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Nº 65

Outubro/Novembro 2022
Fechamento autorizado
Pode ser aberto pela ECT

MATÉRIA - PÁG. 12
ENTREVISTA - PÁG. 4
Os desafios e as possibilidades
A psicanalista Maria Homem
que se apresentam hoje no
avalia a liquidez dos pactos
Direito das Famílias
na contemporaneidade

MATÉRIA - PÁG. 15
CAPA - PÁG. 8
Como a psique e as
Especialistas do IBDFAM vulnerabilidades operam
lembram o contexto de 1977 no momento da separação
e os avanços nas décadas
seguintes

45 ANOS DO DIVÓRCIO
NO BRASIL 1
PÁG.4 342.16

R454
Revista IBDFAM, v.65,
outubro./novembro.2022.
45 Anos do Divórcio no Brasil

ENTREVISTA:
2022

MARIA HOMEM
Periodicidade bimestral.

ISSN 2764-5800
Vários autores.

8
1. Direito – Periódicos. 2.
Direito das sucessões. 3. Direito de família.

PÁG.
I. 45 Anos do Divórcio no Brasil. Título.
CDDir - 342.16
CDD (23.ed.) –

MATÉRIA DE CAPA
346.015

Elaboração: Fátima Falci – CRB/6-nº700

12
Capa: Adobe Stock / GiorgioMorara
PÁG. O IBDFAM também está nas redes
SINAIS DOS TEMPOS sociais, levando informação e
entretenimento ao seu público. Acesse:

PÁG.15
PSIQUE E
VULNERABILIDADES Telegram: Youtube:
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19
IbdfamBrasil
PÁG.
LAZER

Em breve, o espaço do IBDFAM também poderá ser seu.


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EDITORIAL EXPEDIENTE
DIRETORIA EXECUTIVA
Presidente: Rodrigo da Cunha Pereira (MG); Vice-Presidente: Maria Berenice Dias (RS); Primeiro-Secretário: Rolf Hanssen

UM NÃO QUERER
Madaleno (RS); Segundo-Secretário: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB); Primeiro-Tesoureiro: José Roberto Moreira
Filho (MG); Segundo-Tesoureiro: Antônio Marcos Nohmi (MG); Diretor de Relações Internacionais: Paulo Malta Lins e Silva
(RJ); 1º Vice: Cássio Sabbagh Namur (SP), 2ª Vice: Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner (PR); Diretora das relações

MAIS QUE BEM QUERER


interdisciplinares: Giselle Câmara Groeninga (SP); Vice Diretora das relações interdisciplinares: Cláudia Pretti Vasconcellos
Pelegrini (ES); Diretor do Conselho Consultivo: Marcos Ehrhardt Júnior (AL);

CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
O Beijo (1908), tela mais famosa do pintor austríaco Gustav Klimt Diretor Norte: Raduan Miguel Filho (RO); Diretor Nordeste: Paulo Luiz Netto Lôbo (AL); Diretora Centro-Oeste: Eliene Ferreira
Bastos (DF); Diretor Sul: Ana Carla Harmatiuk Matos (PR); Diretora Sudeste: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP);
(1862-1918), ilustra esta edição da Revista IBDFAM que enfoca os 45
anos do divórcio no Brasil. Haveria um paradoxo na escolha de uma CONSELHO FISCAL
Presidente: Lourival Serejo; Vice-Presidente: Alberto Raimundo Gomes Dos Santos; Segundo-Vice: Luiz Cláudio Guimarães;
obra que representa o amor para falar justamente em uma decisão Terceira-Vice: Angela Gimenez; Secretária: Maria Rita Holanda;
que, em um primeiro olhar, é tomada pelo desamor? Ao longo desta
COMISSÕES
publicação, você vai perceber que a separação pode ser lida como um Comissão Científica: Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (SP); Vice: João Batista de Oliveira Cândido (MG);
ato de bem-querer, como um beijo pode muito bem representar. Comissão de Direito das Sucessões: Flávio Murilo Tartuce Silva (SP); Vice: Ana Luiza Maia Nevares (RJ); Segunda vice:
Simone Tassinari Cardoso (RS) Comissão de Mediação: Ana Brusolo Gerbase (RJ); Comissão da Infância e Juventude:
Fernando Moreira Freitas da Silva (MT); Vice: Paulo Eduardo Lépore (SP); Comissão do Idoso: Maria Luiza Póvoa Cruz (GO);
A psicanalista Maria Homem, notável ainda como professora e Vice Wlademir Paes Lira (AL); Comissão de Jurisprudência: Viviane Girardi (SP); Comissão de Arbitragem: Francisco
José Cahali (SP); Comissão de Assuntos Legislativos: Mário Luiz Delgado Regis (SP); Vice: Ricardo Lucas Calderón (PR);
pesquisadora, tem o ser humano como principal objeto de estudo. Em Segundo Vice: Érica de Barros Lima Ferraz (PE); Comissão de Gênero e Violência Doméstica: Adélia Moreira Pessoa (SE);
entrevista, a especialista trata do significado do divórcio para o homem Vice: Ana Florinda Mendonça da Silva Dantas (AL); Secretária: Rosângela Novaes; Comissão de Notários e Registradores:
Márcia Fidelis Lima (MG); Vice: Karin Regina Rick Rosa (RS); 2º Vice: Thomas Nosch Gonçalves; Comissão de Estudos
e para a mulher, faz uma análise da contemporaneidade com recortes Constitucionais da Família: Gustavo José Mendes Tepedino (RJ); Vice: Marcos Alves da Silva (Vice); Comissão de Ensino
sobre diversidade e monogamia e fala ainda da necessidade de elaborar Jurídico de Família: João Ricardo Brandão Aguirre (SP); 1º vice: Waldyr Grisard Filho (PR); 2º Vice: Fabiola Albuquerque
Lôbo (PE); Comissão de Relações Acadêmicas: Marcelo Luiz Francisco Bürger (PR); 1º Vice: Conrado Paulino da Rosa; 2º
o luto da chamada “família tradicional”. “Quem é conservador se apega vice: Dimitre Braga Soares De Carvalho(PB); Comissão de Direito Homoafetivo: Maria Berenice Dias (RS); 1º Vice: Priscila
a um ideal, um porta-retrato da família perfeita.” de Oliveira Moregola Pires; 2º Vice: Chyntia Aquino da Costa Barcellos; 1ª secretária: Rosângela Novaes; 2º secretário
da Comissão de Direito Homoafetivo: Vladimir Fernandes Mendonça Costa (DF); Comissão de Adoção: Silvana do Monte
Moreira (RJ); Vice: Fernando Moreira Freitas da Silva (MT); Comissão de Advogados de Família: Marcelo Truzzi Otero (SP);
Especialistas do IBDFAM voltam quatro décadas e meia para Vice: Aldo de Medeiros Lima Filho (RN); Segundo vice: Daniel Bliksten (SP); Comissão de Magistrados de Família: Jones
Figueiredo Alves (PE); Vice: Andrea Maciel Pachá (RJ); Comissão de Promotores de Família: Cristiano Chaves de Farias
contextualizar sobre a promulgação da Lei do Divórcio (n. 6.515/1977) e o (BA); Comissão dos Defensores Públicos da Família: Cristiana Mendes de Carvalho Oliveira (RJ); Vice: Claudia Aoun
importante passo que foi dado pela sociedade brasileira naquela época. Tannuri (SP); Comissão de Direito de Família e Arte: Fernanda Carvalho Leão Barretto (BA); Vice presidente: Luciana
Brasileiro (PE); Comissão de Direito Previdenciário: Anderson de Tomasi Ribeiro; Vice: Melissa Folmann (PR); Comissão
Traçam os avanços que vieram em seguida, como a Emenda do Divórcio da Pessoa com Deficiência: Cláudia Grabois Dischon (RJ); Vice: Nelson Rosenvald; Segundo vice: Fernando Gaburri
(EC 66/2010), há 12 anos, bem como os desafios e as possibilidades que (BA); Comissão Biodireito e Bioética: Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas (PE); Vice: Marianna de Almeida Chaves
Pereira Lima (PB); Comissão de Processo Civil: Fernanda Tartuce Silva (SP); Comissão de enunciados: Marcos Augusto
se apresentam em 2022. De Albuquerque Ehrhardt Junior (AL); Vice: Flávio Murilo Tartuce Silva; Comissão de relações governamentais: Renata
Nepomuceno e Cysne (DF); Vice: João Paulo Sanches; Secretária: Carolina Senna; Comissão de refugiados: Patrícia
Cristina Vasques de Souza Gorisch (SP); Vice: Denise Abreu Cavalcanti Calil (RR); Comissão de empresas familiares e
Entramos na era do divórcio digital, em que o procedimento já pode holding: Rodrigo Azevedo Toscano de Brito (PB); Vice: Antônio Evangelista de Souza Netto (PR); Comissão da diversidade
transcorrer on-line. Essa foi uma das repercussões da pandemia da racial e etnia: Patrícia Romana da Silva do Nascimento (RJ); Vice: Caroline Freitas Vidal (MG); Comissão nacional de
família e tecnologia: Patrícia Corrêa Sanches Lamosa; 1º Vice: Marcos Ehrhardt Júnior (AL); 2ª Vice: Priscila Agapito
Covid-19, que também trouxe um aumento significativo no número de (SP); Secretária: Maria Elizabeth Lamosa; Membros: Ana Aparecida Brussolo Gerbase (RJ); Cristiano Chaves de Farias
separações no Brasil e no mundo. Hoje, entendido pela doutrina e a (BA); Cíntia Burille (RS); Cláudia Domingues (SP); Comissão de interiorização: Dirigentes Sul: Fernanda Pederneiras,
Vice: Simone Tassinari; Sudeste: Daniel Blikstein, Vice: Pedro Dalbone; Centro-Oeste: Naime Moraes, Vice: Paula Guitti;
jurisprudência como um direito potestativo, que não requer anuência do Nordeste: André Franco, Vice: Gustavo Andrade; Norte: Nena Sales Ribeiro, Vice: Luiza Simonetti.
outro cônjuge, o divórcio pode ser decretado por decisão liminar e ainda
DIRETORIAS ESTADUAIS:
a partir de práticas colaborativas, como explicam os especialistas.
REGIÃO NORTE: Acre: Igor Clem Souza Soares ; Amapá: Nicolau Eládio Bassalo Crispino; Amazonas: Gildo Alves de
Carvalho Filho; Pará: Leonardo Amaral Pinheiro da Silva; Rondônia: Raduan Miguel Filho ;Roraima: Andréia Vallandro;
Tratar das relações interpessoais impõe a necessidade de se atentar Tocantins: Alessandra Aparecida Muniz Valdevino; REGIÃO NORDESTE: Alagoas: Wlademir Paes de Lira; Bahia:
Fernanda Carvalho Leão Barretto; Ceará: Gabriela Nascimento Lima; Maranhão: Teresinha de Fátima Marques Vale;
à psique, daí a ligação indispensável entre o Direito das Famílias e Paraíba: Agamenilde Dias Arruda Vieira Dantas; Pernambuco: Gustavo Henrique Baptista Andrade; Piauí: Cláudia
a Psicanálise. Os cuidados com os filhos, os desafios enfrentados Paranaguá de Carvalho Drumond; Rio Grande do Norte: Suetônio Luiz de Lira; Sergipe: Acácia Gardênia Santos Lelis;
REGIÃO CENTRO-OESTE ;Distrito Federal: Leonardo Vieira Carvalho; Goiás: Marlene Moreira Farinha Lemos; Mato
pelos adultos na vida após o fim do casamento e também o papel dos Grosso: Juliana Giachin Pincegher; Mato Grosso Do Sul: Líbera Copetti de Moura; REGIÃO SUDESTE: Espírito Santo:
profissionais de Justiça nestas situações estão presentes entre as Flávia Brandão Maia Perez; Minas Gerais: José Roberto Moreira Filho; Rio de Janeiro: Luiz Cláudio de Lima Guimarães
Coelho; São Paulo: Flávio Murilo Tartuce Silva; REGIÃO SUL: Paraná: Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk; Rio Grande do Sul:
abordagens a seguir. Braulio Dinarte da Silva Pinto; Santa Catarina: Luciana Faisca Nahas.
Uma publicação da Assessoria de Comunicação do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Em mais de uma das entrevistas, foi feita a afirmação: as pessoas se Rua Tenente Brito Melo, nº 1223 / 3º andar | Santo Agostinho | CEP 30.180-070 | BH - MG

