Empatia Emanuelh

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A empatia como atitude ética no cuidado em saúde mental

Empathy as an ethical attitude in mental health care

La empatia como actitud ética en el cuidado en salud mental

Dassayeve Távora Lima

Mariana Tavares Cavalcanti Liberato

Bianca Waylla Ribeiro Dionísio

Universidade Federal do Ceará (UFC – Campus Sobral), Sobral, CE, Brasil

Resumo

Este trabalho objetiva discutir como a compreensão empática, atitude facilitadora do


crescimento humano desenvolvida por Carl Rogers, se configura como uma agir ético no
cuidado em saúde mental. Para isso, realizou-se um breve percurso histórico do campo da
assistência à pessoa em sofrimento psíquico, partindo do modelo manicomial nascido nos
hospitais psiquiátricos e, posteriormente, passando pelas diversas reformas em saúde mental
pelo mundo até chegarmos ao atual modelo de atenção psicossocial, que se apresenta como
um contexto propício para a emergência do agir ético. Apresenta-se a ideia de que no modelo
manicomial não era possível sustentar uma dimensão ética no âmbito relacional, visto que o
antigo paradigma psiquiátrico privilegiava o transtorno mental em detrimento da pessoa. Por
fim, foram analisados aspectos referentes ao conceito de empatia e o diálogo possível com a
ética levinasiana, cujas aproximações permitem inferir que a compreensão empática rogeriana
se configura como uma atitude essencialmente ética.
Palavras-chave: empatia; ética; saúde mental.

Resumen
Este trabajo objetiva discutir cómo la comprensión empática, actitud facilitadora del
crecimiento humano desarrollada por Carl Rogers, se configura como una acción ética en el
cuidado en salud mental. Para ello, se realizó un breve recorrido histórico del campo de la
Lima, D.; Liberato, M.; Dionísio, B.
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asistencia a la persona en sufrimiento psíquico, partiendo del modelo manicomial nacido en
los hospitales psiquiátricos y, posteriormente, pasando por las diversas reformas en salud
mental por el mundo hasta llegar al actual modelo de atención psicosocial, que se presenta
como un contexto propicio para la emergencia del actuar ético. Se presenta la idea de que en
el modelo manicomial no era posible sostener una dimensión ética en el ámbito relacional, ya
que el antiguo paradigma psiquiátrico privilegiaba el trastorno mental en detrimento de la
persona. Por último, se analizaron aspectos referentes al concepto de empatía y el diálogo
posible con la ética levina, cuyas aproximaciones permiten inferir que la comprensión
empática rogeriana se configura como una actitud esencialmente ética.
Palabras clave: empatía; ética salud mental.

Abstract
This paper aims to discuss how empathic understanding, the facilitating attitude of human
growth developed by Carl Rogers, is configured as an ethical action in mental health care. In
order to achieve this, a brief history of the field of assistance to the person suffering from
psychic suffering was made, starting from the asylum model born in psychiatric hospitals and
then going through the various mental health reforms around the world, until we reach the
current model of care psychosocial, which presents itself as a propitious context for the
emergence of ethical action. We present the idea that in the manicomial model it was not
possible to sustain an ethical dimension in the relational scope, since the old psychiatric
paradigm privileged the mental disorder to the detriment of the person. Finally, aspects related
to the concept of empathy and the possible dialogue with the Levinasian ethics were analyzed,
whose approximations allow to infer that the emphatic understanding of Rogers is an
essentially ethical attitude.
Keywords: empathy; ethic; mental health.

experiências de reformas no campo da


saúde mental pelo mundo (Desviat, 2015).
Introdução
Para além de uma simples mudança nas
O modelo de atenção psicossocial
estruturas de atenção e no âmbito da
brasileiro surgiu inspirado em diversas
assistência (Amarante, 2007/2015), o
modelo de atenção psicossocial preconiza a
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ênfase na ética no cuidado às pessoas em contexto propício para a emergência do agir


sofrimento psíquico, na tentativa de superar ético.
o antigo modelo manicomial historicamente Por fim, foram analisados aspectos
marcado pelo contexto de referentes ao conceito de empatia e o
institucionalização e violação da dignidade diálogo possível com a ética da alteridade
humana (Amarante, 1996/2016). radical de Lévinas, cujas aproximações
Este trabalho dialoga com autores permitem inferir que a compreensão
que abordam o contexto vivido em empática, tal como formulada por Carl
instituições totais e possíveis aproximações Rogers, se configura como uma atitude
teóricas com a realidade dos sujeitos que essencialmente ética, fundamental para a
foram submetidos à imersão nos hospitais atuação dos profissionais de saúde inseridos
psiquiátricos. Sustenta-se a ideia de que não no contexto da Reforma Psiquiátrica
é possível estabelecer uma dimensão ética Brasileira.
nas relações humanas dentro destas As instituições totais e a impossibilidade de
instituições, pois estes locais foram uma dimensão ética nas relações humanas
fortemente marcados por uma lógica de Os campos de
aniquilação da alteridade e objetificação concentração nazistas, dentre eles
dos sujeitos. Trata-se, ainda, sobre as Auschwitz, símbolo do holocausto alemão,
mudanças teóricas e conceituais necessárias são considerados ainda hoje como um dos
para a transição de um modelo de atenção maiores experimentos de aprisionamento e
biomédico-hospitalocêntrico para o modelo violação da dignidade humana na
de atenção psicossocial brasileiro, que modernidade. Segundo
surge, principalmente, dos princípios da Agamben (2008), para aquele que estava
luta antimanicomial e da reforma dentro do campo de concentração, mais
psiquiátrica. importante que encontrar estratégias para
Para isso, foi realizado um breve viver em meio àquela experiência de
percurso histórico do campo da assistência sofrimento e enclausuramento, era
à pessoa em sofrimento psíquico. Parte-se encontrar motivos que justificassem a sua
do modelo manicomial nascido nos sobrevivência na situação limite que era o
hospitais psiquiátricos, passando por holocausto. Se tornar uma testemunha era,
diferentes experiências de reforma em para alguns, uma razão necessária para dar
saúde mental pelo mundo até chegar ao sentido à sobrevida.
atual modelo de atenção psicossocial No entanto, é consensual, inclusive
brasileiro, que se apresenta como um para os sobreviventes do holocausto, que
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existe uma lacuna no conceito de que o testemunho integral da experiência


