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ARTIGOS DO DR PLINiO
ARTIGOS DO DR PLINiO
PLÍNIO
CORRÊA DE OLIVEIRA NA
FOLHA DE SÃO PAULO
1968-1990
I - ANO DE 1968
Sem entrar na análise deste modo de ver – que reputo indefensável – parece-me
importante notar que um extremista do "aggiornamento", para ser coerente com sua
posição, deve antes de tudo esmerar-se em ter a noção mais lúcida da realidade. Pois se
é por esta que tem ele que acertar seus ponteiros, lhe é indispensável ver com toda a
exatidão por onde estes ponteiros correm.
1 – A Tradição o mais das vezes não repele o homem de hoje. Pelo contrário, o atrai. A
experiência tem mostrado que o quadro formado pelo estandarte rubro da TFP com seu
heráldico leão rompante, em torno do qual coletam assinaturas jovens de todas as
classes, de paletó e gravata, desperta consideração, confiança e simpatia em
larguíssimas parcelas da opinião. Alegram-se estas em ver a Tradição proclamada e
defendida por jovens, e nisto veem elas uma garantia de estabilidade fecunda para o
presente, bem como de seriedade e dignidade na caminhada para o futuro.
Eis as 6 grandes lições que se deduzem da atitude corajosa e coesa dos 600 mil
brasileiros que de norte a sul vêm assinando as listas da TFP.
Elas dão o sentido verdadeiro do que o Brasil de hoje quer ser e do que ele não quer ser.
É segundo essa imagem, e não segundo as miragens do progressismo esquerdista, que
toda a atualização autêntica se deve fazer.
Depois de uma longa série de brilhantes vitórias, o progressismo sofreu dois reveses dos
quais dificilmente se recuperará. Trouxe-os o mês de julho.
O abaixo-assinado da TFP, lançado no dia 17 de julho, foi alcançando desde logo totais
robustos, que faziam prever o milhão atingido em 30 dias, e a soma ainda mais
impressionante para a qual marchamos. Estava provado, à evidência, que incontáveis
brasileiros não aceitam os rumos para os quais os quer atrair o progressismo.
A manifestação dessa atitude coletiva produz um inevitável esvaziamento de substância
ideológica num movimento que, pelos imperativos de sua lógica interna, vê em sua
sincronia com o homem moderno um dos mais preciosos títulos de sua autenticidade.
Não quer isto dizer que o cerne do progressismo morra. O progressismo cria em seus
adeptos incondicionais o hábito de ilusões agradáveis, às quais é penoso renunciar,
mesmo à vista dos mais ponderáveis argumentos. Mas os cernes de movimentos
ideológicos, privados de suas periferias, entram facilmente em regime de mal-entendido
com o público, o que produz neles azedume, desânimo e infecundidade de ação.
O panorama a que estava habituada a grande maioria dos brasileiros era o de uma Igreja
com suas raízes deitadas no mais profundo na alma do povo, da qual cada vez mais o
progressismo se ia tornando dono. E, assim, ia rapidamente conquistando o Brasil. Mais
uma visão de otimismo e vitória para os progressistas a lhes tornar propício o ambiente
para os slogans caracteristicamente ousados e "candidamente" juvenis.
Olhando as coisas de perto, é claro que essa visão não se justificava senão em parte.
Nunca faltaram nas fileiras do Episcopado vozes como as de um d. Geraldo de Proença
Sigaud, um d. Antônio de Castro Mayer ou um d. José Maurício da Rocha, a se
levantarem prestigiosas e desassombradas contra a investida progressista. Mas, por falta
de publicidade, estas vozes estavam longe de alcançar a ressonância merecida. Para a
maior parte do grande público era como se não existissem.
Ao progressismo parecia dado tudo fazer e empreender – e por vezes até falar em nome
de toda a Igreja – sem sofrer, da maioria, repulsa nem contradita que chegasse ao
conhecimento do grande público.
A primeira centelha a pegar fogo nessa tela rutilante mas enganadora foi a carta em que
o arcebispo de Diamantina e o bispo de Campos denunciaram ao cardeal Rossi, não só o
escrito subversivo do pe. Comblin, mas ainda os múltiplos pronunciamentos eclodidos
aqui e acolá em meios católicos, a provar que as idéias do professor do Instituto
Teológico de Recife formavam a expressão sistemática e arquetípica de erros já bem
difundidos em nosso meio.
Sobreveio pouco depois uma nova carta ao Cardeal Rossi, assinada por 40 arcebispos e
bispos. Este terceiro documento é uma suma que cuida da maior parte dos fatores do
imenso mal-estar que campeia nos ambientes religiosos nacionais. O autoritarismo de
uma minoria de bispos – e dos respectivos técnicos – a impor soluções que a maioria da
CNBB não deseja, o silêncio ante a maré montante da imoralidade moderna, a
infiltração de ideias heterodoxas, as tendências subversivas, tudo enfim é exposto e
analisado neste documento com uma dignidade e uma prudência que nem sequer os
mais apaixonados podem negar.
Quem tem olhos para ver, bem percebe que os 40 valorosos prelados não estão sós, e
que em largas fileiras do episcopado e do Clero seu pronunciamento causou a mais
indisfarçável alegria.
Estava desfeita mais esta miragem progressista. A Igreja do Brasil não é, como se
imaginava, o imenso navio passivamente conduzido para a esquerda pelo pequeno e
dinâmico rebocador da minoria esquerdista.
Assim, nem na massa do país, nem em seu Clero e sua hierarquia, tinha o progressismo
a popularidade avassaladora de que se gloriava.
Com isto, evitou-se para o país um imenso drama de consciência. "Não entendo mais
nada", "estou ficando louco", eram expressões que em cada canto se ouviam, ou diante
de inovações religiosas que iam muito além da linha do Concílio Vaticano II, ou diante
de fatos escabrosos como o de uma Congregação de Religiosas que permitiu que suas
freiras fossem fotografadas por uma revista de enorme tiragem, postas em "shorts" e
avançadíssimos trajes de banho. Ou ainda, o do Boletim Telepax, publicado sob os
auspícios da CNBB, em que no nº 125, o pe. Guido Logger, diretor da Central Católica
e de Cinema, afirma textualmente: "Admito o palavrão no teatro, o nu no cinema e a
cena de alcova, quando isto tem sentido dentro da obra, uma necessidade de
dramaturgia interior, da caracterização psicológica do personagem ou de uma situação.
Existe um erotismo sadio, limpo, no teatro e no cinema. O "eros" faz parte da vida do
homem, e onde se dá um retrato do homem, o "eros" tem que aparecer, senão a "image"
do homem, contemporâneo ou não, não seria completa. Seria mentirosa e menos
convincente".
O que tanta boa gente "não entendia", não podia conceber, era que a Igreja inteira
tivesse mudado de posição quanto a princípios morais até então proclamados eternos.
Com a valorosa tomada de posição dos 40, a crise está conjurada. Há colunas em que
apoiar-se. Há mestres em cujo ensinamento a luz imortal continua a fulgir, e que as
trevas não conseguem circunscrever.
O que ainda estava faltando para tornar conhecida do público a verdadeira face do
esquerdismo católico e a sua fraqueza, vários debates de televisão o fizeram, entre os
quais se destacam os de d. Sigaud, no Rio, e o do ministro Passarinho com o arcebispo
de João Pessoa, em São Paulo.
Mas, pelo voto de sua maioria, liderada por certo pelos beneméritos 40, a CNBB não só
se recusou a rumar para o socialismo, como evitou judiciosamente tomar posição numa
pendência em grande parte alheia a seu campo de ação. Estava mais uma vez posta a nu
a fraqueza do progressismo. Estava poupada ao Brasil uma imensa hecatombe.
Estes são fatos memoráveis, que é preciso expor clara e concatenadamente nas páginas
da imprensa, para que daí passem, de futuro, para as da História.
No momento em que escrevo, ainda permanece obscuro o curso que tomará a crise
tchecoslovaca. Ao que parece, a nação em peso está se mobilizando para um imenso
movimento de resistência. Movimento não apenas volumoso, mas animado de um sopro
heróico, e dirigido por líderes ainda desconhecidos, mas aos quais é preciso reconhecer
desde já uma superior inteligência.
À vista dessa possante convulsão, que farão os soviéticos? Procurarão desalentar o povo
pelo terror de uma repressão, a qual, para ter eficácia, teria de ser de uma ferocidade
sem precedentes? Esta perspectiva é, para o Kremlin, cheia de riscos:
1º) A causa comunista sofreria enormes prejuízos, pois tal repressão colocaria os PC, de
quase todos os países, na alternativa de romper com Moscou ou perder toda a
popularidade;
2º) No terreno diplomático, a União Soviética, com seu bloco de satélites, ficaria mal
vista, isolada, e por assim dizer entregue às feras;
3º) Tudo isto poderia estimular os impulsos de "liberalização" que há algum tempo se
vêm sucedendo continuamente na Rússia;
Se este é o quadro visto de Moscou, as perspectivas que se divisam de Praga são mais
simples, porém igualmente dramáticas:
1. Uma vez que a União Soviética cometeu o erro político – não falemos da
inqualificável falta moral – de invadir a Tchecoslováquia, terá ela a finura suficiente
para compreender a necessidade de uma retirada, e gênio político bastante para criar
circunstâncias que disfarcem o que essa retirada teria de humilhante?
2. Sendo de se recear que lhe faltem uma e outra coisa – finura e gênio – não se atirará a
União Soviética, cegamente, à destruição da Tchecoslováquia?
3. Vale a pena, para esta, correr o risco imenso de resistir ao ocupante? Para quem crê
em Deus e na imortalidade da alma, como os espanhóis que lutaram contra Napoleão, a
resposta só pode ser em favor da resistência a todo transe. Estou certo de que se a
Espanha fosse invadida hoje, a sua atitude não seria diversa. Sei que não falta aos
tchecos e aos eslovacos uma coragem que a História tornou famosa. Não ignoro que
milhões dentre eles não são comunistas, e conservam a Fé herdada dos maiores. Mas
Dubcek e os seus auxiliares são comunistas. Como comunistas são, provavelmente, os
líderes ainda ignotos, da presente resistência tcheca. Nas perspectivas de um comunista,
vale a pena expor assim à destruição – não um homem, pois para ele o indivíduo nada é
– mas uma nação inteira?
