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Três alqueires e uma vaca

Gustavo Corção
7ª edição — setembro de 2020 — CEDET
Copyright © 2019 Herdeiros de Gustavo Corção
1ª edição: Três alqueires e uma vaca. Agir, 1946.
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Editor:
omaz Perroni
Assistente editorial:
Verônica van Wijk Rezende
Revisão:
Paulo Rodrigues (in memoriam)
Preparação de texto:
Verônica van Wijk Rezende
Diagramação:
Mariana Kunii
Capa:
Vicente Pessôa
Ilustração da capa:
G. K. Chesterton, ca. 1930.
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Corção, Gustavo.
Três alqueires e uma vaca / Gustavo Corção — Campinas, sp: Vide Editorial, 2020.
isbn: 978-65-87138-06-0
1. Ensaios. 2. Literatura brasileira.
I. Gustavo Corção II. Título
cdd — 864 / B869
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Ensaios — 864
2. Literatura brasileira — B869

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
PARTE I: O   C

Um grande escritor
Re exões inúteis sobre escritores inúteis
O falso e o genuíno
Há um enigma em cada carta
Há uma carta em cada livro
Ecce homo
O homem que não quis uma ilha
Re exões sobre a quantidade
A variedade na unidade
Uma aparição e uma objeção
Pés e polegadas
Acrobata do bom senso
O paradoxo contra o lugar-comum
O combate e o con ito
PARTE II: O    

Campeão de idéias
Três ou quatro capítulos omitidos
A coroa de idéias
Um bom parceiro
Idéias e doutrina
Três idéias e três damas
PARTE III: P   ...

Apolo
Dionysos
O mistério
O difícil torna-se fácil
Uma quadrilha de ladrões
A primeira vez
A monotonia
O mistério da infância
O crime
Um gigante de duas cabeças
Uma restrição
A casa do mistério
PARTE IV: P   ...

O bárbaro
O esperto
Ditadura e divórcio
A história da astúcia
A lei da memória
A superstição do juramento
A história do juramento
O contrato
Diálogo sem princípio nem m
Carta expressa sobre o vínculo conjugal
Democracia e tradição
PARTE V: P   ...

O paraíso terrestre
O herdeiro
O asceta
O distributismo
Objeções
Capitalismo e socialismo
O gigantismo
Propriedade e uso
A casa
São Martinho, distributista
O direito de possuir os próprios cabelos
N  R
À minha mãe
PARTE I: O  
C
Tu o colocaste logo abaixo dos anjos.

— Salmo 20
U  
Não me lembro de ter notado, em 1936, a repercussão produzida pelo desaparecimento dessa
grande gura do pensamento moderno que foi Gilbert Keith Chesterton. Naquele tempo, é
verdade, um luto próximo trazia-me desinteressado dos acontecimentos literários e das
mortes distantes; devo assinalar, todavia, que ocorreu nesse tempo, exatamente na época de
seu desaparecimento, o meu primeiro encontro com sua obra, começando então a viver para
mim a voz poderosa e cordial, que durante meio século vivi cara uma civilização adoentada,
com um riso salubre e com um atlético bom senso. Não dei pelo seu desaparecimento, mas
senti, com a impetuosa evidência de uma janela aberta, o seu aparecimento. E creio que esse
fato, que para mim teve tamanha importância e se revestiu de tão nítido contraste, vem se
processando de modo análogo em relação ao mundo inteiro: Chesterton está crescendo. O
mundo que o perdeu não avaliou a justa medida do que perdia; agora, os que o encontram
começam a se admirar com o que encontraram.

Chesterton é, efetivamente, um grande escritor. Receio que esta simples frase nada diga ao
leitor, que mil vezes já a viu aplicada, ou como revelação de escritores que aparecem, ou como
elogio fúnebre dos que desaparecem. As admirações estão cansadas. Precisamos instalar
ampli cadores no estilo para conseguir um pequeno movimento de solicitude e de interesse;
ou então, se não gostamos de descomedimentos, devemos tentar a frase em outra ordem, na
esperança de dar às palavras um novo ânimo. Direi, pois, que Chesterton é um escritor
grande.

Sua grandeza é extensa e intensa: extensa, pela enorme área de assuntos que sua obra cobriu;
intensa pela força, pela viril energia com que aderiu, em todos os pontos, com violência, com
infatigável con ança, aos princípios básicos sobre os quais repousam os destinos do gênero
humano. Chesterton, no mais exato sentido, é um escritor. Tenho como certo que não há vidas
inúteis, mas tenho como certíssimo que a maior parte dos livros são inúteis, no sentido mais
duro e mais triste do termo. Não há vidas inúteis: a mais obscura, que ainda traga aceso e
quente o mais malogrado coração, é ainda um bem inestimável e insubstituível, único no
gênero, necessário à harmonia do universo. A vida daquele homem que passa com um cesto
de legumes na cabeça é — talvez ele não saiba — uma coisa cobiçada! A vida mais amena
daquele outro que pisa o arranco do automóvel — ele talvez já o tenha esquecido — é
disputada em áspera luta entre os arcanjos.

Não há vidas insigni cantes; mas há escritores insigni cantes, escritores cujas obras pouco
ou nada signi cam. E quando digo que Chesterton é um escritor, quero a ançar que sua obra
tem um sentido, ocupa um lugar, representa um papel, pesa, funciona. Quero dizer, em poucas
palavras, que a inteligência que se interesse, hoje, por entrar em contato com as realidades
mais signi cativas da cultura universal, que deseje vivamente estar inserida nesse hoje do
mundo, não pode deixar de lado, como peça meramente acessória, e quiçá inútil, a imensa
obra de Gilbert Keith Chesterton.
R   

As obras escritas, em todos os muitos gêneros, são em grande parte meros acidentes, ondas
fortuitas, que não chegam a car incorporadas, realmente incorporadas, nessa pirâmide das
grandes ofertas que o homem faz ao homem. Se não tiram, também não acrescentam.
Formam depósitos secundários de que vivem os livreiros e as traças. Funcionam como os
assuntos do dia, escândalos ou banquetes, não chegando a ser propriamente obras, mas
acontecimentos. Entram no calendário, nos salões, nas colunas da crítica e muitas vezes nas
academias, mas não aderem ao compacto e concreto mundo da verdade. Têm a natureza dos
passos de dança de que nem o chão guarda memória, ou a semelhança do palito que só
entretém um breve e subalterno contato com o alimento.

Há escritores (ai de nós!) cujo maior título é uma pontualidade ou uma atitude: estar
escrevendo. Vivem num particípio presente que não participa de um presente. Estão na
literatura como os generais na ativa. Reformados, vai-se-lhes o prestígio; mortos, ca um
registro nos almanaques e outro na sepultura. Há no mundo dois mundos, um de pedra e
outro de neblina: geologia e meteorologia. Na literatura há também montanhas e brisas. Os
livros que encontramos são, na maior parte, como as correntes de ar; e sua leitura tem a
brevidade e o enfado de uma gripe. Leu-se; sofreu-se; acabou-se.

O    
Esta divisão um pouco sumária, e talvez cândida demais, entre bons e maus livros, deve ser
esclarecida e subordinada a um critério para que o leitor não a interprete mal. Antes de mais
nada afasto qualquer idéia moralista; depois ponho também de lado o nível literário, isto é, a
aristocrática demarcação entre as obras requintadas e as mais rústicas e populares.

Quando falo em livros que pesam, e me lamento dos que não pesam, quero me referir a uma
distinção mais delicada — ou talvez mais brutal — do que aquela que geralmente se estabelece
entre um bom e um mau bife, entre o casaco bem-feito e um outro de mau pano ou defeituosa
costura. Essas serão, na acepção aqui adotada, avaliações puramente adjetivas. Têm
incontestável importância, sem dúvida, e cada dia maior, porque um dos aspectos mais tristes
da política moderna ou das mais recentes concepções de vida é certamente a degradação geral
das qualidades. A distinção que investigo, entretanto, é mais interior à natureza das coisas. Um
mau bife ainda é um bife; um mau casaco ainda veste.

Será então a verdade, ou a exatidão, do conteúdo de um livro o critério que estou buscando?
Será, por exemplo, o fato de ter sido Chesterton um católico, e portanto verdadeiro na medida
em que foi ortodoxo, o que constitui o primeiro título positivo de sua obra, e o que me
permite considerá-lo um grande escritor? Ouso dizer que não é isso. Um livro pode ser grande
e digno de interesse mesmo quando escrito contra a verdade. Estarei mais próximo, mais
quente, se disser que o primeiro divisor das obras humanas, de onde se tira a condição
primeira e eliminatória, não é tanto a verdade nelas contida, mas a sua ligação com a verdade.
Com amor ou com ódio, acerto ou desacerto, o primeiro traço sionômico de uma obra
humana deve ser a sua humanidade. Deve ser a conexão vital e real com as coisas do homem,
sua invencível tendência, colérica ou cordial, para tudo que nos toque na carne e no sangue.
Esse é o sinal que umas obras possuem e outras não. Sinal de participação na concórdia ou no
combate; notícia boa ou má (a ser veri cado logo depois), verdadeira ou falsa (a ser
cuidadosamente examinado); mas notícia que me faça pensar: “Isto é comigo”.

Antes de qualquer averiguação posterior, eu quero saber se o livro está escrito num idioma
terrestre, uma vez que os problemas selenitas ou marcianos só me interessam na medida,
remotamente provável, em que me possam dar algumas das soluções perdidas ou esquecidas
dos nossos próprios problemas. Tornou-se moda, hoje, ser antiindividualista,
antimatrimonial, anticaseiro, antibairrista, e antipatriota; mas ainda não houve lósofo, creio
eu, que desdobrasse a bandeira antiterrestre em nome de um internacionalismo sideral.
Apeguemo-nos pois ao planeta; à terra; ao barro; ao homem.

Ora, o que eu quero dizer, sem pretender entretanto um largo desenvolvimento de


demonstrações, é que existem obras, em arte e loso a, desprovidas desse interesse profundo
e vital, obras que não tratam do homem, que não lhe concernem, e que, nem ao menos para o
destruir, procuram atingi-lo. E é nesse ponto, nessa falta de contato, a meu ver, que se localiza
a mediocridade. Não são as blasfêmias — nessa ordem de idéias — que excluem a obra de
Nietzsche do campo onde os homens se golpeiam ou se abraçam; não diminuem a grandeza
do poeta, que pagou por elas elevado preço, e não é fácil rir e zombar de seus delírios. O que
imprime à sua obra um sinal de irremediável ridículo são os atentados ao homem em nome
do super-homem. O ateísmo dos marxistas não é também, nesse ponto de vista, a mancha
mais repulsiva dos seus tratados, mas o atentado contra o homem em nome do sub-homem.
Ambos são ridículos porque, sendo o mundo redondo, o super e o sub se tornam relativos e
muitas vezes se confundem.

Para dar mais nitidez à distinção pesquisada, direi que há duas grandes classes de autores
separadas por um abismo: os genuínos (melhores ou piores) e os falsi cados. Os primeiros
andam na grande linha que liga as origens aos destinos do homem, para acertar ou errar, para
blasfemar ou louvar; andam no encalço de uma pista, curvados, com paciência ou em delírio,
atentos às inúmeras e perturbadoras marcas deixadas pelos pés humanos. Os outros são
imitadores de gestos, índios de opereta, e pouco lhes importa que exista uma tribo amiga ou
que estejam acampados, além, numa clareira escondida, os sangüinários inimigos.

O primeiro sinal que um leitor prevenido deve procurar num livro, a meu ver, é o da
autenticidade. Antes de qualquer avaliação nal, antes de uma colocação mais rme, importa
distinguir se a obra vem das profundezas de um sujeito ou das meras superfícies, que apenas
espelham os gestos dos outros. O que importa, na voz de um livro, é que seja uma voz de
homem, e que as palavras dessa voz estejam ligadas à lenda desse rei que cada es nge de
esquina tenta devorar. O que importa, em suma, é que a obra seja uma Mensagem.
H     
Suponha o leitor que eu tenha encontrado em cima da mesa um papel com os seguintes sinais:
“asdx...jhkloda:cjkjhgfdslkjeto&umadoigdt...” Conforme o humor ou as circunstâncias,
formularei hipóteses diferentes. A mais romanesca consistirá em supor uma mensagem
cifrada, contendo ameaças de uma sociedade secreta ou a notícia de um tesouro enterrado.
Nesse caso, eu terei um interesse febril em decifrar a mensagem, pois sempre tive grande
atração pelos enigmas. Em menino, lembro-me bem, quei com a respiração suspensa quando
deparei o criptograma achado pelo aventureiro de Júlio Verne no Alto Amazonas. Haverá
quem não se emocione diante de um segredo? O enigma tem qualquer coisa de germinal: o
arcano é o agasalho de uma verdade nascente, é um ninho escondido, uma semente sepultada.
Consta que Galileu guardou em palavras enigmáticas a descoberta dos anéis de Saturno. À
primeira vista, o orentino estaria se precavendo contra as severidades eclesiásticas; mas essa
explicação não suporta a análise porque o mesmo Galileu não pôs em cifra, ao contrário
publicou-a, sua duvidosa exegese de textos bíblicos que interessava à Inquisição de modo mais
vivo do que os anéis de Saturno. Para mim, Galileu, como tantos outros, estava simplesmente
escondendo; ou então, plantando. Escondia na terra, como qualquer criança, que ainda tenha
dois palmos de quintal, costuma fazer com pedaços de boneca. Sentia que estava no limiar de
uma ciência, e sabia, como todos sabemos, que as grandes coisas nascem de uma semente de
mostarda.

O enigma é uma grande coisa. Agora é em enigma que vemos, diz São Paulo. Por isso, o fato
de encontrar mensagem tão bizarra como a que acima mencionei (ou como alguns versos de
Claudel ou Rimbaud), nunca produzirá em mim, em primeira e de nitiva instância, um
movimento de incredulidade e desdém. Aliás, não há carta sem enigmas. Por mais corpóreo
que seja o carteiro e por mais exata a noção que tenhamos de um serviço postal, a simples
chegada de uma carta já é um encantamento. Pouca coisa existe melhor do que receber uma
carta: quando se abre a caixa e, lá no fundo, no escuro, se vê a vaga brancura do envelope, a
impressão dominante é a de um achado. E haverá coisa melhor que achar? Haverá maior lucro
do que esse que não tem merecimento? Com a carta na mão, leio o endereço e logo penso:
“Isto é comigo”. Dentro está o segredo. Os homens de negócio abrem as cartas a faca, aos
montes e sem emoção; mas nós, leitor, que temos rara correspondência, gostamos de
prolongar o segredo, gostamos de adiar a leitura, à espera de um desses momentos em que nos
parece que um minuto amadureceu.

Tudo isso ca dito para esclarecer (ou obscurecer) um ponto: não é o enigma, a bizarria da
missiva, que me desencorajará e me aconselhará a amarrotar o papel para deitá-lo na cesta. O
enigma, ao contrário, é uma força. Palavras, não há inteiramente claras, pois todas fazem parte
da peregrinante situação que levou o Apóstolo a dizer: Agora é em enigma que vemos. Há um
mistério num bom-dia. E, se dentro do envelope achado, leio uma participação de casamento,
numa dessas fórmulas geminadas em que os pais dos nubentes dão notícia de uma data, e
oferecem um endereço logo esquecido, resta ainda um mundo de mistérios, de hipóteses, de
previsões e presságios, depois da simples leitura do mais simples dos textos. Não. O enigma, o
segredo, não são obstáculos de nitivos; antes são convites.
Mas agora devemos considerar atentamente uma outra hipótese relativa àquela estranha
mensagem que encontrei, a qual, como o leitor perceberá, analisando a particularidade dos
sinais e considerando as circunstâncias, é mais plausível do que a do tesouro ou a da sociedade
secreta. Naqueles sinais, na posição do papel, na proximidade da máquina de escrever, e na
suspeita proximidade de minha lhinha de quatro anos, eu vejo, com elevado grau de
convicção, que não há enigma algum, mas apenas o resultado de um ensaio datilográ co.
Trata-se de uma simples imitação, ou da conseqüência de uma travessura, ou do fenômeno
que Spencer chama “transbordamento vital”. Aos quatro anos de idade o fenômeno assenta
bem, e não lhe pesa demais a faiscante denominação do psicólogo. Para Maria Luísa, escrever
à máquina é bater nas teclas; e, desde que o ruído das teclas e o som da campainha sejam os
mesmos, o resultado lhe parece tão legítimo e tão bom como qualquer outro. Em certos casos,
porém, essa con ança nos puros gestos se mantém até a idade madura, e o produto literário
sai com o ruído de literatura. Ora, essa imitação, sem clareza e sem segredo, que lembra aos
quarenta o transbordamento vital dos quatro anos, provém de uma coisa que nem
transbordou nem é vital; de uma coisa que não cresceu; ou então, de uma espécie de aborto,
que transbordou para morrer.

H     


Foi Stevenson que assim escreveu: “Cada livro é, num sentido profundo, uma carta particular
aos amigos do escritor. Somente eles apreendem a signi cação inteira, descobrem a notícia
íntima, as a rmações de amor, as expressões de gratidão, espalhadas para ele em cada linha. O
público é apenas o generoso patrocinador que se incumbe das despesas postais”. Por aí já se vê
que a idéia não é nova, nem minha. Discordo porém de Stevenson no ponto em que ele exclui
a possibilidade de uma compreensão geral e comum. Temos que separar o princípio e o fato. O
fato em que ele se baseia é verdadeiro: a maioria dos leitores vive sepultada numa crosta
espessa, e já os gregos diziam “que nem os deuses podem com a burrice dos homens”. Em
princípio, porém, um livro bem-feito, uma obra marcada com o selo da autenticidade, não é
uma carta especialmente dirigida a uma minoria privilegiada; é uma mensagem comum. Entre
o princípio e o fato, isto é, entre o que a obra tem de comum e a comunicabilidade que
encontra, estão os problemas graves, e cada dia mais agravados, da cultura, da educação e da
remoção dos obstáculos. O leite continua a ser lácteo no ubre das vacas, mas vai se tornando
cada vez mais incompreensível como se as vacas se tivessem tornado herméticas. O pão que
nos chega em casa é, para os dentes e para o estômago, um enigma sem solução. Assim
também, a palavra comum, nessa crise de comunicação e de distribuição que atinge o leite, o
pão, a arte e a loso a, não consegue atravessar nossas cidades cheias de escombros. Houve
uma época na História em que o homem não tinha caminhos cortados, só podendo uma
epístola chegar ao seu destino com grandes di culdades e através de aventuras terríveis.
Peregrinos caminhavam meses para buscar junto a um eremita três palavras santas. O próprio
Verbo encarnado andou em lombo de burro. Nesse tempo, a superfície da Terra era
recalcitrante à palavra; mas uma vez vencida, rasgado o caminho, a rústica dureza se
transformava em rústica delidade. Os obstáculos, hoje, não estão nos caminhos do chão, mas
nos caminhos do espírito. O mundo está atravancado de falsi cações.

A obra de Chesterton não é destinada a uma dúzia de indivíduos com certas a nidades
temperamentais: é uma obra comum. Se alguém teve e manteve uma inquebrantável
con ança, apesar de tudo, no entendimento, foi ele, esse combativo escritor para quem o
público era o destinatário, e não o generoso patrono de um serviço postal. Não enviava sua
mensagem, é certo, diretamente para o homem da rua, mas con ava em que alguns
intelectuais lhe zessem o favor de ler seu enorme recado para o pequenino e humilde
personagem, que foi sempre o objetivo nal de sua obra. Acreditava no entendimento, mas
acreditava também na variedade social, na necessidade de intermediários, e na necessidade
maior de remover os obstáculos. Sabia que tinha de começar pelos intelectuais, e começava
vivamente por eles.

Num sentido, porém, concordo inteiramente com Stevenson. Se um livro não é, e não deve
ser, para quem o escreve, uma carta dirigida a um pequeno grupo de amigos, na mão de um
leitor é muitas vezes uma carta recebida de um amigo. Para cada livro, por melhor que seja,
existe um grupo pequenino, um só leitor talvez, que o recebe de um modo particularmente
decisivo. Esse — o leitor de nossos sonhos — não recebe o conteúdo do livro apenas como
quem lucra alguma coisa e dela se sente acrescentado: recebe-o como se estivesse esperando
por ele, como se fosse uma carta, sim, mas uma carta de resposta. Linhas atrás referi-me ao
prazer de receber cartas. Que dizer, então, do gosto das respostas? Outra coisa não fazemos na
vida, na maior parte de nossas horas, senão esperar uma resposta. Os momentos mais
decisivos, para cada indivíduo, e para a humanidade, foram expectativas de uma resposta.

Por isso, quando acontece que um livro traga a força de uma resposta, uma profunda
reorganização se opera em nossa vida, como aconteceu com Rivière quando encontrou a obra
de Claudel. Outros poderão ensinar de maneira mais completa, trazer novas informações,
mais copiosos dados — esse traz, porém, o que eu andava procurando, sem saber muitas vezes
que procurava; esse, que dá corpo às sombras que eu pressentia, e responde a coisas que eu
nem sabia perguntar. E produz em mim um forte abalo com o mais estranho dos efeitos: faz-
me ser o que sou. Devolve-me a mim mesmo. E a primeira frase que ocorre é esta: “O livro
que eu queria ter escrito”. Mas a frase mais exata, mais aberta, mais generosa e mais grata é
essa: “O livro que foi escrito para mim”.

Muitos são os livros bons e proveitosos; mas raros são os que reti cam nossos nervos e
nossas idéias em conformidade com o que somos. E o encontro de um deles não é fácil,
porque, assim como árvores se escondem na oresta e os homens na multidão, os livros se
escondem na literatura e nas livrarias. Além disso, o encontro de um livro não consiste
simplesmente na interseção de trajetórias mecânicas que um dia o coloca nas mãos do leitor.
Essa condição, evidentemente necessária, não é bastante, pois o livro é um objeto situado no
mundo do espírito. Certos intermediários e certas preparações são indispensáveis para o
verdadeiro encontro com um livro.

Voltando, para maior precisão, a algumas considerações feitas atrás, diria que as obras
genuínas se comunicam, formando uma trama orgânica e quase viva; tocando uma delas,
entramos em contato com todas as que estão penduradas na mesma teia. Quem lê um desses
autores, lê também, através de uma especial refração, os livros que ele leu e muitos que, por
sua vez, ele recebeu através do mesmo processo indireto de assimilações. Há qualquer coisa de
Homero, de Tertuliano, de Santo Agostinho, de Erasmo, de Pascal, de Verlaine e de Proust,
num romance de Otávio de Faria ou num poema de Murilo Mendes. Citei aqueles nomes ao
acaso. A lista verdadeira e completa seria extensíssima e deveria incluir escultores, arquitetos e
músicos, de todos os tempos e todas as raças, sem falar nas in uências menores,
extraliterárias, proporcionadas pelas frases que se ouvem na rua, pelo olhar que se intercepta
num segundo e que se perde para sempre. Na cultura universal corre uma seiva comum,
tornando as obras comunicadas e comunicantes.

Ao contrário, no pastiche, na falsi cação, na contrafação, há qualquer coisa de inassimilável


e inassimilado, como um cálculo, que obstrui, que impede a circulação, e que proporciona ao
desprevenido a ilusão de ter encontrado a poesia, o romance, a loso a. E que imobiliza esse
desprevenido diante de um muro. O homem goza do estranho e inquietante privilégio de
poder falsi car tudo: o pão, o livro, a sua própria humanidade. Pode falsi car um deus. E no
paroxismo de todas essas falsi cações, torna-se mais estranho e mais inquietante quando
conclui que não existem falsi cações.

O encontro de um livro, que represente para nós uma carta de resposta, depende portanto
do auxílio de um bom intermediário, e do obstáculo formado pelo entulho de que o mundo
está cheio. E, nesse sentido, eu creio que a obra de Chesterton tem um mérito especial. Se não
está nela, está próxima a desejada resposta. Há certos autores que se situam em ricas
interseções, onde inúmeros pensamentos e destinos se cruzam e, ainda mesmo que suas obras
sejam explicitamente contrárias à Verdade, como as de Gide ou Nietzsche, podem
perfeitamente conduzir às zonas sadias da verdadeira tradição, porque a Verdade, embora
ultrajada, mutilada, martirizada, ainda as vivi ca com seu plasma. De Chesterton (como de
Maritain ou de Newman) pode-se dizer que é um foco de convergência onde facilmente
teremos notícia do ignoto autor que muitas vezes procuramos. Se é exato o que diz Stevenson,
e o que desenvolvi neste capítulo, isto é, se existem livros decisivos, mais próximos e mais
fraternais, para cada um de nós, Chesterton nos dará uma boa informação a esse respeito,
porque sua obra é extraordinariamente comum e extraordinariamente original.

E 
É original num sentido que ele mesmo vai de nir, ao defender Robert Browning, que alguns
críticos de idéias avançadas tachavam de convencional, por ter o poeta, o inglês, o gentleman,
o marido, proibido à esposa a freqüentação de certas rodas espíritas de duvidosa honestidade.
Robert Browning era, sem dúvida alguma, um homem completamente convencional. Muitos acham e dizem que o
convencionalismo é lamentável e deselegante, e assim estabelecem o que se pode chamar a convenção do
inconvencional. Mas esse horror ao convencional, quando se trata da pessoa de um poeta, só é possível para quem não
se lembre mais do sentido das palavras. Convenção signi ca simplesmente concordância e entendimento, e como todos
os poetas devem basear suas obras numa concordância emotiva entre os homens, resulta que todos os poetas baseiam
suas obras em convenções. Todas as artes — nem pode ser de outro modo — têm como fundamento uma convenção, e
pressupõem que certas objeções não sejam levantadas entre o autor e o leitor ou espectador. A arte mais realista ainda
está à mercê de objeções realistas. Ao mais exato drama de cada dia vindo da Noruega, o realista pode objetar que a
cena se passa numa sala em que uma das paredes foi retirada, e que os personagens estão durante todo o tempo se
comportando de modo excêntrico, porque seus atos, os mais triviais e mais íntimos, se realizam diante de uma carreira
de lâmpadas e de uma multidão de estranhos. Ao mais meticuloso e el desenhista que se possa conceber ainda é
possível dizer que ele está sendo convencional traçando ao longo de um nariz um risco preto que na realidade não
existe. O poeta também, precisamente do mesmo modo, e pela natureza das coisas, deve ser convencional. Terá de
descrever emoções que outros possam partilhar, porque de outro modo seu trabalho será completamente vão. Se um
poeta tivesse um sentimento original, como dizem, sentindo-se por exemplo subitamente apaixonado pelos
amortecedores de um vagão de estrada de ferro, ele teria uma grande di culdade e levaria muito tempo para comunicar
seus sentimentos.

A poesia cuida das coisas primeiras e convencionais — a fome de pão, o amor das mulheres, o riso das crianças, o
desejo de uma vida imortal. Se os homens tivessem, realmente, alguns sentimentos novos, a poesia não os poderia
traduzir. Se, por hipótese, um homem não tivesse um ávido desejo de comer pão, mas, à guisa de variante, sentisse uma
fresca e original ansiedade de comer parafusos de latão ou mesas de mogno, a poesia não o poderia ajudar na expressão
desses novos sentimentos. Se um homem, em vez de se enamorar de uma mulher, casse subitamente apaixonado por
um fóssil ou por uma anêmona, a poesia também não o poderia servir. A poesia só pode exprimir o que é original em
um sentido: no sentido em que falamos do pecado original. Ela é original, não pelo mesquinho motivo de ser nova, mas
pelo profundo motivo de ser antiga; é original porque lida com as origens.

A obra de Chesterton tem essa mesma marca de originalidade; ele mesmo se proclama um
independente, em relação ao preconceito do inconvencional, quando diz que reivindica a livre
escolha de todos os instrumentos do universo e que não pode admitir que um deles seja
condenado e escarnecido simplesmente por já ter sido usado. Sua mensagem toma
conhecimento dos antigos endereços e dos primeiros compromissos. Não desdenha o passado.
Não quer “armar um ninho na árvore do porvir”. Tratando dos problemas da redistribuição da
propriedade, que ocupam parte considerável de sua obra, e que seus contemporâneos
consideravam uma utopia, diz ele: “Eu mantenho o velho e místico dogma segundo o qual
aquilo que o homem fez o homem pode tornar a fazer; meus críticos parecem defender um
dogma muito mais místico quando dizem que o homem não pode fazer uma coisa, porque já a
fez”. Chesterton ouve, com indignação sublimada em humorismo, os rumores de uma
estranha conspiração promovida pelos homens de seu tempo: eles organizam a derrota da
própria espécie, em nome de uma espécie nova que será talvez como a dos deuses. Sabotam e
malbaratam o que já possuem, em nome de uma esperança cromossômica ou econômica.
Renegam relíquias e fósseis, deitam fora os guardados do mundo, ossos de mártires e faces de
faraós, para organizarem um álbum com os invisíveis retratos dos que ainda não nasceram.
Em todos os tempos os homens zeram as últimas vontades dos mortos; na nova era deverão
fazer as primeiras vontades dos recém-nascidos. A traição, porém, chama a traição; e esses
Azefs1 do gênero humano, com o mesmo entusiasmo com que rasgam os testamentos antigos
e novos, trapaceiam a primeira de todas as vontades humanas, que é nascer. São futuristas que
combatem sob a rubra bandeira do aborto e sob o multicor pavilhão do divórcio. Chesterton
denuncia a pusilanimidade dos revolucionários que já festejam o m da própria espécie.

O espírito moderno é impelido para o futuro por um sentimento de fadiga a que também
não falta o terror com que olha para o passado. O homem moderno não mais preserva a
memória de seus avós, mas empreende a tarefa de escrever a detalhada e minuciosa biogra a
dos seus bisnetos. Não crêem nos fantasmas dos mortos, mas estremecem com medo abjeto
perante a sombra dos fantasmas dos bebês que ainda não nasceram.

Chesterton é, em cada linha de sua enorme missiva, el à humanidade do homem. Crê no


everlasting man.2 De suas idéias, um leitor sincero e atento poderá dizer que são
extremamente audaciosas e extremamente triviais. Suas descobertas não são suas: “Deus e a
humanidade as zeram”. Quanto às suas aventuras, terríveis e fascinantes, ele as descreve no
primeiro capítulo de Orthodoxy, quando conta como veio, após travessia formidável, armado
até os dentes, e falando por sinais, arribar em país ignoto, onde plantou a bandeira britânica
num templo bárbaro que depois, observando melhor, veri cou ser o pavilhão de Brighton, em
sua terra natal. Descobria assim, com grande exultação, o que já estava descoberto: o
cristianismo, a Inglaterra, a paróquia de sua infância. Sua mensagem é extensa, rica e variada,
mas há nela uma nota insistente que tem a simplicidade, a monotonia e a inexauribilidade de
um bom-dia. Uma palavra de Píndaro, citada por Maritain na primeira página de seu grande
livro sobre educação, e escolhida por Nietzsche para epígrafe de seu último livro, Ecce homo,
essa palavra se encontra subjacente da primeira à última página de Chesterton: “Tornemo-nos
o que somos”. E essa palavra é desfraldada por ele como a bandeira de uma verdadeira
revolução. Terminando o livro sobre socialismo e capitalismo, e Outline of Sanity, onde
mostra a profunda semelhança daqueles dois regimes, e onde advoga a distribuição da
propriedade como um elemento indispensável à dignidade e à liberdade do homem, diz ele:
Contento-me em sonhar com a velha e fatigante democracia que pode proporcionar um pouco de vida humana, tanto
quanto possível, a cada ser humano; enquanto o brilhante autor de Os primeiros homens na lua tenciona, decerto, nos
deleitar brevemente com um romance chamado O último homem na terra. E, na verdade, eu creio que, no dia em que
perderem o garbo da propriedade pessoal, eles terão perdido alguma coisa que faz parte da ereta postura, do equilíbrio
e da rmeza dos pés sobre o planeta. Nesse meio-tempo, eu estou sentado entre rebanhos de operários superfatigados e
de funcionários subnutridos; leio a futura lenda dos homens como deuses; e me pergunto quando os homens se
parecerão com homens.

O      


Um dia (faltam-me os detalhes) alguém organizou um inquérito literário que continha, entre
outras, a seguinte pergunta: “Que livro quereria você salvar se naufragasse numa ilha
deserta?”. Evidentemente a metáfora era ociosa; a ilha e o naufrágio eram inúteis. O inquiridor
queria simplesmente um nome de livro; mas, levado pela complexidade mental que atinge
certos indivíduos ao se aproximarem das zonas literárias, achou mais elegante meter na
pergunta catástrofes e acidentes geográ cos. Estou certo, e apostaria, que muitos
entrevistados, compreendendo a intenção da pergunta, e já fartamente habituados à idéia de
que literatura é um ameno exercício de palavras inúteis, responderam com nomes de livros
raros ou notórios, sutis ou portentosos. Houve certamente quem escolhesse Homero ou Pascal
por Sexta-feira.3 Aliás, aproveitando esta oportunidade, devo dizer que não creio em
inquéritos, e que os considero como provocadores de muita vaidade adormecida. Interrogar
um sujeito sobre o que prefere é quase sempre despertar nele uma dúzia de demônios. O
interrogado geralmente diz que gosta do que gostaria de gostar. Raramente confessará, com a
grande simplicidade do Presidente Roosevelt, que gosta de romances policiais.

Dois entrevistados, porém, prestaram atenção às circunstâncias que a pergunta envolvia. Um


deles, sabendo que ia a nal naufragar numa ilha deserta, entrou em hilariantes convulsões
antiliterárias: “Livro? Livro? Permitam-me que na ilha deserta, ao menos, que livre deles!”.
Essa é a resposta previsível e característica dessa espécie de indivíduos chamados intelectuais,
que prova uma irremediável fadiga intelectual e um mal disfarçado desgosto da humanidade.
Ou então é simplesmente a resposta de um engraçado por ofício.

O outro, que considerou atentamente a hipótese da ilha, foi Chesterton. Tomou a pergunta
ao pé da letra, como ele mesmo disse que São Francisco costumava fazer. Símbolos, alegorias,
metáforas, hipérboles e parábolas, terão seus valores próprios, incontestavelmente, mas para
ambos, o santo e o homem de bom senso, as perguntas merecem atenção, primeiro, para o
sentido imediato e direto. Uma vez, em êxtase, São Francisco ouviu uma voz dizer que a Igreja
de Deus ameaçava cair. Como estivesse numa igreja, a primeira idéia singela que ocorreu ao
bom idiota de Deus foi olhar as paredes que, efetivamente, estavam em mau estado. Tomou o
aviso ao pé da letra e fez-se pedreiro do Cristo. Aconteceu, porém, que, tendo consertado as
paredes, consertou também, com o auxílio de Domingos, as outras que Inocêncio  vira
oscilar em sonhos.

Essa capacidade de ouvir, tornada hoje um fenômeno, quase um exotismo, pertence aos
homens fortes. Caracteriza verdadeiramente os espíritos combativos. A esse respeito diz
Chesterton: “O sincero polemista é acima de tudo um bom ouvinte. O entusiasmo
verdadeiramente fogoso nunca interrompe; ao contrário, ele presta atenção aos argumentos do
adversário tão ardentemente quanto o espião sonda e ausculta as disposições do campo
inimigo”.

Tendo pois ouvido, e tomado ao pé da letra a pergunta, ele respondeu como São Francisco
de Assis teria, talvez, respondido; pois, no dizer de Chesterton,4 o santo surpreendia sempre
com o que fazia, mas logo depois deixava nas pessoas a impressão de que ele tinha dito ou
feito a única coisa possível e razoável. Assim, Chesterton respondeu que desejaria ter na ilha
deserta O manual do construtor de botes.

Não é o bom humor inesperado da resposta que mais importa; há dentro dele um sentido
profundo que constitui o traço mais forte de sua sionomia. Diante do malsão aspecto da
pergunta, sua reação foi brusca e reti cadora. Ao contrário do cético, ele não queria a ilha
deserta, e já que o forçavam a admitir a hipótese, ele tratava de se precaver com os meios de
sair da ilha o mais depressa possível, e de voltar para a comunidade dos homens e para a sua
povoadíssima Ilha. Queria o bote. Queria também os livros de sua biblioteca, todos, um por
um, porque era bom lho da antiga Sabedoria “que se deleitava em brincar na terra, entre os
homens”.

R   


Disse atrás que a obra de Chesterton era extensa. São quase oitenta volumes. Não sei se o leitor
faz uma idéia, aproximada sequer, da magnitude dessa cifra em livros. A mim, que estou num
magro segundo volume, e já cansado, esse número evoca as páginas da Astronomia popular de
Flammarion, onde o autor faz comparações entre a Terra e o sol, ou se diverte com malabares
de anos-luz para mostrar que a distância de Sirius escapa completamente à idéia que temos de
distância. Na verdade, não há nada menos expressivo do que um número. Foi Taine que
provou, já não me lembro como, que o homem não consegue imaginar, realmente, um
número maior que cinco ou sete. Uma das provas dessa incapacidade do número em suscitar
idéias é, aliás, fornecida pelos indivíduos que diante dos menores problemas costumam
reclamar severamente as cifras. Muitas estatísticas, por exemplo, são traduzidas em guras
onde se vê um homenzinho crescer ou diminuir, de ano em ano, de um modo anormal. Na
mais abstrata das hipóteses, os relatórios se traduzem em mapas coloridos com que os atuários
adornam suas paredes, seguindo aliás um velhíssimo instinto porque, conforme Chesterton
notou no seu Everlasting Man, o mais antigo sinal do homem das cavernas são guras murais.
A gura é mais forte do que o número: esse é o princípio básico da geometria cartesiana.

Por esse ou por aquele motivo é difícil imaginar o que sejam oitenta volumes escritos
durante uma vida. Como a presente edição deste livro não comporta ilustrações, faça o leitor,
se quiser, as guras ou cálculos.

Mas agora percebo que me enredei em contradições e que não deveria ter escrito este
capítulo sobre os oitenta volumes. Apesar das ressalvas, arrisquei-me a gravar no leitor a
impressão de que sou um admirador de metros cúbicos. Na verdade, eu admiro oitenta
volumes, mas quando são chestertonianos. Todo mundo sabe que a fecundidade mais se
encontra nas pragas, e que a tolice humana parece dispor de todos os recursos de reprodução,
multiplicação e cissiparidade.

Saí de uma di culdade para cair em outra. Fui simples demais diante dos oitenta volumes;
sou agora amargo diante de outras fecundidades, deixando descoberto algum ressentimento
pela mesquinharia da área de papel que já consegui cobrir com caracteres. O escrúpulo, como
a gaffe, é recorrente: emendar é piorar; corrigir é agravar. O melhor, nesses casos, é dar de
ombros e deixar ao leitor todas as suposições. Resta o fato: Chesterton escreveu cerca de
oitenta volumes; mas para fazer uma idéia mais exata é preciso multiplicar o número pela
variedade e pela qualidade.

A   
Quanto aos gêneros literários, Chesterton escreveu poemas, ensaios, biogra as, romances,
hagiogra as, e contos policiais; quanto aos assuntos, abordou a religião, a loso a, a história, a
etnologia, a pedagogia e a literatura. Toda essa variedade forma em sua obra um bloco, porque
justamente o que ele sempre procurou foi a unidade. Por uma extraordinária faculdade de se
interessar, raramente igualada, escreveu sobre Chaucer, Browning e Dickens; e depois sobre
Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. E o mesmo ardor se encontra nas páginas
que tratam da poesia e nas páginas que tratam da santidade; não porque fosse um borbulhante
e inquieto investigador de contrastes, que pula de coisa em coisa com gritos entusiásticos, sem
se deter em nenhuma, mas porque descobria sempre a mesma inesgotável coisa, a mesma
unidade dentro da diversidade, a mesma humanidade comum no poeta excepcional e no
Doutor Comum.
Em São Francisco de Assis, através dos mais romanescos acidentes, ele via, e nos mostrou, a
fraternal e essencial semelhança entre o santo e o vendeiro da esquina, como já tinha
mostrado a semelhança entre o vendeiro e o poeta. A página que atrás citei, sobre
originalidade e convenção, tanto se aplica à poesia como ao comércio de secos e molhados,
porque na verdade o que o autor procurou ali expor foi uma espécie de sistema métrico em
que o padrão, conforme Aristóteles, é o Homem.

U    


Detenho-me neste ponto porque tive uma aparição. Vi diante de mim um leitor mal-
humorado, a mexer-se na cadeira com ar de homem que tem muito o que dizer. Instado por
ele, passei-lhe a pena e o papel; e aqui está o que disse: “Ora essa! Isto que você diz, ou ainda
vai dizer, sobre o humanismo de Chesterton, se aplica a todos os escritores do universo, maus
ou bons. Qualquer indivíduo que escreve algumas linhas sobre a educação, para gabar os
testes de Binet-Simon ou para comparar o interesse pelo estudo ao apetite por uma salada
como Decroly, está, automaticamente, tratando de um problema humano. Você deixou-se
arrastar por frases, deixou-se enlear em adjetivos, e acabou dizendo coisas inevitáveis que
todo mundo está farto de saber. Com Aristóteles ou sem ele, ninguém duvida que o Rei Carlos
Magno tinha duas pernas, olhos e nariz, tudo distribuído aproximadamente segundo o padrão
universal. O Sr. Silva Melo, por exemplo, também escreveu sobre o homem. A mais estúpida e
dulçorosa vida de São Francisco de Assis, mal ou bem, está presa a essas condições
elementares: se o santo quisesse tomar uma sopa de pedra, como nas histórias de Pedro
Malazarte, não tinha outro remédio senão fazer um milagre para tornar a sopa menos
indigesta. O mais idiota dos livros sobre plani cações econômicas ou reformas pedagógicas,
também, em última análise, denota um interesse pela causa do homem. Diga-me você, se
quiser, e prove-o, que Chesterton foi mais verdadeiro no detalhe, nas soluções, na doutrina,
mas não me venha convencer de que ele foi um dos raríssimos autores que cuidou das coisas
comuns”.

A objeção desse leitor tem traços com que eu simpatizo e sua franqueza não me é de todo
desagradável; mas sou forçado a dizer-lhe que leia com atenção. As páginas que até aqui
escrevi seriam completamente inúteis, e a divisão que procurei adotar entre o genuíno e o
falso completamente arbitrária, se não fosse possível ao homem trair a sua humanidade.
Tentarei explicar-me melhor.

Na maioria dos casos, quando escreve sobre os testes Binet-Simon, ou sobre a melhor
reconstituição do Homem de Neanderthal, o autor é forçado a se fechar dentro de sua
especialização, dizendo com seus botões: “Estou tratando de pedagogia”. Ou então: “Estou
investigando em pré-história”. Essa atitude é perfeitamente legítima e nesse sentido nada tenho
a dizer, senão elogios, dos livros do Sr. Decroly ou do Sr. Lourenço Filho. Os técnicos são bons
e úteis; ótimos e utilíssimos. Quando porém se trata de usar os resultados parciais fornecidos
pelo pedagogo, pelo arqueólogo, pelo astrônomo, pelo gramático e pelo dentista, é
indispensável, para que a soma seja uma soma e não um mero ajuntamento, que todas aquelas
frações sejam reduzidas a um denominador comum. Ora, é essa regra elementar da adição,
transportada para o plano das idéias, que a maioria dos chamados pensadores desconhece.
Dir-se-ia que eles gostam mais dos pedaços do que da inteireza, e que o QI de uma criança
lhes parece mais deleitoso e menos decepcionante do que a própria criança.

É nesse sentido que eu digo que a obra de Chesterton é uma soma. Diria até uma suma. Ela
não se opõe ao meticuloso e respeitável trabalho dos técnicos que pesam e analisam os
pedaços do homem; mas opõe-se belicosamente aos pensadores que confundem um an teatro
de estudos anatômicos com uma sala de jantar; e denuncia os que erram nas contas, e não
atinam com a medida do homem, a que se referiu Aristóteles e que Carlos Magno concretizou
no tamanho do seu pé.

Em resumo, a obra de Chesterton podia ter o título geral de Humanismo integral, como o
livro de Jacques Maritain. Fala-se muito de um mal da época. Tornou-se mesmo fastidioso
falar desse assunto e adotar o tom do indivíduo que indica remédios. Mas, apesar de tudo, esse
mal existe, e pode ser caracterizado por um simples nome: desumanismo. Nunca foram tão
estudadas as partes do homem, mas também nunca foi tão esquecido o seu todo, aquilo que
ele é. Ou nunca foi tão desejado que ele fosse o que não é. Esse é o ponto central da questão.
Não posso desenvolvê-lo aqui sem deixar de lado este livro, como já deixei um outro, e iniciar
um terceiro; mas posso propor um teste ao leitor.

Estamos numa sala de repartição pública moderna (devo acrescentar, para maior força
demonstrativa, que somos de uma outra geração, ou que chegamos de setores distantes e
anacrônicos) e observamos, então, diversas cenas. Vemos logo, por exemplo, que as mesas dos
funcionários são lisas e nuas como lápides de defuntos esquecidos: nem um retrato de noiva,
nem um pedaço de quartzo um dia trazido de uma excursão e onde a lembrança de uma
cascata se mistura à lembrança de um sorriso. Nem uma imagem de santo. Há uma portaria,
ou coisa que o valha, proibindo ao funcionário a ilusão de posse e de domínio sobre aquele
metro quadrado, em que ele procura, pelo trabalho, um pouco do paraíso perdido. Além
disso, observamos uma gritante desproporção entre o fáustico edifício e a visível avitaminose
dos habitantes. Os escravos são os mesmos, mas as senzalas se tornaram magní cas à custa
das suas rações. Numa sala de chefe assistimos à admissão de um novo conquistador desse
triste país. Recebe uma guia e é conduzido a um gabinete de médico, onde um moço cortês
pergunta ao postulante se o parto de sua mãe foi normal, de que doenças sofre, e se entretém
ligações sexuais permanentes ou semipermanentes. No caso de ser uma moça, solteira ou
casada, perguntam pelas regras, pela quantidade do sangue e pelo número de abortos. Enchem
chas. Todas as chas juntas, em outra sala, formam mapas coloridos, que um cavalheiro
entusiasta em cifras e riscos aponta com uma vara a meia dúzia de visitantes atônitos.

Ora, meu caro leitor, esse é o teste que lhe proponho. Se não sente um movimento de
indignação ou de susto, se não lhe passa pela mente que há qualquer erro enorme, qualquer
monstruosa subversão nessa concepção do homem, então a nossa divergência não é mais uma
questão de idéias ou de loso a; nossa completa divergência — lamento profundamente dizê-
lo — é uma questão clínica.
P  
Tendo falado atrás no pé de Carlos Magno, ocorreu-me uma idéia. O sistema de medidas que
os ingleses se obstinam em conservar sempre me pareceu bizarro. Sempre achei que o sistema
decimal, pelo fato de ser decimal, deveria ter sido adotado com grande entusiasmo por todas
as nações. No colégio, aprendi que os ingleses são teimosos, mas não me ensinaram o motivo
dessa teimosia. Aliás, se há teimosia não há motivos, por de nição. Os anglo-saxões são
realmente obstinados; e essa qualidade, virtude ou defeito, que os nazistas não avaliaram na
justa medida, aparece-me agora como uma terrível delidade. E se a teimosia é uma coisa que
dispensa motivos, a delidade é a coisa que mais fortes motivos invoca. Chesterton deu-me
uma grande lição de delidade, e indiretamente ajudou-me a compreender o caso dos pés e
das polegadas.

Hoje eu vejo que o aspecto mais desagradável do sistema métrico francês está na sua origem.
Alguns geodesistas tiveram a idéia de tirar o metro de um meridiano terrestre, julgando que
essa fonte era mais digna para a ciência do que o pé de um rei medieval. Há nesse caso uma
singular coincidência entre essas e as considerações feitas por Chesterton em Orthodoxy sobre
o círculo e a cruz. Os homens da era cientí ca trocaram a cruz, que tem a medida do homem,
pelo círculo do meridiano terrestre. Pode-se dizer que Laplace e Condorcet quiseram abraçar
o mundo com as pernas. E o resultado nal das medidas foi um padrão metálico, guardado
em Paris, e que nas veri cações subseqüentes cou provado não ter, dentro de cinco casas
decimais, a perfeita de nição dos geodesistas. Ficou sendo um mero bastão de duvidosa
origem.

A   


Chesterton raramente escreveu um livro de ensaio sobre um determinado assunto, diferindo
nisso, por vocação, do lósofo, obrigado a uma sistematização. Não tem, por exemplo, um
tratado sobre a família; mas tem em todos os seus livros, inclusive nas novelas policiais, as
mais ricas descobertas sobre esse problema. Essa é uma das características de sua obra. Os
mais diversos assuntos se acotovelam, numa vital anarquia, que é, realmente, a manifestação
visível de uma ordem profunda. Poderíamos dizer, em outras palavras, que os mais diversos
assuntos se acotovelam porque não são diversos. As associações improvisadas e inopinadas,
geralmente acompanhadas de um bom riso, constituem um dos recursos principais do
método chestertoniano. Bem-feitas, têm duas vantagens. A primeira, de ordem puramente
tática, é o choque produzido no leitor, obrigando-o a uma atenção viva que habitualmente não
se mantém na leitura de um livro. F. S. Sheed, numa introdução pedagógica a What’s Wrong
With the World salientando essa particularidade do processo chestertoniano, diz, muito bem,
que a maioria dos autores prepara toda a tarefa para o leitor, que não precisa mais do que
deixar-se car numa atitude de agradável receptividade. Chesterton, ao contrário, traz sempre
uma provocação. A segunda vantagem dessas associações entre assuntos tidos como distantes
é de ordem estratégica, e consiste na descoberta das comunicações e no estabelecimento de
sólidas rotas de abastecimento.