divorciam para serem felizes. Do beijo que ilustra a capa desta edição SUPERINTENDÊNCIA: Maria José S Marques de Andrade
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: Marandhayan Oliveira, Débora Anunciação
até o conteúdo das matérias, fica claro que está ultrapassada a ideia do ASSESSORIA JURÍDICA: Ronner Botelho, Leandra Porto (assistente)
divórcio como uma ruptura nefasta. Não se trata da destruição de um DESIGNER: Bruno Caligiorne, Rebeca Silva
REVISÃO: Cybele Maria de Souza
lar; ao contrário, é o caminho para que novas relações se formem. É um TIRAGEM: 8.000 EXEMPLARES
passo na busca pela felicidade – e não é justamente esse anseio que PERIODICIDADE: bimestral
DISTRIBUIÇÃO: gratuita, aos associados do IBDFAM
nos faz constituir uma família?
OS ARTIGOS ASSINADOS, BEM COMO OPINIÕES EMITIDAS EM ENTREVISTAS, SÃO DE
RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.
Boa leitura!
ATENDIMENTO AO ASSOCIADO: (31) 3324-9280 | PARA ANUNCIAR: (31) 3324-9280

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FINITUDE E LIQUIDEZ
DOS PACTOS
A psicanalista Maria Homem fala dos mais variados assuntos a uma mul-
tidão nas redes sociais – são 330 mil seguidores no Instagram e mais de
10 milhões de visualizações no YouTube. Seus vídeos são acompanhados por
um público disposto a pensar sobre si, sobre seus relacionamentos e o mundo
à sua volta. Sujeitos deste tempo em que os lugares incômodos ou predefini-
dos são um convite ao movimento e não à conformação.

Para Maria Homem, o direito ao divórcio, conquistado há 45 anos, foi um


marco especialmente para a luta das mulheres. Em 2022, o desafio é elaborar
o luto da família idealizada, conceito que quase impediu aquele importante
avanço para a sociedade brasileira. A família, lembra a especialista, não está
mais atrelada aos pactos indissolúveis, mas segue no centro, para muitos, da
incessante busca por felicidade e realização pessoal.

