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Três Alqueires e Uma Vaca Gustavo Corção
Três Alqueires e Uma Vaca Gustavo Corção
Gustavo Corção
7ª edição — setembro de 2020 — CEDET
Copyright © 2019 Herdeiros de Gustavo Corção
1ª edição: Três alqueires e uma vaca. Agir, 1946.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro ssional e Tecnológico
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Editor:
omaz Perroni
Assistente editorial:
Verônica van Wijk Rezende
Revisão:
Paulo Rodrigues (in memoriam)
Preparação de texto:
Verônica van Wijk Rezende
Diagramação:
Mariana Kunii
Capa:
Vicente Pessôa
Ilustração da capa:
G. K. Chesterton, ca. 1930.
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Corção, Gustavo.
Três alqueires e uma vaca / Gustavo Corção — Campinas, sp: Vide Editorial, 2020.
isbn: 978-65-87138-06-0
1. Ensaios. 2. Literatura brasileira.
I. Gustavo Corção II. Título
cdd — 864 / B869
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Ensaios — 864
2. Literatura brasileira — B869
Um grande escritor
Re exões inúteis sobre escritores inúteis
O falso e o genuíno
Há um enigma em cada carta
Há uma carta em cada livro
Ecce homo
O homem que não quis uma ilha
Re exões sobre a quantidade
A variedade na unidade
Uma aparição e uma objeção
Pés e polegadas
Acrobata do bom senso
O paradoxo contra o lugar-comum
O combate e o con ito
PARTE II: O
Campeão de idéias
Três ou quatro capítulos omitidos
A coroa de idéias
Um bom parceiro
Idéias e doutrina
Três idéias e três damas
PARTE III: P ...
Apolo
Dionysos
O mistério
O difícil torna-se fácil
Uma quadrilha de ladrões
A primeira vez
A monotonia
O mistério da infância
O crime
Um gigante de duas cabeças
Uma restrição
A casa do mistério
PARTE IV: P ...
O bárbaro
O esperto
Ditadura e divórcio
A história da astúcia
A lei da memória
A superstição do juramento
A história do juramento
O contrato
Diálogo sem princípio nem m
Carta expressa sobre o vínculo conjugal
Democracia e tradição
PARTE V: P ...
O paraíso terrestre
O herdeiro
O asceta
O distributismo
Objeções
Capitalismo e socialismo
O gigantismo
Propriedade e uso
A casa
São Martinho, distributista
O direito de possuir os próprios cabelos
N R
À minha mãe
PARTE I: O
C
Tu o colocaste logo abaixo dos anjos.
— Salmo 20
U
Não me lembro de ter notado, em 1936, a repercussão produzida pelo desaparecimento dessa
grande gura do pensamento moderno que foi Gilbert Keith Chesterton. Naquele tempo, é
verdade, um luto próximo trazia-me desinteressado dos acontecimentos literários e das
mortes distantes; devo assinalar, todavia, que ocorreu nesse tempo, exatamente na época de
seu desaparecimento, o meu primeiro encontro com sua obra, começando então a viver para
mim a voz poderosa e cordial, que durante meio século vivi cara uma civilização adoentada,
com um riso salubre e com um atlético bom senso. Não dei pelo seu desaparecimento, mas
senti, com a impetuosa evidência de uma janela aberta, o seu aparecimento. E creio que esse
fato, que para mim teve tamanha importância e se revestiu de tão nítido contraste, vem se
processando de modo análogo em relação ao mundo inteiro: Chesterton está crescendo. O
mundo que o perdeu não avaliou a justa medida do que perdia; agora, os que o encontram
começam a se admirar com o que encontraram.
Chesterton é, efetivamente, um grande escritor. Receio que esta simples frase nada diga ao
leitor, que mil vezes já a viu aplicada, ou como revelação de escritores que aparecem, ou como
elogio fúnebre dos que desaparecem. As admirações estão cansadas. Precisamos instalar
ampli cadores no estilo para conseguir um pequeno movimento de solicitude e de interesse;
ou então, se não gostamos de descomedimentos, devemos tentar a frase em outra ordem, na
esperança de dar às palavras um novo ânimo. Direi, pois, que Chesterton é um escritor
grande.
Sua grandeza é extensa e intensa: extensa, pela enorme área de assuntos que sua obra cobriu;
intensa pela força, pela viril energia com que aderiu, em todos os pontos, com violência, com
infatigável con ança, aos princípios básicos sobre os quais repousam os destinos do gênero
humano. Chesterton, no mais exato sentido, é um escritor. Tenho como certo que não há vidas
inúteis, mas tenho como certíssimo que a maior parte dos livros são inúteis, no sentido mais
duro e mais triste do termo. Não há vidas inúteis: a mais obscura, que ainda traga aceso e
quente o mais malogrado coração, é ainda um bem inestimável e insubstituível, único no
gênero, necessário à harmonia do universo. A vida daquele homem que passa com um cesto
de legumes na cabeça é — talvez ele não saiba — uma coisa cobiçada! A vida mais amena
daquele outro que pisa o arranco do automóvel — ele talvez já o tenha esquecido — é
disputada em áspera luta entre os arcanjos.
Não há vidas insigni cantes; mas há escritores insigni cantes, escritores cujas obras pouco
ou nada signi cam. E quando digo que Chesterton é um escritor, quero a ançar que sua obra
tem um sentido, ocupa um lugar, representa um papel, pesa, funciona. Quero dizer, em poucas
palavras, que a inteligência que se interesse, hoje, por entrar em contato com as realidades
mais signi cativas da cultura universal, que deseje vivamente estar inserida nesse hoje do
mundo, não pode deixar de lado, como peça meramente acessória, e quiçá inútil, a imensa
obra de Gilbert Keith Chesterton.
R
As obras escritas, em todos os muitos gêneros, são em grande parte meros acidentes, ondas
fortuitas, que não chegam a car incorporadas, realmente incorporadas, nessa pirâmide das
grandes ofertas que o homem faz ao homem. Se não tiram, também não acrescentam.
Formam depósitos secundários de que vivem os livreiros e as traças. Funcionam como os
assuntos do dia, escândalos ou banquetes, não chegando a ser propriamente obras, mas
acontecimentos. Entram no calendário, nos salões, nas colunas da crítica e muitas vezes nas
academias, mas não aderem ao compacto e concreto mundo da verdade. Têm a natureza dos
passos de dança de que nem o chão guarda memória, ou a semelhança do palito que só
entretém um breve e subalterno contato com o alimento.
Há escritores (ai de nós!) cujo maior título é uma pontualidade ou uma atitude: estar
escrevendo. Vivem num particípio presente que não participa de um presente. Estão na
literatura como os generais na ativa. Reformados, vai-se-lhes o prestígio; mortos, ca um
registro nos almanaques e outro na sepultura. Há no mundo dois mundos, um de pedra e
outro de neblina: geologia e meteorologia. Na literatura há também montanhas e brisas. Os
livros que encontramos são, na maior parte, como as correntes de ar; e sua leitura tem a
brevidade e o enfado de uma gripe. Leu-se; sofreu-se; acabou-se.
O
Esta divisão um pouco sumária, e talvez cândida demais, entre bons e maus livros, deve ser
esclarecida e subordinada a um critério para que o leitor não a interprete mal. Antes de mais
nada afasto qualquer idéia moralista; depois ponho também de lado o nível literário, isto é, a
aristocrática demarcação entre as obras requintadas e as mais rústicas e populares.
Quando falo em livros que pesam, e me lamento dos que não pesam, quero me referir a uma
distinção mais delicada — ou talvez mais brutal — do que aquela que geralmente se estabelece
entre um bom e um mau bife, entre o casaco bem-feito e um outro de mau pano ou defeituosa
costura. Essas serão, na acepção aqui adotada, avaliações puramente adjetivas. Têm
incontestável importância, sem dúvida, e cada dia maior, porque um dos aspectos mais tristes
da política moderna ou das mais recentes concepções de vida é certamente a degradação geral
das qualidades. A distinção que investigo, entretanto, é mais interior à natureza das coisas. Um
mau bife ainda é um bife; um mau casaco ainda veste.
Será então a verdade, ou a exatidão, do conteúdo de um livro o critério que estou buscando?
Será, por exemplo, o fato de ter sido Chesterton um católico, e portanto verdadeiro na medida
em que foi ortodoxo, o que constitui o primeiro título positivo de sua obra, e o que me
permite considerá-lo um grande escritor? Ouso dizer que não é isso. Um livro pode ser grande
e digno de interesse mesmo quando escrito contra a verdade. Estarei mais próximo, mais
quente, se disser que o primeiro divisor das obras humanas, de onde se tira a condição
primeira e eliminatória, não é tanto a verdade nelas contida, mas a sua ligação com a verdade.
Com amor ou com ódio, acerto ou desacerto, o primeiro traço sionômico de uma obra
humana deve ser a sua humanidade. Deve ser a conexão vital e real com as coisas do homem,
sua invencível tendência, colérica ou cordial, para tudo que nos toque na carne e no sangue.
Esse é o sinal que umas obras possuem e outras não. Sinal de participação na concórdia ou no
combate; notícia boa ou má (a ser veri cado logo depois), verdadeira ou falsa (a ser
cuidadosamente examinado); mas notícia que me faça pensar: “Isto é comigo”.
Antes de qualquer averiguação posterior, eu quero saber se o livro está escrito num idioma
terrestre, uma vez que os problemas selenitas ou marcianos só me interessam na medida,
remotamente provável, em que me possam dar algumas das soluções perdidas ou esquecidas
dos nossos próprios problemas. Tornou-se moda, hoje, ser antiindividualista,
antimatrimonial, anticaseiro, antibairrista, e antipatriota; mas ainda não houve lósofo, creio
eu, que desdobrasse a bandeira antiterrestre em nome de um internacionalismo sideral.
Apeguemo-nos pois ao planeta; à terra; ao barro; ao homem.
Para dar mais nitidez à distinção pesquisada, direi que há duas grandes classes de autores
separadas por um abismo: os genuínos (melhores ou piores) e os falsi cados. Os primeiros
andam na grande linha que liga as origens aos destinos do homem, para acertar ou errar, para
blasfemar ou louvar; andam no encalço de uma pista, curvados, com paciência ou em delírio,
atentos às inúmeras e perturbadoras marcas deixadas pelos pés humanos. Os outros são
imitadores de gestos, índios de opereta, e pouco lhes importa que exista uma tribo amiga ou
que estejam acampados, além, numa clareira escondida, os sangüinários inimigos.
O primeiro sinal que um leitor prevenido deve procurar num livro, a meu ver, é o da
autenticidade. Antes de qualquer avaliação nal, antes de uma colocação mais rme, importa
distinguir se a obra vem das profundezas de um sujeito ou das meras superfícies, que apenas
espelham os gestos dos outros. O que importa, na voz de um livro, é que seja uma voz de
homem, e que as palavras dessa voz estejam ligadas à lenda desse rei que cada es nge de
esquina tenta devorar. O que importa, em suma, é que a obra seja uma Mensagem.
H
Suponha o leitor que eu tenha encontrado em cima da mesa um papel com os seguintes sinais:
“asdx...jhkloda:cjkjhgfdslkjeto&umadoigdt...” Conforme o humor ou as circunstâncias,
formularei hipóteses diferentes. A mais romanesca consistirá em supor uma mensagem
cifrada, contendo ameaças de uma sociedade secreta ou a notícia de um tesouro enterrado.
Nesse caso, eu terei um interesse febril em decifrar a mensagem, pois sempre tive grande
atração pelos enigmas. Em menino, lembro-me bem, quei com a respiração suspensa quando
deparei o criptograma achado pelo aventureiro de Júlio Verne no Alto Amazonas. Haverá
quem não se emocione diante de um segredo? O enigma tem qualquer coisa de germinal: o
arcano é o agasalho de uma verdade nascente, é um ninho escondido, uma semente sepultada.
Consta que Galileu guardou em palavras enigmáticas a descoberta dos anéis de Saturno. À
primeira vista, o orentino estaria se precavendo contra as severidades eclesiásticas; mas essa
explicação não suporta a análise porque o mesmo Galileu não pôs em cifra, ao contrário
publicou-a, sua duvidosa exegese de textos bíblicos que interessava à Inquisição de modo mais
vivo do que os anéis de Saturno. Para mim, Galileu, como tantos outros, estava simplesmente
escondendo; ou então, plantando. Escondia na terra, como qualquer criança, que ainda tenha
dois palmos de quintal, costuma fazer com pedaços de boneca. Sentia que estava no limiar de
uma ciência, e sabia, como todos sabemos, que as grandes coisas nascem de uma semente de
mostarda.