Dessa capacidade de associar decorre uma outra como corolário: a faculdade de reduzir os
mais abstrusos e especiais assuntos ao plano da familiaridade. Para ele, que tanto se bateu pela
família, pela família concreta, formada de pai, mãe e lhos, o mundo das idéias deve também
ser familiar; deve ser, digamos, uma casa para as idéias. Por isso, e quando menos se espera, a
propósito de evolução ou de crítica da razão, a página é invadida por objetos caseiros e ca
colorida e ilustrada. Desse modo Chesterton responde a Alice no País das Maravilhas que
perguntava: “De que serve um livro sem guras?”. Suas guras são familiares. A casa de
família é o poderoso vórtice que atrai todas as idéias de Chesterton. E assim, apresentada a
idéia, reforçadas as associações, compreendida a familiaridade, pode então o leitor descobrir a
misteriosa ligação, que o pedantismo oculta, entre a pedagogia e uma criança chamada
Margarida; entre a economia política e uma terrina de sopa fumegante em torno da qual pai,
mãe e lhos se reúnem dando graças a Deus.

Há ainda um traço na obra de Chesterton, que se refere mais diretamente ao estilo literário, e
que está ligado às necessidades de sua tática e de sua estratégia, como já cou dito. Sua
maneira de compor um ensaio, e mesmo suas frases, decorre do propósito de manter o leitor
acordado, e às vezes surpreendido. Seu estilo é falado; seu pensamento é elaborado na hora,
diante do leitor, que chega a sentir sua presença pessoal, solícita como a de um mâitre d’hôtel,
ágil como a de um bom mágico. Claudel disse uma vez que o nascimento de sua obra era uma
espécie de grommellement intérieur, em que todos os elementos, já presentes, procuravam
colocação e saída. Em Chesterton há uma espécie de grommellement extérieur. Não chega
diante de nós com a lição decorada e elaborada, em laudas de papel, em quadros sinópticos,
em cristalizações de nitivas. Tem a lição profundamente assimilada. Chega com ela na cabeça,
no peito e na barriga. E as idéias vão saindo com a naturalidade brusca do improviso e das
conversas.

Provoca e desa a; mas dá-nos também a impressão de estar sendo ele mesmo provocado. É o
que se pode chamar um escritor brioso que espera do leitor um brio igual e uma bela
contenda. É um espadachim, ágil e leal. Não usa os botes oblíquos, não ensaiou escondido um
coup de Jarnac:5 é em cheio que ele procura atingir; é o peito do adversário, e mais
particularmente o pequeno ás de copas desenhado no plastrão, que ele quer tocar.

Seu estilo é falado. Emprega com relativa freqüência o speaking e o talking. É dialogado,
conversado, disputado. Não lhe basta o vago apelo ao leitor; dirige-se a ele diretamente,
pessoalmente tratando-o por you. Às vezes ca obscuro por algum tempo, como se tivessem
chegado de outros pontos da sala objeções que não ouvimos; defende-se desses golpes laterais
e, num salto, volta à questão. Tenho a impressão de estar vendo sua agigantada gura, em pé,
andando de um lado para outro, e parando de repente diante de mim com o olhar divertido e
faiscante e com as idéias prontas, nascidas de fresco.

O paladar que sinto é o dos bons pratos feitos na hora e não me espanto que o bom
cozinheiro seja uma espécie de acrobata que, no júbilo do trabalho, atira para o alto a fritura
fumegante e crepitante. Já acusaram Chesterton de acrobacias verbais; eu o elogio por essas
acrobacias que na realidade são os mais belos gestos. Desse supér uo são feitos o encanto das
crianças, a graça das mulheres e a inigualável elegância dos gatos. A moça que atira os cabelos
para trás, a criança que vem correndo e esconde o rosto no regaço da mãe, também fazem
acrobacias, antigas, antiqüíssimas acrobacias, que defendem o mundo de uma epidemia, total
e de nitiva, de loucura.

Não devemos esquecer que Chesterton é um poeta que vive cercado de lunáticos. Por isso,
como o seu herói de e Poet and the Lunatics, é ele, e não o lunático, que vira cambalhotas e
dá saltos imortais. O lunático é geralmente grave e só canta de galo depois de estar
solidamente convencido de que é um galo. Chesterton é um escritor que ouve o que diz. Ouve
e gosta de ouvir o ruído que as idéias fazem. É poeta. As palavras, para ele, não são meros
sinais inteligíveis, simples intermediários acústicos entre um verbo mental e outro verbo
mental. São coisas que existem, como uma rosa existe. São sinais que guardam em si mais do
que dizem, e que além do núcleo lógico têm uma aura superlógica. Tal palavra, por causa do
som, do contraste do som com outro som, por causa da articulação das consoantes e da série
de gestos a que essa articulação obriga, além de signi car o que pretende, tem uma imprevista
fecundidade.

Freqüentemente, as palavras de Chesterton andam geminadas, sendo contrárias ou


semelhantes, mas ligadas por uma simetria musical. Ora é somente a consoante inicial que
marca o par, ora é a rima, ora o simples ruído. Essa particularidade é insustentável numa
tradução,6 mas no original imprime ao estilo um caráter de jogo que faz lembrar um retinir de
armas. Abrindo ao acaso What’s Wrong With the World encontro este exemplo: “e tinker
and tailor, as well as the soldier and sailor, require a certain rigidity of rapidity of action [...]”.7
Em Barbarism of Berlin diz ele do Kaiser: “He is merely an old gentleman who wishes to share
the crime though he cannot share the creed. He desires to be a persecutor by the pang without
the palm”.8 Esses recursos anunciam geralmente a proximidade de uma conclusão, de um
golpe a fundo. Em grandes intervalos preparatórios, entretanto, o debate é dirigido com certo
desnudamento. De repente salta uma chispa. Às vezes sucedem-se argumentações intrincadas
e complexas. Depois vem uma pausa com frases curtas e óbvias. Ele está zangado. Essa pausa é
um frêmito que se contém, uma impaciência que morde os freios, um comedimento de inglês.
Quando ele sente que se dominou, o estilo se liberta, se ampli ca, e avança impetuosamente
para a conclusão.

O    -


Uma das observações que mais comumente se fazem sobre o estilo chestertoniano diz respeito
ao uso, ou abuso, de formas paradoxais. Essa observação é justa num sentido; mas injusta
quando atribui ao autor de Orthodoxy um gosto pela paradoxia. Sua obra está realmente
crivada de paradoxos, se entendemos por tal as proposições que se chocam com as opiniões
geralmente admitidas. Não podia, aliás, ser de outro modo. O autor que no seu tempo e no seu
meio mais se interessou pelo homem comum deveria, necessariamente, ter o mais vivo
interesse por esse disseminado, heteróclito e vário material que chamamos opiniões admitidas.
Na verdade, o confronto entre o ortodoxo e seu mundo de desvairada doxia teria que
produzir, logicamente, o paradoxo. Não era ele que os fazia; era ele que os caçava.

A vivacidade e o brilho da reação em cada caso constituem o principal mérito do lutador, o


principal título desse espadachim do senso comum que lutou contra os inumeráveis monstros,
cuja maior ferocidade consistia precisamente numa completa ausência de pugnacidade, e cuja
maior força estava na evasão. Não foi Bernard Shaw, o jovial herético, que maior resistência
opôs à ortodoxia. Não foi H. G. Wells, com seu delirante futurismo e suas histórias sobre
unborn babies9 que mais trabalho deu ao monstro que Shaw chamava de Chesterbelloc,
formado pelo nosso autor e seu melhor amigo, Hilaire Belloc. Entre esses havia um jogo
cordial e alegres cutiladas. O temível adversário de Chesterton era o que recusava a luta, e que
numa de suas novelas aparece encarnado em um duque, espírito largo, que se esforçava por
conciliar todas as doutrinas — o que o levava a não compreender nenhuma; e que fazia o
possível para agradar a todo mundo — o que o conduzia a não agradar a ninguém. Dessa
mentalidade, ou dessa tática, disse Chesterton mais tarde:
Ouvi dizer que o método de combate do jiu-jitsu consiste, não em repentinos avanços, mas em repentinas retiradas.
Esta é uma das muitas razões que tenho para não apreciar a civilização japonesa. O uso da rendição como arma é a pior
disposição de espírito do Oriente. Não há, certamente, força alguma tão difícil de combater como aquela que facilmente
se conquista: essa força que sempre se entrega, e depois volta à carga. Tal é a força do preconceito que o mundo
moderno possui em tantas questões [...].

Essa mentalidade complacente e informe que recusa o combate, e por isso mesmo se atribui
o prêmio; que se esquiva de uma real e forte investigação, e por isso mesmo se atribui a posse
de todas as verdades medianas; essa mentalidade é justamente a do mundo liberal e
cinicamente otimista que Chesterton encontrou, e contra a qual se armou em cruzado até o
m da vida. O romance e Ball and the Cross, um de seus mais belos livros, é a história
alegórica de dois combatentes, o católico e o ateu, que ao longo das mais variadas
circunstâncias não conseguem cruzar os ferros, porque o clima da doxia, conciliadora e
medianeira, punha entre eles, invariavelmente, um obstáculo. Ora, em tal clima, perante tão
difíceis adversários, que poderia fazer o ortodoxo? A meu ver, a única coisa razoável que
podia fazer — e que fez — era a tentativa de incutir o gosto pela luta briosa. Era a provocação,
a galvanização, o desa o. Ele queria dialogar e argumentar com um mundo de almas vivas, e
não com uma sociedade que logo admite o primeiro, o segundo e o último argumento,
princípios e conclusões, inserindo tudo numa ilimitada tolerância.

Chesterton foi, ainda mais infatigavelmente do que Léon Bloy, um caçador de lugares-
comuns. Onde encontrava um desses monstros adormecidos, ele o provocava. Seria fácil citar
uma boa dúzia de exemplos, mas os textos arrancados do contexto e desligados da exegese
perderiam a força e talvez o sentido. No segundo capítulo de Orthodoxy encontramos uma
extraordinária conclusão: “O louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”. Essa
conclusão, longe de ser um passageiro gracejo, é uma das principais idéias da mensagem
chestertoniana, como me proponho mostrar mais adiante. Em What’s Wrong With the World
refere-se ele à idéia vulgar de que é necessário um homem de ação, um homem prático, cada
vez que atravessamos uma crise política ou econômica; e diz-nos que, nesses momentos, nós
precisamos realmente de um unpractical man.10 E o que parece uma arbitrária agressão à
opinião admitida, é na verdade uma idéia nuclear, defendida logo depois com golpes ágeis até
a conclusão que consiste na defesa do dogma.
Chesterton, a bem dizer, exige de nós alguma coisa mais elementar e mais primordial do que
a boa vontade para compreender: ele exige a boa vontade, ao menos para brigar. Isso, a seu ver,
constitui a exigência mínima, fraternal e cristã que se pode fazer ao próximo. E por isso
lançava-se contra o liberalismo conciliador, o espírito largo do século, que transformava o
patrimônio da inteligência humana num bric-à-brac indiscriminado. Liberal em política
prática, foi o inimigo número um do liberalismo losó co. Defensor do homem comum, foi o
acérrimo combatente das idéias vulgares guindadas a loso a. Defensor das tavernas, da
cerveja, do vinho, e da ampla risada, a rmava entretanto que a força do homem está nos seus
limites. Uma coleção dos famosos paradoxos de Chesterton provaria que ele foi um ortodoxo.
Mas provaria também outra coisa, e esse é um dos grandes méritos de sua obra: o assombroso
número de lugares-comuns que atravancam o mundo, tomando o lugar, já não digo da
Sabedoria, mas o lugar, a liça, onde pelo menos o não e o sim entrem num atlético encontro.
Os oitenta volumes de Chesterton são, nesse sentido, um formidável purgante. Ou então, por
paradoxo, a mais perfeita suma das tolices denunciadas.

O    
Há entretanto um sentido em que não é justo dizer que Chesterton foi paradoxal. Não é lícito
dizer tout court11 que ele foi paradoxal, isto é, que era dentro dele, no interior de sua obra e de
seu pensamento, que o paradoxo vivia enrolado, formando um ninho de víboras para a delícia
dos apreciadores de contradições. A m de tornar mais compreensível esse pensamento
convido o leitor a distinguir duas coisas muito simples que chamarei respectivamente de
combate e con ito. Caracterizam dois mundos, e pode-se dizer, de modo aproximado, que o
con ito está para o homem moderno como o combate para o medieval. Para os antigos, o
caminho da verdade era considerado árduo e cheio de perigos, mas a verdade era um vértice.
Para o moderno, a glória consiste em chegar completamente derrotado a uma dúvida tão
perfeita que chega a ser uma certeza. Uma esgotada certeza. A clara diferença entre o con ito
e o combate, no sentido que aqui lhes atribuo, está na posição do adversário. No combate, o
adversário, visível e concreto, está diante dos olhos e da arma; no con ito, para encontrá-lo, é
preciso descer aos subterrâneos do próprio eu, onde mora o inimigo traiçoeiro, que se diverte
em aplicar chaves de jiu-jitsu às suas próprias vísceras. O combatente é um; o agônico, em luta
consigo mesmo, é dois. Chesterton era um. Era da antiga raça de combatentes que uma vez
por outra se atirava contra moinhos de vento com a força e a singeleza dos supervivos.
Parecia-se nisso com aquele garçon “que preferia o freguês que dá logo as ordens, ainda que
sejam íbis ensopados ou bife de elefante, à raça de fregueses que cam sentados com a cabeça
nas mãos, mergulhados em cogitações”.

O inconveniente desse último tipo de personalidade foi excelentemente salientado por


Chesterton numa história para crianças, que ele mesmo ilustrou: A desvantagem de ter duas
cabeças. Nessa história, o pequeno Redley consegue libertar a Princesa Japônica com grande
assombro de quatro vigorosos cavalheiros que haviam malogrado no mesmo intento. O
castelo onde vivia a princesa estava situado além da última oresta do mundo, e dois
caminhos lá iam ter. No primeiro havia um feroz gigante de uma cabeça; no segundo, um
ferocíssimo gigante de duas cabeças. Os vigorosos cavalheiros, fracos de inteligência, acharam
mais fácil atacar o primeiro gigante, e voltaram destroçados e humilhados. O menino Redley
percebeu que o segundo devia ser mais fraco porque tinha duas cabeças. Efetivamente,
encontrou-o empolgado por uma discussão consigo mesmo sobre a política britânica na
Guerra dos Bôeres. Atacou pois o ferocíssimo gigante, matou-o e casou-se com a princesa.

Aliás, nessa pequena história encontramos uma outra idéia que ressurge em diversos pontos
da obra de Chesterton, em virtude da qual o título da história poderia ser este outro: A
desvantagem de ser gigantesco. Chesterton não era, como Frederico, o Grande, um apreciador
de gigantes, porque tinha grande respeito pela medida humana. E nesse desapreço ia alguma
modéstia, porque ele mesmo era gigantesco. Era enorme, sicamente enorme. Bernard Shaw
dizia que era difícil discutir com Chesterton, pessoalmente, pois havia sempre uma substancial
parte de seu corpo fora do campo de visão.

Mas agora o que nos interessa não é o gigantismo, e sim o desdobramento de cabeças. A esse
respeito convém assinalar um outro desdobramento que a ige a natureza humana e do qual
Chesterton se ocupou constantemente. Re ro-me ao casamento.

Para marcar com insistência a solidez do bloco familiar e sua inacessibilidade às


intervenções do Estado, disse ele:

O Estado não dispõe de um instrumento bastante delicado para extirpar os hábitos enraizados e para desembaraçar o
novelo das afeições familiares; os dois sexos, felizes ou infelizes, estão colados estreitamente demais para permitir que a
lâmina legal se meta de permeio. O homem e a mulher são uma carne — sim, mesmo quando não são um só espírito. O
homem é um quadrúpede.

Chesterton também foi um bom quadrúpede. Preferiu esse desdobramento, quando quatro
pernas se dobraram diante de um altar, ao desdobramento mental. Levava sobre o gigante a
vantagem da unidade de cabeça (veja o leitor a epístola de São Paulo aos efésios) aliada ao
maior equilíbrio proporcionado pela duplicação das pernas. Além disso, a liberdade de
espíritos imprime ao casamento um caráter que o aproxima do combate e que o distingue do
con ito. “É um duelo eterno”. Há na ligação entre homem e mulher, no matrimônio, um
elemento salvador, que é a própria separação; ou melhor, uma certa elasticidade na carne
única, graças à qual os dois esposos se podem defrontar como dois adversários. Os combates
matrimoniais são salutares; diria até salvadores. E não é por outro motivo, talvez, que o
homem moderno, amolecido durante séculos pelo paci smo das concessões, e pela loso a
do meio-termo, demonstra tão pouca resistência no matrimônio. Quando o conteúdo
sacramental é ignorado, quando a promessa jurada pouco ou nada vale, as últimas amarras de
uma possível recuperação são cortadas pela repugnância, pela aversão ao combate. Esse é o
último elo de um casamento periclitante: o duelo franco e aberto, segundo as regras, sem
golpes baixos; o tenaz atletismo, a persistente tentativa de esgrimista que procura tocar o peito
do adversário e mais especialmente aquele ponto vermelho do plastrão que marca o trunfo
deste jogo.

Chesterton foi um bom quadrúpede. E eu o vejo, por vezes, surgir em minha imaginação (ao
contrário do soneto de Herédia) como um vigoroso Centauro que avança em direção aos
nossos tempos.
PARTE II: O    
Tu lhe puseste na cabeça uma coroa de pedras preciosas.

— Salmo 20
C  
Disse eu atrás, a folhas tantas, que Chesterton explorou muitos
gêneros literários, e que além de ensaios e artigos polêmicos escreveu
romances e novelas. Na realidade, porém, ele foi sempre um campeão
de idéias. Seus romances não são romances. Suas biogra as não são
rigorosamente biográ cas. Na hagiogra a, também, deixa o santo
durante páginas e páginas para assistir à luta das idéias. Ele mesmo
reconhece o fato quando diz na Autobiogra a (que também não é
perfeitamente autobiográ ca) que nunca escreveu romances e que
julga ter estragado algum bom material mais de uma vez. E acrescenta
que seu maior desejo era o de assistir às lutas das idéias nuas.

Seria entretanto um erro supor que suas novelas alegóricas, como por
exemplo e Ball and the Cross, são constituídas como puros
símbolos, sendo os personagens meras idéias. Os personagens são
realmente personagens, as cenas são dotadas de uma grande
visibilidade, e nesse ponto eu posso dizer que suas lutas de idéias são
mais plásticas e mais humanas do que a maior parte dos romances,
onde se tem a impressão de que os escritores nasceram cegos.
Chesterton era desenhista e tinha alta estima pelas cores. Sabia que
uma das missões do escritor, e talvez a mais difícil, consiste em dotar a
palavra de uma presença real, de uma presença presente, visível mais
do que audível. Ele é mais apolíneo que dionisíaco; mais pintor que
dançarino; mais visual que auditivo. Há qualquer coisa de latino, de
romano, no seu temperamento, em combinação com o recatado bom
gosto inglês.

O estudo desse aspecto de sua obra mereceria maior atenção, mas


não quero ocultar que já escolhi minhas perspectivas para este ensaio.
Depois de ter mostrado, em seus traços principais, o humanismo de
Chesterton, tenho em mente agora a análise do conteúdo de sua
mensagem, ou melhor, o estudo das principais idéias contidas nessa
mensagem. Fica registrado aqui, de passagem, que a leitura dessa
imensa missiva escrita em tantos volumes proporciona, ao lado dessa
alegria intelectual, uma outra alegria de caráter mais artístico ou mais
infantil. De fato, é como se lêssemos uma carta escrita com guras: as
mais sutis verdades vão surgindo debaixo de cenas coloridas, numa
curiosa combinação de evidência e de enigma. Mas agora deixemos as
iluminuras e vamos à substância da mensagem. Vamos às idéias.

T   



Não. Vejo agora que é preciso explicar a omissão de três ou quatro
capítulos, onde se tratasse da situação social do autor, do orçamento
com que vivia, das taras que sobre ele pesavam, e do boletim médico
de seus últimos dias. Parece admitido que os homens que mais se
exteriorizaram numa obra são aqueles que menos conseguiram dizer.
Os diagnósticos médicos, nessas pesquisas, aparecem com uma
precisão que raramente possuem quando o médico está na cabeceira
de um doente. Parece também admitido, cienti camente, que não há
obra inteligível onde faltam informações sobre a cor ou os achaques do
autor. Sabe-se, por exemplo, pouca coisa a respeito de Shakespeare,
além do que ele mesmo disse em sua obra. A crítica cientí ca, não se
podendo conformar com um autor pouco conhecido, descobre que
tudo ca mais claro quando se diz que Shakespeare foi Bacon; ou
quando se diz que Homero foi uma boa dúzia de indivíduos
homéricos.

O ideal, nesse tipo de estudo, é ter em mãos uma doença terrível ou


uma negra miséria vivida pelo autor. Os Possessos, por exemplo, foi
um livro escrito pela Epilepsia em pessoa. A Nona Sinfonia foi
composta pela Surdez. Dom Casmurro tem por incontestável autor a
Cor-Parda. E assim por diante. Ora, a impressão que me dá essa crítica
— e duvido que alguém consiga dissipá-la — é que seus praticantes
não têm o menor interesse do mundo pelo objeto que estão estudando.
Passa então um homem a vida inteira escrevendo palavras para que
um crítico venha dizer que as únicas inteligíveis e garantidas são
aquelas que ele não escreveu? Nesse ponto estou com Pilatos: o que
está escrito está escrito. A meu ver, deve começar pelo que está escrito
o estudo de um escritor; e muitas vezes não seria mau parar nesse
ponto. Imaginemos, leitor, o caso de um personagem de extraordinária
importância histórica que não tenha deixado um único bilhete escrito:
é fácil imaginar, nesse caso, a pressurosa azáfama de todos os eruditos
do mundo, se fosse anunciada a descoberta do arquivo completo de
uma intensa correspondência trocada com esse personagem. Ora, no
caso da literatura, onde o arquivo já está descoberto, a crítica, num
movimento que me parece bizarro, passa a preferir a obscuridade de
um rol de roupa à claridade de um poema. Tratam assim o poeta como
se a regra geral, no mundo das letras, fosse a mais deslavada mentira, e
como se nada houvesse mais traiçoeiro e menos signi cativo, em
crítica literária, do que uma obra escrita.

Tenho particular aversão por essa raça de indivíduos que anda à cata
das doenças dos mortos quando há tantos vivos por aí com carência de
medicina. O gênio se explica com a doença. É claro que um grande
morto morreu, e que morreu de alguma coisa. É claríssimo que a mãe
e a avó do grande morto também morreram de alguma coisa. A
medicina é uma grande pro ssão, e está longe de mim a idéia de
ridicularizá-la; mas di cilmente ela forma uma boa combinação com a
arte, com a crítica literária, com a história, com qualquer coisa en m
que não seja um doente em carne e osso. Nessa ordem de idéias, não
posso perdoar a Ibsen (e creio que Chesterton concordaria comigo) a
base clínica de seu drama Casa de bonecas. Toda a intriga se arquiteta
em cima de uma doença e de uma cura na Suíça: chamasse Nora outro
médico e não haveria drama. Evidentemente, nem eu o contesto,
muitas tragédias se originam em diagnósticos médicos, verdadeiros ou
falsos. O que eu reclamo em Ibsen não é propriamente o uso de um
dado clínico no drama, mas a seriedade, o ar de infalibilidade
pro ssional com que ele enreda as coisas em torno das receitas. Não é
o fato dramatizado, mas a perspectiva formal. A contraprova do
cabotinismo está no outro personagem, o Dr. Rank, que é a
encarnação moribunda, cienti camente moribunda (agonizando com
a precisão dos eclipses), das leis de hereditariedade que no tempo de
Ibsen gozavam esplêndido prestígio.

Não pretendo negar o direito de pesquisar coisas obscuras, mesmo


onde existem coisas claras, pois nada é mais legítimo e humano. Mas
pretendo a rmar, na ordem da pesquisa, a precedência das coisas
claras. Em loso a, o processo de explicar o claro pelo escuro teve um
extraordinário sucesso quando Descartes descobriu que o melhor
modo de compreender todas as coisas é meter-se o lósofo num
quarto escuro, deixando ordens à governanta para despachar os
fornecedores e andar nas pontas dos pés. Na sua doutrina Deus explica
o homem, e parece muito piedosa porque Deus comparece em
primeiro lugar. Essa razão, todavia, é mais diplomática do que
teológica. Para Santo Tomás (e para Chesterton) é o homem que
explica Deus. Para ambos, começa-se pelo que está diante do nariz.
Chesterton não foi somente autor de um Santo Tomás de Aquino, foi
também discípulo, e sua gura humana, como a de seu grande mestre,
é eclipsada pelo volume da obra. Sua vida foi muito simples. Suas
aventuras terríveis e fantásticas passaram-se nas ruas de Londres onde
descobria o que já estava descoberto. Usava enorme chapéu de
vaqueiro, capa espanhola, era gigantesco, e dizem que trazia um orete
escondido na bengala e uma velha pistola carregada no bolso,
imaginando talvez que em qualquer esquina poderia ter início a volta
do mundo ou o combate com um dragão.

Consta também que era um distraído, o que constitui mais um traço


de semelhança com o Doutor Angélico, mas tenho para mim, com
rme convicção, que ambos foram extraordinariamente atentos, e por
isso mesmo, em certas circunstâncias, profundamente distraídos. O
homem que vê demais, que ouve demais, que se interessa de um modo
prodigioso pelo que vê e que ouve, é como o homem que come
demais. Precisa, para assimilar tudo, de um intenso trabalho de
digestão. As pessoas realmente distraídas, a meu ver, não são aquelas
que, num lapso de atenção, dariam um murro na mesa do rei, ou
chegariam à janela para ver um boi voar; são antes as que vivem
meticulosamente distraídas, sem anedotas de distração, e que chegam
ao m da vida com a vaga idéia de terem atravessado uma paisagem
encantada, onde uns esquisitos seres riam, dançavam e choravam, por
obscuros e desencontrados motivos.

Não duvido, entretanto, que alguns dados secundários, relativos à


pessoa do autor e à sua vida, tenham apreciável valor e sejam capazes
de elucidar alguns pontos da obra. Em alguns casos são indispensáveis
para distinguir o autêntico do apócrifo, mas no caso de Chesterton
ainda não houve quem dissesse que ele era um pseudônimo. Seus
livros não são contestados; e ele ainda não atingiu o apogeu da glória
para merecer que um crítico cientí co descubra que ele não existiu.

Seria muito interessante estudar em sua obra as in uências dos


acontecimentos e dos outros autores contemporâneos, sendo esse
trabalho de colocação uma das principais funções do crítico que, além
do estudo objetivo da obra, tem o dever de pesquisar as relações que a
situam, calculando, como fez Le Verrier, a ascensão reta e a declinação
do novo planeta, para que o leitor possa apontar o seu telescópio para
a região do rmamento em que ele se acha.

Deixo de lado essa tarefa porque pretendo salientar o sentido


duradouro da mensagem. Como jornalista, Chesterton viveu e
construiu sua obra em estreita ligação com os acontecimentos do
tempo. Podemos portanto submeter sua mensagem a uma prova
difícil, abandonando os dados que se referem a ambiente e época, a
m de realçar o que ela contém de forte e perene. E o autor resiste à
prova. O leitor não perderá muito, vendo nomes de personagens
esquecidos e de instituições sepultadas perpassarem como sombras
imprecisas. O contraste entre a nitidez das idéias e a uidez do cenário
tem até um esquisito sabor. E o Everlasting Man, o Homem de Sempre,
forte e trágico, destaca-se contra o fundo esbatido de fatos que no
tempo foram gritantes e pareceram de nitivos.
A   
Cada um de nós, rei ignorado, anda com uma invisível coroa de idéias.
Ou então, com um par de lunetas, de maior ou menor aberração,
através das quais vê o mundo. O indivíduo que escreve um livro
intitulado Como eu vejo o mundo está, na verdade, descrevendo o seu
par de óculos. A história dessas dioptrias, e o modo como vieram a se
encavalar no nariz do sujeito, varia inde nidamente, e nesse ponto eu
creio nas in uências menores, e nos pequenos fatos ridículos, que
fazem da vida humana, tomada em si, uma sucessão de
desproporcionados absurdos. Não duvido que uma colite produza
uma alteração de focos, e que do êxito nos negócios resulte uma
aberração cromática que derrame uma aguadilha rosada nas paisagens
da vida. No meio de todas essas in uências, porém, o sujeito não ca
inerte. Ele escolhe; bem ou mal, mas escolhe. Escolhe, e muitas vezes
glori ca-se da escolha. Mete-a na cabeça como coroa de rei. Há no
conjunto de idéias pessoais essa dupla natureza que me leva a duplicar
as imagens, contrariando as melhores regras do estilo.

Quando eu era pequenino, e depois de ter ouvido um velho e


bondoso parente discorrer uma hora sobre as maravilhas do universo,
tive a idéia de fazer uma luneta para olhar a lua. Catei diversas lentes,
desmanchando óculos velhos, e arrancando as oculares de uns
aparelhos estereoscópicos de meus irmãos, e en ei tudo num canudo
de cartão. Nesse arbitrário procedimento, do ponto de vista ótico,
senão do moral, eu estava seguindo a loso a dominante da época,
que glori cava de modo absoluto a relatividade dos sistemas e das
opiniões. Olhando para a lua, vi monstros, que talvez fossem minhas
próprias pestanas, e que logo admiti como autênticos selenitas. Com o
decorrer dos anos aprendi que havia uma regra para as lentes, e muito
mais tarde — graças a Chesterton — aprendi a distinguir os
verdadeiros lunáticos.
Cada um de nós tem sua coleção de idéias principais. Umas vezes se
imobiliza durante muito tempo, outras vezes não pára de dançar. Em
regra geral move-se lentamente com a idade. A conseqüência desse
sistema, isto é, a operação de ltragem e seleção que ele proporciona
na visão das coisas, é chamada concepção de vida, modo de pensar, ou
conjunto de opiniões. O mais comum dos homens tem sua equação
pessoal que in ui fortemente no conselho interior que preside à
escolha de seus atos, mesmo que não a saiba traduzir em forma de
sistema ou de loso a.

Ora, uma das características dos homens como Chesterton, capazes


de uma obra rica e variada, é a grande simplicidade das idéias-mestras,
e a perfeita harmonia das suas posições. Deixam de ser um
instrumento postiço pendurado à inteligência e passam a constituir
um sentido interno e intermediário entre o espírito e os olhos.
Instalam-se no tecido vivo do senso comum, e dão aos atos e às
opiniões esse tom de autenticidade que se chama bom senso.

Os homens chamados simples têm, geralmente, idéias


complicadíssimas. Conheço um, entre muitos, que tem opiniões
hesitantes sobre a imortalidade da alma e sobre a veracidade dos
Evangelhos. Encontrando-se o assunto dentro dessa nebulosa região,
ele está pronto a recusar ou conceder, por boa educação; mas se
alguém abordar a palpitante questão do gado zebu, ou o fascinante
assunto da imigração japonesa, ele será capaz de discutir com fervor, e
até com certo talento. Não consegui descobrir qual é a idéia mais
simples, e portanto mais fundamental, a que se reduzem e se
subordinam no seu sistema o zebu e o japonês. Pesquisei sob as duas
idéias a existência de um sentimento patriótico que explicasse a
aversão pelo homem do Japão e o amor pelo gado da Índia. Por meio
de testes cuidadosos cheguei à conclusão de que o seu patriotismo
estava adormecido demais para explicar a efervescência daqueles
efeitos. Concluí portanto que, no personagem em questão, o zebu e o
japonês são idéias-mestras, irredutíveis, fundamentais, instaladas entre
dez mil outras sobre trocadores de ônibus, relógios de ponto,
plani cação econômica, tratamento da gripe, monocultura etc., tudo
nevoentamente iluminado por algumas idéias morais e religiosas. Ou
então (e talvez seja essa a verdadeira explicação), esse eclético
indivíduo tem uma só idéia-mestra, que ca dentro dele como um
olho único, duro e imobilizado, a gozar durante a vida inteira o
espetáculo de um caos. E essa idéia, ao contrário da Idéia criadora,
acha bom o caos. Peço a Chesterton emprestada uma citação de
Nietzsche, para provar que aquele triste indivíduo teve também o seu
cantor: “Quero um caos interior para dar luz a uma estrela dançante”.

Se Chesterton tivesse sido romancista, no sentido justo, seria mais


difícil identi car suas idéias-mestras. Teríamos de apalpar cenas e
personagens, para descobrir a subjetividade debaixo da objetividade.
Ninguém consegue fazer um objeto sem deixar a marca dos seus
dedos; o romance mais objetivo do mundo é impossível sem uma
particular perspectiva. Quando um homem desenha um gato, deixa
logo marcado um ponto de vista, isto é, desenha também o invisível
per l do homem que viu o gato. Ninguém poderá fazer o retrato de
um personagem visto por todos os lados, numa espécie de panorama.
As crianças costumam desenhar per s com dois olhos, porque a
criança é qualquer coisa caótica e efervescente, que não tem pontos de
vista e opiniões. O adulto é o homem que descobriu seus limites, e o
mais perfeito adulto é aquele que conserva a vitalidade da infância
dentro de nova e terrível conquista: uma ordem.

Chesterton é um desses homens. Sua obra, crepitante e cintilante,


a rma uma simplicidade e uma ordem. Suas idéias-mestras são poucas
e simples. Não me re ro ao seu credo, mas à peculiar disposição dos
artigos desse credo na sua personalidade. Era um católico. Aliás, já era
um pensador católico muito antes de sua demorada conversão. Os
elementos de sua inteligência eram portanto dogmáticos, e estão no
Símbolo dos Apóstolos. Mas dentro desse quadro é possível uma
in nita variedade de arrumações pessoais.

A ortodoxia é inexaurível; é mesmo a doutrina da inexauribilidade.


Desde os tempos antigos, os robustos crentes e santos mártires
gostavam de adotar, dentro da riqueza sem m da Verdade, uma
partícula, uma palavra que guardava a substancial inteireza, mas que
acomodava essa inteireza, modesta e pequena, à sua vida. Andava
assim um santo agarrado ao apotegma que recebera de outro; e nessa
transmissão de elementos seminais, colhidos no Verbo de Deus, havia
uma verdadeira paternidade de espírito.

No homem moderno, porém, as idéias são mais próprias. Mesmo no


caso do ortodoxo, que recebe a doutrina de fora, por tradição, o
arranjo das idéias nela inscritas, a maior ou menor acentuação de uma
em prejuízo de outras, é fruto de experiência pessoal. O moderno tem
maior consciência de si mesmo, é mais adulto, com todos os riscos, e
sendo essa tomada de consciência irreversível, ele não pode sem
artifício adotar uma atitude idêntica à dos antigos. Os processos de
educação, por isso, têm de levar em conta, além da tradição sem a qual
o homem deixaria de ser humano, a autoformação à custa de
processos imanentes em relação aos quais o pedagogo deve manter
uma discreta isenção. No problema da formação das idéias existe a
mesma delicada e difícil competição entre a autoridade e a liberdade.

As idéias de Chesterton, e de qualquer um de nós, mesmo dentro da


ortodoxia, são frutos de experiência própria. Nasceram, sabe Deus
como. Colocaram-se. Algumas se extinguiram enquanto outras
surgiam vivamente, como as novae do rmamento astronômico. E
todas circundaram nossa cabeça com um diadema. Ou com uma
coroa de espinhos.

U  
Uma das grandes alegrias que nos é dada, neste mundo tantas vezes
inóspito e doido, é o encontro de um bom parceiro de idéias. Talvez
seja essa a razão de existirem a bisca e o xadrez: o homem precisa viver
com outro homem sob a mesma regra. Dessa necessidade fundamental
resultam os cassinos e os mosteiros, pois o falso e o genuíno se
encontram em torno das mesmas necessidades. O homem precisa de
uma lei, ainda que seja para logo depois a ultrapassar. Foram
necessários o Levítico, o Decálogo, e todos os livros e preceitos da Lei,
para que Santo Agostinho pudesse promulgar a terrível anarquia
cristã: “Ama e faze o que quiseres”. O homem precisa de uma lei, para
superá-la; de uma regra, para não sentir sua prisão; de uma casa, para
estar à vontade; de uma clausura, para se libertar.

Por isso gostamos do jogo e temos necessidade de uma regra de jogo.


O que todos procuram, nos mosteiros e nas casas de negócio, é um
lucro. Varia a natureza, mas há uma coisa que não varia: a idéia de que
só há lucro, verdadeiro, adequado à natureza do homem, rezando ou
vendendo gravatas, quando forem cumpridas certas regras. O lucro é a
vitória sobre os limites, conquistada dentro dos próprios limites. Com
isso eu a rmo a realidade moral do homem, e penso explicar sua
propensão, às vezes excessiva e imoral, para os jogos de azar.

O estabelecimento das regras, que perduram enquanto dura o jogo,


tem uma importância particularmente dramática na fase inicial. Nesse
momento as regras são princípios ou juramentos, sendo
cuidadosamente estipuladas onde o jogo é liso. No duelo, os padrinhos
veri cam a igualdade das espadas e examinam escrupulosamente se
restam possibilidades de acordo que afaste os parceiros do campo de
combate; no casamento, se as há de desacordo que os afaste também
desse jogo sem m, onde iguais são as regras e tão desiguais as armas.

Há porém um jogo desconcertante, um jogo de regras difíceis e


escondidas, cujo pacto inicial remonta a gerações. Re ro-me a essa
coisa trivial e cotidiana que é uma troca de idéias. Pensava nisto
quando disse, e agora repito, que uma das grandes alegrias que nos
pode ser dada é o encontro de um bom parceiro de idéias. Não basta a
concordância sobre um certo número de assuntos. Não basta mesmo
que os dois indivíduos partilhem o mesmo credo. Ainda que sejam
ambos católicos, ligados pela mesma Fé e no mesmo Pão, chocam-se
na hora de trocar idéias. E nesses casos os choques são maiores e mais
dolorosos; mas, ainda bons. Pior do que o choque é o desencontro, que
é uma falsa conciliação. A divisão, mesmo dentro da Igreja, não é um
mal em si, como parecem supor os espíritos largos a que já me referi e
que se caracterizam pela falta de pugnacidade. Invocam eles a
universalidade da Igreja e o paci smo dos santos para impedir os
choques saudáveis e necessários, que separam os beneditinos dos
dominicanos, ou os jesuítas dos franciscanos. A escolha, porém, é um
ato violento; e se todos ouvissem os conciliadores que falam em
uni cação, ninguém escolheria Santo Inácio ou São Bento, mas caria
a meia distância dos dois votos, imaginando um hábito intermediário
e uma regra mista. A divisão, em si, não é má; de outro modo o
Apóstolo não diria que o homem casado é um dividido, e que o
matrimônio é um grande sacramento. O que é mau e péssimo é a
trapaça. A desobediência às regras do jogo. Porque então não há mais
troca de idéias, opostas que sejam, mas troca de golpes escusos, em
busca do mau lucro e da defeituosa vitória em que a verdade é
ultrajada.

E, se grande é a alegria causada pelo encontro de um bom parceiro de


idéias, grandes também são a tristeza e o nojo causados pelo encontro
de um parceiro que marca as cartas de seu baralho, ainda que seja com
o sinal da cruz.

Chesterton é um bom parceiro. Para mim, quando o encontrei, mais


do que um grande autor, ele signi cou a inesperada valorização de
uma antiga coroa de idéias, abandonada como um chapéu velho e fora
de moda de que a gente se envergonha. O que em mim havia de
verdadeiro, e de que me envergonhava — o simples amor pela família,
o simplíssimo amor pela simplicidade, o gosto pelo riso, a preferência
do claro sobre o obscuro, o bom senso, o bom humor — aparecia,
anunciado por esse supervivo corretor, numa alta imprevista.

Veja bem o leitor que não me estou gabando de aproximações


literárias, mas de aproximações humanas. A a nidade de idéias é uma
semelhança e não uma igualdade, equipara os ângulos mas ressalva as
proporções. Encontrei-me a mim mesmo em Chesterton, porque as
mais simples e triviais idéias que para mim pareciam relíquias de
família, desprezíveis nas altas esferas da cultura, eram suas idéias-
mestras, e eram realmente relíquias de família. E, sobretudo, eram
idéias regeneradoras e fecundas. Faça o leitor a mesma experiência.
Leia Chesterton; jogue com ele esse melhor dos jogos, em que as idéias
são atiradas de campo para campo, e em que o lucro pode
perfeitamente ser a recuperação do tempo perdido que Proust, em
quatorze volumes, não encontrou.

I  
Disse atrás que Chesterton é ortodoxo e tomista. Isto não quer dizer,
entretanto, que sua obra seja a transmissão de uma doutrina. É antes a
conseqüência de uma doutrina. Estando embora bem centrada (e é
por isso que eu digo ser ele ortodoxo e tomista), sua obra não evolui,
como a do lósofo, pela conquista de todos os quadrantes, em
extensão e intensidade. Inscreve-se como um complexo polígono
estrelado, cheio de pontas, e algumas dessas, numa análise rigorosa,
talvez se prestem à crítica dos lósofos. No problema da causalidade,
por exemplo, em reação aos deterministas, leva sua argumentação a
ponto de diminuir o valor das causas e cientes na ordem natural,
pendurando todas as coisas numa direta, mas enfraquecida,
dependência da vontade divina. Para a rmar um Deus pessoal, chega
quase a a rmar um Deus mágico. Nesse caso, e em outros análogos,
não se deve julgar que tal seja o pensamento do autor. Trata-se mais de
uma atitude, e também de uma intenção revestida de forma poética ou
humorística que não se desliga da verdade, mas que a inculca de um
modo especial, em função do adversário e do imperativo do tom
adotado.

Não advogo a perfeita emancipação da poesia e do humorismo, a


ponto de julgar que o tom, o ritmo e a intenção, possam substituir ou
dispensar a verdade. Quero apenas dizer que devem servir à verdade,
mas de um modo especial. A poesia sem verdade não passa de uma
algaravia; o humorismo sem verdade não passa de um gracejo. Dizer
que uma a rmação é inatacável porque dita em versos, não é somente
faltar com respeito à verdade, é também destruir a poesia. O que é
certo, porém, é que o ataque à poesia é difícil. A verdade está nela
interiorizada, assim como a bondade, e nessa arrumação o que ca de
fora, ao nosso alcance, é essa coisa misteriosa que chamamos beleza.
Ora, desses três grandes astros que iluminam os nossos julgamentos e
as nossas escolhas, a beleza é ao mesmo tempo o mais distante, por
transcendência, e o mais próximo pela pressão que exerce nos
sentidos. Daí a di culdade.

No espírito da criança há uma indiferenciação entre a bondade e a


beleza, que a faz achar a mãe e o pai as pessoas mais bonitas do
mundo, porque são efetivamente as que ela olha com mais agrado. No
espírito do adulto a diferenciação se estabelece, e muitas vezes, como
no caso do esteta, se torna uma verdadeira separação.

O que caracteriza o objeto poético é a ordem das órbitas, sendo


através de uma atmosfera por si mesma fulgurante que sentimos a
verdade e a bondade, e é isso que torna difícil, não somente distinguir
em poesia como, principalmente, avaliar sua verdade. A linguagem de
Chesterton é geralmente lógica, com a verdade exteriorizada, mas
freqüentemente se transforma, pondo para fora o fulgor que ora tem o
caráter poético, ora o caráter retórico da certeira e elegante
argumentação, a que os próprios matemáticos não são indiferentes. E
num desses casos, a análise do seu pensamento não pode ser feita com
os mesmos processos usados para veri car um teorema ou uma
proposição losó ca. Mas também, repito-o, não é lícito dizer que esse
pensamento, pelo mérito de sua indumentária, cou dotado de
imunidades absolutas. O crítico que não leve em conta as refrações
poéticas ou retóricas, e não tome conhecimento da intenção manifesta,
achará em Chesterton um grande número de proposições arriscadas.
Aliás, levado esse processo a rigor, encontraremos proposições falsas
em Santo Agostinho e em toda a literatura patrística. O grande mérito
de Santo Tomás consistiu em ter exposto a doutrina de Santo
Agostinho e dos Santos Padres desvencilhada da retórica acidental,
pondo-lhe de fora a verdade. Ou talvez seja melhor e mais simples
dizer que o seu mérito foi o de ter sabido ler os antigos.

É possível descobrir em Chesterton algum trecho onde o


arrebatamento da argumentação tenha induzido a erro de detalhe.
Defendendo o homem, como centro e coroa da ordem natural, o que é
perfeitamente ortodoxo, parece às vezes atingir o que Maritain
chamou de “humanismo antropocêntrico”. Defendendo a pequena
propriedade e repelindo os avanços das intervenções estatais, chega a
falar quase como um anarquista. Reagindo contra os racionalistas,
submete a ordem natural não à vontade de Deus, que nesse plano se
traduz justamente pelas leis naturais, mas ao capricho de um
demiurgo.

Ainda um ponto. Depois da ressalva que acabo de fazer e que tem


certas feições antipáticas, bem o sei, a primeira suposição que ocorrerá
a um homem de nossos dias, rebelde a tudo (exceto à tirania), é que
Chesterton ultrapassa os limites da ortodoxia. Estaria eu então, de
tesoura na mão, pronto para cortar as pontas interessantes, as chispas,
os bicos de estrela, que ultrapassaram um risco de carvão.

Mas a idéia que temos do erro, desde Aristóteles, não é essa. Cada
verdade é o pico de uma montanha, e quando dizemos que alguém
ultrapassou a ortodoxia, queremos dizer, simplesmente, que transpôs a
lombada do morro, ao lado do vértice, e escorregou do outro lado. O
erro é sempre de ciente. E se em algum ponto Chesterton não é
perfeitamente ortodoxo é porque aí lhe faltou o ímpeto e a força para
atingir e se manter no vértice.

Insisto, porém, na diferença entre um livro de idéias e um livro de


doutrina. Chesterton não nos quis transmitir sua doutrina mas suas
idéias. E, se o leitor quiser conhecer mais exatamente a doutrina de
Chesterton, depois ou antes de conhecer suas idéias, posso lhe
adiantar um bom alvitre: leia Jacques Maritain, o lósofo.
T    
As idéias-mestras de Chesterton são três. É claro que num caso destes,
em que se procura uma sistematização e um esquema, o primeiro
número que nos ocorre é o três. Já não me recordo se comecei pelo
número, procurando depois os objetos, ou se comecei honestamente
pelos objetos e aceitei o número. A atração produzida pelo três, numa
operação que encerra uma análise e uma síntese, é compreensível,
porque esse número contém ao mesmo tempo diversidade e unidade.
O número um é uma insustentável e vertiginosa origem; nu, cru,
imóvel e absoluto, ele lembra a solidão de um deus. No número dois
começa uma história, ou uma caminhada: um, dois, um, dois... Todo
casal jovem, que obedece às regras do jogo, começa por esse ritmo
dual, por esse compasso binário, à espera do dia em que os dois sejam
três, e em que as desproporções do casal se nivelem numa outra
proporção. Em geometria, também, enquanto estamos nos teoremas
das retas que se encontram ou não se encontram, a história parece
irreal, como se estivéssemos a vasculhar os in nitos com varas
desmedidas em nossas mãos. Quando encontramos o triângulo temos
a impressão de uma conquista ou de um terreno bem demarcado:
“Três alqueires e uma vaca”. Deste ponto em diante somos
proprietários e, no mundo abstrato e deserto do plano, temos estacas
ncadas para um primeiro acampamento. A preparação acaba no
número três e nele começa a fecundidade.

Temos além disso uma forte razão para ver no número três um sinal
de perfeição: são três as Pessoas da Santíssima Trindade, e é estranho
pensar que são Três, do mesmo modo que na família humana e nos
lados de um triângulo. O número em geral é uma coisa terrivelmente
pura que logo no primeiro encontro diz tudo o que é.

No caso que nos interessa, o número três só se refere, evidentemente,


às principais idéias de Chesterton que são, a bem dizer, três núcleos
planetários de idéias. Não faço muito empenho em discutir essa
questão do número, estando pronto a ceder se alguém provar que o
quatro ou o cinco dariam melhor esquema. Aliás, ocorre-me agora que
a origem dessa trindade esteja talvez ligada a uma pequena história
que tem a força de uma alegoria.

Chesterton, como já disse, era gigantesco, e, como bom medieval,


dotado de uma cortesia que se torna cada vez mais rara. O fato é que
um dia, viajando de ônibus, pôde fazer um gesto de que um de nós,
di cilmente, se poderia gabar: cedeu lugar a três damas. Seus nomes
não foram registrados, o que me ajuda a transformá-las em símbolos.
O volumoso Gilbert Keith Chesterton fez ao mundo, esse ônibus de
incerta rota, uma rasgada cortesia: cumprimentou, saltou, e deixou
bem instaladas em seu lugar três idéias matronas.
PARTE III: P   ...
O mistério é a saúde do espírito.