testemunha ou uma impossibilidade nos hospitais psiquiátricos se constitui
inerente ao próprio ato de testemunhar. como uma impossibilidade de testemunhar,
Segundo os sobreviventes do holocausto, a tendo em vista que as verdadeiras
personagem que representa a “testemunha testemunhas são as “vítimas fatais do
integral” é aquela que é impossibilitada de modelo de atenção à saúde mental anterior”
falar por si, pois foi justamente a que não (Lemos, 2015, p.115). Para a autora, tanto o
sobreviveu ao campo. Agamben (2008, louco quanto o “muçulmano” de Agamben
p.43) afirma que “as ‘verdadeiras’ representam “o lugar de um experimento no
testemunhas, as ‘testemunhas integrais’ são qual a moral e a humanidade foram postas
as que não testemunharam, nem teriam em questão” (Lemos, 2015, p.115).
podido fazê-lo”, pois são estas as que Essa relação entre os hospitais
viveram a letalidade dos horrores do campo psiquiátricos e os campos de concentração
de concentração e, por isso, nunca poderão já é conhecida entre os historiadores do
falar sobre a experiência limite a que foram antigo modelo manicomial. Amarante
submetidas. (2007/2015) afirma que, a partir da
Desta forma, existe uma lacuna experiência da Segunda Grande Guerra,
sempre impreenchível no testemunho de percebeu-se as similaridades entre as
Auschwitz, pois os que viveram a condições dos campos de concentração e a
experiência integral do holocausto jamais dos hospícios no que dizia respeito às
puderam narrar seu testemunho e aqueles condições de vida das pessoas que lá
que sobreviveram não vivenciaram até as habitavam. Nos dois casos, pressupõe-se a
últimas consequências a letalidade dos perda de algo que caracterizaria esses
campos de concentração. Os relatos aos sujeitos como humanos, nos quais
quais temos acesso serão sempre limitados, categorias como dignidade e alteridade já
marcados pela impossibilidade do próprio não fazem sentido quando se referem a
“testemunho integral” (Agamben, 2008). esses corpos.
Valendo-se do conceito de Historicamente, as
testemunha integral, como aquele que instituições totais, tais como os hospícios,
vivencia uma experiência limite que o prisões e os campos de concentração
impossibilita de falar por si, Lemos (2015) nazistas, serviram como depósito de “várias
faz alusão ao louco como testemunha dos categorias de pessoas socialmente
manicômios; seguindo a mesma lógica de perturbadoras”
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(Goffman, 1974, p.287). Sujeitos estes que, demais esferas do ser humano (Foucault,
por não fazerem parte da hegemonia social 2014), o louco perde seu caráter humano e,
ou da linha da “normalidade”, eram mais facilmente, aceita-se toda a sorte de
segregados e institucionalizados, no intuito abusos e violações. Segundo Foucault
de manter um determinado ideal de (2014, p.184), diante da razão, a loucura é
“pureza” da sociedade. vista como “negatividade pura”, sendo o
Segundo Goffman (1974), as louco aquele que deve ser visto como
diversas instituições totais, enquanto “nãoser”.
dispositivos de segregação e higienização Os manicômios constituíram, assim,
social, atuam nos corpos humanos em um uma realidade institucional, na qual a ética
processo institucionalizante de das relações humanas era impossível, visto
dessubjetivação e perda da qualidade que esta não pode existir num contexto em
humana do indivíduo. Por meio de uma que as relações de poder atuam em um
série de violências aos quais estes corpos constante processo de aniquilamento da
são submetidos, os sujeitos totalmente subjetividade e da diferença. Segundo
institucionalizados são objetificados, não Lemos (2015, p.103), a dimensão ética das
sendo mais possível compreendê-los em relações diz de uma “não imposição de um
sua dignidade. Segundo o autor, todo o saber-poder sobre o outro”, que, por sua
contexto institucional em uma instituição vez, “não é passível de tematização ou
total atua num constante processo de conceituação”. Neste sentido, a dimensão
aniquilação da subjetividade, que ética somente se faz presente em uma
descaracteriza e reifica o sujeito, tornando- relação na qual a alteridade não se pode ser
o um ser inumano (Goffman, 1974). negada, excluída ou suprimida; ou seja,
Tanto para os campos de numa relação de abertura e acolhida do
concentração como para os manicômios já Outro em sua radicalidade (Lemos, 2015).
não existe uma dimensão que possa ser Se o testemunho do louco era
compreendida como um limite ou postura impossível devido à letalidade da
ética nas relações. Isto se justifica pela experiência manicomial, este ainda
ideia de que já não se trata de corpos encontra mais um empecilho ao
humanos: são seres cujas mortes não testemunhar sobre os horrores do antigo
merecem ser sofridas e suas vidas não modelo de saúde mental, pois na relação de
merecem ser vividas. poder que se estabelecia, o louco tinha o
Numa realidade em que se privilegia seu discurso anulado e deslegitimado. Sua
em demasia a razão em detrimento das fala era algo que não se podia levar a sério:
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era o dito de alguém desprovido da sua que a saúde mental se trata de um campo de
razão (Foucault, 2014). atuação territorial,
Dessa forma, apenas outro modelo transdisciplinar e intersetorial.
de atenção à pessoa em sofrimento Se hoje compreendemos a esfera do
psíquico, radicalmente diferente do modelo cuidado à pessoa com sofrimento psíquico
manicomial, pode possibilitar relações como um campo de atuação “polissêmico e
verdadeiramente humanas que, por sua vez, plural na medida em que diz respeito ao
legitimam a alteridade como digna de ser estado mental dos sujeitos e das
atendida em sua diferença. Se coletividades”, como afirma Amarante
compreendermos a dimensão ética das (2007/2015, p.19), isso se deve à convicção
relações como um “acolhimento à diferença de que o modelo manicomial mais produziu
produzida na processualidade” (Andrade & malefícios que benefícios e que, em última
Morato, 2004, p.346), bem como a adoção instância, jamais alcançou nada daquilo que
de uma postura de respeito frente à se propunha, tendo em vista que, se
diversidade, somente um modelo que negue pautando no paradigma biomédico, estas
integralmente a lógica dos manicômios instituições apostavam na cura biológica de
pode dar abertura a uma relação seus internos (Basaglia, 2015).
genuinamente ética. No entanto, essa é uma realidade
Saúde mental e as novas formas de cuidado bastante recente e em constante construção,
à pessoa em sofrimento psíquico fruto de muitos embates políticos e
Falar sobre saúde mental, desconstruções epistêmicas.
atualmente, só é possível se a Historicamente, as concepções
compreendermos como uma extensa e epistemológicas que embasaram o cuidado
complexa área do conhecimento que se em saúde mental partem do modelo
baliza na negação integral do antigo biomédico-hospitalocêntrico, sendo assim,
modelo manicomial (Amarante, 2015). Se, durante muito tempo, o estudo dos
anteriormente, o modelo de cuidado à transtornos mentais, no qual basicamente se
pessoa em sofrimento psíquico era adepto resumia toda a área da saúde relacionada ao
ao reducionismo biológico, segregação sofrimento psíquico, era de exclusividade
social por via da institucionalização e, da medicina e se dava em ambiente
ainda, considerado como uma área de estritamente hospitalar. Contexto este que
propriedade exclusiva do saber médico, deu origem a disciplina pioneira nesse
contrapor-se a este modelo significa dizer
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estudo, o alienismo, precursora da louco um agente patogênico ou