O enigma é uma grande coisa. Agora é em enigma que vemos, diz São Paulo. Por isso, o fato
de encontrar mensagem tão bizarra como a que acima mencionei (ou como alguns versos de
Claudel ou Rimbaud), nunca produzirá em mim, em primeira e de nitiva instância, um
movimento de incredulidade e desdém. Aliás, não há carta sem enigmas. Por mais corpóreo
que seja o carteiro e por mais exata a noção que tenhamos de um serviço postal, a simples
chegada de uma carta já é um encantamento. Pouca coisa existe melhor do que receber uma
carta: quando se abre a caixa e, lá no fundo, no escuro, se vê a vaga brancura do envelope, a
impressão dominante é a de um achado. E haverá coisa melhor que achar? Haverá maior lucro
do que esse que não tem merecimento? Com a carta na mão, leio o endereço e logo penso:
“Isto é comigo”. Dentro está o segredo. Os homens de negócio abrem as cartas a faca, aos
montes e sem emoção; mas nós, leitor, que temos rara correspondência, gostamos de
prolongar o segredo, gostamos de adiar a leitura, à espera de um desses momentos em que nos
parece que um minuto amadureceu.
Tudo isso ca dito para esclarecer (ou obscurecer) um ponto: não é o enigma, a bizarria da
missiva, que me desencorajará e me aconselhará a amarrotar o papel para deitá-lo na cesta. O
enigma, ao contrário, é uma força. Palavras, não há inteiramente claras, pois todas fazem parte
da peregrinante situação que levou o Apóstolo a dizer: Agora é em enigma que vemos. Há um
mistério num bom-dia. E, se dentro do envelope achado, leio uma participação de casamento,
numa dessas fórmulas geminadas em que os pais dos nubentes dão notícia de uma data, e
oferecem um endereço logo esquecido, resta ainda um mundo de mistérios, de hipóteses, de
previsões e presságios, depois da simples leitura do mais simples dos textos. Não. O enigma, o
segredo, não são obstáculos de nitivos; antes são convites.
Mas agora devemos considerar atentamente uma outra hipótese relativa àquela estranha
mensagem que encontrei, a qual, como o leitor perceberá, analisando a particularidade dos
sinais e considerando as circunstâncias, é mais plausível do que a do tesouro ou a da sociedade
secreta. Naqueles sinais, na posição do papel, na proximidade da máquina de escrever, e na
suspeita proximidade de minha lhinha de quatro anos, eu vejo, com elevado grau de
convicção, que não há enigma algum, mas apenas o resultado de um ensaio datilográ co.
Trata-se de uma simples imitação, ou da conseqüência de uma travessura, ou do fenômeno
que Spencer chama “transbordamento vital”. Aos quatro anos de idade o fenômeno assenta
bem, e não lhe pesa demais a faiscante denominação do psicólogo. Para Maria Luísa, escrever
à máquina é bater nas teclas; e, desde que o ruído das teclas e o som da campainha sejam os
mesmos, o resultado lhe parece tão legítimo e tão bom como qualquer outro. Em certos casos,
porém, essa con ança nos puros gestos se mantém até a idade madura, e o produto literário
sai com o ruído de literatura. Ora, essa imitação, sem clareza e sem segredo, que lembra aos
quarenta o transbordamento vital dos quatro anos, provém de uma coisa que nem
transbordou nem é vital; de uma coisa que não cresceu; ou então, de uma espécie de aborto,
que transbordou para morrer.
A obra de Chesterton não é destinada a uma dúzia de indivíduos com certas a nidades
temperamentais: é uma obra comum. Se alguém teve e manteve uma inquebrantável
con ança, apesar de tudo, no entendimento, foi ele, esse combativo escritor para quem o
público era o destinatário, e não o generoso patrono de um serviço postal. Não enviava sua
mensagem, é certo, diretamente para o homem da rua, mas con ava em que alguns
intelectuais lhe zessem o favor de ler seu enorme recado para o pequenino e humilde
personagem, que foi sempre o objetivo nal de sua obra. Acreditava no entendimento, mas
acreditava também na variedade social, na necessidade de intermediários, e na necessidade
maior de remover os obstáculos. Sabia que tinha de começar pelos intelectuais, e começava
vivamente por eles.
Num sentido, porém, concordo inteiramente com Stevenson. Se um livro não é, e não deve
ser, para quem o escreve, uma carta dirigida a um pequeno grupo de amigos, na mão de um
leitor é muitas vezes uma carta recebida de um amigo. Para cada livro, por melhor que seja,
existe um grupo pequenino, um só leitor talvez, que o recebe de um modo particularmente
decisivo. Esse — o leitor de nossos sonhos — não recebe o conteúdo do livro apenas como
quem lucra alguma coisa e dela se sente acrescentado: recebe-o como se estivesse esperando
por ele, como se fosse uma carta, sim, mas uma carta de resposta. Linhas atrás referi-me ao
prazer de receber cartas. Que dizer, então, do gosto das respostas? Outra coisa não fazemos na
vida, na maior parte de nossas horas, senão esperar uma resposta. Os momentos mais
decisivos, para cada indivíduo, e para a humanidade, foram expectativas de uma resposta.
Por isso, quando acontece que um livro traga a força de uma resposta, uma profunda
reorganização se opera em nossa vida, como aconteceu com Rivière quando encontrou a obra
de Claudel. Outros poderão ensinar de maneira mais completa, trazer novas informações,
mais copiosos dados — esse traz, porém, o que eu andava procurando, sem saber muitas vezes
que procurava; esse, que dá corpo às sombras que eu pressentia, e responde a coisas que eu
nem sabia perguntar. E produz em mim um forte abalo com o mais estranho dos efeitos: faz-
me ser o que sou. Devolve-me a mim mesmo. E a primeira frase que ocorre é esta: “O livro
que eu queria ter escrito”. Mas a frase mais exata, mais aberta, mais generosa e mais grata é
essa: “O livro que foi escrito para mim”.
Muitos são os livros bons e proveitosos; mas raros são os que reti cam nossos nervos e
nossas idéias em conformidade com o que somos. E o encontro de um deles não é fácil,
porque, assim como árvores se escondem na oresta e os homens na multidão, os livros se
escondem na literatura e nas livrarias. Além disso, o encontro de um livro não consiste
simplesmente na interseção de trajetórias mecânicas que um dia o coloca nas mãos do leitor.
Essa condição, evidentemente necessária, não é bastante, pois o livro é um objeto situado no
mundo do espírito. Certos intermediários e certas preparações são indispensáveis para o
verdadeiro encontro com um livro.
Voltando, para maior precisão, a algumas considerações feitas atrás, diria que as obras
genuínas se comunicam, formando uma trama orgânica e quase viva; tocando uma delas,
entramos em contato com todas as que estão penduradas na mesma teia. Quem lê um desses
autores, lê também, através de uma especial refração, os livros que ele leu e muitos que, por
sua vez, ele recebeu através do mesmo processo indireto de assimilações. Há qualquer coisa de
Homero, de Tertuliano, de Santo Agostinho, de Erasmo, de Pascal, de Verlaine e de Proust,
num romance de Otávio de Faria ou num poema de Murilo Mendes. Citei aqueles nomes ao
acaso. A lista verdadeira e completa seria extensíssima e deveria incluir escultores, arquitetos e
músicos, de todos os tempos e todas as raças, sem falar nas in uências menores,
extraliterárias, proporcionadas pelas frases que se ouvem na rua, pelo olhar que se intercepta
num segundo e que se perde para sempre. Na cultura universal corre uma seiva comum,
tornando as obras comunicadas e comunicantes.
O encontro de um livro, que represente para nós uma carta de resposta, depende portanto
do auxílio de um bom intermediário, e do obstáculo formado pelo entulho de que o mundo
está cheio. E, nesse sentido, eu creio que a obra de Chesterton tem um mérito especial. Se não
está nela, está próxima a desejada resposta. Há certos autores que se situam em ricas
interseções, onde inúmeros pensamentos e destinos se cruzam e, ainda mesmo que suas obras
sejam explicitamente contrárias à Verdade, como as de Gide ou Nietzsche, podem
perfeitamente conduzir às zonas sadias da verdadeira tradição, porque a Verdade, embora
ultrajada, mutilada, martirizada, ainda as vivi ca com seu plasma. De Chesterton (como de
Maritain ou de Newman) pode-se dizer que é um foco de convergência onde facilmente
teremos notícia do ignoto autor que muitas vezes procuramos. Se é exato o que diz Stevenson,
e o que desenvolvi neste capítulo, isto é, se existem livros decisivos, mais próximos e mais
fraternais, para cada um de nós, Chesterton nos dará uma boa informação a esse respeito,
porque sua obra é extraordinariamente comum e extraordinariamente original.
E
É original num sentido que ele mesmo vai de nir, ao defender Robert Browning, que alguns
críticos de idéias avançadas tachavam de convencional, por ter o poeta, o inglês, o gentleman,
o marido, proibido à esposa a freqüentação de certas rodas espíritas de duvidosa honestidade.
Robert Browning era, sem dúvida alguma, um homem completamente convencional. Muitos acham e dizem que o
convencionalismo é lamentável e deselegante, e assim estabelecem o que se pode chamar a convenção do
inconvencional. Mas esse horror ao convencional, quando se trata da pessoa de um poeta, só é possível para quem não
se lembre mais do sentido das palavras. Convenção signi ca simplesmente concordância e entendimento, e como todos
os poetas devem basear suas obras numa concordância emotiva entre os homens, resulta que todos os poetas baseiam
suas obras em convenções. Todas as artes — nem pode ser de outro modo — têm como fundamento uma convenção, e
pressupõem que certas objeções não sejam levantadas entre o autor e o leitor ou espectador. A arte mais realista ainda
está à mercê de objeções realistas. Ao mais exato drama de cada dia vindo da Noruega, o realista pode objetar que a
cena se passa numa sala em que uma das paredes foi retirada, e que os personagens estão durante todo o tempo se
comportando de modo excêntrico, porque seus atos, os mais triviais e mais íntimos, se realizam diante de uma carreira
de lâmpadas e de uma multidão de estranhos. Ao mais meticuloso e el desenhista que se possa conceber ainda é
possível dizer que ele está sendo convencional traçando ao longo de um nariz um risco preto que na realidade não
existe. O poeta também, precisamente do mesmo modo, e pela natureza das coisas, deve ser convencional. Terá de
descrever emoções que outros possam partilhar, porque de outro modo seu trabalho será completamente vão. Se um
poeta tivesse um sentimento original, como dizem, sentindo-se por exemplo subitamente apaixonado pelos
amortecedores de um vagão de estrada de ferro, ele teria uma grande di culdade e levaria muito tempo para comunicar
seus sentimentos.
A poesia cuida das coisas primeiras e convencionais — a fome de pão, o amor das mulheres, o riso das crianças, o
desejo de uma vida imortal. Se os homens tivessem, realmente, alguns sentimentos novos, a poesia não os poderia
traduzir. Se, por hipótese, um homem não tivesse um ávido desejo de comer pão, mas, à guisa de variante, sentisse uma
fresca e original ansiedade de comer parafusos de latão ou mesas de mogno, a poesia não o poderia ajudar na expressão
desses novos sentimentos. Se um homem, em vez de se enamorar de uma mulher, casse subitamente apaixonado por
um fóssil ou por uma anêmona, a poesia também não o poderia servir. A poesia só pode exprimir o que é original em
um sentido: no sentido em que falamos do pecado original. Ela é original, não pelo mesquinho motivo de ser nova, mas
pelo profundo motivo de ser antiga; é original porque lida com as origens.
A obra de Chesterton tem essa mesma marca de originalidade; ele mesmo se proclama um
independente, em relação ao preconceito do inconvencional, quando diz que reivindica a livre
escolha de todos os instrumentos do universo e que não pode admitir que um deles seja
condenado e escarnecido simplesmente por já ter sido usado. Sua mensagem toma
conhecimento dos antigos endereços e dos primeiros compromissos. Não desdenha o passado.
