
Não coloco objeção quando ele me põe dentro da banheira com água
morna.
Fecho os olhos e acalmo minha respiração. Acalmo meu coração.
Há apenas silêncio agora. Mas sei que ele ainda está ali do meu lado.
Com todos os demônios sobre seus ombros.
— Eu sinto muito – repito como um disco arranhado.
Não sei se ele entende. Quero muito fazê-lo entender.
— Sente muito pelo o que Liz? – ele repete. Desta vez não há mais
fúria, apenas uma dolorosa frustração – você sente por ter dado nossa filha?
Alguma vez você sentiu?
Ah Deus.
Como ele pode duvidar dos meus sentimentos?
Abro os olhos e os cravo nos dele. Estão tão vermelhos quanto os
meus.
— Eu sinto nos meus ossos. Todos os dias. Mesmo quando eu sorrio.
Quando eu finjo que a vida seguiu. Eu ainda sinto. Sempre vou sentir. –
Minha voz falha e eu viro o rosto.
De novo apenas o silêncio.
Depois do que parecem séculos, escuto sua voz próxima de novo.
— Precisa sair daí.
Eu ergo o olhar e ele está segurando uma toalha. Me levanto, e ele me
enxuga como uma boneca. Sinto-me amortecida. Física e emocionalmente.
Não ofereço objeção quando ele me oferece uma escova de dentes.
Apenas escovo meus dentes mecanicamente e então ele está ali do
lado de novo, segurando um comprimido e um copo d’água. Eu aceito
docilmente.
E também, docilmente, deixo que ele me leve para a cama.
Eu cerro as pálpebras, o dia infernal cobrando seu preço.
— Você a viu? – Escuto sua voz baixinha e abro os olhos.
Ele me encara na semiescuridão.
— Sim. Por um momento apenas – murmuro.
— Como ela era?
Forço minhas lembranças tentando recordar. Minha mente tomada
pelo sono.
— Ela era linda – sussurro – tinha os meus olhos e cabelos da cor dos
seus.
— Como conseguiu deixá-la ir? – Sua voz está cheia de frustração,
dor e incompreensão.
Engulo o nó na minha garganta.
— Você realmente se importa?
— Por que achou que eu não iria me importar?
— Nunca se importou comigo. Não queria que a rejeitasse também. –
Mal consigo manter os olhos abertos agora. Havia algo naquele comprimido?
— Se eu não tivesse... terminado com você, acha que estaríamos com
ela agora?
— Isso nunca vamos saber, não é? – Murmuro, deixando-me
finalmente deslizar para a escuridão.
Capítulo Quinze

Thomas

Eu a observo dormir.
Parece tão tranquila no sono, como se o mundo não estivesse
desmoronando a nossa volta. Como se não tivesse feito o meu mundo se
quebrar em mil pedaços. Agora ele estava espalhado pelo chão e eu me
sentindo paralisado no lugar, sem saber como juntar todos os pedaços e fazê-
lo voltar ao que era antes.
Será que era possível?
Uma parte de mim desejava que sim. Aquela que tinha medo de
sofrer, a mesma parte que havia dispensado aquela garota há tantos anos.
Deixando-a para trás.
Eu não queria que ela mudasse minha vida. Só que, sem saber, eu já
havia mudado a dela irreversivelmente. E por oitos anos eu sequer imaginava.
As perguntas se embaralham em minha mente, mil questionamentos e
dúvidas sobre todas as possibilidades. E se não tivéssemos terminado? Se
naquela noite longínqua em que ela apareceu no show de Josh dizendo que ia
embora comigo, eu tivesse simplesmente aceitado?
Essa possibilidade nunca me pareceu aceitável. Até agora.
Agora eu não conseguia parar de questionar minha decisão de oito
anos antes. Como teria sido minha vida?
As acusações de Liz reverberam em minha mente. Ela temia que eu
rejeitasse a criança assim como a havia rejeitado.
Eu faria isso?
Se eu tivesse tomado as mesmas decisões, mas ela tivesse conseguido
falar comigo naquela tarde na piscina, como eu teria reagido?
Sinto um soco no estômago ao perceber que provavelmente ela estava
com a razão. Eu teria ficado aterrorizado.
Eu teria concordado em dar a criança e continuar como se nada
tivesse acontecido como ela fez?
Não me sinto bem pensando que sim.
Eu nunca tinha pensado em ter filhos. Como eu poderia, se nem
queria me casar? Eu sempre vivi o momento. Concentrando-me em minha
carreira e fodendo as mulheres que eu desejava. Sem amarras. Sem
compromisso.
Eu me sentia bem assim. A vida estava boa desse jeito.
Sem amar. Também sem sofrer.
Então, como eu podia estar lamentando, bem lá no fundo do meu
peito, não ter conhecido aquela criança cuja existência eu nem sabia há
menos de 24 horas?
Eu lamentava. E isto doía.
E lá estava eu, sofrendo. Sentindo. Justo o que eu sempre havia
evitado a todo custo.
O dia amanhece e me encontra no mesmo dilema.
O que eu ia fazer agora? Talvez devesse ir embora. Liz havia deixado
claro que não queria a minha presença na vida dela. Não queria antes e, agora
que me contara a verdade, acredito que muito menos.
Eu não queria deixá-la.
Não queria antes e não queria agora.
Ainda havia aquele maldito imã que me fazia aproximar dela como se
uma linha invisível nos ligasse inexoravelmente.
Era exatamente como oito anos antes.
De repente um sentimento de inevitabilidade me invade. Do que
adiantava fugir? Parecia que ela sempre me encontrava.
O que eu ia fazer agora? Poderíamos começar de onde tínhamos
parado há oito anos? Esse pensamento se forma na minha mente e um
calafrio percorre minha espinha.
Medo.
Eu sabia que ficar com Elizabeth Spencer significava. Foi exatamente
por isso que eu fugi antes.
Agora ela estava de volta e eu não conseguia pensar em outra coisa a
não ser que eu deveria estar deitado com ela naquela cama, com seu corpo
morno grudado no meu.
Que eu deveria estar ali quando ela acordasse. E ela sorriria pra mim e
não se importaria com minhas mãos acordando sua pele, com minha boca
dizendo bom dia para a sua com um beijo.
Porra, eu gosto tanto desta imagem que por um momento eu quase
chego a fazer exatamente isto. Me aproximar e mandar para o inferno o
medo.
Não precisava ter sofrimento. Era só fazê-la me amar.
Ela me amou no passado.
Eu poderia fazê-la me amar agora?
A campanhia tocando me tira dos meus loucos devaneios e eu olho a
hora. Ainda é cedo, quem poderia estar procurando Liz?
Ela não se mexe e eu vou até a sala, abrindo a porta.
Um homem moreno parece surpreso ao me ver.
A minha surpresa é a mesma.
Quem diabos é aquele cara?
— Cadê a Liz? – Ele pergunta olhando além de mim com um olhar
desconfiado que prontamente se transforma em animosidade quando eu
respondo calmamente.
— Ela está dormindo.
— E quem é você? – Sua voz não disfarça a hostilidade.
— Talvez eu devesse estar fazendo a mesma pergunta – rebato no
mesmo tom.
— Peter? – A voz de Liz atrás de mim chama a nossa atenção.
Ela nos encara com um olhar confuso e sonolento que se transforma e
preocupação ao vagar de um para outro.
Eu quero fechar a porta na cara daquele intruso e questionar a ela
quem ele era.
No fundo sei do absurdo da situação.
Porém isto não impede que eu esteja morrendo de ciúmes apenas com
a possibilidade de aquele cara ser namorado dela.
Amber não dissera que ela tinha um?
— Oi Liz – o homem que ela chamou de Peter responde passando por
mim e entrando no apartamento.
Ele a abraça. Beija seu rosto.
Cerro meus punhos.
Os olhos de Liz me encontram.
— Não vai nos apresentar? – Pergunto tentando manter uma calma
que estou longe de sentir.
Ela dá um passo para longe dos braços possessivos do suposto
namorado que não disfarça sua insatisfação com minha presença.
Bem, se fosse eu já teria partido para a agressão física. Dadas as
circunstâncias até que ele está bem calmo.
— Peter, este é Thomas Hardy. Ele trabalha no hospital – ela diz com
um suspiro – Thomas, este é Peter White, meu amigo.
Amigo? Talvez isso explique ele ainda não ter quebrado minha cara.
— E o que ele está fazendo aqui a esta hora? – A voz não disfarça a
desconfiança.
— Nós estávamos numa boate ontem e eu passei mal. Thomas cuidou
de mim – ela responde simplesmente e me encara. – Muito obrigada,
Thomas, acho que já pode ir embora.
Ela estava me dispensando?
Tenho vontade de dizer que não vou a lugar nenhum. Mas, o que
posso fazer?
Talvez seja melhor mesmo eu ir embora e dar tempo para nos
acalmar. E pensar.
Me irrita deixá-la com o tal Peter, mas o amigo já está abrindo a porta
pra mim e acho que até posso ver um risinho de mofa em seu rosto bonito.
Quero quebrar os seus dentes e fazê-lo engolir, opto por uma saída
pacifica. Por enquanto.
Eu vou direto para o hospital, mesmo sentindo que não estou nada
bem.
— Oi, Doutor Thomas – a voz de gralha da interna Jenny Lars me
atinge quando entro no vestiário. Rolo os olhos, abrindo meu armário, sem a
menor paciência para aguentá-la.
Ela não desiste facilmente.
— O que aconteceu com a Liz ontem? Que coisa horrível não saber
beber hein? Eu te convidei pra curtir a noite e ela atrapalhou tudo e... –
Vagamente eu me lembro de que foi Jenny que me ligou dizendo que os
internos estavam na boate. E eu peguei a informação como ouro, porque
significava que Liz estava lá também. Então eu chamei Josh para ir comigo. –
E falando nisto, cadê ela? Ah, esqueci que ela foi demitida...
— Jenny, você não tem trabalho a fazer na sutura? – A voz de Chloe
nos interrompe e Jenny faz uma careta.
— É o Doutor Thomas que determina o que tenho que fazer...
— Ah, cala a boca e chispa já daqui! – Chloe ordena e Jenny parece
que vai rejeitar a ordem, ao ver que eu não falo nada, ela se afasta bufando.
Chloe entra no vestiário e me estuda
— Meu Deus, o que aconteceu com você?
— Não enche você também, Chloe!
— Nossa você está um lixo!
— Eu não tive a melhor noite da minha vida.
— Problemas com mulheres? – Ela diz claramente com ironia. Todos
sabem que eu não tenho problemas com mulheres, porque eu não permito que
isto aconteça. Quando não respondo, Chloe franze os olhos. – Wow, é sério?
Eu desisto de fingir que procuro um uniforme e bato com o punho no
armário. Chloe tem razão. Eu estou na merda. Chafurdando e afundando cada
vez mais.
— Deus, Thomas, o que está acontecendo com você? – Chloe segura
minha mão. – Não está em condições de trabalhar.
Passo os dedos pelos cabelos, concordando com ela. Eu realmente não
posso atender ninguém do jeito que estou.
— Tem razão. Preciso sair daqui. – Pego o celular e disco o número
de Josh que só chama, me deixando ainda mais irritado.
— Para quem está ligando? – Chloe indaga cautelosamente.
— Um amigo... Merda! – Desligo quando a ligação cai e digito uma
mensagem para Josh me encontrar em casa.
— Eu acho que você precisa ir pra casa dormir, Thomas.
— Eu sei.
— Venha, eu vou te levar.
— Não precisa...
— Não vou deixar você dirigir neste estado.
— Ok.

***

Acordo com uma dor de cabeça que se espalha por meu corpo
cansado. O quarto está na semiescuridão e ao me sentar, tento me lembrar
como cheguei ali. Vagamente recordo de entrar no carro de Chloe e fechar os
olhos e sua voz suave dizendo que eu podia descansar.
Olho as horas e não fico surpreso ao ver que um dia inteiro se passou.
Arrasto-me até o chuveiro e deixo que a água morna leve os resquícios
daquelas ultimas insólitas 24 horas.
Até ontem minha vida estava nos eixos.
Eu era um jovem e promissor médico no último ano de residência no
maior hospital de Chicago. Podia ter a mulher que eu quisesse e dispensá-las
com a mesma facilidade.
A vida era boa e simples.
Agora tudo estava de cabeça para baixo.
Porque eu sinto que vivi uma mentira durante todos aqueles anos. A
caixa de pandora foi aberta revelando todos os seus segredos e eu não sabia
como fechá-la novamente e deixar tudo como era antes.
E o pior: eu não sabia se queria isto.
Saio do chuveiro para encontrar Chloe sentada na bancada da minha
cozinha com algo que parece uma xicara de chá em sua mão.
— Bem-vindo ao mundo dos vivos.
Eu sorrio, coçando o cabelo.
— Ainda está aqui...
Ela dá de ombros.
— Inventei uma pequena mentira no hospital para salvaguardar os
nossos lindos rabos, não se preocupe. Agora sente-se aqui, eu fiz uma
omelete de cogumelos que é capaz de curar todos os males do mundo.
Eu me sento na bancada e suspiro pesadamente.
— Eu duvido que sua omelete, por melhor que seja, consiga consertar
a minha vida.
Ela coloca o prato na mesa e se senta na minha frente.
Eu mastigo a comida. E está realmente boa. Não cura os males do
mundo, mas me deixa com a sensação de pelo menos ainda estar vivo.
— O que diabos aconteceu Thomas? – Ela pergunta baixinho. Sinto
um tom de assombro em sua voz – eu nunca te vi assim.
— Eu descobri que tenho uma filha. – Confesso.
Chloe cospe o chá.
— Como é?
— Com Elizabeth Spencer.
Os olhos de Chloe estão tão esbugalhados que parece que vão sair da
órbita.
— Thomas... que história é essa? Liz Spencer, a interna?
— Sim, essa mesma.
— Oh Meu Deus! Ela foi demitida ontem... Wow, foi por causa
disso?
— Sim.
— Nossa Thomas estou passada, não estou entendendo nada...
— Ok, Chloe – eu suspiro – eu vou te contar uma história.
Quando termino meu relato o prato está limpo, eu me sinto mais leve
por poder contar toda a minha história com Liz a alguém. E Chloe me encara
totalmente assombrada.
— Então é isto – termino – agora está tudo uma merda. Eu fiquei
surpreso quando a vi no hospital e o que posso dizer? Eu ainda sentia tesão
por ela, e achei que podíamos, sei lá...
— Você iria foder ela como todas as outras e continuar sua vida –
completa.
E como eu poderia negar? Era o que eu fazia não era? Embora agora
este pequeno plano sórdido pareça absurdo e sem sentido. Elizabeth Spencer
nunca foi como as outras para mim. E eu tinha sido um idiota em pensar que
poderia tratá-la do mesmo jeito e sair ileso.
— Agora tudo complicou com esta revelação sobre o bebê que
tiveram não é?
Volto a sentir aquela inquietação no peito.
Eu não sabia o que pensar. Ainda era chocante demais pensar que eu
tinha gerado uma criança. E que ela estava em algum lugar do mundo.
— Pois é. E meu pai sabia! Isto me enche de raiva.
— Isto é o menos importante agora. Você tem que pensar no que vai
fazer.
— O que acha que eu posso fazer? – Indago frustrado.
— Eu não sei! Mas duvido que consiga voltar à sua vida de antes.
Acha que consegue? Afinal, a Liz Spencer foi demitida. Você pode esquecer
tudo e continuar, como posso dizer... “ o cara que finge que não tem
sentimentos de sempre”.
— Acha que é fingimento?
— Você é um canalha, Thomas.
— Canalha?
— Sim. E sabe disto. Mas um canalha adorável. Todas te amam e
querem você.
— Todas não. Você é diferente.
Ela sorri tristemente.
— Não tão diferente assim – sussurra e então de repente eu entendo.
— Chloe...?
Ela dá de ombros.
— Não vamos fazer disto uma grande coisa. – Ela ri dando de
ombros. – Porém, já que estamos na fase das confissões, eu não era tão
diferente das garotas do hospital, no fim das contas. Como eu poderia? Como
disse, você pode ser um filho da puta, mas consegue ser adorável ao mesmo
tempo. Claro que eu também queria sua atenção.
— Chloe... – eu estou totalmente abismado com aquela confissão.
Claro que eu a achava atraente. Eu sou um homem e não sou cego, mas ela
sempre havia sido diferente para mim. Eu a respeitava. Nunca a coloquei no
patamar das garotas que podia foder e largar. E era só isto que eu tinha a
oferecer. – Não sei o que dizer. Você... eu te acho linda, mas...
— Sou só sua amiga.
— Não é isto. Você merece mais do que um cara como eu. Eu não
tenho sentimentos pra dar a ninguém, Chloe.
— Até hoje eu pensava a mesma coisa Thomas. Eu achava que você
era incapaz de amar. Mas não é verdade. Você a amou, não é? Elizabeth
Spencer? É por isso que não pode dar seu coração a ninguém. Você já deu a
ela há oito anos. E ela nunca devolveu.
Eu quero dizer a Chloe que ela está enganada. Eu fugi. Deixei Liz
para trás antes que fosse tarde demais. Percebo agora que eu me iludi todos
esses anos. Eu fugi quando já era tarde.
E agora ela estava de volta. Tomando posse do que já é seu por
direito.
Como eu poderei fugir de novo?
Ou como eu poderei sucumbir agora, porra? Sinto calafrios de medo
traspassando minha pele só de imaginar Liz tomando conta de todos os meus
sentidos de novo.
Amar era sofrer. Meu pai sofreu por minha mãe todos esses anos. Eu
não queria esta vida pra mim. Nunca quis. Este medo tinha norteado todas as
minhas decisões. Mas sinceramente, do que tinha adiantado?
Eu achava que minha vida era boa. Agora, pensando na possibilidade
de voltar a ela, eu só sinto o vazio.
Minha vida era vazia.
— Eu não sei... Como fazer isto. Como... amar. – Confesso. – Minha
família, meu pai, Amber. A gente não é assim.
Chloe segura minha mão.
— Thomas, olha pra mim. – Ela me encara com seus olhos cheios de
sabedoria – você sabe amar. Você ama sua irmãzinha, Nina, não ama?
— Claro que sim – a resposta surge rápido. Eu nunca tinha parado
para pensar nisto. Para dar nome e um sentimento que parecia tão natural.
— E seu pai a ama. E Amber também. Claro que vocês sabem amar.
Vocês só precisam parar de ter medo de amar outras pessoas. Amber critica
você, apesar de ser exatamente igual. Não consegue ver que Erick está louco
por ela. E você rejeitou a única garota que amou.
— E essa garota me odeia agora, do que adianta?
— Bom, você sempre pode recorrer ao canalha adorável e sexy dentro
de você e tentar conquistá-la. Conquistou uma vez não foi?
— Tem tanta coisa... E tem a criança.
— Vocês precisarão conversar sobre isto em algum momento, sem
dúvida, mas o passado não pode ser mudado Thomas. Liz deu a criança. Ela
tem uma vida longe de vocês. Não acredito que tenha volta.
— Como poderemos recomeçar? Com tudo isto pairando entre nós?
— Vão ter que descobrir como passar por cima disto se quiserem ficar
juntos. A pergunta é: você quer ficar com ela? Apenas pense...
A campainha toca, interrompendo Chloe.
— Esperando visitas?
— Deve ser Josh...
Eu me levanto e abro a porta e como previ é Josh na porta.
— Ei, cara, desculpa só aparecer agora. Eu toquei a noite inteira e
estava dormindo... – ele para ao ver Chloe. – Hum, oi.
— Oi – Chloe acena.
— Josh, esta é Chloe. Ela é uma amiga lá do hospital.
— Que já está indo embora... – ela pega sua bolsa e passa por nós
acenando.
Assim que a porta se fecha atrás dela Josh me encara.
— Uau, esta é gata hein? E eu achando que estava deprê por causa da
Liz...
— Não é o que está pensando. Ela é realmente só minha amiga.
— Não comeu esta?
— Pelo amor de Deus, Josh!
Ele ri.
— Calma, desculpa aí. Estava só checando se não estarei entrando em
terreno proibido.
— Como é?
— Vai me passar o número dela, não é?
— Só se prometer não ser um idiota. Esta garota é incrível.
— Eu? Eu sou um príncipe!
— É bom que seja mesmo...
— Mas e aí? O que aconteceu ontem? Parecia um lixo nas mensagens
hoje de manhã...
Antes que eu comece a contar sobre a malfadada noite a Josh, meu
celular toca e vejo que é Amber.
— O que é? – Indago mal-humorado.
— Thomas, precisa vir para o hospital. Nina está passando muito mal.
Capítulo Dezesseis

Liz

Eu fecho a porta, após a saída de Thomas e Peter me encara


desconfiado.
— Não gostei de encontrar este cara aqui.
— Peter, não queira bancar o amigo ciumento, por favor – me arrasto
até a cozinha e ligo a cafeteira. Minha cabeça parece que vai estourar.
— Não parece nada bem... – Peter comenta me estudando.
Esboço um sorriso cansado.
— Eu tomei o maior porre da minha vida.
— E este tal Thomas foi bonzinho e te trouxe.
Me mexo incomodada.
— Ou tem mais coisa aí? O que rolou entre vocês?
— Nada... – sei que não pareço convincente.
— Eu não acredito. Ele ficou com ciúmes de mim. E parecia
possessivo com você.
— Ele não tem o menor direito – digo friamente.
— Mas parece querer ter.
— O que aconteceu entre Thomas e eu foi há muito tempo – deixo
escapar. E quero engolir minhas palavras, mas é tarde. Elas flutuam até Peter
que as decodifica e me encara confuso.
— Então rolou alguma coisa entre vocês? Como nunca ouvi falar
deste cara?
— Foi antes de te conhecer. Eu tinha 18 anos.
— Uau. Isto faz tempo. Disse que trabalham no mesmo hospital...
— Trabalhava. Fui demitida ontem.
— O quê? Por quê?
— O pai dele me demitiu.
— Como assim?
Eu mordo os lábios, sentindo-me cansada de guardar tudo só pra mim.
— Peter, preciso te contar uma história.
Várias xícaras de café, dois comprimidos e algumas lágrimas depois,
Peter me fita totalmente atônito.
— Liz, por que nunca me contou?
— Eu queria esquecer.
— Você teve uma filha...
— Ela não é mais minha filha – digo amargamente. E é verdade. Eu
abri mão dos direitos sobre ela, embora no meu coração, ela sempre será meu
bem mais precioso.
— Agora entendo tanta coisa... – ele diz pensativo.
— O que quer dizer?
— Você ser assim.
— Assim como?
Ele dá de ombros.
— Você nunca deixa alguém se aproximar totalmente. Nem eu.
Eu toco sua mão.
— Eu deixei você sim.
— Só até onde lhe convém.
Eu desvio o olhar, incomodada com a queixa em seu tom de voz.
Peter não está satisfeito com nosso arranjo?
Não quero pensar nisto agora, então desvio o pensamento.
— E o que esse cara quer com você agora? – Eu omiti de Peter as
interações sensuais com Thomas depois de minha entrada no Chicago Mercy.
Não me sentia à vontade contando a ele.
— Ele deve me odiar agora que sabe que eu dei a criança e nunca
contei nada a ele. Embora não tenha direito nenhum. Afinal, ele me deixou!
— Isto ainda te afeta.
— Não! – Rebato. O que é uma mentira. Não sei se Peter acredita.
Antes que ele possa falar qualquer coisa o meu celular toca.
Eu me afasto para atender ao ver que é minha mãe.
Ah, isto não vai ser fácil.
— Liz, querida, que bom que atendeu! Estou na cidade, vamos jantar!
Amanhã cedo já tenho que viajar...
— Mãe não posso...
— Por que não? Podemos almoçar então? Está no hospital eu te pego
aí.
— Não estou no hospital.
— Como assim?
— Fui demitida!
— Como assim demitida?
— Jack Hardy me demitiu, satisfeita? Ele é diretor daquele maldito
hospital, aliás, Thomas Hardy é o chefe dos residentes, então como deu para
perceber, tudo virou uma grande confusão!
— Por que não me disse nada antes?
— Muito me admira do jeito que é controladora me deixar ir trabalhar
no hospital onde os Hardy são reis!
— Eu não fazia ideia – Bárbara parece mesmo apalermada. Seria
engraçado vê-la tão perdida, se eu não estivesse envolvida em meus próprios
problemas. – Você não pode sair do Chicago Mercy, é o melhor hospital de
Chicago, um dos mais importantes do país!
— Foi melhor assim, mãe! Não quero trabalhar no mesmo hospital
que Thomas!
— Não me diga que ainda sente algo por ele, depois de tanto tempo
Liz, por Deus!
Eu suspiro. Era melhor contar a verdade.
— Eu contei a ele sobre a criança.
— Você fez o quê?
— A senhora ouviu. Ele sabe de tudo.
— Você enlouqueceu?
— Eu deveria ter contado naquela época, esta é a verdade.
— Não devia ter contado Liz!
— Tarde demais, está feito.
— E o que aconteceu?
— Ele ficou chocado. Acho que ainda está.
— Você fez uma grande besteira...
— Mãe, sinceramente, não quero mais falar sobre esse assunto...
— Mas sua carreira... isto não pode ficar assim...
— Tchau, mãe!
Volto para sala e Peter me fita com cuidado.
— Sua mãe?
— Sim. Ela está puta porque fui demitida.
— Sua mãe se preocupa demais com a sua carreira.
— Pois é. Tenho problemas maiores no momento.
Ele toca meus ombros, massageando-os lentamente.
— Sinto muito que esteja passando por toda esta tensão.
— Não vou transar com você – digo e ele ri, tirando as mãos de mim.
— Calma, não ia sugerir isto.
— Desculpe-me, só queria que...
— Tudo bem, fique tranquila. O que acha de sairmos para almoçar?
Penso em recusar, porém o que eu ganhava ficando em casa sozinha?
— Certo. Vou me trocar.
Quando entro no quarto sinto o cheiro de Thomas o que me
desestabiliza.
Me pergunto o que ele estará fazendo agora. Se está pensando no que
eu disse. Se está pensando em mim. Suspiro pesadamente, forçando minha
mente a parar de pensar nele.
Peter tem razão, estou tensa demais.
Preciso desanuviar a mente, nem que seja um pouco, para manter a
sanidade.

***
Bárbara

Eu entro no Chicago Mercy e vou direto a recepção, enquanto tiro


meus óculos escuros.
— Preciso ver o Doutor Jack Hardy.
— A senhora tem hora marcada? A recepcionista pergunta indolente e
eu forço um sorriso.
— Meu bem, diga a ele que é a Doutora Bárbara Spencer. Tenho
certeza que ele vai me receber. – Recoloco meus óculos.
Jack Hardy estava muito enganado se pensa que vai descartar minha
filha sem mais nem menos. Eu tinha sonhado com uma carreira fabulosa para
Liz na medicina desde que ela era uma garotinha.
Eu tinha feito tudo para que ela focasse somente em seus estudos. E
agora finalmente ela ia começar sua grande carreira.
Tinha sido realmente uma merda que Jack Hardy continuasse como
diretor do hospital. Eu estava muito ausente da cidade nos últimos anos,
circulando pelo país com minhas palestras e divulgando meus livros e não me
ative a este pequeno detalhe inoportuno.
E, para completar, o parasita do filho dele também estava ali.
Por um lado Liz tinha razão. Seria desastre colocá-la perto daquele
garoto de novo. Eu talvez tenha subestimado a paixão adolescente que ela
sentira há oito anos.
Eu achava que Liz era uma garota madura emocionalmente agora. Ela
estava seguindo exatamente como eu queria. Sem se envolver com ninguém.
Eu sabia do tal amigo Peter White, que ela mantinha em sua cama quando era
conveniente.
Eu também sabia que não havia perigo ali. Ele era apenas um “pau
amigo” como as novas gerações chamavam. Ora, uma mulher precisava
relaxar de vez em quando. Só não poderia se deixar envolver.
Éramos mulheres fortes. Que colocam a carreira acima de tudo.
O episódio com Thomas Hardy foi uma lástima. Graças a Deus, eu
consegui tirá-lo da vida dela. Claro, ajudou muito o fato de ele ter sido um
fedelho egoísta e dado o fora nela, jogando-a pra escanteio antes que ela
fosse embora com ele.
Eu não queria nem imaginar o desastre que teria sido.
Infelizmente, aconteceu a gravidez. Mais um inconveniente que
consegui contornar. Uma criança só iria atrapalhá-la.
Eu mesma me arrependi muitas vezes de ter ficado com Liz. O pai
dela insistira muito. Eu ainda era jovem e influenciável. Se voltasse no
tempo, talvez tivesse feito a mesma coisa que Liz. Filhos eram problema para
a vida inteira. Veja onde estou agora para comprovar?
Tudo bem. Eu tinha escolhido criá-la. E se havia aceitado todo o
trabalho da maternidade, eu precisava ter minhas compensações. E a minha
seria vê-la como uma grande médica. Assim como eu. Ou talvez até maior. O
céu era o limite.
Eu só precisava achar uma saída para aquele pequeno problema com
os Hardy.
— Doutora Spencer, o Doutor Hardy irá recebê-la – a recepcionista
chama a minha atenção. – Quinto andar.
Eu me afasto para o corredor sem agradecer.
Quando chego a área do elevador, há uma médica loira e jovem
tentando convencer uma criança de uns oito anos a sentar na cadeira de rodas.
— Não me irrita. Senta logo aí!
— Não! – A criança bate o pé. Está muito vermelha e aposto que é
febre – eu não estou tão doente que não possa andar Amber!
— Sou eu a médica aqui! Eu decido! Nós vamos subir para fazer
alguns exames.
— Eu sei, posso andar!
— Querida, por favor – a médica parece aflita.
— Cadê o Thomas? Ele nunca iria me obrigar!
— Thomas vai chegar daqui a pouco e ele vai concordar comigo
porque ele se preocupa com você também.
Eu aprumo meus ouvidos. Ela disse Thomas?
Olho agora para as duas curiosas e então reconheço os traços Hardy
na médica loira. Esta deve ser a outra filha de Jack Hardy.
Mas, quem será aquela garotinha?
— Olá, você é Amber Hardy? – Pergunto como quem não quer nada.
— Sim, por quê?
— Ah, logo reconheci. Eu trabalhei com seu pai. Há muito tempo.
Sou Bárbara Spencer.
— Sei – ela não parece interessada.
Eu sorrio para a garotinha.
— E você quem é?
— Sou filha do doutor Jack.
— Filha? Não sabia que Jack tinha uma filha da sua idade.
— Tenho oito anos!
O elevador chega e entramos.
A garotinha ainda se recusa a sentar na cadeira.
— Nina, está muito teimosa! – Amber reclama. Um alarme soa em
minha mente.
— Nina? Seu nome é Nina?
— Sim, isto mesmo – Amber responde irritada e puxa a criança pela
mão – chegamos ao nosso andar – elas saem sem olhar para trás.
Eu ainda continuo ali, perplexa. Minha mente dando voltas e juntando
o quebra-cabeça.
Entro no escritório de Jack que, obviamente, não está nem um pouco
feliz em me ver.
— Em que posso ser útil, Bárbara?
— Corta a conversa fiada e vamos direto ao que interessa.
— Veio falar sobre Liz, claro.
— Sim. Você vai recontratá-la.
— Não. Thomas e Liz juntos novamente será uma catástrofe Bárbara.
Tem que concordar.
— Claro que concordo com você. Não quero minha filha perto do
canalha do seu filho.
— Então entende que Liz não pode trabalhar aqui.
— Não. Quem não deve trabalhar aqui é seu filho.
— O quê?
— Você vai demiti-lo.
— Você ficou louca?
— Não. Estou muito lúcida. Essa é a chance da vida da minha filha. E
você não vai atrapalhar. Seu filho precisa sair do caminho.
— Você só pode estar brincando se acha que vou preterir meu filho, o
melhor cirurgião deste hospital, em detrimento de sua filha que mal acabou
de sair da faculdade!
— Não estou brincando. E também entenda que não estou brincando
quando digo que se não demitir o Thomas e recontratar a Liz, eu terei que
contar a ele seu segredinho sujo chamado... Nina.
Liz

Peter me leva a meu restaurante favorito de comida italiana, por


algum tempo nós falamos sobre assuntos amenos e eu esqueço todos os meus
problemas.
Já estamos na sobremesa quando Peter segura minha mão
repentinamente.
— Liz, eu preciso te dizer algo.
— O que foi?
— Não sei se é o melhor momento, ou o pior. Só sinto que tem que
ser agora. Eu não quero mais ser seu amigo.
— O quê?
— E nem transar com você de vez em quando.
— Como assim Peter? - Sinto meu coração afundar no peito. Peter era
meu porto seguro. Ele não podia me deixar. Justo agora que eu ia mais
precisar dele. De sua amizade.
— Eu quero namorar você.
— Namorar? – Eu puxo minha mão das dele.
Sinto falta de ar.
— Eu gosto de você, Lili. Inferno, eu sempre soube que era uma
garota difícil, desconfiava que pudesse ter acontecido alguma coisa que a
deixou assim, mas eu gostava demais de você para me afastar. Fui seu amigo,
porque sabia que era o que precisava. Te levei pra cama, quando você
precisou também. Sufoquei o que eu sentia, porque não queria te perder e,
mesmo sabendo que posso perder agora, eu estou me arriscando. Pedindo
mais. Agora que eu sei o que blindou seu coração, eu quero tentar. Eu sei que
se você deixar, eu posso conseguir abrir seu coração pra mim. Por favor, me
deixa tentar.
Solto meu fôlego lentamente, quando Peter termina sua explanação
apaixonada.
Eu queria dizer que estava surpresa. Que nunca esperei que
acontecesse, a quem eu queria enganar? Acho que no fundo eu sempre soube
dos sentimentos dele. Eu apenas fingia não saber porque não queria ter que
retribuir. Pra mim, sua amizade sincera bastava. Ainda mais que ela vinha
com sexo como brinde. Era perfeito. Não envolvia meus sentimentos.
Embora envolvessem os de Peter. Que provavelmente, estavam
crescendo cada vez mais, enquanto eu me mantinha fria e distante.
Aparentemente esta seria a semana dos segredos revelados. E eu teria
que lidar com isto agora.
— Não sei o que dizer Peter – murmuro – eu te contei hoje tudo o que
aconteceu comigo, os motivos pelos quais eu não quero me envolver de
novo...
Ele segura minhas mãos novamente.
— Não pode deixar algo que aconteceu quando tinha dezoito anos te
afetar para sempre, Lili. A vida é uma só. Quando menos esperar será uma
velha. E estará sozinha. E lembrará que eu quis te dar o meu amor. E você
recusou.
Meus olhos se enchem de lágrimas, porque sei que ele tem razão.
Inferno, eu já me sentia velha e sozinha!
Eu tinha uma profissão que fingia gostar.
Eu tinha uma filha, que estava perdida pra sempre. Eu tive um amor
que me rejeitou. E que, mesmo estando de volta, eu não podia confiar que
não faria a mesma coisa. Thomas ainda era o mesmo canalha egoísta. Eu vi
como ele age no hospital.
O fato de ele estar me rondando devia ser apenas algum resquício
daquela química louca de tanto tempo atrás, que não foi suficiente para fazê-
lo me manter por perto.
E eu tinha Peter. Esse cara incrível que está na minha frente, pedindo
uma chance. Disposto a me amar.
Alguém como Thomas nunca foi.
Será que já não está na hora de eu deixar o passado no passado?
Eu não posso mudar nada do que aconteceu. Minha filha está perdida.
Até meu emprego eu perdi.
Talvez seja a hora de eu finalmente dar um passo à frente.
— Por favor, Liz. Seja minha namorada.
Eu encaro os olhos ansiosos de Peter.
— Eu aceito.

***

Não sei bem o que estou sentindo quando Peter me deixa em casa.
Ele está radiantemente feliz e eu não consigo fingir que me sinto da
mesma maneira.
E Peter percebeu, mas não está bravo.
— Eu sei que está sendo uma fase difícil pra você – ele diz quando
me acompanha até a porta.
— Eu sinto muito se não estou sendo uma boa companhia.
— Não quero que finja uma felicidade que não sente Lili. Eu sei o que
está sentindo. Sei que não é fácil e que precisa de um tempo para digerir tudo.
— Obrigada, Peter.
— Quer que eu entre? – Ele indaga com cuidado e eu dou um passo
atrás, rompendo nosso contato.
— Hoje não, me desculpe.
— Tudo bem. Eu disse que ia te dar o tempo que precisa. Eu já fico
feliz só de a gente estar tentando
Eu sorrio.
— Eu também.
Ele beija levemente meus lábios e me deixa entrar sozinha no
apartamento.
Eu deveria ter vergonha de admitir que a primeira coisa que eu faço é
ir para meu quarto e aspirar, para ver se ainda tem o cheiro do Thomas ali.
Mas já se foi.
Assim, como ele já não está na minha vida.
Tento ignorar a dor profunda em meu coração ao constatar. Como não
estou mais no hospital, nossos caminhos tomarão rumos diferentes.
Como aconteceu nos últimos oitos anos.
E eu não devo deixar o sofrimento tomar conta de mim outra vez,
como naquele tempo.
Agora eu tenho Peter. E devo ao menos tentar esquecer Thomas de
vez e seguir em frente.
Mas não estou preparada para a ligação que recebo naquela tarde.
— Elizabeth Spencer? – Diz a voz feminina muito formal.
— Sim?
— Aqui é do Chicago Mercy, a senhorita deve estar presente em uma
reunião ainda hoje com o Doutor Jack Hardy. As 17h, posso confirmar sua
presença?
Jack Hardy quer falar comigo? O que ele tem pra falar comigo?
Penso em recusar. Mas é melhor eu terminar logo aquela história.
— Tudo bem.
Na hora marcada, eu entro a sala de Jack Hardy.
Ele me fita gravemente.
— Por favor, sente-se.
Eu faço o que ele pediu, ainda levemente apreensiva.
— Por que estou aqui?
— Estamos te recontratando, Senhorita Spencer.
— O quê?
— Isto mesmo. Pode retornar ao trabalho amanhã.
— Eu não entendo...
— Apenas fique satisfeita com isto.
— Eu... Não acho que é uma boa ideia, na verdade. Não acho que
trabalhar com Thomas vá dar certo, e o senhor sabe bem por que.
— Não se preocupe quanto a isto. Thomas será transferido muito em
breve.
— O quê? – Por esta eu não esperava.
— Está dispensada. – Ele volta sua atenção para o computador.
— Mas...
— Estou muito ocupado, senhorita Spencer. Por favor, se retire.
Eu saio da sala atordoada.
Como assim, Thomas seria transferido e eu iria voltar.
Que diabos estava acontecendo ali?
— Liz?
Eu me volto ao ouvir a voz.
Thomas está me fitando no corredor, parecendo tão surpreso quanto
eu. E, segurando sua mão, está Nina, sua irmã.
— O que está fazendo aqui? – Ele pergunta.
— É... Eu... Fui recontratada, seu pai acabou...
— Foi recontratada – seu rosto se ilumina em... alivio? – Isto é ótimo.
Foi um absurdo sua demissão.
Eu me pergunto se ele sabe sobre a transferência.
— Oi Liz – Nina larga a mão de Thomas e vem em minha direção
sorrindo.
Seu sorriso é muito parecido com o de Thomas.
— É... Oi – eu a cumprimento atordoada.
— Você trabalha aqui né? Fala pro meu irmão que eu não estou
doente?
— Eu...
Olho pra Thomas, sem entender e ele ainda parece meio chocado de
me ver ali.
— Eu só estou com febre! Não quero fazer um monte de exame
chato!
Eu olho mais atentamente para ela e realmente seu rosto está muito
vermelho e febril e seus olhos parecem cansados.
— Nina, não adianta tentar fugir de mim, como fugiu da Amber –
Thomas cruza os braços e me encara – Liz, Nina está com febre alta e
provavelmente tem alguma infecção, qual exame ela deve fazer?
O quê? Ele estava voltando a me sabatinar.
Eu encaro o rosto da menina.
Tentando buscar na minha mente um possível diagnóstico.
E a conclusão que chego me deixa com o peito pesado.
— Você parece cansada – eu toco sua testa.
— Eu vivo cansada ultimamente! – A menina revira os olhos, como
se não fosse nada demais.
Eu rezo para não ser. Rezo para estar errada em minha suposição.
Olho para Thomas. Será que ele não percebeu? Não acho que estaria
tão tranquilo se tivesse percebido. Talvez por ser sua irmã, ele esteja
deixando passando algo crucial.
— Hemograma completo. Com contagem de cada tipo de célula
sanguínea. Se não estiver normal, encaminhar a um especialista – respondo
por fim.
Os olhos de Thomas se arregalam lentamente. Ele entendeu minha
desconfiança.
— Apenas... para se certificar Thomas – me vejo na obrigação de
diminuir seu horror.
— Eu não me sinto bem... Estou tonta – Nina chama minha atenção
ao gemer e quando olho pra ela está mais vermelha do que antes.
— Nina...? – Thomas também percebe e vem em sua direção. Antes
que ele chegue até ela, Nina perde os sentidos caindo em meus braços.
Capítulo Dezessete

Thomas

Como sabemos que estamos em um pesadelo?


Observo Nina através do vidro da sala de emergência sentindo-me
impotente, enquanto aguardamos os resultados dos exames de sangue.
Ela está acordada agora, embora ainda esteja fraca e pálida. Amber
está com ela no quarto. Acaricia seus cabelos lentamente, enquanto Nina
trava um monólogo sobre algum assunto que Amber finge prestar atenção, eu
sei, pelos olhares apreensivos que me lança através do vidro de vez em
quando, que sua preocupação é mesma que a minha.
Repetidamente na minha cabeça, eu vejo Nina caindo nos braços de
Liz, como em câmera lenta. Meu coração já havia deixado de bater
normalmente quando Liz colocou as malditas suposições de diagnósticos na
minha cabeça.
O grito de Liz me tirara do torpor e, com poucas passadas, eu estava
diante dela transferindo Nina para meus braços correndo com seu corpinho
quente para a emergência.
E tudo havia se transformado em pesadelo. Cada segundo que passava
os sintomas começavam a se embaralhar diante dos meus olhos. Nina estava
frequentemente cansada. Tinha manchas sobre a pele. Febre sem explicação.
Reclamava de dores nas articulações. E agora seu nariz sangrava.
— Thomas – a voz de Liz me livra dos pensamentos sombrios e, por
um momento, eu me permito deixar de lado as preocupações com a saúde da
minha irmã para apenas apreciar sua presença.
Ela estava de volta.
Tudo o que eu mais queria naquele momento era ter a chance de
conversar a sós com ela. Mesmo não sabendo o que iria dizer.
Eu só precisava estar perto dela.
— Como ela está? – Pergunta.
— Estamos aguardando o exame de sangue. Mas... acho que você
pode ter razão em suas suposições.
— Eu posso estar enganada...
— Thomas – Nós nos viramos e vemos Paola se aproximando. –
Estou com os resultados de sua irmã.
— Você entrou em contato com meu pai? – Eu havia pedido que
Paola tentasse localizar meu pai desde quando Nina passou mal.
Ele havia saído sem avisar ninguém aonde ia. O que era no mínimo
estranho.
— Ainda não. Não atende o celular – Paola explica. Lançando um
olhar azedo para Liz. – O que você faz aqui? Não foi demitida?
— O Doutor Hardy me readmitiu – Liz dá de ombros, sem reconhecer
o olhar ciumento de Paola.
Eu podia bem imaginar de onde tinha saído o veneno para meu pai
tentar se livrar de Liz. Só que agora eu não podia perder meu tempo pensando
nas armações de Paola.
Eu pego os exames de sua mão.
— A contagem de leucócitos está mais baixa que o normal. –
Verifico.
— Pode ser uma deficiência imunológica. – Paola diz, mas eu já vejo
tudo preto.
Olho para Liz.
— Chame o especialista em Hematologia.
Ela se afasta para fazer o que eu pedi.
— Thomas, pode ser uma anemia. Ou algum vírus. – Paola insiste.
— Sim, pode ser... Mas ela tem os sintomas, Paola.
Sua mão aperta meu ombro.
— Sinto muito...
Eu me afasto e entro no quarto.
— Thomas, não estou me sentindo bem – Nina reclama e isto parte
meu coração.
— Vai ficar tudo bem, vamos cuidar de você – eu toco seus cabelos e
olho para Amber – Pode vir aqui fora um instante?
Ela beija a testa de Nina e me segue.
Eu lhe entrego o exame.
Seu rosto empalidece.
— Oh Deus!
— Não vamos nos precipitar, pode ser uma anemia, um vírus – repito
as palavras de Paola, tentando me convencer.
Amber é como eu. No fundo, ela sabe.
Nós dois sabemos.
E, pela primeira vez em muito tempo, Amber chora na minha
presença. E também pela primeira vez em muitos anos, eu me aproximo e
passo meus braços por seus ombros que tremem.
— Vai ficar tudo bem, Amber.
— Se ela estiver doente... Ela é só uma criança, Thomas.
— Eu sei.
— Já avisaram o papai?
— Ninguém conseguiu encontrá-lo ainda.
Com o canto do olho eu vejo a doutor Scott Brooks, o especialista em
Hematologia, se aproximar junto com Liz.
Eu lhe entrego os exames e explico os sintomas de Nina.
— Certo.
Ele passa por nós e vai examinar Nina.
Eu encaro Liz, ela parece cansada e nem está de uniforme, o que me
lembra que não deveria estar trabalhando.
— Vá pra casa. Já é tarde.
— Mas...
— Você nem veio para trabalhar hoje, não é?
— Não, eu... – ela aparece querer falar algo, mas se cala – tudo bem.
Nos vemos amanhã.
— Sim, amanhã – Eu concordo e isto me deixa mais tranquilo. Saber
que ela estaria aqui amanhã. Certamente esse não era o momento para nos
concentrarmos em nossos problemas de relacionamento, os antigos e os
atuais. Só de saber que ela estaria por perto já era um alento.
O médico retorna e sua expressão é grave.
— Sim, ela tem todos os sintomas e os exames – ela estuda o
hemograma – A taxa de leucócitos está muito baixa. Ela apresenta 12% de
promielócitos e 5% de blastos – ele nos encara - sabem o que significa.
Amber coloca a mão sobre a boca.
— Síndrome Leucêmica – murmuro, sentindo o chão fugir dos meus
pés.
— Vou precisar de uma punção de medula para confirmar, embora
tudo indique que é leucemia promieolocítica aguda.
Eu achava que já tinha sentindo medo, nada se comparava àquele
sentimento de pavor que sentia com a iminente doença de Nina.
Nós teríamos que aguardar a punção, mas diferentemente de Amber,
eu já havia aceitado o pior. Nina estava doente.
Minha pequena e doce Nina. A garotinha que aparecera em nossas
vidas quando menos esperávamos e conquistara o coração de três pessoas que
até aquele momento se julgavam incapazes de amar.
Nós tínhamos nos reunido em volta dela, mimando e protegendo. E
ela tinha tirado de cada um de nós algo que nem nós sabíamos ter.
E agora ela estava a mercê daquela doença terrível. Era cruel que o
destino a tivesse feito adoecer em meio a uma família de três pessoas que
viviam para a medicina.
Agora, eu me sentia impotente em vista daquela situação cruciante.
Eu havia fugido do hospital, da espera angustiante e entrado no carro
dirigindo sem rumo. E, sem que ao menos tenha me dado conta, eu estava
batendo na porta da casa de Liz.
Ela abre a porta pra mim e de repente eu constato que não havia
nenhum outro lugar do mundo em que eu gostaria de estar.
— Thomas? – Ela me encara com olhos surpresos. Seus cabelos estão
presos num rabo de cavalo frouxo e ela usa um simples pijama cinza.
— Posso entrar? – Pergunto, abraçando meu próprio corpo.
Ela hesita. Por um momento, entendo o absurdo da minha presença na
sua porta, depois de tudo. Pergunto-me se ela vai fechá-la na minha cara.
Pergunto-me se terei forças para fazer outra coisa a não ser me deixar
escorregar para o chão e chorar.
E já não tenho forças para nada.
Então ela abre a porta, dando espaço para eu passar.
Eu entro em seu apartamento e vejo seu olhar me acompanhar.
— O que aconteceu com você? – Pergunta por fim.
— Você estava certa. Nina tem Leucemia.
— Nossa... – ela toca meu braço – Você está tremendo. Por que não
se senta? Acho que precisa de uma bebida.
Eu me deixo guiar até o sofá, minha vista embaçada.
— Eu não sei o que fazer, eu... – minha voz se quebra.
Estou desmoronando por dentro.
— Oh Thomas – ela se aproxima e eu a puxo pra mim, meus dedos
como garras em sua camiseta, enterrando minha cabeça em sua barriga, meus
soluços se quebrando em seu corpo. – Eu sinto muito – ela sussurra, enquanto
seus braços cingem minha cabeça, seus dedos acariciam meus cabelos.
Não sei quanto tempo ficamos assim, até que ela me solta e vai buscar
a bebida que tinha me oferecido.
Sinto-me esgotado. Perdido. Enfraquecido.
Liz senta ao meu lado, depois de me dar um copo de conhaque.
— Vocês têm certeza do diagnóstico?
— Ainda vão fazer uma punção, é apenas uma formalidade pra ter
certeza absoluta.
— Ela é jovem, Thomas, vai conseguir...
— Exatamente. Ela é jovem. Uma criança, porra! – solto um
grunhido, frustrado – você sabe como é essa doença. Nós estudamos esta
merda toda. Inferno, eu já vi acontecer incontáveis vezes... Não quero ver
minha irmã passar por tanto sofrimento.
Bebo o líquido todo de um só gole.
— Tem mais disso?
Ela pega o copo da minha mão, colocando sobre a mesa de centro.
— Não acho que ficar bêbado seja a solução, Thomas.
Eu passo os dedos por meus cabelos frustrado.
— Não sei o que fazer...
— Eu sinto muito – ela toca minha mão mantendo-a entre as dela,
acariciando meus dedos.
Respiro fundo e sinto seu cheiro.
Invoca tantas lembranças.
Sem pensar, me aproximo e toco seus lábios com os meus.
Tem gosto de conhaque e lágrimas. Eu nem tinha percebido que ela
havia chorado também.
Seu suspiro descarrega uma onda de desejo em mim que ultrapassa a
barreira da dor. E eu seguro seus cabelos, mantendo a proximidade. Meus
lábios aprofundando o beijo.
Naquele momento eu precisava dela como precisava do ar para
continuar respirando. Como se viesse de muito longe uma campainha toca
insistentemente e ela me empurra.
— Thomas, não, por favor... – sua voz está cheia de angústia
misturada com anseio.
Seus olhos temerosos estão permeados de faíscas de desejo.
Eu entendo seu medo, sua hesitação. Mas estou pouco fodendo para
isso nesse momento.
Era exatamente o que eu ia dizer, quando ela se levanta e vai até a
porta.
— Oi, por que demorou?
A voz masculina me faz virar e eu vejo Peter White surgir em meu
campo de visão.
Ele segura uma garrafa de vinho e me encara com olhos furiosos.
— O que ele está fazendo aqui?
— Peter calma. Thomas está aqui porque está passando por
problemas...
— Eu podia perguntar o mesmo – digo, ignorando as palavras de Liz.
O que aquele idiota estava fazendo ali segurando uma garrafa de
vinho como um maldito Don Juan?
— Eu sou o namorado da Liz, imbecil – Ele dá um passo em minha
direção.
Eu não me mexo, surpreso com suas palavras.
— Peter, para com isso! – Liz, puxa seu braço e me encara. – Acho
melhor ir embora, Thomas.
O quê?
— Este cara é seu namorado? – Pergunto, querendo ouvir uma
negativa, bem lá no fundo sabendo que ela não viria.
— Sim – ela responde num sussurro e eu penso ouvir uma nota de
culpa em sua voz.
— Pois é, eu sou o namorado, então é melhor dar o fora – Peter
continua e minha vontade é partir sua cara bonitinha em duas.
Eu recuo.
Que direito eu tenho afinal?
Eu passei oito anos sem ver ou saber de Liz. Eu havia escolhido
assim.
Provavelmente muitos caras deviam ter passado por sua vida, assim
como esse idiota. Do mesmo jeito que muitas mulheres passaram pela minha.
Nenhuma como ela. Nenhuma se comparava a ela.
E eu queria perguntar se alguns daqueles caras, até mesmo Peter,
significavam alguma coisa pra ela.
— Thomas, vai embora, por favor – ela pede de novo – acho que
precisa descansar. Por Nina – ela diz o nome da minha irmã e eu volto a
minha dura realidade. Eu tinha coisas mais importantes para me preocupar no
momento. Minha paixão mal resolvida por Liz teria que esperar.
— Sim, tem razão.
Eu me encaminho para a porta e ela me acompanha.
— Thomas, me desculpa, eu... – balbucia baixinho para que só eu
possa ouvir.
— Tudo bem.
— Eu queria... queria poder fazer qualquer coisa pra ajudar...
Eu sorrio tristemente e toco seu rosto. Ela fecha os olhos.
— Você já fez.
E, antes que faça uma merda, como colocar o namorado pra fora a
pontapés para poder ficar ali com ela, eu dou meia volta e vou embora.
Vou para o hospital e passo a noite com Nina.
Eu não consigo dormir e, nas primeiras horas da manhã, Erick entra
no quarto dizendo que saiu o resultado.
— Amber e seu pai estão na sala dele.
— Ok, obrigado.
— Eu sinto muito, cara – ele bate nas minhas costas.
Eu me encaminho para a sala do meu pai e ele e Amber estão
discutindo.
— Você sabe que eu tenho razão! – Ela diz irada.
— Nós ainda não sabemos a extensão da doença! Ela passará por
todos os tratamentos habituais... – Meu pai diz.
— Que podem não dar em nada! Ela sofrerá e...
— Está sendo dramática, Amber!
— Cadê os exames? – Entro na sala e eles finalmente notam minha
presença.
— Oi filho – meu pai me encara. Seu rosto está abatido e seu olhar
tem uma angústia que nunca vi antes – estamos debatendo a situação de Nina.
— Diz a ele, Thomas – Amber grita – Diz que precisamos achar sem
demora a verdadeira família de Nina!
— Amber – meu pai tenta acalmá-la.
Eu relanceio o olhar pelos exames. Está tudo ali.
Sem sombra de dúvida.
E eu entendo o que Amber quer dizer.
— Sim, pai, Amber tem razão. Temos que achar os pais de Nina. Ela
pode ter irmãos. Eles podem ser possíveis doadores de medula óssea.
Capítulo Dezoito

Liz

Assim que Thomas desaparece porta afora eu olho para Peter, parado
do outro lado da sala me encarando com olhos acusatórios, sentindo como se
algo estivesse tremendamente errado.
O que é absurdo. O cara que saiu por aquela porta, não deveria
significar mais do que o que está na minha sala nesse momento. Esse é o meu
namorado.
Como dizer ao meu tolo coração que era muito certo deixar Thomas
ir? E como eu poderia fazer para convencê-lo, quando ainda sinto o gosto do
seu beijo na minha boca. Quando anseio por mais?
— Não entendi o que esse cara estava fazendo aqui.
Respiro fundo e me sento no sofá. O mesmo em que Thomas tinha me
beijado a pouco tempo.
Passo a mão pelos cabelos cansadamente.
— Eu falei. Ele estava com problemas.
— O que não é motivo para ele procurar você.
— Peter, sinceramente, não estou a fim de brigar ok? – Minha voz
demonstra toda a exaustão daquele dia interminável.
— Merda, Liz! – Peter desaba no sofá – eu também não vim para
brigar com você. Porém, o que quer que eu pense? Você e esse tal de Thomas
Hardy têm uma história juntos. Uma que eu disse a mim mesmo que vou
apagar da sua memória. Então quando chego aqui vocês estão juntos!
— Não estávamos juntos – eu luto para não corar. – Não da maneira
que está insinuando – nego descaradamente. Sei que estou errada. Que talvez
devesse contar a Peter sobre o beijo, mas para quê? Para magoá-lo? Não é
como se tivesse significado algo mais do que um momento de desabafo.
Thomas estava sofrendo e eu só queria consolá-lo. Foi o único
motivo.
Talvez se eu repetisse bastante quem sabe eu não acabasse me
convencendo.
— Vocês estavam chorando.
— A irmã do Thomas está com câncer – esclareço. Peter franze os
olhos.
— A tal gêmea?
— Não. Ele tem uma irmãzinha. Nina. Ela é só uma criança e eu
estava lá no hospital quando ela passou mal e...
— Espera, o que estava fazendo lá?
— Eu fui readmitida.
— Sério? Como assim?
Dou de ombros.
— Nem eu entendi. O Dr. Hardy me chamou de volta.
Peter me encara com cuidado.
— Acha que é uma boa ideia continuar no hospital dos Hardy – e eu
sei que por Hardy ele quer dizer Thomas.
— Ele me disse que Thomas vai sair.
— Nossa, essa é uma reviravolta estranha.
— Sim, eu também acho.
— E você aceitou voltar.
— A única coisa que poderia me manter longe do Chicago Mercy é o
Thomas e se ele vai sair... Talvez não tenha motivos para eu não voltar.
De repente Peter se move em minha direção e segura minhas mãos
entre as suas.
— Não acho que deva voltar Liz.
— Peter – me mexo desconfortável, mas ele não me solta. Seus olhos
são febris em minha direção.
— Eu vou ser transferido de cidade.
— O quê?
— Estou indo embora, Liz.
— Mas... como... onde...? – Sinto meu coração afundando. Peter ia
me deixar também?
— Estou indo para Seattle. Recebi uma proposta irrecusável para
trabalhar em uma obra na cidade. Eu serei o engenheiro chefe.
— Uau, nossa... é... incrível – digo sem conter minha decepção.
Peter era meu melhor amigo. A única constante na minha vida. Podia
até ser egoísmo, eu realmente não queria me separar dele. Justo agora que eu
havia decidido mudar o status do nosso relacionamento.
— Eu quero que você vá comigo.
Arregalo os olhos, surpresa.
— O que?
— Liz... casa comigo?
— Peter... eu... – não consigo pensar coerentemente. Solto minha mão
das suas e me levanto. – Isto é... Nem sei o que pensar...
Como assim Peter estava me pedindo em casamento?
— Eu sei que é repentino – ele também se levanta e segura meus
ombros – eu te amo. Amo há muito tempo...
— Peter... – sinto-me sufocar com aquela declaração tão intensa. Tiro
suas mãos de meus ombros e as seguro contra meu peito – eu também te amo.
Mas não sei se... é do jeito que você gostaria. Você foi meu melhor amigo por
todos esses anos. Eu sempre vou precisar de você comigo, porém... A gente
mal decidiu namorar, como é que já pretende pular pra... casamento?
— Eu estou indo embora. Não vamos conseguir manter um
relacionamento à distância.
— Eu entendo e concordo daí a... casar? Casamento é algo muito
sério. É... um passo muito grande!
— Que eu quero dar com você! – ele insiste. E a paixão em seu olhar
é comovente e assustadora ao mesmo tempo.
Bem lá no fundo do meu coração, eu quero jogar a cautela pela janela.
Quero aceitar todo aquele amor. Eu sei que Peter nunca vai me magoar. Que
ele deseja me fazer feliz.
Há uma parte de mim que acha bem possível.
No entanto, existe aquela outra parte. A parte da Liz que deixou um
cara entrar em seu coração um dia e que ansiou por tudo que estavam lhe
oferecendo agora. Uma vida juntos e então teve todos os seus sonhos
destroçados e espalhados pelo vento.
E esses sonhos nunca mais voltaram.
Como poderei retribuir o amor de Peter? Eu sou uma pessoa
quebrada.
Thomas me quebrou há oito anos e até hoje eu tento encontrar os
caquinhos pra me consertar e ser inteira de novo. E a merda é que ele voltou,
está rondando a minha vida e pisando nos caquinhos.
E o pior de tudo, existe aquele pedaço que foi embora junto com a
minha filhinha perdida.
Só de pensar nela eu sinto aquela dor insuportável me invadir
novamente. O vazio que nunca será preenchido.
Peter acha que vai me fazer esquecer Thomas e tudo o que ele me fez
sofrer. É que ele não sabe que existe sofrimento maior do que uma paixão
perdida.
A dor da perda da minha filha nunca vai passar. Ela está entranhada
em mim e vai me acompanhar até a minha morte. Sei que talvez devesse
tentar explicar a Peter, temo que ele diga que essa dor pode ser curada
também. Que ele poderá me dar filhos um dia para substituir a minha bebê
perdida.
E eu não quero que ele diga. É quase como se eu estivesse traindo a
sua memória.
Eu não quero esquecer aquela dor. Enquanto eu a sentir, significa que
a sua memória ainda está dentro de mim e, de alguma forma, eu sinto que eu
não a abandonei totalmente. Dentro do meu coração, ela continua sendo meu
bem mais precioso.
Solto as mãos de Peter.
— Eu não posso... Sinto muito muito.
Seus ombros caem e eu vejo a dor em seu olhar. Sou apunhalada pela
culpa.
— Eu quero realmente dar uma chance a você, Peter, porém
casamento é algo sério demais.
— Definitivo demais? – ele não disfarça a mágoa.
— Não é...
— Olha eu sei que parece muito precipitado. Mas eu juro Liz. Eu
posso fazer você feliz. Você só precisa se permitir, me permitir.
Ele toca meu rosto.
— Estou indo embora daqui a três dias...
— Três dias, tão rápido?
— A obra já começou e eu estou correndo com a mudança. Por isso
vim aqui agora, te dizer que estarei muito ocupado.
— Eu entendo...
— Eu vou esperar Liz. Vou esperar sua resposta. Não quero te
pressionar. Sei que parece que começamos agora, mas pra mim, essa história
já está rolando faz muito tempo.
Ele beija minha testa.
— Eu preciso ir.
— Tudo bem – eu o acompanho até a porta aliviada. Não quero que
ele fique esta noite.
Eu preciso de tempo e espaço para pensar.
E, assim que ele vai embora, eu percebo que deveria estar pensando
em sua proposta, no entanto meus pensamentos se voltam para Thomas.
Sinto meu coração apertar ao lembrar de como ele estava arrasado
quando bateu na minha porta. Em como eu sabia que não deveria e, mesmo
assim, o deixei entrar.
E deixei que me beijasse.
E, mil vezes inferno, eu tinha ansiado por aquele beijo bem lá no
fundo da minha alma. Como se ela soubesse que a alma dele precisava desta
nossa insolúvel conexão.
Eu já não podia negar a mim mesma que poderiam se passar mil anos,
ainda sim, nossas almas se reconheceriam. Nossos corpos se desejariam.
E agora eu estava voltando ao hospital. Pelo menos por algum tempo,
até que a tal transferência acontecesse, nós estaríamos lado a lado de novo.
A não ser que eu aceitasse a proposta de Peter.
Eu adormeço sem ter encontrado uma saída.

***
Na manhã seguinte, eu vou trabalhar.
Minha chegada ao Chicago Mercy acontece debaixo de fofocas
sussurradas que finjo não ouvir. Não sei o que estão falando ou como
entenderam a minha volta, também não me interessa. Estou ali para trabalhar
e não para me envolver em falatórios.
E, porque não confessar, eu espero rever Thomas. Digo a mim mesma
que se trata apenas de uma preocupação solidária com o momento difícil que
ele está passando com a doença da irmãzinha.
— Onde está o doutor Thomas? – Jenny pergunta quando chegamos à
enfermaria e quem está nos recepcionando e passando nossas atribuições é a
Doutora Chloe.
— Não é da sua conta – ela responde secamente ganhando uma careta
de Jenny.
— Credo só perguntei.
— Jen! – Julie a cutuca.
— O quê? Ela é uma grossa. Tá ficando pior que a Amber...
— A única coisa que lhe interessa é que deve ir para a sutura
imediatamente – Chloe ignora os comentários mordazes de Jenny.
Eu não quero dizer que também anseio saber onde está Thomas, nem
ouso perguntar algo a Chloe, que parece estar de mau humor. Será que ela
também está afetada pela doença de Nina? Ela parecia ser amiga tanto de
Thomas quanto de Amber e esta última também não havia aparecido hoje.
— Elizabeth Spencer. Entregar exames – ela resmunga e se afasta.
Eu vou executar minhas tarefas e o tempo inteiro, me pergunto se
Thomas irá aparecer.
E, como quem não quer nada, passo pelo quarto de Nina Hardy.
Como era de se esperar Amber está lá e, ao lado dela o Doutor Jack. A
menina está dormindo enquanto Amber e o pai parecem discutir em voz
baixa.
— O senhor sabe que eu tenho razão! – Amber diz enfaticamente.
— Não vamos mais discutir esse assunto, Amber! – O médico retruca,
irritado.
— Olhe para ela! Veja como esta pálida! Será que não tem um pingo
de sentimento dentro de você? Se você se negar a me dizer, eu vou atrás da
Diana!
— Deixe a Diana fora disso! Ela foi embora há muito tempo e nem se
importa com a Nina.
— Você a fez ir embora, com esta sua frieza!
— Não sabe de nada, Amber! – Refuta sombriamente e então levanta
a cabeça e nota minha presença. Tenho a impressão que seus olhos me
encaram com medo por um momento.
— Me desculpem – murmuro.
— O que você quer? Está procurando o Thomas? – Amber diz
friamente – ele só virá trabalhar a tarde. Se precisar de algo peça a Chloe.
— Sim claro... – eu dou meia volta e me afasto, perguntando-me do
que eles estariam falando.
E estou pensando em sair para almoçar quando vejo Paola Becker. Ela
não parece satisfeita em me ver.
Eu sei que foram as fofocas daquela médica que fizeram Emily ser
demitida. E também o motivo da minha demissão, em parte. Só não entendo
o que ela ganharia.
— Ainda não entendi como conseguiu ser readmitida – ela diz
mordazmente.
— Por que não gosta de mim, doutora Paola? – Não consigo me
impedir de perguntar – me atraiu para uma conversa, me fez falar de Emily e
de mim com Thomas e...
De repente uma desconfiança tolda meus pensamentos...
Ela não era noiva de Jack Hardy?
Seu sorriso é quase uma confissão.
— Parece que já entendeu.
— Mas...
— Como posso ser noiva do pai do homem com quem dormi?
Sinto o chão fugir dos meus pés.
— Você trai o doutor Hardy com Thomas?
Ela dá de ombros, como se não fosse nada.
— Minha história com Thomas começou antes mesmo da minha com
o pai dele.
— Eu não entendo – balbucio, chocada. Enojada.
Thomas se tornou um homem pior do que eu imaginava se transava
com a noiva do próprio pai.
— Conhecemos o Thomas, não é? Ele tem essa fobia de
compromisso. Não quer se comprometer com ninguém e eu cheguei num
momento da vida que preciso de segurança.
— E tinha que ser justamente o pai dele?
— Não ouse me julgar.
— Eu não preciso julgar nada!
— Vejo sua repulsa. Ou está com ciúmes do Thomas? Me diz,
Elizabeth Spencer, ainda sente algo por ele? Quer Thomas de volta? Por isto
está aqui?
— Por que se preocupa? Não vai casar com o pai dele? – Rebato no
mesmo tom irônico.
— Se eu fosse você, desaparecia para sempre. Não deveria nem ter
voltado. Thomas não mudou. Nunca vai mudar. Ele vai ser sempre este
garoto mimado e egoísta. Além de mulherengo. Não pense nem por um
instante que ele não vai te fazer sofrer novamente. Porque é o que Thomas
Hardy faz melhor. Ele nos envolve em sua sedução e depois nos cospe fora
como uma erva daninha para seu precioso coração intocado.
E sem mais, ela me dá as costas e entra no quarto onde Nina está.
Eu ando até o vestiário tremendo.
Por que sei que Paola Becker tem razão. Thomas vai me fazer sofrer
de novo. Eu já não estou sofrendo? Não estou correndo pelos corredores a
procura dele? Usando desculpas esfarrapadas para encontrá-lo?
Porque eu quero isto. Eu sempre quero.
Quero que ele me toque de novo e faça o que quiser comigo. Não
consigo mais fugir desta triste realidade. Thomas Hardy ainda mexe comigo
como nenhum outro. Ele continua tendo aquele mesmo poder sobre mim. O
poder de me levar ao céu e depois me jogar lá de cima.
Eu quase já posso antever acontecendo novamente, sem que consiga
impedir.

***

Eu almoço sozinha e volto ao hospital, continuando minha tarefa


mecânica de entregar exames e tentando me abster de pensar.
O tempo inteiro uma sensação de inevitabilidade me corrói por
dentro.
E eu sei o que tenho que fazer. Eu não quero mais sofrer. Quero
seguir em frente. Quero sair daquele limbo que minha paixão por Thomas me
jogou.
Sei que não posso me livrar da dor da perda da minha filha, mas posso
ao menos tentar consertar meu coração partido.
Olho para o último exame na minha mão e vejo que pertence a Nina
Hardy.
Com os membros pesados, sigo até seu quarto, quase como que
prevendo a presença de Thomas lá. Porém, não é ele que está acompanhando
a pequena Hardy e sim sua irmã, Amber.
Eu lhe entrego o exame.
— Obrigada - ela passa os olhos pelas folhas e suspira. – Nada bom...
– Você pode ficar com ela? Eu preciso conversar com meu pai.
— Claro.
Amber sai do quarto e eu me aproximo da cama.
Nina abre os olhos e sorri cansadamente ao me reconhecer.
— Liz!
— Olá, como está se sentindo? – Verifico o soro e seus sinais vitais.
Ela parece mais pálida do que ontem, com olheiras escuras embaixo de seus
olhos.
— Dói um pouco. Amber diz que vou ficar bem.
— Claro que vai! – Eu sorrio.
— Eu não acredito – ela sussurra e eu me condoo com o medo em seu
olhar.
— Por que diz isto? Claro que vai ficar bem. – Sei que posso estar
mentindo. O que poderia fazer, ela é só uma criança.
Deve ter a mesma idade da minha filha, penso, com dor no peito.
Afasto aquele pensamento. Onde quer que ela esteja eu espero que
seja saudável e não esteja sofrendo como Nina.
— Amber e Thomas sussurram quando pensam que eu estou
dormindo. Eu sei que tenho uma doença grave.
— Ah, Nina – eu toco seus cabelos, com vontade de chorar.
— E eles estão brigando com meu pai.
— Por quê?
— Eles querem achar meus pais verdadeiros.
— Como assim? – A irmã de Thomas era adotada?
— Meu pai não quer. Eu não entendo. Eu sei que tenho outra mãe e
pai. Biológicos, é como papai me disse que chama. Ele e a Diana me
adotaram quando eu era pequena. Eu não sei por que a Amber e o Thomas
querem encontrá-los. Eu nem sei se eles existem de verdade...
Instantaneamente eu compreendo o que Amber e Thomas querem. Se
Nina é adotada, Thomas e Amber não podem ser possíveis doares de medula.
— Não deve se preocupar com isto – eu tento reconfortá-la – Tenho
certeza que tudo vai ficar bem.
Ela sorri sonolenta.
— Eu gosto de você, Liz.
Eu sorrio de volta.
Nina parecia ser uma criança muito doce. Era realmente uma judiação
que ela estivesse passando por aquela doença horrível.
— Você tem namorado? – Ela pergunta de repente.
— Porque quer saber?
— Podia namorar o meu irmão. Ele precisa de uma namorada, sabe? –
Ela fecha os olhos e desliza para o sono.
— Liz? – Eu me viro e vejo Thomas na porta do quarto.
Meu coração dá um salto no peito ao vê-lo. É incrível que ele pareça
lindo mesmo tão abatido.
— Nina dormiu – digo baixinho.
— Onde está minha irmã? – Ele se aproxima e toca os cabelos de
Nina, verificando-a.
— Ela recebeu os últimos exames de Nina e foi falar com seu pai.
— Eles devem estar brigando.
Me recordo das palavras de Nina e sei que pela cabeça de Thomas
deve estar passando a mesma coisa.
— Ela vai ficar bem, Thomas – me vejo dizendo, ao perceber a
desolação em seu rosto.
Ele se vira pra mim, como se só agora tivesse me notado de verdade.
Meu coração dispara, quando sinto seu olhar intenso.
Na minha mente vem nosso último beijo. O pedido de Peter em
seguida. E as palavras de Paola. E as decisões que eu havia tomado.
— Liz, precisamos conversar – ele diz dando um passo na minha
direção.
Eu encaro seu rosto lindo. Memorizando cada traço perfeito. Seus
olhos azuis que parecem perfurar minha alma.
Sem pensar me aproximo e, ficando na ponta dos pés, eu o beijo.
É um beijo com gosto de adeus.
Toco seu rosto e deixo meus lábios se despedirem da perfeição que é
beijar Thomas Hardy.
— Liz – ele me encara atordoado quando o beijo termina.
Dou um passo para trás.
— Diz pro seu pai que ele não precisa mais te demitir para afastá-lo
de mim.
— O quê?
— Não sabia? Seu pai me readmitiu porque decidiu te afastar do
hospital. O que devo dizer? Eu também acho que nós dois juntos seria
tragédia na certa.
— Isto é absurdo.
— É assim que as coisas são. E eu até entendo a lógica do seu pai.
Mas não será mais necessário. Estou indo embora. Deste hospital e desta
cidade.
— Liz...
— Eu vou me casar com Peter – confesso e vejo a transformação no
olhar de Thomas. Não quero entender o que significa.
— O quê? Porra, não pode casar com ele!
— Não tem direito de dizer isto Thomas. Sua chance foi há oito anos.
E dei tudo pra você. Estava disposta a dar a minha vida. Você não quis.
Agora é tarde. Não podemos voltar no tempo. Eu quero seguir em frente,
quero ser feliz. Eu mereço ser feliz. Adeus, Thomas.
Então eu caminho para fora do Chicago Mercy sem olhar para trás.
Jack

Eu estou num beco sem saída.


Quando resolvi adotar Nina há oito anos, eu nunca imaginei que
poderia passar por um momento como esse.
Que seria forçado a espiar meus erros passados.
A meu ver, nem eram realmente erros. Eu fiz o que deveria ser feito.
Nina era uma Hardy, afinal. Como eu poderia deixar que outras pessoas
cuidassem dela? Eu tomei a melhor decisão no momento, mantendo-a em
nossa família. E nem Diana entendeu quando descobriu dois anos depois. Ela
exigiu que eu contasse a verdade a Thomas. Era algo que eu não poderia
fazer nunca. Seria um segredo que eu levaria para o meu túmulo.
E agora, eu me via numa encruzilhada com a doença de Nina.
— Papai, olha esses exames! Veja como ela está doente, pelo amor de
Deus – Amber entra na minha sala como um raio e joga os papeis na minha
mesa. – Você sabe o que tem que ser feito! Você pode conseguir achar os
pais dela! Nina merece uma chance de enfrentar essa doença!
Eu vejo as lágrimas nos olhos de Amber. A minha filha que nunca
chora.
Respiro fundo.
Talvez seja a hora de eu enfrentar as consequências afinal.
— Chame Thomas.
— Para quê?
— Apenas o chame e nos deixe sozinhos.
— Vai tentar encontrar os pais de Nina? – Amber pergunta
esperançosa.
— Sim. Na verdade, eu já sei onde estão.
Amber esboça um sorriso trêmulo de alívio e se vira para fazer o que
eu pedi.
— E Amber? – Eu a chamo quando está na porta.
— Sim?
— Chame Elizabeth Spencer também.
Ela franze a testa sem entender.
— Por quê?
— Apenas faça o que eu pedi Amber. Agora.
Capítulo Dezenove

Thomas

O que estava acontecendo com a minha vida?


Como podia ter virado de ponta cabeça em apenas alguns dias? Eu
acreditava que tinha uma boa vida. Era o melhor médico residente do melhor
hospital de Chicago. Fodia todas as mulheres que queria e mantinha minhas
emoções fora da equação. O único sentimento que eu me permitia ter era por
Nina. Ela era a única no meu coração. E era o bastante. O futuro era incerto,
porém brilhante.
Agora, tudo se tornou um pesadelo.
Começando com a volta intempestiva de Liz Spencer, invadindo o
hospital e a minha vida, trazendo de volta todo aquele redemoinho de
emoções que eu pensei que estivessem trancadas bem no fundo no meu peito.
O que eu podia dizer? Ela tinha a chave. Sempre teve. E a usou para abrir e
deixar sair todo o sentimento que estive guardando só pra ela. Apenas para
rejeitá-los, como eu fiz há oito anos.
E agora ela simplesmente dizia que estava indo embora, depois de
despejar em cima de mim o segredo sobre nossa filha perdida. A descoberta
da doença terrível de Nina havia me tirado o chão e feito com que a revelação
inesperada de Liz ficasse em segundo plano e agora eu precisava encarar o
fato de que eu estava devastado com a saída iminente de Liz da minha vida
de novo. E sem nem ao menos ter tido a chance de conversar direito a
respeito dos motivos de ela ter escondido a gravidez de mim.
Me recordo de Chloe dizendo que nossa filha estava perdida agora.
Liz havia tomado a decisão de dá-la em adoção e ela tinha uma vida que não
nos incluía. Certamente meu lado racional sabia que era um fato consumado,
enquanto meu lado emocional, aquele que agora vinha empurrando cada vez
mais meu racional para fora da minha mente, dizia outra coisa bem diferente.
Eu não queria aceitar que simplesmente eu nunca iria conhecê-la. A sua
existência ter sido escondida de mim todos aqueles anos foi uma crueldade.
Eu tinha o direito de decidir também.
O que eu teria decidido se me fosse dada a escolha? O Thomas de oito
anos atrás, egoísta e racional teria contestado a decisão de Liz?
Eu não saberia dizer.
O que sei agora é que eu sinto uma dor e uma revolta sem tamanho
crescendo dentro de mim.
O que eu poderia fazer? Liz tinha ido embora.
Eu fico parado ali no quarto, ouvindo o barulho ritmado do coração de
Nina no monitor, enquanto meu próprio coração vai diminuindo o ritmo
quase até parar.
A dor que atinge meu peito é tão forte quanto um soco no estômago.
Talvez eu mereça. Mereça esta revanche do destino. Como ela mesma
tinha dito em sua despedida, ela ofereceu sua vida a mim há oito anos e eu
havia rejeitado. Por esse motivo, ela havia desistido de nossa filha.
Eu optei por permanecer com meus medos. E do que adiantou? Passei
oito anos apenas me enganando. Eu não era feliz como eu acreditava que era.
Sexo com todas aquelas mulheres sem rosto não preenchia o vazio que era
minha vida.
E era o que minha vida era. Vazia.
A única vez que eu vislumbrei um sentido, foi quando ela estava
comigo. Depois veio Nina, e eu almejei que meu amor fraternal fosse o
bastante. Não era. E agora eu me dou conta de que eu não quero que Liz vá
embora. Não posso deixar que ela vá.
Talvez a perda da nossa filha seja algo que nunca poderá ser mudado.
Pelo menos eu posso tentar salvar algo com Liz.
E eu chego a dar um passo para fora do quarto com um propósito
firme de ir atrás dela, quando Amber me intercepta.
— Thomas, venha comigo.
— Agora não, Amber! – Eu tento me desvencilhar dela. Liz não pode
ter ido longe, Amber segura meu braço e a urgência em seu olhar me faz
parar.
— Papai encontrou os pais de Nina. – Ela sorri esperançosamente –
ele quer falar com você. Agora.
Eu me debato por um instante.
Eu e Amber vínhamos discutindo intensamente com meu pai,
tentando convencê-lo a procurar os pais verdadeiros de Nina. Até agora ele
tinha se recusado. Achar os pais de Nina significava que sua chance de lutar
contra a leucemia ganhava outra perspectiva. Uma com mais esperança.
Minha caçada a Liz podia esperar. De qualquer maneira a resolução já
estava tomada. Eu iria atrás dela assim que possível. E eu a traria de volta. Ou
morreria tentando.
— Fique com ela! – Peço a Amber e me dirijo ansioso a sala do meu
pai.
— Amber disse que queria me ver – digo ao entrar na sala.
Meu pai está perto da janela e se vira. Eu vejo seu rosto abatido como
nunca vi antes. Parece que envelheceu dez anos. – Pai?
— Sente-se, Thomas – ele aponta para a cadeira defronte à sua
imponente mesa.
Uma mesa que eu desejava ocupar num futuro próximo. Por um
tempo, esse foi meu único sonho. Uma carreira tão ou mais promissora na
medicina quanto a do meu pai. Agora, isso parecia tão pequeno, perto de tudo
o que eu queria: A saúde de Nina, Liz de volta. A chance impossível de
conhecer minha filha.
— Amber me disse que encontrou os pais de Nina – falo me sentando.
Ele passa os dedos pelos cabelos. Estão trêmulos.
— Onde está Elizabeth Spencer?
— Liz? – Indago confuso – ela foi embora.
— Embora?
Eu bufo.
— Ela se despediu de mim dizendo que ia se casar, aliás, me contou
uma história insólita sobre você querer me demitir.
— Sim, era verdade.
— O quê? – Eu questiono irritado, me esquecendo momentaneamente
do motivo da minha presença ali.
Então Liz tinha razão?
— Que história é essa?
Ele dá de ombros.
— A mãe dela esteve aqui e exigiu que a filha fosse readmitida.
— A mãe da Liz?
— Sim, nós nos conhecemos há muito tempo.
— Nunca soube que a conhecia...
— O mundo da medicina é pequeno.
— E você simplesmente concordou com ela?
— Não só concordei em readmiti-la como em demitir você.
— Que porra é essa?
Meu pai permanece estranhamente calmo enquanto fala.
— Eu tive que concordar porque colocar você e Liz juntos não era
uma boa decisão.
— Que porra vocês pensam que são?
— Somos pais que fazem tudo pensando no futuro dos filhos. Talvez
você me entenda...
— Vai se foder! – Grito, batendo na mesa. – Isso é ridículo! E como
é que esta mulher entra aqui e pede que eu seja demitido e você concorda?
Jack ri. Um riso absolutamente sem humor.
— Ela sabia do meu maior segredo e o usou para me chantagear.
— Segredo? – Aquela conversa já estava tomando um rumo
totalmente estranho.
— Eu devia saber que aquela mulher farejaria algo errado. Eu deveria
saber que ter Elizabeth Spencer aqui abriria um precedente...
— Pai de que porra está falando? Que segredo? – Ele fixa os olhos em
mim de novo. E em seu olhar eu vejo algo que nunca tinha visto antes. Eu
vejo medo. Começo a sentir um comichão na nuca. Algo estava muito errado.
Eu só não sabia ainda o que era.
— Eu gostaria que Elizabeth Spencer também estivesse presente. Eu
esperava nunca ter que falar sobre esse assunto com você... eu disse que iria
falar sobre os pais de Nina.
— Pai, do que está falando? Que segredo a mãe de Liz pode usar
contra você? E o que tem a ver com os pais de Nina? – Me recordo o
verdadeiro motivo de estar ali, antes de meu pai começar a divagar sobre
segredos.
— Quando você foi embora, Liz estava grávida.
Franzo a testa, sem entender.
— Disso eu já sei, o que é que tem a ver... – Algo estala na minha
mente. Meu pai continua olhando para mim gravemente.
E então entendo. Não precisava de mais nada.
Meu estômago dá uma volta completa e eu sinto a bílis na minha
garganta. Eu ainda luto contra a realidade que estava clara como água na
minha frente.
Não pode ser.
— Você queria que eu dissesse onde estão os pais de Nina – meu pai
diz por fim.
E é o que basta.
Na minha mente me vem o dia em que eu conheci Nina.
O dia em que voltei pra casa e meu pai e Diana me apresentaram
aquela pequena criança. Aquele bebê que tinha os cabelos muitos parecidos
com os meus. Aquela criança que conquistou a todos nós no momento em
que chegou a nossas vidas. Com quem eu senti uma conexão imediata e
instantânea, entregando-lhe meu coração sem restrição.
A menina que eu nunca entendi como pode ter sido abandonada pela
mãe adotiva, que saíra da vida do meu pai dois anos depois e que nunca quis
esclarecer o motivo.
Agora eu sei. Ela descobriu. Meu pai não precisava explicar para eu
entender. Diana descobriu que Nina era minha filha.
O ar volta ao meu pulmão com força quando finalmente eu assimilo.
Nina era minha filha.
Minha e de Liz.
Nina era o segredo que meu pai escondia. E a mãe de Liz descobriu.
— Como é possível? – Consigo dizer.
Ainda é difícil demais para entender totalmente.
— Eu fiz o melhor para você! Pensando em seu futuro! Estava
entrando na faculdade de medicina, não queria nem ter uma namorada quanto
mais criar uma criança, Thomas! Eu e Bárbara decidimos sobre a adoção...
— Mas a criança ficou conosco! Na nossa casa! Você a adotou e não
me contou nada! Liz sabia?
— Claro que não. Nem a mãe dela. Eu disse que encontraria uma
família.
— E por que não encontrou? Por que a adotou? Por que esta farsa?
— Eu não tive coragem. Era nosso sangue. E eu tomei a melhor
decisão.
— Melhor decisão? – Não poderia acreditar na sua desfaçatez -
melhor decisão? – Me levanto e ele faz o mesmo.
— Sim, a melhor. Nina ficou na família.
— E você nunca iria me contar que ela era minha filha?
— Que diferença faria? Não é como se você fosse ter alguma
responsabilidade. E eu queria que se concentrasse nos seus estudos. Em sua
carreira. Tudo estava perfeito como estava, com Nina como minha filha e sua
irmã.
— Ela não é sua filha.
— Não. Mas eu a amo e não me arrependo de tê-la mantido por perto.
— E nunca iria me contar...
— Nunca. Até ela ficar doente.
Eu mal consigo manter o controle.
Eu sinto que vou explodir, enquanto as fatídicas palavras do meu pai
vão se infiltrando em mim, causando um estrago por onde passam.
Tudo o que eu acreditei que era real. Tudo mentira.
Meu próprio pai mentiu para mim. Escondeu minha filha de mim.
Sem pensar, eu vou para cima dele, socando seu rosto.
— Seu filho da puta!
Ele não se defende, enquanto eu descarrego toda a minha raiva.
— Thomas! – A voz de Amber vem como se de muito longe. Eu não
vejo nada. Apenas ódio. Braços me seguram. Me arrancando de cima do meu
pai.
— Thomas, pelo amor de Deus! – Amber está ajoelhada ao lado do
meu pai caído e ensanguentado no chão. – Você ficou louco? Por que está
batendo no papai?
Percebo que a sala está cheia de gente chocada.
Me desvencilho dos braços que me seguram, percebendo que é Erick.
— Que merda, cara? – Ele sussurra, mas me solta.
— Pergunte para ele! – Cuspo e saio da sala com Erick atrás de mim.
Eu só paro quando chego a rua. Está anoitecendo. O crepúsculo cai,
trazendo uma névoa sombria sobre minha cabeça.
Eu não vejo nada enquanto me arrasto até um arbusto e vomito todo
meu horror.
E, quando finalmente tudo se esvai, eu respiro o ar denso e algo
clareia em minha mente, por cima da fumaça escura do ódio.
Nina era minha filha.
Minha e de Liz.
E ela estava doente.
Precisava de nós.
Um fio de esperança ilumina meu peito.
— Liz – murmuro. Ela está indo embora.
Sem pensar, eu saio correndo e entro no carro, ignorando os
chamados de Erick.
Preciso encontrar Liz. Preciso contar sobre Nina.
Amber

— Papai, você está bem? – Eu toco o rosto cheio de sangue de meu


pai, enquanto o ajudo a se levantar. – Por que o Thomas estava te batendo,
pelo amor de Deus, o que está acontecendo?
— Doutor Hardy, precisa de cuidados – Chloe se aproxima prestativa,
meu pai a afasta com um gesto de mão. Retirando um simples lenço do seu
bolso e enxugando o sangue de seu rosto.
— Saiam daqui!
— Mas papai...
— Saiam todos agora! – Sua voz é como um estrondo. As pessoas na
sala olham pra mim e eu aceno para fazerem o que meu pai está mandando.
Todos se afastam e Chloe fecha a porta atrás de si, nos deixando a
sós.
— Papai, está me assustando. O que aconteceu? Você chamou
Thomas aqui para contar sobre os pais de Nina e ele estava te batendo, eu não
entendo... Você contou a ele?
— Sim, eu contei. Exatamente por isso que ele estava me batendo –
ele parece estranhamente calmo ao dizer esta barbaridade.
— Não entendo...
— Thomas é pai de Nina.
— O quê? – Que diabos ele estava dizendo?
— Exatamente o que ouviu. Thomas e a Liz Spencer são os
verdadeiros pais de Nina.
Eu me deixo cair na cadeira, chocada.
— Como pode ser possível? – Murmuro horrorizada.
— É possível porque Thomas namorou-a oito anos atrás. Ele a deixou
para ir para Harvard e ela estava grávida. Eu e a mãe dela a convencemos a
dar a criança em adoção.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Era tenebroso demais
para ser verdade.
— E Nina é esta criança?
— Sim, Nina é a criança.
— Por quê? Por que ela ficou na nossa casa, por que mentiu pra todos
nós? Isso é monstruoso!
— Eu fiz o que precisava ser feito. Nina era da família. E ficou na
família.
— Thomas deve estar revoltado... – murmuro ainda em choque.
— Ele nunca iria saber, porém a doença de Nina...
De repente, eu deixo a comoção da revelação absurda de lado quando
meu pai toca no assunto principal de toda aquela confusão.
A doença de Nina. E o fato de que agora nós sabíamos quem eram os
pais dela.
Algo se acende dentro de mim. Eu era uma pessoa prática. E sabia
que alguém tinha que ser racional naquele momento.
Havia decisões muito mais sérias a serem tomadas,
independentemente dos ressentimentos e rancores que iriam nascer daquela
revelação.
— Onde está Thomas?
— Acredito que tenha ido contar a Liz.
Eu respiro fundo e encaro meu pai.
— Eles têm que ter outro filho – digo enfaticamente. – É o único jeito
de salvar Nina. Temos que fazê-los entender que um irmão de sangue é o
doador perfeito. Thomas e Liz deverão ter um bebê.
Capítulo Vinte

Liz

Está acabado.
Thomas Hardy está saindo da minha vida. De novo. Dessa vez quem
o está expulsando sou eu.
Eu saio do Chicago Mercy pela última vez e dirijo até minha casa me
abstendo de pensar. Pensar no que eu fiz dói muito. Deveria me sentir
aliviada e não angustiada. Eu tomei a decisão certa me livrando de Thomas
antes que, inevitavelmente, ele se livrasse de mim. Era o único desfecho que
uma história envolvendo Thomas e eu poderia ter. E dessa vez, eu assumi o
controle antes que fosse tarde demais, eu realmente não saberia dizer se
sobreviveria a uma recaída por Thomas. A primeira vez quase havia me
matado. E, como consequência, além de perder um malfadado amor, eu ainda
fui obrigada a abrir mão do meu bebê.
O duro era dizer ao meu coração teimoso que eu devia parar de sofrer
por Thomas. Será que ele não aprendia? Quando é que ele ia aprender que
bater mais forte por Thomas Hardy era perda de tempo? Por que é que ele
não batia mais forte por um cara como Peter? Que me amava e queria me
fazer feliz?
Ah, eu ia aprender. Eu precisava aprender. Eu havia decidido ficar
com Peter e era assim que ia ser. Podia ainda demorar um tempo, mas eu ia
conseguir esquecer Thomas e aprenderia a amar Peter. E quem sabe até
poderia preencher aquele vazio da perda da minha filha com outro bebê? Eu
conseguiria abrir meu coração de novo para todas essas possibilidades? Só o
tempo dirá. Por enquanto, eu só queria chegar na minha casa, arrumar minhas
coisas e ir embora de Chicago. Colocar a maior distância entre mim e a
confusão de sentimentos causada por Thomas.
Assim, decidida a ignorar aquela dorzinha no meu peito, que queria só
se arrastar pra cama e chorar, eu pego o telefone e disco o número.
— Peter White – a voz atende do outro lado da linha e eu engulo em
seco.
— Peter, é Liz.
— Liz, oi... espere um minuto – sua voz sai abafada e eu escuto
barulho de multidão. – Pode falar, eu estou no aeroporto – ele diz agora mais
claramente.
— Aeroporto?
— Sim, eu estou indo viajar hoje.
— Você disse que ia em três dias...
— Sim, eu sei. Surgiu um imprevisto e precisam de mim antes. Eu só
poderei voltar daqui a algumas semanas para tratar da minha mudança de
vez... O que aconteceu? Por que está me ligando?
— Peter, eu pensei na sua proposta – respiro fundo. Minha razão
ainda tentando ignorar minha emoção, que luta ferozmente para ser ouvida.
Mas eu resisto. – Eu aceito me casar com você.
Pronto. Está feito.
— Liz, uau... – Peter parece realmente surpreso – está falando sério?
— Você parece muito surpreso.
— Estaria mentindo se dissesse o contrário. Eu... já estava perdendo
as esperanças, Lili.
— Não perca a fé em mim Peter – murmuro – você é tudo o que me
resta.
— Nunca. Nunca farei isso! Eu prometo que não vai se arrepender.
Nós vamos ser felizes.
— Promete? – Eu fecho os olhos, um nó se formando em minha
garganta. Eu quero tanto, tanto acreditar nas palavras de Peter. Eu vivi num
limbo durante anos, lutando contra minhas emoções, com medo de sofrer de
novo. E agora tudo o que eu quero é me abrir para algo novo.
Eu mereço ser feliz.
— Eu prometo – Peter diz solenemente – Quando eu voltar, nós
acertaremos tudo. Um mês é suficiente para sua mudança?
— Sim, claro que sim – sussurro, pensando que agora não há pressa.
A decisão já está tomada. E eu preciso mesmo de um tempo para me desfazer
de tudo o que me liga a Chicago.
— E sua mãe?
Oh merda. Eu xingo mentalmente.
Eu me esqueci de Bárbara. Eu teria que contar a ela meus planos. E
ela não ia gostar nem um pouco. Estremeço de medo.
— Minha mãe vai ser um problema.
— Não deixe que ela a domine de novo. Você é adulta e pode tomar
suas próprias decisões.
— Sim, tem razão. Acho que já está na hora de eu enfrentar Bárbara.
— Você vai conseguir Lili, preciso desligar. Estão chamando meu
voo.
— Certo. Boa viagem.
— Eu te amo – ele se despede.
Não consigo dizer o mesmo.
— Eu sei – é minha resposta lacônica.
Por enquanto isto basta. Tem que bastar.
Eu desligo e respiro fundo, olhando para o telefone na minha mão.
Sei que preciso ligar para minha mãe e marcar uma conversa, porém
ainda tenho medo.
E estou ali, pensando como vou comunicar minha mudança a ela
quando a campainha toca.
Me precipito a atender e meu coração dá um salto no peito ao ver
Thomas parado diante de mim.
— Thomas? – Minha voz não passa de um sussurro trêmulo.
O que diabos ele está fazendo ali? Quero gritar para ele desaparecer e
fechar a porta na sua cara, porém algo em seu semblante me faz ficar
paralisada no lugar. E sinto um calafrio na espinha.
Eu já vi muitas faces de Thomas. Mas nunca vi aquele olhar. E é o
que me faz não recuar e fechar a porta em sua cara, quando ele passa por mim
e entra na minha sala.
— Thomas, o que aconteceu? O que está fazendo aqui? – Consigo
perguntar.
— Liz... – ele não continua. Respira fundo. Os dedos que passam
pelos cabelos estão trêmulos. É como se estivesse à beira de um colapso. –
Eu estava com medo de não te encontrar, eu... Eu nem sei como te dizer...
Nem eu ainda acredito... – ele perde a voz de novo.
— Thomas, pelo amor de Deus, não está falando coisa com coisa... E
está me assustando!
Ele para e se aproxima de mim. Tão perto. Eu perco o ar. O imã que é
ativado toda vez que ele está perto, me faz ficar parada no lugar, lutando
contra a gravidade que me leva em sua direção.
A gravidade que quer fazer minha mão levantar e tocar seu rosto,
dizer que seja lá o que o está afligindo, tudo vai ficar bem.
— É Nina. – Ele diz e eu franzo a testa.
— Aconteceu algo com sua irmã...
— Ela não é minha irmã.
— O quê? Do que está falando? – Eu estava entendendo cada vez
menos.
— Eu disse que Nina não é minha irmã.
— Como assim? Oh, ela me disse que é adotada, é isso?
— Sim, ela foi adotada por meu pai. E nós o pressionamos para dizer
onde estavam seus verdadeiros pais.
— Sim, eu entendo. Por causa da leucemia... E ele disse?
Thomas perde o ar. Uma lágrima cai do seu olhar assustado.
Algo estala em minha mente. Ainda não sei o que é. Só tenho certeza
que é algo tão assustador quanto o olhar de Thomas demonstra.
— Sim, meu pai disse – ele sussurra me encarando com aquele olhar
perdido. Como se quisesse me dizer algo e não encontrasse as palavras. Seu
olhar implora.
Eu não consigo...
— Thomas... o que está acontecendo... por que está aqui?
— Nina é nossa filha, Liz.
Um zunido soa em meu ouvido e faz tudo desaparecer a não ser as
palavras sem sentido de Thomas.
— O quê? O que está dizendo?
— Que Nina é nossa filha. A criança que você deu em adoção há oito
anos. Meu pai a adotou. E mentiu para todos nós por todos esses anos.
As palavras de Thomas flutuam até mim, apesar do zumbido,
começando a fazer um terrível sentido.
Luto para respirar, enquanto minha mente dá voltas. Me recordo da
única vez que a tive em meus braços. Tão pequena. Tão minha antes de a
levarem de mim pra sempre.
Me recordo do vazio que nunca foi preenchido por sua ausência. De
como todos os dias eu pensava nela e me perguntava como ela seria. Se
pareceria comigo. Ou com Thomas.
E substituo a imagem da minha imaginação por Nina. A irmãzinha de
Thomas. Que se parecia tanto com ele.
— Oh Meu Deus – eu finalmente entendo e minhas pernas cedem.
Thomas me segura antes que eu vá ao chão. – Não pode ser, como pode ser...
— Eu sei, eu sei... – ele sussurra com a mesma angústia.
Eu o encaro num último átimo de sanidade, como se ele fosse rir e
dizer que era tudo uma brincadeira.
Seu olhar é contundente.
— Nina é nossa filha? – Murmuro, sentindo lágrimas quentes caindo
por meu rosto enquanto Thomas sacode a cabeça.
— Sim, Liz.
Fecho os olhos e deixo o nó na minha garganta se romper. Em meio a
revolta por toda a mentira que Jack Hardy construiu sinto uma mistura
confusa de alegria e alivio.
Eu a encontrara. Minha filha perdida era a linda e doce garotinha que
vivia com os Hardy.
Não sei quanto tempo passamos assim, unidos naquela explosão de
sentimento. Até que finalmente me sinto exausta e me afasto.
— Eu sinto muito, Liz – são as palavras doloridas de Thomas.
Eu passo a mão pelos cabelos, sem saber o que fazer. O que sentir.
— A culpa não é sua. Foi seu pai que mentiu. Como ele pôde fazer
isto?
— Ele combinou a adoção com a sua mãe...
— Minha mãe sabia? – Sinto uma pontada no peito. Traição.
— Não até pouco tempo. Ela descobriu quando viu Nina no hospital e
chantageou meu pai. Por isto ele te readmitiu e ia me mandar embora.
— E foi justamente por isto que me demitiu. Ele tinha medo não de
nós dois ficarmos juntos e sim de que descobríssemos a verdade. – Minha
mente começa a clarear e entender tudo.
E uma raiva fria se apossa de mim. Raiva de Jack Hardy. E da minha
mãe.
Ela tinha descoberto que minha filha estava perto e escondera de
mim.
— Ele foi obrigado a dizer por causa da doença de Nina.
— Oh Deus, a doença de Nina – eu sinto a dor me dilacerar de novo.
Agora mil vezes mais forte.
Eu tinha encontrado minha filha e ela estava doente. Terrivelmente
doente.
Seria um castigo divino? Eu a encontrara apenas para perdê-la.
— Liz, nós... – Thomas começa, antes que ele termine a porta do
apartamento se abre e minha mãe aparece.
— Liz, querida... – ela para ao ver Thomas. – O que este homem está
fazendo aqui?
— Que ótimo que apareceu, Bárbara. Talvez possa nos explicar a
sujeira que você e meu pai aprontaram... – Thomas começa, eu o paro.
— Thomas, vai embora.
— Liz... – Eu imploro com meu olhar.
— Por favor. Eu preciso conversar com a minha mãe a sós.
— Tudo bem – ele finalmente concorda e se vai fechando a porta
atrás de si.
E eu finalmente encaro Bárbara.
— Quando ia me contar que Jack Hardy adotou minha filha?
— O quê?
— Não se faça de desentendida. Jack contou a Thomas. Mãe, como
você pode fazer algo assim comigo?
— Eu não sabia! Acha que eu teria permitido que esta criança ficasse
com os Hardy?
— Esta criança é minha filha!
— Não é mais! Você abriu mão dela, então que diferença faz onde ela
foi criada...
— Meu Deus, você não tem um pingo de compaixão? Não percebe o
que está dizendo, acha que não faz diferença pra mim?
— Não deveria fazer! Tomou a melhor decisão quando a deu! Sua
vida teria sido bem diferente se tivesse ficado com ela!
— Sim, teria. Eu teria sido imensamente mais feliz!
— Tem certeza? Sozinha e com uma filha para criar? Caia na real,
Liz!
— Eu nunca deveria ter te escutado! Eu fui uma idiota!
— Não, foi sensata! Olha sua vida agora! É uma médica e vai ter
muito sucesso ainda...
— É só o que importa para você? Status e carreira! Pois saiba que eu
não dou a mínima!
— Não pode dizer uma coisa dessas! Sei que está chateada por causa
da garotinha, mas deve esquecer... nada mudou e...
— Chateada? Acredita que estou somente “chateada”? Pelo visto não
me conhece nem um pouco! Aliás, nunca fez questão de conhecer!
— Não comece com o drama! Eu não te ensinei a ser assim,
melodramática! Sempre te criei pra ser uma mulher forte e passar por cima
dos problemas! Pare de choramingar...
— Cala a boca! – Grito – Cala a boca agora! Você não se importa
com o que eu sinto! Nunca se importou!
— Eu me importo sim! Sempre te ajudei a tomar as melhores
decisões.
— Não me ajudou nada, você me persuadiu! Isso quando não tomava
as decisões por mim! Saiba que agora chega! Não quero mais te ver na minha
frente! – Caminho até a porta e a abro.
— Liz, querida, seja razoável...
— Estou de saco cheio de ser razoável com você! Uma pessoa que
não se importa com meus sentimentos! Com meu sofrimento.
— Não é verdade...
— Eu estou arrasada, mamãe. Arrasada! E você só se preocupa com a
merda da minha carreira!
— Sua carreira é o mais importante.
— Não, não é. Nunca foi! Eu deixei que incutisse esta ideia absurda
em minha cabeça e só fui infeliz até agora! Chega! Não quero te ouvir mais.
Por favor, vai embora.
— Filha, não faça isto.
Eu não falo mais nada, apenas mantenho a porta aberta.
Bárbara se dá por vencida, porém me encara antes de sair.
— Vou esperar você se acalmar e voltaremos a conversar. – Ela sai e
eu bato a porta.
Eu estou tremendo inteira quando ando até meu sofá e me sento ali.
Estou dentro de um pesadelo.
E não consigo sair dele.
Então eu penso em Nina e sinto uma necessidade premente de vê-la.
Ela é só o que interessa agora.
Pego a chave do carro e rumo para o hospital.

