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SSANDRA REIRA FR (A

(ORG.) ~-:

A VIOLIN a SEXUAL INTRAFAMILIAR


escuta
CJ by Editora Escuta para a edição em língua portuguesa
1ª edição: setembro/2014

CAPA
Ana Maria Rios Magalhães

PRODUÇÃO EDITORIAL
Araide Sanches

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


T771 Tramas da perversão : a violência sexual intrafamiliar / Cassandra
Pereira França (organizadora). - São Paulo: Escuta, 2014.
236p; 14x21 cm
ISBN 978-85-7137-351-8

1. Violência familiar. 2. Psicanálise. 3. Incesto. 4. Violência


sexual. 5. Psicose. 6. Perversidade. 7. Pedofilia. I. França, Cassandra
Pereira.

CDU 316.647.3
CDD 362.8292

Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507

EDITORA ESCUTA LTDA.


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www.editoraescuta.com. br
'll

O nonsense de algumas mães:


ressonâncias das
ansiedades arcaicas

Cassandra Pereira França


Daniel/e Pereira Matos

Nenhum sofrimento infligido por fontes externas pode ser tão


grande quanto aquele infligido em fantasia por um
medo contínuo e avassalador de danos e perigos internos.
(Klein, 1997, p. 220).

O atendimento de crianças que sofreram abuso sexual intra-


fam iliar, costumeiramente nos coloca diante de um grande enigma:
como é possível que uma mãe não decodifique e não exerça conti-
nência diante dos sinais de angústia que são emitidos pelas vítimas
ao longo do período em que são violentadas? É claro que essa situa-
ção se toma enigmática por termos uma crença na "imagem idea-
lizada da figura materna que supõe que ao tomar-se mãe, a n1ulher
seja instantaneamente ungida com a capacidade de intuir e de pro er
as necessidades de seus filhos, independentemente de sua condição
humana, de sua própria história, vivências na intancia~ n1odelo de
fig ura materna ou de suas próprias neces idad " con10 pessoa adulta"
(Sattl er, 201 1, p. 235). Podcrnos atenuar a acusação da ~- egueira" ou
"imobilização" da mãe justificando que rnuita delas encontram-se
tão mergulhadas nas suas próprias necessidades psíquicas, que sequer
conseguem vj slumbrar que os filhos têtn demanda de amor e respeito
que elas não estão garantindo enquanto responsáveis pela sustentação
da função maternante.
. F nça e Danielle Pereira Matos
Cassandra Pereira . ra
180
·t pesquisas (Print e Day, 1992; Hooper, 1992·
de mut as ,
Apesar . que na maior parte dos casos, a mãe não
9) enfatizarem " .
Salter, 200 que ele ocorria em sua ausencia e que, além
sabia . do abuso' uma vez das crianças abusadas acab a escravizada
. pelo
· rande parte
do mais, g foi forçada a fazer com o algoz, a nossa expe-
de segredo que . .
pacto . b t'ndagações inquietantes .
. " . lín1ca a re
nencta c . t CAVAS!UFMG somente recebemos para tratamento
No ProJe o •, e d · d
, . s de abuso sexual que Jª 1oram enuncia os à jus-
p.sicoterap1co rtcaso . d
nto levaram as mães a viverem to o o tsuname que
t1ça e que, po ª ' . .
, d núncia da suspeita: uma pesada vza cruczs repleta de de-
se segue a e . . . . ,
. t para conselheiros tutelares, assistentes sociais, ps1cologos
po1men os .
judiciais, promotores e juízes. Sem dúvi~a alguma, º~ esperado de~ois
desse calvário seria que o estado emocional das maes acabasse im-
pregnando o discurso delas com um misto_ de angústia, culpa e revol-
ta _ uma vez que, além da gravidade da situação apontada por todos
esses profissionais, elas também acabam sofrendo discriminações do
meio em que vivem. Mas, em muitos casos, para nossa surpresa não
é esse o quadro que se configura, e sim o de um discurso monocórdi-
co, vazio de afeto, acompanhado de um olhar distante, desvitalizado,
como se nada daquilo dissesse respeito à sua pessoa. Enquadre que
além de deixar o ouvinte -indignado coni o grau de negligência para
com a criança, faz com que ele fique predisposto a não acreditar na
declaração de que elas nada sabiâm,_suspeitando até mesmo de que a
mãe possa estar, de àlguma maneira, acobertando o abusador, geral-
mente um companheiro, irmão ou o próprio pai.
No entanto, ao longo do processo psicoterápico das crianças e
adolescentes, o que emana dos comportamentos e falas dessas mães é
qu: não se trata apenas de negligência ou de omissão de infarmação,
e s1 m de um estado de embotamento psíquico grave muito maior do
que suspei!ávamos a princípio, e que as deixa mer~ulhadas nun1 es-
tado emoc1onal em que a realidade é pouco perceptível. Fica evidente,
então que e ta d. · · ·1·cta-
' . s . m.os iante de mulheres portadoras de prévias fragt 1
des emoc1ona1s - ·dade com.
constataçao .., que só faz aumentar a 1ntens1
.
que reverbera um .., · sah-
dd , . ª questao que nunca se cala: qual é, afinal, a cau
a e ps1qu1ca des tad ergu-
lh d ? . se es o de nonsense em que parecem estar m
a as. Sena a fo d 1·t ratura,
ou s · rça a transgeracionalidade apontada pela 1 e .
eJa, o fato de t 'd · fâ 1a uil1
argume t . erem s1 0 abusadas sexualmente em sua in anc '
°n suficiente para explicar · a gênese desse estado•?
O nonsense de a]gumas mães 181

