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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – PUC-Minas – 4 a 8/9/2023

Sentidos da diversidade na cultura midiática: reconhecimento e mercantilização


das identidades1

Natalia Engler PRUDENCIO2


Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

RESUMO EXPANDIDO

Na contemporaneidade, temos testemunhado crescentes reivindicações de


reconhecimento midiático para identidades e diferenças de grupos historicamente
subalternizados e invisibilizados (como mulheres, pessoas LBTQIA+, pessoas negras,
pessoas com deficiência, entre outros), conferindo centralidade aos debates sobre
diversidade na produção midiática. Lutas por identidades e diferenças vêm se fazendo
centrais ao menos, segundo Nancy Fraser (2006), desde o declínio das energias utópicas
da Nova Esquerda, entre fins dos anos 1970 e início dos 1980.3 Nesse contexto, a autora
aponta a emergência de um imaginário político que colocou as questões culturais em
primeiro plano, com a preponderância de lutas pela identidade e diferença no cenário dos
conflitos políticos contemporâneos. Trata-se, segundo Fraser, da “crescente proeminência
da cultura na ordem emergente”, uma “nova consciência reflexiva dos ‘outros’ e, por isso,
uma nova ênfase na identidade e na diferença”; uma “politização generalizada da cultura,
especialmente nas lutas pela identidade e diferença” (que a autora também denomina de
lutas por reconhecimento) (FRASER, 2002, p. 8).

No campo das representações midiáticas, grupos historicamente subalternizados


e invisibilizados por formas de injustiça culturais e simbólicas — um dos elementos que
impedem que integrantes desses grupos sejam reconhecidos como parceiros integrais na
interação social, na perspectiva de Fraser (2006) — têm compreendido que, em uma

1
Trabalho apresentado no Grupo de Pesquisa Estéticas, Políticas do Corpo e Interseccionalidades do 46º Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado de 4 a 8 de setembro de 2023.
2
Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pelo PPGMPA ECA-USP, email: nataliapru@gmail.com.
3
Falando de modo mais específico sobre os feminismos, Fraser (2007) situa a passagem para uma ênfase
nas questões culturais no que considera uma segunda fase da segunda onda feminista, associada à queda
do comunismo, ao domínio de governos conservadores na Europa Ocidental e na América do Norte e à
globalização acelerada; incapazes de atuar contra as injustiças de políticas econômicas cada vez mais
neoliberais, as feministas teriam gravitado para reivindicações políticas em torno da necessidade de
reconhecer a diferença e desmontar hierarquias culturais.

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sociedade altamente midiatizada, a visibilidade, serem vistos e tornarem-se relevantes na


cultura dominante, é crucial para expandir seus direitos, porque altera o modo como suas
identidades são social, política e culturalmente valorizadas (Banet-Weiser, 2018).

Assim, as lutas por identidade e diferença, muitas vezes sob o emblema da


diversidade, têm se feito presentes em perspectivas críticas sobre a produção midiática.
Colabora para isso “o advento das tecnologias e de novas sociabilidades a partir delas”,
que fizeram com que a crítica (acadêmica e/ou especializada) deixasse “de ser uma voz
única na composição de sentidos sobre essas narrativas [midiáticas], expandindo seus
limites” (PAGANOTTI; SOARES, 2019, p. 133). Desse modo, o paradigma do
reconhecimento (em suas diversas formas, incluindo o emblema da diversidade) tem se
tornado estrutura, elemento interno das obras, bem como chave para leitura de algumas
obras e valor para apreciação delas (SERELLE, 2019). Como aponta Márcio Serelle
(2019, p. 12), “fortemente articulada a questões de ordem simbólica, a política do
reconhecimento incide sobre as narrativas midiáticas e suas representações, que, por sua
vez, estão implicadas no modo como fortalecemos (ou não) estimas sociais no cotidiano”.