***
A noite já caiu quando caminho pelos corredores com um destino
certo. O quarto de Nina.
Ela está dormindo quando eu me aproximo. Eu olho para ela como se
a visse pela primeira vez. E é realmente a primeira vez que a vejo. Antes ela
era só a doce irmãzinha de Thomas. Agora ela é a minha filha. O meu bebê
perdido.
Sinto lágrimas quentes molharem minha bochecha quando estico os
dedos para tocar sua pele pálida. Deixo minhas mãos vagarem por seus
braços, por seu corpinho quente, como que para me certificar que ela é de
verdade. Que está ali. Viva e respirando.
E tão doente.
Um soluço rompe em minha garganta e a dor pungente me sufoca.
Será que eu a encontrei apenas para perdê-la? Será esse o meu castigo por
abandoná-la?
Toco seus cabelos e aproximo meu rosto do seu, minha pele tocando a
sua, ouvindo sua respiração. E rezo silenciosamente para que ela sobreviva. É
só o que importa.
Capítulo Vinte e Um

Thomas

Frustração. É só o que eu sinto em meu peito nesse momento.


De dentro do carro, eu espero. Não sei bem o quê. Eu simplesmente
não consegui ir embora quando Liz mandou. Ela vinha fazendo muito isto
ultimamente. Sempre me mandando embora da sua vida. Se bem que agora
tudo era diferente. Não se tratava só de dois amantes que não conseguiam
resolver as rusgas do passado. Havia uma criança entre nós. Uma criança que
nos foi roubada e escondida, mas agora precisava de nós. E disso, Liz não
poderia fugir.
Eu não fazia ideia do que ia acontecer, só sabia que meu destino e o
de Liz estavam entrelaçados para sempre.
Não havia mais possibilidade de fuga para nós.
Olho o relógio e respiro fundo, cogitando retornar ao apartamento e
confrontar aquela cretina da Bárbara. Ela e meu pai eram iguais: egoístas e
frios em suas decisões. Para eles, nossos sentimentos não tinham a menor
importância, somente o que decidissem, de acordo com suas crenças errôneas
do que era certo e errado importava. Liz e eu fomos vítimas daquela visão
deturpada. Por toda a vida influenciados e coagidos a agirmos como
marionetes num teatro de horror conduzido pelas mãos macabras de dois
médicos sem escrúpulos: nossos pais.
Este espetáculo de horrores havia chegado ao fim. Eu estava
queimando as cordas pelas quais Jack me puxava e manipulava a seu bel
prazer. E esperava que Liz estivesse fazendo o mesmo.
Pela expressão de ódio que vejo em Bárbara quando ela sai pisando
duro do prédio de Liz, eu acho que o seu teatrinho de manipulação acabou
também. Observo-a entrar no carro, dar partida e sair cantando pneus pela rua
escura e me pergunto se devo subir para ver como Liz está. E, quem sabe,
conseguirmos conversar sensatamente sobre os acontecimentos. Paro meus
movimentos ao vê-la surgir na rua e entrar em seu próprio carro. Sem pensar,
eu a sigo.
Talvez não esteja surpreso quando ela estaciona no Chicago Mercy.
Seu rosto é uma máscara de consternação, quando ela entra no hospital e
segue pelos corredores. Eu sei aonde ela está indo. Eu a sigo.
Liz adentra no quarto de Nina e se aproxima da cama, seu choro é
silencioso, porém meu coração o escuta. Assim como o ressoar sofrido de seu
peito, como uma melodia triste, que me envolve e abraça minha própria dor.
Eu apenas consigo imaginar o tamanho do pesar que ela deve estar
sentindo neste momento, tocando Nina pela primeira vez. Eu a tive comigo
por todos aqueles anos. Para amar e cuidar. Mesmo não tendo ideia de que
ela era carne da minha carne. Que era fruto de um verão vivido com uma
garota da qual eu havia guardado somente a tatuagem em meu ombro que
fizemos juntos e as lembranças escondidas no fundo do meu peito.
— Thomas? – Eu me viro ao escutar a voz de Paola atrás de mim. A
médica me fita com um olhar confuso. – Que diabos anda acontecendo?
— Paola, agora não, por favor... – Não estava a fim de aguentar os
jogos dissimulados de Paola nesse momento.
— Me contaram que você bateu no seu pai depois de uma discussão!
Por acaso ele descobriu sobre nós, é isto? Vocês estavam brigando por minha
causa?
— Não seja ridícula!
— Se não é, o que está acontecendo? Está todo mundo fofocando
pelos cantos sem entender nada! Eu procurei seu pai, ele está trancado em sua
sala e não quer falar com ninguém e... – Ela olha para dentro do quarto e eu
não quero que veja Liz, então seguro seu braço.
— Vamos sair daqui – a arrasto pelo corredor até uma sala vazia.
— Ótimo, vai me dizer o que está rolando?
Passo os dedos pelos cabelos para ganhar tempo e decidir o que devo
contar a Paola. Ela era noiva do meu pai afinal. Sinceramente, eu não a
considerava da família e sabe Deus o que Paola faria com a informação.
Decido mantê-la de fora por enquanto.
— Nada que seja da sua conta.
— Como é?
— Você ouviu. E, por favor, fique fora dos assuntos da nossa família.
— Assuntos de família? Então é um problema de família?
— Já falei que não é da sua conta.
— Eu sou da família!
— Não, não é!
Ela bufa e então resolve mudar sua estratégia. Seu corpo relaxa,
enquanto ela se aproxima sorrateiramente de mim, colocando a mão em meu
peito.
— Não fique bravo, só estou preocupada, sabe que me preocupo com
você. E dá pra perceber que está abalado com algo...
— Paola... – eu seguro seu pulso e dou um passo atrás. – Não
começa...
Ela sorri diabolicamente e, como uma cobra, lança os braços em volta
do meu pescoço.
— Eu nem comecei...
— Thomas Hardy? – Eu me viro e surpreso, vejo Bárbara nos
observando.
— O que faz aqui? – Eu retiro os braços de Paola do meu pescoço e
encaro Bárbara friamente.
— Ah, não se preocupe, eu não quero atrapalhar seu belo interlúdio.
Parece que continua o mesmo canalha...
— Escuta aqui, sua...
Ela já havia dado meia volta e desaparecido pelo corredor.
— Quem é esta louca?
— Doutora Bárbara Spencer – respondo entredentes me perguntando
o que aquela bruxa veio fazer aqui.
— Aquela Bárbara Spencer famosa? Uau! Porque não me falou,
gostaria de me apresentar... – eu não escuto Paola e sigo pelo corredor atrás
de Bárbara. Não quero que ela se aproxime de Liz e Nina.
Ela não segue para o quarto de Nina e sim em direção a sala do meu
pai. Bate na porta, ignorando as palavras da secretária e diz algumas palavras,
para minha surpresa, meu pai abre a porta e ela entra.
— Ela conhece seu pai? – Paola surge atrás de mim – vou até lá e
pedir que me apresente...
— Não vai não! – Eu seguro seu braço.
— Me solta, Thomas, o que deu em você?
Por um momento eu tenho vontade de deixar pra lá. Talvez meu pai
mereça Paola. E quem sabe ela até se dê bem com Bárbara. Uma cobra com
outra.
Porém, Amber aparece do meu lado e me fita sombriamente.
— Precisamos conversar.
— Agora não.
— Agora sim! É sobre o que precisa ser feito e...
— Doutor Thomas – a secretária do meu pai surge aflita – eu tentei
conter aquela mulher e não consegui... Agora eles estão gritando e eu temo
que seu pai não esteja bem...
Amber nem termina de ouvir a mulher e precipita-se para a sala do
meu pai, eu a sigo.
Quando chegamos lá escuto a voz de meu pai antes mesmo de entrar.
— Saia daqui! Não te devo satisfação alguma!
— Deve sim! Nós tínhamos um trato e você quebrou! Liz nunca
deveria saber sobre a criança!
— Você não tem sentimentos? Ela está doente!
— Existem tratamentos avançados! O que espera? Que Thomas e Liz
concebam uma criança para salvar a outra? Por que seria o maior absurdo...
— Cala a boca! – Amber grita – quem você pensa que é...
— Amber fique fora disto! – Meu pai pede e eu percebo que seu rosto
ainda está inchado dos murros que eu dei nele. Isto deveria me encher de
satisfação, no entanto só me deixa mais consternado.
— Ah que bela reunião familiar! – Bárbara diz com desprezo – aposto
que já contou a todos?
— Olá, eu sou Paola Becker – Paola entra na sala ignorando
completamente a discussão – sou a noiva do Doutor Hardy.
— Noiva do Thomas?
— Não, do Jack, é um prazer conhecê-la – Bárbara ignora a mão
estendida de Paola e se vira para meu pai com um olhar sarcástico.
— Você sabe que sua noiva anda se esfregando com seu filho pelos
corredores do hospital?
— O quê? – Meu pai franze o cenho, confuso.
Paola empalidece e Amber dá um passo à frente.
— Cala sua boca suja!
Bárbara sorri.
— Ah, parece que sua filha sabe também! Me diz Thomas, você e
seu pai dividem mulheres agora?
— Do que está falando Bárbara? Pare de dizer tolices e saia daqui! –
Meu pai pede.
Paola olha pra mim em busca de socorro, Bárbara não está disposta a
parar.
— Ah, eu vi. Agora mesmo, ela estava pendurada no pescoço do seu
filho, se esfregando desavergonhadamente nele! Eu deveria saber que tipo de
família é essa que...
Amber estapeia o rosto de Bárbara para a surpresa de todos.
— Já mandei calar a boca! Chega de perturbar meu pai com suas
mentiras!
— Sua vadiazinha! – Bárbara sibila segurando o rosto – está brava
porque sabe tão bem quanto eu que é a mais pura verdade! Aparentemente
seu pai não faz ideia que divide a noiva com o filho.
— Já chega Bárbara! – Peço friamente.
— Sim, chega. Tudo isto é uma mentira – Paola gagueja, enquanto
meu pai olha de mim para ela com uma nova perspectiva.
— Do que esta mulher está falando? Por que ela ia inventar algo
assim, Paola?
— É mentira! Ela é louca!
Bárbara ri.
— Meu Deus, Jack, como você é trouxa! Enganado pela noiva e o
filho! Talvez mereça mesmo, por ser um calhorda! Eu só espero conseguir
afastar minha filha de vez desta família pervertida! – Ela pega sua bolsa e sai
da sala, deixando a tensão para trás.
— Thomas – meu pai olha pra mim e eu vejo a pergunta muda em seu
olhar.
Sei que devo negar.
Como eu já estou de saco cheio deixo escapar a verdade.
— Eu e Paola tivemos um caso por muitos meses. Foi antes de vocês
ficarem noivos.
— Thomas, não! – Paola e Amber dizem ao mesmo tempo.
— Eu nunca a dividi com você. Eu jamais faria isto, embora,
certamente, essa fosse a ideia da Paola. Ela não vale nada e está na hora de
você saber. Sim, ela estava se esfregando em mim hoje como anda fazendo
por todo o tempo que estão juntos, tentando me convencer a fodê-la de novo.
Eu termino de falar e um silêncio tenso recai sobre a sala.
Meu pai está branco como papel.
Eu quero dizer que sinto muito. Mas não consigo sentir nada.
Ainda estou com o rancor borbulhando em minha pele pelo o que ele
fez comigo.
Então, sem aviso, eu vejo seu rosto se contorcer e ele cai no chão
segurando o lado esquerdo do peito.
— Pai! – Amber precipita-se em sua direção e eu faço o mesmo.
— Meu Deus! – Paola sussurra aflita – ele está tendo um ataque!
— Thomas, me ajuda! Precisamos levá-lo para a emergência! –
Amber abre sua camisa eu me ajoelho ao lado dela, sentindo sua pulsação
fraca.
— Estamos perdendo-o.
Paola grita por uma maca.
Eu começo a massagem em seu peito.
Amber respira com dificuldade.
A maca chega assim como outros médicos.
Nós colocamos meu pai sobre ela e seguimos rumo a emergência.
— Código azul!
— O Coração parou!
— Desfibrilador! – Grito e alguém o coloca em minhas mãos.
— Thomas, rápido! – Escuto como de muito longe a voz de Amber
acima do ruído.
— Trezentos, carregando.
Seu peito pula contra minhas mãos. A força do choque fazendo-o
levantar da maca, ainda sem vida.
Sinto meu próprio coração falhar.
— Ainda sem fibrilação – alguém diz.
— Dezenove segundos, Thomas – Amber murmura aflita.
— 360 – grito.
— Pronto.
Seu peito pula mais uma vez.
— Merda, pai, reage! – Murmuro.
— Vinte e sete segundos.
— Inferno! – Largo o desfibrilador e esmurro seu peito sem vida.
— Carregue de novo! - Amber grita agora do meu lado, segurando o
desfibrilador.
— Carga!
Ela aplica o choque e de repente escutamos o ritmo sinusal.
Sua pulsação fraca se faz ouvir.
Nós também voltamos a respirar.

***

Eu não sei quanto tempo se passou até que eu e Amber conseguirmos


sair da sala, deixando meu pai debilitado, porém a salvo.
— Isto não está acontecendo – ela murmura, encostando a cabeça na
parede, quando nos sentamos sobre um banco.
Eu seguro sua mão. Está fria.
Nossos olhares se encontram e, por um momento, nenhum dos dois
diz nada.
— Se ele tivesse morrido...
— Shi, não fala assim. Ele está bem.
— Você ficaria feliz? Sei que está com raiva dele, mas... é nosso pai.
A gente só tem ele agora.
— Não, eu não ficaria feliz. Eu ainda estou com raiva? Sim. Poderei
perdoar? Não sei. Eu estou... anestesiado. Como se ainda estivesse dormindo,
sonhando e fosse acordar em qualquer momento e ver que tudo continua
como antes.
— Era o que queria? Que tudo fosse como antes?
Eu a encaro.
— Não. – Um sorriso triste se distende em meus lábios.
Ela sorri também. De repente fica séria.
— Thomas, você sabe o que precisa fazer, não é?
Eu a encaro confuso.
— Sobre Nina. Você e Liz sendo os pais dela...
— Há muita pouca chance de sermos compatíveis, Amber. Sabe
muito bem. Todo mundo herda dois grupos de cromossomos contendo
antígenos, infelizmente só há uma chance em 200 que os pais e seus filhos
sejam combinações perfeitas.
Ela me encara incisivamente.
— O sangue umbilical pode ser muito efetivo no tratamento da
leucemia. Uma perfeita combinação genética pode ser a salvação de Nina.
Então eu percebo aonde ela quer chegar.
Claro que eu já sabia. Era exatamente por esse motivo que queríamos
achar os pais de Nina, havia a possibilidade de eles terem outros filhos, ou
pelo menos um irmão.
Como eu e Liz não tínhamos mais filhos só havia uma solução.
— Liz e eu temos que ter outro filho – murmuro.
Capítulo Vinte e Dois

Liz

Não sei quanto tempo estou ali, velando o sono de Nina, quando
escuto passos se aproximando.
— Você pode salvá-la – a voz atrás de mim me causa um sobressalto.
Eu me aprumo e vejo Amber Hardy.
— Você e Thomas podem salvá-la. – Ela diz firmemente. – Vocês
precisam ter um bebê. Um bebê que irá salvar Nina.
Parece uma daquelas experiências extra-sensoriais. Como se eu
estivesse fora do meu corpo, minha alma atormentada e confusa vagando em
um lugar acima da cena que se desenrola lá embaixo.
Vejo o fervor de Amber enquanto propõe o que ela diz ser a única
solução para salvar Nina.
Suas palavras flutuam até mim, adentram em meu cérebro ainda
entorpecido depois de todas as revelações do dia e tentam encontrar um
sentido.
— Eu não entendo... – fecho os olhos lutando para respirar,
começando a sentir como se a voz de Amber desse pequenas marteladas em
minha cabeça, causando dor por onde passa. Confunde e machuca.
Ela toca meu braço, aperta com força, quase me sacudindo, me
obrigando a abrir os olhos.
— Um bebê seu e de Thomas seria a combinação genética perfeita
para ajudar Nina! Você tem que me escutar!
— Amber que diabos está fazendo?
Como vindo de muito longe, vejo Thomas se aproximando. Seu rosto
é apenas um borrão, mas não posso negar o alívio que sinto.
Amber solta meu braço, ou Thomas a obriga a soltar e o toque
macabro de sua irmã é substituído por sua mão morna.
E é o que basta para eu me sentir segura o suficiente para desabar.
— Thomas, eu não aguento mais... – ainda consigo murmurar.
Seus dedos tocam meu rosto, segurando meu corpo exausto. Como
uma fortaleza.
Ele é minha fortaleza agora.
— Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

***
Eu acordo na minha própria cama. Um olhar vago para o relógio na
mesa de cabeceira, me traz as horas. É madrugada.
Por um momento, acho que sonhei com tudo. Com todas as
revelações aterradoras e incríveis das últimas vinte quatro horas. Embora
saiba, bem no fundo do meu peito ferido que eu vivo em outra realidade
agora.
Uma realidade linda e assustadora.
Eu tenho uma filha.
Eu passei anos ansiando por um momento como esse. Que existisse
uma fenda no tempo que me permitisse tê-la de volta. E como por um
milagre, ela voltou.
Mas estava a um triz de perdê-la de novo. Para aquela doença terrível.
As palavras de Amber voltam. O fervor com que ela dizia que Nina
tinha uma chance. E que eu e Thomas poderíamos dá-la a ela.
Muito vagamente eu me lembro das últimas horas. O momento em
que meu corpo e mente desabaram com o peso de tantas exigências. E ele
estava lá para me segurar. E era como se toda a necessidade que eu senti de
fugir do hospital e, consequentemente, de sua presença não tivesse existido.
Ou não importasse mais.
Nada mais importava.
De repente essa constatação atinge meu cérebro e se espalha como um
elixir por minhas veias, contaminando meu coração. E uma estranha calma
toma conta das minhas emoções.
Todos aqueles medos e anseios pertencem a outra vida. A outra
realidade. Uma realidade sem Nina.
E ela é tudo o que importa agora.
Fortalecida por essa nova convicção, jogo as cobertas para o lado e
me levanto. A casa está em silêncio, apesar de eu sentir sua presença. Ele está
em algum lugar na semiescuridão.
Deixo meus pés descalços me guiarem.
O encontro sentado na minha sala, cercado pela escuridão. Um facho
de luz da rua ilumina sua cabeça entre as mãos. Me compadeço por um
instante. Eu sei o que ele sente. Somos iguais agora.
Seus medos, são os meus medos.
Nos completamos em nossa dor.
Sentindo minha presença, ele levanta o olhar. Vejo tormenta e
incerteza.
— Você está bem? – Ele se levanta e caminha em minha direção.
— Acho que nunca mais ficarei bem.
— Acho que entendo.
— Eu sei.
Por um momento apenas nos encaramos.
— Amber te disse... – sua voz não passa de um sussurro. Assim como
minha resposta.
— Sim.
— O que vamos fazer?
— O que precisa ser feito.
Ele me encara incrédulo. Esperançoso.
Temeroso.
— Você tem certeza?
— Não podemos perdê-la.
— Liz, isso é tão...
— Shi... Não vamos pensar – eu dou um passo em sua direção. Posso
sentir seu calor. – Isso é certo. Contra todas as possibilidades. Apenas é
certo. Eu sinto que faria qualquer coisa. Incondicionalmente... Você não sente
o mesmo...? – Minhas palavras são engolidas por sua boca, que devora o
resto das minhas incertezas.
Meu corpo flutua em direção a suas mãos, que tomam posse, ansiosas
e urgentes.
Eu mal sinto o chão fugir a meus pés, apenas fecho os olhos e deixo
Thomas me levar. Deixo o desejo dominar meus sentidos.
Os lençóis ainda mornos recebem meu corpo febril e minhas mãos
não perdem tempo em retirar suas roupas do caminho. A primeira coisa que
noto é a tatuagem. Isto faz uma sensação de dejá-vù pesar no meu estômago.
Meus dedos traçam o contorno do dragão que eu mesma desenhei. Parece que
faz tanto tempo. Parece que foi ontem.
O devaneio desaparece quando Thomas me joga para trás, na ânsia de
tirar minhas calças é sua vez de se perder em suas próprias lembranças
quando minha tatuagem de rosa se revela.
Ele toca com os dedos longos o pequeno desenho, fazendo arrepios de
prazer traspassarem minha espinha e em seguida se inclina e a beija. Cerro as
pálpebras e solto um pequeno gemido que é ao mesmo tempo dor e prazer.
Era exatamente assim que ele fazia. Antes. Quando era meu. Antes de
despedaçar meu coração e acabar com tudo.
Ah merda. Lá estava. O passado.
Eu ia mesmo fazer aquilo. Deixar que ele entrasse em mim. Na minha
vida.
Que colocasse um bebê em minha barriga de novo.
— Liz? – Sua voz é ansiosa e insegura quando se coloca em cima de
mim.
Tão nu quanto eu.
Ele parou, mas ainda sinto sua ereção exigindo um caminho. O pulsar
entre as minhas pernas é inconfundível. Eu o quero. Sempre quis. Sempre ia
querer.
Fecho os olhos e o beijo, deixando de lado todos os meus antigos
medos.
Era tarde demais.
— Não pare... – Murmuro dentro de sua boca e ele rosna, me
mordendo e eu solto um gemido de rendição.
E ele prossegue, deixando seus lábios vagarem por meu corpo numa
sessão de reconhecimento. E meu corpo reconhece sua língua também, e dá
boas vindas a ela, como uma velha conhecida. Minha pele exulta com aquele
retorno e transborda de calor e prazer.
E com prazer, eu abro os olhos para vê-lo provar meus mamilos,
como uma iguaria rara, lambendo e mordendo delicadamente, como ele
certamente lembrava que eu gostava e que fazia eu ficar molhada e pronta
para ele. Ansiosa por ele. E com um arquejo, eu seguro sua mão e a levo para
o meio das minhas pernas, fazendo ele sentir o que eu quero. O que eu
preciso.
E ele solta um gemido, me acariciando lentamente, seus dedos
invadindo profundamente, me fazendo arquear e perder o fôlego.
— Thomas, por favor...
— Por favor o que? – Ele exige roucamente, os lábios descendo por
meu ventre, me fazendo tremer de expectativa.
— Isso... – minha voz se perde num engasgo quando sua boca
substitui os dedos e eu estou perdida.
Ele sabe como fazer aquilo. Malditamente sabe. E eu deslizo numa
doce inconsciência, deixando que meu corpo dê boas-vindas a Thomas
Hardy.
E, quando, por fim, ele está dentro de mim, eu me sinto como aquela
Liz apaixonada e livre de oito anos atrás. Que queria ser pintora e amar
aquele homem.
É como voltar a ser eu mesma. Finalmente.

***

Eu acordo de novo quando já é dia.


O sol da manhã me abraça e eu abro os olhos para ver Thomas
dormindo ao meu lado.
Por um momento sinto uma sensação horrível de pânico na boca do
estômago.
Desde que eu o reencontrei vinha fugindo disto. Mesmo ainda
sentindo a mesma velha e poderosa atração de antes, eu fugia. Meu coração
tinha medo. Porque já havia sofrido demais uma vez.
Agora é diferente. Eu não sou mais aquela menina boba que só queria
se perder numa paixão que já nascera fadada ao fracasso.
Eu sou uma mulher. Eu sou mãe. E estou fazendo o que tem que ser
feito.
Uma vozinha medrosa sussurra baixinho em meu intimo
“E o que vai acontecer entre você e Thomas depois de tudo?”
Eu não quero pensar sobre isso neste momento. Era demais pra mim.
Eu tenho que me concentrar no agora. Em Nina. E em tudo o que ela precisa
para ter uma chance de sobreviver.
E se eu tenho que me envolver com Thomas de novo, assim vai ser.
Nós nunca tivemos problemas nenhum naquele departamento. Era
sexo. E era o que precisava ser feito para conceber um novo bebê.
Pensar nisto faz um arrepio de medo traspassar minha espinha, jogo
esse temor para o fundo da mente, assim como as cobertas para o lado e me
levanto, colocando minha camiseta que havia jogado no chão ontem à noite e
a visto.
— Liz? - Eu me viro e Thomas está acordado. Seus olhos incríveis
toldados de preocupação.
Por um momento eu não sei o que fazer.
Ele passa os dedos pelos cabelos bagunçados. Lindo.
Um arrepio que nada tem a ver com medo começa a formigar em meu
íntimo.
— Isto é estranho – ele diz de repente e eu dou de ombros
— Não tem que ser.
— Nós estamos mesmo tentando fazer um bebê? – Sua voz ainda é
incrédula. Como se todos os últimos acontecimentos fizessem parte de um
sonho onírico.
Como culpá-lo? Eu me sentia exatamente igual.
Esta era nossa nova realidade.
— Sim – respondo simplesmente.
— Liz, eu... – ele parece indeciso, como se estivesse com dificuldade
de organizar os pensamentos. – Acho que precisamos conversar direito...
— Não tem nada pra conversar Thomas. Nós tomamos nossa decisão.
Nós vamos fazer um bebê. Vamos salvar Nina.
— Você consegue se escutar sem sentir que sua mente vai explodir?
— Eu sei que parece demais. Acredite, eu também me sinto... – paro
de falar. Não quero confessar meus medos, embora ache que Thomas já
saiba. – Apenas vamos deixar acontecer ok? Não vamos... criar um problema.
— Problema?
— Nós somos adultos. Não somos mais aquelas crianças de oito anos
atrás. Nós temos um objetivo claro. É nisto que devemos nos concentrar.
Ele fica me encarando. Seu rosto é impassível.
Quero saber o que está pensando.
— Você parece que teve muito tempo para pensar sobre tudo – há
certa ironia em sua voz. Tento não ficar irritada.
Ele ainda está confuso. E é perfeitamente compreensível.
— Estou sendo sensata. Não temos mais tempo para... – quero dizer
emoções, porém acho que não é a palavra certa. Solto uma respiração
profunda – eu só quero fazer o que for preciso para minha filhinha.
Citar Nina faz o rosto de Thomas suavizar e, seja lá o que estivesse
passando por sua mente, desaparece.
E por fim, acho que ele está no mesmo lugar que eu.
— Sim, ela é tudo o que interessa. Nós vamos salvá-la, Liz.
Engulo o nó preso na minha garganta.
— Eu vou... Tomar um banho e vou para o hospital.
— Sim, eu vou pra minha casa.
Ele sai da cama e eu desvio o rosto de sua nudez. O que é ridículo.
Mas não consigo evitar.
Eu entro no chuveiro e me sinto meio idiota. Por que eu não o chamei
para se juntar a mim se esta era minha vontade? A gente precisava fazer sexo,
não é?
Quando eu saio do chuveiro, Thomas não está mais lá.

***

Eu chego ao hospital e, ao entrar no vestiário, Jenny e Julie me


encaram confusas.
— O que foi? - Resmungo, enquanto coloco minha roupa.
— Você não tinha pedido demissão? – Julie pergunta.
— Eu mudei de ideia – respondo simplesmente.
— Primeiro é demitida, aí volta, depois se demite e volta novamente,
você é maluca ou o quê? – Jenny cacareja e eu tenho vontade de mandá-la
cuidar da própria vida, pra sorte dela não estou com paciência nem pra ser
mal educada hoje.
Hoje eu só quero retomar minha rotina no hospital e ver Nina.
— Vocês duas, fora – a voz de trovão de Amber as interrompe e nós
três olhamos para a porta onde a médica nos encara com o semblante sério.
— A gente está conversando... – Jenny começa e Amber a interrompe.
— Não quero ouvir sua voz chata! Faça o que mandei.
Eu me preparo para sair com elas, Amber me para. – Você fica!
Jenny bufa e Julie a guia pra fora.
— Tomara que esteja levando uma bronca! Vai ser bem feito. – Eu
ainda consigo escutar.
— O que quer? – Pergunto impaciente, embora saiba muito bem o que
Amber deseja.
— Me desculpe por ontem. Eu estava meio... fora de mim – ela passa
os dedos pelos cabelos loiros. E reparo que, diferentemente de todas as vezes
que a vi, hoje ela parece ligeiramente descomposta, com o rosto sem
maquiagem e com olheiras.
— Eu entendo – murmuro.
— Eu fui um pouco impulsiva. Todo este problema de Nina e agora a
revelação de que você e o Thomas são os pais dela... e ainda o ataque do meu
pai.
— Seu pai teve um ataque? – Indago surpresa.
— Sim, por causa da bruxa da sua mãe.
— Espera, o que minha mãe tem a ver com isso?
— Ela esteve aqui fazendo barraco!
— Meu Deus!
— E ela contou ao meu pai que Paola foi amante do Thomas.
— Ela o quê?
— Pois é! E estávamos todos nós lá na sala dele e, de repente, ele não
aguentou e passou mal. Foi um ataque.
— E como ele está? – Não deveria me sentir preocupada com Jack
Hardy depois de tudo o que ele fez, mas acredito que Thomas ficaria arrasado
se algo acontecesse ao seu pai.
E Nina também. Afinal, Jack é o único pai que ela conhece.
— Ele está estável agora.
— Eu sinto muito.
— Sente mesmo? Depois de tudo o que ele fez?
— Não desejo o mal a ninguém, Amber.
— Eu desejo para sua mãe! Aquela bruxa!
Eu respiro fundo, existe um lado meu que quer defender Bárbara,
como ainda estou magoada demais com tudo o que ela foi capaz de me
esconder não o faço.
Me pergunto o que ela vai dizer quando souber o que eu e Thomas
estamos fazendo.
— E eu não deveria ter sido tão enfática com você sobre precisar
salvar Nina.
— Você tem razão. – Ela me encara surpresa. E eu continuo. – Eu e
Thomas concordamos com você. Nós teremos um bebê.
Eu saio do quarto, deixando Amber estarrecida.
Vou direto para o quarto de Nina. Ela está acordada e uma enfermeira
está medindo sua pressão.
Ela sorri ao me ver. Tenho vontade de contar tudo. De reivindicá-la
para mim. Sei que não posso. Não ainda.
Na verdade, eu e Thomas nem tínhamos conversado sobre isto. Sobre
o que falaríamos para Nina. Ela era só uma criança e teríamos que ter muito
cuidado ao tratar este assunto para não machucá-la.
— Oi Liz!
Eu me aproximo e toco seu cabelo.
— Oi, querida. – Sorrio para seu rostinho abatido. – Como está se
sentindo?
— Eu me sinto bem, mas... – ela ficou triste repente – fiquei triste
com o que aconteceu com meu pai.
— Oh, já te contaram.
— Thomas me contou hoje de manhã.
— Ele vai ficar bem, Nina. Amber me disse que ele está estável.
— Foi o que o Thomas disse.
— Sim, não fique preocupada. Precisa ser forte e tomar todos os seus
remédios, ok?
Ela suspira.
— Não gosto de ficar aqui. Queria ir pra casa. Pra escola.
— Você vai voltar em breve. Eu prometo.
Ela sorri.
— Pelo menos eu posso ver bastante o Thomas e a Amber.
— Sim – eu sorrio.
— E você, claro. Eu gosto de você.
Meu coração se enche de amor.
— Eu também gosto de você, Nina.
— Ei Liz, não vai seguir com a gente para as atribuições da manhã? –
Mark aparece na porta e eu beijo a testa de Nina me despedindo.
Queria ficar o dia inteiro com ela, mas não posso, eu ainda tinha um
trabalho a fazer.
Acompanho Mark para fora do quarto e seguimos pelo corredor.
— Estou feliz que tenha voltado.
Dou de ombros.
— Estou feliz também.
— Que confusão hein? Não faço ideia do que rolou, pelo menos agora
temos você por perto de novo – ele passa o braço por meus ombros e eu rio,
meio sem graça.
— Finalmente se juntou a nós, senhor Geller – a voz de Thomas nos
alcança e eu fico vermelha, enquanto Mark se afasta.
Jenny faz uma careta e Julie parece preocupada.
Thomas olha de mim pra Mark. Sei que estou vermelha o que é
ridículo.
— E, senhorita Spencer – sua voz me acaricia. O jeito que ele falou
meu nome devagar, faz todo tipo de recordação envolvendo a noite passada
esquentar meu corpo.
Droga.
Fico mais vermelha ainda.
Ele desvia o olhar para os papeis em sua mão.
— Jenny e Julie, sutura.
— Que chato – Jenny resmunga e leva um beliscão de Julie.
— Benjamin e Sam, entrega de exames – Thomas continua. – Mark,
laboratório.
— De novo?
Thomas levanta a sobrancelha.
— Se não estiver satisfeito, pode ir para os exames anais.
— Não, laboratório está ótimo.
Então seu olhar recai em mim.
— Você, vem comigo.
— Aonde vão? – Jenny pergunta e recebe um olhar gelado de
Thomas.
— Já deveria estar na sutura, Lars.
— Por que a Liz vai com você? Ela vai te ajudar em alguma cirurgia?
Thomas não responde e sai pelo corredor, eu o sigo, sem entender.
Nós entramos em uma sala e eu olho em volta, quando ele fecha a
porta. E reconheço a sala de medicamentos.
— O quê...?
E, antes que eu possa terminar, sua boca está grudada na minha.
Simples assim, eu estou me pegando com o Doutor Hardy na sala de
medicamentos.
Capítulo Vinte e Três

Thomas

Liz me empurra e me encara com olhos flamejantes.


— Foi uma péssima ideia.
Solto uma risada seca sem humor mais parecendo um engasgo e dou
de ombros.
— Eu achei ótima!
Liz revira os olhos e cruza os braços em frente ao peito.
Passo a mão pelos cabelos e respiro fundo tentando manter a calma.
Ela estava explodindo minha mente. Mas não foi sempre assim?
E parecia que estava tudo num nível hardcore agora.
Ainda parecia surreal que eu tivesse acordado na mesma cama que ela
esta manhã. Porra, ainda parecia um sonho maluco que ela tivesse me levado
pra lá na madrugada, para começo de conversa.
Minha mente estava uma bagunça naquele momento. Eu só conseguia
pensar em como poderíamos ajeitar tudo para deixar Nina em segurança.
Obviamente, tudo o que Amber disse fazia um sentido imenso para mim,
mesmo assim, ainda era algo grande demais para parecer viável.
Então Liz praticamente desfaleceu diante do peso de toda aquela
confusão e a mim não restou alternativa a não ser levá-la pra casa e deixá-la
segura em sua cama.
Eu poderia ter ido embora, não fui.
Eu fiquei ali, sozinho no escuro. Tentando não pensar. Tentando não
surtar. Até que ela havia surgido no corredor, com sofrimento nos olhos e
certeza em suas palavras.
E eu me deixei contaminar por sua convicção.
E foi perfeito, como há oito anos.
Se eu queria transar com ela de novo? Seria redundante dizer que eu
só pensava nisto desde que ela retornou a minha vida.
E quanto àquela vontade de abraçá-la e não mais soltar, de sentir seu
cheiro único e inebriante em meu nariz enfiado em seus cabelos enquanto ela
dorme, de ouvir seu coração batendo e seu doce ressonar pensando que era
esse som que eu queria me embalando todas as noites até a eternidade.
Bem, era somente a confirmação de que eu não passei de um grande
idiota nesses últimos oito anos.
E, pela primeira vez em muito tempo, mesmo em meio a toda aquela
incerteza e confusão, eu fechei meus olhos e dormi com uma nova esperança.
Liz estava de volta aos meus braços. Juntos nós iríamos salvar Nina.
Tudo ia dar certo, afinal
Então, ao acordar ela havia me encarado com olhos frios. Suas
palavras eram frias e práticas. Ela estava fazendo apenas por Nina. Não tinha
nada a ver com qualquer paixão que ela ainda pudesse nutrir por mim.
O que me deixou fervendo de raiva. E frustração.
Mais perdido do que nunca.
E vê-la abraçada ao babaca do Geller e ainda rindo de qualquer
babaquice que tivesse saído daquela boca murcha me deixou espumando com
mais raiva ainda.
O que diabos se passava na cabeça de Liz? Nós estávamos juntos
agora, porra!
Então eu não hesitei em arrastá-la para a sala de medicação para
relembrá-la de como as coisas eram atualmente.
Se ela pensava que as regras eram só dela. Estava enganada. Eu tinha
uma ou duas coisas a ditar naquele departamento também.
E ela havia me empurrado para longe e mandado parar. E ainda
ousava dizer que era uma péssima ideia. Eu devia empurrá-la de volta na
parede e demonstrar minhas ideias.
No entanto, apenas soltei um palavrão baixo, tentando me controlar.
— Sério Thomas? Não sou uma das suas vadias aqui do hospital! Me
trazer para o covil para onde traz todas as enfermeiras?
— Eu nunca te tratei como vadia!
— Não? Não é para cá que traz as enfermeiras para fodê-las contra os
armários? Não foi para isto que me trouxe?
— Foi e acho que estaríamos fazendo se não tivesse gritando comigo!
– Minhas palavras sinceras parecem inflamar mais sua raiva.
— Eu não sei o que está se passando pela sua cabeça, quero esclarecer
eu não sou Emily ou qualquer garota que vai cair na sua lábia assim que você
chama! Não vou ficar transando com você pelos cantos do hospital!
— Por que não? Não foi o que combinamos fazer? Que precisamos
fazer?
Ela respira fundo.
— Bem, nós não combinamos nada!
— Talvez seja a hora de combinarmos! Não sei em que lugar está
escrito que é só você que dita as regras!
— Não estou fazendo isto! – Ela parece indignada.
— E muito brava comigo porque estou sendo sincero.
Ela pisca de repente, algo passando por seus olhos.
— Wow!
— O que foi?
— Você disse algo parecido quando discutimos pela primeira vez.
Eu franzo a testa, tentando me lembrar. Era difícil lembrar daqueles
primeiros momentos da Liz irritada me chamando de machista e grosseiro
quando nos conhecemos naquela livraria.
Quando eu me recordava de nossos primeiros momentos, preferia me
lembrar de quando a levei pra sair a primeira vez, do desafio das tatuagens.
De quando a beijei pela primeira vez na porta de seu apartamento.
Agora eu me lembrava de como ela estava brava naquele dia. De que
havia gritado comigo, com os olhos expelindo fogo em minha direção. Como
agora. E isto faz sorrir.
— Estava sendo uma megera absurda, como agora, Elizabeth
Spencer.
Ela se desconcerta.
E vejo uma centelha de divertimento em seus olhos. Porra, nem tudo
estava perdido.
Eu a fiz se apaixonar por mim uma vez. Eu poderia fazer de novo.
— Eu sei que a situação é estranha e que precisamos colocar alguma
ordem... – ela fica vermelha. E é lindo de se ver. Me dá vontade de beijá-la de
novo.
Mas não beijo. Eu havia escolhido as armas erradas.
Liz tinha razão. Não éramos mais aqueles jovens cheios de hormônios
e inconsequências de oito anos atrás. Mesmo ainda havendo uma dose
incrível de tesão entre nós, agora existiam outros fatores também. Além de
todo o abismo óbvio de oito anos de separação e muito rancor envolvido.
Ainda havia Nina.
E o bebê que tínhamos que fazer.
— Me desculpa – peço baixinho. – Tem razão. Não deveria ter feito
isto.
Ela dá de ombros meio desconcertada com meu recuo.
— Realmente não devia. Quando qualquer um poderia nos ver? Que
porra, Thomas!
— Nós somos um segredo? – Eu não tinha pensado sobre aquilo.
— Acho melhor sermos discretos. Se não por nós, embora eu deteste
ser alvo de fofoca neste hospital, sobretudo por Nina e toda a... situação.
— Sim, tem razão – concordo com ela seriamente.
Ela respira quase aliviada.
— Eu sei que precisamos... achar um meio termo, ou algo parecido.
Só que não no hospital.
— Certo. Vamos sair daqui.
Nós saímos da sala e ela para me encarando.
— Não passou minha atribuição.
— Nina precisa de supervisão. Quer se encarregar dela?
Seus olhos se iluminam.
— Acha que seria... apropriado? Não sei...
— Ninguém além de mim, você e Amber sabe do que está
acontecendo.
— Seu pai sabe.
Meu rosto se fecha ao pensar no meu pai. Ele ainda estava internado e
estável.
— Ele não está em condições de fazer nada no momento.
— Certo. Nina parece preocupada com ele.
— Eu tive que contar a ela, embora não quisesse preocupá-la. Ela é
muito esperta.
— E o que vamos dizer a ela? Sobre... nós?
Eu solto um suspiro pesado.
— Não faço ideia, Liz. Eu tenho vontade que ela saiba de tudo, porém
como contar uma história como esta a uma criança? Ainda mais com a saúde
frágil?
— Eu sei. Acho que devemos deixar tudo como está por enquanto.
— Sim.
— Ok. E... muito obrigada por me deixar ficar com ela. Significa
muito pra mim.
— Eu sei.
Ela sorri e se afasta.
Uma enfermeira a intercepta ao passar.
— Ei doutora Spencer, não tinha pedido demissão?
Liz dá de ombros.
— Não mais.
— Vai ficar no hospital então?
— Sim. – Ela sorriu e seguiu em frente.
De repente eu me lembrei de suas últimas palavras quando se
despediu de mim. Ela me disse que ia se casar.
Com toda aquela confusão eu tinha me esquecido completamente
daquela história, agora eu sabia que deveria interpelar Liz sobre o assunto.
Onde diabos estaria seu “noivo” neste momento?
Bom, eu esperava sinceramente que ele não existisse mais.
Eu sigo o dia fazendo meu trabalho no hospital e Amber me
intercepta quando me encontra sozinho em um consultório no fim da tarde.
— Liz me disse que tomaram a decisão.
— Sim — respondo vagamente, examinando alguns diagnósticos.
— É só o que tem a dizer?
Eu bufo. Não estava a fim de aguentar Amber hoje.
— É só o que precisa saber.
— Credo! Sabe que só estou preocupada com a Nina!
— Me desculpe – recuo – eu estou com a cabeça cheia Amber.
— Pode não parecer, mas eu também! Ainda mais com o papai mal!
— Como ele está?
— Eu acabei de passar por seu quarto. Continua desacordado, mas
estável.
— Ele vai ficar bem.
— Eu... Liguei para Diana.
— Como é?
— Achei que ela deveria saber, não sei.
— Acha que ela se importa?
— Eu não sei. Eu sempre torci por eles, achei estranho quando ela foi
embora há seis anos, deixando Nina.
— Ela descobriu a verdade.
— É, eu a entendo agora. E contei a ela.
— Disse que papai contou sobre Nina.
— Sim.
— E o que ela falou?
— Que se sente aliviada sabendo que finalmente papai revelou a
verdade e que sente muito por ter sido porque Nina está doente. Ela quer vê-
la.
— Não sei se concordo.
Diana via Nina muito pouco, somente a visitava em feriados e seu
aniversário. Eu sempre achei que era uma atitude fria e estranha. Agora
entendia sua situação.
Ela não queria compactuar com a mentira do meu pai.
— Nina vai gostar, Thomas.
— Certo. Faça como achar melhor.
— Eu sempre faço – ela se levanta e sai da sala.
E, se eu pensava que iria ficar tranquilo, estou enganado, a próxima
pessoa a entrar na sala é Paola.
— Ei, posso conversar com você?
Tenho vontade de dizer não. Mas sei que não vai adiantar.
— O que você quer?
Ela sorri. Como uma cobra faria se sorrisse.
O que merda eu vi nessa mulher?
— Eu sinto muito por seu pai ter descoberto sobre nós daquela
maneira.
— Eu sinto muito por você ter se envolvido com ele, para começo de
conversa.
— Eu sei, você nunca se conformou...
— Paola, se era o que tinha a dizer já pode sair.
— Não, eu vim dizer que tinha razão. Nunca devia ter me envolvido
com seu pai.
— Sério? Justo agora que ele provavelmente não vai querer mais nada
com você?
— Você não pode afirmar. Ele está mal, mas pode me perdoar.
— É esta sua ideia?
— Para falar a verdade não.
Eu levanto a sobrancelha e ela sorri.
— Eu não quero mais seu pai. Eu desisti dele. Vou deixá-lo.
— É a primeira coisa decente que diz em muito tempo.
— Dito isto, acho que podemos ficar juntos de novo.
— O quê?
Seu sorriso se torna mais felino e insinuante.
— Nada mais nos impede... Sei que não queria ficar comigo enquanto
eu estivesse com seu pai. Eu entendo. Agora não há mais nada entre nós.
Podemos recomeçar e...
— Você está louca, Paola, se pensa que vou ficar com você de novo.
— Por que não? Sabe que nós éramos perfeitos juntos!
— Sua definição de perfeição é bem diferente da minha!
— Não seja cruel! Eu estou aqui, despida de qualquer orgulho, te
pedindo uma chance...
— Está perdendo seu tempo. Não quero mais você. Faz tempo!
Qualquer tesão que eu tive por você acabou quando eu descobri que estava
dando o golpe no meu pai.
— Ah! Não estava dando nenhum golpe, que injusto.
— Faça um favor a nós dois, Paola, não banque a inocente. Não
combina com você. Agora saia e me deixe trabalhar.
Ela se levanta irritada.
— Você vai mudar de ideia! – Ela diz antes de sair da sala.
— Espere sentada. – Afirmo.
Eu só esperava que Paola não se tornasse um problema.
O dia já se transformou em noite quando vou ver Nina.
Encontro Amber na porta do quarto.
— Vou passar a noite com Nina.
— Certo. Eu vim me despedir e já vou embora.
Nós entramos no quarto e Liz está acabando de medir a pressão de
Nina.
— Thomas! Por que não veio me ver o dia todo? – Nina reclama.
Eu me aproximo e beijo sua testa. Ela parece mais pálida hoje e vê-la
corta meu coração.
— Eu tinha trabalho a fazer, docinho. Deixei uma substituta, não
gosta da Liz? – Eu olho em direção a Liz que está mostrando um prontuário a
Amber pela cara das duas, as notícias não parecem boas.
— Eu adoro a Liz, ela é legal.
— Fico feliz em saber – acaricio seus cabelos.
— Ela é sua namorada? – Pergunta num cochicho.
Eu rio.
E me aproximo.
— Pode guardar um segredo?
Ela sacode a cabeça afirmativamente, ansiosa.
— Ela é minha namorada sim.
Ela arregala os olhos e se remexe animada.
— Isto é demais!
— Ainda é um segredo, não esqueça ok?
— Não vou contar pra ninguém – ela passa os dedinhos pela boca,
como se fechando um zíper.
— Eu preciso ir. Amber vai ficar com você, tudo bem?
Eu a abraço e me afasto com Amber e Liz.
Amber me passa o prontuário.
— Precisamos intensificar a medicação – Amber diz e eu concordo.
— Ela não está respondendo ao Inatinibe – Liz explica.
— Vamos entrar com Bosutinib e Interferon – ordeno.
— Acha que ela responderá a eles? – Liz pergunta apreensiva.
— Se não responder, teremos que começar com a quimio – Amber diz
e eu rezo para que não seja preciso.
Infelizmente nós três sabemos que a doença de Nina está caminhando
para isto. Ela não está respondendo a nenhum inibidor de tirosina quinase.
— Vocês podem ir. Eu vou ficar com ela – Amber diz.
Liz se despede de Nina com um beijo que pisca pra mim quando nós
saímos.
— Estou exausta – ela murmura quando entramos no vestiário. Ela
começa a se trocar mecanicamente e eu a estudo, enquanto faço o mesmo.
Parece realmente cansada.
Nós nos trocamos e saímos do hospital. Eu seguro seu braço, quando
ela vai em direção ao seu carro.
— Vamos para meu apartamento.
Ela hesita. Sei que a resposta negativa está na ponta da sua língua.
Porém, ela sabe que não pode dizer não.
— Sei que está cansada. Eu também, mas precisamos conversar.
E continuar a tentativa de fazer um bebê gostaria de completar, mas
me calo. Ela sabe muito bem o que está nas entrelinhas.
— Ok. Espero que tenha comida na sua casa. Eu estou morrendo de
fome.
Eu sorrio.
— Claro doutora Spencer. Eu vou te alimentar, não se preocupe.
Nós entramos no meu carro e seguimos para meu apartamento.
Por um instante a lembrança do tal noivo tolda meus pensamentos e
eu me pergunto se devo interrogar Liz sobre ele. Decido não fazê-lo.
Eu só quero chegar em casa e alimentá-la para depois saciar a fome
que eu tinha dela.
Deixaria os assuntos desagradáveis para depois.
Capítulo Vinte e Quatro

Liz

Como é que aquilo tinha acontecido?


Em um minuto eu estava fazendo discursos inflamados sobre manter
o controle e a discrição e em outro estava entrando no carro de Thomas
Hardy muito ansiosa para que chegássemos a sua casa, ou melhor, a sua
cama.
Olho seu perfil concentrado enquanto dirige e mordo os lábios com
força pra não suspirar. Ou gemer. Ou atacá-lo. Por que ele tinha que ser tão
perfeito? Por que os anos não tinham deteriorado sua beleza, transformando-o
num cara gordo e feio? Por que ele ainda era o homem mais lindo do mundo
pra mim, aquele que me deixava de pernas bambas só com um olhar, que
fazia meu coração derreter somente com um sorriso? Talvez fosse mais fácil
resistir e manter a mente no lugar.
Estava sendo difícil. Era duro lembrar que nós estávamos juntos de
novo apenas para um fim especifico. Fazer um bebê e salvar nossa filha. Eu
havia acordado assustada naquela manhã, apesar de orgulhosa de mim mesma
por conseguir deixar bem claro nosso objetivo. Sem fraquejar. Então ele me
levou para dentro do armário de remédios, colocando aquela mão cheia de
dedos em mim. Aqueles dedos longos que sabiam bem o que fazer para me
corromper. E até agora eu me perguntava como tive forças para fazê-lo parar.
Talvez o fato de me lembrar que era para lá que ele levava todas as
enfermeiras. Pensar que eu era mais uma na lista de garotas que o Dr. Hardy
comia na sala de medicação me deixava bem irritada.
Felizmente ele pareceu entender meu discurso. Sem contar que nós
tínhamos que realmente ser discretos. Seria um inferno se alguém descobrisse
sobre nós. E ainda mais nossos reais motivos. A verdade era que eu não
queria ter que me preocupar com falatórios, além de todos os nossos
problemas.
— Algum problema?
Eu pisco ao ouvir a voz de Thomas.
— Quê?
Ele me lança um sorriso de lado, parando num farol vermelho.
— Estava me encarando?
Eu enrubesço como uma adolescente. Inferno!
Cruzo os braços e dou de ombros e olho para a janela.
Sei que ele continua rindo. O que faz minha barriga se contorcer.
E lembranças de outros tempos encherem minha mente. De quando
éramos jovens e livres, de como sempre que entrava em seu carro eu não
hesitava em pular em cima dele, atacando-o com mãos e lábios. Enquanto ele
ria, me envolvendo em seus braços para uma sessão quente de amassos que
embaçava o vidro do carro, antes que conseguíssemos finalmente sair pra
algum lugar.
Tempos que não voltam mais porque não éramos mais os mesmos.
Eu não era mais aquela menina tola e apaixonada. Thomas havia
pisado naquela menina destruindo seus sonhos.
E uma vozinha baixa sussurra maldosamente no meu ouvido que se eu
não tiver cuidado, ele fará tudo de novo. Eu já não sinto o mesmo desejo
irrefreável? A mesma vontade de me jogar em cima dele até que ele ria e me
abrace forte não me deixando ir?
— Chegamos.
Sua voz me tira dos devaneios e eu olho em volta. Estamos em uma
garagem e Thomas sai do carro. Eu faço o mesmo, seguindo-o até o elevador.
Tento não olhar em sua direção, mas sinto seus olhos em mim.
Queimando. Me chamando. E a expectativa do que vai acontecer quando
estivermos em seu apartamento aperta meu ventre de mil maneiras diferentes.
Sou toda temor e anseio.
Nós saímos do corredor e Thomas abre a porta para eu entrar.
Eu olho em volta, curiosa. É grande e masculino.
Tem cheiro de Thomas.
Estremeço.
Fico parada sem saber o que fazer.
Ele coloca a chave do carro no aparador e me encara. Engulo em seco
com a fome que vejo em seu olhar.
Derreto.
— Ainda com fome? – Ele pergunta com a voz rouca e eu quero dizer
que minha fome agora é outra.
Antes que consiga abrir a boca para responder, Thomas caminha até a
cozinha, em conceito aberto.
— Eu falei que ia te alimentar e o farei – ele abre a geladeira e sorri
pra mim, antes de voltar a atenção para seu interior.
O quê?
Ele está falando sério?
Por um instante eu acreditei que ele ia me atacar da mesma maneira
que me atacou naquela sala de medicamento. E, desta vez, eu não ia me
importar nem um pouco. Na verdade, eu estava ansiosa e pronta.
— Hum, não cozinho muito aqui, não sei o que podemos fazer... O
que quer comer? Carne? Salada? Pasta? – Ele vai tirando os ingredientes da
geladeira aleatoriamente e jogando em cima da mesa e eu rolo os olhos, meu
tesão dando lugar à fome de verdade agora que vi a comida.
— Eu estou morrendo de fome, aceito qualquer coisa.
— Certo, vamos ver... – ele continua a remexer na geladeira,
parecendo indeciso e eu franzo a testa.
— Você sabe cozinhar, Thomas?
Ele dá de ombros
— Não deve ser difícil.
Eu suspiro.
— Não devia ter prometido se não pode cumprir, cara! – Me
aproximo e apanho uma panela enchendo-a de água. – Estou vendo que eu
mesma terei que me virar se não quiser morrer de fome.
— Eu nunca cozinho, na verdade – ele riu, meio sem graça.
— E como você vive?
— Eu tenho uma empregada que vem algumas vezes por semana e
deixa algo pronto. Ou eu peço comida, ou saio...
— Homens, muito inúteis! – Resmungo, pegando a carne e
começando a temperar.
— Eu sou um médico ocupado, Liz.
— Grande merda! Eu também sou uma médica ocupada, se quer saber
e olha só! – Eu jogo a massa dentro da água – sei preparar uma refeição
também!
— Não vou mais discutir este ponto. – Ele não fica bravo por eu ter
feito um ponto – se não se importar, eu vou tomar um banho.
— Ok – eu não olho para ele quando se afasta.
Apenas tento não ficar imaginando-o tirando a roupa e entrando no
boxe. Nu. Sob a água.
Deus, eu tinha que me controlar. Ficar fantasiando com Thomas não
ia ajudar na tarefa “manter o controle”.
Estou terminando o jantar, quando escuto a campainha tocando.
Thomas ainda não saiu do chuveiro eu decido ir abrir a porta, quando
escuto a campainha de novo.
E não sei quem está mais surpreso. Se eu, ao ver Chloe e Josh, ou
eles.
— Liz? – Eles falam juntos e eu olho de um pra outro.
— Josh e... Chloe?
— Liz! – Josh exclama e, sem cerimônia, me arrebata num abraço, me
tirando do chão – e aí?
Eu olho para Chloe que tem um risinho sarcástico no rosto.
— Ei, Liz, que surpresa vê-la aqui... ou não.
— Cadê o Thomas? – Josh pergunta olhando além de mim.
— No banho – respondo e fico vermelha quando o risinho de Chloe se
alarga.
— Hum... – Josh olha pra mim tentando desvendar todos os segredos
do mundo. Desvio o olhar.
— É... querem entrar? – Pergunto sem saber o que fazer.
Eles entram e eu fecho a porta.
— Nossa, que cheiro incrível! – Josh exclama – pasta?
— Josh, fala sério, só pensa em comida! – Chloe ri – se bem que devo
dizer que o cheiro é realmente bom. Perdoa a gente, Liz. Nós viemos chamar
o Thomas pra jantar. Não fazíamos ideia que...
— Ei, que diabo estão fazendo aqui? – Thomas aparece na sala, com
seus cabelos lindamente molhados. Usando uma calça de moletom de cintura
baixa e uma camiseta branca colada no corpo ainda meio úmido.
— E aí cara! – Josh o cumprimenta.
— Oi Thomas – Chloe segura o braço de Josh. – A gente veio te
chamar para jantar.
Josh abraça a cintura de Chloe.
— Já que foi você que me apresentou esta gata, merecia que eu te
pagasse um jantar.
Chloe solta uma risadinha boba e eles trocam um selinho.
Parecem fofos juntos.
— A gente não sabia que já tinha companhia – Chloe pisca.
— E comida boa! – Josh ri.
— Vocês podem jantar com a gente – me vejo dizendo. Sinto o olhar
de Thomas me fuzilando. Não sei bem porque os convidei. Talvez esteja
tentando me proteger um pouco daquela vontade louca de me jogar em
Thomas. Tentando manter a porra do controle que sinto que cada vez mais
escapa das minhas mãos.
— Sério? – Os olhos de Josh brilham. Chloe parece concentrada em
Thomas. Ela percebe que ele não gostou nem um pouco.
— Talvez a gente devesse ir...
— Ah gata, vamos ficar! Sente esse cheiro! – ele se desvencilha de
Chloe e vem para perto de mim – sem contar que estou com saudade desta
gata... – sem aviso, ele levanta minha blusa – cadê minha obra de arte? Ah,
continua aqui! Vem ver Chloe, eu posso fazer uma assim pra você.
— Josh, está deixando a Liz sem graça – Chloe se aproxima e abaixa
minha blusa – quer dizer que foi o Josh quem fez sua tatoo?
— E a do Thomas também! – Josh completa.
Thomas solta um palavrão baixo, aparentemente já conformado com
nossas visitas.
— E aí, alguém quer beber? Acho que preciso de álcool – ele diz e
abre a geladeira pegando cerveja.
— Eu prefiro vinho. Você tem? – Chloe pergunta.
— Garotas! – Josh ri.
Eu volto às panelas, ignorando as brincadeiras entre eles.
Chloe se aproxima e me oferece uma taça de vinho.
Ela me encara com curiosidade.
— É uma situação um tanto surpreendente. Ou não.
Eu tomo um gole de vinho e descarto a taça, ocupada em escorrer o
macarrão. Procuro Thomas com o olhar e o vejo na varanda conversando com
Josh.
— Eu sei da história de vocês, se está se perguntando.
Eu a encaro e ela dá de ombros.
— Thomas fez algumas confissões.
— Não sabia que conhecia o Josh – tento desviar a atenção de mim.
— E vocês se conhecem há anos não é? Ele é uma graça, faz poucos
dias que estamos saindo, acho que estou de quatro – ela ri bebendo mais um
gole – até mesmo literalmente.
Ela já está ficando meio bêbada.
Me pergunto o quanto ela sabe. Provavelmente não de Nina.
— Nossa, que educação a minha, quer ajuda?
— Pode pôr os pratos na mesa?
— Claro.
Ela coloca os pratos e os rapazes voltam a cozinha quando acabamos
de servir a comida.
Josh me encara muito sério. E, sem dizer nada, se aproxima e me
abraça. Eu constato que Thomas contou a ele.
Chloe franze a testa curiosa, mas não fala lada. Josh cochicha algo em
seu ouvido que a satisfaz, pois não faz nenhum comentário.
— E aí, vamos encher a pança? – Josh brinca e acho que ele está
tentando amenizar o clima. Eu acho bom.
Chloe começa a contar sobre sua noite com Josh, quando foi assisti-lo
tocar e eles contam coisas engraçadas. Nós rimos. E então, do nada, Thomas
e eu estamos contando nossas próprias histórias engraçadas nos shows de
Josh.
E continuamos a rir. Como se nem um dia tivesse se passado. Como
se ainda fôssemos as mesmas pessoas. Talvez fôssemos, afinal.
— E esta tatoo? – Chloe pergunta em certo momento. Já estamos na
segunda garrafa de vinho, que todos tomam agora.
— Foi como eu conheci esses dois! – Josh diz – você sabia que o
Thomas chorou feito um bebezão?
Chloe arregala os olhos.
— Sério?
— Nem foi tanto assim! Odeio agulha! O que posso fazer? – Thomas
ri.
— Sim, é verdade – eu rio, me lembrando – nós apostamos no nosso
primeiro encontro que íamos fazer uma tatuagem, então o Thomas deu pra
trás depois que eu fiz a minha. Eu fiquei puta!
— Eu me lembro! – Josh bate na mesa rindo – mas vocês voltaram
depois...
— Sim, ele fez a tatuagem – eu digo suavemente. Minha mente
tomada pela nostalgia.
— Eu fiz por você – Thomas diz e eu o encaro. Nossos olhares se
encontram e sei que estamos nos lembrando das mesmas coisas.
E de novo, eu tenho aquela sensação atemporal.
Tenho vontade de me inclinar e beijar sua boca. Como fazia antes,
quando bastava nossos olhares se encontrarem para o desejo de chegar mais
perto despertar.
— Foi a Liz quem desenhou o dragão do Thomas – Josh diz,
quebrando nosso momento.
— Sim, Liz é uma ótima artista. – Thomas comenta e eu fico
vermelha.
— Não sou não.
— Verdade? – Chloe pergunta curiosa – Você desenha ou algo
parecido?
— Eu costumava pintar, era só um passatempo.
— Não pinta mais? Era sua paixão – Thomas pergunta.
— Eu tinha muitas paixões que não existem mais – digo me perdendo
no meu copo de vinho. Lembrando que amava pintar do mesmo jeito que
amei Thomas.
Duas paixões que ficaram no passado.
— Acho que devemos ir – Chloe diz, se levantando e todos nós
fizemos o mesmo.
Ela e Josh se despedem e vão embora.
Eu volto pra cozinha e começo a tirar e mesa.
— Deixa que faço isto – Thomas diz.
— Eu posso...
— Eu faço Liz – ele diz firmemente. Não entendo seu olhar. – Por
que não toma um banho enquanto cuido da louça?
— Ok – concordo, me afastando.
Não pergunto onde é o banheiro, encontro facilmente o quarto de
Thomas e o banheiro.
Entro ali, ignorando os sinais de Thomas por todo o lugar e tiro a
roupa entrando no chuveiro. E, enquanto a água vai caindo sobre mim, sinto-
me esvaziar de qualquer pensamento deixando somente aqueles que estão
concentrados em Thomas.
E uma doce expectativa toma conta dos meus membros, arrepia minha
pele, atordoa meus sentidos.
Quando desligo o chuveiro e saio do boxe, Thomas surge em meio a
fumaça do banheiro. Me esperando. Me reivindicando.
Ele segura uma toalha aberta para mim.
E não há mais nada em minha mente. Nem medo. Nem hesitação.
Quando caminho em sua direção, nua e com a água pingando do meu corpo.
Aqueço e arquejo, quando chego perto o suficiente para ele me
envolver com a toalha, trazendo-me para seus braços. Me puxando. Me
enlaçando forte, enquanto sua boca desce sobre a minha.
É um beijo suave, com gosto de vinho e desejo. Gosto de Thomas.
Meu preferido no mundo. Enfraqueço e suspiro, perdida naquele enlevo.
Cerro as pálpebras, quando sua boca deixa a minha para trilhar um
caminho de fogo por meu rosto, meu pescoço, meu ombro, sorvendo a água
ainda morna da minha pele com sua língua, me deixando mole e fraca.
— Você tem o melhor cheiro do mundo – ele sussurra em minha pele.
E, muito vagamente, percebo com uma parte do meu cérebro que ele
está me enxugando, esfregando a toalha suavemente em meus membros
enfraquecidos. E vai descendo, sua boca seguindo o mesmo caminho,
deslizando por minha pele recém-lavada, perfumando-a com seus beijos.
Jogo a cabeça para trás, os olhos fechados, apenas sentindo,
ansiando, suspirando. Adorando sentir sua respiração em meio a minhas
coxas. Arrepiando até a minha alma.
— E o melhor gosto do mundo... – ele diz, entre minhas pernas.
— Thomas – seu nome escapa dos meus lábios num gemido profundo
e ele me beija. Me marca. Me consome – por favor...
Estou além da consciência, quando escuto um som rouco vindo do
fundo de sua garganta, antes de ele se levantar e, num átimo, me pegar no
colo.
Então estou sobre sua cama.
Abro os olhos enevoados pela excitação para vê-lo ajoelhado na
minha frente, retirando as roupas, sem deixar de me encarar.
Ofego, quando ele se aproxima, nu e lindo e abre meus joelhos.
Fecho os olhos, perdida.
— Ah, por favor – imploro.
— Abra os olhos, Liz – ele ordena e eu obedeço.
— Por favor, o quê? O que você deseja?
Ele não sabia? Ele não sabia sempre?
— Você – confesso num soluço.
Ele rosna e me puxa sem dó, arrastando meus quadris para mais perto.
Solto um gritinho de susto e prazer, ele ri. Perversamente.
E então vem. Dentro de mim.
Com força. Várias vezes. Me fazendo gritar e agarrar seus cabelos.
Nossos gemidos se misturam na noite escura.

***

Quando acordo já é dia. Sento-me na cama, deixando meus olhos


sonolentos percorrerem o quarto estranho.
Quarto do Thomas.
Sinto-me vagamente apreensiva, ainda atordoada e olho em volta.
Estou sozinha.
Deito-me novamente, um pouco de dor martelando na minha cabeça.
Muito vinho, certamente.
E além de um pouco de ressaca como me sinto?
Tento analisar meus pensamentos e percebo que não tem muito ali. O
que é bom. Sinto apenas minha mente meio vazia e meu corpo languidamente
satisfeito.
Ah, muito satisfeito, penso com um risinho ao me recordar na noite
passada.
Ah droga, em algum lugar do meu íntimo, tem uma voz tentando se
fazer ouvir. Ela está bem baixinha agora, quase inaudível, como se a tivessem
trancado numa cela escura. E, embora eu não a escute direito agora,
reconheço ser minha consciência tentando me dizer que eu não deveria me
sentir assim.
Talvez o álcool ainda esteja em meu sistema atordoando meu
raciocínio. De repente fico alerta quando escuto passos se aproximando e
meu coração dá um salto, pois sei que é Thomas.
Ele aparece no quarto todo vestido e muito sério. O sorriso que eu
nem tinha me dado conta de estar ostentando morre em meu rosto.
— Oi – murmuro timidamente, sem saber o que pensar. Ele joga um
celular sobre a cama. – Ele estava tocando.
Eu pego o aparelho meio aturdida.
— Estou indo para o hospital. – Sem dizer mais nada ele sai do
quarto.
Eu ligo o celular e vejo quem estava me ligando.
Era Peter.
Meu coração despenca.
Merda! Como eu posso ter me esquecido dele?
Gemo, desalentada e mais perdida do que nunca. A culpa me
consome.
Sinto um aperto no peito ao tentar imaginar como é que vou contar a
ele sobre Nina. E pior, sobre o que estou fazendo com Thomas.
Escuto a porta do apartamento bater e sei que Thomas se foi. Ele
também deve esperar uma explicação?
Eu tinha firmado um compromisso com Peter antes de saber de Nina.
Antes de precisar ficar com Thomas de novo, por Nina.
Só por Nina? Uma vozinha incômoda sussurra e eu sinto mais culpa
ainda.
O que eu vou fazer? Não faço ideia.
Sinto-me sem rumo.
Jogo as cobertas para o lado e me visto rapidamente. Vou para minha
casa, tomo um banho e troco de roupa indo para o hospital.
O tempo inteiro tento achar uma solução. Não quero magoar Peter.
Mas tenho que contar o que está acontecendo.
Estaciono em frente ao hospital e pego o celular, discando o número
de Peter com dedos trêmulos.
Ele atende depois de alguns toques e, quando escuto sua voz, minha
coragem evapora.
— Oi, Lili!
— Peter...
— Ei, o que foi? Que voz é esta? Onde estava ontem? Tentei te ligar
várias vezes!
— Alguns problemas...
— Que problemas?
— Eu não quero falar por telefone – Peter merecia mais, penso.
Precisaríamos estar frente a frente quando contasse a ele.
— O que aconteceu? Está me assustando, Liz.
— Você pode voltar para conversarmos?
— Agora?
— Sim, por favor,...
— O que aconteceu? Eu não posso sair daqui agora. Estou no meio de
vários problemas na obra...
— Eu sei...
— Se for algo grave, eu dou um jeito...
— Não, não é necessário. Olha, podemos esperar. Não quero
prejudicar seu trabalho.
— Você parece apreensiva...
— Não fique preocupado. Eu estou bem.
— Tem certeza?
— Tenho. Olha, faça seu trabalho. Se dedique a esta chance. Nós
conversaremos quando retornar ok?
— Achei que você que viria, o que houve? É sua mãe? Ela
encrencou?
— Mais ou menos – melhor deixá-lo pensar que era problema com
Bárbara. Por enquanto.
— Certo. Vou tentar adiantar tudo aqui. Estarei com você o mais
breve possível.
— Tudo bem.
Desligo me sentindo uma covarde. Sentindo que adiei o inevitável.
Ao mesmo tempo sei que se jogar aquela bomba em Peter, ele voltaria
correndo. E, além da decepção comigo, seu trabalho seria prejudicado.
Talvez eu conseguisse um tempo para ir até ele. Mas como não queria
deixar Nina, teria que esperar Peter voltar.
Um pouco mais convicta de que estava fazendo a coisa certa eu saio
para enfrentar Thomas. Embora não faça ideia do que direi a ele se me
confrontar. Ele tinha o direito de me confrontar? O que nós tínhamos a não
ser um acordo?
Quando paro e fico observando-o dar instruções a Jenny e Julie num
procedimento cirúrgico, me pergunto a quem eu queria enganar?
Meu olhar ciumento vê sua mão que esteve em todo meu corpo ontem
segurar o pulso de Jenny para ensiná-la com o bisturi. A interna até suspira
ridiculamente. Como culpá-la? Até Julie parece deslumbrada, toda vermelha
quando ele volta sua atenção pra ela.
Seu olhar encontra o meu de repente e eu me surpreendo ao vê-los
ainda frios em minha direção, antes de ele desviar a atenção para as internas
novamente.
Bufo, meio irritada por ser ignorada.
Sem saber o que fazer, eu me afasto e vou ver Nina. Eu devia manter
minha atenção nela e parar com aqueles joguinhos com Thomas.
Quando entro em seu quarto, ela está dormindo. Eu beijo seu rostinho,
meu coração apertado de preocupação.
— Como ela está? – Pergunto a enfermeira que está por ali.
— Estável. Não dormiu bem à noite.
Acaricio seus cabelos e fico por ali um pouco. Me pergunto se nosso
plano vai dar certo. Se um novo bebê já está crescendo dentro de mim para
salvá-la.
Rezo para que assim seja.
Independentemente de todos os problemas entre mim e Thomas. De
tudo o que aquela nova aproximação está causando em nossos sentimentos,
saber que existe um motivo maior que tudo, faz uma estranha calma dominar
meu íntimo.
Com uma nova força dentro de mim, eu beijo a testa de Nina e saio do
quarto.
Avisto Thomas ainda instruindo Jenny e Julie e me aproximo.
— Doutor Hardy – ele levanta o olhar para mim. – O senhor poderia
me acompanhar um minuto?
— Ele está ocupado, não está vendo? – Jenny resmunga. Eu a ignoro.
— É urgente. Preciso de sua ajuda. Agora.
Percebo Thomas hesitar. Seu olhar passa de frio para um tanto
irritado. Também vejo algo mais.
Me atenho a este algo.
— Espero mesmo que seja urgente Spencer – ele diz e me acompanha
pelo corredor.
Eu não hesito quando chegamos à sala de medicação, abro a porta e
entro.
E, quando Thomas me segue, fecho-a atrás dele e o empurro contra
ela, prensando meu corpo no dele e o beijando com vontade.
Capítulo Vinte e Cinco

Thomas

Por um instante, sua atitude me surpreende tanto que não consigo


reagir. São segundos de extrema estupefação, os que procedem o momento
em que Liz me levou para dentro da sala de medicação e enfiou sua língua na
minha boca.
Puta que pariu, ela estava realmente fazendo isto? Minha mente se
rebela enquanto meu corpo traidor quer apenas se aproveitar daquele
desvario.
Sim, porque só podia ser um desvario Liz Spencer, a mesma mulher
que ontem tinha me empurrado quando fiz a mesma coisa e ainda me
convencido de que eu era um filho da puta por levá-la para o local onde eu
costumava levar inúmeras funcionárias do hospital. Para fazer exatamente o
que ela estava fazendo agora. Me beijando com tesão, enquanto esfregava
seus peitos em mim.
E mil vezes inferno, eu estava adorando. Mas, espera lá, eu ainda
estava puto com ela. Não pelo fato de ela ter me atacado na sala de
medicação. Com isto eu podia lidar, com certeza.
Eu me lembrava da minha raiva ao ver o rosto bonito do tal noivo no
seu celular de manhã.
Ela não tinha se livrado dele? Será que continuava pensando em se
casar depois de tudo o que havia rolado entre nós?
Porra, eu precisava saber. Então, contrariando meu pau muito
disposto a continuar com a sacanagem iniciada por Liz, eu a empurro e a
mantenho a uma distância segura.
— O quê? – Ela balbucia aturdida.
— Que porra é esta?
Ela pisca e fica vermelha, dando um passo atrás, se livrando das
minhas mãos.
— Qual o problema? Não foi você quem me trouxe pra cá ontem?
— E não foi você que me deu uma lição de moral?
Ela ruboriza mais ainda. É delicioso e me dá vontade de jogá-la contra
os armários. No entanto eu preciso sanar algumas dúvidas.
— Eu... – ela dá de ombros – não achei que ia criar um problema!
— Bom, se quer mesmo saber o problema, eu posso dizer. Você já
contou ao seu noivo o que anda rolando entre nós?
Ela empalidece.
— Eu...
E eu percebo por sua consternação a infeliz resposta. E fico mais
puto.
— Então que merda está acontecendo? Você vai trepar comigo pelos
corredores do hospital enquanto planeja se casar com aquele idiota?
— Ele não é um idiota!
— Ah vai se foder!
— Thomas, você não entende...
— O que eu não entendo Liz?
— Tudo aconteceu muito rápido! Eu tinha decidido me casar com
Peter e...
Suas palavras só me deixam com mais vontade de quebrar alguma
coisa.
— E então você me contou sobre Nina! E aí tudo virou de ponta
cabeça! Acha que está sendo algo fácil de lidar? Nina na minha vida de novo,
e ainda por cima doente? E para completar a bagunça, nós estamos juntos de
novo e eu terei que ter outro filho, meu Deus, Thomas, é demais para
processar e resolver de uma vez só! – Desabafa.
Por um lado, eu a entendo. Sei de todo o seu tormento, o difícil é
assimilar outro cara na sua vida. Já era antes, agora que estamos juntos é
ainda mais duro.
— E por que não contou a ele?
— Eu quero contar. Vou contar claro! Ele está em outra cidade, num
momento crucial da sua carreira. Me pareceu frio demais contar algo tão...
sério por telefone. Acho que Peter merece mais.
A consideração que ela tem com aquele cara me deixa com ciúmes. O
que aquele tal Peter significa para Liz, será que está apaixonada por ele?
Só de imaginar esta possibilidade sinto uma mão fria como aço
apertar meu peito.
— E o que vai acontecer, Liz? – Indago frustrado.
Ela dá de ombros, com um olhar atormentado.
— Eu não sei.
— Você ainda quer se casar com ele?
— Que diferença faz? Duvido que ele ainda queira algo comigo
depois que souber o que estou fazendo.
— E quando pretende contar a ele?
— Quando ele voltar à cidade.
— Eu não sei se concordo com isto...
— Não tem que concordar com nada, Thomas! Peter é problema meu.
Eu que tenho que resolver e ponto final. Não quero mais falar sobre esse
assunto – ela encerra a questão.
Eu quero continuar a discutir. Quero colocá-la contra a parede e
questionar seus sentimentos por aquele outro cara. Quero exigir que ela
termine tudo com ele. Agora! Pouco me importa os sentimentos daquele
imbecil.
Só que eu me importo com os sentimentos dela. E sei que essa
situação a está atormentando. Não sei o que Liz sente pelo tal Peter, mas para
ela ter aceitado se casar com ele deve haver algum sentimento.
Pensar nisto me deixa doente. E o que eu podia fazer? Eu a tirei da
minha vida há oito anos. Ela viveu sua vida sem mim durante todo aquele
tempo, deve ter conhecido muitos caras e um a havia conquistado, de alguma
maneira.
E agora eu a tinha de volta. Não como eu gostaria, mas inferno, eu a
queria daquele jeito de novo, como no passado. Queria que ela sentisse a
mesma paixão que sentiu por mim um dia. Ainda havia centelhas ali,
pairando sobre nós. E, se estávamos juntos novamente por causa das
circunstâncias, eu podia usá-las a meu favor.
Liz ainda não tinha me perdoado. Havia muito ressentimento
acumulado durante todos aqueles anos para simplesmente esquecer e se
entregar a mim de novo. Contudo, eu podia esperar. Eu esperaria a eternidade
se fosse preciso. No entanto, eu queria lutar. Do mesmo jeito que estava
lutando para salvar nossa filha, eu queria lutar para fazer Liz me amar de
novo.
Por que eu ainda a amava. Demais. Como nunca amei ninguém na
minha vida.
E eu queria dizer a ela agora. Queria dizer que não precisávamos estar
juntos somente para fazer outro bebê e salvar Nina. Nós podíamos nos amar
de verdade, porque eu não tinha mais medo.
Mas eu sabia que ainda não era o momento. Ela não ia acreditar em
mim. Eu tinha sido um canalha filho da puta.
Eu precisava provar. E precisava mostrar.
E, no fim daquela jornada, eu a traria pra mim de novo.
— Ok, faça como acha que deve fazer. – Recuo por fim.
Ela pisca meio aturdida com a minha aquiescência.
— Obrigada – murmura, passando por mim para sair da sala, eu a
seguro.
— Achei que tivesse um objetivo quando me trouxe pra cá, Spencer –
escorrego minha mão por sua cintura trazendo-a pra mim e ela me encara
atordoada, enquanto a empurro para trás.
— Achei que preferisse brigar comigo. – Seus olhos brilham como
fogo e causam um incêndio em mim.
— Brigar me deixou com tesão – puxo seus cabelos presos num rabo
de cavalo e cravo meus dentes em seus lábios, fazendo-a gemer antes de
enfiar minha língua em sua boca, calando seus protestos.
Ela rosna baixinho e sinto um puxão em minhas calças. Merda, sim.
Rosnando também, separo meus lábios dos seus e a empurro para uma
mesa logo atrás, virando-a de costas e deitando-a sobre ela.
— Nossa, isso foi rápido - ela ofega num tom entre surpreso e
divertido, além de ansioso, quando empurro sua calça verde do uniforme pra
baixo, levando junto a calcinha e dou um tapa em sua bunda.
— Vai ser rápido, porém, eu garanto que vai ser bom pra caralho,
doutora Spencer.
Ela geme, quando me inclino e mordo sua nuca, enquanto me
empenho em abrir minha própria calça apressadamente.
— Ah, por favor, – ela implora naquela voz que me deixa louco e eu
empurro meu pau em sua entrada. Ela está molhada e pronta, agarro seus
quadris penetrando-a com força. – Porra, Thomas!
Eu rio, segurando seu rabo de cavalo e puxando, para colar minha
boca em seu ouvido, enquanto estoco com força.
Ela arqueja.
— Você gosta assim? – Sussurro, mordendo sua orelha e ela geme em
resposta. – Responda doutora Spencer.
— Porra, sim...
Eu seguro seu seio, apertando com uma mão e deixo a outra
escorregar para dentro da sua calça, acariciando seus clitóris, fazendo-a se
arquear contra mim e gritar mais alto. É como música para meus ouvidos. Eu
sinto o prazer percorrer minha pele como brasa e me mexo mais rápido
dentro dela. Para ela. Era tudo para ela.
Sinto minha vista escurecer, quando um orgasmo avassalador me
toma de assalto, me fazendo apertá-la mais forte e grunhir baixinho em seu
ouvido, enquanto descarrego todo meu tesão dentro dela.
— Porra, isso foi bom doutor Hardy – ela murmura ofegante quando
paramos de tremer.
Eu rio e beijo seu pescoço suado.
— Eu disse que seria, doutora Spencer.
Eu me afasto e a ajudo a ajeitar suas roupas, depois faço o mesmo
com as minhas.
Ela parece deliciosamente descomposta e isto me dá uma satisfação
masculina ridícula.
— Do que está rindo? – Ela pergunta curiosa, fechando a blusa.
— Você parece alguém que foi fodida.
Ela fica vermelha, mas não reclama.
Eu franzo a testa, cruzando os braços sobre o peito a observando
arrumar os cabelos.
— O que aconteceu com a raiva por este ser o covil das minhas
transas?
Ela dá de ombros e me encara.
— Ainda é? O covil para onde traz todas as mulheres?
— Você está aqui não está?
— E as outras? Ainda vai trazê-las?
Então eu entendo a questão.
— Não – respondo simplesmente.
E é a mais absoluta verdade.
— Isto significa que não vai transar com nenhuma outra mulher? –
Ela insiste.
— Não vou transar com mais ninguém Liz. E você?
Nunca era demais perguntar. Sei que o tal noivo estava em outra
cidade, mas eu precisava saber.
— Não, claro que não! – Ela parece ofendida.
— Certo. Acho que acertamos este ponto.
Ela assente.
— Acho melhor voltarmos ao trabalho – diz e eu concordo.
Abro a porta e me certifico que não há ninguém no corredor antes de
sairmos. Eu concordo com Liz que temos que ser discretos.
Nós seguimos separados e, depois de uma rápida passada no banheiro,
encontro Erick.
— E aí, cara, que merda anda rolando por aqui? – Ele pergunta.
— Vamos tomar um café.
Nós vamos para a cantina e eu finalmente conto tudo a ele.
— Cara, que confusão!
— Eu sei.
— Parece que fazemos parte de algum seriado médico da Tv!
Eu rio de sua analogia.
— Ou de uma novela da tarde ruim– Chloe senta na nossa frente.
— Você sabe? – Erick questiona.
— Josh me contou – ela me encara – espero que não fique bravo. Não
vou contar a ninguém.
— Eu sei.
— Quem é Josh? – Erick pergunta curioso.
— Meu namorado – Chloe responde com um sorrisinho bobo.
Eu levanto a sobrancelha.
— Já?
— Pra que perder tempo? Não quero perder oito anos como você!
— Uau, essa doeu – Erick ri.
Eu acabo rindo também. Eles tinham razão.
Eu termino meu café e me levanto.
— Vou ver Nina.
Eu a encontro no quarto com ninguém menos que Diana.
— Olá, Thomas – ela me cumprimenta seriamente.
Eu ainda tenho sérias restrições em relação a Diana. Mesmo agora
que entendo suas razões.
— Não é legal que a Diana veio me ver, Thomas? – Nina diz
sorridente – olha o que ela trouxe para mim. – Ela mostra um ursinho cor de
rosa.
Eu sorrio de volta e beijo sua testa.
— Como está se sentindo?
Ela dá de ombros.
— Muito bem.
Eu sei que não é verdade. Seu rostinho esta pálido e cansado.
Isto corta meu coração.
— Diana, podemos conversar?
— Claro!
Ela se despede de Nina e nós saímos do quarto.
— Obrigada por ter vindo visitá-la. – Digo.
— Você não me perdoou, não é?
— Agora eu entendo seus motivos. Mas Nina era só um bebê. E era
sua filha.
— Eu não queria fazer parte desta farsa. Era cruel demais. Eu achei
que indo embora seu pai iria cair na real e contar a verdade. Infelizmente
nunca aconteceu. Só agora com a doença. É realmente terrível a situação de
Nina.
— Pelo menos serviu para meu pai revelar a verdade.
— Sinto muito, Thomas. Amber me contou que você e a mãe da Nina
decidiram ter um bebê.
— Sim, queremos tentar ajudar Nina.
— Espero que consigam. Eu vou ver seu pai.
— Ok, faça como quiser.
— Sei que o que ele fez foi horrível. Apesar de Jack viver de acordo
com suas próprias regras, ele sempre acredita que está fazendo o melhor.
— Isto não interessa.
— Pense em perdoá-lo. Afinal, é seu pai. E não devemos cultivar
rancor.
— Você não cultiva? Foi embora e nunca o perdoou.
Ela sorri tristemente.
— Sabe que não foi só por causa disto. Eu tentei fazer seu pai me
amar. Ele nunca permitiu. Às vezes penso que essa questão com Nina foi só a
desculpa perfeita para eu sair de um relacionamento que não iria me levar a
lugar algum. Agora é tarde para essas considerações.
Ela se afasta e eu volto para o quarto. Nina está dormindo.
Eu beijo seus cabelos e a deixo descansar.
***

Eu não vejo Liz pelo resto do dia. Sou designado para duas cirurgias
e, quando passo no quarto de Nina para me despedir é noite e Amber diz que
Liz já passou por ali e foi embora.
— Certo, eu estou indo também.
Eu me inclino e beijo Nina, que está acordada, mas sonolenta.
Amber sai do quarto comigo.
— Papai acordou. Não vai vê-lo?
— Não sei se quero vê-lo.
— Faça como quiser – ela resmunga e volta para perto de Nina.
Apesar de minhas palavras eu passo no quarto do meu pai antes de ir
embora.
Ele parece mais velho contra os lençóis.
— Thomas – ele exclama surpreso.
— Como está se sentindo?
— Melhor.
— Ótimo – minha voz é fria.
— Thomas, escute, sei que não vai me perdoar.
— Papai...
— Só queria que entendesse... Eu acreditava que estava fazendo para
seu bem.
— Eu realmente não quero mais discutir esse assunto e, tem razão,
não dá pra perdoar. Porém, fico aliviado que esteja bem.
E sem mais eu saio do quarto. Ainda não estou pronto para perdoar
Jack. Não sei se um dia estarei. Tenho outras coisas na minha cabeça por
hora.
Eu dirijo até sua casa sem nem mesmo cogitar outra opção. Estaciono
em frente ao prédio e subo ao seu apartamento, batendo na porta.
Liz abre a porta e de repente sou invadido pela sensação de déjà-vu.
Ela está vestindo apenas uma camiseta velha com os cabelos soltos sobre os
ombros. Parece demais com aquela manhã em que a beijei pela primeira vez.
Pela sua expressão ela está se lembrando da mesma coisa.
— Oi – sussurra com um sorriso.
Eu a puxo pra mim e a beijo.
E como há oito anos, eu a empurro para dentro, fechando a porta com
meus pés. Diferentemente de antes, hoje eu a pego no colo e a levo pra cama.
Capítulo Vinte e Seis

Liz

Perfeição.
Não existia outro nome para aquela sensação sublime que era ter
Thomas se movendo dentro de mim. Podia ser lento e suave como agora ou
rápido e duro, como era geralmente quando começávamos. Não importava.
Sempre era incomparável.
Abro os olhos, desfocados pelo desejo e percebo o quarto na
semiescuridão da madrugada, os lençóis desfeitos e Thomas pairando sobre
mim. Seu corpo lindo colado no meu, escorregando sobre o meu, nossos
quadris se movendo em sintonia num delicioso atrito. Seus gemidos roucos
em meu ouvido e seus dedos retirando os fios de cabelo do meu rosto suado.
Ele me encara com os olhos azuis intensos. Sinto-me queimar.
— Tudo bem? Está muito devagar?
Eu sacudo a cabeça negativamente.
— Não... está perfeito... – ele sorri. Lindo. E me beija, intensificando
os movimentos, me penetrando mais fundo, mais rápido, eu soluço agarrando
seus ombros com minhas mãos ansiosas, cravando as unhas na sua pele e não
demora muito para me desmanchar embaixo dele.
Depois o silêncio, quebrado apenas pelo barulho de nossas
respirações voltando ao normal. Thomas se move para o lado e me puxa
contra seu corpo ainda quente, se encaixando atrás de mim e depositando um
beijo doce em minha nuca.
Algum tempo depois ouço seu ressonar. Ele dormiu, eu permaneço
acordada. Penso em como as coisas mudaram nas últimas duas semanas,
desde que descobrimos sobre Nina e decidimos embarcar naquela jornada
para salvá-la.
Eu não tinha pensado muito no que implicaria ficar com Thomas de
novo. Eu apenas seguira o instinto intrínseco de que eu teria que fazer
qualquer coisa para salvá-la. E então, de novo eu estava na cama de Thomas.
E o que eu podia dizer? Ele ainda era o melhor sexo que eu podia ter, não
havia nem comparação com qualquer coisa que eu tivesse vivido antes ou
depois. Nós éramos perfeitos juntos, como se tivéssemos sido feitos para nos
encaixar.
E, sem que eu conseguisse evitar, ele começou a se infiltrar por meu
coração de novo. Não que ele tivesse saído um dia. Eu o trancara em algum
lugar escondido. Assim como o amor por minha filha. Os dois estavam
perdidos pra mim.
A vida às vezes tomava rumos inexplicáveis, a linha do destino se
enrolara em volta do mundo e nos conectara novamente. Nós três.
E o que ia acontecer agora? Eu não fazia ideia.
Eu havia escolhido viver um dia de cada vez. Passava os dias no
hospital, aprendendo a ser médica, junto com os outros internos tendo
Thomas me supervisionando, nossos olhares se encontrando e fugindo, se
encontrando de novo, até que um dos dois arranjasse alguma desculpa para
nos trancarmos na sala de medicação para passarmos alguns instantes
roubados sacudindo os armários.
Nina continuava a não demonstrar nenhuma melhora, eu a via
definhar enquanto permanecia do seu lado todo o tempo que me era dado,
rezando todas as noites, depois que Thomas gozava dentro de mim, para que
um bebê viesse para salvá-la.
Nós estávamos juntos todas as noites. Estabelecemos uma espécie de
rotina, na qual íamos para minha casa ou a dele depois do dia puxado no
hospital. Nós jantávamos e depois cama. E, por algum tempo, eu me esquecia
de tudo a não ser as sensações incríveis que ele me proporcionava. Naqueles
momentos eu me permitia ser aquela Liz do passado, jovem e despreocupada.
Apaixonada. Eu podia fingir que éramos só um homem e uma mulher
ocupados em tirar prazer um do outro.
Depois, junto com a quietude vinham os medos e as incertezas.
A preocupação com Nina e sua saúde frágil. O receio de não
engravidar. E o pânico por saber que a cada noite que passava, eu me deixava
envolver mais um pouquinho por Thomas.
E me angustiava sem saber o que iria acontecer. Às vezes eu achava
que ele tinha mudado. Que aquele Thomas que havia me virado as costas, que
se negava a se envolver, não era o mesmo Thomas que demonstrava tanto
amor por Nina e parecia comprometido comigo e nosso propósito.
E se fosse só isto? E se bastasse eu engravidar para ele me deixar
novamente, se transformando naquele Thomas egoísta e galinha que levava
as enfermeiras para a sala de medicação?
Eu tinha medo. E tentava não pensar. Simplesmente fechava os olhos
e aproveitava a felicidade roubada que era ter seus braços a minha volta. E
esperava pelo dia de amanhã.