psiquiatria (Amarante, 2007/2015). desequilíbrio biológico, no qual caberia ao
Podemos entender como médico livrar o “enfermo” da doença
hospitalocentrismo um paradigma (Basaglia, 2015). Segundo Franca Basaglia,
assistencial que compreende que o hospital o relacionamento entre médico e paciente
é a instituição primeira e essencial no era essencialmente um “relacionamento
âmbito da saúde, onde a racionalidade fundado sobre um corpo morto, isto é, um
terapêutica atua na prática do controle e do corpo sem história, desprovido de
isolamento e objetiva com isso atingir fins necessidades, de exigências e de reações
curativos (Maciel, 2012). Ao passo que, por subjetivas”, pois, para o antigo modelo de
medicalização, compreende-se o processo assistência médico-psiquiátrico, o seu
de apropriação do hospital e de questões interesse principal era a doença “que resulta
relacionadas à vida e a saúde em geral por tanto mais identificável e compreensível
parte do saber biomédico (Amarante, quanto mais estiver separada e isolada do
2007/2015). sujeito que a manifesta” (Basaglia, 2015,
Essa concepção da medicina, que p.18).
compreende a saúde mental como o campo Dentre algumas experiências de
de estudo em que se privilegia as doenças e reformas na psiquiatria, é necessário
transtornos psíquicos, aponta para uma ressaltar a importância de alguns modelos
contradição terminológica, pois a saúde é que deram origem a novas produções
entendida por meio do estudo das conceituais, práticas e metodológicas no
patologias, o que não abarca a cuidado em saúde mental (Amarante,
complexidade do que seria a saúde em si 2007/2015). Como exemplos, temos a
(Gadamer, 2006). No entanto, essa Psicoterapia Institucional francesa e a
contradição não se dá apenas no âmbito da experiência da Comunidade Terapêutica na
psiquiatria, mas engloba uma lógica Inglaterra, que atribuíam o fracasso do
cientificista que estrutura toda uma modelo manicomial, principalmente, ao seu
organização do paradigma médico modelo de gestão, mas não necessariamente
ocidental (Ministério Público Federal, à instituição manicômio. Há, também, a
2011). Psiquiatria de Setor francesa e a Psiquiatria
Dentro dessa lógica, os transtornos Preventiva estadunidense, que creditavam
mentais eram descolados de um contexto ao modelo hospitalar o esgotamento da
social e desistoricizados, atribuindo ao atuação médica psiquiátrica, defendendo o
sofrimento e à experiência humana do desmantelamento paulatino do aparato
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hospitalar em paralelo com a substituição Os conceitos de regionalização,