Tudo isto está sendo, provavelmente, pesado de lado a lado. No que dará?
É cedo para o dizer. Mas é útil consignar aqui os pontos de vista políticos de ambos os
lados. O formidável "suspense" em que estamos se entende melhor assim.
Como melhor se entenderá o desfecho que talvez já tenha ocorrido quando este artigo
sair a lume.
Mas já que no presente momento estamos em "suspense", aproveitemo-nos dele para
pensar um pouco em nós mesmos. "Nós", aqui, significa o Brasil e todo o mundo livre.
Como foi possível que a opinião pública tenha sido forçada a passar do otimismo de há
dias atrás, para as angústias da presente incerteza? A resposta é claríssima. A opinião
pública vinha sendo embalada no mito de que os dirigentes da Rússia "desestalinizada"
são amantes da paz. A invasão da Tchecoslováquia provou de repente, com a crueldade
da evidência, que eles não o são. Desfez-se o mito.
Mas, dada esta resposta, outra pergunta surge desde logo, e esta bem mais árdua de
responder: como pôde a opinião mundial ser induzida a crer neste mito tão
inconsistente?
Claro está que a causa mais imediatamente visível deste engano reside nas mil pequenas
e grandes manobras que a União Soviética pôs em curso para se fazer aceitar como
nação pacífica, e gozar, consequentemente, dos benefícios da coexistência.
À vista destes benefícios tão palpáveis, e de outros ainda, uma pergunta de elementar
sabedoria política naturalmente se punha: o pacifismo dos soviéticos seria sincero, ou
seria de encomenda, com vistas a obter essas mesmas vantagens?
Pois esta pergunta simplicíssima, poucos a fizeram... E os que a fizeram, não receberam
resposta explícita nem consistente. Suas vozes [foram] abafadas no "brouhaha" festivo
da distensão universal.
Ainda aqui julgo conveniente destacar uma só causa, a mais dinâmica, a meu ver, e a
mais generalizada. É o cansaço, o terrível cansaço de ser lógico, sério, coerente e
arguto. Desde Homero, este cansaço dos povos que se deixam vencer pela indolência do
espírito, é causa de tragédias e derrotas sem conta. Pode-se dizer que em muitas guerras
ou tensões internacionais, ganhou quem, até o fim, não se deixou penetrar por esse
amolecimento fatal.
Ora, foi desse amolecimento que larguíssimos setores da opinião mundial deram provas
ao tomar por concludentes os mil indícios discutíveis que a União Soviética "fabricava"
para fazer crer na sinceridade de seus supostos propósitos de paz.
Por mais mal parado que esteja o jogo dos soviéticos, no momento, eles ainda têm esta
carta inapreciável em mãos: nossa fatigada ingenuidade. E sairão do impasse tcheco
salvando todas as suas perspectivas de êxito se, em novos lances, salvarem esta carta.
Daí, a meu ver, o grande critério para analisar a próxima jogada dos ocupantes do
Kremlin da Tchecoslováquia: até que medida essa jogada conservaria o mundo na
cândida confiança em um comunismo pacifista?
Ao escrever meu último artigo para a "FOLHA", convidei o leitor a uma posição de
vigilância em face do procedimento soviético na crise tchecoslovaca, crise esta que ia
atingindo, então, o seu clímax. Era preciso não interpretar qualquer eventual aparência
de comedimento dos déspotas vermelhos como manifestação de uma brandura ou de um
desinteresse que nem de longe possuem. As atitudes que eles viessem a assumir só não
seriam brutais na medida em que as conveniências de sua política a isto os obrigassem.
A URSS alcançará inapreciáveis vantagens políticas afivelando a máscara do pacifismo.
Se algo de generoso e cordato se notasse em suas próximas atitudes, isto só se deveria
ao empenho de não deixar cair inteiramente a máscara que tantos proveitos lhe trouxera.
Entretanto, essa simulação de respeito aos direitos dos povos mais fracos é tão
grosseira, a brutalidade da conduta soviética continua tão clara, que não é necessário dar
o menor argumento para provar que a Tchecoslováquia está simplesmente esmagada
sob a bota do comunismo russo.
Para dar-se conta de que ela caiu, não era necessário dirigir os olhos para tão longe. A
brutalidade fundamental do espírito comunista – seja soviética, chinesa ou outra
qualquer a sua variante – aparece com toda a nitidez nas várias formas de agressão que a
TFP tem sofrido ao longo da campanha que vem desenvolvendo contra a infiltração
esquerdista em meios católicos.
É claro que essas agressões não têm sido, todas, de procedência comunista. Mas o
espírito comunista não se circunscreve aos arraiais comunistas. Ele se irradia para as
várias esquerdas que lhe formam em torno como que círculos concêntricos sucessivos.
Neste sentido, refletem tais agressões a mentalidade comunista, ainda quando seus
agentes não sejam senão socialistas ou progressistas.
É possível que algum dia a lista destas agressões se publique. Ela deixará pasma muita
gente. Desde já, entretanto, podemos indicar as principais variantes com que elas se vêm
apresentando:
a) Pela força bruta, isto é, por meio de pancadaria contra nossos coletores de
assinaturas, com o evidente – e aliás vão – intuito de os provocar a brigas múltiplas, que
possam justificar o fechamento compulsório de nossa campanha, sob o pretexto de que
perturba a ordem;
b) Pela calúnia, por exemplo, atribuindo-nos, sem o menor vislumbre de veracidade,
pichamentos e atos de violência vários. Os acusadores, intimados a exibir suas provas,
calam-se sempre. Mas daí a pouco a calúnia renasce. "Menti, menti, alguma coisa
sempre ficará", disse Voltaire. Para o nosso caso, a assertiva do cínico de Fernay é falsa.
Ninguém dá crédito à calúnia. Mas, infatigável, ela continua, com a esperança de voltar
contra nós o público, e assim impedir o progresso da campanha;
c) Pelo silêncio compulsório. Amigos de uma grande cidade de nosso País, ainda há
pouco me comunicavam sua desolação em face da atitude da maioria dos órgãos de
publicidade locais: acolhida franca para todas as notícias e comentários desfavoráveis à
TFP, e fechamento absoluto para as informações, retificações e refutações emanadas de
nossa entidade.
Este o furor tirânico dos esquerdistas de todo jaez, em nosso País, contra uma campanha
exercida legalmente e com suma cortesia, por uma entidade cujo procedimento pacífico
é notório aos olhos de todos.
Que diferença há entre esse furor dos nossos esquerdistas indígenas e a brutalidade
mostrada pelos soviéticos em Praga? No fundo, nenhuma. Pois procedem da mesma
causa e trazem a mesma marca: o espírito comunista.
Parece-nos bem clara. Ele torna fácil entender o que o comunismo quer quando seus
asseclas bradam por liberdade. É implantação do reinado frio e implacável de uma
integral violência.
É aliás, o que o escrito do pe. Comblin deixa marcadamente claro, nas seguintes
passagens: "Não basta fazer leis. É preciso impô-las pela força. Para a arrancada, o
poder será autoritário e ditatorial. Não se pode fazer reformas radicais consultando a
maioria: que a maioria prefere "sombra e água fresca", prefere evitar os problemas. (...)
será necessário montar um sistema repressivo: tribunais novos de exceção contra quem
se opõe às reformas. Os procedimentos ordinários da justiça são lentos demais".
"Não gosto do lema de sua sociedade, dizia-me, num fortuito encontro junto ao Edifício
Conde Prates, dona Cesarina, que há muitos e muitos anos eu já não vira. Dona Cesarina
é uma avó ainda jovem, que conheço de há longo tempo, sempre na vanguarda de todas
as modernidades. Sim, das modernidades fanadas de 1940 e 1950, como das mais
ardidas modernidades destes nossos dias de Comblin, mini-saias e discos voadores.
Apanhada ao vivo, dona Cesarina me retrucou: "Também não digo isto: quanto à
família, vá lá. É até bonito terem posto isso no lema. Mas "Tradição", não engulo. É
para outros tempos. E quanto a "Propriedade", acho antipático. Por que não puseram,
em vez disto, "Trabalho" ou "Liberdade"?
– Ainda bem que a senhora aceita a família, disse eu. Já é um ponto que temos em
comum. Quanta razão temos para querer e admirar esta palavra! Os casais que se
constituem com a benção de Deus, para se quererem, se entre-ajudarem e se
perpetuarem na prole; as alegrias e dores que se partilham, o ambiente doméstico que se
vai formando e caracterizando pela mútua compreensão e pela marca das vicissitudes;
as crianças que vão recebendo os valores desse ambiente em suas almas moldáveis, e os
vão tomando como preciosos ideais de vida; a família que ao cabo das gerações se abre
em ramos numerosos, que o afeto, a lembrança do passado, as esperanças de futuro
mantém bem juntos; os mais velhos que vão caminhando lentamente para a eternidade,
alegres por deixarem nesta terra uma obra querida por Deus, abençoada por Ele e
destinada ao serviço d'Ele: como tudo isso é belo!
Dona Cesarina, que habitualmente não gosta de ouvir seus interlocutores falarem, e que
se proclama, hoje em dia, uma pessoa prática e infensa a sentimentos, ouvia-me atenta.
Suas cordas sensíveis estavam atingidas. Em sua fisionomia, subitamente mais
tranqüila, lia-se certa surpresa: "Como pode este inveterado polemista da TFP pensar e
dizer coisas destas?", parecia dizer o seu olhar.
Continuei. Imagine a senhora, dona Cesarina, uma cidade, um país em que todas as
famílias fossem assim. Não seria suave o ambiente e encantadora a vida? Não haveria
nele certa lógica, certa estabilidade, certa segurança, bem diversa dos absurdos e das
surpresas entre os quais vamos vivendo, aos trancos e barrancos?
Quando eu dizia isto, uma jovem aproximou-se de dona Cesarina. Era o retrato dela.