***

Acordo nas primeiras horas do dia e Thomas continua dormindo.


Eu me levanto, tomo um banho e me visto. Iria fazer café antes de
acordá-lo. Tento não pensar em como aquela rotina parece normal e
doméstica. Como se fôssemos como qualquer outro casal.
Quando a campainha toca e eu franzo a testa, indo abrir a porta. Será
que era o porteiro com correspondência?
Não era o porteiro que estava na minha frente.
— Oi Lili.
— Peter...
Empalideço horrorizada ante o sorriso dele, que sem desconfiar do
meu pânico, entra e me abraça forte.
Sinto meu coração disparado, sem saber o que fazer, paralisada de
tensão.
— Nossa, que saudade! Não imagina como que queria ter voltado
antes...
Ele tenta me beijar e eu finalmente saio do meu estupor, dando um
passo atrás.
— Peter, eu não te esperava...
Ele continua sorrindo, enquanto entra na sala e tira o casaco jogando-
o no sofá.
Eu preciso que ele vá embora.
Deveria estar aliviada por enfim Peter estar na cidade para podermos
conversar, no entanto, agora que o momento chegou só me sinto apavorada.
— Sei que precisa ir trabalhar, acabei de chegar e queria muito te ver.
Podemos sair, tomar café juntos e...
De repente ele para o que estava dizendo, seus olhos se movendo em
direção ao corredor, chocados.
E eu não preciso olhar para saber o que Peter viu.
Merda!
Eu me viro e Thomas está parado na porta da sala, usando apenas
cueca boxer com os cabelos bagunçados.
— Que porra é essa? – Peter recupera a voz.
— Peter, calma – eu balbucio trêmula.
— O que este cara está fazendo aqui Liz? E sem roupa, caralho?
— Acho que é bastante óbvio – Thomas responde calmamente.
— Thomas, por favor, – imploro e nem sei o quê.
Eu só quero evitar uma tragédia.
Sinto a fúria de Peter crescendo.
— Não adianta tentar colocar de outra maneira, Liz. Conte logo a ele
o que estou fazendo aqui.
Peter me encara. Vejo a súplica em seu olhar. Ele quer estar errado.
Quer que eu negue que Thomas estava na minha cama.
Oh Deus!
— Liz, que merda está rolando aqui?
Eu sinto meus olhos cheios de lágrimas. Eu ia magoá-lo e ele ia me
odiar.
— Sinto muito, Peter...
— Meu Deus! – Peter dá um passo atrás, os olhos cheios de confusão.
– Está dormindo com este cara?
— Peter... – eu não consigo falar. Busco dentro de mim qualquer
explicação que amenize a situação, não encontro.
Ele segura meus ombros.
— Responde porra!
— Não é obvio? – Thomas diz friamente se aproximando tentando me
puxar para longe de Peter – acho que é melhor você ir embora.
— Ah, seu filho da puta! – Peter parte para cima de Thomas e desfere
um soco em seu rosto.
Eu grito.
Thomas se apruma rapidamente e parte para cima de Peter o
empurrando antes que consiga dar outro murro.
Eu consigo me mover me colocando entre os dois, ponho minhas
mãos no peito de Thomas, impedindo-o de continuar.
— Para, Thomas, pelo amor de Deus!
— Foi este escroto que começou!
— Saia da frente, Lili. Eu vou quebrar a cara deste filho da puta! –
Peter ofega atrás de mim e eu me viro.
— Peter, pare você também! Não vou deixar vocês brigarem mais na
minha casa!
O dois se encaram por cima da minha cabeça, com raiva.
Eu me viro para Thomas.
— Por favor, vá embora.
— Liz, porra...
— Por favor. Você sabe que preciso conversar com Peter... Por favor.
Thomas hesita por um momento, por fim, se afasta para o quarto.
Eu olho pra Peter. Parece arrasado e puto ao mesmo tempo. Ele
desvia o olhar dos meus. Sinto meu peito doer.
Cruzo os braços e fico em silencio. Thomas aparece vestido cinco
minutos depois. Eu o acompanho até a porta.
— Não quero deixa-la sozinha com este cara.
— Eu preciso conversar com ele sozinha.
Thomas parece frustrado e irritado quando me encara.
— Você vai continuar com ele? Vai pedir pra ele te perdoar?
— Thomas... não me pressione, por favor.
— Certo, foda-se! – Ele vai embora e eu fecho a porta, tentando não
me preocupar com o fato de ele estar irritado comigo também.
Por hora eu preciso resolver minha questão com Peter.
Volto pra sala e Peter finalmente me encara com olhos acusatórios.
— Era sobre isto que queria falar quando me ligou naquele dia?
— Era... só não é como está pensando...
— Merda, Liz, o que eu posso pensar? Eu chego e pego este cara
saindo da sua cama de cueca! Eu pensaria o óbvio, que estavam fodendo!
— Você precisa entender a situação...
— Que situação? Eu sei que tem uma história com este cara, que ele
te abandonou grávida e sozinha e...
— É justamente sobre isto...
— Isto o quê? Como pode estar na cama dele de novo, depois de
tudo? Nós ficamos noivos! Que inferno, Liz!
— Me desculpe, eu sei que parece horrível e talvez seja mesmo.
Precisa se acalmar e me ouvir. Eu não resolvi simplesmente te trair com
Thomas...
— E o que está acontecendo?
— Eu te contei que tive uma filha...
Ele franze a testa.
— O que isto tem a ver?
— Nós a encontramos.
— O quê?
— Ela é a irmã do Thomas.
— Como é que é?
— Nina. A irmãzinha do Thomas é na verdade nossa filha.
— Como é possível, Liz?
— O pai dele e minha mãe cuidaram da adoção e o doutor Jack
resolveu ficar com a menina e mentir para todo mundo.
— E só foi revelado agora?
— Sim, porque ela está doente.
— Meu Deus... por que você está fazendo isto? Por acaso está com
esse cara de novo, simplesmente jogando fora as promessas que fez a mim,
me enganando...
— Eu tive que fazer. Nina tem leucemia. E se ela tiver um irmão, há
uma grande chance de ser compatível.
Seus olhos se arregalam quando ele começa a entender.
— Está me dizendo que está tentando engravidar de Thomas Hardy
novamente?
— Sim.
Peter perde a fala.
Ele fica em silêncio digerindo o que eu acabei de contar.
— Sei o quanto é difícil pra você. Sei que deveria ter sido sincera.
Você estava longe. Eu queria ter te contado, só não tive coragem. Queria que
estivéssemos frente a frente. E jamais ia imaginar que fosse pegar o Thomas
aqui em casa, não queria te magoar deste jeito.
— Está me arrasando Lili.
— Me desculpe. Sei da minha culpa. Não podia não tentar salvar
minha filha.
— Mesmo tendo que ficar com o cara que te magoou tanto?
— Isto nem importa mais, Peter.
Ele ri irônico.
— Não importa? Agora é assim? O que quer dizer? Estão
apaixonados de novo? Estão brincando de família feliz, enquanto eu estava
em Seattle procurando uma casa para nós dois começarmos vida nova juntos.
— Eu sinto muito... – Começo a chorar, arrasada com o tamanho da
decepção que estou causando a Peter.
Ele chora também.
E por algum tempo nós ficamos assim. Eu culpada, ele decepcionado.
Não queria que a situação tivesse chegado a este ponto. Como eu
poderia evitar? Não sei.
Por fim, Peter me encara com olhos tristes.
— Sabe de uma coisa? Por um lado, estou feliz que tenha
reencontrado sua filha. Acho que no fundo nunca seria feliz de verdade sem
ela. E sinto muito que esteja doente. Mas é difícil aceitar que está dormindo
com este cara. Eu fico com ciúmes. Com inveja, porque é ele quem está com
você, que vai fazer um filho em você. Eu imaginei tanta coisa para nós, nosso
futuro...
— Não é como imagina... Eu e Thomas não estamos juntos realmente.
— Não?
— Eu não sei explicar. Está tudo... nebuloso. A gente está transando e
ficamos juntos todo o tempo, mas temos um propósito. Não é como se
fossemos um casal, ou...
De repente eu vejo um brilho diferente no olhar de Peter.
— Não está apaixonada por ele?
— Peter... – eu desvio o olhar, porque no fundo sei a resposta e não
quero magoar Peter mais.
Ele segura minhas mãos.
— Eu não quero abrir mão de você, Lili, inferno, eu te esperei por
todo este tempo! Se você diz que ainda há uma chance, que este lance com
Thomas é só pela gravidez, poderemos tentar.
Eu não podia acreditar no que Peter estava propondo.
— Está dizendo que me aceitaria de volta? Mesmo com tudo que está
acontecendo, mesmo com um bebê de Thomas?
— Sim, se você me quiser.
Oh Deus, o que eu podia dizer?
Olho para nossas mãos unidas, penso naquela possibilidade.
E não sinto o que deveria sentir. Não posso ficar me enganando. Eu
gosto de Peter demais. Se eu não tivesse reencontrado Thomas, ou Nina,
talvez eu encontrasse alguma felicidade com ele. Agora, eu não posso aceitar
mais.
Não sei o que será de Thomas e eu, só não posso mais magoar Peter.
Eu seguro suas mãos, levo a meus lábios e as beijo, soltando-as em
seguida.
— Sinto muito, Peter, é melhor terminarmos tudo.
— Lili...
— Não posso mentir pra você. Eu estou apaixonada pelo Thomas sim.
Sei que não deveria, estou morta de medo do que vai acontecer, de sofrer de
novo, infelizmente é assim que as coisas são.
Peter me lança um olhar triste, seus ombros caem.
— Quero sua felicidade, Lili – ele diz por fim – só espero que este
cara possa fazê-la feliz e não te abandone como da outra vez. E se acontecer,
você sabe onde me encontrar.
Ele se levanta e vai embora.
Me deixando ali, triste e aliviada ao mesmo tempo.
Eu vou para o hospital e procuro Thomas em todos os lugares, não o
encontro.
Vou até o quarto de Nina e ela sorri quando me vê.
— Oi querida – eu beijo sua testa.
— Oi Liz, você está triste?
Como ela percebeu? Talvez meu rosto pálido e as olheiras me
denunciassem.
— Um pouquinho, querida.
Ela toca meu rosto. É o melhor toque do mundo.
— Por que está triste?
— Coisas de adultos.
Ela rola os olhos.
— Thomas e Amber sempre dizem a mesma coisa. Sabe que o
Thomas está triste também?
— Ele esteve aqui? – Fico alerta.
— Sim, claro. E aí a Amber pediu que ele fosse buscar umas coisas
minhas em casa.
— Ah, entendo.
— Olha, se você e o Thomas brigaram, precisam fazer as pazes.
— Por que acha que brigamos?
— Hum, eu sei que são namorados – ela cochicha – o Thomas me
contou. Fica tranquila que eu sei que é segredo.
Eu sorrio.
— Você é muito esperta, não é?
— Sou sim!
Amber entra no quarto.
— Liz, posso falar com você?
— Claro.
Eu saio do quarto e Amber me encara.
— Está acontecendo alguma coisa? Thomas passou por aqui todo
puto e você se atrasou muito...
— Não acho que seja da sua conta, Amber.
— Certo, então resolvam entre vocês. Se quer saber, ele está na nossa
casa. Se quiser conversar com ele fora do hospital.
— Não posso sair...
— Pode sim, te dou cobertura.
E assim, eu me vejo dirigindo para a casa dos Hardy, como fazia tanto
tempo atrás.
A última vez que estive ali estava grávida de Nina. Lembranças
doloridas. Mas aquela casa também trazia lembranças boas. Ao estacionar em
frente ao belo jardim e saltar prefiro me apegar a lembranças boas.
A mesma senhora latina abre a porta.
— Olá, Thomas está? Meu nome é Liz, sou colega do hospital...
— Ah claro, entre. O menino Thomas está na piscina.
Piscina?
Eu caminho até lá, pensando naquele dia, quando fiz o mesmo
percurso cheia de medo e o encontrei numa festa rodeado de garotas.
Será que tudo teria sido diferente se, em vez de ter me virado e ido
embora, eu tivesse ficado e conversado com ele? Será que ele teria sido um
escroto e me deixado na mão?
Eu nunca saberia.
Ele está mesmo na piscina. Vejo seu corpo forte atravessando a água
com braçadas poderosas.
Até que ele emerge e seus olhos se prendem mim.
— Matando dia de trabalho, doutor Hardy? – Indago suavemente.
Ele parece lindo com a água escorrendo por seu cabelo. Seus olhos
ainda estão desconfiados quando se prendem nos meus.
— Você também.
Eu dou de ombros, me aproximando da borda.
— Precisamos conversar.
— Já resolveu seu outro assunto? – Pergunta na defensiva.
Eu sacudo a cabeça afirmativamente.
— E?
— Nós terminamos – respondo simplesmente. Não quero entrar em
detalhes sobre Peter com Thomas. Nem importa mais.
Vejo o alívio passando por sua expressão.
Nós ficamos nos olhando. Quero dizer tantas coisas. Mas tenho medo.
— Desculpe-me por hoje cedo – Ainda me sinto mal por ele ter ficado
bravo também.
Eu deveria ter resolvido o problema com Peter há tempos.
— Vem aqui – Pede e eu me aproximo da piscina. Ele estende o braço
e me puxa antes que eu consiga impedir.
— Thomas! – Reclamo ao emergir cuspindo água e, sem demora, ele
cinge minha cintura com as mãos e me beija.
E tudo o mais desaparece.
Seu beijo leva embora toda a tensão daquele dia e até boa parte das
incertezas.
Deixo-me ficar ali, em seus braços, as águas nos cercando, nos
embalando, nossos corações se aquietando.
Perfeição.
Quando o beijo termina, encosto a testa na sua.
— Que diabos está fazendo aqui?
— Te beijando.
Eu rio.
— Não, você entendeu.
Ele se afasta um pouco, me encarando e vejo um resquício de
frustração em sua expressão.
— Estava com a mente cheia. Precisava esfriar a cabeça.
— Esfriou?
— Com você aqui, sim – ele me aperta mais.
De novo me vem aquela vontade de falar.
De dizer o que estava dentro do meu coração. De perguntar se ele
podia sentir o mesmo. Me calo.
Talvez não fosse o momento. Eu sentia que primeiro precisava ter
Nina em segurança. Ela deveria importar mais que tudo.
Minha história confusa com Thomas podia esperar.
Uma vozinha em meu intimo sussurra que estou sendo covarde. Eu
tenho medo de ser rejeitada de novo. De Thomas fazer a mesma coisa que fez
quando me declarei: Fugir.
Solto um espirro e Thomas ri.
— Vamos sair e te enxugar.
Nós saímos da piscina e ele me joga uma toalha, eu tento me enxugar,
mas minha roupa está ensopada.
— Não posso ficar com essa roupa.
— Vamos subir, deve ter algo de Amber que lhe sirva.
Nós subimos e ele me leva para seu antigo quarto.
— Fique aqui, use o banheiro se quiser. Eu vou pegar algo no quarto
de Amber.
Ele se afasta e eu vou pro banheiro, tiro as roupas molhadas e me
enrolo numa toalha.
Volto para o quarto e paro estarrecida ao ver o quadro na parede.
É o mesmo quadro que eu lhe dei oito anos atrás.
— Aqui está – Thomas retorna e seu olhar segue o meu.
— Você o manteve aqui – murmuro.
Ele se aproxima.
— Onde mais estaria?
— Eu achei que...
— O que achou Liz?
— Que talvez não quisesse ficar com nada meu.
— Foi a única coisa sua que me permiti ficar.
Quis dizer que ele poderia ter ficado comigo, não ouso.
Nossos olhares se encontram e eu sei que ele está pensando o mesmo.
Não quero mais ficar pensando no passado.
Ele não pode ser mudado.
— Liz, eu...
Eu toco seu rosto, seus lábios.
—Shi, não fala nada. Apenas... me beija.... me beija...
E, com um gemido ele me beija forte. E me leva para sua cama.
Eu rolo por cima dele, ainda com nossas bocas coladas. Thomas já
arrancou a toalha e jogou longe, o que faz nossos corpos se roçarem num
delicioso atrito.
Eu sento em seu colo encarando seus olhos pesados de desejo, que me
deixa pegando fogo.
— Você é incrível, sabia? – Murmuro embevecida e ele ri daquele
jeito sacana, os dedos subindo para apertar meus seios.
— E você é gostosa.
É minha vez de sorrir com perversidade e abaixar a cabeça para beijar
seu peito nu.
Thomas geme e eu me sinto mais empolgada em continuar minha
inspeção, descendo com meus lábios por sua pele com gosto de piscina,
ouvindo seus gemidos aumentarem, até chegar em sua sunga, que eu arranco
sem cerimônia, segurando sua ereção em minhas mãos ávidas por agradar.
— Porra, Liz – Ele grunhiu. Eu acho lindo.
— Gosta disto, doutor Hardy? – Eu o acaricio devagar e Thomas solta
outro palavrão – Devo entender como um sim?
— Porra, sim. Coloca sua boca aí, baby – Ah, o jeito que ele ordenou
me deixou arrepiada.
E quem era eu para negar qualquer coisa aquele homem?
Com um suspiro feliz, eu o obedeci.
Capítulo Vinte e Sete

Amber

Tudo o que eu queria quando cheguei em casa naquela noite, era um


banho e cama. Eu estava cansada e todo dolorida por dormir na pequena
cama de hospital com Nina todas as noites. Como poderia ser diferente?
Aquela menina era dona do meu coração. E olha que muita gente duvidava
que eu tivesse um. Eu mesma às vezes me pegava tentando entender como eu
podia ser tão avessa a emoções e ao mesmo tempo me desmanchar de amor
por uma criança. E eu detestava crianças.
Com Nina foi diferente. Eu ainda me lembrava daquela tarde quando
cheguei em casa da faculdade e Diana me mostrou aquele pequeno embrulho
rosa, dizendo que era minha irmã.
E achava que era uma brincadeira. Diana e Jack eram velhos, não
podiam ter um bebê! Diana havia rido quando eu disse com desdém. “Não
seja boba, não sou tão velha assim, vocês jovens, acham que qualquer um
com mais de 30 é um decrépito” Eu rolara os olhos me aproximando para ver
o que ela guardava no embrulho ainda achando que podia ser algum tipo de
pegadinha, então perdi meu coração para sempre. Ali, no colo de Diana,
estava a criança mais linda do mundo, me encarando com seus límpidos olhos
cinzentos como se me conhecesse. Estendendo suas mãozinhas em direção ao
meu longo cabelo loiro. “Olha só, ela gostou de você”. Diana colocou Nina
em meu colo sem cerimônia e eu não a impedi. Estava encantada.
— Oi bebê, você é tão linda – sussurrei passando as mãos por seus
cabelinhos que pareciam muito com os meus e de Thomas. E encarando
Diana perguntei – de onde vocês tiraram este bebê?
Ela rira – Nós adotamos, querida. Ela não é linda?
— Sim, ela é – concordei, voltando minha atenção para a neném,
fascinada com seu cheirinho de talco, sua pele macia e seus olhinhos vivos.
Ela era perfeita.
E dali por diante, ela havia passado a ser o centro da nossa
disfuncional família.
Eu nunca poderia imaginar que sua chegada em nossas vidas se dera
em cima de um amontoado de mentiras. Ainda era surreal quando eu pensava
que papai mentira para todos nós todos aqueles anos, que continuaria
mentindo se Nina não tivesse ficado doente.
E agora vivíamos todos em cima de uma nova e incrível realidade:
Nina não era minha irmã de criação. Ela era minha sobrinha de sangue, filha
de Thomas.
E em breve Thomas teria outro bebê, ou assim nós esperávamos. Pelo
menos eu não podia reclamar que ele e Liz não estavam tentando.
Ontem mesmo eu os flagrei saindo da sala de medicação, ambos com
os cabelos desarrumados e roupas desalinhadas. Quem diria que um dia eu
não daria a mínima por ver Thomas comendo uma garota pelos cantos do
hospital?
Será que Liz já estava grávida? Eu precisaria perguntar a ela se já fez
algum teste.
— Ei Maria, já está indo embora? – Indago ao entrar na cozinha e
abrir a geladeira, pegando a garrafa de água. A empregada sorri, já arrumada,
fechando a bolsa.
— Sim, menina. Tem comida pronta no freezer.
Ela se despede e eu chuto os sapatos, me perguntando se como ou vou
dormir.
Então ouço passos se aproximando e observo surpresa, Thomas e Liz
entrarem na cozinha.
Liz cora ao me ver.
— Ei, Amber – Thomas resmunga, retirando a garrafa de água das
minhas mãos e tomando no gargalo.
— Ei, Porco! – Rolo os olhos e encaro Liz – Não sabia que ainda
estava por aqui.
— É, eu...
— Parece que tiveram uma tarde produtiva.
Ela cora mais ainda e eu tenho vontade de rir.
Thomas solta um arroto e desta vez nós duas reviramos os olhos.
— Você não deveria estar com a Nina? – Thomas pergunta,
devolvendo a água para a geladeira.
— Diana passará a noite com ela.
Thomas me encara surpreso.
— O quê?
— Não faz esta cara!
— Agora ela se importa?
— Ela não é má pessoa e gosta de Nina...
— Onde ela estava todos esses anos?
— Você sabe por que ela foi embora! O papai que foi um cretino!
— Nisto eu tenho que concordar com você. Mas deixar Nina com ela?
Não acho certo.
— Ela é a mãe que a Nina conhece! – Eu relanceio o olhar para Liz e
ela parece angustiada. Me sinto culpada – me desculpe Liz, mas é a verdade.
— Eu sei – ela sussurra. – Você acha que um dia... um dia ela poderá
saber a verdade?
Eu fico pensativa. Ainda não tinha parado para pensar sobre aquilo.
— Eu não sei. Acho que por hora temos que nos preocupar com sua
doença.
— Sim, tem razão – Liz concorda.
— Cadê a Maria? – Thomas pergunta – Liz está com fome.
— Ela acabou de ir embora. Disse que deixou comida no freezer.
Esquente você.
— Deixa que eu faço isto – Liz passa por nós e abre o freezer.
— Ele sabe esquentar uma comida, Liz.
— Não tenho tanta certeza. Thomas é meio inútil quando se trata de
cozinha.
Eu solto uma risada e Thomas resmunga um palavrão, se
aproximando de Liz.
— Em que posso te ajudar baby?
Eu levanto uma sobrancelha. “baby?”
— Pode lavar a salada sem estragar? – Liz pergunta tirando uma
tigela do freezer que parece ser carne com legumes.
Thomas ri pegando um pé de alface com uma mão e apertando a
bunda dela com outra.
— Não sou tão inútil assim!
— Prove! – Liz ri, colocando a tigela no micro-ondas.
— Você só está tendo o trabalho de descongelar e está se sentindo
muito superior!
— Eu sou superior!
Ele puxa seu cabelo preso num rabo de cavalo e morde seu rosto.
— Para, Thomas! – Ela ri, o empurrando e eu me pergunto quando foi
naquelas últimas semanas que eles tinham se tornado aquele casal melado?
Eles continuam a preparar a comida, rindo e se provocando, quase
como uma preliminar e eu não sei o que pensar.
Certamente, acho que não esperava por aquilo. Será que eles
esperavam?
Eu não era íntima de Thomas e não sei direito até hoje o que havia
rolado entre eles no passado. Só sabia que eles namoraram durante o verão
antes de Thomas ir pra Harvard e que terminaram.
Será que eles se davam conta do que estava rolando agora? Por que
aquilo não me parecia duas pessoas fazendo sexo apenas para gerar um bebê.
— Vai comer com a gente? – Liz pergunta colocando pratos na mesa,
me tirando do devaneio.
— Não, vou tomar banho e dormir. Estou cansada – de maneira
alguma eu ia ficar ali assistindo Thomas fazendo sexo com os olhos com sua
namoradinha.
Eu me afasto para meu quarto e, quando deito pra dormir, ainda
escuto a risada deles em algum lugar da casa. Merda, eles estavam
apaixonados.
E não sei por que isto me deixou com certa inveja.
Na manhã seguinte no hospital eu os observo de novo, sob uma nova
perspectiva. Obviamente, eles tentavam disfarçar na frente dos outros,
principalmente dos internos, para um observador mais atento a atração era
óbvia. Ele se movia, ela se movia. Como uma dança.
— Ei, vamos almoçar naquele tailandês? – Chloe pergunta parando ao
meu lado.
— Pode ser... – Seu olhar segue o meu e ela também vê Liz e Thomas
do outro lado do vidro, onde ele a ensina a fazer uma sutura – eles acham que
enganam alguém?
Eu a encaro com os olhos franzidos.
— O que você sabe?
— Que eles estão juntos e se divertindo bastante tentando fazer um
bebê pra salvar Nina?
— Quem te contou?
— Josh.
— Quem diabos é Josh?
— Meu namorado?
— Quê? Desde quando tem namorado?
Ela ri.
— Faz só alguns dias.
— Ainda não sei quem é seu namorado.
— Ele é amigo do Thomas. E da Liz. Thomas contou tudo a ele que
me contou. Não se preocupe, eu sou discreta. Só não sei se eles são! – Ela
aponta para Thomas e Liz.
— Não está mais apaixonada pelo Thomas?
— Nunca fui apaixonada pelo Thomas.
— Não? Pensei que arrastasse um bonde por ele.
— Eu e toda a população feminina deste hospital. Menos você, claro.
Eca. Era só isto, uma atração. E eu estou apaixonada agora – ela completa
sonhadoramente.
— Sei... – Ótimo, mais uma apaixonada para eu aguentar. O que deu
naquela gente? Será que era a água?
Ela se afasta com seu ridículo sorriso apaixonado e Liz sai da sala de
sutura.
— Liz, posso falar com você um instante?
— Claro.
Ela me segue até uma sala vazia.
— Você já fez um exame? De gravidez?
— Ainda não – ela fica apreensiva.
— Acho que deveria fazer.
— Sim, tem razão. Eu vou fazer agora – ela respira fundo – acho que
estou com medo.
— Não fique. Tenho certeza que vai dar tudo certo.
— Espero que tenha razão.
Naquela tarde eu me surpreendo ao ver Diana no quarto do meu pai.
Ele parece estar melhor.
— Oi Diana, ainda por aqui?
Ela sorri.
— Estava conversando com seu pai. – Eles trocam um olhar.
— Sei... – Eu tento entender que porra estava acontecendo ali. –
Obrigada por ter ficado com Nina ontem.
— Não foi nada. Sempre que precisar.
— Bom, agora que ela tem uma mãe de verdade, acho que não vai
mais precisar – não consigo evitar meu sarcasmo.
Diana não parece se ofender.
— Isto é bom para ela. Pretendem contar a verdade?
— Não ainda.
— Sim, melhor esperar ela estar bem de saúde.
— É com isso que todos nós esperamos – eu relanceio um olhar para
meu pai, ele adormeceu – e por que está aqui com meu pai? Pensei que o
odiasse.
— Eu não o odeio – seu olhar diz tudo.
— Ainda o ama? Como pode?
— Nós não escolhemos quem amar, Amber.
— Não entendo como pode perdoá-lo.
— E de que adianta tanto rancor? A vida é tão frágil.
— Passou seis anos alimentando rancor!
— E para que serviu? Passei anos sozinha tentando esquecer o que
sentia. Lutando contra a solidão. Eu fui muito intransigente. Não sei se
poderia ter feito diferente, lutado mais para que ele contasse a verdade, ou eu
mesma ter revelado tudo, não sei. Agora percebo que talvez tenha perdido
seis anos da minha vida. Anos que poderia ter me dedicado a Nina, que não
tinha nada a ver com os problemas dos adultos. E agora ela está doente e seu
pai também.
— Ele vai ficar bem.
— Nina também. Temos que ter fé.
— E então, estão juntos de novo?
— Quem sabe? Agora todos sabem a verdade. Nina tem os pais
verdadeiros que estão do seu lado, como deveria ter sido desde o começo. E
seu pai vai ter que lidar com as consequências dos seus próprios erros.
— E vai ficar do lado dele?
— Não quero mais ficar sozinha.
— Bom, faça o que acha que deve fazer.
— Eu posso ficar com Nina hoje novamente.
— Obrigada, não será preciso.
Eu saio do quarto atordoada.
Era como se todo o mundo estivesse de ponta cabeça. Fora do eixo.
Me sinto extenuada. Deslocada.
Sozinha.
Merda!
Passo pelo quarto de Nina. Ela está dormindo. Beijo seu rostinho e
vou para o vestiário, alguns médicos estão saindo, ao final de um dia de
trabalho.
Eu entro e vejo Erick.
Ele está tirando a camisa e sem querer me vejo admirando seus
músculos. É bem gostoso, não posso negar.
Ele se vira e me pega o secando e sorri de lado. Sinto um arrepio.
— E aí, gostou de alguma coisa aqui? – Seu tom é malicioso, embora
ainda brincalhão.
Ele já deu em cima de mim incontáveis vezes. Em incontáveis tons. E,
apesar de eu o achar bem interessante, nunca quis nada com ele.
Eu tive alguns namorados. Nada memorável. Todos se cansavam de
mim, da minha ambição. Se decepcionavam quando viam que eu não era uma
loira gostosa sem cérebro. E eu não estava nem aí. Não queria me apaixonar.
Eu tinha minha carreira. E estava bem assim.
De repente eu não consigo mais achar os motivos dentro de mim que
me faziam rejeitar Erick.
Ele era amigo do meu irmão, era tão sacana quanto e parecia ter mais
músculos que cérebro. E daí? Todo mundo se divertia naquele hospital,
porque eu não podia fazer o mesmo?
Sem pensar, eu caminho em sua direção e o jogo contra o armário,
prensando meu corpo no seu.
— Porra! – Ele exclama surpreso.
Aperto minhas mãos em seus bíceps.
— Cala a boca! – E o beijo.
E, puta que pariu, por que eu não tinha feito isto antes? Erick geme e
agarra meus quadris, enfiando a língua na minha boca e é a minha vez de
gemer, adorando sentir como ele está ficando duro. Ah sim. A gente ia se
divertir.
Assim que esse pensamento passa pela minha cabeça, ele para de me
beijar.
— Wow!
— O que foi?
— Calma, aí... – ele parece atordoado, quando dá um passo para longe
de mim.
— Calma? Achei que a gente ia transar!
— Não mesmo!
Eu me irrito.
— Está me rejeitando? Achei que era o que queria!
— Eu quero. Quero muito.
— Então por que está aí e eu aqui?
— Porque não quero ter uma transa rápida com você contra os
armários.
— O quê? – Agora sou eu que estou atordoada.
— Eu gosto de você, Amber. Não quero que seja como as outras.
Eu me arrepio de novo com aquelas palavras. Com a intensidade do
seu olhar. E fico surpresa por gostar daquilo. Demais.
Merda. Eu estava ferrada.
— E o que você quer?
— Para começar, um jantar – ele dá de ombros, de novo com aquele
sorriso safado – se rolar sexo depois...
— Ok, sábado, às 20h. Me pega em casa! E vê se me leva num lugar
caro – eu passo por ele e aperto sua bunda, sussurrando em seu ouvido –
poderá se dar bem depois.
Então saio do vestiário com um sorrisinho bobo no rosto.
Definitivamente devia ser a água.
— Amber – a enfermeira me chama, quando estou chegando ao
quarto de Nina. – Disse que era para te passar os resultados da Doutora
Spencer assim que saíssem – ela me entrega o exame.
— Obrigada – eu o pego e o leio.
Positivo.
Liz estava grávida. Sinto meus olhos se encherem de lágrimas.
— Amber, o que foi? – Eu levanto o olhar e vejo Nina me encarando
na porta do quarto.
— O que está fazendo aqui? Não deve fazer esforço, bebê! – Eu a
pego no colo e a levo para dentro.
Ela abraça meu pescoço.
— Me sinto melhor, hoje, Amber. Posso ir pra casa.
Eu tenho mais vontade de chorar.
Eu sento sobre uma poltrona e a coloco no meu colo.
— Eu sei que quer ir pra casa. Eu prometo que vai ficar boa e voltar
em breve, está bem?
— Não hoje? – Ela fica triste.
— Não hoje, meu amor.
— Por que está chorando?
Eu toco seu rosto.
— Porque hoje, surgiu uma nova esperança.
— Esperança?
— Sim, para sua cura.
Seus olhos ficam confusos.
— Como assim?
— Nina, você sabe que o Jack e a Diana são seus pais adotivos, não
é?
— Sim, eu sei.
— E se eu dissesse que você pode conhecer seus pais biológicos?
Seus olhos se iluminam.
— Sério? De verdade? Minha mãe de verdade?
— Sim, querida.
— Eu queria muito!
— Então, encoste sua cabecinha aqui no meu ombro. Que eu vou te
contar uma história.
Capítulo Vinte e Oito

Liz

— Está distraída.
Eu levanto a cabeça e encontro o olhar de Thomas do outro lado da
mesa. Nós estamos no seu apartamento onde acabamos de jantar. Como
sempre, eu cozinhei e Thomas ficou responsável pela louça. Era uma boa
troca.
Geralmente eu estaria ansiosa para o que viria depois. De como em
algum momento ele me puxaria pra perto, mergulharia seus incríveis olhos
nos meus e por fim, encheria minha boca de beijos molhados. E mil
borboletas sobrevoariam meu estomago, deixando meu corpo leve e pesado
ao mesmo tempo. Então passaríamos horas perdidos um no outro.
Mas hoje eu me sentia diferente. Desde que Amber me alertara de que
eu devia fazer o exame minha ansiedade era outra.
— Eu fiz o exame hoje – murmuro me levantando da mesa e retirando
os pratos – acho que estou nervosa – completo, de costas pra Thomas.
Ele levanta e se coloca atrás de mim. Toca meus ombros. Fecho os
olhos.
— Vai dar tudo certo, Liz. – Sua voz abafada sai contra meus cabelos.
Suspiro. Quero acreditar nele. Tenho medo de acreditar.
— Acha que já estou grávida?
— É bem possível, dada a maneira que estamos tentando – ele
imprime humor em sua flexão; apesar de nós sabermos que no fundo não tem
nada de engraçado.
A verdade é que estamos há dias seguindo aquela rotina de sexo,
como se não fosse nada demais. Como se tanta coisa não dependesse disto.
Não éramos simplesmente dois amantes passando um tempo juntos saciando
desejos. E eu me perguntava o que aconteceria depois que completássemos
nosso propósito.
Tenho vontade de perguntar a Thomas. Talvez esteja mais do que na
hora de termos uma conversa franca sobre, já que eu posso mesmo estar
efetivamente grávida.
— Thomas – eu me viro para encará-lo, neste momento a campainha
toca. – Está esperando alguém?
— Não! – Ele se afasta para abrir a porta e eu vou atrás.
E nós dois estacamos surpresos quando vemos Amber com Nina no
colo.
— Oi Thomas – Amber sorri.
— O que estão fazendo aqui? – Thomas pergunta, quando Amber
coloca Nina no chão e entra no apartamento segurando sua mão.
Meus olhos se prendem em Nina apreensivos. Ela está vestindo um
casaco por cima da camisola e, apesar de abatida, não parece mais doente do
que já estava. Na verdade, há um brilho em seus olhinhos espertos quando ela
os crava em mim.
— Nina, o que faz aqui? – Pergunto preocupada ainda, apesar da
minha inspeção.
— Oi Liz – ela olha pra Amber, como se esperando uma ordem.
Thomas fecha a porta e vem até nós, nossos olhares se encontram
confusos.
— Sim, o que estão fazendo aqui? Por que tirou Nina do hospital a
essa hora? – Ele toca o rosto de Nina, fazendo sua própria inspeção
preocupada.
— Ela está bem, Thomas. Acha que eu a tiraria do hospital se não
estivesse?
— Não fica bravo com a Amber, Thomas – Nina pede com sua
vozinha infantil – fui eu que pedi para vir.
— Você? O que aconteceu? – Ele toca seu rosto carinhosamente
agora.
— Nina queria vir pessoalmente dar uma notícia. Por que não nos
sentamos?
Ela se senta sobre o sofá e abre a bolsa.
Nina se aproxima dela e Thomas me puxa para outro sofá.
Amber pega um envelope dentro da bolsa e entrega a Nina. A
garotinha se move em nossa direção e me entrega o envelope.
— O que é isto? – Pergunto.
— É o exame que diz que vai ter um bebê.
Eu escuto o engasgar de Thomas do meu lado.
Meu coração para de bater por um instante.
Eu encaro Nina e ela sorri.
— O meu irmãozinho.
Eu começo a tremer.
Thomas pega o envelope da minha mão abrindo-o e lendo.
Eu não consigo deixar de olhar pra Nina.
— O que disse...? – Indago com a voz embargada de emoção.
— Amber me disse que estavam tentando fazer um irmãozinho pra
mim. Pra me salvar.
Eu encaro Amber, com uma pergunta muda no olhar e ela sacode a
cabeça positivamente com um sorriso.
— Você sabe quem somos? – É Thomas quem pergunta. Sua voz está
tão abalada quanto a minha.
— Sim, Thomas. Amber me contou que você é meu pai biológico –
ela confirma animada – e que a Liz é minha mãe! Não é incrível?
Eu solto um soluço, levando a mão a boca para não explodir em
lágrimas.
Não consigo conter o choro.
— Oh Meu Deus – sussurro sem ar.
Nina se aproxima e sobe no meu colo.
— Não chora Liz, eu vou ficar bem. A Amber me disse que meu
irmãozinho vai poder me ajudar quando nascer. E eu vou adorar conhecê-lo.
– Ela me abraça e eu deixo meus braços a envolverem.
Finalmente meu bebê voltou para meus braços.
Eu olho para Amber por cima de seus cabelos e murmuro um
“obrigada”.
Ela se levanta e pega sua bolsa. Saindo do apartamento
silenciosamente.
Olho para Thomas. Ele também está chorando. Eu passo a mão por
suas lágrimas. Ele a segura.
Por um momento ninguém fala nada, apenas ficamos ali, unidos em
algo que nunca imaginamos possível.
Éramos nos três juntos. E em breve seríamos quatro.
Ainda parecia surreal demais para acreditar.
Nina levanta a cabeça e me encara com seu sorriso doce.
— Vocês podiam ter me contado antes, né? – Reclama.
— Nós não sabíamos pitoco – Thomas diz e ela pula para seu colo.
— É, a Amber disse que só o papai sabia e que ele contou a vocês
quando fiquei doente.
— O que mais a Amber te contou? Você entendeu tudo? – Thomas
pergunta com cuidado.
— Ela me disse que vocês eram namorados e que se separaram. E que
aí quando eu nasci a Liz não podia ficar comigo, porque às vezes os pais que
são jovens e não são casados não podem cuidar dos filhos. – Eu sorri
tristemente sabendo como a Amber tinha simplificado a situação para fazer
Nina entender – e que aí o papai decidiu cuidar de mim com a Diana. Sem
contar a vocês. Eu fiquei um pouco confusa com esta parte. Amber disse que
era pra eu ser criada por outros pais, que vocês acharam que eu estava com
outros pais quando o tempo todo eu estava aqui. É meio esquisito né?
— Sim, para dizer o mínimo – Thomas resmunga.
— Agora está tudo bem, porque todos nós sabemos!
— E está tudo bem pra você? Que eu e a Liz sejamos seus pais? –
Thomas pergunta.
— Eu adorei! Nunca imaginei que podia ser vocês, é muito legal,
porque eu gosto da Liz e bom, você já era meu irmão. Agora é meu pai – ela
ri – é engraçado. Como vou te chamar? E o papai? Terei que chamá-lo de
vovô? – Ela parece preocupada.
— Isso não tem importância – Thomas diz – pode ser do jeito que
você quiser.
Ela me encara.
— Eu posso te chamar de mamãe, Liz? Eu não chamo a Diana de
mãe, então acho que não tem problema!
Eu sinto que vou chorar de novo, mas engulo o choro.
— Claro que sim, meu amor – ela me abraça feliz e ainda puxa
Thomas para perto.
— Isso é tão legal! Estou tão feliz!
Eu e Thomas rimos, compartilhando daquela felicidade.
Era incrível que Nina estivesse lidando tão bem com fatos tão
insólitos.
De repente ela para e olha de um pra outro.
— E agora que terão um bebê vocês ficarão com ele, não é? –
Pergunta apreensiva.
— Claro que sim, Nina – respondo.
— Vocês vão se casar? Por favor, vocês têm que casar e ficar juntos.
Assim eu posso ficar com vocês e o bebê também. Por favor! – Ela suplica e
eu e Thomas nos encaramos sem saber o que dizer.
E agora?
Capítulo Vinte e Nove

Thomas

— Vocês vão? – Nina insiste ante a resposta muda que paira no ar


entre mim e Liz.
Sim, era uma pergunta justa, no final das contas, embora inesperada.
Aliás, o que naquele momento tinha sido esperado?
Eu ainda estava tentando lidar com a feliz surpresa vinda justamente
de onde eu menos esperava: minha irritante irmã.
Não podia negar que a ideia de contar a verdade a Nina vinha me
apavorando nos últimos dias. Como é que conseguiríamos fazer uma criança
de oito anos entender aquela história insólita repleta de mentiras e
enganação? Eu me perguntava como ela lidaria com o fato de que o cara que
ela conhecia como irmão, na verdade era seu pai biológico.
E agora ela sabia de tudo. E o mais fascinante é que ela estava
amando, como se fosse perfeitamente natural que eu e Liz fôssemos na
verdade seus pais.
E, para completar, ela agora cravava seus inocentes olhos infantis em
nós esperando uma resposta para sua assombrosa pergunta.
O que podíamos responder? Não era como se eu e Liz tivéssemos
conversado sobre algo tão definitivo naquelas duas semanas. Na verdade, a
única coisa que vínhamos fazendo quando estávamos sozinhos naquelas
últimas semanas era trepar como coelhos. E agora nosso objetivo foi
alcançado: Liz estava grávida. E somente essa realidade já era um abalo
sísmico por si só. Claro que o tempo inteiro a gente sabia que esse era o
propósito. Sabíamos o quão importante era que Nina tivesse um irmão para
ajudá-la. Contudo, acho que nunca tinha parado para pensar realmente no
significado daquele enorme passo.
Eu e Liz teríamos um bebê.
Um filho.
Uma criança que cresceria nove meses em sua barriga e que viria ao
mundo não só para salvar Nina, também para ser cuidado e amado.
Estávamos prontos para tanto?
Eu sentia minha mente girar com todas as possibilidades. Um misto
de medo e fascínio dominava meu peito. E, olhando nos olhos de Liz, eu
percebo que as mesmas coisas estão passando por sua mente.
O que aconteceria agora?
Já não podíamos nos enganar dizendo que éramos apenas duas
pessoas transando sem compromisso. Teríamos que encarar nosso futuro de
frente.
E Nina com sua lógica inocente nos questionava sobre esse caminho,
porém, nem eu nem Liz poderíamos responder algo nesse momento.
— Nós vamos conversar sobre esse assunto outro dia, ok, pitoco? –
Eu me levanto com ela no colo – agora acho que é hora de voltar ao hospital.
— Não quero voltar ao hospital! – Nina reclama.
— Eu sei, querida. Infelizmente precisa – insisto firmemente,
tentando ignorar sua desolação.
— Eu e o Thomas ficaremos lá com você, está bem? Passaremos a
noite no hospital – Liz a conforta.
— Não aguento mais ficar lá! – Nina choraminga e Liz acaricia seus
cabelos.
— Eu sei meu amor. Ficarei todas as noites com você a partir de
agora, ok? Não vai mais ficar sozinha. Eu vou cuidar de você – Garante.
E então, de repente, eu me dou conta da nova realidade. Não havia
mais necessidade de fazermos sexo o tempo inteiro, já que a meta havia sido
cumprida.
Porra, a quem eu queria enganar? Não posso evitar o fato de um lado
meu se incomodar com aquela perspectiva. Aquele lado que sentia que ainda
não tinha se saciado dela. Que queria dormir todas as noites entre seus
braços.
No entanto, eu também sabia que Nina precisava de nós. Eu já não
podia pensar em mim e minhas vontades primeiro. E aquela constatação não
me deixa apavorado ou irritado, apenas me deixa com uma certeza intrínseca
de que agora existe um novo propósito em minha vida. E, longe de ser
aterrorizante, parece apenas certo e natural. É como se eu tivesse nascido para
amá-la e protegê-la. Era minha missão na vida.
— Tudo bem – Nina suspira por fim ajeitando a cabeça em meu
ombro e Liz pega as chaves do carro.
— Eu dirijo.
Quando chegamos ao hospital, Nina está sonolenta, embora se
negando a dormir. A excitação daquele dia a deixara ansiosa.
Eu a coloco na cama, e meço seus sinais vitais, examinando-a
rapidamente.
— Eu estou muito bem! – Ela insiste e Liz acaricia seus cabelos.
— E vai continuar assim.
— Quando eu vou pra casa?
— Quando o tratamento terminar, ok?
— Vai demorar?
— Nós não sabemos. Você precisa ter paciência e ficar aqui por
enquanto.
— Você vai mesmo ficar comigo?
Liz sorri e beija seu rosto.
— Claro que sim. Vai até se cansar de mim.
— Não vou não! – Nina ri e boceja.
Liz senta ao seu lado, segurando sua mão.
— Você vai ficar também, Thomas? – Ela crava em mim seus
olhinhos sonolentos.
— Sim, pitoco. Agora relaxe e durma.
Ela suspira e fecha os olhos.
— Ei, o que estão fazendo aqui? – Erick pergunta aparecendo na porta
do quarto.
— Não fala alto, caralho, não quero que ela acorde! – Reclamo e o
tiro do quarto.
Nós vamos até a cafeteria.
— Plantão tranquilo? – Pergunto.
— Graças a Deus – ele ri – ainda não entendi o que estão fazendo,
aqui. Não estão de plantão.
— Nina já sabe de tudo.
Ele arregala os olhos, surpreso.
— Sério? Como assim? Achei que fossem esperar.
— Amber contou tudo a ela.
— E como ela reagiu?
— Melhor do que esperávamos. Ela adorou.
Ele assovia.
— Que bom... Podia ser um drama. Ainda bem que a pequena é gente
boa. E aí, ficou bravo com sua irmã?
— Nem deu tempo de ficar. Se Nina tivesse reagido mal talvez eu
ficasse, mas... no fim, deu tudo certo.
— E por falar em sua irmã... Nós temos um encontro marcado.
Agora sou eu que arregalo os olhos.
— Sério?
— Seríssimo. Sua irmã está na minha, é o que eu digo.
Eu rolo os olhos e jogo o resto do meu café fora, me levantando.
— Me poupe dos detalhes, cara!
Erick ri e eu saio da cafeteria, voltando para o quarto de Nina.
Ela já está dormindo, ressonando tranquilamente.
— Ei – eu toco os ombros de Liz e ela me encara com olhos cansados.
— Ela dormiu.
— Você deveria dormir também.
— Não, quero ficar com ela.
Eu ignoro seu resmungo puxando-a.
— Está cansada. E Nina está dormindo de qualquer maneira, não
sentirá nossa falta.
— Eu falei que ia ficar aqui. Prometi a ela,
— Não vamos sair do hospital – eu a puxo para fora do quarto, pelo
corredor – só vamos encontrar um lugar mais confortável pra você descansar.
— Realmente não precisa...
Eu abro a porta de um quarto vazio e a seguro pela cintura, erguendo-
a e colocando-a na cama facilmente.
— Cala boca, Spencer – eu tiro seus sapatos e ela solta um bocejo.
— Por que está sendo um pé no saco? – Ela resmunga, mas deita
quando acabo de tirar seus sapatos.
— Porque precisa se cuidar.
— Eu posso me cuidar sozinha!
Eu tiro meus próprios sapatos e deito ao seu lado.
— Não está mais sozinha, Spencer. Eu estou com você e vou me
certificar de que vai cuidar bem deste bebê.
Ela abre os olhos e me encara. Parece confusa.
— Nós vamos mesmo ter um bebê.
Eu sorrio.
— Esse era o objetivo, não é?
— Não parece assustado.
— Você está? – Eu toco seu rosto e ela respira fundo.
— Muito.
— Por quê?
— Eu estive aqui antes. E estava sozinha. – Ela não precisa continuar
para eu entender que está falando da gravidez de Nina e eu só consigo
imaginar como deve ter sido apavorante para ela estar grávida e sozinha e,
além de tudo, ser coagida a dar a criança.
— É diferente agora, Liz. Eu estou com você.
Ela fica me fitando em silêncio e eu tenho vontade de entender o que
se passa dentro da sua mente. Será que ela acredita em mim? Será que está
duvidando de minhas palavras? Como posso culpá-la? Eu tinha sido um
cretino com ela uma vez. E começo a deduzir que agora somente palavras não
seriam o suficiente para convencê-la. Eu teria que provar.
Eu iria provar.
— Durma – peço e ela se vira de costas pra mim.
— Nós vamos conversar sobre o pedido de Nina? – Sua voz sai quase
sumida e ela parece muito assustada. E de certa forma eu a entendo.
— Teremos tempo. Por enquanto, apenas tenha a certeza que estamos
juntos – passo meus braços a sua volta, puxando-a para mim – eu não vou a
lugar nenhum, Spencer. Nunca mais.

***

— O que significa isso?


Como se viesse de muito longe escuto uma voz conhecida e abro os
olhos.
Liz ainda está entre meus braços e acordando também, embora ainda
não veja o que estou vendo.
Paola está na porta do quarto nos encarando chocada.
E, antes que eu consiga acordar totalmente, vejo Jenny espiando atrás
de Paola e acho que ela solta algo como “porra, ele tá comendo a Liz?” E
logo atrás os outros internos.
Ah que inferno!
Liz finalmente acorda e se solta de mim, sentando-se rapidamente,
muito pálida.
— Vai explicar Thomas? – Paola pergunta com os braços cruzados.
— Droga! – Liz resmunga se livrando de mim totalmente e saindo da
cama.
Ela parece mortificada, seu rosto antes pálido agora está vermelho.
— E você? Acha que esse é o comportamento de um profissional? De
uma interna? – Paola insiste.
— Nossa Liz, se fazendo de santinha, hein! Que grande vadia! –
Jenny dardeja.
Os outros internos vão de chocados a maliciosos.
— Vocês não viram nada demais – Mark diz – a Liz não ia fazer...
— Cara, deixa de ser idiota! – Sam ri – Está claro que o Doutor Hardy
comeu mais uma!
— Não vai dizer nada, Thomas? – Paola insiste.
— O Doutor Thomas não tem culpa, ela deve ter se jogado em cima
dele! – Jenny continua.
— Calem a boca todos vocês! – Cesso o falatório e encaro Paola. –
Quer que eu fale algo Paola? Sim, eu e Liz estamos juntos.
— O quê?
— Você ouviu. Liz Spencer é minha namorada, se prefere algo mais
formal. Não que te deva alguma satisfação.
— Não está falando sério! Ela é sua interna!
— Isso não é problema seu – então encaro os internos em choque –
nem de vocês! – Cravo meus olhos em Jenny – e, se eu ouvir você chamar
Liz de vadia de novo, será demitida. – Volto a encarar a todos. – Já que
esclarecemos este ponto, voltem ao trabalho! Minha vida pessoal não é da
conta de vocês. E, se eu souber que algum de vocês – olho para Paola –
incluindo você – a está perturbando ou difamando, levarei para o lado
pessoal. E não queiram me ver irritado! Agora, se me dão licença... – Seguro
a mão de Liz puxando-a para fora do quarto.
— Que horrível! – Liz suspira quando chegamos ao vestiário.
— Eu achei hilário – Chloe aparece rindo e eu lanço a ela um olhar
irritado. – Nossa, calma. Só achei engraçado você colocando a Paola no seu
devido lugar e, para completar aquela chata da Jenny também. Ela deve estar
arrasada agora que o parquinho de diversões do doutor Hardy fechou!
— Cala a boca, Chloe – Amber aparece – mas tenho que concordar.
Foi ótimo ver a Paola pálida daquele jeito!
— Deus, nos deixem em paz vocês também! – Liz resmunga e as duas
riem.
— Vamos, Chloe, vamos deixar o casal a sós! – Amber pisca e elas
desaparecem porta a fora.
— Me desculpe por isto – digo.
Ela dá de ombros.
— Bom, não foi a maneira mais agradável de se acordar! Achei que a
doutora Paola ia me bater!
— Ela não se atreveria!
— Ela me odeia, porque ainda acha que tem algum tipo de direito
sobre você!
— Ela nunca teve! Só na imaginação dela.
— Agora que terminou com seu pai, talvez ela pense...
— Ela pode pensar o que quiser. Eu não quero nada com aquela
cobra. Aliás, com nenhuma mulher deste hospital. – Eu a encaro seriamente
– Você entendeu, Liz?
Ela dá de ombros, abrindo seu armário.
— Isso nem tem a menor importância. Eu vou tomar um banho, me
arrumar para trabalhar e ver Nina.
Eu me sinto um pouco irritado, porém não falo nada.
Como eu já tinha deduzido, palavras não vão trazer Liz de volta pra
mim. Eu tinha tempo. Nós tínhamos tempo.
E, numa coisa ela tinha razão, nós precisávamos nos concentrar em
Nina.

***

Assim, os dias seguiram numa nova rotina.


Nina tornou-se o centro do nosso mundo. Agora que ela sabia a
verdade, não precisávamos usar de subterfúgios para estar por perto e a cada
dia que passava eu via seus laços com Liz se intensificarem.
E, com o relacionamento das duas se tornando cada vez mais forte,
Nina também parecia com uma nova disposição e saúde.
Tanto que, duas semanas depois, o hematologista nos comunicou que
ela poderia seguir com o tratamento em casa.
— Ela está bem mais forte. Embora ainda não esteja reagindo ao
tratamento como deveria, está forte o suficiente para ir pra casa. Vamos
observar, se não houver nenhuma mudança no quadro, teremos que entrar
com a quimioterapia.
Eu e Liz trocamos um olhar esperançoso enquanto Nina não cabia em
si de alegria.
— Eu vou pra casa!
— Sim, querida! – Liz a abraça.
— E o papai? Quer dizer, o papai Jack? Ele não vai pra casa, não é?
Eu e Liz nos entreolhamos.
Meu pai teria alta no dia seguinte e, para nossa surpresa, Diana o
levaria para sua casa, dizendo que iria cuidar dele. O que foi de certa forma
um alívio para mim e Amber, assim poderíamos nos concentrar em Nina.
Ele e Diana haviam encontrado Nina mais cedo e contado que Jack
iria ficar com Diana por um tempo para se recuperar.
— Nós estaremos com você – Amber garante.
— E a Liz? – Nina pergunta – Você pode ficar na nossa casa também,
por favor?
Liz me encara.
— Claro que sim. Nós dois ficaremos com você, docinho, não se
preocupe! – Garanto.
— Agora vamos nos arrumar! – Amber diz e eu e Liz saímos do
quarto.
— Está tudo bem pra você? – Pergunto dada sua reticência.
— Se estiver para você.
Eu a encaro. As coisas andavam um tanto estranhas ultimamente.
Como se o fato de nós termos cumprido nosso propósito, tivesse dado uma
outra dimensão ao nosso relacionamento. O problema é que nenhum dos dois
sabia como lidar com aquilo.
Eu havia dito a mim mesmo que lhe daria espaço e tempo. Afinal a
situação dela não era fácil, tendo que entrelaçar sua ligação com Nina e
aprender a lidar com o fato de que ia ter outro bebê. Achei que enfrentar
também as novas nuances do nosso relacionamento fosse um pouco demais
pra ela no momento e recuei.
Nós passávamos o dia como chefe e interna, eu lhe dando instruções e
a tratando como todos os outros, o que achei ser mais aconselhável, dado o
escândalo que foi quando nos pegaram juntos. E, mesmo todos sabendo do
nosso status de relacionamento, eu não queria que se tornasse um problema
para a vida profissional de Liz. E nem a minha. Ainda éramos profissionais
ali, afinal.
E parece ter sido o suficiente para calar os falatórios que foram
diminuindo com o passar dos dias. Eu me perguntava se teríamos outro
escândalo quando descobrissem sobre Nina e o novo bebê. Enfim, tudo a seu
tempo.
À noite, ficávamos com Nina, a distraíamos até que adormecesse,
então ela deixava que eu a levasse até um dos quartos e a acalentasse em
meus braços. E era só.
Nós não tínhamos mais feito sexo. Não que eu não tivesse vontade.
Mas Liz não deu nenhum indicio de que queria que continuássemos. O que
me assustava sobremaneira, porém eu tentava entender. Às vezes eu percebia
a dúvida em seu olhar, o medo. E doía saber que fui eu que a transformei
naquela pessoa desconfiada. Fui um cretino há oito anos e isso deixou marcas
em Liz.
E eu me perguntava com certo medo se conseguiria apagá-las. Eu
ansiava por apagá-las.
— Claro que está bem pra mim. – Murmuro, tocando seu rosto. Ela
não se afasta.
— Quer dizer que... estaremos nos mudando para casa do seu pai, ou
algo assim?
— Podemos ficar no seu apartamento se preferir, só acho que Nina
vai preferir ficar em um ambiente que lhe é familiar.
— Tudo bem então. – Ela sorri timidamente – acho que vou pra casa
buscar as minhas coisas e... nos vemos na sua casa?
— Certo.
Ela se afasta e Amber me chama.
— O papai quer falar com você antes que vá embora.
— Ok!
E eu estou entrando no quarto do meu pai quando me deparo com
Paola saindo de lá com cara de poucos amigos.
— Está contente agora? – Ela me encara friamente.
— Do que está falando?
— Eu vim contar ao seu pai a pouca vergonha que anda rolando entre
você a interna Spencer e sabe o que ele fez? Me demitiu!
Eu solto uma risada.
— Parece que meu pai finalmente viu a cobra que você é.
— Mas tudo bem! Eu realmente não faço questão de continuar aqui
vendo este hospital ser afundado pelos Hardy e seus excessos.
— Já vai tarde! – Eu a ignoro e entro no quarto do meu pai.
Ele parece mais forte.
— O senhor queria falar comigo?
— Sim, entre.
Eu me aproximo.
— Amber me contou que Nina teve alta.
— Sim, apesar de não estar reagindo como deveria. Acho que não
escaparemos da quimio.
— Amber também me contou que Elizabeth Spencer está grávida.
— Sim, está bem informado.
— Escute Thomas, sei que ainda não me perdoou.
Eu não digo nada, porque ele tem razão.
— E não o culpo. Só queria que me escutasse por um instante. Sei que
não estou em condições de te pedir que aceite conselhos, porém esse ataque
me fez ver a vida com novos olhos – ele suspira. – Eu vivi a minha vida
inteira para a medicina. Ela foi meu maior amor.
— E mamãe?
Ele sorri tristemente.
— Ela foi o meu primeiro amor. Mas ela se foi e eu achei que nunca
mais fosse me recuperar. Eu nunca mais quis me recuperar. Não queria me
permitir amar de novo. Por isso me casei com a medicina. Diana sabia e
tentou ficar comigo mesmo assim. A mentira sobre Nina foi apenas uma
desculpa para ela desistir. E agora... Agora ela está me dando uma segunda
chance.
— Acha que merece?
— Ela parece acreditar que sim – ele sorri – é uma mulher incrível. E
agora eu vejo o mundo sob uma nova ótica. Eu perdi todos esses anos e a
vida é tão tênue. O que eu ganhei? Nem meus filhos têm afeto por mim
como deveriam.
— Nina te ama.
— Nina é um anjo. Mas ela não é minha filha. Você é o pai dela. E
agora eu percebo como foi errado esconder de você. Eu sempre quis o melhor
pra você. Achei que estava te protegendo mantendo-o longe de Elizabeth
Spencer. Longe do amor. E no fim, só causei mais sofrimento. Agora acho
que finalmente podemos consertar tudo.
— Podemos? – Eu levanto a sobrancelha ironicamente.
Ele ri.
— Você consertará. Eu entendi que não tenho nada a ver com suas
escolhas. Fico tranquilo para seguir minha vida sabendo que finalmente se
tornou um homem e que tomará as melhores decisões, não estou certo?
— Sim.
— Por isto acho que já está na hora de eu recuar aqui no hospital
também. Quero que seja o novo diretor. Vou comunicar ao conselho. Assim
que terminar sua residência, você assumirá.
— Não – eu o corto. – Eu não quero.
Ele levanta a sobrancelha e minhas palavras surpreendem a mim
mesmo, apesar de eu me sentir aliviado por dizê-las, porque finalmente
enxergo a verdade. Vejo o que eu quero.
E eu não quero ser meu pai.
— Não quero assumir este cargo.
— Achei que fosse essa sua ambição de vida.
— Minhas prioridades mudaram. Eu não quero me casar com a
medicina, pai. Não quero viver em função dela. Eu amo minha profissão,
porém eu quero mais que ser apenas um médico. Eu quero ser um pai. E um
marido.
Meu pai fica em silêncio por um instante e então concorda com a
cabeça.
— Certo. O conselho terá que encontrar outra pessoa.
— Você sabe quem deveria assumir.
Ele levanta a sobrancelha
— Minha irmã, é tão boa quanto eu, você sabe. Talvez até melhor em
alguns aspectos.
Eu me levanto e saio do quarto. Sinto-me com a alma lavada.
Chega de tempo. Chega de espaço.
Eu sei o que quero. Já tracei o meu futuro e agora preciso começar a
vivê-lo.
Quando eu chego em casa, o carro de Amber e o de Liz estão lá.
Eu havia demorado mais do que o previsto, precisava comprar algo
antes e agora eu tinha o que era preciso no meu bolso.
Eu entro em casa e escuto a risada de Nina e Liz e sorrio. Era assim
que eu queria ser recebido todos os dias da minha vida.
— O fugitivo – Amber me encara quando entro na cozinha. Ela está
comendo algo que parece macarronada e Nina está do seu lado comendo
também.
Liz está mexendo nas panelas.
— Thomas! – Nina sorri. Eu me aproximo e beijo seus cabelos.
Passo por Amber e dou um puxão na sua orelha, ela me bate de volta
e solta um palavrão, fazendo Nina rir e me aproximo de Liz.
Toco sua cintura e deposito um beijo em seu pescoço.
Ela me encara surpresa, mas reconheço o brilho em seu olhar.
Ah sim, baby. O espaço já era e é só o começo.
— Isso cheira bem.
— Nina pediu comida italiana – ela responde – quer comer?
— Na verdade, eu queria que me acompanhasse por um instante.
Ela me fita confusa.
— Agora?
— Agora, Spencer – eu pego sua mão e a puxo escada acima, não lhe
dando tempo para recusar.
Eu disse, o tempo já era também.
Quem ditava o tempo agora era eu.
Eu entro no meu antigo quarto e fecho a porta atrás de nós.
Ela se aproxima da janela, o sol está se pondo e ilumina seus cabelos.
Se parece demais com a primeira vez que a tive ali. Foi há tanto tempo e nada
mudou.
Ela continua sendo a criatura mais linda do mundo pra mim.
— O que foi? – Pergunta, se virando.
— Sente-se.
Ela hesita, mas senta na cama.
Eu me aproximo e me ajoelho.
—Thomas o quê...? – Vejo seu olhar confuso se transformar em
entendimento quando eu tiro a caixa do meu bolso.
— Oh Meu Deus... – sussurra.
Eu abro a caixa e o anel brilha.
— Elizabeth Spencer, quer se casar comigo?
Capítulo Trinta

Liz

Por um momento, tenho dificuldade de entender o que está


acontecendo, enquanto as últimas palavras de Thomas são processadas por
meu cérebro.
Um filme passa na minha cabeça, com todas as cenas que compõem a
nossa história, sinto meu peito se enchendo de lembranças, as lindas, as
dolorosas, as quentes e as esperançosas.
Meus olhos estão marejados e meu coração batendo forte no peito
quando fito aquele homem ajoelhado na minha frente. O cara que roubou
meu coração há oito anos e o despedaçou. O cara que a linha da vida colocou
no meu caminho de novo, que parecia tão semelhante ao de antes, com a
mesma capacidade de esquentar meu corpo e quebrar meu coração e que, ao
mesmo tempo, parecia tão diferente.
Ainda esquentava meu corpo e tinha a capacidade de quebrar meu
coração. Mas ele ousaria?
— Um dia você disse que nunca se apaixonaria – murmuro – você
nunca quis ficar com alguém para sempre, você... me mandou embora – não
consigo evitar incorporar aquela menina de 18 anos, apaixonada e
decepcionada que continua existindo em algum lugar dentro de mim.
Thomas solta a aliança e segura minhas mãos nas dele. Seus olhos são
intensos e profundos quando fita os meus. Suplicam nos meus.
— Eu não queria sofrer. Eu vi meu pai sofrendo a vida inteira e
entendi que se eu não amasse ninguém eu não iria passar por aquele
sofrimento. E quando você estava comigo, eu sabia que era a única que
conseguiria me fazer sofrer do jeito que eu mais temia. Eu fiquei apavorado
quando disse que me amava e queria ficar comigo. Fui um idiota te
mandando embora. Eu me arrependi, Liz. Fui atrás de você, mas era tarde...
— O quê? – Do que ele estava falando?
— Eu fui até sua casa dias depois.
— Eu nunca fiquei sabendo... O que foi fazer lá? – Eu não podia
acreditar.
— Não sei... Só queria tentar consertar as coisas, eu imaginava você
sofrendo por minha causa e não podia suportar, eu ia te pedir perdão.
— E iria voltar comigo?
— Pretendia deixar você me persuadir, como o bom covarde que eu
era. Mas acho que sim, no fundo era o que eu queria.
— O que aconteceu? Por que nunca me encontrou?
— Sua mãe me disse que estava com Alan.
— Como assim, Alan? Você falou com a minha mãe e ela disse isto?
Uma sombra de ressentimento tolda sua expressão.
— Sim, ela me disse que ele tirou sua virgindade e que estavam
juntos novamente.
— Era mentira! Quer dizer, sim, eu tive um caso com Alan, mas não
passou disto, um caso. Nós transamos uma vez, eu estava meio encantada
com ele, o admirava. Não foi nada além e Alan terminou tudo. Meses depois
eu te conheci. E nunca voltei com ele! – Eu solto minhas mãos de Thomas e
me levanto, nervosa.
— Eu não posso acreditar que minha mãe tenha feito isto! Ela sabia
que eu estava dilacerada pelo o que você fez! Ela tinha que ter me contado e,
mais importante, ela não podia ter mentido pra você!
— Sua mãe mentiu? – Thomas para na minha frente.
— Claro que sim! Acha que eu ia pular na cama da Alan dias depois
de termos terminado? Eu provavelmente estava em casa, deitada na minha
cama, chorando por você!
Thomas passa a mão pelo cabelo, frustrado e irritado.
— Sua mãe é uma filha da puta!
Eu fico olhando pra ele, processando aquela nova informação que de
certa forma mudava tanta coisa. Eu sempre acreditei que ele não estava nem
aí. Que tinha seguido em frente sem olhar pra trás. Porém, ele tinha ido atrás
de mim.
Nós poderíamos ter tido uma segunda chance.
Barbara me tirou isto.
Sinto meu coração sangrar de decepção. Não mais por Thomas agora
e sim pelos atos da minha mãe.
Thomas toca meu rosto.
— Agora não importa mais. Ficou no passado, não podemos mudar
nada do que aconteceu. Se eu pudesse voltar no tempo jamais teria te
mandado embora naquele dia. Eu teria te levado comigo para Harvard,
teríamos ficado com Nina, teríamos ficado juntos.
— Não se pode voltar no tempo. – Murmuro, sentindo um enorme
pesar por todos aqueles anos perdidos.
— Não. Mas posso fazer o meu melhor agora. Sei que é difícil
acreditar em mim, não te culpo. Mas Liz – ele segura minha cabeça,
obrigando-me a olhar pra ele. E o que vejo em seu rosto faz meu coração
falhar uma batida – eu te amo. Sempre amei. Amei aquela menina que me
desafiou a fazer uma tatuagem, amei a mulher que você se tornou. Sempre
vou amar. – Eu fecho os olhos, e sinto Thomas encostando a testa na minha,
respirando suas palavras na minha boca. – E eu não tenho mais medo de
amar você. O único medo que tenho é que saia da minha vida outra vez.
Quando ele termina eu nem estou respirando. Eu nem sei mais como
se respira.
Apenas sinto uma nova vida tomando conta dos meus membros, como
se não precisasse mais de ar pra viver e sim daquele amor que vai adentrando
em meu corpo, se espalhando por tudo, por todos os meus órgãos vitais,
minha pele, cada vez mais fundo em meu íntimo, até alcançar minha alma e
aconchegá-la num abraço eterno.
Nós éramos eternos.
— Sim – sussurro e ele abre os olhos. Tão perto. Tão meu.
— Sim?
Eu rio e choro aos mesmo tempo.
— Sim, eu aceito, sim, eu te amo...
E ele me beija. Com força. Com vontade. Com amor.
Com todas as promessas ditas e não ditas. Com oito anos de atraso,
porém com todos os anos que teríamos pela frente.
Finalmente, estávamos juntos.
Parece que um tempo infinito se passou quando ele finalmente me
solta.
Estou toda trêmula e ofegante com o beijo mais perfeito. Embriagada
de desejo por todas as possibilidades que temos pela frente.
— Vamos contar a Nina? – Pergunta e eu agarro sua camisa,
ofegante.
— Não ainda, me leva pra cama primeiro.
Ele ri.
— Eu não queria parecer sacana pedindo pra te foder agora, mas...
— Eu gosto quando é um pouquinho sacana doutor Hardy. Então, por
favor, você pode me foder agora?
Com um grunhido, ele me pega no colo e me joga na cama.
E estamos rindo, enquanto tiramos nossas roupas, com pressa e
expectativa.
Tudo é tão diferente e tão igual. Eu me sinto nua diante dele não só de
corpo, também de alma e coração e isto dá ao tesão uma nuance mais intima,
mais profunda.
Suas mãos e lábios deslizam por meu corpo quase com reverência, me
fazendo tremer, arquear e ansiar que acabe logo e que não acabe nunca.
Deslizo numa doce inconsciência e deixo que ele faça sua mágica em
mim. Doutor Thomas e suas mãos perfeitas. Seus lábios atrevidos. Sua voz
em minha pele, sussurrando com aquela voz rouca carregada de desejo o
quanto me quer.
Antes eu acharia tudo muito excitante e incrível, mas agora eu sei que
ele não está falando somente de sexo. Ele me quer inteira. Para sempre.
E isto torna tudo ainda mais maravilhoso.
Corro minhas mãos por seus ombros. A tatuagem está ali e sua pele
embaixo, quente e macia. E sua boca na minha, seu sorriso pra mim.
Sua ereção abrindo caminho.
Tudo meu.
Ele é meu.
Para sempre.

***
Quando eu estava com Thomas, tudo parecia perfeito. Mas ainda
havia uma sombra enorme pairando sobre nossa felicidade. A doença de
Nina.
Agora eu a vejo dormir, acariciando seus cabelos, enquanto o dia
amanhece lá fora, fazendo uma prece silenciosa para que ela fique bem. Para
que aquele bebê que cresce dentro de mim, chegue a tempo para salvá-la.
Penso nas minhas dúvidas e incertezas nas últimas semanas. Primeiro
Nina descobrindo que era nossa filha e sua inusitada reação, que foi uma
grata surpresa. Eu ainda tinha medo que ela ficasse chateada ou não
entendesse, mas ela havia amado. O que encheu meu coração de amor e
esperança. Finalmente eu poderia ficar perto dela e me permitir amá-la como
ela merecia. Como eu merecia. Podíamos ser mãe e filha.
E então veio a certeza da minha gravidez. E em pouco tempo eu não
seria mãe apenas de Nina e sim de mais um bebê. Era assustador. E, ao
mesmo tempo, era incrível.
Quando eu engravidei de Nina, eu era apenas uma menina, não sabia
se queria ser mãe, se poderia ser mãe. E ainda estava sofrendo depois de uma
grande desilusão amorosa. Sozinha e com uma mãe controladora que assumiu
o controle da minha vida, com a minha permissão. Por causa do meu medo e
inexperiência.
Eu havia sufocado o amor pela minha filha perdida por oito anos,
tentando não pensar nela, não me perguntar onde ela estava e se era realmente
feliz.
E o tempo inteiro ela estava na casa dos Hardy. Sim, ela era feliz e era
amada. E por aquele que sequer desconfiava que na verdade era seu pai. Pelo
menos ela teve Thomas. Aprendera a amá-lo, mesmo que fosse como irmão.
Eu ansiava que ela me amasse também. Naquelas últimas semanas eu estive
ao seu lado, aprendendo sobre quem era aquele pequeno ser que saíra de
dentro de mim e que eu conhecia tão pouco.
Nós estávamos aprendendo a nos conhecer e a nos conectar como mãe
e filha.
Se por um lado, essa missão preenchia meus dias, eu havia deixado
meus sentimentos por Thomas de lado. Me afastei dele, com medo. Eu via
que isto o confundia e frustrava. Eu não sabia o que fazer. Tinha receio de
continuar dormindo com ele sem saber o que ia acontecer.
Éramos pais de Nina, iriamos ter outro bebê, porém continuávamos
no limbo quando se tratava dos ressentimentos do passado e dos desejos que
ainda sentíamos.
Ontem, tudo mudou. Eu ainda não conseguia acreditar que Thomas
tinha me pedido em casamento. Que tinha dito que me amava. Que se
comprometera comigo.
Era bom demais para ser verdade. Mas era.
E, para minha surpresa, ele havia me procurado há oito anos e eu
nunca soube. Tento conter a raiva que sinto de Barbara neste momento, por
ela ter estragado tudo.
Se eu tivesse visto Thomas, tudo poderia ter sido diferente.
Talvez tivéssemos ficado juntos e ele saberia sobre Nina.
E aqueles anos poderiam ter sido diferentes. Porém, como Thomas
disse, não poderíamos mudar o passado, mas poderíamos construir um futuro.
— Liz? – Nina acorda e crava em mim seus olhos sonolentos.
— Bom dia, querida – eu sorrio e ela se senta, passando os bracinhos
em volta do meu pescoço.
— Estou tão feliz que esteja aqui!
Eu a trago para meu colo, aconchegando-a a mim.
Era incrível que ela fosse essa criatura doce e amorosa. De quem
herdou aquele gene tão desapegado com tanta gente espinhosa do seu lado?
Ela era um anjo em nossas vidas. Alguém que veio nos ensinar sobre
amor incondicional e perdão.
Ela nos transformava em pessoas melhores.
— E vou ficar aqui pra sempre – digo e ela me encara.
— Sério? De verdade?
— Posso te contar um segredo? – Pergunto divertida e ela sacode a
cabeça positivamente. Eu mostro minha mão, onde o anel de Thomas brilha.
Ele o havia colocado ali depois que a gente fez amor. Pela terceira vez.
Nina arregala os olhos.
— É um anel de noivado?
— Sim docinho. Thomas me pediu em casamento.
— Oba! – Ela grita e me abraça – agora vocês serão meus pais de
verdade!
Eu a abraço de volta.
— Sim, meu amor. Seremos uma família de verdade.
— Ei, vocês estão aí – Thomas aparece na porta do quarto e Nina pula
do meu colo para o dele.
— Liz me contou que vão se casar!
Ele sorri para mim, por entre os cabelos de nossa filha.
— Sim, nós vamos! Está feliz?
— Muito!
— Agora se apronta que nós vamos te levar à escola.
— Posso voltar à escola?
— Por enquanto sim. Se sentir qualquer coisa, veremos outra maneira,
ok?
— Eu vou ficar bem! – Ela diz esperançosa me deixando com o
coração apertado. Quero tanto que ela tenha razão. Mas aquela doença
terrível ainda está ali, à espreita.
Nina se afasta para tomar banho e Amber aparece no quarto.
— Nina já foi pro banho? Vou ajudá-la a se arrumar para a escola e...
Thomas segura seu braço impedindo-a de seguir em frente.
— Não, a Liz vai ajudá-la.
— Oh... Claro. Eu vou descer e fazer café então.
Ela se afasta e eu percebo o que Thomas fez e lanço-lhe um olhar
agradecido.
Ele se aproxima e beija minha boca de leve.
— Tudo bem?
— Muito bem.
— Ainda pode andar?
Eu rolo os olhos.
— Cala a boca!
Ele ri e me beija de novo.
— Eu vou me arrumar, consegue ajudar Nina?
— Eu acho que consigo. Estou amando poder ser mãe dela
finalmente.
— Vamos ver se continuará pensando assim quando ela começar com
suas teimosias.
— Não fala assim, Nina é perfeita!
— Eu só estou avisando! – Ele ri e se afasta.
Nina volta do chuveiro, eu a ajudo a se enxugar, escolher uma roupa
para a escola e penteio seus cabelos.
Nós descemos e tomamos café com Amber e Thomas se provocando,
o que parece ser habitual por ali.
Nina ainda não tem muito apetite, o que é preocupante, embora todos
saibamos o motivo.
Eu e Thomas a levamos na escola e conversamos com a professora,
que já sabe de sua situação e promete ficar de olho e avisar imediatamente em
caso de necessidade.
Tento não ficar receosa quando deixamos a escola.
— Ela vai ficar bem? – Pergunto apreensiva a Thomas.
Ele segura minhas mãos.
— Temos que ter fé.
Quando chegamos ao hospital é esquisito ter Thomas segurando
minha mão.
— Acha apropriado? – Pergunto receosa, ele sorri.
— Foda-se o que os outros pensam.
Eu tento entrar na onda dele, embora ainda seja preocupante pra mim.
A verdade é que para as mulheres é sempre mais complicado este tipo de
situação. Sempre seremos as mais julgadas.
Eu solto sua mão quando entramos no vestiário. Os internos estão por
ali.
Eles param de falar quando entramos e sei que viram nossas mãos
dadas.
Nós nos trocamos e Thomas sai antes de mim, quando Erick o chama
para ver um paciente.
Jenny é a primeira a se aproximar com um sorriso maldoso.
— Então, é a namoradinha do doutor Hardy.
— Jenny, para – Julie pede e me encara com um sorriso amigável –
vocês parecem felizes. Formam um belo casal.
— Isto não vai criar problemas pra você? – Mark pergunta.
— Claro que vai! Deixe a direção do hospital descobrir. Se é que
ainda não sabe! A Doutora Paola estava revoltada ontem! – Jenny fala.
— Dizem que ela terminou com o doutor Jack e que foi por causa do
Thomas – Mark comenta estudando minha reação.
— Credo, isto é mentira – Julie refuta.
— Eu ouvi isto e muito mais! – Jenny continua – parece que eles
tinham um caso e que o doutor Hardy sofreu o ataque quando descobriu e...
— Por que não cala esta sua boca fofoqueira? – Eu finalmente rebato
– não deve falar sobre o que não sabe!
Ela dá de ombros.
— Só estou repetindo o que estão dizendo por aí.
— Se eu fosse você parava de fazer fofoca, pode se prejudicar. E
também ficaria longe da Paola!
— Hum, a doutora Paola tem influência aqui e...
— Duvido que continue tendo por muito tempo, ficou sabendo que o
doutor Hardy se afastou da direção? – Sam entra na conversa.
— Sério? E quem é o novo diretor? – Ben pergunta.
— Ninguém sabe. Dizem que é o doutor Thomas.
Será? Eu me pergunto. Thomas não havia dito nada sobre isto.
— Você sabe? – Julie pergunta e eu nego.
— Não. Com certeza em breve todos saberemos.
— Hum, por isto se pendurou no Thomas? Esperta hein? Conseguiu
ser a namorada do diretor... – Jenny alfineta.
— Cala essa boca, sua gralha ridícula! – Explodo – Estou de saco
cheio de sua falta de noção!
— Nossa, credo...
— Quer saber? Eu não sou a namorada do Doutor Hardy, sou sua
noiva – mostro o anel fazendo-a perder o ar. E todo mundo a nossa volta se
cala – Satisfeita? E quer ter mais um motivo pra fofocar, eu estou grávida!
Desta vez todos soltam uma exclamação abafada.
— Agora podem sair daqui para espalhar. Eu não me importo. Só me
deixem em paz!
Eu saio do vestiário e sinto que um peso foi tirado do meu peito. Era
bom falar a verdade, seja ela qual for. A vida era minha e se querem fofocar,
que fofoquem. Não me importo.
Eu só não contaria sobre Nina. Não ainda, embora um dia todos irão
saber. Ainda é cedo. E ela é só uma criança doente e precisa ser protegida de
certos dissabores.
***

As semanas transcorrem como as primeiras da minha nova vida, com


dias exaustivos no hospital, os internos e os outros médicos em polvorosa
com nosso novo status de noivos e futuros pais. Pelo menos a nojenta da
Doutora Paola foi demitida. Era uma a menos para atazanar.
Mas como tudo o que é novidade em algum momento deixa de ser,
quando as pessoas arranjam outro assunto para falar. Assim, com o passar
dos dias, o foco vai diminuindo e todos vão se acostumando com a interna
Elizabeth Spencer e o doutor Thomas Hardy juntos. E as noites são nossas.
Amber está constantemente fora, não sei se é proposital para deixar eu e
Thomas sozinhos com Nina, o certo é que ela tem muitos encontros com
Erick e também está nas nuvens com a possibilidade de ser diretora do
Chicago Mercy. Por enquanto, ainda estão esperando a decisão do conselho,
embora seja quase certo que nos próximos dois meses, depois que terminar
sua residência, Amber pelo menos seja alçada a algum cargo de chefia no
Chicago Mercy, rumo a sua ascensão. O que ela merecia, era uma médica
incrível.
Assim, todas as noites Thomas e eu jantávamos com Nina e
dedicávamos todo o nosso tempo a nossa filha.
Infelizmente, essa calmaria estava com os dias contados. Nina não
estava mesmo respondendo à medicação e teria que começar a quimioterapia.
Ela seria internada no dia seguinte após o casamento. Chloe havia se
prontificado a organizar a cerimônia. No começo, ela tinha planos
megalomaníacos, enquanto nós queríamos uma cerimônia intima, somente os
amigos e família, que aconteceria no jardim dos Hardy. E pensar em família
nos trazia à realidade desagradável de que nem eu, nem Thomas estávamos
falando com nossos pais.
Eu sabia que teria que parar de ignorar as ligações de Barbara e
conversar com ela, eu só não me sentia pronta. Ela era minha mãe, minha
única família até ali. E tinha controlado minha vida.
Porém, agora eu era mãe, tinha minha própria família e precisava dar
um basta a seu controle descabido.
Um dia antes do casamento, eu estou terminado de ajeitar minha
mudança para a casa de Thomas, esperando a empresa que levaria minhas
caixas, quando Barbara entra no meu apartamento.
Como sempre, ela abre a porta com sua própria chave entrando sem
cerimônia.
— Finalmente eu a encontro – diz muito séria, então seus olhos
vagam pela sala, vendo as caixas amontoadas pelos cantos. – Está se
mudando?
— Oi mãe. Sim, estou.
— Como assim? Que história é essa? Eu tentei te dar tempo, e
entender que estava brava comigo depois que descobriu que o Hardy foi
quem adotou sua filha, mas já teve tempo para pensar direito e entender que
eu não tive nada a ver com isto. Eu não sabia de nada e...
— Você descobriu e não me contou.
— O que queria que eu fizesse? Era tarde demais! De qualquer
maneira aquela menina havia sido adotada e não era mais sua filha.
— Ela é minha filha!
— Você é apenas a mãe biológica.
— Podia até ser assim antes, agora ela é minha filha de verdade.
Seu olhar se estreita.
— Como assim?
— Bom, se quer saber, está na hora de te contar o que está
acontecendo na minha vida. Nina está doente. Ela tem leucemia. Eu
engravidei do Thomas novamente, para que a criança possa ser doadora de
medula óssea.
— O quê?
— Você ouviu.
— Como não me contou nada? Como pode tomar todas essas decisões
sérias sem me consultar? Ficar grávida de novo, Liz e do mesmo canalha,
onde está com o pensamento?
— Meu pensamento, assim como meu coração, estava com a minha
filha. Eu faria qualquer coisa para ajudá-la. É isso que as mães de verdade
fazem, elas colocam os filhos e sua felicidade em primeiro lugar. Você não
saberia disto, não é?
— Do que está me acusando? Eu sempre pensei em você, lutei para
que se tornasse uma mulher forte, com uma carreira incrível...
Eu solto uma risada sem humor.
— Deus, você é incrível! É só isto que importa na sua vida. Mãe, você
é vazia! Como pode ser assim? Só pensar em carreira? Existem outras coisas
na vida que são tão mais importantes...
Agora é Barbara que ri sem humor.
— O que seria mais importante do que provar que somos capazes de
ser excelentes profissionais? Construir uma carreira sólida na profissão que
amamos...
— Eu não amo a medicina como você. Nós pensamos diferente mãe.
— Você é uma médica.
— Sou? Eu não sei... Eu estudei todos esses anos por sua causa. Você
se lembra que eu quis abandonar tudo, quis ser pintora?
— Você era jovem e estava confusa...
— Não. Eu nunca estive tão lúcida como naquela época.
— Tão lúcida que acreditou que um cafajeste a amava e se deu mal!
— Eu não estava errada. Ele me amava – eu me aproximo encarando-
a de frente – e você sabia.
— Do que está falando?
— Thomas esteve aqui. Pediu pra me ver. Estava arrependido. E você
mentiu pra ele, disse que eu estava com Alan. Por que mãe? Sabia que eu
estava sofrendo, que eu estava apaixonada, por quê...
— Fiz o que sempre fiz: o melhor pra você! Aquele homem quebrou
seu coração, acha que eu ia deixá-lo quebrar novamente? É como disse, é o
que as mães fazem!
— Ah cala a boca! Você estava com medo que eu largasse a
medicina, que eu seguisse minha própria vida, fora de seu controle! Porque é
só o que lhe interessa! Que eu esteja aqui, pra você puxar as cordas, pra ser
sua marionete e fazer somente o que você acha certo, no fundo é só o que
sabe fazer! Ser egoísta!
— Está sendo tão injusta.
— Não estou. Nunca se preocupou com o que eu realmente queria, o
que sentia.
— Sou sua mãe sei o que é melhor pra você...
— Não, isto não é ser mãe. Ser mãe é amar acima de tudo, mesmo
que os filhos não correspondam a suas expectativas, mesmo que eles não
sejam perfeitos como você gostaria, porque ninguém é. Ser mãe é querer
proteger sim e até controlar um pouco, porque não queremos que os filhos
sofram, mas não é por isto que me controla. É para que eu seja uma extensão
de você, para que eu seja você. Escute bem mãe, eu não sou você. Nunca fui
e nunca serei. Essa médica maravilhosa que você é, eu nunca vou ser. Não é
o que eu nasci pra ser...
— O que está dizendo? Não quer ser médica?
— Eu nem sei mais... você confundiu tanto a minha cabeça que agora
eu preciso me livrar deste domínio e, finalmente, seguir com as minhas
próprias pernas, tomar minhas próprias decisões, errando ou não. Elas serão
minhas.
— Eu não consigo te entender! Está me crucificando quando tudo o
que eu queria pra você era o melhor do mundo!
— O melhor do mundo pra você não pra mim. O que eu quero agora
sobretudo é amar. Amar minha filha – toco meu ventre – amar este bebê. E
tentar ser a melhor mãe possível para eles. Para que eles me amem em troca,
e não me temam, ou se sintam controlados. E mais. Eu vou me casar com o
Thomas, eu...
— Não pode estar falando sério – Barbara me interrompe, eu
continuo.
— ... Quero amá-lo também. E ele me ama. E é só o que importa. Se
eu vou continuar na medicina? Talvez sim, talvez não. Ela é só uma parte da
minha vida. Apenas minha profissão. Que nunca vai ser mais importante que
minha família.
— Eu não posso acreditar...
— A senhora pode escolher acreditar ou não. Esta é a realidade. Esta
é minha vida. Aquela que eu escolhi viver.
— Não sei se posso concordar com sua decisão, Liz.
— Não preciso de sua aquiescência. Nunca mais vou precisar.
Acostume-se. As coisas são assim agora.
Escuto o interfone tocar e me apresso em atender. São os homens da
mudança.
Eu desligo e encaro Barbara.
— Acho melhor a senhora ir. Eu estou ocupada. Estou me mudando
para a casa do Thomas.
— Então é mesmo definitivo.
— Muito.
Ela respira fundo e coloca os óculos escuros.
— Espero que não venha chorar pra mim quando tudo der errado.
E com essas palavras agourentas ela sai do meu apartamento.

***

— Ufa, finalmente terminou – Thomas diz ao retornar à sala, depois


de carregar minhas caixas. Nós decidimos viver ali, Nina estava acostumada
e Amber estaria por perto. Não queríamos afastá-la de Nina. Afinal, Amber
foi uma espécie de figura materna para ela depois que Diana foi embora.
— Eu disse que podia ajudar – respondo e Thomas toca meus cabelos.
— Nem pensar. Nada de esforço para uma mulher grávida.
Eu sorrio, apesar de meu sorriso não chegar aos olhos, eu ainda estou
pensando na minha mãe. Em como ela tinha tão pouca fé em minhas
decisões. Em como ela continua achando que eu estava errada depois de tudo.
— O que foi? – Thomas pergunta, notando que não estou bem.
Eu me aconchego em seu peito e conto sobre meu encontro com
Barbara.
— Sua mãe é uma vaca, sempre disse – ele fala quando termino. –
Não deve se preocupar com o que ela diz. É até melhor que esteja longe,
assim não ficará tentando te controlar, como sempre fez.
— Mas é minha mãe, eu queria que ela acreditasse em mim, em meu
discernimento para escolher a vida que eu quero viver.
Thomas me faz encará-lo.
— E o que você quer?
— Não é óbvio?
— Sobre a medicina, eu quero dizer. Eu realmente não entendi como
podia ser médica quando nos reencontramos. Sempre acreditei que seria uma
artista.
Eu sorrio tristemente.
— Minha mãe me convenceu que seria o melhor.
— E está sendo?
Eu dou de ombros. Thomas estava tocando em um dos meus maiores
medos.
Obviamente eu tinha ficado muito tempo estudando para chegar
àquele estágio. Oito anos. Nunca fui uma aluna brilhante, mas sempre me
esforcei e tentei com afinco me dedicar e vencer meus medos e inseguranças.
Nunca me passou pela cabeça desistir, afinal, Barbara e sua lobotomia
estavam constantemente na minha cabeça.
Agora que estava finalmente livre o que eu queria?
Eu não sabia dizer.
Thomas se levanta e me puxa junto.
— Vem comigo.
— Onde? – Pergunto curiosa quando ele abre a porta dos fundos. Nós
atravessamos a piscina e o jardim, então vejo uma construção que nunca tinha
visto antes.
— Essa era uma espécie de casa de hóspedes – ele abre a porta e faz
um sinal para eu entrar – desde que decidimos morar aqui, eu resolvi
reformá-la e dar uma outra função ao espaço...
Eu entro e fico boquiaberta.
É um cômodo grande, com uma claraboia que permite a entrada da
luz do sol de fim de tarde e está quase vazia de moveis a não ser vários
cavaletes com telas, além de mesas com tintas e pinceis.
— Isto é...
— Um estúdio. Seu estúdio de pintura.
Meus olhos surpresos e maravilhados percorrem a sala, deslumbrada e
emocionada até encarar Thomas de novo.
— Você fez isto?
— Pra você. Não sei se vai deixar a medicina, ou vai querer ser uma
pintora profissional. Ou quem sabe ser apenas mãe em tempo integral ou até
mesmo escolher ficar me esperando na cama o dia inteiro, o que eu ia amar
também. Só sei que deve pintar. Ainda lembro do seu olhar quando me levou
naquela galeria. Você ama a pintura. E, mesmo que escolha pintar apenas
como um passatempo, esse é o seu lugar.
— Ah Thomas, é lindo. Eu amei.
Eu me aproximo e o beijo. Seria possível eu me apaixonar ainda
mais?
— Achei vocês! – Nina entra no estúdio e nós nos separamos. –
Nossa, que bonito!
— Não é? – Eu digo.
— É um estúdio de pintura? Que legal! – Ela vai de um lado para
outro mexendo em tudo curiosa. – Você é pintora, Liz?
— Sim, ela é. E muito boa! – Thomas responde e eu rolo os olhos.
— Pode me ensinar? – Nina pergunta empolgada e eu me aproximo,
tocando seus cabelos.
— Claro! Escolha uma tela!
— Oba – com a ajuda de Thomas Nina traz um cavalete e eu a sento
num banco, depois de preparar as tintas.
— O que vai pintar?
— O papai! – Ela diz sem pensar e eu e Thomas nos entreolhamos.
Ela nem tinha percebido que havia chamado Thomas de pai.
— Certo. O papai – repito – Thomas, pode deitar naquele sofá!
Ele se aproxima e beija meu rosto.
— Me pinte como uma de suas francesas, Jack.
Eu solto um risada e Nina olha pra gente sem entender.
— Para de ser idiota e vai posar pra sua filha. Quando estivermos
sozinhos eu o pintarei como quer, Rose!
Ele ri e vai se posicionar sobre o sofá e eu começo a ensinar Nina a
desenhar. É óbvio que o Thomas que vai aparecendo na tela mais parece um
rabisco, não importa. Ela está se divertindo.
— Hum, não ficou muito bom - ela diz ao final e Thomas se aproxima
para ver.
— Nossa, ficou bom. Fiquei mais bonito.
Nina ri.
— Ficou ótimo Nina, para uma primeira vez – eu digo. – Acho que
temos um talento para a pintura!
— Eu poderia ser pintora?
— Achei que quisesse ser médica! – Thomas diz e eu rolo os olhos,
abraçando Nina.
— Nina vai ser o que quiser! Ela mesma vai escolher quando crescer.
E só ela vai decidir!
— Certo, acho que posso lidar com isto.