E mesmo que acreditemos nesse argumento, qual o espaço que


nos resta para refletir sobre o que pode significar as possíveis dife-
renças de reação de cada uma dessas mães, diante da concretude das
evidências do abuso sexual sofrido pelos filhos? Sabemos que níveis
distintos de angústia podem provocar atitudes também distintas: en-
quanto algumas mães ficarão apáticas e submersas em dúvidas, outras
irão tomar distância do abusador e aceitar alguma ajuda psicoterápica
para o filho( a) ou para si própria.
Uma vez demarcado o nosso campo de pesquisa, qual seja,
a singularidade da constituição psíquica de cada uma dessas mães,
emparelhemos as séries complementares: o momento de incidência
do traumatismo na construção do aparelho psíquico na infância (da
futura mãe) e a história antecedente e significante que emoldurava as
relações dessa mãe com seus objetos primordiais.
Retomemos a pré-história das "experiências da infância" que
se tomam irrecuperáveis pela recordação pré-consciente ou conscien-
te, porque foram ocultas pela "amnésia infantil", que apaga conteúdos
antes mesmo de eles terem sido ligados, como nos diz Mezan ( 1991)
em seu artigo: "Transferência: apontamentos para um debate". Esse
autor, seguindo em seu raciocínio as articulações de Dayan ( 1984)
para compreender a dialética da repetição e da recordação, anuncia-
rá a sua assertiva da seguinte maneira: "aquilo que será recordado
(mesmo se de maneira fragmentária ou transposta) foi uma vez cons-
ciente, enquanto aquilo que precisa ser repetido não transitou nunca
pela consciência" (p. 68). Portanto, caberá à compulsão à repetição
desenhar a possibilidade de ligação do traumatismo, fazendo com que
0 material "não ligado" ou "recalcado", ao apresentar-se em ato, dian-

te dos olhos da pessoa, inaugure uma oportunidade de ligação a uma


representação-palavra. Nossa hipótese de trabalho con1 essas mães a
que nos referimos no momento, nos faz crer que o ato, que abriria a
possibilidade de religação mnêmica daquele material psíquico "en-
capsulado" e soterrado no infantil, 1 é a revelação do abuso sexual
sofrido pelo filho(a).