— G. K. Chesterton, Orthodoxy
A
Para encontrar na obra de Chesterton a primeira idéia-mestra ou o
primeiro sol ao centro de um sistema planetário, tomemos como
ponto de partida a triste e fantástica mansão “onde brilha a estrela xa
da certeza, e onde os homens crêem em si mesmos mais colossalmente
que Napoleão ou César, e onde podemos chegar junto aos degraus do
trono do super-homem”. Comecemos, pois, pela casa de doidos. A
idéia que procuramos diz respeito à saúde do espírito, e por isso é
perfeitamente lógico que iniciemos nossa investigação onde falta essa
saúde. Sentiremos assim mais vivamente, graças à parte de saúde que
porventura ainda nos reste, a que extremidades sombrias nos poderá
conduzir a parte que por desventura já nos falte.

O primeiro confronto de Chesterton, para lançar um desa o a uma


opinião geralmente admitida, é entre o poeta e o louco. Em muitas
outras páginas, em numerosas novelas, esse confronto é aproveitado
sob variados, gurados e coloridos aspectos. Um livro inteiro, e
Poet and the Lunatics, tem origem nessa chispa produzida pelo choque
entre duas coisas tão diferentes que um vulgar preconceito considera
tão semelhantes. Mas é no segundo capítulo de Orthodoxy que
encontramos a primeira e mais nítida apresentação da questão.

Fala-se geralmente dos poetas como de pessoas em quem não se pode


depositar muita con ança, sob o ponto de vista psicológico, mas os
fatos e a história contradizem completamente esse preconceito.
Muitos dos poetas verdadeiramente grandes foram, não somente
equilibrados, mas também dotados de senso prático; e, se
Shakespeare foi realmente guardador de cavalos, é de crer que o
julgaram um dos homens mais capazes disso. A imaginação não gera
a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas
não enlouquecem, mas os jogadores de xadrez, esses sim,
enlouquecem. Os matemáticos e os contadores muitas vezes cam
doidos; os artistas criadores muito raramente. Não pretendo, como se
verá adiante, atacar a lógica: quero apenas frisar que é aí, na lógica, e
não na imaginação, que está o perigo. A paternidade artística é tão
salutar como a paternidade física. Deve-se notar, além disso, que os
poetas realmente mórbidos foram os que tiveram algum ponto fraco
de racionalismo. Poe, por exemplo, era de fato um mórbido; não por
ser poeta, mas por ser excessivamente analítico. O próprio jogo de
xadrez era poético demais para ele; desgostava-se por estar cheio de
torres e peões, como um poema. Confessadamente, ele preferia o jogo
de damas que melhor lhe sugeria a idéia de um diagrama com pontos
pretos.

Homero é completo e bastante calmo: são os seus críticos que o


dilaceram em muitas extravagantes criaturas. Shakespeare era bem
ele mesmo: foram seus críticos que descobriram que ele era
somebody else.12 E São João Evangelista, embora tenha visto muitos
monstros estranhos, nunca chegou a ver criatura tão medonha como
um de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesia é sã
porque utua à vontade num mar in nito; a razão, porém, procura
atravessar o mar in nito, tornando-o nito. O resultado disso é um
esgotamento mental, como o esgotamento físico de Mr. Holbein.
Aceitar todas as coisas é um exercício, mas compreender todas as
coisas é um frenesi. O poeta procura apenas a exaltação e a expansão,
isto é, procura um mundo onde se possa distender. Pretende ele,
simplesmente, en ar a cabeça nos céus, ao passo que o lógico se
esforça por en ar os céus na cabeça. E é a cabeça que estala.

Mais adiante, seguindo a mesma ordem de idéias, encontramos o tipo


especial de raciocinador que aplica aos atos humanos um
determinismo rígido. Um deles, o Sr. R. B. Suthers, marxista por
convicção e ofício, diz que o livre-arbítrio seria uma loucura, porque
levaria o homem a agir sem causas, isto é, como louco. Chesterton
passa rapidamente sobre a falta de lógica determinista desse discípulo
de Marx: realmente, se os loucos pudessem agir sem causas o
determinismo estaria perdido. Mas o ponto principal da questão é
outro: o Sr. Suthers pode perfeitamente ignorar o que seja o livre-
arbítrio, mas é pouco razoável que a tal ponto ignore o que seja um
louco, porque a última coisa que dele se pode dizer é que age sem
causas. O louco é, ao contrário, o único determinista rigoroso:

Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os


pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar
quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os
calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas
inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São
exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não
pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê
geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades
gratuitas ele é capaz de descobrir uma signi cação conspiratória.
Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e
que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice
escondido. Se o doido pudesse car um só instante descuidado,
caria curado. Aqueles que tiveram a infelicidade de privar com uma
pessoa mergulhada ou mesmo na orla da desordem mental sabem
que a mais sinistra qualidade desse estado é uma horrível clareza nos
detalhes; é a conexão de uma coisa com outra numa espécie de mapa
mais elaborado do que um labirinto. Se um de nós quiser discutir
com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor,
porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso
não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento.
Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com
algumas certezas da experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de
certas fraquezas saudáveis. Realmente, a de nição vulgar da
insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido não é o
homem que perdeu sua razão. O doido é o homem que perdeu tudo,
exceto a razão. Suas explicações de cada coisa são sempre completas,
e muitas vezes, num sentido puramente racional, satisfatórias. Ou
então, mais exatamente, a explicação do louco, se não é convincente,
pelo menos é irrespondível. E isso se pode ver em dois ou três dos
casos mais comuns em loucura. Se um homem diz, por exemplo, que
o resto da humanidade conspira contra ele, não podemos discutir
senão dizendo
que todos os homens negam unanimemente que sejam
conspiradores; ora, se eles o fossem diriam exatamente isso. A
explicação do doido, portanto, está de acordo com os fatos tão bem
como a nossa. Se um homem diz que é o legítimo rei da Inglaterra,
não será satisfatório dizer-lhe que as autoridades existentes o
consideram doido; porque se ele fosse o rei da Inglaterra as
autoridades usurpadoras não teriam melhor coisa a dizer. Ou então, se
um homem diz que é Jesus Cristo, não adianta responder que o
mundo nega sua divindade; porque o mundo nega a divindade de
Cristo.

A seguir, ainda no mesmo extraordinário capítulo, Chesterton


apresenta as duas características da demência: uma completação e uma
retração. Uma completação pequena. Uma exaustão. Um círculo. Ele
bem sabe que a inteligência humana tem seus limites e que a liberdade
que ela pode gozar tem, digamos assim, o prêmio (ou o preço) de uma
limitação. Esse ponto constitui a cúpula de todo o arcabouço de idéias.
Mas antes de chegarmos a ele observemos que a loso a materialista é
mais limitadora e impõe mais restrições do que qualquer religião.

O cristão tem plena liberdade de crer que existe no Universo uma


ordem estabelecida e um inevitável crescimento, mas ao materialista
não é permitido admitir dentro de sua imaculada máquina a mais
ligeira nódoa de espiritualidade ou milagre. O pobre materialista que
é o Sr. McCabe não tem permissão de crer no mais minúsculo
diabinho escondido numa pimpinela. O homem normal sabe que tem
em si um pouco de animal, um pouco de demônio, um pouco de
santo e um pouco de cidadão. Ainda mais, o homem realmente
normal sabe que tem em si um pouco de doido. Mas o mundo do
materialista é perfeitamente sólido e simples; como também o doido
está perfeitamente convencido de que é normal. Os materialistas e os
doidos nunca têm dúvidas.

Mais adiante, referindo-se ainda à libertação de que se gaba o


materialista:
É absurdo dizer que estamos progredindo em liberdade quando só
nos utilizamos do livre pensamento para destruir o livre-arbítrio. Os
deterministas vieram para amarrar e não para afrouxar. Fazem bem
em chamar à sua lei “cadeia” de causalidade, pois nunca houve pior
cadeia do que essa para acorrentar um ente humano. Podem usar a
linguagem da liberdade, se quiserem, na doutrina materialista, mas é
claro que ela é tão inaplicável a essa doutrina como, de um modo
geral, ao homem aferrolhado no hospício. Podem dizer, se quiserem,
que o homem é livre de se considerar um ovo cozido. Mas o fato mais
maciço e mais importante, seguramente, é que, sendo um ovo cozido,
ele não terá liberdade de comer, beber, dormir, passear ou fumar um
cigarro. Do mesmo modo eles podem dizer, se quiserem, que o
ousado pensador determinista tem a liberdade de descrer na
realidade da vontade; mas o fato mais importante e mais maciço é
que, nesse caso, ele não é livre para louvar, maldizer, agradecer,
justi car, implorar, punir, resistir às tentações, promover arruaças,
formar bons propósitos no Ano Novo, perdoar os pecadores,
apostrofar os tiranos ou até para dizer um simples “obrigado” a quem
lhe passar a mostarda.

Agora, deixando esse tipo de materialista que troca todas as


liberdades pela liberdade de descrer, encontramos um personagem
ainda mais sombrio:

Há um cético mais terrível do que aquele que acredita que tudo


começou na matéria; há um que acredita que tudo começou nele
mesmo. Já não é dos anjos e dos demônios que este duvida, mas dos
homens e das vacas. Para ele, os próprios amigos não passam de uma
mitologia que ele próprio construiu. Criou seu pai e sua mãe. Essa
horrível fantasia contém qualquer coisa atraente para o egoísmo mais
ou menos místico de nossos dias. Aquele editor que pensava que os
homens vencem quando crêem em si mesmos; aqueles que andam
em busca do super-homem e o vão procurar no espelho; aqueles
escritores que falam em modelar a própria personalidade em vez de
criarem vida para o mundo; toda essa gente está realmente a dois
dedos desse vácuo horroroso. E então, quando todas as coisas boas
desse mundo estiverem enegrecidas como uma mentira; quando os
amigos se esvaírem em fantasmas e os alicerces do mundo ruírem;
então, o homem que não crê em nada e em ninguém, sozinho em seu
pesadelo, deverá ser marcado com a vingadora ironia da divisa
individualista. As estrelas serão meros pontos no negrume de seu
cérebro; a face de sua mãe será somente um esboço de seu insano
lápis nas paredes de seu cárcere. Mas em cima da porta de sua cela
deve ser escrito, com terrível verdade: “Ele crê em si mesmo”.

Agora, depois de uma longa caminhada pelos infernos da demência,


onde encontramos as diferentes perturbações que a igem o espírito,
sob as formas das loso as materialistas e idealistas (que nem sempre,
aliás, se revestem dos aspectos clínicos o cialmente estabelecidos, e
muitas vezes conduzem, não ao manicômio, mas aos altos postos da
política racionalista) agora é justo que façamos um inventário e que
perguntemos: “Se é isso que enlouquece o homem, o que será que
mantém a saúde do espírito?”. E aqui responde Chesterton: “É a idéia
do mistério que conserva o homem são. O mistério é a saúde do
espírito; sua negação é a loucura”.

E aqui chegamos ao núcleo principal do seu pensamento e da sua


mensagem. Esta é a delicada e esquisita linha que separa o lúgubre
Hanwell13 daquele outro país da imaginação, da poesia e da Fé, daquele
“ensolarado rincão do senso comum” que vamos encontrar no
admirável capítulo “A ética do país das fadas”.

E esta é a primeira idéia-mestra de Chesterton: ou o mundo conserva


a noção do mistério, ou se transforma num imenso pátio de hospício.
E essa idéia, como as outras, não é sua. É antiga como o mundo; e é no
plano sobrenatural a idéia central da liturgia católica: o Sacrifício da
Missa é o centro da vida cristã, e o “mistério da Fé” (mysterium dei) é
o centro do sacrifício do altar. O autor, que mais de uma vez confessou
ter descoberto o que já havia sido descoberto, tem entretanto um
mérito, o único, aliás, a que pode pretender um autêntico pensador:
não foi ele que descobriu o sol, não foi ele que inventou a luz que
banha sua rica palheta fazendo o cobalto ser azul e o cádmio amarelo;
mas foi ele, em larga medida, que soube aceitar essa luz, servir-se dela
como de uma dádiva, e que soube olhar em volta, maravilhado, para
descobrir e redescobrir a beleza oferecida de todas as coisas.

Cedo-lhe mais uma vez a palavra para que ele termine este capítulo
como terminou seu magistral capítulo “O Maníaco”:

O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido, e consegue tornar tudo


misterioso. O místico admite que uma coisa seja mistério, e tudo se
torna lúcido. O determinista constrói a teoria clara da causalidade, e
descobre então que não pode dizer um “faça o favor” à sua
arrumadeira. O cristão permite que o livre-arbítrio seja um sagrado
mistério, e por isso suas relações com a arrumadeira ganham uma
cintilante e cristalina claridade. Ele coloca a semente do dogma numa
escuridão central; mas os ramos brotam e crescem em todas as
direções com a natural pujança da saúde. Como já tomamos o círculo
para o símbolo da razão e da loucura, tomamos agora a cruz para o
símbolo do mistério e da saúde. O budismo é centrípeto, mas o
cristianismo é centrífugo: ele explode. Pois o círculo, sendo embora
perfeito e in nito em sua natureza, está xado para sempre no seu
tamanho; nunca poderá ser maior ou menor. Mas a cruz, apesar de
ter em seu centro uma colisão e uma contradição, pode estender
sempre os seus quatro braços sem que a forma se altere. Porque tem
um paradoxo em seu coração, pode crescer sem mudar. O círculo
gira sobre si mesmo e está atado. A cruz abre os braços aos quatro
ventos como um indicador de caminhos para os viajantes livres.
Somente os símbolos podem ter algum valor neste profundo assunto;
tomarei pois um outro símbolo, tirado da natureza física que
exprimirá su cientemente bem o verdadeiro lugar do mistério
perante o gênero humano. A única coisa criada que não podemos
olhar é aquela em cuja luz vemos todas as coisas. Como o sol ao
meio-dia, o mistério esclarece todas as coisas pelo fulgor de sua
vitoriosa invisibilidade. O intelectualismo isolado é como o luar,
porque é uma luz sem calor, uma luz secundária re etida por um
mundo morto. Os gregos tinham razão quando tomaram Apolo
como deus da imaginação e da saúde, fazendo-o igualmente patrono
da poesia e da medicina. Falarei mais adiante de um credo especial e
dos dogmas necessários. Mas esse transcendentalismo pelo qual
todos os homens vivem tem, primariamente, algo da posição do sol
no rmamento. Temos consciência dele como de uma esplêndida
confusão; é qualquer coisa brilhante e informe, ao mesmo tempo
clarão e mancha. Mas o círculo da lua é tão claro e tão inequívoco,
tão recorrente e tão inevitável, como um círculo de geômetra no
quadro negro. Porque a lua é completamente racional; a lua é mãe

dos lunáticos, e a todos eles deu o seu nome.

D
Ouço no fundo da memória, pronunciada com inde nível angústia,
com uma triunfante angústia, a seguinte proposição: “É a certeza que
enlouquece, e não a dúvida”. Pode ser cotejada com essas outras de
Chesterton: “Na casa dos doidos é que brilha a estrela xa da certeza”;
“o louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”; “os
matemáticos, os enxadristas e os contadores cam loucos, os poetas
quase nunca”. Mas quem disse aquela frase que me vem à memória não
foi Chesterton. Não foi o espírito de Apolo que a ditou; foi o espírito
de Dionysos. A frase é de Nietzsche.

Da comparação dessas diferentes proposições tiramos a esquisita


conclusão de que o autor de Orthodoxy e o autor de Ecce homo, os
dois poetas mais diferentes que já houve no mundo, se encontraram
num ponto. Como se explica esse encontro? Ou melhor, como se
conciliam esse pensamento central comum e as veementes
divergências que dele resultam? Antes de mais nada, notemos um
aspecto de importância considerável embora não parecendo: a frase de
Nietzsche podia ser atribuída a Chesterton; mas nenhuma das outras
frases de Chesterton poderia ser atribuída a Nietzsche. Há, entre as
duas idéias, uma diferença que pode ser de nida com duas palavras:
retração e expansão. Em Chesterton, a idéia é um ponto de partida
para uma aventura; em Nietzsche é um ponto, uma ponta, um termo,
de onde não se pode tirar outra coisa senão a forma de um buraco. E
qual era a espécie de certeza a que se referia Nietzsche? Porque há duas
coisas que recebem essa denominação, dois tipos de julgamento, duas
espécies de satisfação intelectual: há uma certeza que esgota tudo, e
outra que se banha num ilimitado mar. A primeira é um tiro; a
segunda, o começo de uma viagem. A certeza que mata e que
enlouquece tem a máxima expressão na redonda e nítida negação, na
forma do círculo que é o símbolo do nada; a certeza que vivi ca e que
se alimenta do ser tem a forma da cruz que é o símbolo dos
acréscimos. A bússola dos navegantes é um círculo que tenta
aprisionar os quatro ventos do mundo; mas as quilhas audaciosas
investem contra a linha do horizonte e fazem do aventureiro um
devorador de círculos.

A certeza que nega, a mais perfeita certeza, é uma noite polar em que
todos os astros traçam uma coroa em torno da cabeça do solitário
conquistador. À certeza do poeta e do místico, Chesterton chamou-a
de dúvida, acidentalmente, ao dizer que “os loucos não têm dúvidas”,
mas logo se emancipou dessa imprecisão para a rmar que o mistério
do conhecimento é uma coisa positiva e ensolarada. Há, na verdade,
da parte de ambos os poetas uma certa imprecisão no sentido das
palavras; mas a contradição, e até diria a incoerência, se torna
manifesta e trágica em Nietzsche, porque ele possuía (e gabava-se de
possuí-la) a mais xa certeza que um homem pode nutrir. Tornou-se
mais tarde coerente, quando enlouqueceu.

Realmente, no mesmo livro em que assinala a genial descoberta sobre


o efeito mortal da certeza, ele a rma que o problema religioso é coisa
que nem se deve discutir. A existência de Deus é uma questão grossa e
vulgar que não merece ser abordada. Deus não existe, ponto. Ele
apregoa, como ninguém o fez, a certeza do não. O assunto é “grosso
como um punho”. É um ponto; é um círculo; é um peão que faz dama;
é um zero negro. Não há Deus; acabou-se.
Ora, se isto é uma certeza, eu não sei onde se poderá encontrar o que
melhor mereça esse nome. E essa é a certeza que enlouquece; e que
enlouqueceu. Negar não é duvidar; negar é a rmar de um modo
absoluto. Quem a rma a existência de Deus abre um campo in nito,
tanto para a ortodoxia como para a heresia. O lho de Deus será então
somente homem, ou somente Deus, ou uma união das duas naturezas;
mas se Deus existe, ele pode ser lho de Deus, para o ortodoxo e para
o herético. Cem mil volumes podem ser escritos sobre o mistério da
Santíssima Trindade, a partir dos quais podem existir cismas,
apostasias e tribunais da inquisição. A negação absoluta, ao contrário,
encerra a questão e estanca, não só o louvor como a própria blasfêmia.
Que sentido terá um punho fechado dirigido para o vazio? Que
sentido terá o solitário combate contra o adversário que não existe?
Nietzsche tentava ser coerente ao investir contra o cristianismo e mais
especialmente contra a moral cristã, mas não se equilibrava nessa
posição compreensível. Apesar de ter dito que Deus era uma “grossa
questão” que não merecia ser abordada e na qual era proibido pensar,
vivia procurando blasfêmias, colecionando-as como borboletas, e
quando encontra em Stendhal uma espécie nova, espeta-a na sua
prancha. Dionysos, o dançarino, tem repugnância pelas certezas, mas
abraça-se à mais mortal — e destrói a própria dança, que exige espaço
plástico, transformando-a num giro vertiginoso pivotado em si
mesmo.

Mas ninguém passa a vida a girar e a negar; deslocada a a rmação


positiva da inteligência, transfere-se para a vontade. Nietzsche queria
para, então, conhecer; queria uma nova história, uma nova era, um
novo universo e uma nova humanidade que o curasse do nojo pelo
homem. Amava apaixonadamente esse mundo criado na sua vontade e
onde a inteligência só tinha por alimento relâmpagos de esmeralda
num horizonte de tormenta.

A vontade, porém, não pode viver de puras antecipações sem se


negar a si mesma; embora domine a inteligência, ela não pode
caminhar sem dados do conhecimento. O grande lírico, o desvairado,
que queria receber alimento do bico das águias, dizia que a moral
cristã com sua glori cação dos fracos era um insulto à lei da seleção.
Agarrava-se ao instinto e ao naturalismo como um condor que
andasse de muletas, não sendo de admirar que os seus discípulos, de
asas vestigiais, tenham copiado somente as muletas. Não cam mais,
como Dionysos, diante do Cruci cado, executando um giro
interminável e louco. São naturalistas e evolucionistas que reduzem
todas as verdades às pequenas e efêmeras certezas que andam nos
jornais. São revolucionários que desejam, com três seixos, criar um
novo universo; com o passado do cavalo abolir o do homem, e com o
culto dos fósseis condenar o culto das relíquias.

O 
Como se vê da imagem usada por Chesterton, mistério é mais uma
claridade do que uma obscuridade. Não é aquilo que não se sabe; não
é o ignoto; não é o inimigo da inteligência que di cilmente se rende. O
mistério não está no ignorabimus14 do investigador que sente a
hostilidade do objeto e que se embaraça na trama dos problemas; não
é o enigma; não é criptograma. Na linguagem comum a palavra
mistério pode designar qualquer uma dessas coisas sem grandes
compromissos. Mas não é a essas coisas que o místico e o lósofo se
referem.

Estou pronto em convir que o método de exclusões sucessivas não é


bom, porque não há nada que possa ser de nido à custa de
eliminações; e a idéia de mistério é a última a que se possa aplicar tal
processo. Ele é entretanto necessário, para que a noção seja
preliminarmente desvencilhada da falsa noção. O mistério do quarto
amarelo, por exemplo, não é um mistério, ou, pelo menos, não o é no
sentido que o novelista adota. Um assassino não é misterioso por estar
escondido e ignorado, mas é misterioso por ser assassino. A ilha
misteriosa de Júlio Verne não é misteriosa por causa do submarino do
Capitão Nemo, mas é exuberantemente misteriosa por ser uma ilha.
“Digamos que o mistério é a plenitude ontológica à qual a inteligência
se une vitalmente e onde ela mergulha sem a esgotar”.15 É a
inexauribilidade do ser, mas não a sua inacessibilidade. É o inesgotável
possuído.

Em toda atividade intelectual, desde que o sujeito entre em contato


com o objeto, existem dois aspectos que Jacques Maritain, tomando a
terminologia de Gabriel Marcel, embora num sentido diferente,
chamou de problema e mistério. “O mistério está do lado da coisa, do
objeto, de sua realidade extramental; o problema está do lado das
nossas fórmulas”. Mas deve-se acrescentar que “da inteligência, como
da fé, é preciso dizer que seu ato não se ultima na fórmula, mas na
coisa; non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem. O mistério é aquilo
de que se nutre: o outro que ela assimila”.

A Gabriel Marcel16 o mistério aparece como um meta-problema ou


como un problème qui empiète sur ses propres données.17 Mas até
onde consegui penetrar o seu sutil estudo, parece-me que a esta
de nição falta justamente o conteúdo ontológico, sem o qual, como ele
próprio encarece, não há noção de mistério. A posição de Jacques
Maritain me parece mais tradicional, e portanto mais adequada para
exprimir o senso de mistério a que se refere Chesterton e a que aderem
instintivamente todos os autênticos poetas. O problema que “invade a
região de seus próprios dados” não é o mistério mas, a meu ver, o
problema do mistério. Está mais do lado do sujeito que formula que
do objeto que é, sendo portanto mais lógico do que ontológico. A
posição de Gabriel Marcel tem qualquer coisa de intensamente
intelectual, e julgo não desacertar imaginando que Chesterton não
gostaria muito desse problema circular que volta e pisa nos seus
próprios dados.

A noção de mistério exige candura, e não uma febril agilidade. A


inteligência pura (no sentido em que a entendem os lógicos que estão
na iminência de perderem tudo exceto a razão) não sente o mistério
do ser: ainda que ela o ataque com redobrados e sucessivos golpes, e
que reconheça, decepcionada, que nunca decifrará a in nidade de
problemas que uma or ou um pássaro propõem — ela não estará
sentindo a inesgotabilidade do ser, mas a sua inacessibilidade. A noção
de limite matemático, ou de um número in nito de operações, não
aproxima o homem dessa noção, que por sua própria essência não é
formulável. Não é no sentido de Maritain, Gabriel Marcel e
Chesterton, que um naturalista diz que sua essência nunca esgotará a
totalidade da or e do pássaro. Quando os primeiros a rmam o
inexaurível, é uma totalidade e uma presença possuída que a rmam; o
naturalista persegue uma aproximação, uma sucessão, a rmando mais
uma di culdade do processo do que uma riqueza do objeto.

O verdadeiro senso do ontológico tem ligações secretas com o amor,


e diante do mistério, a inteligência, dilatada pelo sopro do amor, não se
crispa decepcionada, mas se dilata e se nutre. Não se humilha, mas se
torna humilde. O objeto — a inteligência afetiva bem o sabe — é o seu
companheiro para a eternidade.

O  - 


Abro este capítulo com pressa e solicitude para tranqüilizar o leitor. No
precedente, levado pelo desejo de alguma precisão, andei buscando
nos lósofos uma aproximação do mistério ontológico, e deixei talvez,
na mente do leitor menos habituado a tais incursões, a idéia
assustadora de que o equilíbrio de seu espírito depende de uma coisa
di cílima. Na realidade, porém, o mistério é uma coisa facílima
porque emana da exuberância do criado sob a luz do Incriado. Na
ordem vital não constitui problema, é antes uma aceitação; é quase
uma respiração. E a mensagem de Chesterton, melhor nesse sentido
do que a dos lósofos, tem a e cácia de uma janela aberta para uma
paisagem humana, permitindo-nos ver “o ensolarado rincão do senso
comum” onde uma gura semelhante à nossa — muito mais
corpulenta, ornada de um imenso chapéu e de uma capa espanhola —
passeia em seus legítimos domínios: “Três alqueires e uma vaca”.

A idéia do mistério, em Chesterton, é vivi cante. O tom em que a


transmite deixa transparecer uma grande con ança na natureza do
homem enquanto obedece e aceita. E com razão, porque o senso do
mistério, que na ordem sobrenatural está acima de nossas forças,
sendo objeto de revelação e dádiva gratuita de Deus, na ordem natural
é próprio do homem, como o riso, o uso da palavra e a posse das
coisas. Excede-o sempre, mas já é pressentido, e mesmo possuído na
saúde do espírito. Pode-se dizer que sua forma mais rudimentar e mais
comum é o simples bom senso.

Quando digo ordem natural, entretanto, convém notar que não quero
designar o conjunto de funções da natureza animal do homem, mas a
realidade inteira, que é a natureza do homem, sob o primado do
espírito. E essa realidade está envolvida, banhada, pela ordem
sobrenatural, ainda que o homem a ignore ou a repila. Chesterton
con a nessa natureza do homem, mas não ignora também que ele tem
uma faculdade que nenhum outro ente do universo, inclusive as nove
ordens angélicas, pode se gabar de possuir: a liberdade de se tornar
desumano. E essa inquietante faculdade tanto pode ser exercida por
um indivíduo, por conta própria, como por uma escola, dentro de um
sistema e sob a direção de um desorientador pro ssional. A insanidade
anda por aí, no varejo e no atacado, acolhida pelo solitário cogitador
que de repente reconstrói um universo a seu gosto, ou recebida
o cialmente numa academia.

O autor de Orthodoxy sabe que o caminho do hospício tem seus


guias e seus arautos, e que o antigo e terno instinto que mantém “a
forte raça dos cenobitas”, que procura o convívio numa regra comum,
não abandona os homens na desregra; ou que os abandona somente
depois do noviciado losó co, quando cada um escreve na porta de
sua cela os nomes de Napoleão ou Júlio César. E por isso, o grande
cruzado do humanismo, que morreu com o coração partido nos
tempos da guerra da Abissínia e da revolução espanhola, e que desde a
sua mocidade pressentira o desenlace do frenético desumanismo que
invadia o mundo, lançou mão de todos os recursos, e apelou para
todas as faculdades naturais, a m de manter esse senso do mistério,
esse ar vivi cante, sem o qual o inferno se antecipa ao julgamento.

U   


Diz Chesterton, pela boca de seu principal personagem em e Poet
and the Lunatics, que o poeta olha as mesmas coisas todos os dias
como se as estivesse vendo pela primeira vez. A idéia não é dele; já está
em Shelley. E não duvido que esteja em Píndaro ou Virgílio. Aliás, ele
se gabou, uma vez por todas, de não ter idéias novas e próprias. O
grande defensor da propriedade privada, que reclamava para o mais
simples cidadão a propriedade de três alqueires e o domínio sobre
uma vaca, sabia que o mundo das idéias é um imenso campo de
pilhagens. Percorria-o com a jovialidade e a jogralidade de um Robin
Hood; bom arqueiro e mau reconhecedor de privilégios. E encontrava-
se com Shakespeare, que também passou a vida a roubar.

A literatura e as artes de todos os gêneros não passam, efetivamente,


de uma vasta confraria de ágeis batedores de carteiras, na qual eu me
matriculei como aprendiz. Permita o leitor que eu comece pelas
escamoteações mais fáceis e que assim vá exercitando a mão, lucrando
em agilidade e perdendo em escrúpulos.

Aliás, mal ou bem, destro ou canhestro, eu já pertenço a uma outra


quadrilha, que opera há vinte séculos pelos caminhos do mundo,
desde que um dos nossos, com pés e mãos pregados, conseguiu
arrebatar ao Senhor o próprio reino do Céu.
A  
Aquela frase, seja qual for seu dono, esclarece a idéia do mistério, e
ajuda-nos a compreender o incalculável valor que Chesterton atribuía
à poesia na restauração do equilíbrio mental. A poesia é útil, e hoje
mais do que nunca, porque renova as coisas. Mas renova de um modo
radicalmente diverso do invencionismo que andou a igindo as artes,
imprimindo-lhes um movimento de translação, próprio da técnica.
Essa renovação trazida pela arte torna-se mais compreensível se
dissermos que ela repete a primeira vez, isto é, que ela busca o gosto
das origens. Ou então torna-se de nitivamente incompreensível. Tudo
depende da faculdade que tenhamos de sentir, imaginar e pensar o que
seja uma primeira vez. Tudo depende da infância que ainda tenhamos
no coração, da candura latente sob o peso da ciência e da experiência
da vida. Minha penúltima lhinha viu há dias o mar pela primeira vez,
e há poucos meses viu um boi pela primeira vez. A outra, mais
crescida, e que já sabe ler, vai comungar pela primeira vez dentro de
quinze dias. Pergunto ao leitor se faz uma idéia do que isso quer dizer.
Se faz é poeta, ou pelo menos tem o senso do mistério. Se, ao
contrário, imagina que a atitude característica da primeira vez é a
surpresa, o susto, o choque, ou a admiração discursiva e
grandiloqüente que nos assaltou quando vimos pela primeira vez, e já
adultos, um Zepellin; se julga que aqueles objetos ou situações
pareceram, na primeira visão infantil, gritantes, novos de novidade;
então, não é sensível à poesia, ao mistério, e di cilmente saberá de que
estou eu falando.

A visão primeira da criança é verdadeiramente primeira; a visão


primeira do adulto mecanizado é última. As novidades maiores desse
adulto são as últimas novidades: o último chapéu, o último modelo de
rádio, a última notícia. A surpresa espantada do adulto ca na ponta
nal de uma série de repetições exaustas e tem a marca de uma fadiga
mortal. Na criança, a maravilha é monótona, igual, lisa, tranqüila: é o
chão onde, durante o resto de sua vida, poderão orir alguns sorrisos
de verdadeira alegria e algumas experiências de verdadeira poesia. A
infância é um depósito de mistérios.

Lembro-me de numerosos pequenos incidentes de minha primeira


infância, e entre eles ocorre-me agora o som de uma trombeta. As
circunstâncias são confusas. Teria eu dois para três anos. Havia uma
porta aberta para uma sala onde dois pintores caiavam as paredes
trepados em escadas nas e altas que me pareciam oscilantes. Um
cheiro fresco e úmido. Uma ressonância de vozes nas paredes nuas. Ao
meu lado duas pernas enormes, e lá do alto delas, a voz de meu pai.
Foi nesse momento que o som da trombeta rasgou os ares e traçou um
meridiano em minha história. Veio de fora, de uma outra casa e
misturou-se, uniu-se ao ar que eu respirava, ao cheiro de cal molhada,
às paredes, às escadas, às pernas de meu pai, como se fosse um canto,
singelo e azul, de todas as coisas.

Seria talvez, imagino, algum clarinetista que tocava seus exercícios


numa hora de folga ou num domingo. Por mais que me esforce não
encontro novamente a sensação perdida. Sei que teve lugar e que foi
imensa; mas o que dela disser, e o que já disse, não passa de uma
hesitante aproximação. Insistindo na pesquisa, encontro duas idéias
soltas que designo com essas palavras: amplitude e solidariedade. Vejo
também um intenso azul.

Proust queimou seus últimos dias (e em quatorze volumes nos deixou


a notícia) numa luta terrível e desigual entre a pressão da memória
inconsciente e a capacidade analítica da memória voluntária, e, “não
podendo recolher as chamas do passado, contentou-se com uns restos
de calor nas suas cinzas; e, não podendo, com a memória gelada,
ressuscitar o que fora, desejou ao menos descrever e constituir sua
ciência”. Um cheiro, um som, uma torre de igreja, o gosto de um chá,
de repente, despertavam um outro adormecido, um morto e um
sempre vivo, um inconsciente, presente naquele passado, e não
sabendo portanto que era um passado — e ele, avidamente, debruçava
a inteligência sobre esse instante de eternidade, e chamava a memória
voluntária em seu socorro. E a memória matava a memória; a
recordação intelectual extinguia a anamnese, o mistério da memória. E
o grande explorador do tempo perdido tinha que se contentar com um
séqüito de sombras. Essa onda que vem das coisas idas e primeiras,
realmente, não pode ser traduzida num memorial. Creio estar certo
a rmando que o mais prodigioso efeito da memória consiste em a
gente não se lembrar de nada. Nos momentos em que tornei a
encontrar o cheiro ou o som que me vinham das profundezas da
infância, a sensação mais violenta que de mim se apoderou não foi a
lembrança das coisas, mas uma lembrança total de mim mesmo. Foi
um estado que não precisava dos objetos de minha primeira infância
para se constituir. Ali, naquela poltrona, próximo dos cinqüenta anos,
quantas e quantas vezes, por um nada, as idades coam no meu sangue
uma memória total, vital, que resiste aos objetos, aos próprios objetos
novos, que durante dois ou três segundos são vistos com os antigos
olhos de menino. É uma memória vazia de fatos. E se me debruço, se
me crispo, quebra-se o encanto; e na falta do gênio proustiano, o
séqüito de sombras é ainda mais vago, e mais frias as cinzas.

Às vezes, numa experiência intermediária, meio atenta, como quem


espia de soslaio um pássaro, com receio de espantá-lo mesmo com o
olhar, meio vigilante e meio entregue, eu ouvi o som daquela
trombeta. Mas era longínquo, aéreo, isolado. E em lugar daquele
ambiente que reconstituo fazendo violência — (a sala, os pintores, as
pernas de meu pai) e que entrevejo com febril curiosidade, como se
espiasse num buraco de fechadura, vinham com o som coisas
estranhas, superpostas, oblíquas, de anarquizada cronologia: e numa
só onda de lembranças eu via uma carteira no colégio, a estrela
sêxtupla de Orion, um rosto próximo, e uma perspectiva onírica de
rua comprida em bairro tranqüilo...

Como num largo rio, eu via esses destroços de vida vogando e


passando: e o vento, que impelia numa fantasmática festa os balcedos
arrancados às margens de minhas saudades, vinha daqueles lábios
perdidos, de um preto talvez, de um morto talvez, que quarenta e
tantos anos atrás zeram fremir os ares de um domingo.
*

Creio que seja a força dessas coisas primeiras que nos defende a cada
instante da loucura, em cuja atmosfera pode-se dizer que todas as
coisas são segundas. É possível que o som daquela trombeta esteja nas
mãos de meu Anjo da Guarda. E é quase certo que, sem esse in uxo
dos primeiros encontros, nenhum de nós, em circunstância alguma,
tornaria a sentir admiração pelo mistério das coisas. Imagine o leitor
essa situação sinistra e quase impensável: o homem de nitivamente
privado de admiração; o homem de nitivamente prevenido; o homem
de nitivamente esgotado de infância. Esse é o triste retrato do
racionalista, do astuto intérprete de todos os movimentos do universo.
A ele ninguém engana. Dá-se a si mesmo o nome de morto dizendo-se
um que já viveu.

Não sei até que ponto pode existir realmente esse sombrio indivíduo.
Alguns lósofos reclamam para si o retrato, mas eu creio que eles se
gabam de serem mais doidos do que os doidos. Mal ou bem, todos nós
conservamos essa capacidade de renovação que nos permite ver as
coisas mais cotidianas com olhos lavados. A poesia, como arte
propriamente dita, é um dom especial, mas é comum o odor da poesia,
o gosto pela beleza e pelo mistério. E eu creio que esse gosto tem raízes
nos primeiros encontros. Nunca mais, por certo, ouvi um som de
trombeta tão despojadamente novo, mas renovei o encontro primitivo,
ao longo da vida, em mil circunstâncias diferentes. Diante de um
rosto, lendo dois versos, ouvindo um concerto de Mozart. Sempre que
adivinho a beleza e o mistério, no mais simples objeto, já visto e
revisto, ele me aparece como sendo visto pela milésima primeira-vez.

O mistério das coisas — as lágrimas das coisas nesse mundo


atravessado pela dor — surge diante de nós como testemunhos de uma
perene infância. A repetição é a nossa maior a ição quando falta um
espírito renovador. O universo se reduz diante de nossa retina cansada
a uma relojoaria de ridícula magnitude. Por que tanta pedra nos
montes? Por que tantos astros no céu? A repetição põe em nossa alma
um cansaço mortal. Por que tantos dias? Um rosto próximo, dia a dia,
se torna a coisa mais fatigante que existe. Onde estão as reservas que
nos faziam gritar, diante do brinquedo mais banal: “Mais!... mais!...
mais!...”? A amarga ciência, que examina e dissocia, gaba-se de
conhecer melhor na medida em que esgota as coisas. É uma
competição de senectude. O ouro deixa de ser áureo; a rosa deixa de
ser rósea; o homem deixa de ser humano. A técnica acelera a
liquidação, proporcionando-nos a faculdade de envelhecer mil anos ao
nos exibir uma impressão digital ou uma radiogra a. Lucramos uma
caduca malícia quando desmontamos a molécula da água e nos
permitimos dizer que o cadáver da molécula é mais verdadeiro e mais
cientí co do que uma gota de chuva. A ciência é boa, a técnica é boa,
mas péssima é a loso a e a concepção de vida que destilamos das
máquinas e dos teoremas. Péssima é a supressão do mistério da
Criação, para a implantação, em seu lugar, do regime dos problemas.

Há dias vi um lme considerado instrutivo. Mostrando os prodígios


do Raio X em cinematogra a, apresentava uma moça, primeiro no seu
natural, bonita, sadia e alegre, e depois em sua caveira. E logo, entre
dois gracejos, o técnico deu largas à sua loso a tentando nos inculcar
que a verdadeira realidade, a cientí ca, era a caveira. A outra, que se
refere ao rosto cheio e bonito, seria uma realidade menor, apenas
tolerável como primeira aproximação, vulgar e caseira. Seria, quando
muito, digna de interesse para a mãe da moça.

Na verdade, todos nós, fatigados, exaustos, acabamos por ter a visão


estreita e destruidora do Raio X, isto é, acabamos por ver somente as
caveiras das coisas. O papel da poesia no mundo — ou pelo menos seu
papel social e clínico — é o de um constante exorcismo da loucura. O
homem que admira e louva; que aceita e agradece, que chora e que ri;
tem saúde de espírito. Seus atos, às vezes, são faltos de lógica.
Freqüentemente, absurdos. O personagem predileto de Chesterton, o
Poeta, é um homem que vira cambalhotas na rua, sob o severo e
desaprovador olhar do doido. Os homens graves, que fazem seu
noviciado de loucura nos negócios e na política, não vêem também
com bons olhos o sujeito que vira cambalhotas na rua, pois pertencem
àquela espécie dos que se resolvem a cantar de galo somente quando
estão rmemente convencidos de que são galos. Eles não sabem que as
mil e uma pequenas extravagâncias que fazemos, em gestos e palavras,
são muitas vezes o epílogo de uma breve luta em que a loucura foi
vencida. Os atos gratuitos esconjuram o sombrio convite ao
determinismo que os demônios nos fazem. A cada instante nossa
razão é assaltada e seduzida pela volúpia do giro solitário; mas
também em cada instante há um nada que nos salva: uma pedra; uma
or.

Há no mundo, graças a Deus, o amor das pessoas, a voz dos poetas, a


beleza e a verdade das coisas; o mundo está cheio de um Espírito
renovador: Emitte Spiritum tuum, et creabuntur, et renovabis faciem
terrae.18 É nesse Espírito que o cristão, o homem-novo, assiste cada dia
a renovação do “novo e eterno testamento” no Mistério da Fé. E é
desse Espírito que procedem os lampejos do mistério das coisas.
Quando nós admiramos uma árvore carregada de frutos, é pelo
Espírito Santo que a admiramos. A beleza nunca é inteiramente
natural; e uma árvore bela é, para nós, mais do que uma árvore: é um
presente, é uma árvore de Natal.

A poesia pressente esse mistério maior. Ligada às origens como a


uma promessa, ela anda correndo no encalço da Esperança. A arte
renova e repete, como a Esperança renova, cada dia, a mesma
promessa repetida. A arte vence a monotonia das coisas, como a
Esperança vence a monotonia dos dias.

A arte socorre o espírito de infância, e ajuda a manter vivas em nós as


alegrias dos primeiros encontros, como se elas fossem a melhor e mais
clara garantia dos últimos encontros. É um grande segredo de Deus,
fechado a sete selos, a alegria do Céu. Creio porém que não é demais
pensar que já lhe vimos os sinais. E creio, por mim, que não será
temerário esperar que a trombeta, ouvida há quarenta e seis anos num
domingo quieto e azul, seja um dia novamente ouvida, e novamente
ouvida pela primeira vez.
A 
Gabriel Marcel, no mesmo estudo sobre a ontologia do mistério, atrás
mencionado, confessa que muitas vezes se pergunta com uma espécie
de ansiedade o que será a vida e a realidade interior de um funcionário
do metrô que picota bilhetes. O mais terrível espetáculo do mundo é o
das vidas perdidas, das vidas que parecem inúteis. No primeiro
capítulo deste livro referi-me a essas vidas e agora relendo-o descubro
nele o tom convencional de quem anda na intimidade dos anjos. Não
gostei do tom. Mas lá ca como está, porque se a gente fosse retomar
inde nidamente o de que não gostou nos capítulos anteriores, cada
livro que se escreve seria um nunca-mais-acabar.

Na verdade é um terrível espetáculo, o das vidas que parecem


perdidas e aprisionadas dentro de uma rotina. É terrível pensar que
um homem possa car reduzido a uma função. E na maior parte, as
pessoas que vemos viver dão-nos essa impressão de um tédio
irremediável como se estivessem pacientemente na la-de-morrer.

Digamos logo: o homem tem pavor da monotonia. O capítulo


precedente sobre a renovação proporcionada pela poesia, lido à
sombra desse pavor, poderia ser mal interpretado, deixando supor que
o senso do mistério das coisas e da vida é atingido pelo indivíduo que
freqüenta diariamente exposições e concertos ou que anda correndo
pelos campos a cheirar todas as ores e a se extasiar diante de todas as
perspectivas. Esse indivíduo muito provavelmente caria louco, pois,
fugindo de uma monotonia, entrega-se a outra pior: a monotonia
funcional, maquinal, acelerada e vertiginosa.

A arte é completa em si mesma, e não é meu intento dizer, por


Chesterton e por mim, que a poesia tem por nalidade o arejamento
das cidades, como uma espécie de monumental gerador de ozona; mas
julgo não lhe diminuir a independência dizendo que ela tem essa
virtude. Sob o ponto de vista da saúde do espírito, e mais precisamente
sob o ponto de vista do senso do mistério, a poesia é um tônico: sua
presença em torno de nós (na forma de um pé de cadeira ou de um
simples peso de papéis) é um poderoso antídoto do racionalismo e do
determinismo.

Mas a grande lição da poesia não é o frêmito renovador, é ao


contrário a delidade; sua renovação é uma renovação de votos. Na
arte e na mística, tomadas como exercícios, encontramos a
preponderância de um elemento que o homem moderno recalcitra a
admitir: a monotonia. A força do poeta está na tranqüilidade, numa
ritmada tranqüilidade que imita a Criação; a força do místico, seu
atletismo, sua ascese, consiste na paciência e na humildade. Se alguma
coisa no corpo do homem exprime força e vida é o compassado alento
da respiração e a tranqüilidade do sono. Na vida espiritual há também
uma larga e pausada respiração que denota saúde, em contraste com a
dispnéia dos agonizantes. Os habitantes das cidades modernas, não
sabendo mais distinguir entre o silêncio da vida e o silêncio da morte,
adotam, como sinais de máxima vitalidade, os estertores da agonia.
Essa é uma idéia que reaparece em Chesterton com certa insistência, e
não é difícil compreender que seja tributária da idéia central do
mistério. A vida é silenciosa; o mistério da vida e da força está no
silêncio e na tranqüilidade. Nossas ruas são agitadas e ruidosas porque
somos cada dia mais fracos; as pessoas passam febrilmente porque não
agüentam mais a estabilidade. Os antigos celebravam a majestade da
força na escultura; os modernos contorceram colunas e contorceram a
forma do homem, a idéia de força estando ligada, para eles, à idéia de
movimento. O universo tornou-se uma máquina, e o homem tornou-
se uma máquina desarranjada.

Perdemos cada dia a força da vida porque perdemos o gosto pelo


silêncio e pela monotonia. O mistério das coisas é como um rio largo,
tranqüilo e sempre renovado. O rio é uma origem que se derrama
incessantemente. Um dos antigos lósofos que negou o mistério do
ser, um antepassado de Hegel, viu no rio um sinal de contradição, mas
nos salmos o rio se a rma como um contentamento e aplaude a
apoteose nal da Criação.
O homem de hoje, de qualquer categoria, é o picotador de bilhetes
que Gabriel Marcel considerava com ansiedade: ele não pode parar.
Sua vida é uma função, uma série de movimentos necessários que se
prolongam pelas horas de seus dias numa série de tiques. O picotador
continua picotando inde nidamente, em casa e em sonhos. O tabelião
ou o general trocam o mistério do homem pelo cartório e pela farda,
que acabam rompendo os limites e invadindo a vida toda.

A mulher, que tinha, digamos assim, mais densidade humana do que


o homem, estando mais emancipada de funções, tornou-se também
funcionária. Aliás, seria difícil de nir melhor do que Chesterton essa
chamada emancipação da mulher moderna: “As mulheres disseram
um dia: os homens não mais nos ditarão suas vontades! Ora, poucos
dias depois havia vinte milhões de estenógrafas”. E nunca a nossa
pobre companheira foi tão fraca como hoje. Continua a parir com
dores, e passou a ganhar o pão com o suor do rosto. Completou-se
num pequeno ser que nunca foi tão incompleto.

Devo declarar muito explicitamente que não duvido do crescimento


do mundo e de uma emancipação do homem em todos os domínios.
A condição da mulher, principalmente na sociedade capitalista
burguesa, tem qualquer coisa de infamante, agarrada como um cancro
a qualquer coisa de venerável. A crise de emancipação, entretanto, se
processa de um modo que me deixa extremamente apreensivo. A
mulher era, e é por natureza, mais forte do que o homem nesse
especial sentido que estou procurando caracterizar. Agüentava melhor
do que ele a monotonia, ou ainda e mais exatamente, estimava a
monotonia. Eu me pergunto, um pouco ansioso, onde estará hoje a
mulher forte capaz de car simplesmente sentada. Onde está a mãe
estável, a mãe que em nossas lembranças de menino parece uma gura
maciça, mesmo em sua graça frágil, como um busto em cima de um
saco de saias? Onde está a moça capaz de car em casa como num
paraíso, capaz de acalentar um lho horas a o, instalada, estabilizada,
eternizada no mistério da paciência e da maternidade? Já tentaram a
anestesia do parto a que, evidentemente, nenhum artigo de nossa Fé se
opõe; mas também já pensaram em aliviar a paciência da mulher, ou
em abreviar sua ine ciência de funcionária, transplantando o feto no
terceiro mês para o útero de um bicho. Os cuidados maternais já são
transportados hoje para o regaço da ama-seca que deve possuir, para
plena satisfação da mãe que paga, a perfeita imbecilidade de um
animal que não reclama, aliada à perfeita santidade que não se
impacienta.

