Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Revista Ibdfam - Edição 65 - 45 Anos Do Divórcio No Brasil
Revista Ibdfam - Edição 65 - 45 Anos Do Divórcio No Brasil
Outubro/Novembro 2022
Fechamento autorizado
Pode ser aberto pela ECT
MATÉRIA - PÁG. 12
ENTREVISTA - PÁG. 4
Os desafios e as possibilidades
A psicanalista Maria Homem
que se apresentam hoje no
avalia a liquidez dos pactos
Direito das Famílias
na contemporaneidade
MATÉRIA - PÁG. 15
CAPA - PÁG. 8
Como a psique e as
Especialistas do IBDFAM vulnerabilidades operam
lembram o contexto de 1977 no momento da separação
e os avanços nas décadas
seguintes
45 ANOS DO DIVÓRCIO
NO BRASIL 1
PÁG.4 342.16
R454
Revista IBDFAM, v.65,
outubro./novembro.2022.
45 Anos do Divórcio no Brasil
ENTREVISTA:
2022
MARIA HOMEM
Periodicidade bimestral.
ISSN 2764-5800
Vários autores.
8
1. Direito – Periódicos. 2.
Direito das sucessões. 3. Direito de família.
PÁG.
I. 45 Anos do Divórcio no Brasil. Título.
CDDir - 342.16
CDD (23.ed.) –
MATÉRIA DE CAPA
346.015
12
Capa: Adobe Stock / GiorgioMorara
PÁG. O IBDFAM também está nas redes
SINAIS DOS TEMPOS sociais, levando informação e
entretenimento ao seu público. Acesse:
PÁG.15
PSIQUE E
VULNERABILIDADES Telegram: Youtube:
t.me/ibdfam youtube.com/
19
IbdfamBrasil
PÁG.
LAZER
Aguarde...
EDITORIAL EXPEDIENTE
DIRETORIA EXECUTIVA
Presidente: Rodrigo da Cunha Pereira (MG); Vice-Presidente: Maria Berenice Dias (RS); Primeiro-Secretário: Rolf Hanssen
UM NÃO QUERER
Madaleno (RS); Segundo-Secretário: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB); Primeiro-Tesoureiro: José Roberto Moreira
Filho (MG); Segundo-Tesoureiro: Antônio Marcos Nohmi (MG); Diretor de Relações Internacionais: Paulo Malta Lins e Silva
(RJ); 1º Vice: Cássio Sabbagh Namur (SP), 2ª Vice: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner (PR); Diretora das relações
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
O Beijo (1908), tela mais famosa do pintor austríaco Gustav Klimt Diretor Norte: Raduan Miguel Filho (RO); Diretor Nordeste: Paulo Luiz Netto Lôbo (AL); Diretora Centro-Oeste: Eliene Ferreira
Bastos (DF); Diretor Sul: Ana Carla Harmatiuk Matos (PR); Diretora Sudeste: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP);
(1862-1918), ilustra esta edição da Revista IBDFAM que enfoca os 45
anos do divórcio no Brasil. Haveria um paradoxo na escolha de uma CONSELHO FISCAL
Presidente: Lourival Serejo; Vice-Presidente: Alberto Raimundo Gomes Dos Santos; Segundo-Vice: Luiz Cláudio Guimarães;
obra que representa o amor para falar justamente em uma decisão Terceira-Vice: Angela Gimenez; Secretária: Maria Rita Holanda;
que, em um primeiro olhar, é tomada pelo desamor? Ao longo desta
COMISSÕES
publicação, você vai perceber que a separação pode ser lida como um Comissão Científica: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP); Vice: João Batista de Oliveira Cândido (MG);
ato de bem-querer, como um beijo pode muito bem representar. Comissão de Direito das Sucessões: Flávio Murilo Tartuce Silva (SP); Vice: Ana Luiza Maia Nevares (RJ); Segunda vice:
Simone Tassinari Cardoso (RS) Comissão de Mediação: Ana Brusolo Gerbase (RJ); Comissão da Infância e Juventude:
Fernando Moreira Freitas da Silva (MT); Vice: Paulo Eduardo Lépore (SP); Comissão do Idoso: Maria Luiza Póvoa Cruz (GO);
A psicanalista Maria Homem, notável ainda como professora e Vice Wlademir Paes Lira (AL); Comissão de Jurisprudência: Viviane Girardi (SP); Comissão de Arbitragem: Francisco
José Cahali (SP); Comissão de Assuntos Legislativos: Mário Luiz Delgado Regis (SP); Vice: Ricardo Lucas Calderón (PR);
pesquisadora, tem o ser humano como principal objeto de estudo. Em Segundo Vice: Érica de Barros Lima Ferraz (PE); Comissão de Gênero e Violência Doméstica: Adélia Moreira Pessoa (SE);
entrevista, a especialista trata do significado do divórcio para o homem Vice: Ana Florinda Mendonça da Silva Dantas (AL); Secretária: Rosângela Novaes; Comissão de Notários e Registradores:
Márcia Fidelis Lima (MG); Vice: Karin Regina Rick Rosa (RS); 2º Vice: Thomas Nosch Gonçalves; Comissão de Estudos
e para a mulher, faz uma análise da contemporaneidade com recortes Constitucionais da Família: Gustavo José Mendes Tepedino (RJ); Vice: Marcos Alves da Silva (Vice); Comissão de Ensino
sobre diversidade e monogamia e fala ainda da necessidade de elaborar Jurídico de Família: João Ricardo Brandão Aguirre (SP); 1º vice: Waldyr Grisard Filho (PR); 2º Vice: Fabiola Albuquerque
Lôbo (PE); Comissão de Relações Acadêmicas: Marcelo Luiz Francisco Bürger (PR); 1º Vice: Conrado Paulino da Rosa; 2º
o luto da chamada “família tradicional”. “Quem é conservador se apega vice: Dimitre Braga Soares De Carvalho(PB); Comissão de Direito Homoafetivo: Maria Berenice Dias (RS); 1º Vice: Priscila
a um ideal, um porta-retrato da família perfeita.” de Oliveira Moregola Pires; 2º Vice: Chyntia Aquino da Costa Barcellos; 1ª secretária: Rosângela Novaes; 2º secretário
da Comissão de Direito Homoafetivo: Vladimir Fernandes Mendonça Costa (DF); Comissão de Adoção: Silvana do Monte
Moreira (RJ); Vice: Fernando Moreira Freitas da Silva (MT); Comissão de Advogados de Família: Marcelo Truzzi Otero (SP);
Especialistas do IBDFAM voltam quatro décadas e meia para Vice: Aldo de Medeiros Lima Filho (RN); Segundo vice: Daniel Bliksten (SP); Comissão de Magistrados de Família: Jones
Figueiredo Alves (PE); Vice: Andrea Maciel Pachá (RJ); Comissão de Promotores de Família: Cristiano Chaves de Farias