1. O uso dessa palavra, nesse momento, faz alusão às palavras de Mezan emoldurando
0 que vem a ser o infantil para a psicanálise: "O próprio desta parte do passado que,

ao se conservar transformando-se funda o infantil é engendrar um desenho, uma


'
l \:... Cns. nndrn Pereira França Daniclle Pereira Matos

. _ e l'ssc nu,terial psíquico não teve a chance de ser ligado'' e 04

dt' ~t._1frcr ()S destino~ do recalcamento e do retorno do recalcado ;n_


tes que 3 "am1H:~~in infantil• o soterrasse ~o i_ncon_sciente, precis~mos
le\'ar cm ct nta um dado extremamente s1gn1ficat1vo: o momento, em
que s, l'ncontrava a formação do aparelho psíquico na infância dessas
mulht:rfs, quand la começaram a sofrer abuso sexual. Sabemos
~u ~ Sf 3 'riança ainda não tiver constituído suas ~ópicas psíquicas, ou
~ _ia. s nào ti er ocorrido a separação entre os sistemas inconsciente
pr ' - 'on iente/consciente, o mais provável é que a vivência traU,-
mática (ac0111panhada do respectivo transbordamento libidinal) fique
nqui tada sen1 possibilidade de transcrição e tradução, na ordem da
não representação.
Assentadas, brevemente, as considerações acerca do que pode
ter promo ido esse destino "indizível" para o material psíquico trau-
mático, a ancemos na direção do que pretendemos investigar: as
profundezas da constituição psíquica das meninas, enfocando as suas
relações arcaicas com seus objetos primordiais, e as ressonâncias que
adquirem no aparelho psíquico da mulher que virá a se tomar mãe.
E e foco que daremos ao assunto deve-se ao fato de que as meni-
na . e tatisticamente, são as que mais sofrem violência sexual, e que
ela é que serão as futuras mães que irão "facilitar", ou não, o abuso
e uai~ oferecer ou não, continência psíquica para a revelação do se-
gredo ~tomar, ou não as providências necessárias para a denúncia e o
acompanhamento p icoterápico dos filhos. Para alcançar tal objeti o
con aremos omo interlocutora a autora que dedicou sua obra a
es ud do mW1do interno arcaico: Melanie Klein.

Para começo de c-0nvers •··

A bra d ~· a autora n, o i de fácil ·01npr • •n ·l pnrl aqu"le,· qu •


quer~rn '> • ap, 0 1nHu rn1 id UH ··nt de s ' li.· t / tos, pois ·l ,· po · u 'O\ um

c.;on 1 •um · o, 4u \e sei· · • .· . ·• ·


. , no \:lmk 11u~nlu~ IHHlln.Uu; os: t!stns ,~,o \lS cxpenenc,as
qw.: e tahcien~r m rdaf' • . . J .,
Y cs p,tr1t1.:u nnente densa \.'Ont o pnv.er ou cum o desprazer
(M ezan,
_.
1991 , p. 69 ).
O "º""' ' "' d' u1'lllllllS mn 'S 18