Tinha na mão um pacote de bom tamanho. A moça cumprimentou-me apressada. Minha
interlocutora estava ali, visivelmente, à espera da neta. Retirei-me um pouco, resolvido
a continuar a conversa, se dona Cesarina quisesse. À distância, vi que o assunto entre
ambas não era simples. De início, as fisionomias exprimiam um vivo embate. Mas daí a
pouco, dona Cesarina foi cedendo, cedendo... Até que a moça se retirou rápida e
triunfante, e dona Cesarina voltou a mim carregando o pacote pesado na mão.
Manifestamente, ela não queria comentários para o desabafo. Fingi que não ouvi. E
continuei: "Pois é, dona Cesarina, não seria bom que as coisas fossem como eu disse?"
No espírito de dona Cesarina, o clichê da neta rebarbativa foi substituído pelo quadro
que eu vinha traçando. Ela sorriu, e, quase esquecidas de momento as prevenções contra
a TFP, concordou sorrindo.
– Pois é, disse eu à jovem avó. Isto que eu acabo de descrever é o que se chama
Tradição. É a própria vida da família, na riqueza de seu ambiente, transmitida na
continuidade, não só biológica, mas também moral, das gerações. É assim que uma
geração não nasce, da outra, não armada para as reivindicações e as lutas contra os mais
velhos, mas preparada para mútua compreensão. A continuidade assegura a paz e o
entendimento entre o dia de ontem e o de hoje. E o dia de hoje pode olhar para o de
amanhã, sem medo de ser massacrado.
– Não gosto e não gosto, insistiu ela. Pense só naqueles lordes da Inglaterra, por
exemplo.
– Pois bem, dona Cesarina. Nada vejo de terrível nos lordes. Saiba a senhora que a
tradição não é privilégio de lordes. Um pouco por toda a parte, na Europa, a senhora não
encontra a tradição popular ainda viva? Não a guardam muitos camponeses da Serra da
Estrela e do Tirol, da Bretanha ou da Sicília? No Brasil, não há vestígios de tradição nas
mais variadas camadas sociais, desde as famílias de 400 anos (muxoxo de dona
Cesarina) até as famílias modestas do mais retirado interior? Não guardam, muitas
famílias de imigrantes, encantadoras tradições de suas pátrias de origem?
As birras de dona Cesarina são tenazes. Elas tiveram ainda um sobressalto: "O senhor
não pensa nessas multidões urbanas sem tradição? Não vê que, se a vida de família
trouxesse sempre por fruto a tradição, elas também seriam tradicionais? Por que a vida
de família não gera entre elas tradição?"
– A senhora lamenta-as por isto, dona Cesarina. E tem razão. Mas, lamentando-as,
reconhece que a tradição seria para elas um bem. Então, sem perceber, também a
senhora estima a tradição!
– Mas afinal, contestou dona Cesarina, se as multidões urbanas não têm tradição, a
tradição é ou não é o sinal de uma oligarquia?
Dona Cesarina oscilava. À guisa de último assalto, ela me atirou: "Mas então, de onde
vem a falta de tradição?"
– Isto ocorre quando a vida de família é defeituosa. Por exemplo, quando esquece ou
rejeita toda e qualquer tradição. Conheço famílias tradicionalmente antitradicionais,
onde, de bisavô a bisneto, todos falam contra a tradição. Nestas famílias o mais das
vezes, todos brigam entre si porque não se entendem.
Dona Cesarina pensava na neta. Suspirou: "Neste caso, disse-me ela, se tradição é para
todos engulo sua tradição. Mas, quanto à propriedade, não engulo. Troque a palavra por
liberdade ou trabalho. Eu seria da TFL, ou da TFT. Nunca da TFP.
Isto, disse eu, fica para algum outro dia, se daqui a alguns anos nos encontrarmos de
novo...
O grande fato, eloquente em sua simplicidade, é que, em uma coleta que durou apenas
58 dias, efetuada pelos nossos militantes em 176 cidades, 1.500.000 brasileiros de todas
as classes sociais se manifestaram alarmados com essa infiltração, e pediram ao papa
Paulo VI medidas que a sustem.
A isto, que exprime com clareza a mentalidade da grande maioria dos brasileiros, e
denota um estado de sanidade da opinião pública verdadeiramente alentador, se
contrapõe, como aspecto negativo da realidade nacional, o gênero de reações que nossa
campanha suscitou por parte de uma irritada minoria:
b) Pelo contrário, quase por toda parte, nossos militantes, sempre exemplarmente
corteses e serenos, foram visados por arruaças e agressões físicas de pequenos punhados
de baderneiros. Tinha essa gente o intuito de dispersar as nossas bancas e afugentar o
público que as procurava;
c) Ao mesmo tempo, uma verdadeira onda de calúnias foi lançada contra a TFP, por
certa imprensa, para confundir o povo e impedi-lo, assim, de assinar a mensagem a
Paulo VI.
Expondo estes fatos aos mil e quinhentos paulistanos que lotavam o auditório da Casa
de Portugal, concluí que a referida minoria pensa exatamente como o pe. Comblin. Com
efeito, esse agitador de batina (ou, talvez, de clergyman) afirma, em seu famoso escrito,
que a maioria dos brasileiros é incontaminável pelo esquerdismo, e que incumbe à
minoria impor-lhe um regime populista, à viva força. Como, à viva força – comentei eu
então – a União Soviética acabava de impor sua tirania à Tchecoslováquia.
Estas reflexões, acolhidas por palmas estrepitosas e intérminas – que indicavam quanto
aquele numeroso público sentia a procedência das minhas afirmações – sou obrigado, a
contragosto, a reproduzi-las hoje neste artigo.
Com efeito, à maneira de fogo de artifício final, foram postas em circulação, nos
últimos dias de nossa campanha, algumas calúnias reunidas em uma só notícia, à qual se
deu larga divulgação pela imprensa. Não sei que órgão irresponsável a publicou em
primeira mão. O fato é que ela foi, a seguir, reproduzida por vários jornais dotados de
um prestígio que os torna dignos de toda a atenção.
Não cremos que essa investida "in extremis" haja causado impressão no público. O ódio
de tal maneira carregou as tintas, nessas calúnias, que ultrapassou todo limite da
verossimilhança. "Tudo o que é exagerado é insignificante", disse certa vez Talleyrand.
Por essa razão, nada há de mais insignificante do que a mentira exagerada e
mirabolante. A TFP negligenciaria, pois, normalmente, de dar resposta a esse feixe de
inverdades.
Mas há uma circunstância que nos obriga a falar. É que, como base dessas mentiras, foi
mencionado o nome de uma dama, o da primeira-Dama do País. O cavalheirismo nos
obriga, pois, a esclarecer o assunto.
A calúnia-base é que a TFP teria obtido ardilosamente de da. Iolanda Costa e Silva que
assinasse um manifesto contrário ao presidente Frei. A partir desse fato, a polícia,
alertada, teria instaurado um inquérito sigiloso sobre nossa organização. Esse inquérito,
por sua vez, teria revelado que nossos militantes, sujeitos a uma disciplina nazi-fascista,
ganham da TFP 20 cruzeiros novos por dia, para atuar na campanha, e que a entidade
gasta um milhão e quinhentos mil cruzeiros novos por mês.
Ora, o fato que teria originado o inquérito pura e simplesmente não existe. A TFP
jamais lançou um manifesto contra Frei. Jamais, portanto, pediu para ele a assinatura de
da. Iolanda. A esposa do chefe de Estado assinou, isto sim, nossa mensagem pedindo a
Paulo VI medidas contra a infiltração esquerdista em meios católicos do Brasil. Mas
esta mensagem, cujo texto está nas mãos de todos, não contém a menor referência a
Frei. E seria estapafúrdio que contivesse.
É notório que um dos membros do nosso Conselho Nacional, o sr. Fábio Vidigal Xavier
da Silveira, publicou, há 14 meses atrás, um volume contendo sagaz e brilhante
reportagem sobre o governo Frei. E que nessa reportagem há várias críticas à linha
política do chefe de Estado do país amigo. Mas é absurdo dizer que quem assinou nossa
mensagem a Paulo VI implicitamente afirma conhecer e aplaudir aquela reportagem.
Como se quem aprova um gesto de alguém, num ponto muito definido, lhe aprovasse,
ipso facto e necessariamente, todas as atitudes que tomou em outros terrenos
inteiramente diversos.
Julgamos o presidente Frei inteligente demais para ter levantado, a este propósito,
qualquer objeção.
Aguardamos que Frei deixasse nosso território para publicar este desmentido. Aqui está
ele, para os inúmeros leitores da "Folha de S. Paulo", e, pois, por fácil osmose, para os
de todo o Brasil.
O resto das calúnias cai por si. Se da. Iolanda não foi ludibriada (e sua notória
capacidade intelectual impediria que o fosse), não pode ter havido inquérito sobre o
fato. E se não houve inquérito, o inquérito nada pode ter apurado contra a TFP.
O que dizer do mérito das restantes acusações? "Quod gratis datur gratis negatur".
Afirmou-se que são verdadeiras. Negamo-lo rotundamente. Quem tem provas, que as
produza.
Como se fosse posta em ação pelo aceno de uma vareta mágica, as mil trombetas do
terrorismo publicitário se puseram a deitar alaridos, de Norte a Sul, contra a TFP. A
calúnia entrou por toda parte, e encontrou eco por vezes até em jornais de larga e
incontestável reputação. De repente, como se a vareta se tivesse cansado de a reger, a
orquestração parou com a mesma simultaneidade com que começara. O que resta agora
dessa furibunda investida do terrorismo publicitário? Nada...
Não é de meu feitio perseguir o opositor vencido, nem ir ao encalço do adversário que
cessou de atacar. Calou a detração, calo-me eu. Mesmo porque nada há de mais
desengraçado, para tema de um artigo, do que a calúnia velha, que perdeu a vida e a
capacidade de impressionar.
Limito-me, pois, a afirmar aqui que a suposta participação da TFP em uma conspiração
contra o governo não passa de uma balela inventada pela infâmia e veiculada pelo
sensacionalismo.
E passo a tratar de tema melhor. Melhor, sim, porque doutrinário, sereno e, espero eu,
também acessível.
Dona Cesarina me perguntou por que a TFP não pusera em seu lema "liberdade" ou
"trabalho" em lugar de "propriedade". Não tive tempo de lhe responder então. Tratarei
do assunto agora.