***

— Você está tão bonita! – Nina diz com admiração e eu finalmente


me olho no espelho.
Meu vestido marfim é simples e bonito, com um véu de renda quase
virginal sobre meus cabelos soltos.
E eu tenho que concordar com Nina. Estou bonita.
E mal posso esperar para que Thomas me veja.
Eu encaro minha filha. Que também está linda em seu vestido branco.
— E você parece um anjo!
— Sim, está todo mundo lindo – Amber entra no quarto, onde estou
me arrumando com Chloe e nos encara impaciente. – E, se está todo mundo
pronto, acho que já podem descer.
— Aqui você não é a chefe, querida – Chloe reclama, porém fecha
seu estojo de maquiagem, dando a missão por encerrada. Ok, terminamos. Eu
vou descer e te aguardamos lá embaixo, noiva!
Ela e Chloe saem do quarto, eu me sento para colocar o sapato e
aproveito para ajeitar a tiara no cabelo de Nina.
Nós havíamos conversado com ela cautelosamente sobre como a
quimioterapia seria difícil e ela até agora estava reagindo com bravura.
Minha pequena lutadora.
— Estou feliz que só serei internada amanhã, que hoje posso estar
aqui – ela diz com uma maturidade que às vezes surgia do nada, contrastando
com os momentos que ela era apenas uma criança fofa.
Seguro suas mãozinhas nas minhas.
— Eu sinto tanto que você tenha que ir para o hospital amanhã. Se eu
pudesse escolher, eu nunca deixaria você passar por isto...
Ela toca meu rosto.
— Eu sei que estou muito doente e que meu irmãozinho está
chegando para me ajudar. Vou tentar ser forte e esperar por ele. Está tudo
bem, mamãe.
Luto contra a vontade de chorar. Era sempre assim quando ela usava
aquela pequena palavra mágica. Ainda não era sempre que me chamava
assim, mas com certeza, com cada vez mais frequência. E vê-la tão
consciente de sua doença e de tudo o que teria que passar era de cortar o
coração, ela estava sendo tão forte e, com certeza, estava nos ajudando a ser
fortes também.
Eu só rezava fervorosamente que seu pequeno corpo fosse forte como
seu coração e esperasse aquela esperança dentro de mim chegar para ajudá-la.
Eu a trago pra mim.
— Eu te amo mais que tudo, sabe disto, não é?
— Eu também te amo, mamãe.
Ela me passa o buquê e segura minha mão e juntas nós descemos as
escadas saindo para o jardim onde, com apenas uns poucos amigos por
testemunha, dentre eles, Josh, nós seguimos em direção a Thomas, que me
espera no fim do caminho.
Ele sorri lindamente pra nós e eu olho para Nina e pisco radiante
quando ela solta minha mão e vai ficar com Amber e então, finalmente,
Thomas está segurando minha mão.
— Estamos mesmo fazendo isto?
— Finalmente estamos fazendo – ele diz e beija meus dedos enquanto
o padre começa a cerimônia que apenas vai oficializar o que já é a verdade
mais incontestável do mundo.
Eu sou dele e ele é meu.
Teríamos uma longa e dolorosa batalha pela frente, mas pelo menos,
iríamos lutá-la juntos.
E juntos a venceríamos.
A esperança estava dentro de mim.
Epilogo

Amber

Um ano depois

Por que eu tinha vindo de salto em um cemitério? É o que me


pergunto enquanto caminho ao redor da lápide retirando o musgo. Fazia
algum tempo que ninguém ia ali e eu entendia. Às vezes era difícil aceitar a
morte.
— Podemos ir, baby?
Escuto a voz de Erick atrás de mim e solto um suspiro profundo,
enquanto enxugo uma lágrima, fortuita.
Me permito olhar mais uma vez para a lápide. Eu sentia falta dela.
Muita.
Mas estava na hora de ir embora.
— Sim, vamos.
Erick segura minha mão e me leva para o carro.
Fico olhando para seu perfil enquanto dirige cantando uma música
boba que toca no rádio todo desafinado. Ele era um cara legal. E sexy, apesar
de sem noção às vezes. Mas eu estava apaixonada. E estava sendo incrível.
Tão incrível que nem o fato de eu ter me tornado a diretora mais jovem que o
Chicago Mercy já teve na última semana, havia ofuscado o fato de que em
breve estaríamos casados. Olho para o anel no meu dedo, me recordando do
pedido feito exatamente no dia em que eu fui promovida e sorrio.
Era bom voltar a sorrir. Tinha sido um ano muito difícil.
Erick estaciona em frente ao estúdio de tatuagem e eu faço uma careta
quando saímos do carro.
— Eles vão mesmo fazer isto?
— Eu também vou fazer uma.
— Espera, o quê? – Eu paro na porta e Erick ri.
— Acho que vai ser uma escrito “Amber”.
— Nossa! É tão cafona!
Ele ri ainda mais e me puxa pra dentro.
— Ei, Chloe.
Chloe acena de trás do balcão, onde agita com os pés um carrinho de
bebê que choraminga.
— Não falem alto! Ela está quase dormindo!
— Eles já estão aí?
— Sim, acho que Thomas está chorando.
— Isso eu preciso ver – Sigo e entro na sala onde Thomas está
sentado de costas para Josh que desenha algo em suas costas.
E sim, ele está suando frio e choramingando feito um bebê.
— Que bebezão! – Exclamo e ele me fuzila com o olhar.
— Vai se foder!
— Ei, Liz.
Liz está sentada ao lado e Thomas segurando sua mão. Vejo que há
uma tatuagem nova em seu pulso.
— Já fez a sua.
Ela mostra o pulso e eu admiro o trabalho. Onde um coração todo
artístico contém o nome de Nina.
Eu passo os dedos por seu nome, lutando contra a dor ao me lembrar
de como sofremos naquele ano.
— Vamos ficar bem, não é? – Indago e Liz esboça um sorriso tão
sofrido quanto o meu.
— Sim, nós vamos.
— Prontinho! – Josh dá a tatuagem de Thomas como finalizada e é
igual a de Liz.
— Está linda – Liz o beija e eu rolo os olhos.
— Acho que podemos ir, senão vamos nos atrasar! – Reclamo.
— Sim, vamos – Liz concorda.
Passamos pela recepção e Thomas retira Hope do carrinho,
acalentando-a.
Ela era uma criança linda. Se parecia muito com Nina quando bebê.
Josh fecha o estúdio e combinamos de nos encontrar em casa.
— Você parece tensa – Erick pergunta no carro.
— Não acha que devo estar? É a primeira vez que estaremos todos
juntos, depois de...
— Vai ficar tudo bem – ele aperta minha mão e eu quero que ele
tenha razão.
Chegamos em casa e o jardim está todo decorado. Obra de Chloe,
certamente. Thomas já está lá e cumprimenta o padre.
Eu fico um pouco tensa quando vejo meu pai. Papai parece bem. Mais
saudável. Ele realmente tinha se aposentado e agora curtia a vida ao lado de
Diana.
Não foi fácil para Thomas perdoá-lo e trazê-lo de volta para nossas
vidas. Mas assim, como Barbara, que eu via se aproximar pelo jardim ainda
com seu ar de soberba e um enorme chapéu branco na cabeça, devíamos este
feito à linda criança que segurava a mão da avó, puxando-a pelo jardim.
Eu sorrio ao ver Nina. Seus cabelos ainda estavam curtos, porém ela
parecia bem saudável. Aquele ano de tratamento e depois transplante de
medula não foi fácil pra ela. Mas Nina era uma pequena fortaleza e
sobrevivera a tudo.
— Vem vovó! Venha ver o estúdio da minha mãe, ela pinta muito
bem!
Liz ainda parece um pouco tensa, Thomas ri do seu lado.
— Sua mãe já sabe que está trocando de especialização? – Pergunta.
Liz havia decidido ser pediatra. Todo o cuidado com Nina a fizera ver que era
o ramo da medicina que mais a atraía. E no fim, ela continuava sendo uma
médica. Embora a pintura fosse sua paixão.
— Acho que Nina contou. – Liz ri, com Hope no colo.
Liz também havia passado um longo período longe de sua
controladora mãe, e foi Nina que insistiu em conhecer a avó e com seu
jeitinho tinha conquistado o coração frio de Barbara Spencer. Obviamente,
Barbara ainda tinha suas ideias sobre como a vida deveria ser, mas Liz tinha
aprendido a dizer “não, obrigada” e, tirando algumas brigas de vez em
quando, o que acontece em toda família, a vida corria.
— Fui visitar o túmulo da mamãe hoje – comento com Thomas. –
Vocês deveriam ir mais lá. Estou tentando convencer o papai a ir. Acho que
já está na hora.
— Sim, tem razão – Thomas concorda.
— Podemos começar? – O padre pergunta e nós nos posicionamos
para o batizado de Hope.
Liz me passa o bebê e eu sorrio me colocando ao lado do padre para a
cerimônia de batismo.
Olho para Liz e Thomas. Suas mãos unidas, seus rostos felizes. Eles
mereciam a felicidade. Foram oito anos de espera e depois todo o sofrimento
com a doença de Nina. Entretanto, no fim, Deus escrevia certo por linhas
tortas, como dizem. Foi a doença de Nina que os uniu, que permitiu que eles
vissem a vida com outros olhos. Que percebessem o que realmente
importava.
A vida às vezes nos brinda com uma segunda chance. Às vezes esta
segunda chance é tudo o que uma vida precisa para não desaparecer.
E eles haviam salvado a vida de Nina. Aquele pequeno ser iluminado
que era um anjo em nossas vidas.
Olho pra Hope em meu colo. Um nome que significava tudo o que ela
era.
Esperança.
No fim, é tudo o que precisamos para seguir em frente na linha da
vida.

Fim
Segredos que Ferem
Juliana Dantas
Copyright © 2017 por Juliana Dantas

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pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma ou
por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou outros métodos
eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia autorização por escrito do autor,
exceto no caso de breves citações incluídas em revisões críticas e alguns
outros usos não comerciais permitidos pela lei de direitos autorais.

Esse é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares,


negócios, eventos e incidentes são ou os produtos da imaginação do
autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.

Título Original Segredos que ferem

Capa: Jéssica Gomes


Sumário

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capitulo 22
Capítulo 23
Epílogo
A água escura abraça meu corpo
Sussurra baixo no meu ouvido
Entorpece minha dor

Afundo lentamente
Enquanto abraço
O esquecimento

O vazio
O nada

Nada
Capítulo 1

A chuva batendo na minha janela me acorda de um sono agitado.


Meu coração está disparado, como se algo tivesse me assustado. Não
sei se um sonho ruim, ou o simples barulho da chuva. Com um suspiro, jogo
as cobertas para o lado e caminho até a janela abrindo-a.
– Bom dia, Beaverton. – A manhã fria e chuvosa com seus vários tons
escuros me saúda de volta. Há alguns anos aquela escuridão teria me
desanimado. Não agora. Eu estava finalmente em casa.
Aspiro o ar puro, estremecendo de frio, porém adorando sentir o
cheiro de mato molhado. Deixando a nostalgia tomar conta de mim. Anos
vivendo em outro país são ótimos para nos curar de certas implicâncias.
Agora eu podia concordar com Dorothy: não há nada melhor do que o nosso
lar.
Observo que o carro do meu pai ainda está parado no jardim. Fecho o
vidro da janela antes de congelar e me troco rapidamente, querendo ver Jack
antes de ele ir trabalhar. Como previ, ele está na cozinha e sorri ao me ver.
Meu coração aquece com algo bom, doce e nostálgico.
– Bom dia, pai.
Ele franze a testa.
– Está sorrindo.
Dou de ombros, me servindo de uma xícara de café.
– Por que o espanto?
– Está chovendo. Você costumava acordar de mau humor.
Pego um prato e encho de cereal.
– Acho que estava com saudade de casa.
– Até da chuva, do frio...
– Até disto. O senhor esqueceu que vivi em Londres nos últimos anos.
Lá o tempo também é horrível.
– Ainda acho estranho que tenha escolhido viver lá. Sempre achei que
se fosse mudar de país, seria um lugar como o Brasil. Muito sol o ano inteiro.
Eu rio e encho minha boca de cereal.
– Dormiu bem? – A pergunta feita por cima do jornal parece
inofensiva.
Apenas parece.
– Hum, hum. – Faço sons com a boca cheia. – Alguma notícia
interessante?
– O de sempre. – Jack fecha o jornal e se levanta.
– Já vai? – Há certa decepção na minha voz e, quando o encaro, vejo
incerteza em seu olhar.
Por um momento me parece algo mais que um simples lamento por
ter que ir trabalhar quando eu estou em casa depois de tanto tempo.
A sensação desaparece do mesmo jeito que surgiu.
– Por que não fica comigo na loja hoje?
– Não sou mais adolescente, não pode me obrigar a trabalhar pra você
– meu pai era dono de uma loja de artigos para prática de esportes ao ar livre
no centro da cidade e, antes de eu ir pra faculdade, me obrigava a trabalhar
todas as tardes depois da escola. Algo que eu odiava.
– Vai ficar bem sozinha? – Insiste e eu rolo os olhos.
– O que acha que poderia acontecer?
– Acho que ficará entediada.
– Eu encontrarei algo para me distrair, não se preocupe.
– Deveria ir ver Chris. Ele vai gostar de te ver.
– Eu também. – Respondo sorrindo, me lembrando que parece um
tempo infinito que não vejo Christian Wilson, meu melhor amigo. – Irei vê-lo
quando não estiver chovendo.
E sinto receio de que a expressão, “melhor amigo”, não caiba mais
entre nós. Afinal, fazia dois anos que eu estava fora.
Depois que Jack se vai, fico olhando o carro se distanciando, até
restar apenas o silêncio rivalizando com a chuva lá fora. Luto contra a
sensação de vazio que sua ausência deixa no ar.
Limpo a cozinha. Arrumo meu quarto. Desfaço as malas. Sorrio ao
ver meus velhos livros na estante. Como senti falta deles em Londres.
Folheio as folhas amareladas de meu exemplar do Morro dos Ventos
Uivantes. Talvez eu o leia esta tarde. Ler Bronte para passar o tempo.
Ao terminar de almoçar sozinha, já me perguntando o que farei para
Jack jantar, olho pela janela e noto que a chuva finalmente deu uma trégua.
Animada, visto o casaco e pego as chaves do meu velho jipe.
Dirijo pelas ruas de Beaverton por um tempo. A cidade continua a
mesma, como se estivesse parada no tempo. A livraria dos Johnson, que eu
frequentava muito na minha adolescência parece exatamente igual. Me
pergunto se devo parar e dar um oi. Será que Austin Johnson continua por lá?
Indago-me também se ele ainda tem aquela paixonite adolescente por mim.
Provavelmente não. Sempre achei que ele iria se casar, mais dia menos dia,
com Jane Smith, a garota mais popular da escola. Precisava me lembrar de
pedir ao meu pai para me atualizar sobre as fofocas da cidade.
Depois de passar pelas ruas principais, decido voltar para casa. Se
bem que encarar novamente minha casa vazia, me parece meio deprimente.
Tenho vontade de rir de mim mesma. Desde quando eu me tornei carente
daquele jeito? Sempre fui uma garota independente. Minha mãe morreu
repentinamente de um aneurisma quando eu tinha treze anos e precisei
amadurecer muito cedo.
Então por que agora eu estava sendo tão sentimental?
Deixo meus olhos vagarem através da janela do carro e o verde do
bosque a minha volta parece convidativo.
Quase sedutor.
Obedecendo a uma ânsia repentina, paro o carro no meio fio, com
uma vontade súbita de caminhar. Penetrar no mistério luxuriante da floresta
escura.
As folhas molhadas fazem barulho sob meus pés e eu penetro na
mata. A chuva deixou um cheiro bom no ar.
Cheiro de casa.
Nunca me perdi naqueles bosques, também não me lembro de ter me
embrenhado muito antes. Desta vez, caminho sem intenção de parar. Embora
não tivesse nenhum rumo, era como se, em meu íntimo, eu soubesse aonde
estava indo.
A mata escura, densa e fria me impede de ver o céu, então,
subitamente algo quente e inesperado toca minha pele.
Sol.
Paro estupefata e prendo a respiração. Estou numa clareira no meio da
floresta.
E ali, surpreendentemente, existe luz.
Um sorriso deliciado se forma em meus lábios e eu olho para cima,
adorando sentir os raios esquentando meu rosto frio. Era como o paraíso.
Um paraíso escondido e só meu. Saboreio aquela sensação de ter
descoberto algo especial, enquanto caminho distraída por entre as flores no
chão.
Até que meus pés tropeçam em algo e solto uma imprecação.
Escuto outra voz xingando baixinho e olho para baixo, entre surpresa
e assustada, ao ver que o algo não era uma pedra e sim um cara que agora me
olhava fixamente.
Minha garganta se abre num grito abafado e meu coração dispara
assustado.
Coloco a mão sobre a boca, dando vários passos para trás
automaticamente, me perguntando que diabos um cara estaria fazendo
deitado no chão no meio de uma clareira que até poucos minutos parecia
vazia.
A minha clareira especial.
Ele se senta também me encarando surpreso.
Então, em meio ao meu aturdimento, reparo que o sol pinta seus
cabelos bagunçados com mechas cor de fogo. E que ele tem uma barba
descuidada despontando num rosto bonito. E sua camisa está aberta.
– De onde você saiu? Me assustou! – Recupero minha voz, por fim,
tentando voltar a respirar normalmente.
O estranho está fechando a camisa ainda me encarando.
– Me desculpe, não foi minha intenção... Acho que adormeci... Não
percebi... – ele se levanta.
Eu dou um passo para trás.
– Não se assuste.
Solto uma risada nervosa. Constrangedora. Até onde eu podia saber
aquele estranho podia ser um assassino, psicopata ou tarado em potencial.
Tento não demonstrar meu medo enquanto o estudo e, ao mesmo
tempo, penso se conseguiria correr se precisasse.
O que era uma piada. Do jeito que eu era desastrada, provavelmente
cairia na primeira curva.
– Eu realmente não a vi se aproximando. Desculpe-me. – A voz é
bonita. Tenho que admitir.
Bom, ele todo é bonito.
Com seu cabelo castanho claro perfeitamente bagunçado e barba por
fazer. Ele agora veste um casaco por cima da camisa. Roupas simples, que
caem perfeitamente sobre seu físico.
Perfeito. É a palavra que salta em minha mente.
– O que faz aqui sozinho? – Indago desconfiada, ainda tentando
avaliar se ele não era um serial killer.
Ele sorri.
E de repente eu estou fascinada.
Deus do céu.
Mordo os lábios com força para não suspirar.
– Eu sempre venho aqui.
– Ah... eu... – Tento organizar meus pensamentos caóticos. – Estava
caminhando... nunca tinha visto esse lugar... fiquei... fascinada pelo sol.
Seu sorriso se alarga e eu sinto em meu estômago.
E sim, agora eu sinto medo. Não mais dele. E sim de mim.
Eu estou no meio de uma floresta, conversando com um estranho há
cinco minutos e me sinto fascinada.
– Eu também me sinto fascinado. – As palavras dele parecem fazer
eco com meus pensamentos e, por um momento louco, eu acho que está
falando de mim, até entender que está se referindo certamente à clareira.
– É lindo. – Murmuro.
“Você é lindo.”
Ele passa os dedos por entre as mechas quase claras sob o sol.
Fecho minhas mãos, tamanha é a vontade de fazer o mesmo.
– É meu esconderijo. – Ele diz, eu dou uma risada sem graça.
– E eu achando que tinha conseguido um esconderijo para mim.
– Podemos dividir.
Ah, eu gostaria muito, admito, com vontade de rir feito uma colegial
boba e não como a pessoa adulta de 22 anos que sou.
– Tudo bem... Não sei se conseguiria encontrar o caminho de novo...
na verdade não tenho certeza se acharei o caminho de volta...
Ele ri.
E eu estremeço. Ok, já está ficando patético.
O pior é que não sinto a menor vontade de parar seja lá o que tenha
começado.
– Bom, eu posso te ajudar nesta parte, te acompanhando de volta.
Mil negativas passam pela minha mente, todos os motivos pelos quais
não era nem um pouco seguro aceitar a companhia de um estranho naquela
floresta. Acabo jogando fora todas elas.
E fico com o perigo.
Naquele momento eu me sinto bem atraída pelo perigo, na verdade.
– Ok.
Seu sorriso é algo deliciosamente inebriante enquanto se aproxima e
eu prendo a respiração.
– Acho que não me apresentei... Ian Callaghan.
Eu seguro sua mão estendida em minha direção. É
surpreendentemente macia.
Ele não era um lenhador, certamente. Aquela não era a mão de um
trabalhador braçal. E eu não sei por que pensei que ele era um. Talvez por
estar bem a vontade no meio do mato. Ou pela barba. Ou os ombros largos.
Eu recolho minha mão e meus pensamentos bobos.
– Julia Simmons.
Começamos a andar lado a lado. Ainda sinto meus dedos formigando
onde ele tocou.
Quero formigar inteira.
Saímos da clareira e adentramos na floresta escura. Quase sinto uma
tristeza infinita por estar deixando-a para trás.
Um vazio inexplicável.
– Como descobriu este lugar?
– Caminhando.
Eu o encaro de soslaio. Minhas mãos estão no bolso e eu caminho
com cuidado com medo de cair.
– Você mora em Beaverton? Achei que conhecesse todo mundo da
cidade...
– Não. Meus pais moram. Há alguns anos nos mudamos pra cá, eu
estava em Corvallis fazendo faculdade.
– Mora aqui agora? – Tenho vontade de morder a língua por estar
sendo tão curiosa.
Dane-se, eu preciso saber. Sinto que preciso saber tudo sobre Ian
Callaghan.
– Por enquanto... – ele deixa no ar e eu sinto como se ele não quisesse
falar sobre esse assunto.
Ou não quisesse falar comigo.
– E você? Nunca a vi por aqui.
– Eu estava na Inglaterra estudando.
– Voltou pra ficar?
Dou de ombros. Também deixando no ar.
Realmente não sabia o que ia fazer. Ficar em Beaverton nunca foi
uma opção aceitável pra mim. Estranhamente desde que eu voltei me sentia
meio diferente.
E agora...
Agora era o lugar onde morava Ian Callaghan.
Por enquanto.
De repente Beaverton me pareceu cheia de possibilidades.
Uma chuva fina começa a cair de repente e eu me encolho dentro do
meu moletom fino.
– Devia estar usando um casaco.
– Está no meu carro.
Ele tira o próprio casaco.
– Não, não precisa...
– Vai congelar.
– E você também.
– Eu insisto.
Eu pego o casaco relutante e o visto. Tem um cheiro gostoso.
Cedro e homem.
Único.
Contenho a vontade de levar o tecido ao nariz e cheirar Ian Callaghan.
– Obrigada...
– Não deveria andar sozinha por aqui. – Ele diz e eu o encaro com
ironia.
– Se você pode, eu também posso. E, por favor, não diga “mas eu sou
um homem”.
Ele ri.
– Pode ser perigoso. Eu conheço este lugar.
– Eu também. Morei minha vida inteira na cidade. Eu e... – Eu ia
dizer “eu e Chris”, algo me fez parar. Por algum motivo eu não queria citar
outro cara para Ian. Mesmo sendo apenas meu amigo. – Eu e meu pai às
vezes também fazemos caminhadas pela floresta.
– Jack Simmons.
Eu o encaro surpresa.
– Conhece meu pai?
– Todos conhecem. Não é o dono da Simmons Artigos Esportivos?
– E será que eu conheço seus pais?
De novo sei que estou sendo curiosa, mas não me contenho.
– Acho que não – responde evasivo.
Avisto meu jipe parado no meio fio e sinto pesar por meu encontro
com Ian Callaghan estar chegando ao fim.
Procuro maneiras de prolongar aquele momento. Quero parar o tempo
e segurá-lo comigo para sempre.
– É seu carro? – Detecto certa desaprovação na sua voz o que me
irrita um pouco. Levanto o queixo em desafio.
– Sim, é meu jipe.
– Ele funciona direito?
Agora eu fecho a cara.
– Quer uma carona? Poderá comprovar que ele é melhor que muito
carro novo que circula por aí.
Ian ri.
E eu descubro que é impossível me manter irritada quando ele sorri
daquele jeito. Com duas lindas covinhas por entre a barba clara.
Eu tenho simplesmente vontade de ficar na ponta dos pés e devorar
seu sorriso com minha boca.
– Não, prefiro caminhar.
– Tem certeza? Está começando a chover... – tenho consciência que
estou meio que implorando, neste momento eu não tenho muito senso de
proteção.
Talvez mais tarde eu pense e me arrependa, ardendo de vergonha,
porém agora...
Eu quero apenas que não acabe.
– Tenho sim... – ele abre a porta do carro pra mim.
Me parece bem cavalheiro. Eu gosto. Gosto de muitas coisas em Ian
Callaghan.
Entro no meu jipe e ele fecha a porta.
Por um instante não falamos nada. Como se realmente o tempo
tivesse parado. Ele me parece perfeito sob a chuva fina, que molha seu cabelo
incrível.
Dou partida, rezando para que meu velho jipe não me deixe na mão.
– Até mais... Ian Callaghan. – Murmuro.
– Adeus... Julia Simmons. – Ele diz por cima do barulho do motor
velho, enquanto deslizo pela estrada molhada.
Fico olhando sua imagem ir diminuindo no espelho retrovisor. Suas
palavras parecem inadequadas pra mim. Ele disse Adeus. Como se não
fôssemos nos ver de novo. Um pequeno sorriso se forma em meus lábios.
Nós nos veríamos novamente.
Eu me certificaria disto.
Capítulo 2

Não sei bem o que me fez mudar ligeiramente o caminho e, em vez de


ir para minha casa, dirigi até a casa de Chris. O vento frio atinge meu rosto e
bagunça meus cabelos quando salto em frente à velha casa de fazenda.
Um rapaz moreno sai de dentro do galpão adjacente, limpando as
mãos no jeans velho. Ele parece não acreditar quando me vê então um sorriso
surpreso e feliz se distende em seu rosto bonito.
Em alguns segundos sou erguida do chão por um abraço de urso e
girada no ar.
– Não acredito que está aqui!
– E em breve estarei morta se não parar de me apertar! – Brinco,
quando ele finalmente me põe no chão e me encara com o sorriso brilhante.
Estou feliz. E não me importo de ele não me soltar.
– Finalmente voltou para casa, Jules.
– Claro que sim! Fala como se eu estivesse...
– Do outro lado do mundo?
Eu rolo os olhos.
– Se sentiu tanto minha falta devia ter ido me visitar.
– Não, obrigado. Preferia que não tivesse ido...
– Agora estou de volta.
Parece um diálogo estranho.
Eu me sinto estranha de repente.
– Você está bem? – Seus olhos sondam meu rosto.
– Por que não estaria?
– Não te vejo faz tempo.
– Estou de volta.
Seus braços me apertam um pouco mais antes de me soltar.
– Eu sei.
Uma chuva fina começa a cair.
– Vamos entrar.
– Não, vamos caminhar. – Coloco meu capuz e começo a andar.
– Sempre procurando o perigo... – Chris ri, se colocando ao meu lado
enquanto caminhamos.
Aperto a blusa de Ian Callaghan contra meu corpo. Pensar nele parece
esquisito estando com Chris. E eu não sei por quê. Uma coisa não tem nada a
ver com a outra.
Chris é meu amigo. E Ian é...
É o quê?
Eu respiro fundo e me concentro no momento. Esquecendo o cara
misterioso da clareira por um tempo.
Pergunto a Chris sobre seus pais e irmãs. Ele responde a tudo e então
me lança um olhar entre curioso e ressabiado. Eu quase adivinho sua
pergunta.
– E aí, encontrou algum cara lá na terra da rainha?
– Nenhum como você.
– Não sei se encaro como um elogio ou...
– Sabe que eu não estava lá para conhecer ninguém.
– Estas coisas não avisam antes de acontecer.
– E você, conheceu alguém?
– Nenhuma como você. – E seu olhar é penetrante e eu sei que ele não
está brincando como eu.
Está falando sério. Desvio o olhar, ligeiramente incomodada. Na
minha mente me vem uma declaração de amor e um beijo roubado. Jogo para
o fundo da memória. Onde deve ficar.
– Que você pretende fazer? – Fico grata com a mudança de assunto.
– Eu não sei. – Paramos em frente à árvore onde subimos tantas vezes
e sentamos. - Neste momento sou como uma folha levada pelo vento.
– O vento te trouxe de volta para cá. Talvez devesse se segurar nesta
árvore.
Eu sorrio e passo os dedos pelo tronco velho, onde nossos nomes
foram escritos há tanto tempo que nem me lembro mais quando foi.
– Ainda tem nossos nomes.
– Aqui continua sendo sua casa.
Será?
E eu me pergunto se posso fazer de Beaverton minha casa de novo.
Ian Callaghan volta a minha mente. Tenho vontade de perguntar a
Chris se ele o conhece, mas me calo. Não quero dividi-lo por enquanto.

***

Anoitece quando finalmente estaciono em frente a minha casa.


O telefone toca insistentemente e eu corro para atender.
– Julia, é Carla!
– Carla! Que bom que ligou. – Digo realmente feliz.
Carla e Jane eram minhas amigas do tempo de colégio e, como tudo
em Beaverton, tinham ficado para trás.
Ela parece a mesma pessoa. Simpática e animada, enquanto faz as
mesmas perguntas que eu acredito ouvirei muito dali pra frente. Como foi em
Londres, se vou ficar em Beaverton...
A primeira pergunta é fácil de responder. Já a segunda eu não sei
responder nem pra mim.
E eu acabo dizendo isto a Carla, que ri compreensiva.
– Vamos sair amanhã? Podemos tomar um café, conversar com mais
calma.
– Claro, eu adoraria.
Depois de marcarmos de ela passar na tarde seguinte para me pegar,
desligo e subo para me trocar. Ainda tenho que preparar o jantar antes que
Jack chegue.
Hesito ao tirar a blusa de Ian Callaghan. Será que o verei de novo? Eu
quase estou ansiosa demais com a possibilidade.
Meu pai fica imensamente aliviado ao comer de novo a minha comida
e não a sua própria e eu fico satisfeita. Gosto de cozinhar para Jack, fico
imaginando como é que ele sobreviveu dois anos sem mim. Enquanto
estamos sentados na sala depois do jantar Jack toma sua cerveja assistindo
jogo, enquanto eu o observo. Parece o mesmo Jack de sempre. Talvez alguns
cabelos brancos se olhar mais de perto. Será que ele nunca pensou em se
casar de novo? Faz muito tempo que minha mãe morreu e nunca vi Jack com
ninguém. Obviamente ele deve sair com alguém, aparentemente nada sério.
Ele nunca me apresentou nenhuma namorada.
Talvez seja este meu destino. Ficar com Jack.
– Está vendo algum cabelo branco? – Ele resmunga ao me pegar o
encarando.
Eu sorrio.
– Vários na verdade.
– Devia sair, em vez de ficar aqui contando os cabelos brancos do seu
velho.
– Eu fui até a fazenda dos Wilson hoje.
– Ah é? Aposto que Chris ficou feliz em te ver.
– Eu também fiquei feliz em vê-lo.
– Por que não liga pra ele? Podiam ir dar uma volta.
Franzo a testa.
– Ainda tentando me jogar para cima de Chris?
Jack fica surpreendentemente vermelho.
– Por que não?
– Somos apenas amigos, pai! Já devia ter percebido!
– E daí? Muita coisa pode surgir de uma amizade...
Eu rolo os olhos e me levanto.
– Achei que este papo tivesse ficado na minha adolescência... – eu me
aproximo e o beijo no rosto. - Vou dormir, boa noite pai.
– Boa noite, Jules.
Na porta eu me viro.
– Pai?
– Sim?
– Você conhece... – Eu ia perguntar se ele conhece Ian Callaghan. De
repente acho que não será uma boa perguntar a ele.
– Conheço quem?
– Nada... ninguém.
Subo para o quarto e vou até a janela. A noite está escura e gelada.
Estremeço de frio, enquanto me preparo para fechar o vidro então paro
intrigada.
Tenho a impressão de ver um movimento perto das árvores. A noite
continua silenciosa. Provavelmente apenas o vento.
Fecho a janela e vou dormir.
Naquela noite eu sonho com Ian Callaghan.
Há sol acima de nós e estamos na clareira. Seus olhos verdes fixos
nos meus. Ele está tão perto que sinto seu hálito quente.
Aspiro. Ele respira dentro da minha boca.
Acordo ofegante. Frustrada. Ele não me beijou no sonho. Quase posso
rir de mim mesma. Talvez devesse me preocupar. Estou desenvolvendo uma
leve obsessão por Ian Callaghan.

***

Carla chega na hora combinada parecendo genuinamente feliz em me


ver.
– Você ainda é a mesma Julia. – Comenta enquanto estamos sentadas
no café. – Com estes cabelos longos fabulosos. Continuo sentindo inveja.
Eu rio, sacudindo meu cabelo castanho escuro que vai até minhas
costas.
– Você também não mudou nada.
– Não diga isso. Fala que eu mudei pra melhor. Não reparou que não
uso mais aqueles óculos horrendos?
– Sim, reparei.
– Uso lentes agora.
– Como vai Brad?
Ela me conta sobre seu namorado que está cursando direito em Yale e
virá para as férias em breve. Enquanto ela descreve sua ansiedade por vê-lo e
todos os planos que eles têm para quando Brad voltar, me vejo sentindo
inveja de Carla. Eu não sou uma pessoa invejosa, mas Carla parece tão feliz
com sua vida. Tão completa. Tão certa de seu futuro.
Ela tem alguém.
Este pensamento me incomoda. E eu fico aliviada quando vejo Austin
Johnson entrando no café, me distraindo dos pensamentos sombrios.
– Olhe, não é Austin Johnson?
– Sim, é ele.
– Ele ainda namora a Jane?
– Jane está em Portland. Eles ficam de vez em quando, acho que
nunca vai dar em nada! Jane não se decide... vai acabar perdendo-o de vez.
– Sempre acreditei que eles ficariam juntos.
– Eu também...
Ela acena para Austin e ele vem em nossa direção.
Austin Johnson parece ligeiramente mais gordo e abre um grande
sorriso quando me vê.
– Olha só, Julia Simmons!
Nos abraçamos como velhos amigos e eu tento fingir que Austin não
me mede com interesse mais do que amigável.
Então isto também não mudou?
– Você está... ótima.
– Obrigada. – Reparo que Carla tem um olhar malicioso.
– E aí, veio passar férias ou...
– Por enquanto apenas férias, veremos...
Eu e Carla nos despedimos depois de um tempo e Austin diz que vai
me ligar.
– Vamos marcar um cinema...
– Claro... vai ser legal, né Carla?
Carla que percebe minha manobra, não se esquiva.
– Vamos marcar no fim de semana que Brad estiver na cidade!
– Combinado então. – Austin concorda desanimado e, de repente, me
encara meio sério. – E Julia... espero que...
– Vamos, Julia. – Carla me puxa antes que Austin consiga dizer seja
lá o que queria dizer.
O vento frio nos atinge em cheio no estacionamento.
Carla está rindo enquanto caminhamos para o carro.
– Austin parece voltar a ter 13 anos quando te vê!
– Ai, Deus, e eu achei que tivesse passado junto com as espinhas!
Nós duas rimos e então eu paro, com a mão na maçaneta.
Uma picape preta está estacionando a alguns metros. E de dentro sai
Ian Callaghan.
Meu interior se agita inteiro.
Ele caminha pelo estacionamento em direção ao café. Carla
acompanha meu olhar. Eu não estou prestando atenção a mais nada.
Murmuro um “espere um minuto, Carla”, enquanto corro atrás de Ian.
– Ian, espere!
Ele se vira e parece muito surpreso quando me vê.
Na verdade, surpreso talvez não seja o adjetivo correto.
Eu o alcanço ofegante.
– E aí... tudo bem? – O cumprimento com um sorriso trêmulo nos
lábios.
Eu não havia imaginado. Ele é realmente lindo.
Ainda me deslumbra.
– Oi.
Apenas isto. O rosto perfeito está sério.
Distante.
Meu coração dói.
– Preciso devolver sua blusa. – Digo, meio sem graça.
Imagino meu rosto corado. Meu sorriso idiota.
– Pode ficar, tenho várias iguais.
– Oh... – meu sorriso congela no rosto.
Agora estou vermelha não mais de excitação. E sim de consternação.
Quem diabos era aquele cara estranho? Ele foi tão gentil comigo na
clareia e agora...
Está me tratando friamente.
– Não, eu preciso mesmo devolver. – Falo no mesmo tom.
– Ian?
Ele se vira quando a voz feminina chama seu nome.
Eu olho através dele. Não estou preparada para a onda de ciúme que
me toma ao ver a mulher perfeita que sai do carro. O vento sacode uma juba
castanho clara com mechas loiras estratégicas. Ela me encara com seus olhos
verdes bem maquiados como se eu fosse um ser rastejante que gostaria de
esmagar com seus saltos finos.
– Já vou. – Ian me encara novamente.
Ainda distante.
Agora eu me pergunto quando foi que eu sonhei que um dia ele
estaria a meu alcance.
Fico esperando que ele diga alguma coisa. Qualquer coisa.
Ele simplesmente acena com a cabeça e se afasta. Entra no café com a
linda garota. Os dois parecem perfeitos juntos.
Tenho vontade de chorar e isto me assusta.
– Julia? – Carla continua no mesmo lugar.
Eu a encaro e ela tem o semblante grave.
– Tudo bem?
– Claro. – Respondo, tentando soar realmente tranquila, enquanto dou
a volta para entrar no carro. – Vamos?
– Você os conhece? – Pergunto depois de um tempo.
Ainda me sinto meio chocada com a cena no estacionamento.
– Os Callaghan? Casualmente... – Carla responde. – E você... conhece
o Ian? – Ela pergunta como se fosse algo muito absurdo eu, Julia Simmons,
ter alguma amizade com Ian Callaghan.
– Eu o conheci ontem... – conto a ela a versão resumida da clareira.
– Entendo... – ela mantém o rosto fixo na estrada.
– Aquela moça... é a namorada dele?
– Rebecca? Não! É irmã.
– Ah... – sinto um alívio desoprimir meu peito.
Quero perguntar mais. Quero perguntar tudo.
Se fosse Jane em vez de Carla com certeza já estaria me contando
toda a árvore genealógica dos Callaghan.
– Eles moram há muito tempo na cidade?
– Uns três anos. Compraram a propriedade ao lado dos Wilson.
– A casa dos Robinson? – Ester e Lois Robinson eram dois artistas
plásticos excêntricos de meia idade e tinham a propriedade mais linda da
região. Quando era criança e ia brincar com Chris, nós adorávamos fugir para
a casa dos Robinson para admirar as esculturas nos jardins.
– Ester se mudou para Portland depois que Lois morreu.
– Lois morreu?
– Já faz quatro anos, Julia!
– Ah... eu não me lembrava – murmuro, aturdida, Carla sorri
compreensiva.
– Tudo bem. Enfim, os Callaghan moram lá agora.
– Ian me disse que fez faculdade em Corvallis.
– Sei... – eu espero que ela continue, Carla não fala mais nada até que
me deixa em frente a minha casa.
– Me liga, ok?
– Sim, ainda temos que marcar o cinema com Austin. – Brinco e ela
ri.
– Com certeza! Encontro duplo!
Eu rolo os olhos.
– Que Jane nunca te ouça dizer isto!
– Deus me livre! – Ela ri e eu salto.
Quando entro em casa, me surpreendo ao ver Jack e Chris sentados à
mesa.
Eles param de falar quando me veem.
– Chris! Por que não me avisou que viria? – Pergunto, tirando o
casaco.
– Estava passando.
Eu finjo que acredito.
– E você pai, não está cedo para estar em casa?
– Não tão cedo... Como foi o passeio com a Carla?
– Ótimo.
“Encontrei o cara por quem estou obcecada e ele me tratou feito lixo,
mas tudo bem.”
Tento não pensar nisto e muito menos falar enquanto preparo o jantar.
Jack convida Chris pra ficar e eu gosto. Distrações. Preciso muito
delas no momento.
Depois do jantar, Chris pergunta se quero dar uma volta e eu digo que
não.
– Estou marcando um cinema com Austin Johnson, Carla e o
namorado... você está convidado, claro.
– Austin Johnson?
Eu me lembro que Chris não gostava muito de Austin.
– Não me diga que ainda não vai com a cara dele?
– Ele continua o mesmo babaca de sempre.
– Não fala assim. Ele é legal.
– Ele era a fim de você...
– Coisa de adolescente. – Desconverso.
Chris não parece muito convencido.
Depois que ele vai embora, resmungo alguma desculpa a Jack e subo
para meu quarto.
A blusa de Ian continua lá.
Lembro-me de como ele me tratou hoje. Fico tão intrigada... E até um
pouco irritada. Será que vai ser assim? Nos encontraremos casualmente pela
cidade e ele vai me ignorar ou me tratar friamente como se eu não fosse
nada?
Bem, eu realmente não era nada!
E talvez estivesse sendo ridícula. Fiquei deslumbrada por um cara
desconhecido. Um estranho. Que não tinha o menor interesse em mim. Fim
da história.
Cansada, pego a blusa e a dobro, colocando-a numa sacola. Ian pode
ter dito que possuía várias, eu ia devolver assim mesmo. Não quero nada que
me lembre dele.
E depois, eu nem me lembraria de sua existência.
O difícil era dizer isso ao meu subconsciente.
Desta vez sonho que estou caminhando pela floresta densa e escura e
tento chegar à clareira. Nunca consigo. E meu coração se despedaça, porque
eu sei que não vou chegar a lugar nenhum.

No dia seguinte, depois que Jack sai, entro no carro e pego o caminho
da antiga propriedade dos Robinson. Não quero pensar muito no que estou
fazendo enquanto dirijo pelas estradas molhadas de Beaverton.
A casa continua linda, toda rodeada pelo jardim de esculturas verdes
de árvores. Respiro fundo e apanho a sacola. Toco a campainha e espero um
longo tempo. Até me dar conta de que não há ninguém ali. Dou a volta pela
casa. Espio lá dentro como um ladrão curioso. Não há menor sinal de vida.
Mesmo assim, largo a sacola na porta da frente da casa.
E, naquela noite, eu finalmente tenho coragem de perguntar a Jack.
– Conhece os Callaghan?
Tento parecer casual, enquanto jantamos. Jack para e me encara com
a testa franzida.
– O que tem os Callaghan?
– Nada... vi dois deles na loja dos Johnson outro dia... Ian e Rebecca...
– E por que o interesse?
– Oras não os conheço! Carla comentou que eles se mudaram para a
casa dos Robinson. Fiquei curiosa, só isto...
– O que mais Carla disse? Este povo da cidade fala demais...
– E o que há para dizer? Alguma fofoca?
– Claro que não, Julia! – Jack parece irritado.
Ele volta a comer e eu acho que deu o assunto por encerrado, então
ele volta a falar depois de um tempo.
– Alan Callaghan é um congressista aposentado. Você não é muito
ligada em política por isto nunca deve ter ouvido falar da família Callaghan.
Eles vêm de uma longa linhagem política. A esposa de Alan, Jill, é uma
mulher muito digna. Gosta de decoração e jardinagem. Eles têm três filhos,
os gêmeos Ian e Rebecca a mais jovem ainda é adolescente, Tess.
– E o tal... Ian? Ouvi dizer que ele fez faculdade em Corvallis, ele
mora na cidade agora?
– Não sei Julia, quanta pergunta!
Eu não falo mais nada. Para quem quer fingir que Ian Callaghan
nunca existiu estou muito curiosa sobre sua vida. Preciso começar a agir
como adulta e esquecer esta paixonite sem sentido.
Ian Callaghan não é pra mim. Ele deixou bem claro.
Carla aparece no dia seguinte.
– Oi, e aí, o que anda fazendo?
Dou de ombros.
– Nada... lendo... cuidando de Jack... Vendo Chris...
– Chris Wilson? Ainda são amigos... – Ela parece muito espantada.
– Por que não?
Ela fica vermelha.
– Nada, é que... passou tanto tempo fora...
– Eu também fiquei meio na dúvida se as coisas seriam as mesmas,
meus receios foram infundados. Ainda somos amigos.
– Ele gostava de você né?
Eu suspiro. Sim, eu havia confessado muitas coisas a Carla, me
recordo agora.
– Foi há tanto tempo...
– Bom, eu só fico preocupada...
– Esquece Carla.
– Tudo bem, na verdade eu vim te fazer uma proposta.
– Proposta?
– Sim. Então, você sabe que estou dando aulas no Beaverton High
School.
Carla havia se formado em Biologia. Era engraçado pensar nela dando
aula no mesmo colégio em que estudamos.
– Sei, me contou ontem.
– Eles estão precisando de um professor substituto de literatura. Eu
indiquei você.
– Eu? Nunca dei aula, Carla!
– Eles sabem que acabou de se formar... como está sem fazer nada...
Mordo os lábios, pensativa.
– Eu não sei...
– Vai ser legal! Vamos trabalhar juntas!
– Não sei se quero ficar...
– É temporário. E se decidir ficar... quem sabe? Pode conseguir a
vaga efetiva. Marquei com o diretor amanhã, ok? Vá, converse com ele, por
favor.
– Tudo bem. Eu vou.
Carla bate palmas, animada.
– Vou adorar você lá!
Eu começo a me empolgar também.
No dia seguinte estou contratada. E estou realmente entusiasmada
com a perspectiva, apesar de ser temporária. Chris me espera em casa e eu
conto a ele meus planos.
– Então vai ficar?
– Não foi o que disse. É temporário...
– Bom, pode acabar gostando.
Eu dou de ombros.
– Vamos entrar?
– Pensei em darmos uma volta.
– Claro.
Entro no carro dele e, enquanto ele dirige, eu me lembro de quando
andávamos de moto.
Chris ri quando eu conto.
– Achei que seu pai fosse me matar quando descobriu.
– Ele estava mais propenso a me matar. Nunca fiquei tanto tempo de
castigo.
– Ficou sim...
– Fiquei não... ou não me lembro... – franzo a testa forçando meus
pensamentos.
– Esquece, acho que foi seu maior castigo mesmo!
– Culpa sua! Me levava para o mau caminho.
– Nunca te levei pro mau caminho naquela época... – suas palavras
são carregadas de certa malícia e eu desvio o olhar.
Me recordo dos temores de Carla.
– Uau. – Exclamo de repente, olhando para o penhasco que beira o
rio. A vista da cachoeira é espetacular – Nunca me canso de olhar, é tão
lindo.
– Sim...
– Lembra quando eu queria pular? Você nunca deixou.
– Você sempre buscou o perigo... depois fica dizendo que era eu que
te levava pro mau caminho!
– Você sempre me protegeu na verdade... – murmuro.
Ficamos em silêncio e eu penso naqueles dias.
Eles não voltarão mais. É um pouco triste.
Éramos inocentes. Uma inocência que não existe mais.
De repente fico atenta ao reconhecer o lugar por onde estamos
passando. É a estrada que leva à casa dos Callaghan.
Fico tensa. Quando passamos em frente à propriedade, eu não consigo
deixar de comentar.
– A casa parece vazia...
– Eles foram embora. - Chris diz friamente.
Há satisfação em sua voz.
– Pra sempre? – Murmuro.
– Não faço ideia. Já foram tarde...
A casa fica para trás. E eu sinto um pesar profundo.

***
Os dias passam arrastados.
De manhã eu dou aula. Passo as tardes com Chris e as noites com
Jack. O namorado de Carla aparece e, como combinado, vamos ao cinema.
Convido Chris, ele e Austin passam a noite inteira trocando farpas. Seria
engraçado, se eu não estivesse começando a me preocupar com Chris.
As coisas são diferentes agora e eu não tenho mais como negar. O
jeito que ele me olha como se ansiasse por algo... como se esperasse algo me
assusta. Não deveria. É Chris, meu melhor amigo desde sempre.
E está apaixonado por mim.
O que devo fazer?
Me afastar de vez é impossível. Me aproximar não parece certo.
– Quero te levar pra jantar amanhã.
Eu e Chris estamos na varanda da minha casa. Jantamos com Jack que
agora assiste a um programa de pesca na TV.
Eu mordo os lábios, indecisa.
– Não gosta da minha comida? – Tento levar na brincadeira, Chris
não ri.
– Estou te chamando para um encontro.
Lá está. O que eu esperava. O que eu temia.
– Não sei o que dizer. – Confesso.
– Diz sim.
– Chris...
– Não quero te pressionar. – Sua mão segura a minha. - Eu não vou te
pressionar. – Garante com firmeza e eu acredito.
E por que não? Me recordo de Carla e Brad. Da inveja que sinto.
Daquele anseio profundo de querer o mesmo pra mim. De sentir falta de algo
que nem sei o que é.
– Tudo bem. – Aceito e ele sorri.
– Boa noite, Jules – Ele se despede e vai embora.
Ele parece feliz. Eu fico feliz por ele.
Não por mim.
O que me faz sentir culpa. Porque, quando fecho os olhos na minha
cama, não é em Chris que eu penso. E sim num cara de olhos verdes e
cabelos bagunçados pelo vento.
Um cara que nem existe mais pra mim.
Quando acordo no dia seguinte e abro a janela, ainda sonolenta e
vestindo pijamas, levo um susto ao ver uma picape preta parada na minha
porta.
E em frente a ela, Ian Callaghan me encara, alheio à chuva fina e fria.
Capítulo 3

Por um momento eu acho que ainda estou sonhando.


Realmente não parecia possível que, depois de me tratar tão friamente
como se lamentasse muito ter me conhecido e desaparecer por dias sem
deixar rastro, Ian Callaghan estivesse defronte a minha casa.
Mas ele está.
Sinto meu coração bater disparado no peito, um calor esquentar meu
rosto, apesar do frio.
Não sei o que fazer.
Quero fechar a janela na sua cara e ignorar sua presença. Quero correr
em sua direção e pedir que ele me beije. Não consigo me mexer para fazer
uma coisa nem outra.
Consigo apenas ficar ali, deslumbrada com sua presença.
Então ele sorri. E sinto meu estômago sendo sugado.
– Vai descer ou quer que eu suba pela sua janela?
Respiro fundo antes de responder.
– Eu desço. – Respondo rápido.
Com medo que ele desista e vá embora.
De vez.
Não estou preparada para que aconteça de novo.
Saio da janela e desço as escadas pulando os degraus. Nem sei como
não caio ao abrir a porta e vê-lo de perto.
Ao meu alcance.
– Oi.
Ele parece mais lindo do que antes.
– O que faz aqui? – Pergunto ainda perplexa.
Ele dá de ombros, desvia o rosto. Como se pensando numa resposta.
Acho que nem me importo mais com os porquês.
Só quero que ele não vá embora.
– Parece surpresa.
– Você sumiu.
– Tive que viajar.
– Fui a sua casa.
Ele franze a testa.
– Realmente?
Dou de ombros, ruborizada.
Agora ele vai achar que sou uma stalker maluca.
– Fui devolver a blusa. – Minto. – Não havia ninguém.
– Todos nós viajamos.
– Parecia... que não ia voltar nunca mais. – Tento engolir de volta
minhas palavras, é tarde.
Cada vez mais me afundo.
– Enfim... – Quero parecer prática e desinteressada. – Deixei sua
blusa lá, não sabia o que fazer.
– Podia ter ficado com ela. Como um presente.
– Não, obrigada. Não quero presentes.
Ele sorri.
Derreto mais um pouco.
Me mexo sem saber o que fazer com os arrepios no meu corpo.
– A que devo sua visita? – Indago num murmúrio.
– Vim te convidar para dar uma volta comigo. Achei que tivesse
gostado da clareira. Ver um pouco de sol.
Abro a boca várias vezes surpresa.
– Está falando sério?
Sei que pareço uma idiota, porém este cara me confunde demais.
Ele sorri. Mais arrepios.
– A menos que não queira ir. – Ele fica sério de repente. – Se tiver
outro compromisso.
– Não. – Respondo rápido. – Eu vou... trocar de roupa e...
Ele parece relaxar de novo.
– Tudo bem. Eu espero.
– Eu vou... subir. Se quiser entrar e esperar...
Ele entra e eu fecho a porta.
Ian Callaghan é tão perfeito que parece muito estranho tê-lo ali na
minha simples casa.
– Não vou demorar. – Prometo, ainda com aquele medo idiota de que
ele desista por algum motivo.
Subo as escadas correndo e troco de roupa rapidamente.
Olho-me no espelho enquanto escovo os dentes, lançando um olhar
crítico ao meu jeans e suéter. Nada bonito ou glamoroso. Teria que servir.
Afinal, era só uma caminhada não era?
Sinto borboletas em meu estômago quando finalmente desço e ele
ainda está me esperando.
Na minha cozinha.
E encaro a mesa surpresa, ao ver que preparou um prato de cereal pra
mim.
– Achei que devia comer antes de sair.
– Não precisava ter feito isto. – Digo sem graça.
– Sente-se e coma, Julia Simmons.
Eu faço o que ele pediu.
E, enquanto como com Ian Callaghan me observando, fico achando
que perdi alguma coisa.
Aquele é o mesmo cara que me tratou feito lixo há alguns dias. Agora
está ali todo fofo na minha cozinha, me chamando pra sair e fazendo cereal
pra mim.
Sei que deveria estar lhe fazendo perguntas neste momento. Só não
consigo sair daquele estado de contentamento quase ilusório que a presença
dele me causa. Então apenas me apresso a comer e depois saímos para a
manhã fria.
Ele abre a porta do carro pra mim e eu deslizo para dentro. Dou um
pulo de susto ao ouvir um latido vindo do banco de trás.
Ian ri, sentando ao meu lado e eu olho para trás vendo um cachorro
me encarando.
– Este é Apolo.
– Você trouxe um cachorro – murmuro aturdida, enquanto ele liga o
som e uma música clássica surge no rádio.
– Se não gostar pode mudar. – Ele diz enquanto coloca o carro em
movimento.
– Eu gosto. – Respondo ainda olhando desconfiada para o cachorro.
– Não assuste Julia, Apolo.
– Não estou assustada – minto
Espio o tempo pela janela, tentando não ficar olhando pra ele, como
gostaria de fazer.
E me pergunto quantas coisas teríamos em comum. A julgar pelo
carro supercaro, a casa maravilhosa e os parentes finos, acho que não muito.
Tento não me sentir deprimida.
Ele está ali. É o que importa. Ele voltou porque deve gostar de mim.
Pelo menos um pouquinho.
Ian para o veículo na estrada e saltamos.
Me preocupo em me manter de pé sem escorregar enquanto
caminhamos. Não tenho muito sucesso, nos primeiros passos escorrego num
musgo. Ian ri e eu me sinto mais desajeitada do que nunca.
Apolo nos segue alegremente como se fosse muito acostumado a
fazer aquele caminho.
– Me dê a mão. – Ian estende a mão que eu seguro sem hesitar.
Seus dedos se fecham em volta dos meus.
Não quero soltá-los nunca mais.
A caminhada parece fácil com Ian me guiando. E chego a desejar que
o caminho não tenha fim.
Então chegamos à clareira que é como eu me lembro.
Linda e iluminada.
– Adoro este lugar... – murmuro, enquanto Ian me guia por entre as
folhas no chão.
– Eu também. Gosto de vir aqui para ficar sozinho.
– Oh... então por que me trouxe?
– Eu disse que íamos dividir, não disse?
E seu sorriso é tão maravilhoso que sorrio de volta.
Suspirando.
– Tem certeza que não estragarei seu “lugar de ficar sozinho”?
– Eu quis dizer que gosto daqui pra me afastar um pouco da minha
casa, da minha família.
O encaro curiosa.
Ele me faz sentar e se acomoda ao meu lado. Apolo deita diante de
nós.
Quero fazer mais perguntas.
Quero saber tudo sobre ele sem parecer curiosa demais.
– Bom, fiquei sabendo que tem duas irmãs... deve ser divertido.
– Divertido ou sufocante. Depende do momento.
– Me contaram que seu pai era um político famoso ou algo assim.
Fico vermelha quando ele me encara com um ar divertido.
– Andou me investigando.
Dou de ombros.
– Todo mundo conhece vocês na cidade. Cidade pequena...
– Eu sei... estava te provocando. Investiguei você também.
Eu o encaro surpresa.
– Sério? – Fico imaginando o que ele descobriu sobre mim. – E...?
– Julia Simmons, filha de Jack Simmons. Sua mãe se chamava Helena
e morreu há muitos anos. Morou em Beaverton a vida inteira até ir para a
faculdade em Seattle, onde ficou dois anos depois continuou em Londres, de
onde acabou de voltar.
– Uau... acho que isto resume tudo. – Me mexo, incomodada. – Me
sinto meio incompetente por não ter descoberto tudo sobre você.
– Disse que não tinha me investigado.
– E não investiguei. Minha amiga Carla e meu pai comentaram...
– O quê? – Ian parecia em alerta de repente.
– Que sua família é importante. Que seu pai foi congressista e que
tem uma irmã gêmea.
Ele sorri.
– Parece bastante informação.
– Um pouco...
– Posso te pedir uma coisa?
Qualquer coisa.
– Sim.
– Se quiser saber qualquer coisa sobre mim me pergunte.
– Você irá responder?
– Por que não responderia?
Eu dou de ombros.
– Você me confunde. Uma hora foge, me evita e é frio. E agora
estamos tendo um encontro.
– Eu tentei realmente ficar longe de você.
Ouvir isto de sua boca me confunde ainda mais.
Então eu não estava delirando.
Ian tinha mesmo me evitado.
– Por quê?
Ele dá de ombros.
– Não tem importância agora...
Respiro fundo.
– Tenho algumas teorias.
– Conte-me. – Ele deita sobre a grama e eu faço o mesmo.
– Você tem uma namorada. – Arrisco, olhando o céu e rezando
intimamente para que ele responda que não.
– Não tenho namorada.
Eu busco seu rosto, ele está olhando o céu também.
Ok, ele não tem namorada, mas pode ser pior.
– Você é casado?
– Não.
– Você é gay.
Ele ri alto agora.
– Não, Julia. Não sou gay.
– Você está em Beaverton com uma identidade falsa e faz parte do
serviço de proteção a testemunhas.
– É muito criativa em suas teorias.
– Você simplesmente não gosta de mim.
Desta vez ele me encara.
Não desejo que ele veja a insegurança em meu olhar, mas acho que é
impossível.
– Achei que gostasse de você. Estou dividindo meu esconderijo. – Há
divertimento em sua voz, não em seu olhar.
– Talvez eu esteja enganada.
– Você não sabe de nada.
– Conte-me.
– Eu não sou uma boa companhia para você.
– Então por que estamos aqui?
– Porque não consegui me manter afastado.
– Não quero que fique.
Ele desvia o olhar.
– Não é assim tão simples.
Começo a me irritar. Levanto-me limpando a grama presa na minha
roupa.
– Quero ir embora.
Ian se levanta também.
– Julia, me desculpe...
– Por o quê? Por existir?
– Eu realmente não deveria me aproximar de você... – sua voz é cheia
de um tormento que não faz sentido algum pra mim.
– E eu realmente queria entender o motivo!
Ele respira fundo, olhando para longe.
O sol já não parece tão bom agora que Ian está longe de mim.
Mesmo que seja em pensamentos.
– Ok, vamos descer.
Ele chama Apolo e começados a descida.
Enquanto caminhamos num silêncio tenso, sinto meu coração se
escurecendo assim como o tempo a minha volta.
Então este é o fim?
Não estou preparada para o fim.
Não agora. Acho que nunca vou estar.
Enquanto tento me manter de pé sem a ajuda das mãos de Ian, penso
numa maneira de não deixá-lo ir.
O que uma garota como eu poderia fazer para ficar com um cara
como Ian Callaghan?
Lindo, rico e perfeito demais.
Distraída com meus pensamentos, tropeço e quase vou ao chão, ele
segura meu braço, me impedindo de cair totalmente.
Chego a me inclinar pra frente, meus cabelos esvoaçando em volta do
rosto.
Me aprumo rápido.
– Por favor, não caia. – Sua voz é serena e eu o encaro.
– Falei que sou desastrada.
Ian sorri. É um sorriso triste.
Então ele levanta mão e toca um ponto entre minha orelha e meus
cabelos.
Me encolho.
– Você tem uma cicatriz.
Afasto suas mãos, incomodada.
Meus próprios dedos tocam a cicatriz.
– Um tombo bem feio, na verdade. – Digo, voltando a andar.
Ele não pergunta o que aconteceu e eu fico aliviada. Eu realmente sou
uma pessoa bem propensa a acidentes. Tanto, que é quase banal.
Aquele em especial não tinha sido banal. Muito pelo contrário.
Afasto meus pensamentos daquele assunto.
Não era apenas Ian Callaghan que tinha segredos.
Entramos no carro e ele não liga o rádio.
Tenho vontade de chorar.
Quando chegamos a minha casa, saímos do carro e eu mordo os lábios
meio nervosa ao ver o carro do meu pai.
– Quer jantar comigo hoje à noite?
O quê?
– Está me convidando para jantar?
Ele sorri.
– Sim. Se quiser...
Eu hesito.
Aquele comportamento estranho dele me deixava confusa demais. Era
uma montanha russa de sentimento. Talvez ele tivesse razão. Realmente não
era uma pessoa boa pra mim.
No entanto, se ele não conseguia ficar longe, eu não era diferente.
– Sim...
– Julia? – Escuto a voz do meu pai e me viro.
Jack está vindo em nossa direção com cara de poucos amigos.
– Onde esteve? Estava preocupado...
– Pai, não exagera, só fui dar uma volta...
Jack encara Ian.
– Pai, este é Ian Callaghan, acho que já se conhecem.
Ian estende a mão.
Qualquer um ficaria nervoso em enfrentar meu pai.
Ian parecia bem calmo.
– Como vai, Jack?
– Posso saber o que quer com a minha filha?
– Pai, pelo amor de Deus!
– Quero saber as intenções dele...
– Chega pai! – Me irrito e encaro Ian. – Então você me busca à noite?
– Sim. – Ele entra no carro e eu lanço um olhar irado ao meu pai,
antes de entrar em casa.
Às vezes aquela superproteção era ridícula.
Entro no quarto e abro a janela. Me surpreendo ao ver Ian fora do
carro. Ele diz algo ao meu pai que não escuto e meu pai responde num tom
frio.
Então ele entra no carro e parte.
– O quê...?
Desço as escadas e vejo Jack entrando.
– Que diabos estava falando para o Ian?
– Nada demais. – Jack pega uma cerveja na geladeira.
– Nada? Eu te conheço, pai! Espero que não estrague tudo! Este cara
é importante pra mim.
Jack me encara.
Parece preocupado.
– Julia, não devia se envolver com ele.
– Por que não?
– Os Callaghan são...
– Ricos? Acha que é um grande problema?
– São pessoas diferentes de nós!
– E daí? Eu sei o que estou fazendo, pai!
– Sempre diz isto...
Rolo os olhos.
– Eu sou adulta agora...
– Eu esperava que fosse realmente...
– Chega! Eu vou sair com Ian hoje. Não sei se vai dar certo ou não.
Eu quero que dê.
– Apenas tome cuidado...
– Eu tomarei.
– E Chris? – Pergunta antes que eu me afaste – Achei que fosse sair
com ele hoje.
Fecho os olhos me xingando mentalmente.
Droga, eu tinha me esquecido completamente de Chris.
E o que eu faria? Desmarco com Ian dizendo que eu tenho outro
compromisso?
Me arrasto para o quarto, me sentindo arrasada, sabendo que é o certo
a fazer. A tarde passa enquanto me deito fitando o teto. Cada célula do meu
ser grita para que eu desmarque com Chris, minha consciência diz o
contrário.
E, quando eu me levanto e apanho as chaves do jipe, penso se estou
tomando a decisão correta.
Chris sai dos estábulos e sorri surpreso ao me ver.
Eu não consigo sorrir de volta.
– Olá... o que faz aqui? A gente vai sair hoje...
– É exatamente sobre isto que vim falar.
– Algum problema?
– Preciso desmarcar.
– Por quê?
Mordo os lábios com força, pensando em mil desculpas diferentes,
porém este é Chris e, mesmo sabendo que eu posso e vou magoá-lo, digo a
verdade.
– Eu vou sair com Ian Callaghan.
Minha voz não passa de um sussurro culpado.
Várias expressões passam pelo rosto de Chris.
Incredulidade. Raiva. E por fim, aceitação.
– Ian Callaghan? – Ele assovia ironicamente.
– Eu sei... parece bizarro que um cara como ele queira alguém como
eu.
– Você é maravilhosa, Julia. Por que ele não iria querer?
– Eu sinto muito, Chris, eu...
– Está a fim dele?
– Sim, estou. – Confesso. – Sei que concordei em sair com você, mas
somos amigos e não quero iludi-lo...
– Devia me sentir feliz, porém só me sinto pior.
– Chris... sinto muito. Ainda é meu melhor amigo.
– Queria ser mais, mas com Ian Callaghan no páreo, eu já perdi.
Não sei o que dizer.
Porque ele tem razão.
– Eu não tenho como competir, não é? Avisarei Austin Johnson.
Ele se afasta, me deixando sozinha.
Por um momento quero correr atrás dele.
Quero pedir desculpas e...
E o quê?
Eu fiz minha escolha. Agora teria que aceitar as consequências.
E a verdade era que Chris estava na minha vida há tanto tempo que
nem conseguia me lembrar desde quando. Era meu melhor amigo. Parte de
mim. Só que ele não me fazia sentir como Ian Callaghan.
E eu queria saber o que mais eu poderia sentir.
Hoje a noite eu iria me encontrar com ele. E descobrir.
Capítulo 4

Escuto o carro estacionando em frente a minha casa exatamente às


oito da noite.
Dou uma última olhada no espelho um tanto quanto insegura, então
desço rapidamente. Infelizmente não a tempo de impedir meu pai de abrir a
porta para Ian.
Jack me olha como se eu estivesse indo para um ritual de sacrifício.
Tento não ficar chateada ou brava com ele. Afinal, é meu pai.
Realmente não sei o que ele vê de tão errado no fato de eu sair com Ian
Callaghan.
Vejo meu pai cumprimentá-lo friamente e me apresso a intervir.
– Oi, Ian, você é pontual.
– E você está bonita.
Eu quase suspiro com o olhar que me lança me sentindo realmente
bonita como ele diz.
Meu pai limpa a garganta com um pigarro chato.
– Vamos? – Apanho meu casaco e saio, ignorando o olhar do meu pai.
– Me desculpe pelo meu pai. – Digo dentro do carro.
Ian não parece impressionado.
– Como seu pai é natural que se preocupe com você.
– Ele exagera... Desde que... – Eu paro, mordendo os lábios.
– Desde o quê?
– Nada... – Desconverso.
Ian mal me conhece. E há coisas que ele nem precisa saber sobre
mim.
Pelo menos por enquanto.
Nós chegamos a Portland numa velocidade incrível e entramos num
restaurante japonês.
Eu sorrio.
– Como adivinhou que eu gosto de comida japonesa?
Ele sorri de volta.
– Apenas um palpite.
Nós fazemos o pedido e a garçonete demora mais tempo que
necessário com Ian. Quase sinto simpatia por ela. Se fosse eu talvez estivesse
fazendo o mesmo. Ian é quase perfeito demais. O que me faz de novo ficar
em dúvida sobre os motivos de ele gostar de mim.
– Parece muito pensativa.
– Só me perguntando o que você vê em mim. – Talvez eu até
estivesse sendo sincera demais pra um primeiro encontro, não consigo evitar.
– Você é bonita.
– Não sou.
– Acha que é à toa que Austin Johnson e Chris Wilson são loucos por
você?
Eu fico vermelha.
– Não é assim.
– Tudo bem, eu realmente não quero falar de outros caras. Conte-me
sobre Londres.
Eu conto a ele sobre minha faculdade, sobre minha adoração pelas
irmãs Bronte de como me emocionei ao visitar os lugares onde viveram na
Inglaterra.
– Então foi o que fez de mais interessante na Inglaterra?
– Deve me achar tediosa agora.
– Não. Acho fascinante.
Minha respiração acelera e eu perco um pouco do prumo quando ele
me encara.
É fácil fazer tudo desaparecer ao redor.
– Muitos caras deviam te achar fascinante.
Eu dou de ombros, incomodada.
– Achei que não queria falar de outros caras.
– Apenas curioso se você deixou alguém te esperando lá.
– Ninguém. – Me apresso a dizer. – Eu não... Fui pra Inglaterra para
arranjar um namorado.
– Então não saía com ninguém?
– Não foi o que eu disse. Houve alguns encontros... nada marcante.
Não sei por que ele insiste em saber estas coisas. Realmente não há
nada de interessante sobre minha vida amorosa em Londres. Eu estava mais
interessada em pesquisar as irmãs Bronte e outros autores do que em
paquerar.
– Espero que pelo menos tenha conhecido os lugares interessantes.
– Já esteve lá?
– Algumas vezes, com minha família.
– Devem viajar bastante, não é?
– Às vezes. Minhas irmãs gostam de viajar mais do que eu.
– Como elas são?
– Rebecca é linda e tem consciência de sua beleza. É muito vaidosa e
um tanto egoísta. Tess é uma adolescente típica e muito enxerida. Gosta de
se intrometer na minha vida.
– Preferia ter irmãos?
– Sem dúvida – ele sorri.
– Deve ser interessante ter um gêmeo.
– Às vezes é um saco ter alguém que te conhece tão bem.
– O que você fez na faculdade?
– Engenharia.
Eu arregalo os olhos.
– Sério? Eu achava que estaria seguindo a carreira política ou algo
parecido.
– Meus pais nunca fariam isto. Eles deixaram que eu e minhas irmãs
seguíssemos nossos próprios caminhos.
– Parece muito digno da parte deles. Gostaria de conhecê-los.
Acho que fico decepcionada de Ian não comentar nada sobre me
apresentar aos pais dele, guardo pra mim.
O que eu estou pensando? Nós mal nos conhecemos!
De repente o celular dele toca. Ian olha o visor e não parece muito
feliz com quem quer que esteja ligando.
– Eu vou atender, já volto. – Ele se levanta da mesa e eu seguro minha
curiosidade.
Aproveito para levantar e ir ao banheiro.
Quando estou saindo, vejo alguém conhecido.
– Brad! - Exclamo surpresa ao ver o namorado de Carla.
– Oi, Julia – ele me abraça.
– Cadê a Carla?
– Ela acabou de entrar, não a viu?
– Nossa, acho que nos desencontramos.
Ele me mede, reparando no meu vestido.
– Hum, está num encontro.
– Sim.
– Uau. E eu conheço o sortudo?
– Não sei... – Eu lanço um olhar a nossa mesa, onde Ian acabou de se
sentar novamente.
– Ian Callaghan? – Brad parece realmente perplexo o que me
incomoda um pouco.
Será que todo mundo achava esquisito eu estar saindo com Ian?
– Julia, está saindo com...
– Brad! – Carla aparece e o interrompe. – Deixa a Julia em paz. – E
ela sorri, me abraçando rapidamente. – Oi, tudo bem? Entendi que está num
encontro?
– Sim, com o Ian.
– Entendi. – Carla parece tão esquisita quanto Brad agora. – Bom, nós
vamos nos sentar. Não queremos atrapalhar seu encontro. Eu te ligo amanhã,
ok?
– Claro.
Eles se afastam antes que eu possa perguntar qual o problema.
– Isto é... – Ainda escuto Brad falar e Carla o interrompe.
– Cala sua boca! Não é da sua conta.
– Mas...
– Chega Brad!
Caminho de volta a nossa mesa intrigada.
– Eu pedi a conta. – Ian comunica e eu me pergunto se o fato de ele
estar terminando nosso jantar abruptamente tem a ver com o telefonema.
– Tudo bem.
E, enquanto estamos no carro, o estranho diálogo entre Carla e Brad
ainda me intriga.
O que eles sabem sobre Ian que eu não sei?
Quando estacionamos em frente a minha casa todos os outros
pensamentos se tornam secundários.
Há apenas um desejo dentro de mim.
Enquanto me acompanha até a porta, ele segura minha mão, que cabe
perfeitamente dentro da dele, aquecendo meus dedos frios.
Gosto da sensação.
Desejo que ele me aqueça inteira naquele momento.
Quero que ele me beije como nunca quis algo na vida.
Espero ansiosa, com a respiração presa na garganta e um frio na
barriga.
Então Ian solta minha mão, dando um passo atrás.
– Boa noite, Julia.
Ele se afasta, voltando para o carro e eu fico ali, aturdida.
E continuo ali muito tempo depois de o carro desaparecer na estrada.

Naquela noite, eu tenho pesadelos.


Quando acordo na manhã seguinte, Jack me encara com mal
disfarçada curiosidade, enquanto como meu cereal.
– Como foi seu encontro?
– Quer mesmo saber? – Resmungo.
Uma leve dor de cabeça lateja em minha têmpora.
Resultado de uma noite mal dormida.
– Não está mais aqui quem falou...
Ele fica em silêncio por um momento.
– Vai sair com o tal Callaghan de novo?
É o que também me pergunto.
– Não sei. – Resmungo, me levantando e me ocupando em lavar a
louça.
– Você está bem? – Jack pergunta.
– Por que não estaria?
– Pensei ter ouvido você gritar ontem a noite.
– Pesadelos.
– Julia... – Suas mãos tocam meus cabelos. Suspiro pesadamente.
Quero afastar suas mãos e dizer pra parar com aquela preocupação.
Eu tinha ido embora pra Londres justamente por causa disto.
– Estou bem, pai. – Garanto, com um sorriso não muito seguro.
– Sobre o que eram os pesadelos?
– Não me lembro... – Dou de ombros e é verdade.
Apenas me faziam acordar com uma sensação ruim.
– Não deveria estar saindo com este cara...
Eu me irrito.
– E o que o Ian tem a ver com meus pesadelos? Está começando a
exagerar!
– Eu apenas me preocupo...
– Pai, já faz dois anos. Eu estou bem. Por favor, não faça eu me
arrepender de ter voltado.
– Tudo bem. Vou deixá-la em paz. Só tome cuidado...
– Não existe motivo pra preocupação, acho que Ian Callaghan nem
está interessado em mim...
– Ah é?
– Não quero falar sobre esse assunto.
– Certo. Eu vou dar um pulo na loja.
– Hoje é domingo. Achei que fôssemos almoçar juntos.
– Eu também, mas preciso verificar uns problemas com estoque.
Ligue para o Chris.
Depois que Jack sai eu penso se realmente devo ligar para Chris. As
coisas não tinham ficado nada bem depois de eu ter desmarcado com ele pra
jantar com Ian. Será que eu ainda podia contar com Chris como meu amigo?
Só havia uma maneira de descobrir.
Pego e o telefone e disco seu número.
– Oi Chris.
– Jules?
– Sim, sou eu... ainda está bravo comigo?
– Bravo não é a expressão correta...
– Eu sinto muito...
– Para de dizer isto. Eu ainda sou seu amigo, ok?
Eu rio sozinha.
– Então quer vir almoçar comigo?
– Nem precisa chamar duas vezes.
E eu ainda estou rindo quando desligo.
Ia ser tudo como antes. Antes de Ian Callaghan aparecer e bagunçar
minha cabeça.
Não que eu não quisesse que ele voltasse e bagunçasse mais um
pouco. Porém Ian era estranho demais. Uma hora parecia gostar de mim e
outra me tratava friamente e sumia. Talvez meu pai tivesse razão e ele não
fosse mesmo bom para mim.
Chris aparece na hora combinada e tudo parece realmente como se
nada tivesse mudado.
E eu gosto. Gosto da sensação de normalidade que Chris me dá.
Então, em algum momento da tarde, enquanto assistíamos a um filme antigo
na TV, ele me encara curioso.
– Como foi seu encontro?
– Chris... Não precisamos falar sobre isto.
– Não somos amigos?
Dou de ombros.
Não quero falar de Ian com Chris.
– Eu não sei... se ele vai voltar. As coisas foram meio estranhas
ontem, podemos não falar sobre esse assunto?
– Tudo bem.
Chris não pergunta mais sobre Ian e me sinto aliviada. Só que as
coisas já não são tão naturais. Eu não posso simplesmente fingir que Ian não
existe.
Chris diz que precisa ir embora quando o filme termina e eu o
acompanho até o jardim.
E nós dois paramos surpresos ao ver uma picape preta estacionando.
A alegria e o alívio que sinto quase transbordam em meu peito e, por
mais que não deseje esfregar nada sobre o que sinto por Ian na cara de Chris,
tenho certeza que é transparente em meu rosto.
Tenho que conter minha vontade de correr pra ele, quando Ian sai do
carro. Sua expressão é fria ao ver Chris, que também o encara com
descontentamento.
– Ian... não sabia que viria... – Gaguejo, sem saber o que fazer.
– Eu não sabia que estava ocupada. – Ele olha pra Chris.
– Chris está indo embora... Não é Chris?
– Claro que sim! – Não me passa despercebida a ironia na voz de
Chris.
Eu já estou em outro mundo agora.
Um mundo onde só existe Ian Callaghan.
– Tchau, Jules. Adorei a nossa tarde. – Ele se aproxima e beija meu
rosto.
Fico vermelha, pois sei que fez de propósito.
Olho para Ian para ver sua reação enquanto Chris se afasta e entra no
carro.
– O que veio fazer aqui? – Pergunto aturdida. – Se eu soubesse que
viria, eu... bem, Chris veio almoçar comigo. – Eu nem sabia por que estava
dando tantas explicações, então, de repente Ian estava perto de mim.
E, sem aviso, ele está me beijando.
E tudo o mais desaparece.
Ele me beija com uma familiaridade surpreendente. Não há aquela
estranheza normal de quando as bocas se encontram pela primeira vez.
Nossos lábios se acariciam como se tivessem feito aquilo milhões de vezes
antes. Nossas línguas se entrelaçam como velhas amantes.
Estremeço de puro deleite e me derreto nele, querendo saber se nossos
corpos também se encaixarão a perfeição.
E todo meu intimo dói de um desejo quase desesperado.
Sinto vontade de arrancar suas roupas e as minhas com as unhas e
travo meus dedos em sua camisa, enquanto sinto suas mãos em meus cabelos.
O barulho de um motor arrancando me tira do transe e eu me afasto.
Só então me dando conta de que Chris ainda estava ali.
Encaro Ian ofegante. Meus lábios ainda sentem o gosto dele.
Meu corpo ainda treme.
– Fez isto para que Chris visse. – É uma constatação.
Ele não nega.
– Ele está apaixonado por você.
– Somos amigos.
– Ele é apaixonado por você – insiste.
Seus dedos passam pelos cabelos num gesto de frustração.
– Te deixei em maus lençóis? Você e ele...
– Não! Eu te disse, não há nada entre mim e Chris. Pode até existir
algum sentimento da parte dele, embora sejamos somente amigos. Não
precisava... ter me beijado pra demarcar território!
– Talvez eu quisesse apenas te beijar.
Eu ofego de puro prazer.
Quero desesperadamente que ele me beije de novo.
– Eu vim te convidar pra dar uma volta na cidade. – Ele diz e eu sinto
certo desapontamento.
Eu só consigo pensar que meu pai não está em casa. E que eu poderia
levar Ian até meu quarto e...
Respiro fundo, tentando manter minha mente e meu corpo sob
controle.
– Certo. Vou pegar um agasalho.
Entro correndo e pego a blusa. Ao passar por um espelho, vejo meu
cabelo em estado lastimável. Solto um gemido de desalento e resolvo
simplesmente prendê-lo num rabo de cavalo.
Ian me espera dentro da picape. Sorri pra mim e eu sorrio de volta.
Quero me inclinar e beijar sua boca. Não tenho coragem.
Nestas horas eu queria ser menos tímida. Ou mais experiente. Queria
saber seduzir um cara como Ian Callaghan. Me pergunto com quantas garotas
ele já deve ter saído. O pensamento me enche de um ciúme dolorido e
ridículo.
– O que foi? – Ele indaga intrigado.
– O que foi o quê?
– Parece estar pensando coisas ruins.
– Nada... apenas... curiosa sobre você.
Ele ri, olhando a estrada. Me delicio encarando seu perfil.
– Você disse que era pra eu perguntar qualquer coisa a você.
– Sim, eu me lembro. Pergunte.
– Você realmente não tem nenhuma namorada?
– Não Julia, não tenho.
– Mas deve ter tido várias.
Ele para em um farol e me encara divertido.
– Você quer um relatório de todos meus antigos relacionamentos?
– Não, claro que não...
– Porque talvez eu peça o seu também.
– Só imagino que um cara como você deve ter ficado com muitas
garotas na universidade.
– Um cara como eu?
– Bonito, rico...
– Você me faz parecer bem superficial, Julia Simmons.
– Não foi o que quis dizer.
Ele ri, parecendo realmente divertido com minhas conjecturas.
– Chegamos. - Para o carro em frente à livraria e esqueço-me de tudo
abrindo um sorriso.
– Como adivinhou que este é um dos meus lugares preferidos?
Ele sorri.
– Não é difícil de adivinhar, adoradora das Bronte.
Nós saímos do carro e ele segura minha mão quando entramos.
Gosto demais disto. De suas mãos nas minhas. A sensação de
compromisso que me traz. No fundo sei que estou sendo precipitada, mas não
consigo evitar.
Eu passeio pelas prateleiras como uma criança numa loja de doces.
Ian me acompanha com divertimento.
– Gosto do seu sorriso. – Ele diz e eu levanto o olhar de um exemplar
de Jane Eyre.
– Você ganhou muitos pontos por ter me trazido aqui. – Guardo o
livro na prateleira.
Já tenho todos os livros das Bronte.
– Mas acho que se arrependerá... quando entro numa livraria não
quero mais sair.
– Eu também gosto de livrarias.
– Sério? Agora vai me dizer que é grande fã das Bronte.
– Prefiro os mais modernos. – Ele pega um livro na prateleira. – Já leu
W.H Auden?
– Nunca.
– É um poeta e crítico inglês, foi a grande voz dos jovens intelectuais
de esquerda dos anos 30. Sua poesia é sempre perturbadora... – ele abre numa
página e me dá. – Leia.
Pego o livro de suas mãos e leio o poema que se chama Funeral
Blues.

Pare os relógios, cale o telefone.


Evite o latido do cão com um osso
Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie
a vinda do caixão, seguido pelo cortejo.

Que os aviões voem em círculos, gemendo


e que escrevam no céu o anúncio: ele morreu.
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua
e que guardas de trânsito usem finas luvas de breu.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste


Meus dias úteis, meus finais de semana,
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.
Eu pensava que o amor era eterno; estava errado.

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma


Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o mar e livre-se da floresta
Pois nada mais poderá ser bom como antes era.

Fecho o livro ao acabar de ler, sentindo toda a tristeza daquele poema.


Ian parece triste também.
– É lindo.
Ele sorri, pegando o livro das minhas mãos.
– É triste.
– É bonito mesmo assim.
– Vamos embora.
Ian faz questão de comprar o livro pra mim.
– Não gosto de presentes. – Reclamo, enquanto passamos no caixa.
– Nem livros?
– Não quero ganhar presentes de você.
– Mas eu quero dar.
É inútil discutir, então eu aceito o livro.
– Quer tomar um café?
– Claro. – Aceito prontamente e Ian me leva a uma cafeteria no fim da
rua.
Adoro estar ali com ele. Desconfio de que adoraria estar em qualquer
lugar com Ian Callaghan.
– O que vai fazer agora que terminou a faculdade?
– Eu tenho um trabalho em Portland.
– Ah. – Tento conter minha decepção.
– Mas estou sempre na cidade para visitar meus pais.
– Que bom. – Meu sorriso é amarelo.
– E você?
– Eu ainda não sei direito... provavelmente continuarei o trabalho
temporário no colégio em que minha amiga Carla trabalha.
Nós voltamos para casa quando já anoitece.
O que vai acontecer agora? Tenho vontade de perguntar.
Mas tenho medo.
Ian para o carro em frente a minha casa.
– Estou indo para Portland amanhã.
Eu mordo os lábios, apreensiva.
– E isso quer dizer o quê? – Pergunto, o encarando na semiescuridão
do carro.
– Julia eu não sei... se sou uma boa opção para você.
– Porque mora em outra cidade? Portland é aqui do lado!
– Se fosse só isto...
– Qual o problema então? Por que todo mundo parece achar que não
devo sair com você?
– Talvez eles tenham razão.
– Sou eu que decido. E eu escolho você.
Minha voz sai bem corajosa e firme naquele momento.
E eu chego a ter orgulho de mim mesma.
– Então se você não quer ficar comigo, se... – Eu não consigo
continuar, pois sou puxada pela nuca e sinto seu hálito delicioso em minha
língua antes de ele me beijar.
E é um beijo diferente do outro.
Sinto quase um desespero em seus lábios apertando os meus, suas
mãos infiltrando-se em meus cabelos. Como se a qualquer momento ele fosse
me soltar e nunca mais fôssemos nos ver.
Como se fosse um último beijo.
Meu coração se aperta com a mera possibilidade de uma separação.
E agora sou eu que o beijo de volta com temor desesperado. O desejo
me percorre como fogo, marcando minha pele. Crescendo em meu intimo
desmesuradamente.
E um beijo se transforma em muitos. Paramos apenas para respirar e
nossas respirações se misturam, até que de novo ele me beija, sinto sua língua
procurando a minha, que se enrosca na dele como eu gostaria que nossos
corpos se enroscassem.
Meus dedos torcem seus cabelos e eu sinto suas mãos deslizando por
minhas costas, me apertando mais. Não é suficiente. E eu gemo perdida num
redemoinho de sensações que me fazem desejar que estivéssemos em outro
lugar. Onde ele pudesse tirar a minha roupa e eu a dele.
Onde eu pudesse sentir suas mãos em mim. Inteira.
Eu não quero me livrar do fogo. Eu quero me consumir nele.
Uma batida no vidro me assusta e Ian me solta.
Eu acompanho seu olhar e vejo horrorizada meu pai nos encarando
com reprovação.
– Saia já deste carro, Julia.
– Oh Deus. – Murmuro, entre chocada e envergonhada.
– Acho melhor fazer o que ele pede. – Ian diz surpreendentemente
calmo.
– Me desculpe eu...
– Julia, ou você sai ou... – meu pai ameaça e eu abro a porta saindo.
– Pai, o que pensa que está fazendo?
– Já para dentro!
– Não! Não sou uma criança para agir deste jeito...
– Está na minha casa e são as minhas regras!
– Não acredito que está fazendo isto...
Jack respira fundo e eu sei que está tentando se acalmar.
– Julia, entre. Vou trocar uma palavrinha com seu... amigo.
Eu olho pra Ian.
– Julia, faça o que seu pai pede.
– Mas...
– Nós conversamos depois.
– Vai me ligar, não é?
– Sim.
E sem ter o que fazer eu entro em casa, batendo a porta.
Subo pro meu quarto e abro a janela.
E escuto meu pai dizer.
– Eu não pedi para ficar longe da minha filha?
Não consigo escutar a resposta de Ian que está dentro do carro, estou
absolutamente chocada por meu pai ter pedido a Ian para se manter afastado.
– Você disse que ia se afastar, disse... – de novo Ian está falando e eu
não escuto. – Sim, ela é adulta... mas é minha filha! E você sabe o motivo de
eu estar pedindo!
Sinto meu coração batendo descompassado. Quero ouvir o que Ian
diz, não consigo.
– Tudo bem... Não posso concordar, embora você tenha razão. Se ela
quiser, não posso impedi-la! - Jack bate a porta do carro com força.
Eu desço as escadas e o encontro.
– Pediu pra Ian se afastar de mim? – Grito.
– Julia...
– Pediu?
– Sim, eu pedi.
– Meu Deus! Como pôde? É a minha vida! Não pode me impedir de
sair com quem eu quiser.
– Você não sabe o que está fazendo...
– Não sei? Por que odeia o Ian? Qual o seu problema com ele?
– Não tem nada a ver com o Ian e sim com você!
– Cansei desta superproteção!
– Você sabe o porquê.
– Isto é ridículo.
– Julia, escute. Você pediu pra ir estudar em Londres e eu concordei...
Você diz que está tudo bem, só que Ian... Não é o homem certo pra você.
– Eu devo decidir e não você!
– Apenas me escute...
– Não! Não vou escutar. Já cansei! De agora em diante não se
intrometa mais, não vai adiantar, entendeu?
Eu subo as escadas de dois em dois degraus e me tranco no quarto.
Nada o que meu pai dissesse ia me afastar de Ian.
Nada e nem ninguém.
Capítulo 5

Eu durmo mal naquela noite e acordo com olheiras para trabalhar no


dia seguinte.
Carla pergunta se estou com algum problema e eu me calo. Sei que
posso confiar nela, mas simplesmente não quero falar agora.
Quando chego em casa pego a lista telefônica e acho facilmente o
telefone da casa dos Callaghan.
– O Ian está? – Indago quando uma mulher atende.
– Não, ele está em Portland... quem deseja falar com ele?
– Julia Simmons.
– Oh... – A mulher parece surpresa. – Eu sou Jill, a mãe dele. Você
quer deixar algum recado?
– Não... tudo bem.
– Ele estará na cidade no fim de semana.
– Certo... obrigada.
Eu desligo. Foi uma idiotice ligar, afinal, ele avisou que estaria em
Portland. Por que não pedi seu número de celular? Não me lembro.
Deito na minha cama e pego o livro que ele me deu. Passo a tarde
lendo e quando Jack chega, bate na porta meio ressabiado.
– Quer pedir uma pizza?
Eu me sento atordoada.
– Nossa, perdi a hora...
– Não tem problema. Vou pedir uma pizza.
– Tudo bem.
A semana passa numa repetição de dias iguais. Cinza e frio.
Dias sem Ian.
E uma doce ansiedade define aqueles dias. Conto as horas para o
retorno dele a minha vida.

Na tarde de sexta feira, Carla me oferece uma carona até em casa,


depois que eu conto que meu pai levara meu jipe para uma revisão de manhã.
Enquanto caminhamos para fora da escola, tento parecer animada com seu
convite de pegar um cinema à noite, possivelmente segurar vela, já que Brad
também vai.
– Eu não sei...
– Vamos, por favor, vai ser ótimo!
– Não quero atrapalhar.
– Consegui convencer Brad a ver um filme romântico, preciso de
companhia, provavelmente ele vai dormir a metade da sessão.
Eu rio ao atravessar a porta e então Carla para e eu acompanho seu
olhar. Meu coração falha uma batida ao notar a picape preta no
estacionamento e Ian Callaghan emergindo dela.
– Hum... aquele não é Ian Callaghan? – Carla comenta querendo
parecer casual, não consegue nem um pouco.
– Sim. - Murmuro com meus olhos presos em sua figura insólita.
Meu coração agora está disparado de uma alegria imensurável. Quero
correr. Quero me jogar em cima dele. Quero me fundir com ele.
Sua presença me faz ver o quanto sua ausência foi dolorida. E eu me
pergunto como vivia antes de Ian Callaghan.
– Bom... acho que ele veio te buscar.
Obrigo meus olhos a se desviarem para Carla. Ela sorri, embora não
haja humor em seu rosto.
Ela parece preocupada.
– Qual o problema? Não me diga que também tem algum motivo
obscuro para odiar os Callaghan?
– Claro que não! De onde tirou isto? Eu apenas... deixa pra lá.
– Não, fala. – Insisto.
Já estou ficando de saco cheio daquela campanha contra nós.
– Realmente é bobagem, Julia. Acho melhor você ir. A gente se vê...
Ela se afasta e eu finalmente caminho até Ian. O vento bagunça seus
cabelos perfeitos.
Ele raspou a barba e agora posso ver melhor seu rosto esculpido que
está levemente vermelho do frio. Eu não consigo deter o sorriso em meus
lábios.
– Olá, estranho.
– Olá, Julia.
O sorriso dele é capaz de iluminar a tarde cinzenta de Beaverton.
Eu derreto um pouquinho.
– Achei que voltaria somente amanhã.
– Eu também.
E ficamos ali, sorrindo no estacionamento quase vazio, alheios aos
poucos estudantes que ainda transitam.
Alheios a qualquer coisa ao redor.
– E agora, fazemos o quê? – Pergunto por fim.
Ele abre a porta do carro pra mim.
– Posso começar te levando em casa.
– Muito gentil da sua parte. – Brinco, entrando no carro.
Ian dá a volta e senta no banco do motorista. De novo escuto uma
música clássica no rádio.
– É bonita.
– Eu compus.
– Mentira!
Ele apenas ri.
– Está falando sério?
– Eu toco um pouco de piano.
– Ok, primeiro diz que compõe música e agora diz que apenas “toca
um pouco de piano”.
– Gosto de tocar.
– E de compor.
– Componho apenas quando tenho inspiração.
– Ah... – sinto ciúme ao imaginá-lo compondo para alguma garota. –
Para uma mulher?
– Também.
Eu mordo os lábios com força. Quero saber se ele comporia uma
música para mim. É claro que não faço uma indagação destas.
Chegamos a minha casa rápido demais. Eu o encaro, querendo mantê-
lo perto de mim indefinidamente.
– Quer entrar?
– Seu pai pode não gostar muito.
– Ele não está em casa – respondo meio irritada. – Por favor. – insisto.
– Melhor não.
Tento conter minha decepção dando de ombros.
– Tudo bem então, eu tenho muitas provas pra corrigir... – meu tom é
ríspido e Ian percebe.
– Eu não quero criar problema com seu pai, Julia – explica e eu o
encaro.
– Por que meu pai mandou você não sair comigo?
– Ele é seu pai e só quer te proteger.
– Do quê? Por acaso você é algum vampiro que suga o sangue de
garotas indefesas como num romance gótico adolescente?
– Não sou um vampiro, certamente. – Ele ri.
– E nem eu sou indefesa!
– Eu sei.
– Espero que esta implicância do meu pai não mude nada... entre nós.
– o encaro insegura.
Seus dedos tocam meu rosto.
Estremeço.
– Nada vai mudar meus sentimentos, Julia.
Fecho os olhos, perdida nas suas palavras. Espero que ele me beije.
Em vez de me beijar ele se afasta.
Sinto frio.
Abro os olhos e ele está ligando o carro.
– Carla me convidou para ir ao cinema hoje – digo rápido. – Vamos?
Ele sorri de lado.
– Eu não sei...
– Por favor... ela vai com o namorado dela...
– Tudo bem. Eu passo pra te pegar.
– Não, a gente se encontra lá. Também prefiro evitar meu pai por
enquanto – completo ao sair do carro.
Passo a tarde corrigindo provas e pensando em Ian. À noite digo a
Jack que vou ao cinema com Carla. Ele não faz perguntas, enquanto se
acomoda no sofá com uma cerveja.
Quando desço do carro vejo Ian com Carla e Brad.
Torço para que não esteja um clima ruim.
– Oi. – cumprimento meio sem jeito.
Ian sorri e segura minha mão.
– Estou atrasada?
– Não. – Carla responde. – A sessão começa daqui a 10 minutos. Já
compramos o ingresso.
Olho pra Ian.
– O nosso também?
– Sim, vamos entrar?
Ian me guia até nossos assentos e eu percebo que gosto demais
daquilo. De ele segurando minha mão. Como se fosse meu namorado. E eu
nem sei se posso chamá-lo deste jeito. Mesmo assim, aprecio aqueles
momentos. Querendo que as horas demorem a passar.
O tempo deveria parar quando Ian está comigo. Infelizmente o tempo
voa. Nunca parece suficiente.
Nós saímos do cinema, Carla e Brad se despedem.
Ian me leva até meu jipe neste momento eu me questiono por que
insisti em vir sozinha.
– Quer jantar comigo amanhã?
– Claro.
Me pergunto por que ele não me convida para passar o dia com ele
também.
Não quero parecer obcecada.
– Eu passo na sua casa, ou acha que seu pai criará problema?
– Eu me entendo com meu pai.
– Eu acho que... – ele fica sério de repente e eu seguro seu rosto.
– Não acha nada. Eu sou adulta. Faço o que eu quero. Meu pai pode
até chiar, mas não manda mais em mim.
Sua mão toca a minha e ele beija a palma, antes de retirá-la do seu
rosto.
Ofego. Espero. Anseio.
– Me beija?
Em algum ponto da minha mente, me sinto patética e desesperada. No
final das contas nem me importo. Não quando suas mãos enquadram meu
rosto. Ou quando ele respira em minha boca.
Gemo baixinho e Ian geme nos meus lábios.
Então eu deixo de pensar.
Agarro sua nuca e suspendo meus pés para ficar mais próxima. Meu
corpo queima. Dói.
Preciso me esfregar nele. Me fundir a ele.
Ian para, tão ofegante quanto eu e afasta minhas mãos.
Ele ainda acaricia meus cabelos levemente, antes de praticamente me
empurrar para dentro do jipe.
Estou atordoada. A um ponto de chamá-lo para entrar comigo e
iniciarmos uma sessão de amassos como a mais delirante das adolescentes.
Ele fecha a porta e se afasta para seu próprio carro.
Respiro fundo várias vezes então consigo ligar o carro e dar partida.
Ainda intoxicada por Ian Callaghan.
Passo o dia seguinte meio flutuando numa nuvem de ansiedade.
Jack me olha quando desço toda arrumada, me medindo avaliador.
– Vou sair com o Ian.
Ele respira fundo e passa os dedos pelos cabelos. Sei que está se
contendo.
– O seu jantar está pronto. – Informo simplesmente ao ouvir a buzina.
Entro no carro e respiro o mesmo ar que Ian Callaghan. Me inebrio
com sua presença.
Ele sorri e, sem me conter, me inclino beijando o canto dos seus
lábios. Ele dá partida, uma mão no volante e outra segurando a minha. Sou
feliz neste momento.
Ian me leva num restaurante que nunca estive e é lindo e caro. Mas
não me importo, na verdade eu mal olho ao redor. Minha atenção está toda
nele. Em como ele sorri de lado, em como seus olhos verdes parecem
dourados na luz difusa. Bebo suas palavras e faço mil perguntas sobre tudo.
Quero saber do que ele gosta. Do que ele não gosta. Como foi sua infância. O
que quer para o futuro.
A pergunta mais importante não ouso fazer: Se nós temos futuro.
E no fim da noite, ele me leva em casa. Vejo a cortina mexer e sei que
meu pai está me vigiando. Quero pedir que Ian me leve dali. Ele se inclina e
beija minha testa, meu nariz, minha boca apenas levemente.
Suspiro.
– Quando te verei de novo? – Não consigo deixar de perguntar, meus
dedos ansiosos brincando com os botões de sua camisa.
Ele se afasta um pouco.
– Não vou pra Portland por enquanto.
Eu sorrio, aliviada, feliz. Extasiada.
– Então posso reservar todas minhas noites para você?
É a vez dele de sorrir.
– Algumas horas do dia também.
– Parece perfeito.
– Agora é melhor entrar, antes que seu pai apareça com uma arma.
Eu suspiro pesadamente, lamento o fim da noite e saio do carro.
Já sinto sua falta.

