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EVANGELHOS SINÓTICOS:

ORIGEM, NATUREZA E FINALIDADE

BIBLIOGRAFIA

AUNEAU, J. et al. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1985.
p.11-56. KÜMMEL, Werner G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1982.
p.34-93. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola,
1998. p.312-322. MARCONCINI, B. Os Evangelhos sinóticos: formação, redação,
teologia. São Paulo: Paulinas, 2001. p.17-73. MAINVILLE, Odette (Org.). Escritos e
ambiente do Novo Testamento: uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2002. p.161-
193. LIBANIO, J.B. Linguagens sobre Jesus: linguagens narrativa e exegética
moderna.v.2. São Paulo: Paulus, 2012. p.79-85.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse estudo consiste em fazer uma introdução à origem, natureza e finalidade
dos Evangelhos Sinóticos. Para isso, analisaremos, numa perspectiva etimológica, as
palavras “evangelho” e “sinótico” com o intuito de entender o longo processo de
reconceituação que os termos passaram. No outro momento, versaremos sobre “os
evangelhos” enquanto gênero literário, suas características e finalidades.

1. EVANGELHO(S)

A palavra “evangelho” é a transcrição do termo grego “euangelion”, formada por: “eu”,


advérbio, que significa “bem”, e “angello”, verbo, que pode ser traduzido por “eu anuncio,
trago uma mensagem, uma notícia”.

“Evangelho” situa-nos no plano da interpretação: naquele evento do qual se toma


conhecimento, reconhece-se uma boa notícia. Implica, pois, um julgamento de valor positivo,
um reconhecimento.

A expressão “Boa-nova” exclui qualquer neutralidade, é uma opção de fé. Certa feita, um
autor judeu, numa tradução do Novo Testamento, sugeriu que o termo “euangelion” fosse
substituído pelo termo neutro “anúncio”. Assim a passagem de Mc 1,1, “Princípio do
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, seria traduzida por “Início do anúncio de Yeshua
o messias, ben Elohim”. Tal proposta corrompe a essência do Evangelho, pois por trás dele
há uma testemunha engajada; já por trás de “anúncio”, há um relator “neutro”.

O significado dado à palavra “evangelho” como conhecemos hoje é o resultado um longo


processo cultural de resignificação. A origem do termo passa pelos autores profanos. No
início, a palavra significou “o presente dado ao portador de uma boa-nova”. No grego clássico,
além do sentido de presente, designava, mais especificamente, “o sacrifício oferecido por
ocasião de uma boa notícia”. Já no grego helenístico, equivale à própria boa notícia. A
diferença é que, aqui, a ideia, é a de uma boa notícia de uma vitória militar (uso confirmado
pelo historiador grego Plutarco). Durante o Império Romano, a palavra fora utilizada com
referência ao imperador, tido como deus. A notícia no nascimento de um príncipe herdeiro e
dos possíveis benefícios que isto poderia gerar para o império eram motivos de “boas novas”.

Jesus e os primeiros cristãos não instituíram o uso que fazem da palavra “evangelho”; parece
terem-na tomado emprestado da Septuaginta (LXX). A LXX emprega 20 vezes o
verbo euangelizesthai e 6 vezes o substantivo euangelion, euangelia. A palavra “evangelho”
tomou por derivação o termo hebraico “bissár”, “evangelizar”, dimensão alegre do anúncio
que, gradativamente, foi adquirindo um significado religioso como proclamação da salvação
(cf. Sl 40,4.10; Is 52,7). O sentido da palavra, tanto no Dêutero como no Trito-Isaías, é
particularmente significativo: a “boa nova” que anunciam é a iminente vinda do Reino de
Deus, e conferem-lhe, como sinais, a paz, a libertação, a felicidade (cf. Is 40,9; 52,7; 62,6;
61,1). Assim, para os judeus só há uma boa nova vinda do Reino de Deus. É esse o sentido
empregado por Jesus também.

No ambiente do Segundo Testamento, “euangelion” passa por uma significativa evolução.


São 130 citações da palavra com suas variantes: 54 empregos do verbo “euangelizei” e 76 do
substantivo “euangelion”. A ideia que perpassa como pano de fundo do uso dos termos
aponta para:

1) Os discípulos anunciam a Boa-nova de Jesus;


2) Marcos escreve a Boa-nova de Jesus;
3) O anunciador tornou-se o anunciado e ato de proclamação tornou-se o texto.