por serviços assistenciais e terapêuticos territorialização e interdisciplinaridade, tão
não-hospitalocêntricos. Podemos citar, caras às políticas públicas de atenção
ainda, a antipsiquiatria, a qual, por sua vez, psicossocial ainda hoje (Ministério Público
negava integralmente o modelo epistêmico Federal, 2011), por sua vez, só foram
da psiquiatria tradicional que acreditava possíveis com os avanços oriundos das
haver um agente biológico e patogênico e práticas realizadas no seio da Psiquiatria de
defendia a não existência da doença mental Setor que, segundo Amarante (2007/2015),
tal como se pensava, “enquanto objeto se configura como uma das maiores
natural como considera a psiquiatria, e sim inovações do campo da saúde mental. Tal
uma determinada experiência do sujeito em experiência reforça a importância da
relação ao ambiente social” (Amarante, assistência para além das instituições
2007/2015, p.53). hospitalares e enfatiza a necessidade da
Todas essas experiências de atuação multiprofissional, desconstruindo a
reforma, ou ainda, no caso da ideia de que saúde mental é um campo
antipsiquiatria, de negação completa do exclusivo da medicina.
modelo psiquiátrico, na qual se compreende Todos estes modelos de reforma e
a loucura como uma experiência humana crítica do paradigma psiquiátrico trouxeram
legítima e diversa (Roudinesco & Plon, grandes avanços no que diz respeito a uma
1998), trouxeram grandes avanços para o assistência mais ética e humana à pessoa
entendimento e cuidado das pessoas com com sofrimento psíquico, possibilitando
transtornos mentais. Com o advento da que a pessoa fosse novamente vista como
Psicoterapia Institucional, por exemplo, um ser digno de cuidado e atenção e não
obteve-se a noção de transversalidade, mais como um depósito de diagnósticos
conceito importante no que diz respeito à psiquiátricos, no qual a única intervenção
problematização de hierarquias e terapêutica em vista era a medicalização e
hegemonias dentro do campo da saúde docilização do sujeito. Foram grandes os
como um todo, pois se compreende que não embates e caminhos percorridos até se
existe uma categoria profissional chegar à ideia de que é impossível reabilitar
hegemônica ou privilegiada no cuidado à e incluir socialmente alguém que está
pessoa em sofrimento psíquico (Amarante, segregado e institucionalizado (Rotelli,
2007/2015). 2015).

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Toda a trajetória que as reformas em aquele saber produziu aqueles resultados,


assistência psiquiátrica e a compreensão nada desse saber pode ser utilizado
sobre a loucura e os transtornos mentais novamente” (p.38); ou seja, se foi o suposto
percorreram, culminam, segundo Amarante conhecimento que implicou na violação da
(2007/2015), no modelo da Psiquiatria dignidade de tantas pessoas, somente o
Democrática Italiana, considerado até hoje desconhecimento sobre a loucura pode ser
o maior marco recente da saúde mental e útil. No entanto, existe algo de basilar, uma
divisor de águas no que diz respeito à luta certeza que orientou este processo, que é a
antimanicomial e à criação de novos certeza de que a liberdade é terapêutica. O
modelos substitutivos de assistência, grande erro do modelo manicomial e da
políticas públicas de atenção psicossocial e psiquiatria era o de conceber o corpo
cuidado territorial (Butti, 2015). individual como algo descolado do corpo
Foi principalmente com as ideias de social. Não há tratamento efetivo sem
Franco Basaglia, oriundas do processo da liberdade, bem como não há liberdade
Reforma Psiquiátrica da Itália, que se possível se vivida individualmente.
passou a pensar e a se efetivar uma política A partir dessa ideologia libertária,
de saúde mental que visasse à superação de Franco Basaglia passou a formular uma
maneira integral do modelo manicomial perspectiva de grande originalidade,
vigente (Amarante, 2015). Segundo Rotelli voltada para a superação não apenas do
(2015), todo o processo surgiu da manicômio como estrutura física, mas
convicção de não se saber nada sobre a como “o conjunto de saberes e práticas,
loucura. Para ele, foi esse não-saber que fez científicas, sociais e jurídicas, que
com que a reforma italiana tivesse tanta fundamentam a existência de um lugar de
força. Não era ético submeter alguém a um isolamento e segregação e patologização da
tratamento manicomial, principalmente, experiência humana” (Amarante, 2015,
quando nada se sabia sobre a loucura e, p.56).
ainda, quando se tinha a certeza de que
aquela terapêutica não gerava nenhum Reforma psiquiátrica brasileira e
benefício ao paciente. atenção psicossocial
Assim, um dos pilares éticos que Conforme exposto alhures,
nortearam a reforma italiana foi a diferentes movimentos de reforma
convicção da importância de se manter um psiquiátrica pautaram-se na convicção de
estranhamento sobre o que é a loucura. que o antigo modelo manicomial não
Como apontado por Rotelli (2015), “se gerava efeitos positivos em relação ao
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cuidado das pessoas em sofrimento leitos em hospitais gerais, criação de