Para Leão XIII, a propriedade forma, com a liberdade e o trabalho, um todo harmônico
e indissociável. De sorte que nega simultaneamente estes três valores, quem nega um só
deles. E afirma implicitamente os três, quem afirma um.
De fato, todo ser vivo – desde a mais modesta célula até um pássaro ou um leão – tem
necessidades e é dotado de aptidões naturalmente destinadas à satisfação dessas
necessidades. Assim, o pássaro ou o leão têm fome, e, por isto, o seu instinto lhes faz
conhecer e apetecer o alimento apropriado. E o seu corpo tem os meios necessários para
se apoderar desse alimento e ingeri-lo. Há, pois, uma correlação natural entre as
necessidades e as aptidões de cada ser vivo.
Este princípio universal aplica-se também ao homem. E daí decorrem, para cada
homem, os três direitos de ser livre, de trabalhar e de se tornar proprietário.
Com efeito, para satisfazer suas necessidades, tem o homem uma alma inteligente e
dotada de vontade, para ver e querer aquilo de que precisa. Seu corpo é, para ele, fonte
de múltiplas necessidades, e instrumento para fazer o que for preciso com fim de as
atender. Desta situação, decorre, para o homem, ter, simultaneamente:
1. O direito à liberdade de agir segundo sua reta razão para atingir o seu fim;
3. O direito de propriedade.
Sim, o direito de propriedade. Não pretendo, neste breve artigo, expor todas as origens
legítimas da propriedade. Vejamos simplesmente como ela nasce da liberdade e do
trabalho.
Porque o homem é dotado de uma liberdade natural, ele não é escravo, mas dono de si
mesmo.
1 – Não é injusto que uns se tornem proprietários, enquanto outros, por doença,
infortúnio ou preguiça, não conseguem para si tal resultado?
Seria o mesmo que perguntar se não é injusto haver gente que goze saúde, passeie ou
viaje, enquanto outros, por doença, infortúnio ou preguiça, não podem fazer o mesmo.
Aos que estão em situação de inferioridade, ajuda-se. Porém não se corta o curso normal
das coisas por causa de situações anormais, culposas ou não.
Sim. Há que coibi-los. Mas nem por isto é o caso de a perseguir e mutilar. Também em
matéria de liberdade e de trabalho há abusos possíveis. Todos concordam em os coibir.
Ninguém concordaria por isto em mutilar ou perseguir a liberdade ou o trabalho.
9 DE OUTUBRO – “VIOLÊNCIA”
Não mencionarei senão fatos recentes, que dizem mais diretamente respeito ao tema de
que vou tratar:
2 – Em Havana, Fidel Castro fez uma de suas famosas arengas, na Praça da Revolução.
Depois de haver denunciado uma onda de terrorismo anticomunista, que estaria
sacudindo a pobre nação martirizada e inconformada, o ditador subiu ao terreno dos
princípios, e manifestou, em nome da ideologia que professa, seu repúdio à
Tchecoslováquia: "Em Cuba, disse ele, não se tolerará uma reedição do problema da
Tchecoslováquia, com prostituição, parasitismo e ideologia quebrantada, uma vez que
somos socialistas coletivistas comunistas". Depois de algumas tiradas contra os
desmandos reais ou supostos de alguns "melenudos" cubanos, ele invoca novamente os
princípios: "Que desejam estes jovens? Julgam que vivemos em um regime liberal
burguês?" E, à guisa de resposta, acrescentou: "Enganam-se. De liberais não temos
nada. Somos comunistas. Senão o entendem pela persuasão, será necessário usar outros
métodos". Logo em seguida, ameaçou com o serviço militar todos os alunos de ambos
os sexos, que abandonassem a escola no período de onze (!) a dezesseis anos. Em
síntese, a ilha dominada pela violência, se revolta. Uma nova onda de violência ameaça
esmagar essa revolta. E, de cambulhada, a juventude das escolas é ameaçada com um
trato brutal. Tudo isto em nome de princípios que importam, por assim dizer, na
canonização da violência.
Estes fatos, li-os há pouco na imprensa diária. Constituem eles, a meu ver, exemplos
arquetípicos não só de violência, como de violência institucionalizada. Digo
institucionalizada, porque praticada pelo Poder Público ou sob a inspiração dele, em
nome dos princípios que ele oficialmente professa.
Isto posto, volto a atenção da esfera mundial, para a América do Sul. No Brasil, a
campanha recentemente levada a efeito pela TFP não constituía senão o exercício
pacífico da livre manifestação do pensamento social e religioso, não só nosso, mas de
um milhão e meio de brasileiros que assinaram nossas listas. A bem dizer, de Norte a
Sul, entretanto, fomos objeto de agressões de pequenas minorias de esquerdistas
fanáticos, que recusavam o diálogo com nossos jovens e iam diretamente às vias de fato.
Quis mostrar isto, também, para realçar que é este, mais do que nunca, o momento de
amarmos os métodos não violentos, e velarmos pela paz. E este zelo pela paz nos leva a
observar que, no presente clima de violência, brincar com o conceito de violência
parece tudo quanto há de mais contra-indicado. E, a meu ver, o movimento "Ação,
Justiça e Paz" entregou-se, desde o começo, a este triste e perigoso brinquedo.
Fê-lo também quando, no ato inaugural de Recife, D. Helder Câmara falou sobre o
caráter não violento de sua organização, lançada, por sinal, sob a égide de Gandhi.
(Preferiram-no a S. Francisco de Assis, cuja festa seria dois dias depois da data
comemorativa do hindu: por que esta preferência, Santo Deus?) Segundo um matutino
paulista, uma faixa ostentada no local tinha os seguintes dizeres: "Ação, Justiça e Paz,
último recurso legal". Isto significa que se o Brasil não se deixar modelar passivamente
por esse movimento o remédio será apelar para recursos ilegais. Ou seja segundo as
aspirações do Pe. Comblin – uma minoria os imporá, então, sua tirania populista. Ora,
que é isto senão uma ameaça de violência? E não é brincar com a palavra "violência",
proclamar-se não-violenta uma organização que não manda enrolar a faixa subversiva,
nem contra ela protesta de público?
Enquanto esta definição não vier, impossível será tomar a sério sua pregação não-
violenta.
"Quem lhe escreve não é um comunista – muito pelo contrário, é, e se honra de ser um
centrista. Um admirador da tradição, um entusiasta da instituição da família, um cidadão
convicto de que, com as devidas reservas, o direito de propriedade ainda tem uma
importante missão a realizar no Brasil.
"Entretanto, não sou admirador da entidade que v. sa. fundou e chefia. Porque, a meu
ver, ela cai num erro análogo ao do comunismo. Se o comunismo é um extremo a TFP é
outro. E todo extremismo é mau.
"Porque não sou extremista, tenho, em face do comunismo, uma posição bem diversa da
que toma a TFP. Acho que é preciso nos mostrarmos pelo menos tão sensíveis ao que
ele tem de bom, quanto ao que tem de mau. Entendo que ele mais deve ser combatido
com cordialidade e concessões do que com polêmicas ou com medidas de repressão.
Pois a reação categórica não faz senão exacerbar os extremistas, enquanto as concessões
os aplacam e lhes extinguem o dinamismo.
"O resultado de toda esta política de concessões tão bem condensada na fórmula lapidar:
"ceder para não perder" seria que, diante de um comunismo distendido e semi-satisfeito,
as medidas de repressão, tão antipáticas e perigosas, se tornariam supérfluas. E nisto
estaria a suprema vitória da tática que preconizo.
"Afinal, se a TFP quer defender a tradição, a família e a propriedade contra o leão que
ameaça devorá-las, por que não concorda em aplacar o leão?
"Porisso, confesso-lhe que, a meu ver, a medida mais certa para se salvar a tradição, a
família e a propriedade não consiste em lutar contra o comunismo, mas – perdoe-me a
franqueza – em fechar a TFP".
Penso que este texto resume, com fidelidade, o pensamento da mais astuciosa, e, ao
mesmo tempo, da mais perigosa das esquerdas: a que se disfarça em centro. E por isto
julgo interessante responder aqui aos principais pontos do manhoso arrazoado. Faço-o,
também, na forma de uma carta.
“Sr. X.
"Além disso, ou a propriedade é um direito, que toca ao homem pela própria natureza
espiritual e livre dele, ou não é. Se é um direito, será justo, será honesto mutilar esse
direito, com prejuízo para milhões de pessoas, só porque os comunistas implicam com
ele?
“Se v. Sa. acha que não é um direito, por que, de uma vez, já não se afirma comunista?
"Passemos a outro ponto. V. Sa. entende que a repressão anima todos os extremismos, e
por isto freme ao ver reprimido o comunismo. Mas, ao mesmo tempo, deseja o
fechamento da TFP, e não teme, com isto, um incremento do ardor e do número de
nossos militantes. Isto é lógico? Em relação a nós, v. Sa. acha que uma extinção pura e
simples resolve tudo... O "ceder para não perder" vale então só para a esquerda, e, para
a direita, o que vale é "esmagar para não perder"?
"Por fim, é verdade que tudo quanto se opõe inteiramente a um mal extremo é, por sua
vez, extremamente mau? Então, os bombeiros, que querem extinguir um incêndio, são
tão odiosos e tão de se temer quanto o próprio incêndio? Ou uma campanha, que visa a
supressão total do analfabetismo, é tão má quanto o próprio analfabetismo?
"Não, esta formulação de que o contrário de um mal extremo é outro mal extremo, não
passa de um jogo de palavras. Assim, por exemplo, o contrário de uma mentira não é
outra mentira oposta, mas a verdade.
– a cada pessoa toca o direito e o dever de fazer por si tudo quanto pode, e a família a
deve auxiliar no que ela não pode alcançar por si;
– a cada família toca o direito e o dever de fazer por si tudo quanto pode, e o município
a deve auxiliar no que ela não pode alcançar por si;
"Mais ainda. Quando uma destas entidades se mostra menos suficiente, na sua esfera
própria, do que naturalmente deveria ser, a entidade de ordem superior deve ajudá-la
não só a sobreviver, mas a recuperar o seu nível normal de suficiência.