ni .. , d' ompl xidíld produzido por um linguajor h •rmético, e n reto,


e qu .. d mondo J) 1-it r o tnbnlho d faz r inf•r"n ia , que convocam
dit\logo om n suo próprio pn\ti a ·líni ·a. Assi1Y1, por nrt sabermo e o
l "itor c.. ttl i11miliarizu io om s prin ipuis pr supo ' to de sa e rrente
psi analíti a, apres"ntar mos uma "Ínt-- ba 'ai do que é preciso ficar
'tah 1 ·id , para a' mp~nll'lr as inv stigaç ~s da autora, obre a temá-
ti a das angú tia~ i1 ulant 'S nas r-.. laç s mã /filha.
D partida, t "O'\O d nos I mbrar que na metapsicologia klei-
niana a mat1·iz de toda as angú tia ca ~trativa está repre ntada pelo
d mam , ou ja, p las otas d a~·to que a ompanham a vivências
de frustra ao das n essidade orais do beb . A sim, no momento em
qu b b for frustrad na sua gratificaçã oral, percebendo que não
manda no i porqu ~ e te não ·tá ac piado ao eu corpo (vivência
matri ial da astração no istema kleiniano), ele reagirá com ódio e
in eja. Ódjo nao só da 111a que fru tra, mas ódio e inveja da "figura
ombinada do pais, - Janta ia inaugural, que s rá o suporte de todas
as iv ncia de triangulaça.o que irão colaborar para a construção gra-
dativa da representaçao
, da castração no aparelho psíquico e que irão
desaguar no Edipo fr udiano, modulando os seus desígnios .
.A fantasia da "figw·a combinada dos pais" advém do ressenti-
n1ento da frustração que o bebê experiencia quando a mãe não lhe dá
mais o seio, e portanto dá a outrem, de que1n também recebe todas as
gratificações possíveis e it11agináveis. Essa fantasia explicitamente li-
gada à troca n1útua de prazeres entre os pa.is, forma o núcleo das teorias
sexuais arcaicas, do ciúme e da inveja e acaba se desdobrando em fan-
tasias sádicas de ataque e destruição ao interior do corpo da mãe, para
roubar-lhe os conteúdos - dentre eles, os bebês e o pênis do pai que a
mãe "supostarnente" controla. Portanto, a fantasia da "figura combi-
nada dos pais", ao estar enquistada na encruzilhada do desmanche da
relação simbiótica com a mãe, será consi.derada a precursora tanto da
representação do terceiro elemento para o bebê, quanto do sucessivo
processo de simbolização que será desencadeado a partir dessa trian-
gulação. Observemos que o núcleo dessa ideias kleinianas encontra-
-se assentado no mito da plenitude intrauterina conhecida pelo bebê,
rompida pela cesura do nascimento e recuperada, ilusoriamente, pelo
processo de amamentação e acoplagem psíquica à figura maternan-
te. A,s~im, o de mame será a ressignificação desse processo de quebra
narcis,ca, que levará o bebê a providenciar, diante da enorme angústia
184 Cassandra Pereira França e Danielle Pereira Matos

por ter perdido o "seu poço de petróleo" ( o seio), um substituto para


este objeto perdido - processo que desencadeará o deslizamento me-
tonímico do seio para o pênis - ambos, vistos como apêndices corpo-
rais verdadeiras fontes inesgotáveis de obtenção de prazer.
' Em função da Lei de Talião que vige no psiquismo da crian-
ça, não resta dúvida de que a intensidade da inveja da mãe em que
a criança se encontra enredada, promoverá destinos distintos para 0
desenvolvimento psicossexual de meninos e meninas. Assim, Klein
considerará que graças às frustrações orais vividas com a mãe, a me-
nina irá se envolver em uma nova realidade fantasística: ao mesmo
tempo em que se afastará do seio, viverá (por projeção do seu ódio)
o seu medo mais profundo, qual seja, o de ter o interior de seu corpo
assaltado e destruído pela fúria materna (Klein, 1997, p. 213 ). Desse
modo, a inveja profunda da capacidade procriativa da mãe e a rivaliza-
ção edipiana serão fatores geradores do medo de retaliação, do medo
mais profundo da menina: o de ter seu corpo atacado e destruído.

A reedição das origens

As relações entre mães e filhas são, para a psicanálise inun-


dadas,.. po~ afetos ambivaJentes a partir das origens, de mane~a que
0 be?e, tao esperado pela mãe, desde os tempos do seu Édipo na in-

fânc_ia, pode ser capaz de suscitar moções pulsionais que reeditará os


se~timentos hostis intensos que já habitaram a antiga relação com a
mae. .Dentre a vasta. produçao ~ t , · d
eonca e Klein . sobre essa temática,
se1ec1onamos
. bas1camente um texto em que são apresentadas algu-
mas h1p6teses que p 0 d
s d ~ em trazer alguma luz à decifração do nonsen-
e e a1gumas maes e d ·
rotetivas ' que eixa como rastro a ausência de atitudes
P para com a prol "O e. .
arcaicas sobre d ~- s eieitos das situações de ansiedades
0 esenvolv1ment
O sexua1 da menina" .
tra no segundo d ( que se encon-
vo Iume as Obr C l . . .
motivos: primeiro as omp etas) foi escolhido por dois
, porque nele est~ d ·
vimento sexual da . ao escntas as bases do desenvoJ-
men1na e de suas t d" . . .
~elo grau de comple .d d en enc1as ed1p1anas; e, segundo,
Jar kleiniano Cont dxi ª e que apresenta aos iniciantes no língua-
. u o, esse texto a 0 . . . .
por aqueles que trab Ih , ser rev1s1tado, pnnc1palmente
ª am com o traumatismo · ·
das vivências sexuais
O nonsense de algumas mães 185