psíquico; longe disso, estabelecia relações e residências terapêuticas, Centros de
normas que mais se aproximavam de um Atenção Psicossocial, centros de
ambiente prisional e carcerário, baseados convivência e formação e apoio de
no controle, vigilância e disciplina dos cooperativas), potencializando setores e
corpos. Nesse sentido, segundo Amarante agentes das diversas esferas da vida do
(2007/2015), os movimentos e processos de indivíduo e facilitando o processo de
reforma em saúde mental não se deram reabilitação psicossocial (Devera &
apenas por motivos puramente ideológicos, CostaRosa, 2007; Amarante, 2007).
liderados por psiquiatras insurgentes Compreendendo esse novo modelo
desvinculados da realidade, mas sim, como de cuidado como multifacetado e plural,
efeito do avanço de estudos desta ordem inserido no âmbito das políticas públicas de
sobre saúde mental, tensionado por saúde, faz-se necessário abordar o caráter
movimentos e profissionais da área. intersetorial e transdisciplinar da saúde
Segundo o autor, todos os grandes avanços mental, distanciando-se do modelo clássico
no cuidado em saúde mental se deram pela sustentado pelo paradigma biomédico. Por
certeza de que a lógica do confinamento trabalho intersetorial, compreende-se a
era, e continua sendo, um paradigma atuação corresponsabilizada e articulada de
político, jurídico, técnico e cultural diversos setores sociais, convergindo em
extremamente violador da dignidade objetivos comuns (Nascimento, 2010); já a
humana, no qual serve apenas como uma transdisciplinaridade pode ser definida, em
ferramenta de higienização e controle termos gerais, como o atravessamento de
social. saberes, disciplinas e práticas, bem como a
Nesse sentido, a lei nº 10.216/2001 ampliação mútua entre elas (Iribarry, 2003).
foi um marco importante no processo de É importante frisar, então, que no campo da
reforma brasileira que já se encontrava em saúde mental, não deve haver uma
curso. Com a instituição desta lei, hierarquia de saberes, pois todos
preconizou-se gradativa redução de leitos apreendem facetas diferenciadas do sujeito,
nos hospitais psiquiátricos, prevendo o sendo importante que a
cuidado e atenção para pessoas em transdisciplinaridade atue para trabalhá-lo
sofrimento psíquico a partir da substituição em sua integralidade e não para cindi-lo em
destes por uma rede de atenção e cuidado partes diversas.
em saúde mental no próprio território (com
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Pensar essas novas perspectivas no instância, nada mais é do que a


âmbito da atenção em saúde mental possibilidade de acolhimento de uma
significa, primeiramente, uma tentativa de alteridade que é radicalmente diferente. O
superação do modelo manicomial, pois, a acolhimento à diferença: a empatia como
partir do trabalho intersetorial, passa-se a atitude ética na atenção psicossocial.
pensar a atuação dos serviços como uma Se no início deste texto, utilizamos a
rede no qual o atendimento não deve se realidade imposta pelo nazismo, vivida em
focar em apenas um dispositivo. Desta Auschwitz, para inserirmos a discussão
forma, se no modelo hospitalocêntrico, o sobre as instituições totais e
hospital era o dispositivo privilegiado de a impossibilidade de um agir ético
assistência; na atuação em rede, pensa-se (Goffman, 1974; Lemos, 2015), é
um modelo pautado na descentralização do importante pensar que este mesmo contexto
cuidado, não estando o usuário dependente sócio-histórico influenciou Lévinas a
de apenas um único equipamento. Plasmar formular a sua proposta filosófica. Este
um cuidado transdisciplinar significa autor defende que a ética deveria se
pensar um novo paradigma, no qual várias constituir como a filosofia primeira, pois
categorias profissionais possam colaborar sua principal questão nesse campo do
com o seu saber e onde a saúde mental não conhecimento girava em torno de
seja considerada uma propriedade exclusiva estabelecer princípios de uma
da psiquiatria e do saber médico. responsabilidade em fazer-se reconhecer e
Se antes a doença mental era consolidar a humanidade do outro ao
privilegiada em detrimento da pessoa, suas concebê-lo como diferença legítima
questões subjetivas e sua história, a atual (Miranda, 2014).
perspectiva objetiva dar ênfase ao sujeito e O preço a ser pago, segundo
compreendê-lo como uma pessoa digna em Lévinas, pelo não reconhecimento da
sua diferença. A diferença é vista, então, humanidade e particularidade do universo
como diversidade e riqueza, não mais como do outro, resultaria num processo de
um problema a ser corrigido, nem como um totalização e objetificação, deslegitimando
perigo a ser combatido. Somente quando se toda a sua diferença e indignificando o
torna possível o estabelecimento de uma sujeito como outro em sua radicalidade
relação genuinamente humana entre o (Miranda, 2014). Deste modo, a realidade
profissional de saúde e a pessoa em do holocausto nazista se configurou como
sofrimento psíquico, pode surgir uma uma experiência em que a diferença, o
dimensão ética do cuidado que, em última Outro, assim determinado politicamente, se
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constituiu como um pretexto para a filosofia atue num processo constante de