Um casal moderno depara com freqüência o seguinte problema: pai e


mãe são funcionários de uma Caixa ou de um Ministério. Antes de
nascer o primeiro lho a vida lhes transcorre numa admirável
suavidade burocrática. Têm do que falar à noite, quando se encontram:
las de ônibus, esquisitice dos colegas, injustiças dos chefes, relógios
de ponto e outros fascinantes detalhes da vida nas repartições. Chega
porém o primeiro lho, não se sabe bem como, e arma-se o problema.
Uma pessoa sensata e antiga dirá que a mãe deve car em casa,
agravando a utopia com a sugestão de que o pai poderia ganhar os dois
salários e fazer perfeitamente as duas tarefas. Uma outra pessoa,
afetada de uma ligeira perturbação mental, dirá que é o pai quem deve
car em casa. Uma terceira, completamente doida, dirá que é o bebê
que deve ir para o Ministério: e esse é o alvitre que vai sendo preferido.

O mundo está perdendo o senso da vitalidade, da tranqüilidade, da


força monótona — e, por conseqüência, o senso do mistério. E parece-
me que cada um tem pressa de transmitir ao vizinho a sua agitação, e
de a transmitir aos lhos. Pouca gente sabe ainda, por instinto ou por
ciência, que a infância é a única idade da vida em que o divertimento
não faz falta. A criança tem em si, normalmente, a força da
monotonia, e não precisa divertir-se, porque brinca. Não precisa
mudar de situações e de sensações, porque sente a inexauribilidade das
coisas e das horas, não se cansando na repetição. Sua efervescência e
sua instabilidade são profundamente diferentes das nossas. As mães,
tias e avós de quarenta anos atrás tinham essa ciência infusa e não
inundavam a criança de brinquedos engenhosos, brinquedos de
velhos, e não a arrastavam em todo lugar para que ela partilhasse a
neurastenia dos adultos. As famílias de hoje, em sua maior parte —
lamento dizê-lo — têm, como os sociólogos de hoje, um suspeito e
malsão interesse pelas crianças: talvez os aguilhoe o constante remorso
de ter feito contra elas, nas próprias fontes da vida, alguma sangrenta
traição.

A mensagem de Chesterton tem particular veemência e insistência


no que toca o mistério da vida, da mulher e da criança; sendo de notar
que o autor de oitenta volumes borbulhantes, com um paradoxo
perfeitamente infantil, é o arauto da monotonia e da tranqüilidade. Em
centenas de passagens a idéia aparece; mas é no quarto capítulo de
Orthodoxy que encontramos o enunciado mais extenso e mais
explícito:

Todo o orgulhoso materialismo que domina a mentalidade moderna


reduz-se, em última análise, a uma suposição; a uma falsa suposição.
Admitem, nessa concepção, que uma coisa que se repete está
provavelmente morta, como uma peça de relojoaria; imaginam que o
universo seria variável se fosse uma entidade pessoal, e que o sol
dançaria se fosse vivo. Ora, isto é inteiramente falso, mesmo em
relação aos fatos mais triviais. As variações nas atividades humanas
são produzidas geralmente pela morte e não pela vida; são
produzidas pelo amortecimento ou pela interrupção da força que as
anima. Um homem varia seus movimentos porque se cansa. Toma
um ônibus porque está fatigado de andar; ou anda porque não
agüenta car quieto. Mas se sua vida ou sua alegria fosse tão
portentosa que nunca se cansasse de ir a Islington, então ele iria a
Islington tão regularmente como o Tâmisa vai a Sheerness. O próprio
andamento e o êxtase da vida teriam a tranqüilidade da morte. O sol
se levanta todas as manhãs; eu não, nem em todas as manhãs me
levanto; mas essa irregularidade não é devida à minha força e sim à
minha inércia. Em suma, o sol nasce todas as manhãs porque nunca
se cansa de nascer. Sua rotina é devida a uma transbordante
vitalidade.

Para explicar melhor a minha idéia tomemos o exemplo da criança.


Ela mexe as pernas ritmadamente por causa de um excesso e não pela
ausência de vida. É capaz de querer coisas repetidas e imutáveis, e por
isso pede: “Mais! Mais!” e as pessoas grandes repetem até carem
quase mortas. Porque essas pobres pessoas grandes não são bastante
fortes para exultarem na monotonia. É possível que Deus diga ao sol
cada manhã: “Mais!” e cada noite à lua: “Outra vez!”. Não foi uma
automática necessidade que fez todas as margaridas iguais. É possível
que Deus faça as margaridas uma por uma e que não se canse de fazer
margaridas. É possível que Ele tenha um eterno apetite de infância;
nós, que pecamos, somos envelhecidos; mas nosso Pai é mais moço do
que nós. A repetição da natureza também não deve ser uma simples
recorrência, mas uma espécie de bis teatral. Os céus dizem bis ao
pássaro que põe ovo. E se um ente humano concebe e dá à luz uma
criança humana, e não um peixe, e não um morcego, e não um grifo,
não quer isto dizer que estamos necessariamente xados num destino
animal, sem vida e sem objetivos. Pode bem ser que nossa pequena
tragédia tenha comovido os deuses e que eles a admirem lá do alto de
suas rutilantes galerias, e que no m de cada drama o homem seja
chamado à boca de cena, outra vez, e mais outra vez...

O   
O mistério é o clima da infância. A maior parte dos pensadores
modernos (principalmente a raça especial que denota aquele pertinaz
e malsão interesse pela infância a que atrás me referi) anda convencida
de que a infância é uma passagem. Uma espécie de canudo na
máquina de fabricar soldados, funcionários e proletários. É justo dizer
que um embrião é em si uma coisa incompleta, e que o ofício do
embrião é transformar-se em criança. Mas já não é justo nem razoável
dizer que a criança é um estágio, uma transição, com a nalidade
única de se transformar em o cial de gabinete ou senador.

Essa uniformidade na maneira de considerar as coisas seria


admissível, ou pelo menos compreensível, em outras circunstâncias.
Um estudante, por exemplo, pode ser considerado como um elo sob
vários pontos de vista, já pela pista de obstáculos escolares que vai
galgando, já pelo bigode que se esboça. Um presidente da república
pode ser também considerado como uma etapa. Mas entre o embrião
e a criança há um acontecimento dramático demais para ser
esquecido: o parto. Os gritos e o sangue da mãe não podem ser
subestimados a ponto de se dizer que a criança é um embrião que
substituiu o umbigo pela mamadeira. Se adotarmos essa idéia de um
constante devenir,19 eu não vejo como seria possível deixar um
homem, em certa época, de ser embrião. Sê-lo-ia no berço e na escola,
sê-lo-ia mais tarde na presidência da república. Sê-lo-ia até a morte. A
menos que o evolucionista faça uma especial e arbitrária concessão e
marque uma data o cial para o indivíduo nascer, já que as dores da
mãe e o falatório de todas as tias não o conseguiram despertar de seu
losó co torpor.

Um amigo, há dias, contou-me horrorizado a visita que fez a um


instituto: um funcionário-médico, esgrimindo uma vara contra mapas
coloridos na parede de seu escritório, provou que era melhor atacar o
problema da tuberculose do adulto do que o da mortalidade infantil.
Seu grande argumento era a diferença de preço. O adulto de vinte anos
custara à sociedade tantas vezes mais do que um garoto de quatro.
(Meu amigo não esclareceu se o critério era o dos anos ou dos quilos,
mas estou inclinado a crer que seria uma feliz combinação algébrica
envolvendo o peso e a idade). Aquele Herodes, pertencendo à sombria
e repulsiva classe de indivíduos que falam no futuro da espécie
humana, parece estar em contradição. Mas não está. Seu raciocínio
tem a mesma sinistra e irrespondível coerência que Chesterton
assinalou a propósito do raciocínio dos doidos. Justamente porque crê
na redenção do mundo pelas novas gerações, ele põe em grá cos o
massacre das crianças, porque o adulto curado reporá facilmente nos
quadros sociais o insigni cante defuntinho.

Outro exemplo do moderno interesse pela infância pode ser


encontrado num livro de Henri Pieron, onde esse triste personagem
descreve a pequena experiência que fez com uma menina, de dois ou
três anos. Mancomunado com uma enfermeira, arranjou uma velha
boneca e deu-a à menina. Depois cou rondando por ali, ou deixou
recado à sua cúmplice, para observar o momento em que a criança
tomasse interesse bem marcado e bem afetivo pela boneca. Chegado
esse momento começa a experiência. (Queria ele, parece-me, observar
o fenômeno de associações psicológicas ou coisa que o valha). Muniu-
se de um gongo ensurdecedor e pôs a boneca ao alcance da menina.
Quando ela estendeu a mão para pegar a boneca deu ele uma forte
pancada no gongo. A criança assustou-se, fez bico, mas ao cabo de
algum tempo voltou a pegar a boneca. Novo estampido. A criança
chora. Novo intervalo e lá volta ela, obstinada, a estender a mão. Agora
a enfermeira puxa o lençol da cama e a criança cai. No m de uma
dúzia dessas interessantes experiências o Sr. Pieron anota, satisfeito,
que a criança já não pode mais suportar a boneca. Basta mostrar-lhe a
boneca para que ela chore.

O leitor terá observado que descrevi a experiência do psicólogo com


uma certa objetividade, defendendo-me de um natural sentimento,
que prejudicaria certamente a serenidade da demonstração. Se eles
querem ser cientí cos, eu também quero. É justamente o aspecto
intelectual daquela experiência que mais me impressiona;
principalmente considerando que o doutor era assistido por uma
mulher. Chego a admitir, nessa ordem de idéias, que ele tivesse feito a
experiência, mas o que me custa a admitir é que não lhe tenha passado
pelo espírito cotejar o seu magro resultado. Bastava-lhe sair pela rua,
perguntando a todas as boas mulheres que fosse encontrando,
cozinheiras e lavadeiras, para que elas lhe dissessem que há seis mil
anos, pelo menos, as crianças maltratadas choram e pegam cismas. E
tenho para mim que o observador deixou escapar um detalhe:
provavelmente a criança chorava, mesmo sem boneca, vendo o
psicólogo.

Com esses e outros exemplos, eu chego à conclusão de que os


pedagogos e sociólogos se interessam pela criança porque ela é a
reserva de pelotões e porque ela é um material barato. Ou então eu
chego à conclusão mais exata de que eles não se interessam
absolutamente pela criança. E nesse ponto, deixando de lado
problemas morais da mais relevante importância (que são aliás
corolários de um desvio da razão), eu insisto em dizer que o nervo da
questão está numa incapacidade de sentir o mistério onde ele se
apresenta mais fulgurante, mais palpável, mais feérico, mais banal,
mais extraordinário e mais cotidiano: a infância.

O desumanismo ataca os celeiros do mundo quando mais invoca as


novas gerações. Torna-se cego diante de uma menina de dois ou três
anos porque está mergulhado num pesadelo horrível onde o psicólogo
passeia num jardim acariciando as crianças que ainda não nasceram:
os unborn babies a que Chesterton se refere muitas vezes. A
incapacidade de acertar em moral, em política, em comércio, em
tomates e em ovos; a incapacidade de organizar um serviço de ônibus
ou a mais grave incapacidade de permitir que os negócios humanos
tenham uma sadia desorganização, tudo isso, não receio dizê-lo, tem
origem numa simples incapacidade de ver. É a inteligência que está
toldada, antes de mais nada. Ou melhor, é a inteligência que está
desligada do mistério do ser e que gira no vazio, produzindo por cima
dos telhados um lamentoso grito de sirene de tristes presságios.

“Se não fordes como as criancinhas não entrareis no reino dos Céus”.
Mas o que é uma criança? “Por que motivo, em nome de todos os
anjos e de todos os demônios, temos esse culto da infância se não é o
culto da virgindade?” — pergunta um personagem de e Ball and the
Cross — “Quem se lembraria de venerar uma coisa pelo simples fato
de ser pequena e de não estar madura?”.

Chesterton disse: virgindade; e eu creio que ele localizou o mistério


da infância. Mas é preciso não deixar ao leitor o tempo de se instalar
numa falsa interpretação. Não se trata somente da ausência de ato
sexual na criança; nem fazemos questão de defender a teoria da sua
perfeita inocência. Antes de Freud, autores como Michelet escreveram
páginas indignadas contra a bárbara prática do batismo que supunha
nesses querubins uma culpa. Hoje, os autores riem-se de nós porque
ainda queremos ser como as crianças. Virgindade implica inocência e
castidade, mas é um conceito maior e mais fundamental. Ou melhor, é
mais uma realidade de mistério ontológico do que uma realidade
moral. Virgindade, no antigo sentido cristão, é integridade.

A criança é íntegra. Em outras palavras: suponhamos que eu queira


saber, intensamente, vitalmente, o que é um homem, o que eu sou;
suponhamos que um dos anjos, lá do alto de suas rutilantes galerias,
queira mostrar a algum outro anjo distraído o que é um homem.
Mostraria primeiro o Cristo; depois mostraria o santo; e nalmente,
movido por um frêmito de ternura e esperança, mostraria uma
criança. Não por causa de seu estado moral, mas pela completidão e
pela inteireza de seu ser. A criança está toda ali. Se mostrasse um de
nós o anjo teria que entrar numa laboriosa e abstrata argumentação
para explicar que faltavam tais e tais coisas, porque nós estamos
dispersos, porque espalhamos pelos quatro ventos os pedaços de nossa
infância. A criança não, está ali; pequenina e não experimentada
embora, suspensa por um o, empurrada para a vida, mas ainda está
ali. Inteira. Virginal. Misteriosa.

O mundo, mesmo o mundo dos doidos, espera na criança; e tem


razão. Seus métodos e suas provas são freqüentemente insanas como
nos exemplos que dei, mas na raiz da mais delirante insanidade há
uma teimosa esperança. E está certa essa esperança, porque a criança
não é somente no sentido social e progressista a esperança do mundo,
ela é o exemplo vivo e corpóreo do mistério da esperança. Péguy via a
segunda virtude teologal numa petite lle de rien du tout.20 Chesterton
via na criança a força da eternidade diante da monotonia.

A mensagem de Chesterton é um convite à recuperação da infância,


já pelo tom, pelo riso do humorista, já pelo constante cuidado de
apresentar a solidariedade de todas as coisas e de todos os assuntos,
em torno da realidade integral e virginal, da criança, do santo, e do
Cristo Jesus.
O 
A idéia do mistério, fundamento do bom senso e do realismo prático,
é o ponto central da obra de Chesterton. Em Orthodoxy é a substância
dos capítulos básicos; nos romances e nos contos, é tão onipresente e
fundamental que não dá a idéia de ser uma idéia. Mas onde ela tem a
mais curiosa e talvez decisiva atuação, é nos cinco volumes de novelas
policiais com as aventuras do Padre Brown. Aí é que Chesterton
combate no reduto predileto do racionalismo. Pois é diante do crime e
da iniqüidade em geral, que o determinismo e todas as formas de
materialismo se sentem à vontade, mais protegidos de qualquer
espécie de mística: a doença, o mal, o crime, parecem-lhes coisas
extremamente claras. O racionalista é irresistivelmente atraído a
racionalizar o mistério da iniqüidade, e os trabalhos desse gênero
costumam produzir um grande desafogo em nosso espírito.

A doença tem uma causa, geralmente mais nítida que a saúde; o


crime tem muito mais lógica do que os passos e gestos de um bom pai
de família. E esse encontro dramático de causa e efeito, na doença e no
crime, dá ao determinista a desvairada alegria do sujeito que pilhou o
universo num bom agrante. O crime é lógico. A doença é muito mais
lógica do que a saúde. Ninguém costuma se perguntar à noite: “Ora
essa, o que será que me fez bem hoje?”. Ou então: “Por que motivo não
corta meu vizinho sua mulher em pedaços?”. Ninguém raciocina sobre
a normalidade, nem existiu até hoje o arguto detetive que, à custa de
impressões digitais e pontas de cigarro, tenha descoberto a pista do
extraordinário indivíduo que volta tranqüilamente para casa.

O crime é realmente lógico em quase todas as etapas, e os passos do


criminoso podem ser acompanhados pelo raciocínio porque são
passos razoáveis, pensados e medidos. Há porém um passo que escapa
à lógica e esse é justamente o primeiro. Nesse ponto o crime é como a
queda. O indivíduo que se atira de um oitavo andar faz uma
incontestável incursão, embora breve, no mundo exato da mecânica. A
partir daquele primeiro movimento, sua trajetória pode ser
cronometrada de andar em andar, e com uma sombria certeza pode
ser determinado o instante preciso em que ele se esborrachará na
calçada. Há na queda uma lógica mortal; mas ninguém aceitaria um
diagrama parabólico como plausível explicação de um suicídio. A
clareza fulgurante daquela trajetória física tem as duas pontas perdidas
nas trevas, como as estrelas cadentes que riscam o céu num fugitivo
instante. O racionalista é o homem que se contenta com uma pequena
exatidão, manejando um metro fantástico cujas pontas se perdem em
fumaça; ou então é o homem que forja três elos de uma cadeia que não
se prende a coisa alguma. A história do crime costuma ser contada
com excessiva simplicidade, tomando por base que há no crime um
proveito. Na pesquisa dos motivos, o racionalista admite que certos
interesses pessoais expliquem o crime. À primeira vista essa atitude
parece uma negação do pecado original. Seria mais exato dizer,
entretanto, que o racionalista, nesses casos, crê demais no mistério da
iniqüidade. O que sua loso a recusa é a misteriosa força que impede
o universal massacre. Fascinado pela iniqüidade, o materialista tem a
impressão de que, explicado convenientemente o homicídio, ca
explicado também o enigmático motivo que incita as mulheres a
carregarem durante nove meses a pesada semente de uma vida nova.
Com a álgebra, o tiro ou a facada explicarão o amor.

A novela policial, por isso, é um campo convidativo para os lógicos.


Edgar Poe foi atraído por esse gênero, fundando escola com
numerosíssimos discípulos. Suas novelas, como as ingênuas e bem
humoradas de Conan Doyle, se caracterizam pelo perfeito
encadeamento lógico dos diferentes elementos do crime. Dupin e
Sherlock Holmes seriam dois personagens extraordinariamente
verídicos se o mundo tivesse sido feito por Conan Doyle ou por Edgar
Poe. No caso atual, porém, de um mundo feito por Deus, os dois
detetives só mantêm uma impecável lógica porque seus respectivos
autores estão acumpliciados com eles.

Lembro-me do prazer há tantos anos encontrado na leitura de Conan


Doyle, mas sondando a memória eu veri co que não me caram as
sagacidades do policial. O que me cou foi Baker Street. Foi qualquer
coisa que começaria assim: “Numa tarde chuvosa de novembro,
Holmes e eu...”. E o resto me aparece ligado à seiva de vida dos meus
dez anos: a sala obscura, o Dr. Watson mexendo na lareira, e Holmes,
de pernas estendidas, sonhador, acompanhando as ilógicas volutas do
cachimbo. Lá fora, neva. De repente, depois de um sinal de
campainha, a porta se abre e assoma no limiar um desconhecido de
meia-idade e cabelos cor de fogo!... Do mais eu não me lembro, mas
basta-me essa porta que se abre e esse desconhecido de cabelos cor de
fogo, para que eu encontre um pouco da força perdida de minha
distante meninice. Chesterton assinalou que o maravilhoso é tanto
mais simples quanto menor a idade. Aos quatro anos, por exemplo,
bastaria ouvir “a porta se abriu...” para sentir a presença do
maravilhoso, mesmo sem o estranho personagem ruivo.

Os contos policiais de Poe e de seus discípulos eram rigorosamente


arquitetados sobre a lógica do crime por sua vez desvendado pela
lógica dos motivos. Dupin e Sherlock deduziam passos de homem
como um geômetra deduz propriedades de triângulos. E por isso eu
tenho a certeza de que falhariam lamentavelmente se fossem
arrancados do papel e postos diante do mais banal assassinato.

A superioridade do Padre Brown não consiste, a bem dizer, na falta


de lógica. Ele raciocina como qualquer pessoa medianamente sagaz,
mas a força de seu gênio está num outro conhecimento: ele conhece o
mal. Conhece-o como um mistério, e como uma herança. Antes de
perseguir ladrões e assassinos cá fora, já os perseguira nas almas dos
penitentes, e na sua própria. Tinha a experiência da santidade, que é a
única experiência frutuosa do mal; e tanto deslindava o crime como
levava, às vezes, o criminoso a se arrepender e a pedir-lhe a absolvição
dos pecados, o que, aliás, produzia nos outros personagens os mais
vivos acessos de incredulidade. Aceitavam a sagacidade do padre, mas
não podiam crer no arrependimento do ladrão, para o qual,
efetivamente, não existe explicação cabal.
A força do Padre Brown está no bom senso e no olhar poético e
místico com que vê o mundo. Está até numa certa dose de distração e
sonolência com que se alivia do penoso trabalho de catar pontas de
cigarro e impressões digitais. Diante dos dados concretos,
candidamente apreendidos, interpretados muitas vezes ao pé da letra,
ele se encontra em simpatia com o criminoso, e inventa poeticamente,
ou recorda misticamente, como praticaria ele o crime.

O leitor que ainda não conheça as façanhas do Padre Brown estará


nesse momento, eu o receio, pensando que são novelas carregadas de
tese e ostentadoras de uma idéia xa. Mas não é isso. A constância de
uma idéia não forma uma tese nem merece o nome de idéia xa. Há
certas constâncias que são essenciais a qualquer novela, e uma idéia
verdadeira é justamente o que melhor se dissolve, deixando de ser uma
idéia. Por mais variadas que sejam as situações dos personagens são
necessárias certas constâncias, sem as quais não haveria novela. Deve
haver, por exemplo, entre os mais diversos personagens, uma profunda
semelhança no modo de andar, falar e assoar o nariz. Se tentarmos
introduzir uma nota original e inteiramente nova nessas atitudes, os
personagens deixarão de ser isso que entendemos por homem, mulher
e criança. O que eu quero dizer é que a idéia que Chesterton tem do
mistério do homem é análoga à idéia que ele tem do nariz e das pernas
do homem. Por isso suas novelas não cheiram a tese mas guardam a
profunda constância pela qual se descobre a semelhança entre o padre
e o ladrão. São cúmplices. Há entre eles uma comunhão. Pertencem à
mesma quadrilha, e moram ambos na ampla e feérica caverna onde se
partilham o lucro da rapinagem e o prêmio da santidade.

U    


O nome de Edgar Poe já apareceu mais de uma vez nestas páginas, e
por isso achei que não seria descabido abrir um capítulo sobre o
sombrio poeta de Baltimore, apresentando-o como um antípoda do
humorista inglês. Seria fácil começar pelos pontos em que Poe e
Chesterton parecem os homens mais diferentes do mundo. Um é
triste, outro é jovial; um é analítico até o desespero, outro se bate ao
longo de quase cem volumes contra o determinismo e o racionalismo;
ao humorismo do inglês corresponde simetricamente o senso do
grotesco no americano. O próprio vinho os separa, pois enquanto
Chesterton celebrou a alegria das velhas tavernas, Poe só encontrou no
álcool a melancolia e a morte. Seria fácil, pois, começar dizendo que
esses dois poetas foram antípodas. Mas nesse ponto estou com Santo
Agostinho. Não creio em antípodas. Acidentalmente os homens
podem fazer a ginástica que o poeta de Chesterton fazia nas ruas de
Londres e que São Pedro fez no martírio: podem car de cabeça para
baixo. Mas tanto o poeta como o apóstolo, a meu ver, procuraram
demonstrar que a posição acidental não destrói a fundamental
semelhança. São Pedro, de cabeça para baixo na cruz, não queria ser o
anticristo; o poeta, de cabeça para baixo na rua, só pretendia provar
que o ser do homem é mais forte que a mobilidade.

Na verdade, entre Poe e Chesterton há semelhanças mais profundas


do que as dissemelhanças. Ambos são poetas, ambos escreveram
novelas policiais, ambos tiveram no mais alto grau o senso plástico do
descritivo, como se pode ver na última parte de e Ball and the Cross
e na e Island of the Fay de Poe. E foram ambos gigantescos. Mas
aqui volta a dissemelhança, e lembrando aquela história do pequeno
Redley, eu direi, para começar um rápido per l, que Edgar Poe foi um
gigante de duas cabeças. O imenso poeta de pequenos poemas, que
Baudelaire e Mallarmé reverenciaram, o autor de e Raven e de
Annabel Lee, tinha uma segunda cabeça que caria perfeitamente bem
nos ombros de Gauss. E viveu ele, fartamente, até o delirium
tremens,21 a patética desvantagem de ter duas cabeças. Viveu um
con ito entre a poesia e o racionalismo.

Não sei bem em que sentido é costume dividir os escritores em


diurnos e noturnos. Se noturno é o luar da magia, ou o tênue brilho do
mistério, e diurna é a luz da lógica, Poe foi diurno até o exagero, até o
paroxismo; mas foi um ofuscado que se defendeu da cegueira como
quem ta o sol em vidro esfumaçado. Foi um escaldado, um insolado,
que mergulhava nas sombras de paisagens inventadas para alívio de
seus olhos; ou se refugiava em subterrâneos para repousar da
inclemência da razão. Não eram as sombras que o perseguiam, era
uma luz crua demais; um sol de deserto, que lhe calcinava a poesia. Se
noturno é ainda o escritor de cenas confusas e indeterminadas, onde
se ouvem os personagens num nevoento e indeciso cenário; ou aquele
que raramente apela para a visão do leitor, contentando-se com o seu
ouvido, usando somente as peregrinas palavras que nunca a rmam
uma presença real plástica e possuída — então eu tornarei a dizer que
há poucos autores mais diurnos do que Poe.

Seus contos têm geralmente uma atmosfera de pavor, e


freqüentemente se passam à noite; mas seria mais exato dizer que eles
pretendem ter aquela atmosfera. e Fall of the House of Husher e
King Pest ressumam melancolia e medo, mas proporcionam ao mesmo
tempo uma dura e rígida tranqüilidade pela excessiva nitidez. Mais
depressa encontramos o horror nas páginas de Wuthering Heights de
Emily Brontë do que na novela em que Poe faz um morto falar. Tentou
conciliar o medo e a nitidez; ou talvez tenha procurado o medo com
medo da nitidez. Seus quadros são admiravelmente plásticos,
luminosos e coloridos, mesmo quando se destinam ao cenário de
fantasmas. Em King Pest por exemplo, o palácio está vivamente
iluminado, cada salão é intensamente colorido de uma cor viva, e o
espectro da Peste exibe uma máscara escarlate. Ao contrário dos
indecisos e crepusculares, Poe tem, numa rara medida, o talento de
trazer as coisas para dentro das palavras; mas um con ito se estabelece
no seu próprio processo, durante sua atividade artística, entre a
intenção de sombra e a realização de cores fortes. Sua composição
quer seguir ao mesmo tempo a direção de duas cabeças. Por isso, não
conseguindo a semi-obscuridade que por um lado deseja, e não
podendo, por outro lado, aceitar jamais a imprecisão, freqüentemente
resolve a di culdade destruindo a nitidez das formas sem destruir a
nitidez dos contornos. Apela para o grotesco. Descansa no grotesco. É
o seu paradoxo e o seu humorismo.
Só é possível dizer que Poe é noturno se adotarmos uma outra
convenção, dizendo que noturna é a lógica, que noturna é a
triangulação do universo, que noturna é a razão que só crê em si e
acaba descrendo até de si mesma; e que noturna é a loucura,
consumação do perfeito racionalismo.

Mas, na verdade, qualquer que seja a convenção, Poe tem dois


hemisférios. Sua grande paixão, entretanto, é sem dúvida o raciocínio
decifrador, e sempre que a poesia relaxa suas solicitações para o
mistério ele se entrega sem restrições a essa paixão pelos problemas.
Constrói uma metafísica, ou melhor uma cosmogonia, que é a
engenhosíssima decifração de um universo que ele mesmo inventa
para depois decifrar. Ou ca semanas inteiras a espiar, a analisar os
movimentos de um boneco que joga xadrez, para descobrir, ao longo
de trinta páginas, incluindo um diagrama, que dentro do autômato de
Maelzel havia um homenzinho escondido. Ou então debruça-se noites
seguidas “over many a quaint and curious volume of forgotten lore
[...]”22 e analisa Isaías em hebraico e São Lucas em grego, fazendo uma
sagaz polícia de sinais e palavras, como o personagem do e Gold-
Bug que, pela análise de um documento cifrado, descobre um tesouro
enterrado pelos piratas. O tesouro, porém, tanto em Isaías como em
Sullivan’s Island, interessa-lhe muito menos do que a vitória lógica
sobre o segredo.

Desce mais de uma vez a um cienti cismo juliovernesco, e não é de


estranhar que o próprio Júlio Verne tenha procurado acrescentar
alguns capítulos de sua lavra às aventuras de Gordon Pym. Preocupa-
se com o diâmetro da Terra e com as ondas sonoras; é atraído pelo
magnetismo e seduzido pelo mesmerismo. E em todas essas tristes
experiências não pode ter a ingênua simplicidade de Júlio Verne, e
cobre-se de ridículo como Nietzsche, como todas as grandes “aves de
rapina que andam roçando as asas pelo chão”.

A única solução que encontra para sua dupla mentalidade é a de um


universo também duplo: o da poesia e o da razão. Tentando uma
loso a da arte, ele se torna simultaneamente racionalista e
irracionalista ao mais alto grau, vendo na poesia uma vertiginosa
libertação das leis da verdade em favor de um puro musicalismo. Não
há verdade na poesia; há música, há palavras arrancadas do
vocabulário comum para servirem sob o império da música. Diz ele
em e Poetic Principle:

Com a mais profunda reverência pelo Verdadeiro que jamais inspirou


um peito de homem, eu limitarei, entretanto, seus modos de
inculcação. Limitarei para reforçá-los. Não os quero enfraquecer com
dissipações. As exigências da verdade são severas. Ela não tem
nenhuma simpatia pelas murtas. Tudo aquilo que no Canto é tão
indispensável é precisamente aquilo com que a verdade nada tem a
ver. Seria fazer dela um fútil paradoxo o enguirlandá-la com gemas e
ores.

Ao contrário de Keats ele poderia dizer: “Truth is not beauty”.23 É na


música que ele encontra a libertadora amplidão de um mundo para
sua poesia: “É na música, talvez, que a alma mais de perto atinge o
grande m pelo qual luta quando inspirada pelo Sentimento Poético
— a criação da Supernal Beleza”. Sua poesia é extraordinariamente
musical; pelo ritmo e pelas rimas ele quer dissolver as palavras em
música, em tempos, em números. Mas o senso plástico visual não o
abandona e, apesar de sua estranha loso a, realizou os poemas do
mais elevado teor. Poemas que deixaram longamente pensativos os
maiores poetas do mundo.

Pequenos e raros poemas que são ilhas (e Island of the Fay) de sua
intérmina agonia.

Mas de repente, quando menos se espera, o demônio racionalista


desembarca na ilha e transforma a poesia em agrimensura. Em e
Philosophy of Composition, Poe dá motivos abundantes para que
Chesterton o trate de doentio. Não são os ratos no fundo de um poço
escuro, não são os gatos pretos, não é o Anjo do Bizarro, que
autorizam tão severa quali cação. É a explicação cabal, viciada e em
círculo, que o poeta pretende fornecer de cada pétala e cada rima, que
marca uma inegável insanidade. O leitor certamente conhece O corvo,
esse poema traduzido e retraduzido pelos maiores poetas, mas nunca
aproximado da beleza original, porque cada palavra conta e vale pelo
som, pela música e pelo ruído consonantal que recorta a musicalidade
das vogais numa espécie de submúsica escondida: Once upon a
midnight dreary, while I pondered weak and weary [...]24

Pois bem, o próprio autor vai nos explicar como conseguiu compor
esse maravilhoso poema: “É meu intento tornar manifesto que
nenhum dos pontos de sua composição pode ser atribuído ao acaso e à
intuição — que o trabalho prosseguiu passo a passo, até seu termo,
com a precisão e a rígida coerência de um problema matemático”.
Quem diz isto é ele, Poe, o poeta, o infortunado viúvo de Virginia
Clemm, o lírico autor de Annabel Lee, o desventurado solitário que
morreu de delirium tremens chamando três vezes por um amigo que
ninguém conheceu. Não é um glacial professor diante de um quadro-
negro que nos fala em precisão e rigidez, expulsando o acidente e a
intuição dos seus domínios com mais desembaraço do que os próprios
matemáticos que até hoje disputam sobre a natureza da descoberta na
mais nua das ciências — é o próprio autor que viveu, que sofreu e que
morreu pela poesia.

Depois de passar rapidamente (demais) sobre o detalhe da intenção,


admitido que ele quer fazer um poema, começa sua implacável
demonstração pela consideração do tamanho da peça. Tem uma teoria
a esse respeito, mais de uma vez manifestada. O poema deve ser
pequeno; o Paraíso perdido é um poema que nunca pode ser lido,
porque não pode ser lido de uma só vez. Sua teoria tem certa
semelhança com os princípios de unidade que, segundo Aristóteles,
devem ser observados na tragédia; mas seus principais argumentos são
de duração e de ritmo. O poema deve ser lido facilmente de uma só
vez, inscrevendo seus ritmos no ritmo vital do homem. Conclui que o
poema que está planejando deverá ter cem versos; saiu com cento e
oito, isto é, com erro de oito por cento.
Em seguida demarca seu domínio, o da Beleza, rea rmando mais
uma vez a idéia de um mundo à parte; e logo depois escolhe o tom, a
Melancolia, como o mais legítimo e impressionante dos tons poéticos.
Daí facilmente se conclui que o key note25 do poema deve ser um
refrão.

Levantou-se a questão do caráter da palavra para o refrão. Tendo


xado a escolha no refrão, a divisão do poema em estâncias decorre
como um corolário, formando o refrão o arremate de cada estância. E
não havendo dúvida de que esse arremate, para ter força, deva ser
sonoro e enfático, fui inevitavelmente levado a pensar no o longo,
como a mais sonora vogal, em conexão com um r, como a consoante
de mais efeito.

Donde, mediante algumas óbvias transformações algébricas, resulta o


refrão Nevermore.26 E a explicação prossegue, minuciosa, inafetiva,
cerebral, como a de um escriba que estivesse a pôr em termos da lei
fatos que nasceram das lágrimas e do sangue.

Não pense o leitor, porém, que tal demonstração seja simplesmente


arti ciosa e insincera. A hipocrisia é uma explicação crua demais e
certamente não se aplica ao caso de Poe. O cabotinismo vem sempre
acompanhado de uma inequívoca mediocridade, e não há engano
possível nessa matéria. Eu creio na sinceridade de Poe; para mim,
alguma coisa se passou assim como ele nos conta.27 Os cálculos foram
realmente feitos, as suputações e as computações foram realmente
suputadas e computadas; não pela cabeça do poeta, mas pela outra,
pela segunda cabeça, a mais tirânica, que durante o tempo todo da
composição esteve a cravar estacas nas rimas, a raciocinar
perdidamente, a reclamar a paternidade de cada estância que ia saindo
e terminando num Nevermore. O que eu quero dizer é que houve um
fenômeno lateral, um per l de teorema acompanhando numa rígida
poligonal o per l vivo da poesia. No mesmo instante em que achava o
Nevermore num soluço antigo e numa lembrança de viuvez, deduzia-o
rapidamente como uma necessidade fonética. O que admira é que Poe
tenha suportado Poe — e que o poema tenha saído tão perfeito.
É nesse sentido que Poe é insano, sendo analítico demais e dando
razão a Chesterton. Há qualquer coisa de doentio, de quase doido,
nessa loso a da composição. Há uma contradição de atitudes gerada
dentro do poeta por essa preocupação de ser exato, levada ao
paroxismo. O metódico e perspicaz investigador aplica a ponta de sua
análise para nos mostrar que dentro do boneco enxadrista de Maelzel
estava um homem escondido; depois aplica a mesma perspicácia e o
mesmo método para nos mostrar que dentro de Edgar Poe havia um
boneco escondido. Diante do boneco denunciava a incapacidade da
mecânica para escolher um lance de peão; diante do homem
denunciava a incapacidade da poesia para escolher uma rima. Sua
obra e suas conclusões dependiam da cabeça que as ditava; e toda a
vida desse frágil e triste gigante dá sobeja razão a Chesterton
relativamente à desvantagem das duas cabeças.

U 
Mas não posso acompanhar Chesterton no tom sumário demais com
que afasta de seu caminho os vultos de Poe e Nietzsche. Sua apreciação
simplista se aproxima do riso vulgar dos apologetas que recordam o
susto de Nietzsche diante de uma vaca. Acho razoável que um homem
se assuste diante de uma vaca; como também acho razoável, com
Chesterton, que o homem se a ija por não ter uma vaca. Não será pois
esse animal, bravo ou manso, que nos poderá esclarecer
convenientemente sobre obras e vidas. Na verdade, Poe e Nietzsche
foram poetas enormes, diante dos quais o inglês podia se inclinar sem
desdouro. Há uma beleza patética. Há uma terrível beleza na gura de
um encarcerado; uma sombria beleza no enlouquecido esvoaçar que
fere as asas contra as grades da prisão. Há talvez uma fulgurante beleza
na queda de um anjo.
Mas todas elas exigem um certo recuo. “É preciso ter olhos” — disse
Chesterton — “para ver que um ceguinho é pitoresco”. E é preciso
conhecer o ar, a sombra das mangueiras, o azul dos horizontes, para
descobrir no fundo de um calabouço a patética beleza do cativeiro.
Ah! se eu visse um anjo cair num longo gemido de fogo,
compreenderia a profundidade do inferno pela terrível altura do céu.

A beleza é sempre claridade, ainda que seja somente um relâmpago


dentro de um cárcere escuro. Seu per l é sempre riscado de luz, sua
signi cação é sempre a de uma vitória, ainda que nos escape o
desenlace nal da luta que se fere entre um poeta e um anjo. Se é exato
que tudo nos leva a admirar as vitoriosas e diurnas apoteoses, é
também inegável que muitas vezes admiramos e reverenciamos as
chagas e as mutilações que nos aparecem na ponta nal de uma lenda
e na ponta inicial de um mistério.

Sou forçado a contrariar Nietzsche para aqui lhe prestar uma


pequena homenagem, lembrando que somos capazes de admirar
melhor uma derrota e um opróbrio, depois que aprendemos a adorar
uma cruci cação. E nada me impede de ver, na demência de Nietzsche
ou no delírio de Poe, os sinais da luta terrível que na alma lhes
deixaram tantos vergões luminosos, e que talvez sejam — quem sabe?
— os sinais da vitória.

Não acompanho, pois, o sumário juízo do humorista. Mas descon o


de alguma coisa... Descon o que Chesterton se pareceu com Poe, mais
do que suas obras anunciam. Na sua autobiogra a vejo que ele viajou
pelas desoladas províncias da teoso a; e no tom de sua obra, por
análoga experiência própria, eu reconheço o sentimento de libertação
que nos impele a certas atitudes desabridas e às vezes um pouco
ridículas. O bom senso não é apenas um prêmio da moderação e do
bom comportamento: é um troféu violentamente arrebatado.
A   
Voltando à aldeia central de Chesterton — a idéia do mistério —
temos agora alguns elementos para compreender que ela signi ca
também uma libertação da inteligência. Quer tomemos os símbolos de
Chesterton, o círculo e a cruz, quer consideremos o poeta e o lunático
(separados em dois homens ou unidos num só), temos sempre os dois
sentimentos opostos: liberdade e prisão. Poe era um encarcerado,
embora, como o engenhoso Latude, tenha fugido mais de quatorze
vezes de sua bastilha. Chesterton foi um libertado. Foi realmente um
livre-pensador, porque sua razão conheceu seus limites, ou melhor, sua
forma.

Podemos, se quiserem, libertar o tigre das barras de sua jaula; mas


não podemos libertá-lo das barras de sua pele. Se emancipássemos o
camelo de suas bossas, tê-lo-íamos de fato emancipado de ser camelo.
Não iremos pelos caminhos, como os demagogos, a incitar os
triângulos a romperem a prisão de seus três lados, porque, se o
triângulo romper essa prisão, terá um m lamentável. Alguém
escreveu um livro intitulado O amor dos triângulos. Não o li, mas
estou certo de que, se algum dia os triângulos foram amados, foi por
serem triangulares. O artista ama seus limites: eles dão forma ao que
ele está fazendo. O pintor sente-se feliz porque a tela é plana, e o
escultor regozija-se por ser o barro incolor.

O homem livre não é o que “traz dentro de si um caos para dar à luz
uma estrela dançante”. O homem livre é aquele que ama a terra em que
pisa e a casa em que mora. A inteligência conhece a exultação da
liberdade quando encontra o seu objeto e não quando o nega, nem
quando se a rma como seu próprio e único objeto.

A liberdade da inteligência é na verdade uma obediência — uma


perfeita obediência. Mas a liberdade é um mistério; e o homem só é
livre porque tem a capacidade de se despojar de sua liberdade; só é
obediente, porque pode desobedecer. Ele é como o triângulo que
tivesse a estranha faculdade de a igir sua própria natureza e de
desgostar-se, até a náusea, da triangularidade. Por isso ele só é livre
depois da vitória sobre a sua estranha e dissolvente capacidade e não
durante o processo em que se dissolve. O homem pode ser desumano.
Para que a obediência e o amor tenham uma eminente perfeição, é
necessário que o homem tenha a capacidade de ser desumano. Por
isso, freqüentemente, encontramos indivíduos que se livram das jaulas
e das peles, formando essa fremente legião de esfolados, que se
acotovelam e se maldizem. Mas por causa dessa possibilidade de
evasão, muitos pensadores consideram que a verdade é uma coação;
antes mesmo de porem em dúvida que a verdade seja verdadeira. E
uma vez que essa linguagem de pânico se generaliza e se enfeita com
uma usurpada nobreza, ca o remoque de paradoxal para quem disser
que a casa e o dogma libertam.

O pensamento livre é o que encontra sua perfeição no objeto e que


lucra nesse encontro descobrindo a perfeição do objeto em si mesmo.
Trata-se pois de uma descoberta, de um achado, de uma chegada, de
uma volta. Ou de um limite, se quiserem, porque o limite é a forma.
Ou de uma regra. Ou de um dogma. E o mistério, que liberta a razão,
também mora, quando é o maior dos mistérios, dentro de um
tabernáculo.
PARTE IV: P   ...
O juramento é aquilo que nos diferencia, já não digo dos selvagens, mas
das bestas e dos répteis.

— G. K. Chesterton, Barbarism of Berlin


O 
A segunda idéia-mestra da mensagem de Chesterton (espécie de
estrela tripla ou quádrupla, que facilmente se desdobra) não diz
respeito à saúde mental do sujeito, mas a uma coisa que poderíamos
chamar de saúde social. Vimos nos capítulos anteriores o que impede
o homem de ser doido; veremos agora o que impede o homem de ser
bárbaro. A idéia é extremamente simples e pode ser abordada sem
grandes preparações. Em Barbarism of Berlin, escrito em 1915,
quando a Inglaterra suportava duros golpes em terras de França, ela é
bastante explícita.

Como já disse, a mesquinha e sincera demência do prussiano consiste


em querer destruir duas idéias que são raízes geminadas da sociedade
humana. A primeira é a idéia de registro e promessa; a segunda, a
idéia de reciprocidade. É claro que a promessa, ou extensão de
responsabilidade no tempo, é aquilo que melhor nos diferencia, não
digo dos selvagens, mas das bestas e dos répteis. Assim o reconhece
com sagacidade o Antigo Testamento quando resume nestas palavras
a sombria e irresponsável monstruosidade do Leviatã: “Fará ele um
pacto contigo?”.

A promessa, como a roda, é desconhecida da natureza: é a primeira


marca do homem. Relativamente à civilização humana é que se pode
dizer com toda a convicção que no princípio era a Palavra. O
juramento está para o homem como o canto para o pássaro e como o
latir para o cão: é a sua voz.

Não é fácil citar uma coisa da qual se possa dizer que dela dependa
toda a enorme complexidade da vida humana; mas se de alguma coisa
depende, é dessa frágil corda estendida entre as colinas do ontem e as
montanhas invisíveis do amanhã. Neste o solitário e vibrátil estão
penduradas todas as coisas, desde o Armageddon até o almanaque,
desde uma revolução bem-sucedida até um bilhete de ida e volta.
Aí está a idéia a que me re ro. Diz respeito à promessa, ao juramento,
ao voto, ao pacto, à aliança, à palavra dada. Trata-se, em suma, da
delidade, desse elemento dual e primeiro, que é a própria base do
direito, e sem o qual o homem, com todas as suas maravilhosas e
orgulhosas conquistas — seus navios aéreos, seu radar e sua bomba
atômica — se tornará um bárbaro. Um bárbaro-positivo, como
Chesterton o de niu, para distingui-lo daquele que é apenas o
imperfeitamente civilizado (a Rússia de 1915), e cuja principal
característica é a recusa da reciprocidade. O bárbaro-positivo não é
apenas o inimigo da civilização, mas o que procura uma nova
civilização, uma civilização de segunda ordem. A nova ordem.

Esse pequeno livro, Barbarism of Berlin, escrito durante a penúltima


guerra mundial, ultrapassa pela força das idéias o estrito quadro dos
acontecimentos, e chega até nossos dias com a sonoridade de uma
profecia. É já o nazismo que Chesterton estigmatiza com precisão e
veemência, quando traça o per l do prussiano de então para quem um
tratado era um farrapo de papel. Como a segunda guerra terminou
com a segunda derrota dos rasgadores de tratados, pode o leitor
pensar que o livro perdeu a oportunidade, devendo ser arquivado para
sempre como um jornal velho. Muita gente, na verdade, associa os
acontecimentos históricos a localizações geográ cas e raciais. O
nazismo acabou porque a Alemanha foi vencida; mas o barbarismo
positivo, o que golpeia incessantemente aquele o estendido entre as
montanhas, continua sua obstinada e mesquinha devastação da
sociedade humana. A política — essa complicada trama de promessas
e tratados — pretendendo tornar-se técnica, torna-se maquiavélica e
oportunista. A Rússia, depois que Chesterton escreveu seu grande
livro, virou bruscamente da barbaria negativa para a positiva, e foi com
espanto que o mundo viu, em 1941, dois leviatãs tentarem uma
aliança. Ainda hoje os exegetas da nova política falam exatamente a
mesma linguagem irresponsável de Guilherme  , exaltando a
conveniência de rmar um pacto e a inconveniência de o manter, e
sobrepondo à idéia de compromisso o conceito novo de etapa.
O 
Deixando o limiar dos gabinetes onde se manipulam as conveniências
políticas da nova ordem, da direita ou da esquerda, encontramos hoje
nas ruas, nas esquinas, nas casas, um difuso maquiavelismo, espécie de
barbaria a varejo, elevada à categoria de suprema virtude social. O
cidadão de nossos dias gaba-se de ser esperto. É verdade que tudo
conduz a esse resultado, pois a vida das cidades vai se tornando, dia a
dia, mais intrincada e problemática, e portanto mais selvagem, do que
a vida dos selvagens. A conquista de um lugar no bonde tem qualquer
coisa da abordagem de um junco por piratas malaios; a compra de um
pão requer a astúcia do caçador. Já vai longe, esbatido numa
lembrança quase irreal, o tempo em que um homem, andando na
cidade em compras ou em boêmia, tirava o relógio do bolso e dizia aos
amigos, com simplicidade, essa frase prodigiosa: “Vou para casa”. E ia.
Ia para casa com o espírito livre; ia andando com plenos direitos à
distração e ao sonho, sentindo-se legítimo herdeiro de um imenso
patrimônio que, entre outras maravilhas, constava de bondes dóceis e
de padarias fartas. Hoje, tudo se arma em problema: e é nisso,
exatamente nisso, que consiste a selvageria. O selvagem é selvagem
porque não tem o espírito livre. O civilizado é civilizado porque não
sente a presença e os entrechoques da maquinaria que move a cidade.
O selvagem é selvagem porque sua maior virtude é a astúcia. O
civilizado é civilizado na medida em que pode manter uma candura
municipal. É lícito dizer, portanto, que o mundo se torna bárbaro,
quando em política, na vida das ruas, e no interior das casas, reina um
imperativo de tecnicalidades, aceitas e glori cadas, para todos os atos
simples que o homem já havia superado. O selvagem é o técnico por
excelência; o selvagem é o mais tecnológico e tecnocrático dos
homens. Se é rústica a sua engenharia, rigorosamente técnica e
spengleriana é a sua concepção tática da vida.

A lei supera a esperteza e o amor supera a lei; e tanto na lei como no


amor a base é o senso da reciprocidade e o reconhecimento do outro
enfaticamente exaltados até o propósito do sacrifício. O assassino e o
ditador são criminosos, cada um em seu gênero, porque negam a
reciprocidade, rompem um pacto, e julgam que um ímpeto de suas
vontades pode ser uma lei, ou um decreto-lei, dentro do mundo dos
homens. Mas o ditador é pior do que o assassino, já por causa da
impunidade em que se instala, já pelo próprio resultado material que
se traduz, mais cedo ou mais tarde, não em um cadáver esfaqueado
que a ronda da madrugada descobre num ângulo escuro da cidade,
mas em milhões de cadáveres esqueléticos que o lápis da estatística
insere num grá co.

É difícil determinar com precisão a relação de causa e efeito entre a


esperteza política que triunfa na ditadura e a esperteza generalizada do
povo. Parece-me que o fenômeno progride por meio de avanços
alternados, ora de um lado ora do outro, até o dia em que a atmosfera
popular de esperteza, isto é, de desmoralização, se transforma num
apelo, numa invocação, num imprecatório apetite de tirania. Nasce
então o mágico, não menos responsável, mas mais explicável. E ao
cabo de uma dezena de anos agoniza uma nação.