contextualizar sobre a promulgação da Lei do Divórcio (n. 6.515/1977) e o (BA); Comissão dos Defensores Públicos da Família: Cristiana Mendes de Carvalho Oliveira (RJ); Vice: Claudia Aoun
importante passo que foi dado pela sociedade brasileira naquela época. Tannuri (SP); Comissão de Direito de Família e Arte: Fernanda Carvalho Leão Barretto (BA); Vice presidente: Luciana
Brasileiro (PE); Comissão de Direito Previdenciário: Anderson de Tomasi Ribeiro; Vice: Melissa Folmann (PR); Comissão
Traçam os avanços que vieram em seguida, como a Emenda do Divórcio da Pessoa com Deficiência: Cláudia Grabois Dischon (RJ); Vice: Nelson Rosenvald; Segundo vice: Fernando Gaburri
(EC 66/2010), há 12 anos, bem como os desafios e as possibilidades que (BA); Comissão Biodireito e Bioética: Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas (PE); Vice: Marianna de Almeida Chaves
Pereira Lima (PB); Comissão de Processo Civil: Fernanda Tartuce Silva (SP); Comissão de enunciados: Marcos Augusto
se apresentam em 2022. De Albuquerque Ehrhardt Junior (AL); Vice: Flávio Murilo Tartuce Silva; Comissão de relações governamentais: Renata
Nepomuceno e Cysne (DF); Vice: João Paulo Sanches; Secretária: Carolina Senna; Comissão de refugiados: Patrícia
Cristina Vasques de Souza Gorisch (SP); Vice: Denise Abreu Cavalcanti Calil (RR); Comissão de empresas familiares e
Entramos na era do divórcio digital, em que o procedimento já pode holding: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB); Vice: Antônio Evangelista de Souza Netto (PR); Comissão da diversidade
transcorrer on-line. Essa foi uma das repercussões da pandemia da racial e etnia: Patrícia Romana da Silva do Nascimento (RJ); Vice: Caroline Freitas Vidal (MG); Comissão nacional de
família e tecnologia: Patrícia Corrêa Sanches Lamosa; 1º Vice: Marcos Ehrhardt Júnior (AL); 2ª Vice: Priscila Agapito
Covid-19, que também trouxe um aumento significativo no número de (SP); Secretária: Maria Elizabeth Lamosa; Membros: Ana Aparecida Brussolo Gerbase (RJ); Cristiano Chaves de Farias
separações no Brasil e no mundo. Hoje, entendido pela doutrina e a (BA); Cíntia Burille (RS); Cláudia Domingues (SP); Comissão de interiorização: Dirigentes Sul: Fernanda Pederneiras,
Vice: Simone Tassinari; Sudeste: Daniel Blikstein, Vice: Pedro Dalbone; Centro-Oeste: Naime Moraes, Vice: Paula Guitti;
jurisprudência como um direito potestativo, que não requer anuência do Nordeste: André Franco, Vice: Gustavo Andrade; Norte: Nena Sales Ribeiro, Vice: Luiza Simonetti.
outro cônjuge, o divórcio pode ser decretado por decisão liminar e ainda
DIRETORIAS ESTADUAIS:
a partir de práticas colaborativas, como explicam os especialistas.
REGIÃO NORTE: Acre: Igor Clem Souza Soares ; Amapá: Nicolau Eládio Bassalo Crispino; Amazonas: Gildo Alves de
Carvalho Filho; Pará: Leonardo Amaral Pinheiro da Silva; Rondônia: Raduan Miguel Filho ;Roraima: Andréia Vallandro;
Tratar das relações interpessoais impõe a necessidade de se atentar Tocantins: Alessandra Aparecida Muniz Valdevino; REGIÃO NORDESTE: Alagoas: Wlademir Paes de Lira; Bahia:
Fernanda Carvalho Leão Barretto; Ceará: Gabriela Nascimento Lima; Maranhão: Teresinha de Fátima Marques Vale;
à psique, daí a ligação indispensável entre o Direito das Famílias e Paraíba: Agamenilde Dias Arruda Vieira Dantas; Pernambuco: Gustavo Henrique Baptista Andrade; Piauí: Cláudia
a Psicanálise. Os cuidados com os filhos, os desafios enfrentados Paranaguá de Carvalho Drumond; Rio Grande do Norte: Suetônio Luiz de Lira; Sergipe: Acácia Gardênia Santos Lelis;
REGIÃO CENTRO-OESTE ;Distrito Federal: Leonardo Vieira Carvalho; Goiás: Marlene Moreira Farinha Lemos; Mato
pelos adultos na vida após o fim do casamento e também o papel dos Grosso: Juliana Giachin Pincegher; Mato Grosso Do Sul: Líbera Copetti de Moura; REGIÃO SUDESTE: Espírito Santo:
profissionais de Justiça nestas situações estão presentes entre as Flávia Brandão Maia Perez; Minas Gerais: José Roberto Moreira Filho; Rio de Janeiro: Luiz Cláudio de Lima Guimarães
Coelho; São Paulo: Flávio Murilo Tartuce Silva; REGIÃO SUL: Paraná: Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk; Rio Grande do Sul:
abordagens a seguir. Braulio Dinarte da Silva Pinto; Santa Catarina: Luciana Faisca Nahas.
Uma publicação da Assessoria de Comunicação do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Em mais de uma das entrevistas, foi feita a afirmação: as pessoas se Rua Tenente Brito Melo, nº 1223 / 3º andar | Santo Agostinho | CEP 30.180-070 | BH - MG
divorciam para serem felizes. Do beijo que ilustra a capa desta edição SUPERINTENDÊNCIA: Maria José S Marques de Andrade
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: Marandhayan Oliveira, Débora Anunciação
até o conteúdo das matérias, fica claro que está ultrapassada a ideia do ASSESSORIA JURÍDICA: Ronner Botelho, Leandra Porto (assistente)
divórcio como uma ruptura nefasta. Não se trata da destruição de um DESIGNER: Bruno Caligiorne, Rebeca Silva
REVISÃO: Cybele Maria de Souza
lar; ao contrário, é o caminho para que novas relações se formem. É um TIRAGEM: 8.000 EXEMPLARES
passo na busca pela felicidade – e não é justamente esse anseio que PERIODICIDADE: bimestral
DISTRIBUIÇÃO: gratuita, aos associados do IBDFAM
nos faz constituir uma família?
OS ARTIGOS ASSINADOS, BEM COMO OPINIÕES EMITIDAS EM ENTREVISTAS, SÃO DE
RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.