Por outro lado, Fraser também alerta para o modo como a constituição, nas últimas
décadas, de um bloco hegemônico de neoliberalismo progressista — a partir da aliança
entre forças progressistas e um movimento de financeirização, representados
respectivamente por correntes majoritárias dos novos movimentos sociais e setores de
negócios de alto valor simbólico (Wall Street, Vale do Silício, Hollywood) (BRENNER;
FRASER, 2017) — tem apontado para um ethos de reconhecimento superficialmente
igualitário e emancipatório, que interpreta de forma específica e limitada “ideais de
‘diversidade’, ‘empoderamento’ das mulheres e direitos LGBTQ; pós-racialismo,
multiculturalismo e ambientalismo” (FRASER, 2018, p. 47), equiparando a igualdade à
meritocracia.

No campo dos estudos de mídia, tal preocupação tem se traduzido em discussões


sobre a mercantilização das lutas emancipatórias e das identidades em meio a
transformações nas condições culturais que haviam anteriormente levado grupos
minoritários a reivindicarem visibilidade, em um contexto de capitalismo avançado
(BANET-WEISER, 2015, p. 69). É nesse sentido que Herman Gray (2013) aponta um
esvaziamento das políticas culturais de representação à medida em que surgem novas

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alianças discursivas, tecnologias de representação, técnicas de autoconstrução e práticas


afetivas nas quais a raça e todos os tipos de diferenças (etnicidade, religiosidade,
sexualidade, gênero etc.) estão implicadas. Para o autor, nesse contexto, o objeto do
reconhecimento se torna o sujeito empreendedor autoconstruído, cujas diferenças se
tornam “grifes” a serem celebradas e vendidas como diversidade, e cuja visibilidade e
reconhecimento no nível da representação afirma um tipo de liberdade realizada por meio
da aplicação de valores de mercados às relações sociais. Gray caracteriza essas
transformações — com foco na raça, mas acredito que o mesmo pode ser aplicado a
identidades generificadas — como um deslocamento da “invisibilidade, exclusão e
exageros para a proliferação e hipervisibilidade” (GRAY, 2013, p. 772). Ou seja, no que
Sarah Banet-Weiser (2015) denomina de passagem de políticas de visibilidade,4 para
economias de visibilidade, a própria visibilidade é absorvida pela economia, e a
“visibilidade das identidades se torna um fim em si mesmo em vez de um caminho para
a política” (BANET-WEISER, 2015, p. 55). Corre-se, assim, o risco de que os discursos
midiáticos sobre diferenças sirvam à constituição de mercados e produzam sujeitos
normativos da diversidade (GRAY, 2013, p. 773).

Tendo em vista o contexto apresentado, e considerando também, como alerta


Fraser (2018; BRENNER; FRASER, 2017), que setores de negócios de alto valor
simbólico (como a indústria midiática) estão implicados na constituição de um bloco
hegemônico de neoliberalismo progressista, que interpreta de forma específica e limitada
as noções de reconhecimento e diversidade, este trabalho tem por objetivo analisar os
sentidos do conceito de diversidade que têm sido mobilizados na cultura midiática
contemporânea, em específico o modo como dois grandes players que têm dominado o
cenário midiático vêm se utilizando desse emblema em sua estratégia de conteúdo e de
comunicação: a plataforma de streaming Netflix e a Walt Disney Company, que também
possui hoje sua plataforma de streaming, Disney+.

Como aponta Thiago S. Venanzoni (2021, p. 213),

4
“Processo de tornar visível uma categoria política (como gênero ou raça) que tenha sido e permaneça
historicamente marginalizada na mídia, legislação, políticas etc.”, processo este que envolve algo que é ao
mesmo tempo uma categoria (visibilidade) e um qualificante (política), capaz de articular uma identidade
política, no qual a representação (ou visibilidade) toma um sentido político, com o objetivo de resultar em
mudanças sociais e políticas que possam ir além da visibilidade (BANET-WEISER, 2018, posição 621).