"Isto, sim, é o contrário dos extremos nazista e comunista. E é isto o que a TFP aceita,
afirma e proclama. Se isto é extremismo, então 2 mais 2 não é mais igual a 4..."
Essa sensação do caótico nos assalta a cada passo, na vida quotidiana. A todo momento
vemos pessoas cujo procedimento de hoje está em contradição com o de ontem, e
entrará em contradição com o de amanhã. Às vezes, em uma mesma conversa, e até em
uma mesma frase, nosso interlocutor externa convicções que a lógica aponta como
incompatíveis uma com outra. E é cada vez mais raro encontrarmos pessoas que, ao
longo de tudo quanto pensam, dizem e fazem, se manifestam coerentes com alguns
tantos princípios fundamentais.
b) Outros fecham os olhos para o fato e, quando este lhes entra pelos olhos adentro
procuram justificá-lo: a contradição seria, segundo eles, a ruptura necessária do
equilíbrio ideológico de outras eras, o efeito típico do tumultuar fecundo das épocas de
transição; por isto, ela não produz desastres senão na epiderme da realidade, e tem de
ser vista, em última análise, com benigna e sorridente indulgência. A família de almas
que pensa deste modo era muito numerosa até há alguns anos atrás. Mas, vendo que o
assim chamado tumultuar fecundo das contradições vai tomando o cunho de uma
farândola de ritmo endiabrado e consequências sinistras, vão rareando os que
conseguem sustentar, diante dela, a despreocupação risonha e benigna de outrora;
c) Bem mais numerosas são as pessoas que constituem o terceiro grupo ou família de
almas. Elas suspiram diante da contradição caótica de nossos dias, aturdem-se... e não
passam disto. Mudar de posição lhes parece impossível. Pois se a contradição as assusta,
por outro lado, implicam, do mais fundo de sua alma, com a coerência. Elas gostariam
de prolongar, contraventos e marés, seu mundo agonizante que resulta do "equilíbrio"
de ideias contraditórias, as quais se "moderam" umas às outras em amável coexistência.
E como, para essa família de almas, as ideias são feitas para pairar no ar, sem relação
com a realidade, não há, segundo ela, o menor risco de que esse "equilíbrio" de
contradições venha a se romper algum dia com prejuízo para a pacata e boa ordenação
dos fatos. Esta situação, intrinsecamente desequilibrada, se afigura a esta família de
almas a quintessência do equilíbrio. E, como a experiência está a provar,
escancaradamente, a inviabilidade desse equilíbrio, ela se encontra diante de uma opção
que a aterroriza: de um lado, o caos que lhe entra como um tufão pela casa e pela vida
adentro, e de outro lado uma coerência que lhe parece correta talvez no plano da lógica,
mas espetada, desalmada, hirta, e, numa palavra, desumana. Estarrecidas diante da
opção, as pessoas pertencentes a esta família de almas param. E ficam a suspirar, de
braços cruzados, na espera obstinada de alguma coisa que faça cessar o caos, sem que se
tenha que implantar o reinado da coerência.
Quanto lar há que acolhe com um sorriso cúmplice a novela de televisão imoral, ou o
livreco piegas e sensual, que pinta com cores fascinantes a imagem da vida mais
dissoluta. Neste lar se nutre a certeza de que tais miragens não produzam senão efeitos
puramente platônicos. Depois, se o filho ou a filha se transvia, as demais pessoas
declaram que "não entendem mais nada", e que "o mundo de hoje é um caos".
Porém, na mesma família que figuramos, em que entram a novela e o livreco imoral, o
pai e a mãe por vezes pregam também, para manter o equilíbrio baseado na contradição,
alguns princípios cristãos de moral ou de ordem. Falam sobre a legitimidade da
propriedade, declamam contra o comunismo e mantém o respeito por certas tradições
morais. Na mesma fábrica cujo dono se diz socialista avançado, se faz propaganda
anticomunista. E se, de repente, um filho ou um operário arvora o estandarte da TFP, a
surpresa e, logo depois a implicância, são enormes. Como imaginar que esse
"equilíbrio" houvesse de se desatar em uma opção coerente? Que esses princípios de
ordem houvessem de deixar o mundo platônico das ideias para engendrar militantes que
os quisessem inserir na ordem concreta dos fatos? Como aceitar a presença, no convívio
familiar, de pessoas coerentes, lógicas, que tomam a sério o que se lhes ensinou sobre os
fundamentos da ordem social e da civilização cristãs?
Assim, em suma, nessa família de almas se professa uma cômoda e risonha desordem de
ideias. Desordem que vem do convívio, em uma região toda platônica, entre fragmentos
de bem e de mal, de erro e de verdade. Alguns, dentro desse ambiente, optam pela
integridade da desordem. Outros, pela da ordem. E por isto, nessa família de almas, cai-
se em susto e em pranto.
A situação dessa família de almas suscita problemas de mais alto vôo. A ruína deste
equilíbrio de contradições não importa em uma marcha para a unilateralidade, o
exagero, em suma, a radicalização?
O primeiro foi o lançamento de sua "Ação, Justiça e Paz", na cidade de Propriá, coração
de uma zona de Sergipe considerada altamente propícia à expansão desse movimento.
No ato, D. Helder não fez cerimônias, e, apesar do apregoado caráter pacífico de sua
ação, acenou com o perigo da violência, para o governo e o País. E violência com prazo
certo: "Cinco anos é o tempo em que, se o governo não resolver os problemas
brasileiros, a violência que se esboça ganhará campo, e então não haverá forças que
possam sustá-la", proclamou ele. Em outros termos, ou o Brasil se submete
humildemente às reformas exigidas pelo fogoso prelado, ou, segundo ele vaticina, a
violência estourará com o Brasil.
E, que nos conste, ninguém saiu a campo para apresentar ao fundador da "Ação, Justiça
e Paz" qualquer objeção. Pelo menos, a pequena objeção que aqui exponho: ou o Brasil
está consciente de toda a apregoada extensão de sua miséria, ou não está. Se está, do
que adianta a "conscientização" promovida com tanto alarido por D. Helder? Se não
está, não é precisamente essa "conscientização" que pode trazer a violência que D.
Helder profetiza? Pois, em última análise, nenhum povo se revolta contra aquilo que
não vê, que ignora, de que não tem consciência.
Outro êxito para D. Helder foi o comunicado com que a Comissão Central da
Conferência Nacional do Bispos do Brasil encerrou sua reunião. A certa altura, o
documento externa alegria porque "por toda a parte, bispos e presbíteros do Brasil"
promovem "movimentos destinados a ajudar a ascensão humana e cristã de imensas
massas marginalizadas em nosso país". Nesta frase evidentemente se inclui, entre
outros, o movimento de D. Helder.
Depois do elogio, vem a defesa daquele órgão episcopal contra os ataques feitos aqui e
acolá a esse movimento: "Alegra-nos ver, é justo proclamar que tais movimentos não
são inspirados por nenhum personalismo ou desejo de autopromoção nem se armam
contra pessoas ou instituições nem visam criar comoções ou rebeldias. Suas raízes são
pastorais. (...) E são assim uma força contra a violência (a das estruturas e da rebelião) é
uma força (quem sabe das últimas) em favor da paz (...)".
Se estas palavras são merecidas, sem a menor ressalva ou restrição, pelos movimentos
que, "por toda a parte", bispos e presbíteros estão promovendo, é claro que incluem
Recife, que é uma das "partes" do Brasil, D. Helder que é o arcebispo daquela "parte", e
o movimento que ele fundou.
Em suma, achamos impossível não ver, nesses textos, o elogio discreto mas categórico,
a defesa implícita mas firme, da "Ação, Justiça e Paz" pelo mais alto organismo
eclesiástico do Brasil. É o segundo êxito de D. Helder.
Se nossa interpretação é inexata, se as palavras não têm mais seu sentido natural, e a
Comissão Central da CNBB pensa o contrário do que aí está, se ela não acha defensável
nem elogiável o movimento de D. Helder, é aliás só dizê-lo claramente. Incontáveis
fiéis se rejubilarão com isto.
Mas, ponderará alguém, a TFP, pelo menos, também não está incluída nesse elogio
genérico?
A investida é dura. Haveria vários "aspectos graves" em nossas atividades. Isto teria
ficado provado na reunião da Comissão Central, sem que fôssemos sequer ouvidos.
Quais são estes aspectos? Só se mencionaram dois. Um é nossa suposta filiação ao
integrismo (que não é o integralismo, com o qual também nada temos que ver). A
notícia não dá as provas, e se contenta em acusar. O outro é ainda mais confuso: o que
são as assim chamadas "interferências na vida das dioceses"? Como pode alguém
defender-se de acusações assim lançadas ao ar? Não obstante o vago de tudo isto, o
público ficou sabendo que a Comissão Central da CNBB já decidiu, em princípio, tomar
"medidas práticas" contra o suposto mal. Que medidas? Aguardemos.
Nesse repúdio da TFP, nessa rejeição, nessa severidade, como não ver que ela atinge o
milhão e meio de brasileiros que assinaram nossa Mensagem e cujo clamor a Comissão
Central ignora? Com efeito, a Comissão Central dos Bispos não teve uma palavra de
preocupação com a infiltração esquerdista em meios católicos. Ela não se preocupa com
esse mal. Mas toma atitude contra a entidade que teve a coragem de denunciar tal
infiltração. E como não exultará com isto o pe. Comblin? Nesta vitória do pe. belga
sobre 1.500.000 brasileiros vai um êxito indireto para d. Helder, que lhe confiou uma
cátedra e nunca consentiu em o desautorizar.
Por fim, uma pergunta melancólica, talvez um pouco à margem do tema: quando a
imoralidade invadiu certos setores do campo católico, quando num Boletim editado sob
os auspícios da CNBB se faz o elogio do nu e da cena pornográfica no teatro (cf.
"Boletim Telepax", nº 125), quando em uma revista católica se defende a
homossexualidade (cf. "Vozes – Revista Católica de Cultura", setembro de 1967, pags.
792 a 803), e freiras se exibem em indecentes maiôs de banho (cf. "O Cruzeiro", edição
de 20-7-68), por que silencia sobre isto a Comissão Central da CNBB, ao mesmo passo
que elogia o movimento de d. Helder e ataca a TFP?