***

A semana seguinte é como um sonho. Com todas as nuances


estranhas que um sonho costuma ter.
Ian preenche meus dias e minhas noites. Não que ele esteja sempre
presente como eu gostaria. Mas se não está comigo, estou pensando nele.
Sonhando com ele.
Ansiando por ele.
Tudo gira em torno de Ian Callaghan.
Ele me espera na saída da escola e beija meus lábios frios. Entra na
minha casa e espera pacientemente enquanto corrijo infindáveis provas e
exercícios escutando minhas lamentações sobre os alunos.
E sempre vai embora antes de Jack chegar.
Me leva para jantar em algumas noites. São sempre lugares fabulosos
que eu lamento que sejam tão caros, já que nem me importo com o que estou
comendo. Eu apenas espero o fim da noite. Espero por seus lábios nos meus.
E espero o dia em que ele não irá apenas me afastar e dizer boa noite.
Quero que ele fique. E me pergunto por que ele não quer.
Talvez não seja questão de querer. Desconfio seriamente que tem tudo
a ver com meu pai nos espionando noite após noite. Jack não fala mais nada.
Por seus olhares preocupados, por vezes angustiados, eu sei que ele é
totalmente contra meu envolvimento com Ian.
No entanto eu já ultrapassei este limite.
E o que dirão os pais de Ian? Ele fala ocasionalmente da família
Callaghan, apenas quando eu pergunto. Às vezes comenta algo que fez com
as irmãs ou os pais, quando não está comigo. E me pergunto quando irá me
apresentar à família.
Numa tarde de sábado eu estou sozinha em casa lendo o Morro dos
ventos Uivantes pela enésima vez, mas minha mente não está nas peripécias
de Catherine e Heathcliff. Minha mente está na ausência de Ian. Faz dois dias
que nos encontramos pela última vez.
Ele havia me levado à livraria e insistido em me dar mais um
exemplar de W.H Auden. E quando eu bati o pé de que não queria nenhum
presente, ele me chamou de absurda e comprou mesmo assim. E disse pra eu
ler que seria um empréstimo.
E até agora ele não ligou. Será que esta será umas daquelas noites em
que ele terá outro compromisso com os Callaghan? Em alguns momentos eu
desejo que ele me inclua neles, só não tenho coragem de propor.
Fecho o livro e pego o livro que Ian “me emprestou”. Eu já o li na
noite passada e então uma ideia me vem à cabeça.
Antes que perca a coragem, coloco meu tênis e apanho a chave do
carro.
Estou um pouco receosa ao tocar a campainha da casa dos Callaghan.
Parece mais imponente do que da última vez que estive lá. Mesmo assim,
respiro fundo e espero, abraçando o livro em frente ao peito.
Uma adolescente de cabelos loiros me encara surpresa.
– Oi, o Ian está? – Indago rápido.
– É... oi... sim, ele está...
– Eu sou Julia Simmons, pode chamá-lo?
– Sei... – ela sorri de repente. – E eu sou Tess Callaghan.
E sem aviso sou esmagada por um abraço.
– Que bom que finalmente... nos conhecemos Julia!
– Tess quem está aí? – Identifico a voz da moça elegante que estava
com Ian no estacionamento dos Johnson. A linda gêmea de Ian, Rebecca.
E Tess me puxa pra dentro.
– Julia Simmons!
Rebecca me encara também surpresa. Será que elas sabem quem eu
sou?
– Julia, esta é Rebecca.
– Olá. – Rebecca responde séria.
– Vem Julia, vou te levar até o Ian.
E, enquanto Tess Callaghan me puxa, eu reparo vagamente que a casa
é magnífica por dentro. Passamos por uma sala onde um rapaz com boné de
baseball não tira os olhos da TV, onde assiste a um jogo.
– Este é o Oliver, noivo da Rebecca! – Diz revirando os olhos,
continuando a me puxar pelo corredor.
Então escuto uma música. Alguém está tocando piano. E mesmo antes
de adentrarmos a sala, eu sei que é Ian. Ele está distraído, sua atenção no
piano.
Tess me solta.
– Vou deixá-la aqui, tenho certeza que prefere falar com Ian a sós. –
Ela diz no meu ouvido e se afasta.
Eu fico ali.
Ian ainda não me viu. Não consigo me mexer, enquanto escuto o som
do piano enchendo o ar. A música me enche de uma inesperada e
inexplicável tristeza. E só percebo que estou chorando quando ele para de
tocar e me encara.
“Eu estou apaixonada por Ian”.
Aquela constatação salta em minha mente, como se estivesse pairando
ali, apenas esperando para vir à tona.
“Eu te amo”, quero dizer. “Estou irrevogavelmente apaixonada por
você”.
Tantas formas de declaração passam pela minha cabeça num
redemoinho de palavras.
Elas me inebriam. Mordo meus lábios com força para segurá-las.
– Julia? – Ian se levanta e vem até mim. – Por que está chorando?
Eu respiro fundo enquanto sinto os dedos dele enxugando meu rosto.
– Eu não sei... esta música é linda. Me emocionou.
– O que faz aqui?
Dou de ombros e mostro o livro.
– Vim te devolver.
Ian sabe que é uma completa mentira, mas não diz nada. Ele pega o
livro e o coloca num aparador se voltando para mim.
– Sua casa é maravilhosa.
– Minha mãe tem todo o crédito.
– Deve ser uma mulher de bom gosto. Gostaria de conhecê-la.
– Ela não está em casa. Saiu com meu pai.
– Conheci sua irmã Tess. E Rebecca.
Ele fica tenso.
– Sua irmã Tess parece mesmo um furacão. Ela me abraçou quando
cheguei e me trouxe aqui. Rebecca apenas foi cordial. Também vi o noivo de
Rebecca... Parece ser uma família muito legal.
Ele dá um sorriso irônico.
– Todas as famílias são legais de longe.
– Você às vezes critica sua família... mas nunca me conta se tem algo
realmente ruim acontecendo.
– Porque não tem. – ele segura minha mão. – Não ocupe sua mente
com bobagens... Vem, vou te levar embora.
– Mas...
Ele já me puxa de volta pelos corredores. Desta vez, ao chegarmos à
sala, as irmãs de Ian estão lá com o rapaz com boné de baseball.
– Não vai nos apresentar, Ian?
Ele tem um sorriso brincalhão no rosto.
Ian está sério, mas faz as apresentações.
– Julia, este é Oliver, noivo da minha irmã.
– Muito prazer, Julia. – Ele tira o boné, revelando cabelos ruivos e se
aproxima, me abraçando sem cerimônia. – Seu namorado esqueceu de dizer
que também somos melhores amigos.
Dou uma risada nervosa.
– Oliver, menos. – Rebecca revira os olhos.
– Estou feliz em conhecer vocês. – Digo sinceramente.
– Ian, Julia vai jantar com a gente? – Oliver indaga.
Só então eu reparo que já está escuro lá fora, a tarde caiu totalmente.
Antes que Ian possa responder o que eu acho que seria uma resposta
negativa, Tess se aproxima e passa o braço por meus ombros.
– Claro que vai! Estamos felizes que finalmente esteja aqui também.
– Ian fala de você. – Oliver explica.
Eu fico vermelha.
Ian ainda parece tenso.
Eu tento sorrir, para ele ver que está tudo bem.
– Espero que fale bem...
– Com certeza. – Oliver responde – só não disse que era tão bonita...
– Querido, não deixe Julia ruborizada ou Ian com ciúmes. – Rebecca
exclama e me encara. - Não ligue para ele.
– Não me importo.
– Bem, vamos comer? A comida vai esfriar! – Tess bate palmas.
– Não pense que a Julia acreditará nem por um segundo que foi você
que fez a comida, Tess. – Oliver brinca enquanto vamos para a mesa.
Vejo várias embalagens de comida chinesa.
– Eu não ia fingir! – Ela ri e pisca. – Então Julia, nos conte como é
Londres – indaga.
– Ian nos contou que estudou lá. – Oliver explica.
Eu comento timidamente sobre meu curso e Tess faz perguntas sobre
a cidade.
– Eu prefiro Paris, vou todo ano. Gosto de comprar roupas, às vezes
vou a Londres também... – Rebecca começa um monólogo interminável sobre
moda, ocasionalmente cortado por um comentário mordaz de Tess ou uma
piada de Oliver.
Ian não fala muito.
Ao término do jantar, dou por encerrada minha incursão na vida dos
Callaghan.
– Preciso ir. Obrigada pelo jantar. – Agradeço e Tess sorri.
– Venha outras vezes. Não deixe o Ian te manter só pra ele...
– Chega Tess. – Ian resmunga e me puxa pra fora.
– Me desculpe por ter vindo sem avisar invadindo sua casa –
murmuro, realmente me sentindo culpada.
– Não peça desculpas.
– Você não gostou.
– Não é você.
– Então o que é? Acha que eu não gostei da sua família?
– Você gostou?
– Bom, pelo pouco que vi, sim.
Ele ri com ironia.
– Quando Rebecca começar a mandar nas roupas que veste ou Tess
fizer birras constrangedoras, pensará de outra maneira.
– Nenhuma família é perfeita... Pena que não conheci seu pai e sua
mãe.
– É melhor você ir. Antes que fique tarde e tenha que dirigir sozinha.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua boca.
Meus dedos castigam seus cabelos, enquanto movo meus lábios pelos
dele, sentindo seu gosto único.
– Venha comigo. – Sussurro colando meu corpo no dele. - Se vai falar
do meu pai, ele não está em casa. Está numa viagem de compras para a loja e
nem vai voltar esta noite...
– Julia...
– Por favor... por favor... – Imploro dentro de sua boca.
Suas mãos estão em minha cintura e posso senti-lo travar uma luta
consigo mesmo. Prendo minha respiração até que escuto um respirar
profundo e Ian me afasta.
– Eu sigo seu carro.
Eu apenas sorrio secretamente, feliz demais.
Dou partida e olho uma última vez para a casa dos Callaghan.
E sinto um arrepio incômodo ao ver três silhuetas contra a janela de
vidro nos fitando, enquanto o carro se afasta.
Percorremos o caminho e, conforme nos aproximamos da minha casa,
me pergunto se Ian vai fazer como em todas as outras noites. Se vai
simplesmente se despedir com um beijo de boa noite e partir. Mesmo eu
deixando claro minha intenção e avisando que meu pai não está em casa.
Quando chegamos e descemos eu o fito através da semiescuridão da
noite.
– Você vai entrar, não é?
Ele hesita. E eu quero desesperadamente entender por quê.
Não é óbvio que eu preciso dele? Que o que eu sinto me consome de
uma maneira que às vezes acho que vou entrar em combustão espontânea?
Ele não sente o mesmo?
Espero com a respiração presa na garganta, até que ele ri como se para
si mesmo.
– Como posso dizer não a você, Julia?
– Então não diga... – murmuro.
Eu estendo a mão e ele segura enquanto o levo para dentro.
Capítulo 6

Ian me segue porta adentro.


Meu coração bate descompassado em antecipação. Meu corpo inteiro
vibra de uma alegria desmedida. Eu não paro até que estejamos em meu
quarto. Não quero lhe dar tempo para nenhuma hesitação e nem abusar da
minha sorte.
Sinto sua presença atrás de mim. Suas mãos em meus ombros.
Quando me viro, ele se afasta.
– Então é aqui que você dorme.
Eu me sento na cama e bato a mão do lado.
– Vem aqui.
Ele parece indeciso. Eu não.
Nunca estive tão certa de algo na minha vida.
– Eu não deveria estar aqui...
– Você me confunde tanto, Ian... às vezes age como se eu fosse
importante e outras... – murmuro insegura.
– Julia – ele se aproxima sentando do meu lado. Toca meu rosto. -
Não imagina o quanto... você é importante...
– Por que não quer fazer amor comigo?
– Eu quero.
– Então faça...
– Julia...
Seguro sua mão e beijo seus dedos um a um. Seus olhos queimam.
Levo sua mão até meu seio.
– Ponha suas mãos em mim, Ian.
Ele geme e me beija com força. Em um segundo estamos sobre a
cama, seu bem-vindo peso sobre o meu corpo. Suas mãos em mim como eu
pedi. Queimando por onde passam.
Eu mal posso respirar e não me importo. Naquele momento eu vivo
para sentir Ian.
Nossos corpos se enroscam sobre a cama, meus joelhos se abrem
automaticamente para recebê-lo e eu estremeço de um desejo fremente ao
sentir sua ereção.
Ah sim. Isso! Era o que eu queria. Precisava. Ansiava.
Tudo derrete dentro de mim, o sangue queima em minhas veias como
lava incandescente deslizando pela pele e se alojando num pulsar dolorido
entre minhas pernas.
Fogos de artifícios explodem sob meus olhos fechados.
Minhas mãos se apossam dele, há roupas demais no meu caminho.
Impaciente, começo a desabotoar sua camisa até sentir a textura de seu peito
sob meus dedos. Seu coração bate no mesmo ritmo que o meu. Ele me
encara com os olhos flamejantes. Nossas respirações entrecortadas se
misturam.
Quero respirá-lo por inteiro.
– Tire minhas roupas. – Peço. Exijo.
Meu corpo está tremendo como folha ao vento. Eu estou derretendo
devagar... de repente o barulho da porta se abrindo faz Ian se afastar e eu
grito quando vejo meu pai dentro do quarto.
– Posso saber o que está acontecendo aqui?
– Deus do céu, pai! - Digo horrorizada, me sentando.
Ian já está de pé ao lado da cama, fechando a camisa. Quero que um
buraco se abra no chão e me trague para todo o sempre.
Que diabos meu pai estava fazendo ali?
– Deus do céu digo eu! Que pouca vergonha é essa?
– O senhor não ia viajar?
– Que bom que mudei de ideia, não é?
– Jack, eu sinto muito – a voz de Ian é controlada.
– Eu esperava mais de você! – Jack está gritando. – O que está
pensando? E na minha casa!
– Pai, para de gritar com o Ian! Se quiser tirar satisfação com alguém,
que seja comigo!
– Você não sabe o que está fazendo! – Ele se vira para Ian. Acho que
nunca vi meu pai tão nervoso antes. - Você vai contar a ela?
– Jack...
– De que meu pai estava falando? O que tem para contar?
Jack e Ian se encaram como dois galos de briga e eu sinto como se
não estivesse presente.
– Talvez você queira contar, Jack. – Ian diz por fim. Sua voz parece
calma agora.
Observo meu pai recuar. Passar a mão pelos cabelos, frustrado.
O que diabo está acontecendo?
– Pai?
– Já chega. Ian vá embora.
– Não, ele não vai!
– Julia, seu pai tem razão... É melhor eu ir.
– Eu vou com você. – Seguro sua mão com força.
Ian parece lutar consigo mesmo.
– Não faça isto.
– Eu amo você. Não me interessa mais nada. – Confesso
fervorosamente.
E é realmente verdade. Ninguém importa pra mim.
Eu encaro meu pai.
– Você escolheu!
E saio puxando Ian pela mão. Só consigo voltar a respirar quando
estamos no seu carro.
– Não deveria ter vindo. – Ian diz.
– Eu decido o que fazer.
– Julia...
– Por favor, ligue o carro e me leve daqui. – Peço subitamente
cansada.
Sinto lágrimas queimando meus olhos, mas não quero chorar.
Ian dá partida. A picape desliza silenciosamente pelo asfalto.
– O que meu pai quis dizer?
Ian não responde. O olhar fixo na estrada.
– Nada.
Sei que deveria exigir respostas. Só não consigo imaginar nada de tão
terrível.
Nada que me fizesse recuar agora.
– Pra onde estamos indo? – Pergunto depois de um tempo.
Parece que estamos saindo de Beaverton.
– Portland.
– Está me sequestrando? – Um sorriso brinca em meus lábios.
– Eu te avisei para se afastar.
– Talvez eu goste do perigo.
Ele ri.
Não sei se está achando realmente divertido. Parece um riso cheio de
desespero.
Não importa. Ian está me levando com ele. Não importa aonde vamos,
nem se vamos voltar. Eu confio totalmente nele.
Uma estranha calma me domina. Ian liga o rádio, eu sorrio e fecho os
olhos.
Adormeço e, entre o sono e a vigília, tenho a impressão de ouvir Ian
falando rapidamente no celular. Quero abrir os olhos. Quero prestar atenção e
escutar o que ele está dizendo, não consigo.
Acordo com suas mãos retirando meus cabelos do rosto.
– Chegamos? – Indago, abrindo os olhos e olhando em volta.
Estamos numa garagem subterrânea. Ian está fora do carro com a
porta do passageiro aberta, estendendo a mão pra mim.
Ele me puxa e eu me deixo ir, ainda meio tonta de sono.
– Deveria ter me acordado – bocejo quando entramos no elevador.
Apoio minha cabeça em seus ombros.
Ian ri baixinho.
– Eu acordei.
– Queria aproveitar a viagem com você.
– Não tem nada pra ver na estrada a esta hora, Julia.
– Não me interessa a estrada e sim estar com você.
Ele me encara como se eu estivesse falando grandes bobagens. Seus
dedos tocam meu rosto.
Ele está triste. Um nó se forma em minha garganta.
– Diga-me, por que quer estar comigo?
Ele não sabe?
– Porque eu te amo. Não há outro lugar que eu queira estar.
– Queria ter tido forças para me manter longe de você.
– Por quê?
– Porque você estava bem sem mim.
– Eu estava porque não te conhecia. Não há como ficar longe de você
agora que nos encontramos. Você não sente?
Ele descansa o queixo em meus cabelos.
– Eu te amo, Julia.
Fecho os olhos com força. Seus lábios estão em minha testa. Não há
nada mais entre nós agora.
O elevador para e saímos no corredor. Ian abre a porta e entramos
num apartamento espaçoso. Uma grande parede de vidro mostra a cidade
iluminada. Porém eu não vejo nada. Ian me puxa por um corredor, até
entrarmos num quarto.
Arregalo os olhos maravilhada.
O quarto está escuro, exceto pelas luzes da cidade através da grande
parede vidro.
– É lindo.
– Você é linda.
Ele se aproxima. Estremeço com cada toque de seus dedos em minha
pele conforme ele tira minhas roupas. Faço o mesmo com as dele, meus
lábios tocam seu ombro e eu aspiro seu cheiro único, impregnando meus
sentidos.
Sinto seus dedos se infiltrando em meus cabelos e levanto o rosto,
procurando cegamente sua boca.
E nos beijamos. São beijos diferentes agora. Têm gosto de prelúdio. O
primeiro passo para o desfecho final. Deslizo meus dedos por suas costas,
seus braços, quero senti-lo inteiro. Quero decorar cada pedaço de seu corpo.
Quero que ele faça o mesmo com o meu.
E, quando finalmente as roupas desaparecem de vez, ele me leva para
cama. Sinto os lençóis frios embaixo de mim e Ian acaricia meu rosto. Eu
sorrio e beijo sua mão, nossos dedos se entrelaçam. Não há pressa. Eu sei que
não tem volta. De alguma maneira bem fundo em meu íntimo eu sei que
nascemos para estar assim. Juntos.
– Há muito tempo eu quero estar desse jeito com você – murmuro,
puxando-o para mim.
E ele enche minha boca de beijos molhados, que fazem minha mente
girar e meu corpo queimar, ansiando por sua boca em outros lugares. Todos
os lugares. E eu sussurro em seu ouvido meu desejo e adoro o gemido rouco
de satisfação que ele solta, quando desliza por meu corpo exatamente como
eu pedi, com dentes, língua, lábios e saliva, mapeando minha pele com seu
toque mágico. Ele parece saber exatamente aonde ir para me fazer gemer e
ansiar por mais.
Sinto-o respirar em mim. O toque úmido e quente de sua língua em
meus seios. Em meu ventre.
No meio das minhas pernas.
E fecho meus olhos, deslizando numa doce inconsciência.
Até que ele se afasta e eu abro os olhos enevoados de desejo.
Ele está pondo um preservativo e isto me excita também. Vou em sua
direção e ele me segura. Estou sobre ele e encaro seus olhos intensos,
enquanto deslizo sobre sua ereção. Seus braços me apertam e nós gememos
juntos. Enfio meus dedos em seus cabelos e o beijo enquanto me movimento
devagar.
O prazer é imensurável e me consome.
Sinto-me tão feliz que tenho vontade de chorar.
E só percebo que estou fazendo exatamente isto quando Ian me
encara, a expressão de prazer enevoada pela preocupação.
– Julia... está tudo bem?
Eu sorrio e sacudo a cabeça positivamente.
– Perfeito...
Beijo-o para ele entender e aumento o ritmo.
Ele geme e me aperta mais, me fazendo deitar novamente e eu perco o
controle, me agarrando a seus ombros, deixando as sensações crescerem e me
dominarem, até me desmanchar embaixo dele, em mil pedaços de um prazer
perfeito.
Ian geme meu nome contra meus lábios, estremecendo no próprio
gozo.
E eu quero manter este momento para sempre em minha memória.
Abro os olhos depois de um tempo e Ian me fita todo lindo ainda
dentro de mim. Levanto a mão e tiro os cabelos molhados de suor da sua
testa.
– Julia... Casa comigo?
Capítulo 7

Primeiro eu acho que não escutei direito. Depois que devo ter
adormecido e estou sonhando.
Mas é real.
E eu tenho medo de pedir que ele repita para que eu tenha certeza de
que não estou alucinando. Pois meu coração já bate descompassado de uma
felicidade sem fim.
– Sim.
Ian sorri. E é o sorriso mais lindo do mundo.
Eu começo a rir feito boba.
– Não estou sonhando, não é?
– Se está, eu também estou.
Nós rimos juntos. E ele me beija.
E tudo recomeça.
***
– Julia, amor?
Desperto com a voz de Ian.
Sonolento e preocupado, ele se inclina sobre mim, beijando meu
ombro.
Estremeço. Meu rosto está molhado, assim como meu travesseiro.
– Estava tendo um pesadelo?
Respiro fundo. Dor.
Que eu não sei de onde vem.
– Não consigo me lembrar...
Ele retira os fios de cabelos do meu rosto e enxuga minhas lágrimas.
Está amanhecendo lá fora.
– Então durma. Foi só um sonho ruim.
Eu me viro de novo e fecho os olhos. Ian se encaixa atrás de mim.
– Eu não consigo me lembrar destes sonhos... – murmuro, antes de
cair no sono de novo.
Quando acordo novamente, está tudo claro.
Estou sozinha na cama e me espreguiço devagar.
Estou feliz. Como nunca estive antes.
Me levanto e vou ao banheiro. Olho minha imagem no espelho.
Meus cabelos estão desgrenhados e passo os dedos entre os fios para
tentar domá-los. Visto uma camisa de Ian ao passar de novo no quarto e vou
procurá-lo.
O encontro sentado sobre o sofá da sala, falando ao telefone.
– Tess, não insista ok? – Ele diz, então me vê e sorri. – Tenho que
desligar, tchau.
Ele desliga e me aproximo, deslizando para seu colo, encaixando meu
rosto em seu pescoço adorando sentir seus braços a minha volta.
– Bom dia.
– Minha camisa fica bem em você.
Eu o encaro.
– Não tenho roupas.
– Isto não é problema – ele sorri de lado, fazendo um arrepio subir por
minha espinha.
Agora eu tenho tempo de olhar a sala a meu redor e a vista me tira o
fôlego.
– Uau.
– Você gosta?
– É lindo...
Olho em volta, curiosa. É tudo muito chique e elegante, embora goste
mais da casa dos Callaghan em Beaverton. Aqui parece... sem vida. Como se
quem morasse ali, não usufruísse muito.
– Mora sozinho?
– Sim, foi minha irmã Rebecca quem decorou. Na verdade é ela que
rega as plantas.
Eu rio, imaginando a irmã elegante de Ian por ali.
Meu estômago ronca e Ian me tira do seu colo.
– Vamos comer.
O acompanho até a cozinha e ele me manda sentar enquanto prepara o
café da manhã. Sinto cheiro de ovos.
– Uau. Eu costumo comer só um cereal mixuruca de manhã.
– Agora está comigo e eu vou alimentá-la direito – diz, enquanto
enche meu prato com ovos e bacon.
– Talvez eu fique gorda depois de alguns anos de casamento e você
me abandone.
Ele se inclina para perto de mim.
– Vai mesmo se casar comigo?
– Hoje mesmo se for possível – e o beijo rapidamente.
Ele ri e se afasta.
– Estou falando sério. – Falo com a boca cheia de comida.
Ian ri. Acho delicioso o jeito que ele ri. É um som rico que enche meu
estômago de borboletas.
De repente o barulho de um celular tocando me assusta.
Lanço o olhar sobre a mesa onde o celular de Ian vibra.
Ele se vira tenso e pega o aparelho. Está muito sério enquanto escuta
a pessoa do outro lado da linha.
Procuro seu olhar. Ele sorri. Não há nenhum humor. Então se afasta.
Me levanto e lavo o prato na pia, me perguntando com quem Ian
estaria falando.
Quando termino de lavar tudo, ainda não retornou.
Eu vou pra sala e ele está na varanda do apartamento, de costas pra
mim. Não consigo escutar o que está dizendo, só noto a tensão em seus
ombros. Mordo os lábios com força. A curiosidade me invade. Quando ele
finalmente desliga e volta para a sala, age como se o telefonema estranho não
tivesse acontecido.
– Quem era? – Pergunto sem esconder minha curiosidade mesclada
com apreensão.
Ele hesita.
Me questiono se estou entrando em terreno proibido.
– Era seu pai.
Oh. Eu não esperava de maneira alguma por aquela resposta.
Talvez que fosse alguém de sua família. Ou quem sabe uma ex-
namorada enfurecida. Esta opção não me agradava nem um pouco, seria
ingenuidade demais querer que Ian não tivesse destruído alguns corações
antes de me conhecer.
Mas meu pai?
– Como é que ele tem seu telefone?
Ele dá de ombros.
Bufo, sem saber se estou irritada ou não.
Eu havia saído de casa brava com meu pai ontem. E, depois de tudo o
que aconteceu com Ian, me deixando numa nuvem cor de rosa de felicidade,
eu mal pensei no mundo que existia lá fora. Infelizmente o mundo existia. E
nele eu tinha um pai que deveria estar furioso.
– Por que não me deixou falar com ele? Ele está muito bravo? Por
favor, diga que ele não conseguiu também o seu endereço e está vindo pra
cá...
– Não, ele não está vindo pra cá.
– O que ele falou? - Começo agora a pensar na fúria de Jack e em
como pode ser ruim pra mim e até pra Ian.
– Ele estava mais preocupado do que bravo, Julia.
– E ele queria falar comigo? Por que não me deixou falar com ele?
– Porque eu consegui acalmá-lo.
Eu o encaro cética.
– Está mentindo.
– Eu disse que estaria te levando de volta pra casa ainda hoje.
– Eu não quero voltar pra casa.
– Julia...
– Não ainda – murmuro, de repente, sentindo certo pavor de me
separar de Ian.
Ele se aproxima e eu me encosto nele.
Chega a ser assustador o jeito que eu preciso de sua proximidade.
Seus lábios em meus cabelos. Minhas mãos amassando sua camisa.
Aspiro.
– Julia, eu não quero te levar embora.
– Então não leva – digo, esfregando meu rosto em seu peito.
– Não quero criar mais problemas com seu pai.
Eu fico na ponta dos pés. Respiro em sua boca.
Ian fecha os olhos.
– Você não sente que isto é certo? - Passo meus braços por sua nuca o
puxando pra mim.
As mãos dele afundam em meus cabelos.
E ele me beija. Nossas línguas acariciando-se, sentindo o sabor uma
da outra.
Quero me perder nele novamente. Quero esquecer a existência do
mundo lá fora.
Não sei bem se chego a pedir em voz alta. Só exulto intimamente
quando meus pés saem do chão. Até sentir que estou deitada com Ian sobre
mim.
Em beijos sem fim.
Me fazendo lembrar dele dentro de mim.
– Faz amor comigo, Ian – peço entre beijos molhados que enchem
minha boca.
Minhas mãos se tornam impacientes ao retirar suas roupas.
De repente tudo é só sensação.
E gemidos. E atrito.
E Ian dentro de mim. Rápido. Fundo. Com força.
Os olhos fixos em mim, enquanto me preenche de uma maneira quase
espiritual.
Minha alma está sendo possuída.
O orgasmo vem rápido e efêmero. Estremeço. Derreto.
Ian enterra o rosto em meus cabelos e geme alto. Envolvo seu corpo
trêmulo em meus braços. Não quero mais soltar.

***
Estou olhando a chuva fina cair através da janela. Minha cabeça
repousada no travesseiro. Sinto a respiração de Ian em minha nuca, seus
dedos brincando na minha barriga.
– Você sempre tem aqueles pesadelos?
A pergunta surge de repente, sem aviso.
Me assusta um pouco.
Mordo os lábios com força e penso em contar a ele.
– Às vezes – respondo casualmente.
De repente uma desconfiança terrível me domina.
E se Ian souber? E se meu pai contou a ele? E se é por isto que ele
ficava sempre tentando se afastar de mim?
O encaro com desconfiança.
Eu posso perguntar. Por outro lado, se perguntar e ele não souber, eu
terei que contar.
E eu não quero que ele saiba.
– Não quero voltar pra Beaverton – murmuro.
Ele fica tenso.
– Eu tenho medo que tudo mude – continuo. – Que me convençam
que não devo ficar com você. – Confesso.
Ian fica em silêncio.
Quase nem o escuto respirar.
– Eu te amo, Ian. Quero ficar com você pra sempre.
Mais silêncio.
Ouço apenas o som da chuva lá fora.
Então ele me faz virar.
Seu olhar é intenso. Determinado.
Quase voraz.
– Casa comigo?
Eu sorrio docemente.
– Eu já disse que sim.
– Agora.
– Agora? – Eu rio.
Embora saiba que ele não está brincando.
Minha vez de não respirar.
– No Estado do Oregon o prazo da licença de casamento é de três
dias...
As ideias se amontoam em minha mente.
Casar com Ian. Não uma ideia abstrata, algo para um futuro incerto.
Agora.
Sou tomada por uma enxurrada de sentimentos.
Exulto. Hesito.
E meu pai? E a família dele?
– Eu te amo, Julia.
Aí está.
O que estou esperando.
Ian me ama.
Não sei por que, mas me ama.
De repente nada mais tem importância. Fomos feitos um para o outro.
É tão simples que não há mais um pingo de hesitação em mim.
– Três dias me parece perfeito.
Ele sorri.
Lindo.
Deslumbrante.
Meu.
E eu estou mais feliz do que um dia estive na vida. Ou que me lembre.

***
Três dias passam como um sonho bom.
Quero me prender em todos os detalhes. Não quero me esquecer de
nada. Estou quase intoxicada numa nuvem de felicidade constante.
Depois de me beijar um milhão de vezes naquela tarde, Ian me levou
para fazer compras. Obviamente eu torci o nariz, Ian foi prático dizendo que,
a não ser que eu preferisse voltar a Beaverton para pegar minhas coisas, eu
precisaria de roupas.
Eu tive que concordar. E Ian ainda disse que eu tinha sorte de sua
irmã gêmea não estar junto, aí sim seria um pesadelo.
Eu havia ficado meio apreensiva quando ele falou da família. Afinal,
o que os Callaghan pensariam deste casamento relâmpago? Nem mesmo isto
foi capaz de me tirar da bolha em que eu estava vivendo.
Comprei tudo o que Ian queria obedientemente. E como eu tinha sido
uma “boa menina”, ele me levou a uma livraria enorme em Portland e aí sim,
eu senti prazer em comprar.
Ele andava atrás de mim, sorrindo docemente, como se acompanhasse
uma criança numa loja de doces. Me roubando beijos entre as estantes. Me
enchendo com um pouco mais de felicidade.
Depois jantamos num restaurante que ele dizia ser seu preferido e eu
havia adorado. Queria que ele compartilhasse comigo tudo o que gostava.
Havia tanto a saber. Tanto que eu queria descobrir. Haveria tempo.
Haveria a eternidade.
Quando voltamos pra casa, eu praticamente dormia em pé. Ian me pôs
na cama como uma boneca de pano e eu adormeci um sono sem sonhos quase
imediatamente.
Foi só quando acordei muito tarde no dia seguinte, que me lembrei
que Ian tinha prometido a meu pai me levar embora.
Ian sorriu enquanto preparava meu café da manhã e disse pra eu não
me preocupar, pois já avisara Jack.
– Você disse a ele sobre... o casamento? – Indaguei apreensiva.
Ele ficou tenso.
– Não, não disse.
Respirei aliviada.
Era melhor Jack não saber ainda.
Passamos a tarde namorando no sofá enquanto fingíamos ver alguns
filmes dos quais nunca me lembraria.
E à noite eu insisti em cozinhar com Ian fazendo piada sobre minhas
habilidades culinárias e eu fiquei feliz em mostrar a ele que eu sabia cozinhar,
sim senhor.
– Está se casando com uma moça prendada – disse em seu ouvido,
depois de pular pro seu colo ao fim da refeição.
Ele riu e me beijou. E me levou pra cama.
Demorou muito até que finalmente dormíssemos. E eu queria me
lembrar quantas vezes eu havia me desmanchado de prazer naquela noite. As
sensações ficaram impregnadas em mim, assim como seu cheiro. Seu gosto.
A marca dos seus beijos em minha pele.
Me recordava claramente de seus lábios em minha nuca e seus braços
me envolvendo quando finalmente o sono nos dominou.
E, sobretudo, sua voz sonolenta em meu ouvido.
– Eu te amo.
E então o terceiro dia amanheceu.
Ian me acordou com um beijo na testa. O corpo morno colado ao meu
sob o cobertor. Abro os olhos para seu sorriso sonolento e perfeito.
Pensar que acordarei assim todos os dias me deixa feliz.
– Tenho um presente pra você.
Faço uma careta e ele ri, saindo da cama.
– Tome um banho e vista-se. Vou preparar seu café.
Eu faço o que ele pediu, um pouco curiosa, confesso. Quando entro na
cozinha, meu estômago ronca. Me aproximo de Ian e beijo suas costas nuas.
– Cadê a surpresa?
– Sente-se e coma primeiro.
– Precisa parar com toda esta comida gordurosa se não quiser uma
esposa gorda e com colesterol alto.
Ele ri, enquanto me serve.
– Eu amarei você mesmo assim. Na saúde e na doença, lembra?
Rolo os olhos, começando a comer.
Ele beija meus cabelos.
– Vou tomar um banho, ok?
Enquanto como, vejo o celular de Ian sobre a mesa. Penso se meu pai
ligou mais alguma vez. Acho estranho que ele tenha simplesmente
concordado em me deixar com Ian. Ou será que Jack finalmente entendeu
que eu cresci e sou dona das minhas próprias decisões?
Acabo de comer ainda pensativa e, enquanto lavo a louça, penso em
ligar pra Carla para contar que hoje eu vou me casar. Há uma parte de mim
que acha importante compartilhar com ela. Chego a segurar o telefone em
minhas mãos, indecisa. O barulho de Ian retornando, me faz recuar.
– Vamos?
– Aonde? – pergunto desconfiada.
– Surpresa – ele me puxa pela mão porta afora.
Em vez de irmos para a garagem, ele me leva para a rua. Há um carro
parado e um motorista abre a porta traseira para mim. Eu sento enquanto Ian
fica segurando a porta.
– Te vejo no juiz.
– Como assim?
– Dizem que dá azar o noivo ver a noiva antes do casamento.
– Ian... aonde este cara vai me levar?
– Primeiro pra comprar um vestido, depois pra você se arrumar.
– Não sei se... – eu nem tinha pensado nestes detalhes práticos.
Ele ri e fecha a porta.
– Não se preocupe nos veremos no fim do dia.
– Preferia passar o dia com você.
– Passaremos todos os dias juntos de hoje em diante.
– Promete?
– Prometo.
Ele se inclina e me beija rapidamente. Então o carro segue.
O dia sem Ian é meio confuso depois de ter passado as últimas horas
grudada nele.
É estranho.
Tento me divertir, enquanto estou numa loja de noivas e me obrigam
a experimentar vários vestidos.
Nunca pensei no dia do meu casamento ou em que tipo de vestido
usaria. Então é esquisito ver toda aquela profusão de tules e cetim branco.
Por fim, escolho o mais simples.
As noivas se vestem para serem vistas e admiradas. Como somente eu
e Ian estaremos em nosso casamento, não faz diferença mesmo.
Depois o motorista, um senhor de meia-idade bem simpático, me leva
a um cabeleireiro e eu tenho vontade de sair correndo ao ver todas aquelas
mãos femininas, atenciosas e solícitas.
Quando digo que é meu casamento, o negócio fica realmente sério.
Tenho que lutar bravamente para não sair de lá parecendo um merengue.
Por fim, tudo termina.
Eu estou pronta.
É estranho quando o motorista me deixa em frente a um prédio
enorme e eu respiro fundo, subitamente insegura. Até que a porta se abre e
Ian está lá, me puxando para fora.
Ele sorri. E tudo volta a ser perfeito.
– Você está linda.
Dou de ombros, sem graça.
Meus cabelos estão presos num coque intricado. E uso mais
maquiagem que jamais usei na vida. E o ridículo véu que me obrigaram a
comprar está em minhas mãos.
– Parece exagero.
– Você é linda de qualquer jeito.
Rolo os olhos.
– E então?
Ele segura minha mão.
– Vamos casar.
Percorremos um saguão elegante e ninguém parece reparar em nós,
enquanto subimos um lance de escadas. E me dou conta de que desde que dei
meus documentos a Ian, não fiz nenhuma pergunta em como ou quem iria
nos casar.
– O que acontece agora? – pergunto.
– O juiz é um velho conhecido. Concordou em nos casar
discretamente. – ele pisca, ao abrir uma porta.
Estamos no que parece ser um grande escritório. Um homem de meia
idade nos cumprimenta e eu não me lembro direito dos detalhes depois disto.
Como num sonho onírico, apenas vejo Ian dizendo todos aqueles
votos antigos e profundos. E digo o mesmo.
Parece muito rápido até que ele está escorregando uma aliança de
ouro em meu dedo. Tenho uma aliança para colocar no dedo dele também.
E sou grata por Ian ter pensado em todos os detalhes. Por ter feito
tudo perfeito.
E então ele está me beijando.
E o juiz sorri muito prático. Assinamos alguns papéis.
Eu não consigo parar de sorrir quando Ian segura minha mão e me
puxa para fora da sala.
– Vamos para casa, senhora Callaghan.
Está escurecendo enquanto dirige para casa. E eu estou feliz.
Agora é definitivo.
Eu não sou mais Julia Simmons.
Sou Julia Callaghan.
E este cara lindo e perfeito do meu lado é meu marido.
É estranho. É assustador.
É maravilhoso.
De vez em quando ele desvia os olhos do trânsito e sorri pra mim. E
eu mordo os lábios. Plena de expectativa e felicidade. Eu estou começando o
meu pra sempre.
– Cansada? – Ian pergunta ao entrarmos no elevador.
Eu sacudo a cabeça negativamente.
– Não.
Ele sorri, e quando o elevador chega ao andar, solto um gritinho de
susto quando ele me ergue no colo.
– É a tradição, senhora Callaghan.
Eu beijo seu rosto e rimos feito crianças quando Ian se atrapalha para
abrir a porta comigo no colo. Ambos paramos de rir instantaneamente ao
entrarmos no apartamento.
Há alguém ali.
Avisto uma silhueta feminina contra a parede de vidro.
Eu penso que estou sonhando. Um pesadelo estranho.
Uma mulher está parada de costas. Ela usa uma camisola preta, que
mais parece uma lingerie e tem uma taça de champanhe na mão.
– Ian, querido... – ela se vira.
Então seus olhos se arregalam quando nos vê.
Eu não sei quem está mais estupefata.
Se eu, ela.
Ou Ian.
Por um momento suspenso no tempo, ninguém fala nada. Ninguém
respira.
Então Ian me coloca no chão.
– O que diabo está fazendo aqui, Susan?
Capítulo 8

A voz de Ian é tensa. Furiosa. Fria.


Eu o encaro. Ele conhece esta mulher?
Claro que conhece! Do contrário ela não estaria no seu apartamento
vestindo lingerie.
Ela tinha as chaves. E o chamou de “Ian, querido”.
Meu estômago revira enquanto a realidade vai invadindo minha
mente.
Não. Não. Não.
Eu não poderei negar pra sempre. As evidências estão ali.
Sinto minha mente girar. O ar se nega a sair dos meus pulmões.
Estou sufocando.
A mulher chamada Susan não fala nada. Ela parece tão horrorizada
quanto eu. Seja lá o que ela for pra Ian, de maneira alguma esperava que ele
estivesse acompanhado.
Chego a sentir pena dela por um momento.
– Ian... – ela olha de mim para ele como se estivesse vendo um
fantasma.
– Mas que diabos... – Ian pragueja e passa a mão nos cabelos
encarando a intrusa – Susan, pelo amor de Deus, vista uma roupa!
– Mas... – ela balbucia.
Ele atravessa a sala e segura seu braço. A taça de champanhe se
espatifa no chão. O vejo praticamente arrastá-la pra fora da sala.
Eu me mexo apenas pra poder sentar. Estou tremendo inteira acho que
vou vomitar a qualquer momento. Ele disse que não tinha uma namorada.
Então quem era aquela tal de Susan? Que o esperava dentro de casa,
vestida pra uma sessão de sexo?
Escuto vozes em algum lugar do apartamento. Não consigo ouvir
direito. Apenas um zunido soando em minha cabeça.
Eu almejo perder os sentidos. Quero sair daquela realidade.
Eu preciso.
Não consigo me mexer. Estou paralisada de horror.
Quem era o homem com quem eu me casei?

Não sei quantos minutos se passam até que Ian e a tal Susan
aparecem. Ela está vestida e segura uma bolsa. Eu analiso sua aparência pela
primeira vez, avaliando-a. É uma moça bonita, com cabelos pretos levemente
ondulados na altura dos ombros. Seus lábios com batom vermelho se
destacam no rosto pálido de beleza clássica.
Ainda estou analisando-a sem a menor cerimônia, quando ela passa
por mim sem falar nada e sai da sala, Ian fecha a porta atrás dela e me encara.
– Julia, sinto muito, eu...
– Sente muito? – Minha voz está calma, embora por dentro eu esteja
gritando.
– Deus do céu... – Ian se aproxima, seu olhar é suplicante.
Eu não sinto nada.
– Ela é sua amante.
Não é uma pergunta.
– Ela foi.
Fecho os olhos. Eu não sei o que esperava.
Talvez uma negativa enfática. A confirmação me rasga por dentro.
Imaginá-lo com outra mulher me enche de dor.
Abro os olhos e encaro Ian. O cara que eu conheço há tão pouco
tempo. A quem confiei minha vida inteira. De repente eu sinto que não o
conheço.
Sou tomada por uma raiva cega. Não só de Ian, também de mim
mesma.
– Foi é? E o que ela fazia aqui sem roupa?
– Eu não sei.
– Ah, Ian, pode até parecer, mas eu não sou idiota! Por que não me
contou? Quanto tempo achou que podia me enganar? Era disso que todo
mundo falava? Você tinha essa tal Susan na sua vida, ela é sua namorada ou
o quê?
– Não era uma namorada. É uma amiga.
– Amiga? Todas suas amigas o esperam em casa seminuas?
– Nós dormíamos juntos, Julia. E não acontece mais.
– Desde quando?
– Desde que te encontrei.
– E ela sabe? Não me pareceu que soubesse!
– Nós terminamos. Eu fui sincero quando disse que não tinha
ninguém.
– Então o que ela estava fazendo aqui?
– Por algum motivo ela cismou que eu não estava falando sério.
– Podia ter me contado. Devia ter me contado!
– Era passado.
– Não era. Se no dia em que nos casamos ela surge quase nua em sua
sala – minha voz se alquebra.
Eu me levanto e ando tropegamente.
– Julia... – Ian tenta segurar meu braço, eu o afasto com um safanão.
– Não ponha a mão em mim!
Saio da sala e me tranco no banheiro. Inclino-me sobre o vaso e
vomito até a alma.
Sei que Ian está do outro lado da porta, finjo que não está.
Me olho no espelho. A maquiagem derreteu. Estou horrível.
Mas minha aparência tem conserto. Enquanto eu, por dentro, estou
quebrada.

Não sei quanto tempo permaneço ali sem coragem para sair.
Eu não sei o que fazer.
Ian está me esperando. Seu olhar é triste. Sua tristeza não me atinge.
Sento na cama e meus olhos recaem sobre a camisola preta esquecida.
A camisola de Susan.
– Quero ficar sozinha – digo.
– Julia, por favor, eu estou falando a verdade. Eu sinto muito... Não
era para Susan estar aqui... Ela achou que... Ela não sabia sobre você. De
alguma maneira pensou que podia me convencer a voltarmos...
– Eu não quero saber...
– Mas eu preciso falar! Eu tinha preparado tudo. Aquele champanhe,
até esta maldita camisola que ela usava, nada era pra ela, eu tinha deixado
tudo pronto pra você para quando voltássemos. Chegar e ver Susan
estragando tudo...
– Eu disse... – respiro fundo. – Que não quero saber.
– Você não pode estar acreditando que eu ia te enganar desse jeito...
– Eu não sei. Eu não te conheço, Ian – o encaro cheia de angústia. –
Eu não sei do que você é capaz. Eu começo a achar que foi um grande erro
me casar com você.
Estas palavras me ferem.
De alguma maneira eu sei que o machucam também. Eu
simplesmente não posso lidar com nada agora.
– Por favor, me deixa sozinha.
Ian parece querer insistir, por fim, ele sai do quarto, fechando a porta
atrás de si. Eu retiro o vestido. Desfaço o penteado bonito. Lavo meu rosto
para tirar qualquer resquício de maquiagem.
Ainda continuo pálida. Meus olhos estão sem vida.
Pego o telefone e disco os números.
– Alô? - A voz conhecida e sonolenta atende.
– Pai?
– Julia...?
– Vem me buscar?
– Filha, o que aconteceu? Você está bem?
– Estou... – vai dar trabalho demais explicar.
– Cadê o Ian? O que foi que aconteceu...
– Pai, por favor, apenas diga se pode vir me buscar...
– Tudo bem. Estou indo.
Não levo nada quando saio do apartamento de Ian duas horas depois.
Também não o vejo em parte alguma. Deixo apenas um bilhete no quarto.
O carro de Jack para no meio fio e eu entro, antes que ele tenha a
infeliz ideia de descer e tirar alguma satisfação com Ian. Não quero que eles
entrem em conflito.
Já basta o nosso conflito.
– O que diabo está acontecendo?
– Podemos ir embora e conversar depois?
– Julia...
– Por favor, pai...
Jack dá partida.
– Você sabia, não é? – Pergunto depois de um tempo.
– Julia, meu bem... Deus do céu... você descobriu...
– Que o Ian tinha uma namorada? Claro que sim! Meio difícil ignorar
quando ela está parada na sala vestindo lingerie no dia do meu casamento!
O carro para com um solavanco e eu vou pra frente.
– Pai, quer nos matar?
– Que história é essa de casamento?
Mordo os lábios com força e meu olhar vai pra aliança em meu dedo.
– Eu e Ian nos casamos – sussurro cheia de culpa.
Agora eu percebo o quão imprudente eu fui. O quanto fui tola
confiando cegamente em um cara que eu mal conheço. Indo contra os avisos
do meu pai.
Tenho vontade de bater a cabeça contra o asfalto.
– Se casaram, é?
– Sinto muito pai... eu sei que fui... imprudente. Eu não deveria ter
feito isto... eu não fazia ideia que o Ian tinha esta mulher chamada Susan na
vida dele, ele diz que terminaram...
– Espera... foi por isto que pediu para eu vir te buscar? É este o
problema?
– Acha pouco? Você não parece surpreso, não é? Com certeza já
sabia... como pude ser tão idiota! Por que não me contou que era por isto que
não queria que eu ficasse com o Ian, não acha que devia ter me avisado?
Jack suspira, como se estivesse pensando no que dizer.
– Você estava cega. Duvido que iria me ouvir.
O pior é que eu desconfio que Jack tem razão.
– Me conta o que aconteceu.
Eu conto a Jack. Revivendo aquele momento de horror ao entrar no
apartamento de Ian e sendo surpreendida por Susan seminua.
– Aquele... – Jack solta vários palavrões assustadores. - Eu devia
voltar lá e quebrá-lo em dois!
– Não vai fazer nada disso.
– Julia...
– Por favor, pai, vamos embora? Eu só quero voltar pra casa.
Ele finalmente concorda.
Chegamos em casa quando está amanhecendo. Me arrasto até a cama
e caio num sono profundo.
Acordo suando e gritando. Não me lembro com o que sonhei.
Não está chovendo, só frio e nublado.
– Bom dia – digo em tom neutro ao chegar na cozinha.
Jack me encara preocupado.
– Você está bem?
Colo um sorriso amarelo no rosto ao fitá-lo por cima do meu cereal
que não tem gosto de nada naquela manhã.
Tento não pensar em ovos mexidos e beijos roubados.
– Vai trabalhar pai, vou ficar bem.
Ele não parece convencido.
Fica me olhando enquanto como. Como se quisesse me dizer alguma
coisa.
Até que solta um suspiro profundo.
– Eu preciso ir trabalhar. Liguei para Carla vir ficar com você.
Reviro os olhos, meio irritada.
Não sei se quero companhia. Não sei se quero alguém me encarando
com pena ou reprovação por ter sido uma idiota.
– E não adianta reclamar. – Jack resmunga e sai porta afora.
Jogo o cereal quase intocado no lixo e volto pra cama. Penso em ligar
para Carla e pedir para ela não vir, acabo desistindo.
Talvez Jack tenha razão. Ficar sozinha é perigoso, a vontade que eu
tenho é de me esconder na cama o dia inteiro.
Ou dias inteiros.
Ou até passar aquela dor.
Escuto um carro parando no meu jardim e me obrigo a levantar.
Caminho até a porta e a abro. Não é Carla que está ali.
É Ian.
Respiro fundo. Desvio o olhar.
Não quero olhar pra ele.
– Ainda não quero falar com você.
– Eu sei.
– Então o que veio fazer aqui?
– Te pedir desculpas. E dizer que vou aceitar qualquer decisão que
tomar.
– Decisão? Sobre o casamento?
– Sobre nós.
Sinto o nó na minha garganta se apertar.
Quero chorar. Quero agredi-lo a socos e pontapés.
– Eu ainda não sei... – limpo minha garganta para que minha voz não
saia chorosa – o que vai acontecer. Então só... me deixe sozinha por
enquanto.
– Tudo bem.
Ele se afasta em direção ao carro.
Fecho a porta e consigo chegar até o sofá, onde me sento encolhida. E
finalmente eu choro.
Carla me encontra assim algum tempo depois.
E eu sou grata por ela simplesmente me estender um lenço e me
deixar chorar, até que finalmente as lágrimas cessam.
Conto tudo a ela.
– Acha que eu sou uma idiota, não é?
– Você estava apaixonada.
– Uma idiota.
– Talvez devesse ter esperado mais, antes de... se casar e tal.
– É que tudo parecia tão perfeito, tão certo... predestinado, entende?
Como se estar com Ian fosse a coisa mais natural do mundo. Então... eu vejo
aquela garota...
– Ele não disse que ela era uma ex?
– Acha que devo acreditar?
– Esta Susan... e se ela for meio obcecada por Ian? E se ela não se
conforma que ele tenha dado o fora nela?
– Bom, nem posso culpá-la – resmungo.
Como é que se esquece um cara como Ian?
– O que eu faço?
– Bom, você pode pedir o divórcio. Seguir com sua vida.
Sinto um aperto no peito somente de pensar nesta possibilidade.
Seguir em frente. Sem Ian. Como se ele não tivesse existido em
minha vida.
– Ou continua com o Ian e esquece a tal Susan. – Carla completa.
Será que eu conseguiria? Simplesmente voltar pra Ian e esquecer o
episódio horrível de encontrar sua ex-amante quase nua na noite que deveria
ser minha noite de núpcias?
– Julia, posso te dar um conselho?
Olho para Carla.
– Ian não é o cara perfeito que idealizou. Ninguém é. Nenhum
homem. Mas eu acho que ele gosta mesmo de você. De verdade. Então, se for
ficar com ele, aceite as coisas como são. Ele teve esta garota na vida dele e
está dizendo que a deixou, que quer ficar com você. Às vezes a gente tem que
dar um voto de confiança pra voltar a ser feliz.
Eu fico pensando em suas palavras muito tempo depois que ela se foi.
Jack aparece com pizzas à noite. Me estuda preocupado. Pergunta se
estou bem.
– Ainda não sei – digo depois de comer e lhe dou boa noite, indo pra
cama.
Nesta noite eu não tenho pesadelos.
Eu sonho com Ian. Sonho que continua como antes. Que estamos
juntos. E acordo me sentindo triste, porque não sei se ainda será possível.
Jack já saiu pra trabalhar. Ligo para Carla para falar sobre as aulas,
me dando conta de que simplesmente deveria ter voltado ao trabalho.
Carla me tranquiliza, dizendo que deu uma desculpa por mim e que eu
posso ficar mais uns dias em casa. Eu acho que devo voltar logo a trabalhar.
Ocupar minha mente e meus dias, para esquecer o quanto minha vida está
bagunçada.
Por um momento anseio por dias tranquilos. Dias sem paixões
turbulentas.
Apenas um dia de cada vez.
Naquela tarde, eu dirijo até a fazenda dos Wilson. Chris está saindo
do estábulo e me vê. Ele sorri e eu sinto como se fosse adolescente de novo.
E vou ao seu encontro. Deixo que ele me abrace forte.
Por um momento isto basta. Seria tudo tão mais simples se bastasse
sempre.
– Por onde andou? – Ele pergunta finalmente ao me soltar e eu dou de
ombros, passando os dedos por meus cabelos bagunçados pelo vento.
Os olhos de Chris se estreitam e eu percebo seu olhar fixo na aliança
em meu dedo.
– Isto é uma...
– Aliança – completo. – Eu me casei – falo, dando de ombros
casualmente como se estivesse falando de comprar uma blusa nova.
– Casou?
– Com Ian Callaghan.
Eu não sei dizer com certeza se entendo a reação de Chris. Acho que
esperei que ele ficasse furioso. Gritasse comigo sobre o quão maluca eu sou
por me casar com um cara que mal conheço. Ele simplesmente me encara em
silêncio.
– Diz alguma coisa – peço, cheia de angústia.
– Vamos dar uma volta e você me explica tudo.
Nós caminhamos e eu conto a ele sobre meu casamento em Portland.
– E por que está aqui, Julia?
– Porque, quando voltamos pra casa depois do casamento, uma tal de
Susan estava lá.
– Susan Willians?
Eu o encaro espantada.
– Você a conhece? Como... Oh Deus, você também sabia, não é?
– Julia – ele tenta segurar minha mão, eu o afasto.
– Que inferno! Todo mundo nesta maldita cidade parecia saber que
Ian estava me fazendo de idiota e ninguém foi capaz de me contar? Até você,
Chris?
– O que você sabe sobre Susan Willians?
– Além do fato de ela estar esperando por Ian seminua no dia do
nosso casamento?
– Ian me disse que não estava mais com ela.
– Mas o quê... você e Ian conversaram sobre ela? – Começo a ficar
realmente furiosa.
– Eu precisava saber, já que ele estava com você.
– Deus do céu, eu odeio você neste momento, Chris! Como pôde
fazer isso?
– Eu só queria protegê-la.
– Eu sou adulta e posso tomar conta da minha própria vida, seria bem
mais fácil se eu soubesse da existência desta tal Susan!
– Se Ian não estava mais com ela, não tinha porque eu contar. Aposto
que ia parecer que eu estava fazendo sua cabeça contra ele.
Sim, ele tem razão.
Chris nunca escondeu que tem ciúmes de Ian.
Respiro fundo, tentando me acalmar.
– E o que você sabe sobre Susan.
– Julia...
– Por favor, me conta Chris.
– Ela é amiga da irmã do Ian, Rebecca. E as famílias são amigas
desde sempre.
– E o que ela foi pro Ian?
– Eles dormiam juntos... há algum tempo.
– Eles eram namorados?
– Não. Não era assim.
– Você parece saber bastante.
– Cidade pequena, Julia. Sabe como as coisas funcionam. E os
Callaghan são uma espécie de realeza. Todo mundo gosta de comentar sobre
a vida deles.
– Então esta Susan é amiga da família? Por que ele não namorava
com ela, então?
Fico me perguntando o que a família de Ian pensa sobre isto. Se me
odeiam porque o roubei de Susan.
– Terá que perguntar a ele. O que o Ian te disse sobre ela?
– Eu o deixei.
– Deixou?
– Na verdade ele tentou explicar, disse que dormia com a Susan, que
terminou com ela... eu não consegui ficar lá. Pedi pro meu pai ir me buscar.
Ian apareceu na minha casa ontem dizendo que aceitaria qualquer decisão que
eu tomasse.
– E o que vai fazer?
– Eu não sei...
– Julia... eu sinto muito.
Eu o encaro. Será que sentia mesmo? Eu sabia dos sentimentos dele
por mim. Talvez estivesse feliz por Ian estar longe. De alguma maneira, eu
soube que Chris estava sendo sincero.
– Não sei o que fazer – murmuro, ao sentar sob a árvore.
Chris senta ao meu lado e passa os braços sobre meus ombros.
– Quer que eu dê uma surra nele?
Eu rio, encostando minha cabeça em seu ombro.
– Às vezes quero voltar no tempo. Quando éramos adolescentes.
Quando tudo era tão simples.
Ele me aperta um pouco mais e sinto seus lábios em meus cabelos.
– Era tudo o que mais queria. Eu teria te conquistado... e nenhum Ian
Callaghan teria chances com você.
Eu me afasto com cuidado.
– Chris...
– Me desculpe Jules.
– Sou eu que tenho que pedir. Sei que não estou sendo legal com
você. – murmuro cheia de culpa.
– Não. Somos amigos. Isto nunca vai mudar. Não importa o que
aconteça.
– E como meu amigo, o que acha que devo fazer?
– Eu queria muito dizer que deveria esquecer o Callaghan de vez.
Infelizmente sei que nunca vai acontecer. Podem passar anos, Julia, você
pode esquecer de tudo, porém, o que você sente... não vai mudar.
Quero dizer que ele está errado.
O tempo cura tudo, não é o que dizem? De alguma maneira eu
desconfio que ele está certo.
Nos despedimos algum tempo depois e eu dirijo sem rumo.
Paro o jipe na estrada e entro na floresta. Sei exatamente aonde estou
indo.
Não sei por que estou indo. Ou talvez saiba.
Ele está lá. Eu não me surpreendo.
Com certeza ele se surpreende ao me ver caminhando em sua direção.
Sento do seu lado. Por um momento nenhum de nós diz nada. Percebo
a falta que eu senti dele. De apenas estar em sua presença. Saber que ele está
ao alcance de minhas mãos.
– O que veio fazer aqui? – Pergunto baixinho.
– Sofrer por você.
Eu o encaro.
Ele sorri tristemente.
– Eu também.
Ele fica sério. Grave.
– Não quero que sofra.
– Impossível.
– Julia, você acredita mesmo que eu tenha te enganado em relação a
Susan? Que eu enganei vocês duas? Que de alguma maneira eu ainda ficaria
com a Susan depois de casar com você?
– Não.
E é verdade. Percebo que estava com dificuldade de lidar com este Ian
humano. Não tão perfeito como nos meus devaneios românticos.
E aí ele tinha uma ex. Quem não tinha?
E escondeu de mim. Será que eu podia realmente culpá-lo quando eu
também estava escondendo coisas dele?
– Eu fui sincero com você – ele continua.
– Podia ter sido sincero antes.
– Eu deveria ter feito um relatório de todos meus antigos
relacionamentos? Talvez eu devesse pedir um pra você também.
Eu penso no que eu não contei. Penso se não é pior.
Algo se debate dentro de mim. Não consigo falar. Eu não quero falar.
Então sinto seus dedos no meu cabelo. Fecho os olhos.
– Eu só queria uma segunda chance com você.
E o que eu queria?
Eu gostava tanto dele que chegava a doer.
Será que por causa de uma ex-namorada eu deveria simplesmente
riscar Ian da minha vida?
Nunca mais vê-lo.
Nunca mais sentir seus dedos em meu rosto, como agora.
Sua respiração quente em minha pele. Seu gosto em minha língua.
Seu beijo.
Suspiro e em um segundo estamos nos beijando.
E é como voltar pra casa.
Toco seu rosto. Seus cabelos. Aspiro seu cheiro.
O beijo termina, mas permanecemos abraçados.
– Precisamos descer – Ian diz depois de um tempo.
Sim, não há mais sol e logo vai escurecer.
Eu hesito. Sei que preciso tomar uma decisão.
Nós descemos em silêncio. Ian me leva até meu carro e parece tanto
com o dia em que nos conhecemos que sorrio.
– Déjà-vu – digo ao entrar no jipe.
– Parece errado deixar você ir – ele diz. – Apesar de saber que não
posso forçá-la a nada. Eu já fiz... deixa pra lá.
Ele fecha a porta e se afasta.
Sinto vontade de chorar.
E choro.
Eu dirijo de volta sem ver nada no caminho. Quando chego em casa,
subo as escadas e arrumo minhas coisas. Demoro um tempo para conseguir
colocar tudo no jipe.
Escrevo um bilhete para Jack.
Só há uma coisa a fazer.

A tarde está caindo quando estaciono em frente à casa dos Callaghan.


Sinto um frio no estômago ao sair do carro e bater à porta. Eu devia
ter ligado, eu devia... Ian aparece na minha frente.
Ele olha pra mim meio surpreso.
Sei que meus olhos ainda estão vermelhos e pareço uma bagunça.
Então ele olha através de mim. Vê as coisas no meu jipe.
E sorri.
– Você voltou.
E rapidamente estou em seus braços.
Estou em casa.
Capítulo 9

Estou deitada na cama de Ian. No quarto dele.


Na casa dos Callaghan.
Minha casa agora, afinal, também sou uma Callaghan. Pensar em mim
mesma fazendo parte daquela família tão diferente é muito estranho. Um
pouco assustador.
Não posso negar a mim mesma que estou meio assustada por estar ali.
– Eu devia ter ligado, não deveria ter vindo pra cá... É a casa dos seus
pais... – disse quando Ian finalmente me deixou respirar.
Ele havia rido divertido.
– É sua casa também.
Escondi o rosto em seu peito.
– Acho que estou envergonhada.
Ele riu mais ainda, beijando meus cabelos e, me puxando pelas mãos,
me levou pelos corredores até seu quarto.
E então estávamos sozinhos. Em nossa pequena bolha. Tudo havia
ficado lá fora.
A verdade é que eu ainda não me sentia preparada para enfrentar os
Callaghan. Só havia parado de pensar na família de Ian ou em qualquer outra
coisa quando ele me beijou, abraçou, me deitando sobre a cama e finalmente
fazendo amor comigo.
Parecia que fazia anos e não dias desde a última vez que eu o senti
dentro de mim. Instantaneamente esqueço de tudo, exceto o que sinto por ele.
E agora ele está se movendo devagar, numa posse doce: “senti tanto a
sua falta”, ele sussurra contra meus lábios. E eu o abraço forte.
Não preciso dizer que também senti.
Mesmo querendo ficar acordada e sabendo que precisamos conversar
sobre mil coisas, eu adormeço em seguida.
Só acordo quando o dia já amanheceu e a luz do dia nublado entra
pelas janelas.
Ian ainda dorme e eu olho o relógio me lembrando que prometi que
iria trabalhar. Então, mesmo sem a menor vontade de levantar e deixá-lo, eu
saio da cama.
Surpreendo-me ao ver que todas as minhas coisas estão lá. Em algum
momento da noite Ian deve ter ido lá fora retirar tudo do jipe.
Tomo um banho rápido e me visto, tentando não fazer barulho. Ainda
é cedo e não quero acordá-lo. Rabisco um bilhete e saio do quarto.
Paro assustada ao ver uma mulher elegante saindo de um quarto.
Ela me encara muito surpresa e eu fico ruborizada. Eu ainda não a
conheço, embora imagine que deva ser Jill Callaghan, a mãe de Ian.
– Julia! – Ela diz e eu fico mais vermelha ainda.
– Me desculpe, eu... sim, eu sou a Julia - balbucio sem graça.
Ela parece recuperar a compostura e sorri de um jeito maternal.
– Oh, querida, eu que tenho que pedir desculpas! – Diz vindo na
minha direção e segurando minha mão. – Nós ainda não nos conhecemos,
não é? Eu sou Jill, mãe do Ian.
– Sim, eu já imaginava... – eu continuo morrendo de vergonha.
Sei que é um comportamento ridículo, não consigo evitar.
– Ian nos falou muito de você. Estou feliz que esteja aqui, finalmente.
– Eu estou um pouco... – acho que meu rosto está queimando e ela
sorri me dando tapinhas na mão.
– Não fique sem jeito. Esta é sua casa.
– Acho que é porque nosso casamento foi meio repentino fico
imaginando o que estão pensando...
– Não pensamos nada demais. Nós apoiamos o Ian. Diga-me, o que
faz acordada tão cedo? Ian também já acordou?
– Não, ele está dormindo. Estou saindo para trabalhar.
– Ah, claro. Acho que Ian comentou algo sobre você estar dando
aulas no Beaverton High School.
– Sim, sou professora substituta.
– Que ótimo! Então por que não descemos e eu preparo um café pra
você?
– Não, não precisa. Eu acho que já estou atrasada...
– Não pode sair sem comer nada...
– Eu comerei algo na escola, não se preocupe.
– Bom, se prefere assim. Bom trabalho então não quero atrasá-la.
– Sim, eu já vou indo.
Eu me afasto e respiro aliviada quando estou na estrada a caminho da
escola.
Estou feliz por ter sobrevivido ao meu primeiro encontro com um
Callaghan após o casamento. E fico me perguntando se todos serão gentis
como Jill.
Encontro com Carla no intervalo e conto a ela sobre ter voltado para
Ian.
Ela me escuta com seu sorriso doce nos lábios. Diz que está feliz por
mim, mas, não sei por que algo me incomoda. Não sei se o fato de ela ter
ficado subitamente séria quando me viro para me servir de mais café e vejo
seu rosto refletido na janela.
Ou talvez seja apenas impressão minha.
Quando estamos saindo depois da aula ela me cutuca e aponta para o
estacionamento.
– Aquele não é Chris Wilson?
Eu sorrio ao ver Chris encostado em uma moto.
– Sim, é.
– Bom, eu vou indo, nos vemos amanhã.
– Claro, até amanhã.
– Chris? – Eu me aproximo e o encaro com um olhar curioso.
– E aí, Jules? – Chris sorri e me dá um abraço.
– O que faz aqui?
– Pensei em te levar pra curtir um pouco de adrenalina, você estava
meio caidinha da última vez que nos vimos.
Eu rio, me lembrando das muitas vezes quando eu era adolescente que
Chris havia me levado para curtir “uma adrenalina”.
Seria bom se tudo ainda fosse tão simples. Se todos meus problemas
se resolvessem com um passeio de moto em alta velocidade, ou um salto do
penhasco...
Fico séria ao reconhecer o rumo dos meus pensamentos.
Não queria entrar em território proibido.
– E aí? – Chris insiste.
A negativa está na ponta da minha língua. Eu disse a Ian que
retornaria para almoçar com ele. Porém ainda era cedo.
E havia uma parte minha que realmente sentia falta de estar com Chris
como antigamente.
– Tudo bem – acabo concordando. – Só uma volta.
Chris abre um grande sorriso.
– Você quem manda.
Eu coloco o capacete e subo na garupa da moto.
E ele arranca em alta velocidade.
Por um tempo foi somente o vento, o barulho do motor e a estrada a
nossa frente.
Era quase como se o tempo não tivesse passado. Nem pra mim, nem
pra Chris.
Mas havia passado. Nada mais era igual. Nós não éramos mais os
mesmos.
Chris para a moto num desfiladeiro.
É um lugar bonito, com uma vista incrível. Um dos muitos lugares
que gostávamos de ir antigamente.
– Tinha me esquecido de como é bonito.
– Sim, é demais. E então, o que quer fazer? – Ele pergunta.
E eu abro a boca para dizer que não posso fazer nada com ele porque
tenho que voltar pra casa dos Callaghan quando escuto um celular tocar.
Chris solta um palavrão e atende.
Vejo sua expressão ficar dura.
– Sim, ela está comigo... – eu fico alerta. Chris fica escutando a
pessoa do outro lado da linha. - Bom, ela não me disse... Certo, espere um
momento – ele estende o telefone para mim. – É seu marido.
Sinto um frio gelado na espinha ao pegar o celular.
– Ian?
– Julia, o que está acontecendo? – Sua voz é aflita.
Eu tento ficar calma. Não estava fazendo nada errado, afinal.
A culpa me corrói por dentro.
– Chris foi me buscar na escola, a gente veio dar um passeio de
moto... escuta Ian, eu devia ter te avisado, não é nada demais...
– Eu fui te buscar na escola.
Fecho os olhos, me sentindo mais culpada ainda.
– Sinto muito, eu já estou indo embora.
– Fale onde você está eu vou te buscar.
– Não precisa, Chris me leva.
– Julia – sinto toda a tensão de Ian em sua voz.
– Está tudo bem, Ian. Já estamos indo.
Eu desligo antes que ele insista.
Chris me encara friamente.
– Quando ia me dizer que voltou com o Callaghan?
Eu lhe entrego o celular.
– Agora.
– Podia ter dito antes de virmos pra cá.
– Ia fazer alguma diferença?
– Com certeza.
Mordo meus lábios com força. Agora sinto culpa não só por Ian, por
Chris também.
– Chris, por favor, entenda...
– Eu não faço outra coisa durante anos a não ser tentar te entender... –
ele resmunga enquanto me entrega o capacete e dá partida na moto.
Eu monto atrás dele e pegamos a estrada novamente.
Ian me esperava em frente à casa dos Callaghan.
Eu não sei quem está mais tenso. Se ele ou Chris.
Rezo fervorosamente por dentro pra evitar uma briga, sabendo que eu
sou a culpada por aquela situação.
Desmonto e entrego o capacete a Chris.
– Obrigada pelo passeio.
Chris não responde e arranca.
Eu me viro para Ian.
– Me desculpa – peço.
Ele respira fundo, passa a mão pelos cabelos.
– Me deixou apavorado.
– Foi só um passeio de moto, Ian! Eu fazia isto direto com Chris
antigamente...
– Não gosto de ver você se arriscando por aí com Chris Wilson.
– Ele é meu amigo – franzo a testa. – Por favor, não diga que tem
ciúmes dele!
– Eu deveria?
Eu me aproximo mais e toco seu rosto.
– Não, nunca.
Por um momento o olhar de Ian parece conter mil demônios
diferentes.
E ele me encara como se quisesse dizer alguma coisa.
– É sério – eu continuo. Eu preciso esclarecer as coisas com Ian. Sei
que todo mundo na cidade deve saber da minha história com Chris. Não sei o
que chegou aos ouvidos de Ian. E não quero que meu relacionamento com
Chris o deixe preocupado. – Nós somos amigos de infância. Somente isto.
Ian segura minha mão.
– Ele é apaixonado por você.
Eu fico vermelha. Quero negar. Não consigo.
– Eu não o amo deste jeito e ele sabe.
Por um momento acho que Ian vai insistir no assunto.
E me preocupo em como lidar com a situação. Não quero me afastar
de Chris, também não quero causar problemas com Ian. Terei que arranjar um
jeito de conciliar as duas coisas: a Julia de Ian e a Julia de Chris.
– Apenas prometa que não vai mais se arriscar com ele por aí.
Eu começo a sorrir.
– Não estava me arriscando já disse. Eu sei andar de moto!
– Por favor, Julia – ele pede parecendo realmente angustiado.
– Tudo bem – eu acabo concordando – eu prometo.
Ele sorri.
Eu fico na ponta dos pés e o beijo.
– Vamos entrar mamãe já serviu o almoço.
Eu o sigo para dentro de casa e todos os Callaghan estão presentes.
Inclusive o pai de Ian que ainda me era desconhecido.
– Olá, eu sou Alan Callaghan – ele se aproxima e me cumprimenta.
Alan Callaghan é um senhor de meia idade ainda bonito. – Bem-vinda a
nossa casa, Julia.
– Obrigada – eu respondo timidamente.
Tess se aproxima e me abraça efusivamente.
– Que bom que voltou! Estou tão feliz!
– Tess – a voz de Ian contém uma advertência e eu me pergunto o
quanto os Callaghan sabem sobre nossa breve separação.
– Eu fiquei tão feliz quando soube que se casaram e depois fiquei tão
preocupada quando brigaram e...
– Chega Tess! – Allan a segura pelos ombros, afastando-a enquanto
sorri pra mim. – Deixe Julia respirar.
– Sim, estamos todos felizes que os problemas de Ian e Julia foram
resolvidos e ela está em casa finalmente. – Jill diz com seu sorriso gentil. –
Agora vamos esquecer o que passou e comer!
Nós nos sentamos para a refeição e Tess faz piadas e eles conversam
sobre o tempo em Beaverton e o novo jardim de Jill.
Ian sempre sorri pra mim ou segura minha mão e a beija.
Eu tento não me sentir deslocada. É esquisito saber que aquela agora é
minha família, sendo que eu mal os conheço. Então me mantenho calada.
Em um determinado momento eu reparo que mais alguém está calada.
Rebecca Callaghan. Ela me olha de maneira esquisita.
Não parece um olhar hostil. Também não é amigável.
Então me lembro de Chris dizendo que Susan Willians é amiga de
Rebecca.
Será que ela me odiava por eu ter me casado com Ian?
Depois do almoço consigo me livrar dos Callaghan dizendo que tenho
exercícios dos alunos para corrigir. O que não deixa de ser verdade.
Ian beija minha testa e diz que vai me deixar trabalhar.
Assim, eu me refugio no quarto e passo algum tempo trabalhando.
Quando termino, ele ainda não apareceu e eu saio a sua procura. Encontro
Rebecca folheando uma revista de moda e eu fico meio tímida ao abordá-la.
– Olá... Rebecca.
Ela levanta o olhar frio e me encara.
– Sabe onde está Ian?
– No escritório com papai...
– Certo... eu vou dar um volta então, você o avisa se ele perguntar?
– Claro – ela dá um sorriso polido e volta sua atenção para a revista.
Eu coloco o casaco e saio da casa. O jardim dos Callaghan é
espetacular.
E eu caminho até o lago, respirando o ar puro. Paro ao me deparar
com uma casa. Há um pequeno jardim em frente e sua graciosidade me
lembra de uma casa de conto de fadas.
Eu caminho até a porta e a abro.
O lugar é lindo por dentro também. Será que alguém morava ali? Ou
seria apenas a casa de hóspede dos Callaghan?
Curiosa, eu entro na sala.
A estante cheia de livros chama minha atenção e eu me aproximo,
passando os dedos pelos títulos e reconheço um exemplar de Jane Eyre.
Muito parecido com o meu. Muito mesmo.
– O quê...
– Julia?
Eu me viro assustada e vejo Tess Callaghan.
– Oh, me desculpe, eu...
Tess rola os olhos sorrindo.
– Não era para você estar aqui!
Apolo está atrás dela correndo atrás do próprio rabo alegremente.
– Eu... estava dando uma volta... por que eu tenho a impressão que
este livro é meu? – Pergunto intrigada e Tess ri.
– Porque é seu! Esta casa é sua!
– Minha?
– Sim, mamãe a estava preparando para você e Ian.
– Como ela conseguiu tudo isto...
Ela dá de ombros.
– A maioria das coisas estava aqui faz tempo, só trouxe suas coisas
hoje de manhã e bom, desde que Ian contou que tinham se casado, ela vem
ajeitando tudo...
– Eu não fazia ideia... – balbucio surpresa por aquele lugar ser meu e
de Ian. – Ian não me disse nada... Achei que... bem, ele mora em Portland.
Na verdade, nós não tínhamos conversado sobre onde moraríamos, eu
deduzi que seria em Portland, já que ele trabalhava lá.
E o meu trabalho em Beaverton como ficaria?
– Sim, é verdade. Com certeza passarão bastante tempo aqui, não é?
Aposto que iam preferir uma casa só pra vocês já que estão em lua de mel –
ela pisca maliciosamente.
Eu fico vermelha e Tess ri mais ainda.
– Bom, vamos voltar. Eu já estava indo lá chamar você e Ian pra
mostrar a surpresa, você estragou tudo!
– Ian também não sabia?
– Ele sabia sim, não conseguimos esconder as coisas dele!
Nós caminhamos juntas até a casa e eu percebo que é fácil gostar de
Tess.
Ela é animada e alegre. Acho que podemos ser amigas.
Quando estamos entrando na sala escuto a voz alterada de Rebecca
Callaghan.
– Eu não concordo!
– Não é problema seu! – Ian diz igualmente alterado.
– Ah não? É problema de todos nós! Você tomou sua decisão há anos
e todos tivemos que concordar, de repente você muda de ideia e nós temos
que concordar novamente?
– Ei, estão brigando? – Tess diz e Rebecca para de falar ao nos ver. –
Não ligue para eles, Julia – Tess continua. – Ian e Rebecca são assim mesmo,
vai se acostumar!
Ela sorri muito despreocupadamente, embora seu sorriso não chegue
aos olhos.
Quer dizer que as brigas entre Ian e sua irmã Rebecca eram
frequentes?
E sobre o que será que eles discutiam?
– Sim, todos nós nos acostumamos com tudo, não é? – Rebecca diz
mordaz e sai da sala, batendo os saltos no chão.
Eu me aproximo de Ian.
– Ei, tudo bem? – Pergunto preocupada.
– Sim, apenas briga de irmãos, como disse Tess - ele segura minha
mão. – Onde estava, está gelada!
– Julia acabou com a surpresa! Ela descobriu a casa!
Eu dou de ombros.
– Estava caminhando e a vi! Deviam ter me dito!
– Mamãe e Tess insistiram em fazer surpresa.
– Eu adorei o lugar. É lindo.
Tess deu uma risadinha.
– Eu sabia que ia amar!
Ela sai da sala e eu encaro Ian.
– Fico feliz que tenha gostado. Minha mãe vai ficar satisfeita.
– Eu fiquei surpresa, não sabia que íamos ficar aqui... na verdade nem
conversamos sobre...
Ele sorri e me puxa pela mão.
– Precisamos conversar sobre muitas coisas, vamos pra casa.
– Agora?
– Sim, Tess já levou quase tudo pra lá. Eu prefiro ficar sozinho com
você. Minha família é muito intrometida às vezes. E falam demais também...
Ele deixa as palavras no ar e eu não digo nada, enquanto caminhamos
até a casa vizinha.
Ele me pega no colo na porta.
– De novo? – Eu rio.
– Agora é de verdade.
– Sim e para sempre.
Ele me leva para dentro e eu quase acrescento “e agora não terei
nenhuma surpresa desagradável, como sua ex-amante de lingerie à nossa
espera”.
Fico calada. Não quero mais pensar nisto.
Susan não existe mais. Aquele episódio desagradável tem que ser
apagado da minha memória pra sempre.
Agora só existe Ian e eu.
Ele me leva direto para o quarto, que é tão lindo quanto o resto da
casa e me coloca na cama.
– Estou tão feliz que esteja aqui – ele diz sorrindo.
Eu sorrio também.
E o beijo. Muitas vezes.
Não há pressa para tirarmos nossas roupas.
A noite cai lá fora, enquanto nos amamos.
E depois, ele me abraça, seus lábios em meus cabelos. Seus dedos
deslizando devagar por minha espinha.
E eu sinto que tudo é perfeito agora.
Eu vou ser feliz pra sempre.

Então eles retornam.


Os pesadelos que me fazem gritar.
Eu sinto dor. Uma dor terrível e sem sentido algum.
Porque eu não me lembro de nada.
– Julia... Julia – eu abro os olhos e estou respirando com dificuldade.
Ian me encara assustado.
– Oh Deus... – eu cubro meu rosto com as mãos e choro.
Como é que eu posso achar que tudo é perfeito?
Existe algo terrivelmente errado.
E Ian não faz ideia.
– Julia, o que foi? São os pesadelos? – Ele retira minhas mãos do meu
rosto e enxuga minhas lágrimas. – Por favor, me diga o que está acontecendo
– sua voz é cheia de angústia.
Eu o encaro.
E sei que não posso mais fugir.
– Ian, preciso te contar uma coisa...
Ele apenas me encara à espera.
Eu respiro fundo e começo a contar.
Eu odeio falar sobre aquilo. Falar sobre algo que não tenho o menor
controle. Algo que eu luto pra esquecer. É até irônico que eu use esta
expressão.
– Há dois anos, eu sofri um acidente – murmuro. – Você viu a
cicatriz. – eu toco a cicatriz atrás da minha orelha. – Eu pulei do penhasco.
Eu não sei... porque. Eu... não me lembro... – minha voz se alquebra. – Eu
não me lembro de nada... antes de ter pulado.
Eu respiro fundo me obrigando a continuar.
O vazio. A dor. O inexplicável.
Voltando a me atormentar.
Eu o encaro.
– Eu bati a cabeça e... fiquei muito mal. Acordei num hospital. Meu
pai diz que eu fiquei duas semanas em coma. O pior não é isto... – eu começo
a chorar. – Na minha cabeça, eu ainda tinha 18 anos, ainda morava aqui em
Beaverton. Eu não conseguia me lembrar dos dois anos anteriores... eu...
simplesmente ainda não me lembro...
Eu soluço.
Ian toca meu rosto.
– Julia... está tudo bem...
Eu sacudo a cabeça.
– Não, não está. Nunca vai estar. Eu tentei seguir minha vida.
Apenas... acreditando no que me contaram. Outras pessoas tiveram que
contar o que eu tinha feito naqueles dois anos! Eu fui pra Seattle, estudei
literatura lá... e não sei de mais nada! Tem ideia do que é? Eu fui pra Londres
porque não podia imaginar voltar pra Seattle, rever as pessoas que devo ter
conhecido lá... seria demais pra mim. Achei que estava tudo bem. O que são
dois anos? Mas tenho estes pesadelos... eu sei que eles são horríveis, só nunca
consigo me lembrar o que são!
– Julia... eu sinto muito.
– Eu só queria... realmente esquecer – eu rio. – Que irônico! Esquecer
que esqueci! É patético, queria me sentir normal de novo.
Ian segura meu rosto, me obrigando a encará-lo.
– Você pode se sentir normal. Está tudo bem agora.
– Não me acha uma maluca?
Ele ri e beija minha testa, meu rosto.
– Eu amo você. Não importa o passado.
Eu suspiro querendo acreditar nele.
Tentando acreditar que eu realmente posso ser feliz. Que posso fingir
que aqueles dois anos perdidos na minha memória não significam nada. Que
nada de realmente importante deve ter acontecido.
Fecho os olhos e deixo que ele me abrace. Envolvo meus braços em
volta dele também. Sim, está tudo bem agora.
Eu finalmente contei meu segredo a Ian; e ele me aceita.
Ele me ama. E eu o amo demais também. Mais do que qualquer coisa
no mundo.
Contudo, naquele momento entre a vigília e o sono, eu me pergunto
se naqueles dois anos perdidos eu já não amei com tanta intensidade.
Eu sei, embora ninguém me diga nada, que conheci alguém sim.
Se houve amor ou não, eu não sei. Algo me diz que tem tudo a ver
com o fato de eu ter pulado do penhasco. E com aqueles pesadelos horríveis.
Houve dor. Tenho certeza.
Agora eu não sei se quero realmente lembrar. Talvez deva deixar
minhas memórias trancadas no passado. E viver o futuro com Ian.
Ian

Ela dorme um sono sem pesadelos.


Eu escuto sua respiração compassada e a aperto um pouco mais antes
de soltá-la. Saio da cama e caminho até o telefone. Jack atende na segunda
chamada.
– Jack, sou eu.
– Ian? O que aconteceu? Julia...? – Posso sentir a preocupação em sua
voz.
– Ela está bem. Está dormindo. Ela teve um daqueles pesadelos...
– Sei...
– E ela me contou sobre o acidente.
– Contou?
– Acho que foi melhor assim.
Jack suspira pesadamente.
– E agora, como vai ser?
– Tudo vai seguir normalmente.
– Eu ainda não sei se concordo com você...
– Julia está bem. Vai ficar tudo bem.
– Eu espero que tenha razão.
Eu desligo e volto pra cama.
Ainda não durmo, fico velando seu sono. Acho extraordinário ela
estar ali. A meu alcance.
E que finalmente está tudo bem de novo. De uma maneira que eu
nunca acreditei que voltaria a estar.
Fecho os olhos e me recordo do dia em que a reencontrei na clareira.
***
Eu não sei quanto tempo caminhei sem rumo.
Ignorando o frio e a maldita chuva fina de Beaverton.
Eu estava imune a tudo isto. Ela tinha voltado.
Eu relembrava cada palavra de nossa conversa na clareira e no
caminho de volta como se fosse um sonho. Droga, eu realmente acreditava
que estava sonhando quando acordei e a vi na clareira.
E ela nem sabia quem eu era.
E a dor foi insuportável.
Passaram-se dois anos. Eu pensei ter tomado a decisão correta, agora
já não sabia de mais nada.
Entro na loja e Jack me encara.
– Ian? O que faz aqui? Pensei que estivesse em Portland.
– Não me contou que ela tinha voltado – murmuro.
Jack suspira e passa a mão pelos cabelos.
– Aqui é a casa dela. Ela pode voltar quando quiser.
– Então sou eu que tenho que ir embora.
Jack me encara calmamente.
– Sabia que poderia acontecer quando tomou aquela decisão.
– Eu fiz o que era melhor para ela.
– Para ela ou pra você?
– Vai bancar meu psicólogo agora, Jack?
Jack suspira pesadamente.
– Eu não devia nunca ter concordado. Se Julia um dia descobrir... Ou
lembrar...
– Lembrar é um risco que corremos, já se passaram dois anos e ela
continua com a memória apagada. Ela de volta à cidade... Devia encorajá-la a
ir embora. Qualquer outro lugar que não seja Beaverton.
– Sua preocupação é que alguém fale demais ou é com Julia perto do
Chris?
– Chris sabe seu lugar.
– Bom, Julia vai atrás dele, você sabe.
– Eu não tenho como impedi-la de fazer o que quer que seja. Quem
devia se preocupar é você...
– Chris nunca foi o problema se me lembro...
– Era com ele que ela estava naquele maldito penhasco.
– Ele a salvou. Devia agradecer-lhe.
– Acho que não adianta ficar remoendo o que passou. Tomamos a
decisão de deixá-la esquecer tudo justamente para que todos pudéssemos
esquecer também. E eu quero que continue assim.
– O que aconteceu hoje? Como se encontraram?
– Ela me encontrou na clareira. Ela não faz ideia de quem eu seja. –
falar sobre isto dói.
Demais.
– Foi você quem quis assim.
– Foi ela quem quis esquecer.
– Foi um acidente.
– Muito conveniente Julia esquecer justamente os dois anos que
passamos juntos.
– Ainda pode contar a ela...
– Nunca. É melhor assim.
– Eu concordei com você naquela época... Às vezes ainda acho que
tudo ficará melhor do jeito que está. Não quero mais ver minha filha sofrer.
– Todos nós concordamos neste ponto.
– E o que vai fazer?
– Vou sair da cidade. Vou continuar não existindo.
– Eu vou falar com os amigos dela... Não se preocupe quase ninguém
sabe da história de vocês e quem sabe não vai falar nada. Todos sabem que é
o melhor.
– Até Chris?
– Ele também a ama.
Eu não comento isto.
Rever Julia... Já é problema suficiente.
– Ela disse... ela disse o que pretende fazer? Se ficará na cidade?
– Eu não sei. Pode estar só de passagem... Veremos.
– Mantenha-me informado.
– Achei que não quisesse saber mais nada a respeito dela.
– Venho repetindo isto a mim mesmo por dois anos.
– E todas as vezes que me liga implorando por notícias eu me
pergunto se será a última vez. Precisa seguir em frente, Ian. Achei que
estivesse seguindo com aquela moça bonita.
– Isto não é da sua conta.
– Achou que eu não soubesse? Todo mundo sabe de sua... amiga
Susan Willians, é este o nome dela, não é?
– Disse certo, Susan é uma amiga.
– Se é assim que chamam estas coisas hoje em dia... tudo bem, eu não
estou te criticando. Devia ficar com esta tal e deixar minha filha em paz,
como prometeu fazer dois anos atrás.
– É o que estou fazendo.
– Não, não está. Sabe do que estou falando.
– Eu só quero saber se ela ficará bem.
– Ela ficará. Faça o que prometeu e se mantenha longe da minha filha.
– Eu prometi. E vou cumprir. Adeus, Jack.
Capítulo 10

Acordo com o barulho da chuva.


Não quero me mexer, me movo o suficiente para chegar mais perto de
Ian. No entanto, seu lugar na cama está vazio.
Abro os olhos e retiro os fios de cabelo do meu rosto.
– Ian? – O chamo e como não escuto resposta, grito mais alto. – Ian?
– Aqui embaixo – o som abafado de sua voz é seguido de uma risada.
Eu suspiro, aliviada. Por alguns momentos ridículos achei que algo
estava errado. Talvez por causa do que aconteceu na madrugada...
Saio da cama e visto uma roupa rapidamente. Quero ver Ian. Quero
me certificar que está tudo realmente bem. Quero não me arrepender de ter
contado a respeito do acidente. Eu odeio falar sobre ele. Simplesmente odeio
não ter controle sobre este assunto.
Saber que dois anos da minha vida foram simplesmente apagados e,
provavelmente, nunca serão recuperados. Todos os fatos, todos os
acontecimentos. Todas as pessoas.
É horrível.
Eu havia passado dois anos em Londres tentando reconstruir minha
vida. Tentando não sentir falta de algo que nem sequer sei o que é porque não
me lembro.
Tentando desesperadamente seguir em frente. Como se os dois anos
perdidos na minha memória realmente nunca tivessem existido. Sempre vai
haver aquele vácuo. Como um parêntese vazio numa frase.
Uma lacuna na minha vida.
Quando chego na cozinha, paro e fico admirando Ian de costas
mexendo algo na frigideira que cheira muito bem e enche o ambiente de um
aroma familiar.
Como se mexesse com a minha memória olfativa e me trouxesse uma
sensação boa. De felicidade quase nostálgica.
– Vai ficar aí parada? – Ele pergunta em tom brincalhão e eu me
aproximo passando o braço ao redor de sua cintura. Deposito um beijo em
suas costas antes de me afastar e me sentar, esperando obedientemente pela
comida.
– Eu adoro ser mimada com toda esta gordura saturada logo de
manhã, vamos concordar que precisa parar.
Ele ri e coloca os ovos com bacon no meu prato.
– Gosto de mimar você, lembra nossa lua de mel.
Eu franzo a testa, pegando o garfo.
– Lua de mel? Nem tivemos uma! A não ser que esteja se referindo
aos dias que passamos em Portland!
Ele está de costas pra mim, acho que lavando a frigideira.
– Sim, foram como lua de mel antes do casamento.
Então ele se vira e senta diante de mim.
– Gosto de pensar assim também – sussurro me inclinando para beijá-
lo.
Nós rimos e voltamos a comer.
– Se bem que tem direito de reclamar. Realmente não tivemos uma
lua de mel.
– Não me importo – dou de ombros.
E é verdade. Não me importo com nenhuma convenção em se
tratando de Ian.
Quero estar com ele. E é o bastante.
– Eu me importo.
– O que quer dizer?
– Que vamos viajar.
– Ah é?
– Sim, o que acha de Nova York?
– Nova York – tento ficar empolgada.
Ok, eu disse que não me importava, por outro lado, Nova York nunca
esteve em meus sonhos românticos.
– Eu ia sugerir uma ilha tropical... Nova York está ótimo.
– Eu imaginei que diria algo do tipo, só que não é apenas em lua de
mel que estou pensando.
Ele fica sério e eu encaro desconfiada.
– O que quer dizer?
– Quero que se consulte com um médico.
– Médico? Tem algo a ver com o que te contei ontem?
– Seu acidente? Sim. Quero ter certeza que está tudo bem com você.
– Eu estou bem – afirmo, pegando o prato e jogando na pia.
Ian também se levanta.
– Não fique na defensiva...
– Eu não gosto da ideia, sabia que não devia ter te contado! – Lavo os
pratos furiosamente, minhas mãos tremem e eu temo quebrar alguma louça.
– Devia sim. Estamos juntos agora, Julia.
Eu o encaro.
– Não quero que fique cheio de dedos comigo. Se preocupando... me
tratando como se eu fosse de porcelana ou fosse pirar a qualquer momento. Já
basta meu pai e... – eu respiro fundo. – Enfim, tem gente suficiente na minha
vida que não me deixa esquecer. Eu preciso que fique entre nós.
– Eu só quero me certificar que está tudo bem com a sua saúde, Julia.
– Eu estou bem! Faz dois anos e, tirando esta cicatriz... e o fato óbvio
de que minha memória apagou, estou ótima.
Eu estou mentindo, obviamente.
Pode ser que fisicamente eu esteja bem. Emocionalmente estou longe
disto.
– Julia, me deixe levá-la a um especialista. Eu prometo que será
somente uma vez. Para termos certeza que está tudo bem mesmo – ele se
encosta em mim. Seus lábios em meus cabelos. Fecho os olhos. – Por favor,
me deixe cuidar de você.
– Tudo bem. - concordo por fim.
Apenas por ele. Porque não quero deixá-lo preocupado.
E porque, embora não conheça Ian direito ainda, eu desconfio que ele
não irá sossegar até me levar a este tal médico.
Melhor me livrar logo do problema.
Ele deposita um beijo em meu rosto, muito satisfeito.
– Acho que deveria ligar para seu pai.
Eu faço uma careta de culpa.
– É verdade. Farei melhor, eu vou até lá. Ele deve estar em casa hoje,
é sábado.
– Quer que eu vá com você?
– Não, prefiro ir sozinha, se não se importa.
– Tudo bem. Eu vou até a casa dos meus pais. Nos vemos na hora do
almoço?
– Acho que almoçarei com Jack. Pode ser?
– Claro. Passe o dia com seu pai.
Ele beija minha testa e abre a porta. O ar frio arrepia minha pele.
Ian para de repente.
– Julia?
– Sim?
– Sei que não devia estar te perguntando, mas eu preciso saber... o seu
almoço com Jack, inclui Chris Wilson?
Sinto um aperto no peito.
– Não - respondo, me sentindo levemente culpada. Eu não havia
pensado em convidar Chris, até Ian se lembrar dele, então eu penso que
realmente seria uma boa...
Não posso. Não quero chateá-lo, ou deixá-lo com ciúmes.
Eu não quero nada com Chris, a não ser amizade, desconfio que Ian
não entende.
– Certo. Nos vemos a noite, então.
Ele se vira pra sair, eu o chamo.
– Ian?
– Sim? - ele se vira.
Eu sorrio.
– Eu te amo.
Ele sorri de volta.
– Eu também te amo, senhora Callaghan.