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ao ocupar novos territórios e suas identidades, as empresas e


plataformas audiovisuais globais necessitam fazer da diversidade
um valor apropriado para atingir seus consumidores. […] e é
constante reconhecê-la como emblema discursivo em narrativas e
formas de distribuição audiovisual, inclusive, como parte das
identidades das companhias, produtoras e empresas.

Para o autor, a Netflix seria um exemplo desse processo, na medida em que


tematiza a diversidade como fundamento de construção de marca, em sua estrutura e em
sua produção de séries e filmes, vendendo a diversidade como forma de consumo global.
O mesmo pode ser dito da Disney, que vem buscando equilibrar sua identidade de
produtora de conteúdo para toda a família com as demandas dos novos tempos.

A perspectiva metodológica da qual este trabalho parte é aquela dos estudos


culturais britânicos, sobretudo o trabalho de Stuart Hall, que concebe o processo
comunicativo “[...] em termos de uma estrutura produzida e sustentada por meio da
articulação de momentos distintos, mas interligados — produção, circulação,
distribuição/consumo, reprodução” (HALL, 2003, p. 387), conectando práticas
discursivas e práticas sociais e considerando a articulação entre discurso e hegemonia
como estruturante das relações sociais. O trabalho de Hall sugere também a necessidade
de que a análise leve em conta as negociações que se dão em três níveis diferentes do
processo comunicacional (que se interligam de forma circular e que informam um ao
outro): institucional (associado ao momento da produção); textos; e audiências
(associadas ao momento da recepção).

Aqui, portanto, é privilegiado o nível institucional, e o corpus de análise é


constituído por comunicados divulgados pelas empresas no primeiro semestre de 2023
sobre iniciativas relacionadas à promoção da diversidade: no caso da Netflix, o estudo de
diversidade em filmes e séries, o Fundo Netflix para Criatividade Inclusiva5 e o relatório

5
Bela Bajara, “Seguimos avançando: novidades sobre nosso estudo de diversidade em filmes e séries e o
Fundo Netflix para Criatividade Inclusiva”, Netflix Newsroom, 27 abr. 2023. Disponível em:
https://about.netflix.com/pt_br/news/making-progress-our-latest-film-and-series-diversity-study-and-
netflix-fund. Acesso em: 7 jul. 2023.

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de inclusão da Netflix;6 no caso da Disney, a campanha “Vozes da Diversidade”.7 Não é


objeto deste trabalho analisar o modo como o emblema da diversidade é mobilizado no
tecido narrativo e estético dos filmes e séries produzidos e distribuídos por essas
plataformas, mas cabe não perder de vista o modo como os discursos públicos das
empresas podem, como aponta Hall (2003), produzir alguns dos limites e parâmetros
dentro dos quais tais produções serão recebidas e decodificadas pela audiência.

Além disso, busca-se discutir o modo como o conceito de diversidade tem sido
definido em diferentes abordagens — os estudos sobre diversidade e inclusão em
organizações (MORI HANASHIRO; GALEGO DE CARVALHO, 2005); a perspectiva
cultural adotada na Convenção Internacional de Proteção e Promoção da Diversidade
Cultural (UNESCO, 2005), que evidencia o modo como a diversidade adquiriu um valor
universal em um mundo globalizado, uma “categoria específica, intrinsecamente boa,
inquestionável” (ORTIZ apud VICENTE; VENANZONI; SOARES, 2017, p. 101;
ORTIZ, 2015); e no âmbito dos debates sobre políticas de identidade e diferença, onde se
problematiza o modo como a ideia de diversidade pode essencializar as identidades e
diferenças (TADEU, 2017).