Isso significa que:

1) Jesus situa-se exatamente na linha da mensagem de Isaías, da qual faz, segundo


Lucas, a base de seu discurso-programa na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18, citando Is
61,1-2);
2) Para os cristãos, a Boa-nova não consiste, como entre os gregos e os romanos, numa
multidão de acontecimentos sucessivos e passageiros, de importância mais ou
menos relativa, mas num único evento, capital e fundamental: em Jesus Cristo,
Deus se aproximou dos homens de modo decisivo e definitivo (cf. o discurso de
Pedro At 10,36);
3) Ao escrever um “evangelho”, Marcos inova. Ao reunir os diferentes elementos
veiculados pela tradição e ao organizá-los numa história de Jesus, o evangelista abre
caminho a um novo gênero literário sem precedentes em outras literaturas.

Somente na segunda metade do século II é que se veio a empregar a palavra euangelion no


plural. Justino (+165), no livro Apologia, 66,3, foi quem usou primeiro o termo em memórias
dos apóstolos. O enfoque na utilização do termo não era mais o conteúdo, mas o conjunto
dos textos.

2. SINÓTICOS

Em 1776, um pesquisador alemão chamado J.J. Griesbach publicou, em Halle, a


obra Synopsis evangeliorum (Sinopse dos evangelhos). Foi a primeira vez que se utilizou o
termo “sinótico” aos escritos dos três primeiros evangelhos.
A ideia de Griesbach era a de elaborar uma edição de Mateus, Marcos e Lucas, que permitisse
abranger “os três num único olhar” – a origem do termo “sinótico” é grega oriunda de duas
palavras: syn (“junto”) e opsis (“ver”). Assim agindo, ele se fizera eco da opinião que
Agostinho de Hipona, já em 399, expusera em seu De consensu evangelistarum. Para o bispo
de Hipona, os evangelhos teriam sido escritos na ordem em que estão no Cânon.

Essa intervenção da sinopse no século XVIII contribuiu enormemente para instaurar a era
da crítica evangélica. Até então, consideravam-se os evangelistas como testemunhas oculares
dos fatos ocorridos, e tudo quanto haviam escrito era isento de qualquer erro ou contradição.
Com a crítica literária, não só essa imagem tradicional sofreu críticas como a abordagem da
vida de Jesus ia também sofrer profunda alteração.

A Sinopse evangélica dava como fim aquilo a que se chamava Harmonia evangélica.
Tratava-se de uma narrativa seguida da história de Jesus, constituída exclusivamente dos
elementos provenientes dos quatro evangelhos. Essa narrativa era organizada de modo a que
todas as informações reunidas se completassem num conjunto coerente e harmonioso. Um
bom exemplo desse esforço de síntese narrativa foi o Diatessaron (“através dos quatro”) de
Taciano (séc.II) que tinha como objetivo provar a harmonia entre os evangelhos.

O trabalho de Griesbach contribuiu muito para o estudo da Questão sinótica. A questão


girava em torno da relação literária dos três primeiros evangelhos entre si: Como explicar a
notável e complexa teia de concordâncias e discordâncias entre Mateus, Marcos e Lucas?
A exposição sinótica consiste numa série de unidades distintas de narrativas e discursos,
completas em si mesmas, e frequentemente colocadas uma após outra, independentemente
de qualquer ligação espacial ou temporal. À vista das semelhanças, a conclusão parece se
impor: os sinóticos, de alguma maneira, parecem depender literalmente uns dos outros. Na
realidade, a questão se complica quando se sabe que os três evangelhos diferem também
muito uns dos outros, tanto no conteúdo quanto na forma.

Basta observar as estatísticas do quadro abaixo para verificar a questão levantada.

Passagens Mt Mc Lc
Comuns aos três 330 330 330

Comuns a Mt-Mc 178 178

Comuns a Mc-Lc 100 100

Comuns a Mt-Lc 230 230

Próprios a cada um 330 53 500

Com base nas estáticas do quadro, pode-se afirmar que:

1) Um grande número de passagens se encontra nos três evangelhos (tríplice tradição);


2) Algumas passagens são partilhadas por Mc e Mt e outras por Mc e Lc;
3) Numerosos textos são encontrados somente em Mt e Lc (dupla tradição);
4) Cada evangelho contém textos que lhe são próprios.