Não quer “armar um ninho na árvore do porvir”. Tratando dos problemas da redistribuição da
propriedade, que ocupam parte considerável de sua obra, e que seus contemporâneos
consideravam uma utopia, diz ele: “Eu mantenho o velho e místico dogma segundo o qual
aquilo que o homem fez o homem pode tornar a fazer; meus críticos parecem defender um
dogma muito mais místico quando dizem que o homem não pode fazer uma coisa, porque já a
fez”. Chesterton ouve, com indignação sublimada em humorismo, os rumores de uma
estranha conspiração promovida pelos homens de seu tempo: eles organizam a derrota da
própria espécie, em nome de uma espécie nova que será talvez como a dos deuses. Sabotam e
malbaratam o que já possuem, em nome de uma esperança cromossômica ou econômica.
Renegam relíquias e fósseis, deitam fora os guardados do mundo, ossos de mártires e faces de
faraós, para organizarem um álbum com os invisíveis retratos dos que ainda não nasceram.
Em todos os tempos os homens zeram as últimas vontades dos mortos; na nova era deverão
fazer as primeiras vontades dos recém-nascidos. A traição, porém, chama a traição; e esses
Azefs1 do gênero humano, com o mesmo entusiasmo com que rasgam os testamentos antigos
e novos, trapaceiam a primeira de todas as vontades humanas, que é nascer. São futuristas que
combatem sob a rubra bandeira do aborto e sob o multicor pavilhão do divórcio. Chesterton
denuncia a pusilanimidade dos revolucionários que já festejam o m da própria espécie.
O espírito moderno é impelido para o futuro por um sentimento de fadiga a que também
não falta o terror com que olha para o passado. O homem moderno não mais preserva a
memória de seus avós, mas empreende a tarefa de escrever a detalhada e minuciosa biogra a
dos seus bisnetos. Não crêem nos fantasmas dos mortos, mas estremecem com medo abjeto
perante a sombra dos fantasmas dos bebês que ainda não nasceram.
O outro, que considerou atentamente a hipótese da ilha, foi Chesterton. Tomou a pergunta
ao pé da letra, como ele mesmo disse que São Francisco costumava fazer. Símbolos, alegorias,
metáforas, hipérboles e parábolas, terão seus valores próprios, incontestavelmente, mas para
ambos, o santo e o homem de bom senso, as perguntas merecem atenção, primeiro, para o
sentido imediato e direto. Uma vez, em êxtase, São Francisco ouviu uma voz dizer que a Igreja
de Deus ameaçava cair. Como estivesse numa igreja, a primeira idéia singela que ocorreu ao
bom idiota de Deus foi olhar as paredes que, efetivamente, estavam em mau estado. Tomou o
aviso ao pé da letra e fez-se pedreiro do Cristo. Aconteceu, porém, que, tendo consertado as
paredes, consertou também, com o auxílio de Domingos, as outras que Inocêncio vira
oscilar em sonhos.
Essa capacidade de ouvir, tornada hoje um fenômeno, quase um exotismo, pertence aos
homens fortes. Caracteriza verdadeiramente os espíritos combativos. A esse respeito diz
Chesterton: “O sincero polemista é acima de tudo um bom ouvinte. O entusiasmo
verdadeiramente fogoso nunca interrompe; ao contrário, ele presta atenção aos argumentos do
adversário tão ardentemente quanto o espião sonda e ausculta as disposições do campo
inimigo”.
Tendo pois ouvido, e tomado ao pé da letra a pergunta, ele respondeu como São Francisco
de Assis teria, talvez, respondido; pois, no dizer de Chesterton,4 o santo surpreendia sempre
com o que fazia, mas logo depois deixava nas pessoas a impressão de que ele tinha dito ou
feito a única coisa possível e razoável. Assim, Chesterton respondeu que desejaria ter na ilha
deserta O manual do construtor de botes.
Não é o bom humor inesperado da resposta que mais importa; há dentro dele um sentido
profundo que constitui o traço mais forte de sua sionomia. Diante do malsão aspecto da
pergunta, sua reação foi brusca e reti cadora. Ao contrário do cético, ele não queria a ilha
deserta, e já que o forçavam a admitir a hipótese, ele tratava de se precaver com os meios de
sair da ilha o mais depressa possível, e de voltar para a comunidade dos homens e para a sua
povoadíssima Ilha. Queria o bote. Queria também os livros de sua biblioteca, todos, um por
um, porque era bom lho da antiga Sabedoria “que se deleitava em brincar na terra, entre os
homens”.
Por esse ou por aquele motivo é difícil imaginar o que sejam oitenta volumes escritos
durante uma vida. Como a presente edição deste livro não comporta ilustrações, faça o leitor,
se quiser, as guras ou cálculos.
Mas agora percebo que me enredei em contradições e que não deveria ter escrito este
capítulo sobre os oitenta volumes. Apesar das ressalvas, arrisquei-me a gravar no leitor a
impressão de que sou um admirador de metros cúbicos. Na verdade, eu admiro oitenta
volumes, mas quando são chestertonianos. Todo mundo sabe que a fecundidade mais se
encontra nas pragas, e que a tolice humana parece dispor de todos os recursos de reprodução,
multiplicação e cissiparidade.
Saí de uma di culdade para cair em outra. Fui simples demais diante dos oitenta volumes;
sou agora amargo diante de outras fecundidades, deixando descoberto algum ressentimento
pela mesquinharia da área de papel que já consegui cobrir com caracteres. O escrúpulo, como
a gaffe, é recorrente: emendar é piorar; corrigir é agravar. O melhor, nesses casos, é dar de
ombros e deixar ao leitor todas as suposições. Resta o fato: Chesterton escreveu cerca de
oitenta volumes; mas para fazer uma idéia mais exata é preciso multiplicar o número pela
variedade e pela qualidade.
A
Quanto aos gêneros literários, Chesterton escreveu poemas, ensaios, biogra as, romances,
hagiogra as, e contos policiais; quanto aos assuntos, abordou a religião, a loso a, a história, a
etnologia, a pedagogia e a literatura. Toda essa variedade forma em sua obra um bloco, porque
justamente o que ele sempre procurou foi a unidade. Por uma extraordinária faculdade de se
interessar, raramente igualada, escreveu sobre Chaucer, Browning e Dickens; e depois sobre
Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. E o mesmo ardor se encontra nas páginas
que tratam da poesia e nas páginas que tratam da santidade; não porque fosse um borbulhante
e inquieto investigador de contrastes, que pula de coisa em coisa com gritos entusiásticos, sem
se deter em nenhuma, mas porque descobria sempre a mesma inesgotável coisa, a mesma
unidade dentro da diversidade, a mesma humanidade comum no poeta excepcional e no
Doutor Comum.
Em São Francisco de Assis, através dos mais romanescos acidentes, ele via, e nos mostrou, a
fraternal e essencial semelhança entre o santo e o vendeiro da esquina, como já tinha
mostrado a semelhança entre o vendeiro e o poeta. A página que atrás citei, sobre
originalidade e convenção, tanto se aplica à poesia como ao comércio de secos e molhados,
porque na verdade o que o autor procurou ali expor foi uma espécie de sistema métrico em
que o padrão, conforme Aristóteles, é o Homem.
A objeção desse leitor tem traços com que eu simpatizo e sua franqueza não me é de todo
desagradável; mas sou forçado a dizer-lhe que leia com atenção. As páginas que até aqui
escrevi seriam completamente inúteis, e a divisão que procurei adotar entre o genuíno e o
falso completamente arbitrária, se não fosse possível ao homem trair a sua humanidade.
Tentarei explicar-me melhor.
Na maioria dos casos, quando escreve sobre os testes Binet-Simon, ou sobre a melhor
reconstituição do Homem de Neanderthal, o autor é forçado a se fechar dentro de sua
especialização, dizendo com seus botões: “Estou tratando de pedagogia”. Ou então: “Estou
investigando em pré-história”. Essa atitude é perfeitamente legítima e nesse sentido nada tenho
a dizer, senão elogios, dos livros do Sr. Decroly ou do Sr. Lourenço Filho. Os técnicos são bons
e úteis; ótimos e utilíssimos. Quando porém se trata de usar os resultados parciais fornecidos
pelo pedagogo, pelo arqueólogo, pelo astrônomo, pelo gramático e pelo dentista, é
indispensável, para que a soma seja uma soma e não um mero ajuntamento, que todas aquelas
frações sejam reduzidas a um denominador comum. Ora, é essa regra elementar da adição,
transportada para o plano das idéias, que a maioria dos chamados pensadores desconhece.
Dir-se-ia que eles gostam mais dos pedaços do que da inteireza, e que o QI de uma criança
lhes parece mais deleitoso e menos decepcionante do que a própria criança.
É nesse sentido que eu digo que a obra de Chesterton é uma soma. Diria até uma suma. Ela
não se opõe ao meticuloso e respeitável trabalho dos técnicos que pesam e analisam os
pedaços do homem; mas opõe-se belicosamente aos pensadores que confundem um an teatro
de estudos anatômicos com uma sala de jantar; e denuncia os que erram nas contas, e não
atinam com a medida do homem, a que se referiu Aristóteles e que Carlos Magno concretizou
no tamanho do seu pé.
Em resumo, a obra de Chesterton podia ter o título geral de Humanismo integral, como o
livro de Jacques Maritain. Fala-se muito de um mal da época. Tornou-se mesmo fastidioso
falar desse assunto e adotar o tom do indivíduo que indica remédios. Mas, apesar de tudo, esse
mal existe, e pode ser caracterizado por um simples nome: desumanismo. Nunca foram tão
estudadas as partes do homem, mas também nunca foi tão esquecido o seu todo, aquilo que
ele é. Ou nunca foi tão desejado que ele fosse o que não é. Esse é o ponto central da questão.
Não posso desenvolvê-lo aqui sem deixar de lado este livro, como já deixei um outro, e iniciar
um terceiro; mas posso propor um teste ao leitor.
Estamos numa sala de repartição pública moderna (devo acrescentar, para maior força
demonstrativa, que somos de uma outra geração, ou que chegamos de setores distantes e
anacrônicos) e observamos, então, diversas cenas. Vemos logo, por exemplo, que as mesas dos
funcionários são lisas e nuas como lápides de defuntos esquecidos: nem um retrato de noiva,
nem um pedaço de quartzo um dia trazido de uma excursão e onde a lembrança de uma
cascata se mistura à lembrança de um sorriso. Nem uma imagem de santo. Há uma portaria,
ou coisa que o valha, proibindo ao funcionário a ilusão de posse e de domínio sobre aquele
metro quadrado, em que ele procura, pelo trabalho, um pouco do paraíso perdido. Além
disso, observamos uma gritante desproporção entre o fáustico edifício e a visível avitaminose
dos habitantes. Os escravos são os mesmos, mas as senzalas se tornaram magní cas à custa
das suas rações. Numa sala de chefe assistimos à admissão de um novo conquistador desse
triste país. Recebe uma guia e é conduzido a um gabinete de médico, onde um moço cortês
pergunta ao postulante se o parto de sua mãe foi normal, de que doenças sofre, e se entretém
ligações sexuais permanentes ou semipermanentes. No caso de ser uma moça, solteira ou
casada, perguntam pelas regras, pela quantidade do sangue e pelo número de abortos. Enchem
chas. Todas as chas juntas, em outra sala, formam mapas coloridos, que um cavalheiro
entusiasta em cifras e riscos aponta com uma vara a meia dúzia de visitantes atônitos.
Ora, meu caro leitor, esse é o teste que lhe proponho. Se não sente um movimento de
indignação ou de susto, se não lhe passa pela mente que há qualquer erro enorme, qualquer
monstruosa subversão nessa concepção do homem, então a nossa divergência não é mais uma
questão de idéias ou de loso a; nossa completa divergência — lamento profundamente dizê-
lo — é uma questão clínica.
P
Tendo falado atrás no pé de Carlos Magno, ocorreu-me uma idéia. O sistema de medidas que
os ingleses se obstinam em conservar sempre me pareceu bizarro. Sempre achei que o sistema
decimal, pelo fato de ser decimal, deveria ter sido adotado com grande entusiasmo por todas
as nações. No colégio, aprendi que os ingleses são teimosos, mas não me ensinaram o motivo
dessa teimosia. Aliás, se há teimosia não há motivos, por de nição. Os anglo-saxões são
realmente obstinados; e essa qualidade, virtude ou defeito, que os nazistas não avaliaram na
justa medida, aparece-me agora como uma terrível delidade. E se a teimosia é uma coisa que
dispensa motivos, a delidade é a coisa que mais fortes motivos invoca. Chesterton deu-me
uma grande lição de delidade, e indiretamente ajudou-me a compreender o caso dos pés e
das polegadas.