objetificação e desumanização da reflexão e desconstrução de paradigmas e
alteridade. Quando se considera que o realidades impostas, Lévinas afirma que
diferente não é digno, é atribuído a ele toda pouco foi feito pela filosofia pra reverter o
sorte de violações, o que caracteriza a processo de totalização do conhecimento
inexistência absoluta de uma dimensão sobre o homem ou, ainda, que esse próprio
ética (Lemos, 2015). movimento é, em si, totalizador.
Segundo Miranda (2014, p.28), Se as críticas de Lévinas à filosofia
Lévinas aponta que, hegemonicamente, “a em geral se dão numa contraposição aos
relação do homem (do ser) com o mundo e métodos e sistemas
com outros homens, é compreendida a totalizantes do pensamento, nos quais
partir da busca por assimilação”, tornando visam cercear o homem tomando como
tudo o que é inicialmente outro (diferente referência as fronteiras do próprio
do meu referencial de ser) como conhecimento humano, que é por definição,
familiarizável, ao qual o autor atribui esta limitado, é possível estabelecer uma relação
qualidade à ideia de “império do mesmo”. com a própria ciência psicológica dentro
Dessa forma, a partir de um processo dessa problemática.
implícito de dominação, agimos no sentido De acordo com Miranda (2014),
de tornar tudo o que é diverso e plural embora Lévinas não se debruçasse sobre o
como ensimesmado, passível de redução a campo psicológico, suas reflexões acerca
si mesmo, num processo de captura de tudo do campo da dimensão ética das relações
o que foge à nossa compreensão, humanas se apresentam enquanto
concebendo-o como algo do nosso questionamentos pertinentes à profissão e
domínio. ao saber psicológico. Neste sentido,
A concepção ética levinasiana surge, tomase, como conceito de ética, a dimensão
ainda, como uma crítica a diversos que diz respeito à responsabilidade
movimentos e correntes filosóficas da inalienável que se tem para o outro que me
modernidade, pois, segundo o autor, intima e a acolhida da alteridade em sua
durante a história da filosofia, estas atuam diferença radical (Freire, 2003).
no sentido de criar sistemas de Se, no âmbito filosófico, Lévinas
compreensão e de sínteses universais, onde questiona o paradigma totalizante e
nada escapa dos domínios do conhecimento reducionista da filosofia; no campo
humano (Miranda, 2014). Ainda que a psicológico, o movimento humanista, mais
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especificamente a Abordagem Centrada na concebe-se como princípio geral a ideia de


Pessoa (ACP), surge como um contraponto que não é a ACP que concede poder à
às ideias hegemônicas da psicanálise e da pessoa, mas sim, que “ela nunca o tira”
psicologia comportamental. Segundo essa (Rogers, 1986, p.10). Compreende-se,
perspectiva, o ser humano pode ser portanto, que o homem possui em si uma
compreendido como um organismo em força que o direciona a uma vivência mais
constante processo de crescimento e integrada e que ele mesmo possui amplos
atualização, que é digno de confiança e recursos para autocompreensão e
essencialmente construtivo em suas desenvolvimento. Nesse sentido, caberia ao
relações, caso lhe seja permitido ser quem profissional orientado pela ACP agir como
ele é (Borja-Santos, 2004). um facilitador de um processo natural de
Carl Rogers, fundador da ACP, crescimento, criando um
desenvolveu essa concepção de homem e determinado
sua respectiva teoria da personalidade, a
“clima psicológico” que facilitasse a
partir de sua extensa experiência clínica
“liberação da capacidade do indivíduo de
(Rogers, 1992). Rogers era pouco
compreender e conduzir sua vida” (Rogers,
simpático às ideias tradicionais de sua
1986, p.18).
época que atribuíam ao homem uma
Para isso, Rogers (1986, p.18)
natureza essencialmente destrutiva e
afirma que “existem três condições para
indigna de confiança. Segundo o autor, as
este clima de promoção de crescimento”,
terapias desenvolvidas
consideradas pelo autor como atitudes
contemporaneamente à sua consideravam
facilitadoras, sendo elas: 1) a congruência
que “a necessidade de controle do animal
do terapeuta, entendida como a capacidade
que há dentro do homem era questão de
da pessoa em ser autêntica no
maior urgência” (Rogers, 1986, p.24),
relacionamento, vivenciando abertamente
atribuindo assim um caráter disciplinador a
seus sentimentos e atitudes que surgem no
tais práticas e uma postura paternalista ao
momento do encontro; 2) a consideração
terapeuta.
positiva incondicional, que se configura
Convicto da natureza construtiva e
como uma aceitação plena de toda a
positiva do ser humano, Rogers afirma que
experiência e sentimentos do sujeito e
a ênfase do processo psicoterapêutico não
como uma atenção não possessiva; e, por
deve ser o de disciplinar, nem de modelar a
fim, 3) a compreensão empática, a mais
experiência humana, tampouco a de
fortalecer o cliente psicologicamente;
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importante das atitudes facilitadoras para fator fundamental para a efetivação do