Leitores talvez haja, que se zanguem com a pergunta. Não adianta zangar, nem ficar
sentido. Pois ressentimento e zanga não constituem argumento.
"Campos, 30 de outubro de 1968. Muito prezado Dr. Plinio: Com pesar, tomei
conhecimento de um comunicado distribuído pelo serviço de imprensa da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, a propósito dos assuntos ventilados na reunião de sua
Comissão Central, realizada neste mês. Há nele um julgamento sobre a natureza e as
atividades da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, de
cujo Conselho Nacional o prezado amigo é digno e eficiente presidente, que não
corresponde à realidade. Diz o comunicado que a TFP insere-se na corrente "integrista"
do século passado. Diz além disso, que um dos aspectos mais graves de sua atividade é
a sua interferência na vida das dioceses. Tal julgamento, sem diminuir em nada a
consideração e o respeito que devo aos ilustres membros da Comissão Central da
CNBB, em consciência, devo reprovar.
"É verdade que o comunicado relaciona-se com a reunião da Comissão Central, da qual
não faço parte. Não obstante, nas atuais circunstâncias, meu silêncio poderia parecer
uma tácita aprovação concedida ao ato da Diretoria da CNBB. É, pois, no cumprimento
de um dever de consciência, que venho manifestar ao prezado amigo meu pesar e meu
desacordo com relação ao julgamento que a Comissão Central da CNBB fez da natureza
e atividades da TFP. "Non dicas malum bonum aut bonum malum", adverte o Pontifical
ao Bispo, quando ele se sagra. Foi a advertência que ditou esta carta.
"De fato, sei que a TFP não tem qualquer ligação nem real nem ideológica, com o
chamado "integrismo", aliás, tão misterioso que pode um escritor francês intitular um de
seus livros "L'integrisme cet inconnu" [O integrismo este desconhecido, ndc]. É certo
que a TFP fez campanhas contra a reforma agrária socialista e confiscatória, que
combateu a implantação do divórcio no projeto do novo Código Civil, que despertou no
povo a repulsa contra a infiltração comunista nos meios católicos. Tachar de integrismo
a oposição a tais reformas é fazer abstração de princípios fundamentais da doutrina
católica. Com efeito, são pontos líquidos da lei natural – campo em que age a TFP – o
direito de propriedade e a indissolubilidade do matrimônio. Por isso mesmo, a Igreja
sempre os ensinou e defendeu, numa tradição ininterrupta: um, contra o socialismo
invasor; outra, contra os assaltos da sensualidade. Assim também o comunismo, desde
que apareceu ela o considerou intrinsecamente mau na definição clara da Encíclica
"Divini Redemptoris" de Pio XI. E para que não houvesse dúvida sobre o alcance
doutrinário desse documento papal, Pio XII declarou que é em virtude da doutrina cristã
que se deve rejeitar o sistema social do comunismo (al. Natal, 1955).
"Deduzir das campanhas da TFP que ela é integrista, é concluir demais. A não ser que –
hipótese de excluir-se – se queira, como em certos círculos da França, tachar de
"integristas" todos e só aqueles que combatem o comunismo e o relaxamento dos
costumes entre os fiéis.
"Também não vejo como se possa censurar a TFP porque faz uso do direito, que lhe
assegura a Constituição do País, de externar suas ideias e realizar suas campanhas,
pacificamente – como sempre tem feito – em logradouros públicos. Pacificamente, digo,
porque não se podem atribuir à TFP as agressões de que ela tem sido vítima. Seria uma
impudência.
"E não venham acusar esta carta de "divisionismo". A união não é coisa que se possa
impor na base de um julgamento falso. Seria, aliás, ilícita. Tanto mais quanto se toleram
divergências nada menos do que na aceitação de um documento do Papa, como é a
Encíclica "Humanae Vitae", publicado precisamente com a intenção de reunir os
católicos em torno da doutrina e da prática relativas ao ponto delicado do controle dos
nascimentos.
"Resta-me felicitá-lo e a toda a TFP, pelos brilhantes êxitos das campanhas realizadas
contra o agro-reformismo socialista e confiscatório, contra o divórcio e contra a notória
infiltração comunista em meios católicos.
"Que Nossa Senhora continue a proteger a TFP, como tem feito até o presente, são meus
votos, os mais ardentes".
E passo agora a outro assunto: uma entrevista que d. Vicente Scherer, arcebispo de
Porto Alegre, e vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, concedeu
ao "Correio do Povo" de 29 de outubro. Dentre as declarações do ilustre Prelado,
destaco duas.
Ora, d. Scherer foi quem presidiu a recente reunião em que a Comissão Central da
CNBB tomou posição contra a TFP, sem sequer ouvir esta. Permito-me uma pergunta: o
colendo órgão não merecerá reparo muito semelhante?
Entre as primeiras notícias depois da vitória de Nixon, chamou-me a atenção uma sobre
o princípio inspirador da política de paz do futuro presidente. A paz deveria, segundo
este, continuar a ser negociada com todo o empenho, mas a partir de uma posição de
força, e não de moleza.
O enunciado deste princípio contém uma censura implícita à política de paz de Johnson.
Pelo menos de algum tempo para cá, esta não se tem baseado em posições de força. É o
que recente atitude dos Estados Unidos, nas negociações de Paris com o Vietnã do
Norte, tornou meridianamente claro.
b) Ao mesmo tempo que o colosso soviético foi polindo suas arestas em relação ao
Ocidente, ele pareceu enfraquecer-se dentro do próprio mundo comunista: o cisma
iugoslavo, o cisma chinês, os ímpetos autonomistas verificados em alguns países
satélites da Europa, foram dando a impressão de que o poderio soviético ia decaindo
sensivelmente;
c) A opinião pública do Ocidente, cuja maioria fora, até então, favorável a uma rígida
política anticomunista, se viu posta diante de dois problemas: à vista deste adversário, já
agora tratável, seria o caso de manter a intransigência de outrora? Dado o declínio de
sua força, seriam ainda aconselháveis contra ele as medidas de cautela antigamente
indispensáveis?
Pari passu, os ingleses se retraíram do Oceano Índico, deixando um vácuo perigoso, que
os Estados Unidos não preencheram. A diplomacia soviética vem explorando a fundo
essa situação militar que deixa aterrorizadas e à mercê da Rússia as nações não
comunistas do sul da Ásia.
Por outro lado, a diplomacia soviética soube estimular, com habilidade mefistofélica, as
pretensões de Gaulle. Com isto, a França se distanciou dos Estados Unidos, a unidade
política da Europa Ocidental se quebrou, e a NATO sofreu um golpe do qual
provavelmente não se refará.
Enquanto tudo isto se passava, no interior da União Soviética os germes de
descontentamento foram reprimidos cruelmente. E de novos progressos da iniciativa
privada e da descentralização não se tem falado mais.
A experiência provou que o caminho da paz não passa pelo pantanal das concessões
sistemáticas e incondicionais.
Tudo isto posto, resta-nos fazer votos de que Nixon seja fiel a sua bela máxima de
procurar a paz na diplomacia com firmeza.
(*) Nota inserida pelos compiladores: “A República Árabe Unida (RAU) foi um país
que nasceu da união entre as repúblicas do Egito e da Síria, estabelecida em 1 de
fevereiro de 1958, como um primeiro passo a caminho da "nação pan-Árabe" (Ver Pan-
Arabismo) e desmantelada em 1961 na sequência de um golpe de estado. Foi criada
quando um grupo de líderes políticos e militares da Síria, preocupados com o perigo da
derrubada do seu regime por comunistas, pediram ajuda ao Egito de Gamal Abdal
Nasser.
“A união das duas nações tinha como capital o Cairo e, após a sua nomeação em 5 de
fevereiro de 1958, a presidência de Nasser. Conselheiros e técnicos egípcios estiveram
activos na Síria e a ameaça comunista foi derrotada.
“Ironicamente, a nova nação acabou por ser suportada por precisamente aquela mesma
força que ela receava. A União Soviética, desejosa de angariar alianças na Guerra Fria,
começou a vender armas para a jovem república, uma prática que continuaria, mesmo
depois do colapso da RAU. Esta caiu em 1961, após um golpe de Estado na Síria. O
Egito continuou a intitular-se RAU até à morte de Nasser em 1970” (cfr. Wikipédia em
português).
O noticiário telegráfico desta semana me induz a dizer algo sobre Gomulka. Para
compreender a atuação desse líder comunista, é preciso ter em linha de conta o
problema de assimilação que sua pátria, a Polônia, criava para os soviéticos nos idos do
pós-guerra.
Como se sabe, a Polônia tem duas características: é maciçamente religiosa, e
heroicamente ciosa de sua independência. Ambas estas características tornavam
provável a irrupção de uma intérmina guerrilha religiosa e nacionalista, caso se
prolongasse a ocupação soviética no país. Claro está que nem por isto os russos
retirariam de lá as suas tropas. Mas essa guerrilha traumatizaria a fundo a Europa e o
mundo, e cristalizaria contra o Cremlim um descontentamento universal, no momento
mesmo em que os sucessores de Stalin começavam a vasta propaganda do seu plano de
"amolecimento". Ora, como convencer o mundo desse "amolecimento", calcando ao
mesmo tempo aos pés uma Polônia ensangüentada e indomável? Impunha-se, pois, para
o Cremlim, a adoção de uma terceira via, que não importasse para ele nem em perder a
Polônia, nem em esmagá-la.
Como por encanto, surgiu então das fileiras do PC polonês um "patriota", que se fez
eleger Chefe de Estado, estribando-se no seguinte arrazoado, mais ou menos explícito.
1. Sou polonês, e outra coisa não desejo senão a independência do meu país. Por isto,
convido todos os poloneses, de todas as tendências, a me apoiarem;
2. Bem entendido, sou comunista, quero para meu país o sistema comunista;
Que fazer? Eleger Gomulka? Uma vez ele empossado, até que ponto contar com sua
coerência, com sua força, com sua abnegação e sobretudo com a sinceridade de seu
entusiasmo, para a árdua realização das promessas que fizera?