A Lei do Divórcio foi promulgada diem, que é aproveitar o dia e a vida vidas, de deuses, vamos fazer a gente
há 45 anos. Sob o ponto de vista da que estamos vivendo no aqui e agora, agora?”. Vêm daí o Estado Democrá-
Psicanálise, o que esse direito re- não no futuro, muito menos na eter- tico de Direito, separação entre Igreja
presentou para a vida das pessoas e nidade. Esse conceito de eternidade e Estado, poder para o Terceiro Esta-
quais mudanças podem ser notadas começa a ser questionado. Então, os do, a ideia de que somos todos iguais
na sociedade ao longo dessas últimas votos eternos, os pactos eternos e, perante a lei, todos temos direitos
décadas? sobretudo, a vida eterna, deixam de iguais. Essa é a virada, que vem de
fazer tanto sentido, e vamos cada vez alguns séculos.
Podemos falar das décadas, mas mais ganhando a consciência de que
também podemos falar dos milênios. a vida é breve. Essa também é uma
Lá atrás, não tínhamos esse direito, ideia antiga. É Sêneca [filósofo estói-
nem homens nem mulheres, mas es- co do Império Romano], tem algo da
távamos em uma lógica patriarcal em temporalidade relativa. Mesmo que “A modernidade é curiosa
que o homem tinha poder sobre mu- pensemos que possam existir outras porque está fazendo uma
lheres, escravos, bem móveis e imó- vidas e existências, vai ganhando elaboração da finitude
veis. Havia uma dupla dominação so- corpo a existência de uma brevidade, humana e da finitude dos
bre os sujeitos de estarem atrelados de uma ampulheta girando.
aos pactos indissolúveis. Entendia-se
pactos. Tanto que, hoje,
que, nesta vida, havia esse pacto. Na Isso faz com que nos perguntemos: há uma aceleração disso.
outra vida, podíamos fazer sonhos de “Espera aí, como estou vivendo a mi- Sofremos da fluidez. O
liberdade, de felicidade. Era a divisão nha vida? Como eu quero construir conceito é de modernidade
em uma vida dupla, a terrena e a eter- a minha vida?”. Essa já é uma ideia líquida. Mesmo o amor,
na, com outra configuração do valor da nova. Tão nova que implica em uma é líquido, e os pactos
vida e da experiência. transformação profunda de paradig-
ma, que é a modernidade. Quando se
também são líquidos.”
Foi ganhando corpo uma outra diz: “Espera, vamos esquecer essa
ética, que conhecemos como carpe história de transcendência, de outras
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Ao longo desse tempo, vamos fa- menina”. O projeto não é mais a famí- Eu teria uma versão muito amplia-
zendo cada vez mais a ampliação dos lia nem ser objeto de um sujeito fálico da do conceito de família, que seria um
grupos que seriam sujeitos de direito, masculino. É o que estamos vivendo e pequeno número de pessoas que se
também os negros, as mulheres. Hoje, que encontra reações. Nossa socieda- suportam e, na melhor das hipóteses,
já colocamos as posições desejantes, de, hoje, está vivendo uma retaliação se amam. Não é fácil nem se suportar
como a população LGBTQIA+. Vamos violenta, de protesto viril, como se qui- nem se amar. É fazer um campo afeti-
sofisticando essa ideia de sujeito, tanto sessem a reafirmação de uma virilida- vo, socioeconômico, político e cognitivo
no sentido de uma subjetividade liberal de perdida, de um desenho imaginário em que você tenha a vivência da inti-
e interiorizada quanto de uma subjeti- do que seria a potência do masculino. midade. Para suportar e amar alguém,
vidade de direito. Conseguimos fazer Só que não dá mais, não é? não é possível sem teatro ou recalque,
essa dupla escalada: vamos nos per- se você não instaura um campo da in-
mitir viver a vida agora e redesenhar a Uma parcela conservadora da so- timidade, coisa da qual temos muito
vida, construir. Se fiz uma parceria que ciedade via o divórcio como a destrui- medo. É muito difícil estarmos à vonta-
está boa e há a realização e o gozo, ção da família. Por que essa é uma de com outros seres humanos. Temos
ok. Quando termina isso, ok também. ideia falaciosa? núcleos paranóides, temos medo, rai-
Aceitamos a mortalidade, o fim, elabo- va, segredo, o inconsciente, ataques,
ramos melhor os lutos. Não só falaciosa como contrária a projeção, introjeção e transferência.
uma outra luta que é justamente pelos Todas essas coisas que Freud desco-
Para chegar agora, nessas déca- direitos da família. Todo mundo quer briu, que a Psicanálise trabalha e que
das posteriores, estamos afirmando ter família, independentemente de é matéria vida.
esse direito de matar e deixar morrer orientação sexual ou identidade de gê-
os pactos, em nome de mais prazer, nero. A Psicologia e a Psicanálise vão Então, o que é a família? É um campo
mais realização e mais felicidade. Para dar seus palpites, e de uma forma não normalmente ultraproblemático dessas
que se atrelar a cadáveres? Para que unânime. O mundo é complicado, então relações de intimidade. É pouco trabalha-
se atrelar a situações de gozo do outro temos vários discursos mais ou menos do, analisado e, por isso, o berço da neu-
sobre mim, de dominação, de assédio cientificizantes, medicalizantes, psico- rose. Para resumir, o berço da loucura.
e opressão? Nesse sentido, o divórcio logizantes que vão estar a serviço das Onde é que você se torna psicótico, psi-
teve um valor mais libertador para o ideologias dominantes. Só que, hoje, copata, sociopata? Não é algo que nasce
direito das mulheres, para que elas temos mais liberdade para perguntar: de uma essência do mal, do demônio.
não sejam mais atreladas como obje- por quê? Por que, durante anos, as fa- Estamos em outro paradigma, menos
tos dos seus sujeitos maridos – ou pro- mílias heteronormativas “produziram” transcendental, como falei lá atrás. Há
prietários ou patriarcas. Há culturas seres desejantes homossexuais? Não uma conexão direta com o lugar do qual
que até hoje lutam por essa perma- necessariamente um casal homopa- viemos, qual lugar que nos convidaram a
nência. Isso existe, até mesmo, dentro rental vai “produzir” sujeitos homode- ocupar. Não é um lugar racional. É, so-
do Brasil, mas me refiro mais a países sejantes. Não existe essa regra de que bretudo, inconsciente. Como vamos dar
em que a religião obriga a cisão do cli- o filho vai ser automaticamente igual conta de viver com outro ser que tem
tóris, em que o homem pode ter várias aos pais. Fosse assim, filho de gênio uma tessitura muito diferente, específi-
mulheres e colocar uma hierarquia seria gênio, filho de otário seria otário ca e singular? É complexo, mas, quando
entre elas. No mundo, hoje, do Ociden- e filho de heterossexual seria heteros- funciona, é bom.
te ao Oriente, elas estão dizendo “não”. sexual. Também estamos debatendo
Há uma busca por igualdade há pelo isso para pensar a família hoje. Como homens e mulheres operam
menos 200 anos. nessa situação? É possível fazer um re-
corte comportamental em relação aos
O divórcio também permitiu maior gêneros?
potencialidade da mulher nos cam- “O conceito de família
pos intelectual, subjetivo, econômico, é interessantíssimo. Nessa comparação, é preciso cruzar
social e, portanto, político. Aumenta Ninguém, por ora, uma variável: o divórcio desejado e o não
o campo de direito político. A mulher inventou outro núcleo mais desejado. Isso é fundamental para os
pode, então, decidir coisas sem ser efeitos psíquicos do ato da separação. A
“bela, recatada e do lar”. As meni-
interessante de formar pergunta-chave é: você desejou se sepa-
nas hoje dizem “não quero casar, não pessoas.” rar? Não falo da iniciativa, de quem quis
quero ter filho, gosto de menino e de se separar, o que é relevante para o nosso
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narcisismo, mas às vezes isso é engana- Neste contexto, se ele sai e ainda se realização que você obtém como sujeito
dor. Aparentemente, quem tomou a deci- casa com outra, vai ter uma quantidade dentro desses pactos.
são foi a mulher, mas o homem fez tudo de angústia muito pequena. Se for cons-
para que ela tomasse essa decisão. Essa ciente todo esse processo, ele terá ainda Quando falamos em divórcio, fica-
é uma estratégia masculina clássica, por um grande alívio com a saída dessa re- mos muito ligados às relações mono-
não conseguir romper a relação. Há toda lação, além de uma realização por estar gâmicas e heterossexuais, mas há um
uma estrutura de culpa, superego e dívi- em outro relacionamento. A mulher, por leque de possibilidades. Existe uma
da, então ele inferniza a vida da mulher e outro lado, que fazia esse “jogo desejan- tendência de que essas relações dei-
a faz pedir o divórcio, o que torna o pro- te” e achava que estava funcionando, cai xem de ser modelo?
cesso mais desgastante. no buraco. Entra em depressão, começa
a tomar remédio, os filhos saem de casa, É isso que está acontecendo e que
A maior parte do problema, geralmen- a vida fica péssima. Ou, por outro lado, está assustando a alma brasileira e essa
te, não é a separação, é a não decisão. É pode ir em uma análise, entender rapi- grande gama de humanos que se identi-
justamente você não se posicionar, não damente qual era o esquema daquele fica com o termo simbólico e significante
se conhecer, não assumir e não bancar. casamento e relacionar com o jeito de “conservador”. É um desejo profundo de
A confusão se dá porque, muitas vezes, a seus próprios pais e constrói uma outra conservar mais do que o passado, que
gente é alienado da gente mesmo. O que relação muito mais interessante. Esse é não necessariamente era muito feliz e
me faz estar aqui neste campo subjetivo o clichezão, mas posso contar várias his- realizado. A família heteronormativa,
tão íntimo com esse outro ser humano, tórias aqui. monogânima e cristã nunca foi um poço
tão necessariamente diverso de mim? de alegria e felicidade. Muitas vezes, vi-
Como os filhos dos casais se inserem ve-se ali porque é o que lhe dá comida,
no divórcio? A que contextos eles estão abrigo e lhe faz reproduzir a vida. Agora,
expostos? estamos experimentando todos os ou-
“As pessoas sempre são tros formatos.
diferentes. Podem ser do Com os filhos, acontece da mesma
forma, com a variação entre o divórcio
mesmo sexo, da mesma
desejado e o não desejado. Eles sofriam
religião, da mesma classe, com as brigas contínuas dos pais? Essa
da mesma raça. Somos instabilidade era fonte de angústia? Eles “Por mais que seja
singulares e extremamente ficaram aliviadíssimos com a separação assustador, podemos e
específicos.” dos pais? Ou, pelo contrário, não estavam devemos elaborar o luto
entendendo nada e a relação do casal do ideal de família. Quem é
era sempre ocultada deles? Caíram de conservador se apega a um
surpresa do décimo quinto andar com o
ideal de família, muito mais
“Não estou mais interessado nessa divórcio, foi um tombo radical para eles?
relação, não gosto, não desejo, não es- Que idade eles tinham? Qual elaboração do que uma família real. É
tou à vontade, está chato, me exaure, tem discursiva tiveram disso depois? Como muito mais um desenho,
uma violência, um assédio, uma mon- puderam pensar seu lugar no mun- um porta-retrato da família
tagem fantasmática que não rola mais do sem o pai e a mãe juntos, vivendo na perfeita.”
para mim.” Usando a minha linguagem, mesma casa?
é isso que faz o divórcio. Isso é o que faz
o fim de uma relação: você embarcou em O humano é um bicho muito singular.
uma montagem, que é sempre ligada a Não controlamos como vamos sentir,
uma fantasia inconsciente, como gos- como vamos reagir, como vamos elabo- Essa felicidade pode acontecer. Co-
tar de provocar ciúme e outro gostar de rar ou não. Somos livres. Esse é o pro- nheço e tive a sorte de viver e de ser re-
sentir ciúme. Pode ser uma dinâmica que fundo sentido da liberdade, muito mais cebida na vida com pais que se amaram
fará bodas de ouro, só que, depois de um do que pescar em lugar proibido, usar ou e, depois, de viver e compartilhar com
tempo, os dois estão exaustos. É quando não o cinto de segurança, andar em tal um homem uma relação muito profun-
começam a sacar o funcionamento inter- velocidade. A liberdade profunda é entrar da, de intimidade e de produtividade e
no da relação. Aquilo que lhe dava muito em contato com tudo o que você sente e até intelectual muito ampla. Sou grata
prazer, tesão e libido, começa a ser um deseja, sem recalque, elaborar tudo isso a essas duas grandes vivências e, pes-
“joguinho” a ser sacado e perde a graça. e desfazer os pactos de acordo com a soalmente, não tenho nada do que co-
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brar do destino ou entrar em um lugar já vai questionar a ideia de coabitação,
de ressentimento, pelo contrário. Sei a legalidade no papel e outros toques
que é difícil, por tudo que eu escuto, simbólicos. O que é casar? Conheci um
“O grande motivo sempre
da clínica à mesa de bar, da leitura de casal gay que vivia em países diferentes, é que a gente não acomoda
Clarice Lispector a Shakespeare. com uma relação supersólida. Eles se essas diferenças de
falavam todos os dias, um acompanhava subjetividade, história de
a vida do outro em um nível que muitos vida, papel, gozo, desejo.
casais que vivem na mesma casa e não Em todos os campos,
“Será mais rico e têm. Estamos entendendo a vida muito
temos especificidades e
interessante se pudermos além de uma concretude, muito mais
complexa que a sensorialidade do nosso diferenças.”
elaborar o luto do conceito corpo. Estamos ampliando a concepção
idealizado de família do que é viver, do que é laço social, do
ao mesmo tempo que que é sexualidade e do que é sexo. É o Temos que nos acomodar com o
ampliarmos e permitirmos real, simbólico e o imaginário com a va- outro para o espaço dessa intimidade,
a complexidade de um riável do tempo. que é um espaço muito concreto tam-
novo conceito de famílias, bém. É quem joga a toalha molhada
É possível apontar quais conflitos na cama, quem joga a roupa no chão,
colocando-as até no plural.” mais têm levado as pessoas a opta- quem ocupa o sofá da sala, quem não
rem pelo divórcio, atualmente? limpa o banheiro, quem não lava a
louça… Estamos falando de grandes
A ideia de monogamia eterna está se Estive na França no primeiro se- e complexos territórios, que são bio-
desfazendo? mestre e soube de uma pesquisa que -psico-econômico-políticos. É como a
apontou como o maior conflito causa- gente vive com o outro. Temos que fa-
Sem dúvida, e não é de agora. Na dor do divórcio, surpreendentemente, zer sempre uma negociação contínua
verdade, nunca aconteceu. Para os ho- as discussões sobre serviços domés- e uma acomodação. Tanto que muita
mens, sobretudo. Para as mulheres, ticos. Pode parecer um detalhe, mas gente diz: “Pelo amor de Deus, tô fora!
mais ou menos, no chicote, obrigadas. isso é fundamental na transformação Casamento, família e filhos, nem pen-
Não um chicote físico, mas da religião, dos lugares sociais de gênero, mascu- sar! Que cansativo!”. É um sentimento
da ideologia, da cultura, da “mal-falada”, lino e feminino. Sobretudo, em um mo- que também surge após a separação.
da puta. O presidente dá uma volta de mento histórico em que as mulheres Por isso, estamos vendo o boom arqui-
moto e vê putas. Nosso olhar objetifica, têm trabalhos que lhes dão reconhe- tetônico e mobiliário de microcápsulas
erotiza, sexualiza e domina o corpo femi- cimento e dinheiro. Ela não “finge que para os sujeitos humanos viverem. O
nino. O detalhe é que temos uma pulsão, trabalha” como o homem “finge que que é isso? É o fim da família!
um erostimo vivo, não é aprisionável. Se ajuda em casa”. Antes, o trabalho da
fazemos isso durante séculos e a pas- mulher se aproximava do voluntaria-
sagem da cultura greco-romana para a do. Até hoje, as primeiras-damas dos
cultura cristã no Ocidente fez essa maior países fazem visitas, ajudam crianças,
repressão, a modernidade e a revolução com a ideia de mulher rica que junta Maria Homem é Psicanalista, Pa-
sexual da segunda metade do século XX, cobertores para os meninos de rua. lestrante, Pesquisadora do Núcleo
que está na matriz da Lei do Divórcio, vai Hoje, as mulheres gostam dos seus Diversitas da Faculdade de Filoso-
destampar tudo isso, o que se mostra de trabalhos, são reconhecidas por eles e fia, Letras e Ciências Humanas da
maneira clara no século XXI. Por mais têm um poder-fazer. “Não posso ficar Universidade de São Paulo – FFL-
que a gente não quisesse, temos um aqui lavando louça, passando roupa e CH/USP e Professora na Fundação
corpo mortal e desejante. cuidando de filho. Cuida aí.” E o cara Armando Álvares Penteado – FAAP.
fala: “Como assim? Eu sou o homem, Tem pós-Graduação em Psicanáli-
As diversidades e a pluralidade são tenho que sair e trabalhar”. Então, não se e Estética pela Universidade de
um pilar lógico e epistemológico do se chega a um acordo. É a micropolíti- Paris VIII / Collège International de
contemporâneo. Há um significado plu- ca da disputa de poder, de território, de Philosophie e Doutorado pela FFL-
rissemântico para o amor, a traição, o função. Não é fácil mudar do paradig- CH/USP. Autora dos livros Lupa da
casamento, a separação e a família. De- ma patriarcal para um paradigma de Alma, Coisa de Menina?; No Limiar
pende de muitas variáveis, tanto que a lei fato democrático. do Silêncio e da Letra, entre outros.
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JORNADA HISTÓRICA
"Começar de novo/ E contar comigo/ Vai da assim sob a restrição da concessão plo disso eram as promoções de carreira
valer a pena/ Ter amanhecido/ Ter me re- por uma única vez, restrição essa eli- militar, em que o “desquitado” era prete-
belado/ Ter me debatido..." minada pela Lei n. 7.841/1989.” rido e o “mau casado” promovido.