***

Dirijo com cuidado pela estrada molhada para a casa de Jack. Ele está
limpando sua coleção de itens para pesca quando chego e me encara.
– Achei que tivesse esquecido que tinha casa.
Abro a geladeira e pego uma cerveja pra ele.
– Bom dia pra você também.
– Dois dias de casada e já está de volta? O que significa?
Reviro os olhos, enquanto continuo com a geladeira aberta pegando
os ingredientes para o almoço.
– Significa que quero passar um tempo com meu pai, antes de viajar
em lua de mel.
Ele para o que está fazendo e me encara.
– Vai viajar?
– Lua de mel – eu lavo as alfaces. – E Ian quer que eu vá a um
médico.
– Médico?
– Eu contei a ele sobre o acidente – falo casualmente sem encará-lo. –
Não sei se deveria ter falado.
– Fez certo.
Jack não diz mais nada. Achei que ele teria algum discurso sobre o
assunto.
– Enfim, ele quer ter certeza que estou bem ou algo assim. Sabe que
eu não quero ir, mas... vou apenas pra ele não ficar preocupado.
– Seu Ian está ganhando uns pontos comigo.
– Ele foi bem legal, em relação ao acidente e a amnésia. Fiquei com
medo de ele não entender...
Jack volta a me encarar.
– Está feliz?
– Muito.
Ele toma sua cerveja.
– Acho que voltarei a comer minha comida ruim então.
Eu gargalho.
– Sobreviveu por dois anos, não reclame!
Nós almoçamos e Jack fica satisfeito quando eu conto que passarei a
tarde com ele.
Nos acomodamos na sala e Jack assiste a um jogo na TV.
Eu me preparo para fazer as indagações que estou querendo fazer
desde que cheguei.
– Pai?
– Sim?
– Toda vez que eu pergunto... sobre vida que eu levava em Seattle...
Você sempre é evasivo.
Ele não parece satisfeito com o assunto.
– O que quer dizer, Julia?
– Eu quero saber mais.
– Não tem nada além do que já contei – resmunga. - Esquece.
– Esquecer? Sábias palavras! – Exclamo cheia de ironia.
– O que quer saber? Eu te contei tudo o que eu sei!
– Sim, de acordo com você, eu fui estudar lá e fim! Não posso ter
vivido dois anos somente estudando! Eu devia ter amigos... talvez eu tivesse
até um namorado – minha voz vai sumindo.
– Se teve eu não sei. Já te disse.
– Eu tive alguém lá... não sei se foi importante, se durou, mas...
Mordo os lábios, sem saber como dizer a Jack que eu não era virgem.
Era apenas uma suspeita então, depois de transar com Ian, eu tive certeza: eu
já tinha feito aquilo antes.
E eu não me lembrava de ter nenhum namorado na adolescência.
Então deve ter acontecido na faculdade.
Ok, pode não ter sido grande coisa. Na verdade, quem garantiria que
foi apenas um cara? Como eu me conhecia não conseguia me imaginar
flertando livremente e indo pra cama com qualquer um.
Eu imaginava que devia ter sido apenas um cara. Alguém importante
a ponto de eu querer ir pra cama com ele. Alguém de quem eu não me
lembrava.
– Julia, me escute. – Jack fala muito sério. – Esquece, me perdoe as
palavras. Mas é isto mesmo. Não importa o que aconteceu na faculdade.
Você está casada agora, não é? O que importa se teve um namorado que ficou
no passado?
Jack está certo. Não interessa mais.
Eu tenho Ian e eu sei que o amo de corpo e alma. Então por que ficar
me preocupando com alguém do passado?
– Sim, tem razão – murmuro e olho o relógio. – Acho que vou indo.
– Claro. Pode ir, me avise quando for viajar.
– Pode deixar.
Antes de sair eu ligo pra Ian.
– Estou indo embora.
– Já? Ainda estou resolvendo algumas coisas de trabalho, se quiser vir
ficar com as minhas irmãs.
– Não, eu vou pra casa e te espero lá.
– Tudo bem.
Ainda está claro quando chego em casa. Não chove mais, o dia até
abriu e um sol pálido está se pondo. Estaciono no jardim, em vez de entrar
em casa, decido dar uma volta.
Caminho pela grama verde, aspirando o ar puro, adorando ver o céu
um pouco azul, apesar das nuvens. Dou a volta no chalé e continuo andando,
até que encontro um jardim que nunca tinha visto.
É lindo e cheio de flores de várias cores. Um cheiro delicioso enche o
ar e então eu escuto um choro.
Intrigada, eu vou em direção ao som e encontro Rebecca Callaghan
sentada na grama. Ela está de costas pra mim a uns dois metros de distância.
– Rebecca?
Ela se vira. Os olhos estão vermelhos e o rosto molhado.
Eu não tinha imaginado, ela estava mesmo chorando.
– Julia... me desculpe... – ela vem em minha direção enxugando o
rosto.
– Por que está chorando? Está tudo bem?
– Não é nada.
– Mas você estava chorando.
Ela dá de ombros.
– Eu... tive uma discussão com Oliver. Não queria ficar lá em casa e
vim chorar aqui. Coisas de namorados – ela ri.
– Se você quiser... conversar...
– Não, eu vou voltar...
– Por que não vem comigo? Pode lavar o rosto, eu faço um chá...
Ok, eu estou sendo gentil e cordial com a irmã nojenta do Ian, o que
eu posso fazer? Ela parece realmente mal.
Ela hesita, mas me acompanha. No chalé, ela vai até o banheiro lavar
o rosto e, como prometido, eu faço um chá.
De volta à cozinha ela está recomposta.
– Obrigada – agradece a xícara de chá que nós tomamos em silêncio.
Acho que ela não quer falar sobre seja lá o que a aflige e eu não
insisto. Me pergunto se um dia serei amiga de Rebecca Callaghan. Talvez até
seja possível.
– Obrigada pelo chá – ela se levanta. – Vou pra casa.
– Se precisar... conversar... bem...
Ela dá um sorriso. Parece genuíno.
Eu a vejo se afastar, me perguntando como consegue andar com
aqueles saltos na grama úmida.
Ainda estou intrigada quando Ian aparece. Já escureceu e ele parece
estranho.
Eu estou na cozinha e me ocupo em fazer o jantar.
– Olá.
– Oi... tudo bem?
– Sim, por que pergunta?
– Minha irmã esteve com você.
– Oh... ela contou? Bem, na verdade eu a encontrei chorando num
jardim. Aliás, um jardim lindo...
– Ela disse por que estava chorando?
– Disse que tinha brigado com Oliver.
– Sim, deve ser isto... eles vivem discutindo. – Ian comenta distraído.
– Quer ajuda? – Pergunta se aproximando.
– Não, estou acabando... por que achou que não estava tudo bem só
pelo fato de eu ter conversado com sua irmã? Ela me pareceu uma boa
pessoa.
– Ela é uma boa pessoa, do seu jeito.
– Ninguém é perfeito! Eu fiquei com pena dela. Parecia tão... triste.
Ele acaricia meus cabelos.
– Não ligue. Rebecca é dramática demais às vezes. Ela já está bem,
fazendo as malas pra ir pra Portland com ele.
– E nós também vamos voltar?
Ele sorri de lado e me puxa pela minha camiseta.
– Nós vamos para Nova York, senhora Callaghan.
Seus lábios estão em meu pescoço.
– Quando?
– Hoje a noite.
Eu o obrigo a parar e a me encarar.
– Como assim, não podemos viajar hoje!
– Claro que podemos! Rebecca e Oliver vão nos levar ao aeroporto
em Portland.
– Pra que esta pressa toda?
Ele sorri de lado, seus braços me envolvem.
– Talvez eu queira ficar sozinho com você, numa tal lua de mel o
mais rápido possível...
E então está me beijando. Persuasivamente.
E eu já não tenho argumentos. E nem quero.
Quero a tal lua de mel também. Na verdade, eu mal posso esperar.
Capítulo 11

Eu durmo quase a viagem toda e vejo vagamente as ruas de Nova


York enquanto sinto Ian acariciando meus cabelos dentro do táxi.
– Sei que não era a viagem dos seus sonhos, mas está tão desanimada
assim? - Ele pergunta em tom brincalhão. Ele não vê meu rosto tenso.
Não tem nada a ver com Nova York. Tem a ver com os tais exames
que ele quer que eu faça. Eu levanto a cabeça para encará-lo com um sorriso.
– Como sabe que não é a viagem dos meus sonhos?
– Pensei ter ouvido você falar em ilha tropical ou algo assim...
Eu beijo seu rosto e sussurro em seu ouvido.
– Numa ilha podemos ficar sem roupa o tempo inteiro.
Ele desliza a mão por minhas costas.
– Podemos ficar sem roupa o tempo inteiro aqui também... no hotel,
claro.
– Claro! – Nos beijamos esquecidos do motorista e eu rio feito boba
enquanto Ian sussurra em meu ouvido que vai tirar as minhas roupas muito
em breve.
E eu me concentro nisto. Em nós.
E tento esquecer o verdadeiro motivo de estarmos naquela cidade. Por
enquanto eu posso ser apenas uma garota em sua lua de mel. Meu enlevo
romântico se esvai quando vejo que o motorista não para em frente a um
hotel, e sim a um hospital.
Eu encaro Ian interrogativamente.
– Achei que...
– Quero terminar logo com isto, Julia – ele responde me tirando do
carro.
Estremeço. Não só de frio. De apreensão também.
– Não sei se quero fazer isto.
– Não há o que temer. Vamos somente nos certificar que está tudo
bem com você, depois vamos embora – ele acaricia minha mão e beija minha
testa. – Ficar sem roupa, lembra?
Eu rio e respiro fundo.
– Certo, tem razão. Vamos acabar logo com isto.
O hospital é enorme e não demora até que o médico nos chame a sua
sala. E eu fico sabendo que Ian já conversou com ele sobre meu caso e que é
um especialista.
– Certo, Julia, o seu caso não é tão raro. Muitas pessoas depois de um
trauma forte sofrem perda parcial de memória.
– E o senhor acha que um dia eu poderei recuperá-la? – Pergunto.
– É possível que sim, também pode nunca recuperar. Como já faz dois
anos, acho bem difícil que aconteça.
– Quero que Julia faça alguns exames – Ian diz seriamente. – Quero
ter certeza que está tudo bem com ela.
– Sim, claro. Venha comigo, Julia.
Ian aperta meus dedos e sorri me encorajando.
Eu sigo o médico e passo horas fazendo exames, até que finalmente
sou liberada.
– Doeu? – Ian brinca, me esperando com um copo de café.
Eu rolo os olhos.
– Alguns exames são bem chatos!
– Eu sinto muito, amor – ele beija meus cabelos.
– Espero que me recompense muito bem.
Ele sorri e eu sinto meu pulso acelerar, então somos chamados à sala
do médico.
– Bem, todos os exames estão Ok. Fisicamente Julia está perfeita.
– Embora continue não me lembrando de nada...
– Você sofre de amnésia retrógrada, que é a dificuldade para se
lembrar de fatos anteriores ao trauma. Em alguns pacientes a memória volta
depois de algumas horas, dias, ou semanas. Depois de meses, é bem
improvável que aconteça. Apesar de não ser impossível. Já tentou algum
tratamento psicológico?
Eu me reviro na cadeira, incomodada, ao me lembrar das sessões que
fui depois do acidente que não ajudaram em absolutamente nada, até que
desisti.
– Sim, não serviu para nada.
– Bom, você pode seguir sua vida normalmente. Não há sequelas
físicas, apenas esta lacuna.
Nós nos despedimos do médico e eu respiro aliviada quando
finalmente entramos no táxi para ir para o hotel. Está anoitecendo, eu estou
morrendo de fome e muito cansada.
Não só fisicamente.
– Está tudo bem? – Ian pergunta, preocupado.
– Só estou cansada.
Na verdade, eu não posso evitar me sentir um pouco triste.
Talvez bem lá no fundo eu tivesse esperado que o tal médico
especialista aparecesse com uma solução milagrosa que devolvesse minhas
memórias perdidas.
Infelizmente tudo continua o mesmo. Eu ainda tenho aquela lacuna de
dois anos na minha vida.
Nós chegamos ao hotel e nos registramos. Eu mal olho ao redor,
absorta em meus pensamentos sombrios.
– Vem, vou cuidar de você. – Ian me puxa para o banheiro da suíte e
tira minhas roupas de viagem amassadas. Enche a banheira de água quente e
me coloca dentro.
Depois desaparece no quarto e eu fecho os olhos. Mesmo assim não
consigo conter a vontade de chorar. Escuto Ian falando no quarto. Está
pedindo comida.
Enxugo os olhos rapidamente ao ouvir seus passos se aproximando.
Não quero que ele me veja chorando ou triste. Ele está sendo tão maravilhoso
comigo e é nossa lua de mel, afinal. Porque eu tenho que ficar pensando em
algo que não tem nada a ver com ele? E que não pode ser mudado?
Vejo seu olhar preocupado varrer meu rosto que sei não ter
conseguido enxugar direito e me sinto culpada.
– Me desculpe – murmuro.
Ele sorri.
– Por que está se desculpando?
– Você não tem nada a ver com estes problemas...
– Julia, seus problemas são meus também agora.
Eu engulo em seco.
Ele é tão intenso, tão verdadeiro. Chega a doer meu coração. Queria
estar inteira para poder corresponder a todo aquele sentimento.
Desejo que, seja lá o que tenha acontecido no meu passado, não tenha
a menor importância. Quero viver o agora. Com Ian.
– Venha aqui. – Peço. – E tire estas roupas.
Ele sorri devagar. Mordo os lábios começando a sentir meu corpo
tomando o controle da minha mente.
Ian está tirando as roupas.
E ele vem. Lindo. Nu. Perfeito.
Não há mais nenhuma preocupação em minha mente quando ele está
finalmente a meu alcance. E meus dedos tomam posse dele.
Seus beijos enchem minha boca.
– Amo você – sussurro em seus lábios, em seu ouvido.
Intoxicada por sua proximidade, por seu gosto em minha língua. Suas
mãos que deslizam por minha pele, mapeando meu corpo, sabendo
perfeitamente aonde ir para arrancar gemidos da minha garganta.
E eu fecho os olhos, perdida em sensações, adorando perder o senso
com seu toque em meus seios, meu ventre, entre minhas pernas.
Seus dedos dentro de mim.
Gemo alto seu nome. Imploro em frases sem nexo. Mordo seu queixo.
Arranho seus ombros. E ele me beija mais. Rouba meu fôlego. Rouba minha
alma.
– Abra os olhos, Julia.
Eu obedeço.
Então, finalmente, está me penetrando. E é deliciosamente
maravilhosa a sensação de tê-lo dentro de mim.
Eu me movo em cima dele. Impulso. Recuo.
Ele geme. Aperta os dedos em meus quadris, me ajudando a ditar o
ritmo.
– Adoro estar dentro de você...
Eu o beijo. E aumento a intensidade.
Agora há somente o som dos nossos corpos em atrito.
Nossos gemidos misturados.
É lindo quando ele fecha os olhos e goza dizendo meu nome, me
apertando, me marcando.
E eu me desmancho como a água ao nosso redor, no mesmo êxtase.

***
– Quer sair? – Ian pergunta um tempo depois, entrando no quarto.
Não sei exatamente quanto tempo, porém, como combinado, estamos
sem roupa.
E eu acabei de comer toda a comida que Ian pediu e agora estou
esparramada de bruços na cama, sonolenta.
– Não... – murmuro preguiçosamente.
Ian se inclina e deposita um beijo em meu ombro.
– Quem era no telefone? – Pergunto, pois Ian havia saído do quarto
dez minutos atrás quando seu celular tocou.
– Tess dizendo que está passando a lista de compras por e-mail.
Eu começo a rir.
– Ela acredita mesmo que faremos compras pra ela?
– Você não tem noção de como ela se tornará chata se eu não fizer -
ele responde contra minha nuca.
– Sei... – sussurro roucamente ao sentir seus lábios deslizando por
minha espinha.
– Está com sono? – Escuto sua voz em meu ouvido quando ele deita
ao meu lado.
Seu corpo está excitado perto do meu.
Estou excitada também.
– Não...
Não demora muito para estarmos nos beijando, corpos se enroscando.
Minha mente flutua num estado entre a lucidez e a embriaguez. Abro os
olhos e miro seus lábios em meus seios. Seus dedos estão descendo, entrando,
acariciando.
E eu queimo, estremeço, enlouqueço.
E então ele paira sobre mim, seus joelhos abrindo os meus
delicadamente.
Eu abro os olhos, esperando ansiosa pela desejada invasão.
Ele hesita, seus olhos buscando os meus.
– Julia, está realmente tudo bem quanto a isto, não está?
Por um momento eu não sei do que ele está falando, me lembro de
uma conversa que tivemos antes de viajar, quando ele me viu tomando
pílulas.
Eu comecei a tomar em Londres por causa das cólicas, agora elas
seriam realmente úteis.
– Sim, sim... – confirmo ofegante então ele sorri e me penetra fundo.
– Sim... – sussurro, agora perdida de prazer.
E eu adoro vê-lo se mover em cima de mim.
Me excita o jeito que ele me olha, sabendo o efeito que causa em
mim, como cada estocada me desmonta por dentro. Me derrete a ternura com
que ele me beija, ou quando pergunta se está tudo bem.
Nada é mais perfeito.
De repente eu penso em meu outro amante. Aquele que eu não me
lembro. Será que era desse jeito com ele? Será que ele me tocava dessa
maneira. Será que eu sentia a mesma coisa?
Será que eu o amei como amo Ian?
Sinto-me grata por não lembrar. Quero que Ian seja o único em minha
mente, em meu corpo. E é olhando pra ele que eu me desmancho em êxtase.
Então ele estremece e goza comigo.
Quero ser a única pra ele também.
Eu não sou. Este pensamento ronda minha mente no dia seguinte,
enquanto percorremos Nova York, como dois turistas em férias.
Ian trouxe a tal lista de Tess e nós entramos e saímos das lojas mais
chiques da Quinta Avenida e ele sempre me pergunta se eu não quero nada.
– Não, não quero.
– Tem certeza?
Eu rolo meus olhos.
– Sabe que odeio presentes.
– Não seriam presentes. O que é meu é seu...
A vendedora nos interrompe ao entregar o cartão de crédito e as
sacolas a ele.
Ela sorri toda derretida.
Nem dá raiva. Sei que meu marido é lindo. Eu estaria suspirando
como ela também. Só que algo nesta moça me incomoda. Ela tem lindos
cabelos pretos e boca vermelha.
Ao sairmos da loja eu constato qual é o problema. Ela me lembra
Susan. A ex-amante de Ian. Aquele simples pensamento me enche de um
ciúme gelado e pavoroso.
– Ei, tudo bem? – Ian aperta minha mão e eu o encaro.
– Sim...
– Está esquisita desde que saímos da loja.
Nós caminhamos de volta ao hotel. As mãos de Ian cheias de sacolas
e ele me encara preocupado.
– Não é nada, acho que cansei desse monte de compras...
Ele sorri.
– Já acabou. Eu tinha me esquecido do quanto você odeia.
– Esqueceu?
– Acho que me disse algo sobre odiar compras uma vez.
Eu dou de ombros, distraída.
Meu problema não são as compras. Meu problema é a dificuldade que
eu tenho de esquecer a existência de outra mulher na vida de Ian.
Ok, podia lidar com o pensamento que ele tivesse um milhão de ex-
namoradas. Nunca conversamos sobre o assunto e talvez ele até tenha tido
mesmo. Eu não conheço nenhuma delas. São apenas estranhas sem rosto, sem
nomes. Porém, me deparar com uma delas seminua na casa de Ian, no dia do
meu casamento, com certeza foi um golpe terrível.
E acho que é por esse motivo que eu não consigo engolir Susan
Willians. É real demais. Recente demais. Me embrulha o estômago apenas
pensar naquele moça linda e perfeita com Ian.
– Julia, está fazendo de novo.
Eu respiro fundo e volto à realidade. Sem que eu perceba estamos no
quarto do hotel.
– Me desculpe, estou distraída... Acho que vou tomar um banho.
– Tem certeza que está tudo bem? Sei que odeia fazer compras, só
não achei que fosse ficar irritada.
– Não estou irritada, Ian, esquece - eu entro no chuveiro.
Fecho os olhos e deixo a água escorrer. Tento limpar minha mente.
– Qual o problema?
Abro os olhos e vejo Ian diante de mim.
Ele está sério e determinado. Sei que não vai me deixar em paz até
que eu responda.
Só que eu não quero falar.
Sei que ele vai me achar exagerada. Eu mesma sei bem lá no fundo
que estou exagerando. Sei que causará problemas entre nós.
Sem dizer nada, eu me aproximo e, ficando na ponta dos pés, o beijo.
– Julia... – ele tenta me afastar, eu não deixo.
Meus lábios percorrem seu queixo áspero de barba por fazer, minhas
mãos deslizam por seu peito.
– Shi... – sussurro em seu ouvido, meus dedos descem mais.
– Julia, é sério... – ele ofega.
Eu sorrio contra seu pescoço.
– Acho que estou na TPM.
Ele ri agora. Sei que está cedendo. Eu sinto em meus dedos.
– Está desviando do assunto de propósito.
Eu o empurro até a parede e o encaro com falsa inocência. Meus
dedos aumentam o ritmo.
– Jura? Quer que eu pare?
Ele geme.
Me excita.
Seus dedos puxam meu cabelo e me beija.
Eu exulto. O beijo de volta. Mil vezes. Devoro seus gemidos.
Quero que ele não pense em nada. A não ser em mim. Ele é meu
agora.
E eu o beijo inteiro. Mordo, lambo, marco.
Ajoelhada diante dele escuto seus gemidos em meu ouvido, seus
dedos puxando meus cabelos e sinto seu gosto em minha língua.
E depois, ele me leva pra cama.
E eu desconfio que ele sabe o que me preocupa, porque me beija e
sussurra em meus lábios.
– Eu nunca amei ninguém além de você, Julia.
E eu acredito. Porque eu sei, embora não me lembre, que também
nunca amei ninguém assim.

***

Nós passamos duas semanas em Nova York.


E eu esqueço tudo o mais, me concentrando em Ian.
Enquanto estamos sozinhos, não há mais nada no mundo pra mim
além dele. E eu desejo secretamente que seja sempre assim.
Infelizmente o resto so mundo ainda existe.
Nossas famílias, nossos trabalhos, nossos amigos.
Assim, numa tarde chuvosa, nós desembarcamos em Portland. A lua
de mel havia terminado.
– Me sinto um pouco triste – confesso, enquanto Ian dirige um carro
alugado para Beaverton.
Ele sorri e segura minha mão.
– Achei que ficaria feliz por rever seu pai.
– Claro que sim. Também queria ficar pra sempre sozinha com você.
– Quer ir para uma ilha deserta? - Pergunta brincalhão e eu rolo os
olhos.
– Não seria má ideia – ligo o som, e uma música linda enche o carro.
– Esta música... é aquela que você estava tocando na sua casa... –
relembro, sentindo de novo a mesma tristeza exatamente como me senti
quando a ouvi pela primeira vez. – Que música é esta? É tão... triste.
– Eu compus.
Ele responde simplesmente, com o olhar preso na estrada.
– Oh... sério?
Ele não responde e parece tenso. Será que está bravo porque acho a
música dele triste?
– É bonita... – murmuro. – Desculpe-me se disse que era triste...
Ele sorri, sua mão busca a minha de novo.
– Tudo bem. Não estou bravo, Julia.
– Eu realmente acho muito linda.
– E triste – ele estende a mão e desliga o som. – Melhor não ouvir
então.
Eu franzo a testa, desconfiada de repente.
– Você me disse uma vez que compunha... por acaso esta música foi
inspirada em alguma garota?
Ele ri, divertido.
– Não, para um cara.
Eu soco seu ombro.
– Bobo!
– Esqueça a música, Julia. É só mais uma das muitas que compus. É
só um hobby, nada demais.
– Tudo bem. Depois quero ouvir todas. Tenho certeza que deve ter
alguma mais alegre.
– Com certeza.
O telefone celular de Ian toca, ele olha o número e não atende.
– Não vai atender?
– Estou dirigindo. E é da minha casa. Deve ser Tess torrando a
paciência.
– Ok.
– Quer passar na casa do seu pai primeiro? - Ian pergunta quando já
estamos em Beaverton.
– Pode ser...
Eu me arrependo na hora em que chegamos defronte à casa de Jack,
pois reconheço o carro de Chris estacionado.
Um simples olhar de relance e eu sei que Ian está tenso.
– Podemos ir embora, eu volto outra hora - digo rápido.
Realmente não quero problemas com Ian por causa de Chris.
Ele aceita a sugestão passando direto.
Eu mordo os lábios, incomodada. É muito chato que as coisas sejam
assim. Eu quero que Ian e Chris se deem bem para eu não me sentir tão
dividida.
Nós chegamos à casa dos Callaghan e Ian me encara. Parece mais
relaxado agora.
Mesmo assim eu sinto que as coisas já não são as mesmas.
– Quer entrar e dar um oi para meus pais? Ou quer ir direto pra casa?
– Não, vamos entrar. Assim ficamos livres – eu digo, soltando o cinto
de segurança.
Nós entramos e a casa está em silêncio. Escuto a voz de Rebecca
conforme vamos nos aproximando da sala.
– Você deve ir embora.
– Sim, eu liguei para o Ian, ele não atendeu, estariam chegando hoje.
– Tess fala.
– Eu preciso muito falar com ele!
Eu paro. Ian para.
Eu só ouvi aquela voz uma vez. No apartamento de Ian. No dia do
meu casamento.
A voz de Susan Willians.
Ian me encara, tenso.
– Eu não faço ideia do que ela está fazendo aqui – diz irritado.
Eu estou meio em choque, enquanto ele me puxa até a sala.
Rebecca e Tess nos encaram com olhos surpresos. Susan se vira e nos
vê. Seus olhos estão vermelhos de chorar.
– Que diabo está fazendo aqui, Susan? – Ian indaga friamente.
– Ela já está de saída. - Rebecca diz rapidamente chegando a segurar o
braço de Susan.
Que a ignora.
– Eu preciso falar com você, Ian – sua voz está trêmula.
– Não temos nada para falar. Pensei que tivesse entendido.
– Sim, mas... é realmente sério,... por favor, podemos falar... – ela
olha pra mim e depois pra ele novamente. – Em particular.
– Não. Eu quero que vá embora.
– Não posso ir sem falar com você.
– Se tem alguma coisa pra dizer, diga logo e vá embora.
Ela hesita, então diz.
– Eu acho que estou grávida.
Ian

Eu já fiz isto uma vez.


Não deveria ser pior agora. Deixá-la ir.
Mas estava me matando.
Ligo o rádio e a música que toca apenas serve para me consumir um
pouco mais. As lembranças doloridas enchem minha mente. Enquanto eu
sofro, as resoluções se tornam mais fortes.
Eu fiz o certo há dois anos. E estava fazendo novamente. Bastava
apenas um sofrimento. Julia estava bem e iria continuar assim.
Pego meu celular e disco um número conhecido.
Ela está lá me esperando, como sempre.
Basta eu ligar. Ela não faz perguntas. Não tem exigências. Eu me
sinto culpado por muito motivos. Não existe sentimento da minha parte e eu
sei que há da parte dela. No entanto, eu conheço o amor. E o que ela sente
não é amor.
É mais um capricho. Uma cisma.
Todavia, eu gosto dela. Esteve na minha vida por tanto tempo, foi
minha confidente muitas vezes.
Eu havia começado aquilo achando que estava agindo corretamente.
Estava desesperado para esquecer. Com medo de fraquejar nas minhas
escolhas. De não ter forças para manter minhas resoluções. E o tempo passou.
Às vezes ansiava que fosse diferente, que eu fosse capaz de me
apaixonar por ela e seguir em frente de verdade. Infelizmente eu estava
machucado demais.
Era do que eu tentava me convencer, a verdade eu descobri naquela
tarde na clareira.
Eu não podia amar Susan, porque continuava amando outra pessoa.
Aquela que nem sabia mais quem eu era.
Esse fato não importava, não quando descíamos pelo caminho que
percorremos tantas vezes. Seus olhos me sondando, me chamando. Ela não
fazia ideia do que estava fazendo. Não fazia ideia de que eu a amei mais que
tudo. Tanto que preferi abrir mão dela, para que não sofresse.
Por que ela voltou? Por que não ficou em Londres, ou qualquer outro
lugar do mundo, longe de mim?
Eu olhava para a mulher na minha frente e sentia uma vontade insana
de que ela fosse outra pessoa.
– Não podemos mais continuar – eu digo por fim.
Seu sorriso se desfaz.
Eu me sinto mal.
– Por quê?
Eu posso dizer a ela a verdade.
Prefiro me calar.
– Não está levando a nada, Susan.
– Não me importa.
– Importa sim. Você merece mais. Eu não posso te dar nada, além
disso.
– Não fale assim. Está dando certo... está...
– Nada mudou Susan. Eu ainda sou a mesma pessoa. E percebi que
não vou mudar.
Ela insiste mais um pouco até que eu a convenço a ir embora.
– Me liga. Eu sei que vai mudar de ideia – ela diz antes de sair.
Ela está errada.
Eu entro no quarto e abro a gaveta. A foto está ali. Foi tirada há muito
tempo... quase quatro anos.
Ela está linda. Sorridente.
Os cabelos castanhos soltos ao vento, os olhos cor de avelã brilhando
em minha direção.
Foi um dia de sol na clareira. Estávamos apaixonados.
Tínhamos tudo. Agora não tínhamos nada.
Lembro-me de seu sorriso hoje, enquanto ela dava partida no carro.
Por um momento, foi como antes. Como se ela me conhecesse. E me amasse.
Será que era possível? Mesmo sem lembranças, que ainda houvesse
sentimento? E se houvesse, será que podíamos ter uma segunda chance?
Seria como começar tudo de novo.
Sem nada ruim.
Apenas nós dois.

Dias depois eu estou em frente a sua casa. Jack me olha com raiva.
Ele espera Julia desaparecer dentro de casa e me encara irritado. Eu sei que
ele tem motivos.
Eu prometi ficar longe. Prometi manter minha resolução de sair da
vida dela há dois anos. Porém, depois de alguns dias remoendo o passado em
Portland, eu havia voltado.
– Que diabo está fazendo?
– Eu não consegui... ficar afastado.
– Que inferno, Ian! Foi você mesmo que nos proibiu de dizer qualquer
coisa a seu respeito e agora está cortejando Julia como se nada tivesse
acontecido?
– Não aconteceu. Não pra ela. Somos somente dois estranhos se
conhecendo.
– Eu não concordo. Quero que saia da vida dela.
– Acho que só a Julia pode decidir quanto a isto.
– Agora é ela quem decide? – Sua voz é cheia de ironia.
Ele está certo.
Eu entro no carro e me afasto. Não quero as verdades de Jack. Não
quero pensar nos perigos das decisões que estou tomando agora. Eu só sei
que estou feliz de novo. Eu estou com Julia novamente.
Na minha casa as coisas não são diferentes. Rebecca é a pior. Temos
mais uma discussão naquela noite.
– Você não entende! É uma segunda chance! Ela não se lembra de
nada!
– Acha certo? Você está enganando a Julia!
– Você quer o quê? Que eu conte a verdade?
Rebecca recua e Oliver a tira de perto de mim.
Eu saio para respirar ar puro e não fico surpreso quando vejo Chris
Wilson vindo em minha direção. Por um momento acho que ele vai me bater.
Talvez eu mereça.
Ele para na minha frente. Está mais calmo do que eu achei que estaria
nesta situação.
– O que você pretende?
Eu solto uma risada amarga.
– Ela já foi te procurar, não é?
É incrível como ainda dói. Saber que Julia se esqueceu de mim, mas
não dele.
A ligação entre eles continua a mesma. Enquanto eu tenho que lutar
para conquistá-la de novo.
– Sim, ela te contou que eu a chamei pra sair?
Eu não deveria ficar surpreso. Chris ainda era apaixonado por ela.
– Não, não me disse. E vocês saíram? – Minha mente está tomada
pelo ciúme.
– Não, ela desmarcou porque um tal de Ian Callaghan surgiu na
parada. Déjà-vu?
Eu não falo nada.
– E o que eu devo fazer? Juro que me deu vontade de contar
exatamente quem você é! Que não é o senhor perfeitinho que ela pensa!
– Teria coragem de contar?
– Não. Eu jurei que não contaria nada, não jurei? O que eu sei foi que
você também jurou! E disse que ia sair da vida dela e agora está de volta!
– Eu quero uma segunda chance – digo simplesmente. – Eu não estou
forçando nada, Chris. Simplesmente... está acontecendo de novo... como se
nada tivesse existido antes.
Chris respira fundo.
– Eu percebi. E eu sei muito bem que, como da outra vez, eu não
posso lutar contra – sua voz é cheia de amargura.
– Do mesmo jeito que eu não posso lutar contra esta ligação de vocês.
– O que vai acontecer de agora em diante?
– Vamos em frente... Estamos nos conhecendo de novo.
– Eu mato você se ferrar com tudo novamente.
– Não fui bem eu que ferrei com tudo da primeira vez.
Chris sabe muito bem.
– E a tal Susan?
– Não estamos mais juntos.
Ele parece satisfeito com esta resposta quando vai embora.
Capítulo 12

Eu sinto como se meu corpo não me pertencesse mais. Como se


estivesse vendo aquela cena de uma plateia.
Era mais simples do que encarar o que eu acabara de ouvir.
– O quê? – É a voz consternada de Ian que eu escuto.
– Você ouviu. – Susan confirma. – Eu estou...
– É impossível – Ian a interrompe.
– Impossível? Sabe que estas coisas acontecem, nós...
– Nós sempre fomos cuidadosos, você sabe tanto quanto eu que uma
gravidez é impossível, Susan! Por que diabo está inventando?
– Não estou inventando! Eu estou atrasada há semanas, estou sentido
enjoos e...
Agora quem está enjoada sou eu. Quero sair daquela sala. Quero
correr dali para o mais longe possível, não consigo me mover.
– Gente, acho que deveriam deixar esta conversa pra depois. – Tess
olha pra mim preocupada.
– Também acho, você precisa ir embora, Susan – Rebecca diz.
Ian me encara.
– Não! Susan fica. – Ele segura meu braço. – Vou levar Julia pra casa
e depois levarei Susan para um exame!
E sem mais ele sai praticamente me puxando. Nós entramos no carro
e eu ainda estou sem conseguir dizer nada.
Eu mal consigo respirar.
Ian está possesso dirigindo rapidamente até a nossa casa.
A verdade começa a clarear meu estupor.
A Linda e perfeita ex de Ian, aquela que faz parte dos meus pesadelos,
está grávida.
Ela vai ter um bebê.
De Ian.
O carro para em frente ao chalé e eu nem espero ele desligar o motor
pra pular fora. Corro para dentro e desabo em frente ao vaso sanitário.
Vomito todo meu horror.
Ian está me segurando quando termino.
Eu estou tonta. De vomitar e de desespero.
– Julia, amor, Deus, sinto muito... vamos resolver...
– Resolver? – Eu o encaro.
– Ainda não temos certeza.
– E se for verdade?
– Daremos um jeito.
– Jeito? É um bebê, Ian. Um bebê seu e daquela...
– Eu ainda acredito que é impossível, eu sempre usei preservativo...
– Não quero ouvir... – eu abro a torneira, jogando água no meu rosto.
Quero me afogar.
– Estou apenas dizendo a verdade.
Meu olhar encontra o dele pelo espelho.
– Ela tem razão... nada é cem por cento seguro – murmuro.
– Eu sei... exatamente por isto vou levá-la ao médico.
Enxugo meu rosto, minhas mãos estão trêmulas.
– Só não queria deixá-la sozinha.
– Eu estou bem.
Me arrasto para o quarto e me sento na cama.
– Eu realmente não queria que estivéssemos passando por esta
situação – ele diz como se pra si mesmo, enquanto se ajoelha diante de mim e
tira meus sapatos.
Eu me deito, encolhida.
– Vou ligar para Rebecca...
– Não. Eu quero ficar sozinha.
– Julia...
– Por favor, Ian. Deixe-me sozinha.
Fecho os olhos e o escuto se afastando. E só então começo a chorar.
Não sei quanto tempo passa. A noite cai lá fora quando finalmente
tenho forças para levantar. Eu tiro a roupa e entro debaixo do chuveiro.
O telefone está tocando quando saio. Não quero atender. Pode ser Ian
e tenho medo do que ele irá dizer.
Visto uma roupa e saio de casa. Meu velho jipe está na garagem. Não
sei aonde estou indo enquanto dirijo. Não quero ver meu pai. Não quero ter
que contar a ele o que aconteceu.
Então vou para fazenda dos Wilson. Também não vou contar a Chris.
Ele não vai insistir para saber. A fogueira está acesa e há várias pessoas
reunidas ali quando desço do carro. Chris me vê e vem em minha direção.
– Ei, o que faz aqui? Achei que estivesse em lua de mel – ele diz
sorrindo, enquanto seu olhar sonda meu rosto.
Tenho certeza que ele tenta procurar algo errado. Eu sorrio também,
dando de ombros.
– Cheguei hoje. O que está rolando aqui?
– Só os caras da fazenda comemorando o dia do pagamento. Música,
bebida e diversão. Sabe como é, você já esteve em uma fogueira antes...
Franzo a testa.
– Estive? Não me lembro...
Ele coça o cabelo.
– É, desculpa, esqueci.
– Me conta.
– Contar?
– Me conta como foi da outra vez que estive aqui. Vocês nunca falam
nada sobre os dois anos que eu esqueci...
Nós estamos caminhando, nos afastando das pessoas na festa.
– Não tem nada demais pra contar, Jules.
– Não interessa, conte como foi?
– Foi logo depois da nossa formatura do colégio. Um pouco antes de
você ir pra faculdade...
Nós paramos já bem afastados. Não vejo mais as pessoas e Chris
acende outra fogueira.
– Ah... quase uma despedida, então.
– Sim, é a palavra perfeita... – ele olha as chamas. Com o pensamento
bem longe dali.
Eu sei que ele está pensando naquela noite.
Aquela que segundo ele, não tem nada demais pra contar.
Eu não acredito.
– E o que aconteceu? – Pergunto me sentando. Ele se senta do meu
lado.
– O que sempre acontece nestas festas – ele dá de ombros.
– Não foi só isto – insisto, curiosa.
– Nós nos afastamos e nos sentamos sozinhos como agora.
Então de repente eu não sei se quero ouvir. Minha mente se volta para
algo mais antigo. Uma declaração de amor e um beijo roubado.
Faz tanto tempo. Alguns meses depois da morte da minha mãe,
quando eu e Chris tínhamos nos tornado inseparáveis. Melhores amigos. Até
que ele me surpreendeu dizendo que estava apaixonado por mim. E me
beijou.
Só que eu não gostava dele daquele jeito. Eu voltei pra casa e chorei.
Eu sabia que, por mais que amasse Chris, ele seria sempre meu amigo.
Ele apareceu dias depois. Como se nada tivesse acontecido.
Continuamos amigos. Ele nunca comentou mais nada desde então. Porém
aquele episódio ficou entre nós e, de tempos em tempos, eu me perguntava se
ele havia esquecido.
Tinha medo que não.
Eu achava que não.
– Julia?
Congelo ao ouvir a voz de Ian, que me faz voltar ao presente. Viro-me
e ele está parado a pouco passos de distância.
– Ian! – Eu me levanto.
Sinto-me culpada. E nem sei por quê.
– Olá, Ian – Chris diz com voz divertida. – Quer participar da nossa
festinha?
Ian está com cara de poucos amigos.
– Chris, eu já vou – digo, antes que aquilo vire briga. E saio andando
em direção a Ian.
– Como sabia que eu estava aqui?
– Onde mais se esconderia quando temos um problema? – Ele fala
entredentes, enquanto caminhamos em direção ao carro.
Estou louca para saber sobre o teste de gravidez.
Não tenho coragem de perguntar.
– Deixe seu carro aí e venha comigo.
– Não, eu posso dirigir.
Entro no jipe dando partida antes que ele possa me impedir.
O carro de Ian pode ultrapassar o meu com tranquilidade, mesmo
assim ele permanece atrás de mim. A distância é curta.
Não sei se quero chegar em casa. Não sei se quero encarar a verdade.
Infelizmente é inevitável.
Eu entro com Ian me seguindo e o encaro.
– Susan não está grávida. Como eu suspeitava, era alarme falso.
Eu ando pela sala, coloco as chaves do carro no aparador. Meus dedos
tremem.
– Com certeza? – Minha voz está fria.
– Sim. Fizemos todos os testes.
– Certo...
Estou de costas pra ele. Olhando a noite escura.
Não sei o que sinto. Deveria me sentir aliviada. Feliz. No entanto me
sinto estranha. Triste. Me sinto mal.
– Julia, eu sinto muito – Ian se aproxima por trás de mim.
Seus dedos tocam meus ombros.
Fecho os olhos.
– Eu não sei o que deu na Susan.
– Ela te quer de volta. Estava desesperada.
– Ela sabe que nunca vai acontecer. Mesmo que estivesse grávida...
Eu me viro e o encaro.
– O que ia acontecer? Ia pedir para ela tirar o bebê?
Não sei se gosto de Ian pedindo algo assim pra alguém. Mesmo que
seja Susan Willians.
– Eu não sei.
Eu me afasto.
– Eu não ia ficar com ela só por causa disto, Julia. Uma gravidez não
é o suficiente pra manter duas pessoas juntas.
– Talvez tenha razão... – murmuro. – Só não consigo parar de pensar,
que se fosse verdade...
– Não pense. Não é real. Não precisa mais se preocupar.
– É sofrido mesmo assim, Ian. Acha que é fácil pra mim esquecer que
há poucas semanas você estava com ela? Talvez ainda estivessem juntos se
eu não tivesse aparecido. Talvez sua reação sobre a possibilidade de uma
gravidez fosse outra, talvez ficasse até feliz...
– Impossível eu ficar feliz – ele diz quase que para si mesmo.
– Por quê? Por que, como você diz, não a amava?
– Julia, esquece, por favor. Eu já te disse que o que havia entre mim e
Susan, era apenas uma conveniência... Claro que seria um problema se ela
engravidasse. Com ou sem você em minha vida. Agora chega deste assunto!
O telefone toca. Ian atende e troca algumas palavras com a pessoa do
outro lado da linha e me passa o telefone.
– É Jack.
Eu penso em pedir pra não atender, acabo pegando o telefone da mão
dele.
– Chris me disse que voltou. Por que não me avisou?
– Eu voltei hoje, pai...
– E já foi numa festa nos Wilson! Ele me disse que Ian foi te buscar lá
com cara de poucos amigos...
– Chris é um fofoqueiro agora é? – digo rispidamente. – Não está
acontecendo nada, pai!
– Tudo bem, tudo bem! Não precisa ficar nervosa. Só aceite um
conselho. Veja bem o que vai fazer. Não quero ter que ficar apartando briga
entre seu marido e Chris.
– O que quer dizer?
– Sabe muito bem! Ian morre de ciúmes de Chris e nós sabemos que
ele tem razão de ter!
– O que está insinuando, que eu... – me calo levantando o olhar à
procura de Ian, ele não está por perto. - Está dizendo que eu dou alguma
esperança ao Chris?
– Não foi o que eu disse. Todo mundo sabe que o Chris é apaixonado
por você. Não tem como culpar o Ian por se sentir ameaçado.
– Chris sabe o que eu sinto. Eu amo o Ian. Ele é apenas meu amigo.
– Não sei se seu marido está feliz com esta sua amizade. Apenas não
se meta em confusão.
– Obrigada pelo conselho. Boa noite, pai!
Eu desligo e escuto o barulho do chuveiro ligado.
Ian está no banho.
Vou pra cozinha e preparo o jantar.
Ian aparece algum tempo depois. Nós nos sentamos para comer.
– Precisamos voltar a Portland amanhã.
– Eu não posso. – Tenho que voltar à escola. Peguei somente duas
semanas de licença.
– Sei que ainda não conversamos sobre isto, você sabe que meu
trabalho é em Portland.
– Sim e o meu trabalho é aqui.
– É um trabalho temporário, Julia. Pode se desligar e arranjar algo em
Portland.
Ele tem razão. Eu mesma já havia pensado naquilo. Se bem que,
depois de toda esta confusão com Susan, algo me fazia querer ficar em
Beaverton. Pelo menos por enquanto.
– Desculpe-me, mas eu quero realmente ficar aqui.
Nos encaramos por cima da mesa por um instante.
Sei que Ian está bravo comigo. Quero que ele fique. No fundo, sei que
estou fazendo aquilo pra irritá-lo, como uma espécie de punição por tudo o
que eu passei com o episódio de Susan. É infantil e ridículo, só não consigo
evitar.
E talvez tenha merecido o que ele diz em seguida.
– Vai procurar o Chris?
Eu me levanto, verdadeiramente irritada agora.
– Quer saber? Estou de saco cheio de pisar em ovos com você por
causa de Chris. Não acho justo eu ter que fingir que meu melhor amigo não
existe por sua causa!
Ian se levanta também.
– Mas é justo ficar me atormentando por causa da Susan.
– São coisas completamente diferentes! Eu nunca tive nada com
Chris.
– Não?
As palavras saem de sua boca como veneno.
Batem em meu estômago. Que se revira.
– Claro que não! – Nego horrorizada. – Não sou você, que dorme com
suas “amigas” pra passar o tempo!
– Está sendo tão injusta, Julia... – sua voz é cheia de uma dor antiga,
que me quebra um pouco.
Porém eu não posso deixar que ele insinue inverdades sobre mim e
Chris.
– Você também está sendo muito injusto. E me dói saber que
desconfia de mim. Chris é meu amigo. Se eu quisesse ficar com ele, estaria
com ele e não com você.
– Me desculpe. Deus, que inferno! Tudo o que eu faço faz você
sofrer? Eu não faço outra coisa a não ser tentar poupá-la, parece que só causo
mais sofrimento!
Eu engulo o nó na minha garganta.
– Nunca mais ouse insinuar nada sobre mim e Chris. Não me faça
achar que foi um erro escolher você.
Eu me viro e saio da cozinha. Ainda escuto sua voz.
– Eu também quero acreditar que não está sendo um erro...
Não quero chorar, apesar de as lágrimas caírem enquanto me troco e
coloco um pijama.
Eu me deito e ensopo o travesseiro.
Ian não aparece.
Eu acordo de um pesadelo.
Ofego e tremo. Estou com frio. As cobertas estão todas reviradas no
chão.
Olho pro lado e Ian não está. Saio da cama às cegas e o procuro.
Ele está deitado no sofá.
Eu me aproximo e deito do seu lado. Ele acorda.
– Julia...?
– Não me mande embora – digo contra seu peito, enquanto ele me
abraça.
– Você está gelada. – ele puxa a coberta que o cobre pra cima de mim.
Eu me enrosco mais nele, ainda tremendo.
– O que foi?
– Tive um pesadelo.
– Ah, amor, eu sinto muito – sinto seus lábios em minha testa. Sua
mão acaricia minhas costas.
– Só quero dormir.
– Quer voltar pra cama?
– Não, está quentinho aqui.
Ele ri contra meus cabelos.
– Então durma.
Eu adormeço, me sentindo segura.
Claro que eu não errei.

Quando acordo estou na cama. Ian está do meu lado.


Ele sorri.
– Bom dia.
– Bom dia - eu me espreguiço. – Que horas são?
– Cedo.
– Que horas você vai?
– Daqui a pouco.
Eu me sinto meio triste. Sei que posso mudar de ideia, pedir demissão
e ir com ele. De alguma forma acho que será bom dar um tempo.
Tudo acontece rápido demais entre nós. Não sei se é certo
simplesmente abrir mão de tudo por ele.
– Já sinto sua falta – digo e Ian me puxa pra perto.
Me aconchego em seu corpo morno.
Desejo parar o tempo.
– Ainda pode vir comigo – diz em meu ouvido.
– Sabe que não – respondo, passando a perna por seu quadril. –
Precisamos deste tempo.
– Eu preciso mais de você – sua boca toca meu pescoço.
– Ian... – há resistência em minha voz.
Ele ri contra minha pele. Me arrepia.
– Tudo bem, acho que terei que me acostumar com uma mulher
independente então.
Ele me solta. Eu rolo por cima dele.
– Quanto tempo temos até que precise ir?
– Todo o tempo que quiser se for pra me dar carinho.
Eu sento em cima dele e tiro a blusa do meu pijama.
Ian sorri lindamente.

Naquela tarde ele vai pra Portland e eu fico me perguntando se estou


agindo corretamente.
Ligo para a escola e digo que vou voltar para as aulas no dia seguinte.
Depois ligo pra Carla e faço um relato resumido de como foi em Nova York.
– E como vai a vida de casada?
– Muito bem – digo evasiva.
Embora Carla seja minha amiga, não me sinto muito tentada nesse
momento a contar a ela meus problemas com Ian.
– Ian está em Portland.
– Achei que fosse se mudar pra lá com ele.
– Talvez quando acabarem as aulas... ainda não falamos sobre isto.
– Terá que se decidir, embora Portland não seja longe...
– Sim, pensaremos nisto depois.
– Se por acaso se sentir sozinha me liga. Podemos fazer alguns
programas legais.
– Obrigada, vou me lembrar.
Eu desligo e então escuto alguém bater a porta.
Será algum Callaghan?
Quando abro a porta, arregalo os olhos surpresa ao ver Susan
Willians.
Minha primeira vontade é fechar a porta na cara dela, me contenho.
– O que faz aqui? – Pergunto friamente.
– Posso entrar?
– Ian não está.
– Eu sei. Sei que ele foi pra Portland. Eu vim conversar com você.
– Não temos nada pra conversar.
– Eu acho que temos.
Eu quero insistir que não, porém há uma curiosidade mórbida dentro
de mim que quer ouvir o que Susan tem a dizer.
Eu faço um sinal para ela entrar e fecho a porta.
Ela olha em volta, tira o casaco.
– Sua casa é bonita.
– Acho que não veio elogiar minha casa.
– Não, não vim.
– O que quer Susan? O que aconteceu ontem já não foi suficiente?
– Acha que fiz de propósito? Acha que inventei que estava grávida?
– Inventou?
– Não. Eu delirei – ela sorri tristemente.
– Você não queria perder o Ian.
É uma constatação.
– Não. Acho que me entende, não é?
Eu não respondo.
Sei que temos algo em comum. Temos ele em comum. Só não quero
compartilhar nada com Susan Willians.
– Eu vim pedir desculpas.
Eu não falo nada e ela continua.
– A começar pela cena que presenciou na noite do seu casamento. Eu
não fazia ideia... – ela para e respira. – Enfim, não fazia ideia que você estava
com ele. Se eu soubesse... Ian deveria ter me contado quando terminou
comigo. Eu estava achando que era apenas...
– Eu não quero saber.
– Se eu soubesse sobre você... eu nunca teria voltado ao apartamento
dele.
– Mas veio até aqui dizer que estava grávida.
– Eu achei que estava. De verdade. O tempo inteiro eu dizia a mim
mesma que era improvável. Ian sempre foi muito... cuidadoso em relação a
isto.
– Eu realmente não quero saber de detalhes... – meu estômago
embrulha.
– Deveria ficar aliviada. Ele não queria de maneira alguma ter um
filho comigo. Sabe por quê? Porque ele não sentia nada por mim. Eu fui uma
idiota achando que poderia mudar. Que eu podia ser algo mais que uma
amiga com quem ele transava de vez em quando. Que eu podia...
– Susan, eu não quero falar sobre este assunto. O que aconteceu entre
você e Ian... não é da minha conta, afinal.
– Queria que não fosse. Há tanta coisa... Eu queria poder te dizer. Mas
não posso – ela se levanta.
Ela pega o casaco e caminha em direção à porta.
– O que quer dizer com tem muita coisa a dizer? – Indago confusa.
Ela se volta.
– Pergunte ao Ian.
– Por que está fazendo isto? Veio aqui pra me confundir? Pra eu
desconfiar do Ian?
– Não. Eu nem deveria estar aqui. Queria apenas pedir desculpas. E
dizer que não vai me ver mais.
Ela abre a porta e desaparece na névoa fria.
Suas palavras ficam martelando na minha cabeça. O que somente Ian
podia me contar?
Ian

O telefone toca várias vezes. Julia não atende. Desligo, me


perguntando onde ela está. Não querendo que ela esteja com ele.
Eu nunca terei certeza.
Então, em vez de ligar para Chris, eu ligo para Jack.
– Falou com a Julia hoje?
– Sim, ela me disse que ia sair com a Carla.
Eu volto a respirar, sem me dar conta de que estava com a respiração
presa na garganta até aquele momento.
Jack sabe.
– Deve parar com isto.
– Devo?
– Por que voltou pra vida dela se vai ser assim? O que aconteceu com
a história de começar do zero?
– Eu achei que seria mais fácil.
Eu caminho pela sala e mexo nos DVDs até encontrar o que procuro.
Coloco no aparelho e me sento.
– Eu te avisei que podia ser um erro.
– Acha que erramos?
– Está falando de dois anos atrás?
– Sim.
– Eu não sei – a voz de Jack parece mais velha e cansada.
Todos nós estamos exaustos.
– Eu não posso viver sem ela – murmuro, meus olhos fixos nas
imagens na TV.
– Acha que conseguirá viver com tantos segredos?
– Eles irão feri-la. Não posso suportar seu sofrimento de novo. Quero
fazer a coisa certa. Só não quero vê-la sofrer.
– Acha que eu quero? Eu concordei com tudo porque queria vê-la
feliz. Saudável. Eu acreditei que ela estava feliz sem você.
– Talvez tenha razão.
– Agora não tem mais volta. Foi ela quem escolheu ficar com você
novamente. Não posso interferir.
– E Chris?
– Chris tem que lidar com seus próprios demônios, Ian.
– Eu sei.
Eu desligo. Aumento o som da TV e escuto seu riso.
Era um dia de sol. Algo tão raro em Beaverton. Claro que o sol
precisava aparecer no dia do casamento de Julia.
Nas imagens da TV ela está vestida de branco. Está linda.
Ela sorri pra mim. Nós estamos dançando.
É o dia do nosso casamento. Nosso primeiro casamento.
Aquele que ela esqueceu. Assim como de mim.
Como de nós.
Capítulo 13

Acordo com a claridade entrando no quarto. Sinto uma falta quase


dolorida de Ian.
E faz apenas um dia que ele foi pra Portland.
Ontem a noite ele me ligou. Vi suas chamadas quando cheguei, depois
de ir ao cinema com Carla. Eu precisava sair. Precisava de companhia para
não ficar pensando nas coisas que Susan disse.
Sem contar que, voltar pra casa e dormir sozinha, era triste.
Pelo menos não tive pesadelos.
Hoje não tenho aula e penso no que poderia fazer para preencher meu
dia. Jogo as cobertas para o lado e abro a janela. Respiro o ar puro. Tem sol.
Quase um milagre.
Sorrio.
Então vejo alguém no jardim. Aquele bonito onde encontrei Rebecca
chorando.
É a mãe de Ian. Ela está mexendo no jardim.
Saio da janela, me visto e faço um chá.
Caminho em sua direção.
– Oi – digo timidamente.
Jill está ajoelhada entre as flores, se vira surpresa e sorri.
– Olá, Julia, já acordada tão cedo?
Ela se levanta. Usa luvas de jardineiro.
– Sim – dou de ombros. – A vi da minha janela e pensei se não
gostaria de um chá.
Ela retira as luvas e pega a xícara.
– Que amável, querida, obrigada.
Eu respiro quase aliviada.
Jill parece ser uma pessoa muito gentil eu preciso vencer esta
resistência com a família de Ian.
Afinal, eles também são minha família agora.
– Hoje não tem aula?
– Não. Eles irão numa excursão. Então estou de folga... este jardim é
lindo.
– Não é? Eu mesma plantei todas as flores.
– Que lindas – eu toco um pequeno botão rosa. – Não me lembro de
ele estar aqui da última vez que... – eu me calo, não quero falar que vi
Rebecca chorando.
– Eu acabei de plantá-las.
– São realmente lindas. Você faz um ótimo trabalho.
– Sim, é trabalhoso mesmo, mas eu adoro.
– Eu até poderia te oferecer ajuda, mas sou péssima para estas coisas.
– Não tem problema, querida. Por que não vem almoçar comigo?
Estou sozinha em casa.
– Claro, eu irei.
Ela me devolve a xícara.
– Obrigada, o chá estava ótimo. Eu te espero na hora do almoço,
– Pode esperar!
Eu a vejo caminhar em direção a casa e permaneço mais um pouco
ali.
Depois volto pra casa e decido fazer uma arrumação.
Ian me disse que os Callaghan tinham empregadas que vinham toda
semana fazer a limpeza e que eu não precisava me preocupar, mesmo assim,
aproveito para conhecer melhor a casa.
Havia mais um quarto, além do nosso, que estava vazio, sem móvel
algum eu pensei que poderia transformá-lo em quarto de hóspedes.
Estou quase saindo para encontrar a mãe de Ian quando o telefone
toca.
Eu sei que é ele.
Meu coração se aquece ao ouvir sua voz.
– Julia?
– Quem mais poderia ser? – Brinco.
Ele ri.
Fecho os olhos. Desejando desesperadamente que ele estivesse
comigo.
– O que fez ontem à noite? Eu te liguei.
– Eu fui ao cinema com a Carla.
– Se divertiu?
– Sim, mas preferia estar com você.
– Ainda pode mudar de ideia e vir pra cá.
Mordo os lábios, tentada.
Não quero deixar meu trabalho agora. De verdade.
– Eu vou almoçar com sua mãe hoje.
– Que bom, não gosto da ideia de você sozinha.
– Eu trabalho, Ian, não tenho tempo de ficar sozinha! E sempre posso
sair com a Carla, visitar meu pai... – eu quase completo “encontrar Chris”, me
calo a tempo.
Infelizmente eu tenho quase certeza que Ian completa em seu
pensamento.
– Enfim, não falta muito para o semestre acabar. Apenas algumas
semanas.
– Vou contar as horas. Virá ficar comigo, não é?
Há certa insegurança em sua voz.
– Claro que sim! O que mais eu faria? Beaverton não tem graça
nenhuma sem você.
– Portland também é chata sem você.
– Quando você vem?
– No fim de semana. Bom, eu preciso voltar ao trabalho.
– Sim, me liga à noite?
– Nada de encontros de solteira?
– Não, ficarei em casa lendo e sofrendo de saudades, satisfeito?
Ele ri.
– Eu te amo.
– Eu sei.
Tess aparece muito sorridente na minha porta na tarde seguinte,
depois que chego da escola.
– Olá!
– Oi, Tess.
– E aí, como está se virando sozinha sem meu irmãozinho por perto?
Dou de ombros, enquanto ela entra.
– Indo...
– Ele deve estar todo deprimidinho lá em Portland – ela ri. – Eu vim
animar você!
– E isto que dizer...?
– Vamos às compras, claro!
– Tess, eu não curto muito...
– Ah, por favor! Não precisa comprar nada pra você, se não quiser!
Eu compro e você me acompanha! Rebecca está com o namorado em
Portland e minha mãe é tão chata comigo!
Eu rio.
– Tudo bem, acho que vai ser bom dar uma volta na cidade.
Tess tem um Mini Cooper e dirige em alta velocidade enquanto
tagarela sem parar.
Ela estaciona em frente a uma loja de roupas e eu paro.
– Tess, lembrei que tenho que encomendar uns livros, podemos nos
encontrar aqui depois?
Ela rola os olhos.
– Sabia que ia fugir! Sempre foge!
– Sempre?
– Ah... Ian me alertou sobre sua mania de livraria! Tudo bem, me
encontre aqui depois que comprar seus livros! Eu vou demorar mesmo.
Consigo fugir para a livraria, me sentindo aliviada e pretendo ficar
bastante tempo lá para não ter que acompanhar Tess no seu delírio
consumista.
Estou atravessando a rua quando vejo Chris. Ele parece surpreso e
feliz por me ver.
– Olha só quem saiu da toca.
– Oi, Chris.
Nós estamos estranhamente formais.
Nada de abraços efusivos. Apesar de estranho é necessário.
Há uma nova ordem nas coisas. Tenho que me acostumar com ela.
– O que faz na cidade?
– Vim com Tess.
– Mais conhecida, como Tess, a louca?
– Não fale assim! Ela é só uma adolescente.
– Se você diz...
– E você, o que faz aqui?
– Vim procurar umas peças para um trator que estou consertando...
– Sei...
Nós caímos num silêncio tenso, então, sem aviso, começamos a rir.
– Por que estamos esquisitos? – Pergunto.
Ele dá de ombros.
– Você sabe o motivo.
Sim, claro que eu sei.
Não deixa de ser um pouco triste.
– Eu preciso ir – digo por fim.
– Claro. Nos vemos por aí.
– Sim. Tchau, Chris.
– Tchau, Julia.
Eu o vejo se afastar e lamento.
Entro na livraria, pensativa. Encomendo os livros que preciso e
resolvo dar uma volta antes de encontrar Tess de novo.
Paro em frente a uma loja de móveis e me lembro que pensei em
decorar o quarto de hóspedes.
– Te peguei!
Quase dou um pulo de susto ao ouvir a voz de Tess atrás de mim.
– Tess, credo me assustou!
Ela ri, divertida.
– Desculpa! E aí, o que está fazendo aqui? Quer comprar móveis, é?
– Estava pensando em decorar aquele quarto vazio...
– Oh... certo, aquele quarto... Ah sim, mamãe deixou-o vazio porque
não sabia o que queria fazer nele... Pode decorar do jeito que quiser, claro.
– Talvez sua mãe queira fazer isto? Fez um trabalho incrível com o
chalé.
– Ela adoraria! Se quiser, eu posso fazer pra você! Estou tão entediada
e tenho bom gosto também! – Ela dá pulinhos e me puxa pra dentro. – Vamos
entrar então e ver algumas coisas.
Tess parece uma criança em loja de brinquedo percorrendo a loja com
a vendedora bem feliz em seu encalço.
Eu caminho distraída entre os móveis e de repente paro numa sessão
de quarto de bebês.
“... deixou-o vazio porque não sabia o que queria fazer nele.” Tess
havia dito.
Será que Jill não o decorou pensando que eu poderia querer fazer um
quarto de bebê?
Seria o mais lógico, talvez...
Casamento, filhos...
Eu e Ian não conversamos sobre filhos. Nem tivemos tempo! Tudo
aconteceu tão rápido, eu só pensei em estar com ele pra sempre. Mas,
pensando bem...
Sim, eu gostaria de ter um bebê de Ian algum dia. Será que Ian
queria? Ele pareceu tão contrariado com a suposta gravidez de Susan...
Talvez devêssemos conversar sobre o assunto.
– Julia, venha ver as cores que estou pensando. – Tess me chama e
então para, olhando em volta. – O que está fazendo aqui?
– Nada... apenas pensando... que talvez devêssemos deixar esta
decoração pra outra hora.
– Eu achei que...
– Deixa pra lá, Tess, na verdade ainda não decidi o que quero fazer.
– Certo. Tudo bem. A casa é sua! Que tal tomarmos um café?
– Boa ideia.
Eu me aproximo da mesa de Tess com dois cafés e ela ri ao telefone.
– Ian, eu não estou chateando a Julia! - Ela passa o telefone pra mim.
- Fale pra ele que você está adorando fazer compras comigo.
– Deveria ter trancado as portas. – Ian brinca do outro lado da linha e
eu rio.
– Está sendo divertido.
– Está mentindo e eu sei. Não tem que fazer tudo o que Tess quer.
Não deixe que ela te incomode.
– Ela está sendo legal, Ian. E eu tinha mesmo que vir a cidade para
comprar uns livros...
– Tudo bem, deixa eu falar com a Tess.
Eu passo o telefone de novo pra Tess.
– Satisfeito? – Ela fica em silêncio ouvindo o que Ian diz. Parece séria
de repente. Seus olhos desviam dos meus. – Ian, eu sei, ok? Não precisa ficar
me lembrando! - Mais silêncio e eu fico me perguntando o que Ian está
dizendo a ela. Então ela sorri. – Sabe que sempre estou do seu lado, quem é
que mais te apoia? Sim, sou eu! Não sou a Rebecca, sabe disto... Ok, ok...
Olha pra ficar feliz... – ela me encara e pisca maliciosamente. – Comprei um
presente pra você... é, vai estar com a Julia... certo, não precisa agradecer!
Tchau, tchau!
Ela desliga e toma seu café.
– O que o Ian estava dizendo? – Pergunto curiosa e ela dá de ombros.
– Nada, ele é um chato às vezes, eu sei lidar com o Ian.
– E de que presente estava falando?
– Ah, este aqui – ela pega uma das sacolas e me entrega. – Pode ver!
Eu abro a sacola e arregalo os olhos ao ver em minhas mãos cetim e
renda.
– Tess, isto é uma lingerie! Comprou pro Ian?
– Bom, tecnicamente é pra você usar, claro!
– Então tecnicamente é um presente pra mim e eu disse que não
queria nada!
– Por isto mesmo, é um presente pro Ian! Veja bem, você vai usar pra
ele, claro.
Eu fico vermelha e Tess ri colocando a roupa na sacola.
– Obrigada, Tess, você é a melhor irmã do mundo – ela imita minha
voz e eu não consigo ficar séria.
E quando nós estamos saindo do café, ela me surpreende segurando
minha mão.
– Eu estou mesmo muito feliz que esteja aqui.
Eu não sei o que dizer sobre essa súbita demonstração de afeto de
Tess, então apenas sorrio de volta.

***
– Finalmente vou comer algo que preste!
Eu sorrio ao ouvir a voz de Jack pendurando o casaco ao entrar na
cozinha.
Eu resolvi fazer uma surpresa e fui jantar com ele. Ou melhor,
cozinhar pra ele.
– Oi, pai. Senti sua falta também!
– Já está cansada da vida de casada é?
– Sabe que Ian está em Portland.
– E por que não está lá com ele?
– Porque estou trabalhando.
– E vai ficar assim até quando?
– Até acabarem as aulas, pai.
– Não quero ser intrometido, antes que me acuse devo dizer que esse
negócio de casar e ficar cada um para um lado... não dá certo.
Eu lhe lanço um olhar exasperado.
– É temporário, já falei!
De repente escuto um carro estacionando em frente a casa.
– Está esperando alguém?
– Oh... não fazia ideia.
– Entrem – ele abre a porta para os dois homens. - Acho que estão
com sorte hoje. – Jack diz apontando pra mim.
O pai de Chris, Martin é amigo do meu pai de longa data.
– Oi... Realmente um golpe de sorte, porque nem sabia que viriam
hoje.
– Oi Jules – Chris sorri.
Ele parece feliz em me ver.
Eu me divido entre sentir felicidade ou culpa.
Acho que sinto os dois.
Jack abre a geladeira e pega cerveja para ele e Martin e, em pouco
tempo estão indo pra sala para Jack mostrar as varas de pesca novas.
Chris se aproxima de mim no fogão.
– Eu não fazia ideia que estaria aqui.
– Eu sei. Digo o mesmo.
– Quer ajuda?
– Não, estou terminando, se quiser colocar a mesa.
– Certo... e aí, como você está?
– Estou bem... sinto falta do Ian – confesso. – Ele estará aqui amanhã.
– Que bom pra você. – Chris comenta simplesmente, sem me encarar.
Nós jantamos ouvindo as histórias de pescaria de Martin e Jack e
depois Chris me ajudar a lavar a louça.
É quase como antigamente, como se ainda pudéssemos ser amigos,
sem nenhuma preocupação. Penso naqueles dois anos que não me lembro.
Será que Chris conheceu meu “namorado”, ou seja lá quem que esteve
comigo naquela época?
– Nós continuamos amigos quando eu estava em Seattle?
– Onde?
– Seattle. Faculdade.
– Claro.
– Eu vinha muito pra cá? Nós... andávamos juntos?
– Claro... Por que está perguntando?
– Não sei... curiosidade. Ninguém nunca fala desta época. Isto me
incomoda.
– É natural que te incomode não lembrar de nada. Não devia ficar se
preocupando com isto.
– Eu tento... então, se ainda éramos amigos... você deve saber se eu
tive algum namorado.
Chris parece incomodado com minha pergunta. Desvia o olhar.
– Eu tive?
– Não sei Julia. Eu só te via nos feriados e férias. Pode ter tido
dezenas de namorados, como posso saber?
– Eu acho que te contaria se tivesse, não é?
– Talvez não...
Eu suspiro pesadamente.
Será mesmo que Chris não sabia de nada? Ou sabia e não queria
falar?
De repente escuto um carro estacionando e olho pela janela. Meu
pulso congela ao reconhecer o carro de Ian.
– Droga – murmuro baixinho, indo abrir a porta pra ele.
Será que Ian tinha um sexto sentido que lhe avisava quando Chris
estava perto de mim?
Ian sai do carro e vem em minha direção.
Ele sorri e, por um momento, eu esqueço de tudo o mais e me jogo em
sua direção.
Ele me recebe em seus braços. Eu aspiro seu cheiro.
Depois de uma eternidade eu o encaro.
– Por que não me avisou que chegaria hoje?
– Não sabia se daria tempo... não queria deixá-la esperando...
Então seu sorriso congela no rosto. Ele olha além de mim.
E sei que viu Chris.
– E aí? – Chris acena com a mão.
Ian me encara. Está furioso.
– Eu vim jantar com meu pai... ele já tinha convidado Chris e o pai
dele... – explico rápido.
– Que conveniente, não é?
Ele me solta. Sinto frio.
Sinto raiva.
– Conveniente? O que quer dizer? Que eu armei para me encontrar
com Chris? Algum encontro secreto na casa do meu pai? – Minha raiva vai
aumentando com o tom da minha voz.
– Ei, Ian – escuto Jack se aproximando. – Julia disse que chegaria
amanhã.
– Sim, eu iria.
– Quer entrar? Martin e Chris estão aqui, eu os convidei pra jantar,
Julia apareceu de surpresa.
Tenho vontade de pedir para Jack parar de dar explicações.
Porque é exatamente o que ele está fazendo.
– Não, ele não quer entrar – respondo entredentes. – Aliás, ele pode
fazer o que quiser, pois eu vou embora!
Entro em casa apenas para pegar as chaves e meu casaco então passo
por eles indo direto para meu carro.
– Julia... – Ian está se aproximando, eu o ignoro e dou partida.
Ele e sua desconfiança podem ir pro inferno.
Obviamente o carro dele era muito mais veloz que o meu e ele
estaciona logo atrás de mim quando chegamos.
Eu entro e ele me segue.
Eu o encaro furiosa.
– Eu quero saber se vai ser sempre assim? Se eu não poderei mais
encontrar com o Chris que você vai ficar insinuando absurdos!
– Me desculpe.
– Agora você pede desculpas?
– Eu queria que você me entendesse também! Chris é apaixonado por
você...
– Eu não sou apaixonada por ele! E dói saber que você acha que eu
posso, sei lá, trair você com ele! Você acredita mesmo que eu faria isso? Me
fale agora, eu não posso viver desse jeito... Não posso aceitar que você pense
tão mal de mim.
Minha voz está trêmula e eu sinto meu coração afundando no peito.
E espero.
Ian me encara. Há dor em seu olhar.
– Eu tenho medo de perder você.
– Ian...
– Não diga que é absurdo. Ele sempre esteve na sua vida. Você
nunca... o esquece. Há uma ligação entre vocês que eu não entendo, que não
consigo dissolver.
– Eu não sei mais... como fazer você entender... Eu te amo, Ian. Quero
ficar com você. Eu me casei com você, e não com o Chris; Ele é meu amigo.
Ele sabe. Eu não posso... obrigá-lo a não gostar mais de mim. Se eu pudesse,
o faria. Porque eu sofro por saber que nunca vou poder corresponder. Eu
posso viver sem o Chris. Eu vivi dois anos longe daqui, longe dele. Mas eu
não conseguiria ficar dois anos sem você. Ficar uma semana já é horrível...
– Não tenho tanta certeza...
– Eu tenho – me aproximo e toco seu rosto. – Por favor, Ian. Não faça
isto com a gente. Eu não sei se conseguiria suportar se me deixasse.
– Julia. – ele toca minhas mãos, meus cabelos. - Eu não vou deixar
você, não agora que...
– Então pare de colocar o Chris entre a gente. Vamos realmente
começar do zero. Nada de Susan. Nada de Chris. Só nós dois. Por favor...
– Eu continuo fazendo tudo errado, não é? – Ele diz num lamento.
Eu o beijo.
– Vamos esquecer, ok? Você está aqui... senti tanto a sua falta...
Ele me beija de volta e me leva pro quarto.
Quando me põe na cama, eu o empurro.
– Espera!
– O que foi?
Eu saio da cama e vou para o closet.
– Me espera aqui!
Eu volto minutos depois vestindo o “presente” de Tess.
Ian sorri.
Eu me arrepio.
– É o presente da Tess – digo fazendo um giro.
– Por favor, não coloque minha irmã na nossa conversa agora.
Eu começo a rir e me aproximo.
– Bom, ela disse que era um presente que você iria apreciar.
– Ela tem toda razão – ele me puxa e num segundo estamos de novo
sobre a cama.
E ele me beija devagar e sensualmente, suas mãos fazendo um passeio
preguiçoso pelo meu corpo.
Não demora para o desejo crescer, urgente, intenso.
E nós nos despimos entre risos.
– Não rasgue a camisola de Tess.
– Para de falar da Tess – ele pede exasperado, os dentes em meus
seios, as mãos abrindo minhas pernas.
Eu perco o prumo ao sentir seus dedos dentro de mim.
– Agora, Ian, por favor – me contorço, levando meus próprios dedos à
sua ereção, trazendo-o para dentro.
E ele geme em meu ouvido, imprimindo um ritmo perfeito. Eu me
movo com ele. Para ele. O desejo se manifestando em ondas cada vez mais
fortes, até explodir em mil espasmos de prazer que me tiram da terra e me
fazem sussurrar seu nome como um mantra.
E eu adoro ouvir meu próprio nome nos lábios dele quando goza
dentro de mim.
Eu adormeço em seguida, quando acordo já é dia e Ian não está na
cama.
Eu me arrumo e saio do quarto, ele está fazendo meu café da manhã.
– Ai, ai, ai, ovos de novo? – Eu me aproximo e beijo seu ombro.
– De novo? Eu só estou aqui nos fins de semana, não reclama!
– Sempre vou reclamar por não estar aqui.
Eu me sento e começo a comer.
– E como foi sua semana? Tess te importunou muito?
– Não... Na verdade, sabe o quarto vazio? Eu tinha pedido pra ela
decorá-lo.
– Ah é? Faça o que quiser – ele se levanta, mexendo em algo na pia.
– Eu pensei... em não fazer nada por enquanto – remexo os ovos no
meu prato e me preparo para entrar no assunto. – Acho que podíamos deixar
para... um bebê.
Escuto som de um copo caindo sobre a pia.
– Quebrou? – pergunto preocupada.
Ian está de costas pra mim e não consigo ver nada.
– Não, só caiu...
– Então... Sei que nunca conversamos sobre filhos... mas... bem, eu
quero ter filhos, você também, não é?
Silêncio.
De repente eu sinto medo.
Lembro-me da reação dele com a suposta gravidez de Susan.
– Ian... Você quer ter filhos, não é? – Insisto.
– É muito cedo para pensarmos nisto, Julia – afirma, ainda de costas.
Eu mordo meus lábios me sentindo frustrada.
Sei que ele tem razão. Nos casamos faz pouco mais de um mês.
É realmente muito cedo concordo, embora me sinta decepcionada
com sua resposta.
– Um dia... – eu insisto.
Ele se vira e sorri.
– Podemos ter esta conversa outra hora? Eu vou até a casa dos meus
pais, tudo bem?
– Claro.
Ele beija minha testa e se afasta, subindo as escadas para colocar uma
roupa.
Eu tento conter minha frustração.
Me levanto depois de comer. Escuto Ian ao telefone lá em cima. Ao
passar pela sala, me dá vontade de arrumar os livros sobre a estante. Seria
bom pra passar o tempo.
Minha atenção recai sobre uma pilha de CDs que nunca tinha
reparado.
Começo a puxar um por um para ver os títulos. Ian tem um bom gosto
musical, penso, sorrindo. Então acho um sem capa. Está em branco. Eu o
abro e há uma dedicatória dentro.
Eu congelo.

“Para o amor da minha vida


Como prometi, sua música.
Ian”

E uma data. De quase quatro anos atrás. Eu não consigo respirar.


“amor da minha vida”? Ian teve alguém em sua vida. Que o inspirou a
fazer aquele CD.
Porque eu sei, mesmo antes que meus dedos trêmulos o coloquem pra
tocar, que são composições de Ian.
A música enche a sala.
Não é aquela que eu já escutei duas vezes. Mas também é linda.
Parece uma canção de amor.
Ian amou alguém. Muito. Alguém que ele chamou de “amor da minha
vida”.
Eu tento respirar. Tento conter o nó na minha garganta.
– Julia.
Eu abro os olhos e o vejo ao pé da escada.
Ele está pálido. Tenso.
– Pra quem você fez esta música, Ian?
Capítulo 14

– Do que está falando?


Eu volto a respirar, só me dando conta agora que estava prendendo a
respiração nos segundos que Ian demorou para falar.
Eu não estou satisfeita. Quero uma resposta. E ele sabe exatamente
do que estou falando. E está se fazendo de desentendido.
Eu me levanto e me aproximo mostrando a caixa do CD com a
dedicatória.
– Amor da minha vida? - Minha voz está firme em contraste com meu
interior.
– Julia... esquece.
– Esquecer? Por quê? Por que não responde? Eu só te fiz uma
pergunta.
– Isto... isto é passado.
– Se é passado por que não responde?
– Porque eu não quero falar sobre esse assunto.
– Mas eu quero saber!
– Por quê?
– Porque você fez uma música para alguém que diz ser o amor da sua
vida? - Minha voz é carregada de amarga ironia.
– Foi há quatro anos.
– Era sua namorada? - Pergunto num fio de voz.
– Não interessa mais, por favor, Julia, deixe pra lá. É passado. E deve
ficar no passado.
– Por que guarda este CD então? Aliás, se foi um presente, o que está
fazendo com você?
– Talvez a pessoa tenha me devolvido.
Eu tento entender seu tom de voz. Tento detectar alguma dor.
Parece ressentimento.
Então Ian fez uma música e a pessoa devolveu? Será que era esse o
motivo de não estarem mais juntos? Sei que devo parar.
É passado. Mas não consigo. Uma curiosidade mórbida me domina.
– Quem é ela?
– Para que saber? Ela nem deve se lembrar de mim...
– Mas você se lembra dela. Ainda guarda este CD...
Ele vai até o rádio tira o CD, eu fico acompanhando enquanto
caminha até o lixo e o joga junto com a caixa onde está a dedicatória.
Então ele me encara.
– Esquece este CD. Eu nem fazia ideia de que estava aí ainda. Não me
pertence. Nada do que aconteceu importa mais. Está esquecido...
– Mas...
Ele se aproxima e segura meus ombros.
– Julia, eu te amo. Você acredita em mim?
Sim, eu acredito.
Por isto é tão difícil me deparar com a prova do afeto dele por outra
pessoa.
Eu queria ser a única.
– Ok, eu vou esquecer.
Ian sorri e beija minha testa.
– Tudo bem então?
Ele sonda meu rosto e eu me obrigo a sorrir.
Me afasto.
– Não disse que ia à casa dos seus pais?
– Sim, eu estou indo.
Eu fico olhando pela janela enquanto ele caminha em direção à casa
dos Callaghan.
Meu sorriso se desfaz.
Eu continuo pensando naquela música. Na pessoa que a inspirou. Sei
que não é justo. Eu não posso cobrar dele algo que aconteceu quando nós
nem nos conhecíamos. E até onde eu sei, eu também posso ter tido um amor
na minha vida.
De novo aquele vazio da incerteza me incomoda.
Como eu posso cobrar de Ian se desconheço meu próprio passado? Se
ele me perguntar sobre os homens da minha vida, eu não poderei responder.
Porque simplesmente não faço ideia.
Eu estou cansada. Farta desta situação. Não adianta perguntar ao meu
pai. Ou ao Chris. Ou não sabem ou não querem me dizer.
Terei que dar um jeito nisto sozinha.
O laptop de Ian está em cima da mesa e eu o conecto na Internet. Não
é difícil achar o que eu procuro e meia hora depois eu desligo o telefone
satisfeita. Não tem como voltar atrás agora.
Eu contratei um detetive pra seguir meus rastros em Seattle. E não vai
demorar muito para eu saber exatamente o que andei fazendo naqueles dois
anos.
E com quem.
***
Na segunda-feira está frio quando saio da escola e dirijo para casa.
Minha casa vazia.
O fim de semana passou rápido demais. E de novo eu tenho que me
acostumar a ficar sem Ian. Não é justo.
Vê-lo partir naquela manhã me deixou deprimida. E o pior é que eu
sei que não é somente porque ele está indo embora. É toda aquela história do
CD.
Eu havia pegado o CD no lixo e guardado no mesmo lugar em algum
momento do fim de semana. Eu deveria ter deixado ir embora. Algo me
impediu.
Não parei para analisar minha motivação. Eu já tinha problemas
demais com que me preocupar.
Como fazer as horas correrem mais rápido naquela semana vazia.
Ao passar em frente à casa dos Callaghan, eu estaciono e saio do
carro.
Seria bom passar algum tempo com a mãe de Ian. Jill era realmente
uma pessoa interessante. Gosto de conversar com ela. Ao entrar na sala dos
Callaghan, não é Jill que eu encontro e sim, Rebecca.
Ela está sentada no sofá e folheia algo, que julgo ser uma revista, ao
me aproximar, vejo que é um álbum de fotos.
– Oi. - Anuncio minha presença e ela levanta o olhar, assustada e
fecha o álbum rapidamente, se levantando.
O álbum escapa de sua mão e vai parar no chão com um baque.
Ela se apressa em pegá-lo. Suas mãos estão trêmulas quando me
encara novamente, abraçando o álbum contra o peito.
– Meu Deus, Julia, que susto, não sabia que estava aí...
– Oh, me desculpe, eu acabei de chegar... não queria te assustar – eu
tento sorrir. – Estava distraída folheando este... É um álbum de fotografia,
não é?
– Sim... só um álbum velho...
– Posso ver? - Dou um passo à frente e estendo a mão, curiosa.
Rebecca dá um passo atrás, os olhos parecendo... assustados.
– Não!
Eu paro surpresa com sua reação.
– Oh... não queria ser intrometida. Só... achei que podia ter fotos do
Ian... - eu tento não parecer intimidada como sempre me sinto perto de
Rebecca.
– Não... não tem nada dele.
Ela caminha pela sala até uma estante e deposita o álbum lá.
– Em que posso te ajudar? Está procurando minha mãe?
– É... sim. - murmuro, achando a atitude de Rebecca deveras
estranha.
Por um momento eu tive a nítida impressão de que ela não queria que
visse aquele álbum.
Um alarme soa em minha mente.
A declaração no CD. O antigo amor de Ian.
Será que havia algo naquele álbum sobre esta pessoa? Por isto
Rebecca estava escondendo?
Tento conter a onda de curiosidade mórbida crescendo dentro de mim.
– Ela saiu. Foi almoçar com alguém do seu clube de jardinagem, ou
algo parecido.
– Ah, que pena. – Eu penso numa desculpa para sair dali. – Bom, eu
vou até a cidade então, preciso buscar uns livros que encomendei... – Falo a
primeira coisa que me vem à mente.
Embora eu precise mesmo ir buscar os livros.
– Posso ir com você?
Desta vez eu que arregalo os olhos surpresa.
Rebecca Callaghan quer sair comigo?
– Eu quero dar uma volta. Cansei de ficar presa dentro de casa. – Ela
sorri. Acho que Rebecca está tentando ser simpática comigo.
O que é estranho demais.
– Eu vou à livraria...
– Tudo bem! Vou pôr meu casaco.
Ela se afasta rapidamente e eu espero, ainda achando toda aquela cena
surreal. Meus olhos recaem sobre a estante.
A estante onde está o álbum.
Olho em volta. Estou sozinha. Posso me aproximar. Abrir o álbum.
E ver se realmente Rebecca quer esconder algo de mim.
Meus dedos chegam a coçar. Eu hesito.
Escuto os passos dela descendo novamente as escadas.
– Vamos?
Rebecca insistiu em ir no carro dela. Uma BMW novinha em folha.
Todos nos encaram na cidade. Rebecca não se importa. Ou melhor, eu
acho que ela gosta.
Ela estaciona em frente à livraria.
– Se você quiser, pode ir fazer outra coisa, podemos nos encontrar
depois...
– Não. – Ela me surpreende saltando do carro comigo. – Eu vou com
você.
Eu vou pegar meus livros e Rebecca compra algumas revistas.
Quando estamos no caixa, uma moça grávida passa na nossa frente.
Rebecca sorri para a mulher.
– Já sabe se é menino ou menina?
A moça responde que será surpresa ela e Rebecca trocam algumas
palavras, até que chega a nossa vez.
E de novo sou surpreendida por aquela irmã de Ian. Ela parecia
realmente interessada e gentil com a mulher grávida.
– Você está me olhando esquisito – ela comenta quando estamos no
carro voltando para casa.
Eu dou de ombros.
– É que nunca imaginei você interessada numa gravidez alheia. –
confesso, meio sem graça.
Rebecca sorri.
– Ian deve ter pintado um quadro bem ruim de mim.
– Não, ele não...
– Claro que fez. Eu e ele temos nossas diferenças. A queridinha dele é
a Tess. – Rebecca diz, sem parecer se importar, pelo tom de voz.
Eu não falo mais nada.
– Eu quero muito ter filhos – Rebecca diz de repente.
De novo eu não sei o que dizer.
– Toda vez que vejo alguém grávida... Acho que eu tenho certa
inveja.
– Tenho certeza que terá muitos filhos um dia.
Ela dá de ombros.
– Eu espero que sim.
– Eu também quero ter filhos – comento. O que me surpreende.
Nunca me imaginei trocando confidências com Rebecca Callaghan.
– Eu não sei se o Ian...
Rebecca me encara. Não sei o que há no seu olhar.
Ela volta a atenção para a estrada.
– Ian...?
– Não sei se o Ian quer também. – Digo baixinho meu temor.
– Vocês conversaram a respeito?
– Mais ou menos... Acho que toda esta história da Susan... – Eu paro.
Sei que Susan é amiga de Rebecca. – Enfim, eu pensei nesta possibilidade.
Eu tentei conversar com Ian... ele disse que era cedo para falarmos sobre
filhos.
– Bom, nisto ele tem alguma razão. Estão casados há menos de dois
meses.
– Eu sei, só acho natural que eu queira saber se faz parte dos planos
dele.
– Você gostaria de ter um bebê logo?
Rebecca parece animada com a ideia.
– É... talvez – mordo os lábios, pensando realmente na possibilidade.
De ter um bebê.
Eu gosto da ideia. Gosto muito.
– Eu fico feliz que você ainda queira... – Ela para – enfim, que você
queira ter um bebê. Acho maravilhoso. Queria estar no seu lugar.
E, de todas as reações bizarras de Rebecca naquele dia, sem dúvida
essa alegria desmedida com uma possível gravidez minha é a mais
inquietante.
No dia seguinte eu sou surpreendida por um telefonema de Rebecca
quando estou saindo da escola. Ela me convida para almoçar com ela e Jill.
Ainda é esquisito este súbito interesse de Rebecca em minha
companhia. Eu aprecio. Talvez nós possamos ser amigas, afinal.
E é por isto que eu me sinto confiante para perguntar sobre a tal ex-
namorada de Ian naquela tarde.
Jill estava cuidando do jardim enquanto eu e Rebecca estávamos na
sala dos Callaghan.
Eu ainda me lembrava a todo momento do tal álbum.
– Ian teve muitas namoradas?
Rebecca levanta os olhos que estavam presos numa revista de moda.
– O quê? – Ela parece divertida.
Eu fico vermelha.
– Namoradas. Ele é lindo e deve ter tido várias garotas antes de mim,
certamente.
– O Ian? - Rebecca gargalha como se fosse uma piada.
– Qual a graça?
Ela pigarreia.
– Nada. Quer dizer, ele não é desses.
– Ele deve ter tido pelo menos alguém importante.
Ela fica séria.
– Por que está perguntando?
– Eu achei um CD – confesso – tinha uma declaração... acho que era
uma música que ele fez para alguém.
– Oh... – Ela morde os lábios e desvia o olhar.
Com certeza ela sabe do que estou falando.
– Você perguntou a ele?
– Claro. Ele não quis falar nada. Disse que era passado.
– Sim, ele tem razão. É passado.
De repente me sinto terrivelmente frustrada.
Tenho vontade de gritar impropérios cheios de clichês para Rebecca,
algo do tipo “achei que você fosse minha amiga!”.
Me calo antes fazer papel ridículo.
É o que estou sendo, não é? Ridícula? Estou implorando para minha
cunhada informações sobre a ex do meu marido.
É patético.
– Desculpe. Tem razão. Eu só fiquei curiosa. Esquece o que eu falei.
– Julia, eu... – Rebecca respira fundo.
Por um momento parece estar travando uma batalha sangrenta dentro
de si.
Então ela sorri. Joga os cabelos. Parece a Rebecca fútil de sempre.
– Já está esquecido!
Ela volta a folhear a revista.
Eu olho de novo para a estante.

***

Vozes me acordam.
Por um momento eu acho que ainda estou sonhando. As vozes
continuam alteradas em algum lugar, mesmo depois que eu abro os olhos.
Observo o relógio na mesa de cabeceira. Passa um pouco das nove.
Hoje não tenho aula, então me dei ao luxo de dormir até um pouco
mais tarde. As vozes alteradas continuam. E agora parecem mais altas.
Arrasto-me para fora da cama e abro a janela.
E a cena me surpreende.
Rebecca e Chris estão discutindo bem na porta da minha casa.
– Que diabo...?
Corro quarto afora e desço as escadas até abrir a porta da frente.
– O que está acontecendo aqui?
Eles param e me encaram.
Parecem dois galos de briga. Rebecca está vermelha e ofegante.
Alheia a chuva fina que molha seus cabelos.
Chris parece pronto para voar no pescoço de alguém.
– Julia... – Chris murmura perdido.
Rebecca respira fundo.
– Está acontecendo que este idiota não deveria estar aqui!
Chris ri. Cheio de ironia.
– Você contratou um cão de guarda, Julia?
– Escuta bem, seu imbecil...
– Acho bom parar de me xingar garota! Estou de saco cheio de você...
– Ei, parem com isto! – Dou um passo a frente.
Tremo de frio.
– Sim, Julia tem razão, já chega. Acho melhor você dar o fora! –
Rebecca sibila.
– Eu?
– Sim, você!
– Gente, é sério, por que estão brigando? – Pergunto horrorizada.
Uma leve desconfiança de que Rebecca saiba sobre as desavenças de
Ian e Chris me deixa incomodada.
– Eu vim visitar você e esta intrometida...
– Veio apenas visitar a Julia? Tem certeza? – Rebecca indaga
sarcástica.
– Por que você não se mete com a sua vida? Sabe que eu posso estar
aqui!
– Você veio causar problemas!
– Sei muito bem que quem está louca pra causar é você!
– Ei, agora chega! – Eu me coloco entre os dois. – Já estão passando
do limite! – Eu olho pra Rebecca. – Rebecca, sério, eu resolvo com o Chris.
Rebecca respira fundo. Ela não está disposta a acreditar em mim.
Chris parece triunfante.
– Vaza loirinha!
Eu reviro os olhos.
– Chris, pare você também. Por favor, não me traga problemas.
Meu olhar implora. Chris sabe do que eu estou falando.
Ele fica sério. Passa a mão pelos cabelos, parece frustrado.
– Eu tenho que ir embora, não é?
Me dói um pouco vê-lo deste jeito. Eu concordo com a cabeça.
Eu não quero mais que Chris fique entre mim e Ian. E deixar que
entre na minha casa na ausência de Ian, ainda mais com a irmã dele como
testemunha, seria um enorme problema.
– Tudo bem.
Ele lança um olhar raivoso para Rebecca e se afasta sem dizer nada.
– É bom mesmo – Rebecca diz baixinho eu a encaro.
– O que foi isto?
– Este seu amigo é um idiota.
– Disse tudo: meu amigo. Não precisa ofendê-lo, Rebecca.
Ela fica meio sem graça.
– Bom, eu só acho que Ian não ia gostar nada, nada, de vê-lo aqui.
Eu penso em dizer que Ian não está no momento, decido me calar.
Com certeza não é a coisa certa a se dizer. E Rebecca tem razão.
– Sim, tem razão...
– Você fez a coisa certa o mandando embora.
– Infelizmente sim...
– Me desculpe por te acordar. Eu vou voltar pra casa. Meu cabelo já
está ficando um lixo – ela me mede – e vê se põe uma roupa, vai congelar.
Eu volto para casa pensativa.
Enquanto a manhã passa, se transformando lentamente numa tarde
fria de Beaverton, eu continuo intrigada.
Era como se tivesse perdendo alguma coisa.
Repasso a discussão de Rebecca e Chris na minha mente. Por um
momento eu tive a nítida impressão de que eles já se conheciam. Que aquela
briga era de uma animosidade antiga.
Não fazia sentido. Pelo menos eu não conseguia achar um sentido.
E a chuva continua. Está mais forte.
Eu fico parada contra a janela. Minha mente trabalha sem parar, sem
chegar a lugar algum. Algo estava estranho demais.
Por um momento me sinto deslocada no tempo. Lembrando.
Minha inusitada amizade com Rebecca Callaghan.
Sua discussão com Chris.
As estranhas palavras entre eles e aquela sensação incômoda de que
eles se conheciam.
Será que estou delirando?
Só existe uma maneira de tirar esta dúvida, perguntando a Chris. De
alguma maneira, eu sinto que Rebecca Callaghan irá mentir pra mim, como
mentiu em relação àquele álbum.
Coloco meu casaco e pego as chaves do carro.
Estou a meio caminho do meu jipe quando vejo o carro de Ian se
aproximando.
Meu coração dispara.
– Ian... – Eu digo seu nome.
Ele para e desce do carro.
Sorri ao me ver. Um sorriso preocupado.
– O que está fazendo aqui fora na chuva?
– O que você está fazendo aqui? – Indago chocada.
Deslumbrada.
– É a minha casa – ele responde.
– Não é fim de semana.
– Resolvi fazer uma surpresa. Se não gostou...
Sei que está brincando, mesmo assim seguro sua camisa com minhas
mãos trêmulas.
– Não gostei? Estou achando maravilhoso.
E então, não há mais espaço entre nossos corpos. Entre nossas bocas.
Eu nem me lembro mais quais planos eu tinha antes de sentir sua
língua na minha. Eu só lembro que senti uma falta enorme dele.
E que ele está aqui. Suas mãos em mim. Seu hálito se misturando com
o meu.
E estremeço. De frio e prazer.
Ele ri ao parar de me beijar. Deliciosamente ainda dentro da minha
boca.
Me sinto tonta. Me sinto viva.
– Aonde ia? – Sua mão se fecha contra a minha, sentindo as chaves
do carro.
Sim, onde eu estava indo?
– Não importa – digo sem fôlego. – Não acredito que está aqui... –
beijo sua boca. Seu queixo, seu rosto.
Ele ri mais ainda. E me puxa pra dentro. Fecha a porta atrás de nós.
– Deus, como senti sua falta – murmuro, meus dedos castigando seus
cabelos.
– Você está gelada – ele diz em tom de censura.
Sua voz cheia de uma ternura desconcertante derrete o gelo em mim.
Mesmo assim, ele me leva para perto da lareira. Afundamos no sofá.
Seus dedos frios retiram os cabelos do meu rosto.
Eu me perco em seus olhos.
– Tudo bem?
Eu sorrio.
– Agora sim.
– Ia mesmo sair com este tempo?
– Não vou mais – brinco com os botões de sua camisa. – E você está
de volta – digo de novo.
Ainda parece perfeito demais pra ser verdade. Eu tinha me
acostumado com o sofrimento de não tê-lo por perto. Ele sorri e beija meu
pescoço. Solto um gemido e me enrosco nele.
– Podemos tirar a roupa agora?
Eu não preciso perguntar duas vezes.
Da primeira vez é rápido. Saudade demais. Vontade demais.
Anoitece e ainda estamos ali.
Seus dedos acariciando minha pele devagar. Seus lábios traçando uma
rota que, apesar de já ter feito tantas vezes, sempre me faz prender a
respiração para soltá-la em forma de suspiros e palavras sem sentido.
O riso delicioso dele ecoa em meu ouvido e vibra em algum lugar
bem íntimo dentro de mim, quando eu salto por cima dele e faço eu mesma
minha própria trilha por seu corpo perfeito.
Até de novo estarmos perdidos um no outro.
Encontramos o ritmo facilmente, como se tivéssemos sido feitos
exatamente pra isto.
Para nos encaixarmos.
E seus movimentos dentro de mim causam tremores até na minha
alma. Reverberam tão profundamente, que sinto que vou me desmanchar em
mil pedaços, que só ele poderá montar de novo.
E eu me agarro a ele, confiante de que não importa quantas vezes
chegamos naquele mesmo ponto. Sempre vai ser único e perfeito.

***
– Julia?
Eu não quero me mexer. Sei que quando abrir os olhos verei a luz do
dia. E será hora de sair do casulo quente da minha cama para ir trabalhar.
Eu apenas resmungo e me mexo um pouco pra ele saber que estou
acordada. Seus braços estão a minha volta e eu sinto seu coração batendo
devagar nas minhas costas.
– Você disse que iria trabalhar hoje.
– Eu sei... – Abro os olhos ao sentir seus lábios esfregando em meu
ombro.
– Não precisa ir se não quiser.
É tentador, eu penso. Mas tenho responsabilidades.
Eu me viro e enterro o rosto em seu peito.
– Você está tão quentinho.
– Posso ficar ainda mais se...
Eu me afasto, antes que seja impossível.
– Eu tenho mesmo que ir, então facilite pra mim, por favor.
Ele ri e parece muito convidativo entre as cobertas desarrumadas.
Suspiro pesadamente desviando o olhar, indo tomar banho.
– E nem pense em vir atrás de mim – resmungo.
Ainda escuto sua gargalhada ao fechar a porta do banheiro.
Eu sou levada na direção da cozinha pelo cheiro de ovos e bacon.
– Nem reclame – ele diz enchendo meu prato.
– Nem pensei – eu o puxo e o beijo rapidamente, antes de enfiar o
garfo no prato – melhor eu aproveitar enquanto você está aqui, não é?
– Então é um bom momento pra dizer que eu não vou mais embora.
Eu paro com o garfo no ar.
– Como assim?
Ele dá de ombros.
– Não vou mais voltar pra Portland, pelo menos até o encerramento
das aulas.
Eu acho que ainda estou dormindo e aquilo faz parte de um sonho.
– Está falando sério?
– Estou.
– Mas... e seu trabalho?
– Eu pedi uma licença.
De repente eu entendo que ele está falando sério.
E com um grito eu pulo em cima dele.
– Eu não acredito! Tem certeza? Não terá problemas?
– Eu devo ter esquecido de dizer que Oliver e eu somos sócios em um
escritório de construção.
– Ah, isto facilita tudo com certeza – digo um tanto incomodada pelo
fato de eu não saber muita coisa sobre ele.
Ele ri e me põe sentada de novo.
– Eu sei. Agora coma, antes que se atrase.
Eu como obedientemente, meu estômago dando piruetas de
felicidade.
A vida me parece perfeita neste momento.