Hoje eu vejo que o aspecto mais desagradável do sistema métrico francês está na sua origem.
Alguns geodesistas tiveram a idéia de tirar o metro de um meridiano terrestre, julgando que
essa fonte era mais digna para a ciência do que o pé de um rei medieval. Há nesse caso uma
singular coincidência entre essas e as considerações feitas por Chesterton em Orthodoxy sobre
o círculo e a cruz. Os homens da era cientí ca trocaram a cruz, que tem a medida do homem,
pelo círculo do meridiano terrestre. Pode-se dizer que Laplace e Condorcet quiseram abraçar
o mundo com as pernas. E o resultado nal das medidas foi um padrão metálico, guardado
em Paris, e que nas veri cações subseqüentes cou provado não ter, dentro de cinco casas
decimais, a perfeita de nição dos geodesistas. Ficou sendo um mero bastão de duvidosa
origem.
Dessa capacidade de associar decorre uma outra como corolário: a faculdade de reduzir os
mais abstrusos e especiais assuntos ao plano da familiaridade. Para ele, que tanto se bateu pela
família, pela família concreta, formada de pai, mãe e lhos, o mundo das idéias deve também
ser familiar; deve ser, digamos, uma casa para as idéias. Por isso, e quando menos se espera, a
propósito de evolução ou de crítica da razão, a página é invadida por objetos caseiros e ca
colorida e ilustrada. Desse modo Chesterton responde a Alice no País das Maravilhas que
perguntava: “De que serve um livro sem guras?”. Suas guras são familiares. A casa de
família é o poderoso vórtice que atrai todas as idéias de Chesterton. E assim, apresentada a
idéia, reforçadas as associações, compreendida a familiaridade, pode então o leitor descobrir a
misteriosa ligação, que o pedantismo oculta, entre a pedagogia e uma criança chamada
Margarida; entre a economia política e uma terrina de sopa fumegante em torno da qual pai,
mãe e lhos se reúnem dando graças a Deus.
Há ainda um traço na obra de Chesterton, que se refere mais diretamente ao estilo literário, e
que está ligado às necessidades de sua tática e de sua estratégia, como já cou dito. Sua
maneira de compor um ensaio, e mesmo suas frases, decorre do propósito de manter o leitor
acordado, e às vezes surpreendido. Seu estilo é falado; seu pensamento é elaborado na hora,
diante do leitor, que chega a sentir sua presença pessoal, solícita como a de um mâitre d’hôtel,
ágil como a de um bom mágico. Claudel disse uma vez que o nascimento de sua obra era uma
espécie de grommellement intérieur, em que todos os elementos, já presentes, procuravam
colocação e saída. Em Chesterton há uma espécie de grommellement extérieur. Não chega
diante de nós com a lição decorada e elaborada, em laudas de papel, em quadros sinópticos,
em cristalizações de nitivas. Tem a lição profundamente assimilada. Chega com ela na cabeça,
no peito e na barriga. E as idéias vão saindo com a naturalidade brusca do improviso e das
conversas.
Provoca e desa a; mas dá-nos também a impressão de estar sendo ele mesmo provocado. É o
que se pode chamar um escritor brioso que espera do leitor um brio igual e uma bela
contenda. É um espadachim, ágil e leal. Não usa os botes oblíquos, não ensaiou escondido um
coup de Jarnac:5 é em cheio que ele procura atingir; é o peito do adversário, e mais
particularmente o pequeno ás de copas desenhado no plastrão, que ele quer tocar.
Seu estilo é falado. Emprega com relativa freqüência o speaking e o talking. É dialogado,
conversado, disputado. Não lhe basta o vago apelo ao leitor; dirige-se a ele diretamente,
pessoalmente tratando-o por you. Às vezes ca obscuro por algum tempo, como se tivessem
chegado de outros pontos da sala objeções que não ouvimos; defende-se desses golpes laterais
e, num salto, volta à questão. Tenho a impressão de estar vendo sua agigantada gura, em pé,
andando de um lado para outro, e parando de repente diante de mim com o olhar divertido e
faiscante e com as idéias prontas, nascidas de fresco.
O paladar que sinto é o dos bons pratos feitos na hora e não me espanto que o bom
cozinheiro seja uma espécie de acrobata que, no júbilo do trabalho, atira para o alto a fritura
fumegante e crepitante. Já acusaram Chesterton de acrobacias verbais; eu o elogio por essas
acrobacias que na realidade são os mais belos gestos. Desse supér uo são feitos o encanto das
crianças, a graça das mulheres e a inigualável elegância dos gatos. A moça que atira os cabelos
para trás, a criança que vem correndo e esconde o rosto no regaço da mãe, também fazem
acrobacias, antigas, antiqüíssimas acrobacias, que defendem o mundo de uma epidemia, total
e de nitiva, de loucura.
Não devemos esquecer que Chesterton é um poeta que vive cercado de lunáticos. Por isso,
como o seu herói de e Poet and the Lunatics, é ele, e não o lunático, que vira cambalhotas e
dá saltos imortais. O lunático é geralmente grave e só canta de galo depois de estar
solidamente convencido de que é um galo. Chesterton é um escritor que ouve o que diz. Ouve
e gosta de ouvir o ruído que as idéias fazem. É poeta. As palavras, para ele, não são meros
sinais inteligíveis, simples intermediários acústicos entre um verbo mental e outro verbo
mental. São coisas que existem, como uma rosa existe. São sinais que guardam em si mais do
que dizem, e que além do núcleo lógico têm uma aura superlógica. Tal palavra, por causa do
som, do contraste do som com outro som, por causa da articulação das consoantes e da série
de gestos a que essa articulação obriga, além de signi car o que pretende, tem uma imprevista
fecundidade.
Essa mentalidade complacente e informe que recusa o combate, e por isso mesmo se atribui
o prêmio; que se esquiva de uma real e forte investigação, e por isso mesmo se atribui a posse
de todas as verdades medianas; essa mentalidade é justamente a do mundo liberal e
cinicamente otimista que Chesterton encontrou, e contra a qual se armou em cruzado até o
m da vida. O romance e Ball and the Cross, um de seus mais belos livros, é a história
alegórica de dois combatentes, o católico e o ateu, que ao longo das mais variadas
circunstâncias não conseguem cruzar os ferros, porque o clima da doxia, conciliadora e
medianeira, punha entre eles, invariavelmente, um obstáculo. Ora, em tal clima, perante tão
difíceis adversários, que poderia fazer o ortodoxo? A meu ver, a única coisa razoável que
podia fazer — e que fez — era a tentativa de incutir o gosto pela luta briosa. Era a provocação,
a galvanização, o desa o. Ele queria dialogar e argumentar com um mundo de almas vivas, e
não com uma sociedade que logo admite o primeiro, o segundo e o último argumento,
princípios e conclusões, inserindo tudo numa ilimitada tolerância.
Chesterton foi, ainda mais infatigavelmente do que Léon Bloy, um caçador de lugares-
comuns. Onde encontrava um desses monstros adormecidos, ele o provocava. Seria fácil citar
uma boa dúzia de exemplos, mas os textos arrancados do contexto e desligados da exegese
perderiam a força e talvez o sentido. No segundo capítulo de Orthodoxy encontramos uma
extraordinária conclusão: “O louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”. Essa
conclusão, longe de ser um passageiro gracejo, é uma das principais idéias da mensagem
chestertoniana, como me proponho mostrar mais adiante. Em What’s Wrong With the World
refere-se ele à idéia vulgar de que é necessário um homem de ação, um homem prático, cada
vez que atravessamos uma crise política ou econômica; e diz-nos que, nesses momentos, nós
precisamos realmente de um unpractical man.10 E o que parece uma arbitrária agressão à
opinião admitida, é na verdade uma idéia nuclear, defendida logo depois com golpes ágeis até
a conclusão que consiste na defesa do dogma.
Chesterton, a bem dizer, exige de nós alguma coisa mais elementar e mais primordial do que
a boa vontade para compreender: ele exige a boa vontade, ao menos para brigar. Isso, a seu ver,
constitui a exigência mínima, fraternal e cristã que se pode fazer ao próximo. E por isso
lançava-se contra o liberalismo conciliador, o espírito largo do século, que transformava o
patrimônio da inteligência humana num bric-à-brac indiscriminado. Liberal em política
prática, foi o inimigo número um do liberalismo losó co. Defensor do homem comum, foi o
acérrimo combatente das idéias vulgares guindadas a loso a. Defensor das tavernas, da
cerveja, do vinho, e da ampla risada, a rmava entretanto que a força do homem está nos seus
limites. Uma coleção dos famosos paradoxos de Chesterton provaria que ele foi um ortodoxo.
Mas provaria também outra coisa, e esse é um dos grandes méritos de sua obra: o assombroso
número de lugares-comuns que atravancam o mundo, tomando o lugar, já não digo da
Sabedoria, mas o lugar, a liça, onde pelo menos o não e o sim entrem num atlético encontro.
Os oitenta volumes de Chesterton são, nesse sentido, um formidável purgante. Ou então, por
paradoxo, a mais perfeita suma das tolices denunciadas.
O
Há entretanto um sentido em que não é justo dizer que Chesterton foi paradoxal. Não é lícito
dizer tout court11 que ele foi paradoxal, isto é, que era dentro dele, no interior de sua obra e de
seu pensamento, que o paradoxo vivia enrolado, formando um ninho de víboras para a delícia
dos apreciadores de contradições. A m de tornar mais compreensível esse pensamento
convido o leitor a distinguir duas coisas muito simples que chamarei respectivamente de
combate e con ito. Caracterizam dois mundos, e pode-se dizer, de modo aproximado, que o
con ito está para o homem moderno como o combate para o medieval. Para os antigos, o
caminho da verdade era considerado árduo e cheio de perigos, mas a verdade era um vértice.
Para o moderno, a glória consiste em chegar completamente derrotado a uma dúvida tão
perfeita que chega a ser uma certeza. Uma esgotada certeza. A clara diferença entre o con ito
e o combate, no sentido que aqui lhes atribuo, está na posição do adversário. No combate, o
adversário, visível e concreto, está diante dos olhos e da arma; no con ito, para encontrá-lo, é
preciso descer aos subterrâneos do próprio eu, onde mora o inimigo traiçoeiro, que se diverte
em aplicar chaves de jiu-jitsu às suas próprias vísceras. O combatente é um; o agônico, em luta
consigo mesmo, é dois. Chesterton era um. Era da antiga raça de combatentes que uma vez
por outra se atirava contra moinhos de vento com a força e a singeleza dos supervivos.
Parecia-se nisso com aquele garçon “que preferia o freguês que dá logo as ordens, ainda que
sejam íbis ensopados ou bife de elefante, à raça de fregueses que cam sentados com a cabeça
nas mãos, mergulhados em cogitações”.
Aliás, nessa pequena história encontramos uma outra idéia que ressurge em diversos pontos
da obra de Chesterton, em virtude da qual o título da história poderia ser este outro: A
desvantagem de ser gigantesco. Chesterton não era, como Frederico, o Grande, um apreciador
de gigantes, porque tinha grande respeito pela medida humana. E nesse desapreço ia alguma
modéstia, porque ele mesmo era gigantesco. Era enorme, sicamente enorme. Bernard Shaw
dizia que era difícil discutir com Chesterton, pessoalmente, pois havia sempre uma substancial
parte de seu corpo fora do campo de visão.
Mas agora o que nos interessa não é o gigantismo, e sim o desdobramento de cabeças. A esse
respeito convém assinalar um outro desdobramento que a ige a natureza humana e do qual
Chesterton se ocupou constantemente. Re ro-me ao casamento.
O Estado não dispõe de um instrumento bastante delicado para extirpar os hábitos enraizados e para desembaraçar o
novelo das afeições familiares; os dois sexos, felizes ou infelizes, estão colados estreitamente demais para permitir que a
lâmina legal se meta de permeio. O homem e a mulher são uma carne — sim, mesmo quando não são um só espírito. O
homem é um quadrúpede.