("Começar de Novo" - Ivan Lins e Vitor Durante o Império, só havia o casa- SUPERAÇÃO DO DESQUITE
Martins) mento religioso, como lembra o advoga-
do Sérgio Barradas Carneiro, membro Lins e Silva explica que, antes do direi-

H á 45 anos, a sociedade brasi-


leira viveu um grande avan-
ço com o advento da Emenda
do IBDFAM. “Com a proclamação da Re-
pública, Rui Barbosa propôs a instituição
do casamento civil para que tivéssemos
to ao divórcio, o desquite era o que auto-
rizava a separação dos cônjuges. Rom-
pia-se o regime de bens e os deveres
Constitucional – EC n. 9/1977 e da Lei um Estado laico, separado da Igreja. conjugais, mas subsistia o vínculo ma-
do Divórcio (n. 6.515/1977) – ambos a Tempos depois, outro baiano, Nelson trimonial, impedindo novo casamento.
partir de projetos dos senadores Nelson Carneiro, depois de 26 anos de luta, con- O divórcio regulou também os alimen-
Carneiro e Accioly Filho. Foram dois im- seguiu instituir o divórcio no Brasil.” tos devidos entre os cônjuges, formas
portantes passos para a compreensão de atualização monetária, os critérios
de que o afeto e a busca pela realização Para o advogado Paulo Lins e Silva, de regulamentação de convivência com
pessoal devem pautar as relações fami- diretor de Relações Internacionais do filhos e alterou o regime legal de bens
liares, para além de meras convenções. IBDFAM, a Lei do Divórcio reformou todo para o da comunhão parcial.
o Direito de Família brasileiro, “proven-
O caminho até a superação dessa do-lhe novos ares e novas interpreta- “Além disso, facultou aos maiores de
barreira paradigmática foi longo. Mem- ções, muito mais adequadas à realidade 50 e 60 anos, mulher e homem, respec-
bro do Instituto Brasileiro de Direito de fática que a sociedade vivenciava naque- tivamente, a contrair matrimônio, por
Família – IBDFAM, o desembargador le momento”. Ele acrescenta: “Assim, livre escolha de regime de bens, desde
Jones Figueirêdo Alves lembra que o institucionalizou-se o divórcio, inicial- que tivessem filhos ou uma prévia união
Decreto n. 181/1890 foi o primeiro a re- mente, de forma homeopática, permi- por mais de dez anos, o que foi termo de
gular o casamento civil e, havido como o tindo-o apenas por uma vez, aos que ti- grande avanço para o que hoje concei-
diploma inicial do Direito de Família no vessem mais de três anos de separados tuamos como união estável”, explica o
país, definiu que tal união apenas seria judicialmente ou cinco de fato”. advogado.
extinta pela morte, admitindo apenas a
separação de corpos. Segundo o especialista, parte expres- “Enquanto o desquite desfazia apenas
siva da família brasileira era constituída a comunicação de bens adquiridos pelos
“O Código Civil de 1916 manteve a por uniões ditas “concubinárias”. “Como cônjuges e regulamentava a relação com
diretiva, adicionando, porém, o des- consequência disso, com a falta da pos- os filhos, o divórcio dissolve por comple-
quite. Somente com a Emenda Cons- sibilidade de divórcio, essa parcela da to o matrimônio e altera o estado civil
titucional n. 9/1977, foi introduzido o população já não mais suportava as dis- das partes, permitindo a regularização
divórcio, com ruptura do vínculo, ain- criminações sociais”, rememora. Exem- de novas uniões de direito – casamento –
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ou mesmo a formalização de uma união vil de 1916 e no Código de Processo “Como se percebe em Direito Com-
estável, com as mesmas garantias de Civil – CPC de 1973. parado, o divórcio brasileiro de 1977 foi
um casamento.” contextualizado com as importantes
“A Lei n. 6.515/1977 regulamentou, reformulações civilistas ocorridas na
INFLUÊNCIA CRISTÃ no Brasil, o chamado sistema dualista: Europa e traduziu um sentimento co-
a separação judicial põe termo à socie- mum da sociedade em prol da dignidade
“A influência do Cristianismo fez com dade conjugal, ao passo que o divórcio dos casais separados”, destaca Jones.
que o divórcio estivesse banido da maio- dissolve o próprio vínculo matrimonial. Ainda assim, segundo o desembargador,
ria dos ordenamentos jurídicos ociden- Fazia-se a distinção entre terminar e o Brasil colocou-se em posição deficitá-
tais, situação que perdurou, pelo menos dissolver o casamento. O casamento ria no tema.
entre nós, até 1977”, recorda o advogado terminava com a separação judicial, mas
e professor Mário Delgado, presidente só se dissolvia com o divórcio.” Paulo Lins e Silva destaca que o
da Comissão Nacional de Assuntos Le- Brasil foi um dos últimos países das
gislativos do IBDFAM. CONTEXTO MUNDIAL Nações Unidas a instituir o divórcio.
“Dos 133 países integrantes na época,
“Hoje, é difícil acreditar, mas se dizia “Tem-se que o direito é um fenômeno só cinco ainda não haviam aprovado
que o divórcio ‘dissolvia a família’, ‘re- social e, por isso, o conjunto de normas o divórcio. Depois do Brasil, vieram
duzia a natalidade’, ‘aumentava o aborto e regras jurídicas apoia-se na constata- África do Sul, Nova Zelândia, Grécia,
e a criminalidade infantil’, ‘comprome- ção da necessidade de sua permanente Argentina e Chile.”
tia a educação dos filhos, pela ruína da evolução, segundo a expressão dos an-
autoridade paterna e da piedade filial’. seios da própria comunidade”, comenta Jones retoma com o contexto espe-
O divórcio era sintoma da decadência e Jones Figueirêdo Alves. “O divórcio já cfico da América Latina: “O Uruguai
do egoísmo social, dizia o Padre Leonel era instituto sufragado por países mais já admitia muito antes o divórcio por
Franca, em obra nos anos 1950.” adiantados, na diferenciação irrefutável mútuo consentimento, por via direta;
dos avanços.” enquanto a Bolívia pela forma indi-
Para Delgado, a indissolução do ca- reta, a depender da prévia separação
samento mantinha a legislação brasi- Conforme levantamento do especia- judicial consensual e de lapso tem-
leira de então os resquícios coloniais lista, a Dinamarca admitiu o divórcio em poral. É certo que o divórcio vincular
das Ordenações do Reino, impregnadas 1592. A Holanda, em 1596. Na Inglaterra, ingressou no Código Civil argentino
pelo Direito Canônico. “Há 45 anos, foi somente em 1857, para os súditos angli- somente em 1987”.
finalmente instituído o divórcio, porém canos ou não. Na Suíça, em 1874, o di-
com restrições que dificultavam a sua vórcio obteve mais amplitudes. Tal direito ainda não é admitido em
utilização, o que amenizou a ira de se- todo o mundo, como frisa Jones. “As
tores mais conservadores da socieda- “Em Portugal, já se achava introduzi- Filipinas, como maior país católico da
de, especialmente aqueles ligados à do em 1910, por lei que vigorou até 1940, Ásia, são o único país do mundo, ao
Igreja Católica.” quando a Lei da Concordata com a Santa lado do Vaticano, que não legalizou o
Sé proibiu o divórcio para os casamentos divórcio. Anota-se, porém, que os ca-
“A dissolução do casamento só era canônicos celebrados após 1940, inclu- sais muçulmanos daquele país asiá-
possível após prévia separação judicial sive os civis dos mesmos casais. Seguiu- tico, cerca de 11% de sua população,
por mais de três anos ou prévia sepa- -se o Código Civil, de 1966, que restabe- dispõem de uma lei especial de 1977,
ração de fato por mais de cinco anos, leceu integralmente o divórcio.” que os favorece à separação.”
desde que iniciada antes da data em que
promulgada a emenda. O divórcio só po- Na França, o Código Napoleônico de ESTIGMA SOCIAL
deria ser requerido uma única vez.” 1804 admitiu o divórcio, apenas por 12
anos, vindo, afinal, após 68 anos, ser o Jones Figueirêdo Alves relembra os
O professor explica que a EC divórcio novamente admitido na Terceira costumes de 45 anos atrás. “A mulher
n. 9/1977 permitiu a aprovação, no República. “O mesmo sucedeu na Ale- desquitada sofria um estigma social, e
mesmo ano, da Lei n. 6.515/1977, a manha, em seu famoso BGB, vigorando quando compartilhava, após separada,
chamada Lei do Divórcio, que discipli- desde 1896, quando o divórcio, com a Lei uma união de fato com o companheiro,
nou a matéria no âmbito da legislação de Família de 1976, ali foi reinserido, fi- não recebia o reconhecimento do direi-
civil e processual civil, promovendo as nalmente uniformizando o direito mate- to dessa união como uma nova entida-
necessárias alterações no Código Ci- rial. Já na Itália, foi regulado em 1970.” de familiar.”
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Diante de um patrimônio comum, a que nem o casamento como instituição há pelo menos dois anos. Também
sociedade de fato existente como tal exi- e muito menos a família brasileira foram chegou ao fim a discussão sobre culpa
gia uma prova rigorosa, segundo Jones. abalados ou enfraquecidos pelo permis- no fim da relação conjugal.
“Os fatores sociais que permitiram o sivo legal, posto à disposição de todos,
divórcio há 45 anos foram justamente o de livremente dissolverem o vínculo “Foi um grande avanço que ob-
grito de emancipação da mulher, como conjugal.” tivemos para que as pessoas pu-
sujeito de direitos, em superação de dis- dessem sair de um relacionamento
criminações, a consciência social de um “Entretanto, não se pode negar que ruim e buscar a felicidade em outra
futuro novo, com a igualdade substancial aqueles que trilham o caminho, nem relação”, destaca Sérgio Barradas
de gênero e, sobretudo, uma importante sempre fácil, do encerramento do vín- Carneiro. Então deputado federal, ele