Boa leitura!
ATENDIMENTO AO ASSOCIADO: (31) 3324-9280 | PARA ANUNCIAR: (31) 3324-9280
3
FINITUDE E LIQUIDEZ
DOS PACTOS
A psicanalista Maria Homem fala dos mais variados assuntos a uma mul-
tidão nas redes sociais – são 330 mil seguidores no Instagram e mais de
10 milhões de visualizações no YouTube. Seus vídeos são acompanhados por
um público disposto a pensar sobre si, sobre seus relacionamentos e o mundo
à sua volta. Sujeitos deste tempo em que os lugares incômodos ou predefini-
dos são um convite ao movimento e não à conformação.
A Lei do Divórcio foi promulgada diem, que é aproveitar o dia e a vida vidas, de deuses, vamos fazer a gente
há 45 anos. Sob o ponto de vista da que estamos vivendo no aqui e agora, agora?”. Vêm daí o Estado Democrá-
Psicanálise, o que esse direito re- não no futuro, muito menos na eter- tico de Direito, separação entre Igreja
presentou para a vida das pessoas e nidade. Esse conceito de eternidade e Estado, poder para o Terceiro Esta-
quais mudanças podem ser notadas começa a ser questionado. Então, os do, a ideia de que somos todos iguais
na sociedade ao longo dessas últimas votos eternos, os pactos eternos e, perante a lei, todos temos direitos
décadas? sobretudo, a vida eterna, deixam de iguais. Essa é a virada, que vem de
fazer tanto sentido, e vamos cada vez alguns séculos.
Podemos falar das décadas, mas mais ganhando a consciência de que
também podemos falar dos milênios. a vida é breve. Essa também é uma
Lá atrás, não tínhamos esse direito, ideia antiga. É Sêneca [filósofo estói-
nem homens nem mulheres, mas es- co do Império Romano], tem algo da
távamos em uma lógica patriarcal em temporalidade relativa. Mesmo que “A modernidade é curiosa
que o homem tinha poder sobre mu- pensemos que possam existir outras porque está fazendo uma
lheres, escravos, bem móveis e imó- vidas e existências, vai ganhando elaboração da finitude
veis. Havia uma dupla dominação so- corpo a existência de uma brevidade, humana e da finitude dos
bre os sujeitos de estarem atrelados de uma ampulheta girando.
aos pactos indissolúveis. Entendia-se
pactos. Tanto que, hoje,
que, nesta vida, havia esse pacto. Na Isso faz com que nos perguntemos: há uma aceleração disso.
outra vida, podíamos fazer sonhos de “Espera aí, como estou vivendo a mi- Sofremos da fluidez. O
liberdade, de felicidade. Era a divisão nha vida? Como eu quero construir conceito é de modernidade
em uma vida dupla, a terrena e a eter- a minha vida?”. Essa já é uma ideia líquida. Mesmo o amor,
na, com outra configuração do valor da nova. Tão nova que implica em uma é líquido, e os pactos
vida e da experiência. transformação profunda de paradig-
ma, que é a modernidade. Quando se
também são líquidos.”
Foi ganhando corpo uma outra diz: “Espera, vamos esquecer essa
ética, que conhecemos como carpe história de transcendência, de outras
4
Ao longo desse tempo, vamos fa- menina”. O projeto não é mais a famí- Eu teria uma versão muito amplia-
zendo cada vez mais a ampliação dos lia nem ser objeto de um sujeito fálico da do conceito de família, que seria um
grupos que seriam sujeitos de direito, masculino. É o que estamos vivendo e pequeno número de pessoas que se
também os negros, as mulheres. Hoje, que encontra reações. Nossa socieda- suportam e, na melhor das hipóteses,
já colocamos as posições desejantes, de, hoje, está vivendo uma retaliação se amam. Não é fácil nem se suportar
como a população LGBTQIA+. Vamos violenta, de protesto viril, como se qui- nem se amar. É fazer um campo afeti-
sofisticando essa ideia de sujeito, tanto sessem a reafirmação de uma virilida- vo, socioeconômico, político e cognitivo
no sentido de uma subjetividade liberal de perdida, de um desenho imaginário em que você tenha a vivência da inti-
e interiorizada quanto de uma subjeti- do que seria a potência do masculino. midade. Para suportar e amar alguém,
vidade de direito. Conseguimos fazer Só que não dá mais, não é? não é possível sem teatro ou recalque,
essa dupla escalada: vamos nos per- se você não instaura um campo da in-
mitir viver a vida agora e redesenhar a Uma parcela conservadora da so- timidade, coisa da qual temos muito
vida, construir. Se fiz uma parceria que ciedade via o divórcio como a destrui- medo. É muito difícil estarmos à vonta-
está boa e há a realização e o gozo, ção da família. Por que essa é uma de com outros seres humanos. Temos
ok. Quando termina isso, ok também. ideia falaciosa? núcleos paranóides, temos medo, rai-
Aceitamos a mortalidade, o fim, elabo- va, segredo, o inconsciente, ataques,
ramos melhor os lutos. Não só falaciosa como contrária a projeção, introjeção e transferência.
uma outra luta que é justamente pelos Todas essas coisas que Freud desco-
Para chegar agora, nessas déca- direitos da família. Todo mundo quer briu, que a Psicanálise trabalha e que
das posteriores, estamos afirmando ter família, independentemente de é matéria vida.
esse direito de matar e deixar morrer orientação sexual ou identidade de gê-
os pactos, em nome de mais prazer, nero. A Psicologia e a Psicanálise vão Então, o que é a família? É um campo
mais realização e mais felicidade. Para dar seus palpites, e de uma forma não normalmente ultraproblemático dessas
que se atrelar a cadáveres? Para que unânime. O mundo é complicado, então relações de intimidade. É pouco trabalha-
se atrelar a situações de gozo do outro temos vários discursos mais ou menos do, analisado e, por isso, o berço da neu-
sobre mim, de dominação, de assédio cientificizantes, medicalizantes, psico- rose. Para resumir, o berço da loucura.
e opressão? Nesse sentido, o divórcio logizantes que vão estar a serviço das Onde é que você se torna psicótico, psi-
teve um valor mais libertador para o ideologias dominantes. Só que, hoje, copata, sociopata? Não é algo que nasce
direito das mulheres, para que elas temos mais liberdade para perguntar: de uma essência do mal, do demônio.