Chesterton também foi um bom quadrúpede. Preferiu esse desdobramento, quando quatro
pernas se dobraram diante de um altar, ao desdobramento mental. Levava sobre o gigante a
vantagem da unidade de cabeça (veja o leitor a epístola de São Paulo aos efésios) aliada ao
maior equilíbrio proporcionado pela duplicação das pernas. Além disso, a liberdade de
espíritos imprime ao casamento um caráter que o aproxima do combate e que o distingue do
con ito. “É um duelo eterno”. Há na ligação entre homem e mulher, no matrimônio, um
elemento salvador, que é a própria separação; ou melhor, uma certa elasticidade na carne
única, graças à qual os dois esposos se podem defrontar como dois adversários. Os combates
matrimoniais são salutares; diria até salvadores. E não é por outro motivo, talvez, que o
homem moderno, amolecido durante séculos pelo paci smo das concessões, e pela loso a
do meio-termo, demonstra tão pouca resistência no matrimônio. Quando o conteúdo
sacramental é ignorado, quando a promessa jurada pouco ou nada vale, as últimas amarras de
uma possível recuperação são cortadas pela repugnância, pela aversão ao combate. Esse é o
último elo de um casamento periclitante: o duelo franco e aberto, segundo as regras, sem
golpes baixos; o tenaz atletismo, a persistente tentativa de esgrimista que procura tocar o peito
do adversário e mais especialmente aquele ponto vermelho do plastrão que marca o trunfo
deste jogo.
Chesterton foi um bom quadrúpede. E eu o vejo, por vezes, surgir em minha imaginação (ao
contrário do soneto de Herédia) como um vigoroso Centauro que avança em direção aos
nossos tempos.
PARTE II: O
Tu lhe puseste na cabeça uma coroa de pedras preciosas.
— Salmo 20
C
Disse eu atrás, a folhas tantas, que Chesterton explorou muitos
gêneros literários, e que além de ensaios e artigos polêmicos escreveu
romances e novelas. Na realidade, porém, ele foi sempre um campeão
de idéias. Seus romances não são romances. Suas biogra as não são
rigorosamente biográ cas. Na hagiogra a, também, deixa o santo
durante páginas e páginas para assistir à luta das idéias. Ele mesmo
reconhece o fato quando diz na Autobiogra a (que também não é
perfeitamente autobiográ ca) que nunca escreveu romances e que
julga ter estragado algum bom material mais de uma vez. E acrescenta
que seu maior desejo era o de assistir às lutas das idéias nuas.
Seria entretanto um erro supor que suas novelas alegóricas, como por
exemplo e Ball and the Cross, são constituídas como puros
símbolos, sendo os personagens meras idéias. Os personagens são
realmente personagens, as cenas são dotadas de uma grande
visibilidade, e nesse ponto eu posso dizer que suas lutas de idéias são
mais plásticas e mais humanas do que a maior parte dos romances,
onde se tem a impressão de que os escritores nasceram cegos.
Chesterton era desenhista e tinha alta estima pelas cores. Sabia que
uma das missões do escritor, e talvez a mais difícil, consiste em dotar a
palavra de uma presença real, de uma presença presente, visível mais
do que audível. Ele é mais apolíneo que dionisíaco; mais pintor que
dançarino; mais visual que auditivo. Há qualquer coisa de latino, de
romano, no seu temperamento, em combinação com o recatado bom
gosto inglês.
Tenho particular aversão por essa raça de indivíduos que anda à cata
das doenças dos mortos quando há tantos vivos por aí com carência de
medicina. O gênio se explica com a doença. É claro que um grande
morto morreu, e que morreu de alguma coisa. É claríssimo que a mãe
e a avó do grande morto também morreram de alguma coisa. A
medicina é uma grande pro ssão, e está longe de mim a idéia de
ridicularizá-la; mas di cilmente ela forma uma boa combinação com a
arte, com a crítica literária, com a história, com qualquer coisa en m
que não seja um doente em carne e osso. Nessa ordem de idéias, não
posso perdoar a Ibsen (e creio que Chesterton concordaria comigo) a
base clínica de seu drama Casa de bonecas. Toda a intriga se arquiteta
em cima de uma doença e de uma cura na Suíça: chamasse Nora outro
médico e não haveria drama. Evidentemente, nem eu o contesto,
muitas tragédias se originam em diagnósticos médicos, verdadeiros ou
falsos. O que eu reclamo em Ibsen não é propriamente o uso de um
dado clínico no drama, mas a seriedade, o ar de infalibilidade
pro ssional com que ele enreda as coisas em torno das receitas. Não é
o fato dramatizado, mas a perspectiva formal. A contraprova do
cabotinismo está no outro personagem, o Dr. Rank, que é a
encarnação moribunda, cienti camente moribunda (agonizando com
a precisão dos eclipses), das leis de hereditariedade que no tempo de
Ibsen gozavam esplêndido prestígio.
U
Uma das grandes alegrias que nos é dada, neste mundo tantas vezes
inóspito e doido, é o encontro de um bom parceiro de idéias. Talvez
seja essa a razão de existirem a bisca e o xadrez: o homem precisa viver
com outro homem sob a mesma regra. Dessa necessidade fundamental
resultam os cassinos e os mosteiros, pois o falso e o genuíno se
encontram em torno das mesmas necessidades. O homem precisa de
uma lei, ainda que seja para logo depois a ultrapassar. Foram
necessários o Levítico, o Decálogo, e todos os livros e preceitos da Lei,
para que Santo Agostinho pudesse promulgar a terrível anarquia
cristã: “Ama e faze o que quiseres”. O homem precisa de uma lei, para
superá-la; de uma regra, para não sentir sua prisão; de uma casa, para
estar à vontade; de uma clausura, para se libertar.
I
Disse atrás que Chesterton é ortodoxo e tomista. Isto não quer dizer,
entretanto, que sua obra seja a transmissão de uma doutrina. É antes a
conseqüência de uma doutrina. Estando embora bem centrada (e é
por isso que eu digo ser ele ortodoxo e tomista), sua obra não evolui,
como a do lósofo, pela conquista de todos os quadrantes, em
extensão e intensidade. Inscreve-se como um complexo polígono
estrelado, cheio de pontas, e algumas dessas, numa análise rigorosa,
talvez se prestem à crítica dos lósofos. No problema da causalidade,
por exemplo, em reação aos deterministas, leva sua argumentação a
ponto de diminuir o valor das causas e cientes na ordem natural,
pendurando todas as coisas numa direta, mas enfraquecida,
dependência da vontade divina. Para a rmar um Deus pessoal, chega
quase a a rmar um Deus mágico. Nesse caso, e em outros análogos,
não se deve julgar que tal seja o pensamento do autor. Trata-se mais de
uma atitude, e também de uma intenção revestida de forma poética ou
humorística que não se desliga da verdade, mas que a inculca de um
modo especial, em função do adversário e do imperativo do tom
adotado.
Mas a idéia que temos do erro, desde Aristóteles, não é essa. Cada
verdade é o pico de uma montanha, e quando dizemos que alguém
ultrapassou a ortodoxia, queremos dizer, simplesmente, que transpôs a
lombada do morro, ao lado do vértice, e escorregou do outro lado. O
erro é sempre de ciente. E se em algum ponto Chesterton não é
perfeitamente ortodoxo é porque aí lhe faltou o ímpeto e a força para
atingir e se manter no vértice.
Temos além disso uma forte razão para ver no número três um sinal
de perfeição: são três as Pessoas da Santíssima Trindade, e é estranho
pensar que são Três, do mesmo modo que na família humana e nos
lados de um triângulo. O número em geral é uma coisa terrivelmente
pura que logo no primeiro encontro diz tudo o que é.
— G. K. Chesterton, Orthodoxy
A
Para encontrar na obra de Chesterton a primeira idéia-mestra ou o
primeiro sol ao centro de um sistema planetário, tomemos como
ponto de partida a triste e fantástica mansão “onde brilha a estrela xa
da certeza, e onde os homens crêem em si mesmos mais colossalmente
que Napoleão ou César, e onde podemos chegar junto aos degraus do
trono do super-homem”. Comecemos, pois, pela casa de doidos. A
idéia que procuramos diz respeito à saúde do espírito, e por isso é
perfeitamente lógico que iniciemos nossa investigação onde falta essa
saúde. Sentiremos assim mais vivamente, graças à parte de saúde que
porventura ainda nos reste, a que extremidades sombrias nos poderá
conduzir a parte que por desventura já nos falte.
Cedo-lhe mais uma vez a palavra para que ele termine este capítulo
como terminou seu magistral capítulo “O Maníaco”:
D
Ouço no fundo da memória, pronunciada com inde nível angústia,
com uma triunfante angústia, a seguinte proposição: “É a certeza que
enlouquece, e não a dúvida”. Pode ser cotejada com essas outras de
Chesterton: “Na casa dos doidos é que brilha a estrela xa da certeza”;
“o louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”; “os
matemáticos, os enxadristas e os contadores cam loucos, os poetas
quase nunca”. Mas quem disse aquela frase que me vem à memória não
foi Chesterton. Não foi o espírito de Apolo que a ditou; foi o espírito
de Dionysos. A frase é de Nietzsche.
A certeza que nega, a mais perfeita certeza, é uma noite polar em que
todos os astros traçam uma coroa em torno da cabeça do solitário
conquistador. À certeza do poeta e do místico, Chesterton chamou-a
de dúvida, acidentalmente, ao dizer que “os loucos não têm dúvidas”,
mas logo se emancipou dessa imprecisão para a rmar que o mistério
do conhecimento é uma coisa positiva e ensolarada. Há, na verdade,
da parte de ambos os poetas uma certa imprecisão no sentido das
palavras; mas a contradição, e até diria a incoerência, se torna
manifesta e trágica em Nietzsche, porque ele possuía (e gabava-se de
possuí-la) a mais xa certeza que um homem pode nutrir. Tornou-se
mais tarde coerente, quando enlouqueceu.
O
Como se vê da imagem usada por Chesterton, mistério é mais uma
claridade do que uma obscuridade. Não é aquilo que não se sabe; não
é o ignoto; não é o inimigo da inteligência que di cilmente se rende. O
mistério não está no ignorabimus14 do investigador que sente a
hostilidade do objeto e que se embaraça na trama dos problemas; não
é o enigma; não é criptograma. Na linguagem comum a palavra
mistério pode designar qualquer uma dessas coisas sem grandes
compromissos. Mas não é a essas coisas que o místico e o lósofo se
referem.
Quando digo ordem natural, entretanto, convém notar que não quero
designar o conjunto de funções da natureza animal do homem, mas a
realidade inteira, que é a natureza do homem, sob o primado do
espírito. E essa realidade está envolvida, banhada, pela ordem
sobrenatural, ainda que o homem a ignore ou a repila. Chesterton
con a nessa natureza do homem, mas não ignora também que ele tem
uma faculdade que nenhum outro ente do universo, inclusive as nove
ordens angélicas, pode se gabar de possuir: a liberdade de se tornar
desumano. E essa inquietante faculdade tanto pode ser exercida por
um indivíduo, por conta própria, como por uma escola, dentro de um
sistema e sob a direção de um desorientador pro ssional. A insanidade
anda por aí, no varejo e no atacado, acolhida pelo solitário cogitador
que de repente reconstrói um universo a seu gosto, ou recebida
o cialmente numa academia.
Creio que seja a força dessas coisas primeiras que nos defende a cada
instante da loucura, em cuja atmosfera pode-se dizer que todas as
coisas são segundas. É possível que o som daquela trombeta esteja nas
mãos de meu Anjo da Guarda. E é quase certo que, sem esse in uxo
dos primeiros encontros, nenhum de nós, em circunstância alguma,
tornaria a sentir admiração pelo mistério das coisas. Imagine o leitor
essa situação sinistra e quase impensável: o homem de nitivamente
privado de admiração; o homem de nitivamente prevenido; o homem
de nitivamente esgotado de infância. Esse é o triste retrato do
racionalista, do astuto intérprete de todos os movimentos do universo.
A ele ninguém engana. Dá-se a si mesmo o nome de morto dizendo-se
um que já viveu.
Não sei até que ponto pode existir realmente esse sombrio indivíduo.