A legislação de uma sociedade tem uma dura contingência: ninguém


pode alegar ignorância da lei. Todo mundo sabe que não seria possível
legislar deixando para as mais simples infrações essa escapatória que,
por m, certamente atingiria os mais graves delitos. Mas também todo
mundo sabe que quase todo mundo ignora o conteúdo dos códigos.
Não somente o homem simples, mas o próprio civilizado será mais
civilizado na medida em que ignorar a lei e nela viver com
simplicidade e desembaraço. Entre os poucos feitos gloriosos que lego
a meus lhos, e de que me gabo, está o de ter sido um dia preso na
passagem de uma fronteira por falta de passaportes, e estão as miúdas
infrações em que repetidamente caí por uma incapacidade
irremediável de compreender os caprichos de minha prefeitura,
consignados em misteriosos papéis cobertos de caracteres ilegíveis e
de iluminuras com monstros aquáticos.
Na base de uma legislação há um binômio indispensável: de um lado,
a lei deve ter a medida do homem, deve estar impregnada do espírito
que mora nos mais simples e antigos instintos populares; de outro
lado, o povo que a recebe deve possuir, além desse vivo instinto, a
corajosa disposição de aceitar a dureza da lei em nome do bem
comum. Quando falta um desses elementos começa a corrida para um
reajustamento que se torna cada vez mais difícil, pois onde perdem a
força os mandamentos e a noção de bem comum, debalde tentarão os
técnicos interpolar minuciosos artigos para apertar as malhas da lei. O
abismo se torna cada vez maior e o cidadão, perdendo a inocência
cívica, tende para o esperto, e dessa tendência, como numa incubação,
surge o triste herói dessa triste cidade: o mais esperto. E quando numa
tarde embandeirada, entre fanfarras e discursos, o pajé astuto toma
conta do poder, podemos dizer que está partido aquele o estendido
entre as colinas do ontem e as invisíveis montanhas do amanhã. E
podemos marcar, com a precisão dos cálculos de eclipse, as datas da
fome, da desolação e da desmoralização.

A esperteza é feia, é ignóbil, mas é sobretudo estéril; fecunda é a


inocência. Fecunda é a delidade. Os homens de nossos dias
espezinham a inocência e a delidade. E perdem a memória. E
tornam-se espertos. O esperto é o homem de longa malícia e curta
memória; seus impulsos são breves como um piscar de olho; suas
reações são as elementares, as glandulares, de que são capazes os ratos.

D  
Admiro-me que não tenham feito ainda, que eu saiba, a aproximação
entre dois fenômenos evidentemente semelhantes: a ditadura e o
divórcio. Em ambos existe o mesmo oportunismo que pretende dar
golpes na vida, e a mesma recusa de pacto ou juramento. Em ambos, a
mesma miopia de memória; a mesma miragem do sucesso imediato.
O divórcio é o maquiavelismo a domicílio. A ditadura é o divórcio
em política. Corre nos dois fenômenos, como idêntica seiva, a coleante
traição diante dos obstáculos, isto é, a esperteza. Em política, está
maduro (ou podre) para a ditadura o povo convencido de que um
tratado ou uma constituição são meros farrapos de papel, sendo
admissível somente a conveniência ou a etapa. Na vida familiar, a
esperteza, que pretende se ajustar aos minutos que passam, conduz à
falência do matrimônio. É dura a vida civil, com suas leis, seus úteis
embaraços, e seus inevitáveis sacrifícios; mas muito mais dura é a vida
conjugal. O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser
levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os
vermes da astúcia que pedem alimento de meia em meia hora. É uma
vida de longo alcance, de incalculável alcance. Uma artilharia pesada
que precisa de instalação muito rme para atirar obuses por cima dos
séculos.

Admiro-me pois que essa aproximação, tão clara a meu ver, não
tenha sido tentada. Mas, como já tenho visto muita contradição neste
vale de lágrimas, não me espanta em demasia que muitos ardorosos
democratas, que fulminam o maquiavelismo político em alto
jornalismo, defendam ao mesmo tempo o maquiavelismo caseiro. Não
me espanto porque, antes disso, eu vi os ardorosos defensores do
casamento sacramental e dos costumes, os pilares da Igreja,
defenderem a ditadura, e respirarem, como um ar de delícias, a
atmosfera dos decretos-leis.

A   
Chesterton escreveu um admirável capítulo sobre a “História do
juramento”,28 mas foi pena que não tivesse escrito também o seu
complemento, isto é, a “História da astúcia” que, a meu ver,
esclareceria muito do que parece obscuro na antigüidade, e escureceria
muito do que parece claro em nosso século.

Todas as vezes que li alguma coisa da história antiga com meus olhos
de moderno, tive a esquisita impressão de que havia um elemento
inteiramente absurdo toldando a clareza dos fatos narrados. Enquanto
usava os olhos do racionalista não pude compreender, por exemplo, o
que impedia Telêmaco de urdir, com Penélope e suas éis serviçais,
um plano para assassinar os audaciosos pretendentes “que todos os
dias invadiam sua morada, matando seus bois, suas ovelhas tenras,
suas cabras gordas, comendo magni camente, e bebendo o mais
escuro vinho de suas cavas”.

Tinham-me ensinado que o pagão era astuto. Que Odisseu era sutil e
astuto. Folheando Homero, encontro efetivamente, com singular
freqüência, a palavra astúcia. Rara é a página em que ela não apareça
adornando um herói. A informação que eu recebera era portanto
exata. Foi preciso que os anos tivessem passado, e que eu tivesse
encontrado Chesterton, Maritain e Péguy, para descobrir o que está
escrito com refulgente evidência nas lendas dos antigos: a astúcia
homérica em nada se assemelha à esperteza do bárbaro que rasga
tratados ou do povo que glori ca o mais esperto. A astúcia antiga é,
por assim dizer, uma elegância na bravura, uma habilidade na
delidade. Abra o leitor sua Odisséia

e veri que os momentos em que a palavra astúcia é singularmente


acentuada. Quando Penélope é acusada pelos jovens de “urdir muitas
astúcias”, ela está, justamente, deixando um imorredouro exemplo de
delidade; e quando Calipso lança em rosto de Odisseu estas palavras
aladas: “Certamente és mentiroso e astuto, porque assim o pensaste e
assim o disseste”, estava o herói desejando ardentemente fugir da ilha
para tornar a ver sua Ítaca, suas altas moradas, sua cara esposa.
Porque, na ilha perfeita, entre as carícias da deusa ilustre, “sua doce
vida se consumia em gemer e desejar a volta”.
Mais tarde, interrogado pelo Ciclope, comedor de homens, tirânico e
ditatorial, o sutil Odisseu mente, dizendo que seu nome é Ninguém.
Mas depois, com todos os riscos, contrariando os companheiros de
barco, o guerreiro fez questão de pronunciar seu testemunho verídico,
interrompido pela fúria do Ciclope que atirava montanhas no mar, e
gritou bem alto o seu nome: Odisseu, lho de Laerte, devastador de
cidadelas, rei de Ítaca.

De página em página, agora, o conceito da astúcia grega me aparece


sob a verdadeira e clara luz antiga: um oreio da mais verídica e
sonora lealdade. Uma lealdade que fala de longe e que conta com a
recíproca, mesmo com a recíproca de um ciclópico ditador. Os
diálogos são claros, os pensamentos são vertidos em lamentações, em
suplicações, em deprecações, em imprecações, mas nunca passam
entre os dentes dos heróis com a verdade pelo avesso. E é por isso que
Telêmaco, em lugar de assassinar per damente os indesejáveis
convivas, foi dizer alto e bom som, na reunião pública, que ele era
destituído de forças e de astúcias. E conclamava, e proclamava, sua
fraqueza no tom imprecatório dos suplicantes gregos.

Nas circunstâncias mais decisivas, como por exemplo no momento


em que Telêmaco foge de casa para buscar notícias de seu pai, tudo se
urde com aquele o do juramento: “Ele assim falou e a velha ama
pronunciou o grande juramento dos deuses. E, depois de ter jurado, e
preenchido as formas do juramento, despejou o vinho nas ânforas e
encheu de farinha os sacos bem cosidos [...]”.

Abraão também foi astuto. Usou estratagemas estranhos,


comprometendo Sara, sua esposa, para enfrentar os egípcios e a tirania
do Faraó. É curioso notar uma certa semelhança entre o Ciclope e o
Faraó: ambos representam o poder, o pólo magnético da astúcia,
pre gurando o César romano e os falsos césares modernos.
Mas o fato é que Abraão foi astuto. Indo aos textos, lendo-os com
atenção, descobrimos que em Abraão a astúcia era uma habilidade de
crente, uma desenvoltura da Fé. O Senhor ordenara que ele deixasse
sua terra e sua casa; ele obedecia, e ia pelo caminho tomando suas
precauções humanas na certeza de que o Senhor as apoiaria. O Senhor
ordenara que ele sacri casse o próprio lho; ele obedecia, e ia pelo
caminho respondendo a Isaac, que o interrogava sobre a vítima, que o
Senhor se incumbiria dela. Foi astuto com a esposa e com o lho para
ser incondicionalmente obediente a Deus. E não foi vã a sua Fé. Deus
castigou o Faraó com grandes agelos, advertiu Abimelech em sonhos,
forneceu a Vítima do altar, e fez com ele uma Aliança.

Em Roma con uem os descendentes de Homero e de Abraão. No


império se encontram os elementos que iriam desencadear uma guerra
sem m. Na esfera política ganham ênfase, simultaneamente, o Direito
e a Tirania; na esfera religiosa, enfrentam-se Cristo e César. O Império
é o campo de batalha, dessas duas batalhas, e agora vemos o povo
cristão enfrentar o Ciclope com a lealdade de Odisseu e com o fervor
de Abraão. E agora o homem verídico e el se apresenta
completamente despojado de astúcias. O suplicante antigo agora canta.

Mesmo diante de César, do poder político (pólo magnético da


astúcia), o mártir cristão não tem um gesto de malícia, um adiamento
de testemunho (como Ulisses na caverna) ou um equívoco de atitudes
(como Abraão no Egito). O amor à verdade viva, o amor ao amor, são
as bandeiras desfraldadas pelos novos atletas dos an teatros romanos.
Chegou a hora do destino de Odisseu; a hora do Senhor de Abraão. E a
Igreja Mártir pisa a seus pés os escombros de um império. A astúcia foi
vencida, mesmo a elegante astúcia do grego, mesmo a fervorosa
astúcia do pai dos crentes. A astúcia foi calcada; a coleante astúcia foi
pisada pelos pés de uma Mulher.

E durante um milênio correrá pelo mundo um frêmito de exaltada e


turbulenta candura; o juramento ganhará uma ênfase incrível, e a
bravura se tornará uma inaudita loucura.

Mas o Dragão ainda tem direitos sobre o mundo. O Ciclope está cego,
mas ainda atira montanhas sobre o mar. A política, num salto de réptil,
escapa à in uência e à subordinação espiritual da Igreja. O homem
interpreta como rebeldia sua emancipação, e julga necessário, nos dias
de sua maioridade, esbofetear ritualmente sua mãe.

O poder constitui-se à parte, a rma-se autônomo, antropocêntrico


primeiro, estatocêntrico depois. E ressurge na face do mundo pisado
pelo Cristo, molhado pelo sangue do Cristo, uma astúcia que não tem
equivalente na história, e cujo sombrio e senil aspecto talvez não tenha
exemplo na pré-história, mas somente na barbaria, na selvageria, isto
é, na época de cada povo e cada raça em que termina a história. Na
pós-história; na nova ordem; no milênio dos nazistas; na sociedade
sem classes dos marxistas.

A   
A delidade pode ser considerada sob diversos aspectos, dignos todos
de grande consideração. O homem deve ser el à sua condição
humana: à sua verticalidade, por exemplo. Deve ser el aos seus
próprios dons, fazendo versos, pintando quadros, ou estudando os
costumes dos insetos. Há uma necessária continuidade na vida e só
poderemos colher frutos dentro da delidade. Essa virtude não me
impede de ser fantástico, mas me impede de ser fantástico de muitos
modos ao mesmo tempo. Aliás, o homem el é o único que pode ser
fantástico. A esperteza de nada me adianta quando se trata de
determinar a soma dos ângulos de um triângulo. Posso adotar uma
geometria em que essa soma seja maior ou menor que dois retos, nada
me obrigando à dupla retidão nessa matéria. Mas há uma retidão sem
a qual eu nada poderei asseverar sobre os triângulos: a delidade aos
postulados. O solitário e desaconselhável jogo de paciência, também,
só conserva uns vestígios de encanto se aceitarmos elmente a
arrumação das cartas, qualquer que seja a conseqüência da fatalidade.
A própria fatalidade, estímulo dos jogos, só tem algum sentido depois
de uma delidade. A esperteza destrói o jogo como destrói a
geometria.

Mas o tipo de delidade a que se refere Chesterton, quando de ne o


bárbaro, é mais simples e ainda mais indiscutível do que essas que
dizem respeito à natureza das coisas. É uma delidade ao pacto
consentido, à promessa feita, à palavra dada, e por conseqüência uma
coisa inteiramente arti cial. Trata-se aqui, não mais dos artigos da
harmonia cósmica, mas do primeiro artigo que se estabelece quando
um homem encontra outro. Nada me impede, por exemplo, de ir
amanhã pescar em Niterói. Não existe nenhum impedimento entre
minha natureza e tal ato. Não existe um só sinal, em todo o universo
constelado, na terra e no mar, advertindo-me que não devo amanhã
atravessar a baía com os apetrechos de pesca. Mas se ontem eu aprazei
com um amigo um encontro para amanhã, na mesma hora em que
teria lugar a pesca, então eu não deverei ir a Niterói. Um pequeno e
quase imperceptível elemento foi inventado por nós dois dentro da
Criação, um débil traço sulcou nossas memórias, e isto bastou para
que entre meu anzol e a capital uminense se erguesse uma inacessível
cordilheira.

O homem é um grande inventor de obstáculos. Os estudos das tribos


mais desviadas da civilização mostram que o selvagem di cilmente
abandona o incomparável gosto de ser um embaraçado. E o o em que
se embaraça é aquele mesmo pelo qual se comunica, por cima dos
séculos, de montanha em montanha: o da delidade e da
sociabilidade, que se enrola, se urde e se tece na memória dos homens.

Memória sempre foi nobreza; mas na era cristã a memória ganha um


imprevisto realce, sendo sacralizada e diretamente empenhada,
amarrada, envolvida, no sacrifício do altar.

Todos estão de acordo que o homem seja um ente social, mas


equivocam-se os que imaginam que ele seja necessariamente e
automaticamente sociável; que o seja com naturalidade. Imaginam que
a sociedade humana decorre da necessidade de cooperação ou de
algum instinto semelhante ao das formigas; e concluem que a noção de
direito deve ser substituída pela de e ciência técnica. Ora, a idéia
clássica, tradicional, sobre a qual Chesterton insiste, é que a
sociabilidade humana está sempre suspensa por um o: não
conseguiremos pensar, nos nossos maiores arrebatamentos
imaginativos, numa sociedade humana libertada da lei moral da
memória. É claro que temos a nosso favor o passado, a história do
homem, os registros, os costumes de todos os tempos; mas trocando
isso tudo por um futuro que somos livres de inventar, ou considerando
isso tudo como uma etapa semelhante à do uso da pedra em armas e
utensílios, ainda assim, ainda mesmo deixando de lado todos os dados
positivos e abrindo uma folha em branco para uma nova sociologia,
não conseguiremos inventá-la na base dos encontros falhados. Nada
funcionará, dos códigos aos letreiros de ônibus, se o homem
abandonar de nitivamente a con ança na palavra do homem. E ainda
mais difícil nos parece inventar um tipo de sociedade em que esse
precioso elemento seja segregado como um hormônio pelo poder
político. Se a con ança distribuída não funciona, como funcionará a
con ança concentrada? O poder político tende para o leviatã, e quanto
mais absoluto tanto mais difícil será um pacto com ele. Há sempre
dois, numa promessa ou num pacto; ora, um dos característicos do
poder político absoluto é a recusa à reciprocidade como demonstra
Chesterton e como todos os países, assolados por ditaduras nesses
últimos anos, tiveram ocasião de veri car. A ditadura fala sozinha, o
povo ouve; ouve e ca sabendo pelo rádio e pelos jornais que o ditador
falou em seu nome, isto é, que as palavras do ditador foram aquelas
mesmas que o povo diria se tivesse voz, e que, de fato, disse através da
ventriloquia totalitária. Antes de veri car se a ditadura é boa em
matéria de esgotos, luz, água e mesmo pão, é preciso resolver essa
questão fundamental: se é possível uma sociedade humana onde falta a
lei da promessa e da reciprocidade.

Evidentemente, eu não posso discutir em termos de teologia moral


com desembaraçados indivíduos que, logo de início, recusam os
primeiros princípios do jogo. Mas posso fazer um apelo para que
considerem o fenômeno da memória em sua máxima singeleza. Seja
como for e para o que for, o homem é um ente que registra, que
recorda, que tem saudades, que se arrepende, que usa cadernos de
endereços e de aniversários, e que, não tendo mais nada para celebrar,
celebra a data da vitória da revolução vermelha. É possível que uma
análise perfeitamente cientí ca venha provar um dia que a memória
dos homens é semelhante à dos gatos; mas nesse caso eu pergunto,
com Chesterton, por que diacho deverá esse animal, que tem a pura
memória das vísceras, arriscar a vida e bater-se com denodo pelas
bandeiras que ainda não foram desenhadas e que o vento do porvir
desfraldará. Se a memória do homem não é moral, por que o será sua
esperança? No dia em que eu admitir minha perfeita animalidade e me
convencer de que não devo pagar uma dívida contraída há dois meses,
e da qual o amigo não quis outro documento além de minha palavra,
não me irei embaraçar com delicados sentimentos a respeito das
futuras gerações. Como é possível desprezar a memória e honrar a
esperança? Se eu fosse materialista já consideraria bastante opressiva a
idéia de morrer para agravar ainda com a idéia de morrer desonrado;
não quereria venerar relíquias, mas também não desejaria que meus
ossos se cobrissem com o vexame de minha inculta era. Se eu fosse
materialista seria indiferente aos esqueletos, mas também o seria aos
unborn babies. Mandaria às favas os juramentos mas não formularia
novos juramentos, e prezaria ainda menos o solene compromisso que
meus bisnetos esperam de mim. Eu seria, em suma, indiferente ao
futuro.

O futuro é uma parede branca onde qualquer um pode escrever seu


nome tão grande quanto queira; o passado, eu já o acho coberto com
sinais ilegíveis tais como Platão, Isaías, Shakespeare, Miguel Ângelo,
Napoleão. Posso fazer o futuro tão pequeno como eu mesmo o sou; o
passado é por força tão largo e turbulento como a humanidade. O
resultado nal da atitude moderna é realmente este: os homens
inventam novos ideais por não ousarem atingir os antigos. Olham
para a frente com entusiasmo, porque têm medo de olhar para trás.
Não há uma revolução na história que não tenha sido uma
restauração, e entre as muitas coisas que me deixam descon ado a
respeito do hábito moderno de xar os olhos no futuro, nenhuma é
tão forte quanto esta: todos os homens da História, que zeram
alguma coisa pelo futuro, tinham os olhos postos no passado. Não
preciso citar a Renascença, pois seu próprio nome indica o seu
sentido. A originalidade de Miguel Ângelo, como a de Shakespeare,
começou pela exumação de velhos vasos e velhos manuscritos, e o
arrebatamento dos poetas surgia da suavidade dos antiquários. Do
mesmo modo, o grande ressurgimento medieval era uma lembrança
do Império Romano; a Reforma voltava-se para a Bíblia e para os
tempos bíblicos; o movimento litúrgico moderno volta-se para olhar
os tempos patrísticos, e esse movimento, que muitos considerariam o
mais anárquico de todos, foi, nesse sentido, o mais conservador.
Nunca o passado foi tão venerado pelos homens como no tempo da
Revolução Francesa. Os revolucionários invocavam as pequenas
repúblicas da antigüidade com a completa con ança do crente que
invoca os deuses. Os sans-culottes,29 como o nome indica,
acreditavam numa volta à simplicidade; acreditavam muito
piedosamente num passado remoto, ainda que o pudessem
considerar um passado mítico. Por algum estranho motivo os
homens plantarão suas árvores frutíferas na terra dos cemitérios. O
homem só acha a vida entre os mortos. O homem é um monstro
disforme, que tem os pés virados para a frente e o rosto para trás. Está
nas suas mãos fazer um futuro exuberante e gigantesco, desde que
pense no passado. Ao contrário, quando tenta pensar no próprio
futuro, sua mente se imbeciliza e se reduz a uma ponta de al nete que
alguns chamam de Nirvana. O porvir é uma Medusa; o homem só o
pode ver espelhado na brilhante couraça do Outrora — tando-o
diretamente transforma-se em pedra.
A   
É impossível fugir à lei da memória e do juramento. A maior parte dos
rebeldes faz questão de jurar, ainda que seja um perjúrio. Jura falso,
mas jura. Esquece o primeiro e o segundo juramentos mas pronuncia
o terceiro. Esquece; mas esquece que esqueceu. Não cumpre, mas
promete. Nenhuma nação do mundo, em época alguma da história,
assinou tantos farrapos de papel como a Alemanha nazista. Nenhum
governo promete mais do que o tirânico; nenhum homem formularia
mais minuciosas e complexas promessas do que o sedutor.

Em política oportunista, cada decreto-lei é um abuso mas também é


uma promessa. À primeira vista esses repetidos compromissos
aparecem como puras manobras de um esperto, que já está disposto a
enganar. Eu creio, porém, que o fenômeno é mais complicado e
confuso. Observando, por exemplo, a muito divulgada fotogra a da
assinatura do pacto russo-alemão, descobre-se nas sionomias de
Ribbentrop e Molotov um sentimento comum, algo de inde nido a
que, na falta de melhor termo, eu chamaria de candura contente. Eles
estão visivelmente contentes com aquela história do pacto. E creio ter
adivinhado que os dois inocentes comparsas, depois do saque à
Finlândia (que era uma necessidade militar) e da tortura da Polônia
(que era outra necessidade militar), estão ali no clichê pensando assim:
“Os ingleses hão de ver que nós também sabemos prestar juramentos”.

Há um delírio de jurar e perjurar, antes que se atinja a casmurra etapa


histórica em que o próprio perjúrio deixe de ter algum sentido. Assim
é que os divorcistas só existem porque crêem de um modo desmedido
e exasperado no rito do casamento. Muitos já são os casais que estão
de acordo sobre a inutilidade dos acordos e que não se dão ao trabalho
de encher colunas ou tribunas com suas reivindicações. Mas o
divorcista não pertence a essa categoria, “ele acredita a tal ponto no
juramento prestado sobre relíquias que faz questão de perjurar sobre
relíquias”.
A mesma idéia de juramento, para Chesterton, está na raiz dos
problemas internacionais e dos problemas familiares. Do seu e
Superstition of Divorce, escrito pouco depois de Barbarism of Berlin,
destaco essa passagem:

Podemos dizer que temos um apego de nitivo a certas instituições, e


provisório a outras. Andamos de loja em loja à procura do que
precisamos, mas não andamos assim de nação em nação, a menos
que pertençamos a um certo grupo predestinado aos pogroms.30 No
primeiro caso a nossa força é a ameaça de retirarmos a freguesia; no
segundo caso é a ameaça de nunca nos retirarmos e de pertencer à
instituição até o m. Nos tempos difíceis, em que as lojas perdem
seus fregueses, é que a cidade mais precisa de seus cidadãos, e precisa
deles para que a critiquem. Não é necessário insistir agora nessa
capital exigência de uma dupla energia de reforma interna e de defesa
externa; a espantosa tragédia que escurece o mundo em nossos dias31
é um exemplo terri cante. Os golpes nos martelam, pesados e
rápidos, enchendo o mundo de um trovão infernal; e ainda há o
fragor de alguma coisa que não pode ser quebrada, mais profundo e
mais potente do que todas as coisas que se quebram. Podemos
maldizer os reis, duvidar dos capitães, murmurar sobre a aparente
inexistência de nossos exércitos: sabemos entretanto que, nos mais
sombrios dias que possam advir, ninguém abandonará sua bandeira.

Passando agora da delidade à nação para a delidade à família, não


pode haver dúvida a respeito de uma diferença evidente.

A família é uma coisa muito mais livre. O juramento é uma delidade


voluntária, e entre todos os votos de lealdade, o do matrimônio se
distingue pelo fato de ser também uma escolha. O homem, nesse caso,
não é somente o cidadão de uma cidade: é ainda seu fundador e seu
construtor. Não é somente o soldado que se bate pelas cores de seu
país, mas o artista que por si mesmo as escolheu e as combinou, como
as cores de um vestido. E, se é admissível exigir dele que se mantenha
el à comunidade que o criou, não será certamente um exagero
esperar que se mantenha el à comunidade que ele mesmo criou. Se a
lealdade cívica é uma necessidade, é também num certo sentido uma
coação. Um velho gracejo contra o patriotismo felicita o inglês pelo
re nado gosto que provou nascendo na Inglaterra. E pode-se
acrescentar: “Sim, porque ele poderia ter sido um russo”. O que é um
argumento especioso; se bem que já vivemos bastante para conhecer
indivíduos que julgam fácil virar russo. Ora, se o simples bom senso
considera que uma delidade tão involuntária é natural, por que não
há de considerar também natural, por mais forte razão, a delidade
voluntária? O pequeno estado fundado sobre a diferença de sexos é ao
mesmo tempo o mais voluntário e o mais natural dos estados
autônomos. De modo algum poderia o Sr. Brown ser um russo; mas
poderia acontecer perfeitamente que a Sra. Brown fosse a Sra.
Robinson.

Agora não é difícil compreender por que essa pequena comunidade


tão livre nas suas causas, deve estar tão ligada no que diz respeito aos
seus efeitos. Não é difícil compreender que o juramento mais
livremente pronunciado deve ser mais rmemente guardado. Estão
presas a ele, pela natureza das coisas, conseqüências tão tremendas que
nenhum contrato lhe pode ser comparado. Nenhum contrato, a não
ser este que se diz assinado com sangue, chama as almas das
insondáveis profundezas e traz querubins (ou demônios) para povoar
um bangalô moderno. Não há traço de pena capaz de criar verdadeiros
corpos e verdadeiras almas, ou capaz de trazer à tona da vida os
personagens de uma novela. Essa instituição que tanto perturba os
intelectuais pode ser explicada por um simples fato material que até
um intelectual compreenderá: os lhos, falando de um modo geral, são
mais moços do que os pais. “Até que a morte nos separe” não é uma
fórmula irracional, pois os que o pronunciam morrerão certamente
antes de ver a metade da maravilhosa (ou alarmante) coisa que
zeram.

Defendendo o casamento e a família contra uma onda de divorcismo


produzida pela guerra, Chesterton não insiste na principal razão da
indissolubilidade do matrimônio, que é o seu caráter sacramental,
porque essa razão, e todo o plano em que ela se coloca, não são
admitidos pelo divorcista. Sua argumentação estaria viciada na
origem, mesmo sendo a origem verdadeira. A argumentação, como os
convites e cartas, não pode ignorar o destinatário e não deve proceder
de um princípio que ele recusa. Mas a recusa de uma verdade não
corta todas as possibilidades de comunicação, uma vez que é
impossível alguém recusar tudo. Chesterton, crendo na signi cação e
na e cácia do sacramento, crê, por isso mesmo, na adequação entre o
sacramento e a natureza humana. Como o perdão de Deus, no
sacramento da penitência, não encontraria ponto de contato e seria
uma coisa inútil e perdida, se não existisse no homem a capacidade de
arrependimento e o desejo de vida eterna, a instituição sacramental do
casamento, ainda que um deus a houvesse promulgado, seria uma
coisa abstrata e vagamente disponível, se não existisse no coração
humano o desejo de uma união duradoura. Se a união dos sexos fosse
algo como um cruzeiro de turistas no Mediterrâneo, o casamento
indissolúvel não teria nenhum sentido dentro de nossa humanidade,
porque nunca se notou nos homens a tendência pertinaz, resistente às
épocas e aos costumes, de empreenderem aos pares uma viagem até a
morte. Entre um de nós e o mais ardente divorcista há, como ponto de
contato, o mesmo empenho em valorizar o casamento. O divorcista,
como Chesterton notou muito namente, crê no casamento, em
alguma coisa do casamento; e crê cegamente, como um supersticioso.
A retórica chestertoniana procura, como é boa regra, o ponto
misterioso e sensível em que ele e o adversário se possam encontrar
simplesmente como homens, e, possivelmente, como irmãos. Aliás, em
toda sua obra, ele não tem outro empenho e não procura outro
fundamento. Con a generosamente na permanente possibilidade de
uma recuperação, no domínio da inteligência e no domínio moral.
Enquanto há vida, há essa possibilidade de recuperar, e assim como
espera que um campeão do divórcio possa um dia compreender o que
é o casamento, também, com a mesma força, ele espera que dois
esposos possam sempre restaurar a periclitante ligação graças ao
juramento pronunciado diante do altar.

O mundo, ele bem o sabe, é um lugar de reparações. Campo de


batalha, se quiserem, mas também um campo de reconciliações e
restaurações. Cada um de nós, assim como vive tapando daqui e
cortando dali, no dentista ou no barbeiro, vive também no campo das
cerziduras invisíveis, como escudeiro da própria alma. Enquanto
Quixote desfere cutiladas, Pança costura e prepara compressas. E
enquanto houver um alento de vida haverá sempre um pouco de o
para atar e bálsamo para pensar. Ora, o casamento, sob esse ponto de
vista, é uma instituição particularmente salutar. Cada um é escudeiro
do outro, como se o outro fosse sua própria alma. Cada um é Sancho
Pança de um Dom Quixote que muitas vezes passa a medida da
sandice, pois não há piores loucuras do que as praticadas pelos sujeitos
imperfeitamente loucos.

Para defender essa instituição em todos os seus absurdos aspectos, e


não podendo e cazmente salientar a verdade do sacramento,
Chesterton não cai no erro elementar de lançar mão das vantagens
puramente materiais. Naturalmente, no sentido em que o materialista
toma essa palavra, o casamento é uma empresa que não se justi ca. É
óbvio que todos os entes humanos querem ser felizes. Não tem a vida
outro sentido senão a perpétua busca da ventura. Corremos mundo,
revolvemos escavações, descemos crateras, sondamo-nos, espiamos
atentamente dentro dos olhos alheios, seguimos a pista das vidas, na
ânsia de descobrir nalmente o tesouro escondido. Há pérolas no
fundo dos mares e dracmas perdidos. É claro pois, claríssimo, que os
homens querem ser felizes. Ao tomarmos, porém, esse ponto comum
como início de argumentação, o divorcista entrará em convulsões
estatísticas para nos provar que a maior parte dos casamentos torna o
homem infeliz. Certas ou erradas as estatísticas, acabaríamos no mais
baixo nível intelectual (mais baixo do que as próprias estatísticas) se
fôssemos também enumerar casos e cometer indiscrições. Ou
deveríamos então brandir, diante do descrente, a nossa convicção de
que a felicidade só é perfeita no Céu. Essa idéia é, sem dúvida,
verdadeira. Nela pomos todo o fervor, toda a esperança, e temos dez
mil razões razoáveis para crer que é verdadeira. Mas a palavra de Deus
não é uma pedra. Se quiséssemos escolher outra coisa em todo o
universo, mais tenra e mais aceitável, não precisaríamos procurar
muito, porque Ele próprio a escolheu: sua palavra é um pão. Isso
mesmo, porém, já foi julgado duro demais.

Há certas recusas, diretas, pessoais, que eliminam qualquer


possibilidade de um entendimento. Mas quem escreve supõe todas as
di culdades menos essa; ou melhor, ainda que a admita, não é em
função dela que escreve. Por isso, não pode atirar a verdade como uma
pedrada, sem adaptação e sem preparação. As maiores verdades do
Evangelho, postas assim num bodoque polêmico, se transformariam
num seco e duro vocábulo humano que lapida antes de converter.

No domínio de um problema que interessa o homem, como o


casamento, e no decurso de uma argumentação digna, que não
consinta em fazer cócegas nos sentimentos, é difícil escolher com
acerto o elemento comum indispensável para que o bom combate
possa terminar numa reconciliação. É difícil descobrir o golpe que
move e que comove. No caso do divórcio, não podendo car no nível
da terra, e não podendo levar o adversário até as alturas do céu,
Chesterton escolheu, como moeda comum, essa coisa misteriosa — a
delidade ao juramento —, tão absurda como o próprio casamento e
tão forte como o desejo da felicidade; escolheu essa pequenina coisa
que sempre acompanhou os homens e que ca entre o céu e a terra, ou
melhor, que une a terra ao céu como o fumo das lâmpadas votivas.

A   
Este capítulo é inteiramente tirado do livro e Superstition of
Divorce, e diz respeito, como o título indica, à história dessa mania
que em todos os tempos levou os homens aos laços voluntários.

Charles Lamb, com seu belo instinto fantasista para aproximações


que também são contrastes, observou certa vez um contraste entre
São Valentim e os valentinos. Aparentemente há uma cômica
incongruidade em associar um costume de festivos e frívolos
namoros ao dia e ao nome de um bispo ascético e celibatário da Idade
Média. O paradoxo presta-se ao tratamento que lhe deu aquele autor,
e há uma verdade no que ele disse. Talvez pareça mais paradoxal
dizer que não há paradoxo. Em tais casos a aproximação se a gura
mais provocadora do que a separação, podendo parecer uma ociosa
contradição negar a contradição. Mesmo assim, na verdade, não
existe a contradição. Num sentido mais profundo, existe uma
semelhança verdadeira, pela qual São Valentim e os valentinos estão
unidos em oposição ao mundo moderno. Eu hesitaria em pedir,
mesmo a um professor alemão, que zesse um estudo sistemático de
todos os valentinos do mundo, com o objetivo de formular o
princípio losó co que os governa. Mas se esse estudo fosse feito, não
tenho dúvidas quanto ao princípio losó co que seria descoberto.
Ainda que se considere banal ou imbecil, vulgar, insípido ou
estereotipado o aspecto de que se reveste o fenômeno, há sempre nele
uma idéia, a mesma idéia que leva os namorados a gravarem
laboriosamente suas iniciais nas árvores e nas rochas, numa espécie
de monograma da monogamia. Talvez seja uma molecagem ou uma
infração de gosto discutível essa mania de publicar seu amor numa
árvore; Orlando, entretanto, o fez, e hoje seria certamente preso pela
polícia por estar infringindo os regulamentos da oresta de
Ardennes. Não é aqui meu intento recomendar esse hábito de se
gravar nome e endereço, em enormes letras, na fachada do
Parthenon, na testa da Es nge ou em qualquer outro lugar onde haja
uma oportunidade de despertar o interesse sentimental da
posteridade. Mas esse hábito popular, como muitos outros que
encontramos em Shakespeare, tem uma signi cação que um poeta
menos popular, Shelley, por exemplo, deixaria passar despercebida.
Há uma verdade muito permanente no fato de que duas pessoas livres
procurem, deliberadamente, se enlaçar num tronco de árvore. É a
idéia de se enlaçar alguém a alguma coisa que corre através de toda a
velha alegoria do amor numa guirlanda de cadeias. Encontramos
sempre essa noção de corações encadeados juntos, ou echados
juntos, ou de algum outro modo seguros um no outro; há uma idéia
de segurança que pode ser chamada cativeiro. Não vem ao caso
considerar aqui que essa segurança freqüentemente falha; o que
importa é notar que qualquer loso a sobre o sexo falhará se não
levar em conta o apetite de xidez e constância do amor, mesmo nas
suas experiências malogradas. Nada obrigava Orlando a se
comprometer com um juramento na primeira árvore que encontrou.
Ele não estava obrigado a se obrigar; está constrangido, mas ninguém
o constrange a se constranger. Em suma, Orlando fez voto de se casar
exatamente como Valentino fez voto de não se casar. E nenhum
asceta, nas mais violentas reações de ascetismo, poderia dizer, sem se
tornar herético, que o juramento de Orlando não era tão legítimo
como o juramento de Valentino. Mas é digno de nota que, mesmo
não sendo legal ou legítimo, ainda seria um juramento. Através de
toda a cultura medieval que nos legou a lenda do romance, corre
aquele desenho de cadeias que ligavam, mesmo quando não tinham o
poder legal. Os amores ilegítimos das lendas medievais têm uma lei e
sobretudo uma lealdade que lhes são particulares, como nas histórias
de Tristão ou Lancelote. Pode-se dizer, nesse sentido, que a
libertinagem medieval tinha regras mais estritas do que o casamento
moderno. Não estou discutindo aqui a moral moderna ou medieval,
seus princípios ou os que deveriam ter. Estou apenas notando, como
um fato histórico, a insistência da imaginação medieval, mesmo nos
seus grandes desvarios, sobre uma certa idéia: a idéia do juramento.
Esse juramento podia ser o de São Valentim; ou o juramento menos
grave que o santo bispo considerava legítimo; ou o juramento
desatinado que ele considerava inteiramente ilegítimo. Toda aquela
sociedade tão festiva que nos legou tais tradições estava impregnada
da idéia do voto; e somos forçados a reconhecer que essa noção,
ainda que a julguemos insensata, caracteriza toda uma civilização. Foi
isso que Valentim e os valentinos exprimiram, ainda que digamos que
ambos exageravam ou que exageravam o contraste. Aqueles extremos
se encontram, e se encontram no mesmo lugar. O ponto de encontro
era junto da árvore em que os namorados penduravam suas cartas de
amor. E se o próprio namorado se pendurava na árvore, em lugar de
suas composições literárias, este ato ainda conservava um inde nível
sabor irrevogável.
Foi muitas vezes dito, pelos críticos das origens cristãs, que certas
festas rituais, procissões ou danças, eram de origem pagã. Poderiam
dizer, com o mesmo fundamento, que nossas pernas são de origem
pagã. Ninguém até hoje contestou que a humanidade tenha sido
humana antes de ser cristã; e nenhuma igreja fabricou pernas para que
os homens caminhassem ou dançassem, numa peregrinação ou num
bailado. O que pode ser realmente sustentado com perfeita convicção
é que a Igreja, por onde passou, preservou não somente as procissões,
mas as danças; não somente a catedral, mas o carnaval. Uma das
principais reivindicações da civilização cristã é o ter preservado as
coisas de origem pagã. Em suma, nos velhos países religiosos os
homens continuam a dançar, enquanto que nas novas cidades
cientí cas eles se contentam em tremer.

Mas, adquirida essa visão mais sadia da história, ainda resta alguma
coisa mais mística e mais difícil de se de nir. As próprias coisas pagãs
são cristãs, quando foram preservadas pelo cristianismo. A honradez é
visivelmente diferente da virtus32 de Virgílio. A caridade é
excessivamente diferente da piedade simples de Homero. Mesmo o
nosso patriotismo é algo mais sutil do que o amor indiviso pela cidade;
e a transformação é sentida nas coisas mais permanentes, como na
admiração por uma paisagem e no amor por uma mulher. Todas essas
diferenciações são desesperadamente difíceis de serem de nidas. Mas
eu sugeriria aqui um elemento dessas transformações que tem sido
desprezado demais e que não o devia ser: a natureza de um juramento.
Poderia exprimi-lo dizendo que a antigüidade pagã foi a época do
status; que a Idade Média cristã foi a época dos juramentos; e que a
modernidade cética tem sido a época dos contratos, ou melhor, fez por
ser, mas falhou.

O 
Diante dessas amostras de idéia de Chesterton sobre o juramento (que
talvez pudessem ser mais bem escolhidas do que o z e que o leitor
apreenderá em toda a extensão se procurar a própria fonte), eu
imagino, por experiência, a possibilidade de uma reação especial,
contra a qual devemos nos acautelar. Imagino no semblante do leitor o
sorriso semelhante ao das pessoas bem informadas, quando se referem
ao Papai Noel ou à cegonha que traz criança no bico. O sentimento
que anima tal sorriso é mais complexo do que se a gura à primeira
vista. Em relação à idéia de juramento, ele poderia ser traduzido mais
ou menos assim: “Essa idéia é muito clara, muito simples, muito
compreensível, mas é uma utopia”.

Ora, eu quero mostrar que essa fórmula está duplamente errada: na


verdade, o juramento não é tão compreensível quanto parece, nem tão
simples, nem tão claro; mas, em compensação, é perfeitamente
praticável e, mal ou bem, todo mundo o pratica. Podendo ser
praticado por um homem rústico, o juramento para ser pensado exige
a mobilização dos mais nos recursos da inteligência; e, por mais
atento que seja o observador, cará uma enorme região da idéia fora
do seu campo visual. Sobrará sempre; nunca será inteiramente sabida;
nunca será esgotada. Em suma, o juramento é um mistério: vitalmente
acessível; intelectualmente inesgotável. Exatamente ao contrário do
que um leitor de idéias estereotipadas estaria pensando.

Há poucos instantes falamos do desejo de felicidade, sobre o qual


todo mundo está de acordo; agora estamos diante da idéia de
juramento e de sua importância na estabilidade das instituições.
Tentando conciliar as duas coisas, ou colocá-las ao menos em pé de
igualdade, encontraremos obstáculos intelectuais irremovíveis. Não
conseguiremos raciocinar de modo cabal admitindo duas coisas com
equivalente ponderação. Se o homem deve agir a cada instante como
lhe parece mais lucrativo ou agradável, evidentemente não poderá
fazer promessas.

E a promessa que incluísse cláusulas de caducidade por pura


conveniência não seria uma promessa; quando muito seria um
programa. O homem que perjura e jura pela segunda ou terceira vez,
ou que funda um novo lar baseado na desunião do antigo, tem sempre
o propósito de manter o novo juramento, por falso que seja em relação
ao passado, e se não tem esse propósito então não houve juramento
algum, mesmo falso. A idéia de juramento está indissoluvelmente
ligada à idéia de sacrifício aceito de antemão, e é claro (isto sim, é
claríssimo) que desaparece o juramento onde não houver o propósito
de mantê-lo nos maus dias. Não é possível, pois, manter em pé de
igualdade o desejo da felicidade e o voto. Por mais forte razão não é
possível estabelecer o primado da conveniência que destrói
instantaneamente a noção de promessa. Logo, se o juramento existe, se
é viável, se é praticável, ele só pode ser compreendido, no plano
natural, como um elemento vitorioso sobre o que os homens têm de
mais caro, isto é, o desejo de felicidade. Resta, pois, escolher entre duas
alternativas: ou ca o homem entregue à pura conveniência, tornando-
se, segundo Chesterton, um bárbaro; ou a promessa deve ser colocada
mais alto do que a conveniência, e somente submetida a uma
felicidade de outra ordem.

Entre esses dois absolutos, ou entre o absoluto e a absoluta


relatividade, a chamada civilização moderna, de Rousseau para cá,
tentou inventar um meio-termo, isto é uma relatividade relativa; e
apelou para a noção de contrato. Não somente a vida política, mas a
vida privada e familiar procurou uma rmeza nessa nova base. O
divorcista grita em nossos ouvidos que o casamento não passa de um
contrato, não sendo absurdo, portanto, desejar que possa ser
dissolvido como qualquer outro. É meu intento agora demonstrar que
esses que tanto falam em contrato não sabem o que seja esse esquisito
objeto. Muitas vezes uma palavra nova indica simplesmente um
espírito diferente com que se toma uma coisa antiga. E tal é o caso com
o contrato. Realmente, o que todo mundo entende hoje por contrato é
um instrumento defensivo, protetor e acautelador contra a incurável
safadeza humana. Quando o advogado diz ao seu cliente em tom
severo: “Vamos botar o preto no branco”, está resumindo nessas
palavras toda a pretidão da nossa natureza e submetendo-lhe a pouca
brancura que nos reste.
Vou incorrer no risco de passar, mais uma vez, por utópico e
sonhador, dizendo o que é realmente um contrato: o contrato é a
formulação de uma con ança. O primeiro e primordial sentido do
contrato é ser o registro de uma promessa. Essa é sua essência, seu
conteúdo positivo, seu aspecto branco. A primeira e primária coisa
que eu devo ver num contrato é o que prometi. Por mais fantástica e
irreal que pareça essa concepção, ela realmente consiste em ver
primeiro o que é visível, viável e positivo, e depois então o defeito, a
falha e a crise. O homem com saúde é um homem com saúde, e não
um virtual doente, que ainda se acha no imperfeito estado de
indeterminação clínica. Todas as coisas do mundo têm um aspecto de
vida e um aspecto de morte: no contrato, o aspecto de vida é
exatamente aquela misteriosa disposição de cumprir o que cou
prometido. Em todos os tempos os homens formularam contratos
escritos, inclusive nas árvores, como Chesterton se cansou de mostrar;
mas não passava pelo espírito de um namorado medieval que sua
namorada pudesse instaurar um processo baseado em duas iniciais
entrelaçadas num tronco de árvore. Hoje, nos Estados Unidos, um
namorado pode ser convidado pelo juiz a um casamento forçado ou a
uma multa, pelo fato de ter escrito uma carta prometendo casamento.
Não quero diminuir de modo algum a importância das instituições
que protegem o cidadão ou a cidadã contra as violações de promessas;
o que eu quero criticar é o estado de espírito reinante que já começa
por ver na promessa o instrumento de reivindicação legal, e que já põe
nas cartas de amor um inde nível odor de sala de polícia.

Os juramentos mais solenes são geralmente escritos. O monge


escreve seu voto e coloca o papel sobre o altar. Di cilmente passará
pelo espírito de alguém que assista à cerimônia a idéia de que aquele
papel é uma garantia com que o abade se arma para uma possível
in delidade do neo-professo. A idéia de escrever, de formular
concretamente, é muito antiga e tem relação com a própria natureza
do homem que tende sempre a se xar em coisas concretas. O culto da
memória é um culto de registros e não somente de lembranças
psicológicas. O valor da lembrança escrita, o primeiro e positivo valor,
diz respeito a quem o escreveu.
O liberal, que ainda não se desprendeu inteiramente de uma noção
moral, e que reconhece a validez das instituições, costuma dizer que a
cada direito corresponde um dever; ora, o pensamento genuíno de um
sujeito que assina um contrato com um espírito, digamos medieval, é
um pouco diferente. Ele pensará que a cada dever corresponde um
direito. O mais insigni cante e obscuro contrato, para a fundação de
um botequim ou para o aluguel de uma bicicleta, tem como elemento
positivo e primordial essa disposição humana, embora tantas vezes
falhada, de cumprir o que prometeu. Evidentemente, a organização
social, com seus instrumentos e instituições, deve levar em conta a
fraude e todas as variadas conseqüências do pecado original. Que
devam existir leis, juízes, polícia e prisão, é uma coisa; outra é ter a
subversiva loso a que atribui o primado ao que é negativo, porque
essa loso a, com seu conjunto de princípios, explorará mal, num
sentido errado, cada tendência disponível que surja no seio da
sociedade, e a arrastará infalivelmente para uma completa ruína, em
que o primado do mal seja realmente um fato convincente. A reta
loso a, embora não pareça ter a menor utilidade para os homens que
se dizem práticos, é na realidade a única coisa prática que existe,
porque é ela que permite as recuperações no reto sentido, cada vez que
o homem dispõe de uma boa margem de liberdade.

A concepção negativa do contrato, pela qual ele é antes de mais nada


um instrumento de garantia e um documento para um eventual
processo, ou mesmo uma espécie de represa contra os instintos
bestiais do locatário ou do noivo, equivale a transformar o direito
numa técnica. O contrato, nessa concepção, é um instrumento técnico,
semelhante a uma perna mecânica. Ora, é fácil compreender que essa
noção signi ca apenas um progressivo deslocamento da con ança.
Negada completamente ao vizinho, transfere-se completamente para a
sociedade; e nessa transferência perde o sentido moral e ganha em
sentido técnico. E quanto mais total for a transferência, mais totalitário
será o Estado, que recolhe nas ruas todo esse imenso sufrágio que os
homens deviam partilhar entre si. E tornado totalitário o Estado, então
— é claro! — ele não precisa mais de outro critério, senão o de sua
maciça e irresponsável conveniência de leviatã.
D    
Os personagens têm os nomes de batismo de Chesterton e Shaw, mas
isso não quer absolutamente dizer que esses autores endossariam as
palavras do diálogo. Cenário qualquer.



Não! Voltemos à questão. O casamento é um acordo a dois, chame-o


com o nome que quiser. Para mim é um contrato. Ora, não há um só
acordo no mundo que não contenha a previsão de uma falha e da
conseqüente rescisão. Concordo que o primeiro pensamento dos
noivos seja outro, e não ignoro que a antiga lenda do homem insiste
nessa idéia de amor eterno. Mas isso que você chama de antigo
instinto eu chamo de antigo equívoco, e não estou longe de seus
dogmas que se referem a um antiqüíssimo equívoco. Na verdade, tão
perene na história tem sido a esperança como o desengano. Parece
claro que o elemento positivo deve ser o mais importante, mas por
que, sim, por que diz você que a esperança é o elemento positivo? Eu
sempre ouvi dizer que a prudência consistia em levar em conta,
cuidadosamente, essas coisas que você chama de negativas, e creio
mesmo, se não me trai a memória, que há uma palavra a esse respeito
nos seus evangelhos. Não. Eu não acho mal basear certos atos, e,
principalmente, os mais graves, sobre o negrume dos homens, uma vez
que ele existe e que é o elemento operativo... Não sei se me entende. Eu
quero dizer o seguinte: enquanto tudo vai bem, não precisamos de
normas. A regra, o cálculo, as providências, as leis, tudo isso só entra
em jogo quando a trapaça humana põe a cabeça de fora. Logo, por
mais bonitas e poéticas que sejam suas razões, a formulação de um
contrato é primordialmente uma defesa do homem...