não sejam mais atreladas como obje- por quê? Por que, durante anos, as fa- Estamos em outro paradigma, menos
tos dos seus sujeitos maridos – ou pro- mílias heteronormativas “produziram” transcendental, como falei lá atrás. Há
prietários ou patriarcas. Há culturas seres desejantes homossexuais? Não uma conexão direta com o lugar do qual
que até hoje lutam por essa perma- necessariamente um casal homopa- viemos, qual lugar que nos convidaram a
nência. Isso existe, até mesmo, dentro rental vai “produzir” sujeitos homode- ocupar. Não é um lugar racional. É, so-
do Brasil, mas me refiro mais a países sejantes. Não existe essa regra de que bretudo, inconsciente. Como vamos dar
em que a religião obriga a cisão do cli- o filho vai ser automaticamente igual conta de viver com outro ser que tem
tóris, em que o homem pode ter várias aos pais. Fosse assim, filho de gênio uma tessitura muito diferente, específi-
mulheres e colocar uma hierarquia seria gênio, filho de otário seria otário ca e singular? É complexo, mas, quando
entre elas. No mundo, hoje, do Ociden- e filho de heterossexual seria heteros- funciona, é bom.
te ao Oriente, elas estão dizendo “não”. sexual. Também estamos debatendo
Há uma busca por igualdade há pelo isso para pensar a família hoje. Como homens e mulheres operam
menos 200 anos. nessa situação? É possível fazer um re-
corte comportamental em relação aos
O divórcio também permitiu maior gêneros?
potencialidade da mulher nos cam- “O conceito de família
pos intelectual, subjetivo, econômico, é interessantíssimo. Nessa comparação, é preciso cruzar
social e, portanto, político. Aumenta Ninguém, por ora, uma variável: o divórcio desejado e o não
o campo de direito político. A mulher inventou outro núcleo mais desejado. Isso é fundamental para os
pode, então, decidir coisas sem ser efeitos psíquicos do ato da separação. A
“bela, recatada e do lar”. As meni-
interessante de formar pergunta-chave é: você desejou se sepa-
nas hoje dizem “não quero casar, não pessoas.” rar? Não falo da iniciativa, de quem quis
quero ter filho, gosto de menino e de se separar, o que é relevante para o nosso
5
narcisismo, mas às vezes isso é engana- Neste contexto, se ele sai e ainda se realização que você obtém como sujeito
dor. Aparentemente, quem tomou a deci- casa com outra, vai ter uma quantidade dentro desses pactos.
são foi a mulher, mas o homem fez tudo de angústia muito pequena. Se for cons-
para que ela tomasse essa decisão. Essa ciente todo esse processo, ele terá ainda Quando falamos em divórcio, fica-
é uma estratégia masculina clássica, por um grande alívio com a saída dessa re- mos muito ligados às relações mono-
não conseguir romper a relação. Há toda lação, além de uma realização por estar gâmicas e heterossexuais, mas há um
uma estrutura de culpa, superego e dívi- em outro relacionamento. A mulher, por leque de possibilidades. Existe uma
da, então ele inferniza a vida da mulher e outro lado, que fazia esse “jogo desejan- tendência de que essas relações dei-
a faz pedir o divórcio, o que torna o pro- te” e achava que estava funcionando, cai xem de ser modelo?
cesso mais desgastante. no buraco. Entra em depressão, começa
a tomar remédio, os filhos saem de casa, É isso que está acontecendo e que
A maior parte do problema, geralmen- a vida fica péssima. Ou, por outro lado, está assustando a alma brasileira e essa
te, não é a separação, é a não decisão. É pode ir em uma análise, entender rapi- grande gama de humanos que se identi-
justamente você não se posicionar, não damente qual era o esquema daquele fica com o termo simbólico e significante
se conhecer, não assumir e não bancar. casamento e relacionar com o jeito de “conservador”. É um desejo profundo de
A confusão se dá porque, muitas vezes, a seus próprios pais e constrói uma outra conservar mais do que o passado, que
gente é alienado da gente mesmo. O que relação muito mais interessante. Esse é não necessariamente era muito feliz e
me faz estar aqui neste campo subjetivo o clichezão, mas posso contar várias his- realizado. A família heteronormativa,
tão íntimo com esse outro ser humano, tórias aqui. monogânima e cristã nunca foi um poço
tão necessariamente diverso de mim? de alegria e felicidade. Muitas vezes, vi-
Como os filhos dos casais se inserem ve-se ali porque é o que lhe dá comida,
no divórcio? A que contextos eles estão abrigo e lhe faz reproduzir a vida. Agora,
expostos? estamos experimentando todos os ou-
“As pessoas sempre são tros formatos.
diferentes. Podem ser do Com os filhos, acontece da mesma
forma, com a variação entre o divórcio
mesmo sexo, da mesma
desejado e o não desejado. Eles sofriam
religião, da mesma classe, com as brigas contínuas dos pais? Essa
da mesma raça. Somos instabilidade era fonte de angústia? Eles “Por mais que seja
singulares e extremamente ficaram aliviadíssimos com a separação assustador, podemos e
específicos.” dos pais? Ou, pelo contrário, não estavam devemos elaborar o luto
entendendo nada e a relação do casal do ideal de família. Quem é
era sempre ocultada deles? Caíram de conservador se apega a um
surpresa do décimo quinto andar com o
ideal de família, muito mais
“Não estou mais interessado nessa divórcio, foi um tombo radical para eles?
relação, não gosto, não desejo, não es- Que idade eles tinham? Qual elaboração do que uma família real. É
tou à vontade, está chato, me exaure, tem discursiva tiveram disso depois? Como muito mais um desenho,
uma violência, um assédio, uma mon- puderam pensar seu lugar no mun- um porta-retrato da família
tagem fantasmática que não rola mais do sem o pai e a mãe juntos, vivendo na perfeita.”
para mim.” Usando a minha linguagem, mesma casa?
é isso que faz o divórcio. Isso é o que faz
o fim de uma relação: você embarcou em O humano é um bicho muito singular.