***
– Ian eu não quero.
Ele me puxa até seu carro.
– Se não quer que eu te leve à escola, você pode dirigir meu carro.
– Não é necessário...
– É sim. Aliás, está passando da hora de trocar este seu carro velho...
– Não fale assim...
Ele abre a porta e me dá as chaves.
– Ok, vamos deixar esta discussão pra mais tarde.
Eu reviro os olhos, mas estou sorrindo quando dou partida na picape
silenciosa. Tão diferente do meu jipe.
Ele se inclina e beija meus lábios.
– Volte logo, senhora Callaghan.
Eu acelero e fico vendo sua imagem ir diminuindo no retrovisor.
Flutuo numa nuvem de felicidade entre as aulas.
Olho o relógio a toda hora. Ian está esperando por mim, é só o que eu
consigo pensar. E ele não vai embora. Não vamos mais nos separar.
É perfeito demais.
Finalmente chega a hora de ir e eu me despeço de Carla. Quando
entro no carro meu celular toca. Eu pego o aparelho, achando que é Ian, mas
não conheço o número.
– Alô?
– Julia Simmons?
– Sou eu – eu não corrijo meu nome de solteira.
– Aqui é da agência.
Então eu me recordo. A agência em Seattle.
Eu nem estava me lembrando mais...
Sinto um calafrio de medo.
– Estamos ligando para lhe falar sobre seu pedido de investigação...
De repente não sei se quero ouvir o que ele tem a dizer.
– Sim? – Indago com o coração aos pulos de medo.
– Creio que temos um problema.
– Problema?
– Sim, nós fomos atrás de seus registros na universidade e não há
nenhum registro de sua passagem por lá.
– Como não? Eu estudei dois anos lá!
– Sim, a senhora disse. Mas não existe nenhum registro. Nenhuma
Julia Simmons.
Franzo a testa. Aquilo não podia estar certo, podia?
– Será que existe outra faculdade...
– Eu tomei a liberdade de verificar em todas. Em Seattle não há
nenhum registro de sua presença. Também fizemos perguntas no campus.
Mostramos a foto. Ninguém pareceu conhecê-la.
Eu começo a sentir falta de ar.
– Não pode ser... Algo tem que estar errado...
– Nós fomos meticulosos. E não há absolutamente registro de que
uma Julia Simmons tenha estudado em Seattle neste período.
– Nós podemos te enviar os arquivos por e-mail...
Eu balbucio qualquer coisa e desligo. Não consigo falar. Eu mal
consigo respirar. Minha mente começa a girar.
Eu não estudei em Seattle?
Meu pai... todos me disseram que eu estive lá! Eu não me lembro.
Não me lembro de nada.
De repente uma desconfiança terrível me assola.
Mentiras.
– Ah Deus... – ligo o carro.
Só uma pessoa poderia me responder. Meu pai.
Não sei como consigo chegar a minha casa. Quase sinto alívio ao ver
o carro parado. Ele está em casa.
Salto e quase corro pra dentro.
– Jules... – Ele parece agradavelmente surpreso por me ver.
Instantaneamente seu olhar se transforma em preocupação – O que
aconteceu?
– Eu não estudei em Seattle?
– O quê? Do que está falando?
– Você sabe do que estou falando! Por que diz que estudei em Seattle
se não há nenhum registro da minha presença lá?
– Seattle... Julia! O que você andou fazendo?
– Eu andei investigando, já que ninguém parece disposto a conversar
comigo sobre estes malditos dois anos que não me lembro!
– Eu não acredito...
– Quem não acredita sou eu! Vocês mentiram!
– Julia, não é bem assim...
– E como é? Disse que passei dois anos em Seattle até o acidente.
Quando na verdade eu nunca fui pra lá...
– Realmente não é tão importante assim.
– Pelo amor de Deus, pai! Pare de me enrolar! Por que mentiu?
– Não foi bem uma mentira...
– Foi sim! Então por favor, me diga a verdade... eu realmente nunca
fui pra Seattle, não é?
Eu imploro com meus olhos ardendo.
Acho que Jack finalmente percebe que eu não vou desistir.
– Não, não foi.
Eu sinto meu mundo começar a desmoronar. Tudo o que eu
acreditava como verdade desaparecendo, dando lugar a uma escuridão sem
fim.
Luto para respirar.
– Se eu não fui pra Seattle... Para onde eu fui?
– Julia, por favor, esque...
– Não me mande esquecer! Eu estou à beira de um ataque agora. –
Respiro fundo, para manter a sanidade. – Para onde?
Jack passa a mão pelos cabelos. Parece cheio de frustração.
E dor.
– Oregon State, em Corvallis.
Eu franzo a testa. Pensei que ia ouvir alguma coisa horrível. E ele me
diz que eu fui pra Corvallis... Onde ouvi falar sobre esta cidade antes?
– Corvallis... – então eu me lembro. Ian estudou lá... que
coincidência... Como nunca...
Eu paro.
Meu coração para.
Meu mundo para.
Estática.
Oh Deus. Oh Deus.
A certeza de que eu tive alguém em minha vida na universidade.
Alguém importante. Que ninguém nunca tinha citado.
Alguém que deixara de existir no momento em que eu o esqueci.
Minha mente volta para o dia na clareira. Meu primeiro dia em
Beaverton depois de dois anos.
Eu sabia como chegar lá.
Eu o encontrei lá. Eu me apaixonei por ele lá.
Jack. Chris. Carla. A reação de todos quando me viram com ele.
Um estranho.
Na realidade não era um estranho, a não ser pra mim.
– Não pode ser... – Murmuro sem ar.
Quero desmaiar. Quero perder os sentidos...
Quero sair daquele horror.
Sinto as mãos de Jack em mim.
– Julia, querida...
Eu me desvencilho. Corro para fora. Entro no carro.
Minhas mãos trêmulas mal conseguem segurar o volante. Minha
mente gira confusa com o excesso de informações. Só não consigo pensar em
nada. Eu sei que elas estão ali.
Todo o emaranhado de pistas... que agora são terríveis suspeitas...
Eu ainda luto.
Eu estou enlouquecendo.
O carro para bruscamente no jardim dos Callaghan e eu salto.
Eu sei aonde preciso ir.
Vejo Rebecca e Jill no meu caminho. Elas estão falando comigo, eu
não as escuto.
Eu passo por elas e vou até a estante. Minhas mãos furiosas derrubam
tudo pelo caminho, até eu encontrar o que estou procurando.
O álbum cai no chão com o resto dos livros.
Eu me ajoelho e abro. E meu mundo desaba naquele momento.
O momento em que eu vejo a mim mesma. Quatro anos antes.
Vestida de branco.
De noiva.
Com Ian Callaghan.
Ian

Quatro anos antes

Estava chovendo quando a vi pela primeira vez.


Havia algo de gracioso em seu caminhar descoordenado, como se
estivesse deslizando cautelosamente pelo chão para não cair. Eu sorri comigo
mesmo enquanto a acompanhava. Aquela figura de cabelos castanhos
compridos e dois pés esquerdos. O guarda-chuva quase sendo levado pelo
vento.
Não sei por que a seguia, era como se algo me impelisse em sua
direção. Talvez um instinto de proteção descabido, embora necessário, então
a vi escorregar na calçada e a impedi de cair.
Ela me encarou, entre embaraçada e agradecida.
E eu me perdi na profundeza de seus olhos cor de avelã.
– Oh... obrigada – murmurou ruborizada.
Eu achei seu rubor delicioso.
– De nada – eu a soltei e ela entrou no prédio defronte a nós.
Uma livraria.
Claro que eu a segui. Não sei quanto tempo se passou enquanto a
perseguia pelos corredores, fascinado com sua admiração pelos livros.
Até que nossos olhares voltaram a se encontrar por entre as estantes.
Ela sorriu. Ruborizou.
– Está me perseguindo.
Não era uma pergunta.
Eu sorri e estendi a mão.
– Ian Callaghan.
Ela hesitou, mas segurou minha mão.
– Julia Simmons.
Ela retirou a mão enquanto pegava um livro.
– É fã de das irmãs Bronte.
Ela sorri.
– Meio óbvio, não acha?
– Acho que combina com você.
– Por quê?
– Consigo visualizá-la na Inglaterra Vitoriana com aqueles longos
vestidos.
Ela riu. Eu gostei do som.
– Eu estou tentando uma bolsa para estudar em Londres.
– Sério? Boa sorte.
De alguma maneira eu não gostei da possibilidade. De não vê-la mais.
– Estuda na Oregon State? – Perguntei curioso.
– Sim, embora não saiba ainda como consegui... Você também?
– Sim. Segundo ano, e você?
– Primeiro.
Fazia apenas uma semana que recomeçaram as aulas e não era de
estranhar que nunca a tivesse visto no campus. Eu me lembraria com certeza.
Ela pega outro livro.
– Mais Bronte? – Perguntei sorrindo e ela colocou o livro de volta na
estante.
– Não gosta?
– Li alguns... Mas prefiro os modernos... – eu retirei um livro da
estante e lhe entreguei.
Ela leu o nome do autor.
– Nunca ouvi falar de W.H Auden... – ela abriu e começou a recitar
Funeral Blues.
O poema triste sobre perda pareceu maravilhoso em sua voz.
– É lindo. – disse, me encarando com os lindos olhos tristes.
– Você ficou triste.
– Porque é triste e lindo mesmo assim...
Ela o colocou de volta na estante.
– Pegue. Vou te dar de presente.
– Nem pensar.
– Eu quero te dar.
– Odeio presentes.
– Você é absurda, Julia Simmons.
Eu achava fascinante.
E antes que me desse conta, estava seguindo-a para fora da livraria.
– Ei, Julia, quer tomar um café comigo?
Ela hesitou.
Os minutos em que eu esperei pelo sim pareceram intermináveis.
Um sorriso tímido se insinuou em seus lábios. Tive vontade de beijá-
la.
– Sim.
Capítulo 15

– Tire-o dela.
A voz é de Jill. De um jeito que eu nunca ouvi. Agressiva e
desesperada. Rebecca avança tirando o álbum de mim. Não consigo me
mexer.
Estou em choque.
Não vejo nada. Apenas manchas pretas dançando diante dos meus
olhos cegos de dor.
– Ela está aqui?
Ian.
A voz de Ian me tirar do estupor.
Eu levanto o olhar.
Ele olha pra Rebecca em busca de respostas.
– Ela viu – são suas simples palavras.
Ele me encara, parece em choque também.
Eu penso em tudo o que vi. As fotos. A prova incontestável de todas
as mentiras.
De todo o circo de horrores no qual eu estava vivendo.
Era Ian o tempo todo. O cara que eu sabia que tive na minha vida. O
cara que eu tinha esquecido depois do acidente que havia tirado minhas
memórias.
Dois anos de memórias.
Era Ian.
Eu luto pra respirar. Luto para não mergulhar novamente naquele lago
negro de desespero e dor.
É difícil demais.
Está tudo se quebrando dentro de mim. Estilhaços pra todo lado. Me
cortando inteira.
– Julia... – Ian se aproxima. Toca meus ombros.
– Era você... eu conhecia você... como... como é possível?
– Julia, querida... não era para descobrir desse jeito...
– Não era pra eu descobrir? – Minha voz parece estranha para mim
mesma enquanto ainda tento entender... achar algo naquela história que a
torne mais plausível e menos horrível. – Por quê... – eu respiro fundo. – Por
que não me lembro de você? Por que não estava lá quando eu acordei? Por
que fingir que não nos conhecíamos? Este tempo todo... meu Deus. – passo a
mão pelos cabelos, o horror voltando a me dominar. – Estas fotos... nós nos
casamos... antes... como é possível? O que está acontecendo aqui, Ian?
– Julia, acalme-se, vamos conversar – ele fala com extremo cuidado
me levantando do chão.
Eu me desvencilho dele.
– Eu não consigo acreditar... ainda não consigo... é horrível demais...
demais... Como isto pode estar acontecendo? – Eu o encaro em busca de
respostas. – É verdade, não é? Nós nos conhecemos...
– Sim – ele responde por fim, como se lhe custasse muito dizer.
E é pior assim. Ouvir da boca de Ian.
A verdade nua e crua.
– Eu sofri este acidente... eu... perdi a memória... e você está de
alguma maneira inserido nestes dois anos...
– Sim.
Fecho os olhos com força.
O nó na minha garganta me sufoca.
– Nós éramos casados – murmuro.
– Sim.
Abro os olhos e faço a pior de todas as perguntas.
– E você fingiu este tempo inteiro que não nos conhecíamos?
Ele respira fundo. Sabe que não pode mais mentir.
– Sim.
O nó se solta. Começo a soluçar.
– Julia, por favor, eu sinto muito – ele se aproxima de novo. Eu dou
um passo atrás, o impedindo de se aproximar.
– Não! – grito. – Não se aproxime! Meu Deus... é monstruoso demais!
Por que fez isto? Por quê?
Estou gritando e chorando. Não me importo.
De alguma maneira percebo que estamos sozinhos na sala dos
Callaghan.
Rebecca e Jill desapareceram levando o maldito álbum.
Elas sabiam. O tempo inteiro.
Todos sabiam.
Meu pai. Chris. Carla. Os Callaghan.
Eu era a única idiota.
A revolta cresce como um maremoto em meu interior. E, de repente
eu percebo que a pior pergunta não era o porquê de Ian fingir não me
conhecer. Na realidade todos fingiram que não nos conhecíamos.
– Por que não estava lá quando acordei do acidente? Por que fingiu
que não existiu na minha vida e me deixou prosseguir sozinha?
Ele fica em silêncio por um momento.
Atormentado. Como se estivesse perdido em suas próprias
lembranças.
Tenho ódio destas lembranças. Como se ele as tivesse roubado de
mim.
– Responde!
– Você nem se lembrava de mim... que diferença faria? – Sua resposta
é fria. Dolorida. Ressentida.
Ele não tem o menor direito de sentir ressentimento. Não quando me
enganou.
Não quando me deixou.
Eu nem sei mais o que é pior.
Escondo o rosto entre as mãos enquanto choro lágrimas amargas. Meu
corpo inteiro dói. Minha alma dói. Por um momento eu desejo voltar no
tempo.
Não ter descoberto nada. Continuar sendo feliz com Ian. Naquela vida
de mentira e enganação.
Não é possível. Não tem mais volta.
Eu agora que eu sei. Continuo não me lembrando. É o que me mata
aos poucos.
– Julia, eu realmente sinto muito. Eu não queria que descobrisse... não
era pra descobrir...
Eu volto a fitá-lo.
– Sente muito? Você me enganou, Ian. Mentiu pra mim... Eu não
fazia ideia... Como pôde fazer isto? Todos vocês? Mentiram que eu fui pra
Seattle e pra quê? Pra que eu não quisesse voltar pra Corvallis para te
encontrar? Por isto meu pai insistiu na minha ida pra Londres, não é?
Minha mente volta àqueles dias depois do acidente. Do horror do
vazio. Da depressão. De meu pai dizendo que eu ainda podia ir pra Londres,
que seria melhor...
Na época pareceu que era ideia minha, mas não. Ele estava fazendo
minha cabeça.
Me manipulando.
– Sim, decidimos que seria melhor se fosse pra longe de tudo. – Ian
confirma o que faz crescer ainda mais minha raiva.
– Decidiram? E como foi que decidiram que eu não tinha direito de
saber que tinha me casado? Foi ideia do meu pai? Do Chris?
– Foi ideia minha.
De alguma maneira isto me surpreendeu. E doeu.
Eu ainda achava algum sentido em Chris ficando feliz por eu ter
esquecido da existência de Ian. Ou até mesmo meu pai. Mas não foi o que
aconteceu.
Ian havia escolhido sair da minha vida.
Fingir que nunca tinha existido pra mim.
– Por quê?
– Você não se lembrava de nada. Nada que se referisse a mim.
Esqueceu completamente os dois anos que eu fiz parte de sua vida.
– Podia ter voltado, ter continuado comigo... não éramos casados?
Como pode...
– Julia... – Ele desvia o olhar atormentado.
De repente eu sinto que tem mais.
– Meu Deus, Ian! O que aconteceu com nosso casamento?
– Nós não estávamos mais casados quando sofreu o acidente.
Eu paro de respirar.
– Não? Mas...
– Nós estávamos divorciados há alguns meses. Satisfeita?
Eu me sento trêmula e ainda mais perdida. Minha mente dá voltas.
Eu não só tinha me esquecido do nosso casamento, como também do
divórcio.
– Por quê? – Indago.
Eu podia entender completamente ter me apaixonado por Ian a ponto
de ter casado com ele tão jovem. Só não conseguia me imaginar abrindo mão
dele.
A não ser por um motivo muito forte.
Como este agora. Que me fazia questionar que tipo de homem ele era
para ser capaz de fazer aquilo comigo.
– Não deu certo.
– Não deu certo? Simples assim?
– Éramos muito jovens... estas coisas acontecem – sua voz é séria,
assim como sua expressão.
– E você achou que era motivo para fingir que não existia quando eu
tive amnésia?
– Foi seu cérebro que escolheu esquecer.
– Não tenho culpa.
– Não?
– Está me culpando?
– Estou dizendo a verdade, como está exigindo. Nós nos casamos.
Nos separamos. Você sofreu o acidente. Esqueceu tudo.
– E aí você decidiu que era mais fácil deixar assim?
– Que diferença faria para você?
– Para você muita, não é? Pôde sair deitando e rolando com a Susan
sem a ex idiota no caminho...
– Deixe a Susan fora disto.
– Oh meu Deus, então foi este o motivo? – Minha mente se enche de
terríveis desconfianças. – Nós nos separamos por causa dela? Você estava
tendo um caso ou algo do tipo...
– Não seja absurda. Eu nunca tive nada com a Susan. Não naquela
época. Nunca quando estávamos juntos.
Não sei se devo acreditar nele.
Como posso acreditar em qualquer palavra que saia da sua boca?
Eu me sinto enojada. Enjoada por tanta mentira.
Ian não tinha o direito de me roubar dois anos de memórias. Nem que
fossem as piores possíveis. Um casamento desfeito...
Eu ainda queria desesperadamente saber detalhes... Porque nem tudo
deve ter sido ruim. Inferno, eu nem consigo imaginar eu e Ian não nos
amando...
Algo aconteceu... Algo nos separou. Algo o fez preferir sumir da
minha vida. Enterrar nossa história. E teria ficado enterrada para sempre se eu
não tivesse voltado a Beaverton. E o reencontrado.
E agora estávamos casados de novo.
– Por que nos casamos novamente, Ian?
Não faz o menor sentido...
– Porque eu queria uma segunda chance.
Ele responde simplesmente. Como se fosse algo óbvio e certo.
Não era.
Era inescrupuloso. Horrível. Infame.
Odioso.
– Simples assim? Depois de tudo, depois de, Deus sabe por que nos
separamos, de eu esquecer você num acidente... de você escolher sem o meu
consentimento que eu nunca deveria saber do nosso relacionamento
anterior... você simplesmente achou que íamos voltar e tudo ia ficar bem? Ia
mentir eternamente. Todos vocês iriam, é isto?
Ele não precisa responder para eu saber qual a verdade.
– Julia?
Eu me viro e vejo Jack.
Seu rosto é de pura culpa.
– Você está bem?
– Você me enganou também – afirmo, me sentindo mais traída do que
nunca.
Porque era meu pai. E havia me deixado no escuro.
– Contou a ela? Disse que nunca iria contar... – ele acusa Ian.
Não me importa mais.
– Como pôde? Como pôde concordar com esta farsa horrível?
– Eu não queria que sofresse...
– Você não tinha o direito! – Meus gritos aterrorizam meus próprios
ouvidos. – Não tinham o direito! Era minha vida! Ninguém podia decidir por
mim!
– Jules...
– Não posso acreditar que justamente você tenha feito isto comigo!
Deus do céu... todo mundo... Chris... até o Chris...
– Jules, querida, nós achamos que seria o melhor a fazer...
– Não me interessa! O que fizeram foi monstruoso! E eu odeio todos
vocês!
Antes que tentem me impedir eu saio pelas portas de vidro. Corro
pelo jardim dos Callaghan. Posso ouvir chamarem meu nome, continuo
correndo.
Chego ao chalé e subo direto para o quarto. Pego a primeira mala que
aparece e começo a colocar minhas roupas nela de qualquer jeito. Mal
consigo enxergar através das lágrimas.
Minhas mãos tremem.
Eu quero apenas fugir.
Escuto passos e levanto o olhar, achando que verei Ian, mas é Chris
que está na minha frente.
– Jules...
Sem pensar eu me aproximo e bato com força em seu rosto.
Ele não reage.
– De todas as pessoas que me enganaram, nunca poderia esperar isto
de você.
– Eu fiz para o seu bem...
– Bem? Bem? Acha que estou bem agora? Qual era o seu motivo?
Ficou feliz porque eu não me lembrava mais do Ian? Eu nem sei quem odeio
mais!
Volto a fazer minhas malas ignorando meu choro convulsivo.
– O que faz aqui?
Ian entra no quarto e eu percebo vagamente que ele está furioso por
ver Chris.
Não me importa. Eles podem se matar.
Eu talvez até ficasse feliz se acontecesse.
Eles eram dois mentirosos nojentos.
– Jack me ligou... contou que ela podia ter descoberto...
– Vá embora, Chris.
– Qual é? Eu me preocupo com ela também... a culpa é toda sua! Se
não tivesse decidido ficar com ela outra vez, se tivesse ficado longe como
prometeu...
– Aí seria você a estar com ela, não é?
– Chega! – Grito e eles se calam, me encarando. – Não percebem o
quão ridículos vocês estão aí, discutindo como se eu não tivesse vontade
alguma? Eu não quero saber de nenhum dos dois. Nunca mais.
Eu pego minha mala.
– Julia, aonde vai? – Ian pergunta apreensivo.
– Vou embora.
– Não pode fazer isto.
– Não? Achou o quê? Eu não tenho como te perdoar, Ian. Não tenho
como aceitar o que fez. Foi odioso demais! Você escolheu sumir da minha
vida da primeira vez, agora quem escolhe sumir da sua sou eu!
– Eu sei que errei... sei que não entende... – ele olha pra Chris, e por
um momento eu eles parecem se entender. – Não quero que sofra, nunca quis
que sofresse... tudo o que eu fiz... foi acreditando que era o melhor para
você...
– Acha que eu acredito? Você disse que nem casados éramos mais!
Então acho que nem se importava! Queria se livrar de mim!
– Não é verdade! Droga, eu te quis de volta... nós estávamos felizes,
Julia.
Eu fecho os olhos. O dor se intensificando. Porque eu sei que ele tem
razão.
Nós estávamos felizes.
E dói saber que nunca mais vai ser assim. Ele tornou impossível.
– A que custo? – Murmuro. – Em cima de mentiras? Não dá mais,
Ian. Eu não confio em você. Sinto que não conheço você. Não posso mais
viver aqui...
Eu saio cambaleando, levando minha mala e meu coração em
pedaços.
Capítulo 16

Londres - seis meses depois

A ligação me acorda no meio da noite.


Primeiro penso que estou em mais um daqueles pesadelos dos quais
nunca me lembro depois, que me fazem acordar suando e com a certeza de
que algo muito ruim está no meu subconsciente.
O barulho insistente do telefone me faz acordar totalmente e eu pego
o aparelho, me perguntando quem poderia ser àquela hora.
– Jules.
A voz de Chris me pega de surpresa. Já faz mais de seis meses que eu
não a escuto. Quando deixei Beaverton e as mentiras para trás.
– Julia? – ele insiste e eu respiro fundo.
Só agora me dando conta de que havia sentido falta dele.
Droga, eu senti falta de muitas coisas.
Muitas pessoas.
– Sim? – respondo por fim, tentando parecer fria.
– É o Chris.
– Eu sei. O que você quer?
– Eu sei que deve ser madrugada aí em Londres...
– Sim, bela hora para decidir me ligar depois de seis meses.
– Eu não te ligo porque você deixou bem claro que não quer mais
falar comigo! Droga... enfim, eu não liguei para discutirmos...
Então eu me dou conta. Da hora errada. De Chris estar me ligando
mesmo sabendo que não estamos mais nos falando...
– O que aconteceu? – indago apreensiva.
– É o Jack...
Ouvir falar de meu pai me causa uma dor no peito.
Engulo meu pânico, tentando ficar calma.
– Ele sofreu um ataque cardíaco.
– Oh meu Deus! Ele...
– Está no hospital.
Consigo voltar a respirar, embora a dor seja intensa...
Jack num hospital...
– Quando aconteceu?
– Ele estava pescando... Foi ontem... Algumas horas... Achei que
deveria te avisar... Apesar de tudo, enfim.
– Como ele está? Ele...
– Ainda em estado crítico. Sinto muito.
Engulo o nó na minha garganta.
– Eu... Obrigada por avisar.
Eu desligo sem saber mais o que falar. Sem saber a resposta para a
pergunta que eu sabia que ele ia fazer.
Mil coisas passam pela minha cabeça.
Eu tinha jurado nunca mais voltar. Nunca mais falar com meu pai e
agora ele está num hospital... Pode não sair vivo de lá.
O que eu posso fazer?
A vontade que tenho é de correr de volta a Beaverton. Vê-lo com
meus próprios olhos. Me certificar que está tudo bem. Ou não.
Fecho os olhos, me sentindo perdida em mil confusões de
sentimentos.
Eu não posso voltar. Voltar significa rever Ian.
Só o nome dele em minha mente já me embrulha o estômago.
Dói o peito.
Me faz chorar.
Ainda.
Às vezes me pergunto se um dia vou esquecer. Esquecer de novo.
Como fiz com a primeira parte de nossa história. Seria melhor o
esquecimento do que a dor. Dor da traição. Dor da saudade.
Dor de amor.
Desde que voltei pra Londres eu estou me consultando com uma
terapeuta. Já deveria ter feito antes, mas achava que não era necessário.
Agora eu sentia que precisava de ajuda para lidar com tudo.
E ela me disse que, em muitos casos, as pessoas tinham amnésia não
por uma causa física e sim emocional. Para “esquecer” coisas que lhes
causavam dor profunda.
Dor com a qual não sabiam lidar.
E eu acreditava nela.
Sentia-me tão sozinha, tão perdida, tão sem saída que uma perda de
memória seria bem vinda. Será que era disto que Ian havia falado? Sobre
“não sofrer”?
De certa forma eu até o entendia. Só não podia aceitar.
Então eu deixava os dias correrem.
Deixara Beaverton para trás. Assim como todas as pessoas que tinham
me traído. Tentando recomeçar do zero.
Não era o que eles queriam? Não era esta a ideia primordial? Só que
agora era eu é que estava escolhendo.
Não estava sendo fácil. De maneira alguma. Mas não conseguiria
fazer de outro jeito. Eu temia que mais dia menos dia eu seria obrigada a
encarar meu passado, não imaginava que seria nestas circunstâncias.
Recordo-me da última vez que o vi. Ele veio a Londres. Pediu
desculpas. Sabia que tinha errado, mas todos pensavam estar mesmo fazendo
o melhor para mim. Eu pedi que me deixasse em paz.
Ele não insistiu.
Talvez achasse que eu voltaria atrás quando estivesse mais calma.
Aconteceu há seis meses. E eu ainda não queria voltar. Eu não podia voltar.
Mas era Jack. E agora eu me perguntava se não tinha exagerado. Ele
era meu pai. E eu simplesmente o havia riscado da minha vida.
E se ele morresse?
Engulo o nó na minha garganta e pego o telefone. Eu teria muito a
fazer para poder voltar a Beaverton. Eu iria ver meu pai. E rezar para não
reencontrar Ian.

***

Eu me sinto cada vez mais apreensiva a medida que o avião vai se


aproximando de Portland.
Eu quero me sentir calma. Quero me sentir segura.
Mas como?
Faz pouco mais de 24 horas desde que Chris me acordou com a
notícia terrível sobre Jack e eu decidi voltar.
E agora eu me pergunto se estou agindo certo. Se havia outra
maneira...
Um medo gelado se enrosca na boca do meu estômago quando
pousamos e eu saio do avião com os outros passageiros. Caminho pelo
desembarque com meus pés pesando como chumbo.
E então o vejo.
Não sei o que sinto. Um misto de saudade, rancor, alívio.
Alívio, pois é Chris que está ali e não Ian.
Eu posso lidar com Chris. Com o que eu sinto por ele. Não me sinto
preparada para encarar Ian. Mesmo assim eu paro e respiro fundo. Ele ainda
não me viu, me procura com os olhos ansiosos por entre as pessoas.
Até que me vê. Sorri por um momento.
Posso ver seu alívio. Sua alegria quando me vê. Misturada com temor
e receio. Ele não sabe o que esperar de mim.
E então ele para de sorrir quando eu me aproximo.
– Oi, Chris.
Ele está sem fala. Está chocado.
Eu já esperava.
Seu olhar não está no meu rosto. Está na minha barriga.
– Você está... grávida!
Choque e incredulidade se misturam em seu rosto.
– Deus do céu, Julia...
Rolo os olhos.
– Chris, sem drama, ok? E nem comece a fazer perguntas. Não vou
falar sobre esse assunto. Podemos ir?
Ele pega a mala de minhas mãos e caminhamos lado a lado até o
estacionamento. Um sol pálido invade o carro enquanto percorremos a
estrada rumo a Beaverton.
Por um longo momento Chris nada diz. Lança olhares estranhos em
minha direção. Eu já vi sua expressão mudar uma centena de vezes.
Eu devia prever problemas.
Claro que seria um problema.
E era somente Chris. Eu nem podia imaginar me encontrar com Ian.
Tento conter meu enjoo crescente. E nem era por causa do meu
estado. Os enjoos passaram depois dos três meses.
Era medo. Puro e Simples.
Eu havia escondido a gravidez de Ian. De todo mundo. Cheguei a
Londres arrasada, decepcionada. Fiz contato com uma amiga com quem
dividia o apartamento na época da faculdade, ela me indicou algumas aulas
particulares e me convidou para dividirmos o apartamento de novo.
Parecia muito simples e fácil. Era só esperar esquecer.
Não demorou para eu descobrir que estava grávida. Eu fiquei
chocada. Fiquei com medo. Fiquei feliz.
Confesso que um dos meus primeiros pensamentos foi ligar para Ian.
Mas Ian não queria ter filhos. Ele não tinha dito com todas as letras, eu senti.
Seu comportamento em relação à desconfiança da gravidez de Susan e depois
sua reação quando eu quis conversar sobre o assunto.
E como é que ia ser? Como eu poderia dividir algo com ele, tão cheia
de decepção e rancor como eu estava? Então fui deixando o tempo passar. Os
dias se transformarem em semanas. Semanas em meses...
Entorpecida na minha dor. Esperando o dia em que iria parar de ter
pesadelos. O dia em que iria deixar de me importar com o que todos tinham
feito.
Principalmente Ian.
E agora fui obrigada a voltar. Seis meses se passaram.
Eu estava grávida de quase oito meses.
– Como está Jack? – pergunto depois de um tempo.
Tenho que me lembrar o motivo de estar ali. Nada de dramas por
causa da minha gravidez. Ou de minha relação com Ian ou até mesmo Chris.
Apenas Jack importa.
– Estável, ainda é crítico.
– O que os médicos dizem? Ele...
– Não sabemos Julia. A situação é delicada.
Olho a paisagem pela janela. Tudo ficando mais escuro conforme
vamos nos aproximando de Beaverton. As árvores fazendo sombras aqui e
ali.
O medo volta com tudo, rondando a boca do meu estômago.
– Por que não disse que estava grávida?
Finalmente ele pergunta.
– Não é óbvio?
Ele ri. Não há humor.
– Bom, então esconder sua gravidez é sua vingança contra nós?
Contra Ian?
Ele está com raiva? Ele está me criticando? Com que direito?
– Acho que meus motivos não são da sua conta.
– Sim, tem razão. No final eu realmente não tenho nada a ver com
isto... – sua mente parece longe de repente. – Mas o Ian tem. Já pensou no
que vai dizer a ele? Não pensou em como ele se sentiria por você esconder
algo tão sério?
– Desde quando você é defensor dos sentimentos do Ian?
– Estou somente falando a verdade. Ele é o pai, não é?
– E quem mais seria?
– Sempre bom perguntar.
Quero dizer que não gostei da ironia na sua voz, mas me calo.
Não quero mais discutir aquele assunto.
– Não quero falar sobre isto, Chris – dou o assunto por encerrado,
torcendo para que ele não insista.
E ele não insiste.
Chegamos ao hospital na hora do crepúsculo. Não é fácil caminhar
pelos corredores silenciosos e insípidos até chegar a Jack e, por um momento,
eu acho bom Chris estar comigo.
Jack está sedado e parece tão mais velho contra os lençóis brancos.
Pequenos fios no seu nariz ajudam a levar oxigênio. Seguro sua mão fria.
– Pai? – Eu chamo baixinho, com vontade de chorar.
Ele não escuta.
E eu realmente choro.
Chris está por ali ainda depois que me acalmo. Estende um lenço, eu
agradeço silenciosamente.
– Ele vai ficar bem.
– Você não sabe realmente.
– Temos que ter fé.
– Eu o deixei sozinho... todo este tempo...
A culpa ameaça me esmagar.
Do que valia todo o rancor e raiva agora? Se Jack se fosse...
Eu teria que conviver com a escolha que fiz há seis meses.
Eu havia escolhido não perdoar. E agora talvez fosse tarde.
Não sei quanto tempo fico ali remoendo minha dor. Querendo que
Jack acorde. Ansiando ser possível conversar com ele, consertar o que tinha
quebrado.
Sei que ele errou, mas é meu pai. E, pela primeira vez, eu consigo
acreditar que ele pensou ter feito pelo meu bem. Embora de maneira
totalmente errada.
– Julia, precisa descansar – Chris fala quando uma enfermeira entra
na sala para medir os sinais vitais de Jack.
Eu me sinto péssima. Enjoada e tonta.
Mas não quero sair dali. Não quero ficar longe de Jack.
– Vou te levar pra casa. E se está preocupada em topar com o Ian,
fique tranquila. Ele está em Portland.
– Não estou preocupada com Ian – minto, desviando o olhar.
– Ele foi embora de Beaverton e não voltou mais depois que você foi
para Londres.
Eu não quero saber, penso em dizer.
Não me importo.
Claro que é uma mentira. Eu penso em Ian em Portland.
Sozinho? Ou com Susan?
O que a impediria de voltar para a vida de Ian? Ela tinha ficado com
ele depois que eu me esqueci do nosso relacionamento. Depois que Ian
escolheu sair da minha vida.
Sinto uma dor quase física, que me corrói por dentro como ácido ao
imaginá-lo com ela de novo. Queria não sentir nada.
Respiro fundo, ignorando o mal estar.
– Sério, Julia, precisa ir embora. Vou te levar pra casa.
– Não vou. Eu vim pra ficar com Jack, quero esperar ele acordar pelo
menos.
Chris solta uma imprecação.
– Tudo bem, vou buscar um café pra você então.
Ele sai do quarto.
Continuo ali.
Eu resolvo procurar o médico para me inteirar melhor da situação de
Jack. Ao sair do quarto, eu estanco ao ouvir Chris no celular.
–... Eu só achei que era certo você saber... sim, eu avisarei se
precisar...
Ele se vira e me encara, desligando o telefone.
Sinto uma desconfiança terrível.
– Com quem estava falando?
– Com o Ian.
– O quê? – Meu tom de voz está se elevando, eu não me importo. – O
que você disse a ele?
– O óbvio – ele olha para a minha barriga.
– Você não tinha o direito!
– Acorda Julia! Achou que iria esconder até quando?
– Não é problema seu!
– Sim, tem razão. Eu só não quero deixar você cometer este erro. Um
pai tem direito de saber sobre seu filho!
– Oh Deus... – me viro, revoltada, magoada, amedrontada.
Ian sabe.
Chris, quem eu nunca poderia imaginar, estava do lado de Ian.
E eu simplesmente não consigo lidar com isso agora.
Então tudo desaparece.

Acordo desorientada. A luz branca me cega por um momento. Estou


deitada num quarto muito iluminado e branco.
Um quarto de hospital.
– Julia?
Eu penso que estou sonhando. Ainda estou desacordada.
Estou sonhando com a voz de Ian.
Então seu rosto está acima do meu.
Os cabelos estão bagunçados, os olhos verdes preocupados. E seu
rosto está barbudo de novo.
Mesmo assim é a mesma beleza deslumbrante.
Meu coração para. Se aperta. Se expande.
Bate alucinado.
Não estou sonhando. Ian está comigo.
Capítulo 17

– Ian – murmuro seu nome como se para me certificar de que não


estou tendo uma alucinação.
– Como se sente?
Ele fala calmamente, embora a impressão que eu tenho é que ele quer
explodir.
– O que está fazendo aqui? – ignoro sua pergunta.
Claro que eu sei o que ele está fazendo ali.
– Chris me ligou – ele diz com olhos acusatórios, agora que se
certificou de que eu estou viva.
– Chris é um fofoqueiro – resmungo, desviando o olhar.
Que merda, estou envergonhada.
É assim que eu sinto. Como uma criança flagrada fazendo uma arte.
– Por que não me contou? – Sua voz já não está tão calma.
Eu o encaro. Parece transtornado.
– Queria que eu tivesse alguma consideração por você depois do que
fez?
– Então é uma retaliação? Mentira em cima de mentira?
– Não pode me acusar de querer ficar longe!
– Você ficar longe é uma coisa. É um direito seu. Esconder que estava
grávida...
– Você não tem o direito de exigir nada de mim! Não faz mais parte
da minha vida!
– Mas este bebê faz! A não ser... a não ser que não seja meu.
Eu não vi o movimento de minha mão em seu rosto, apenas senti o
impacto contra meus dedos.
Meus olhos embaçam. De raiva e indignação.
Como ele ousava dizer aquilo?
– Eu gostaria mesmo que não fosse – murmuro ressentida, desviando
o olhar das marcas de meus dedos em seu rosto.
E da mágoa que surge em seus olhos.
Eu estou magoada também. Por alguns instantes sem fim ninguém diz
nada. Há rancor demais. Ressentimento demais.
De ambas as partes agora.
Eu desejo que ele vá embora. Desejo que ele me deixe sozinha para
chorar em paz.
O bebê se mexe na minha barriga e eu respiro fundo buscando me
acalmar.
– Como está Júlia? – Escuto a voz do médico que entra no quarto.
Ian está perto da janela, de costas.
O médico olha de mim para Ian, não diz nada sobre a óbvia tensão.
Aproxima-se e toca meu braço, sentindo a pulsação.
– Estou bem – sussurro, tentando realmente me acalmar.
Sua mão toca minha barriga.
Eu me encolho.
Olho automaticamente na direção de Ian. Ele está nos observando
tensamente.
Desvio o olhar.
– Sente alguma dor, alguma pressão?
– Nada.
– Você desmaiou por causa do estresse e cansaço. Sua pressão baixou.
O soro deve resolver.
– Tem certeza que é só isto? – Ian pergunta se aproximando.
– Podemos fazer alguns exames para conferir se está tudo bem com o
bebê, claro.
– Está tudo bem com meu bebê – garanto. – Eu fiz... todos os exames
possíveis e tenho aval do meu médico pra viajar.
– Mesmo assim é bom garantir, não é? – O médico diz com um
sorriso profissional.
– Eu sei que está tudo bem – insisto teimosamente, levando a mão a
minha barriga.
– Ela fará os exames necessários – Ian interfere enfaticamente.
Isto me irrita.
– Quando poderei sair? – Pergunto enquanto o médico mede minha
pressão.
– Assim que me certificar de que está realmente bem.
Me encosto nos travesseiros e fecho os olhos.
– Certo. Acho que dá para aguentar mais um pouco. Posso descansar
agora?
– Claro... – Ele encara Ian – pode vir comigo?
– Sim.
Escuto os passos se afastando e a porta se fechando atrás deles.
E só então me permito abrir os olhos e respirar normalmente.

Eu ainda permaneço em observação por algumas horas e já é outro dia


quando finalmente me liberam. Volto para o quarto do meu pai e, para meu
alívio, ele está acordado.
Ele me encara surpreso.
– Julia...
Eu me aproximo e toco sua mão.
– Pai, que bom que está acordado, eu estava tão preocupada!
Mas ele não olha pra mim, olha pra minha barriga.
Mordo os lábios nervosamente.
– Você está grávida?
– Pai, não fique nervoso, ok?
– Como não ficar... Deus do céu, Julia, por que não disse nada?
– Porque eu não estava falando com nenhum de vocês! – Respondo e
começo a perceber o quão infantil eu fui todos estes últimos meses.
Como pude acreditar que esconderia pra sempre? Não que minha
intenção fosse esta, na verdade eu nem tinha parado para analisar o que
pretendia. Eu só estava me sentindo traída e cheia de ressentimentos.
Não queria dividir minha gravidez com eles, as pessoas que mentiram
pra mim.
Obviamente tinha sido uma atitude imatura e inconsequente. – Me
desculpe pai. Sei que devia ter contado, mas...
– Estava com raiva.
– Sim.
– Julia, eu fui a Londres te pedir perdão. Eu sabia que tínhamos
errado, mas juro que pensávamos estar fazendo pro seu bem.
– É difícil acreditar, pai. Era sério demais.
– Eu sei. Quando caiu... Quando acordou não se lembrando de nada...
Você parecia bem, entende?
– Não, eu não entendo! É o que me deixa louca! Dizem que foi
melhor eu esquecer, como pode ser? Foi o Ian? Foi nosso casamento? Foi tão
ruim assim pra todos preferirem fingir que nunca tinha acontecido?
Jack desvia o olhar.
Parece pálido e atormentado e eu me sinto culpada de repente.
– Pai, não fique agitado... eu nem deveria discutir com você... vamos
esquecer... por enquanto.
– Sim, você tem muitas razões pra se sentir traída e confusa. Nós...
não fomos sinceros com você, não é? Eu achei que estava lhe fazendo um
bem. Que seria melhor pra todos... pra você, que tudo ficasse enterrado no
passado, mas acho que nada vai adiantar.
– Pai, é sério, chega deste assunto.
– Tudo bem, tudo bem. Nós teremos tempo. Quando eu sair deste
lugar.
– Claro que vai sair! Você vai ficar bom e vai pra casa.
Seus dedos apertam os meus.
– Estou feliz que esteja aqui...
– Eu também.
– E este bebê aí? Julia, Julia...
Eu fico vermelha.
– Bom, eu não queria voltar, não queria... ter que encarar o Ian.
– E ele já sabe?
– Sabe... Chris contou.
– O quê? Que confusão é esta agora?
– Não se preocupe pai, não há confusão nenhuma! – Minto. – Chris
me ligou para avisar que você estava no hospital e ele me buscou no
aeroporto. Depois ligou para o Ian e contou tudo. Parece que se transformou
num fofoqueiro!
– Chris fez o certo. Se Ian é o pai desta criança...
– Claro que é! Estou grávida de oito meses. Achou o quê? Que
chegaria em Londres e engravidaria do primeiro cara que aparecesse?
– Não estou falando nada!
– Certo, me desculpe, parece que todo mundo fica desconfiando! –
Exclamo indignada.
– E o que vai fazer? Já conversaram?
– Eu não sei... não quero pensar agora. As coisas estão... tensas.
– E vai pensar quando? Depois que nascer?
Antes que eu possa pensar numa resposta, batem à porta e eu me viro
para ver Chris entrando no quarto acompanhado de um médico.
– E então, como está se sentindo? – O médico pergunta se
aproximando e eu encaro Chris.
– Você está melhor? – Ele pergunta baixinho e eu sacudo a cabeça
positivamente.
– Estou.
– Precisa ir descansar.
– Sim, eu sei. Só queria falar com Jack antes.
– Eu vou te levar para casa então.
– Certo.
Eu me despeço de Jack prometendo voltar depois e acompanho Chris.
Chris me observa ressabiado dentro do carro.
– Como foi a conversa com Ian?
– Como você acha?
– Ele tem direito de estar bravo, Julia...
– Eu também tive meus motivos para esconder.
– Sim, todos sabemos que teve. Você achou que ia conseguir esconder
até quando?
– Eu não sei. Não pensei. E, antes que comece a me acusar, eu sei que
fui imatura. Eu só... não queria encarar Ian. Não conseguia encará-lo depois
do que ele fez comigo. De todo mundo... ele foi o que mais doeu. Eu confiei
nele. Apaixonei-me por ele, sem fazer ideia de que era tudo uma repetição!
Não pode imaginar como me senti quando descobri que era uma farsa... –
minha voz agora é só um murmúrio dolorido.
– Eu sinto muito.
– Sente mesmo? Por que não me contou então? Quando Ian resolveu
me enganar, por que não me disse quem ele era?
– Porque ele pediu que não o fizesse.
– Achei que fosse meu amigo e não do Ian! – Acuso.
– Você não entende...
– Não entendo mesmo!
Chris para o carro em frente a minha casa.
Eu continuo ali. Remoendo suas palavras, suas atitudes.
Eu estava tão magoada e ferida quando descobri a mentira sobre
minha memória que só queria fugir e esquecer.
Agora eu estava de volta a Beaverton.
De novo com todos eles.
Chris, Jack, Ian.
E era obrigada a encarar a situação de frente. A me perguntar se eles
tinham me contado tudo. O que mais poderia haver naquela história? Por que
eu desconfiava que havia muito mais?
Estremeço de frio e medo.
E percebo que há uma parte dentro de mim que quer continuar sem
saber. Que tem medo de saber.
E isto me assusta mais que tudo.
– Acho que tem visitas.
Volto ao presente com a voz de Chris saltando do carro e, ao olhar pra
porta de casa, vejo Carla. Sem pensar duas vezes, eu salto e vou em sua
direção.
Deixando que ela me abrace.
E choro.
Chris vai embora e eu fico com Carla.
Ela já sabia sobre minha gravidez. De novo tenho que “agradecer” a
Chris que ligou para ela e contou.
Carla não fez recriminações. Ela me abraçou, perguntou se eu estava
bem e pediu que eu contasse tudo sobre a gravidez.
De repente era como se nem um dia tivesse passado. E de alguma
forma eu lamento o tempo que passei longe. Mesmo sabendo que era preciso,
que não conseguiria agir de outra maneira depois de eles terem mentido pra
mim.
Não sei se eu teria voltado, ou perdoado, se não fosse a doença de
Jack. Talvez sim, mais dia menos dia. Afinal, havia também o bebê, que uma
hora eu teria que compartilhar.
E pensar nisto me faz lembrar de Ian. E eu me pergunto se ele se
importa de verdade. Desde que me deixou no hospital esta manhã, não
apareceu mais. Talvez ele não tivesse nenhum interesse em mim ou no bebê.
Pensar nisto dói. E eu vou dormir sentindo um vazio no peito.
Quando acordo na manhã seguinte e abro a janela, está chovendo.
E há um carro parado em frente a minha casa. A picape de Ian.
Um amontoado de sensações desencontradas me domina. Ian está ali.
Meu coração dispara ridiculamente e eu quase posso sentir todo meu
corpo mais vivo e radiante. Sinto certo alívio. Sinto medo também.
Visto-me rapidamente e encaro minha imagem no espelho
criticamente antes de descer. Minhas mãos estão suando quando entro na
cozinha.
E lá está ele, com Carla.
Eles cochicham e, de repente, eu tenho a impressão de que estão
falando de algo que não é para eu ouvir.
Carla é a primeira a levantar o olhar e sorri quando me vê.
– Finalmente acordou.
Ian se vira e me encara.
Eu tento me manter impassível. Tento não ficar imaginando como é
que ele me vê agora. Imensa numa gravidez de oito meses.
– O que faz aqui? – pergunto friamente.
– Precisamos conversar.
– Agora? Não sei que quero conversar com você nesse momento.
– Julia - Carla intervém. – Você sabe que precisa conversar com ele.
– Sim, eu sei. Só não estou pronta para conversar agora.
Ian passa a mão pelos cabelos. Parece frustrado.
Parece lindo. Me obrigo a não suspirar.
A não me lembrar de como havia sentido falta dele todo maldito dia.
– Julia, por favor, nós temos que conversar sobre... sua gravidez. – ele
pronuncia as palavras como se fosse um sacrifício. Me recordo de quando
tentei falar com ele sobre bebês e ele disse que era cedo.
– Claro, desculpa se deve estar sendo um inconveniente para você. –
digo cheia de ironia.
– O que está querendo dizer?
– Não finja que se importa, nem queria que eu engravidasse!
– Não é verdade – ele rebate. – Você... Deus do céu! – De repente ele
parece realmente atormentado.
Carla toca os ombros dele.
– Acho melhor você ir embora. Podem conversar depois.
Ian me encara e respira fundo.
– Tudo bem. Tem razão. Eu só queria dizer que marquei alguns
exames para você.
– Eu disse que não precisa...
– E eu estou dizendo que você vai fazer.
– Não...
– Ela vai fazer, claro – Carla intervém me lançando um olhar de
advertência.
Ian vai embora e ela me encara.
– Não pode agir assim.
– Quer que eu faça o quê? Ian não queria que eu engravidasse! Eu
lembro muito bem quando tentei conversar com ele sobre este assunto e ele
não quis!
– Agora é diferente a gravidez é uma realidade, vocês vão ter um
filho. E ele está se mostrando preocupado com você.
– Está tudo bem, eu já disse!
– Mesmo assim deve fazer os exames. É sempre bom.
Eu suspiro pesadamente.
– Tudo bem, eu farei.
***

Uma semana se passa.


Eu visito Jack todos os dias. Carla me faz companhia. Eu penso em
Ian cada vez mais.
Quando estava em Londres, longe, era mais fácil fugir dos meus
sentimentos. Me esconder atrás do ressentimento, rezar para que a distância e
o tempo curassem tudo. Agora eu sei que ele está perto. Sei que a qualquer
momento nos veremos de novo.
E não sei se temo ou anseio.
Numa manhã, Carla me acorda dizendo que devo ir ao hospital, não
só para visitar Jack, também para fazer os exames. Ela me acompanha e eu
tento relaxar enquanto o médico passa o aparelho gelado na minha barriga.
Então a porta se abre e Ian aparece.
Eu fico tensa, mesmo sabendo que ele tem o direito de estar ali,
afinal.
– Oi, Ian – Carla o cumprimenta animada. – Chega mais perto.
Ian me encara receoso, como se me pedisse permissão, eu rolo os
olhos ironicamente tentando camuflar meu nervosismo.
– Já que está aqui, vai querer ver tudo, não é?
– Claro que ele quer! – Carla ri. – E eu também!
Ian se aproxima.
O médico vai falando todas as coisas que eu já ouvi em outros dois
ultrassons feitos anteriormente.
– E então, está tudo bem? – Ian pergunta depois de um tempo.
Sua voz está apreensiva.
– Sim, o coração bate no ritmo normal, tudo parece de acordo com o
tempo de gestação de Julia. Trinta e sete semanas. Se o bebê nascer a partir
de agora não será mais considerado prematuro, por exemplo.
– Ele não vai nascer agora! – exclamo assustada.
O médico sorri.
– Esperamos que não. Quanto mais tempo passar aí dentro para
ganhar peso, melhor.
– E qual o sexo, não quer saber, Julia? – Carla pergunta.
E eu encaro Ian.
– Se você quiser... – ele diz.
Até aquele momento eu não quis saber de nada, agora sou acometida
por aquela curiosidade.
– Sim, eu quero. – respondo e o médico sorri.
– É uma menina.
Eu olho para o monitor. Aquele pequeno ser se movendo dentro de
mim.
É uma garotinha.
– Oh, Julia. – Carla segura minha mão, toda chorosa e feliz.
Eu me sinto emocionada também e encaro Ian. Ele parece vidrado no
monitor e reparo que o médico ainda diz algumas coisas sobre o bebê.
– Ela é saudável? – Ian pergunta muito tenso, como se realmente
houvesse a possibilidade de não ser.
Sua pergunta me deixa tensa também.
– Sim, Ian, está tudo correndo bem. Você vai ter uma filha em três
semanas e tudo vai correr bem.
Eu acho que respiro aliviada do mesmo jeito que Ian. E percebo que
ele realmente estava preocupado. Será que era porque eu escondi a gravidez
dele até aquele momento e, o fato de não saber nada o deixara inseguro?
Então quer dizer que ele se importa afinal?
Ian sai da sala com o médico ao fim do exame.
– Estou tão feliz que está tudo bem! – Carla exclama.
– Eu também estou.
– Precisamos pensar em um nome!
– Claro – eu respondo rindo.
Quando nós saímos do quarto eu aviso Carla que vou ver Jack, ela diz
que irá tomar um café e ligar para Brad.
Jack parece mais saudável e sorri ao me ver entrar.
– E então, quando nasce esta criança? Você parece maior a cada dia!
– Acabei de fazer um ultrassom.
– Sim, Ian me contou que faria.
– Ian tem vindo aqui?
– Sim, ele vem. Claro que nunca quando você está.
Eu abaixo o olhar.
– Ele está preocupado com você, Julia.
– Ele viu hoje que não tem motivos. Está tudo bem com a minha
gravidez.
– E você vai perdoá-lo?
– O que quer dizer? Que eu devo voltar com ele?
– Seria o correto, se vão ter um bebê.
– Não sei se seria possível, pai... Depois de tudo... Como podemos
ficar juntos? E eu nem sei por que nos separamos da primeira vez. Ele diz
que simplesmente não deu certo, embora eu sinta que não foi só isto. Por que
nosso casamento acabou, pai?
Jack segura minha mão. Parece pensativo.
– Eu terei alta em alguns dias. Você ficará aqui para o nascimento do
bebê, não é?
– Sim, claro que não vou viajar mais.
– E depois?
– Depois eu não sei.
– Eu acho que tem razão, Julia. Você sempre quis saber sobre os dois
anos que esqueceu. Eu sempre achei que era melhor você esquecer. Mas
agora... Quando eu sair daqui nós iremos conversar. E eu contarei tudo o que
quer saber. Chega de meias verdades.
Eu engulo em seco.
É o que eu quero, não é? Que alguém converse comigo e me conte
tudo.
Eu só não sei se estou preparada para ouvir.
Saio do quarto à procura de Carla para irmos embora, me perguntando
o que de tão terrível pode ter acontecido no meu casamento para todos
esconderem. Para eu ter escolhido esquecer.
Estou caminhando pelo corredor e vejo Ian e o médico conversando.
Eles param quando me veem.
– Ian, posso falar com você?
O médico diz que tem pacientes para ver e se afasta.
– Eu queria te dizer que tem razão. Eu sei que errei te mantendo de
fora, escondendo a gravidez... Nós temos realmente que conversar.
– Precisamos conversar sobre muitas coisas, Julia.
– Sim... Jack me disse... Ele me garantiu que vai me contar tudo...
sobre nosso primeiro casamento.
Ian fica tenso.
– Eu só acho que não deveria ser ele a me contar, não concorda?
– Julia...
– Eu queria ouvir de você – sussurro. – Então... – eu respiro fundo. –
Nós vamos conversar sobre o futuro e sobre o passado também. Só assim
poderemos seguir em frente, Ian.
– Você quer dizer que existe um futuro para nós?
Há tensão, frustração e esperança em sua voz. E bem lá no fundo, eu
sinto o mesmo.
Eu quero ter a mesma esperança.
– Eu não sei.
Ian

Vê-la se afastar sempre parece antinatural.


Eu não consigo me acostumar com ela indo embora. Nunca. E olha
que não é a primeira vez. É sempre tão dolorido.
E agora ela carrega nossa filha.
Eu ainda me sinto assustado, chocado, apavorado com sua gravidez.
Me recordo do meu assombro ao ouvir as palavras de Chris. Justo de Chris.
Larguei tudo em Portland para encontrá-la. Para ter certeza de que não
era uma invenção.
Julia estava mesmo grávida. Íamos ter um bebê, contrariando todas as
possibilidades.
Todos os problemas.
E ela não faz nem ideia do quão profundos eles são.
Gostaria que ela nunca chegasse a esta profundidade, então me
lembro do que ela falou sobre Jack. Sigo para seu quarto e ele não fica
surpreso quando me vê.
– Me contaram que vão ter uma filha.
– Está bem informado.
– Também que está tudo bem, aparentemente.
– Sim, tudo parece correr bem... – respondo distraído e entro no x da
questão. – Julia me disse que prometeu contar tudo a ela.
Jack fica sério.
– Sim, chega de mentiras.
– Jack...
– Não adianta mais, Ian. De que adiantou escondermos? Julia
descobriu que mentimos, foi embora cheia de ódio, passou meses escondendo
que estava grávida... E ainda acha que estamos agindo certo?
– Eu sei que deu tudo errado... só não sei se consigo voltar àquela
história de novo, Jack.
– Não é somente por causa da Julia, não é? Você também não quer
lembrar.
– Ela pelo menos realmente não consegue lembrar. Eu me recordo
todos os dias... Eu só queria que ela não sofresse... Como eu sofro.
– Um dia a verdade precisa vir à tona. Já chega Ian. Nós tentamos e
falhamos. Aceite. Julia vai ter que saber de tudo. Vai ter que assumir o que
lhe cabe nessa história...
– Sim, tem razão...
– Então chega. Quando eu sair...
– Não... Depois do nascimento do bebê.
– Ian...
– Eu escolho, Jack. Depois que o bebê nascer e que tudo estiver bem.
– Tudo bem. Será como você quiser. De novo.
– Obrigado.
Capítulo 18

Carla se despede na tarde seguinte, pois tinha combinado passar as


férias com seu namorado em Yale. Sinto-me um tanto apavorada com a ideia
de Carla ir embora e me deixar sozinha.
Obrigo-me a entender que ela precisa realmente ficar com Brad.
– Eu espero estar de volta antes de o seu bebê nascer.
– Não se apresse – rebato sentindo-me subitamente culpada por estar
choramingando e deixando-a dividida. – Divirta-se com Brad, eu vou ficar
bem.
Ela entra no táxi e eu vejo o carro partir já não me sentindo tão forte.
Nuvens escuras cobrem rapidamente o céu e eu estremeço de frio.
Será uma noite de chuva forte em Beaverton.
E enquanto anoitece e a chuva começa a cair, eu lamento por estar
sozinha. E meu lamento se transforma em preocupação quando todas as luzes
se apagam subitamente.
– Droga – praguejo, levantando meu corpo pesado do sofá onde
estava sentada tentando ignorar o som da chuva e ler um livro.
Estou tentando me lembrar de onde tem uma lanterna na casa, quando
escuto as batidas na porta. Meu coração dá um pulo de susto.
– Julia, está aí? – Respiro aliviada ao reconhecer a voz de Chris e abro
a porta.
Ele entra todo ensopado.
– Que diabo está fazendo aqui, Chris? E com este tempo?
– Eu liguei e ninguém atendia, acho que sua linha telefônica caiu.
– Sim, nem percebi, provavelmente deve ter caído. A luz acabou faz
alguns minutos.
– Eu devia prever que estava com problemas – diz e eu rolo os olhos
enquanto ele se afasta e volta segurando uma lanterna.
– Eu não fazia ideia de onde Jack as guardava.
– Você parece pálida, está se sentindo bem?
– Estou cansada... vai ficando difícil de acordo com o aumento do
peso – digo com a mão na barriga.
– Então por que não se senta? – Ele segura meu braço e me guia até o
sofá da sala.
– Não estou morrendo, Chris! – reclamo, mas faço o que ele pede,
afinal, me canso muito rapidamente agora.
Ele acende a lareira com facilidade.
– Nada como um homem em casa – falo com ironia e ele ri.
Reparo que está com as roupas molhadas.
– Por que não troca de roupa? Pode usar uma do meu pai, vai ficar
doente deste jeito.
– Nunca fico doente, Jules – retruca, tirando a camisa e sentando em
frente à lareira.
– Só a camisa já é suficiente, rapidinho me seco.
Eu dou de ombros, me encolhendo no meu canto no sofá.
A lareira arde em silêncio entre nós e de repente sinto um déjà-vu.
– Nossa...
– O que foi? – Chris me olha curioso.
– Nada, é como... se essa situação já tivesse acontecido antes.
Ele ri.
– Com certeza, né? Quantas vezes eu fiquei aqui na sua casa?
– Eu posso não me lembrar de todas – murmuro incomodada.
De quantos momentos com Chris eu não me recordava? Será que
nossa amizade tinha permanecido a mesma enquanto eu estava com Ian?
Ian tinha muito ciúme de Chris. Algo exagerado na minha opinião.
Chris era meu amigo, ou costumava ser, antes de toda confusão.
Eu ainda tinha certo ressentimento quando pensava que ele fez parte
da farsa. Que também concordou em me enganar. Qual seria a desculpa de
Chris?
– Nós continuamos amigos? – Pergunto de repente, ele me encara.
– O quê?
– Depois que me casei com Ian nossa amizade continuou?
– Claro que sim.
– Ian não gosta de você.
– Eu também não vou com a cara dele. Acho que é natural, não é?
Eu olho para minhas mãos, incomodada como sempre ficava quando
Chris me fazia lembrar que seus sentimentos por mim eram maiores do que
os meus por ele.
– Eu me casei com outro cara. Mesmo assim, você continuou...
– A gente não escolhe estas coisas, Jules. Veja você, por exemplo,
esqueceu-se de tudo, porém, bastou ver o Callaghan de novo e estava de
quatro, como antes. E aposto que se ele aparecesse e insistisse apenas um
pouco, você esqueceria rapidamente toda a traição e voltaria com ele num
piscar de olhos.
Eu não refuto esta teoria.
Porque no fundo Chris tem razão.
Eu ainda amo Ian. Não importa quantas coisas ruins tenham
acontecido, ou o que ele tenha me causado. Acho que por isto fugi para tão
longe. Do outro lado do mundo. Porque eu sabia que não teria forças para me
manter afastada.
– Você sabe por que meu casamento acabou? – Pergunto num fio de
voz.
– Tem que perguntar para o Ian.
– Não faz sentido pra mim. Nada disto faz... Me conta Chris... me
conta, por favor. Você diz que é meu amigo, então não me deixa mais no
escuro... O que aconteceu comigo? Por que meu casamento acabou se eu
ainda amava o Ian? Por que eu pulei daquele penhasco e esqueci tudo? Por
que todo mundo acha que eu não posso lembrar?
Ele se aproxima e segura minhas mãos nas dele.
– Jules... acho que tem razão... que precisa saber...
As palavras de Chris são abafadas por fortes batidas na porta.
Ele se levanta.
– Está esperando alguém?
– Claro que não!
Eu tento levantar também enquanto ele vai até a porta, obviamente
sou milhões de vezes mais lenta e, quando chego lá, paro estarrecida ao ver
Ian.
E ele desvia os olhos de Chris para mim.
E o que vejo ali me dá arrepios de medo.
E não preciso que ele comece a falar para saber o que está pensando.
– O que está acontecendo?
– O que acha? – Pergunto aborrecida com sua desconfiança.
Ian não olha mais pra mim e sim pra Chris.
– O que está fazendo aqui? – Sua voz é fria como gelo.
– Julia precisava de mim.
– Ela não precisa de você.
Chris ri.
– Acho que não é você que... – Chris para quando Ian lhe dá um
empurrão.
– Estou de saco cheio de suas gracinhas!
Chris está sério agora.
– Ei cara não começa, tá legal?
– Você que começou vindo aqui! – Ian agora está furioso. – Pensei
que tivéssemos passado desta fase!
– Foi exatamente o que eu também pensei! Aparentemente é você que
ainda acha que...
– Então por que veio?
– Não é óbvio? Julia estava sozinha e eu fiquei preocupado.
– E precisou tirar a roupa.
Chris ri e dou um passo a frente disposta a acabar com aquela briga de
moleques.
– Hei, parem com isto vocês dois!
– Fique fora disto, Julia! – Ian sibila em minha direção, o que me
deixa irritada.
– Para você continuar brigando com o Chris como se eu não estivesse
presente? Acho melhor ir embora, Ian.
– Eu não vou a lugar nenhum!
– A casa é minha e se eu pedir pra ir, você vai sim!
Ele me encara com tanta raiva que eu recuo.
– Para ficar sozinha com seu amiguinho?
– O que está insinuando? – Minha voz treme de indignação. – Por que
está agindo assim? O que pensa que estava acontecendo aqui, Ian?
– Ian parece acreditar que estávamos nos pegando no sofá, Jules –
Chris diz e então, antes que eu me dê conta, está no chão depois de um murro
de Ian.
Eu grito assustada.
– Cala sua boca! Já estou cheio de você! Some daqui! – Ian grita
furioso e Chris se levanta.
– Certo, acho que tem razão. Eu vou. Não porque você pediu e sim
porque não quero que a Julia fique mais nervosa!
Ele me encara. Minha mão está na barriga e eu realmente estou
apavorada.
– Então vou deixar pra quebrar sua cara em outra ocasião!
Ele vira as costas e sai na noite escura e chuvosa.
Vários minutos se passam até que eu consigo encarar Ian.
Ele passa a mão pelos cabelos. Parece tenso, apesar de mais calmo
agora que Chris se foi.
– Deus do céu, Ian, pra que isto? – Questiono em choque. – Precisava
bater no Chris? Ele só estava me fazendo companhia! Não posso acreditar
que realmente ache que estava rolando alguma coisa!
– O que quer que eu pense Julia? Estou cansado de concorrer com ele!
De te dividir com ele!
– Dividir? Do que está falando? Nunca me dividiu com ninguém! Eu
não tenho nada com o Chris e nunca tive! Por que o odeia tanto?
– Não é óbvio?
– Muitas coisas não são óbvias pra mim.
– Você dormiu com ele.
As palavras saem de seus lábios cheias de dor, de fúria, de um ódio
antigo.
Eu não as assimilo imediatamente porque não fazem o menor sentido.
– O que disse? – Indago num murmúrio, sentindo minha mente rodar.
Ian solta um palavrão, passa os dedos pelo cabelo, como se quisesse
arrancá-los.
– Esquece o que eu disse.
– Não, você disse... disse... – eu não consigo pronunciar as frases, mas
elas se repetem em minha mente como um mantra maldito. – É mentira... é
mentira! – Grito horrorizada.
Ian me encara com o mesmo horror.
Um horror antigo, dolorido. Sofrido.
Eu morro um pouquinho com sua dor ao dizer:
– Você mesma me contou.
Ian

Quatro anos antes

Eu estava levemente nervoso quando dirigi até a casa de Julia naquela


tarde. Finalmente ia conhecer o temido Jack Simmons. O pai da minha
namorada.
Nós chegamos juntos em Beaverton na noite anterior e Julia ficou
comigo no hotel, somente hoje de manhã foi para casa para o feriado de Ação
de Graças.
Jack obviamente não fazia ideia de que a filha havia passado a noite
com o namorado da faculdade.
O cara que ela conhecia a menos de um mês.
Talvez fosse loucura, mas eu estava tão apaixonado que decidi vir
passar o feriado com ela e conhecer seu temível pai.
Estacionei em frente à casa e saí do carro, parei surpreso ao ver Julia
na porta abraçada com um cara.
Ela ria enquanto ele a girava pela varanda, com os braços fortes
presos firmemente em volta de seu corpo esbelto.
Aquele corpo que era meu. Rindo com a namorada que era minha.
Quem era aquele cara?
De repente ele a colocou no chão, sem soltá-la.
Julia virou o rosto e me viu.
– Ian!
Ela se libertou do rapaz moreno que agora olhava pra mim com cara
de poucos amigos.
Ele não tinha gostado de mim? Então era recíproco.
Ela veio na minha direção, com o cara atrás, seguindo-a com olhar
desconfiado.
Eu a puxei pra mim, mantendo minha mão em volta de sua cintura.
– Ian, este é Chris Wilson, meu amigo – ela diz. – Chris, este é Ian
Callaghan.
– O namorado – complemento.
Nem sei se era o que ela ia dizer, só resolvi deixar as coisas claras.
O olhar do tal Chris escurece.
Eu reconheço o sentimento. Ciúme.
– Namorado? – O cara cruza os braços em frente o peito, seu olhar é
duro como aço. – Jack sabe, Jules?
– Vai saber agora, Chris – Julia responde.
– Então boa sorte, Callaghan. – Chris diz. – Você vai à festa lá na
fazenda hoje à noite, Jules?
Ela olha pra mim e então pra Chris.
– Não vai dar Chris, fica pra próxima.
– Claro, já entendi. Eu vou indo, acho que estou sobrando...
Ele se afasta e bate a porta do velho carro antes de sair cantando
pneus.
– Quem é este cara? – Pergunto para Julia.
– Eu já falei de Chris, meu amigo.
– Amigo? Ele pareceu bastante possessivo com você.
Julia ri.
– Somos amigos de infância, só isso.
– Talvez seja somente isto pra você. Ele, obviamente, está
apaixonado.
Julia desvia o olhar e aperta os lábios.
Ela sabe.
Ela sabe que o tal amigo Chris gosta dela. Isto me deixa com mais
ciúmes.
– Nunca rolou nada entre vocês?
– Não! – Ela refuta. – E, por favor, não vai ficar com ciúmes do Chris,
vai? Ele é só meu amigo, Ian, por favor... – então ela passa os braços em
volta da minha cintura e me olha com aquele olhar que consegue tudo de
mim.
Eu esqueço Chris Wilson e a beijo.
Capítulo 19

Eu estou morrendo.
Simplesmente não consigo respirar. Um horror infinito me domina.
As palavras de Ian ressoam em meus ouvidos. Embora ainda não façam
sentido. Não podem fazer!
Como assim eu dormi com o Chris?
Fiz sexo com ele? Não é verdade... Não pode ser.
Eu só percebo que estou dizendo estas palavras como uma insana,
quando Ian segura meus braços.
– Julia, esquece! Eu não deveria ter tocado neste assunto – ele parece
mais atormentado do que eu.
– É mentira... está inventando... Eu não posso... eu não iria... Oh meu
Deus!
As lágrimas caem em forma de soluços desesperados.
– Não... Chris... e eu... Não pode ser...
– Julia, por favor, se acalme...
– Então me diz que está mentindo! – Grito, tirando seus braços de
mim. – Diz que está inventando!
– Eu não posso! Acha que eu não gostaria?
– Oh Deus... – cubro o rosto com as mãos. – Para... não quero mais
ouvir... chega!
– Sim, eu não vou dizer mais nada, eu realmente não deveria ter
desenterrado esse assunto!
Eu continuo a chorar.
Sei que Ian está ali me dizendo aquelas coisas horríveis.
Coisas que eu fiz. E nem me lembro.
E mesmo assim me enchem de horror e vergonha.
E dor.
E eu simplesmente não posso mais encará-lo.
– Vai embora, Ian...
– Não posso deixá-la sozinha.
– Por favor...
– Não, Julia. Não vai ficar sozinha.
Então ele me pega no colo e me leva pra fora.
Estou fraca demais pra impedir, ou me incomodar com a chuva, ele
me coloca no carro e entra também, dando partida.
Eu apenas choro todo o percurso até o chalé.
E quando chego lá, estou emocionalmente exausta.
Ian me leva pra dentro e me deixa no banheiro. Liga a torneira da
banheira e um vapor quente enche o lugar enquanto ele tira minhas roupas.
Não me importo. Ele me põe na banheira e sai silenciosamente.
E então eu choro de novo.
Choro por tudo o que eu esqueci. Por tudo o que eu fiz e não me
lembro.
O sofrimento que causei.
Meu coração está despedaçado.
Chris. Meu melhor amigo. Que eu sempre soube que era apaixonado
por mim, cujo amor nunca pude retribuir. Nem antes e nem agora.
Mas houve um momento no tempo. Uma fenda. Algo aconteceu
naqueles dois anos e eu esqueci. Eu fui pra cama com ele. Eu fiz sexo com
ele.
E nem sabia por quê. Ou como. Ou o que havia me motivado.
E pior. Eu tinha traído Ian.
A traição explicava o ódio e o ciúme que Ian nutria por Chris.
Agora eu entendia. Eu sabia.
Provavelmente foi o que acabou com meu casamento. Traição.
Só que algo não se encaixava. Eu estava apaixonada por Ian, não
estava? Como pude dormir com Chris então? Como era possível? Eu queria
desesperadamente lembrar. Eu precisava lembrar.
E ao mesmo tempo eu tinha medo. Medo do que iria descobrir sobre
mim mesma.
Depois de muito tempo eu saio da banheira sentindo-me mais calma.
Amortecida.
Há uma xícara de chá em cima da mesa de cabeceira e uma camisa de
Ian na cama. Eu a visto. Ainda tem seu cheiro o que me faz desejar voltar no
tempo.
Escuto uma batida na porta e Ian entra, me estudando muito sério.
– Está se sentindo bem?
Eu sacudo a cabeça afirmativamente.
– Então durma.
– Mas...
– Eu vou dormir em outro lugar, não se preocupe.
E ele sai do quarto fechando a porta atrás de si.
Eu me deito, sem tocar no chá. Queria apenas dormir e esquecer.
Mas eu sonho.
E desta vez eu me lembro. Tinha uma fogueira e Chris estava lá. E ele
estava me beijando. Acordo de repente com o coração aos pulos e o estômago
embrulhando.
Respiro rápido, arquejante. O bebê se mexe.
Coloco a mão na barriga, querendo que se acalme, querendo me
acalmar também.
É impossível.
O sonho me atormenta porque sei que é algo que está no meu
subconsciente. Sei que é uma lembrança.
Jogo as cobertas para o lado, incapaz de dormir de novo e desço as
escadas.
Preciso comer. Preciso acalmar meu estômago. Ao passar pela sala,
vejo Ian dormindo no sofá. Eu me enrosco na poltrona em frente a ele.
Várias perguntas dançam em minha mente. Eu quero interrogá-lo.
Quero que me conte tudo sobre aquela história sórdida.
O quão injusto seria?
Eu o fiz sofrer. Com certeza. E eu sofria ao pensar nisto.
Penso em Susan. Penso no que eu senti só de imaginar Ian com ela. E
o tempo inteiro, enquanto o acusava, eu tinha minha parcela de culpa. Que
era ainda maior que a dele, provavelmente.
Ian tinha todo o direito de me odiar.
Talvez tivesse me odiado mesmo. No entanto, ele se casou comigo de
novo. Por quê?
– Julia? – Ele abre os olhos, sonolento. – Você está bem?
– Estou com fome – murmuro.
Ele se levanta.
– Eu deveria ter perguntado a você se tinha comido...
– Tudo bem, eu às vezes acordo de madrugada com fome mesmo –
respondo seguindo-o até a cozinha.
– O que quer comer?
– Omelete?
– A esta hora?
Eu dou de ombros.
– É o que estou com vontade de comer.
Ele prepara em silêncio e eu o observo, sentada à mesa, até que ele
coloca a comida no meu prato.
– Obrigada.
Ele fica me vendo comer.
Lembro-me de quando tudo era fácil entre nós. Quando havia risos e
beijos.
Me dá vontade de chorar.
Quando o encaro sei que ele está pensando o mesmo. Talvez esteja
pensando mais além. Esteja pensando no que eu esqueci.
– Eu te traí? – Pergunto num fio de voz. – Eu traí você com Chris?
– Não.
– Não?
– Não foi assim. Não foi uma traição.
Eu quase posso respirar aliviada.
Minha cabeça está a mil por hora.
Então foi depois, me pergunto. Foi depois de me separar de Ian?
Quero perguntar e ao mesmo tempo não quero reabrir essa ferida nele.
Porque, mesmo ele dizendo que não foi uma traição, pelo menos no sentido
literal da palavra, sei que pra Ian tem quase o mesmo peso.
Assim como o fato de ele ter transado com Susan, enquanto nós nem
estávamos juntos, tinha pra mim.
– E por que nos separamos? – indago.
– Eu não sei se devemos falar desse assunto agora, Julia...
– Por que não? Por que todo mundo faz isto comigo?
– Faltam três semanas para o seu parto. Até menos... Quero só me
certificar que ficará tudo bem com você e a nossa filha.
Quero dizer que isto não tem nada a ver com a criança que espero.
Mas imagino que Ian não queira que eu me estresse, será esse o motivo?
Sinto um medo gelado por dentro.
O que ele poderia me dizer que me deixaria tão mal?
– Então há algo pra contar, não é? Algo terrível...
– Julia, não faça isto.
Há angústia em sua voz.
– Então é assim? É este nosso prazo? Até o nascimento?
– Sim, Julia, é.
Eu respiro fundo.
Talvez ele tenha razão. E eu precise daquele tempo. Apenas saber
sobre Chris e eu já me abalara demais.
Eu mal conseguia pensar nisto sem me angustiar.
Saber de toda verdade... seja lá qual for... Coloco a mão sobre minha
barriga, protetoramente. Não posso pensar apenas em mim. Não posso me
envolver em problemas faltando tão pouco para o nascimento de minha filha.
Pensar nela me deixa mais calma. Me traz um pouco de paz.
– Tudo bem – concordo. – Eu vou dormir.
Ian me acompanha até o quarto.
A chuva recomeçou e um trovão sacode as janelas.
– É só chuva, Julia. – Ian diz quase divertido ao ver meu susto.
– Eu sei – digo, me deitando.
De repente eu não quero ficar sozinha.
– Ian – eu o chamo – você pode... ficar comigo?
Ele hesita. Isto dói.
– Sei que é só chuva... acho que estou um pouco sensível.
Ele se aproxima e deita ao meu lado. Quase solto um suspiro de
alívio.
E, por um momento, eu me sinto bem. Tranquila e segura. Ian está
comigo. Depois de tanto tempo. E eu senti falta demais de tê-lo assim, perto
de mim.
Outro raio cai e eu me assusto, coloco a mão na barriga, onde o bebê
se mexe inquieto também.
– Está sentindo algo? – Ian pergunta meio apreensivo.
– Não, acho que ela está com medo da chuva também – respondo.
Então ele me surpreende colocando a mão na minha barriga, me
acariciando devagar.
– Shiii bebê, está tudo bem – sussurra e eu o encaro meio surpresa
com seu tom carinhoso.
– Você gosta mesmo da bebê?
– Claro que sim.
– Você ficou bravo por saber que eu estava grávida. Não queria que
acontecesse!
– Você entendeu tudo errado... claro que eu já a amo. É minha filha,
Julia. Eu apenas... Me enfureceu saber que ficou sozinha todo este tempo.
Podia estar aqui, podia estar sendo cuidada, se acontecesse algo...
– Eu pensei em te ligar e contar várias vezes... – murmuro culpada,
me recordando dos meses sozinha. – Eu estava com tanto rancor, tanta raiva.
– Eu sei. Mesmo assim deveria ter me contado. Não precisaria passar
pela gravidez sozinha. Mesmo que não estivéssemos juntos... Ainda havia
Jack.
– Eu sei... sei que fui imatura. O importante é que agora estou aqui –
eu o encaro. – Me desculpe por mantê-lo afastado. Eu não tinha o direito.
– Tudo bem Julia, durma.
– Vai ficar comigo? – Indago sonolenta, fechando os olhos. Meus
dedos tocam sua mão que ainda está na minha barriga, quero que permaneça
ali.
– Eu não vou a lugar nenhum.
– Eu senti sua falta, Ian – confesso então, entre o sono e a vigília –
todos os dias...
E a última coisa que sinto antes de dormir são seus lábios em minha
testa.
Capítulo 20

E Ian realmente não foi a lugar algum. Permaneceu comigo o resto da


noite, velando o sono agitado e desconfortável, de quem está grávida de
quase nove meses.
Meu médico em Londres tinha avisado que seria difícil dormir bem
nas últimas semanas, eu estava constatando que era verdade. Pelo menos eu
não tive mais pesadelos naquela noite. Acho que muito tinha a ver com o fato
de que, todas as vezes que eu despertava, Ian estava do meu lado.
E, quando acordo de manhã com a claridade cinzenta de mais um dia
frio de Beaverton adentrando pela janela e o vejo, me pergunto como foi que
passei tantos meses longe dele.
Era quase como estar morta. Ou hibernando.
Eu acordava todas as manhãs sozinha. Passava os dias sozinha. Ia
para cama a noite sozinha. Só deixando os dias correrem, apenas existindo.
Como se faltasse um órgão vital para eu funcionar completamente.
Agora não faltava mais.
Ele estava ali. Me fitando com os olhos verdes sonolentos. O sorriso
preguiçoso no rosto.
– Tudo bem? – Pergunta com um toque de preocupação na voz.
Eu sorrio de volta. Sinto algo inédito nestes últimos meses.
Quase se parece com felicidade.
E, por um instante, quero guardar aquele momento. Quero me
aconchegar a Ian e sentir seu coração batendo junto com o meu, no mesmo
ritmo. Quero fechar os olhos e simplesmente ser feliz de novo. De verdade.
Infelizmente as coisas não são tão simples. Nada mais será simples.
Há um segredo imenso. Segredo que está me ferindo.
E eu temo o dia em que ele será finalmente revelado.
Tenho medo de como ficará depois.
– Tudo – respondo por fim, jogando as cobertas de lado e me
levantando.
Solto um gemido de dor na coluna, no minuto seguinte, Ian está do
meu lado, com um olhar preocupado.
– Eu estou bem – resmungo com um toque de impaciência na voz.
– Eu quero saber se está sentindo alguma coisa... – Ian explica e eu
me sinto culpada de repente.
– Está difícil, com todo este peso, é normal – respondo mais
brandamente e vou para o banheiro.
Quando saio do quarto, me surpreendo ao ver uma mala com roupas
minhas.
– Tess trouxe hoje de manhã – Ian explica. – Eu pedi para ela trazer
suas roupas ontem à noite.
– Obrigada.
– Vou preparar alguma coisa pra você comer.
Eu sinto meu estômago roncar quando ele sai do quarto, me apresso
em me vestir e vou para a cozinha, seguindo o cheiro de comida.
Devo confessar que também senti muita falta de ter alguém cuidando
de mim como Ian cuidava.
Ele prepara ovos e suco de laranja e eu como tudo com apetite.
– Eu vou subir e tomar um banho enquanto você come.
Ian se afasta e eu sinto certo desconforto. Estamos tão formais.
E como será daqui pra frente? É o que ronda minha mente quando
subo as escadas. Ao passar pelo quarto vazio, eu abro a porta, curiosa, e me
surpreendo ao ver que agora não está mais vazio e tampouco foi convertido
no quarto de hóspedes.
Agora é um quarto de bebê.
Fico ali, com os olhos arregalados e boca aberta, até que Ian surge
atrás de mim.
– Mamãe e Tess são rápidas.
Eu o encaro.
– Jura que elas fizeram tudo isto em tão pouco tempo?
Ele sorri.
– Você não faz ideia do que mamãe é capaz. Desde que retornou e
descobrimos que está grávida, ela vem trabalhando incansavelmente. Acho
que ficará chateada por ter descoberto sozinha. Acredito que tinha planos de
fazer uma grande surpresa.
Eu olho de novo para o quarto todo decorado em tons pastéis com
sentimentos contraditórios.
O que significava aquilo? Que eu ia voltar a viver naquela casa com
Ian?
Havia algo dentro de mim que gritava “sim, por que não?”.
Também havia a parte que se rebelava contra tudo.
Os Callaghan e Ian tinham me enganado. Eu ainda não sabia a
extensão de todas as mentiras. De todos os segredos.
Estremeço de puro medo.
– Quer ir visitar seu pai? – Ian pergunta e eu respondo que vou apenas
colocar um casaco para irmos.
Estou ansiosa para ver meu pai. Saber se ele está melhor.
As notícias são boas. Ele parece mais corado e mais disposto quando
o vejo.
– É verdade que está morando com Ian de novo?
– Nossa, as notícias correm rápido, hein? – Resmungo com ironia.
– É verdade então?
– Não é bem assim – tento explicar. – Ontem ele foi lá em casa, a luz
havia acabado e... – eu me calo, relembrando os acontecimentos da noite
anterior nos quais eu vinha tentando não pensar.
Simplesmente porque eu ainda não estava conseguindo lidar com a
ideia de Chris e eu juntos em algum momento da minha vida. Mesmo estando
mais tranquila sabendo que eu não tinha traído Ian.
Ainda assim, era assustador demais.
– Enfim, ele achou que eu não podia ficar sozinha e me levou para
casa. Foi só – falo meias verdades.
Jack parece satisfeito. Não quero preocupá-lo mais. Ele precisa se
restabelecer, ficar bem de novo.
Depois de um tempo eu me despeço e encontro com Ian para irmos
embora.
No caminho de volta pensamentos sombrios rondam minha mente.
Chris e eu.
Meu estômago embrulha. Tento pensar em todas as possibilidades.
Não consigo enxergar nenhuma plausível. Eu gosto de Chris. Dizer que era
como irmão, seria exagero, como um primo, talvez fosse o mais adequado.
Obviamente eu o vira crescer e se tornar atraente para as garotas. Eu também
o achava bonito. Só nunca pensei nele para mim. Nunca desejei estar com ele
de alguma forma sexual.
Nem mesmo quando ele se declarou e me beijou há tanto tempo, eu
pensei nele dessa forma.
Eu havia mudado, em algum momento naqueles anos esquecidos.
Tenho vontade de perguntar a Ian como foi, mas sinto que não é justo. Talvez
devesse ligar para Chris. Ele teria que me dizer.
A verdade é que ainda não me sinto preparada para abrir a caixa de
pandora dos meus próprios segredos.
Sinto Ian me observar pensativo quando chegamos em casa. Ele diz
que vai preparar o almoço e eu aproveito para ligar para Carla. Conto a ela
sobre estar na casa de Ian.
– Sua casa, Julia – ela me corrige.
– Não é mais.
– Porque não quer. Sabe que o certo é voltar, não sabe?
– Não é tão simples... Quem me dera que fosse.
Eu desligo depois de algum tempo. Durante a conversa inteira eu
queria ter perguntado sobre Chris, me faltou coragem.
Cada vez mais eu sinto que a única pessoa com quem eu posso falar
sobre o assunto é justamente Chris.
Pergunto-me se conseguirei segurar aquela angústia, sem procurá-lo e
exigir respostas. Prevejo muitos problemas se eu for. A começar com Ian.
Ele não ia gostar nada de eu ir atrás do Chris. Não mesmo.
E eu temo estragar a trégua na qual estamos vivendo. Embora essa
trégua seja uma linha frágil e tênue que ameaça se romper a qualquer
momento.
Cai uma chuva fina depois que acabamos de comer e eu me
surpreendo quando alguém bate à porta e vejo Rebecca Callaghan em pessoa.
– Oi, Julia – ela entra e parece receosa. Seu olhar recai para minha
barriga e ela sorri. – Nem acredito que está mesmo esperando um bebê.
De novo me surpreendo com a felicidade de Rebecca por minha
gravidez.
– Como está se sentindo? Ian me disse que é uma menina!
Eu passo a mão na barriga proeminente.
– Sim, foi confirmado. Estou bem... só está sendo difícil estas últimas
semanas, tudo fica mais lento, mais pesado...
Ian aparece e lança um olhar que eu diria ser de advertência a
Rebecca e pega seu casaco.
– Vou dar uma volta, já que está aqui para fazer companhia a Julia.
Ele sai sem mais explicação e Rebecca fica mais tagarela, fazendo
todo tipo de pergunta. E eu acabo me surpreendendo por gostar daquilo, de
ter alguém com quem falar sobre minha gravidez. E ela parece realmente
entusiasmada.
– Sabe que pode contar comigo, não é? – Ela diz de repente,
subitamente séria.
E me parece que está falando de coisas que eu não sei. Mesmo assim
eu assinto apenas.
– Toc toc. – nós olhamos para porta e vemos Tess entrar com duas
enormes sacolas. – Becca, por que não me disse que estava vindo ver a Julia?
Sabia que eu queria vir também!
– Me poupe Tess! – Rebecca revira os olhos. – E o que é isto aí?
Tess a ignora e se aproxima de mim, me abraçando efusivamente
depois senta ao meu lado com as sacolas.
– Olha só tudo que eu trouxe pra você!
Ela começa a tirar roupinhas da sacola, me mostrando tudo.
– Meu Deus, Tess, você comprou tudo isto?
– Claro que sim, vai precisar, não é? Sei que deve ter comprado
alguma coisa, ficaram em Londres, eu suponho.
– Tem razão. Eu não comprei muita coisa e o pouco que comprei
ficou em Londres. De nada adiantaria agora.
– Então eu acertei mais uma vez, olha quanta coisa lindinha...
E ela continua a tirar todas as roupinhas, espalhando tudo.
Então começa com a outra sacola onde há uma profusão de ursinhos.
De repente me assusto ao ver Rebecca se levantando.
– Tess, não acredito!
Tess a encara.
– O que foi?
– Você não fez isto!
– Qual o problema?
– Ei, o que foi? – Pergunto sem entender o motivo da tensão entre as
duas.
– O que está acontecendo? – Ian entra na sala, mirando toda a
bagunça de Tess.
– Oi, Ian – Tess sorri – eu trouxe uns presentes pra Julia! – Ela
começa a colocar tudo nas sacolas.
Rebecca continua tensa, como se fosse explodir. Ela troca um olhar
com Ian.
– Vocês já cansaram a Julia demais, melhor irem embora.
– Sim, nós já vamos. – Rebecca fala, ajudando Tess a guardar tudo.
Suas mãos estão trêmulas e eu me pergunto qual seu problema. – Vamos
levar essas coisas embora...
– Não – eu falo. – Deixe aí. Não tenho nada pra fazer eu gostaria de
arrumar tudo no quarto. Se não se importam.
Os três trocam olhares e eu me sinto excluída da conversa silenciosa.
– Tudo bem, deixe – Ian diz. – Não há realmente problema algum,
não é?
As duas saem e Ian volta depois de fechar a porta.
– O que aconteceu aqui? – Pergunto intrigada.
– Nada... só a Tess e sua falta de noção – ele responde distraído. –
Quer comer alguma coisa?
– Não – eu me levanto. – Vou dormir um pouco, estou realmente me
sentindo cansada.
Ele me acompanha até o quarto e puxa as cobertas me cobrindo. Seus
lábios tocam minha testa.
– Descanse.
Eu durmo imediatamente.
E sonho.

No meu sonho, eu o escuto chorando. É um choro tão sofrido que


parte meu coração e eu me despedaço. Eu o procuro, preciso encontrá-lo, por
mais que eu corra não o encontro. Apenas escuto o choro.
O choro do meu bebê. E eu nunca, por mais que eu tente, nunca
consigo encontrá-lo.
Ele está perdido pra mim.
Acordo assustada. Estou sofrendo. Minha mão está em minha barriga,
protetoramente. Respiro rapidamente várias vezes, acalmando as batidas
desenfreadas do meu coração.
Está tudo bem. Minha bebê continua ali. Em meu útero. Protegida
dentro de mim.
Minha pequena London.
O nome surge em minha mente repentinamente e serve para me
acalmar.
Sim, é um nome lindo. Diferente. Remete a um lugar perfeito.
Levanto-me querendo contar a Ian.
Abro a janela, e a noite está caindo lentamente.
Então eu o vejo. No jardim das pequenas rosas.
Ele está de costas pra mim e eu não consigo ver sua expressão. Penso
em ir lá, está tão frio que decido esperá-lo ali mesmo.
E, já estou fechando a cortina quando noto alguém entrando no jardim
e caminhando na direção dele. Franzo a testa ao reconhecer Chris.
O que ele está fazendo aqui? Fico tensa imediatamente quando ele
chega ao lado de Ian. Me preparo para a cena. Uma discussão com certeza.
Chris não deveria ter vindo. Ian ia explodir. Iria ter briga.
Minhas previsões se mostram infundadas ao vê-lo se afastando de
Chris e deixando o jardim. Respiro aliviada.
Desço as escadas para esperá-lo, alguns minutos se passam e ele não
aparece.
Será que foi para a casa dos pais?
E Chris, será que continua no jardim ou foi embora?
Talvez eu possa ir até lá, falar com ele. Se Ian me vir com Chris, pode
tirar conclusões precipitadas.
Suspirando pesadamente, eu desisto de sair e decido procurar algo
para ler. Ao checar a estante, eu me surpreendo ao encontrar um CD.
Eu já o tinha visto antes. Era o CD que eu pensei que Ian tivesse feito
para um antigo amor. Só que a ironia era que aquele amor era eu mesma. Eu
quase podia rir agora do papel de idiota que eu tinha feito. Não havia
ninguém no passado de Ian.
Sempre fui eu.
Era quase reconfortante este pensamento.
E, olhando direito agora, não havia apenas um CD e sim dois, eu não
tinha reparado antes.
Curiosa, eu me aproximo do aparelho de som e coloco o segundo CD
pra tocar.
Eu reconheço a música. É aquela que Ian tocava quando eu estive na
casa dos Callaghan pela primeira vez. Ou ao menos achava naquela época
que era a primeira vez.
Ainda me soava muito triste. Ainda trazia uma dor desconhecida para
dentro de mim.
Sento no sofá, sabendo que posso desligar o som, tirar aquela música
triste, mas incapaz de fazê-lo. Vejo as sacolas com as coisas de Tess e
começo a revirá-la. Ali estão as roupinhas. Todas de uma marca famosa e
muito cara.
E depois a sacola com os ursinhos.
Um pequeno sorriso dança em meus lábios. São realmente fofos.
Eu já estou terminando de tirar todos da sacola, quando algo me
chama atenção em um deles.
Há um cartão junto, amarrado por um pequeno laço creme em seu
pescoço.
Eu o abro curiosa.
“Para Mason, com amor, da tia Rebecca.”
Algo estala dentro de mim. Como quando ficamos na mesma posição
por muito tempo e nos atrevemos finalmente a nos mexer, sentindo os ossos
fazendo barulho.
Só que não é nenhum osso do meu corpo.
É meu cérebro.
Perco o fôlego por alguns instantes. À deriva dentro da minha própria
mente.
Me obrigo a voltar ao presente. Olho o papel em minhas mãos.
Tento encontrar o sentido.
É um bilhete de Rebecca, obviamente. Para alguém chamado Mason.
E ela assinava como... tia?
Quem era Mason e por que Rebecca se dizia tia dele?
Meu coração começa a bater num ritmo desconhecido. Assustado.
Meu cérebro continua a estalar. E, de repente eu entendo por quê.
Eu já ouvi aquele nome antes... onde?
Então outro estalo.
Eu largo o cartão e me levanto. A música continua a tocar enquanto
eu sigo cegamente na direção da estante.
Meus dedos percorrem as lombadas dos livros.
Eu acho o que nem sabia que estava procurando quando o encontro.
Uma edição antiga de Auden. A página está marcada.
Há uma foto dentro. De um bebê.
Eu sei que aquele é Mason.
O tempo para. Observo a mim mesma com a foto na mão, como se
estivesse fora do meu corpo.
– Julia?
Levanto o olhar e encontro Ian.
Ele me encara sombrio.
Assustado.
Sim, há medo em seu olhar.
– Quem é Mason? – Não reconheço minha própria voz.
Seu olhar se choca com o meu e eu vejo dor.
Arquejo.
Os estalos começam a se repetir, como se fossem pequenas peças de
um quebra-cabeça se encaixando...
Eu começo a tremer.
– Julia. – Ian vem em minha direção, as mãos estendidas, eu me
afasto.
Do mesmo jeito que eu sabia o que procurava na estante, eu sei o que
procuro agora, quando, ignorando o chamado de Ian, abro a porta e saio para
a noite que cai.
Caminho rapidamente pelo nevoeiro. Entro no jardim. O jardim em
que Rebecca chorava.
O jardim em que Jill plantou as pequenas rosas.
Eu me ajoelho exatamente onde Rebecca estava.
Arranco com minhas mãos as flores do meu caminho.
E então eu vejo.
A lápide.

Mason Anthony Callaghan.


Filho amado.

A data era de três anos antes.


Meses antes do meu acidente.
– Julia... – escuto a voz cheia de horror e dor de Ian atrás de mim.
E tudo se revela por fim.
Era isto que escondiam...
Meu bebê. Meu filho.
Morto.
Capítulo 21

Dor. Morte. Mentiras.


Eu mal posso respirar.
Eu mal posso pensar.
Minha mente dá voltas, num looping desordenado.
Meus olhos olham fixo para a lápide e eu vejo a mim, parada no
mesmo jardim num dia cinzento de chuva...

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma


Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o mar e livre-se da floresta
pois nada mais poderá ser bom como antes era.

Alguém está recitando Funeral Blues.