mudança dos costumes, sob as influên- culo marital, passam a ostentar, perante foi responsável pela iniciativa em uma
cias de uma nova geração, de outras va- o registro civil, um verdadeiro estigma, parceria do IBDFAM. “Muitos juízes,
lorações da dignidade, de um contexto que é o estado civil de ‘divorciado’, atri- que tinham em suas varas processos
cultural da época e das revoluções tec- buto que muitos consideram deprecia- de separação judicial em tramitação,
nológica e industrial emergentes.” tivo, e que se perenizará até que sejam abriram vistas aos advogados para
contraídas novas núpcias.” transformá-las em divórcio direto. A
O principal impacto com a promulga- emenda beneficiou cerca de 500 mil
ção do divórcio, em 1977, foi a possibi- O advogado destaca que quem não brasileiros já naquele ano.”
lidade de regularizar as famílias ainda optar por um novo casamento perma-
não reconhecidas como legítimas pelo nece perpetuamente como divorciado, Hoje, o procedimento opera de
Estado, aponta Paulo Lins e Silva. “Quem expressão que pode assumir uma carga forma bem mais simples. “Se for
já havia se desquitado e entrava em um negativa. “Já se discute hoje, em traba- consensual e não houver filhos me-
novo relacionamento, por exemplo, não lhos acadêmicos e em projetos de lei, a nores ou incapazes envolvidos, é pos-
tinha um companheiro, uma compa- possibilidade de alteração da Lei de Re- sível fazer o divórico extrajudicial,
nheira, mas sim um concubino ou uma gistros Públicos (n. 6.015/1973), para que com a junção da EC n. 66/2010 e a Lei
concubina, uma amante.” no Livro B do Registro Civil das Pessoas n. 11.441/2007, que possibilitou a rea-
Naturais deixe de constar o estado civil lização de partilha, separação e divór-
Houve ainda a ressignificação de ‘divorciado’, retornando os ex-cônju- cio consensual por via administrativa.”
da conjugalidade, de acordo com ges, após o divórcio, ao estado civil de
Mário Delgado. “Em um passado não tão solteiros.” Outros avanços foram conquis-
distante, de monopólio do casamento tados nos anos que se seguiram.
como forma de constituição de família e Delgado opina: “Isso me parece uma “Como relator do Código de Processo
de proibição do divórcio, muitos relacio- boa política afirmativa e guarda simetria Civil – CPC (Lei n. 13.105/2015), ins-
namentos se petrificavam em um estado com o direito de retomada do nome de tituí o que era apenas praxe nas va-
de infelicidade imutável e perpétuo.” solteiro, pelo cônjuge, em virtude de dis- ras de família, que são as audiências
solução de casamento por divórcio. Ora, de conciliação. Quando a pessoa dá
“A indissolubilidade retirava dos par- se podemos optar pelo retorno ao nome entrada no divórcio judicial, é imedia-
ceiros conjugais não apenas a liberda- de solteiro, por que deveríamos perma- tamente marcada uma audiência de
de de recomeçar uma nova vida afetiva, necer eternamente vinculados ao estado conciliação, em que já é possível de-
mas também o interesse em recons- civil de divorciados?”. cretar o divórico, estabelecer parâ-
truir e transformar um relacionamento metros da guarda, divisão de bens.”
que se iniciou sob a promessa (inviável) DIVÓRCIO DIRETO
de perdurar até o resto da vida”, pontua “O juiz que decreta o divórico li-
Delgado. Já há 12 anos, foi promulga- minar facilita as demais questões e
da a Emenda Constitucional – EC a discussão patrimonial, retirada de
PRECONCEITO TEIMA EM n. 66/2010, que instituiu o chamado sobrenome, a questão da convivên-
SOBREVIVER “divórcio direto”. Com ela, caiu em de- cia com os filhos, que já está bem
suso a separação judicial, bem como definida com a guarda compartilha-
Apesar dos avanços, o preconceito em os longos prazos para a dissolução do da como regra. Além disso, a pensão
relação às pessoas divorciadas ainda é casamento, que ainda só era possível dos filhos menores também pode ser
uma realidade, diz Mário Delgado. “Qua- após um ano de efetiva separação ou definida diante do binômio possibili-
renta e cinco anos depois, verifica-se caso fosse comprovado o fim da união dade e necessidade.”
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EMANAÇÃO DA LIBERDADE dos vulneráveis. “A falta de aderência so- Ele opina: “Nosso Código Ci-
cial dessas restrições é tão grande que vil é de 2002, mas ainda se aplica a
Para Mário Delgado, o direito de se se verifica, na maioria dos Estados, uma Súmula 377 do Supremo Tribunal
divorciar constitui, hoje, um direito fun- verdadeira ‘corrida’ regulatória pelos Federal – STF, aprovada em 1964, que
damental, emanação da liberdade no Tribunais de Justiça, de modo a permi- diz que, no regime de separação legal
âmbito das relações de família. “No tir, por meio de provimentos, os divórcios de bens, comunicam-se os bens adqui-
Brasil, desde o advento da EC n. 66/2010, extrajudiciais, não obstante a presença ridos na constância do casamento. Essa
o direito ao divórcio também deixou de de menores ou incapazes, desde que os súmula é totalmente contrária ao nosso
ser um direito subjetivo comum, ainda interesses daqueles estejam preserva- Código Civil atual, então temos uma la-
que dotado de fundamentalidade, para dos e submetidos ao Poder Judiciário.” cuna de entendimento”.
se transformar em um direito potesta-
tivo, contra o qual nem o outro cônjuge Para o especialista, é preciso reti- “Para preencher essa lacuna, o Supe-
nem o Estado-juiz podem se opor.” rar completamente do Poder Judiciário rior Tribunal de Justiça – STJ tem enten-
qualquer atribuição chancelatória em dido que, quando a separação de bens for
“A facilidade atual de dissolução dos termos de dissolução do casamento. obrigatória, só se comunicarão os bens
vínculos conjugais, antes de enfraque- “Não faz nenhum sentido a intervenção quando for comprovado o esforço comum
cê-los, garante o seu vigor, tornando a estatal homologatória, quando direcio- do casal”, contextualiza Lins e Silva.
conjugalidade mais hígida em substân- nada exclusivamente para decretar o
cia, marcada agora por uma intensidade rompimento do vínculo, independente- DIVÓRCIO DO FUTURO
plena de afetos, que substitui uma lon- mente dos personagens envolvidos ou
gevidade forçada e vazia”, diz o advogado da existência de consenso.” Para Jones Figueirêdo Alves, o primei-
e professor. ro desafio relacionado ao tema, atual-
Delgado acrescenta: “Se o divórcio mente, é eliminar, em definitivo, todas
Ele acrescenta: “A dissolubilidade, constitui um direito fundamental potes- as práticas de anti-igualdade de gênero.
ainda que em potência, conscientiza os tativo, que não pode ser violado, diante Nas palavras do especialista, como direi-
cônjuges sobre a importância do papel da inexistência de dever contraposto, to potestativo, o divórcio precisa urgente-
de cada um na manutenção, consolida- nada justifica que o exercício desse di- mente ser desjudicializado, a tanto bas-
ção e fortalecimento dos laços afetivos, reito se submeta ao Judiciário.” tando a expressa e livre vontade de um
sabedores de que o afeto que os une em não continuar a existência jurídica do
constituirá, sempre e sempre, um ‘cons- DESAFIO NA PARTILHA DE BENS casamento.
truído’ e jamais um ‘dado’. Os relaciona-
mentos conjugais são ontologicamente De acordo com Paulo Lins e Silva, a “Essa vontade unívoca seria suficiente
finitos e sua longevidade depende da partilha de bens é um desafio material para o casamento ser dissolvido, como
base afetiva que se constrói e que se re- e jurídico quando se fala em divórcio. aliás o direito clássico romano já previa,
nova no dia a dia da convivência”. “Ainda mais quando a separação é liti- até o século VI, sem nenhuma forma es-
giosa, porque se inicia uma briga para pecial; com a prática divorcista na época
Delgado defende a simplificação e, ver quem fica com o quê, o que pode de Augusto conferindo, sobretudo, um
especialmente, a desjudicialização do perdurar anos. Se um era dependente papel de relevo à iniciativa unilateral das
divórcio. “Se não se exige prévia in- do outro, então, seu desafio pessoal é mulheres, como lembra Alípio Silveira em
tervenção judicial para o casamento, tornar-se independente, o que pode ser sua clássica obra sobre o ‘divórcio vincu-
por que razão haver-se-ia de exigir tal muito difícil se ele ficar com a guarda lar’, de 1972.”
intervenção para dissolução do víncu- das crianças.”
lo conjugal? Tanto a constituição do “Afinal, retenha-se que a pessoa como
vínculo como o seu desfazimento são “Uma lacuna legislativa existente é sujeito de direito é o “locus” de toda a
atos de autonomia privada e como tal na separação legal de bens, porque, magnitude jurídica, advertidos todos nós
devem ser respeitados, reservando-se sendo obrigatório o regime da separa- que as situações jurídicas relevantes exi-
a tutela estatal apenas para hipóteses ção de bens, entende-se que, em caso gem respostas eficientes e rápidas, em
excepcionais.” de divórcio, não haveria partilha, pois um sistema desburocratizado e menos
não há comunicação dos bens adquiri- oneroso. Este é o desafio atual, tornan-
Óbices ou restrições ao direito funda- dos onerosamente por um dos cônju- do-se o divórcio unilateral e impositivo o
mental de divórcio, que precisam ser su- ges. Essa é a regra do Código Civil (Lei divórcio do futuro, que, espera-se, já está
peradas, preservando-se os interesses n. 10.406/2002).” chamando o presente”, conclui Jones.
11
ATUALIDADES