uma montagem, que é sempre ligada a Não controlamos como vamos sentir,
uma fantasia inconsciente, como gos- como vamos reagir, como vamos elabo- Essa felicidade pode acontecer. Co-
tar de provocar ciúme e outro gostar de rar ou não. Somos livres. Esse é o pro- nheço e tive a sorte de viver e de ser re-
sentir ciúme. Pode ser uma dinâmica que fundo sentido da liberdade, muito mais cebida na vida com pais que se amaram
fará bodas de ouro, só que, depois de um do que pescar em lugar proibido, usar ou e, depois, de viver e compartilhar com
tempo, os dois estão exaustos. É quando não o cinto de segurança, andar em tal um homem uma relação muito profun-
começam a sacar o funcionamento inter- velocidade. A liberdade profunda é entrar da, de intimidade e de produtividade e
no da relação. Aquilo que lhe dava muito em contato com tudo o que você sente e até intelectual muito ampla. Sou grata
prazer, tesão e libido, começa a ser um deseja, sem recalque, elaborar tudo isso a essas duas grandes vivências e, pes-
“joguinho” a ser sacado e perde a graça. e desfazer os pactos de acordo com a soalmente, não tenho nada do que co-
6
brar do destino ou entrar em um lugar já vai questionar a ideia de coabitação,
de ressentimento, pelo contrário. Sei a legalidade no papel e outros toques
que é difícil, por tudo que eu escuto, simbólicos. O que é casar? Conheci um
“O grande motivo sempre
da clínica à mesa de bar, da leitura de casal gay que vivia em países diferentes, é que a gente não acomoda
Clarice Lispector a Shakespeare. com uma relação supersólida. Eles se essas diferenças de
falavam todos os dias, um acompanhava subjetividade, história de
a vida do outro em um nível que muitos vida, papel, gozo, desejo.
casais que vivem na mesma casa e não Em todos os campos,
“Será mais rico e têm. Estamos entendendo a vida muito
temos especificidades e
interessante se pudermos além de uma concretude, muito mais
complexa que a sensorialidade do nosso diferenças.”
elaborar o luto do conceito corpo. Estamos ampliando a concepção
idealizado de família do que é viver, do que é laço social, do
ao mesmo tempo que que é sexualidade e do que é sexo. É o Temos que nos acomodar com o
ampliarmos e permitirmos real, simbólico e o imaginário com a va- outro para o espaço dessa intimidade,
a complexidade de um riável do tempo. que é um espaço muito concreto tam-
novo conceito de famílias, bém. É quem joga a toalha molhada
É possível apontar quais conflitos na cama, quem joga a roupa no chão,
colocando-as até no plural.” mais têm levado as pessoas a opta- quem ocupa o sofá da sala, quem não
rem pelo divórcio, atualmente? limpa o banheiro, quem não lava a
louça… Estamos falando de grandes
A ideia de monogamia eterna está se Estive na França no primeiro se- e complexos territórios, que são bio-
desfazendo? mestre e soube de uma pesquisa que -psico-econômico-políticos. É como a
apontou como o maior conflito causa- gente vive com o outro. Temos que fa-
Sem dúvida, e não é de agora. Na dor do divórcio, surpreendentemente, zer sempre uma negociação contínua
verdade, nunca aconteceu. Para os ho- as discussões sobre serviços domés- e uma acomodação. Tanto que muita
mens, sobretudo. Para as mulheres, ticos. Pode parecer um detalhe, mas gente diz: “Pelo amor de Deus, tô fora!
mais ou menos, no chicote, obrigadas. isso é fundamental na transformação Casamento, família e filhos, nem pen-
Não um chicote físico, mas da religião, dos lugares sociais de gênero, mascu- sar! Que cansativo!”. É um sentimento
da ideologia, da cultura, da “mal-falada”, lino e feminino. Sobretudo, em um mo- que também surge após a separação.
da puta. O presidente dá uma volta de mento histórico em que as mulheres Por isso, estamos vendo o boom arqui-
moto e vê putas. Nosso olhar objetifica, têm trabalhos que lhes dão reconhe- tetônico e mobiliário de microcápsulas
erotiza, sexualiza e domina o corpo femi- cimento e dinheiro. Ela não “finge que para os sujeitos humanos viverem. O
nino. O detalhe é que temos uma pulsão, trabalha” como o homem “finge que que é isso? É o fim da família!
um erostimo vivo, não é aprisionável. Se ajuda em casa”. Antes, o trabalho da
fazemos isso durante séculos e a pas- mulher se aproximava do voluntaria-
sagem da cultura greco-romana para a do. Até hoje, as primeiras-damas dos
cultura cristã no Ocidente fez essa maior países fazem visitas, ajudam crianças,
repressão, a modernidade e a revolução com a ideia de mulher rica que junta Maria Homem é Psicanalista, Pa-
sexual da segunda metade do século XX, cobertores para os meninos de rua. lestrante, Pesquisadora do Núcleo
que está na matriz da Lei do Divórcio, vai Hoje, as mulheres gostam dos seus Diversitas da Faculdade de Filoso-
destampar tudo isso, o que se mostra de trabalhos, são reconhecidas por eles e fia, Letras e Ciências Humanas da
maneira clara no século XXI. Por mais têm um poder-fazer. “Não posso ficar Universidade de São Paulo – FFL-
que a gente não quisesse, temos um aqui lavando louça, passando roupa e CH/USP e Professora na Fundação
corpo mortal e desejante. cuidando de filho. Cuida aí.” E o cara Armando Álvares Penteado – FAAP.
fala: “Como assim? Eu sou o homem, Tem pós-Graduação em Psicanáli-
As diversidades e a pluralidade são tenho que sair e trabalhar”. Então, não se e Estética pela Universidade de
um pilar lógico e epistemológico do se chega a um acordo. É a micropolíti- Paris VIII / Collège International de
contemporâneo. Há um significado plu- ca da disputa de poder, de território, de Philosophie e Doutorado pela FFL-
rissemântico para o amor, a traição, o função. Não é fácil mudar do paradig- CH/USP. Autora dos livros Lupa da
casamento, a separação e a família. De- ma patriarcal para um paradigma de Alma, Coisa de Menina?; No Limiar
pende de muitas variáveis, tanto que a lei fato democrático. do Silêncio e da Letra, entre outros.
7
JORNADA HISTÓRICA
"Começar de novo/ E contar comigo/ Vai da assim sob a restrição da concessão plo disso eram as promoções de carreira
valer a pena/ Ter amanhecido/ Ter me re- por uma única vez, restrição essa eli- militar, em que o “desquitado” era prete-
belado/ Ter me debatido..." minada pela Lei n. 7.841/1989.” rido e o “mau casado” promovido.