Fato interessante a observar é que somente 53 versículos não estão em Mt e Lc. Quase todo
o Evangelho de Marcos está presente nos evangelhos de Mateus e Lucas. Como explicar essa
dependência mútua? Várias hipóteses surgiram a partir do século XVIII e dentre elas
a Teoria das duas Fontes.

Weisse (1838), abrirá finalmente as portas à Teoria das duas Fontes. Obtém-se então o
esquema que, há mais de um século e meio, serve de postulado de base a um número
incalculável de pesquisas sobre os evangelhos sinóticos.

Segundo a Teoria das duas Fontes, Mateus e Lucas utilizaram dois documentos para escrever
seu respectivo evangelho; esses documentos são Marcos e Q (fonte Quelle). Deve-se,
entretanto, lembrar que o documento Q jamais foi encontrado e, por conseguinte, ele é
completamente hipotético. Esta fonte seria anterior ao Evangelho de Marcos, escrito em
grego e reuniria as palavras, discursos e parábolas de Jesus.

A teoria das duas fontes pode ser ilustrada da seguinte maneira:


3. GÊNEROS LITERÁRIOS

Vimos que Marcos, ao escrever um evangelho, reunindo diferentes elementos veiculados pela
tradição e organizá-los numa história de Jesus, abre caminho a um novo gênero literário sem
precedentes em outras literaturas.

Os evangelhos enquanto gênero literário é único, novo. Apresentam-se como textos


narrativos, sem serem crônica ou biografia. Falam da mesma pessoa e dos mesmos fatos com
intuitos específicos. O estilo literário é parecido com a midraxe Hagadá (narração) – designa
ao mesmo tempo um método de exegese e a produção literária decorrente deste método. Faz-
se uma pesquisa sobre a Escritura para ver de que modo ela atinge seu leitor contemporâneo;
é uma tentativa de atualização da Escritura. Parecido com Hagadá (aggadah), o evangelho
edifica ao atualizar a mensagem da salvação para o leitor hodierno.

Os evangelhos não são história e nem um livro de memórias. Não se interessam na história
interior ou exterior do herói, mas manifestam um claro interesse pela atividade terrena de
Jesus sem uma cronologia ou uma topografia precisa. São querigmas de um acontecimento
único e definitivo, da intervenção de Deus em Jesus Cristo. Em vez de biografia de Jesus,
trata-se de testemunho de fé, de anúncio para despertar a fé no ouvinte.

Os evangelhos não foram escritos para recordar Jesus ou para glorificar os seus milagres,
constituindo estes últimos apenas uma parte de seu conteúdo, que contém bem outras coisas;
o interesse dominante neles é suscitar a fé e fortalecê-la. As palavras e as ações de Jesus foram
recolhidas à parte e repetidas na forma de simples narrativas, destinadas a mostrar às
primeiras assembleias cristãs o fundamento de sua fé e proporcionar aos missionários um
sólido substrato para a pregação, a catequese e também para a argumentação contra os
adversários.

Os evangelhos são textos populares e não eruditos. São textos destinados ao uso das
comunidades e para o uso da propaganda missionária. Assim, é preciso admitir uma
distância entre Jesus e os evangelhos, transbordante da contribuição da comunidade. Os
evangelistas não podem ser reduzidos a meros compiladores: ele são ao mesmo tempo
intérpretes e portadores de uma tradição, com um equilíbrio ímpar entre liberdade e
fidelidade.

Os evangelhos não se reduzem a única primeira redação de único autor, mas sofreram
diversas modificações ao longo da redação por força das tradições vivas que circulavam e das
adaptações dos redatores para as respectivas comunidades a que se dirigiam. À medida que
as comunidades iam lendo e pregando tais tradições, impingiam modificações conforme seu
contexto existencial, refundindo os textos.

Os evangelhos pertencem a um grande gênero literário e dentro dele há outros gêneros


(narrativas, milagres, parábolas, alegorias, metáforas, apocalipse etc.) que conservam
elementos da tradição moldados por eles. O que está em jogo na atualidade não é a
pluralidade de gêneros literários presentes nos Evangelhos, mas o grau de historicidade do
que se relata e sua evolução.

Carlos Cunha / agosto de 2012

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