Perdão. Mas eu não disse outra coisa. A primeira idéia do contrato é a


defesa do homem; apenas, para mim, a primeira das defesas que
considero é a de quem promete...



Espere. Essa objeção não me emociona. Voltarei a ela. No momento, a


conclusão que me parece inevitável é essa: o casamento se parece em
todos os pontos com um contrato, todos os contratos são dissolúveis,
logo, conclui você, o casamento deve ser indissolúvel! 

Ouça. Eu não vou responder ao que você acabou de dizer. Há pelo


menos, em seu discurso, sete ou oito proposições discutíveis. Eu
proponho uma coisa mais simples. Sentemo-nos ali, junto à mesa, e
tentemos redigir uma boa minuta para um contrato de casamento.
Você sabe que eu tenho uma certa prática disso, pois já aluguei duas
vezes uma casa mobiliada ao passar o verão em Petrópolis. Nesses
contratos, o locatário recebe do proprietário uma lista minuciosa das
peças que vai usar, e toma o compromisso de repor tudo em seu
perfeito estado. Responderá pelo que quebrar ou rasgar. Limpará o que
sujar. Consertará o que avariar. Ora, vejamos como havemos de redigir
essa minuta de contrato de casamento dentro daquele mesmo
espírito... Aliás, antes disso convém esclarecer um ponto: não seria
melhor e mais fácil fazer o contrato com um determinado prazo? Ou
prefere que o prazo que indeterminado e que cuidemos das cláusulas
de rescisão? Bom. Você não tem opinião xada a esse respeito, mas eu
creio que no seu ponto de vista ca melhor deixar o prazo de lado e
cuidar das cláusulas de rescisão. Como serão elas? Vamos fazer uma
coisa: cada um vai lembrando aquela que lhe parecer boa, quer? Eu
sugiro, por exemplo: o casamento deve ser declarado nulo se um dos
cônjuges revelar uma inclinação para o canto trazida sob disfarce
durante o tempo de noivado. Ou então esta: se um deles achar a fé; ou
então se perder a fé. Ou se car doente. Ou se revelar uma tardia
vocação de escritor. Ou se não nascerem lhos. Ou se houver uma
acentuada tendência para nascerem lhos demais. Se o lho tiver olho
azul; ou não tiver. Se uma tia de mau gênio ultrapassar em idade o
valor médio atribuído pelas estatísticas... Ou então, se quiser, podemos
consultar aquela história da baratinha, porque uma das coisas que
di cilmente um noivo informa à noiva é o seu modo de dormir.

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Tudo isso é inteiramente absurdo.



Meu caro, eu posso resumir em poucas palavras: o casamento é a


coisa mais imprevisível do mundo.

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Mas não é por isso que eu digo que é absurda a sua argumentação. Há
um pequenino detalhe que escapou à sua luxuriante falta de lógica. A
dissolução do casamento, que imagino, e aquela que geralmente é
procurada, não se prende a esses detalhes, porque ambos querem se
separar. Nesse ponto as separações são sempre amigáveis. O litígio,
onde há, gira em torno da pensão, ou de quem ca com o lho, mas é
difícil imaginar o caso de um só querer se separar. Já vê que não é
preciso estipular tantas condições grotescas, uma vez que nenhuma
das partes vai insistir doentiamente em car casada com a outra que a
repele. De mais a mais, por amor ao método, podemos deixá-los de
lado, ainda que existam e que sejam freqüentes esses casos. Basta-me
no momento que o casamento seja indissolúvel no caso em que ambas
as partes estejam de acordo.

E não lhe oculto (digo lealmente), que, assim fazendo, eu quero abrir
uma brecha em seu sistema e entrar por ela adentro, como um
vencedor. Basta-me uma brecha. Basta-me um caso. Eu estou agora do
lado do sim, você do lado do não, de modo que basta um miligrama
de substância para que o sim tenha razão. E aí está: eu não faço
questão dos detalhes, dos numerosíssimos motivos e de sua história da
baratinha. Os dois estão de acordo em se divorciarem; e se assim é, por
quais motivos, sagrados ou profanos, celestiais ou infernais, devem
esses dois continuar morando juntos, uma vez que não querem morar
juntos? 

Bernardo, você pode ter razão em cada frase que diz. Mas o
indispensável, numa questão dessas, é ter razão sempre do mesmo
modo, ao longo da conversação. Você começou por equiparar o
casamento a um contrato e eu me dispus a acompanhar seus motivos.
Agora, subitamente, o casamento toma um aspecto ligeiramente
diverso. Em outras palavras, eu tentarei um resumo de nossas últimas
posições. Para mim, por tais ou quais motivos, o casamento é mais do
que um contrato e por isso eu acho que o casamento indissolúvel,
embora absurdo, é razoável; para você o casamento começou sendo
um mero contrato e acabou sendo menos do que um contrato porque
nem precisa de uma formulação cuidadosa, o que me parece
igualmente absurdo, mas muito menos razoável. Falando como
homem prático (não se ria!), eu estou inclinado a pensar que o
cuidado do contrato deve crescer em proporção com os valores em
jogo. Pelo que acabou de dizer, o casamento tem para você a
importância de um aluguel de bicicleta, que geralmente dispensa papel
e testemunhas. O casamento não tem valor. Estou pronto a
compreender essa nova posição; mas nesse caso, a lógica obriga ao
desinteresse. Se o casamento não tem valor, o divórcio também não
tem; e, nesse caso, é melhor falarmos de outra coisa e deixarmos correr
a vida...



Mas a vida tem valor! Esse é o meu ponto. A vida tem valor! Tem um
imenso valor. Um valor que não pode, sequer, sofrer comparação. E
vocês, com essa manigância de Vida Eterna... Desculpe-me. Eu quero
dizer que vocês empreenderam a conversão do mundo para o pior dos
negócios: a troca de um tudo por um nada. Pode você imaginar o que
seja, na hora da morte, a descoberta de um logro monumental?


Eu tremo de pensar nisso. Num sentido ligeiramente diverso...




Minha religião é a da Vida. A da vida plena, multiplicada,


desdobrada, dilatada, tornada verdadeiramente uma Vida Eterna pela
força da Intensidade, e não pelo tempo. E dói-me ver esse massacre de
existências em nome de uma mera hipótese; sim, de uma hipótese. Por
maior que você faça o Deus que o fez, ele não passa de uma onipotente
hipótese. A vida não é uma hipótese. Eu respiro. Eu ouço meu coração
bater. Olha, põe a mão aqui, escuta como ele bate: tuc, tuc, tuc... E o
fígado? O fígado, meu caro, é uma maravilha silenciosa! Pre ro o
fígado ao coração; o coração, só agora o vejo, tem qualquer coisa de
cabotino com seu rufar que chama a atenção. A vida é profunda e
silenciosa como uma paisagem de montanhas ao entardecer. É um
abismo que nós carregamos, um in nito de que estamos encharcados,
como se tivéssemos caído num mundo submarino, e andássemos por
aí, salvos, arrancados, arrastando atrás de nós uma imensidade de
algas, de estrelas do mar, e de animais fosforescentes... E qual é a lei da
vida? A lei número um da vida? A lei das leis da vida? Eu vou te dizer:
A re-cu-pe-ra-ção. Essa é a lei. A minha lei.

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A minha também. Aposto tudo nela.

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Você? Você recusa a um simples casal que se desavém a aplicação do


primeiro artigo dessa lei! 

Eu não! Eu aplico a lei. E acredito que o casal pode recuperar o que


perdeu...

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Isso é um so sma. Um so sma grosseiro. Você sabe perfeitamente


que há mil casos em que a única recuperação que cada um pode
encontrar é o reinício e não a teimosia. Quantos casos de xifópagos
você conhece? Um ou dois. Pois bem; o que vocês querem é a
multiplicação desses casos; o que vocês querem é encher o mundo de
monstros duplicados que se detestam, condenando a cirurgia em
nome de superstições. Eu não sou nenhum sentimental (você me
conhece); pois bem, vou te dizer, aqui entre nós: eu tenho uma grande
piedade por esses monstros. Gostaria de vê-los operados, passeando
na praia, cada um com suas pernas; e não assim como um disforme
quadrúpede em que as pernas dianteiras detestam as de trás.

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Espere. O que você queria há pouco não era isso, era o divórcio, o que
é diferente, porque implica a possibilidade imediata de uma outra
experiência. O que você queria era uma operação (que me parece
arriscada), e que consiste em partir quadrúpedes para reconstituir
inde nidamente novos quadrúpedes. Era operar um xifópago para que
ele tenha, imediatamente, a possibilidade de experimentar uma nova
xifopagia... Espere! Não insisto nesse ponto, bem sei que se trata de
uma mera imagem, que você está pronto a retirar ou retocar. Mas
retenho um detalhe de todo o seu magní co discurso. De fato, eles
merecem uma grande compaixão. Mas devemos ter muito cuidado
com esta clave em que nossa conversa caiu, senão acabaremos um nos
braços do outro e em lágrimas. Os melhores sentimentos do mundo
toldam a inteligência, cuja serenidade é, talvez, a melhor forma de
compaixão. Não insisto nesse ponto, mas com relação aos insucessos
matrimoniais cada dia mais freqüentes e mais alarmantes, eu diria que
eles decorrem, de certo modo, dessa loso a que diminui o valor do
casamento em favor de uma exaltação da vida. É preciso estar disposto
a perder a vida para salvá-la. No caso em questão, eu diria muito
praticamente que as pessoas que se casam, na sua maioria, não
estimam o casamento, não avaliam a coisa tremenda e tremendamente
simples que estão fazendo. Na base de tudo isso, o que há é um
desprezo pelo casamento; ou um desconhecimento do que ele
signi ca. E são vocês, de um modo geral, que produzem essa
atmosfera; e também nós, os católicos, que raramente sabemos ensinar
e dar o exemplo, e que nos contentamos muitas vezes em andar pelos
corredores das câmaras, para evitar que uma lei venha destruir o que
ninguém mais sabe o que é. Já vê que o problema não é tão simples. Eu
pergunto: por que não usam mais prudência os que se casam? Por que
não levam mais a sério, ou não escolhem com mais cuidado?


O que adianta tudo isso? Você não vê que o caso é inteiramente


imprevisível? Não vê que as considerações nesse assunto seriam
inesgotáveis? 

Mas, meu velho, é isso que estou lhe dizendo há meia hora...

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
Meu caro Bernardo, Acudiu-me ao espírito ontem, quando voltava
para casa depois de nossa conversa, que o mal-entendido entre nós, a
respeito do casamento, deve ser alargado, para se tornar ainda maior
do que realmente parece; e por isso, movido por um escrúpulo,
apresso-me em trazer, com meus protestos de amizade sincera, novos
elementos que tornem impossível entre nós uma conciliação naquele
terreno. Você julga conhecer meu credo, e julga que ele é absurdo;
mas, na verdade, está longe de imaginar o grau prodigioso em que ele
é absurdo. Acho indispensável estabelecer entre nós uma
inconfundível separação. Muitas vezes, em casos semelhantes, não
levamos em conta o fenômeno ótico pelo qual o afastamento traz um
acréscimo de visibilidade.

O casamento indissolúvel, para mim, repousa sobre um dado que é o


centro de toda a questão e que, numa falsa retórica conciliatória,
freqüentemente contornamos, para tornar nossa posição mais
compreensível ao adversário. Agora eu descobri que devo torná-la
incompreensível para torná-la visível. Diga-me depois que eu sou
absurdo e fantástico, mas, ao menos, com um conhecimento mais
profundo da real sionomia de minha loucura.

Você sabe que, para nós, o casamento é um sacramento, mas não


avalia bem o que quer isso dizer, e por isso todos os seus argumentos
giram em torno da idéia de um vínculo moral. O juramento é, de fato,
um vínculo moral. O casamento cristão é, de fato, um vínculo moral,
isto é, um vínculo que não devemos romper; mas antes de tudo é um
vínculo que não podemos romper: e aí começa a história real de meus
delírios. Você julga, apesar de saber por alto que o casamento católico
é um sacramento, que a Igreja quer impedir a dissolução dos
costumes, e por isso proíbe o divórcio. Ora, a Igreja declara o divórcio
impossível, e por isso conclui que sua procura trará inevitavelmente
para os homens uma dissolução de costumes. Avancemos um pouco
mais nos domínios de nossa loucura. Essas frases meio abstratas,
girando em torno do que devemos fazer ou podemos romper, ainda
deixariam em seu espírito algumas ilusões de uma linguagem
semelhante entre nós. É indispensável, entre pessoas que discutem
com palavra sincera, conhecer em toda a extensão a paisagem, real ou
irreal, em que se desenrolam os acontecimentos que cada um descreve.

Quando eu digo, por exemplo, que João e Maria se casaram na Igreja


do Sagrado Coração, eu não estou descrevendo o mesmo
acontecimento a que você alude quando emprega as mesmas palavras.
Para você, o que se passou estritamente foi o seguinte: duas pessoas de
sexo diferente compareceram diante de um sacerdote e, em presença
de uma centena de curiosos, trocaram palavras de compromisso
mútuo, selado com solenidade pelo símbolo da união das mãos e da
troca dos anéis. Não escaparam à sua sagacidade o benevolente
contentamento do sacerdote, o triunfante olhar da noiva, o complexo
sentimento, misto de alegria, alívio e susto, nos semblantes dos pais, e
o mais complexo ainda, misto de felicidade e de embaraço no
semblante do noivo. De relance, você viu ainda esses pequenos
detalhes — um bocejo, uma pétala caída e pisada, um olhar espantado
de criança — que cruzam de leve, em traços tênues e fortuitos, os
momentos mais trágicos. Tudo isso você viu, e em muito mais pensou,
e é a esse conjunto de cenas, fatos, esperanças e pressentimentos, que
alude quando me diz que João e Maria se casaram na Igreja do
Sagrado Coração.

Ora, eu creio com todas as forças de minha alma que aconteceram


certas coisas que você não viu, e que são justamente as mais
importantes. Consideramos geralmente um juramento ou um pacto
como uma troca de compromissos morais que não deixa outra marca,
em cada parte, senão um pequeno traço, um imperceptível vinco na
memória, isto é, um risco entre a alma e o corpo, como esses que os
carpinteiros fazem nas juntas das peças para guardar o modo exato e
único da esquadria bem-feita. O juramento é, pois, um risco, uma
dobra, um vinco. Um vínculo. Imprime um sinal; marca a alma e o
corpo. Mas o juramento sacramental do matrimônio tem uma
natureza mais total e mais profunda: os dois riscos em cruz que o
padre faz sobre os esposos, como bom discípulo de excelente
carpinteiro, marcam a justa posição de um entalhe de nitivo que
deverá retomar seu encaixe único cada vez que, por contingência da
vida e interposição do mundo, se afastarem as duas peças. Não é
somente na lousa da memória, enquadrada entre a alma e o corpo, que
a promessa cou consignada. Foi de alto a baixo, da esquerda à direita,
em altura, largura e profundidade, que a esquadria sacramental
marcou os dois corpos ajoelhados. Os anjos estavam presentes
tomando nota das palavras de consentimento com que cada cônjuge
ministrava ao outro o sacramento; e quando um anjo toma nota é para
sempre.

E então — ouve, ó amigo, as palavras estranhas de meu credo — a


esposa nasceu naquele instante, nova, nova na alma e no corpo, no
espírito e na carne, tirada de uma costela do noivo adormecido. Houve
um nascimento, único no gênero, saído do anco de um homem
prostrado em sonolência de amor e con ança; e uma nova mulher,
irmã de Cristo e lha de Maria, nasceu para ser esposa e mãe. Dois na
mesma carne quer dizer entalhe, junção, encaixe; mas quer dizer
também desdobramento e separação.

O juramento matrimonial marca o ser, funde as almas e prepara o


cadinho em que os sangues serão fundidos; mas, independentemente
dos lhos gerados, os dois corpos já estão atravessados, lado a lado,
por uma trave. O juramento matrimonial, pela força do espírito, marca
os corpos, corporeamente, concretamente, como se a mulher tivesse
sido arrancada, ali, à vista de todos, da costela do homem adormecido.
“Da costela, sim, porque próxima do coração — para ser ternamente
amada; da costela, embaixo do braço, para ser corajosamente
defendida”.

E aí está em breves traços, ó amigo, o fantástico absurdo em que eu


creio. João e Maria são agora diferentes até os ossos. Você objetará que
a diferença ocorrida não é visível nem apreciável com todos os
recursos da química. Uma análise de sangue, realmente, feita logo
depois da cerimônia, não revelará nenhuma alteração sensível nas
espécies. Não discutirei no momento esse detalhe; ao contrário, el ao
meu propósito de produzir entre nós uma salutar distância, para que
você possa apreciar a verdadeira extensão de nossa loucura, eu lhe
direi que somos ainda sete vezes mais loucos do que pensa, porque
cremos em sete mistérios sacramentais.

O importante a assinalar na questão do casamento é a convicção que


temos de seu caráter ontológico, e não puramente moral. O
importante, se você quer aprender nosso pensamento, é xar a atenção
sobre a história da costela, e não apenas sobre as conseqüências sociais
do enlace. E eu o aconselharia a ler as páginas mais desvairadas da
Sagrada Escritura, onde um homem mora três dias no ventre de uma
baleia e um outro faz parar o sol; onde o profeta vê estranhos seres
com quatro faces, quatro asas e rutilantes pés de bronze polido; onde o
evangelista vê surgir do mar um monstro com sete cabeças e dez
cornos tendo escritos nas testas nomes blasfematórios.
E então você se convencerá de que nós somos setenta vezes mais
loucos do que imaginava. Mas, por outro lado, deverá reconhecer que
milhares de pessoas, tão razoáveis e mais estimáveis do que eu,
durante milhares de anos, creram o que era incrível, o que vem a ser,
segundo Santo Agostinho, e em linguagem matemática, incrível ao
quadrado. E creram sem ter visto o mais inofensivo dos monstros, o
que se torna, decididamente, um inexplicável desvario, ou incrível ao
cubo. E resulta disso tudo, num estranho paradoxo, que os homens
racionalistas como você são os únicos a desfrutar o privilégio dos
profetas, isto é, o privilégio de ver a gura externa da Igreja, e de nos
ver e nos ouvir, nós os fantásticos, incríveis e monstruosos inventores
de monstros. E cá estou eu, meu velho, um banal e vulgaríssimo
espécime para servir de espetáculo e de escândalo à sua geométrica
razão. Olhando-me, a mim ou a qualquer beata que se levanta do
confessionário, você verá um monstro.

Mas, voltando à questão do casamento, eu quero lhe mostrar uma


coisa que escapou às suas cogitações e que torna seu mundo de
círculos e triângulos ainda mais doido do que o meu mundo cheio de
baleias habitáveis, de candelabros animados e de serpentes
persuasivas. Leia o que Chesterton disse sobre o mistério, e que
transcrevi páginas atrás, e verá que, aplicada ao juramento, e mais
particularmente ao matrimônio, a idéia do mistério revela, por
contraste, a terrível retração, o mesquinho encolhimento, desse
universo racional em que você tenta em vão se instalar. Você troca o
nosso largo e amplo delírio por um pequeno delírio; o desvario pela
incoerência.

Disse atrás que o casamento imprime um sinal, um vinco, um


vínculo. Suponhamos agora que assim não seja, e que o casal, ao sair
da igreja, leve os mesmos corpos, apenas enfeitados de bons
propósitos e eufóricos sentimentos. Suponhamos que a esposa
continue a ser tão diferente do esposo, tão alheia e tão autônoma,
substancialmente, como ao entrar pelo braço do pai, arrastando um
longo véu que deixa para trás uma inútil brancura. Suponhamos que a
união conjugal, em suma, não tenha conteúdo ontológico. E agora
consideremos uma família (uma casa de família grande, como a nossa,
cheia de lhos, tias e avós) sob o ponto de vista do marido. Olhemos
essa casa, essa família, essa gente, com o olho especulativo e racional
do marido. Quase todas as pessoas estão ligadas por um vínculo
concreto. As tias, os lhos, o avô, estão ligados por uma conspiração
cromossômica que transparece nas faces e nos gestos; o mesmo sangue
corre em todas as veias: a única pessoa que não faz parte da família é a
esposa. O centro da família não pertence à família. A dona de casa não
está em sua casa: é uma intrusa. É a única pessoa, além das
empregadas, que não está ligada ao marido senão por um contrato
moral. O triângulo básico da família, pai, mãe e lho, não é igualmente
concreto e corpóreo em todos os seus lados; não o é justamente na
base.

A tia é uma parenta, ainda que seja uma parenta pobre; mas a esposa
não é. A tia está ligada à família por um o; a esposa não está. A tia é
indissoluvelmente tia e nunca passou pelo espírito do mais audacioso
lósofo que uma tia pudesse perder seus títulos; uma avó, um lho,
são indissoluvelmente avó e lho. A esposa não: o centro mesmo da
família, o pilar, a base, a dona da casa, é uma pessoa que, de passagem,
faz o favor de emprestar seu sangue, seu ventre e seu leite.

Tomando a perspectiva da esposa teríamos outra metade do quadro


onde o corpo estranho é o pai de família, e eu concluo que, em toda a
família, os únicos sobre os quais paira um duvidoso parentesco são os
esposos. E concluo que esse mundo racional e perfeito que você criou
é pequeno demais. Na melhor das hipóteses, quando vocês falam em
horizontes rasgados e em liberdades, eu vejo uma prancha oscilante,
um passadiço exíguo demais para um casal de braço dado. Mas na
verdade, o que me parece esse mundo, em que só cabe um de cada vez,
é um vidro de farmácia onde se expõe um feto. E eu pre ro o meu,
fantástico, cheio de monstros e de anjos, onde cabe à vontade este
abraço de amigo que aqui lhe deixo.

Sinceramente seu G.
D  
Nos diversos textos que já citamos para exempli car o pensamento de
Chesterton sobre o juramento, o leitor certamente terá notado a
presença constante de outras idéias, formando como que um sistema
planetário de onde se poderia tirar a concepção do autor em relação à
história, política, educação e relações entre a família e a sociedade
civil. Uma das principais idéias, que acompanha invariavelmente
aquela do juramento, é a que se refere à tradição. Outra é a que diz
respeito a uma estrutura política oposta à barbaria positiva, que hoje
pode ser equiparada à política maquiavélica e totalitária. Nós mesmos,
páginas atrás, fomos conduzidos inevitavelmente a considerações
sobre a progressiva absorção de toda a con ança dos cidadãos por
parte do Estado, partindo também do mesmo ponto, isto é, da
diferença entre a noção de juramento e a noção de contrato negativo.

Temos, pois, três coisas em jogo: o juramento, a tradição e a


democracia, cujo nexo já se tornou claro, e cujo centro é a verdadeira
essência do homem. Mas a originalidade de Chesterton, a meu ver,
consiste em ter acentuado, e até em certos casos tomado como ponto
de partida, a coisa que entre todas parece mais frágil ou menos séria.
Os grandes problemas, como diria um jornalista, estão subordinados
na mensagem chestertoniana a essa coisa pequenina; estão suspensos
nesse frágil o “estendido das colinas esquecidas do ontem às invisíveis
montanhas do amanhã”. A lei da promessa, passando da esfera pessoal
e familiar, aparece então esticada sobre os tempos, como o o
condutor de todas as mensagens; aparece como a lei da delidade e da
entrega, a mais dinâmica das leis da história: a tradição. Por outro
lado, comparando o sentido positivo com o sentido negativo dos
contratos, ca salientada a importância do ato moral sobre a realização
técnica, ca a rmada a dignidade do homem comum sobre o
especialista, e ca desfraldada na Cidade a bandeira da democracia.
E se as duas noções, democracia e tradição, estão ligadas à mesma
raiz, que se embebe nas mais profundas regiões do mistério da nossa
humanidade, estão também ligadas entre si. Nesse ponto — sobre a
conexão entre democracia e tradição cristã — Chesterton se aproxima
singularmente de Jacques Maritain, tendo chegado a essa aproximação
por um caminho completamente diverso; e diverge de todos os
católicos equivocados sobre o conceito de autoridade, sobre a noção de
liberdade, e sobre a idéia de humanismo, que chegaram a entrever na
abominação nazista, e nas suas caricaturas latinas, piores em muitos
pontos do que a abominação comunista, um modelo da tradição
cristã. O seguinte trecho de Orthodoxy (do capítulo “e Ethics of
El and”) estabelece com clareza a ligação, agora direta, entre as noções
de democracia e tradição:

Fui criado como um liberal, e sempre acreditei na democracia, isto é,


na elementar doutrina liberal de uma sociedade emancipada que se
governe a si mesma. Se alguém achar essa frase vaga ou oca, proporei
uma pequena interrupção para explicar que o princípio da
democracia, como o entendo, pode ser de nido por duas
proposições. A primeira é esta: as coisas comuns a todos os homens
são mais importantes do que as coisas peculiares a alguns homens.
Coisas ordinárias têm mais valor do que as coisas extraordinárias; ou
melhor, são de fato as mais extraordinárias. O homem é algo de mais
terrível do que os homens, algo de mais estranho. O sentido do
milagre que a humanidade representa deve sempre nos parecer mais
vívido do que qualquer maravilha de força, inteligência, arte ou
civilização. O simples homem, em cima de suas pernas, tal como é,
deve ser considerado como um objeto mais comovente do que
qualquer música, e muito mais chocante do que qualquer caricatura.
A morte em si é mais trágica; mesmo do que a morte por inanição.
Ter um nariz é mais cômico; mesmo do que ter um nariz judaico.

Este é o primeiro princípio da democracia: as coisas essenciais aos


homens são aquelas que eles possuem e mantêm em comum, e não
aquelas que eles possuem em separado. O segundo princípio é apenas
este: o instinto ou desejo político é uma daquelas coisas que os homens
têm em comum. Amar é sem dúvida alguma mais poético do que fazer
poesias sobre o amor. A discussão em torno da democracia reduz-se a
considerar o governo (que interessa a todo um povo) como algo mais
parecido com o amar do que com o fazer poesias sobre o amor. A
política não é um exercício especial como tocar órgão na igreja, pintar
iluminuras, descobrir o Pólo Norte (esse hábito tornado insidioso) ou
ser membro de um observatório astronômico. Para esses cargos não
achamos indispensável que existam homens, a não ser que eles os
desempenhem bem. Ao contrário, as coisas simples e comuns, como
escrever as próprias cartas de amor ou assoar o próprio nariz,
desejamos que os homens as façam por si mesmos, ainda que as façam
mal. Não estou aqui discutindo a verdade de cada uma dessas
concepções, não ignorando que muitos indivíduos modernos fazem
questão de ter esposas escolhidas por cientistas, e brevemente,
suponho, exigirão enfermeiras para lhes assoar o nariz. O que eu digo,
simplesmente, é que a espécie humana reconhece a universalidade
dessas funções e que a democracia inclui entre elas o ato de governar.
Em resumo, a crença democrática é esta: as coisas mais terrivelmente
importantes devem ser con adas aos homens comuns — o encontro
dos sexos, a orientação dos moços, as leis da cidade. Democracia é isto
e esta sempre foi a minha convicção.

Mas devo mencionar um ponto que desde a minha mocidade nunca


cheguei a compreender. Nunca, efetivamente, pude compreender onde
foram algumas pessoas buscar a idéia de que democracia e tradição se
opõem. Parece-me claro que tradição vem a ser democracia ao longo
do tempo. É a con ança tributada ao consenso das vozes humanas
comuns e não a algum registro isolado e arbitrário. O indivíduo que
cita um historiador alemão contra a tradição da Igreja Católica, por
exemplo, está fazendo estritamente um apelo à aristocracia. Está
apelando para a superioridade de um especialista contra a tremenda
autoridade da multidão. É muito fácil mostrar por que se considera, e
se deve considerar, a lenda com mais respeito do que o livro de um
historiador: a lenda é geralmente feita pela maioria do povo de uma
aldeia e portanto pela maioria da gente que é normal; o livro,
geralmente, é escrito pelo único habitante da aldeia que é doido.
Aqueles que pretendem se opor à tradição dizendo que os homens do
passado eram ignorantes devem ir ao Carlton Club33 prestar essa
declaração, e então devem também convir que os eleitores dos
subúrbios são ignorantes. Objetando à tradição, objetamos à
democracia. Se temos em alta conta a opinião dos homens comuns,
expressa em grande unanimidade, quando se trata de assuntos da vida
cotidiana, não vejo razão para desprezar essa opinião quando se trata
de história ou fábula. A tradição pode também ser de nida como a
extensão de privilégios, e vem a ser o reconhecimento do sufrágio da
mais obscura de todas as classes, a dos nossos antepassados. É a
democracia dos mortos. Pela tradição eu recuso submissão à pequena
e arrogante oligarquia de alguns indivíduos pelo simples fato de
estarem ainda de pé. Todos os democratas se opõem a que o homem
seja desquali cado de nitivamente pelo acaso de um nascimento; a
tradição se opõe a que o homem seja desquali cado pela morte. A
democracia nos aconselha a não desprezar a opinião de um bom
sujeito ainda que ele seja nosso barbeiro; a tradição convida-nos a não
desprezar a opinião de um bom sujeito, ainda que ele seja nosso pai.
Eu não posso, em vista dessas razões, separar as duas idéias,
democracia e tradição; parece-me evidente que ambas são a mesma
idéia. Teremos os mortos em nossas assembléias. Os gregos antigos
votavam com pedras, aqueles votarão com pedras tumulares. E isso
será perfeitamente regular e o cial porque muitas pedras tumulares,
como também muitas cédulas eleitorais, são marcadas com uma cruz.
PARTE V: P   ...

A propriedade é um ponto de honra.

— G. K. Chesterton

O capital é como o estrume, só é bom quando


espalhado.

— Francis Bacon
O  
À terceira idéia de Chesterton, chamá-la-ei idéia de posse. E se as duas
de que já nos ocupamos têm a virtude de impedir que o homem que
doido ou bárbaro, esta agora o impedirá de se tornar escravo. Parece
ela, por ser a mais concreta e mais prática, a menos religiosa; tenciono
mostrar antes de mais nada que, por isso mesmo, é uma idéia
radicalmente católica. Para encontrar o seu primeiro fundamento,
remontemos à criação do mundo e, mais particularmente, ao dia da
inauguração da humanidade: Depois Deus disse: “Façamos o homem à
nossa imagem, segundo nossa semelhança; e que ele domine sobre os
peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos,
e sobre toda a terra [...]”.

Foi pois outorgado ao homem, no dia da sua criação, um direito de


posse e domínio sobre todas as coisas. E, no paraíso, o homem
exerceu-o pela força da palavra: E o homem deu nomes aos animais
domésticos, às aves do céu e a todos os animais dos campos. Depois da
culpa, é verdade, Deus disse ao homem que ele comeria o pão com o
suor de seu rosto, mas não revogou o direito de domínio e posse,
condicionando-o ao trabalho penoso. Nesse dia, às portas do paraíso,
guardadas pela espada amejante de um querubim, começou a
economia política, com o problema do trabalho, a questão do salário, o
capitalismo e o socialismo.

E é por isso que o trabalho humano tem qualquer coisa que ressuma
a tristeza da culpa e qualquer coisa que lembra o limiar de um paraíso
perdido. A mesa de um obscuro e infeliz funcionário é um pequeno
campo, onde um moço, extenuado de se locomover numa cidade que
vai se tornando selvagem — como já deixei dito atrás em tom de
lamentação — procura reconquistar o caminho do paraíso. Quando
ele volta para casa, e se instala, talvez em sua única cadeira, e usa os
seus poucos objetos, com plena posse e pleno domínio, e dá um nome
ao seu gato, e ouve os passos e a voz da companheira arrancada de seu
anco, durante um sono de amor — ele sente vívido, palpável,
inconfundível, a lembrança de um jardim de delícias.

Preparar, pelo trabalho, a volta-para-casa, entre todas as coisas do


mundo, é a que tem a maior densidade de ventura. Pode o mundo
moderno aviltar o trabalho, fazendo do homem uma pura máquina
para o serviço de uma babilônia; pode semear obstáculos sem m
entre a mesa do funcionário e aquela soleira de porta onde ele tira do
bolso uma chave encantada e toma posse de um reino; podem os
pregadores anunciar um regime ideal, em que a casa é um
prolongamento da repartição, uma máquina-de-morar cujos objetos
pertencem a todos (o que equivale a dizer que não pertencem a
ninguém), e onde o próprio gato receberá um nome o cial; podem
socializar, burocratizar, centralizar; e minar os alicerces da família; e
arrebatar as crianças para chocadeiras térmicas onde se ensina que foi
um dentista ou um bacharel que zeram o mundo; debalde farão tudo
isso com o auxílio de todos os demônios: o homem não esquece o
paraíso que perdeu. Não esquece que seu primeiro pai foi um rico
proprietário rural, que dava ele mesmo os nomes aos seus bichos e
usava fartamente, e sem pena, os frutos de sua terra.

A idéia de Chesterton gira em torno disso; e eu queria ser um gênio


para convencer o leitor, depois dele, de que a idéia mais poética e mais
maravilhosa do mundo está ligada à posse de três alqueires e uma
vaca. Ou então, o que é muito mais fácil, eu queria que o leitor fosse
um homem extremamente simples, para descobrir isto sozinho.

O 
É preciso imaginar um concurso de circunstâncias as mais
extravagantes, uma anormal soma de má vontade e de obscuríssima
ignorância, uma desvairada combinação de proposições que
mutuamente se destruam, para chegar a compreender o motivo, o
enigmático motivo, que leva muita gente a supor que a Igreja Católica
é contrária à idéia de posse e ao mesmo tempo aliada do capitalismo.
Pretendo mostrar, ao lado de Chesterton, que a Igreja é contrária ao
capitalismo e favorável à posse; ou ainda, mais exatamente, que é
contrária ao capitalismo porque é favorável à idéia de posse.

Antes de entrar em maiores desenvolvimentos quero dizer alguma


coisa sobre o pecado original. No capítulo anterior eu disse que a
economia política e todas as crises tinham começado na porta do
paraíso, mas agora estou pensando que o capitalismo (isso que
chamamos hoje capitalismo, e contra o que Chesterton se bateu a vida
inteira) começou dentro do paraíso. O pecado original tem sido
apresentado como um pecado de gula, de orgulho, e de inveja. Sem
analisar, tomando-o em bloco, eu diria que o pecado original foi um
pecado de capitalista, tendo consistido no uso desmedido, e numa
falsa idéia de domínio que rompia as medidas do homem. A opressão
e a exploração do trabalho alheio serão as manifestações sociais
posteriores, mas o germe do capitalismo já está no primeiro pecado do
homem.

Nesse sentido, nada há que tenha uma feição tão anticapitalista como
a ascese cristã que, nos seus mais variados aspectos, consiste sempre
num exercício de restauração da integridade perdida e na reconquista
do paraíso. Por isso, num lamentável equívoco, a vida ascética tem sido
comparada freqüentemente a uma espécie de socialismo ideal, mesmo
por aqueles que crêem no socialismo e não crêem na ascese. Ora, nessa
ordem de idéias, se o exercício de santi cação se parece com alguma
coisa, é antes com o regime da pequena economia, com o
distributismo de Chesterton, por exemplo, cuja principal nalidade é a
recuperação de um patrimônio. A vida do santo não é um modelo de
desprendimento desinteressado; ao contrário, sua bússola é o interesse.
Nunca pude compreender, aliás, o motivo invocado para considerar o
desinteresse em si como uma virtude, a ponto de se ter dito, contra o
cristianismo, que ele não é bastante puro porque não é bastante
desinteressado. Os que assim falam são os impulsivos, os voluntaristas,
que a si mesmos se chamam de sinceros, e que têm como primeiro
artigo de seu código, como Chesterton tão bem assinalou, despojar a
vontade do seu próprio objeto.

O problema do santo se parece muito mais com o problema de um


sensato negociante do que com o fanático código do altruísta. O santo
é profundamente interesseiro, e sua grande virtude consiste em ter
escolhido o bom objeto de sua vontade, e em ter amado esse objeto. A
idéia xa do santo é a posse. O cético, evidentemente, pode dizer que
ele entesoura fumaça e espera uma herança que nunca receberá; pode
dizer que ele é doido; mas o que não pode dizer, sem completo
desconhecimento de causa, é que ele ama o vazio e deseja o nada. Se
estamos procurando compreender a idéia que norteia seus atos, temos
que admitir a primeira delas, isto é, a convicção, ainda que absurda, de
uma vida eterna. Não poderemos compreender o santo se analisarmos
os seus atos segundo nossas idéias. Os menores e mais triviais
espetáculos do mundo, se deixarmos de lado os objetivos que os
homens se propõem, perderiam o último vislumbre de signi cação.
Imaginemos, por exemplo, que estamos assistindo aos jogos olímpicos
e que passam por nós os corredores, usando todas as reservas de força
e de destreza para arrebatar o prêmio nal. Se um de nós não crê em
prêmios, ou não crê que aquela pista termine em algum lugar, é claro
que não entrará na competição; mas se quer saber o que é uma corrida
tem que levar em conta que os atletas crêem na chegada e no prêmio.
A maior parte das pessoas que se referem à vida do santo incorre nesse
engano de aproximar os atos piedosos de suas próprias idéias. E
divertem-se muito com o absurdo que resulta, pensando que o tolo é o
santo.

O fundamento do cristianismo sempre foi uma idéia de posse e de


recompensa. O cristão não corre à toa, pelo gosto de correr; o que ele
quer é a palma da vitória. Aí está, por exemplo, o que diz São Cipriano,
bispo de Cartago e mártir do Cristo:

Lutemos, pois, de bom grado e com prontidão, por essa palma das
obras salvadoras; corramos no estádio da justiça tendo Deus e o
Cristo como espectadores, e — como já nos tornamos superiores ao
século e ao mundo — não retardemos nossa carreira por qualquer
cobiça do mundo e do século. Se o dia da prestação de contas ou da
perseguição nos encontrar desembaraçados, céleres, correndo nesse
estádio da esmola, o Senhor não faltará com o prêmio merecido. Aos
que vencerem na paz dará uma coroa branca pelas boas obras; aos
que triunfarem na perseguição, acrescentará a coroa purpúrea do
martírio.

Em São Paulo, encontramos passagem semelhante: Quanto a mim, já


estou oferecido em sacrifício, e o momento da partida se aproxima.
Combati o bom combate; terminei minha corrida; guardei a fé: está
doravante reservada para mim a coroa da justiça [...].

Todo o vocabulário cristão está impregnado da idéia de lucro, de


recompensa, de herança, de posse. Em qualquer página das Sagradas
Escrituras ou dos Santos Padres, se encontra um sinal desse
sentimento, perfeitamente análogo ao de um bom e econômico
trabalhador que faz seu pé-de-meia para um dia ter casa. A di culdade
da exempli cação está só na escolha. Depois da Ceia, diz o Senhor:
Que vosso coração não se perturbe: crede em Deus, e crede também
em mim. Há numerosas moradas na casa de meu Pai; de outro modo
eu vos teria dito, porque eu me vou

para vos preparar um lugar [...].

Chesterton guardava em sua carteira uma oração tirada desta


passagem do Evangelho de São João e, depois de sua morte, pôde o
Padre Vicente, seu confessor, observar que ele alterara o texto sagrado.
Onde dizia um lugar acrescentara, pensando em sua corpulência, a
very large place. Um lugar bem espaçoso. O que prova que seu
humorismo era coisa muito séria e, eventualmente, uma forma de
oração.

Retomando os exemplos, ouvimos em São Mateus a palavra nal do


Cristo, no dia do julgamento: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse
do reino que está preparado para vós desde a formação do mundo. E
nalmente, em São Paulo, encontramos o título desse peregrino que
serve de espetáculo para o mundo: ele é o herdeiro de Deus e co-
herdeiro de Cristo.

O 
Depois de criticar o cristianismo por ser demais interesseiro, torna-se
inevitável criticá-lo por ser desinteressado demais. O sentimento de
posse, o apetite por uma herança a que me referi no capítulo anterior,
signi cam realmente um desprendimento das coisas desse mundo.
Trata-se de um desejo guardado para os últimos tempos; trata-se de
uma propriedade escatológica. Aqueles textos provam que o cristão
tem um vivo sentimento de posse, mas não provam, e antes parecem
provar o contrário, que ele tenha um sentimento de posse relativo às
coisas deste mundo das quais se ocupam os economistas e o próprio
Chesterton com seu distributismo. A vida rigorosa dos ascetas depõe
contra essa idéia: São Francisco de Assis não queria possuir um livro
de orações e não consentia que seus irmãos tivessem uma casa própria.

Ora, não é difícil mostrar que essa impressão, decorrente da análise


localizada de um detalhe, desaparece inteiramente se considerarmos o
pensamento geral da Igreja de todos os tempos. Quanto a São
Francisco, convém notar que a Igreja procurou logo corrigir aquilo
que era apenas uma vocação especial e pessoal, não convindo,
portanto, para uma vocação especial, mas comunitária. Os biógrafos
de São Francisco entregam-se insensivelmente à sedução de mostrar
que o santo era maior do que a Igreja, e muitos chegam a dizer que foi
Francisco o único verdadeiro franciscano. Chesterton, porém, não caiu
nesse erro. Diz ele que Francisco foi um grande santo, e um homem
grande, e que o papa que lhe fez restrições talvez tenha sido um
homem pequeno; mas acrescenta, para informação das pessoas alheias
à história da Igreja, que nela freqüentemente os homens pequenos têm
razão, e os grandes não. É de notar que uma das mais ferozes e
turbulentas heresias que atacaram a ortodoxia católica foi a dos
fraticcelli, que se julgavam os legítimos descendentes de Francisco e
que desejavam, furiosamente, nada possuir. Quem disser portanto que
Francisco foi o único franciscano está a dois palmos de dizer que ele
foi o único fraticcello.

Pode-se dizer, com mais exatidão, que o cristão não é desprendido


das coisas desse mundo. Ao contrário, seu sentimento de posse
sobrenatural se apóia num sentimento de posse natural. O que o asceta
procura fazer, nessa matéria, é reduzi-lo ao mínimo, não para destruir
ou anular, mas para defender esse mínimo. Para São Bento, esse
mínimo era o limite de seu mosteiro; para São Francisco esse mínimo
era o pano da veste, e às vezes a pele do corpo, que tratava
humoristicamente de seu burro, isto é, sua propriedade. Quando
porém o mínimo se reduz a esse ponto, corre o risco de deixar de ser
um mínimo. Realmente, o corpo não pode, rigorosamente falando, ser
considerado um burro, ou uma simples propriedade da alma, a união
entre os dois sendo mais íntima do que entre o cavaleiro e a montaria.
É uma união que não suporta separação senão durante a espera do
julgamento. Um leitor mal avisado, lendo os nossos místicos, pensará
que eles desprezam o corpo. Usam freqüentemente uma linguagem e
um estilo impregnados de maniqueísmo, assim como nós dizemos
açúcar, álgebra e alfazema, sem que isso nos obrigue a invocar Alá nas
mesquitas. Cada heresia deixou, como cada invasão, uma marca; mas
essa marca representa, como gloriosa cicatriz, uma vitória da
ortodoxia. O cristão deseja salvar o corpo também; deseja possuir um
corpo glorioso; e o último de seus apetites é ser alma-do-outro-
mundo. Mas sabe que esse triunfo exige uma ginástica, uma redução,
uma concentração em um mínimo. Possui pouco, para possuir
realmente. E nisso se encontram, e não por mero acaso, dois enormes
proveitos que nenhuma outra doutrina consegue conciliar: o interesse
próprio e o da coletividade; a justa medida da posse, em proporção
com o homem, e o amor ao próximo.
Há uma profunda diferença entre a idéia de possuir pouco e a de
tender a nada possuir. Pode-se dizer que a primeira signi ca uma
perfeição da posse; a segunda, evidentemente, indica uma negação.

Possuir pouco quer dizer possuir bem; possuir muito quer dizer
possuir mal e, portanto, deixar de possuir bem os elementos mais
próximos e mais preciosos. A pobreza cristã no plano natural é uma
defesa, é um recuo, uma formação militar em quadrado cerrado, uma
forti cação do mínimo necessário, uma saúde para a alma e para o
próprio corpo. O capitalista é o homem que não se possui e que à força
de exercer e se deliciar com o domínio não se domina. Um exemplo
talvez torne mais viva essa diferença entre o mínimo e o nada: o
homem que a a uma navalha deseja que a lâmina tenha um certo
mínimo de aço, e aplica-se laboriosamente em gastar o aço contra o
esmeril. Um observador desatento concluirá que aquele homem não
gosta do aço, que a religião daquele homem é contrária aos metais, e
que a operação a que se entrega tem o sentido de fazer a navalha
tender para zero, sendo atingido o seu ideal quando tiver na mão
apenas um cabo. Ora, ele está reduzindo o aço justamente porque
precisa do aço, e porque precisa, para seu m especial, que esse aço
seja mínimo.

Mas nessa mesma operação há um risco que todo barbeiro conhece:


virar o o. E foi esse risco que o papa viu na ordem nascente dos
franciscanos. A redução do mínimo necessário, a restrição dos bens,
mesmo voluntária, é por vezes desaconselhável, sendo milhares os
casos de ascetismo que a solicitude da Igreja procurou mitigar. A boa
vontade também se engana em seus limites; e ainda que o engano
tenha a boa direção, não deixa de ser engano e de ser nocivo. Varia
muito de um para outro o mínimo necessário; mas a xação desse
valor num mínimo-mínimo, como é o caso dos ascetas, só pode ser
compreendida e admitida como um ato voluntário, livre, e, na ordem
sobrenatural, solicitada por uma especial vocação.

O capitalismo é um mal, o mal por excelência na ordem social,


porque impede que os homens sejam pobres, obrigando-os a serem
miseráveis. Impede que os homens exerçam o livre domínio sobre si
mesmos, impondo-lhes um domínio sem tréguas que os atormenta no
corpo e na alma. O ideal do capitalismo é que todos, com exclusão de
um punhado de privilegiados, sejam ascetas à força; e nos momentos
de crise (como Chesterton o denunciou), seus campeões lançam mão
de demagogia exatamente igual à dos socialistas, incitando os homens
ao trabalho em nome do interesse coletivo, da prosperidade das
instituições, da posteridade, de tudo en m que não seja simplesmente
a posse, o domínio sobre a propriedade privada. A Igreja defende o
direito da propriedade privada, e por isso, logicamente, se opõe ao
capitalismo e ao socialismo que de mãos dadas e com o mesmo
vocabulário, procuram destruir essa idéia antiga e venerável.

A Igreja Católica defende o direito à propriedade privada; a idéia de


posse é inseparável da vida cristã, mesmo na ordem natural. A
tendência do ascetismo, mesmo nos seus maiores arrebatamentos, é a
de possuir, ainda que seja para se despojar junto ao primeiro pobre
que encontre. A esse respeito convém assinalar um elemento que
geralmente se considera como coisa marginal, mas que esclarece de
modo especial a vida econômica dos santos: re ro-me à esmola. Se
toda a pregação da Igreja e todas as vidas de santo girassem em torno
da distribuição das esmolas, poderia car no espírito de um mau
observador a idéia de que o católico é uma espécie de fanático quando
é bom católico; e que ele se despoja do dinheiro como de um mal. Um
raciocínio elementar indica logo o erro dessa suposição, porque se a
esmola é o “sacramento da caridade”, como disse São Cipriano, é de
supor que a natureza do objeto dado seja boa. Ninguém distribuiria
coisas más por caridade. Ninguém, tomado de um súbito escrúpulo, e
de um fervor religioso, sairá distribuindo pelos orfanatos seus livros de
sexologia moderna ou pelos bairros proletários, sua biblioteca de
materialismo histórico. A esmola é boa porque o dinheiro ou a espécie
são bons; quem dá não se despoja do dinheiro propriamente dito, mas
da injusta medida.

Mas há um outro fato que completa a apreciação do problema.


Os santos dão esmolas, mas também pedem esmolas. O próprio São
Francisco de Assis, exemplo de desprendimento, passou toda a sua
santa vida a pedir esmolas. Por aí se vê que a esmola é uma espécie de
comércio dos santos, anarquizado porque voluntário, mas com uma
tendência muito clara e muito nítida apesar da vital anarquia em que
se processa. E a tendência é a de espalhar, difundir, distribuir a
pobreza; é a de evitar no seio da sociedade cristã a hipertro a, o
gigantismo, a centralização. Não se pode transformar a prática da
esmola, que é uma prática vital, num sistema econômico. Mas pode-se
tirar dela a idéia geral a que deve obedecer um salutar regime, ou
melhor, pode-se tirar da esmola alguma coisa que nos diga o
pensamento de Deus em matéria de economia política. Da caridade,
que é a maior das virtudes, tira-se a justiça; e, por isso, no caso dos
problemas sociais (que envolvem o trabalho, o salário justo, e a
dignidade do trabalhador), essa justiça tem de ser tirada, e formulada,
e concretizada em corpo de doutrina, não sendo absolutamente
justi cável, como tão bem salientou Pio  , em Quadragesimo Anno,
que a ela se fuja, justamente em nome da caridade. “Como se a
caridade devesse encobrir a violação da justiça”.