SINAIS DOS
durante o período de isola- A especialista defende: “O Provimento
mento social.” 100/2020 elevou ainda mais a relevância
dos serviços notariais, além de trazer os

TEMPOS
“Com o fim da relação, Cartórios de Notas a um movimento or-
os casais buscaram a so- gânico do século XXI, que são os atos di-
lução extrajudicial, que gitais, tendo ainda a possibilidade de rea-
pareceu a via mais rápida e lização do ato híbrido, com uma pessoa

N esses 45 anos, o Direito das Fa-


mílias acompanhou a evolução
social. Atualmente, são inúmeros os de-
prática para a realização do ato, quando
não envolve litígio entre as partes. Tam-
bém houve grande facilitação do proce-
presencialmente no Cartório e a outra
digitalmente”.

safios que ainda envolvem a temática. dimento com a publicação do Provimen- A experiência, até então, tem sido de
Como vimos, a ruptura de pactos, até to n. 100/2020, do Conselho Nacional de sucesso exponencial. “Há um cresci-
então considerados indissolúveis, já não Justiça – CNJ, que permitiu a realização mento vertiginoso dos dados eletrôni-
é mais tabu para a maior parte da popu- dos divórcios digitalmente.” cos a cada mês pela plataforma on-line
lação. Consequentemente, a tendência é e-Notariado, que até já dispõe de novos
que os divórcios aumentem, assim módulos como reconhecimento de
como novos conflitos e as possibili- assinatura e autenticação de do-
dades deles decorrentes. cumentos. Desde maio de 2020, já
foram feitos no Brasil mais de 357
Em 2021, o Brasil bateu o recor- mil atos eletrônicos (escrituras di-
de de divórcios, segundo dados do versas). Ou seja, sucesso absoluto.”
Colégio Notarial do Brasil – CNB.
Foram registrados 80.573 no ano DIVÓRCIO LIMINAR
passado, o maior número desde
2007. A pesquisa apresenta um au- Membros do IBDFAM, os advoga-
mento de 40% em relação ao levan- dos e professores Marília Pedroso
tamento feito em 2020. O número Xavier e William Soares Pugliese
superou o recorde anterior que ha- são os autores do livro “Divórcio li-
via sido batido em 2020, com 77.509. minar: técnica processual adequada
para sua decretação”, lançado em
Já em 2020, com o início da pan- julho de 2022 pela Editora Foco. A
demia da Covid-19, os divórcios publicação destaca como o proce-
haviam caído 13,6% em relação a dimento pode ser feito por meio de
2019. Há dois anos, foram registra- uma decisão liminar, considerando-
dos 331.185 divórcios concedidos, -o como um direito potestativo.
dos quais 249.874 (75,4%) judiciais
e 81.311 (24,6%) extrajudiciais la- “Quando um pedido de divórcio
vrados em cartório, segundo o Ins- liminar é negado, temos o cenário
tituto Brasileiro de Geografia e Estatísti- Segundo a especialista, o provi- ideal para a prática de inúmeros atos de
ca – IBGE. mento inovou ao garantir o direito de vingança privada”, comenta Marília. “Não
forma totalmente on-line, com a pos- raro, vemos casais que se infantilizam e
DIVÓRCIO DIGITAL sibilidade de que cada parte estivesse assumem posturas bélicas e de revan-
em um local separado, sem a neces- chismos quando o fim do relacionamento
A tabeliã de notas Priscila Agapito, sidade de encontros presenciais. “A se avizinha. Tudo vira motivo de briga. A
segunda vice-presidente da Comissão de praticidade e facilidade do novo modo posição jurídica ainda formalmente os-
Família e Tecnologia do IBDFAM, aponta digital, ainda mais em um momento tentada como cônjuge é utilizada para
que a pandemia da Covid-19 trouxe re- de isolamento social, certamente foi ‘infernizar’ a vida do outro.”
percussões a esse cenário. “Foi nítido o um atrativo a mais para aqueles que
aumento no número de solicitações de buscavam garantir segurança jurídi- Um exemplo bem presente na advo-
divórcios extrajudiciais, em um movi- ca, praticidade e agilidade ao fim do cacia, segundo a especialista, é a nega-
mento social que parece estar claramen- relacionamento da maneira menos tiva de assinar documentos necessá-
te ligado à convivência forçada dos casais dolorosa possível.” rios por puro sadismo. “Mas não é só.
12
Um dos pontos mais agudos que expe- Para William Soares Pugliese, o reproduzida pela Corregedoria-Geral do
rimentam os que ainda são mantidos Código de Processo Civil – CPC (Lei Tribunal de Justiça do Maranhão. Em
casados à força pelo Poder Judiciário n. 13.105/2015) é omisso sobre o divórcio seguida, o CNJ decidiu suspender tais
brasileiro é o constrangimento pessoal liminar. “É justamente por conta desse medidas administrativas, sob a justifica-
e social de não poder viver plenamente silêncio que a controvérsia foi instaurada. tiva central de que a medida deveria ser
um novo relacionamento.” Na verdade, o ponto que mais impactou o definida de forma nacional.”
legislador quando da redação do CPC foi
Há, então, um verdadeiro abalo na a discussão a respeito da persistência do “Essas medidas, porém, partiam de
dignidade da pessoa humana. “Esses regime de separação judicial.” duas teses desenvolvidas em paralelo: a
novos relacionamentos se iniciam sob de que, extintas as condições prévias ao
máculas de clandestinidade e de que A ideia do divórcio como direito potes- divórcio, esse direito passou a ser potes-
as partes estão sendo infiéis, quando tativo sequer foi tangenciada na discus- tativo; e a de que, por se tratar de direito
isso não é verdade. Note-se: quando são do CPC, de acordo com o advogado. potestativo, contra o qual o outro cônju-
não há acordo, os processos na área “Cabe, portanto, à doutrina desenvolver ge nada pode opor, o divórcio poderia ser
de família podem, sem qualquer dose uma técnica processual adequada para decretado liminarmente pelo magistrado,
de exagero, perdurar por longos anos.” permitir a efetiva tutela do direito ma- em processos judiciais.”
terial ao divórcio que, nos termos da EC
“Não é aceitável que enquanto n. 66/2010, é um direito potestativo. Foi Tais questões não estão consolidadas
houver desacordo sobre temas patri- essa a tese que procuramos desenvolver na jurisprudência. “Apesar de algumas
moniais as escolhas existenciais no na obra.” decisões terem sido proferidas conce-
campo afetivo sejam prejudicadas. In- dendo divórcios por liminares, o Superior
felizmente, como já dito, esse tipo de DIREITO POTESTATIVO Tribunal de Justiça – STJ, em 2020, de-
conduta tem sido praticado como es- cidiu pela impossibilidade de decretação
tratégia ardilosa por aqueles que não Segundo Marília Pedroso Xavier, a dou- liminar do divórcio por conta da neces-
aceitam o fim do relacionamento, que- trina que se desenvolveu após a Emenda sidade de exercício do contraditório da
rem de forma doentia preservar algum do Divórcio (Emenda Constitucional – EC parte adversa”, pontua William Soares
tipo de ligação ou querem forçar um n. 66/2010) passou a considerar este um Pugliese.
acordo desvantajoso a partir de uma direito potestativo. “Não tardou a afirmar
estratégia de desgaste e desistência que essa alteração constitucional tinha “A decisão monocrática foi proferida no
do outro. eficácia imediata e que não dependia de REsp n. 1.844.545/GO. A conclusão a que
qualquer regulamentação infraconstitu- se chegou, nesse momento, foi a de que
A importância do tema encontra cional para se tornar executável.” a lei processual impedia a decretação do
também uma outra razão.” divórcio liminar e que, sem alteração le-
“Essa, naturalmente, é a interpretação gal, nem o divórcio unilateral, impositivo,
Segundo Marília, o divórcio liminar contemporânea das normas constitucio- nem o divórcio liminar seriam possíveis.”
se tornará mais necessário nos próxi- nais e não há, na atual jurisprudência do
mos anos, com o avanço da tecnologia. Supremo Tribunal Federal – STF, qual- O especialista conclui: “É por esta ra-
“Há certa tendência de que as partilhas quer fundamento que negue essa tese. zão que declaramos, no início da obra,
de bens se tornem cada vez mais com- Deste modo, o divórcio passava a ser di- que o principal objetivo do livro é a alte-
plexas e, por conta disso, mais propen- reto, sem a mediação da separação judi- ração desse posicionamento, a fim de
sas à judicialização. Afinal, envolverão cial ou de fato”, frisa a advogada. que os cônjuges que desejam o divórcio
patrimônios que ainda ensejam lacu- possam exercer esse direito com a auto-
nas e polêmicas doutrinárias e juris- A EC n. 66/2010, formulada em parce- nomia que a Constituição lhes confere”.
prudenciais, tais como bens digitais e ria com o IBDFAM, trouxe à realidade o
criptoativos.” divórcio unilateral ou impositivo. “Com a DESAFIOS NA JURISPRUDÊNCIA
facilitação do divórcio sob o ponto de vista
“Assim, ter uma solução que propicie prático, a Corregedoria-Geral do Tribunal A violência patrimonial é outro tema
o divórcio das partes de forma breve, de Justiça de Pernambuco – TJPE (Provi- que desafia os profissionais do Direito
relegando as discussões patrimoniais mento n. 6/2019) editou norma adminis- das Famílias quando o assunto é divórcio.
para as Varas de Família com toda a trativa que permitia o divórcio em Cartório “Surge de relações abusivas, geralmente
dilação probatória necessária, parece de Registro Civil, ainda que não houvesse já vivenciadas no casamento, ou então de
acertada”, sugere a especialista. acordo entre os cônjuges. A medida foi um rompimento mal-elaborado”, destaca
13
ATUALIDADES

a advogada Viviane Girardi, presidente da divórcio post mortem passe a ser uma Ela opina que processos litigiosos que
Comissão de Jurisprudência do IBDFAM. realidade mais frequente no sistema le- envolvem questões familiares e afetivas
gal brasileiro.” terminam sem vencedores. “Mais do que
“Por conta da nossa realidade social isso: todos perdem. As pessoas passam
e da posição das mulheres, geralmente DIVÓRCIO COLABORATIVO anos de suas vidas unidas pelo conflito,
são elas as partes vulneráveis e, portan- gastam parte expressiva de suas econo-
to, as vítimas da violência patrimonial No caminho para a solução dos im- mias, não sendo raros os casos em que
que pode se apresentar como a apro- passes, estão as práticas colaborativas. os filhos crescem em meio a interminá-
priação da remuneração do cônjuge, “O divórcio colaborativo surge como uma veis batalhas judiciais, comprometendo
a destruição de bens, documentos do interessantíssima opção para casais que o seu pleno desenvolvimento e trazendo
cônjuge e a mais comum na negativa do estejam passando pelo desafio de com- a pior das consequências: laços afetivos
pagamento da pensão alimentícia fixada binar os termos deste novo ciclo de vida rompidos de maneira definitiva, muitas
em favor do cônjuge e até mesmo dos e de redesenhar a organização familiar vezes por gerações.”
filhos, com a finalidade de sufocar eco- de forma amigável”, defende Olívia Fürst,
nomicamente a parte vulnerável e finan- membro do IBDFAM. “A abordagem Colaborativa do Divór-
ceiramente dependente.” cio é o método que melhor cuida das
A proposta colaborativa do divórcio crianças e adolescentes envolvidos. Isto
Ela explica que não há fórmula concre- consiste em uma abordagem extraju- porque o trabalho em equipe multidis-
ta para se evitar a violência patrimonial dicial, multidisciplinar e não adversa- ciplinar permite ainda que um especia-
pós-divórcio. “Esse é um tema complexo rial do divórcio. “Extrajudicia, porque lista em desenvolvimento infantojuvenil,
e para o qual não há ‘uma única receita’, todo o processo de resolução do con- possa integrar a equipe e ter uma es-
mas eu acredito no uso da Lei Maria da flito é trazido para a esfera privada, cuta apurada para as necessidades dos
Penha, do próprio Código Civil e, princi- mantendo os clientes e os advogados filhos, enriquecendo o processo decisó-
palmente, da Constituição Federal como no controle da situação, possibilitan- rio dos pais.”
meios de instrumentalizar as ações com do que o processo se dê no tempo das
caráter inibitório da violência patrimonial, pessoas e preservando sua autonomia. O advogado passa a ser visto como
indenizatórias, e sem falar dos aspectos Recorre-se ao Tribunal apenas para um importante aliado nessa empreita-
penais dessa realidade que devem ser homologar os acordos quando a lei as- da, segundo Fürst. “Munido de novas
buscados pelas vítimas.” sim determinar.” habilidades negociais e de comunica-
ção, o advogado exerce um papel fun-
Ainda têm sido tímidos os julgados que “Não adversarial na medida em que damental na costura dos interesses e
decretam o divórcio post mortem, segun- os advogados assinam um termo de não necessidades das pessoas envolvidas,
do Viviane Girardi. “Defendo essa ideia litigância, afastando por completo a pos- com foco especial nas crianças e ado-
porque ao ingressar com a demanda o sibilidade de representarem os mesmos lescentes, e sua presença passa a ser
interessado manifesta expressamente clientes em um litígio judicial. O compro- celebrada pelas partes na medida em
para o Judiciário e para a sociedade o misso com a não litigância permite que que estiver cada vez mais associada à
desejo pelo divórcio e, sobretudo, porque os advogados passem a trabalhar em efetiva resolução dos conflitos do que
a existência do casamento impacta jus- conjunto e complementaridade – e não ao ajuizamento de processos.”
tamente nos aspectos sucessórios patri- mais em oposição –, unindo esforços
moniais. Então, por que não permitir ao para auxiliar seus clientes a alcançar “O divórcio colaborativo é, sem dú-
Espólio que siga defendendo os legítimos um acordo que seja o melhor possível vida, uma metodologia coerente com
interesses pessoal e patrimonial do de para todos os envolvidos.” as demandas do nosso tempo. Além
cujus?”, indaga a advogada. de estar em sintonia fina com as no-
A especialista acrescenta: “Multidis- vas políticas públicas do CNJ e com
“Ademais, muitas das vezes, a morte ciplinar pela possibilidade de se trazer as leis brasileiras mais recentes, o
antes do fim do divórcio decorre da de- à mesa de negociação profissionais de divórcio colaborativo vai ao encontro
mora na tramitação processual, situa- outras especialidades, uma vez que se dessa demanda reprimida – tanto por
ção recorrente no âmbito do Judiciário compreende e aceita que o divórcio é in- parte da sociedade, quanto dos pro-
nacional, e isso não pode recair sobre trinsecamente complexo, com múltiplos fissionais que lidam com conflitos de
os ombros do cônjuge falecido. Esses aspectos (emocional, psicológico, finan- natureza familiar – por métodos mais
me parecem fatores que precisam ser ceiro, entre outros), sendo o jurídico ape- eficazes e construtivos de gestão de
efetivamente considerados para que o nas um deles”. controvérsias.”
14
DESAFIOS

PSIQUE E
VULNERABILIDADES
para não tentar uma nova relação,
as pessoas nem sequer precisariam
se divorciar, apenas se separariam.”

