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Resenhas

EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (n. 1, v. 3): 173-204

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma


teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

O DESEJO DE UM SER HUMANO É DESEJO DO DESEJO DO OUTRO

*Socióloga. Mestre e doutoranda Nilce da Silva*


em Educação (USP/Paris 13).
Professora de Metodologia da
Pesquisa e Sociologia da UNINOVE Freqüentemente, indagamo-nos: reflexão que o professor Charlot e o
e das FAC-São Roque.
Por que muitos dos nossos alunos ESCOL têm feito sobre a problemática
fracassam na escola? Por que algumas educacional.
crianças das classes populares têm su- A abordagem teórica proposta
cesso nos estudos? Ou ainda, por que por este grupo foge do senso comum,
este fracasso é mais presente entre as organizando-se a partir da perspectiva
famílias de categorias sociais menos da relação do saber com a escola. Tem
favorecidas? como objeto de pesquisa ‘a relação com
Todas estas dúvidas, que invadem o saber’ construída por alunos de escolas
E
C
as reflexões dos educadores, presidiram de ensino médio de bairros do subúrbio
C
1
Bernard Charlot é professor de o nascimento do grupo de pesquisa da cidade de Paris e, a partir desta re-
Ciências da Educação na Uni-
O vesidade Paris VIII. coordenado pelo professor Charlot1, lação, estudam as questões pertinentes
S denominado ESCOL – Educação, ao fracasso escolar.
R Socialização e Coletividades Locais –, Em seu livro, Charlot afirma ca-
E ligado ao departamento de Ciências da tegoricamente que o fracasso escolar é
V. Educação da Universidade Paris VIII um objeto de pesquisa ‘inencontrável’,
C
desde 1987, e ainda hoje orientam suas algo que não pode ser constatado pela
I pesquisas. experiência. O que existe são alunos
E A obra Da relação com o saber: em situação de fracasso escolar (os que
N
T.
elementos para uma teoria, objeto desta não acompanham o ritmo da classe, os
resenha, apresenta, de modo claro e desordeiros, os apáticos...), porém o
n. 1 consistente, o caminhar desse grupo objeto de estudo “fracasso escolar” não
v. 3 aliado às suas pesquisas de campo, num existe enquanto fenômeno.
diálogo fértil com as principais teorias Argumenta o filósofo que afirmar a
jun. que tratam da questão do fracasso inexistência do fracasso escolar é recusar
2001 escolar. A base dos trabalhos é a longa um modo de pensar automático, em

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que ele é declinado como imigração, da Sociologia não conseguem ir além


pobreza, fatalidade e doença. Tal situ- das correlações entre algumas variáveis
ação equivocada, ou ainda predatória, estatisticamente medidas. São limitadas
ocorreria, entre outros motivos, pela porque não explicam, por exemplo,
busca desesperada das causas do fracasso o motivo pelo qual certos alunos não
escolar, como se este fosse desencadeado aprendem, refugiam-se na indiferença, ou
por alguma espécie desconhecida de ainda explodem na violência.
vírus ou herança genética. Dada a plenitude de sua análise,
Nas palavras de Charlot, Charlot destaca também o alcance res-
trito atingido pelas diversas formulações
O “fracasso escolar” não existe, o que teóricas que sustentam ser a deficiência
existe são alunos fracassados, situações cultural a causa para a ocorrência do fra-
de fracasso, histórias escolares que casso escolar. Interpreta-se equivocada-
terminam mal. Esses alunos, essas mente que tal falta provém da carência
situações, essas histórias é que devem da família de origem e, mais uma vez, a
ser analisados, e não algum objeto teoria das diferenças engana-se quando
misterioso, ou algum vírus resistente, entra em cena para explicar as inexisten-
chamado “fracasso escolar”. (p. 16) E
tes relações de causa e efeito. C
Para o autor, a deficiência gera C
Dessa maneira, os resultados de pes- benefícios ideológicos aos docentes, já O
quisas quantitativas referentes à temática, que o professor fica livra de uma possível S
mais precisamente as análises estatísticas culpa pelo fracasso escolar, imputando-a R
sobre as relações entre as variáveis envol- aos seus alunos e às respectivas famílias. E
vidas no problema, têm sido usadas para Além disso, ao atribuírem a causa do V.
afirmar que a causa social do fracasso fracasso à instituição escolar, descompro- C
escolar é a origem das famílias das crian- metem-se com ela, em nome da imagem I
ças que padecem de deficiências socio- de uma boa instituição, provavelmente E
culturais, ou seja, a causa do fracasso N
idealizada. T.
escolar é a origem sociofamiliar pouco Diante dessa postura prático-teóri-
favorecida de boa parte dos alunos. Esse ca e ideológica, bastante enraizada nas n. 1
modo de abordar o tema é notório nas nossas mentalidades, a obra em questão v. 3
sociologias da reprodução, com ganhos, propõe o exercício de uma leitura posi-
limites e inúmeros erros de interpreta- tiva dos alunos, em suma, das pessoas: jun.
ção. Para este pensador, essas versões o que elas fazem, o que conseguem e 2001

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o que sabem. Tal postura constituiria Tal relação, segundo o filósofo fran-
uma nova definição metodológica e cês, remete às questões de identidade,
epistemológica, em que a pessoa seria pois este ou aquele saber sempre fazem
concebida como um sujeito que age e referência a determinado grupo social.
reage, mesmo que dominado. Nesse momento, podemos perceber
Assim, o educador francês propõe a quanto a figura do professor é impor-
construção de uma Sociologia do sujeito- tante na sala de aula e nessa relação, pois
ser humano aberto ao mundo que não se é ele que pode favorecer uma mudança
reduz ao aqui e agora. Para ele, o sociólogo de identidade do aluno.
deve aproximar-se do psiquismo, mais Portanto, para Charlot e sua equi-
precisamente da Psicanálise. Isto se deve pe, a análise da relação com o saber deve
especialmente à idéia de que o desejo ser feita nas dimensões epistêmica e
de uma pessoa é desejo do desejo do identitária. É nesse sentido que se pode
outro. Dessa forma, a experiência esco- dizer que a relação estabelecida por um
lar passa a ser entendida como relação sujeito com o saber é uma forma de
consigo mesmo, com os outros e com o relação com o mundo, com ele mesmo
E
saber, ou seja, desejar o saber passa pelo e com os outros.
C desejo do desejo do outro (forma pessoal Em suma, um pesquisador, um
C de alteridade, como ordem simbólica, professor, ou qualquer outra pessoa
O
S
ordem social). preocupada com a questão do fracasso
Novas relações com o mundo de- escolar precisam, antes de mais nada,
R vem ser estabelecidas para que determi- estar atentos para a relação deste ou da-
E nado saber se relacione com determina- quele aluno com o saber, tendo em vista
V.
do aluno não apenas no plano cognitivo o conceito de desejo: desejo de ser o desejo
C ou didático. Muitos alunos instalam-se do outro. Sendo assim, faz-se mister a in-
I numa postura do saber que não é perti- tegração das mais diversas áreas do saber
E
N
nente para se ter sucesso na escola; não e a estreita comunicação entre os saberes
T. conseguem passar da não-posse à posse produzidos em cada uma delas.
do saber, em outras palavras, do saber Finalmente, resta-nos recomendar
n. 1 virtual ao real. Esta relação epistêmica vivamente a leitura deste livro na me-
v. 3 está encarnada no corpo do aprendiz dida em que a problemática que intriga
engajado no mundo. Charlot e muitos outros pesquisadores
jun.
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