infantis, apresenta a força e a peculiaridade de algumas fantasias que


podem propiciar a articulação de reflexões clínicas que fecundem nos-
sa investigação.
É dentro dessa lógica que nos deparamos, no texto que esta-
mos comentando, com uma intrigante afirmação da autora: "o im-
pulso para introjetar o pênis do pai, isto é, o objeto edipiano, e para
mantê-lo dentro é muito mais forte na menina do que no menino"
(Klein, 1997, p. 217), pois as tendências genitais da menina coinci-
dem com seus desejos orais, uma vez que ambos têm um caráter re-
ceptivo. Esta equação simbólica (boca/vagina) é que sustentará apre-
missa de Klein de que a menina "mais subordinada ao pai introjetado,
está mais à mercê dos poderes dele para o bem ou para o mal do que
o menino normalmente está em relação ao seu superego" (p. 217).
Essas palavras enfáticas poderiam muito bem ser mais uma fonte para
justificar o porquê das meninas serem as presas mais fáceis para os
pedófilos, pois do interjogo de frustrações e gratificações imaginárias
com o pênis irão surgir representações de pênis perigosos e benéficos
que geram uma atitude ambivalente e uma ansiedade "que compele
a criança muito pequena ( ... ) a buscar experiências sexuais" (p. 218).

Reverberações das ansiedades arcaicas

Dentro desse enquadre teórico, quais seriam as reverberações


dessas fantasias infantis na sexualidade da mulher adulta? Para a au-
tora, essas situações de ansiedade que acabamos de apresentar serão
testadas nas relações com os parceiros amorosos através do ato se-
xual, que corresponde a um teste de realidade que fortalecerá e dará
colorido às fixações libidinais. Dependendo dos arranjos entre as fan-
tasias arcaicas e as contingências da vida, Klein se arrisca, inclusive,
a antever distintas configurações e desdobramentos na vida sexual
das mulheres. Vejamos quais seriam esses destinos.
Primeiro, se por acaso a menina/mulher tiver ficado impregna-
da por sentimentos de tipo confiante e esperançoso, ela será levada a
tomar por objeto uma pessoa que represente o pênis "bom" - o que
lançará os alicerces para re.lações amorosas duradouras e satisfató-
rias. Mas se as circunstâncias forem desfavoráveis, e o seu medo do
186 Cassandra Pereira França e Danielle Pereira Matos

pênis "mau" predominar, o teste da realidade será feito através de


uma parceria no amor com uma pessoa sádica. No entanto, esse medo
do pênis intemalizado também poderá levar a mulher a testar sua si-
tuação de ansiedade r~petidamente, o que resultará numa compulsão
constante de realizar o ato sexual, ou, pelo contrário, numa evitação
fóbica do pênis e na consequente frigidez. Outra possibilidade, não
menos drástica, será a projeção do sadismo contra o objeto externo
real, quer seja através de fantasias de felação (que incluam mordi-
das e despedaçamento do pênis), ou, ainda, o desmanche intencional
da força erétil do homem - variável menos destrutiva desse mesmo
sadismo. Todavia, se essas mulheres tiverem em suas configurações
psíquicas fortes traços masoquistas e vivências mistas com objetos
bons e maus, elas irão gastar toda sua energia para tentar transformar
o parceiro sexual sádico em um objeto "bom".
Além dessas premissas, Klein também preconizou que a busca
de alívio dos perigos internos, através de experiências no mundo exter-
no, era um combustível para a compulsão à repetição. O movimento
compulsivo para incorporar um objeto mau que irá, "imaginariamen-
te", combater outros objetos perigosos que foram outrora incorporados,
estamos acostumados a acompanhar em muitos casos em que a substi-
tuição de um parceiro sádico, sempre é feita por outro de igual quilate.
Apesar das ansiedades arcaicas nunca estarem completamente
ausentes da vida psíquica da menina, Klein pondera que ela pode con-
seguir um afastamento psíquico dessas ansiedades através de movi-
mentos sublimatórios que diminuam a ansiedade e a culpa que sente
por ter atacado o interior do corpo da mãe primitiva. Assim, o grande
desafio que aguarda todas as mulheres, é o de tentar, ao longo da vida,
fazer as pazes com a mãe arcaica, aquela que pode interferir com a
nos~a fu nção objetal maternante. Sabemos que um bom indício dessa
pa~,fi~ação mãe/filha, é o grau em que o estágio genital vem para 0
pnm_eiro plano, fazendo com que a mulher se atàste das ansi dades
arcaicas e devolva à mãe seu papel materno e feminino, assumindo
ela própria um papel semelhante.
Mas, e se em.vez disso, a menina ·e deparar com a realiza-
ção de seu medo mais profundo, qual seja, o de ter o interior de seu
corpo. assaltado, atacado e destruído ? Klein responderia: ··a crença
[d~ c~ia~ça] na perniciosidade de seus objetos introjetados e do se~
propno rnconsc1ente se tornará ainda mais forte, seu superego ficara
O nonsense de algumas mães 187