Alguns lósofos reclamam para si o retrato, mas eu creio que eles se
gabam de serem mais doidos do que os doidos. Mal ou bem, todos nós
conservamos essa capacidade de renovação que nos permite ver as
coisas mais cotidianas com olhos lavados. A poesia, como arte
propriamente dita, é um dom especial, mas é comum o odor da poesia,
o gosto pela beleza e pelo mistério. E eu creio que esse gosto tem raízes
nos primeiros encontros. Nunca mais, por certo, ouvi um som de
trombeta tão despojadamente novo, mas renovei o encontro primitivo,
ao longo da vida, em mil circunstâncias diferentes. Diante de um
rosto, lendo dois versos, ouvindo um concerto de Mozart. Sempre que
adivinho a beleza e o mistério, no mais simples objeto, já visto e
revisto, ele me aparece como sendo visto pela milésima primeira-vez.
O
O mistério é o clima da infância. A maior parte dos pensadores
modernos (principalmente a raça especial que denota aquele pertinaz
e malsão interesse pela infância a que atrás me referi) anda convencida
de que a infância é uma passagem. Uma espécie de canudo na
máquina de fabricar soldados, funcionários e proletários. É justo dizer
que um embrião é em si uma coisa incompleta, e que o ofício do
embrião é transformar-se em criança. Mas já não é justo nem razoável
dizer que a criança é um estágio, uma transição, com a nalidade
única de se transformar em o cial de gabinete ou senador.
“Se não fordes como as criancinhas não entrareis no reino dos Céus”.
Mas o que é uma criança? “Por que motivo, em nome de todos os
anjos e de todos os demônios, temos esse culto da infância se não é o
culto da virgindade?” — pergunta um personagem de e Ball and the
Cross — “Quem se lembraria de venerar uma coisa pelo simples fato
de ser pequena e de não estar madura?”.
Pequenos e raros poemas que são ilhas (e Island of the Fay) de sua
intérmina agonia.
Pois bem, o próprio autor vai nos explicar como conseguiu compor
esse maravilhoso poema: “É meu intento tornar manifesto que
nenhum dos pontos de sua composição pode ser atribuído ao acaso e à
intuição — que o trabalho prosseguiu passo a passo, até seu termo,
com a precisão e a rígida coerência de um problema matemático”.
Quem diz isto é ele, Poe, o poeta, o infortunado viúvo de Virginia
Clemm, o lírico autor de Annabel Lee, o desventurado solitário que
morreu de delirium tremens chamando três vezes por um amigo que
ninguém conheceu. Não é um glacial professor diante de um quadro-
negro que nos fala em precisão e rigidez, expulsando o acidente e a
intuição dos seus domínios com mais desembaraço do que os próprios
matemáticos que até hoje disputam sobre a natureza da descoberta na
mais nua das ciências — é o próprio autor que viveu, que sofreu e que
morreu pela poesia.
U
Mas não posso acompanhar Chesterton no tom sumário demais com
que afasta de seu caminho os vultos de Poe e Nietzsche. Sua apreciação
simplista se aproxima do riso vulgar dos apologetas que recordam o
susto de Nietzsche diante de uma vaca. Acho razoável que um homem
se assuste diante de uma vaca; como também acho razoável, com
Chesterton, que o homem se a ija por não ter uma vaca. Não será pois
esse animal, bravo ou manso, que nos poderá esclarecer
convenientemente sobre obras e vidas. Na verdade, Poe e Nietzsche
foram poetas enormes, diante dos quais o inglês podia se inclinar sem
desdouro. Há uma beleza patética. Há uma terrível beleza na gura de
um encarcerado; uma sombria beleza no enlouquecido esvoaçar que
fere as asas contra as grades da prisão. Há talvez uma fulgurante beleza
na queda de um anjo.
Mas todas elas exigem um certo recuo. “É preciso ter olhos” — disse
Chesterton — “para ver que um ceguinho é pitoresco”. E é preciso
conhecer o ar, a sombra das mangueiras, o azul dos horizontes, para
descobrir no fundo de um calabouço a patética beleza do cativeiro.
Ah! se eu visse um anjo cair num longo gemido de fogo,
compreenderia a profundidade do inferno pela terrível altura do céu.
O homem livre não é o que “traz dentro de si um caos para dar à luz
uma estrela dançante”. O homem livre é aquele que ama a terra em que
pisa e a casa em que mora. A inteligência conhece a exultação da
liberdade quando encontra o seu objeto e não quando o nega, nem
quando se a rma como seu próprio e único objeto.
Não é fácil citar uma coisa da qual se possa dizer que dela dependa
toda a enorme complexidade da vida humana; mas se de alguma coisa
depende, é dessa frágil corda estendida entre as colinas do ontem e as
montanhas invisíveis do amanhã. Neste o solitário e vibrátil estão
penduradas todas as coisas, desde o Armageddon até o almanaque,
desde uma revolução bem-sucedida até um bilhete de ida e volta.
Aí está a idéia a que me re ro. Diz respeito à promessa, ao juramento,
ao voto, ao pacto, à aliança, à palavra dada. Trata-se, em suma, da
delidade, desse elemento dual e primeiro, que é a própria base do
direito, e sem o qual o homem, com todas as suas maravilhosas e
orgulhosas conquistas — seus navios aéreos, seu radar e sua bomba
atômica — se tornará um bárbaro. Um bárbaro-positivo, como
Chesterton o de niu, para distingui-lo daquele que é apenas o
imperfeitamente civilizado (a Rússia de 1915), e cuja principal
característica é a recusa da reciprocidade. O bárbaro-positivo não é
apenas o inimigo da civilização, mas o que procura uma nova
civilização, uma civilização de segunda ordem. A nova ordem.
D
Admiro-me que não tenham feito ainda, que eu saiba, a aproximação
entre dois fenômenos evidentemente semelhantes: a ditadura e o
divórcio. Em ambos existe o mesmo oportunismo que pretende dar
golpes na vida, e a mesma recusa de pacto ou juramento. Em ambos, a
mesma miopia de memória; a mesma miragem do sucesso imediato.
O divórcio é o maquiavelismo a domicílio. A ditadura é o divórcio
em política. Corre nos dois fenômenos, como idêntica seiva, a coleante
traição diante dos obstáculos, isto é, a esperteza. Em política, está
maduro (ou podre) para a ditadura o povo convencido de que um
tratado ou uma constituição são meros farrapos de papel, sendo
admissível somente a conveniência ou a etapa. Na vida familiar, a
esperteza, que pretende se ajustar aos minutos que passam, conduz à
falência do matrimônio. É dura a vida civil, com suas leis, seus úteis
embaraços, e seus inevitáveis sacrifícios; mas muito mais dura é a vida
conjugal. O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser
levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os
vermes da astúcia que pedem alimento de meia em meia hora. É uma
vida de longo alcance, de incalculável alcance. Uma artilharia pesada
que precisa de instalação muito rme para atirar obuses por cima dos
séculos.
Admiro-me pois que essa aproximação, tão clara a meu ver, não
tenha sido tentada. Mas, como já tenho visto muita contradição neste
vale de lágrimas, não me espanta em demasia que muitos ardorosos
democratas, que fulminam o maquiavelismo político em alto
jornalismo, defendam ao mesmo tempo o maquiavelismo caseiro. Não
me espanto porque, antes disso, eu vi os ardorosos defensores do
casamento sacramental e dos costumes, os pilares da Igreja,
defenderem a ditadura, e respirarem, como um ar de delícias, a
atmosfera dos decretos-leis.
A
Chesterton escreveu um admirável capítulo sobre a “História do
juramento”,28 mas foi pena que não tivesse escrito também o seu
complemento, isto é, a “História da astúcia” que, a meu ver,
esclareceria muito do que parece obscuro na antigüidade, e escureceria
muito do que parece claro em nosso século.
Todas as vezes que li alguma coisa da história antiga com meus olhos
de moderno, tive a esquisita impressão de que havia um elemento
inteiramente absurdo toldando a clareza dos fatos narrados. Enquanto
usava os olhos do racionalista não pude compreender, por exemplo, o
que impedia Telêmaco de urdir, com Penélope e suas éis serviçais,
um plano para assassinar os audaciosos pretendentes “que todos os
dias invadiam sua morada, matando seus bois, suas ovelhas tenras,
suas cabras gordas, comendo magni camente, e bebendo o mais
escuro vinho de suas cavas”.
Tinham-me ensinado que o pagão era astuto. Que Odisseu era sutil e
astuto. Folheando Homero, encontro efetivamente, com singular
freqüência, a palavra astúcia. Rara é a página em que ela não apareça
adornando um herói. A informação que eu recebera era portanto
exata. Foi preciso que os anos tivessem passado, e que eu tivesse
encontrado Chesterton, Maritain e Péguy, para descobrir o que está
escrito com refulgente evidência nas lendas dos antigos: a astúcia
homérica em nada se assemelha à esperteza do bárbaro que rasga
tratados ou do povo que glori ca o mais esperto. A astúcia antiga é,
por assim dizer, uma elegância na bravura, uma habilidade na
delidade. Abra o leitor sua Odisséia
Mas o Dragão ainda tem direitos sobre o mundo. O Ciclope está cego,
mas ainda atira montanhas sobre o mar. A política, num salto de réptil,
escapa à in uência e à subordinação espiritual da Igreja. O homem
interpreta como rebeldia sua emancipação, e julga necessário, nos dias
de sua maioridade, esbofetear ritualmente sua mãe.
A
A delidade pode ser considerada sob diversos aspectos, dignos todos
de grande consideração. O homem deve ser el à sua condição
humana: à sua verticalidade, por exemplo. Deve ser el aos seus
próprios dons, fazendo versos, pintando quadros, ou estudando os
costumes dos insetos. Há uma necessária continuidade na vida e só
poderemos colher frutos dentro da delidade. Essa virtude não me
impede de ser fantástico, mas me impede de ser fantástico de muitos
modos ao mesmo tempo. Aliás, o homem el é o único que pode ser
fantástico. A esperteza de nada me adianta quando se trata de
determinar a soma dos ângulos de um triângulo. Posso adotar uma
geometria em que essa soma seja maior ou menor que dois retos, nada
me obrigando à dupla retidão nessa matéria. Mas há uma retidão sem
a qual eu nada poderei asseverar sobre os triângulos: a delidade aos
postulados. O solitário e desaconselhável jogo de paciência, também,
só conserva uns vestígios de encanto se aceitarmos elmente a
arrumação das cartas, qualquer que seja a conseqüência da fatalidade.
A própria fatalidade, estímulo dos jogos, só tem algum sentido depois
de uma delidade. A esperteza destrói o jogo como destrói a
geometria.
A
Este capítulo é inteiramente tirado do livro e Superstition of
Divorce, e diz respeito, como o título indica, à história dessa mania
que em todos os tempos levou os homens aos laços voluntários.
Mas, adquirida essa visão mais sadia da história, ainda resta alguma
coisa mais mística e mais difícil de se de nir. As próprias coisas pagãs
são cristãs, quando foram preservadas pelo cristianismo. A honradez é
visivelmente diferente da virtus32 de Virgílio. A caridade é
excessivamente diferente da piedade simples de Homero. Mesmo o
nosso patriotismo é algo mais sutil do que o amor indiviso pela cidade;
e a transformação é sentida nas coisas mais permanentes, como na
admiração por uma paisagem e no amor por uma mulher. Todas essas
diferenciações são desesperadamente difíceis de serem de nidas. Mas
eu sugeriria aqui um elemento dessas transformações que tem sido
desprezado demais e que não o devia ser: a natureza de um juramento.
Poderia exprimi-lo dizendo que a antigüidade pagã foi a época do
status; que a Idade Média cristã foi a época dos juramentos; e que a
modernidade cética tem sido a época dos contratos, ou melhor, fez por
ser, mas falhou.
O
Diante dessas amostras de idéia de Chesterton sobre o juramento (que
talvez pudessem ser mais bem escolhidas do que o z e que o leitor
apreenderá em toda a extensão se procurar a própria fonte), eu
imagino, por experiência, a possibilidade de uma reação especial,
contra a qual devemos nos acautelar. Imagino no semblante do leitor o
sorriso semelhante ao das pessoas bem informadas, quando se referem
ao Papai Noel ou à cegonha que traz criança no bico. O sentimento
que anima tal sorriso é mais complexo do que se a gura à primeira
vista. Em relação à idéia de juramento, ele poderia ser traduzido mais
ou menos assim: “Essa idéia é muito clara, muito simples, muito
compreensível, mas é uma utopia”.