LIBERDADE NO AMOR

Em texto publicado há 13 anos, o


professor escreveu que "Liberdade no
amor é estar livre no (e não do) casa-
mento. É uma realização com o outro".
A convicção se manteve e, como ele
explica, não está ligada necessaria-
mente a relacionamentos abertos ou
a relações poliamorosas: “Não falo de
estar livre do companheiro, mas livre
com o companheiro”.

“É quando o casal sente que, mais


do que sacrifícios e concessões que
são inevitáveis para uma relação, exis-
te um florescimento dos dois juntos.
O outro não o limita ou só o limite em
parte e, sobretudo, faz com que você

“É bom lembrar que o divórcio


não é contra o casamento”,
destaca Renato Janine Ribeiro, pro-
conservadoras. O divórcio deixou de
ser uma pauta, digamos, ‘de esquer-
da’, para se tornar uma pauta univer-
cresça. A ideia é de que minha liber-
dade cresce com a liberdade do outro.
É o ponto mais importante de se tentar
fessor titular de Ética e Filosofia Políti- sal”, avalia Renato. num relacionamento hoje.”
ca na Universidade de São Paulo – USP.
“Quando não havia divórcio no Brasil, A chegada do divórcio não abalou O estudioso frisa que o divórcio
muitos casais se formavam sem a pro- as relações, ao contrário, como frisa o também pode ser lido como um ato
teção da lei. Não é que o divórcio fosse professor. “O casamento representa a de liberdade e de amor. “É a tentativa
acabar com a seriedade dos costumes, busca por uma pessoa que seja com- de uma nova relação. Dá liberdade ao
muito ao contrário, dava a chance a panheira, parceira, com muitos pontos outro e a si quando os dois não estão
quem não tinha se entendido com o em comum. Esse é o ponto crucial. mais florescendo juntos.”
cônjuge, independentemente da culpa Muitas relações não dão certo – ou dão
de se separar.” certo só por um tempo – porque a co- Por outro lado, Renato não perde
munhão de pensamentos, convicções de vista que ainda há uma resistência
“Além de não ser permitido um se- e afeições não existe, diminuiu ou sim- quanto ao reconhecimento, no Legis-
gundo casamento, exceto em caso de plesmente acaba.” lativo e no Judiciário, das relações po-
viuvez ou de anulação do matrimônio, liafetivas. “Esse é um fenômeno rela-
deixava-se fora da proteção da lei, “É a opção pela monogamia, mas tivamente novo e, por isso, precisaria
em termos de herança, por exemplo, ao mesmo tempo uma opção que ser legislado. Tudo ainda é muito ex-
quem constituísse uma nova relação. precisa ser constantemente renova- perimental. Ao mesmo tempo, vemos
Isso, hoje, já é amplamente aceito no da para não falir. Já o divórcio é uma muita cobertura na imprensa de casos
Brasil, mesmo entre as pessoas mais tentativa de uma nova opção. Se for desse tipo. Sem fazer qualquer juízo
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de valor, como uma relação amorosa de formal e a desconstrução de que porque esse número revelaria que há
demanda muito trabalho, não sei sin- a mulher esteja sob qualquer espécie na sociedade brasileira a sombra da
ceramente qual o futuro a esse res- de submissão ou ‘propriedade’ com desigualdade conjugal em desfavor
peito. Estar com alguém requer muito relação ao marido.” daquela.”
trabalho.”
O trecho da legislação, segundo a FEMINICÍDIO E VIOLÊNCIAS
Em sua participação no II Con- especialista, fortaleceu a igualdade
gresso do IBDFAM, em 2000, Renato conjugal. “Aguarda-se o tempo em Falar sobre o lugar da mulher no
Janine Ribeiro afirmou: "A manutenção que se enxergará como absoluta- contexto do divórcio requer uma abor-
da família, hoje, depende sobretudo de mente dispensável o exercício dessa dagem sobre a violência patrimonial a
se buscar, por meio dela, a felicidade". faculdade. Enquanto habitar em nós que elas estão expostas, geralmente
Tal conceito se mantém, segundo o pro- a fumaça dessa desigualdade do pas- em maior vulnerabilidade. “Na maioria
fessor. “A família é um meio de socia- sado, gerações herdarão e exercerão dos casos e dada a desigualdade ma-
lização e de crescimento das pessoas”, essa prática.” terial da mulher em nossa sociedade,
define. muitas auferem sempre menos do que
De acordo com a advogada, a disso- os seus maridos ou companheiros,
“O ser humano não nasce com seus lubilidade do casamento libertou, prin- não obstante exerçam cargos ou fun-
instintos totalmente apurados. Precisa cipalmente, a mulher da submissão a ções equivalentes, assim como muitas
ser educado, ser alimentado e alguém um regime matrimonial opressor, sem ainda se encontram em total ou parcial
que cuide dele. Uma das melhores for- que lhe fosse impingida a pecha de dependência econômica com relação
mas para isso, até hoje, é a família”, culpabilidade tão caracterizada pelo aos mesmos.”
diz, abrindo o leque para uma varieda- antigo desquite. “O fim legitimado do
de de formatos que tal entidade pode vínculo matrimonial ressaltou a im- “A violência patrimonial tem existido
assumir. “Todos eles são legítimos. O portância da liberdade e autonomia na sonegação de patrimônio partilhá-
que é decisivo é: as pessoas são felizes como valores inafastáveis ao Direito de vel e mesmo também na sonegação
ou não? Se não forem, nem vale a pena Família. Dessa forma, a mulher passou da real disponibilidade daquele que se
manter o relacionamento, que pode a ser vista não apenas como esposa ou encontra na qualidade de devedor de
ser até prejudicial.” mãe, mas como pessoa no exercício alimentos conjugais. A situação de vul-
de sua individualidade. Tal construção nerabilidade econômica, entre outras,
EMANCIPAÇÃO FEMININA ainda padece de ineficácia social.” é palpável e processos judiciais dessa
natureza devem ou deveriam seguir,
Há 45 anos, com a Lei do Divórcio, A cultura de alteração do nome no rigorosamente, o Protocolo para jul-
passou a ser facultativo para a mulher casamento ou na união estável ainda gamento sob a perspectiva de gênero
acrescer o sobrenome do marido. Um é mantida, como observa Maria Rita instituído pela Portaria 27 do Conselho
importante passo para a emancipa- Holanda. “É herança do elemento ins- Nacional de Justiça – CNJ, em 2021.
ção feminina no âmbito do Direito das titucional do casamento e revela uma As lentes de gênero devem ser utiliza-
Famílias. “A imposição anterior do so- sociedade ainda apegada a valores das para o justo julgamento.”
brenome marital à esposa, era o re- conservadores e mesmo indissolúveis
gistro simbólico da subordinação da do casamento.” Atualmente, muitas mulheres tam-
mulher ao marido, no casamento”, co- bém são vítimas de feminicídio por co-
menta a advogada Maria Rita Holanda, “Perceba que também evoluímos locarem um fim às suas relações. “O
diretora nacional do IBDFAM. para a ideia de que, em havendo a aumento do número de feminicídios
mudança do nome pelo acréscimo, o deve ser observado sob várias óticas e,
“Importante lembrar que diante novo sobrenome se incorpora ao di- portanto, requer várias vias de enfren-
de sua antiga ‘incapacidade’ jurídi- reito de personalidade e não deve ou tamento, desde a melhoria de políticas
ca, a mulher ao casar, saía do pátrio não deveria mais traduzir a antiga públicas que sejam não apenas corre-
poder ao poder marital, em caráter idéia, principalmente sendo faculdade tivas, mas também preventivas”, frisa
indissolúvel. Portanto, a alteração en- que, em tese, pode ser exercida por Maria Rita Holanda.
quanto exercício de uma faculdade e ambos os cônjuges ou companheiros.
não mais por imposição, embora seja Interessante seria verificar, estatis- “O inconformismo dos ex-maridos,
culturalmente ainda muito presente, ticamente, se essa ‘faculdade’ ainda ex-companheiros ou mesmo ex-na-
revela a instalação de certa igualda- vem sendo mais exercida pela mulher, morados revela historicamente a cri-
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se do macho pela perda de sua condi- Para Fernando, quando se pleiteia o foram incentivados pelos próprios
ção de mando sobre a mulher, e mais divórcio, os pais devem ter o cuidado filhos.”
uma vez revela a herança da antiga de levar em consideração a delicada
desigualdade formal em nosso orde- situação do filho. “Para isso, precisam O magistrado acrescenta: “Preci-
namento jurídico.” ser verdadeiros; contarem serena- samos aprender que a vida é rápida e
mente sobre o fim do relacionamen- preciosa demais para sofrermos em
A advogada defende que a educação to; dizerem sobre como será a forma uma relação que não nos torna felizes.
desde cedo seria a busca ideal para a de guarda e de convivência; buscarem Sempre lutamos pelo direito a uma fa-
superação desse sentimento de ódio, medidas que evitem mudanças abrup- mília eudemonista, sustentada na bus-
instalado pela perda do poder na famí- tas na rotina dos filhos; por fim, evita- ca pela felicidade de seus membros. É
lia. “Não apenas como exclusivo prove- rem discussões diante dos filhos.” passada a hora de efetivar esse direito,
dor, mas também do poder de mando nos casos em que a relação chegou ao
nos mais diversos comportamentos. Abalos dos mais diversos tipos fim”.
Enquanto isso não ocorre de forma ocorrem na vida de crianças e de ado-
segura, eficaz e crescente, resta-nos lescentes, cujos pais tiveram uma Os pais precisam exercitar o al-
apagar os incêndios com os instru- ruptura traumática segundo o espe- truísmo. “Colocar-se no lugar do filho
mentos de proteção à vulnerabilidade cialista. “Entre eles, abalos psicoló- e oferecer-lhe suporte para que esse
de gênero que conquistamos.” gicos: sensação de abandono e de processo de ruptura, e de posterior
culpa da criança ou do adolescente; sutura, nas palavras do amigo e psicó-
“Precisamos garantir que tais ins- sofrimento persistente; autoagres- logo Luiz Schettini Filho, seja o menos
trumentos, a exemplo da Lei Maria da são; violência com os próprios pais traumático possível. É preciso manter-
Penha (n. 11.340/2006) e outros, man- ou com terceiros; depressão; ideação -se presente na vida do filho, afetiva e
tenham-se vigentes e eficazes sob suicida etc.” financeiramente. Exercer o direito de
pena de comprometimento de uma so- convivência e construir um ambiente
ciedade justa e solidária, enquanto va- “Outro efeito perverso é o abalo fi- dialógico entre o ex-casal, de modo
lor fundamental de nossa Constituição nanceiro, já que, muitas vezes, um que se delibere conjuntamente sobre
democrática.” dos genitores subtrai do filho o pa- o futuro do filho, evitando-se, ao máxi-
drão financeiro que o núcleo familiar mo, que o filho, outrora fruto do amor,
ATENÇÃO AOS FILHOS sempre ostentou; outras vezes, deixa seja a maior vítima do desamor.”
o filho à própria sorte, resistindo ao
Em um contexto de divórcios, os fi- pagamento dos alimentos mínimos O advogado ou o defensor público, por
lhos também não devem ser perdi- necessários a uma vida digna como ser aquele que mantém o primeiro con-
dos de vista, como nos lembra o juiz forma de punir o outro cônjuge ou tato com o casal, após a manifestação de
Fernando Moreira, presidente da companheiro que optou pelo fim do vontade pelo divórcio ou pela dissolução
Comissão de Infância e Juventude do relacionamento.” da união estável, deve ser o primeiro a
IBDFAM. “É fundamental que as partes instruí-lo acerca de uma ruptura menos
percebam que o fim da conjugalidade MELHOR INTERESSE traumática para todos os envolvidos.
não implica em fim da parentalidade,
ou seja, o vínculo de filiação que une Há casais que optam por conti- Ele pondera: “Contudo, esse papel
pais e filhos não desaparece com o tér- nuarem casados para que a criança também deve ser exercido pelos demais
mino do relacionamento.” ou adolescente não sofra com a se- atores do Sistema de Justiça, incluindo
paração, o que pode ser uma saída equipes técnicas das varas, promotores
“É lamentável ver pais abandonando perigosa. “Tenho visto, na prática de justiça e magistrados. Lamentavel-
os seus filhos após o divórcio ou a união forense, que a insistência em ca- mente, não é incomum tratarmos de
estável. É também comum ver pais so- samentos ou uniões estáveis mal- divórcio, de guarda, de direito de con-
cioafetivos, que livremente registraram -sucedidas, muitas vezes, acabam vivência e de alimentos em um plano
a paternidade, pleitearem a negatória contrariando o melhor interesse do abstrato, sem qualquer oitiva dos filhos
da paternidade. Outro absurdo é tratar filho. São brigas, discussões, agres- envolvidos, contrariando o artigo 28 do
o filho como um objeto, usando-o como sões que apenas transformam a vida Estatuto da Criança e do Adolescen-
um brinquedo para magoar, ferir, des- da família em um verdadeiro inferno. te – ECA (Lei n. 8.069/1990). Quando os
qualificar e humilhar o outro, por meio Já ouvi muitas histórias de términos ouvimos, poucas vezes os levamos em
de atos de alienação parental.” de relacionamentos em que os pais consideração.”
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DESAFIOS