esta discussão. cuidado (Silva; Gomes; Castro; Silva,
Ao falarmos de compreensão 2017), bem como permite a compreensão
empática, dizemos que isto significa o das necessidades do usuário de forma
processo em que “o terapeuta sente integral, evitando os especialismos ainda
precisamente os sentimentos e os tão hegemônicos no âmbito da saúde.
significados pessoais que estão sendo Cabe, ainda, ressaltar que o conceito
vivenciados pelo cliente e lhe comunica de empatia possibilita um cuidado em
esta compreensão” (Rogers, 1986, p.19). saúde mental que se oriente pelo paradigma
Compreender empaticamente significa que do cuidado, em detrimento da
o terapeuta tem acesso ao quadro interno de patologização dos sujeitos. Desta forma, o
referências da pessoa, mas sem perder de profissional empático busca, sobretudo,
vista o seu próprio referencial (Rogers, compreender o universo experiencial
1986). Assim, a empatia como atitude daquele que demanda assistência, não tendo
facilitadora do crescimento humano pode como objetivo enquadrar o seu sofrimento
ser entendida como a capacidade de psíquico em uma categoria psicopatológica.
explorar o universo da alteridade, da Neste sentido, corrobora com a concepção
diferença, compreendendo os sentimentos e de nãosaber diante da loucura, que Rotelli
significados da pessoa, a partir de sua (2015) nos aponta. A atitude empaticamente
própria referência simbólica. compreensiva desloca-nos para uma
Segundo Borja-Santos (2004), seria postura de estranhamento e acolhida da
essa atitude empática que caracterizaria esta alteridade, na qual não cabem
abordagem como centrada na pessoa, pois classificações acerca de suas experiências.
não existe a intenção de categorizar ou Esta atitude centrada na pessoa
cercear a experiência do indivíduo. Todo o norteada pela compreensão empática pode
processo de ajuda seria norteado pelo ser entendida, dentro do campo da saúde
movimento da própria pessoa, não pelas mental, como uma atitude ética, pois visa
referências ou técnicas do profissional não controlar, não disciplinar, nem dirigir o
“especialista”. Tal concepção de processo da pessoa. É uma perspectiva em
compreensão empática é muito rica para o que se busca uma aproximação dos
campo da saúde mental e atenção sentimentos do outro, sem a pretensão de
psicossocial, tendo em vista que nesta área totalizá-los. É uma atitude ética por
da saúde em específico, o vínculo é um excelência com a alteridade, que se
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A empatia como atitude ética no cuidado em saúde mental
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aproxima da concepção de afetamento por que a alteridade nos escapa à totalização,


parte do “homem ético”, como afirmam em sua qualidade de outro enquanto
Andrade e Morato (2004, p.347): infinito.
No cuidado em saúde mental, ter em
O homem ético, que se deixa afetar pelo mente a importância de uma atitude
estranho, por aquilo que não é da ordem
empática e não totalizadora é necessária
do representacional ou de seus códigos
familiares, e ao acolher a alteridade e a para a superação completa de um modelo
produção de diferença emergente, vive que justifica e legitima o encarceramento e
em um processo transformador e segregação das diferenças. Se no antigo
instituinte de novos modos de estar no
modelo manicomial, a diferença era
mundo.
patologizada e concebia-se o papel do
médico como aquele que iria trazer a
Pode-se compreender, então, que a
alteridade para o império do mesmo, como
empatia, como atitude de escuta e
um “regulador das diferenças”, no atual
acolhimento da alteridade se configura
modelo de atenção psicossocial, podemos
como um agir ético de cuidado, em
compreender o dispositivo de saúde como
consonância com a filosofia da alteridade
uma morada segura, uma hospitalidade
radical de Lévinas. Nesse sentido, Miranda
oferecida ao outro habitante de uma
(2014, p.77) afirma que a empatia seria
realidade inóspita (Freire, 2003).
uma atitude ética com a alteridade, pois
Na atenção psicossocial, o principal
seria entendida como “um deixar-se
papel do profissional da saúde mental
impactar pela diferença, a partir da busca
coaduna com a proposição de uma atitude
pela compreensão do sentido [...] e não uma
ética defendida por Freire (2003, p.14), que
tentativa de apreender a totalidade racional
significa “oferecer um lugar para o outro –
da experiência do cliente”.
lugar este que desde sempre já seria dele
A empatia, sob a ótica da filosofia
[...] garantindo-lhe um espaço de
levinasiana, é entendida como uma atitude
habitabilidade, ou seja, um ethos, uma
ética de compreensão e acolhida da
morada confiada e serena onde ele possa
diferença, em que se busca uma
renovar-se para retomar suas dores no
aproximação pela via das afetações e não
mundo”.
como uma compreensão racional e
Tal compreensão da dimensão ética das
categorizadora do outro. Aproximar-se
relações humanas se aproxima do conceito
deste outro, que é radicalmente diferente de
de Relação de Ajuda, formulada por Rogers
nossas referências, sempre tendo em vista
(1991), que diz de um tipo de relação, na
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qual pelo menos uma das partes visa criar normalidade perdida ou trazê-lo para o
condições facilitadoras para o domínio do mesmo, do controlável e do
desenvolvimento das potencialidades do familiar, mas sim, compreendê-lo em sua
outro. Nesse sentido, a compreensão diferença radical, deslocando-nos ao seu
empática, formulada por Rogers no encontro.
contexto de uma Relação de Ajuda, se A empatia é uma atitude potente no
alinha ao paradigma de atenção âmbito da saúde mental, que permite a
psicossocial adotado no Brasil, pois aposta aproximação do outro sem o intuito de
no vínculo, no cuidado e na liberdade objetificá-lo, nem a pretensão de reduzi-lo a
experiencial dos usuários, bem como na categorias nosológicas e termos técnicos,
convicção de que o foco do cuidado em priorizando a dimensão da dignidade da
saúde mental deve ser sempre a pessoa que pessoa. É uma atitude ética que afirma
sofre, não o seu diagnóstico, corroborando constantemente um não-saber sobre a
com o pressuposto basagliano de que a diferença, colocando os pressupostos
doença deve ficar em parênteses, para que o teóricos e clínicos em suspensão,
sujeito possa, então, emergir (Amarante, priorizando a relação humana enquanto
1996/2016). dispositivo primeiro no cuidado.
A atenção psicossocial é um campo
Considerações finais de atuação ainda recente e, embora sejam
Situar o conceito de compreensão inegáveis as conquistas atingidas até então,
empática como atitude ética no cuidado em não deixa de ser uma área ainda repleta de
saúde mental significa vislumbrar modos de grandes desafios, o que nos leva a
produção de subjetividade orientados pela considerá-la como um cenário em constante
abertura para o diverso, o plural e, ao construção. Levando em consideração que
mesmo tempo, ao singular de cada um. o próprio paradigma de atenção
Constitui-se como uma postura que psicossocial surgiu como um contraponto
possibilita impactar-se constantemente com ao antigo modelo manicomial, é necessário
aquilo que foge às referências de mundo de que os profissionais da área sempre tenham
cada um; sem, com isso, pretender em mente o percurso histórico que se deu
capturálas, respeitando a legitimidade de até chegarmos à conjuntura que temos
sua diferença. Significa também pensar um atualmente. Trata-se de um compromisso
modelo de atenção e de cuidado para o ético-político de revisão constante dos
outro, que não visa restaurar uma suposta nossos métodos, técnicas e concepções
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A empatia como atitude ética no cuidado em saúde mental
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epistemológicas, refletindo sobre quais as tentamos demarcar nossa posição de que a