A doutrina social da Igreja já existe; já está formulada e


magistralmente formulada; e não é difícil descobrir que está toda
edi cada sobre o Evangelho, e que guarda uma proporção com a
tradicional ascese cristã. Os instrumentos das boas obras, a prática do
jejum e da esmola, interceptam, no plano da ordem natural, uma
doutrina de distribuição e de digni cação dotada de necessária
largueza para não depender de vocações e de condições naturais
especializadas. Essa doutrina existe, é um instrumento prático
adequado a uma ação praticável. Mas a curiosa objeção que levantam
contra ela, pelo que tenho ouvido, é a de não ser uma nítida receita ou
um in exível plano de ação. Eu co pensando que muita gente
esperava de Leão  e de Pio  qualquer coisa como, por exemplo,
uma recomendação da policultura ou uma proibição do gado zebu. Ou
(quem sabe?) a cor de um uniforme e o gesto de uma saudação. Há
uma tendência hoje a se considerar prático unicamente o que é técnico
e mecanicamente delimitado; e diante de uma doutrina moral, que
entretanto prescreve coisas extremamente práticas, o homem ca
perplexo, decepcionado, sem saber o que fazer de um elemento
enorme que sobra: a sua liberdade, e a sua responsabilidade moral. E
como o papa não pode administrar o purgante que alivie a
humanidade, voltam-se muitos para outros salvadores que lhes sirvam
do óleo de rícino.

O 
Não se pode dizer, rigorosamente, que Chesterton tenha uma doutrina
social. Como já disse atrás, ele é mais um homem de idéias do que um
doutrinador, e o mérito de sua obra consiste na manipulação dessas
idéias, na organização particular e original dos argumentos, a serviço
da doutrina clássica. Seu distributismo não é mais do que a doutrina
social da Igreja apresentada de um modo chestertoniano,
caracterizando-se pela acentuação de certos pontos e não pelo
conteúdo. A idéia central é a da defesa da pequena propriedade e da
pequena empresa contra o gigantismo, que já no seu tempo ameaçava
a sociedade, e que no nosso tornou-se uma calamidade declarada.
A rmava o direito à posse, não como uma concessão, mas
ousadamente, como outorgado por Deus; admitia o capital enquanto
indispensável reserva, mas não admitia, de modo algum, o
capitalismo, porque a principal característica desse regime a seu ver
está na raridade e não na abundância do capital. O capitalismo é uma
situação em que quase ninguém tem o capital e em que quase ninguém
possui. Não são a existência e o uso do capital que constituem o
capitalismo, é antes a sua quase inexistência ou seu abuso. Por isso, nos
tempos de moço, teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de
capitalismo como impróprio e contraditório, propondo em seu lugar o
de pauperismo ou proletarismo já que sua principal conseqüência é
sem dúvida a difusão da miséria e do proletarismo escravizado. Mas
reconheceu que sua denominação dava lugar a certas confusões
quando se referia, por exemplo, ao pauperismo de Lord
Northumberland. Voltou à designação corrente; mas de vez em
quando, ao longo de sua obra, manifesta uma visível antipatia: “Eu não
gosto dessa palavra; é feia”.

O capital em si é inteiramente admissível, pertença ele a um só ou a


uma corporação, ao Estado ou a uma sociedade anônima; o capital, em
si, existirá sempre por uma razão extremamente simples: o ritmo da
produção não é igual ao ritmo do consumo. A economia privada
gasta-se numa lixa cotidiana e contínua, pois os homens comem,
vestem-se e moram todos os dias. A produção, ao contrário, tem
geralmente um ritmo mais largo, que no campo obedece às quatro
estações, e nas cidades, à organização industrial. Por isso, uma vez que
o homem gasta continuamente, e fabrica descontinuamente e em
prazo longo, torna-se inevitável o acúmulo de reservas, como nas
represas e nos açudes. Negar o capital como legítimo instrumento
equivale a negar o armazém, o estoque, o saco, a gaveta e o bolso.
Equivale a obturar todos esses buracos onde o homem, como a
formiga, guarda as reservas de seu trabalho. O que Chesterton
combate é o capitalismo, e combate-o por esse motivo que pode
parecer original: porque o capitalismo é, de fato, contrário à idéia de
posse. Considerando o capitalismo nas suas origens e causas,
estudando o ambiente do liberalismo e apreciando o fenômeno de
dissociação entre o conceito de posse e o de responsabilidade moral,
concluímos que o capitalismo foi gerado por um desregramento da
propriedade e da liberdade; mas tomando o fenômeno tal como hoje
se apresenta, considerando-o um fato, observamos que seu caráter
atual é heterogêneo com suas origens, o que não é de espantar,
tratando-se de um erro prático, que é necessariamente antinômico. O
capitalismo, inteiramente desabrochado, tornou-se um paradoxo em
relação às suas origens: a hipertro a da idéia de posse tornou-se uma
atro a; a livre competição degenerou em privilégio. À primeira vista
não parece existir privilégio, uma vez que a estrutura politicamente
democrática assegura a qualquer cidadão as mesmas oportunidades e
direitos de despojar os outros cidadãos. Na realidade esse julgamento é
falso e resulta de uma confusão entre democracia política e
democracia econômica. O privilégio é diferente daquele que distinguia
a nobreza da plebe, mas continua a ser um privilégio mais ou menos
análogo ao que distingue dos homens comuns um jogador de xadrez
excepcionalmente dotado. Estando o domínio da economia reduzido a
uma técnica ou uma arte, e não havendo nenhum compromisso moral,
o capitalista é qualquer coisa como um campeão de bilhar ou de
xadrez; é um especialista.

Não insisto na amoralidade ou na imoralidade dos processos que


permitem o vertiginoso enriquecimento, mas insisto na especialidade
técnica que faz do capitalista um privilegiado. Se o direito de posse é
um direito comum não pode ser um privilégio. Logo, o capitalismo,
como tal, de fato, é uma negação do direito à propriedade privada.
Talvez seja negativo o dom principal do moderno herói das nanças;
talvez seja simplesmente uma falta de escrúpulos; ou talvez seja uma
especial falta de imaginação. Um homem normal (e normalmente
dotado de escrúpulos e imaginação) ou recua diante de certas
situações, ou distrai-se apreciando o desenho de uma or; e basta esse
pequeno colapso em sua defesa para que o obstinado, que não recua
ou não se distrai, ponha um pé adiante e tome conta de um pequeno
pedaço dos três alqueires que o outro não soube guardar. Mas se
ganhar é uma técnica, o guardar é também uma arte em que nem
todos são capazes.

Eu disse acima que o capitalismo atual está em contradição com suas


origens e com a idéia de propriedade. A contradição vai ainda mais
longe e chega até o nível da psicologia de seus habilidosos campeões.
O capitalista hoje, sendo um dionisíaco, prende-se menos à
propriedade concreta do que à ação. O que ele quer acima de tudo é o
domínio sobre os homens, o poder conferido marginalmente por um
Estado ainda tolerante nessa matéria. Tivesse ele o apetite das coisas
concretas, o mal não seria tão grande, porque essas coisas encontram
seus limites mais depressa que o poder. Um homem não pode comer
muito mais do que um pobre; nem muito melhor. E o capitalista
moderno é geralmente sóbrio. O pobre, nos delírios de sua miséria,
imagina o ricaço com um enorme guardanapo no pescoço, a se fartar
das mais esquisitas iguarias; mas na verdade o milionário é um pobre
sujeito que tem uma dieta rigorosa e que vive de pílulas. Também não
pode morar em muitas casas nem sustentar um harém, porque os
incômodos que essas coisas trazem, cedo ou tarde, o impelem a um
esquema mais simples de duas ou três casas e de uma só mulher como
reserva clandestina, para não cair na excessiva simplicidade da
monogamia. O rico, em suma, é um homem de costumes muito mais
moderados do que alguns o ciais de gabinete ou subchefes de seção
nas repartições públicas. O capitalista moderno é um homem
empreendedor que muitas vezes acorda cedo, que quase sempre
trabalha pelo amor ao trabalho, e que tem a mística das realizações; e é
nisso que consiste sua insanidade e sua monstruosidade. O capitalista,
em poucas palavras, é um chefe de pequena república socialista
enquistada no corpo de uma nação.

O distributismo de Chesterton (que tinha por divisa, entre outras, a


fórmula rural que escolhi para título deste livro, cuja capa foi tirada de
um desenho do próprio Chesterton) combatia o capitalismo pelo que
esse regime tem de semelhante ao socialismo no que se refere ao
direito de propriedade e à dignidade humana. Chesterton pugnava
pela pequena propriedade e pela pequena empresa. Recomendava,
com grande escândalo de um jornal, que recusou um artigo seu a esse
respeito, o boicote sistemático dos grandes armazéns. E tomava como
sua uma palavra de Francis Bacon: “A propriedade é como o estrume,
só é boa quando espalhada”.

O
A campanha distributista iniciada por Chesterton encontrou na
Inglaterra de seu tempo, como encontrará aqui e em todos os tempos,
uma onda de objeções dos mais variados tipos convergindo
uniformemente para a mesma palavra condenatória: utopia. As duas
principais objeções, propostas por Shaw, consistiam no seguinte:
primeiro, a propriedade distribuída não caria distribuída muito
tempo porque necessariamente se tornaria desigual, dada a
desigualdade dos homens; segundo, a idéia era utópica e anacrônica,
porque corresponde a um padrão medieval de nitivamente
ultrapassado.

Chesterton responde à primeira objeção com grande vivacidade


dizendo não existir nenhuma tendência econômica natural que
determine o desaparecimento da pequena propriedade senão quando
ela se torna de fato pequena demais.

Se um homem tem cem acres e um outro só tem meio acre, é muito


pouco provável que este último consiga viver nesse meio acre. Haverá
então uma tendência econômica que o impelirá a vender sua terra
fazendo do outro homem o orgulhoso proprietário de cem acres e
meio. Mas se um homem tem trinta e outro tem quarenta, não há
tendência alguma que leve o primeiro a vender seu bem ao segundo.
É completamente falso dizer que o primeiro não se pode manter com
trinta e que o segundo não pode se contentar com quarenta. É um
completo absurdo; é o mesmo que dizer que um homem que possui
um bull terrier está obrigado a vendê-lo ao vizinho que possui um
mastiff. É o mesmo que dizer que eu não posso ter um cavalo porque
um vizinho excêntrico possui um elefante.

E ao cabo de uma argumentação prolongada, ele chega a uma


conclusão, cujo principal fundamento é uma inabalável con ança na
natureza humana.

O direito à propriedade é um ponto de honra. A palavra exatamente


contrária de propriedade é prostituição. E não se pode dizer que um
ente humano venderá sempre aquilo que é sagrado, nesse sentido de
propriedade íntima e privada, seja o corpo, ou as fronteiras de sua
terra. Alguns o fazem, mas fazendo-o cam sempre desclassi cados
em ambos os casos. Mas não é verdade que a maioria o faça; e quem o
a rmar é um ignorante — não de nossos planos e projetos, não das
visões e ideais que alguém acalente, não do distributismo ou da
divisão do capital por tais ou quais processos — é um ignorante dos
fatos da história e da substância da humanidade.

Quanto à segunda objeção, que diz respeito ao anacronismo de seu


ideal econômico, diz ele: “Eu mantenho o velho e místico dogma pelo
qual o que o Homem já fez, o Homem pode fazer. Meus críticos
parecem manter um dogma ainda mais místico, pelo qual o Homem
não pode fazer uma coisa porque já a fez um dia”. Devo entretanto
dizer que a resposta de Chesterton à primeira objeção não me parece
perfeita. Implicitamente está contido o elemento que faltou à
argumentação explícita. A verdade é que existe aquela tendência
econômica para o gigantismo, pela qual o dono do elefante acabaria
comprando o cavalo, o mastiff, o bull terrier, e mais animais houvesse
pela região. Existe, de fato, essa tendência, enquanto a economia se
enquadrar nos princípios do liberalismo, que separam o direito de
propriedade de uma noção de responsabilidade moral, isto é, enquanto
o campo econômico for considerado um domínio puramente técnico,
e portanto amoral. Como existe também, e ainda mais forte, a
tendência de absorver todos aqueles animais num grande instituto
zootécnico, quanto mais a economia se enquadrar nos princípios do
socialismo. A tendência, em qualquer dos casos, que são os casos reais
e atuais, é a de car o homem sem os seus bichos, sem a sua casa e, na
marcha em que vão as coisas, sem a mulher e os lhos. A única força
que se pode opor a essa força bruta e cega que aglutina a matéria e que
faz o câncer se dilatar, é a revolução moral, a restauração da
propriedade como base econômica da liberdade e da cidadania, mas
condicionada ao uso e ligada à responsabilidade moral. Na verdade, o
que Fulton Sheen diz explicitamente, traduzindo a doutrina o cial da
Igreja, Chesterton diz apenas de modo implícito, em brioso apelo à
humanidade do homem, deixando assim (por essa pequena falta de
precisão) o problema exposto aos seus adversários. E deixando
também a suposição de que ele está desejando a volta dos áureos
tempos do liberalismo, o que é inteiramente falso porque, embora
liberal em política prática, ele é um ardoroso adversário do liberalismo
losó co.
Quanto à segunda objeção, eu creio que a resposta é plenamente
satisfatória; mas também creio que é a mais chocante para o homem
moderno, porque não há idéia que encontre tão fácil acolhida quanto
essa, de supor que as coisas que foram feitas, foram necessariamente
ultrapassadas. A posição de nosso autor, nessa questão, é
especialmente corajosa, afrontando a opinião corrente no ponto que é
considerado um vértice da moderna sabedoria. No seu livro e
outline of sanity, no capítulo “e chance of recovery” ele desenvolve
uma argumentação para mostrar que certos passos atrás, certos
recuos, são tão razoáveis em História como na vida cotidiana ou nas
operações militares.

C  
A posição usualmente adotada pelos observadores que desejam
comparar esses dois monstros produz um erro de perspectiva muito
explicável. O observador entra no recinto em que os monstros são
expostos, e metendo-se no meio dos dois, conclui que se opõem,
simplesmente porque ele, observador, instalou-se num centro que a
bem dizer não era central. Bastará recuar um pouco ou procurar o
verdadeiro centro para descobrir que as semelhanças são muito
maiores do que as oposições. Diz por exemplo Fulton Sheen: “O
capitalismo insiste no direito à propriedade, mas esquece seu uso
social; o comunismo insiste no uso social, mas esquece os direitos da
pessoa”. A construção simétrica da frase indica claramente que o
observador já escolheu sua posição e tira conclusões de uma
perspectiva.

Pelas razões que já expus, o capitalismo, de fato, não insiste


absolutamente no direito à propriedade: ele explora uma bandeira que
já encontrou e vive à custa de um privilégio oposto ao direito de
propriedade. Qual é o defensor do capitalismo que insiste no direito de
propriedade? Com que voz fala o monstro? Chesterton mostrou com
muita nura que o monstro contraditório é mudo porque não tem o
que dizer.

Existe uma coisa que poderíamos chamar um distributismo ideal, se


bem que, nesse vale de lágrimas, não podemos esperar que o
distributismo seja ideal. No mesmo sentido, há certamente alguma
coisa que poderíamos chamar um comunismo ideal. Mas não existe
nada que se possa chamar capitalismo ideal, e não existe um ideal
capitalista. Como já observamos (se bem que não tenha sido isso
repetido como seria de desejar), todas as vezes que um capitalista se
torna um idealista, e principalmente quando se torna um
sentimental, ele fala sempre como um socialista.

O capitalismo é economicamente contraditório: baseia-se ao mesmo


tempo no lucro ilimitado, que empobrece o povo, e no elevado poder
aquisitivo dos mesmos miseráveis. Estrebucha na agonia lançando
mão da propaganda psicológica que é um bluff 34 grosseiro, porque se
gaba publicamente de ser um bluff; e nos últimos espasmos, não
dispondo de nenhum outro recurso para incentivar os operários a
trabalhar com salários mínimos, lança mão da eloqüência socialista e
invoca o testemunho da posteridade. Hoje, na fase que atravessamos,
duvido que exista um só milionário, um só capitalista que não tenha
feito seu pequeno discurso vermelho. O capitalista olha para o
monstro vizinho como quem busca recursos, como quem procura
imitar um ator de sucesso para ver se adquire um pouco de sua falada
sedução.

Aquela de nição de Fulton Sheen, segundo a qual o capitalismo


insiste no direito à propriedade, não convém ao capitalismo de fato.
Talvez seja aplicável à situação econômica do século  , ou à triste
alvorada do liberalismo. Na verdade, e principalmente no que se refere
à pessoa humana, o liberalismo foi o começo do desumanismo,
anárquico, confuso, eufórico; o capitalismo é o desumanismo quase
perfeito, mas ainda com certos elementos indecisos; o totalitarismo
fascista ou comunista é o desumanismo levado à suprema perfeição.
Isto, aliás, pode dar uma idéia de como um socialista vê o
capitalismo. O socialista vê o capitalismo com uma profunda irritação,
considerando-o seu adversário mais perigoso. E o mais perigoso,
porque mais facilmente o pode absorver; e mais irritante, porque mais
parecido. O que o socialismo mais detesta e mais combate no
capitalismo é a empírica anarquia com que esse regime mecaniza o
homem; é, digamos assim, um sentimento de sacrilégio que agita o
marxista, quando ele vê as imperfeitas centralizações da sociedade
capitalista. A relação entre o socialismo comunista e o capitalismo
pode ser comparada a um acorde de sétima em música. A
proximidade gera a dissonância; o quase produz a máxima
exasperação.

O marxismo é uma concepção técnica do universo; o capitalismo não


é propriamente concepção mas é um estado que produz uma gradativa
e irresistível aproximação de um tecnicismo total, ainda que guarde
uma irritante sobra de humanidade, sobra de caráter negativo e com o
odioso aspecto de um privilégio. O socialista, rigorosamente técnico e
ortodoxo, detesta no capitalismo essa sobra de humanidade, e não o
sinal negativo dessa sobra. O leitor que se julga socialista e que
discordar de mim — consciente de que sua indignação não é uma
mera indignação de maquinista, mas uma revolta moral, uma revolta
de homem — não é então socialista. É um equivocado; é um sujeito
como qualquer outro, como Chesterton e como eu.

O 
Diversos amigos, que partilham comigo o amor pela Igreja de Cristo e
o horror pelo capitalismo, pelo fato de estar mais ou menos divulgada
e aceita a oposição entre socialismo e capitalismo (que provém de uma
falsa perspectiva), vivem a procurar, ou o que seja cristãmente
admissível no socialismo, ou o que exista de mais socialmente
avançado no catolicismo. Num ponto eu dou razão a esses amigos. A
designação de socialista tornou-se vaga, e vagamente simpática na
suposição de signi car um interesse pelo pobre. Nesse caso eu
concordo inteiramente com o interesse real e vital de oferecer nossa
simpatia aos que padecem em nome da justiça. Poderia dizer,
parodiando Chesterton, que pouco me importa o nome que tenha a
loso a desses equivocados que se dizem socialistas mas estremecem
por uma virtude moral. Há entretanto um imenso perigo em não se
importar com os nomes das coisas: pode acontecer que na hora de
tomar uma decisão prática, no momento do maior calor de justiça, o
indivíduo entre numa porta cuja tabuleta ostente o nome que ele se
habituou a associar aos seus sonhos de um mundo melhor.

Há no homem um inveterado costume de acompanhar sinais simples:


bandeiras, estandartes, tabuletas ou cruzes. Um sinal pode ser um
sinal de vitória; uma tabuleta pintada pode ser vista numa tarde de
ardor socialista como uma bandeira multicor, onde todos os anseios
da humanidade estão condensados e misteriosamente simpli cados.
Além disso, outro inveterado costume do homem é o de contrair
costumes inveterados, isto é, de continuar o que começou, sendo el
ainda mesmo aos maus passos. Por isso, facilmente, o equívoco de
uma tabuleta pode ter conseqüências tão funestas como o equívoco de
uma escolha pouco re etida no casamento. A conclusão dessas
digressões é que não se deve jogar com a palavra socialismo e que não
se devem desprezar as de nições das coisas. O marxismo fala em
etapas em vez de dar de nições, e nega o primado da palavra, porque
sua arregimentação especula, exatamente, com essa tendência que o
homem tem de crer nas palavras.

Mas o ponto que mais me interessa agora, e para o qual invoquei


meus bons amigos, é outro; diz respeito a uma preocupação que eles
têm de mostrar que o catolicismo não é um aliado do capitalismo. Ou
melhor, diz respeito ao método que adotam a partir dessa
preocupação. Insistem nas restrições que nossa doutrina opõe à
propriedade privada e advogam a mais ampla possível socialização dos
meios de produção, ressalvando embora os objetos de uso próprio,
como o lápis, a roupa e talvez a casa. Ora, essa posição é
antidistributista, e ouso dizer, até onde posso ir, que não corresponde
perfeitamente à nossa doutrina. Eu pre ro dizer, para mostrar nossa
oposição ao capitalismo, que defendemos o direito da propriedade
privada, e que, por isso, somos anticapitalistas. Desejamos a difusão da
propriedade, e por isso somos anticapitalistas e anti-socialistas.
Batemo-nos pela propriedade, repetirei mil vezes depois de
Chesterton, mas pela pequena propriedade, isto é, por aquela que
tenha a medida do homem.

Na teoria de um de meus amigos deveríamos aderir corajosamente à


socialização dos meios de produção, ressalva feita dos objetos de uso
pessoal e com a compensação de ordem espiritual concretizada na
liberdade de imprensa, na liberdade de culto, no maior incentivo das
ciências e das artes. Ora, se buscarmos para esse problema uma
analogia com o ascetismo, concluiremos que é lícito abandonar as
coisas mais remotas para defender as mais próximas. A pobreza é um
atletismo. O abandono de bens distantes, o abandono individual,
pessoal, visa a maior perfeição individual e pessoal. (E se alguém
disser que o desejo de perfeição dos elementos de uma sociedade que
desejamos mais perfeita é uma forma de egoísmo, então eu nem
saberei responder, havendo certas objeções que são realmente
irrespondíveis). Voltando ao assunto da socialização, eu diria, de
modo ligeiramente diferente, que admitimos a socialização dos meios
de produção, de tal ou qual maneira, para consolidar a retaguarda da
propriedade privada. Não se trata de admitir um mínimo para
socializar um máximo, mas de socializar para assegurar esse mínimo.
O equilíbrio da socialização por meio de coisas chamadas espirituais
tem um certo sabor marxista; quanto a mim, nunca me consolaria se
perdesse minha casa numa cidade perfeita onde tivessem lugar os mais
famosos concertos do mundo. Ouso dizer que não a trocaria mesmo
pela liberdade de culto; porque se a perdesse, não por minha própria
incapacidade de guardar, mas por decreto, já me sentiria numa
babilônia e dentro de uma perseguição religiosa. Não há de fato
liberdade de culto onde não há liberdade de morar. Cada casa de
cristão é uma lial de Matriz.
O verdadeiro equilíbrio nesse problema que está traçado num plano
natural tem de ser encontrado nesse mesmo plano. Não me falem em
compensações espirituais porque eu estimo as leis da matéria, a boa
ordem natural e o verdadeiro primado do espírito, que deve abranger
todo o conjunto e não car como um braço de alavanca. O verdadeiro
equilíbrio da socialização de certas coisas, se por isso entendermos a
co-propriedade das organizações necessariamente grandes, só pode ser
obtido pela consolidação da pequena propriedade privada. Se a
socialização não visa esse ideal, se não se orienta toda para que cada
homem tenha sua casa, maior ou menor, se não tende a manter,
guardar e aumentar o domínio sobre as coisas e o direito de dar nome
aos seus animais domésticos, então, pelo amor de Deus, para que
servirá essa socialização? A idéia é esta: é um absurdo que um só
homem possua um serviço de bondes ou uma companhia telefônica;
porém, mais absurdo ainda, terrivelmente mais absurdo, é que um
homem não possua uma casa. E que não a possua (embora viva
sonhando com ela, e passe os domingos a riscar em papel
quadriculado plantas que nunca serão plantadas na boa terra que nos
foi dada) porque o homem que possui a companhia de bondes possui
também todas as casas. Vamos, pois, retirar ao homem dos bondes seu
ilegítimo bem, vamos despojá-lo dos apartamentos que aluga, vamos
entregar as coisas que sejam indivisíveis a um regime de co-
propriedade; mas vamos fazer isso, por bem ou por mal, para que
aquele outro homem que hoje passa os domingos a riscar fantasmas de
casas, vá um dia, num domingo, com a mulher e os lhos num local,
num chão, e possa apontar com a biqueira do guarda-chuva: “Aqui é o
quarto das crianças!”. De outro modo estamos todos doidos, a
desejarmos coisas que não são desejáveis e que não aproveitam a
ninguém.

Um banqueiro (e talvez alguns bancários), lendo estas páginas,


conceberá um superior desdém por todo esse debate, e mal verá a
enigmática diferença entre os dois enunciados da mesma questão. Há
uma superstição que atribui à loso a uma absoluta inutilidade
prática. Ora, não há nada mais prático do que uma loso a; não há
nada mais prático do que uma distinção. É pela força das distinções e
das boas de nições que tomamos um ônibus ou escolhemos um prato;
e é pela força e mérito de uma loso a prática que podemos conhecer
a boa tendência a ser transformada em ação prática, cada vez que a
contingência da vida e do convívio nos afrouxa um pouco os laços.
Com a fórmula do meu amigo, a tendência seria a da socialização; com
a minha, a tendência será a da propriedade privada, e distribuída. A
diferença será mais clara se dermos um exemplo: a equipe dos
socializadores andará pela cidade procurando o que há ainda para ser
socializado, tal como acontece com o sujeito que compra um pincel e
uma lata de tinta para fazer um retoque em casa, e ca subitamente
possuído pelo demônio da pintura, cuja tendência é o alastramento
inde nido. Ao contrário, a outra equipe, à qual desde já prometo meus
serviços, procurará saber o que não deve socializar. Já se vê que minha
tendência é centrípeta; a do meu amigo, centrífuga. E é isso o que lhe
censuro.

Chesterton manifestou, sempre que pôde, um acentuado horror pelo


gigantismo; eu professo horror igual, e com razões mais pessoais do
que ele, tendo experimentado na carne, nos olhos, na razão, na
memória, na vida, a insanidade de um Estado centralizador. Ele
conheceu o capitalismo; eu conheci o exótico socialismo que, uma vez
plantado, deu e vicejou nesta graciosa terra.

Mas devo reconhecer que um regime de co-propriedade (para evitar


a palavra socialização que me parece inseparável da idéia de ditadura)
será aplicável e bom em certas coisas, a m de consolidar outras. O
critério é muito simples. Há coisas naturalmente pequenas e coisas
naturalmente grandes. Um ponto de cigarros é um negócio
naturalmente pequeno, pois em dois metros por três, o negociante de
cigarros atinge uma perfeição de forma, tendo em número razoável
para a procura todas as marcas existentes. Um ponto de cigarros
monumental, com trezentos metros de fachada, não é mais perfeito
que o pequeno; não passa de uma porção de pequenos pontos que se
aglutinaram num só, perdendo a independência de forma; e em
conseqüência, o grande é menos perfeito que o pequeno. Já o mesmo
não se pode dizer de um serviço de bondes: seria inteiramente
extravagante pretender que cada um tivesse o seu bonde. Uma fábrica
de pregos, ou de rádios, ou de locomotivas, exige uma quantidade de
máquinas e uma organização só compreensível em ponto grande.
Cada coisa tem um tamanho adequado à sua natureza, assim como na
zoologia e mesmo na botânica; e a regra, para qualquer negócio
humano, é esta: quanto mais próximo estiver o seu tamanho do
tamanho do homem, mais adequado é esse tamanho e mais perfeita é
a forma. Mesmo no caso das fábricas de bondes ou de locomotivas, há
um limite justo, como para as baleias e para os elefantes. A concepção
industrial de nossos dias se baseia em duas idéias que não encontram
sustentáculo em nenhuma analogia natural ou sobrenatural, e que só
podem ser realizadas nos pesadelos. A primeira idéia é que uma coisa
é tanto melhor quanto maior; a segunda é que, entre as coisas a serem
feitas, deve-se começar pela maior. Qualquer psiquiatra dirá logo onde
é que orescem com um estuante e tropical esplendor essas duas
idéias. E qualquer canceroso sabe que não há vantagem nenhuma no
gigantismo.

O distributismo de Chesterton é uma campanha contra o gigantismo;


é uma terapêutica contra o câncer social. Ele insiste no valor social e
moral da pequena propriedade e do pequeno negócio, e na supremacia
do rural sobre o industrial. No trabalho agrícola, efetivamente, não há
nenhuma razão para aglomerar as pequenas propriedades numa
fazenda totalitária e monstruosa. Uma batata não é como o prego, um
objeto que passa por vinte ou trinta máquinas até chegar à seção de
embalagem. Um homem sozinho pode plantar batatas, literalmente ou
guradamente, mas só com enorme trabalho chegaria a fazer um
prego que sairia custando o preço de um martelo. É verdade que se
pode usar o mesmo raciocínio, e dizer que a aplicação das máquinas
agrícolas tornará também a batata muito mais barata. Pode-se dizer
isso, se quiserem, mas não é verdade. Ou pelo menos está muito longe
de ser tão justo como no caso do prego. Quem insiste muito na
socialização das terras e na mecanização do trabalho agrícola só o faz
por causa de sua loso a e da tendência que ela imprime a todos os
seus julgamentos, e não por causa da batata. O que ele quer é
socializar; assim como outros querem colecionar selos, jogar pôquer
ou impor uma ditadura.

Posso dar ainda um outro critério que me parece útil nesses


problemas. Se uma empresa qualquer pode ser dividida em partes
homogêneas, ela deve ser dividida; e está errada enquanto não for
dividida. O aspecto característico de uma fábrica é a falta de
homogeneidade entre as diferentes seções: aqui se fura, ali se forja,
acolá se pinta. E assim por diante. Ao contrário, o campo é uma coisa
fortemente homogênea: aqui, ali e acolá, a perder de vista, germina a
mesma semente. Logo, no campo pode ser realizado o verdadeiro
padrão de pequena propriedade. Não digo que nos limitemos a três
alqueires e uma vaca; mas digo que a fazenda ideal é aquela que
representa na terra a extensão de uma família. A fazenda ideal é aquela
que pai e lhos possam semear e colher. A propriedade rural é o
campo magnético de uma casa, é a aura que circunda uma mesa posta,
é o domínio que pode ser dominado.

O argumento dos gigantistas consiste em demonstrar com álgebra e


trigonometria que as mesmas máquinas e a mesma administração
podem servir em extensões enormes. É claro que um trator, andando
em linha reta, pode atravessar uma província entre um nascer e um
pôr de sol, mas na lavoura as máquinas andam em ziguezague,
procurando fazer o que os geômetras reputam impossível, isto é,
cobrir uma área com um sulco. Por isso, um trator já terá muito o que
fazer dentro de uma área pequena. Quanto à economia da
administração eu devo dizer que o argumento é simplesmente
estúpido, porque consiste em admitir que a administração não custa
nada, e que permanece a mesma quando cresce o número de
elementos. Ora, não só ela cresce como cresce numa razão mais forte
do que o número de elementos. Não fosse assim, o reino animal nos
proporcionaria exemplos estranhos: todos os animais cresceriam
inde nidamente para aproveitar os olhos, ou os ouvidos.

A conclusão a que desejo chegar, com Chesterton, é que a


propriedade rural é a última empresa a ser socializada, se alguma coisa
deve ser socializada. E essa era, certamente, a opinião dos kulaks.35

P  
Para melhor compreensão das idéias de Chesterton sobre a
distribuição da propriedade privada convém saber, com maior
precisão, como se inscrevem elas na doutrina católica. Pio  ,
celebrando o quadragésimo aniversário da Rerum Novarum de Leão
 , formulou o programa distributista: “A riqueza, constantemente
aumentada pelo progresso econômico e social, deve ser distribuída por
entre os vários indivíduos e classes de modo tal, que seja assim
alcançado o bem comum de todos”.

Mas, sendo conhecido somente este aspecto da questão, ou tomadas


as idéias de Chesterton isoladamente e fora da doutrina social da
Igreja, corre-se o risco de interpretar a defesa da propriedade privada
no sentido individualista. Ora, nem a Igreja nem Chesterton
esperaram a guerra de 39 e o desolador aspecto do mundo moderno
para compreender, em toda a extensão de suas conseqüências, o
horror do individualismo. Nossa doutrina da propriedade contém dois
termos que não podem ser separados, sob pena de cairmos no
liberalismo ou no totalitarismo. Para maior precisão losó ca,
tomemos em Jacques Maritain um resumo da doutrina tomista:

No que concerne à propriedade dos bens terrestres, Santo Tomás


ensina que, por um lado (e antes de tudo por causa das exigências da
personalidade humana, considerada como elaborando e trabalhando
a matéria, e submetendo-a à forma da razão), a apropriação dos bens
deve ser privada, sem o que a atividade fabricante da pessoa se
exerceria mal; mas, por outro lado (por causa da destinação primitiva
dos bens materiais à espécie humana, e da necessidade que cada
pessoa tem desses meios para poder se dirigir aos seus ns últimos),
o próprio uso dos bens individualmente apropriados deve servir ao
bem comum de todos. Quantum ad usum non debet homo habere res
exteriores ut proprias, sed ut communes. Esse segundo aspecto se
obnubilou completamente na época do individualismo liberal, e
pode-se pensar que a violenta reação do socialismo de Estado a que
hoje assistimos lembrará aos homens o que eles haviam esquecido: a
lei do uso comum.36

Mais adiante, na mesma página, acrescenta o lósofo do pluralismo


(que é uma fórmula análoga ao distributismo): “[...] o remédio contra
os abusos do individualismo no uso da propriedade deve ser
procurado, não na abolição da propriedade privada, mas, ao contrário,
na generalização, na popularização das proteções com que ela
guarnece a pessoa humana”.

Temos assim, do lado da pessoa humana, o imprescritível direito de


possuir: base econômica da liberdade segundo Fulton Sheen; ponto de
honra segundo Chesterton; mas, quanto à espécie humana, o uso deve
ser comum. Essa fórmula clássica, extensa e claramente ensinada nas
encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, pode dar a
impressão de incompatibilidade e contradição, por causa de dois erros
em que o pensador moderno incide com irresistível facilidade, ambos
provenientes de uma fadiga intelectual, que procura simpli cações
mutiladoras a qualquer preço.

O primeiro erro, mais grave e mais sutil, consiste em tomar a pessoa


humana como puro sinônimo de indivíduo no sentido que esse
vocábulo tem para um liberal. Essa distinção, pedra de toque do
humanismo de Maritain (que Chesterton não formulava como lósofo
mas sentia como poeta, como inglês, como homem e como cristão),
não pode ser feita aqui, extensamente, sem prejuízo da unidade deste
livro, admitindo a lisonjeira hipótese de que eu a soubesse conduzir de
um modo maritainiano (ou chestertoniano). Direi apenas que a pessoa
humana é uma realidade e um todo aberto, e intensamente permeável
às linhas de força da comunidade; ao contrário, o indivíduo, no
vocabulário do liberalismo, é um todo fechado, um microcosmos,
cujas únicas interferências sociais têm o caráter de disputa e
competição, ainda que adornadas com o nome de companheirismo.
Nesse sentido eu ouso dizer que o comunismo é o coroamento do
liberalismo, e que em nenhum outro regime o homem é mais
desoladamente individual, porque suas relações sociais têm apenas o
sentido de cooperação. A relação entre indivíduo e sociedade, tanto no
liberalismo como no comunismo, é de ordem puramente material; a
relação entre pessoa e sociedade compreende também o aspecto
material mas subordina-o a um primado do espírito pelo qual o bem
comum é homogêneo com a perfeição da pessoa. O homem, tal como
é, humano apesar de tudo, precisa de cooperação e de comunhão; e
assim, somente assim, os dois termos da fórmula deixam de ser
contraditórios e passam a ser complementares.

O segundo erro consiste em tomar a noção de propriedade dos bens


terrestres de um modo sumário, brutalmente simpli cado, sendo
também, como o anterior, um erro por indistinção. A esse respeito diz
Fulton Sheen: “Torna-se assim a personalidade o centro, em volta do
qual existe um certo número de zonas de propriedade, umas muito
próximas, outras muito distantes”.37 E mais adiante: “O direito à
propriedade privada não se aplica, portanto, igualmente a todas as
coisas; ao contrário, varia na razão direta da proximidade da pessoa;
[...] e quanto mais unidas estão as coisas à pessoa tanto mais profundo
é o direito de possuí-las [...]”.

A lei do uso comum, por conseguinte, obedecerá em sentido


contrário a essa mesma gradação. Pois bem, a mensagem de
Chesterton, escrita numa época em que o mundo oscilava entre o
pesadelo capitalista e o pesadelo socialista, visava mais especialmente a
defesa da pessoa humana e acentuava o profundo direito de possuir as
coisas próximas.

Há ainda uma distinção útil, nessa ordem de idéias, entre a


propriedade aplicada às fontes de produção e propriedade de fruição e
consumo, e eu creio que as palavras domínio e posse, que
correspondem a direitos outorgados ao homem desde sua criação,
servem para distinguir essas duas coisas. A primeira diz respeito ao
governo e à administração, política ou econômica; a segunda refere-se
ao uso nal, como por exemplo o livro que se lê, o pão que se come, a
casa em que se mora. Em ambos os casos, domínio ou posse, aplica-se
a mesma lei do uso comum e o mesmo direito à propriedade privada
com as necessárias gradações. Não é somente no uso nal que o objeto
se aproxima da pessoa: os meios de produção são também suscetíveis
dessa aproximação por meio das pequenas empresas, que para a
mentalidade moderna não passam de desprezíveis resíduos de um
ine ciente passado.

Pode-se dizer que os dois problemas extremos, em nossos dias, são


estes: a posse das coisas próximas, e o domínio das coisas distantes.
Chesterton se ocupa mais insistentemente do primeiro, Maritain trata
mais extensamente do segundo; mas os dois problemas se completam
e só podem ser resolvidos simultaneamente. Tratar o segundo
problema com a técnica socialista, imaginando que o primeiro será
necessária e automaticamente atendido, equivale praticamente a fazer
a experiência do liberalismo, em sentido contrário, sendo idêntico o
resultado no que se refere ao con ito entre a pessoa e a sociedade. O
individualismo, como toda desordem, é repugnante; mas o
totalitarismo, como toda falsa ordem, é muito mais repugnante. Há
certas coisas que devemos saber a priori, e uma das vergonhas de
nosso tempo está na incapacidade que muitos demonstraram para as
mais elementares previsões. Só perceberam a natureza e o cheiro da
substância quando o nariz se atolou nela. Só descobriram que a
centralização estatal era monstruosa quando faltaram carne, leite,
ovos, casa, água, e lugar nos ônibus.

Nossos avós tinham um sadio bom senso quando pensavam que o


Estado é sempre uma coisa estúpida, embora necessária e, até certo
ponto, respeitável. Erraram por um otimismo egoísta. Mas os
contemporâneos erraram de um modo muito mais grave, tendo
esquecido que o Estado é uma coisa estúpida, que só tem alguma
possibilidade de se conduzir na medida em que cada um lhe empreste
um pouco de seus olhos. Ao contrário, fecharam os olhos e deixaram o
monstro se locomover ao sabor da sua miopia e da sua pesada
estupidez.

O problema do uso comum na propriedade dos meios de produção é


o ponto perigoso; e tanto mais perigoso se torna, quanto mais se
amplia a empresa, porque dela emana um poder material tremendo,
facilmente usurpado pelo sombrio leviatã. E não podemos
absolutamente aceitar que a entrega ao Estado (ao estúpido Estado)
seja a única alternativa para a liquidação do capitalismo, que
consideramos um sagrado dever. A esse respeito, vale a pena
considerar uma medida que tem sido apontada, por socialistas e
católicos, como um salutar remédio em favor dos trabalhadores
oprimidos. Re ro-me à participação dos operários nos lucros das
empresas, e julgo-me capaz de demonstrar que isso constitui o mais
ardente ideal dos capitalistas de nossos dias. Ou melhor, sua
derradeira oportunidade.

Essa participação, antes de mais nada, é apenas uma parte de salário.


Variável ou não, melhor ou pior, anual ou semestral, essa cota é apenas
um acréscimo de salário, tendo a mesma natureza, sendo homogêneo
com ele; porque quem a recebe está desligado da responsabilidade da
empresa, da mesma maneira que o portador de apólices numa
sociedade anônima. Admitindo que a cota atinja dez ou vinte por
cento do salário que o trabalhador já recebe, ca dentro da margem de
imprecisão que tem a determinação de um salário e funcionará como
os descontos anunciados nas liquidações, dando ao capitalismo o
alento de mais alguns séculos. É claro que se deve reivindicar o salário
justo, mas também é claro que não se deve dar ao acréscimo um nome
que deixe supor uma natureza diferente. A participação que deve ser
reivindicada pelo trabalhador, e conseguida custe o que custar, é moral
e intelectual, da qual decorrerá a participação material. Diz Maritain:

Precisamente para estender a cada um, sob um modo adaptado, as


vantagens e garantias que a propriedade privada traz ao exercício da
personalidade, não é uma forma estatista ou comunista, mas uma
forma societária, que a propriedade deveria tomar na esfera
econômica industrial, de sorte que o regime da co-propriedade aí
tome o lugar, tanto quanto possível, do regime do salário; e que a
servidão imposta pela máquina seja compensada para a pessoa
humana pela participação da inteligência operária na gestão e na
direção da empresa.

A condição atual do trabalhador é defeituosa sob os seguintes pontos


de vista: ele frui pouquíssimo dos recursos criados e desenvolvidos
pelo gênio humano, comendo pouco, vestindo-se mal e morando
ainda pior; não participa da responsabilidade geral da empresa, sendo
portanto um desmoralizado; não participa da direção inteligente e vive
a fazer pedaços de coisas, sendo portanto um imbecilizado. E como
não se pode separar matéria e espírito, não se pode tratar somente do
primeiro problema deixando os outros para os bons dias de fartura.
Quando nós falamos em dignidade humana, é preciso que se saiba
claramente que reivindicamos, como primeiro artigo dessa dignidade,
a condição de andar o homem vestido e nutrido. E quando insistimos
numa participação total, sob o primado do espírito, queremos a rmar
que essa é a única maneira de resolver o problema do pão, do tomate,
do ovo, e de todas as coisas sobre as quais foi dado ao homem o direito
de posse e domínio. Se o operário conseguir um bom salário, sem a
participação moral e intelectual, continuará sendo escravo; e,
infalivelmente, voltará a ganhar o salário de miséria, logo que o
capitalismo ou o socialismo de Estado consolidem suas posições.

O desenvolvimento da técnica e das especializações trouxe para o


trabalhador moderno uma conseqüência que não tem sido
su cientemente encarecida: a mutilação da inteligência. O operário
antigo trabalhava num objeto inteiro, em cuja inteireza e unidade ele
encontrava um elo intelectual e afetivo com a sua humanidade. O
pequeno artesão de hoje, que o socialismo persegue implacavelmente
como os racistas perseguem pretos e judeus, ainda goza, nas suas
modestas catacumbas, a alegria de fazer uma coisa inteira. Mas o
operário das grandes indústrias faz uma peça de metal que deve
funcionar meses depois engatada noutra peça de metal, que por sua
vez se articula numa terceira, e que só nalmente, após uma cadeia de
mil intermediários, forma um objeto adequado ao homem. Passa
assim os dias a fazer e refazer um caco, uma forma pobre, uma forma
miserável, vivendo assim, antes de qualquer outra, a miséria da
inteligência que não se nutre na unidade. Tudo isso, dirão, parece
literário demais, losó co demais, mas o resultado prático é
terrivelmente prático e pode ser resumido numa palavra:
imbecilização. Não há homem que agüente esse regime: ou enlouquece
furioso ou enlouquece manso; e sua única defesa consiste em fazer mal
feito, porque então cam as mãos ou os pés na tarefa enquanto a
inteligência escapa pela imaginação e descansa num pequeno sonho
de subúrbio. Defende-se, desinteressando-se.

É claro que não desejo condenar a técnica, nem recomendar a


destruição das máquinas como zeram os antigos tecelões de
Manchester, seguindo um instinto muito no. Desejo, porém, duas
coisas razoáveis.

Com Maritain, desejo compensar a defeituosa posição do trabalhador


moderno com uma participação moral e inteligente; desejo que a
contabilidade, os programas, as encomendas, os preços, sejam
conhecidos pelos trabalhadores. Antes de participar dos lucros quero
conhecer esses lucros, e duvido que a exploração e a opressão
mantenham o atual desembaraço sob as vistas de mil olhos sem
escamas. Desejo que se acendam luzes nos subterrâneos dos negócios,
e que o arcano dos banqueiros seja arrombado por um povo justiceiro.

E, com Chesterton, desejo que a medida humana seja considerada


como sagrada em todas as coisas, inclusive numa fábrica de tamancos,
numa granja, num restaurante, num hospital; e que o pequeno
agricultor, o pequeno artesão, o pequeno negociante, sejam estimados
e respeitados. E desejo também, veementemente, que os imbecis sejam
chamados de imbecis, e que os loucos sejam reconduzidos aos
hospícios. E que o medonho gigante de dez cabeças seja deitado por
terra, transformado em estrume, e espalhado, dividido, distribuído,
para que o solo de três alqueires possa manter uma família, nutrida,
vestida, digni cada.
A 
Já três vezes vim a público para defender essa simples e antiga
instituição que é a casa do homem. Na primeira vez respondi a um
crítico literário recém-chegado da Europa, que atacara a pessoa e a
obra de François Mauriac, alegando, entre outras coisas, que aquele
romancista era um burguês bem-pensante porque tinha uma casa de
pedra; na segunda vez, defendi-me de uns moços alvoroçados pela
perspectiva de uma anistia geral (terminada numa senatoria), que
também me acusavam de ter uma casa; na terceira vez, defendi o
gênero humano inteiro, sou forçado a dizê-lo, contra um arquiteto de
renome, que desejou, pelas colunas de um suplemento, que mais
ninguém tivesse casa. Além disso, tenho um outro livro em meio
caminho, onde também tratei desse mesmo assunto, acidentalmente,
estimulado pela mesma onda de insanidade que faz do homem um
animal mais ridículo e menos racional que o castor. Vou repetir,
provavelmente, muita coisa, mesmo porque a defesa da casa é
necessariamente uma repetição; ou é a defesa da própria repetição.
Vou fazer, aliás, pela quarta vez, o que me proponho fazer, no domínio
prático, pelo resto de minha vida.

Para começar, desta vez, direi o que não é casa, mostrando as duas
alternativas que foram propostas nesse assunto e que me parecem
inaceitáveis. A primeira é de Nietzsche: ele me propõe um ninho na
árvore do porvir, e sugere que eu receba alimento do bico das águias.
Ora, a proposta imobiliária do grande poeta não me parece
conveniente. Eu quero uma casa sólida e não uma dançante mansão;
quero-a agora; e pre ro comer, pelas minhas próprias mãos, um trivial
feito pelas mãos de uma boa cozinheira.

E quem julgar que estou respondendo à poesia com argumentos


prosaicos está errado, pois estou, na verdade, me esforçando por
responder com poesia à loucura. O que é realmente poético é a casa, o
trivial, a cozinheira. Em matéria de águia, já me bastam as do Catete; e
quanto à árvore, lembro-me agora que recebi, faz tempo, cartas e
prospectos de um doido, que inventara a perfeita solução da casa
barata graças ao aproveitamento das árvores. Dizia ele que ter uma
árvore é ter meia casa; e a sua engenharia — plantas, cortes, fachadas
— tratava dessa outra metade. Examinei os projetos com a atenção que
toda loucura merece, e concluí que em todos os projetos,
invariavelmente, a árvore atrapalhava mais do que ajudava.

Creio pois que não é preciso insistir nessa primeira alternativa;


vejamos a segunda. Essa é a proposta daquele arquiteto a que já me
referi, na qual o discípulo de Le Corbusier exaltava as vantagens da
máquina de morar e anunciava para as gerações vindouras um
paradisíaco cortiço. Eu lamento e respeito profundamente os homens
que a contragosto moram nos cortiços; mas não respeito, e só posso
lamentar, os sujeitos que desejam entusiasticamente morar num
cortiço. E para que minhas razões quem claras, e despojadas de
qualquer ressaibo individualista, que eu considero entretanto razoável
porque ainda não se descobriu a dissociação do indivíduo, vou tentar
uma explicação da signi cação social da casa, da casa de família, da
casa casa.