FAMÍLIA EUDEMONISTA a liberdade e as escolhas eram res- Divorciar implica em viver um luto
tritas a uma lógica autoritária.” quanto ao ideal de amor eterno e de
O divórcio passou a se inserir em família perfeita, nas palavras da psica-
um conceito de família eudemonista, Relacionamentos líquidos e o direi- nalista. “Os filhos também vivem este
como detalha a psicanalista Giselle to ao divórcio derivam da maior liber- ideal e para eles é uma conquista do
Groeninga, diretora de Relações In- dade nas relações sociais e afetivas, desenvolvimento diferenciar o casal
terdisciplinares do IBDFAM. “A família mas confundi-los lembra o argumen- conjugal do casal parental, psiquica-
eudemonista em muito se diferencia to de que as mudanças como o antigo mente pode ser mais ‘econômico’ que
da família sacralizada que se pautava desquite, o divórcio, o casamento ho- os pais sejam casados. Uma economia
pelo sacrifício do indivíduo em nome moafetivo e outras acabariam com a que, sem dúvida, custa mais caro quan-
da família, em um sistema autoritário família. “O exercício da liberdade, por to aos modelos de casal conjugal que
e patriarcal, em que o casamento era certo, não implica necessariamen- imitarão na vida futura quando os pais
indissolúvel – às vezes uma sentença te em relações superficiais e frágeis estão infelizes. Na realidade o que os
de prisão perpétua.” que caracterizam o chamado ‘amor filhos necessitam é que os pais se en-
líquido’.” tendam e cooperem enquanto pais.”
“A liberdade era limitada – ia até
onde começava a liberdade do outro, e Ela pontua: “Devemos questionar se A especialista dá a deixa para as
qualquer coisa além disto era alvo de o conceito de ‘amor líquido’ não traz próximas décadas. “Posso dizer que o
culpabilização. No caso de divergên- de carona um juízo negativo quanto desafio para o Direito das Famílias é
cias, os direitos eram vistos como em aos relacionamentos que podem ser o de ser imparcial no respeito e pro-
oposição, sob uma ótica patriarcal. mais fluídos, não exclusivos, mas teção às famílias em sua pluralidade,
Já a família eudemonista se caracte- não necessariamente superficiais ou sem impor, mesmo que indiretamen-
riza pela ‘liberdade em ser humano’, irresponsáveis. Sempre é bom ana- te, ideologias que se crê ser ‘para o
como costumo dizer. Ou seja, sua na- lisar com ponderação e lembrar o bem das famílias’. Sem ter consciên-
tureza é a das escolhas na busca das poeta que ‘toda forma de amar vale cia podemos estar desconsiderando
realizações e bem-estar individuais, a pena’”. as necessidades e vulnerabilidades de
atendendo à finalidade da família que cada um de seus membros, impondo
é a responsabilidade na proteção e MUDANÇAS COMPORTAMENTAIS a ideologia da família em que os adul-
cuidado da vulnerabilidade que nos é tos devem, sobretudo, se sacrificar
intrínseca.” Ainda que o divórcio tenha se na- em nome dos filhos.”
turalizado na sociedade brasileira
O divórcio sintoniza com o conceito nesses 45 anos, certo preconceito Um divórcio bem elaborado deve
de família eudemonista compreendi- ainda existe. “Do ponto de vista psi- restituir a funcionalidade da família,
da como composta de subsistemas, cológico, sabemos que o casamen- segundo Giselle. “Muitas vezes, o
conjugal, parental, fraterno, liberan- to implica necessariamente em re- resultado de vários divórcios acaba
do o casal conjugal, segundo Giselle. núncias e muitas vezes quando um sendo o inverso: os filhos acabam sa-
“Neste cenário, de relações equitativas casal se divorcia mexe nos desejos crificados no curso de vários proces-
e complementares, em que o exercí- daqueles que estão casados. Não é sos judiciais. Para tanto, cabe uma
cio das funções implica em realização à toa que se tomam partidos de for- maior compreensão e o acolhimento
própria e em nome da família, a liber- ma apaixonada, e que, por vezes, se da vulnerabilidade de todos nas cri-
dade e os direitos passam a ser com- afastem os divorciados por repre- ses devidas ao divórcio.”
preendidos como complementares – sentarem um perigo acendendo de-
começam onde começam a liberdade sejos reprimidos.” “Pais desconsiderados em suas
e o direito do outro.” necessidades e vulnerabilidades,
“Em certa medida, vale o dito po- pais infelizes fazem filhos infelizes e
“O direito ao divórcio é um efei- pular quanto ao casamento: ‘quem tendem a desconsiderar suas vulne-
to direto da família eudemonista, está dentro quer sair e quem está rabilidades. Neste sentido, costumo
pautada muito mais pela liberdade, fora quer entrar’. Por outro lado, é dizer que o superior interesse deve
inclusive, mas não só, quanto à ex- natural o ideal e a fantasia de que o ser o da família, em que o bem-estar
pressão sexualidade e gênero, em amor seja eterno. Resistimos a acei- e a realização de todos, sem exce-
contraste com a família sacralizada, tar o que disse o poetinha: ‘Que seja ção, deve ser considerado”, defende
patrimonializada e patriarcal, em que eterno enquanto dure’.” Giselle Groeninga.
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BIOGRAFIA IMERSIVA INÍCIO DA LUTA

A exposição Frida Kahlo: A Dirigido por Rodrigo


Vida de um Ícone fica em de Oliveira, o filme Os
cartaz no Salvador Sho- Primeiros Soldados
pping até 4 de dezembro. retrata o início da
A capital baiana é a pri- transmissão do vírus
meira cidade da América HIV por meio da
do Sul a receber a mostra história de um grupo
sobre o legado e as in- de jovens amigos
fluências da artista mexicana, importante nome das artes plás- nos anos 1980. O biólogo Suzano (Johnny Massaro)
ticas em todo o mundo e símbolo da luta feminista. Em fevereiro apresenta os primeiros sinais da Aids, doença até
de 2023, as instalações e projeções estarão em São Paulo. Saiba então desconhecida. A condição o aproxima de outras
mais em www.fridakahlosalvador.com.br. pessoas LGBTQIA+ que passam pelo mesmo problema.
Disponível no Now e no Vivo Play.

RESISTÊNCIA BASE DE APOIO

Representante do Bra- Em Querido Menino,


sil no Oscar 2023, Marte dirigido por Felix Van
Um, de Gabriel Martins, Groeningen, um pai
narra o dia a dia de uma (Steve Carell) busca
família negra da peri- ajudar o filho (Timothée
feria de Contagem, em Chalamet), fruto do
Minas Gerais, em meio primeiro casamento,
ao governo de Jair Bolsonaro. As crenças e os sonhos que é dependente
de cada integrante movimentam a história. Enquanto o químico viciado em metanfetamina. A situação abala
filho caçula sonha em estudar Astrofísica, a mais velha toda a família. Motivado pelo afeto familiar, o jovem
se apaixona por uma jovem libertária e decide sair de passa por diversos ciclos na luta pela recuperação.
casa. Verifique disponibilidade nos cinemas. Disponível na HBO Max.

NOTÁVEIS CONSAGRADA

Em Feminista, Eu?, da Editora A francesa Annie Ernaux recebeu


Bazar do Tempo, a ensaísta o Prêmio Nobel de Literatura de
Heloísa Buarque de Hollanda 2022 “pela coragem e acuida-
analisa o papel das mulheres de clínica com que desvenda as
em campos-chave da cultura raízes, os estranhamentos e as
brasileira, como a literatura, o amarras coletivas da memória
cinema novo e a MPB. A autora pessoal”. O carro-chefe de sua
explora o período entre os obra é O Lugar, em que a autora
anos 1950 e 1980, resgatando se debruça sobre a vida do pró-
histórias de mulheres como prio pai para esmiuçar relações
Elis Regina, Rita Lee e Carolina familiares e de classe. Lançado
Maria de Jesus. no Brasil pela Fósforo Editora.
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