("Começar de Novo" - Ivan Lins e Vitor Durante o Império, só havia o casa- SUPERAÇÃO DO DESQUITE
Martins) mento religioso, como lembra o advoga-
do Sérgio Barradas Carneiro, membro Lins e Silva explica que, antes do direi-
SINAIS DOS
durante o período de isola- A especialista defende: “O Provimento
mento social.” 100/2020 elevou ainda mais a relevância
dos serviços notariais, além de trazer os
TEMPOS
“Com o fim da relação, Cartórios de Notas a um movimento or-
os casais buscaram a so- gânico do século XXI, que são os atos di-
lução extrajudicial, que gitais, tendo ainda a possibilidade de rea-
pareceu a via mais rápida e lização do ato híbrido, com uma pessoa
safios que ainda envolvem a temática. dimento com a publicação do Provimen- A experiência, até então, tem sido de
Como vimos, a ruptura de pactos, até to n. 100/2020, do Conselho Nacional de sucesso exponencial. “Há um cresci-
então considerados indissolúveis, já não Justiça – CNJ, que permitiu a realização mento vertiginoso dos dados eletrôni-
é mais tabu para a maior parte da popu- dos divórcios digitalmente.” cos a cada mês pela plataforma on-line
lação. Consequentemente, a tendência é e-Notariado, que até já dispõe de novos
que os divórcios aumentem, assim módulos como reconhecimento de
como novos conflitos e as possibili- assinatura e autenticação de do-
dades deles decorrentes. cumentos. Desde maio de 2020, já
foram feitos no Brasil mais de 357
Em 2021, o Brasil bateu o recor- mil atos eletrônicos (escrituras di-
de de divórcios, segundo dados do versas). Ou seja, sucesso absoluto.”
Colégio Notarial do Brasil – CNB.
Foram registrados 80.573 no ano DIVÓRCIO LIMINAR
passado, o maior número desde
2007. A pesquisa apresenta um au- Membros do IBDFAM, os advoga-
mento de 40% em relação ao levan- dos e professores Marília Pedroso
tamento feito em 2020. O número Xavier e William Soares Pugliese
superou o recorde anterior que ha- são os autores do livro “Divórcio li-
via sido batido em 2020, com 77.509. minar: técnica processual adequada
para sua decretação”, lançado em
Já em 2020, com o início da pan- julho de 2022 pela Editora Foco. A
demia da Covid-19, os divórcios publicação destaca como o proce-
haviam caído 13,6% em relação a dimento pode ser feito por meio de
2019. Há dois anos, foram registra- uma decisão liminar, considerando-
dos 331.185 divórcios concedidos, -o como um direito potestativo.
dos quais 249.874 (75,4%) judiciais
e 81.311 (24,6%) extrajudiciais la- “Quando um pedido de divórcio
vrados em cartório, segundo o Ins- liminar é negado, temos o cenário
tituto Brasileiro de Geografia e Estatísti- Segundo a especialista, o provi- ideal para a prática de inúmeros atos de
ca – IBGE. mento inovou ao garantir o direito de vingança privada”, comenta Marília. “Não
forma totalmente on-line, com a pos- raro, vemos casais que se infantilizam e
DIVÓRCIO DIGITAL sibilidade de que cada parte estivesse assumem posturas bélicas e de revan-
em um local separado, sem a neces- chismos quando o fim do relacionamento
A tabeliã de notas Priscila Agapito, sidade de encontros presenciais. “A se avizinha. Tudo vira motivo de briga. A
segunda vice-presidente da Comissão de praticidade e facilidade do novo modo posição jurídica ainda formalmente os-
Família e Tecnologia do IBDFAM, aponta digital, ainda mais em um momento tentada como cônjuge é utilizada para
que a pandemia da Covid-19 trouxe re- de isolamento social, certamente foi ‘infernizar’ a vida do outro.”
percussões a esse cenário. “Foi nítido o um atrativo a mais para aqueles que
aumento no número de solicitações de buscavam garantir segurança jurídi- Um exemplo bem presente na advo-
divórcios extrajudiciais, em um movi- ca, praticidade e agilidade ao fim do cacia, segundo a especialista, é a nega-
mento social que parece estar claramen- relacionamento da maneira menos tiva de assinar documentos necessá-
te ligado à convivência forçada dos casais dolorosa possível.” rios por puro sadismo. “Mas não é só.
12
Um dos pontos mais agudos que expe- Para William Soares Pugliese, o reproduzida pela Corregedoria-Geral do
rimentam os que ainda são mantidos Código de Processo Civil – CPC (Lei Tribunal de Justiça do Maranhão. Em
casados à força pelo Poder Judiciário n. 13.105/2015) é omisso sobre o divórcio seguida, o CNJ decidiu suspender tais
brasileiro é o constrangimento pessoal liminar. “É justamente por conta desse medidas administrativas, sob a justifica-
e social de não poder viver plenamente silêncio que a controvérsia foi instaurada. tiva central de que a medida deveria ser
um novo relacionamento.” Na verdade, o ponto que mais impactou o definida de forma nacional.”
legislador quando da redação do CPC foi
Há, então, um verdadeiro abalo na a discussão a respeito da persistência do “Essas medidas, porém, partiam de
dignidade da pessoa humana. “Esses regime de separação judicial.” duas teses desenvolvidas em paralelo: a
novos relacionamentos se iniciam sob de que, extintas as condições prévias ao
máculas de clandestinidade e de que A ideia do divórcio como direito potes- divórcio, esse direito passou a ser potes-
as partes estão sendo infiéis, quando tativo sequer foi tangenciada na discus- tativo; e a de que, por se tratar de direito
isso não é verdade. Note-se: quando são do CPC, de acordo com o advogado. potestativo, contra o qual o outro cônju-
não há acordo, os processos na área “Cabe, portanto, à doutrina desenvolver ge nada pode opor, o divórcio poderia ser
de família podem, sem qualquer dose uma técnica processual adequada para decretado liminarmente pelo magistrado,
de exagero, perdurar por longos anos.” permitir a efetiva tutela do direito ma- em processos judiciais.”
terial ao divórcio que, nos termos da EC
“Não é aceitável que enquanto n. 66/2010, é um direito potestativo. Foi Tais questões não estão consolidadas
houver desacordo sobre temas patri- essa a tese que procuramos desenvolver na jurisprudência. “Apesar de algumas
moniais as escolhas existenciais no na obra.” decisões terem sido proferidas conce-
campo afetivo sejam prejudicadas. In- dendo divórcios por liminares, o Superior
felizmente, como já dito, esse tipo de DIREITO POTESTATIVO Tribunal de Justiça – STJ, em 2020, de-
conduta tem sido praticado como es- cidiu pela impossibilidade de decretação
tratégia ardilosa por aqueles que não Segundo Marília Pedroso Xavier, a dou- liminar do divórcio por conta da neces-
aceitam o fim do relacionamento, que- trina que se desenvolveu após a Emenda sidade de exercício do contraditório da
rem de forma doentia preservar algum do Divórcio (Emenda Constitucional – EC parte adversa”, pontua William Soares
tipo de ligação ou querem forçar um n. 66/2010) passou a considerar este um Pugliese.