Mas não é por isso que eu digo que é absurda a sua argumentação. Há
um pequenino detalhe que escapou à sua luxuriante falta de lógica. A
dissolução do casamento, que imagino, e aquela que geralmente é
procurada, não se prende a esses detalhes, porque ambos querem se
separar. Nesse ponto as separações são sempre amigáveis. O litígio,
onde há, gira em torno da pensão, ou de quem ca com o lho, mas é
difícil imaginar o caso de um só querer se separar. Já vê que não é
preciso estipular tantas condições grotescas, uma vez que nenhuma
das partes vai insistir doentiamente em car casada com a outra que a
repele. De mais a mais, por amor ao método, podemos deixá-los de
lado, ainda que existam e que sejam freqüentes esses casos. Basta-me
no momento que o casamento seja indissolúvel no caso em que ambas
as partes estejam de acordo.
E não lhe oculto (digo lealmente), que, assim fazendo, eu quero abrir
uma brecha em seu sistema e entrar por ela adentro, como um
vencedor. Basta-me uma brecha. Basta-me um caso. Eu estou agora do
lado do sim, você do lado do não, de modo que basta um miligrama
de substância para que o sim tenha razão. E aí está: eu não faço
questão dos detalhes, dos numerosíssimos motivos e de sua história da
baratinha. Os dois estão de acordo em se divorciarem; e se assim é, por
quais motivos, sagrados ou profanos, celestiais ou infernais, devem
esses dois continuar morando juntos, uma vez que não querem morar
juntos?
Bernardo, você pode ter razão em cada frase que diz. Mas o
indispensável, numa questão dessas, é ter razão sempre do mesmo
modo, ao longo da conversação. Você começou por equiparar o
casamento a um contrato e eu me dispus a acompanhar seus motivos.
Agora, subitamente, o casamento toma um aspecto ligeiramente
diverso. Em outras palavras, eu tentarei um resumo de nossas últimas
posições. Para mim, por tais ou quais motivos, o casamento é mais do
que um contrato e por isso eu acho que o casamento indissolúvel,
embora absurdo, é razoável; para você o casamento começou sendo
um mero contrato e acabou sendo menos do que um contrato porque
nem precisa de uma formulação cuidadosa, o que me parece
igualmente absurdo, mas muito menos razoável. Falando como
homem prático (não se ria!), eu estou inclinado a pensar que o
cuidado do contrato deve crescer em proporção com os valores em
jogo. Pelo que acabou de dizer, o casamento tem para você a
importância de um aluguel de bicicleta, que geralmente dispensa papel
e testemunhas. O casamento não tem valor. Estou pronto a
compreender essa nova posição; mas nesse caso, a lógica obriga ao
desinteresse. Se o casamento não tem valor, o divórcio também não
tem; e, nesse caso, é melhor falarmos de outra coisa e deixarmos correr
a vida...
Mas a vida tem valor! Esse é o meu ponto. A vida tem valor! Tem um
imenso valor. Um valor que não pode, sequer, sofrer comparação. E
vocês, com essa manigância de Vida Eterna... Desculpe-me. Eu quero
dizer que vocês empreenderam a conversão do mundo para o pior dos
negócios: a troca de um tudo por um nada. Pode você imaginar o que
seja, na hora da morte, a descoberta de um logro monumental?
Espere. O que você queria há pouco não era isso, era o divórcio, o que
é diferente, porque implica a possibilidade imediata de uma outra
experiência. O que você queria era uma operação (que me parece
arriscada), e que consiste em partir quadrúpedes para reconstituir
inde nidamente novos quadrúpedes. Era operar um xifópago para que
ele tenha, imediatamente, a possibilidade de experimentar uma nova
xifopagia... Espere! Não insisto nesse ponto, bem sei que se trata de
uma mera imagem, que você está pronto a retirar ou retocar. Mas
retenho um detalhe de todo o seu magní co discurso. De fato, eles
merecem uma grande compaixão. Mas devemos ter muito cuidado
com esta clave em que nossa conversa caiu, senão acabaremos um nos
braços do outro e em lágrimas. Os melhores sentimentos do mundo
toldam a inteligência, cuja serenidade é, talvez, a melhor forma de
compaixão. Não insisto nesse ponto, mas com relação aos insucessos
matrimoniais cada dia mais freqüentes e mais alarmantes, eu diria que
eles decorrem, de certo modo, dessa loso a que diminui o valor do
casamento em favor de uma exaltação da vida. É preciso estar disposto
a perder a vida para salvá-la. No caso em questão, eu diria muito
praticamente que as pessoas que se casam, na sua maioria, não
estimam o casamento, não avaliam a coisa tremenda e tremendamente
simples que estão fazendo. Na base de tudo isso, o que há é um
desprezo pelo casamento; ou um desconhecimento do que ele
signi ca. E são vocês, de um modo geral, que produzem essa
atmosfera; e também nós, os católicos, que raramente sabemos ensinar
e dar o exemplo, e que nos contentamos muitas vezes em andar pelos
corredores das câmaras, para evitar que uma lei venha destruir o que
ninguém mais sabe o que é. Já vê que o problema não é tão simples. Eu
pergunto: por que não usam mais prudência os que se casam? Por que
não levam mais a sério, ou não escolhem com mais cuidado?
Mas, meu velho, é isso que estou lhe dizendo há meia hora...
A tia é uma parenta, ainda que seja uma parenta pobre; mas a esposa
não é. A tia está ligada à família por um o; a esposa não está. A tia é
indissoluvelmente tia e nunca passou pelo espírito do mais audacioso
lósofo que uma tia pudesse perder seus títulos; uma avó, um lho,
são indissoluvelmente avó e lho. A esposa não: o centro mesmo da
família, o pilar, a base, a dona da casa, é uma pessoa que, de passagem,
faz o favor de emprestar seu sangue, seu ventre e seu leite.
Sinceramente seu G.
D
Nos diversos textos que já citamos para exempli car o pensamento de
Chesterton sobre o juramento, o leitor certamente terá notado a
presença constante de outras idéias, formando como que um sistema
planetário de onde se poderia tirar a concepção do autor em relação à
história, política, educação e relações entre a família e a sociedade
civil. Uma das principais idéias, que acompanha invariavelmente
aquela do juramento, é a que se refere à tradição. Outra é a que diz
respeito a uma estrutura política oposta à barbaria positiva, que hoje
pode ser equiparada à política maquiavélica e totalitária. Nós mesmos,
páginas atrás, fomos conduzidos inevitavelmente a considerações
sobre a progressiva absorção de toda a con ança dos cidadãos por
parte do Estado, partindo também do mesmo ponto, isto é, da
diferença entre a noção de juramento e a noção de contrato negativo.
— G. K. Chesterton
— Francis Bacon
O
À terceira idéia de Chesterton, chamá-la-ei idéia de posse. E se as duas
de que já nos ocupamos têm a virtude de impedir que o homem que
doido ou bárbaro, esta agora o impedirá de se tornar escravo. Parece
ela, por ser a mais concreta e mais prática, a menos religiosa; tenciono
mostrar antes de mais nada que, por isso mesmo, é uma idéia
radicalmente católica. Para encontrar o seu primeiro fundamento,
remontemos à criação do mundo e, mais particularmente, ao dia da
inauguração da humanidade: Depois Deus disse: “Façamos o homem à
nossa imagem, segundo nossa semelhança; e que ele domine sobre os
peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos,
e sobre toda a terra [...]”.
E é por isso que o trabalho humano tem qualquer coisa que ressuma
a tristeza da culpa e qualquer coisa que lembra o limiar de um paraíso
perdido. A mesa de um obscuro e infeliz funcionário é um pequeno
campo, onde um moço, extenuado de se locomover numa cidade que
vai se tornando selvagem — como já deixei dito atrás em tom de
lamentação — procura reconquistar o caminho do paraíso. Quando
ele volta para casa, e se instala, talvez em sua única cadeira, e usa os
seus poucos objetos, com plena posse e pleno domínio, e dá um nome
ao seu gato, e ouve os passos e a voz da companheira arrancada de seu
anco, durante um sono de amor — ele sente vívido, palpável,
inconfundível, a lembrança de um jardim de delícias.
O
É preciso imaginar um concurso de circunstâncias as mais
extravagantes, uma anormal soma de má vontade e de obscuríssima
ignorância, uma desvairada combinação de proposições que
mutuamente se destruam, para chegar a compreender o motivo, o
enigmático motivo, que leva muita gente a supor que a Igreja Católica
é contrária à idéia de posse e ao mesmo tempo aliada do capitalismo.
Pretendo mostrar, ao lado de Chesterton, que a Igreja é contrária ao
capitalismo e favorável à posse; ou ainda, mais exatamente, que é
contrária ao capitalismo porque é favorável à idéia de posse.
Nesse sentido, nada há que tenha uma feição tão anticapitalista como
a ascese cristã que, nos seus mais variados aspectos, consiste sempre
num exercício de restauração da integridade perdida e na reconquista
do paraíso. Por isso, num lamentável equívoco, a vida ascética tem sido
comparada freqüentemente a uma espécie de socialismo ideal, mesmo
por aqueles que crêem no socialismo e não crêem na ascese. Ora, nessa
ordem de idéias, se o exercício de santi cação se parece com alguma
coisa, é antes com o regime da pequena economia, com o
distributismo de Chesterton, por exemplo, cuja principal nalidade é a
recuperação de um patrimônio. A vida do santo não é um modelo de
desprendimento desinteressado; ao contrário, sua bússola é o interesse.
Nunca pude compreender, aliás, o motivo invocado para considerar o
desinteresse em si como uma virtude, a ponto de se ter dito, contra o
cristianismo, que ele não é bastante puro porque não é bastante
desinteressado. Os que assim falam são os impulsivos, os voluntaristas,
que a si mesmos se chamam de sinceros, e que têm como primeiro
artigo de seu código, como Chesterton tão bem assinalou, despojar a
vontade do seu próprio objeto.
Lutemos, pois, de bom grado e com prontidão, por essa palma das
obras salvadoras; corramos no estádio da justiça tendo Deus e o
Cristo como espectadores, e — como já nos tornamos superiores ao
século e ao mundo — não retardemos nossa carreira por qualquer
cobiça do mundo e do século. Se o dia da prestação de contas ou da
perseguição nos encontrar desembaraçados, céleres, correndo nesse
estádio da esmola, o Senhor não faltará com o prêmio merecido. Aos
que vencerem na paz dará uma coroa branca pelas boas obras; aos
que triunfarem na perseguição, acrescentará a coroa purpúrea do
martírio.
O
Depois de criticar o cristianismo por ser demais interesseiro, torna-se
inevitável criticá-lo por ser desinteressado demais. O sentimento de
posse, o apetite por uma herança a que me referi no capítulo anterior,
signi cam realmente um desprendimento das coisas desse mundo.
Trata-se de um desejo guardado para os últimos tempos; trata-se de
uma propriedade escatológica. Aqueles textos provam que o cristão
tem um vivo sentimento de posse, mas não provam, e antes parecem
provar o contrário, que ele tenha um sentimento de posse relativo às
coisas deste mundo das quais se ocupam os economistas e o próprio
Chesterton com seu distributismo. A vida rigorosa dos ascetas depõe
contra essa idéia: São Francisco de Assis não queria possuir um livro
de orações e não consentia que seus irmãos tivessem uma casa própria.
Possuir pouco quer dizer possuir bem; possuir muito quer dizer
possuir mal e, portanto, deixar de possuir bem os elementos mais
próximos e mais preciosos. A pobreza cristã no plano natural é uma
defesa, é um recuo, uma formação militar em quadrado cerrado, uma
forti cação do mínimo necessário, uma saúde para a alma e para o
próprio corpo. O capitalista é o homem que não se possui e que à força
de exercer e se deliciar com o domínio não se domina. Um exemplo
talvez torne mais viva essa diferença entre o mínimo e o nada: o
homem que a a uma navalha deseja que a lâmina tenha um certo
mínimo de aço, e aplica-se laboriosamente em gastar o aço contra o
esmeril. Um observador desatento concluirá que aquele homem não
gosta do aço, que a religião daquele homem é contrária aos metais, e
que a operação a que se entrega tem o sentido de fazer a navalha
tender para zero, sendo atingido o seu ideal quando tiver na mão
apenas um cabo. Ora, ele está reduzindo o aço justamente porque
precisa do aço, e porque precisa, para seu m especial, que esse aço
seja mínimo.