É muito agradável ser otimista. A gente evita insônias e dores de cabeça, pelo menos até
o momento, às vezes remoto, em que se percebe estar no fundo do abismo. Prevaleceu o
otimismo...
Gomulka foi eleito. Um coro de elogios se levantou então, em favor dele, na Europa.
Foi desse coro que ouvi em Roma algumas notas entusiásticas. Feliz Polônia que
engendrara em seu seio homem tão certo, tão evidente, tão indiscutivelmente sincero em
seus arroubos patrióticos quanto Gomulka – dizia-se enfaticamente.
Aquietada por Gomulka, a Polônia não se rebelou. O regime comunista ali se impôs
pacificamente. De cordiais que haviam sido de início, suas relações com a Igreja se
foram deteriorando dia a dia. Gomulka foi-se aproximando lentamente do Cremlim e
acabou por ser, nas mãos dos soviéticos, um pró-cônsul tão dócil quanto o da Hungria
ou da Alemanha Oriental. Há pouco, cerrou fileiras com os russos para esmagar a
Tchecoslováquia. E nestes últimos dias, logo depois de se fazer reeleger secretário do
PC polonês (cargo mais alto do que o de Chefe de Estado), pronunciou um discurso
entusiasticamente pró-soviético. Considerada em seu conjunto, a atuação de Gomulka
serviu exatamente os interesses do Cremlim: sem ter de enfrentar guerrilhas inglórias,
conseguiu este submeter a Polônia à "linha justa" de Moscou.
É pois à guerra, e não à paz, que levaram, neste caso como em tantos outros, o otimismo
fácil e o gosto pelas acomodações falaciosas.
Então, para que capitular? Haverá ainda espíritos acomodatícios que, depois disto, não
vejam que capitular assim não é favorecer a paz, mas eternizar a guerra?
A maioria dos leitores não conhece um dos atuais bispos auxiliares de d. Jayme, d. José
de Castro Pinto, e como, por dever de legítima defesa, dele me ocuparei no presente
artigo, é preciso que – à guisa de apresentação – diga sobre S. Exa. o que sei. É pouco,
mas os leitores verão que diz muito.
Ao lado do pe. Adamo, o prelado atuou em vários episódios da crise universitária. Este
é um dado. Outro, bem diverso, e que vem diretamente ao caso deste artigo é o seguinte:
s. exa. publicou, há pouco mais de um ano, um artigo sobre o protestantismo e o
ecumenismo, que causou estranheza (cf. "Jornal do Brasil", de 30-10-67). Destaco três
trechos do trabalho. No primeiro, d. Castro Pinto admite que "muitos dos valores
espirituais" do cristianismo "possam ter-se desenvolvido melhor" na seita fundada pelo
frade apóstata Martinho Lutero do que no grêmio bendito da Santa Igreja Católica,
fundada por Jesus Cristo. Reconheçamos que na pena de um bispo a afirmação
desconcerta. Dessa afirmativa o prelado parte para outra também espantosa: "É
exatamente reconhecendo isto que não mais falamos em conversão dos outros para
nossa Igreja". Assim, a Igreja fundada pelos Apóstolos já não faz apostolado. E, pouco
adiante, S. Exa. repisa: "Se em muitas coisas a mensagem evangélica está lidimamente
conservada na Igreja Católica, inclusive o conjunto da mensagem, muitas coisas foram
melhor defendidas e conservadas fora". Em outros termos, se alguém quiser conhecer
em toda a sua extensão, plenitude e limpidez a doutrina dos Evangelhos, não lhe basta
beber das águas cristalinas da Igreja. É preciso recorrer a Lutero, a Calvino, a
Melanchton, a Zwinglio, a quanto heresiarca tem dilacerado a túnica de Cristo e
perseguido seu Corpo Místico.
O terceiro dado que possuo sobre d. Castro Pinto é que, quando estourou o "escândalo
Comblin", s. exa. saiu pela imprensa a externar sua simpatia e seu apreço pelo professor
anticlerical e subversivo do Instituto Teológico de Recife. Este dado se coaduna
perfeitamente com as frases de s. exa. que acabo de citar.
Pois a este prelado, que leva a tão extremos e inesperados limites o espírito de
conciliação, alguns jornais atribuíram uma entrevista na qual ataca rudemente a TFP.
Teria s. exa. afirmado que a TFP fala em nome da Igreja sem ter poderes para isto, e
que, quando o faz, "apresenta sempre uma orientação diversa e contrária (sic) à posição
assumida pela Igreja". Escrevi então a d. Castro Pinto uma carta em que eu lhe pedia
desmentisse a entrevista provavelmente apócrifa. E que, se não a pudesse desmentir,
que citasse uma só prova de a TFP se haver inculcado como porta-voz da Igreja.
Acrescentei que se a TFP, em suas atitudes, apresenta sempre um orientação "diversa e
contrária" à da Igreja, então nossa vitoriosa campanha de um milhão de assinaturas
contra o divórcio teria sido contrária à doutrina da Igreja. E perguntei: então a Igreja é
divorcista? E concluí daí pela provável inautenticidade da entrevista.
Minha carta, irrepreensivelmente correta e cortês, foi publicada por vários jornais.
Ao contrário de Lutero, ou do pe. Comblin, não caí entretanto nas boas graças do bispo
auxiliar. E por isto s. exa. dardejou contra a TFP e contra mim uma entrevista ácida e
injuriosa, publicada em um vespertino paulistano. Vejo-me, pois, reduzido à legítima
defesa. Nossa época não aprecia as polêmicas verbosas e difusas. Ela gosta do extremo
oposto, isto é, das discussões rápidas, das notícias densas e pequenas como um
comprimido, das histórias em quadrinhos. Imaginei, pois, responder a d. Castro Pinto
usando o sistema de quadrinhos [por uma facilidade grafica, apresentamos o texto como
segue abaixo, ndc].
D. Castro Pinto:
1. "Li (a carta do presidente da TFP) por cima, rapidamente, vi que não era nada de
urgente ou importante. Ainda não tive tempo de ler outra vez para mandar a resposta".
2. D. Castro Pinto diz que não se lembra de ter dito aquilo (os seus ataques contra a
TFP) alguma vez.
4. A TFP "tem muito dinheiro, é financiada por gente que tem interesse em criar uma
falsa imagem da Igreja, uma imagem de divisão".
5. Na última reunião da CNBB, d. Castro Pinto foi um dos três bispos que formaram a
comissão encarregada de estudar o caso da TFP.
6. D. Castro Pinto afirmou que a decisão de ignorar a TFP foi tomada nessa reunião.
1. Então, a boa fama da TFP ou de quem quer que seja, é coisa sem importância para
um pastor de almas?
4. Prove. Quem são esses bandidos endinheirados? Quais os seus nomes? Com que
direito d. Castro Pinto me tacha de mercenário, quando desde a mais tenra juventude
minha linha de pensamento e ação sempre foi esta que hoje tenho?
6. Como é notório, a CNBB difundiu por toda a imprensa uma notícia fortemente
contrária à TFP. Depois, resolveu que a TFP não tem importância. E sem ouvir a TFP,
dá o caso por julgado e encerrado. Assim, quem "não tem importância" pode ser
injuriado à vontade, sem ser ouvido?
Ademais, a TFP é tão sem importância? O pe. Comblin que o diga... Digam-no os
adeptos do divórcio... E os fomentadores da reforma agrária socialista e confiscatória...
Frei Japi, do Convento de São Domingos, oficiou, há pouco, uma cerimônia nupcial
segundo um texto litúrgico original. Tal texto foi publicado – no todo ou em parte, não
sei bem – por um vespertino digno de crédito. Pretendo comentar hoje essa inovação
litúrgica, usando ainda uma vez o processo dos quadrinhos.
Passemos ao quadro, não sem notar que, muito laica e igualitariamente, o folheto se
refere ao sacerdote chamando-o simplesmente "Japi".
1) – Japi – Amigos. A. e M. querem comunicar o amor que os une e pedem a mim que
presida esta cerimônia. Aos amigos presentes, que sejam testemunhas e que com eles se
solidarizem.
2) – Noivo – A., hoje venho contente. Minha procura de uma vida autêntica para
conhecer o mundo e o homem, o que aspiro criar e comunicar, meu trabalho e a busca
do verdadeiro e do justo, quero fazê-lo com você.
3) – Noiva – M., eu acredito em nós, e sabendo que existe uma força de expansão e de
relação chamada amor, impelindo o homem a sair de si para se construir um grupo,
confirmo minha vontade clara de viver junto de você.
4) – Todos os presentes – Sabemos das dificuldades que toda união acarreta e aspiramos
à solidariedade e à compreensão, para podermos crescer em felicidade.
6) – Noivo – Eu tomo a você, A., para minha amada mulher e estarei com você em
companhia do mundo, durante todo o tempo em que o amor nos mantiver unidos.
7) – Noiva – Eu tomo a você, M., para meu homem amado e quero estar com você em
companhia do mundo durante todo o tempo em que o amor nos mantiver unidos.
Comentários:
4) – "Toda união": o casamento não é senão uma união como outra qualquer?
5) – Aqui vem expresso o que a sociedade tem o direito de esperar dos noivos. A
fraseologia – como dissemos – é própria do reformismo vago, tendencioso e
demagógico do tipo "Comblin". De família, de prole, de educação, nenhuma palavra,
desde que o texto se entenda sem interpretações charadescas.
6) – Neste trecho, a amoralidade do folheto litúrgico aflora por inteiro. Esta fórmula
importa na aceitação do amor livre, segundo as mais audaciosas teorias comunistas. Pois
ela faz depender a estabilidade do casamento do mero fato da constância do "amor". Ou
seja, qualquer das partes, a qualquer momento, pode dar por findo o casamento,
alegando que o "amor" cessou.
7) – Comentário análogo ao anterior. É de se notar a expressão "meu homem", tão
pouco usual no Brasil, para indicar o esposo, e tão própria para caracterizar uma
situação irregular e extramatrimonial.
Como é fácil ver, estes textos não se ajustam de modo algum à doutrina católica.
Correspondem talvez a qualquer outra religião... Ou irreligião.
Mas, dirá alguém, quem sabe se o folheto é mais amplo, e a par destes contém alguns
trechos bons? É forçoso responder, então, que se os tais possíveis trechos bons
correspondem à doutrina católica, nem por isto os que aqui citamos deixam de aberrar
dela.