acordo desvantajoso a partir de uma direito potestativo. “Não tardou a afirmar
estratégia de desgaste e desistência que essa alteração constitucional tinha “A decisão monocrática foi proferida no
do outro. eficácia imediata e que não dependia de REsp n. 1.844.545/GO. A conclusão a que
qualquer regulamentação infraconstitu- se chegou, nesse momento, foi a de que
A importância do tema encontra cional para se tornar executável.” a lei processual impedia a decretação do
também uma outra razão.” divórcio liminar e que, sem alteração le-
“Essa, naturalmente, é a interpretação gal, nem o divórcio unilateral, impositivo,
Segundo Marília, o divórcio liminar contemporânea das normas constitucio- nem o divórcio liminar seriam possíveis.”
se tornará mais necessário nos próxi- nais e não há, na atual jurisprudência do
mos anos, com o avanço da tecnologia. Supremo Tribunal Federal – STF, qual- O especialista conclui: “É por esta ra-
“Há certa tendência de que as partilhas quer fundamento que negue essa tese. zão que declaramos, no início da obra,
de bens se tornem cada vez mais com- Deste modo, o divórcio passava a ser di- que o principal objetivo do livro é a alte-
plexas e, por conta disso, mais propen- reto, sem a mediação da separação judi- ração desse posicionamento, a fim de
sas à judicialização. Afinal, envolverão cial ou de fato”, frisa a advogada. que os cônjuges que desejam o divórcio
patrimônios que ainda ensejam lacu- possam exercer esse direito com a auto-
nas e polêmicas doutrinárias e juris- A EC n. 66/2010, formulada em parce- nomia que a Constituição lhes confere”.
prudenciais, tais como bens digitais e ria com o IBDFAM, trouxe à realidade o
criptoativos.” divórcio unilateral ou impositivo. “Com a DESAFIOS NA JURISPRUDÊNCIA
facilitação do divórcio sob o ponto de vista
“Assim, ter uma solução que propicie prático, a Corregedoria-Geral do Tribunal A violência patrimonial é outro tema
o divórcio das partes de forma breve, de Justiça de Pernambuco – TJPE (Provi- que desafia os profissionais do Direito
relegando as discussões patrimoniais mento n. 6/2019) editou norma adminis- das Famílias quando o assunto é divórcio.
para as Varas de Família com toda a trativa que permitia o divórcio em Cartório “Surge de relações abusivas, geralmente
dilação probatória necessária, parece de Registro Civil, ainda que não houvesse já vivenciadas no casamento, ou então de
acertada”, sugere a especialista. acordo entre os cônjuges. A medida foi um rompimento mal-elaborado”, destaca
13
ATUALIDADES
a advogada Viviane Girardi, presidente da divórcio post mortem passe a ser uma Ela opina que processos litigiosos que
Comissão de Jurisprudência do IBDFAM. realidade mais frequente no sistema le- envolvem questões familiares e afetivas
gal brasileiro.” terminam sem vencedores. “Mais do que
“Por conta da nossa realidade social isso: todos perdem. As pessoas passam
e da posição das mulheres, geralmente DIVÓRCIO COLABORATIVO anos de suas vidas unidas pelo conflito,
são elas as partes vulneráveis e, portan- gastam parte expressiva de suas econo-
to, as vítimas da violência patrimonial No caminho para a solução dos im- mias, não sendo raros os casos em que
que pode se apresentar como a apro- passes, estão as práticas colaborativas. os filhos crescem em meio a interminá-
priação da remuneração do cônjuge, “O divórcio colaborativo surge como uma veis batalhas judiciais, comprometendo
a destruição de bens, documentos do interessantíssima opção para casais que o seu pleno desenvolvimento e trazendo
cônjuge e a mais comum na negativa do estejam passando pelo desafio de com- a pior das consequências: laços afetivos
pagamento da pensão alimentícia fixada binar os termos deste novo ciclo de vida rompidos de maneira definitiva, muitas
em favor do cônjuge e até mesmo dos e de redesenhar a organização familiar vezes por gerações.”
filhos, com a finalidade de sufocar eco- de forma amigável”, defende Olívia Fürst,
nomicamente a parte vulnerável e finan- membro do IBDFAM. “A abordagem Colaborativa do Divór-
ceiramente dependente.” cio é o método que melhor cuida das
A proposta colaborativa do divórcio crianças e adolescentes envolvidos. Isto
Ela explica que não há fórmula concre- consiste em uma abordagem extraju- porque o trabalho em equipe multidis-
ta para se evitar a violência patrimonial dicial, multidisciplinar e não adversa- ciplinar permite ainda que um especia-
pós-divórcio. “Esse é um tema complexo rial do divórcio. “Extrajudicia, porque lista em desenvolvimento infantojuvenil,
e para o qual não há ‘uma única receita’, todo o processo de resolução do con- possa integrar a equipe e ter uma es-
mas eu acredito no uso da Lei Maria da flito é trazido para a esfera privada, cuta apurada para as necessidades dos
Penha, do próprio Código Civil e, princi- mantendo os clientes e os advogados filhos, enriquecendo o processo decisó-
palmente, da Constituição Federal como no controle da situação, possibilitan- rio dos pais.”
meios de instrumentalizar as ações com do que o processo se dê no tempo das
caráter inibitório da violência patrimonial, pessoas e preservando sua autonomia. O advogado passa a ser visto como
indenizatórias, e sem falar dos aspectos Recorre-se ao Tribunal apenas para um importante aliado nessa empreita-
penais dessa realidade que devem ser homologar os acordos quando a lei as- da, segundo Fürst. “Munido de novas
buscados pelas vítimas.” sim determinar.” habilidades negociais e de comunica-
ção, o advogado exerce um papel fun-
Ainda têm sido tímidos os julgados que “Não adversarial na medida em que damental na costura dos interesses e
decretam o divórcio post mortem, segun- os advogados assinam um termo de não necessidades das pessoas envolvidas,
do Viviane Girardi. “Defendo essa ideia litigância, afastando por completo a pos- com foco especial nas crianças e ado-
porque ao ingressar com a demanda o sibilidade de representarem os mesmos lescentes, e sua presença passa a ser
interessado manifesta expressamente clientes em um litígio judicial. O compro- celebrada pelas partes na medida em
para o Judiciário e para a sociedade o misso com a não litigância permite que que estiver cada vez mais associada à
desejo pelo divórcio e, sobretudo, porque os advogados passem a trabalhar em efetiva resolução dos conflitos do que
a existência do casamento impacta jus- conjunto e complementaridade – e não ao ajuizamento de processos.”