O
Não se pode dizer, rigorosamente, que Chesterton tenha uma doutrina
social. Como já disse atrás, ele é mais um homem de idéias do que um
doutrinador, e o mérito de sua obra consiste na manipulação dessas
idéias, na organização particular e original dos argumentos, a serviço
da doutrina clássica. Seu distributismo não é mais do que a doutrina
social da Igreja apresentada de um modo chestertoniano,
caracterizando-se pela acentuação de certos pontos e não pelo
conteúdo. A idéia central é a da defesa da pequena propriedade e da
pequena empresa contra o gigantismo, que já no seu tempo ameaçava
a sociedade, e que no nosso tornou-se uma calamidade declarada.
A rmava o direito à posse, não como uma concessão, mas
ousadamente, como outorgado por Deus; admitia o capital enquanto
indispensável reserva, mas não admitia, de modo algum, o
capitalismo, porque a principal característica desse regime a seu ver
está na raridade e não na abundância do capital. O capitalismo é uma
situação em que quase ninguém tem o capital e em que quase ninguém
possui. Não são a existência e o uso do capital que constituem o
capitalismo, é antes a sua quase inexistência ou seu abuso. Por isso, nos
tempos de moço, teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de
capitalismo como impróprio e contraditório, propondo em seu lugar o
de pauperismo ou proletarismo já que sua principal conseqüência é
sem dúvida a difusão da miséria e do proletarismo escravizado. Mas
reconheceu que sua denominação dava lugar a certas confusões
quando se referia, por exemplo, ao pauperismo de Lord
Northumberland. Voltou à designação corrente; mas de vez em
quando, ao longo de sua obra, manifesta uma visível antipatia: “Eu não
gosto dessa palavra; é feia”.
O
A campanha distributista iniciada por Chesterton encontrou na
Inglaterra de seu tempo, como encontrará aqui e em todos os tempos,
uma onda de objeções dos mais variados tipos convergindo
uniformemente para a mesma palavra condenatória: utopia. As duas
principais objeções, propostas por Shaw, consistiam no seguinte:
primeiro, a propriedade distribuída não caria distribuída muito
tempo porque necessariamente se tornaria desigual, dada a
desigualdade dos homens; segundo, a idéia era utópica e anacrônica,
porque corresponde a um padrão medieval de nitivamente
ultrapassado.
C
A posição usualmente adotada pelos observadores que desejam
comparar esses dois monstros produz um erro de perspectiva muito
explicável. O observador entra no recinto em que os monstros são
expostos, e metendo-se no meio dos dois, conclui que se opõem,
simplesmente porque ele, observador, instalou-se num centro que a
bem dizer não era central. Bastará recuar um pouco ou procurar o
verdadeiro centro para descobrir que as semelhanças são muito
maiores do que as oposições. Diz por exemplo Fulton Sheen: “O
capitalismo insiste no direito à propriedade, mas esquece seu uso
social; o comunismo insiste no uso social, mas esquece os direitos da
pessoa”. A construção simétrica da frase indica claramente que o
observador já escolheu sua posição e tira conclusões de uma
perspectiva.
O
Diversos amigos, que partilham comigo o amor pela Igreja de Cristo e
o horror pelo capitalismo, pelo fato de estar mais ou menos divulgada
e aceita a oposição entre socialismo e capitalismo (que provém de uma
falsa perspectiva), vivem a procurar, ou o que seja cristãmente
admissível no socialismo, ou o que exista de mais socialmente
avançado no catolicismo. Num ponto eu dou razão a esses amigos. A
designação de socialista tornou-se vaga, e vagamente simpática na
suposição de signi car um interesse pelo pobre. Nesse caso eu
concordo inteiramente com o interesse real e vital de oferecer nossa
simpatia aos que padecem em nome da justiça. Poderia dizer,
parodiando Chesterton, que pouco me importa o nome que tenha a
loso a desses equivocados que se dizem socialistas mas estremecem
por uma virtude moral. Há entretanto um imenso perigo em não se
importar com os nomes das coisas: pode acontecer que na hora de
tomar uma decisão prática, no momento do maior calor de justiça, o
indivíduo entre numa porta cuja tabuleta ostente o nome que ele se
habituou a associar aos seus sonhos de um mundo melhor.
P
Para melhor compreensão das idéias de Chesterton sobre a
distribuição da propriedade privada convém saber, com maior
precisão, como se inscrevem elas na doutrina católica. Pio ,
celebrando o quadragésimo aniversário da Rerum Novarum de Leão
, formulou o programa distributista: “A riqueza, constantemente
aumentada pelo progresso econômico e social, deve ser distribuída por
entre os vários indivíduos e classes de modo tal, que seja assim
alcançado o bem comum de todos”.
Para começar, desta vez, direi o que não é casa, mostrando as duas
alternativas que foram propostas nesse assunto e que me parecem
inaceitáveis. A primeira é de Nietzsche: ele me propõe um ninho na
árvore do porvir, e sugere que eu receba alimento do bico das águias.
Ora, a proposta imobiliária do grande poeta não me parece
conveniente. Eu quero uma casa sólida e não uma dançante mansão;
quero-a agora; e pre ro comer, pelas minhas próprias mãos, um trivial
feito pelas mãos de uma boa cozinheira.
Deve, por isso, ter paredes; e paredes opacas. Poderá dispensar o teto,
como na estranha cidade do Peru onde nunca chove; mas as paredes,
não. Sejam de pedra, como na casa de Mauriac; de madeira, como no
Paraná; de gelo, como nos pólos; de papel ou bambu, como no Japão;
sejam mesmo os panos utuantes das tendas nômades do deserto,
abrigando os amores ferozes dos califas: mas sejam paredes. Couraça,
véu ou ganga, a casa veste pesadamente, como abraço de mãe, a nudez
do samurai e do esquimó. Despido de suas paredes, o Homem
Invisível perde subitamente a força de seu encanto, e vira o pobre rei
de anedota, que estava nu, orgulhosamente nu, e que tomava a
surriada do mundo como estrepitosos sinais de sua glori cação.
Aí estão algumas boas razões para convencer que a casa deve ser
defendida. Tomei-as num monte de cinqüenta ou sessenta, ao acaso,
sem plani car uma conexão, con ante em que o próprio objeto ligaria
os argumentos. Vejo agora que foi bom terem saído essas razões
diversas e disparatadas, porque o depoimento se reforça quando as
testemunhas são muito diferentes. Concluo pois, enfaticamente, que a
casa é um ponto de honra e que, mais do que qualquer outra coisa,
serve para aquilatar uma civilização.
A cidade que não tenha casas para todos os seu habitantes ou não
tenha meios de transportes para facilitar a volta; ou cujos habitantes se
espalham pelas ruas porque não amam suas casas, ou não voltam
porque não querem voltar; ou não se revoltam somente porque não
sabem, ou não querem saber, que estão diminuídos, frustrados,
ofendidos; ou ainda por cima se alegram por não poderem voltar para
casa, e logo que voltam e engolem um sanduíche reviravoltam para a
rua, porque não têm como car em casa, não sabem car em casa, não
sabem o que é casa, não sabem mais o que são eles mesmos — essa
cidade não é uma cidade de homens livres; é um ajuntamento de
escravos.
S M,
Vejo agora, um pouco tarde, que comecei escrevendo um livro sobre
Chesterton e acabei escrevendo um livro com Chesterton. Usei da
palavra exageradamente, com impertinência, misturando minhas
idéias às suas e pondo assim em risco a unidade do conjunto. Seja qual
for o resultado eu não oculto que senti um grande prazer em escrever
este livro, apesar das a ições naturais da paternidade: senti o prazer
das boas companhias. Durante quarenta dias conversamos. Muitas
vezes, noite adentro, parecia-me que ele queria saltar da janela que seu
retrato recorta na minha parede, e pôr-se em pé, agressivo, divertido,
enorme, andando de um lado para outro, como nos dias em que ditava
seus últimos livros a Miss Dorothy; ou então, parando pensativo,
depois de acender o charuto e de traçar com o fósforo no ar um
misterioso sinal — o sinal de sua vitória.
E foi por isso que Martinho, o jovem soldado de espada pronta para
os golpes da caridade, viu em sonhos, na noite daquele mesmo dia, o
Cristo vestido com a metade do seu manto; e foi por isso que se fez
monge.
E Chesterton sabe que o cabelo não pode ser tocado; sabe que suas
pontas estão intensamente eletrizadas; e que todo o edifício da
civilização ruirá, se a lei tocar no cabelo do homem. Ele mesmo nos
dirá o que pensa disto. São suas,40 as últimas páginas deste livro. E se
tomei algumas liberdades na tradução e não me contive de interpolar
um trecho, ponha o leitor esses últimos abusos na conta das boas
intenções.
Tudo isso é absurdo e demente, dirão. Mas não é mais absurdo e mais
demente, um só milímetro, do que essa cena real e legal: um médico
entra hoje na casa de um homem livre, cuja lha tem uma cabeça mais
limpa do que as ores dos campos, pelo santo mérito de sua mãe, e
ordena que lhe cortem os cabelos. Nunca lembrou a essa gente que a
lição dos piolhos apanhados nos cortiços é um defeito dos cortiços e
não dos cabelos. O cabelo, o mínimo que se pode dizer dele é que é
um bem de raiz; e, na verdade, é somente por essas instituições eternas
como o cabelo que podemos tirar uma prova dessas instituições
efêmeras, como um império. A casa em que não se pode entrar sem
que a trave do portal toque na cabeça, ou no cabelo, é uma casa mal
construída.
1946.
N R
1 Referência ao mais notório agente duplo da Rússia, Yevno Fishelevich Azef, organizador de
assassinatos do Partido Socialista Revolucionário e espião da Okhrana, a polícia secreta
imperial. — ne
2 “Homem eterno”. — ne
4 Chesterton, St. Francis of Assisi. (Não deve ser lido na tradução brasileira!).
6 A tradução de Chesterton é difícil, não somente por causa dos jogos de palavras e das
aliterações que têm importância secundária, mas sobretudo por causa da unidade de tom. A
linguagem humorística, como a poética, não é inteiramente transparente ao objeto; ela tem em
si mesma, ocluso nas palavras, o que pretende signi car. Raïssa Maritain estabeleceu em
Situation de la Poésie uma sutil distinção a esse respeito. O leitor deverá, de preferência,
procurar Chesterton no original. As traduções francesas são excelentes; a tradução portuguesa
de Orthodoxy, insípida e em alguns pontos inexata, é entretanto escrita em português; as
traduções brasileiras estão geralmente abaixo da crítica e não merecem comentários.
8 “É apenas um velho cavalheiro que deseja ter parte no crime, não podendo ter parte nas
crenças. Deseja ser o perseguidor pela tortura sem a palma”. G. K. Chesterton, A barbárie de
Berlim. Tradução de Gustavo Corção. Acessado em https://amigocruz.blogspot.com/2013/01/a-
barbarie-de-berlim- chesterton.html, em 12/06/2020. — ne
9 “Bebês não-nascidos”. — ne
12 “Outra pessoa”. — ne
14 “Ignoraremos”. — ne
18 Salmo 103.
19 “Tornar-se”. — ne
24 “Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste”; tradução de Fernando Pessoa. —
ne
25 “Tom central”. — ne
27 Encontrei em Mallarmé (Les poèmes de Edgar Poe) a seguinte informação: “En discutant
du Corbeau (écrit Mme. Suzan Achard Wirds à M. William Gill) M. Poe m’assura que la
relation par lui publiée de la méthode de composition de cette oeuvre n’avait rien d’authentique;
et qu’il n’avait pas compté qu’on lui accordât ce caractère. L’idée lui vint, suggérée par les
commentaires et les investigations des critiques, que le poème aurait pu être ainsi composé. Il
avait em conséquence produit cette relation, simplement à titre d’expérience ingenieuse. Cela
l’avait amusé et surpris de la voir si promptement acceptée comme une declaration faite bona
de”. Eu mantenho, entretanto, minha interpretação porque o texto em questão está na mesma
linha de todos os trabalhos de Poe sobre a loso a da arte, e não creio, nem consta de nenhum
documento, que todo esse trabalho tenha sido uma misti cação ou um puro divertimento.
28 Em e Superstition of Divorce.
33 O Carlton Club é um dos principais clubes de Londres restritos a membros. Era a sede do
Partido Conservador antes do surgimento do Escritório Central Conservador. — ne
34 Blefe, ngimento, farsa. — ne