mais severo do que nunca e, como resultado, sua neurose e todos os


defeitos do seu desenvolvimento sexual e caracterológico se firma-
rão" (Klein, 1997, p. 242).

Tudo por uma relação tão Preciosa

Diante da crença nessas premissas kleinianas podemos inferir


que uma mulher que não tenha avançado nas suas elaborações, de
cunho reparatório, da imago materna, e que ainda tenha tido vivên-
cias reais de desproteção e hostilidade que intensificaram seu sadismo
e suas fantasias destrutivas para com os objetos primários, estará in-
terditada para exercer a maternagem. Portanto, a falta de atitudes de
proteção aos filhos é com certeza um bom indício de que a mãe, não
tendo feito as pazes com sua imago materna, ainda está emaranhada
nas suas próprias ansiedades arcaicas, não conseguindo identificar e
nem encontrar sentido para as angústias dos filhos, principalmente
quando se tratam de angústias frente ao abuso sexual.
Para ilustrar o pressuposto de que a história primitiva dos pri-
meiros tempos de vida da criança com sua mãe pode servir como pro-
tótipo a ser reeditado na futura relação mãe/filhos, tomaremos como
exemplo a comovente história de uma adolescente que sofreu abuso
por parte do pai e da mãe, narrada no livro Push, de Sapphire, e cujo
roteiro cinematográfico ficou a cargo de Lee Daniels, sendo lançado
no Brasil, em 201 O, com o título "Preciosa: uma história de esperan-
ça". O enredo familiar apresenta uma mulher de meia-idade que vivia
às custas do amparo social do estado americano e que agredia e era
conivente com os abusos sexuais sofridos, desde bebê, pela filha ado-
lescente, vítima de bullyng nas escola e nas ruas do Harlen, e que na-
quele momento se encontrava grávida do segundo filho do próprio pai.
Os primeiros episódios de abuso sexual começaratn quando Pre-
ciosa era ainda um bebê, e a mãe narra o que se passou, mostrando que
não tinha nenhuma discriminação entre o seu corpo e o de Preciosa.
Sua narrativa começa dentro da lógica de negação da alteridade contida
na afirmativa: "Eles pertencem a mim" e passa a ser desdobrada em
. detalhes: "Eu tinha .dado a mama~eira para ela e o peito.para Carl. Eu
não queria ela sugando depois dele. Eu tinha um homem e uma criança.
188 a. sandra Pereira França e Danielle Pereira Matos