tamente nos aspectos sucessórios patri- mais em oposição –, unindo esforços
moniais. Então, por que não permitir ao para auxiliar seus clientes a alcançar “O divórcio colaborativo é, sem dú-
Espólio que siga defendendo os legítimos um acordo que seja o melhor possível vida, uma metodologia coerente com
interesses pessoal e patrimonial do de para todos os envolvidos.” as demandas do nosso tempo. Além
cujus?”, indaga a advogada. de estar em sintonia fina com as no-
A especialista acrescenta: “Multidis- vas políticas públicas do CNJ e com
“Ademais, muitas das vezes, a morte ciplinar pela possibilidade de se trazer as leis brasileiras mais recentes, o
antes do fim do divórcio decorre da de- à mesa de negociação profissionais de divórcio colaborativo vai ao encontro
mora na tramitação processual, situa- outras especialidades, uma vez que se dessa demanda reprimida – tanto por
ção recorrente no âmbito do Judiciário compreende e aceita que o divórcio é in- parte da sociedade, quanto dos pro-
nacional, e isso não pode recair sobre trinsecamente complexo, com múltiplos fissionais que lidam com conflitos de
os ombros do cônjuge falecido. Esses aspectos (emocional, psicológico, finan- natureza familiar – por métodos mais
me parecem fatores que precisam ser ceiro, entre outros), sendo o jurídico ape- eficazes e construtivos de gestão de
efetivamente considerados para que o nas um deles”. controvérsias.”
14
DESAFIOS
PSIQUE E
VULNERABILIDADES
para não tentar uma nova relação,
as pessoas nem sequer precisariam
se divorciar, apenas se separariam.”
LIBERDADE NO AMOR
FAMÍLIA EUDEMONISTA a liberdade e as escolhas eram res- Divorciar implica em viver um luto
tritas a uma lógica autoritária.” quanto ao ideal de amor eterno e de
O divórcio passou a se inserir em família perfeita, nas palavras da psica-
um conceito de família eudemonista, Relacionamentos líquidos e o direi- nalista. “Os filhos também vivem este
como detalha a psicanalista Giselle to ao divórcio derivam da maior liber- ideal e para eles é uma conquista do
Groeninga, diretora de Relações In- dade nas relações sociais e afetivas, desenvolvimento diferenciar o casal
terdisciplinares do IBDFAM. “A família mas confundi-los lembra o argumen- conjugal do casal parental, psiquica-
eudemonista em muito se diferencia to de que as mudanças como o antigo mente pode ser mais ‘econômico’ que
da família sacralizada que se pautava desquite, o divórcio, o casamento ho- os pais sejam casados. Uma economia
pelo sacrifício do indivíduo em nome moafetivo e outras acabariam com a que, sem dúvida, custa mais caro quan-
da família, em um sistema autoritário família. “O exercício da liberdade, por to aos modelos de casal conjugal que
e patriarcal, em que o casamento era certo, não implica necessariamen- imitarão na vida futura quando os pais
indissolúvel – às vezes uma sentença te em relações superficiais e frágeis estão infelizes. Na realidade o que os
de prisão perpétua.” que caracterizam o chamado ‘amor filhos necessitam é que os pais se en-
líquido’.” tendam e cooperem enquanto pais.”
“A liberdade era limitada – ia até
onde começava a liberdade do outro, e Ela pontua: “Devemos questionar se A especialista dá a deixa para as
qualquer coisa além disto era alvo de o conceito de ‘amor líquido’ não traz próximas décadas. “Posso dizer que o
culpabilização. No caso de divergên- de carona um juízo negativo quanto desafio para o Direito das Famílias é
cias, os direitos eram vistos como em aos relacionamentos que podem ser o de ser imparcial no respeito e pro-
oposição, sob uma ótica patriarcal. mais fluídos, não exclusivos, mas teção às famílias em sua pluralidade,
Já a família eudemonista se caracte- não necessariamente superficiais ou sem impor, mesmo que indiretamen-
riza pela ‘liberdade em ser humano’, irresponsáveis. Sempre é bom ana- te, ideologias que se crê ser ‘para o
como costumo dizer. Ou seja, sua na- lisar com ponderação e lembrar o bem das famílias’. Sem ter consciên-
tureza é a das escolhas na busca das poeta que ‘toda forma de amar vale cia podemos estar desconsiderando
realizações e bem-estar individuais, a pena’”. as necessidades e vulnerabilidades de
atendendo à finalidade da família que cada um de seus membros, impondo
é a responsabilidade na proteção e MUDANÇAS COMPORTAMENTAIS a ideologia da família em que os adul-
cuidado da vulnerabilidade que nos é tos devem, sobretudo, se sacrificar
intrínseca.” Ainda que o divórcio tenha se na- em nome dos filhos.”
turalizado na sociedade brasileira
O divórcio sintoniza com o conceito nesses 45 anos, certo preconceito Um divórcio bem elaborado deve
de família eudemonista compreendi- ainda existe. “Do ponto de vista psi- restituir a funcionalidade da família,
da como composta de subsistemas, cológico, sabemos que o casamen- segundo Giselle. “Muitas vezes, o
conjugal, parental, fraterno, liberan- to implica necessariamente em re- resultado de vários divórcios acaba
do o casal conjugal, segundo Giselle. núncias e muitas vezes quando um sendo o inverso: os filhos acabam sa-
“Neste cenário, de relações equitativas casal se divorcia mexe nos desejos crificados no curso de vários proces-
e complementares, em que o exercí- daqueles que estão casados. Não é sos judiciais. Para tanto, cabe uma
cio das funções implica em realização à toa que se tomam partidos de for- maior compreensão e o acolhimento
própria e em nome da família, a liber- ma apaixonada, e que, por vezes, se da vulnerabilidade de todos nas cri-
dade e os direitos passam a ser com- afastem os divorciados por repre- ses devidas ao divórcio.”
preendidos como complementares – sentarem um perigo acendendo de-
começam onde começam a liberdade sejos reprimidos.” “Pais desconsiderados em suas
e o direito do outro.” necessidades e vulnerabilidades,
“Em certa medida, vale o dito po- pais infelizes fazem filhos infelizes e
“O direito ao divórcio é um efei- pular quanto ao casamento: ‘quem tendem a desconsiderar suas vulne-
to direto da família eudemonista, está dentro quer sair e quem está rabilidades. Neste sentido, costumo
pautada muito mais pela liberdade, fora quer entrar’. Por outro lado, é dizer que o superior interesse deve
inclusive, mas não só, quanto à ex- natural o ideal e a fantasia de que o ser o da família, em que o bem-estar
pressão sexualidade e gênero, em amor seja eterno. Resistimos a acei- e a realização de todos, sem exce-
contraste com a família sacralizada, tar o que disse o poetinha: ‘Que seja ção, deve ser considerado”, defende
patrimonializada e patriarcal, em que eterno enquanto dure’.” Giselle Groeninga.
18
BIOGRAFIA IMERSIVA INÍCIO DA LUTA
NOTÁVEIS CONSAGRADA