Levando-se em conta as transformações do conceito — sobretudo à medida que


este deixa de privilegiar a diversidade de culturas e passa a evidenciar também
diversidade de identidades de gênero, sexualidade, étnico-racial, classe, corpos, idade etc.
—, buscamos identificar como os textos que compõem o corpus de análise empregam a
noção de diversidade, como posicionam as empresas em relação a tal noção, que
identidades e diferenças são evidenciadas ou solapadas sob essa noção, e que sentido de
diversidade emerge, de forma geral, nesse contexto. Desse modo, podemos entrever a
forma como essas empresas têm se inserido e interferido nas lutas por reconhecimento
midiático por parte de grupos historicamente subalternizados e invisibilizados, em um
jogo ambivalente onde se articulam e coexistem a amplificação da visibilidade de lutas e
identidades interseccionais, a emergência de uma diversidade que pode ser dita
hegemônica ou normativa e a mercantilização das identidades e diferenças.

6
Verna Myers, “Relatório de inclusão da Netflix — Atualização 2022”, Netflix Newsroom, 28 abr. 2023.
Disponível em: https://about.netflix.com/pt_br/news/2022-inclusion-report-update. Acesso em: 7 jul.
2023.
7
“Vozes da Diversidade”, Disney, 2 fev. 2023. Disponível em: https://www.disney.com.br/vozes-da-
diversidade. Acesso em: 7 jul. 2023.

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REFERÊNCIAS

BANET-WEISER, Sarah. Keynote Address: Media, Markets, Gender: Economies of Visibility in


a Neoliberal Moment. The Communication Review, v. 18, n. 1, p. 53-70, 2015.

______. Empowered: Popular Feminism and Popular Misogyny. Durham e Londres: Duke
University Press, 2018. E-book.

BRENNER, Johanna; FRASER, Nancy. What Is Progressive Neoliberalism? A Debate. Dissent,


v. 64, n. 2, p. 130-140, 2017.

FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação.


Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, p. 7-20, 2002.

______. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”.


Cadernos de Campo, n. 14-15, p. 231-239, 2006.

______. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à


representação. Revista Estudos Feministas, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007.

______. Do neoliberalismo progressista a Trump — e além. Política & Sociedade, v. 17, n. 40,
p. 43-64, 2018.

GRAY, Herman. Subject(ed) to Recognition. American Quarterly, v. 65, n. 4, p. 771-798, 2013.

HALL, Stuart. Codificação/decodificação. Reflexões sobre o modelo de


codificação/decodificação: uma entrevista com Stuart Hall. In: SOVIK, Liv (Org.). Da
diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte e Brasília: Editora UFMG,
Representação da Unesco no Brasil, 2003. p. 387-404, 353-386.

MORI HANASHIRO, Darcy Mitiko; GALEGO DE CARVALHO, Sueli. Diversidade cultural:


panorama atual e reflexões para a realidade brasileira. REAd — Revista Eletrônica de
Administração, v. 11, n. 5, p. 1-21, , 2005.

PAGANOTTI, Ivan; SOARES, Rosana de Lima. A meta para a crítica da/na mídia em abordagens
metacríticas. MATRIZes, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 131-153, 2019.

SERELLE, Marcio. Reconhecimento como categoria de crítica cultural. Estudos em Jornalismo


e Mídia, Florianópolis, v. 16, n. 1, p. 11-20, 2019.

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ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições na modernidade-mundo. São Paulo:


Boitempo, 2015.

TADEU, Tomaz. A produção social da identidade e da diferença. In: TADEU, Tomaz (org.).
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In: CONFERÊNCIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
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Disponível em: https://bityli.com/k933M. Acesso em: 7 jul. 2023.

VENANZONI, Thiago Siqueira. Diversidade em plataformas globais de distribuição audiovisual.


Revista GEMInIS, v. 12, n. 1, p. 212-226, jan./abr. 2021.

VICENTE, Eduardo; VENANZONI, Thiago Siqueira; SOARES, Rosana de Lima Renato Ortiz:
tecido da escrita, teia da memória. MATRIZes, v. 11, n. 3, p. 91-112, 2017.

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