ideologias e paradigmas de cuidado que ética nas relações de cuidado, consiste no
estamos reforçando com nossas práticas. compromisso com a acolhida à diferença e
Nesse sentido, longe de fazer uma a compreensão da alteridade como um
leitura puramente utilitarista do conceito infinito não categorizável, ou seja, na
rogeriano de compreensão empática, negação radical da totalização do outro ao
buscou-se neste trabalho compreender de domínio do mesmo.
que forma a empatia, como atitude Desta forma, encontramos na teoria
facilitadora do crescimento humano pode rogeriana, em especial no conceito de
ser considerada uma atitude ética na compreensão empática, um alicerce
dimensão do cuidado em saúde mental. epistêmico que nos possibilitasse a
Consideramos pertinente esta discussão, formulação de novas práxis no cuidado em
pois acreditamos que se configure como saúde mental. Acreditamos que a ACP parte
uma via de várias mãos possíveis, tanto de princípios de respeito à dignidade
pela possibilidade de reflexão do agir ético humana que dialogam de forma consistente
no contexto de saúde mental e da prática com o modelo de atenção psicossocial,
psicológica, como para pensar formas de principalmente no que se refere à ênfase na
atuação da abordagem centrada na pessoa dimensão relacional como tecnologia de
no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, cuidado e promoção da saúde. Esperamos
embora não se pretenda que esta discussão ainda que este trabalho propicie novas
se traduza em verdades prontas e absolutas, discussões acerca da relação entre ACP e o
mas que propicie e instigue cuidado em saúde mental, no intuito de
questionamentos futuros. construção de novas práticas que
Intentamos, nesta discussão, fortaleçam o projeto de sociedade
contribuir com subsídios teóricos e defendido pelo paradigma da Reforma
conceituais com vistas a aprofundar a Psiquiátrica.
discussão sobre ética, alteridade e empatia
no cuidado em saúde mental, haja vista essa Referências
ser uma discussão fundamental para a Agamben, G. (2008). O que resta de
Auschwitz: o arquivo e a testemunha.
superação radical do modelo manicomial, São Paulo: Boitempo.
cujo princípio basilar é a desumanização do
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outro como pretexto para justificar opções Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro:
práticas, teóricas e epistemológicas de Fiocruz. (Original publicado em 2007)

aniquilação da subjetividade. Desta forma,


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Dassayeve Távora é psicólogo e


mestrando pelo Programa de Pós-
Graduação
Profissional em Psicologia e Políticas
Públicas da Universidade Federal do Ceará
(UFC) Campus de Sobral. Especialista em
Psicologia em Saúde (CRP 11). Especialista
em Caráter de Residência em Saúde da
Família (ESPVS).
E-mail: dassayevelima@hotmail.com

Mariana Tavares Cavalcanti Liberato é


psicóloga (UFC), mestre e doutora em
Psicologia (UFRN); Professora adjunta do
curso de Psicologia da Universidade
Federal do Ceará (UFC).
E-mail: mariana_liberato@yahoo.com.br

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