Tomemos como ponto de partida (prosseguindo ainda nesse método


que aqui julgo necessário, de caminhar do negativo para o positivo) o
seguinte fenômeno, que me parece incontestável: uma sociedade não
funcionará bem, seja qual for o regime, se os inevitáveis componentes
individuais tiverem má vontade. Meu segundo postulado é o seguinte:
a sociedade, por si mesma, como tal, tomada no seu dinamismo
político e produtor, não dispõe de nenhum órgão capaz de segregar,
dirigir, compensar, regular, aquele precioso hormônio sem o qual tudo
anda para trás. Tecnicamente, mecanicamente, não é possível vencer a
rebeldia humana; pode-se, quando muito, e temporariamente,
anestesiar a vontade com certos processos que envolvem, numa feliz
combinação, um quantum de propaganda e outro de polícia; mas a
vontade anestesiada é a pior forma da má vontade. É em torno desse
ponto que se estabelece a oposição entre nossa loso a e a dos
comunistas, e não oculto que esses postulados, que estou expondo sem
discussão, são instantaneamente repelidos pelos socialistas da ditadura
do proletariado. Para eles a vontade anestesiada é a boa vontade; ou
mais rigorosamente, a vontade não existe como a entendemos. O que
eu chamo má vontade, simplesmente, para eles é um defeito
semelhante a um mau contato. Como, porém, não estou aqui numa
sabatina de bairro, para responder ponto por ponto, continuo meu
pensamento, el ao meu postulado. E o leitor poderá avaliar se o
conjunto corresponde ao que ele pensa como homem, às idéias que lhe
ocorrem quando conversa em casa com a mulher e os lhos, e não aos
preconceitos que ele tem quando discute política ou nanças em rodas
intelectuais.

Num enunciado mais positivo e mais simples, que não quis


apresentar logo para evitar interpretações sentimentais, diremos que a
virtude social por excelência, pela qual a sociedade poderá funcionar
em harmonia com as pessoas que a compõem, é a amizade civil, a
amicitia de Santo Tomás. A atmosfera respirável de uma cidade é essa
espécie de amizade, digamos assim, mais rarefeita, mas cuja natureza é
semelhante à profunda amizade dos amigos de infância e ao mais
profundo amor que une as pessoas da família. Ora, se a sociedade
precisa dessa substância, precisa, conseqüentemente, do lugar onde ela
seja preparada; assim como, se precisa de pão, precisa de padarias. E
esse lugar é a casa.

A casa de família é pois um viveiro de amizade; é o lugar onde se


elabora o fermento que o homem leva e espalha pela cidade, tornando-
a habitável. Trata-se pois de uma instituição muito útil, prosaicamente
útil, como um gasômetro ou como uma caixa d’água, e poeticamente
útil, como um ninho ou uma concha. Mas por que motivo faço eu
questão de uma casa casa? Por que motivo não pode, aquela preciosa
substância, ser preparada em qualquer lugar mais funcional e mais
técnico? Justamente porque é preciosa. Neste ponto eu faço um
veemente apelo aos cientistas: sejamos cientí cos; mantenhamo-nos
como observadores cientí cos, isto é, como homens que vêem as
coisas e registram cuidadosamente o que viram e o que as coisas são. E
pergunto: já terão notado os sábios que às vezes, em certas
circunstâncias especiais, um homem e uma mulher se amam? Já terá
observado o antropologista que sua copeira namora o chauffeur do seu
vizinho? Já terá notado o sociólogo que os namorados se escondem e
que mesmo os mais honestos preferem as sombras e os recantos? O
erro grotesco da sociologia contemporânea está nesse descaso pelos
fenômenos mais cientí cos porque mais comuns ao homem, em favor
dos fenômenos exóticos. O sociólogo preocupa-se com a dieta do
australiano ou com as armas de um patagão, mas não vê um casal que
passa de braço dado. Esse elo daquela “guirlanda de elos que atravessa
toda a velha alegoria do amor” escapa ao sociólogo. Esse é o
verdadeiro elo perdido, o missing link da sociologia moderna. Ora, o
amor existe. Os namorados se beijam e se abrigam, e quando eles
fazem isso honestamente, cumprindo um juramento e dispostos a
cumpri-lo durante toda a vida, estão traçando numa quadrícula
invisível, que só eles e Deus conhecem, a planta de uma casa. Essa é
minha idéia em sociologia. O amor em sua preparação obedece à lei de
todas as germinações: tem de ser elaborado escondido, enclausurado,
intimamente, entre quatro paredes, abrigado, protegido, fechado. Essa
é minha idéia em arquitetura. E dela eu tiro todas as conseqüências.

Agora, que já paguei o devido tributo à Cidade, apresentando o valor


da casa em função do interesse coletivo, permita-me o leitor que cuide
do aspecto complementar da questão. Vimos que o homem sai de
manhã como um semeador de amizade; vejamos agora que sentido
tem a casa para esse homem, à noite, quando ele volta do trabalho.
Esse assunto daria para um grande capítulo intitulado “A volta para
casa”.

Pensando bem, daria para oitenta volumes.

O primeiro volume dessa suma trataria da defesa da simples idéia da


volta em si, e conteria um cientí co e minucioso estudo da bárbara
superstição que atribui vantagem e nobreza à in exível trajetória
retilínea. O leitor decerto já observou que quase todo discurso
contendo o elogio de um morto inofensivo ou de um político perigoso
faz alusão à “conduta retilínea” do elogiado. Ora, eu pre ro, para mim
e para os meus, uma conduta curvilínea, porque já observei que a
maneira de andar sempre para a frente é característica dos cães
hidrófobos, dos capitalistas inescrupulosos e dos políticos desvairados.
Ir até o m, até as últimas conseqüências, até o m da linha, são
expressões que anunciam disposições inquietantes. O esquartejador
que recentemente agitou a opinião pública foi um indivíduo de
conduta retilínea: depois de assassinar precisou esconder o cadáver, e
como morava no centro da cidade, não podendo enterrá-lo,
esquartejou-o. Prosseguiu no seu in exível caminho.

Nessa ordem de idéias estou com Nietzsche sobre o valor da dança,


pois o dançarino é um homem que está sempre voltando. E eu pre ro
ser o mais desgracioso dos dançarinos a ser um esquartejador, um cão
hidrófobo ou um político vitorioso, que se gaba de sua obstinada
trajetória. A vida, a nal, não passa de uma dança, e tudo se reduz a
escolher a música e o compasso.

É verdade que em nosso vocabulário clássico existem as expressões


de reta conduta e reta razão; mas essas expressões foram inventadas
muito antes do cartesianismo e do evolucionismo e não têm nenhuma
conexão com guras geométricas. Ao contrário, o recuo e a volta são
muito praticados pelo homem de reta conduta. Somente um insensato
pode pensar que a volta seja degradante, a observação cotidiana
demonstrando que a maior parte dos acidentes de automóveis provêm
da cega lei de inércia, pela qual o veículo não possui nenhuma
tendência natural para sair da linha reta. Nietzsche, neste ponto como
em muitos outros, era incoerente, querendo estimar igualmente a
dança e o evolucionismo que é a menos dançante e a mais rígida das
loso as. O evolucionismo é uma doutrina pela qual o universo irá até
as últimas conseqüências, obstinadamente, como o esquartejador. Os
gênios das espécies vivem a esquartejar porcos e cavalos, e os
praticantes dessa esquisita religião são indivíduos que estão
impacientes por serem também esquartejados.

O segundo volume da minha série imaginária seria o


desenvolvimento daquela idéia de Chesterton: “O que o homem já fez,
pode tornar a fazer”, aplicando à História essa possibilidade de voltar,
categoricamente negada pelo evolucionismo, segundo o qual o
progresso do gênero humano consiste essencialmente em queimar
navios. A História é de fato irreversível, pois o que aconteceu não pode
ser considerado como não tendo acontecido. O que foi, não pode não
ter sido. Essa irreversibilidade, entretanto, é a força do passado e não a
sua fraqueza. Essa impossibilidade de destruir o que foi é que torna o
passado indestrutível, e portanto presente. O desejo de voltar, expresso
por Chesterton, não visa a reversão do tempo, mas a utilização de um
depósito. Não se trata de voltar às anquinhas e ao lampião de
querosene, mas de não perder os séculos como se não tivessem
passado, e sobretudo de não perder o que já se tinha conquistado. Não
se trata também de a rmar que todas as voltas sejam boas,
incondicionalmente, porque então teríamos uma trajetória retilínea
em sentido contrário.

O progresso humano, se alguma coisa merece esse nome, é uma


crescente e irreversível tomada de consciência, e é nesse plano que o
homem não pode voltar, porque, voltando, vira estátua de sal.

O terceiro volume escreveu-o Homero por mim: é a Odisséia, que


conta a acidentada história de uma longa volta para casa.

O quarto volume seria dedicado à lenda dos grandes aventureiros, e


nele tornaríamos a encontrar o bom inglês que, depois de uma longa
viagem e de terríveis aventuras, veio plantar o pavilhão britânico na
própria Inglaterra. Todas as grandes aventuras foram realmente
caminhos de volta. Cook voltou para casa passando pelos mares do
Pací co; Peary preferiu o trajeto mais fresco pelo Pólo Norte. E isso é
muito mais verdadeiro do que parece à primeira vista, porque aquilo
que incita à descoberta é qualquer coisa que ca para trás: é por
exemplo o clube, como na Volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio
Verne; ou é uma conversa, entre dois goles de chá, numa sala de um
Instituto Geográ co. Todo viajante audacioso se parece com o
paladino medieval que partia, animado pelo sorriso de uma dama, em
busca do talismã guardado pelo dragão. O Parsifal de Wagner voltou
no terceiro ato, e estou certo de que Nietzsche se irritou com essa
volta, tanto como com o pseudocristianismo da ópera.

Os aventureiros de todos os tempos deixaram para trás uma dama e


guardaram no coração uma promessa de volta. Uma das di culdades
técnicas da viagem à lua está exatamente na volta, a menos que o
aventureiro abra mão dessa condição e se torne um lunático. Mas os
viajantes sensatos querem sempre voltar, e essa força telúrica que
determina a curvatura de todas as expedições tem qualquer coisa de
feminino, como a dama dos cavaleiros andantes. A casa é feminina; é
uma dama. A volta é sempre a procura desse outro hemisfério da
humanidade, o eterno feminino, seja ele Kundry ou casa; seja ele casa
ou Igreja; seja ele a mãe dos homens ou a mãe de Deus. Os viajantes
ingleses tinham noção disso, instintivamente, e não será por mero
acaso que deram às suas naves um tratamento pessoal e feminino, em
vez de neutro. Navio, para o inglês, é ela; ela-mulher, she. Com esse
pequeno artifício de namorado, ele se lembrava constantemente que
devia voltar, e que o Oceano Pací co só muito acidentalmente podia
ser considerado um túmulo decente para um almirante inglês. O
inglês é o homem, entre todos os tipos e raças, que mais apreciou essa
coisa inaudita que é a volta para casa, e que, até em casa, sentia
saudades da casa: homesick at home. E foi por isso que construíram
um império. Seu próprio país é uma casa, e essa foi sua principal
vantagem sobre os nazistas. Sua ilha é um Home, e a enorme frota,
eriçada de canhões, de mastros e de antenas, que cercava e guardava a
ilha, recebeu de seus proprietários um nome doméstico: Home Fleet.
Eles exerciam um domínio sobre seus domínios e deram um nome ao
maior dos seus animais domésticos. Os fascistas escarneciam dos
ingleses, de sua resistência baseada num acaso geográ co e histórico,
de sua resistência sem méritos, da mesma maneira que outros
exprobaram a Mauriac a casa hereditária e a mim mesmo a casa que
ganhei. E eu co pensando que o Diabo, muitas vezes, esbarra nas
soleiras de nossas casas e ali ca rangendo os dentes e murmurando
um interminável argumento fascista: “Ora, a grande vantagem! Ele
tem uma casa...”.
Aliás, o desenvolvimento dessa irritação de todos os demônios diante
de uma porta marcada com o selo de Cristo caria reservado para os
três últimos volumes de minha série, formando um apocalipse. Aí
temos o dragão e a mulher; e essa Mulher é também uma casa como se
pode veri car nas ladainhas: Domus aurea, Turris eburnea... Na
verdade, nossa Igreja é uma Mulher, uma Casa, uma Ilha, um Navio,
Ela, She.

Agora, deixando de lado a fantástica enumeração de volumes, que já


se tornava fastidiosa, consideremos a volta para casa no seu aspecto
mais trivial e mais diretamente ligado à vida cotidiana. Servindo-nos
do mesmo método negativo adotado para descobrir a utilidade social
da casa, perguntemos o que é que o homem gasta na rua e que precisa
ser restaurado em casa. Na rua, no emprego, no convívio com os
companheiros de trabalho, o homem se fragmenta em funções. Aqui é
o passageiro, logo adiante o pedestre, mais tarde o dentista ou o
carpinteiro. Acidentalmente, num encontro de esquina, é um ex-
colega; nas bancadas é um companheiro; no barbeiro, um freguês; no
médico, uma cha. Visto do alto de uma sacada ditatorial, ele torna-se
um in nitésimo átomo social, uma célula, entre milhões, desse
monstro informe e uido, que hoje tem o nome de povo. Desde que sai
de casa, seu trajeto o expõe a todas as transmutações: vai mudando de
título, vai mudando de nome, e em algumas repartições mais e cientes
muda também de casaco. Nada existe no mundo que tanto mude e
transmude como um pobre cidadão. E o problema que se arma é o
seguinte: ou o homem é alguma coisa antes de servir para alguma
coisa; ou não é. Minha loso a a rma a primeira proposição quando
fala em pessoa humana e na sua dignidade; a loso a socialista a rma
a segunda. E, na minha loso a, é a casa que restitui ao homem o que
ele é.

Na rua, na função, o homem espalha a sua própria substância, gasta-


se no que é, a ige-se em sua unidade, sofre em sua liberdade; em casa,
todas as funções sociais, as maiores e as menores, cam no capacho da
entrada, e o homem que chega, que toma posse de seus domínios, é
um homem inteiro e livre. Em casa ele recupera, com o chinelo, a
personalidade e o nome de batismo. E ele precisa de todas essas coisas
para elaborar o fermento da amizade capaz de levedar uma cidade
verdadeiramente humana.

E aí está, completo, o ciclo dos dias e das noites, o ritmo em dois


tempos, que é a dança da vida e do amor, e que é também o ritmo dos
peregrinos. A casa é portanto o lugar onde o homem se torna o que é.
A casa é portanto uma clausura para aumento de liberdade e
reconquista da unidade. E daí eu tiro conseqüências sobre a natureza
do material e sobre a divisão das salas e dos quartos.

Cada um de nós, de um modo geral, está sujeito a se tornar um


espetáculo para o mundo. Essa situação, disputada avidamente por
uns, evitada angustiosamente por outros, é inseparável da vida.

Caído do bonde ou erguido nos pedestais da fama, na comédia ou na


vanglória, o homem é espetáculo dos homens. Mas em certos casos
especiais essa situação se agrava, devendo o sujeito car tão exposto e
tão visível que se torna necessário construir em volta dele um
an teatro, cando no centro do circo o palhaço ou o mártir. A Áurea
Legenda está cheia de casos em que os mártires serviram de palhaço,
mas conta também o caso de São Genésio, onde é o palhaço que serve
de mártir. Nossa Igreja, graças a Deus, é a Igreja dos Santos, e possui
uma coleção de personagens mais interessantes do que os católicos que
todos conhecem e que, em matéria de cruz, se agarram à dos
joalheiros. Nossos santos são ladrões, negociantes, reis, prostitutas,
papas e palhaços.

Ora, a casa é o lugar em que o homem deixa de ser espetáculo do


mundo, descansando a pele crestada pelas pupilas de fogo. É um
an teatro virado pelo avesso, onde o sujeito deixa de ser palhaço
municipal. Nela se esconde, para ver sem ser visto, um ente fabuloso: o
Homem Invisível.

Deve, por isso, ter paredes; e paredes opacas. Poderá dispensar o teto,
como na estranha cidade do Peru onde nunca chove; mas as paredes,
não. Sejam de pedra, como na casa de Mauriac; de madeira, como no
Paraná; de gelo, como nos pólos; de papel ou bambu, como no Japão;
sejam mesmo os panos utuantes das tendas nômades do deserto,
abrigando os amores ferozes dos califas: mas sejam paredes. Couraça,
véu ou ganga, a casa veste pesadamente, como abraço de mãe, a nudez
do samurai e do esquimó. Despido de suas paredes, o Homem
Invisível perde subitamente a força de seu encanto, e vira o pobre rei
de anedota, que estava nu, orgulhosamente nu, e que tomava a
surriada do mundo como estrepitosos sinais de sua glori cação.

Alguns naturalistas a rmam, com uma seriedade cômica, que o


homem, um belo dia, tendo descoberto as mãos, desceu da árvore e
resolveu correr mundo. Creio então que desde esse dia ele tomou
singular aversão pela árvore, porque só tornou a aparecer na mansão
de seus antepassados muito raramente. Fez casas em cima dos lagos,
no meio dos desertos, nas pedras dos montes. Morou em blocos de
gelo e disputou cavernas aos leões, mas a idéia de morar numa árvore
só reapareceu, recentemente, em Nietzsche, no Tarzã, e no projeto do
doido.

Essa aversão pela árvore está ligada a um estranho sentimento que


acompanha o homem através da história: a vontade de se esconder.
Para a compreensão do nexo entre esse sentimento e a insu ciência da
árvore devemos considerar dois momentos sem par na história
humana. No primeiro, retornando ainda uma vez ao paraíso terrestre,
no último dia (no dia da culpa), vemos os nossos primeiros pais
escondidos de Deus, atrás de uma árvore. Mas Deus chamou o homem
e disse-lhe: — Onde estás? — E ele respondeu:
— Ouvi a tua voz no jardim, e tive medo, porque estou nu; e escondi-
me. No outro momento, vamos encontrar a resposta de Deus a Adão,
quando ele mesmo, na pessoa de seu Filho, escolheu uma árvore para
car exposto ao escárnio dos soldados romanos. Nesse espantoso jogo
entre o homem e Deus, em que um se esconde, ou procura se
esconder, e o outro se expõe, pregado ao tronco sob um cartaz de
derrisão, há um resumo, uma terrível síntese, de todas as situações
vividas. Mostrar-se ou esconder-se; o que mostrar e o que esconder;
como mostrar e como esconder; tais são os pólos que orientam nossos
passos e em que freqüentemente nos enganamos. Quis o homem
ostentar sua glória e acabou esquivando-se atrás da árvore para
esconder sua vergonha; quis Deus ostentar nosso opróbrio em seu
opróbrio, para que nossa glória casse escondida em sua Glória.

A vida cristã inculca-nos o reto critério para o que se deve mostrar e


para o que se deve esconder, sendo relacionada com esse brinquedo de
chicote queimado a maior descoberta que um de nós pode fazer.
Torna-se santo quando descobre, realmente, vitalmente, que não pode
se esconder de Deus, e que deve se esconder em Deus: Onde ir longe
de Teu espírito ou fugir longe de Tua face?, diz o salmo 138. Uma só
coisa pedi ao Senhor, e esta desejo-o ardentemente: habitar na casa do
Senhor todos os dias da minha vida. Para gozar as delícias do Senhor e
meditá-las no seu templo. Porque ele me escondeu em sua morada
[...], diz o salmo 26.

Taís, a cortesã, também andou grandemente errada a respeito de


esconderijos, até o dia em que um santo eremita disfarçado bateu em
sua porta oferecendo-lhe uma moeda de prata. Tendo entrado no rico
aposento da sedutora, perguntou-lhe se não tinha um quarto mais
retirado. Ela conduziu-o, mostrando-lhe muitos outros, mas ele
repetia sempre que temia ser visto. Então disse-lhe Taís: “Eu tenho em
minha casa uma alcova onde ninguém pode entrar, mas se é a Deus
que temes, então não há lugar em que possas fugir ao seu olhar”. E
tendo feito essa descoberta, a cortesã distribuiu suas riquezas pelos
pobres e, obedecendo ao eremita, fechou-se num mosteiro, numa cela
murada, escondida do mundo, escondida em Deus. Escondida na luz,
segundo Dante.

As crianças também gostam de brincar de esconder, mas quando são


encontradas no perigoso esconderijo, correm a se abrigar no pique que
muitas vezes é o regaço da mãe. Ora, a casa, mais uma vez, se relaciona
com todos esses fenômenos que passam despercebidos à maioria dos
arquitetos e lósofos. É o lugar certo de se esconder. É um pique. É
também um regaço. É ainda a cela murada para a santi cação. O
abrigo do nu, como extensão de uma veste; ou então, se quiserem, a
veste é uma casa que o homem carrega, como um caracol.

Aí estão algumas boas razões para convencer que a casa deve ser
defendida. Tomei-as num monte de cinqüenta ou sessenta, ao acaso,
sem plani car uma conexão, con ante em que o próprio objeto ligaria
os argumentos. Vejo agora que foi bom terem saído essas razões
diversas e disparatadas, porque o depoimento se reforça quando as
testemunhas são muito diferentes. Concluo pois, enfaticamente, que a
casa é um ponto de honra e que, mais do que qualquer outra coisa,
serve para aquilatar uma civilização.

A cidade que não tenha casas para todos os seu habitantes ou não
tenha meios de transportes para facilitar a volta; ou cujos habitantes se
espalham pelas ruas porque não amam suas casas, ou não voltam
porque não querem voltar; ou não se revoltam somente porque não
sabem, ou não querem saber, que estão diminuídos, frustrados,
ofendidos; ou ainda por cima se alegram por não poderem voltar para
casa, e logo que voltam e engolem um sanduíche reviravoltam para a
rua, porque não têm como car em casa, não sabem car em casa, não
sabem o que é casa, não sabem mais o que são eles mesmos — essa
cidade não é uma cidade de homens livres; é um ajuntamento de
escravos.
S M, 
Vejo agora, um pouco tarde, que comecei escrevendo um livro sobre
Chesterton e acabei escrevendo um livro com Chesterton. Usei da
palavra exageradamente, com impertinência, misturando minhas
idéias às suas e pondo assim em risco a unidade do conjunto. Seja qual
for o resultado eu não oculto que senti um grande prazer em escrever
este livro, apesar das a ições naturais da paternidade: senti o prazer
das boas companhias. Durante quarenta dias conversamos. Muitas
vezes, noite adentro, parecia-me que ele queria saltar da janela que seu
retrato recorta na minha parede, e pôr-se em pé, agressivo, divertido,
enorme, andando de um lado para outro, como nos dias em que ditava
seus últimos livros a Miss Dorothy; ou então, parando pensativo,
depois de acender o charuto e de traçar com o fósforo no ar um
misterioso sinal — o sinal de sua vitória.

Conta Maisie Ward38 que nos últimos dias de vida, já desenganado,


ele ainda queria escrever um poema sobre São Martinho de Tours, que
no seu tempo fora um bom distributista, dando a um pobre a metade
de seu manto de soldado. Não chegou a escrever o poema. A pena que
o Padre Vicente beijou, depois de terem rezado juntos a Salve Rainha,
não chegou a louvar os méritos distributistas do grande santo.
Chesterton morreu do coração. Seus médicos descobriram que ele
tinha o coração pequeno! Este capítulo tem certa conexão com o
poema que Chesterton não escreveu. Até aqui, na defesa do direito de
posse, viemos recuando: passamos gradativamente da empresa
industrial para a empresa agrícola, da fazenda para a granja, da granja
para a casa, e agora estamos próximos do derradeiro bastião, onde
devemos travar um encarniçado combate. Entre o corpo do homem e
a pressão exercida pela tirania capitalista ou socialista resta-nos
somente o pano de uma veste. Trata-se de defender o direito de cada
um possuir sua roupa ou rasgar sua roupa, e é nessa frágil coisa
exterior que podemos recuperar as forças para salvar a dignidade
arriscada e reconquistar as posições perdidas.
A história do camponês venturoso, que causou inveja a um rei e que,
conforme se viu depois, não possuía uma camisa, é uma história
mentirosa e de mau gosto. É uma história inventada nos laboratórios
capitalistas e tirada da fácil moralidade: “A fortuna não traz felicidade”,
graças à qual o opressor ca à vontade, na situação quase heróica de
quem aceita para si os encargos malditos da abundância, deixando ao
pobre todas as vantagens espirituais da nudez e da fome.

A roupa é o último abrigo que lembra ao homem o paraíso perdido


que era, todo ele, uma veste magní ca, que circundava o corpo do
homem e obedecia à sua alma. Perdido esse estado, o homem viu que
estava nu, isto é, que seu corpo estava desligado das coisas exteriores e
em con ito com elas. Dizer que a roupa é uma simples proteção
natural contra a inclemência dos climas é desconhecer completamente
os dados mais triviais da história humana. O naturalista
verdadeiramente cientí co tem obrigação de se espantar diante do
fenômeno da indumentária, que atravessa idades e climas como uma
colorida lenda de disparates. Se eu desejasse fundar uma nova escola
evolucionista não diria que o homem é o macaco que um dia desceu
da árvore, mas o macaco que se vestiu. E daria um novo alento à
chamada lei biogenética, pela qual a ontogênese é uma repetição
abreviada da logênese; porque, em minha doutrina, a origem da
humanidade teria semelhanças com a origem de cada dia, visto que,
todas as manhãs, a nossa história quotidiana começa por uma vestição.
Esse ato é executado com uma naturalidade que escapa ao olho do
naturalista esquadrinhador de coisas exóticas. A roupa do homem é
um fenômeno como a queda dos corpos: é preciso ter um olhar lavado
e ingênuo, de verdadeiro cientista, para descobrir o que há de
extraordinário na queda de uma maçã ou na lembrança que os
homens têm de uma queda, por causa de uma maçã. O lósofo de
nossos tempos é um indivíduo fatigado e desprovido de um senso de
admiração. Lanço-lhe daqui um repto: feche-se no seu quarto de
dormir, estenda na cama suas calças e olhe para elas com atenção e
com a ingenuidade indispensável às grandes descobertas. Se ao cabo
de quinze minutos de contemplação desse fabuloso objeto o lósofo
não sentir a presença do mistério, é porque não é um verdadeiro
lósofo e está na iminência de não ser um verdadeiro homem.

A necessidade da roupa para cada um de nós é evidentemente


complexa, estendendo-se da proteção material até o desejo de
glori cação própria; mas na raiz da questão, a meu ver, está o anseio
de a rmar o domínio imediato e próximo sobre uma coisa exterior. O
selvagem que faz um colar de ossos, deixando o sexo descoberto, é um
caso limite que serve para mostrar que não são o pudor e a proteção as
causas principais da veste, mas a necessidade de a rmar o domínio
completo e profundo de uma coisa ligada à pele e aos músculos, que
acompanha os movimentos e que participa da vida do possuidor. O
objeto, posto em cima do corpo, está diretamente ligado à alma,
formando, por assim dizer, um elo de aliança entre o homem e a
Criação. Esse é o motivo mais profundo que encontramos no uso de
uma camisa; e também na prática da equitação. O cavalo que
montamos ampli ca o campo de ação de nossas potências e nos dá um
gosto do paraíso perdido. O pobre funcionário público, que nas férias
aluga um magro cavalo, obedecendo a um padrão convencional de
felicidade, de repente — num ângulo de estrada, sem que ninguém
possa explicar como e por quê — sente-se em contato com o autêntico
padrão de felicidade, como se uma nova e antiga seiva tomasse o lugar
do seu humilhado e ofendido sangue de pobre.

A roupa veste o corpo e a alma. O alfaiate, manejando o metro e o


giz, é um psicólogo prático, que faz agrimensura na alma de seu
cliente. Ele sabe que o cliente tem alma; ele sabe que o indivíduo tem
um mistério de personalidade que se espalha nas mangas e se demora
nos renitentes franzidos do casaco. O alfaiate sabe que o pano deve
obedecer ao coração num pacto muito íntimo, e toda sua humildade e
grande arte está empenhada em registrar com agulha e linha as
cláusulas dessa aliança. A roupa mal feita é incômoda e feia porque
foge, por pequenas e irritantes insubmissões, ao domínio do espírito.

Para o comunista o problema da roupa deve ser resolvido pelas


estatísticas, como nos quartéis. Tiram-se pernas e mangas de uma
curva de probabilidades, e o indivíduo, metido dentro dessa roupa, é
dominado por ela, submetido, e obrigado a ter uma alma de acordo
com as equações. Torna-se, em suma, um prisioneiro da roupa. Um
escravo.

Muito poderia dizer ainda sobre a roupa, mostrando que a idéia de


digni cação esteve sempre ligada a esse acréscimo do corpo onde os
mais variados elementos — bras, peles, penas, pedrarias e metais —
são chamados a glori car o rei da Criação; ou mostrando o sentido de
penitência e salvação que a tradição católica empresta ao pano dos
monges. Nas prescrições de Manu,39 nas roupagens terríveis dos pele-
vermelhas, no paramento, no burel e no cilício, encontramos
invariavelmente esse apego do homem a uma coisa exterior que o
vista, como vestido estava Adão de integridade e glória. E tão
acentuado é esse sentimento que, nas imagens e visões do Céu, as
túnicas resplandecentes, medidas e cortadas por angélicos alfaiates,
aparecem vestindo os corpos ressuscitados.

A roupa é, portanto, fora de qualquer dúvida, um objeto exemplar,


em que se aplica fortemente a idéia de posse. Mas então (surge-nos
essa di culdade), onde se deteve a lei do uso comum que
mencionamos atrás como indispensável complemento do direito à
propriedade privada? Fulton Sheen já nos prevenira que havia uma
gradação e que a profundidade e legitimidade da posse cresciam na
razão da proximidade da pessoa. Mas onde, a que distância, sofreu
essa lei em sua continuidade e suspendeu suas sanções? A roupa é
individual, se alguma coisa é individual. A roupa é pessoal. É verdade
que, já na casa de família, advogáramos o fechamento das portas, para
que em cada casa, como no cenáculo em que se reuniram os apóstolos,
a paz esteja conosco. Mas a casa de família, mesmo fechada, já abriga
uma pequena comunidade, onde a lei do uso comum encontra sua
melhor expressão. Além disso, a casa não é totalmente fechada,
constando em todas as tradições e principalmente na católica, o dever
em relação ao hóspede.
Mas no caso da roupa não parece existir nenhuma indicação
razoável, de qualquer natureza, para o uso comum. Dentro da casa
tudo é usado por todos, mas a roupa excetua-se. Por mais generoso
que seja um homem, a última coisa que empresta é o seu terno, e todos
conhecem a lírica relutância com que o lósofo da ópera se despede de
seu velho casaco. Ora, é nesse ponto que nos vale a lição de São
Martinho de Tours, que Chesterton queria celebrar em versos como o
perfeito exemplo de distributismo. Ele cortou seu manto com a espada
e deu a metade a um pobre, demonstrando, praticamente e
cabalmente, que a lei do uso comum, mesmo na roupa, mantém uma
soberana predominância sobre o direito de propriedade privada. Há
entretanto um pequeno reparo quanto à natureza dessa lei. Entre a co-
propriedade de uma fábrica e a co-propriedade de um manto, há uma
importante transição que vem completar a fórmula de Fulton Sheen,
enriquecendo-a de um conteúdo que a torna essencialmente diversa
de uma fórmula mecânica. Realmente, há duas gradações a observar à
medida que o objeto se aproxima da pessoa humana: a primeira diz
respeito àquela intensi cação da posse já mencionada; a segunda diz
respeito à natureza da virtude que determine o direito de guardar ou o
dever de dividir. À medida que se aproxima do homem, o objeto
mergulha na atmosfera da caridade, onde a lei do uso comum ganha
uma ênfase imprevista, espantosa, e deixa de ser lei, para ser aquilo
que nos liberta da lei. Mas assim mesmo, anárquico, transbordante,
desa ando qualquer formulação, o distributismo de São Martinho
guarda uma semelhança com o distributismo de Chesterton.

Ninguém, evidentemente, poderá exigir, em nome da justiça, essa


partilha de mantos; mas Deus, quando manda seus pobres pelos
caminhos, exige todas as partilhas e todas as portas abertas, em nome
de sua subversiva caridade. Caifás rasgou suas vestes para manifestar
que a Lei fora ofendida; São Martinho rasgou seu manto para
manifestar que a lei tinha sido ultrapassada, e que a vontade de Deus é,
em de nitivo, a única lei que pode tocar na roupa do homem e entrar
pelas casas adentro ainda que as portas estejam fechadas. Pois Deus
nos mostrou claramente a sua Justiça:
Ora, quando o Filho do homem vier na sua majestade e todos os
anjos com ele, sentar-se-á no trono de sua glória. E todas as nações
estando reunidas diante dele, separará umas das outras, como o
pastor separa as ovelhas dos bodes. E colocará as ovelhas à sua
direita, e os bodes à sua esquerda. E então o Rei dirá àqueles que
estão à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino
que vos foi preparado desde a origem do mundo. Porque eu tive
fome, e me destes de comer; eu tive sede, e me destes de beber; fui
estrangeiro, e me recebestes; nu, e me vestistes; doente, e me
visitastes; na prisão, e viestes ter comigo”. E então os justos lhe
responderão: “Senhor, quando vos vimos com fome, e vos demos de
comer; com sede, e vos demos de beber? Quando vos vimos como
estrangeiro, e vos recebemos; nu, e vos vestimos? Quando vos vimos
doente ou prisioneiro, e vos visitamos?”. E o Rei lhes responderá: “Em
verdade, eu vos digo, cada vez que o zestes ao menor de meus
irmãos, a mim o zestes”.

E foi por isso que Martinho, o jovem soldado de espada pronta para
os golpes da caridade, viu em sonhos, na noite daquele mesmo dia, o
Cristo vestido com a metade do seu manto; e foi por isso que se fez
monge.

O     



Agora está em jogo o direito de possuir o próprio corpo. Em nome da
lantropia, da higiene, de meia dúzia de virtudes e dúzia e meia de
ciências, alguém, nos dias de Chesterton, propôs o corte à máquina
dos cabelos das crianças pobres. O Estado vai tocar o corpo do
homem; vai tecer o primeiro festão da grinalda de opróbrios que
terminará mais tarde, nos campos nazistas, com a esterilização dos
judeus e a fecundação cientí ca das moças arianas. César aproxima-se
e reclama o que é de Deus. Chega-se, cheio de bons motivos,
cheirando a farmácia e a sociologia, e agitando no ar, com gesto
alvissareiro, as tesouras da lei. E toca no cabelo.

E Chesterton sabe que o cabelo não pode ser tocado; sabe que suas
pontas estão intensamente eletrizadas; e que todo o edifício da
civilização ruirá, se a lei tocar no cabelo do homem. Ele mesmo nos
dirá o que pensa disto. São suas,40 as últimas páginas deste livro. E se
tomei algumas liberdades na tradução e não me contive de interpolar
um trecho, ponha o leitor esses últimos abusos na conta das boas
intenções.

Não posso adivinhar qual será a impressão do leitor sobre a passagem


que vou transcrever. A minha, digo-a sem medo do ridículo, foi um
frêmito juvenil que fez remontarem lembranças de trinta e tantos anos
atrás, quando eu buscava nos romances de capa e espada a ama de
generosidade de que o mundo me parecia privado. Essas páginas de
Chesterton deram-me o que tinham de bom os quinze anos de idade.
Lendo-as, eu via na minha frente um cavaleiro, com a corpulência de
Porthos, com a sagacidade de Aramis e com a nobreza de Athos; e sua
espada amejante cobria o pequeno vulto encolhido de uma menina
de oito anos, de uma menina pobre, ruiva e sardenta, que os beleguins
técnicos de um duque queriam tosquiar; e ouvia o fragor da batalha, o
retinir dos golpes, e o praguejar franco e jovial dos tempos da merry
England.

Dias atrás, certos médicos e técnicos, licenciados pelas leis modernas


para ditar alvitres aos seus concidadãos mais andrajosos, emitiram
uma ordem para que todas as meninas tivessem cabelos cortados à
máquina. Quero dizer, todas as meninas pobres. É claro. Entre as
meninas ricas há diversos hábitos anti-higiênicos, mas os séculos
passarão antes que um desses doutores se lembre de usar autoridade
para os reprimir. No caso presente alegam que os pobres, estando
comprimidos e imprensados em tão fétido e sufocante submundo de
sordidez, não têm direito ao cabelo; pois nesse caso especí co, o do
pobre, cabelo quer dizer piolho. Aparentemente nunca lhes ocorreu a
idéia de suprimir o piolho, o que é possível. Como sempre acontece
na maioria das discussões modernas, o ponto silenciado é o eixo de
toda a questão. É claro para qualquer cristão (isto é, para um homem
de alma livre) que toda coação aplicada à lha do carroceiro deve ser
aplicada também à lha do ministro. Não perderei tempo em
perguntar por que não aplicam eles seus decretos às lhas dos
ministros. Não pergunto porque já sei. Eles não ousam. Mas qual é a
desculpa que apresentam, qual é o plausível argumento que invocam
para tosquiar as crianças pobres e não as ricas? Talvez aleguem que a
praga seja mais provável nos cabelos de gente pobre. Mas por quê?
Porque as crianças pobres estão obrigadas (contra todos os instintos
domésticos das classes trabalhadoras) a se apinharem em salas
apertadas sob um sistema de instrução pública desvairadamente
inócuo, e porque uma em quarenta tem piolhos. Mas por quê? Porque
o homem pobre vive tão oprimido, e comprimido, e deprimido, pelo
proprietário e pelo patrão, que sua mulher é também obrigada a se
alugar. Por conseguinte ela não tem tempo de olhar pelos lhos; e por
conseguinte, um em quarenta é sujo. Por causa de um proprietário
que está sentado em cima de seu estômago, e de um mestre-escola
que está sentado em cima de sua cabeça, o trabalhador não tem o
direito de ter uma lha de cabelos compridos, que serão
necessariamente descuidados por pobreza, infectados por
promiscuidade e nalmente abolidos por higiene. Ele tem garbo dos
cabelos de sua lha. Mas isso não importa: o médico sociológico
segue sua retilínea trajetória.

Quando uma crapulosa tirania empurra os homens para dentro da


imundície, a ponto de carem imundos os próprios cabelos, as
providências cientí cas são extremamente simples. Seria longo e
laborioso cortar as cabeças dos tiranos; é mais fácil cortar os cabelos
dos escravos. E nesse andar, se acontecer amanhã que as crianças
pobres chorem com dor de dente, perturbando um mestre-escola ou
exasperando algum delicado cavalheiro, será mais fácil extrair os
dentes do pobre; se são as unhas que estão sujas a ponto de causar
nojo, são as unhas que devem ser arrancadas; se é o nariz que se
mostra indecentemente encatarrado, corte-se o nariz. Assim, a
sionomia de nossos humildes concidadãos cará dia a dia mais
simpli cada.

Tudo isso é absurdo e demente, dirão. Mas não é mais absurdo e mais
demente, um só milímetro, do que essa cena real e legal: um médico
entra hoje na casa de um homem livre, cuja lha tem uma cabeça mais
limpa do que as ores dos campos, pelo santo mérito de sua mãe, e
ordena que lhe cortem os cabelos. Nunca lembrou a essa gente que a
lição dos piolhos apanhados nos cortiços é um defeito dos cortiços e
não dos cabelos. O cabelo, o mínimo que se pode dizer dele é que é
um bem de raiz; e, na verdade, é somente por essas instituições eternas
como o cabelo que podemos tirar uma prova dessas instituições
efêmeras, como um império. A casa em que não se pode entrar sem
que a trave do portal toque na cabeça, ou no cabelo, é uma casa mal
construída.

Um homem pode entregar voluntariamente os seus cabelos, e entre a


cabeça raspada de um escravo e a tonsura de um monge há um
abismo. O máximo e o mínimo dependem muitas vezes de um o de
cabelo, ou do o de barba com que nossos avós selavam um pacto de
honra. São Martinho, o bom distributista, certamente curvou sua
cabeça para receber a tonsura; e Santa Clara fugiu de casa para
abandonar nas mãos do pobrezinho de Assis o tesouro dourado de sua
beleza. O menor dos pobres pode entregar seus cabelos e sua vida, mas
o maior homem do maior dos impérios não tem mãos que cheguem
para receber essa dádiva. O cabelo é um bem de raiz. Faz do homem
um ser misterioso que carrega na cabeça, isto é, na parte do corpo que
é mais nítida e mais marcada, uma coisa rebelde como um mar e
confusa como uma oresta. Está quase fora do corpo; é uma espécie de
propriedade privada, de jardim privado, onde o dono exerce à vontade
sua fantasia e sua desordem. É qualquer coisa que cresce e que
transborda como se estivesse livre do domínio da alma, para lhe car
sujeito, novamente, como objeto de arte, pelo domínio das mãos.
Por isso o monge corre a entregar esse último supér uo para
defender seu último posto; e por isso, ninguém tem o direito de tocar
nesse último supér uo que defende o último posto de um homem
livre. Não se fazem frades e monges à força. O escravo de Deus é o
mais livre dos homens, e a pior coisa do mundo, contra a qual os
povos devem se levantar em unânime revolta, é a sinistra imitação do
monaquismo.

Mas a multidão hoje di cilmente se revolta; na verdade, a multidão


só se pode revoltar quando é conservadora, isto é, quando tem
alguma razão para querer voltar. É terrível pensá-lo, mas a maior
parte dos antigos golpes desferidos em nome da liberdade não podem
ser desferidos hoje, porque um eclipse cobriu os claros e populares
costumes de onde eles vieram. O insulto que pôs em impetuoso
movimento o martelo de Wat Tyler seria hoje chamado de exame
médico; o vexame que Virginius detestou e vingou, como insensata
escravidão, seria hoje louvado como amor livre; e o cruel escárnio de
Foulon para os pobres: “Deixa-os, que comam capim”, seria
interpretado como a última palavra de um idealista vegetariano. As
enormes tesouras da ciência que hoje podam cachos de cabelos nas
meninas pobres estão incessantemente, irresistivelmente, fechando a
dupla guilhotina sobre todas as pontas, franjas e excrescências que
ainda representam para o pobre um mínimo de arte e de honra.
Brevemente eles terão pescoços torcidos, para se adaptarem a coleiras
higiênicas; e pés talhados, para caberem em sapatos feitos segundo as
estatísticas. Não lhes ocorre, num fugaz relâmpago de saúde mental,
que o corpo é mais do que a roupa, que o sábado foi feito para o
homem, e que todas as instituições serão julgadas, condenadas e
relegadas para os infernos, pelo que deixem de se ajustar com
normalidade à carne e ao espírito. A prova que uma política normal
deve suportar, a mínima prova, é esta: o direito do homem de possuir
sua própria cabeça e seus próprios cabelos.

Tudo o que disse nessas últimas páginas, e talvez em todas as páginas


deste livro, resume-se em a rmar que podemos recomeçar, que
devemos recomeçar, e que devemos recomeçar tudo pela outra ponta.
Eu começo pelos cabelos da menina pobre. Isto, eu sei que é bom.
Que é bom, seja como for. Qualquer outra coisa poderá ser discutida e
considerada má; a satisfação de uma boa mãe pela beleza de sua lha é
boa. É uma dessas adamantinas ternuras que são a pedra de toque nas
épocas e nas raças. Se há por aí outras coisas que a isto se oponham,
essas outras coisas devem desaparecer; se os senhorios, as leis e a
ciência se opõem, os senhorios, as leis e as ciências devem desaparecer.
Eu começo pelos cabelos daquela menina ruiva que justamente vejo
passar...

Com os cabelos cor de fogo daquela menina eu faria um incêndio de


toda a orgulhosa civilização moderna. A menina deve car com seus
cabelos. Deve guardá-los. E, porque deve car com seus cabelos,
deverão ser cabelos limpos; e, porque devem ser limpos os cabelos da
menina, sua mãe deverá ser folgada e livre; e, porque deve a menina de
longos e limpos cabelos dourados ter mãe folgada e livre, deverão
desaparecer patrões e proprietários gananciosos; e, porque devem
desaparecer os patrões e proprietários gananciosos, deverá ser feita a
redistribuição da propriedade; e, porque deve ser feita a redistribuição
da propriedade, deverá ser desencadeada a Revolução.

A menina de cabelos cor de ouro e fogo não pode ser podada,


mutilada, simpli cada; sua cabeça não pode ser raspada como a de um
convicto. Não. Que todos os reinos da terra, antes disso, sejam
talhados e mutilados para que nela se ajustem; que todas as coroas que
não servirem em sua cabeça sejam quebradas; que todas as roupagens,
monumentos e palácios que não puderem se harmonizar com sua
glória sejam varridos do mundo. Sua mãe pode mandar que lhe
cortem o cabelo, pois isso vem da autoridade natural. Seu pai pode; é
claro. Mas o Imperador do Planeta não pode! Ela é uma imagem
humana e sagrada. Tudo que a sociedade construiu em volta dela
deverá estremecer, rachar-se, ruir — sejam sacudidos os pilares do
mundo; desabe em cima de nós com fragor a abóbada das idades —
mas não toquem num só o de seu cabelo.

1946.
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1 Referência ao mais notório agente duplo da Rússia, Yevno Fishelevich Azef, organizador de
assassinatos do Partido Socialista Revolucionário e espião da Okhrana, a polícia secreta
imperial. — ne

2 “Homem eterno”. — ne

3 Sexta-feira é um personagem do clássico de Daniel Defoe, Robinson Crusoé. — ne

4 Chesterton, St. Francis of Assisi. (Não deve ser lido na tradução brasileira!).

5 Ataque hábil e inesperado. — ne

6 A tradução de Chesterton é difícil, não somente por causa dos jogos de palavras e das
aliterações que têm importância secundária, mas sobretudo por causa da unidade de tom. A
linguagem humorística, como a poética, não é inteiramente transparente ao objeto; ela tem em
si mesma, ocluso nas palavras, o que pretende signi car. Raïssa Maritain estabeleceu em
Situation de la Poésie uma sutil distinção a esse respeito. O leitor deverá, de preferência,
procurar Chesterton no original. As traduções francesas são excelentes; a tradução portuguesa
de Orthodoxy, insípida e em alguns pontos inexata, é entretanto escrita em português; as
traduções brasileiras estão geralmente abaixo da crítica e não merecem comentários.

7 “O funileiro e o alfaiate, assim como o soldado e o marinheiro, requerem uma rígida


rapidez de ação”. G. K. Chesterton, O que há de errado com o mundo. Campinas, sp: Ecclesiae,
2019. — ne

8 “É apenas um velho cavalheiro que deseja ter parte no crime, não podendo ter parte nas
crenças. Deseja ser o perseguidor pela tortura sem a palma”. G. K. Chesterton, A barbárie de
Berlim. Tradução de Gustavo Corção. Acessado em https://amigocruz.blogspot.com/2013/01/a-
barbarie-de-berlim- chesterton.html, em 12/06/2020. — ne

9 “Bebês não-nascidos”. — ne

10 “Homem não prático”. — ne

11 “Somente”, “sem mais”. — ne

12 “Outra pessoa”. — ne

13 Hospício, perto de Londres.

14 “Ignoraremos”. — ne

15 Jacques Maritain, Sept Leçons sur l’être.


16 Gabriel Marcel, Le Monde Cassé, seguido de Position et Approches Concrètes du Mystère
Ontologique.

17 “Um problema que invade seus próprios dados”. — ne

18 Salmo 103.

19 “Tornar-se”. — ne

20 “Uma menina muito pequena” ou “uma menininha”. — ne

21 Estado confusional caracterizado por agitação, confusão mental e alucinações, que


acomete o dependente de álcool em abstinência. — ne

22 “Sobre ‘vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais’”; tradução de Fernando Pessoa. —


ne

23 “A verdade não é a beleza”. — ne

24 “Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste”; tradução de Fernando Pessoa. —
ne

25 “Tom central”. — ne

26 “Nunca mais”; tradução de Fernando Pessoa. — ne

27 Encontrei em Mallarmé (Les poèmes de Edgar Poe) a seguinte informação: “En discutant
du Corbeau (écrit Mme. Suzan Achard Wirds à M. William Gill) M. Poe m’assura que la
relation par lui publiée de la méthode de composition de cette oeuvre n’avait rien d’authentique;
et qu’il n’avait pas compté qu’on lui accordât ce caractère. L’idée lui vint, suggérée par les
commentaires et les investigations des critiques, que le poème aurait pu être ainsi composé. Il
avait em conséquence produit cette relation, simplement à titre d’expérience ingenieuse. Cela
l’avait amusé et surpris de la voir si promptement acceptée comme une declaration faite bona
de”. Eu mantenho, entretanto, minha interpretação porque o texto em questão está na mesma
linha de todos os trabalhos de Poe sobre a loso a da arte, e não creio, nem consta de nenhum
documento, que todo esse trabalho tenha sido uma misti cação ou um puro divertimento.

28 Em e Superstition of Divorce.

29 Como eram denominados os que tomavam parte na Revolução Francesa. — ne

30 Pogrom: perseguição a determinado grupo étnico ou religioso apoiada ou tolerada pelas


autoridades locais. — ne

31 Em 1916, durante a primeira grande guerra.

32 Conjunto de qualidades morais no mundo latino, semelhante à areté para os gregos. — ne

33 O Carlton Club é um dos principais clubes de Londres restritos a membros. Era a sede do
Partido Conservador antes do surgimento do Escritório Central Conservador. — ne
34 Blefe, ngimento, farsa. — ne

35 Os kulaks eram camponeses prósperos e donos de extensas fazendas no Império Russo,


que empregavam trabalho assalariado em suas atividades. — ne

36 Jacques Maritain, Humanisme Integral.

37 Fulton Sheen, O problema da liberdade.

38 Maisie Ward, Gilbert Keith Chesterton. Sheed and Ward.

39 O Código de Manu constitui a legislação do mundo indiano e determina o sistema de


castas na sociedade hindu. — ne

40 What’s Wrong With the World, “Conclusion”.

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