Segundo a todos os momentos ouço repetir, a justiça manda que, no ponto de partida da
vida, todos tenham as mesmas oportunidades. Assim, a educação deveria ser igual para
todos, e iguais os currículos nas diversas profissões. Quem tivesse mais valor
sobressairia fatalmente. O mérito encontraria seu estímulo e sua recompensa. E a justiça
– enfim! – imperaria sobre a face da terra.
Este modo de ver assume, por vezes, uma formulação com matizes "cristãos" (e qual o
desatino que não procura hoje um disfarce "cristão"?). Deus – argumenta-se – premiará
no fim da vida os homens segundo seus méritos, sem tomar em consideração o berço em
que cada qual nasceu. Na perspectiva da justiça divina, e para efeitos de eternidade,
haveria, pois, uma negação do valor dos pontos de partida. É louvável, é digno, é
cristão, neste caso, que os homens procurem organizar a existência terrena segundo as
normas da celestial justiça. E que, portanto, as vantagens da vida terrena fiquem
igualmente ao alcance de todos, e acabem por ser conquistadas pelos mais capazes.
Antes de analisar este princípio em si mesmo, é bom que anotemos algumas das
aplicações que dele se ouvem aqui e acolá.
Não são tão raros os que, tendo ao longo da existência acumulado boas economias,
sentem na consciência um certo mal-estar diante da ideia de os transmitir aos filhos: não
se beneficiarão estes, ipso facto, de um privilégio antipático e injusto, adquirindo bens
que não lhes vieram nem do trabalho próprio, nem do mérito pessoal?
Como explicar que se possa, ao mesmo tempo, endeusar tanto o mérito, e negá-lo tão
completamente?
Acresce que a família não é mera transmissora de dotes biológicos e psicológicos. Ela é
uma instituição educativa, e, na ordem natural das coisas, a primeira das instituições
pedagógicas e formativas. Assim, quem for educado por pais altamente dotados do
ponto de vista do talento, da cultura, das maneiras ou – o que é capital – da moralidade,
terá sempre um ponto de partida melhor. E o único meio de evitar isto é suprimir a
família, educando todas as crianças em escolas igualitárias e estatais, segundo o regime
comunista. Há assim uma desigualdade hereditária mais importante do que a do
patrimônio, e que resulta direta e necessariamente da própria existência da família.
E este verdadeiro crime contra o amor paterno, que é a supressão da herança, poderá
cometer-se em nome da Religião e da Justiça?
É de Emile Faguet, se não me engano, o seguinte apólogo: havia certa vez um jovem
dilacerado por uma situação afetiva crítica. Queria ele com toda a alma sua graciosa
esposa. E tributava afeto e respeito profundos à sua própria mãe. Ora, as relações entre
nora e sogra eram tensas e, por ciumeiras, a jovem encantadora mas má, concebera um
ódio infundado contra a idosa e veneranda matrona. Em certo momento, a jovem
colocou o marido entre a espada e a parede: ou ele iria à casa da mãe, a mataria, e lhe
traria o coração da vítima, ou a esposa abandonaria o lar. Depois de mil hesitações, o
jovem cedeu. Matou aquela que lhe dera a vida. Arrancou-lhe do peito o coração,
embrulhou-o em um pano, e se dirigiu de volta para casa. No caminho, aconteceu ao
moço tropeçar e cair. Ouviu ele então uma voz que, partida do coração materno, lhe
perguntou cheia de desvelo e carinho: "Tu te machucaste, meu filho?"
Com este apólogo, quis o autor destacar o que o amor materno tem de mais sublime e
tocante: seu desinteresse completo, sua inteira gratuidade, sua ilimitada capacidade de
perdoar. A mãe ama seu filho quando é bom. Não o ama, porém, só por ser bom. Ama-o
ainda quando mau. Ama-o simplesmente por ser seu filho, carne de sua carne e sangue
de seu sangue. Ama-o generosamente, e até sem nenhuma retribuição. Ama-o no berço,
quando ainda não tem capacidade de merecer o amor que lhe é dado. Ama-o ao longo
da existência, ainda que ele suba ao fastígio da felicidade ou da glória, ou role pelos
abismos do infortúnio e até do crime. É seu filho e está tudo dito.
Este amor, altamente conforme a razão, tem nos pais, também, algo de instintivo. E,
enquanto instintivo, é análogo ao amor que a Providência pôs até nos animais por suas
crias. Para se medir a sublimidade deste instinto, basta dizer que o mais terno, o mais
puro, o mais soberano e excelso, o mais sacral e sacrificado dos amores que tenha
existido na Terra, o amor do Filho de Deus pelos homens, foi por Este comparado ao
instinto animal. Pouco antes de padecer e morrer, chorou Jesus sobre Jerusalém,
dizendo: "Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu reunir os teus filhos como a
galinha recolhe os seus pintainhos debaixo das asas, e tu não o quiseste!"
Sem este amor, não há paternidade ou maternidade digna deste nome. Quem nega este
amor em sua excelsa gratuidade nega, portanto, a família. É este amor que leva os pais a
amarem seus filhos mais do que os outros – de acordo com a lei de Deus – e a desejar
para eles, com afã, uma educação melhor, uma instrução maior, uma vida mais estável,
uma ascensão verdadeira na escala de todos os valores, inclusive os de índole social.
Para isto, os pais trabalham, lutam e economizam. Seu instinto, sua razão, os ditames da
própria fé os levam a tal. Acumular uma herança para ser transmitida aos filhos é desejo
natural dos pais. Negar a legitimidade desse desejo é afirmar que o pai está para seu
filho como para um estranho. É arrasar a família.
Reafirmamo-lo aqui pela inexplicável estranheza que nosso último artigo causou em
alguns leitores – a par dos aplausos recebidos de muitos outros. Sim, a herança é um
instituto no qual a família e a propriedade se osculam.
E não só a família e a propriedade, como também a tradição. Com efeito, das múltiplas
formas de herança, a mais preciosa não é a do dinheiro. A hereditariedade – o fato é de
observação corrente – fixa muitas vezes em uma mesma estirpe, seja ela nobre ou
plebeia, certos traços fisionômicos e psicológicos que constituem um elo entre as
gerações, a atestar que de algum modo os ancestrais sobrevivem e se continuam em seus
descendentes. Cabe à família, cônscia de suas peculiaridades, destilar ao longo das
gerações o estilo de educação e de vida doméstica, bem como de atuação privada e
pública, em que a riqueza originária de suas características atinja a sua mais justa e
autêntica expressão. Este intuito, realizado no decurso dos decênios e das centúrias, é a
tradição. Ou uma família elabora sua própria tradição como uma escola de ser, de agir,
de progredir e de servir, para o bem da pátria e da cristandade, ou ela corre o risco de
gerar, não raras vezes, desajustados, sem definição do seu próprio eu e sem
possibilidade de encaixe estável e lógico em nenhum grupo social. Do que vale receber
dos pais um rico patrimônio, se deles não se recebe – pelo menos em estado
germinativo, quando se trata de famílias novas – uma tradição, isto é, um patrimônio
moral e cultural? Tradição, bem entendido, que não é um passado estagnado, mas é a
vida que a semente recebe do fruto que a contém. Ou seja, uma capacidade de, por sua
vez, germinar, de produzir algo de novo que não seja o contrário do antigo, mas o
harmônico desenvolvimento e enriquecimento dele. Assim vista, a tradição se
amalgama harmonicamente com a família e a propriedade, na formação da herança e da
continuidade familiar.
Este princípio está no bom senso universal. E por isto vemos casos em que mesmo os
países mais democráticos o acolhem. É que a gratidão tem algo de hereditário. Ela nos
leva a fazer pelos descendentes de nossos benfeitores, mesmo quando já falecidos, o que
eles nos pediriam que fizéssemos. A essa lei estão sujeitos não só os indivíduos como os
Estados.
Só eles?
* * *
Com efeito, nos mesmos dias em que vai agonizando tragicamente o Vietnã, a Coréia
do Norte promove a infiltração de sucessivas levas de guerrilheiros na Coréia do Sul.
Assim, uma conquista ainda não está consumada, e já os comunistas abrem outra frente
de luta. E é só para resignar os americanos a novas concessões, que a Coréia do Norte
fala, enfim, na libertação dos marujos do "Pueblo".
Ao mesmo tempo que estes fatos se desenrolam no Extremo Oriente, na Europa Central
os últimos estertores da resistência tcheca vão cessando. Tito, que no primeiro momento
da invasão soviética na terra de São Venceslau se mostrara combativo, vai, segundo as
últimas notícias, tratando de fazer declarações "cautelosas" à vista das ameaças
soviéticas que rondam agora em torno da Romênia. Em suma, tudo está sob o jugo russo
na Europa detrás da cortina de ferro.
Seria supérfluo lembrar que a retração britânica deixou no Oceano Índico um vácuo que
a Rússia poderá preencher a qualquer momento. É que o Mediterrâneo, esse antigo
"Mare Nostrum" do mundo livre, está mais ameaçado hoje pelo poderio soviético do
que outrora pelo de Mafoma. Assim, o quadro das venturas comunistas parece
completo, no plano temporal.
Parece indispensável completar esse quadro doloroso com o que se passa em um mar
incomparavelmente mais importante e mais nobre do que o Índico, o Mediterrâneo, ou
qualquer outro. É o oceano imenso, espiritual, sacratíssimo, da Santa Igreja Católica,
Apostólica, Romana.
Neste terreno, o ano de 1968 foi o do estouro. Mil germes de confusão e de deterioração
– que de nossa parte vínhamos combatendo desde os dias borrascosos de 1943, em que
publicamos "Em defesa da Ação Católica" – chegaram a furo. A crise saiu dos
bastidores para soprar nas sacristias e nos templos, e daí ganhar as praças públicas. Sem
dó nem piedade, ela vai penetrando até nos menores recantos, e quem hoje repetisse as
frases outrora tão verdadeiras e tão gloriosas sobre a opinião católica, como dique
inquebrantável diante do comunismo, provocaria risotas ou compaixão. Esse o fato mais
trágico do ano trágico de 1968.