É Ian. Seu olhar encontra o meu. Chama por mim.
Eu desvio o rosto. Não consigo compartilhar minha dor com ele.
Em vez disto, fixo meus olhos no pequeno caixão baixando na
sepultura.
Volto ao presente com um arquejo.
– Deus...
É demais pra mim. Eu não quero continuar a lembrar, apesar de saber
que as comportas foram abertas.
E as lembranças invadirão minha mente a qualquer momento.
Eu não quero. Eu não posso. Meu bebê está morto. Somente esta
constatação causa um estrago catastrófico dentro de mim.
Como se um buraco negro sugasse todas minhas energias, levando
tudo o que ainda havia de bom.
Deixando apenas uma imensa dor no lugar.
É insuportável.
– Julia...
Sinto os dedos frios de Ian em meu ombro e o encaro.
– Ele está morto...
– Sim...
– Era isto que escondiam de mim... o tempo inteiro...
– Julia, por favor... vamos sair daqui... precisa se acalmar...
– Acalmar? – De repente eu me revolto.
A onda de raiva sobe como bílis amarga por minha garganta e eu
grito.
Eu agrido.
Meus punhos em Ian. Que por um momento não reage, de tão
abismado com minha reação.
– Como podem ter feito isto comigo? Como puderam escondê-lo de
mim? Era meu filho... meu... Oh meu Deus... Mason... Ele morreu... morreu.
Me deixo cair sobre seu peito, soluços sofridos me rasgando por
dentro.
Não há mais forças para lutar. Eu só quero morrer também.
Mal vejo Ian me pegando no colo.
– O que está acontecendo? Eu estava indo embora e a ouvi gritando.
Acho que é a voz de Chris que escuto.
– Ela lembrou.
– Lembrou? Meu Deus... Como ela está? Julia...
Acho que ele tenta se aproximar.
– Vá embora, Chris – Ian pede, enquanto me leva pra dentro.
Acho que Chris fala algo, eu não escuto mais.
Eu me desligo da realidade. Minha mente está em outro lugar
Em outro ano...
Quatro anos antes

Eu acordei naquela manhã com uma dor de cabeça terrível e o


estômago embrulhado. Mal conseguia abrir os olhos sem gemer. Era como se
todo meu cérebro ainda estivesse numa montanha russa.
Ao finalmente abrir os olhos, focalizei um quarto que definitivamente
não era o meu. Sentei-me rapidamente, me arrependendo em seguida, porque
as pontadas no meu cérebro pioraram.
Olhei em volta assustada e quase relaxei ao perceber que não era um
quarto estranho.
Era o quarto de Chris.
Mas... Que diabo eu estava fazendo ali? Tentei me lembrar do que
aconteceu na noite passada. Estávamos numa festa na fogueira. Chris roubou
uma garrafa de whisky. Disse que era pra comemorar por eu estar indo pra
faculdade em poucos dias. Seria uma despedida. Obviamente, se considerar a
ressaca que estava sentindo, nunca deveria ter deixado Chris me convencer a
beber. Afinal, eu nunca tinha bebido antes.
Então meu cérebro entorpecido tentou se lembrar de mais... Me
lembrei que estávamos rindo e contando velhas histórias, que minha cabeça
rodava, mas que era bom... e então Chris está me beijando.
Soltei uma exclamação horrorizada e surpresa.
Chris e eu nos beijando não era algo comum, definitivamente. Mas
sim, eu me lembro bem desta parte. Ele estava me beijando e eu estava
gostando.
Ou eu acho que estava, porque não o empurrei, nem quando ele me
deitou no cobertor...
E então tudo se perdeu.
Oh Deus! Oh Deus...
E eu não me lembrava de mais de nada, mas estava no quarto dele. E
a dúvida se transformou em certeza quando percebi que estava nua.
Fechei os olhos, contendo a ânsia e o terror.
Como podia ter feito uma bobagem daquelas?
Transar com Chris, meu melhor amigo? E o que era pior, nem me
lembrar direito do que rolou!
Devia ser o que chamavam de amnésia alcoólica.
Fiquei ali, com os olhos fechados, amaldiçoando a mim mesma, até
que escutei a voz da Senhora Wilson em algum lugar.
– Droga! – Praguejei e saí da cama. Não foi difícil achar minhas
roupas eu as vesti rapidamente, tentando ficar apresentável.
A vontade que eu tinha era de sair pela janela, mas sabia que seria
infantil e ridículo.
Provavelmente ela já sabia que estava ali. Mesmo porque não era a
primeira vez que eu dormia na casa deles. Eu e Chris éramos amigos há
muitos anos. Talvez eu tivesse sorte e ela nem desconfiasse dos verdadeiros
motivos de eu estar ali.
Saí do quarto quase sorrateiramente e encontrei Chris.
Ele sorriu para mim meio sem jeito.
– Bom dia.
– Oi – murmurei, sem conseguir olhá-lo direito.
Como é que eu ia encará-lo agora?
Sua mãe estava à mesa do café.
– Bom dia, Julia, quer tomar café?
Eu fiquei vermelha, sem saber o que ela estava pensando. Pelo seu
sorriso, acho que não desconfiava de nada e me senti aliviada.
Porque, se meu pai ficasse sabendo... Não queria nem imaginar!
– Não, obrigada, acho que vou embora... – eu olhei pra Chris. – Será
que podemos dar uma volta antes?
– Claro!
Nós saímos da casa e por um momento ficamos em silêncio até que eu
não aguentei mais.
– Por favor, diz pra mim, que eu estou imaginando coisas e que a
gente não... não...
– Transou?
Meu rosto ficou vermelho escarlate.
– É...
– Bom, não posso dizer o que me pede.
– Merda!
– Julia, fique calma. Não é motivo pra drama... Aconteceu.
– Não era pra ter acontecido!
– Por que não?
Eu podia enumerar várias razões.
A mais contundente era que eu não amava Chris. Não daquele jeito
que eu acreditava que precisava amar alguém para tomar a decisão de perder
a virgindade.
– Eu estava bêbada! Droga, eu nem lembro direito o que aconteceu!
– Não lembra? – Chris parecia ofendido.
– Desculpa, mas... sim, eu não faço ideia de nada... eu só lembro da
gente se beijando... alguns flashes... e de acordar nua na sua cama!
– Aconteceu, Julia – ele estava sério agora. – E eu estou feliz que
tenha acontecido.
Eu mordi meus lábios com força. O que podia dizer? Havia uma parte
de mim que queria estar contente também. Que queria que tivesse sido
importante e inesquecível.
No entanto eu só podia lamentar o fato de ser fraca em relação ao
álcool.
E por ter transado com meu melhor amigo.
– Chris... eu realmente acho que não deveria ter acontecido.
– Julia, eu...
– Nós somos amigos! Algo assim não poderia acontecer nunca!
– Você sabe que eu sempre quis ser mais que seu amigo...
– Vamos começar de novo? Chris, eu não sou apaixonada por você!
Desculpa, sei que te magoou, nunca deveria ter deixado acontecer! Agora
você vai ficar pensando que temos chance de ser algo mais...
– Eu acho sim. Nós daríamos certo juntos, Julia. Você que está
fugindo! Agora que ficamos juntos, por que não deixamos as coisas rolarem?
– Não, Chris, não dá...
– Julia... – ele tentou tocar meu rosto, eu o afastei.
– Por favor, não torne as coisas mais difíceis! Eu vou pra Corvallis
em poucos dias... Ficarei fora a maior parte dos próximos quatros anos! Nem
sei se volto pra cá depois que me formar...
– Eu esperaria por você.
– Não, não espere. As coisas não vão mudar Chris.
– Julia...
– É sério. Vamos... esquecer o que aconteceu – Pedi quase
desesperada. – Talvez não seja justo o que estou pedindo, mas meus
sentimentos continuam os mesmos. Eu gosto de você como amigo. Transei
com você porque bebi demais. Foi um erro.
Eu senti meu peito apertando ao ver o rosto magoado de Chris, porém
não tinha como ser de outro jeito.
Ele respirou fundo.
– Tudo bem, eu entendo...
– Me desculpe...
– Não, não peça desculpas, você se arrependeu, eu não. Acho que vou
guardar de recordação como a única coisa que tive de você, não é?
– Chris...
– Vem, vou te levar embora.
Eu subi na moto e ele me deixou em frente à minha casa. Então eu me
lembrei de algo.
– Chris, ontem nós... nós usamos proteção, não é?
– Claro, claro...
Eu respirei aliviada. Pelo menos isto!
Eu estava me afastando quando ele me chamou.
– Jules?
– Sim?
– Somo amigos ainda, não somos?
Eu sorri.
– Sim, pra sempre.

Duas semanas depois

Ele me tirava o ar.


Mal podia pensar direito quando estávamos juntos.
Quando ele me encarou com aqueles olhos verdes tão intensos e
perguntou se estava tudo bem, eu o encarei, respirando rápido. Meu coração
disparado e alucinado. Meu corpo trêmulo e pronto.
Meus dedos tocaram seu rosto, seus cabelos perfeitos.
Eu precisava dele, como nunca precisei de nada antes na minha vida.
Sei que esperei por aquele momento sem nem saber. Desde o primeiro
olhar por entre as estantes na livraria. Por todos os dias que passaram desde
então. Sempre juntos. Cada vez mais horas, cada vez mais incapaz de ficar
longe.
O primeiro beijo na mesma livraria onde nos conhecemos, me tirando
o chão.
Até aquele momento, não muito tempo depois.
Com nós dois nus. Em meu quarto da universidade. Para que esperar
mais se eu sabia que seria inevitável?
Queria ter me guardado para aquele momento, porque era aquele que
iria ficar na minha lembrança para sempre.
Minhas memórias mais preciosas começariam com nós dois juntos.
– Sim... – murmurei, o enlaçando com meu corpo. Ele gemeu. Eu
aqueci.
Ele ainda se conteve.
– Julia... tem certeza?
– Ian... eu te disse, não vai me machucar.
Ele sabia que eu já fiz isso antes. Sem entrar em detalhes, afinal, nem
eu seria capaz de contar algo que nem sequer me lembrava, eu disse que não
era mais virgem.
Ian não fez perguntas.
Acho que estávamos muito além desse tipo de pergunta.
Obviamente ele também não era virgem. Também não me interessava
quem passou em sua vida antes de me conhecer, embora algum tempo depois
ele tenha me contado que teve duas namoradas, uma no colégio e outra no
primeiro ano da faculdade.
Isto não interessava mais agora. Éramos apenas nós dois.
– Por favor, Ian... – pedi num sussurro e ele veio.
Finalmente!
***

Estávamos na casa dos pais de Ian em Portland para o feriado de


Natal. Eu passei a manhã inteira vomitando.
Primeiro achei que fosse culpa do jantar da noite anterior, misturado
com o nervosismo de estar na casa dos pais do meu namorado pela primeira
vez.
De repente comecei a repensar em todas as vezes que me senti mal
naquela semana. E estava com a menstruação atrasada também.
Nem lembrava há quanto tempo na verdade, estava tão deslumbrada
com meu namoro com Ian que coisas práticas tinham me fugido totalmente
da mente nos últimos tempos.
E ao me lembrar que, da primeira vez que eu e Ian transamos, não
usamos preservativo.
Ian me encarou chocado quando eu disse que desconfiava que estava
grávida.
– Eu estou enjoando e sentindo tontura. E também atrasada.
Estava mortificada.
Amedrontada.
Ian, contrariando minhas expectativas achando que ele fugiria
correndo ou ficaria muito bravo comigo, apenas se aproximou e acariciou
meus cabelos.
– Vamos fazer um teste quando voltarmos pra faculdade amanhã.
– E se for verdade? E se eu estiver grávida? – Minha voz não passava
de um sussurro.
– Vamos pensar depois. – Ian respondeu simplesmente.
E na manhã seguinte meus medos se tornaram reais. Eu estava
realmente grávida e confirmei com Ian depois de fazer o teste.
– E agora? – Perguntei em choque.
Ian se aproximou e segurou minhas mãos.
– Casa comigo?
– O quê? – eu parei de respirar.
Ele sorriu.
E eu sabia que ele estava falando sério.
E sabia que eu ia dizer sim.
E já não existia nenhuma preocupação na minha mente.

***

Estávamos na clareira em Beaverton o sol banhava meu rosto.


Ian acariciou minha barriga.
– Não vamos mais subir aqui.
– Por que não?
– Está ficando perigoso andar deste jeito, pode não ser bom para o
bebê.
Eu rolei os olhos.
– Só estou de seis meses!
– Com esta barriga enorme, mal conseguiu subir hoje, Julia.
– Gosto daqui. Tem sol. É nosso esconderijo – eu o beijei e ele riu.
– Eu ainda não decidi se foi uma coisa boa minha família resolver se
mudar pra cá.
– Seus pais amaram a cidade!
– Eu sei. Minhas irmãs é que não curtiram muito.
– Jill reformou a casa de hóspedes para nós. Não seja chato!
– Para ficar nos vigiando!
Eu ri da sua rabugice e o beijei.
O bebê se mexeu e eu segurei a mão de Ian levando-a a minha
barriga.
– Mason está dizendo que gosta daqui – falei e ele riu, acariciando
minha barriga.
– Então decidiu o nome?
– Rebecca escolheu – disse.
– Rebecca me dá medo. Acho que ela vai roubar o bebê de você
quando nascer, de tão empolgada que está.
– Ela é legal, não fala assim.
Ele deu de ombros e me puxou.
– Vamos descer. Senão nos atrasaremos para o jantar com seu pai.
Nós descemos devagar e eu tinha que concordar com Ian que estava
realmente difícil. Me cansava com muita facilidade.
Fomos direto para casa do meu pai e percebi Ian ficar tenso quando vi
o carro de Chris parado em frente a minha casa.
Ian não gostava de Chris. Mesmo eu garantindo que não havia
motivos para ciúmes. Nós descemos e Chris estava se despedindo do meu pai
na porta quando nos viu.
Ele ficou tenso também.
Eu mal o vi depois do meu casamento. Temia que nossa amizade
nunca mais fosse a mesma. E me perguntava se foi porque me casei ou por
causa daquela noite meses atrás.
– Oi, Chris.
– Oi, Jules... Ian.
Ian só acenou com a cabeça.
– Já está indo? – Perguntei.
Havia uma parte de mim que queria que as coisas fossem como antes.
Que desejava que Ian e Chris fossem amigos.
– Estou.
Ele se afastou e eu apertei a mão de Ian.
– Podia fazer um esforço para ser simpático com ele – reclamei.
– Ele também não faz a menor questão de ser legal comigo, Julia.
Eu não falei nada. Me perguntei o que Ian diria se eu contasse que
perdi minha virgindade com Chris. Com certeza seria um problema enorme,
ele já detestava Chris apenas por ser meu amigo, se descobrisse então...
Eu estremeci de medo.
Não, Ian jamais poderia saber.

***

Meu pesadelo começou quando ele nasceu antes da hora.


Eu estava dormindo quando senti as primeiras pontadas de contração.
Abri os olhos ofegante, mirando o teto. Ian estava ressonando ao meu
lado. A dor passou depois de um instante e eu achei que não fosse nada.
Ainda não era hora.
Mas elas voltaram e depois de algum tempo foi impossível ignorar.
Acordei Ian.
– O que foi? – Perguntou sonolento.
– Acho que o bebê vai nascer...
– Ainda faltam semanas, Julia.
– Eu sei! Mas estou tendo contrações!
Ian me levou ao hospital imediatamente.
E, Mason Antony Callaghan, nasceu algumas horas depois.
No começo tudo parecia bem. Mason, apesar de ter chegado um
pouquinho adiantado, parecia perfeito. Um garotinho lindo de olhos e cabelos
castanhos como os meus.
– Ele se parece com você – Ian dizia.
– Ele é muito pequeno para parecer com alguém, Ian!
Depois que finalmente os Callaghan e meu pai foram embora, nós
tivemos um pouco de sossego. Sentei na cadeira perto do berço e tentei
amamentá-lo, porém Mason não pegou o meu peito.
Isto me angustiou.
– Não consigo! – Reclamei e Ian o tirou do meu colo.
– Não fique angustiada com isso, Julia.
Os dias passaram e Mason continuou com dificuldade até de mamar
na mamadeira.
E chorava demais.
Um dia, antes de acordar com o choro dele, eu tive um sonho.
Chris estava me beijando. Estávamos na fogueira. O choro de Mason
me acordou e eu corri para seu quarto, antes de acordar Ian, que tinha que ir
pra aula na manhã seguinte.
Segurei seu corpinho contra meu peito até que ele parasse de chorar.
Seus olhos focalizaram os meus e eu sorri.
Ian tinha razão, acho que ele se parecia mais comigo, com seus
cabelos castanhos quase negros...
De repente algo me angustiou. E eu não sabia o que era.
Eu o coloquei no berço e fui para sala. Saí na sacada do apartamento e
olhei a noite escura. E finalmente deixei minha mente vagar para o real
motivo do que me atormenta.
Mason nasceu antes da hora. E não se parecia nada com Ian.
Tem cabelos e olhos escuros. Como os meus.
Como os de Chris, sussurrou minha consciência.
Eu perdi o ar por instantes.
Não, eu estava delirando.
Claro que Mason era filho de Ian. Eu fiquei com Chris só uma vez.
Nós usamos preservativo. Ou era o que ele disse, porque não me lembrava.
– Julia?
Eu olhei para trás e vi Ian.
– O que está fazendo aqui?
– Mason acordou.
– Por que não me acordou?
– Ele já dormiu de novo.
– Então vem dormir.
Ele me puxou e eu fui.
Tentei esquecer meus temores.
No entanto, eles já estavam... assombrando minhas certezas.

***

Mason passou mal pela primeira vez na manhã seguinte.


Estava sozinha com ele, de novo tentando fazê-lo mamar, quando de
repente percebi que não estava conseguindo respirar direito e, apavorada, eu
corri para o hospital.
Mason foi diagnosticado com um problema cardíaco grave.
– É o seguinte, entre os ventrículos do coração existe um septo que,
quando o coração é normal é como se fosse uma parede – explicou a médica
para mim e Ian. – Nessas crianças surge um buraco nessa parede que passa a
ter uma ligação entre os dois ventrículos.
– E o que vai acontecer? – Perguntei.
– Os sintomas mais comuns são cansaço e dificuldade para mamar.
Podem ocorrer problemas pulmonares e respiratórios, como ocorreu hoje.
– E qual o tratamento? – Ian questionou.
– Existe uma cirurgia para corrigir que não se aplica a todos os casos.
De qualquer maneira Mason é muito novo para sabermos se é realmente
necessário. Então vamos medicá-lo e ficar de olho.
Os meses seguintes foram tensos. Mason às vezes parecia bem, outras
ficava muito doente. Quando ele estava com três meses, nós o internamos
com infecção pulmonar grave.
Mason nunca mais saiu do hospital.
Me lembrar daqueles meses é a pior sensação do mundo.
Relembrar a dor, a incerteza, a esperança de que ele melhorasse e
ficasse bom, era quase como voltar a sentir tudo de novo. E, em meio a toda a
angústia com a doença de Mason, outra coisa me atormentava.
Cada vez mais desconfiava de que Mason podia não ser de Ian.
E simplesmente não sabia como lidar com aquela possibilidade.
Foi Ian quem chorou comigo no primeiro ultrassom. Foi ele que
cortou o cordão umbilical quando Mason nasceu. Foi com Ian que
compartilhei as angústias e as alegrias de ter um bebê. E era ele que agora
sofria comigo.
Ele era pai de Mason em todos os sentidos, não era?
E daí se não fosse biologicamente?
Mesmo assim a incerteza me dilacerava.
Se fosse verdade, se Mason fosse filho de Chris, o que aconteceria?
Como é que eu poderia contar a Ian? Ele sofreria demais.
E Chris, como ficava naquela história? Eu não sabia o que fazer.
Até que um dia eu não consegui mais aguentar a dúvida e pedi um
teste de DNA.
Naquele mesmo dia, Mason entrou em estado crítico. Com pneumonia
grave, ele começou a ter convulsões. E morreu naquela noite.
Ian estava comigo.
Assim como todos os Callaghan e meu pai.
Das horas após sua morte eu me recordaria muito pouco... ficou
somente a sensação horrível da dor e do vazio.
Que nunca seria apagada.
Eu quis levá-lo para Beaverton. Ele nunca esteve lá em vida, nenhuma
vez.
Chegar ao chalé e ver o quarto ainda intocado preparado por Jill
acabou um pouco mais comigo. Mason foi enterrado no jardim dos
Callaghan.
Uma parte de mim foi enterrada com ele.

***

As coisas ficaram estranhas depois disto.


Me lembro de quando vi Chris. Foi logo depois do enterro.
Condolências e olhares de pena só serviam para me deixar pior. E eu
só queria ir embora. Então Chris se aproximou e me abraçou.
Eu chorei e me lembrei.
Aquele bebê enterrado podia ser dele também.
Isto serviu para aumentar meu desespero.
– Vai ficar tudo bem, Jules – ele disse contra meus cabelos.
Chris não tinha razão. Nada ia ficar bem. Nunca mais.
E eu que achava que as coisas não podiam ficar piores.
Elas podiam.
Eu pedi pra voltar pra Corvallis no dia seguinte.
Queria retomar minha vida. Ou tentar. Ian concordou. Ele sofria tanto
quanto eu, embora parecesse tão mais forte. Ou agora eu sei que ele tentava o
ser por mim.
Eu chorava todas as noites. Tinha pesadelos todas as noites.
Ele me abraçava e dizia, como Chris, que tudo ia ficar bem.
Eu tive certeza que nada ficaria bem quando recebi o resultado do
teste de DNA.
Mason não era filho de Ian.
Naquele dia a dor parou de ser apenas um sentimento ruim. Ela se
tornou parte de mim.
Os dias passavam iguais.
Vazios.
Sem sentido.
Eu ia para a faculdade e estudava intensamente para esquecer o resto.
Ian também estudava bastante. Nós nos víamos à noite na mesa de jantar
como um casal de meia idade sem assunto. Eu não conseguia mais encará-lo
sem pensar na minha culpa.
Na minha mentira.
Eu podia contar a ele? Como?
Como é que eu ia contar que Mason, nosso amado filho morto, na
verdade era do meu amigo que ele odiava? Isto acabaria com nosso
relacionamento.
O que eu não percebi, foi que foi justamente o que nos matou, afinal.
Nós nunca falávamos sobre Mason. Sobre a dor.
Sobre nós.
Estávamos pouco a pouco nos tornando estranhos.
– Julia, fale comigo – ele pedia às vezes contra meus cabelos, depois
de fazermos amor, o que era cada vez mais raro.
Eu não conseguia mais me entregar sem pensar que eu era uma farsa.
Que Ian não imaginava com quem estava casado.
Eu dizia que estava tudo bem. Que tudo ia ficar bem.
Minhas próprias promessas vazias.
Susan apareceu algum tempo depois.
Ela era a amiga linda dos Callaghan obviamente louca pelo Ian. Eu
cheguei em casa depois de um dia puxado na biblioteca e ouvi um riso. Por
um momento parei observando a cena. Ian estava rindo. Há quanto tempo que
eu não o via nem mesmo sorrir?
Ele me viu e ficou sério. Grave.
– Oi, Julia.
A moça com ele se virou e me mediu.
– Esta é Susan Willians. Sua família é amiga da minha.
– Muito prazer, Julia – ela disse sorrindo. Eu senti sua inveja como
pequenas punhaladas.
Não parecia maldade. Ela apenas não conseguia evitar.
– Oi.
– Susan está de passagem. Ela nos convidou pra jantar.
– Oh... infelizmente eu não posso, tenho um grupo de estudo – menti.
– Ah, que pena. – Susan deu de ombros, eu encarei Ian.
– Deve ir, Ian.
– Não, eu...
– Eu insisto que vá, por favor.
Percebi seu olhar confuso, mesmo assim ele foi.
Quando ele voltou, eu já estava deitava.
– Julia, está acordada? – Senti seu toque deslizando por meu braço,
seus lábios em meu ombro.
– Sim, como foi o jantar com Susan? – Perguntei, me virando.
– Foi bom. Você deveria ter ido.
– Ela gosta de você, sabe disto, não é?
– Claro que não – apesar de negar ele sabia sim.
Assim como eu sempre soube de Chris.
Será que no fim das contas Ian teria ficado com Susan, se eu não
tivesse engravidado? Seria perfeitamente possível.
Talvez as coisas estivessem totalmente fora dos eixos em nosso
universo.
– Não está com ciúme da Susan, não é? – Ele perguntou sondando
meu rosto.
– Não – menti também.
– Não há motivos – ele me beijou.
Eu me permiti esquecer de tudo por um momento.
Deixei que ele entrasse em mim. Deixei o prazer dominar minha
mente.
E chorei quando a dor voltou depois de tudo.
No dia seguinte, quando Ian acordou, eu estava de malas prontas.
Ele pediu. Implorou. Brigou.
No fim, não pôde me impedir de ir embora.
Eu voltei para meu antigo dormitório. Continuei estudando feito
louca. Me inscrevi novamente para terminar o curso numa universidade da
Inglaterra.
Ian e eu assinamos o divórcio algum tempo depois. Ele não mais
pediu, implorou ou brigou. Eu estava entorpecida demais para sentir dor.
Chris me ligou quando soube da minha separação. Não sei se pensou
que teria uma chance agora que eu estava solteira. Ele não poderia estar mais
enganado se fosse assim, nada foi dito relacionado a este assunto.
– Eu sinto muito Jules, de verdade...
– Eu sei.
– Por que não volta pra casa? Passe um tempo aqui...
– Eu vou pra Inglaterra no próximo ano – comuniquei.
Chris não disse nada.
Eu voltei pra casa naquele verão. Para a casa do meu pai.
Ian não. Não fazia ideia de onde ele estava, era melhor assim.
Eu pude visitar Mason. E sofrer um pouco mais.
Chris me procurou, ainda andava de moto. Eu lhe dei mil desculpas
nos dias que se seguiram. Não queria sair e me divertir. Eu nem queria que as
coisas fossem como antigamente. Eu apenas existia agora.
Um dia meu pai deu um basta.
– Chega, Jules, você está me preocupando seriamente.
– Pai, não começa!
– Por favor, por que não sai com o Chris?
E foi assim que eu aceitei sair com Chris.
Nós subimos na moto, caminhamos pelo bosque. Eu não conseguia
sentir nada. A não ser o peso do meu segredo. Ian estava me esperando em
casa quando voltei.
Claro que viu Chris. E foi como uma tempestade anunciada.
– Quer que eu fique? – Chris indagou, eu pedi que fosse embora.
– O que quer aqui, Ian? – Perguntei cansada.
– Está saindo com ele?
– O quê?
– Foi por causa dele que pediu a separação? Pra ficar com ele?
Deus, que diabos ele estava falando?
– Acredita que eu me divorciei de você porque queria ficar com o
Chris?
– Eu não sei me diz você!
Eu respirei fundo. Não queria discutir com Ian. Só queria que ele
fosse embora e me deixasse em paz. Eu não queria aceitar que sentia falta
dele.
Que doía vê-lo de novo.
Que eu queria me aproximar e me encostar em seu peito e pedir que
ele consertasse tudo o que eu havia estragado.
Então eu ataquei.
– Que direito tem de me questionar? Não somos mais casados!
– Por isto seu amigo voltou a rondar, não é? Aposto que ele
comemorou bastante nossa separação.
– Não coloque o Chris nisto!
– Quer que eu pense o quê? Eu vim ver você. Vim saber se estava
bem e a encontro na garupa deste cara!
– Quer saber, qual o problema? Você mesmo falou, não somos mais
casados! Aposto que você também está saindo com outras pessoas.
– O que quer dizer? Que está saindo com Chris?
– E você está saindo com alguém?
– Não, parece que fui um idiota, não é? Eu te dei espaço. Te dei
tempo. Achei que poderíamos conversar como dois adultos. Que você podia
estar melhor... Pelo visto está melhor pra outra pessoa agora. Acho que
esperei demais.
– Ian...
– Transou com Chris?
– O quê?
– Apenas me diz a verdade, Julia. E eu vou embora. Você transou
com o Chris?
– Sim – murmurei.
Não era uma mentira. Ele só não sabia quando.
Por um momento tive vontade de dizer a verdade. Que eu transei com
o Chris antes de ir pra faculdade e engravidei. Me faltou coragem.
De alguma maneira eu preferi que Ian me odiasse por achar que eu
estava com outro cara, do que tirar Mason dele. Ou ao menos a sua memória.
Ian me deu as costas e foi embora.
De quantas maneiras um coração podia ser quebrado?
Eu tive pesadelos horríveis nas noites seguintes. Sempre com Mason.
Sempre o escutava chorando e não conseguia encontrá-lo.
E comecei a achar que ele morreu por minha culpa. Devia ser um
castigo.
Chris apareceu depois de uns dias. Eu estava pior que antes.
– Quer dar uma volta?
Eu o encarei cheia de angústia. Não conseguia mais guardar aquele
segredo.
Chegara a hora de testar minha amizade com Chris.
– Sim, vamos dar uma volta.
Eu subi em sua moto e nós seguimos pelas estradas de Beaverton e eu
sabia aonde queria ir quando passamos em frente ao penhasco.
– Pare aqui – pedi.
Ele concordou e eu caminhei até a beira do desfiladeiro.
Observei a cachoeira. As águas escuras lá embaixo. Senti o vento nos
meus cabelos.
– Jules, sai da beirada – Chris pediu, se aproximando.
Eu me virei e o encarei.
– De quantas maneiras um segredo pode ferir?
– Do que está falando? – ele me encarou confuso.
– Chris... Mason não era filho do Ian – as palavras ganharam
liberdade através da minha boca.
– Quê? – Ele estava mais confuso.
– Quando nós ficamos juntos, você mentiu.
– Como assim... Não estou entendendo, Julia!
– Quando nós transamos, disse que usou preservativo. Era mentira.
Ele desviou o olhar, culpado.
– Eu não queria preocupá-la... – Então de repente ele entendeu e me
encarou em choque. – Está dizendo que...
– Sim. Mason era seu filho.
– Julia... Deus do céu! O que está falando? É absurdo! Você casou
com o Ian! Você teve um filho dele!
– Eu também achava... eu estava errada. Mason tinha cabelos e olhos
escuros...
– Isto não quer dizer...
– Eu fiz um teste de DNA, Chris... Um pouco antes de ele morrer...
– Então... é sério?
– Sim...
– Ian sabe?
Sacudi a cabeça negativamente.
– Não... Eu nunca pude contar... Mason morreu... eu tive a certeza
depois... como poderia contar?
– E por que está me contando agora?
– Porque eu não aguento mais guardar este segredo. Está me
matando...
– Deveria ter contado antes, deveria...
– Acha que eu não sei? Eu me culpo todos os dias! Eu minto para o
Ian. Minto pra todo mundo, para os Callaghan... Para você... Eu não aguento
mais!
Me virei para o abismo.
E ele parecia bastante convidativo.
Chris ficou em silêncio, em sua própria confusão. Talvez me odiasse
naquele momento. E eu merecia.
Ian já me odiava também.
Meu bebê morreu. Eu não tinha mais nada.
– Eu queria esquecer tudo...
– Julia...
Eu nunca saberei bem o que me motivou. Se havia um objetivo por
trás de tudo. Se eu queria apenas me fundir com as águas escuras lá embaixo.
Ou ficar por lá, junto com as ondas turbulentas, num bem-vindo
esquecimento.
Naquele momento me pareceu uma boa ideia dar um passo a frente e
me misturar com o ar.
Depois com a água.
Até sentir a pancada em minha cabeça.
E tudo escurecer.
Capitulo 22

Quando eu volto a mim, estou no quarto do chalé.


Não sei quantas horas se passaram, lá fora o dia amanhece cinzento.
Abro os olhos para a nova realidade e vejo Ian sentado na poltrona em um
canto, olhando pela janela.
Eu me levanto e vou até ele, que estende a mão.
Eu não hesito nem um segundo em pegá-la. E estou seus braços.
Estou com o rosto contra seu peito. E finalmente estamos chorando
juntos.
Por Mason. Por nós. Por tudo.
Não sei quanto tempo ficamos assim, até que eu levanto o olhar.
– Você lembrou... de tudo?
Eu aceno positivamente.
– Ian – eu respiro fundo e me preparo para contar, com anos de atraso,
meu maior segredo.
Sei agora que foi o que nos envenenou. E não posso mais esconder.
– Ian... Mason não era... – as palavras são difíceis de serem
proferidas. – Mason não era seu filho...
Ele toca meu rosto.
– Eu sei.
Ian

Eu achava que estava num pesadelo quando Julia me deixou. Eu sabia


que muito tinha a ver com a dor de perder Mason.
Eu sabia como era, eu também a sentia.
Eu queria vivê-la com Julia, como qualquer coisa na minha vida. Boa
ou ruim. Foi assim desde o dia que nossos olhares se cruzaram naquela
livraria.
Era pra sempre. Juntos ou não.
Por isto eu a deixei ir. Não podia prendê-la a mim fazendo-a infeliz.
Ela merecia buscar o que lhe faltava, seja onde fosse.
Mesmo assim, era difícil.
Porém agora, observar seu rosto pálido contra os lençóis do hospital,
seu corpo inerte, assim como sua mente, era mil vezes pior.
Jack me avisou horas depois. Ela havia caído. No maldito penhasco.
Com Chris.
O ciúme só não foi maior, porque eu estava suficientemente assustado
com o diagnóstico de Julia.
“Ela não reage. Está em coma, Ian. Não sabemos o que irá acontecer.”
As palavras martelavam em minha mente.
Dia após dia.
Noite após noite.
E Julia continuava ali, em algum lugar longe de mim.
“Vá pra casa, Ian, eu te aviso quando ela acordar.”
Jack dizia às vezes e eu ia. Para dormir algumas horas e depois
retornar para junto dela. Eu não podia perdê-la.
Eu já perdera Mason.
Numa destas vezes em que Jack pediu para ir embora, eu o vi.
Chris Wilson.
Ele estava saindo do carro no estacionamento vazio do hospital
naquela manhã fria de Beaverton. Eu não pensei duas vezes antes de agredi-
lo. Eu precisava machucá-lo.
E Chris me machucou também. Só não foi com os punhos.
Foi de uma maneira que eu nunca achei que seria possível.
E olha que ele era o motivo de muito de ruim que aconteceu na minha
vida. Pensar em toda vez que eu senti que não conseguia alcançar o que ele
tinha com Julia. Ou as palavras de Julia ao afirmar que estava dormindo com
ele.
Criavam um inferno dentro de mim.
– Está satisfeito? – Ele havia dito, cuspindo o sangue da boca,
enquanto se levantava.
Eu arfava.
– Se ela morrer...
– Eu a salvei.
– Salvou? Por que não a impediu de cair?
– Ela pulou. Não caiu.
Os olhos de Chris eram sombrios. Como se estivessem de novo
naquele momento.
Eu pouco sabia sobre o acidente de Julia. Jack me contou que ela
estava com Chris e havia caído. E que ele havia pulado atrás dela,
conseguindo tirá-la da água não antes de ela bater a cabeça numa rocha.
– Eu menti para Jack. – Chris continuou. – Não queria que ele
sofresse mais...
Senti o ar me faltar. O que diabo Julia tinha feito?
– O que quer dizer?
– Que ela pulou daquele penhasco.
Respirei fundo.
– Deus...
– Eu não sei... se ela queria realmente... – as palavras se perderam no
ar, sinistras.
Fechei os olhos.
Julia... Julia... O que foi que você fez?
Abri os olhos e vejo Chris ainda ali.
– Eu não entendo... Achei que ela estivesse... Seguindo em frente...
Ela me disse que estavam juntos.
De repente até mesmo a ideia de Chris com Julia não me parecia tão
terrível quanto a opção de ela estar tão infeliz que preferiu tirar a própria
vida.
– Ela disse o quê? – Chris indagou confuso.
– Que tinham dormido juntos – falei o encarando com fúria. – Vai
negar?
– Eu dormi com a Julia uma vez sim. Mas foi antes de se
conhecerem... Nunca mais... A Julia não ia inventar uma coisa dessas!
– Como é?
Chris olhou para baixo, passando a mão sobre os cabelos.
– Se quer mesmo saber... Foi na nossa despedida, ficamos bêbados...
Aconteceu...
Tentei digerir aquela revelação. Julia e Chris. Não nos últimos
tempos. E sim antes.
Antes de mim. O ciúme ainda é forte.
– Então foi com você... – murmurei como se pra mim mesmo, me
lembrando de que Julia realmente não era mais virgem quando ficamos
juntos.
– Isto não tem importância. – Chris sussurrou e eu senti algo em sua
voz. Como se ele estivesse pensando em algo. Escondendo algo.
Ele queria me dizer.
– Por que está me contando? – Perguntei devagar.
Ele hesitou.
Como se buscasse as palavras.
– Acho que não tem mais razão para sustentar esta mentira.
– Que mentira?
– Mason... Mason não era seu filho.
– O quê? – Suas palavras não faziam sentido.
Ou faziam.
De repente todo o quebra-cabeça começou a se juntar de forma
assustadora na minha mente. Tudo parecia estar bem claro para quem
quisesse ver.
Se quisesse ver.
Eu não queria.
– Eu sinto muito. – As palavras de Chris me pareciam verdadeiras.
Eu senti apenas o vazio.
Algo foi tirado de mim. Mason. A criança que eu amei desde que
soube de sua concepção. Que vi crescer na barriga de Julia. Que me
preocupei e amei até sua morte tão prematura.
Não pertencia a mim realmente.
Chris o tirara de mim.
– Desde quando sabe...?
– No penhasco. Ela me contou no penhasco.
Então Julia sabia o tempo inteiro?
– Como ela podia saber? Como ela podia ter certeza...?
– Ela fez um DNA, pouco antes de ele morrer.
Deus do céu, então aquela era a verdade.
De repente o comportamento de Julia fazia mais sentido. Sua
depressão não era apenas por Mason. Era pela mentira.
– Ei, Ian, ainda não foi? – Escutei a voz de Jack e me viro. – Ainda
bem... – então olhou pra Chris. – Vocês brigaram...?
– Não importa. O que aconteceu? – Chris perguntou ansioso.
– Julia acordou.
Senti uma das mãos invisíveis que apertava meu coração relaxar.
Apenas uma delas.
Nós voltamos para dentro e eu precisava vê-la com meus próprios
olhos, o médico a está examinando.
Nós ficamos de longe. Ela parecia aérea e respondia as perguntas com
voz alquebrada.
De repente o médico nos encarou preocupado e, enquanto uma
enfermeira cercou Julia, que adormeceu novamente depois de uma
medicação, ele nos levou até sua sala.
– E então? – Jack perguntou ansioso.
– Ela está bem fisicamente, responde a todos os estímulos.
– Mas? – Chris indagou.
– Ela está com amnésia.
– Como assim? – Jack ficou confuso.
– É uma amnésia parcial, ela não se lembra de nada... dos últimos dois
anos.
Então eu entendi
– De nada? – Chris perguntou sombrio.
Foi pra mim que o médico olhou quando respondeu.
– De nada... nem de ninguém.
Ele continuou.
– Ela só se lembra de estar em Beaverton, antes de ir pra faculdade.
– Não é possível – Jack exclamou exasperado.
– Eu sei que parece estranho, mas é verdade. Ela não se lembra que
foi pra faculdade. Que se casou. E que teve um filho.
– Nem que ele morreu e que nos separamos – completei
sombriamente.
Eu quase senti inveja de Julia.
O tão sonhado esquecimento. Nada de sofrimento. Porque não havia
lembranças.
Eu senti até uma espécie de alívio por, pelo menos ela, estar imune a
dor.
Quanto a mim, sei que a sentiria para sempre.
– E quando ela vai lembrar? – Jack insistiu.
– Não sabemos. Pode não lembrar nunca. Ou daqui alguns dias.
– Podemos ajudar. Contar a ela o que aconteceu...
– Não!
Todos se viraram ao ouvir minha voz.
– Não conte nada – eu me levantei e fui até a janela.
Observei a chuva fina cair no dia cinzento.
– Ian... – Jack me chamou.
Eu os encarei.
– Ela está fugindo da dor. Não percebem? Nunca superou nada do que
aconteceu.
– Isto é absurdo – Jack exclamou.
– Não. É justo.
– Está querendo dizer que a mente dela está agindo de propósito? –
Chris perguntou irônico.
– Ela não quer lembrar. Ela não vai lembrar...
– O que está querendo dizer?
– Não contaremos nada. Será como se nada tivesse acontecido.
– Não vai dar certo. – Jack disse.
– É o melhor a fazer. Julia está tendo uma segunda chance. Uma
chance de seguir em frente. Sem lembranças ruins. Sem dor – olhei para Jack.
– Não gostaria que ela fosse feliz novamente? Que pudesse realmente
esquecer e recomeçar?
– Sim, é tudo o que eu desejo. Ela esteve péssima nos últimos meses...
– Então a deixe ser feliz de novo.
Eu olhei para Chris.
– Acho que você também concorda, não é?
– Parece a pior ideia do mundo. E também a melhor.
– Então assim será. Ela nunca ficará sabendo. Eu vou me afastar. Para
sempre. E ela vai seguir com sua vida. Eu deixarei de existir para ela.
Capítulo 23

Iam sabe?
Eu o encaro chocada e me afasto.
– Sabe?
– Chris me contou. Depois do acidente.
– Então o tempo inteiro...
– Sim. Eu sabia Julia.
– Eu sinto muito... no começo eu não achava... depois... eu deveria ter
contado, então ele se foi... E eu não consegui aguentar... – começo a chorar
de novo, imaginando o que ele deve ter sentido ao saber pela boca de Chris.
Não foi justo.
E a culpa era inteiramente minha.
– Deve me odiar. Entendo agora porque quis que eu fosse embora,
porque não quis me contar nada sobre nossa vida juntos...
– Eu me senti um pouco traído sim, eu amava aquele bebê, não era
justo Chris roubá-lo de mim.
– Eu não sei nem por onde começar a te pedir desculpas – digo
desolada. – Eu devia ter contado com a possibilidade do bebê ser de Chris
desde o começo, sinceramente, eu nem me lembrava... – fico vermelha e
desvio o olhar. – Da noite que passamos juntos. Ele me garantiu que não
havia perigo e mentiu. Eu só comecei a desconfiar quando Mason nasceu...
depois ele ficou doente... – respiro fundo, tentando não sentir aquela mesma
dor de outrora. É bem difícil. – A certeza só veio quando ele morreu. E era
tarde. Como é que eu podia tirar a memória dele de você?
– Podia ter me contado Julia.
– Eu não podia. Você iria me odiar...
– Nosso casamento acabou de qualquer maneira, não é? Se tivesse me
dito a verdade, talvez...
Fecho os olhos. Dor e arrependimento me consumindo.
Tanta coisa eu tinha feito errado.
Ian também tinha errado, eu abro os olhos fitando-o com pesar.
– Do mesmo jeito que devia ter me contado toda nossa história
quando nos reencontramos – sussurro.
Ian passa a mão pelos cabelos.
Ficamos em silêncio por um longo tempo, enquanto o dia amanhece
lá fora.
Ainda chove.
– Quero visitar Mason – digo de repente, me levantando.
– Julia... – Ian me encara preocupado.
– Eu estou calma. – garanto.
Ele assente por fim e sai do quarto.
– Vou ligar para minha família e acalmá-los. Tem certeza que está
bem?
Passo os dedos por minha barriga saliente.
Sinto um arrepio de medo.
Quero que London esteja bem. Eu preciso que esteja. Não conseguirei
lidar com outra perda.
– Sim, estou bem – respondo.
– Você precisa comer. Coloque roupas quentes se vai sair no jardim.
Ele sai do quarto e eu tomo um banho e coloco roupas quentes.
Minha barriga parece enorme agora e eu passo os dedos pela
saliência. Faço uma prece silenciosa para minha filha que ainda nem nasceu.
Porque é a única coisa que interessa agora.
As pequenas rosas sumiram, é a primeira coisa que noto ao chegar ao
jardim.
Agora o túmulo está à vista. Sinto um aperto no peito. Quanto tempo
eu passei sem saber? Minha mente o havia esquecido.
O deixara para trás.
– Como pude esquecê-lo? Esquecer-me do meu próprio filho? –
Pergunto para mim mesma.
– Foi uma fatalidade.
Olho para trás e vejo Chris.
Nós ficamos em silêncio em frente ao túmulo de Mason.
E noto que é a primeira vez que o partilhamos.
Parece estranho e triste que seja assim.
– Eu não devia tê-lo escondido de você – digo.
– Talvez não. Todos nós erramos Julia. E você fez o que achava certo
naquele momento.
– Eu tinha medo de perder o Ian.
– Eu sei.
– E também não queria tirar Mason dele. Você entende?
– Sim, eu entendo. Não se culpe. Está tudo no passado agora. Eu
fico... feliz que ele tenha tido um pai como Ian. Ian foi o pai dele enquanto
viveu.
– As coisas podiam ter sido diferentes.
– Como? Você sabe que talvez tivesse sido bem pior com a verdade,
Jules. Nunca deveríamos ter transado naquela noite, hoje eu vejo o quanto eu
fui imaturo e egoísta. Você estava bêbada e eu fui irresponsável. Acho que
queria que se apaixonasse por mim. E no fim... Não dá pra forçar, não é?
– Eu sinto muito.
– Não sinta. Você vai ter um bebê. Acho que chegou a hora de
finalmente as coisas darem certo pra você.
Coloco a mão na minha barriga.
Sim, tudo parece tão certo quando penso em London.
Mason nunca será esquecido e eu tenho uma razão para seguir em
frente.
– Sim, está certo.
– Eu vou embora. Acho que já abusei demais da paciência do
Callaghan.
Eu olho pra trás e vejo que Ian está a alguns passos de distância,
dando-me privacidade para conversar com Chris.
Chris acena e se afasta.
– Ei, Chris...
– Sim?
– Ainda somos amigos?
– Claro. Pra sempre, Jules.
Eu sorrio, enquanto ele se afasta.
E depois sinto Ian se aproximando.
– Tudo bem?
Eu dou de ombros.
– Não sei ainda. É dolorido estar aqui, lembrar dele... – mordo os
lábios. – Acho que é difícil pra você, me ver aqui com Chris, me desculpe.
– Julia, eu tive dois anos pra superar.
– Superou?
– Eu entendi suas razões.
– E sua família? Eles... sabem? Meu pai...?
– Sim, eu e Chris contamos a todos.
– Todo mundo me odiou, não é?
– Foi difícil entender, porém, todos seguimos em frente, Julia. E nada
mudou o que sentimos por Mason. Pra nós, ele será sempre o mesmo bebê.
Ninguém deixou de amá-lo.
– Nem você?
– Nunca. Ele era meu filho, mesmo que não biologicamente.
Eu seguro sua mão com força.
– Eu queria realmente que ele fosse nosso...
– Ele era nosso, Julia. Assim como nossa filha que vai nascer.
– Eu tenho medo, Ian... Se acontecer algo com ela...
– Não vai acontecer. Ela é saudável. – Ian me garante, uma mão em
meu rosto e outra em minha barriga. – Ela vai nascer linda como você. E
vamos criá-la com todo amor que não pudemos dar a Mason.
– Nós vamos ficar juntos? – Pergunto baixinho.
Ele sorri.
Lindo.
E é como voltar no tempo.
Como minha primeira lembrança dele.
– Não está sozinha. Nunca esteve.
Ian segura minha mão, me puxando gentilmente para a manhã fria.
Ainda há muitas dúvidas, muita dor.
Não sei o que o futuro nos reserva, mas entrelaço meus dedos nos
dele e me deixo guiar até nossa casa.
Juntos. Como tem que ser.
Epílogo

Os dias passaram, as feridas começaram a cicatrizar e olhar para


frente ficou mais fácil.
Já faz cinco anos que fazemos aquele mesmo percurso de mãos dadas,
todos os anos, no dia do seu aniversário.
O jardim continua lindo, com todas as flores que Jill planta
regularmente, agora nada esconde seu túmulo.
Eu me ajoelho em frente e uso os dedos para tirar um pouco de limo
que se acumulou.
– Posso colocar aqui mamãe? – London pergunta, segurando um ramo
de flores entre suas mãozinhas.
– Claro meu amor – eu a ajudo a colocar e arrumar as flores em frente
à lápide e abraço seu corpinho morno.
Meus olhos encontram os de Ian que está ao nosso lado com um
sorriso um pouco triste.
O tempo ameniza a dor, embora não traga o esquecimento.
Depois de um tempo London se remexe inquieta no meu colo e eu a
libero para brincar, com um sorriso.
Ela tinha meus olhos e os cabelos de Ian. Uma criança saudável e
linda. Completando nossas vidas.
Ian estende a mão e eu a seguro, me levantando, ele beija o topo da
minha cabeça e sorri apontando com a cabeça para o lado.
Meu olhar segue seu movimento e eu vejo Chris se aproximando.
– Vou ficar com London – diz, antes de se afastar na direção
contrária.
Eu não o impedi. Chris e Ian nunca seriam amigos, depois de tudo.
Nós havíamos nos mudado de vez para Portland, onde eu dava aulas em meio
período em uma escola na vizinhança para poder cuidar de London,
visitávamos Beaverton em feriados e datas especiais.
Ocasionalmente eu encontrava Chris, eu ainda o amava como um
amigo querido, no entanto, depois de tudo, a distância era a melhor solução.
Para todos. Ian precisava se sentir amado e único. E Chris precisava superar
seus sentimentos por mim.
E todos nós precisávamos encontrar uma maneira de conviver com as
lembranças.
No entanto, ainda tínhamos Mason. Ele era o elo que ia nos conectar
pelo resto de nossas vidas. Esse amor, não precisava acabar.
– Oi, Jules – ele me abraça e beija meus cabelos.
Eu sorrio quando ele me solta e ficamos olhando para o túmulo.
– Hoje ele faria oito anos – murmuro com um suspiro.
– Ele seria lindo, com certeza – Chris comenta e nossos olhares são
atraídos para o barulho de riso infantil não muito longe. London solta
gritinhos enquanto Ian atrai um passarinho. – Assim como London.
– Sim, ela é linda.
Ele me encara.
– É uma criança feliz.
– Nós somos felizes – digo suavemente. – E você é?
Ele sorri dando de ombros e eu sinto algo diferente nele.
– Estou aprendendo a ser.
– Chris? – Uma voz feminina o chama e eu olho em direção a voz,
vendo uma moça morena a alguns passos de distância.
– Esta é a Claire.
– Ela é bonita. É sério?
– Ela sabe o que estou fazendo aqui, então... – ele solta um longo
suspiro – sim, eu espero que seja.
Sorrio.
– Também espero. Você merece ser feliz.
– Preciso ir.
– Vá. Vá ser feliz, meu amigo.
Ele beija meu rosto e se afasta.
Eu ainda olho uma última vez para o túmulo de Mason. Faço uma
prece silenciosa e me afasto em direção a Ian e London.
Deixar o passado e recomeçar nunca é fácil. Se comprometer em fazer
juntos, é mais complicado ainda.
Exige paciência, doação, tolerância.
E amor.
No fim do dia, é o que faz tudo parecer possível.

Fim
Parte I
Esquecimento
Um

Escuridão.
Por que tudo estava tão escuro? Abri os olhos e por um instante
pontos negros contrastaram com a luz muito brilhante. Pisquei desorientada,
lutando contra a dor na têmpora que aquela luz me causava.
Movi-me, e tudo doeu.
Serrei as pálpebras com força gemendo e de repente ouvi uma
movimentação ao meu redor. Voltei a abrir os olhos e dessa vez consegui
focalizar além da luz forte. Um teto branco e limpo.
Virei a cabeça, ainda sentindo as leves pontadas, e paredes brancas
me cercavam. Respirei uma longa golfada de ar e senti o cheiro de éter
inconfundível de um hospital.
Hospital?
O que eu estava fazendo em um hospital?
— Ella?
Minha atenção foi capturada por uma voz desconhecida a minha
direita. Alguns passos foram dados em minha direção até que um homem de
jaleco branco se colocou no meu campo de visão.
— Como se sente?
O médico colocou uma lanterna nos meus olhos e gemi virando a
cabeça.
— O que... — minha voz saiu pastosa e grossa, como se eu não a
usasse há muito tempo e minha garganta queimou, mas forcei a fala. — Onde
estou?
— Em um hospital.
— Por quê? — Tentei me lembrar... O que teria acontecido para eu
estar num hospital?
— Não se lembra?
Ele continuou a me examinar, passando um negócio gelado por meu
pé, que me fez encolher a perna, me surpreendendo com a dor de novo. Eu
me sentia como se tivesse levado uma surra.
— Ella, preciso que me diga o que se lembra.
Fechei os olhos e puxei minha memória. Comecei a ficar seriamente
perturbada. Eu sabia que meu nome era Ella Brooke. Morava em Aberdeen
com meus pais. Tinha dezoito anos e estava me formando no Aberdeen High
School. E a última coisa que me lembrava...
— Uma entrevista de emprego — lembrei de repente. — Eu estava
viajando de carro para fazer um teste. Estava chovendo... — Soltei um
gemido, a dor de cabeça se intensificando enquanto eu tentava lembrar mais
coisas sem conseguir — Eu sofri um acidente? — indaguei começando a
entender.
— Sim, sofreu.
— Ah não! — Isso queria dizer que eu estava terrivelmente atrasada.
— Eu tenho que ir... — balbuciei tentando levantar, mas minha cabeça
rodopiou e caí de novo ao mesmo tempo que o médico me pressionava contra
a cama — Tenho que fazer a entrevista...
— Não se mova. Seus ferimentos externos não foram graves, mas
ainda está bastante dolorida e com algumas contusões.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Três dias.
— O quê? — gritei. Ou era para ser um grito, porém não passou de
um sussurro engasgado.
— Não fique agitada. Vou fazer algumas perguntas, pode me
responder?
— E minha família? — Preocupei-me com o estado que meus pais
deviam ter ficado. Minha mãe estaria louca.
— Não se preocupe com isto. Ele está aí fora.
— Toby? — Pensei que meu namorado também devia estar
preocupado.
O médico pareceu confuso.
— Apenas responda às perguntas.
Respirei fundo tentando ficar calma.
— Tudo bem.
— Qual o seu nome?
— Ella Marie Brooke.
— Onde você mora, Ella?
Ele perguntou meu endereço e eu dei o dos meus pais, em Aberdeen.
Perguntava-me agora se eu ainda teria chance de mudar meu endereço para
Seattle, como vinha sonhando desde que fora chamada para a entrevista de
emprego na St. James Corporation. Era apenas um cargo de recepcionista,
mas o salário era muito bom e eu poderia me mudar para Seattle. Meu pai
não estava muito feliz com isso. Ele queria que eu fizesse faculdade, mas
além de não termos dinheiro suficiente para ir a Yale como ele sonhara, eu
também não estava certa que carreira queria seguir.
E não via problema nenhum nisso. Eu era jovem e tinha todo o tempo
do mundo para me decidir.
O médico perguntou quem são meus pais e onde estudei e comecei a
ficar impaciente com aquele monte de pergunta besta.
— Para onde estava indo quando sofreu o acidente?
— Eu já disse! Uma entrevista de emprego... Eu tinha que estar lá,
senão... Oh droga, devo ter perdido a chance de conseguir o trabalho! —
murmurei angustiada.
O médico me fitou com um olhar preocupado.
— Ella, em que ano nós estamos?
Oh Deus. O que aquele médico estava pensando? Que eu era uma
louca ou algo assim?
— 2012 — respondi sem pestanejar.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes, depois retirou os óculos e
escreveu algo em sua prancheta, com o semblante muito grave.
— Quando eu vou poder sair daqui? — insisti impaciente.
— Ainda teremos que fazer alguns exames e... — Antes que ele
terminasse, a porta do quarto se abriu e alguém entrou.
— Ella!
A voz desconhecida tinha um tom ao mesmo tempo preocupado e
aliviado. Os passos se aproximaram da cama e eu o vi. Ele me fitava com um
olhar que condizia com sua voz. Alívio e preocupação toldavam os olhos
verdes e seu rosto cansado tinha uma barba por fazer de dias, talvez, eu
calculei. Os cabelos escuros estavam bagunçados como se tivessem sido
castigados por dedos impacientes e sua roupa amarrotada parecia que não era
trocada há dias. E ele me olhava como se me conhecesse. E me chamara pelo
nome, mas...
— Quem é você?
O desconhecido riu. Era um riso grave e bonito. Mesmo estando
contundida e confusa eu tive que reconhecer.
— Ella? — Ele estendeu a mão para tocar a minha, mas a puxei,
assustada, encarando o médico que suspirou tocando o braço do estranho.
— Preciso falar com você. Melhor deixá-la descansar.
— Mas... Ela está bem? — O estranho indagou ao médico me
encarando sem mais o olhar de alívio. Agora era pura preocupação.
— Lá fora.
O estranho parecia que não ia ceder. Passou os dedos pelos cabelos,
exasperado e então, lançando-me um último olhar consternado, seguiu o
médico.
Assim que saíram, me senti estranhamente só. E ao mesmo tempo
aliviada. Quem era aquele cara? Eu devia conhecê-lo? Claro que não. Nunca
o tinha visto na vida.
Fechei os olhos, sentindo-me impaciente e aflita. Precisava ver um
rosto conhecido. Qualquer um servia. Meu pai, minha mãe, Toby, quem quer
que fosse. Alguém para me explicar o que diabos estava acontecendo.
Apesar de toda impaciência, acho que acabei adormecendo, pois
despertei com o quarto envolvido em uma suave penumbra.
Alguém se movimentou do meu lado.
— Ella?
Era ele. O estranho bonito de cabelos escuros. O que ele estava
fazendo ali ainda? Eu gemi quando uma pontada de dor traspassou minha
cabeça.
— Está sentindo dor? Vou chamar o médico...
— Não... Eu só... Será que poderia dizer quem é você?
Ele aproximou-se da cama. Era alto. E parecia maior ainda parado ali
enquanto eu permanecia indefesa. Quase ri desse pensamento.
— Você realmente... Não se lembra?
Havia dor na sua voz? Ou era impressão minha?
— Me lembro do quê?
— O médico me disse que você não se lembrava...
— Do que eu tenho que me lembrar?
— De mim. — Seus olhos sondaram meu rosto com uma expressão
angustiada.
Oh Deus. Será que havia alguma ala psiquiátrica no hospital e ele
tinha fugido de lá?
— Olha, não sei quem é você, ou o que está fazendo aqui, mas parece
uma boa ideia chamar o médico agora... ou melhor, deve ter alguém da minha
família aqui ou o Toby...
— Sua família não está aqui, Ella. Nem o… Toby. — Sua voz se
tornou sombria.
— Por que não? O médico disse que estou aqui há três dias!
— Sim, está.
— Eles não sabem que eu acordei? É isso?
— Ella, me escuta. Você precisa entender... As coisas que se lembra,
ou melhor, que não se lembra...
Comecei a ficar verdadeiramente irritada.
— Escuta você... Será que pode me deixar em paz? Chama o médico,
por favor...
— Ella...
Ele tentou tocar minha testa, mas dei um tapa na sua mão.
— Não põe a mão em mim!
Ele parecia irritado agora também. Mais que isso. Parecia estar
sofrendo. E algo dentro de mim se agitou. Culpa? Eu nem o conhecia,
caramba! Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Olha, me desculpa. Não queria ser rude, mas isso tudo está muito
esquisito e estou ficando com medo! Não gosto nem um pouco desse tipo de
situação que me deixa no escuro!
— Eu sei. — Ele sorriu, para meu assombro.
Talvez não fosse um maluco perigoso. Talvez se conversasse
educadamente, me deixasse em paz. Seja lá quem fosse.
— Qual seu nome?
— Luke.
— Certo. Luke. — O nome não me dizia nada. — Será que poderia
chamar o médico para mim?
— Sim, eu irei. Mas antes precisamos conversar. Quero ter certeza...
Do quanto você não se lembra.
Eu revirei os olhos impaciente. De novo aquela história?
— Por que insiste nisso?
— Porque você realmente esqueceu.
— Esqueci do quê?
Ele respirou fundo.
— Ella... Se eu te dissesse que essa não é a primeira vez que nos
vimos?
— Eu diria que você é maluco, eu nunca te vi antes.
— Mas nós nos vimos.
— É alguma piada?
— Quem dera que fosse... — Ele passou os dedos pelos cabelos, com
um sorriso sem humor.
— Certo. Então, segundo você, nós nos conhecemos?
— Sim.
— E por que eu não me lembro de você?
— Porque, segundo o médico, está com alguma espécie de amnésia.
Eu ri. Mas ele permaneceu sério.
— Está brincando, não é?
— Não, não estou.
— Não pode ser verdade! — Droga, eu não poderia estar acreditando
nele. Era surreal demais.
— Ella, quando o médico perguntou em que ano estávamos você
respondeu...
— 2012.
— Nós não estamos em 2012.
— Ah não?
— Não.
— Certo, em que ano nós estamos então?
— Já se passaram sete anos.
— Você é mesmo maluco — murmurei.
Mas em resposta ele se levantou, pegou um jornal esquecido em cima
de uma mesa e colocou na minha frente. Eu olhei a data e senti uma vertigem.
Não podia ser!
Eu o encarei, empalidecendo.
— Mas como...
— Ella, você esqueceu sete anos da sua vida.
Engoli em seco. Começando a acreditar em tudo aquilo. Por mais
bizarro que fosse.
Sete anos.
Sete anos!
Meu estômago começou a revirar e minha cabeça a doer em busca de
respostas.
— Eu não estava indo fazer a entrevista?...
— Não. Você estava dirigindo, mas não era a entrevista.
— O que aconteceu?
— Você bateu o carro.
— E fiquei em coma...
— Três dias.
Fechei os olhos com força, tentando conter o nó na minha garganta e
o apavoramento que ameaçava me engolfar. E quando o abri, o encarei com
uma nova ótica.
— Nós realmente nos conhecemos?
— Sim.
— Há quanto tempo?
— Sete anos.
— Sete anos... — Eu o conhecia há sete anos e não me lembrava. Era
simplesmente surreal demais para mim.
— E o que você significa... para mim? — sussurrei, como se resposta
estivesse em mim mesma. Mas dentro de mim era só o vazio. Não havia
nada.
— Isso, teremos que descobrir — ele disse suavemente.
E me senti de novo sendo tragada pela escuridão.
Dois

Quando acordei novamente, me recusei a abrir os olhos. Minha mente


registrando os últimos acontecimentos insólitos. E, por um momento, achei
que tivesse sonhado. Que estava no meu quarto, na minha casa e a qualquer
momento meu pai entraria dizendo que eu estava atrasada para a aula, ou que
havia alguma ligação do Toby a minha espera.
Mas mesmo antes de abrir os olhos, eu sabia, bem lá no fundo, que
não adiantava me enganar.
Aquela realidade não fazia mais parte da minha vida.
Há sete anos.
Casa, família, Toby.
Senti um aperto no peito. Tudo ficou perdido nos sete anos que minha
mente apagou misteriosamente. E no lugar havia apenas um estranho de
cabelo escuro, olhos verdes intensos e beleza deslumbrante. Que dizia me
conhecer todo esse tempo. E sabe Deus de que tipo de conhecimento estava
falando!
Antes que eu conseguisse achar uma saída na minha mente obscura
para aquela confusão, a porta se abriu e o mesmo médico que havia
conversado comigo ontem entrou.
— Olá, Ella, como se sente?
— Perdida.
Ele sorriu complacente.
— Eu entendo. Mas estou aqui para tentar ajudá-la.
— Estou mesmo com... amnésia?
— A partir do momento que não se lembra de nada que aconteceu
durante sete anos da sua vida, sim, está.
— E isto é... permanente?
— Não temos como saber. Você pode lembrar as coisas aos poucos,
ou tudo de uma vez, ou lembrar apenas algumas coisas. Ou até mesmo...
— Nunca lembrar — murmurei.
— Sim, é possível. A mente humana ainda é um total mistério. Mas a
boa notícia é que não há nenhuma sequela física. Está com algumas
escoriações e vai se sentir dolorida por mais alguns dias. Estará nova em
folha em pouco tempo.
— E sem lembrar de nada.
— Ainda lembra quem é... Algumas pessoas nem isso.
Então devia me sentir grata por ainda saber meu nome e lembrar
dezoito anos da minha vida?
Suspirei, desalentada.
Deus, eu não tinha mais dezoito anos! Aquilo era muito, muito
estranho. Quantas coisas mais eu perdi? O que tinha acontecido na minha
vida durante aqueles sete anos? Por mais que tentasse havia apenas um
buraco negro na minha mente. E nada mais.
No entanto, eu podia perguntar, não podia? Alguém iria me contar. A
imagem do estranho me veio à mente. Seria ele a única pessoa que poderia
me dar as respostas?
Antes que eu seguisse minha linha de raciocínio, uma enfermeira
entrou no quarto.
— Olá, já se sente bem? Acho que gostaria de tomar um banho?
Eu sorri agradecida. Banho. Coisas normais. Acho que ia fazer me
sentir melhor. A enfermeira me ajudou a ir até o banheiro e percebi o quanto
estava debilitada. Eu mal consegui me apoiar nas minhas pernas.
Enquanto ela me ajudava a ficar de pé e tirar a horrível camisola do
hospital, mirei minha imagem no pequeno espelho na parede e o reflexo de
algo azul no meu braço chamou minha atenção.
— O que é isso? — Abaixei o olhar para meu ombro e perdi o fôlego
ao ver uma borboleta azul pousada sobre minha pele.
Uma tatuagem.
Que eu sequer me recordava de ter feito.
— O que foi, algum problema? — a mulher perguntou solícita e eu
engoli a súbita vontade de chorar.
— Eu apenas não me lembro disso — sussurrei e eu vi a pena em seu
olhar enquanto me levava para o chuveiro.
Depois que voltei para o quarto, com minha nova camisola de
hospital, me perguntei onde estariam minhas coisas. E onde estaria minha
família? Por que eles ainda não estavam ali?
— Por favor, será que você pode conseguir um telefone? — indaguei
estranhando que não houvesse um no quarto. Mas aí me lembrei que estava
em coma há duas semanas. Na certa concluíram que eu não precisava de um.
— Claro que sim. Eu já volto.
Assim que a enfermeira saiu, ele entrou. O estranho.
Prendi a respiração ao vê-lo. Parecia mais bem recomposto do que no
outro dia. Havia trocado de roupa e feito a barba.
— Olá. — Ele sorriu meio inseguro e me vi sorrindo de volta, da
mesma forma insegura.
Era esquisito que, no intervalo de poucas horas, ele houvesse meio
que se transformado no meu único porto seguro. Ao menos até alguém que eu
realmente conhecesse aparecesse. Esse pensamento me fez ficar séria
novamente.
— O que está fazendo aqui? — Não consegui evitar o tom meio
afrontoso da minha voz.
Ele ficou sério também. De novo notei um lampejo de angústia em
seu rosto e me senti culpada.
— Me desculpe. É que é tão... esquisito. Sei que me disse que nos
conhecemos, mas... eu ainda preciso me adequar a isso tudo.
— Eu sei. Não quero que se preocupe.
Eu sorri sem humor.
— Impossível. Acordei de um coma achando que estou com dezoito
anos quando na verdade sete anos se passaram. Sete anos dos quais eu não
me recordo de nada!
— Você vai se lembrar.
Havia convicção em sua voz.
— Vou? — Não consegui conter a ironia. — O médico disse que há a
possibilidade de eu nunca... — Me calei, respirando fundo. A dor que aquilo
me causava era enorme.
— Ella...
Meu nome saiu de sua boca com pesar e tive a impressão que queria
me tocar, mas se continha, é que isso era difícil para ele.
E o pior era me dar conta que havia uma parte minha, talvez aquela
parte inconsciente dentro de mim, a parte que se lembrava, que também
ansiava por isso. E de novo eu me perguntei quem era ele. Eu podia perguntar
de novo. Podia exigir respostas. Mas tive medo. Medo do que eu iria ouvir.
Medo de não gostar do que eu ia ouvir.
— É... Luke, não é?
— Sim — Ele riu.
E eu senti algo se mexendo dentro de mim com aquele riso.
— Certo... Luke. Eu queria saber... Eu preciso, na verdade. Falar com
a minha família. Por que eles não estão aqui? — De repente um medo cego
me tomou. — Está tudo bem com eles? Minha mãe? Meu pai? — Deus, tanta
coisa acontecia em sete anos...
— Sim, estão bem.
Eu respirei aliviada.
— Então por que não estão aqui?
— Porque eles estão longe.
— Como assim? Estamos em Seattle? Não é tão longe assim.
— Ella, estamos em Nova York.
— Que diabos eu estou fazendo em Nova York?
Antes que respondesse eu segurei a cabeça com as mãos.
— Como eu posso não me lembrar? O que estou fazendo aqui é só
uma das perguntas, não? Tem tantas outras! Eu não sei nem quem eu sou
mais!
— Você ainda é a mesma Ella.
— Não tenho mais dezoito anos... — lamentei.
— Algumas pessoas achariam isso bom. — Ele sorriu.
— Eu quero falar com a minha família. Não importa que esteja em
Nova York. Eu sofri um acidente! Eles têm que estar aqui!
— Eles virão, assim que possível.
— Eu falarei com eles por telefone então. Eles devem querer saber
como eu estou.
— Eu já falei com eles.
— Você conhece minha família?
— Sim.
Mordi os lábios com nervosismo. Estava na hora de fazer a pergunta.
Aquela que eu temia.
— Luke... quem é você? — indaguei num fio de voz.
— Meu nome é Luke St. James.
St. James? Ele disse St. James?
— Eu estava indo fazer uma entrevista para a St. James Corporation...
— Eu o encarei, arregalando os olhos. — Você é um St. James da St. James
Corporation?
— Sim, Ella.
— Então... Oh meu Deus, eu consegui o emprego?
Ele sorriu, parecendo divertido.
— Sim.
— Então foi lá que nos conhecemos... — murmurei tentando forçar a
minha mente a lembrar, mas não havia nada.
Eu não me lembrava de ter conseguido o emprego. E muito menos de
ter conhecido aquele homem. Mas antes que pudesse continuar com minhas
perguntas a enfermeira entrou no quarto e disse que precisava tirar minha
pressão. Eu concordei de má vontade.
— Onde estão minhas coisas?
Ela sorriu para Luke. Era impressão minha ou ela parecia...
deslumbrada? Eu revirei os olhos, irritada, sem nem saber por que.
— Eu trouxe suas coisas, Ella, não se preocupe — ele respondeu.
Certo. Luke St. James tinha acesso as minhas coisas. Era perturbador,
para dizer o mínimo.
— Quando irei embora daqui?
— O médico disse que terá alta em poucos dias.
Eu respirei aliviada.
Sim. Teria alta e voltaria para Aberdeen.
— Está se sentindo melhor? — a enfermeira indagou solícita.
— Sim, bem melhor. Gostaria de vestir algo meu.
Ela sorriu complacente.
— Claro.
— E onde está o telefone que eu te pedi?
Ela trocou um olhar com Luke e franzi os olhos ao vê-lo sacudir a
cabeça afirmativamente.
— Eu já vou buscar.
Ela saiu do quarto.
— O que foi isso?
— Isso o quê?
— Ela te pediu permissão?
— Claro que não.
A enfermeira voltou minutos depois e me deu o telefone.
Hesitei antes de ligar. Será que ainda era o mesmo número? Disquei
ligeiramente trêmula.
Ninguém atendeu. Tentei não me desesperar, quando liguei o número
do celular da minha mãe. Era mesmo muito estranho que eu me lembrasse de
coisas tão triviais e outras simplesmente estavam se escondendo dentro de
mim.
Senti grande parte da tensão indo embora quando ouvi a voz
conhecida do outro lado do telefone.
— Chloe.
— Mãe!
— Ella! Você está bem, querida?
— Claro que não! Como é que eu sofro um acidente e vocês nem
estão aqui?
— Estávamos tentando! Mas estamos em meio a um caos aqui, com o
tornado e tudo o mais. E Luke nos tranquilizou hoje quando disse que já
acordou...
— Tornado? Em Aberdeen?
Minha mãe hesitou do outro lado da linha.
— Querida, não estamos em Aberdeen.
— Onde estão?
— Em Moçambique.
— Na África? Meu Deus, o que diabos estão fazendo aí?
— Oh Deus, claro que você não sabe! Luke nos contou que está com
a mente confusa. Ella, eu e seu pai nos mudamos há alguns anos para a
África, para trabalhar com o médicos sem fronteiras.
Fiquei sem fala por um momento.
Meus pais eram médicos e até onde eu sabia, trabalhavam no hospital
de Aberdeen. Meus pais sempre tiveram o sonho de se juntar aos médicos
sem fronteira, mas com meu nascimento, eles adiaram este sonho. Sempre
achei que eles tinham desistido, mas aparentemente estava enganada.
— Estamos tão aliviados que tenha acordado! Está muito difícil
conseguir sair daqui, no momento! Mas iremos voltar assim que possível.
Como está se sentindo?
— Péssima — murmurei com vontade de chorar. — Não consigo me
lembrar dos últimos anos, mãe... Nem sequer me recordo que foram para a
África.
— Não fique assim. Isso é passageiro. Vai se lembrar de tudo, tenho
certeza.
— Mãe, é sério este negócio de sete anos? — Eu ainda tinha a
impressão que tudo fosse uma grande brincadeira, ou algo assim.
— Eu sinto muito, Ella. Você sabe que é. E eu também acho que sua
mente só está confusa. Daqui a poucos dias tudo passa.
— É tão horrível, mãe...
— O importante é que está fora de perigo. Nós iremos em poucos
dias ver você.
— Mas eu preciso saber tanta coisa! O que eu estou fazendo aqui para
começo de conversa!
— Por que não pergunta ao Luke? Tenho certeza que ele responderá
todas as suas questões, até que a sua amnésia passe.
Meu olhar cruzou com o dele, tensos.
— Porque eu não o conheço — sussurrei querendo que ele não
ouvisse meus temores. Mas é claro que ele tinha ouvido.
Desviei o olhar. Minha mãe deu um suspiro cansado.
— Ella, confie nele, ok? Tudo vai ficar bem.
— Eu o conheço mesmo há sete anos?
— Conhece sim.
Eu queria perguntar mais, mas não na frente dele. Quando fosse
embora, eu podia ligar para minha mãe de novo.
— Tudo bem. Eu esperarei. O médico disse que terei alta em poucos
dias.
— Isso e ótimo. Agora preciso desligar. Deve descansar.
— E, mãe...
— Sim?
Lá vinha a questão mais difícil.
— E o Toby? Eu... nós ainda?...
— Não, Ella. Você pode não se lembrar agora, mas já se passaram
sete anos e muita coisa mudou.
Fechei os olhos com força. Sabia que Luke me fitava, mas não queria
ver o olhar dele.
— Desde quando? — questionei, mas já sabia a resposta, antes
mesmo de minha mãe responder.
— Sete anos.
Toby não era mais meu namorado. Fazia sete anos. Era estranho
pensar que ele não estava mais na minha vida.
— Tudo bem — murmurei, mas nada estava bem.
— Amo você, querida, tudo vai se resolver.
Eu desliguei. Não iria discutir mais. Não na frente “dele”.
Minha mãe dissera para confiar. Mas era difícil confiar sem saber de
nada. Não, nada ia ficar bem. Eu queria voltar no tempo. Só isso. Eu queria
esconder o rosto entre as mãos e chorar.
Mas engoli o nó na garganta.
— Se sente melhor agora? — Luke indagou. Havia suavidade em sua
voz.
Eu o fitei incisivamente.
— Eu quero que me diga, agora, sem rodeios. O que você é para
mim? Por acaso eu e você... nós... nós temos algum tipo de... relacionamento?
— Sim, nós temos.
Então meus temores eram verdadeiros. Este cara que eu nunca tinha
visto na vida, não só me conhecia há anos, não só fazia parte da minha vida
há anos. Nós tínhamos um relacionamento.
— É... esquisito. Eu não... não me lembro de você. Como pode? —
sussurrei. — Se nós somos... de alguma maneira... íntimos... por que eu não
me lembro?
— Acha que eu também não gostaria de saber? Acha que e fácil para
mim? Ficar aqui olhando você me tratar como um estranho?
De novo aquela dor. Era quase insuportável.
— Eu sinto muito — eu me vi dizendo. E realmente sentia. De
repente eu queria saber tudo. Tudo o que tinha perdido. Cada detalhe daquela
história. Da nossa história. — Você vai me dizer? Vai me contar o que
aconteceu nesses sete anos?
— Não.
— Por que não? Não é justo! Eu posso nunca me lembrar!
— Eu sei. Mas eu tenho que acreditar que você vai lembrar.
— Então é assim? Vai me deixar no escuro até que eu me lembre? Se
é que eu vou me lembrar um dia?
— Não. Eu a ajudarei a lembrar.
Eu me recostei nos travesseiros, de repente me sentindo muito
cansada para entender aquela lógica.
— Você precisa descansar.
Sim, eu já sentia minhas pálpebras se fechando.
— Você vai embora?
— Eu não vou a lugar algum — ele disse.
E me senti bem com aquilo. Eu não queria que Luke se fosse. Não
ainda. Não quando eu não sabia quem ele era para mim.
Três

Quando eu acordei, Luke St. James não estava mais no quarto. Outra
enfermeira sorridente apareceu e abriu as cortinas. O dia estava chuvoso e
frio. Nova York, pensei com desgosto. Ainda queria saber o que eu estava
fazendo ali. Mais uma pergunta para quando Luke aparecesse.
E se Luke não voltasse? Isso me deixou com certo pavor. Eu podia
não me lembrar dele, mas atualmente era a única pessoa que podia me ajudar.
Era só por esse motivo que estava sentindo aquele vazio ao pensar que ele
poderia desaparecer para sempre.
Mas nós tínhamos “algo”. Ele mesmo afirmou. Me senti curiosa. Será
que eu me lembraria de tudo?
Algum tempo depois, o médico entrou para me examinar e me fez
várias perguntas para as quais eu não tinha resposta.
— Ainda nada, não é? — Eu me senti desanimada.
— Precisa ter paciência e não ficar ansiosa.
— Como se fosse fácil ...
A enfermeira entrou logo em seguida e eu perguntei se poderia
colocar alguma roupa e sair da cama.
— Sim, acho que posso ajudá-la.
Ela saiu do quarto e retornou com uma mala contendo algumas coisas
e eu sinceramente não me lembrava de nada daquilo. Sim, pareciam as roupas
que eu usava. Mas não eram as mesmas, definitivamente. Claro que eu não
teria as mesmas roupas de sete anos atrás, pensei irônica, fazendo uma careta
de dor, enquanto ela me ajudava a vesti-las. E depois me deu um espelho.
— Talvez queira arrumar os cabelos.
Eu nunca fui muito ligada em aparência nem nada disso, mas estava
meio ansiosa quando peguei o espelho e dei um suspiro de alívio ao ver que
eu não tinha mudado absolutamente nada. Até meus cabelos continuavam os
mesmos, talvez um pouco mais compridos.
— Não mudei nada — murmurei como se fosse para mim mesma,
tentando ajeitar as ondas do meu cabelo castanho ondulado.
— Não mesmo.
Levantei a cabeça assustada ao ouvir a voz inconfundível. Luke me
fitava com um sorriso contido.
Eu fiquei vermelha.
— Oi — falei meio apalermada dando o espelho para a enfermeira.
— Oi, Ella.
— Onde estava? — Oh droga, estava mesmo o questionando? De
onde saíra aquilo?
— Precisava resolver umas coisas, mas planejava estar aqui quando
você acordasse.
— Claro que sim. Deve ter uma vida. Não precisa ficar me pajeando
vinte e quatro horas por dia.
— Vejo que encontrou suas roupas.
— Sim, embora não pareça minhas roupas.
A enfermeira aproximou-se novamente.
— Você disse que gostaria de sair da cama.
— Eu queria mesmo. Sinto-me uma inválida deitada aqui.
A enfermeira se posicionou para me ajudar, mas Luke a dispensou.
— Deixe que eu a ajudo.
Luke me pegou no colo e meu rosto ficou a centímetros do dele. Ele
tinha olhos verdadeiramente lindos.
Passei o braço em volta do seu pescoço, para minha surpresa,
apreciando aquele contato.
Era tão... natural. Quase fácil demais, ficar ali, fitando seu rosto tão
próximo do meu, seus braços em volta de mim. E de repente sentir um calor
repentino se espalhando por meu corpo e uma fraqueza quase absurda. Mas
durou muito pouco, ele me colocou no sofá e voltei a sentir frio. Estremeci.
— Está com frio?
Sacudi a cabeça afirmativamente.
— Não gosto muito de frio... Estamos no inverno? — Era estranho
não saber nem em que estação do ano estávamos.
— No outono.
— Preciso te fazer algumas perguntas.
— Se eu puder responder...
— Como assim "se puder responder"?
— Eu conversei com o médico, e ele acha que você ainda está
bastante confusa e se encher sua cabeça com muita informação de uma vez
pode ser pior.
— Isso e ridículo! Eu preciso saber!
— Você precisa lembrar.
— Quer dizer que ficarei no escuro até que me lembre, é isso?
— Não, eu ajudarei você a lembrar.
Isso me deixou frustrada, mas tentei me controlar.
— Certo. Então vamos ver o que pode me responder.
— Pergunte.
— Por acaso nosso relacionamento é... — Sabia que estava ficando
vermelha e me senti ridícula, mas tinha que perguntar — relacionamento
amoroso?
Luke fitou o chão por alguns minutos, o rosto pensativo e então me
encarou muito sério.
— Como você se sente sobre isso?
Oh. Então a resposta era mesmo afirmativa?
— Muito estranha. Eu não conheço você. Na minha mente eu ainda
estou namorando outro pessoa — murmurei me lembrando de Toby.
O que teria acontecido com ele nesses sete anos? Há quanto tempo
não estávamos mais juntos? Quando foi que eu o troquei por esse cara na
minha frente? Se é que eu tinha pulado de um para o outro. Poderia ter vários
outros caras no meio da história.
Esse pensamento me perturbou e sacudi a cabeça para afastá-lo. Já
bastava ter que lidar com Luke. Não dava para lidar no momento com mais
gente desconhecida. Eu queria perguntar para ele sobre Toby, mas me calei.
Ele estava bem sério me fitando daquele jeito que parecia estar com o peso do
mundo nas costas.
— E nós trabalhamos juntos na St. James?
— Sim.
— E você é um St. James, então... — Tento me lembrar o que tinha
pesquisado sobre a empresa na internet. O CEO era Anthony St. James.
Lembro de ter ficado impressionada com sua foto. Era um homem distinto de
cinquenta e poucos anos muito bonito.
Será que Luke era parente de Anthony?
— Sim, eu sou um St. James — Luke respondeu pacientemente
esperando que eu concluísse meu pensamento.
Era quase como se esperasse que eu achasse as respostas dentro de
mim. Mas não havia nada na minha mente, por mais que tentasse.
— Eu me lembro de ter pesquisado sobre Anthony St. James...
— Sim, meu pai.
— Oh — Fiquei impressionada. Então Luke era o filho do dono da
empresa. Como diabos eu tinha me envolvido com ele? — E nós... Bem, eu
me lembro que eu realmente tinha um namorado. Então como foi que isso...
— fiz um gesto abrangendo nós dois — aconteceu?
Ele não respondeu.
— Oh, pergunta proibida? Você não está ajudando muito!
— Eu vou responder suas perguntas, se você não se lembrar.
— E qual é o meu prazo?
— Até sair do hospital.
— Quando vou sair daqui? — Eu me enchi de esperança.
— Talvez alguns dias.
— Ainda bem!
De repente um celular tocou. Ele pegou do bolso e franziu a testa.
— Me desculpe, preciso atender.
Saiu do quarto e eu mordi a língua, louca de vontade de perguntar
quem era. Mas ele voltou rapidamente. Parecia... tenso.
— Eu preciso ir.
— Claro. — Tentei parecer despreocupada e refrear a vontade de
implorar para ele ficar.
Eu não me lembrava de ser tão carente antes. Será que eu era assim
agora, ou apenas por causa da situação que vivia?
— Você ficará bem?
— Tão bem quanto uma pessoa que não lembra de nada pode ficar —
respondi triste.
— Eu voltarei à noite.
— Não precisa — respondi rápido.
— Ella... — Ele parecia estar prestes a repreender uma criança.
— É sério, Luke. Não precisa ficar aqui me vigiando. Eu ficarei bem.
“Tentando forçar a minha mente lembrar onde você se encaixa na
minha vida, já que não quer me dizer!”, pensei um tanto frustrada.
— Certo. — Ele olhou o relógio. — Eu voltarei amanhã, tenho
mesmo que trabalhar...
— Trabalhar? Aqui em Nova York? — Eu me senti curiosa.
— Sim. Agora eu preciso mesmo ir.
E sem aviso, ele se inclinou e beijou minha testa. Foi rápido e
inesperado. Fechei os olhos na fração de segundos que durou o contato de
seus lábios contra minha pele e quando abri, Luke já tinha desaparecido.

Naquela noite, Luke realmente não apareceu e, sozinha, eu me


perguntava se não tinha sido precipitada em dispensá-lo.
Sentindo-me sozinha, liguei para meu pai.
Era como eu me lembrava.
Na minha mente havíamos conversado antes de eu sair para ir para
Seattle. Uma viagem de duas horas. Ele estava preocupado que eu iria dirigir
para tão longe pela primeira vez. Não parecia contente que eu fosse trabalhar
em vez de ir para a faculdade como ele e minha mãe queriam. Eu havia o
tranquilizado. Tinha garantido que seria cuidadosa. Que estaria de volta em
pouco tempo e implorado para que ele e mamãe estivessem em casa para o
jantar, para que pudéssemos conversar sobre como seria minha vida a partir
de então, me mudando para outra cidade. Eu estava confiante que ia
conseguir aquele emprego. Estava ansiosa para minha nova vida.
Uma nova vida que tinha perdido em minha memória agora.
— Pai, por que não está aqui? — choraminguei como uma menininha.
— Sua mãe te explicou, querida. Estamos passando por um grande
desastre aqui. Muita gente precisa de nós...
— Eu preciso de vocês!
— Mas você estava fora de perigo e Luke achou melhor...
A menção de Luke tomando conta de tudo me irritou.
— Claro, Luke. O cara que eu nem sei quem é!
— Não fale assim. Você apenas não se lembra. Mas é temporário...
— E se não for? — externei meu maior medo.
— Tenho certeza que é sim. Não fique preocupada, não te fará bem.
— Eu me sinto sozinha...
— Não está sozinha. Luke está cuidando de tudo...
Meu Deus, por que todo mundo achava que Luke era a solução para
todos meus problemas? Será que ninguém percebia que ele não era nada para
mim?
— Eu quero voltar para Aberdeen. Vem me buscar, pai...
— Querida, não faça isso. Eu sei que é difícil entender, mas confie no
Luke...
— Eu não conheço o Luke! Por que estão fazendo isso comigo? Eu
sei que já passou sete anos e...
— Sim, e você é adulta e tem sua vida, Ella. Tudo vai ficar bem,
precisa apenas se acalmar e tratar de melhorar para que sua memória
volte...
— Certo, eu entendi. Parece que mais coisas mudaram nesses sete
anos do que eu imaginava...— Desliguei sem me despedir me sentindo mais
confusa e sozinha do que nunca.
Eu não era mais aquela adolescente que dependia dos pais para viver.
Eu era uma adulta agora. Só não sabia como aquilo tinha acontecido.

Luke voltou na manhã seguinte e por mais que eu pedisse que


conversasse comigo, ele se negava. Então, eu o mandei embora e pedi
também que não se desse ao trabalho de voltar.
— Ella, não seja infantil.
— Eu posso ser infantil! Na minha cabeça eu tenho dezoito anos e
então posso muito bem agir assim! — gritei sabendo mesmo que estava
sendo ridícula, mas frustrada demais com os buracos na minha mente para
agir de outra maneira.
— Tudo bem. Você está nervosa. Amanhã nós conversaremos.
Eu não respondi e ele se foi.
Naquele dia eu chorei pela primeira vez. Sentindo-me péssima por
toda aquela confusão da minha mente.

Como prometido, no dia seguinte, Luke voltou. E eu o tratei friamente


e ele não falou nada. Apenas ficou no quarto me observando enquanto eu lia
um livro, que a enfermeira tinha me arranjado depois que eu pedi que ela me
trouxesse alguma coisa para me distrair antes que eu enlouquecesse.
Depois, acho que ele se cansou e foi embora. Eu levantei o olhar do
livro e suspirei tristemente. Nos dias que se seguiram, aconteceu a mesma
coisa. Ele aparecia, eu o tratava como se não o conhecesse — e não conhecia
mesmo, pensei irônica — e ele se cansava e partia.
Ao final de uma semana, eu já me sentia muito melhor e comecei a
ficar ansiosa para ir embora. Voltar para Aberdeen. Voltar para minha vida.
Embora isso me deixasse um pouco apreensiva. Para que vida eu voltaria? Eu
não sabia. Mas pelo menos eu podia insistir que minha família me contasse o
que tinha acontecido comigo em sete anos. Porque eu ainda não me lembrava
de absolutamente nada. E cada dia que passava, mais angustiada eu ficava.
Meus pais ainda não conseguiam saber quando sairiam da África. E
pareciam muito tranquilos por eu estar melhorando. Mas eles não entediam
que fisicamente eu podia estar quase perfeita, mas emocionalmente eu estava
destruída.
Angustiada, coloquei o livro que tentava ler de lado e me levantei,
agora eu já podia me locomover sozinha sem achar que ia desmaiar ou sentir
muita dor. Ainda me sentia meio estranha, mas tudo bem. Caminhei pelo
quarto e me sentindo confinada saí para o corredor.
E se eu saísse do hospital, alguém me barraria? Eu quase fiz isso, mas
eu iria para onde? Nem sabia onde estava minha bolsa, documentos... Então
eu parei. Claro, como eu era idiota. Por que eu não perguntara antes? Eu
devia ter uma bolsa. E podia fuçar e ver se descobria alguma coisa.
Estava voltando para o quarto para chamar a enfermeira, quando vi
um jornal em cima de um banco. Eu o peguei, curiosa. Melhor me atualizar.
Afinal, estava sete anos atrasada!
Voltei para o quarto, folheando o jornal e então uma chamada de
matéria me chamou atenção e parei, sentindo uma vertigem.
Toby estava no jornal.
Havia uma foto dele ao lado de outros dois homens. A matéria era
sobre o mercado financeiro e dizia que Toby trabalhava numa tal empresa
chamada AJ Investiments.
Eu li rapidamente a matéria. Não falava muita coisa, na verdade era só
uma nota.
O que Toby estava fazendo ali, em Nova York também?
Eu senti meu coração disparar no peito com a possibilidade de
encontrá-lo. Não podia ser só uma coincidência! Toby morava e trabalhava
ali em Nova York e eu estava aqui agora também. Lembrei-me que minha
mãe dissera que Toby e eu não estávamos mais juntos, mas não era possível
que não tivéssemos nenhum contato! E se ele estava ali na mesma cidade que
eu, por que não viera me ver no hospital? Será que não sabia do meu
acidente?
De repente uma ideia me ocorreu.

Algum tempo depois, eu estava entrando em um táxi me sentindo


meio insegura do que estava fazendo. Mas pela primeira vez, desde o dia em
que acordara naquele hospital, sentia que podia haver uma saída. Toby era
uma pessoa do meu passado. O passado que para mim não estava há sete anos
e sim há poucos dias de distância. E agora eu ia falar com ele.
Assim que tomei a decisão de ir vê-lo, chamei a enfermeira e pedi que
ela trouxesse a minha bolsa. Ela parecera meio insegura quando saiu do
quarto, mas depois de alguns minutos retornou com uma pequena bolsa preta.
Joguei tudo em cima da cama, ansiosa, mas não havia nada demais.
Um bolo de chaves, onde constava a chave de um carro, uma carteira
com minha identidade apenas e algum dinheiro.
Eu nunca fora de andar com a bolsa cheia de quinquilharia como
muitas mulheres e agora isso se voltava contra mim! Mas aquilo bastava.
Peguei o telefone e liguei para o serviço telefônico e solicitei o endereço da
tal AJ Investiments. Não foi difícil.
Sem pensar duas vezes, peguei a bolsa e saí do quarto e para minha
sorte, ninguém me barrou até que eu chegasse à rua e pegasse o táxi.
— Aonde vamos? — o motorista perguntou.
Informei-lhe o endereço e fiquei olhando as ruas movimentadas pelas
quais passávamos, torcendo a mão nervosamente.
— É aqui. — O motorista parou em frente a um bonito prédio
envidraçado.
— Obrigada.
Desci do carro e caminhei resoluta, indiferente ao vento frio que me
cortava o rosto. Algumas pessoas me olhavam curiosas quando entrei no
prédio e fui até a recepção.
— Por favor, onde posso encontrar Toby Nelson? — indaguei a uma
moça com uniforme azul.
Ela sorriu para mim.
— Olá, senhora, não esperava vê-la por aqui.
Eu franzi o rosto.
— Nos conhecemos?
Ela riu meio sem graça, ficando vermelha.
— Não, mas quem não te conhece!
Eu franzi ainda mais o cenho, sem entender. Mas eu tinha coisas mais
urgentes para tratar naquele momento.
— Certo. Pode me dizer onde o Toby está?
— Claro. Ele está no vigésimo andar.
Ela me indicou o caminho para os elevadores e segui em frente.
No vigésimo andar, saí do elevador sem saber para onde ir, mas segui
pelo elegante corredor até que ouvi a voz conhecida.
— Ella!
Eu me virei e lá estava ele. Toby Nelson.
Eu sorri, sentindo um alívio no peito.
— Toby! — Fui em sua direção notando que ele estava um tanto
diferente do que eu imaginava. Ele usava agora os cabelos loiros mais curtos
do que antes e sua pele não tinha mais aquele bronzeado de quem passava
muito tempo ao ar livre. E em vez dos jeans e camiseta, usava um terno bem
cortado, mas ainda era o mesmo Toby das minhas lembranças.
— Ella, o que faz aqui? — Seu semblante era grave e surpreso.
— Oi! — Eu me aproximei. Tentando lembrar que aquele ali não era
mais meu namorado. Mas aquele era o cara que eu namorava desde os meus
dezesseis anos. Meu primeiro e até onde eu sabia, único namorado.
— O que está fazendo aqui?
Eu dei de ombros, me obrigando a controlar minha ansiedade.
— Preciso conversar com você.
— Não acho uma boa ideia, Ella.
— Olha, Toby, sei que faz sete anos, mas aconteceram algumas
coisas, eu sofri este acidente e...
— Eu sei. Você está bem?
— Você sabia? — Tentei conter a mágoa por ele saber que eu estava
hospitalizada e nem ir me ver.
— Sim, sabia.
— E nem foi me visitar!
Ele deu um riso nervoso.
— Me disseram que você estava bem, e você sabe por que não era boa
ideia...
— Sei? Olha Toby, você precisa saber de uma coisa. Sei que deve
estar ocupado agora, mas preciso mesmo, muito, conversar com você, eu não
me lembro... — Percebi os rostos curiosos das pessoas que passavam pelo
corredor — Droga! Será que a gente podia conversar com calma em algum
lugar, por favor?
— Eu não sei... Eu não quero mais problemas, da última vez que
esteve aqui... Você sabe o que aconteceu. O Luke pode não gostar de vê-la
aqui na minha companhia.
— Luke? — Um alarme soou na minha mente.
— Quem mais? Seu marido parece não gostar muito que converse
comigo...
Senti uma vertigem me cegando e tive que me segurar na parede para
não cair.
— Marido? — sussurrei, horrorizada. Como assim “marido”? Ele
estava querendo dizer que eu era casada com aquele homem que mal
conhecia? Comecei a sentir que realmente podia desmaiar.
— Ella?
Ouvi a voz agora conhecida atrás de mim e me virei, ainda tonta.
Luke me encarava com o semblante furioso, mas de repente mudou para
preocupado.
— Você está bem?
— Não... — murmurei sentindo tudo girando ao meu redor.
E a última coisa que me lembro antes de desmaiar era de braços
protetores me apoiando para que eu não fosse ao chão.
***

O que escolhemos esquecer será lançamento na Amazon em


novembro.
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Sinopse
Até onde o amor nos faz ser cúmplices das coisas mais terríveis?
Vista de fora, a vida de Ana e Gael parecia muito próxima da ideal: a casa perfeita,
em frente à praia, planejada com esmero por ele; os dias sossegados de uma família um
tanto introspectiva, mas íntima. A antiga atração irresistível que sentiam um pelo outro
havia se transformado em algo muito diferente. Tão imprevisíveis quanto os humores do
mar, as circunstâncias haviam exigido deles a maior das intimidades. Juntos,
compartilhavam um grande segredo. Toda essa suposta tranquilidade foi imediatamente
abalada com a chegada de misteriosos vizinhos.
Desde que Ana avistara aquela mulher desconhecida aos prantos na praia, o castelo
de areia que havia construído para si começou a desmoronar. O mar revolto e impetuoso de
que tinha tanto medo desde criança agora lhe cobrava que verdades assustadoras fossem
reveladas. Não havia mais como fugir.
Sobre a autora

Juliana Dantas – Leitora voraz de romances, trabalhou durante anos em uma grande
rede de livrarias, onde teve a oportunidade de se dedicar à sua grande paixão: os livros.
Envolveu-se com a escrita em 2006, escrevendo fanfics dos seus seriados e livros
preferidos. Estreou na Amazon em 2016 e hoje conta com 28 títulos na plataforma Kindle
e livros publicados pela Editora Pandorga e Volúpia Editora. Em 2019 lançará um livro
inédito pelo selo Harlequin, da Editora Harper Collins e continuará se dedicando
integralmente a escrita enquanto planeja viagens pelo mundo, sua outra grande paixão.

E-books Publicados na Amazon:


O Leão de Wall Street
Vendetta – Livro 1
Vendetta – Livro 2
Vendetta – Livro 3
Vendetta – Livro 4
A Verdade Oculta
Segredos que ferem
Linha da Vida
Longe do Paraíso
Espinhos no Paraiso
Juntos no Paraíso
Espera – Um conto de O Leão de Wall Street
Cinzas do Passado
Trilogia Dark Paradise (Box)
A Outra
Segredos e Mentiras
Uma vida extraordinária
Por um sonho
O Highlander nas sombras
Quando você chegou
O segurança de Wall Street
Uma noiva de Natal
Box Vendetta
Uma noiva de natal
Um noivado nada discreto
O dia dos namorados de Julie e Simon
Um sonho de princesa
As infinitas possibilidades do nunca
No silêncio do mar

Livros físicos

A verdade oculta – Editora Pandorga


Segredos e Mentiras – Editora Volúpia
Quando você chegou – Editora Volúpia
Uma noiva de Natal – Independente
Um noivado nada discreto – Independente
No silêncio do Mar – Harlequin

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