Eu queria que o Carl tocasse na minha filha. Eu deitava o bebê no tra-


e ~ iro, el se esticava e tocava o meu bebê. Ele calava minha boca
e dizia que era bom para ela. Ele era o meu homem e queria a minha
filha!( ... ) Eu não queria que ele machucasse o meu bebê! Eu até ia dizer
para el : nao machuca meu bebê, não machuca meu bebê!"
T\~a , com o tempo, a preferência pedófila daquele homem
mostrou- e oberana e aparece nas palavras da mãe: "Quem vai me
amar? Quem ia me tocar? Eu não tinha ninguém!". Enfim, a trama da
h stilidade mãe/filha encontrara o terreno propício para ser reeditada
(lembremos que a adolescente comenta que sua avó tinha medo de sua
mãe): Preciosa havia se tornado, a um só tempo, a parceira e a rival da
mãe, ou seja, a menina-mulher que, ao mesmo tempo em que "rouba-
va" seu homem, garantia a presença dele na cama da mãe. Desde então,
os abusos foram frequentes, como também as retaliações que Preciosa
passou a receber da mãe, indignada com o fato de a filha não se defen-
der das investidas do pai. A inveja que lhe arrebatara, completamente,
bem poderia ser um reflexo invertido da inveja sentida em relação à
mãe primitiva (como anuncia Melanie Klein) e os gritos acusatórios
proferidos por ela: "Sua vaquinha metida! Só porque ele te deu mais
filhos do que para mim, está se achando especial. (... ) Você ferrou mi-
nha vida! Você roubou meu homem!", podem ilustrar os movimentos
projetivos das vivências arcaicas, capazes de obnubilar os papéis de
mãe e filha.
Siga! (I 994) nos ajuda a entender o que ocorre quando o que
está em jogo não é somente um conflito da criança, mas também a
dimensão do conflito inconsciente matemo, que foi transmitido à m "-
nina â revelia da consciência materna. Destacam-se, nesse sentid<.
as situaçõe. de tran. geracionalidade, comuns nas ituaçõ s d· abu-
so sex ual. e aludidas também no filme, quando a nule dt: Pr ·it sa.
no momento cm que justifica sua reação e coparticipaç,lo n in · :h. ,
afirma que " aprendera u ·sim com sua rntlc''. Isto , sup( ·-. qu' o ·
abuso · se uais . < fridos por Pr ·c iosa ·onstitulrnm~sl' mima pn.'st·ntifi
caç o das vivências s ·xuais 'cn~apsliladus" d l llH e, ~ qu I ·rmitirnm
a invasão do corpo da menina : tanto 11a autori1.açt , do nccs~o do pai
à criança (no filme a m e de Pr •c iosa assist , :orrat "imm ·nr '. au ·
estupros da filha), quanto na sua própria solkitaç, o para que a m~ni-
na " cu,'dasse ue . que a masturba ·se. Cenas ·hocant~ ' qu e
,, la" , ou ScJa,
mostram a natureza frúgil du constituição idcntifü.:utúria daquda mãe.
O nonsense de algumas mães 189

A história de Preciosa, além de representar outras tantas que


conhecemos, serve também para nos aproximar de um drama que,
costumeiramente, é silenciado no interior de muitas famílias e que
no filme é sintetizado pelas palavras ressentidas da adolescente: "O
amor não fez nada por mim! Me machucou, me estuprou, me deixou
doente!". Apesar de estarmos no início de nossas investigações sobre
a compreensão do que se passa no psiquismo das mães que parecem
"facilitar" o abuso sexual de seus filhos, sabemos quão importante
é demarcar questões para continuarmos buscando respostas. Assim,
perguntamos: o que acontecerá à menina/mulher quando, ainda vi-
vendo sob o jugo de suas fantasias arcaicas de rivalidade com a mãe,
tem seu corpo assaltado pelo · falicismo bélico de um pai/padrasto/
avô? O que observamos na vida real é que haverá o assassinato da
alma, a destruição parcial ou completa do aparelho mental e do senso
de identidade, provocando o que Marta Medeiros (2001, p. 15) evoca:
acenda um fósforo em mim, não queima
perfure com uma faca, não jorra
cuspa na minha cara, não escorre
quase nada me traz consequência
não há aderência em gente que teima

Referências

DAYAN, M. lnconscient et réalité. Paris: PUF, 1984.


FAIMAN, C. J. S. Abuso sexual em família: a violência do incesto à luz da psicanálise.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ln: Edição Standard
Brasileira de Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. v. VII.
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